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Governo do Estado do Rio de Janeiro

Procuradoria-Geral do Estado
Centro de Estudos Jurídicos
Escola Superior de Advocacia Pública – ESAP

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITO E ADVOCACIA PÚBLICA

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO (TCC)

EDGARD MONTEIRO DE MENEZES

DIREITO À SEGURANÇA E SEGURANÇA DOS DIREITOS NO RIO DE JANEIRO

Considerações atuais a respeito da Segurança Pública e dos Direitos Fundamentais


Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito e
Advocacia Pública como requisito para a obtenção
do título de Especialista em Direito Público junto
à Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) em convênio com a
Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro (PGE-
RJ)

Orientador: Prof. Dr. Leonardo Carrilho Jorge

Rio de Janeiro
2021
1. Introdução

Um ano que não acabou. Dois mil e vinte é contínuo. Vigentes a peste, a crise sanitária,
o desmonte previdenciário, a letalidade policial evidente, em um contexto de violência urbana,
neste Estado-membro, não cindido por acidente, surgem questões jurídicas inúmeras. Na
Cadeia Pública José Frederico Marques (Benfica), na Escola Municipal Wilian Peixoto (Maré),
ou no Hospital Estadual Anxieta (Caju), podemos questionar se há política de proteção e de
segurança dos direitos das pessoas que ali estão. Problemas que afetam nossa compreensão
sobre Segurança Pública serão objetos desta monografia. Dentre os incontáveis problemas de
direito e provocados pelo Direito, este foi o escolhido: direto à segurança (art.6º e art.144, caput,
da CRFB/88).
O Direito não é dado por forças acidentais que colidem no espaço, nem o sobrenatural
o influencia. Não é científico em si. Na crítica aos que pressupunham a sobreposição das ideias
e dos desejos sobre a realidade material, Karl Marx, em Carta a Annenkov, dois anos antes dos
primeiros dias, em 1848, que abalaram o mundo moderno, escrevera

Coloquemos certos graus de desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo,


e teremos tal forma de constituição social, tal organização da família, de ordens ou de
classes, em uma palavra, tal sociedade civil. Coloquemos tal sociedade civil, e
teremos tal Estado Político, que é a expressão oficial da sociedade civil. 1

O Direito – “forma de relação social de subjetividade jurídica” 2- é também a ideologia


que nos permite enxergar o Estado – expressão oficial da sociedade civil (que, se não descritível
e homogênea, nada mais é do que o domínio de uma classe hegemônica organizada sobre
outras3) - como pessoa. Vale dizer, apenas é possível o alcance da crítica racional aos
acontecimentos jurídicos, no Estado do Rio de Janeiro (neste caso), espaço e território em que
a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro tem enorme importância, descortinando a
aparência das coisas, desnaturalizando os acontecimentos - e a segurança na acepção de ordem
abstrata -, e compreendo as questões sociais, políticas e econômicas que nos implicam.

1
MARX, Karl, 1818-1883. Miséria da Filosofia/ Karl Marx.; tradução Torrieri Guimarães; prefácio e notas Jean
Kessler. – São Paulo ; Martin Claret, 2008. – (Coleção a obra-prima de cada autor ; 258). Carta de Marx a
Annenkov. Página 48.
2
Conceito apreendido e compreendido em MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo:
Boitempo, 2013.
3
LYRA, D. Araújo (org.). Desordem e processo- estudos em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre:
Ed. Fabris, 1986. A crítica do jovem Marx à concepção hegeliano do estado e do direito, cit., p. 140.
No Estado fluminense, “capital” turística de um país cuja economia capitalista é
dependente (Ruy Mauro Marini4) e que está em franca desindustrialização, em que o
Governador eleito foi afastado – não por atirar de um helicóptero contra moradias populares de
uma favela – a segurança pública é um dos temas de maior reverberação e reivindicação
midiática. Também, não pelos três anos da execução da vereadora negra e periférica Marielle
Franco (5ª vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro), não por Ágatha Vitória Félix,
assassinada aos 8 anos, em 2019, não pela morte de Wesley Castro Rodrigues, de Kauã Vitor
da Silva, de Kauê Ribeiro dos Santos, de Ray Pinto Faria5, de Jefferson Bispo da Silva Freitas,
de João Pedro Mattos Pinto67, e de muitos outros (histórias concretas) que deixaram de viver
após uma operação policial8, crianças e jovens, negros e pobres9.
Portanto, na direção do que ressalta a professora Vera Malaguti Batista (UERJ)10,
quando lembra “Joel Rufino (dos Santos) dizia ‘a esquerda não tem que ter uma política de
segurança pública, a esquerda tem que ter uma política de proteção dos direitos’, e Alessandro
Baratta dizia ´não é direito à segurança, é segurança dos direitos”, este trabalho questionará
pontos pertinentes do atual modelo segurança pública sob a perspectivas dos direitos e das
garantias humanas fundamentais, tendo como parâmetro a realidade fluminense, que despontou
com o maior número de mortos por policiais em 22 anos (2020)11.
Inevitavelmente, ao estudarmos aspectos do direito à segurança no Rio de Janeiro,
redigiremos a respeito de política de segurança pública fluminense, ainda que sem pretensões
de esgotamento do tema. Segundo o professor Nilo Batista, a ênfase na instituição policial

4
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência/ uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini; organização
e apresentação de Emir Sader. – Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires; CLACSO, 2000.
5
“Adolescente de 14 anos é morto durante operação no Rio; família acusa PM”, por G1 Rio, em 22/02/2021,
disponível em encurtador.com.br/otB48
6
Causo da morte de João Pedro Mattos Pinho também está registrada na ADP nº635, em decisão do Ministro
Relator Edson Fachin, de 5 de junho de 2020.
7
“Doze crianças morreram baleadas no Rio de Janeiro, em 2020.”, por G1 Rio, em 07/12/2020, disponível em
encurtador.com.br/ekFS2.
8
Em sede do Agravo de Instrumento nº0061192-31.2020.8.19.0000, protocolado em 05/09/2020, a Procuradoria
do Estado do Rio de Janeiro, sem debater dados, afirma “O Estado não nega que os abusos existam e, neste ponto,
procura apurar e punir os seus responsáveis, sempre observando o devido processo legal. Tais abusos, contudo,
não podem ser considerados a regra...A verdade é que o corpo policial é composto por policiais dedicados que, no
dia a dia, dão inúmeros exemplos de combate à criminalidade”. Página 04.
9
Conforme consta em decisão do Ministro Edson Fachin, na ADPF nº, em 18-08-2020, página 3 de 198, “A Corte
Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília, reconheceu que há omissão relevante do
Estado do Rio de Janeiro no que tange à elaboração de um plano para a redução da letalidade dos agentes de
segurança.”
10
Gravação em Podcast “Segurança dos Direitos”: https://soundcloud.com/segurancadosdireitos
11
Reportagem “RJ tem maior número de mortes por policiais em 22 anos; e o 2º menor índice de homicídios já
registrados pelo ISP”. In: sítio eletrônico “g1.globo.com”, do dia 22/06/2020. Dados do Instituto de Segurança
Pública (ISP).
(política de segurança pública) é integrante da política criminal, ao lado da política judiciária e
da política penitenciária12. Direitos humanos, direito constitucional e direito administrativo são
matérias íntimas ao tema que emerge neste Estado-membro, já que todos integram o direito
público.
Neste sentido, após introduzir a contradição entre violência e direitos humanos, nos
debruçaremos sobre: (i) presunção de veracidade do ato administrativo e a palavra do policial
militar nos procedimentos inseridos nos processos penais e administrativos, (ii) revista Íntima
e vexatória, (iii) operações militares com sobrevoos de helicópteros em áreas carentes, (iv) o
papel da Procuradoria Geral do Estado em um contexto de necessidade de democratização das
instituições.

2. Ordem, violência e direitos humanos

A forma de relação social fundada na subjetividade jurídica que assim proclama “a


segurança é minha por direito”, sob uma compreensão de que a sociedade é a mera soma de
seres humanos iluministas detentores de livre-arbítrio, que apreciam, que pedem proteção e
buscam, homogeneamente, os mesmos bens jurídicos13, e que exclui o mundo existente para
além do bairro de quem reivindica a todo custo a sua paz, é o que podemos identificar como o
direito à segurança pública compreendido pelo senso comum. Em outras palavras, explicar-se-
ia a segurança pública como ordem14:
Ademais, o artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 faz
transparecer a mesma noção, principalmente se lido isoladamente, eis que “A segurança
pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da
ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos
(...)”.
No entanto, essa ordem – subtraída da doutrina positivista, debruçada em hipóteses de
identificação de problemas no outro – é solipsista e, portanto, perante o debate público, torna-
se abstrata, senão irreal. Aparentemente, roubos praticados por grupos de jovens, na orla da
zona sul carioca, causam mais arrepio social do que o falecimento de um jovem negro em
decorrência de uma operação militar, na periferia.

12
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro- 12ª edição- Rio de Janeiro: Revan, 2011. 2ª
reimpressão, março de 2015. p.33.
13
Crítica construída no livro TANGERINO, Davi de Paiva Costa, 1979-. Culpabilidade/ Davi de Paiva
Tangerino.- Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
14
NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública: questões controvertidas penais,
processuais penais, de execução penal e da infância e juventude. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
A corroborar com a afirmação acima, aparecem os dados do Banco Nacional de
Monitoramento de Prisões –CNJ (2018), demonstrando que roubo (art.157 do CP), furto
(art.155 do CP) e tráfico de drogas (art.33 da Lei 11.343/2006) correspondem a 60,95% dos
tipos penais mais recorrentes imputados às pessoas privativas de liberdade (homicídio,
latrocínio e estupro não chegam juntos a 15%)15, enquanto, no Rio de Janeiro, há a tendência
de apenas 3,7% dos inquéritos das mortes decorrentes de intervenção policial virarem processo,
prevalecendo a narrativa policial, segundo pesquisa do Núcleo de Estudos da Cidadania,
Conflito e Violência Urbana da UFRJ, em 201116.
Nota-se que a concepção de ordem e de paz social é seletiva, sobretudo se destoada de
qualquer compreensão referente aos direitos humanos, direitos fundamentais
internacionalmente proclamados.
A respeito da acepção de segurança positivada como ordem, o Grupo de Trabalho de
Segurança Pública, do projeto Brasil Popular, sob coordenação da professora da UERJ, Vera
Malaguti Batista (2017, p. 5), explica:

A ideia de ‘ordem’, como paradigma à formulação de políticas públicas, adquire força


semântica justamente em razão de sua simplicidade e, em especial, do imaginário
relacionado ao seu contrário, pois a desordem é assimilada como catastrófica, sem que
seja analisada com maior profundidade. Todavia, a ideia de ‘ordem’ acaba por servir
de óbice à construção de um modelo complexo, que respeite os aspectos positivos dos
conflitos, e efetivamente capaz de formular respostas, em especial respostas não-
violentas, às situações problemáticas que são inerentes ao convívio social. Por isso,
construir um modelo comprometido com os direitos fundamentais e o respeito às
diferenças passa por uma mudança de paradigma, com a substituição das ideias de
ordem e exclusão da desordem (as chamadas ‘políticas de ordem’: law and order,
broken windows, etc) para a emergência de um paradigma comprometido com a
concretização dos direitos fundamentais a partir da compreensão e da administração
das situações problemáticas.

José Paulo Netto, reconhecido intelectual e professor emérito da UFRJ, costuma


explicar, em suas conferências, que a oposição entre ser humano e sociedade é equivocada,
porque apenas existe ser humano em sociedade. Nesse sentido, a apreensão partida e

15
https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cadastro-nacional-de-presos-bnmp-2-
0?utm_source=banner , acesso em 10/02/2021.
16
GRILLO; TEIXEIRA; NERI; “Autos de Resistência”: uma análise dos homicídios cometidos por policiais
na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011), Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (UFRJ),
coordenação Michel Misse, Rio de Janeiro, 2011.
individualista da acepção do direito à segurança pode nos levar à cegueira perante problemas
concretos.
Igualmente, esquivar-se de qualquer pretensão de individualização dos problemas e das
responsabilidades é de suma importância. Não há, aqui, pretensões de criticar o trabalhador
policial, nem de fazer uma ortopedia moral daqueles que são membros dos órgãos que integram
as funções de Poder. Por outro lado, interessante pode ser pesquisar e analisar a estrutura da
violência/a violência da estrutura social, e o porquê de os direitos humanos sofrerem a leitura
de serem meras sugestões.
Direitos Humanos e violência cotidiana se opõem por completo, porque, uma vez
desrespeitados os direitos fundamentais universais, a brutalidade acaba vigendo. Vale dizer,
enquanto houver violações de direitos humanos, haverá violência urbana. Ou melhor, inexistirá
segurança pública, direito fundamental que deve ser estabelecido, a partir do objetivo
constitucional republicano de erradicação da pobreza e da marginalização (art.3º, III, da
CRFB/88), enquanto uma grande parcela da população viver sufocada em uma realidade febril
e militarizada de execuções sumárias, de invasões domiciliares, de prisão a céu aberto e de
incontrolável poder policial. Assim ensina a professora e ex-magistrada Maria Lúcia Karam:

A segurança e a necessidade de proteção geram direito à conservação da vida e da


integridade pessoal, o direito à preservação contra qualquer forma de dano corporal
produzido, seja pela natureza, seja por indivíduos, coisas ou atividades empresariais
ou públicas.
É com base na identificação destas necessidades fundamentais e dos direitos humanos,
a partir delas precisados, que se pode superar a parcial visão de violência, reduzida
pelos discursos dominantes à ideia de condutas geradas pela criminalidade
convencional, para, construindo um conceito mais real e mais abrangente, definir
como violentos todos os fenômenos que, impedindo a satisfação daquelas
necessidades e, portanto, violando os direitos humanos, constituem atentados à
sobrevivência biológica, espiritual e cultural da espécie humana. 17

17
KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1993, p. 145.
As permanências positivistas18 na política de segurança pública, com marcos
etiológicos19 , medicinais20 e biologistas, demonstradas nas suas origens por Mariza Corrêa, em
“As ilusões da Liberdade – a Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil” (Bragança
Paulista, 2001), se encontram presentes, no Estado do Rio de Janeiro, quando territórios pobres
são alvos de cercos, de controles e de tiros perpetrados por agentes de instituições públicas-
estatais, enquanto a mesma política é impensável para as áreas nobres do município ou do
estado-membro onde a criminalização secundária21 de condutas como o tráfico de drogas não é
marcada pelo mesmo nível de brutalidade. Observa-se, assim, a racialização social “no
atacado”, ou o que o jurista Silvio Luiz de Almeida identifica como elemento do racismo
estrutural22. Nesse sentido, escreve o delegado de Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando
Zaccone:
O controle sobre as populações pobres e, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro,
das áreas ocupadas por essa população, conhecidas por ´favelas`, é o exemplo mais
gritante do exercício configurador positivo. (...)
O poder penal exercita um poder de vigilância disciplinar de uso cotidiano, nas áreas
carentes.23

Ao contrário do que se imagina, não são os criminólogos radicais, ou os antipenalistas,


inspirados pela criminologia crítica, que associam pobreza a delito como forma de explicar atos
antissociais e problemáticos (o que justifica o quadro de violência urbana – por exemplo - não
é meramente a pobreza, consequência da violência estrutural), mas sim a política oficial de
segurança pública respaldada por discursos e por interpretações do Direito. Assim, explica
Juarez Cirino dos Santos

A insistência de teóricos liberais e conservadores sobre estatísticas, como indicação


da extensão do crime na sociedade, ou de que criminosos condenados são a maior
aproximação possível da quantidade real de violadores da lei, decorre da explicação
da criminalidade por fatores pessoais (biológicos, genéticos, psicológicos etc.) ou

18
“Muito mais do que uma escola de pensamento, constitui-se numa cultura. O positivismo representa uma
atualização, um continuum e até uma sofisticação dos esquemas classificatórios, hierarquizantes, produzidos pela
colonização do mundo pelo capital” em BATISTA, Vera Malaguti, 1955-. Introdução à criminologia
brasileira/Vera Malaguti Batista.- Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição, julho de 2012, 2ª reimpressão, 2015.
p.41.
19
Busca-se a causa do crime, enquanto categoria ontológica, ou atributo da personalidade de pessoas. Para o
positivismo não há as indagações acerca do que é criminalizado e de quem é criminalizado, mas sim de quem é o
criminoso.
20
Nilo Batista denuncia o “enraizamento da infração na constituição biológica do sujeito”, em conferência
realizada pelo IBCCRIM, gravada e presente em https://soundcloud.com/segurancadosdireitos/episodio-61.
21
Segundo os ensinamentos de Eugenio Raúl Zaffaroni é “a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que
acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado
primariamente.”
22
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
23
D`ELLIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do Nada: quem são os traficantes de droga – Orlando
Zaccone D`Ellia Filho- Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.30.
sociais (ambiente, família, educação etc.), que seriam responsáveis pela super-
representação das classes dominadas e pela sub-representação das classes dominantes
nas estatísticas criminais. Mas a confiabilidade das “evidências” (no caso, o dado
estatístico) e a validade das teorias da criminologia tradicional são destruídas pela
relatividade do crime e pelas chamadas cifras negra e dourada da criminalidade: o
crime varia conforme o tipo de sociedade e o estágio de desenvolvimento tecnológico,
o que significa ausência de crimes naturais e identidade entre criminosos e não
criminosos, exceto pela condenação criminal. 24:

Fosse o contrário (inexistindo a seletividade), enxergar-se- ia como delinquentes os


traficantes de drogas ilícitas de Ipanema ou da Barra, os banqueiros que traficam informação
privilegiada e que operam nas boutiques financeiras do Leblon, bairros cuja tranquilidade não
é afetada por invasões do “caveirão”, pelo trabalho de “snipers” ou por “mandado de busca e
apreensão coletiva”.
Assim, é por dentro das normas vigentes e do discurso jurídico filtrado pela Constituição
de 1988 que, nos tópicos a seguir, buscar-se-á, com o devido desvio de matérias que não são
pertinentes às normas jurídicas de âmbito estadual, ferramentas ou fundamentos dogmáticos
úteis para limitação do poder de controlar, de punir e de matar, que o Estado possui, e para a
efetivação das garantias constitucionais fundamentais das quais também ele pode ser guardião,
na tentativa de inserir significado concreto ao direito à segurança (art.6º e 144, caput, da
CRFB/88).

3. A motivação nos Atos Administrativos e a Presunção de Veracidade do alegado


pelo Servidor Público Estadual

O serviço público é fundamental para democracia do país, porque pode ser impessoal,
transparente (art.37, caput, da CRFB/88), participativo, neutralizador de mercantilização
(Alessandro Baratta fala em mercantilização da segurança25) etc.
Ademais, as garantias de trabalho, inseridas no regime estatutário – a partir do qual
vislumbra-se o desenvolvimento das potencialidades produtivas do servidor fora dos marcos da
competitividade liberal -, ainda vigentes, são de suma importância para qualquer projeto
político e jurídico que mire a emancipação humana e a existência de uma sociedade mais justa
e igualitária, a partir do nosso marco atual. Todavia, a partir da compreensão das contradições
estruturais, apresenta-se necessário o reforço da cultura democrática a respeito dos direitos

24
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical [recurso eletrônico]/ Juarez Cirino dos Santos. -4.ed-
Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 12
25
BARATTA, Alessandro. Seguridad. In Criminologia y Sistema Penal: compilacíon in memoria. Buenos Aires:
B de F, 2013, p. 200/202.
fundamentais, inaugurada e estimulada pela redação constitucional, tanto para a proteção dos
servidores26, quanto para a proteção dos cidadãos.

A respeito das garantias sociais e individuais, como fundamentos de um regime


democrático, o saudoso Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Miguel Lanzellotti Baldez
(2000), adicionando temperos históricos, escrevera:

Efeito da mobilização popular e sofrendo clara influência da Constituição Portuguesa


de 1976, quanto a seus fins socialistas, e da Constituição espanhola de 1978, vinda
após a escuridão fascista do franquismo, a Constituição de 1988, em seu título I,
estabelece, entre outros, os princípios fundamentais ‘da cidadania’ e da ‘dignidade da
pessoa humana’ (art.1º, II e III) e os objetivos, também conceituados como princípios
fundamentais, de construção ‘de uma sociedade livre, justa e solidária’ (art.3º, III), e
de ‘erradicação da pobreza e da marginalização’ e da ‘redução das desigualdades
sociais e regionais’. Entenda-se que, como princípios, significam fundamentos, e, por
serem fundamentos, deles decorrem, além dos direitos individuais, os novos direitos
sociais, os do regime relativo ao trabalho e os direitos sociais coletivos, como saúde,
educação e previdência social, exigindo-se, por outro lado, do Estado, para
concretização desses ditos direitos coletivos sociais, a adoção de políticas públicas
adequadas.27

O que parece valioso para a introdução dos direitos e garantias fundamentais no núcleo
duro da teoria dos atos administrativos é a confirmação por Baldez de que o objetivo
republicano de erradicação da marginalização (da qual a criminalização também é espécie)
funda o próprio universo e razão de existência desses direitos e garantias no Brasil.
Consequentemente, segurança pública deveria ser objetivada a partir da erradicação da
marginalização e da fomentação da cidadania. Vejamos.
Os direitos fundamentais possuem como características a universalidade, a
historicidade, a indivisibilidade, a imprescritibilidade e a inalienabilidade, a relatividade, a
inviolabilidade, a complementariedade, a interdependência e a efetividade28. Sobre a
Efetividade, Nathália Masson afirma que:

26
Nesse sentido, é importante registrar o aumento no índice de suicídio do trabalhador policial, afetado pela
violência institucional e alvo de muito assédio e de críticas. Pesquisa mencionada em IPPES Brasil:
encurtador.com.br/ehizU
27
BALDEZ, Miguel Lazellotti. Sobre a questão urbana. Revista da faculdade de Direito de Campos, ano 1, nº
1, Jan/Jun. 2000. p.16.
28
AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional/ Walber de Moura Agra. -9. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2018. p.194
A atuação dos Poderes Públicos deve se pautar (sempre) na necessidade de se efetivar
os direitos e garantias institucionalizados, inclusive por meio da utilização de
mecanismos coercitivos, se necessário for.
Direitos fundamentais formam um sistema harmônico, coerente e indissociável, o que
importa na impossibilidade de compartimentalização dos mesmos, seja na tarefa
interpretativa, seja na de aplicação às circunstâncias concretas. 29

O Estado do Rio de Janeiro é conflitivo e, tanto no plano do real quanto no do simbólico,


é possível perceber que as respostas pelo Direito circulam desigualmente30. O Fórum Brasileiro
de Segurança Pública publicou que, entre 2017 e 2019, policiais mataram ao menos 2.215
crianças e adolescentes (69% das vítimas são negras)31, no país, cuja liderança é puxada pelo
Estado do Rio de Janeiro. Com efeito, é muito pouco possível analisar esses dados, sem a
observação dos recortes de território e de classe social32.
Os arquivamentos de “autos de resistência”/ “mortes por intervenção policial”(art.292
do CPP), a prevalência da palavra do servidor público – principalmente aquele que é
militarizado-, a condenação de trabalhadores e trabalhadoras incapazes de provar o contrário
do que a Administração alega, em processos administrativos e judiciais, alimentam um regime
caracterizado pela insegurança dos indivíduos (a começar pelo descrédito dado às suas
palavras), e deslocam a responsabilidade de auditores, delegados, juízes, promotores e
procuradores para os servidores públicos de média hierarquia, já que esses tornam-se produtores
probatórios, e centro dos holofotes midiáticos, logo após um conflito.
Vale dizer, o devido processo legal (art.5º, LIV, do CRFB/88), o contraditório e a ampla
defesa (art.5º, LV, da CRFB/88), a presunção de inocência (art.5º, LVII, da CRFB/88), bem
como o objetivo republicano de erradicação da marginalização – como bem pontua Baldez
(2000) - são, cotidianamente, desrespeitados, e ainda de início, quando há uma situação
controversa e problemática entre servidor e pessoa comum. Sem segurança desses direitos,
inclusive, no plano administrativo, a vida dos mais desfavorecidos socialmente fica
demasiadamente desprotegida.

29
MASSON, Nathália. Manual de Direito Constitucional. Salvador: editora JusPODIVM, 2016, p.196.
30
Reportagem “Rio está entre as 10 metrópoles mais desiguais do mundo, diz estudo da Casa Fluminense”. In:
sítio eletrônico g1.globo.com, do dia 13 de julho de 2020. Amostra de dados obtidos por pesquisadores da Casa
Fluminense.
31
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, ISSN 1983-7364, ano 14. Fórum Brasileiro de Segurança
Pública. Coordenação Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima. p.90.
32
IPEA- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência 2020. Brasília, 2020. p.47. Disponível em
https://dx.doi.org/10.38116/riatlasdaviolencia2020
A respeito da presunção de inocência - direito fundamental de primeira geração,
redigido para possuir eficácia plena e aplicabilidade imediata -, o jurista e professor de Direito
Penal aposentado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Juarez Tavares, ensina:

(...) princípio da presunção de inocência... não é exclusivo do processo penal, senão


de todas as normas, até mesmo das normas de direito administrativo e de direito do
trabalho. Se há uma presunção de que todo processo de imputação só se torna válido
quando descartadas todas as chances de sua exclusão, da mesma forma todas as
condutas devem ser tidas como corretas, salvo quando se demonstrar o contrário. 33

Sendo assim, a presunção de inocência é regra fundamental constitucional, portanto


pertinente ao direito categorizado como público, no qual está inserido o direito administrativo,
o direito tributário etc. Não obstante isso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, quando
invocado a decidir acerca da nulidade de atos administrativos cujas motivações não possuem
lastros materiais demonstrados pela Administração Pública, fundamenta, praticamente de
maneira uniforme, em similares sentidos como “não logrou o demandante desconstituir a
presunção de legalidade e legitimidade do ato administrativo, eis que não fez prova do não
cometimento da infração”34.
Desconstruindo essa compreensão, que não possui raízes no texto constitucional, o
professor Alexandre Santos de Aragão (2015) leciona:

Em nossa opinião, por força do devido processo legal e dos princípios da publicidade,
da finalidade e da motivação, a administração pública tem de demonstrar os fatos que
ensejaram sua atuação, com o que, portanto, não concordamos com um princípio de
veracidade dos fatos alegados pela administração, salvo em casos excepcionais em
que essa prova seria, para ela, de impossível realização (a chamada “prova
diabólica”)35

33
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal (livro eletrônico) / Juarez Tavares. - 4.ed. – São Paulo: Tirant lo
Blanch, 2019. p. 320-321.
34
A exemplo: AC nº 0311082-54.2017.8.19.0001, AC nº 0281833-92.2016.8.19.0001, AC nº 0008458-
94.2017.8.19.0037.
35
DE ARAGÃO, Alexandre Santos. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro-
Algumas Notas Críticas Sobre o Princípio da Presunção de Veracidade dos Atos Administrativos. Rio de Janeiro:
Centro de Estudos Jurídicos- CEJUR, 2015.p. 37.
Em sentido parecido, Celso Antônio Bandeira de Mello escrevera que a presunção de
veracidade e legitimidade dos atos administrativos apenas vige enquanto não contendidos em
juízo36.
Como exposto acima, Alexandre Aragão apresenta a hipótese da prova diabólica. No
entanto, não é fácil imaginar uma prova que seria de impossível realização pelo Estado. Em
casos protagonizados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro – aproveitando, aqui, que
essa é uma instituição de grande importância para o tema de direito à segurança-, o alcance de
materiais que confirmem os elementos informativos declarados ou redigidos pelos
trabalhadores policiais é plenamente viável.
Neste Estado-membro, por exemplo, segue vigente a Lei Estadual de nº 5.588/2009, que
há dez anos determina a instalação de câmeras e aparelhos de captações de áudios nas viaturas
policiais, assim dispondo:

“Art.1º. Deverá o Poder Executivo instalar câmeras de vídeo e de áudio nas viaturas
automotivas que vierem a ser adquiridas para servir as áreas de Segurança Pública e
defesa civil.
Parágrafo único. Nas viaturas já existentes, a instalação do referido sistema deverá ser
implantada de forma gradativa.
Art.2º. As câmeras ou microcâmeras deverão ser integradas ao sistema de
comunicação central dos órgãos de Segurança Pública e Defesa Civil, para geração e
transmissão de imagens e som do interior da viatura em formato digital.
Art.3º. As imagens devem ser arquivadas por um período mínimo de dois anos e
poderão ser utilizadas para atender a demanda judicial e administrativa.
Art.4º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.” 37

A presunção de inocência, a possibilidade de exercício concreto do contraditório e da


ampla defesa não podem ser aniquilados, sobretudo quando a Administração, detentora de
recursos para aquisição de tecnologias diversas (e de ponta) e de pessoal para o trabalho, não
lastreia a motivação contida no ato administrativo. Torna-se difícil garantir a segurança dos
administrados, e assim reivindicar segurança pública no âmbito da democracia das grandes
massas, quando é conferido ao militar estadual a possibilidade e o poder de ser a própria prova
administrativa, civil e penal, no território de um Estado-membro marcado pela inserção das
milícias, do narcotráfico, e machucado pelo racismo histórico e estrutural.

36
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p.40.
37
Fonte: alerj.rj.gov.br
Nessa direção, merece crítica o enunciado da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro que, embora de natureza aparentemente processual e penal, possui aptidão de
interferência na vida dos moradores deste Estado- membro, já que implica na
administrativização dos processos e que fomenta o aumento do poder policial, num contexto
de expansão (para-) militar. A norma contêm o famigerado texto "O fato de restringir-se a
prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a
condenação."
No Rio de Janeiro, esse enunciado torna absoluta a desproporção de armas entre as
partes de um processo administrativo ou penal, inaugurando possivelmente uma categoria de
“juiz de beco”, cuja sentença é um Termo de Declaração em delegacia, e endereça o
aprisionamento daqueles que estão na periferia do centro financeiro. Assim, a mencionada
norma de incidência estadual é fator determinante de caracterização, em específico, das relações
sociais entre cidadão e polícia militar (cujos trabalhadores ficam ainda mais distanciados de sua
classe) e do próprio processo penal, no Rio de Janeiro, a despeito da competência exclusiva da
União (art.22, I, da CRFB/88).
Em outras palavras, a condenação de um cidadão já se torna viável – ou quase certa- a
partir da abordagem militar não passível de regulação e de avaliação, na localidade de uma viela
sombria, em franca afronta às atribuições conferidas pela Constituição de 1988 ao policiamento
ostensivo (art.144, §5º da CRFB/88). Em suma, a presunção de veracidade atribuída à palavra
do policial militar é dissonante do direito à segurança pública democraticamente possível,
pautado segundo o objetivo republicano de erradicação da marginalização e de garantia da
cidadania.
Por outro aspecto, a transformação do trabalhador policial em prova, na medida em que
a criação dessa é mera expressão de pequeno poder redigida a partir de uma expectativa externa
e funcional imposta sobre o militar, pode ser o que Marildo Menegat identifica como
coisificação do homem38. Em outras palavras: mediante a mercantilização da segurança pública,
forjada sob uma narrativa que constrói bodes expiatórios (no Rio de Janeiro, são esses os
comerciantes das favelas varejistas das “drogas”), o servidor público passa a ser determinado
pelas coisas (imensa coleção de mercadorias, e são as formas de “ordem” o que mais se vende),
tornando-se reificado.

38
MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas.- Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2012.
1ª reimpressão, janeiro de 2015. p.412.
Assim, pode ser notada também a violação da dignidade humana do policial ou do
servidor público, instrumentalizado porque posto na condição de ser criador de “provas”.
Não é de se duvidar que o conteúdo do enunciado da Súmula nº 70 do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro tenha profunda ligação com a doutrina confirmativa do “Princípio de
presunção de veracidade dos atos administrativos”.
De acordo com a doutrina convencional do Direito Administrativo39, os elementos do
ato administrativos são extraídos do art.2º da Lei 4.717/1965 e são: sujeito, forma, objeto,
motivo e finalidade. O motivo é o fato que enseja a prática do ato e, grosso modo, a motivação
é a redação desses fatos em documento lavrado conforme a forma necessária.
Rafael Carvalho Rezende Oliveira afirma que a motivação é:

a exteriorização dos motivos. O agente público menciona expressamente os motivos


que justificam a edição do ato administrativo. Ex.: ao editar o ato, o Chefe do
Executivo enumera as justificativas (“considerando a situação de calamidade
pública”; “considerando a ausência de leitos públicos necessários para o atendimento
da população” etc.), antes de decretar as medidas que serão adotadas no caso concreto.
Nesse caso, as justificativas apresentadas configuram a motivação do ato.40

Se, logo, a motivação é a redação de fato que existiu, tais fatos devem ser demonstrados.
Novamente, Alexandre Santos de Aragão (2015, p. 33) ensina que:

O princípio da motivação deve atuar para mitigar ou abolir o princípio da presunção


de veracidade dos fatos alegados pela administração, que ‘a Administração Pública’
deve provar no plano material das relações, de maneira que, se deixa de provar, e,
todavia, dá como provado determinados fatos, a decisão que adotar será inválida.

Portanto, por apreço ao princípio democrático, apresenta-se pertinente e urgente


considerações acerca da Teoria dos Motivos Determinantes, segundo a qual “a motivação
representa um instrumento fundamental para a ampliação e a efetividade do controle externo
do ato” (OLIVEIRA, 2018. p. 356). Com efeito, a Administração Pública condicionada ao
Estado Democrático de Direito deve lastrear suas redações, suas justificativas e suas
motivações, de modo que seja possível o controle efetivo e concreto de seus atos pelo Judiciário
e pelo povo. Nesse sentido, novamente cabe a citação de Celso Antônio Bandeira de Mello
(MELLO, 2010, p. 402):

Parece-nos que a exigência de motivação dos atos administrativos, contemporânea à


prática do ato, ou pelo menos anterior a ela, há de ser tida como uma regra geral, pois
os agentes administrativos não são “donos” da coisa pública, mas simples gestores de

39
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26.ed. São Paulo: Atlas, 2013.
40
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: Método,2018. p. 354.
interesses de toda a coletividade, esta, sim, senhora de tais interesses, visto que, nos
termos da Constituição, “todo o poder emana do povo (...)” (art- Ia, parágrafo único).
Logo, parece óbvio que, praticado o ato em um Estado onde tal preceito é assumido e
que, ademais, qualifica-se como “Estado Democrático de Direito” (art. Ia, caput),
proclamando, ainda, ter como um de seus fundamentos a “cidadania” (inciso II), os
cidadãos e em particular o interessado no ato têm o direito de saber por que foi
praticado, isto é, que fundamentos o justificam. Há de se entender que as razões
expostas, em princípio, exigem mais do que a simples enunciação ulterior das razões
que o estribaram, vez que para ciência a posteriori bastaria o supedâneo fornecido
pelos incisos XXXIII e XXXIV, “b”, do art. 5º, segundo os quais, e respectivamente,
é garantido aos administrados o direito de receber dos órgãos públicos “informações
de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”, e obter “certidões em
repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse
pessoal.

O devido processo legal precisa ser material, o contraditório e a ampla defesa precisam
ser materiais, a presunção de inocência nas suas dimensões de tratamento, de garantia e de
julgamento precisa ser material. No mesmo sentido, a possibilidade de controle dos atos
administrativos, derivada do art. 37, caput, da CRFB/88, é meio de combate à corrupção, o que
é fundamental para o direito à segurança.
Ilustrando: embora vigente a Lei Estadual de nº 5.588/2009, o carros policiais circulam
sem câmeras41. A partir desse fato, não seria possível imaginar que, diante da ausência de meios
idôneos de prova em contrário, um agente público poderia forjar um flagrante baseando-se
apenas em sua presunção de veracidade?
Nesse sentido, é de se supor e de se defender que a teoria ou a dogmática a respeito dos
atos administrativos atravesse a filtragem constitucional, capaz de eliminar as sujeiras
autoritárias. A “presunção de veracidade dos atos administrativos” cairia por terra, quando a
motivação administrativa se apresentasse como mera redação sem subsídios materiais, sem
vinculação de conteúdo concreto. Dessa maneira, poderíamos fortalecer o projeto
constitucional do direito à segurança, igualitária e humanamente aceitável, porque, a partir da
incompatibilização entre dogmática e as “duras para averiguação” justificadas pela narrativa da
Administração, estaria comprometido com a erradicação da marginalização (BALDEZ, 2000),
com a presunção de inocência (TAVARES, 2019), com o devido processo legal e,
consequentemente, com a vida de todos.

4. Revista íntima e vexatória (Lei Estadual 7.010/2015)

Segundo o “Censo Sistema Prisional” do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do


Sistema Carcerário do Poder Judiciário do Rio de Janeiro, a população carcerária no Estado

41
Matéria do jornal Extra “Menos de 10% das viaturas da PM do Rio têm câmera, obrigatórias por lei”, datada em
15 de Janeiro de 2019.
corresponde a 51.643 pessoas, em dezembro de 202042. Se pensarmos a respeito das famílias
que são atingidas pela realidade do cárcere e seus efeitos concretos e simbólicos, talvez
poderíamos estimar que quase duzentas mil pessoas são afetadas, de alguma maneira, pelas
implicações das normas que regulamentam o sistema penitenciário.
A principal porta de entrada do sistema presidiário fluminense, a Cadeia Pública José
Frederico Marques, está localizada no bairro de Benfica, zona norte carioca. Qualquer um se
espantaria com as audiências de custódia, porque há uma imensa fila de mulheres negras (mães,
filhas e esposas) à espera de notícias sobre seus entes queridos.
Com um sol para cada cabeça, quase diariamente, mulheres, em maioria negras, esperam
horas por respostas sobre a vida dos custodiados. “Telefones sem fio” ou fake news sobre mortes
de jovens e brigas entres facções rivais percorrem o espaço hostil externo ao presídio,
proporcionando agonia nas pessoas que ali esperam. Eis uma realidade de tortura psicológica.
Além disso, em todas as instituições que pertencem ao sistema penitenciário, essas mulheres
sofrem humilhações e constrangimentos de complicada descrição.
Muito rotineiras no Estado do Rio de Janeiro eram as revistas íntimas. A revista íntima
e, portanto, vexatória, é uma modalidade de revista, sem objetivos terapêuticos ou sanitários,
que envolve o desnudamento parcial ou completo, e a inspeção de partes genitais, de cavidades
corporais do ou da revistada, comumente, por agentes de segurança. Esse é um tipo de
procedimento que, lido como meio de obtenção de provas, obriga(va) as mulheres visitantes a
fazerem agachamentos em estado de nudez, posições com o ânus apontado para o teto, e força
de parto capaz de expelir eventual objeto dentro de seus corpos. Mediante um consentimento
imposto, as visitantes poderiam, ainda, ficar sujeitas à colocação de espelhos debaixo de suas
pernas ou a toques ginecológicos.
Tais atos denotam um objetivo policial de controle não apenas dos presidiários, mas de
familiares que sofrem mesmo “livres” a violência da prisão, e violam, portanto, os art.1º, III,
art. 5º, X e XLV, da CRFB/88 segundo o qual “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”.
No mesmo sentido, a inspeção vexatória, com muita probabilidade, implica a retificação do
corpo feminino e mais ainda do corpo negro, tendo em vista ser de conhecimento público a
“clientela” do sistema prisional.
Não obstante o fato das revistas íntimas no presídios, a realidade dá conta de que as
revistas íntimas e vexatórias também ocorrem nas abordagens policiais, como se fossem buscas

42
Em: gmf.tjrj.jus.br/censo-sistema-prisional
pessoais43. Por exemplo, histórias de policiais militares que colocam a mão por dentro da
calcinha de mulheres revistadas, na suposta busca por material de flagrância para a imputação
do tráfico de drogas, não são tão incomuns.
Nesse sentido, retornamos aos problemas pertinentes à presunção de veracidade do que
é dito pelo servidor público em ato administrativo e à necessidade de cumprimento da Lei
Estadual de nº 5.588/2009, que obriga a instalação de câmeras e captadores de sons nos carros
policiais, apenas por exemplo. O direito à segurança democrático deve possibilitar o controle
da polícia e dos atos do serviço público pela população.
Há mais de cinco anos, foi aprovada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro, a lei de número 7.010/2015, proibindo a revista íntima. O conteúdo legislativo é
iniciado pela ênfase ao respeito à dignidade humana da pessoa a ser revistada, o que atende aos
objetivos da República Federativa do Brasil (art.3º da CRFB/88).
Igualmente curioso - porque no tópico anterior analisamos a hipótese de a
Administração se confrontar com a “prova diabólica” - é a explicitação de que o Estado possui
a capacidade de aquisição de tecnologias avançadas, capazes de proporcionar a não cogitação
da violação de direitos individuais. Estamos nos referindo à revista mecânica, realizada por
meio de aparelhos de raio-x, scanners corporais e detectores de metais (art.2º, §2º). Ademais,
destacam-se os seguintes artigos:

Art. 3º - Fica proibida, no âmbito das unidades prisionais do Estado do Rio de


Janeiro, a revista íntima.
Parágrafo único. Considera-se revista íntima toda e qualquer inspeção corporal
que obrigue o visitante a despir-se parcial ou totalmente, efetuada visual ou
manualmente, inclusive com auxílio de instrumentos.
Art. 4º - Admitir-se-á, excepcionalmente, a realização de revista manual em caso de
fundada suspeita de que o visitante traga consigo objetos, produtos ou substâncias cuja
entrada seja proibida por lei e/ou exponha a risco a segurança do estabelecimento
prisional.
§ 1° - Para efeito desta lei, a revista manual é equivalente ao procedimento de busca
pessoal, nos termos do Código de Processo Penal.
§ 2º - A fundada suspeita deverá ter caráter objetivo, diante do fato identificado e de
reconhecida procedência, registrado pela administração em livro próprio do
estabelecimento prisional e assinado pelo revistado e duas testemunhas. O registro
deverá conter a identificação do funcionário e a descrição detalhada do fato.
§ 3° - Previamente à realização da busca pessoal, o responsável pelo estabelecimento
fornecerá ao visitante declaração escrita sobre os motivos e fatos objetivos que
justifiquem o procedimento, dando-lhe a opção de recusa a se submeter ao
procedimento, no caso de desistência da visita.
§ 4º - A busca pessoal será efetuada de forma a garantir a privacidade do visitante, em
local reservado, por agente prisional do mesmo sexo, obrigatoriamente acompanhado
de duas testemunhas.

43
em:itcc.org.br/revista-vexatória-audiências-de-custódia
Os críticos dessa lei estadual argumentam que as garantias contra uma inspeção
completa em um visitante de presídio fortalecem os grupos organizados entorno de execuções
de práticas delituosas, instalados dentro do presídio, fortalecendo a insegurança da sociedade
perante o “crime organizado”. Igualmente, no intuito de criticar a aquisição de scanners
corporais, chegam a argumentar a crise financeira pela qual o Estado do Rio de Janeiro passa.
Talvez, seja mais custoso ao Erário Público o encarceramento em massa e as perdas em
processos administrativos e civis nos quais se discute a responsabilidade civil objetiva da
Administração, por seus atos capazes de atingir a ordem moral do cidadão.
Significante registrar que, no ano de 2015, foram movimentadas Representações de
Inconstitucionalidade da Lei 7.010/2015, pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro e pelo
Ministério Público do Rio de Janeiro. Em 2018, curiosamente, nos autos dos processos
0026431-47.2015.8.19.0000, 0026457-45.2015.8.19.0000 e 0036136-69.2015.8.19.0000, o
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manteve a validade da lei, a partir de fundamentos que
reforçam a ótica deste trabalho, vale dizer, afirmando que a Administração Pública deve pautar a
política de segurança tendo como principal referência a proteção dos direitos fundamentais.

E M E N T A: Representação de Inconstitucionalidade. Lei Estadual nº 7.010 de 25


de maio de 2015. Alegação de violação dos preceitos inscritos nos artigos 7º; 9º; 16;
25; 145, incs. II, letra a da Constituição do Estado. I - Edição, no âmbito federal, da
Lei n.º 13.271 de 15/04/2016, a qual dispõe sobre a proibição de revista íntima de
funcionárias nos locais de trabalho e trata da revista íntima em ambientes prisionais.
Veto Presidencial especificamente com relação ao artigo 3º, versando exatamente
sobre os estabelecimentos prisionais. Regra prevista no artigo 24, §§ 1º ao 4º da
Constituição Federal de 1988. II - Caráter geral da norma federal aventada. Tutela ao
afastamento da revista íntima. Princípio que deve ser observado pelos Estados-
Membros. Lei Federal, no entanto, não possuindo o condão de suspender a eficácia da
legislação ora Vergastada. Manutenção do interesse na análise quanto sua
constitucionalidade. III - Sistema de privação de liberdade brasileiro. Crescimento da
sua população. Aspectos e impactos no aparelho estatal. Funcionamento do próprio
sistema. Família que tem papel insubstituível para o processo de reinserção social da
pessoa presa, mais ainda do menor infrator. IV - Direito de visitação. Elemento a
figurar como suporte para as agruras do cárcere. Estímulo à recuperação. Integridade
física e psicológica dos internos, bem como das pessoas que precisem adentrar nas
unidades. Prevenção da infração às regras intramuros que reflete diretamente na
proteção da sociedade. V - Matéria de relevância ímpar, ensejando intensa discussão
legislativa, precipuamente no âmbito federal, valendo destacar que desde 2014 tramita
na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 7.764, objetivando regulamentar a
revista pessoal. VI - Metodologia de "revista íntima" implementada anteriormente à
legislação ora Vergastada que se afigura como procedimento desumano e, por vezes
ineficaz, que acaba por não preservar a segurança dos estabelecimentos prisionais e,
ao contrário, promove a vitimização, em sua maioria, de mulheres e crianças, por meio
de práticas vexatórias de averiguação pessoal. VII - Em que pese todos os avanços
tecnológicos e, ainda, apesar da proteção insculpida na Lei Maior atinentes ao
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III), à Inviolabilidade da
Intimidade (art. 5º, X), ao Princípio de que a pena não deve ultrapassar a pessoa do
condenado (art. 5º, XLV) e ao direito de não ser submetido a tratamento desumano ou
degradante (art. 5º, III), no sistema penitenciário brasileiro, o desrespeito aos
visitantes persistia, principalmente com relação aos parentes e familiares. VIII -
Ressocialização do interno. Exegese do artigo 41, inciso X da Lei de Execucoes
Penais. Os direitos e garantias individuais não são os responsáveis pelo aumento dos
conflitos sociais e da violência. Ensinamentos doutrinários acerca das matérias em
debate conforme transcritos na fundamentação. IX - A existência da "revista
íntima", através dos meios e modos como utilizados hodiernamente é reflexo de
um sistema que na maioria das suas vertentes tem em suas atitudes refletida a
busca do fim pelo fim, subtraindo-se da análise o meio, ou seja, o próprio
instrumento implementado. A realização dessa modalidade de averiguação física
pessoal atua como verdadeiro instrumento de intimidação estatal. Ineficácia
demonstrada estatisticamente. X - Manifesta ilegalidade dos procedimentos
vexatórios de revistas. Limitação da pena à pessoa do condenado. Atividade
estatal que deve estar pautada em ações humanitária e, não, em condutas
autoritárias como a metodologia da tradicional "revista íntima", eis que os
valores violados pela perpetuação dessa prática se revelam mais onerosos à
Sociedade. XI - Precedentes se pronunciando a respeito do abuso de direito e
violação à dignidade da pessoa humana do procedimento de revista íntima,
legitimando, por conseguinte, a declaração de constitucionalidade que ora se
procede. Improcedência da representação para declarar a constitucionalidade da Lei
Estadual n.º 7.011 de 25/05/15.

(TJ-RJ - ADI: 00361366920158190000 RIO DE JANEIRO TRIBUNAL DE


JUSTICA, Relator: REINALDO PINTO ALBERTO FILHO, Data de Julgamento:
19/03/2018, OE - SECRETARIA DO TRIBUNAL PLENO E ORGAO ESPECIAL,
Data de Publicação: 09/04/2018)

Destaca-se a passagem do julgado capaz de reverberar por todos os tópicos deste


trabalho de conclusão de pós-graduação: “Os direitos e garantias individuais não são os
responsáveis pelo aumento dos conflitos sociais e da violência”. Realmente, não parece racional
combater (seletivamente) determinadas condutas violentando corpos, invadindo moradias,
apavorando a infância e a juventude, tarifando provas etc.
Ademais, mesmo admitindo-se a abominável perspectiva racializada do “bem” contra o
“mal”, de que os fins justificam os meios, a efetividade em si da medida é extremamente baixa,
pelo menos em São Paulo, segundo o Parecer Técnico da Rede Justiça Criminal, confeccionado
pela advogada Raquel da Cruz Lima:

Em 2014, a Rede Justiça Criminal realizou pesquisa investigando, justamente, se tais


dados existiriam e solicitou, com fundamento na Lei de Acesso à Informação, cópias
da documentação prevista pelo Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais do
Estado de São Paulo para a apuração e registro das faltas disciplinares cometidas pelos
presos e dos atos de indisciplina praticados por visitantes de todas as 156 unidades
prisionais então existentes no estado. Dada a incompleta ou ausência de dados de
diversas unidades, a Rede acabou analisando 615 procedimentos de apuração de
responsabilidade por condutas de presos e/ou de visitantes referentes aos meses de
fevereiro, março e abril dos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013. Essa pesquisa constatou
que a proporção geral de presos envolvidos em faltas administrativas relacionadas à
apreensão de objetos ilícitos era extremamente baixa – 2,61% - e a dos visitantes,
ainda menor – 0,03%. Fazendo a distinção entre os diferentes tipos de objetos ilícitos,
observou-se que somente 0,02% dos visitantes tentaram ingressar nas unidades com
celular, que 0,02% dos visitantes tentaram ingressar com droga e que nenhum tipo de
arma foi encontrado com visitantes em todo o período pesquisado. Concluiu-se,
portanto, que a identificação de armas, drogas e celulares - e a consequente apuração
de responsabilidade por essa conduta - dentro das unidades prisionais era uma situação
de extrema excepcionalidade e que, concretamente, não poderia sustentar medidas tão
gravosas de restrição a direitos.44

Não obstante a proibição da revista íntima, no Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal


Federal está para concluir o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº 959.620,
interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio do Sul, cuja controvérsia se baseia no
caráter ilícito ou não da prova obtida por meio de revista vexatória. Nesse sentido, vale destacar
que há uma divergência aberta pelo Ministro Alexandre de Moraes, que admite
excepcionalidades:

A revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais será excepcional,


devidamente motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do
visitante, somente podendo ser realizada com protocolos preestabelecidos e por
pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos, nas hipóteses de exames
invasivos.

A motivação de ato que legitime o exame íntimo e humilhante é de difícil contestação,


e essa relativização de proteção de direitos fundamentais parece se construir sob hipótese que
camufla o fato de que o controle jurídico dessas práticas pré-autorizadas é extremamente
complicado. Cabe destacar que, no Estado do Rio de Janeiro, a excepcionalidade recai sobre a
hipótese de revista manual, apenas (art.4º da Lei 7.010/2015). Grosso modo, a revista manual
é a realizada por cima da roupa do revistado, sem necessidade de desnudamento parcial.
Portanto, é com o impacto dos fundamentos explicitados na confirmação da validade da
Lei Estadual 7.010/2015, extraídos do voto do Desembargador Reinaldo Pinto Alberto Filho
(2018), que realizaremos a transição entre tópicos, no intuito contínuo de analisar motivos e
razões para uma advocacia pública comprometida com a segurança dos direitos, bem como
tentar alcançar, através de casos concretos, o núcleo duro dos direitos que reclamam proteção,
segurança essa que é pública.

44
LIMA, Raquel da Cruz. Parecer Técnico sobre a inconstitucionalidade da Revista Íntima de visitantes que
ingressam em estabelecimentos penais. São Paulo: Rede Justiça Criminal, 2020.
5. Operações Policiais com sobrevoos de helicópteros

Em “O medo na cidade do Rio de Janeiro”, a professora Vera Malaguti Batista percorre


a história das rupturas abolicionistas, na capital fluminense, relacionando a reação das elites às
revoltas por emancipação humana dos escravizados, no século XIX, a um projeto ordeirista de
segurança, que encontra suas permanências em nosso cotidiano ainda marcado pelo racismo.
Nesse diagnóstico que se aprofunda no estudo do positivismo (e em suas manifestações médicas
e jurídicas), Batista afirma que “a suspensão de garantias e a capitalização do controle, em todos
os sentidos é uma recorrência na nossa formação”45.
Nesse estudo, que também apreende as raízes históricas das estratégias de neutralização
e de disciplinamento das massas empobrecidas, a professora de Criminologia da UERJ afirma:

Embora a ameaça à cidade tenha sido executada por gente ‘também de pele branca’, o
medo latente é dos escravos, sempre potencialmente perigosos, seja pelo ‘estado de
escravidão’ seja pela sua ‘bruteza’.46

Nas regiões abastadas do Estado do Rio de Janeiro, raramente ou nunca, os moradores


–cidadãos de bens - são perturbados por tiros e por rasantes de aeronaves militares, cujos
estouros parecem despertar das próprias residências violadas; projéteis adquiridos pelo Estado
não perfuram os corpos de quem paga um IPTU mais alto, felizmente. A democratização da
violência, talvez, seja a única que merece ser refutada.
No campo da segurança pública, sobretudo aquela midiaticamente reivindicada
(acepção da “ordem”), expressões como “abate”, “elemento”, “caça” não são utilizadas,
aparentemente, em situações problemáticas expostas dentro dos ambientes de classe média alta.
No contrário, a mensagem “mirar na cabecinha e fogo”47 e a “conclusão” de que as mulheres
da Rocinha, local onde a natalidade seria “padrão África”, são “fábricas de produzir marginal”48
possuem destinatários historicamente notórios.
Expoente do Positivismo, no Brasil, Raymundo Nina Rodrigues defendeu a existência
de direitos distintos para “raças” distintas e, discorrendo sobre o suposto embate entre

45
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história/ Vera Malaguti
Batista.- Rio de Janeiro: Revan, 2003, 2ª reimpressão, outubro de 2014. p 193.
46
Idem, 2003. p.173.
47
Afirmação do governador Wilson Witzel, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, em 01 de novembro
de 2018.
48
“O Globo”, edição de quinta-feira, 25 de outubro de 2007. “Cabral defende aborto para reduzir crimes”. Rio.
p.29. Localizado em http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/412939
civilização e barbárie, citando Sylvio Romero, arguiu que “não há exemplo de civilização negra.
A única civilização africana, a do Egito, era branca, do ramo cuschitosemita ...”49.
Como exemplo das permanências dos cortes raciais marcados pelas políticas públicas,
a partir do que Malaguti se referencia, em novembro de 2019, os moradores de favelas do Rio
de Janeiro denunciavam o aumento do sobrevoo de helicópteros em operações policiais.
Aparentemente, a perturbação e a violação domiciliar são os primeiros e imediatos tópicos de
queixa, em relatos como “parece que está pousando em cima da sua casa”50, e o medo de morrer
ganha contundência em declarações como “tinha gente atirando de cima, era muita gente
correndo lá fora. Não havia para onde ir”51 e em desabafos que demonstram a incerteza dos
atingidos a respeito da capacidade de resistência das casas ante a força dos projéteis das armas
militares52.
Em 2018, o Observatório da Intervenção, iniciativa do Centro de Estudos de Segurança
e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC/UCAM), registra:

No dia seguinte à morte do policial civil Ellery Ramos de Lemos, da Delegacia de


Combate às Drogas, em 12 de junho, o delegado Marcos Amim, declarou no telejornal
SBT Rio que a Polícia Civil iria ‘caçar’ os culpados e, se houvesse resistência, iriam
manchar o chão com sangue.
A morte teve como resposta operações em vários bairros. Uma das mais violentas foi
a do dia 20, na Maré. Agentes a bordo do helicóptero da Polícia Civil deixaram mais
de 160 marcas de tiros nas ruas. Na Vila do Pinheiro, cinco homens, que estavam em
uma casa, foram mortos a tiros.53

Episódio mais emblemático, principalmente do ponto de vista simbólico, ocorreu no dia


4 de maio de 2019, quando o governador eleito em 2018 no Rio de Janeiro, Wilson Witzel,
esteve a bordo de um helicóptero que metralhou tenda de orações, em comunidade localizada
no município de Angra dos Reis54.

49
RODRIGUES, Raymundo Nina. As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil [online]. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011. p.43 e p.46.
50
Reportagem “Helicópteros da polícia semeiam pânicos nas favelas do Rio”, publicado no sítio eletrônico
istoe.com.br, em 21 de novembro de 2019.
51
Reportagem “´Tinha helicóptero atirando de cima’: professores acalmam alunos com música durante operação
que matou 8 no Rio”, patrocinada pela BBC News Brasil, jornalista Júlia Dias Carneiro, em 07 de maio de 2019.
52
Reportagem “Tiros de Helicóptero: os relatos nas comunidades do Rio”, do jornal Nexo, de 18-09-2019. In:
https://soundcloud.com/durma-com-essa/tiros-de-helicoptero-os-relatos-nas-comunidades-do-rio-18set19
53
Observatório da Intervenção. Relatório 4: “Cinco meses de intervenção federal”, 16/02/2018 – 16/07/2018,
disponível em observatoriodaintervencao.com.br.
54
Matéria “online” do jornal “O Globo”, “Helicóptero com Witzel a bordo metralhou tenda de orações em Angra
dos Reis”, datada em 08 de maio de 2019.
A primeira vista, a divisão ideológica entre um mundo civilizado e outro onde não estão
vigentes quaisquer direitos ilustra o cenário do Rio de Janeiro do século XXI e não tão somente
a sociedade dos importadores do positivismo europeu, do século XIX.
Curiosamente, a despeito do debate jurídico – com repercussões no STF e no TJ/RJ -
relativo a essas incursões militares que alvejam tiros aéreos contra “pessoas suspeitas”, em
“territórios perigosos”, segue formalmente em vigor o Decreto nº 20.557 de 27 de setembro 94,
assinado pelo governador à época em exercício, Nilo Batista:

Art. 1° - O emprego das aeronaves da Coordenadoria Geral de Operações Aéreas –


CGOA, em operações de segurança pública, compreende as seguintes missões:
I – Salvamento;
II – Apoio Policial.
Art. 2° - A missão de salvamento se caracteriza pelo emprego de aeronaves em
operações de busca, resgate ou misericórdia, em casos de calamidade pública,
afogamento, necessidade de atingimento de locais de difícil acesso, ferimentos graves
a pessoas civis ou servidores públicos envolvidos em confronto decorrente de ação
policial, e localização e resgate de pessoas acuadas por incêndio.
Art. 3° - A missão de Apoio Policial compreende:
I – Supervisão de áreas onde se realizem operações, observando a presença e atuação
do policiamento destacado, transmitindo-lhe orientações relevantes para o êxito da
missão;
II – Identificação e acompanhamento de veículos em deslocamento, para evitar a fuga
dos condutores após a prática de crimes,
III – Transporte e desembarque de efetivos policiais em posições estratégicas ou em
locais de difícil acesso por vias terrestres.
Art. 4° - Em nenhuma hipótese o helicóptero poderá ser usado em confronto
armado direto, e somente no caso do inciso III do artigo anterior a aeronave
transportará armas, as quais só poderão ser utilizadas após o desembarque.55

Em nenhuma hipótese o helicóptero poderia ser usado em confronto armado direto.


Seria essa a leitura? A desautorização do uso de helicópteros em confronto armado,
praticamente realizado em sobrevoos e incursões balísticas nas favelas fluminenses, é fundada
nos princípios da cidadania e da dignidade humana, basilares aos direitos fundamentais à
igualdade, à vida digna, à moradia digna e à segurança. A isonomia material, destacada no caput
do art.5º da CRFB/88, determina a distribuição igualitária para toda população de todas as
garantias fundamentais (efetivação horizontal), de modo que, se o crime organizado nos
logradouros nobres deve ou deveria56 ser enfrentado e desarticulado por um policiamento
investigativo e praticamente silencioso, atos de guerra não podem ser direcionados aos bairros
empobrecidos e desfavorecidos.

55
Consulta em ALERJ.
56
Deveria, porque o sistema penal é intrinsicamente seletivo, como bem demonstram Alessandro Baratta, Eugênio
Raul Zaffaroni, Juarez Cirino dos Santos, Nilo Batista e outros grandes estudiosos de igual envergadura.
Não obstante isso, no início deste século, o Decreto Estadual de nº 27.795 de 2001
acrescentou às normas locais vigentes, por meio de seu art.1º, que as decolagens não previstas
no Decreto de nº20.557/94 ficam sujeitas à autorização do Secretário de Estado Chefe do
Gabinete Civil. No entanto, não foi revogada a disposição de 1994, segundo o qual “Em
nenhuma hipótese o helicóptero poderá ser usado em confronto armado direto, e somente no
caso do inciso III do artigo anterior a aeronave transportará armas, as quais só poderão ser
utilizadas após o desembarque”.
Em razão da notória abusividade policial, impingindo à população pobre morte e
sofrimento, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizou a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental, cuja denominação e numeração processual se publiciza como ADPF de
nº 635. Em decisão datada no dia 07 de agosto de 2020, o Ministro Edson Fachin determinou,
cautelarmente:
Deferir a medida cautelar pleiteada, em menor extensão, para dar interpretação
conforme ao art. 2º do Decreto 27.795, de 2001, a fim de restringir a utilização de
helicópteros nas operações policiais apenas nos casos de observância da estrita
necessidade, comprovada por meio da produção, ao término da operação, de relatório
circunstanciado.

Em suma, apesar de sinalização democrática do STF, consolidou-se entendimento


sustentado por conceito jurídico indeterminado (“estrita necessidade”) condicionado a ato
administrativo unilateral (“relatório circunstanciado”), ignorando-se, inclusive, a proibição
ainda estabelecida pelo Decreto Estadual de nº 20.557/1994 (art.4º).
Salvo incontáveis exceções, o sobrevoo de helicópteros atiradores em comunidades e
bairros pobres estaria proibido, proibição que, pela equivocada alegação da discricionariedade
do Administrador e da presunção de veracidade da palavra do policial, torna-se a própria
exceção. Com efeito, não obstante o direito à moradia digna e à própria vida, repousa sobre o
assunto indagações que dizem respeito à proteção da criança e ao direito à educação.
No âmbito estadual, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro ingressou com
Ação Civil Pública em face do Estado do Rio de Janeiro, objetivando a reestruturação das
operações militares realizadas nas favelas do Rio de Janeiro, de modo a evitar que essas
incursões fossem realizadas próximas às escolas e creches e em horários de entrada e de saída
de alunos (Processo nº 0033269-27.2020.8.19.0001).
Aqui, em breve síntese: decisão liminar da 1ª Vara da Infância e da Juventude
determinou a abstenção da utilização de “caveirões aéreos”, condicionando a excepcionalidade:
(...)caso, por alguma razão excepcionalíssima e diante de perigo iminente concreto e
comprovado, seja realizada operação policial próxima a unidades de ensino ou creches
localizadas em todo o estado do Rio de Janeiro no referido horário, seja determinado
que o órgão executor da operação apresente nos autos, à Defensoria Pública e ao
Ministério Público, no prazo de 05 (cinco) dias, relatório detalhado da operação,
indicando a referida excepcionalidade

O Estado do Rio de Janeiro, por meio de sua Procuradoria Geral, interpôs Agravo de
Instrumento (0061192-31.2020.8.19.0000) sustentando que: (i) a matéria está inserida no
âmbito de discricionariedade da Administração, elaborada por quadros técnicos, de modo que
o Poder Judiciário não pode intervir no mérito administrativo, (ii) a Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro não é instituição com atribuição de fiscalização da Polícia Militar,
(iii) há escolas e instituições de ensino em todo o território e que a determinação da distância
em sobrevoo colocaria em risco a vida dos policiais, já que impediria manobras de fuga
defensiva mais expansivas.

A previsão do art.9º da Portaria nº 832 é a de que “As Operações policiais a serem


realizadas em áreas sensíveis de alto risco e iminente probabilidade de confrontos
armados, próximas a unidades de ensino, creches, postos de saúde e hospitais, deverão
observar, sempre que possível, o seguinte: I- Evitar, preferencialmente, os horários de
maior fluxo de entrada e saída de pessoas em tais estabelecimentos, principalmente
de alunos nos estabelecimentos de ensino; II- o não baseamento de recursos
operacionais nas proximidades e interior de tais estabelecimentos, de maneira a evitar
que os mesmos tornem-se alvos em potencial de infratores armados.” Dessa maneira,
a existência da própria norma regulamentar na área de segurança pública demonstra
ser cristalina a preocupação do Estado em evitar que operações policiais sejam
realizadas nas proximidades e no interior de escolas, por meio de protocolos
operacionais e de procedimentos específicos. Mas, é preciso ter em mente que estas
medidas são recentes e demoram um tempo razoável para serem implementadas e para
alcançarem o efeito pretendido.57

Nota-se que prevaleceu reivindicação a respeito de uma Portaria da Polícia Civil, que –
segundo aquela advocacia – ainda não teria alcançado a aptidão de gerar efeitos sociais
(efetividade). A norma policial “não pegou”, mas e a Constituição? Não somente nesse
processo, mas de um modo geral (talvez), existe uma profunda rejeição às cláusulas pétreas
constitucionais (art.60 §4º da CRFB/88) e, sobretudo, ao que é mais explícito na Constituição

57
Agravo de Instrumento 0061192-31.2020.8.19.0000, página 7.
a respeitos dos direitos fundamentais: “As normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata” (art.5º, §1º da CRFB/88).
Aparentemente, a discussão em torno de Portarias (policiais), Regulamentos e Decretos
propicia uma sensação de especialidade e de tecnicidade ao suposto direito de estabelecimento
de ordem, enquanto a observação dos direitos fundamentais se restringe à órbita das
recomendações franciscanas e da utopia. Possivelmente, trata-se de grave vício de Estado
Policial, em que a Constituição é superada pela gestão sobre quem vive e sobre quem morre,
segundo uma urgência de dia.
No dia 22 de janeiro de 2021, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
permitiu “o sobrevoo extraordinário sobre escolas, em hipóteses concretas e, de caráter
eminentemente excepcional na atividade policial, determinando-se que o Estado do Rio de
Janeiro apresente relatório circunstanciado, nos termos da Medida Cautelar na ADPF nº635-
RJ”58.
Na medida em que vigora o entendimento, chamado de princípio, segundo o qual a
palavra do servidor público possui veracidade presumida, os direitos fundamentais cujas
proteções ficam vinculadas aos protocolos da Administração (a exemplo a Portaria n.º 832, de
02/01/18, da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e o Relatório Circunstanciado
mencionado na decisão da 6ª Câmara Cível do TJ/RJ) passam a ser mera formalidade; sugestões
interpretativas ou histórias que não reverberam na estrutura desigual da sociedade.
A pretensão deste trabalho não é limitar essa matéria de segurança pública, que diz
respeito aos “caveirões áereos” e às incursões truculentas da polícia nas periferias, à ADPF nº
635 e à Ação Civil Pública de nº 0033269-27.2020.8.19.0001. Todavia, esses processos
entregam alguns materiais para análise e para crítica jurídica, eis que casos concretos e, de certa
forma, ricos. E, nesse sentido, a atuação da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro,
instituição fundamental para garantia dos direitos fundamentais, no território fluminense,
merece alguma atenção.
Os direitos fundamentais de primeira dimensão merecem proteção constante e sem
interrupções, razão pela qual é delicado arguir o afastamento da prestação jurisdicional (art.5º,
XXXV, da CRFB/88), quando há demonstrações de abusos, invasões, torturas e mortes a partir
da atuação de agentes públicos. A letalidade policial no Rio de Janeiro é evidente para o mundo
inteiro59. Desse modo, não se trata de fiscalizar a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro,

58
Agravo de Instrumento nº 0061192-31.2020.8.19.0000, página 770.
59
“ ’Licença para matar’: por trás do ano recorde de homicídios cometidos pela polícia no Rio”, New York Times,
em 18 de maio de 2020. In: nytimes.com/pt/2020/05/18/world/américas/rio-abuso-policial.html
mas sim de questionar juridicamente a política de segurança pública a qual a instituição policial
está vinculada, a partir do momento em que os direitos (moradia, integridade corporal, vida,
educação, saúde – inclusive mental-) estão desprotegidos, desrespeitados e, logo, sem
segurança.
A respeito da suposta tecnicidade dos gestores da “ordem pública”, essa compreensão
aparenta ser meramente ideológica, em primeiro lugar porque a qualidade de vida do cidadão
não pode ficar à mercê do resultado eleitoral ou da política imediata. Com efeito, apresenta-se
como notória marca positivista o cientificismo que atribuiu verdades, direitos e proteções à
capacidade técnica de selecionados observadores60, ignorando os objetivos políticos de quem
ocupa os grandes espaços de poder. Nessa direção, talvez, seguiu a PGE/RJ na página 22 do
Agravo de Instrumento mencionado, senão vejamos:

Noutras palavras, somente o Administrador, enquanto técnico, está a par de todos os


complexos fatores que precisam ser conciliados para se chegar à melhor solução
exequível, isto é, que contemple a população vulnerável do Estado, mas sem violação
às normas jurídicas.

Ao contrário do que se defende61, a violência policial não é uma exceção. Fosse exceção,
seria explicado por que a Polícia Militar do Rio de Janeiro matou em média três pessoas por
dia, no ano de 2020, neste Estado62. No mesmo sentido, essa letalidade não parece consequência
de má-formação do trabalhador policial63, cuja dignidade deve ser igualmente protegida, ou de
índole de alguns servidores que se desvirtuam e mancham a imagem da instituição. A hipótese
forte aponta para a estrutura institucional, para o projeto político de segurança pública, que
merece controle da população, e mais profundamente para o sistema social de produção
capitalista.

60
“ O discurso que inventa ‘conhecimento científico’ como afim à prática policial no Brasil traz consigo uma
variedade de novos termos e procedimentos que ampliam os significados das ações antes limitadas à esfera da
repressão (...) desde os primeiros anos do século XX chamavam a atenção para o despreparo, a violência e
brutalidade de policiais ‘não civilizados’” em CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e
a produção cotidiana da (in) diferença n o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002. p. 198
61
Passagem do Agravo de Instrumento 0061192-31.2020.8.19.0000, interposto pelo Estado do Rio de Janeiro,
página 04: “A verdade é que o corpo policial é composto por policiais dedicados que, no dia a dia, dão inúmeros
exemplos de combate à criminalidade e ao salvamento da população em geral, como por exemplo, o recente caso
da dupla de policiais (1º sargento César e 2º Sargento Valeriana) que, ao realizarem o patrulhamento, salvaram um
bebê de se engasgar com o próprio leite materno, em Itaperuna, no Estado do Rio de Janeiro.”
62
Instituto de Segurança Pública. Segurança em Números 2020, p.7. Arquivo em isp.rj.gov.br.
63
Novamente, em “Intenção e Gesto”, Olívia Maria Cunha demonstra com farta documentação como a violência
policial, estruturada sobre a ideologia do “civilizar” os territórios pobres (“barbárie”), atravessa o século XIX para
o século XX, completamente orientada pelo ideias liberais da Europa e por vetores (neo) coloniais.
A respeito da desmistificação da criminalidade dada como tal, e do papel da polícia a
partir da concepção de segurança como ordem (manutenção das desigualdades sociais e
econômicas), podemos capturar os ensinamentos do professor Juarez Cirino dos Santos que, a
partir da criminologia crítica, também destaca essa atribuição policial:

A ligação oculta entre controle do crime e relações de produção é o foco de pesquisa


da Criminologia Radical: o controle do crime pela ação da polícia, da justiça e da
prisão assegura a continuidade (reprodução) do sistema social de produção capitalista.
A articulação específica entre a estrutura econômica da sociedade, definida como o
“conjunto das relações de produção”, e as formas ideológicas superestruturais
jurídicas e políticas do Estado, que instituem e reproduzem aquelas relações de
produção, é a base explicativa da contradição entre a aparência e a realidade dos
fenômenos sociais: a forma jurídica das relações de produção é, simultaneamente,
forma de reprodução das relações de produção e de mistificação dessas mesmas
relações, como representação ilusória ou invertida da realidade. A forma aparente da
liberdade, da igualdade e da justiça oculta uma realidade de coerção, de desigualdade
e de injustiça: a ideologia é, ao mesmo tempo, realidade e ilusão (Young, 1979, p.
22).64

Novamente, o recurso à criminologia crítica - ferramenta capaz de explicar que em


duzentos anos de criminologia tradicional jamais foi demonstrado relação entre controle intenso
pelo Estado via “combate à criminalidade” e minoração da violência urbana – é justificado para
a defesa de um giro que é necessário: a saída do marco de segurança pública ordeirista, objeto
desse exame, para o objetivo público de proteção dos direitos fundamentais.
Assim, ao contrário do que, ocasionalmente, acabou reflexamente defendendo a
advocacia pública fluminense, o direito vigente nas regiões do Santo Agostinho ou do Santo
Inácio, instituições educacionais louvadas e tradicionais que nunca fecharam seus
funcionamentos por conta de atos de guerra do Estado, deve estar vigente em áreas como o
complexo da Penha, ou o bairro da Maré.
Desse modo, a respeito da questão dos sobrevoos de helicópteros policiais em favelas,
surge a necessidade de proteção da dignidade psíquica, da integridade física, da vida, e da
moradia digna dos moradores e, sobre esse último direito redigido, levantamos e prestamos
homenagens ao saudoso Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Miguel Baldez, para quem
não bastava que houvesse moradia, a moradia deveria ser adequada. Helicópteros que atiram
do céu violam a paz, a tranquilidade, a possibilidade de construção subjetiva do lugar e a
inviolabilidade domiciliar.

64
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical [recurso eletrônico]/ Juarez Cirino dos Santos. -4.ed-
Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 42
6. Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro e democracia:

Todos os selecionados pontos abordados nesse trabalho atingem o interesse do Estado


em não ser responsabilizado civilmente (art. 37, §6º, da CRFB/88). Eis uma justificativa fria,
objetiva e pragmática para a defesa da segurança dos direitos como marco de uma segurança
pública democrática. Ter no horizonte um Estado não violento pode significar menos custos
para todos os contribuintes, ou melhor alocação dos mesmos para áreas como saúde, educação,
previdência, transporte público etc.
A atuação seletiva e arbitrária das agências policiais do Estado do Rio de Janeiro pode,
sim, causar muito prejuízo ao Erário Público. A produção de lesão ao cidadão, a humilhação da
pessoa em repartições pública, a letalidade policial, além de não resolverem as situações
problemáticas da violência mais vulgar, no Estado do Rio de Janeiro, provocam uma maior
atuação da advocacia pública em processos que não precisavam existir, senão vejamos
exemplos de casos concretos, via jurisprudência do TJ/RJ:

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO


ADMINISTRATIVO. "BALA PERDIDA". VÍTIMA FATAL. ATO DO ESTADO.
POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA. DANO DIRETO, PREVISÍVEL,
ACEITÁVEL E LÍCITO. DANO COLATERAL. DANO DIRETO OU INDIRETO.
AÇÃO DO ESTADO OU DO CRIMINOSO. RESULTADO NEGATIVO
PREVISÍVEL, INACEITÁVEL E ILÍCITO. DEVER DE REPARAR O DANO.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. TERCEIRO SEM RELAÇÃO
COM A AÇÃO MILITAR. DEVER DE REPARAR O MAL CAUSADO. 1. A
Segurança Pública é dever constitucional do Estado, razão primeira da existência do
próprio Estado. 2. A adoção de política de segurança pública que termina em
confronto entre agentes da lei e criminosos, realizada em comunidade habitada
principalmente por crianças, gera o dever do Estado de reparar eventual dano causado
àquele que não tem relação direta com a operação policial. 3. A decisão de "invadir"
comunidade decorre de ato de gestão da política de segurança pública,
presumivelmente tomada por autoridade que sopesou todas as informações de
inteligência que envolve a operação, inclusive a possibilidade da ocorrência de danos
colaterais, envolvendo moradores da localidade. 4. Morador de comunidade,
paraplégico e com movimentação reduzida pelo uso de cadeira de rodas que vem
a ser atingido por balas trocadas no enfrentamento entre agentes e criminosos,
vindo a falecer em decorrência dos ferimentos. 5. Responsabilidade do Estado
decorrente de dever constitucional (CF, 37, § 6º). Responsabilidade objetiva, sendo
irrelevante, para fins de indenização, a origem e propriedade da bala fatal. Dano
colateral assumido pela decisão de realizar a operação militar em zona habitada.
Finalidade lícita do agir do Estado que não legitima o resultado ilícito advindo da
atuação estatal. 5. Dano moral presumido aos parentes descendentes de linha ancestral
comum, especialmente em relação à mãe da vítima. Dependência econômica não
comprovada. Indenização devida e fixada. Conhecimento e provimento parcial do
recurso.”

(TJ-RJ - APL: 00374305120188190001, Relator: Des(a). ROGÉRIO DE OLIVEIRA


SOUZA, Data de Julgamento: 05/11/2019, VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA
CÍVEL)
Nesse sentido, a Procuradoria Geral do Estado – afastada como sempre é e sempre foi
da advocacia de governo- poderia reduzir seu contingente de trabalho, melhor direcionar sua
atuação e sofisticar ainda mais seu desempenho, se passar a ser compreendida como instituição
de Estado, garantidora dos direitos e das garantias fundamentais individuais e sociais, a despeito
da existência da Defensoria Pública.
A partir dos tópicos de exemplo aqui criados, a advocacia pública fluminense poderia
estimular atos e debates inclinados ao cancelamento da Súmula 70, no Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, e à declaração de inconstitucionalidade de leis e normas de igual teor (art.162
da Constituição Estadual), poderia reivindicar ou fiscalizar a aplicação correta da lei que proíbe
a revista vexatória nos presídios e, sobremaneira, poderia mudar o seu posicionamento
(processual, inclusive) a respeito do sobrevoo de helicópteros militares de tiros nas favelas,
porque inexistem dados ou fatos empiricamente verificáveis que comprovem que atos de guerra
inibem os sujeitos organizados entorno de práticas delituosas, pelo contrário, e porque é
dispendioso para o Erário Público pagamentos de indenizações diversas para as vítimas da
“democracia”.
A despeito das justificativas mais pragmáticas, uma das atribuições do cargo de
Procurador de Estado é a elevação da defesa técnico-judicial do Estado-membro, decorrente
esta da própria representação institucional da Administração Pública Estadual. Por meio dessa
função de advogados públicos que se pode extrair da CRFB/88, em comunhão com o Estatuto
da OAB - Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994 –, a imprescindibilidade de existência da
independência profissional no desempenho dessa valiosíssima função pública (apta à garantia
da segurança dos direitos), e, consequentemente, na implementação do Estado Democrático de
Direito.
Nesse sentido, é possível dar vida e significado prático ao que é notório: a segurança
pública não é uma ordem abstrata de Estado ou a pacificação (via silenciamento) da sociedade
cindida por interesses estruturais antagônicos e de classe, mas sim a efetivação dos direitos
fundamentais de todos que residem no território estadual (segurança à vida, à integridade
corporal, à moradia e à dignidade de todos), implicando e reverberando, portanto, na saúde
fiscal do ente, no nível da democracia vigente, e na legitimidade política, jurídica e social dos
membros das instituições.
Igualmente, as Procuradorias de Estado são responsáveis pelo controle interno da
legalidade dos atos da Administração Pública estadual, o que se realiza, sobretudo, através da
prestação de consultoria jurídica especializada. A consultoria é desenvolvida a partir da análise
de uma situação concreta em que participe a Administração Estadual - como por exemplo o
sobrevoo de helicópteros militares armados nas favelas (processo 0033269-27.2020.8.19.0001)
- com a sequencial elaboração de pareceres e de peças recursas que opinam e que pleiteiam pela
legalidade e juridicidade dos atos em questão, independentemente da inclinação política do
governo eleito para comandar o Poder Executivo Estadual.
Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto redigira em 2005:

Nessa linha, é necessário insistir, o que aqui volto a fazer, com muito empenho e com
muita esperança nas reservas morais deste País, que os Estados não se confundem
com seus Governos e, muito menos, com seus governantes e, por conseqüência,
Advogados de Estado não podem ser tidos como advogados de governos ou, com mais
razão, como advogados de governantes. A Advocacia de Estado, tanto quanto os
demais ramos constitucionais das Funções Essenciais à Justiça, serve à sociedade, pois
zela, no desempenho de seus respectivos cometimentos fundamentais, a representação
judicial e a consultoria, por suas mais importantes instituições – Estado e Direito – em
todas e em cada uma das múltiplas relações da Administração.65

Os artigos 132 e 133 da Constituição da República Federativa do Brasil, que explicitam


a essencialidade da advocacia (pública) para a administração da justiça tem como caule e
sustentação sistemática os fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, quais
sejam: (i) a cidadania (art.1º, II, da CRFB/88) - inexiste justiça sem cidadania, não existe
cidadania quando helicópteros podem agir como se guerra estivessem em grande parte do
Estado, ou quando há a imposição da força policial e a instrumentalização do servidor público-
, (ii) a erradicação da marginalização (art.3º, III, da CRFB/88) – nesse sentido, é importante a
refutação do racismo jurídico (Raymundo Nina Rodrigues ainda precisa ser combatido), a partir
do qual naturaliza-se a aplicação do direito conforme a população a ser atingida ou para a qual
determinado serviço vai ser prestado, e (iii) a promoção do bem de todos, sem preconceitos de
raça, classe, gênero e origem (art.3º, IV, da CRFB/88), e nesse sentido segurança pública
democrática só pode estar ligada à implosão do racismo estrutural.
Aproveitamos, novamente, os ensinamentos do saudoso administrativista:

Ora, as atividades desenvolvidas pelos Advogados de Estado se situam


inequivocamente no plano das atividades-fim, ou seja: são ações voltadas ao
estabelecimento, à manutenção, ao cumprimento e ao aperfeiçoamento da

65
NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. A Advocacia do Estado Revisitada * Essencialidade ao Estado
Democrático de Direito. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo. Vitória: PGE/ES, 2005.
Semestral. p.21.
ordem jurídica e apenas secundariamente referidas ao aparelhamento do
Estado. Com efeito, o dever precípuo cometido aos Advogados e Procuradores
de qualquer das entidades estatais é o de sustentar e de aperfeiçoar a ordem
jurídica, embora secundariamente, e sem jamais contrariar essa primeira
diretriz constitucional, possam esses agentes atuar em outras missões de
natureza jurídica ou administrativa voltadas às atividades-meio, como aquelas
que se desenvolvam em sustentação às medidas governamentais, à assessoria
jurídica, à direção de corpos jurídicos etc.66

Com efeito, segurança pública deve ser reivindicada e protegida pela Procuradoria. No
entanto, a desvinculação ideológica (narrativas repetidas e viciadas que trazem névoa sobre a
realidade) é primordial para interlocução entre objeto e Constituição Federal. A orientação da
atuação jurídica mediante a leitura atenta dos direitos fundamentais pode ser a única forma de
buscar-se um Estado não violento; na dialética, fruto e produtor de uma sociedade não violenta.
Sendo a democracia substancial uma razão e um fim, talvez, torna-se correto dizer,
como lembrou Vera Malaguti a respeito de Alessandro Baratta: a Advocacia Pública também é
fundamental para a segurança dos direitos.

7. Considerações Finais

Há um debate entre Norberto Bobbio e Palmiro Togliatti, relatado pelo filósofo


Domenico Losurdo67, que traz uma perspectiva política e histórica interessante a respeito dos
direitos fundamentais retoricamente vindicados. Bobbio, ao criticar as experiências socialistas
do século XX, argumentou que faltava uma “gota de óleo liberal” para o sucesso ou o não-
fracasso do socialismo real. Togliatti, dirigente do Partido Comunista Italiano, replicou
afirmando que a asseveração do filósofo de Turim, defensor do positivismo jurídico, era de
esvaziamento do sentido das “liberdades”, seletiva e descompromissada com a geopolítica e a
história:

mas quando, e em que medida, foram aplicados aos povos coloniais os


princípios liberais nos quais se disse fundado o Estado inglês do século XIX,
modelo, creio, de regime liberal perfeito para aqueles que pensam como
Bobbio? A verdade é que a ‘doutrina liberal [...] fundamenta-se numa bárbara
discriminação entre as criaturas humanas’. Além das colônias, tal

66
Idem. p. 48.
67
LOSURDO, Domenico. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer; tradução
Ana Maria Chiarini, Diego Silveira Coelho. -1 ed.- São Paulo: Boitempo, 2018. p.69
discriminação se alastra também na própria metrópole capitalista, como
demonstra o caso dos negros estadunidenses, ´em grande parte desprovidos de
direitos elementares, discriminados e perseguidos’.

A leitura de Nina Rodrigues, cuja obra é citada neste trabalho, também demonstra que
certa fração do liberalismo político clássico, enquanto defendia as liberdades e as garantias dos
cidadãos ingleses "de bens", arquitetava “ciências” e justificações que respaldaram os campos
de concentração na África, vide Herbert Spencer68, bastante citado e bem falado em “As Raças
Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil.”
O intuito dessa digressão é apontar que determinados conceitos e acepções quase sempre
são usados, ideologicamente; vale dizer, armas de discurso – de esvaziamento das lutas por
conquistas substanciais-, sem conotação material necessária. Na maioria das vezes em que se
reivindica a segurança pública, no Rio de Janeiro, esse pedido público ou socorro assinado pela
“sociedade civil organizada” é determinado à alguma pequena parcela da população. Não é a
segurança do morador do Complexo do Caramujo ou do Arará que está sendo pensada. Fosse
o contrário, o sobrevoo de aeronaves com metralhadoras apontadas contra residências de
trabalhadores, idosos e crianças seria vista como um absurdo; a Súmula nº70 do TJ/RJ não
estaria vigente, e jovens negros poderiam andar tranquilamente de noite, a despeito da polícia.
Busca Pessoal de madrugada, por funcionário público militarizado, em razão da suspeita
meramente visual justificada pelo servidor, e contato ginecológico em busca de “flagrante”
poderiam ser relatados como histórias terríveis e superadas, anos antes da promulgação
constitucional.
Talvez seja a “ordem”, melhor dizendo, a manutenção do distanciamento entre as
classes sociais, com a ampliação das invisibilidades sobre as violências estruturais, o objeto de
reivindicação, quando segurança não significa a proteção dos direitos fundamentais de todos.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é estruturada a partir de
fundamentos e objetivos fincados, respectivamente, na dignidade humana e na erradicação da
pobreza e da marginalização. Não é propriamente liberal, já que é dirigente. A partir dela, os

68
“Qual é o efeito da mistura das raças sobre a natureza mental, inquire Spencer (Essais scientifiques, Paris, 1879),
como um dos grandes problemas da psicologia comparada da humanidade? Em todo o reino animal, temos motivo
para crê-lo, todo cruzamento entre variedades que se tem tornado muito estranhas uma da outra, no físico nada
produz que preste; ao contrário, a união entre variedades ligeiramente diferentes do físico dá bons resultados. Dá-
se o mesmo para a natureza mental? A julgar por certos fatos, a mistura entre raças de homens muito
dessemelhantes parece produzir um tipo mental sem valor, que não serve nem para o modo de viver da raça
superior, nem para o da raça inferior, que não presta enfim para gênero algum de vida. (...) O mestiçamento no
Brasil confirma e exemplifica essas previsões” página 54.
direitos fundamentais não são mera formalidade (ou, pelo menos, não poderiam ser lidos dessa
forma), muito menos “gota de óleo”.
Segurança Pública constitucional, assim, não pode significar marginalizar, muito menos
territorializar pela imposição da violência. As garantias fundamentais são para todos, sem
distinção: no Jardim Catarina e no Jardim Botânico, devem valer os mesmos direitos. Nesse
sentido, a advocacia da segurança dos direitos fundamentais – paradigma de segurança pública
aqui defendido - pode se projetar como instrumento de modificação dos trajes autoritários
vestidos ainda pelo Estado de Direito, e como chave de ruptura da forma de relação social de
subjetividade jurídica, em que a propriedade privada dos meios de produção é alvo de proteção
e o ser humano alvo de coisificação.
A inspiração em Miguel Baldez, procurador do Estado e advogado popular substancial,
ilustra esse trabalho. Seres humanos e suas ideias fazem as instituições. Nesse sentido, a defesa
da função essencial de proteger os direitos da população fluminense ser a da Procuradoria Geral
do Estado, para além de sua atribuição constitucional, parece fazer todo o sentido. Não é um
esgotamento de tema, mas uma pequena proposição para uma leitura substantiva a respeito da
segurança pública, no Rio de Janeiro atual.
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