Procuradoria-Geral do Estado
Centro de Estudos Jurídicos
Escola Superior de Advocacia Pública – ESAP
Rio de Janeiro
2021
1. Introdução
Um ano que não acabou. Dois mil e vinte é contínuo. Vigentes a peste, a crise sanitária,
o desmonte previdenciário, a letalidade policial evidente, em um contexto de violência urbana,
neste Estado-membro, não cindido por acidente, surgem questões jurídicas inúmeras. Na
Cadeia Pública José Frederico Marques (Benfica), na Escola Municipal Wilian Peixoto (Maré),
ou no Hospital Estadual Anxieta (Caju), podemos questionar se há política de proteção e de
segurança dos direitos das pessoas que ali estão. Problemas que afetam nossa compreensão
sobre Segurança Pública serão objetos desta monografia. Dentre os incontáveis problemas de
direito e provocados pelo Direito, este foi o escolhido: direto à segurança (art.6º e art.144, caput,
da CRFB/88).
O Direito não é dado por forças acidentais que colidem no espaço, nem o sobrenatural
o influencia. Não é científico em si. Na crítica aos que pressupunham a sobreposição das ideias
e dos desejos sobre a realidade material, Karl Marx, em Carta a Annenkov, dois anos antes dos
primeiros dias, em 1848, que abalaram o mundo moderno, escrevera
1
MARX, Karl, 1818-1883. Miséria da Filosofia/ Karl Marx.; tradução Torrieri Guimarães; prefácio e notas Jean
Kessler. – São Paulo ; Martin Claret, 2008. – (Coleção a obra-prima de cada autor ; 258). Carta de Marx a
Annenkov. Página 48.
2
Conceito apreendido e compreendido em MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo:
Boitempo, 2013.
3
LYRA, D. Araújo (org.). Desordem e processo- estudos em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre:
Ed. Fabris, 1986. A crítica do jovem Marx à concepção hegeliano do estado e do direito, cit., p. 140.
No Estado fluminense, “capital” turística de um país cuja economia capitalista é
dependente (Ruy Mauro Marini4) e que está em franca desindustrialização, em que o
Governador eleito foi afastado – não por atirar de um helicóptero contra moradias populares de
uma favela – a segurança pública é um dos temas de maior reverberação e reivindicação
midiática. Também, não pelos três anos da execução da vereadora negra e periférica Marielle
Franco (5ª vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro), não por Ágatha Vitória Félix,
assassinada aos 8 anos, em 2019, não pela morte de Wesley Castro Rodrigues, de Kauã Vitor
da Silva, de Kauê Ribeiro dos Santos, de Ray Pinto Faria5, de Jefferson Bispo da Silva Freitas,
de João Pedro Mattos Pinto67, e de muitos outros (histórias concretas) que deixaram de viver
após uma operação policial8, crianças e jovens, negros e pobres9.
Portanto, na direção do que ressalta a professora Vera Malaguti Batista (UERJ)10,
quando lembra “Joel Rufino (dos Santos) dizia ‘a esquerda não tem que ter uma política de
segurança pública, a esquerda tem que ter uma política de proteção dos direitos’, e Alessandro
Baratta dizia ´não é direito à segurança, é segurança dos direitos”, este trabalho questionará
pontos pertinentes do atual modelo segurança pública sob a perspectivas dos direitos e das
garantias humanas fundamentais, tendo como parâmetro a realidade fluminense, que despontou
com o maior número de mortos por policiais em 22 anos (2020)11.
Inevitavelmente, ao estudarmos aspectos do direito à segurança no Rio de Janeiro,
redigiremos a respeito de política de segurança pública fluminense, ainda que sem pretensões
de esgotamento do tema. Segundo o professor Nilo Batista, a ênfase na instituição policial
4
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência/ uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini; organização
e apresentação de Emir Sader. – Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires; CLACSO, 2000.
5
“Adolescente de 14 anos é morto durante operação no Rio; família acusa PM”, por G1 Rio, em 22/02/2021,
disponível em encurtador.com.br/otB48
6
Causo da morte de João Pedro Mattos Pinho também está registrada na ADP nº635, em decisão do Ministro
Relator Edson Fachin, de 5 de junho de 2020.
7
“Doze crianças morreram baleadas no Rio de Janeiro, em 2020.”, por G1 Rio, em 07/12/2020, disponível em
encurtador.com.br/ekFS2.
8
Em sede do Agravo de Instrumento nº0061192-31.2020.8.19.0000, protocolado em 05/09/2020, a Procuradoria
do Estado do Rio de Janeiro, sem debater dados, afirma “O Estado não nega que os abusos existam e, neste ponto,
procura apurar e punir os seus responsáveis, sempre observando o devido processo legal. Tais abusos, contudo,
não podem ser considerados a regra...A verdade é que o corpo policial é composto por policiais dedicados que, no
dia a dia, dão inúmeros exemplos de combate à criminalidade”. Página 04.
9
Conforme consta em decisão do Ministro Edson Fachin, na ADPF nº, em 18-08-2020, página 3 de 198, “A Corte
Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília, reconheceu que há omissão relevante do
Estado do Rio de Janeiro no que tange à elaboração de um plano para a redução da letalidade dos agentes de
segurança.”
10
Gravação em Podcast “Segurança dos Direitos”: https://soundcloud.com/segurancadosdireitos
11
Reportagem “RJ tem maior número de mortes por policiais em 22 anos; e o 2º menor índice de homicídios já
registrados pelo ISP”. In: sítio eletrônico “g1.globo.com”, do dia 22/06/2020. Dados do Instituto de Segurança
Pública (ISP).
(política de segurança pública) é integrante da política criminal, ao lado da política judiciária e
da política penitenciária12. Direitos humanos, direito constitucional e direito administrativo são
matérias íntimas ao tema que emerge neste Estado-membro, já que todos integram o direito
público.
Neste sentido, após introduzir a contradição entre violência e direitos humanos, nos
debruçaremos sobre: (i) presunção de veracidade do ato administrativo e a palavra do policial
militar nos procedimentos inseridos nos processos penais e administrativos, (ii) revista Íntima
e vexatória, (iii) operações militares com sobrevoos de helicópteros em áreas carentes, (iv) o
papel da Procuradoria Geral do Estado em um contexto de necessidade de democratização das
instituições.
12
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro- 12ª edição- Rio de Janeiro: Revan, 2011. 2ª
reimpressão, março de 2015. p.33.
13
Crítica construída no livro TANGERINO, Davi de Paiva Costa, 1979-. Culpabilidade/ Davi de Paiva
Tangerino.- Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
14
NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública: questões controvertidas penais,
processuais penais, de execução penal e da infância e juventude. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
A corroborar com a afirmação acima, aparecem os dados do Banco Nacional de
Monitoramento de Prisões –CNJ (2018), demonstrando que roubo (art.157 do CP), furto
(art.155 do CP) e tráfico de drogas (art.33 da Lei 11.343/2006) correspondem a 60,95% dos
tipos penais mais recorrentes imputados às pessoas privativas de liberdade (homicídio,
latrocínio e estupro não chegam juntos a 15%)15, enquanto, no Rio de Janeiro, há a tendência
de apenas 3,7% dos inquéritos das mortes decorrentes de intervenção policial virarem processo,
prevalecendo a narrativa policial, segundo pesquisa do Núcleo de Estudos da Cidadania,
Conflito e Violência Urbana da UFRJ, em 201116.
Nota-se que a concepção de ordem e de paz social é seletiva, sobretudo se destoada de
qualquer compreensão referente aos direitos humanos, direitos fundamentais
internacionalmente proclamados.
A respeito da acepção de segurança positivada como ordem, o Grupo de Trabalho de
Segurança Pública, do projeto Brasil Popular, sob coordenação da professora da UERJ, Vera
Malaguti Batista (2017, p. 5), explica:
15
https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cadastro-nacional-de-presos-bnmp-2-
0?utm_source=banner , acesso em 10/02/2021.
16
GRILLO; TEIXEIRA; NERI; “Autos de Resistência”: uma análise dos homicídios cometidos por policiais
na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011), Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (UFRJ),
coordenação Michel Misse, Rio de Janeiro, 2011.
individualista da acepção do direito à segurança pode nos levar à cegueira perante problemas
concretos.
Igualmente, esquivar-se de qualquer pretensão de individualização dos problemas e das
responsabilidades é de suma importância. Não há, aqui, pretensões de criticar o trabalhador
policial, nem de fazer uma ortopedia moral daqueles que são membros dos órgãos que integram
as funções de Poder. Por outro lado, interessante pode ser pesquisar e analisar a estrutura da
violência/a violência da estrutura social, e o porquê de os direitos humanos sofrerem a leitura
de serem meras sugestões.
Direitos Humanos e violência cotidiana se opõem por completo, porque, uma vez
desrespeitados os direitos fundamentais universais, a brutalidade acaba vigendo. Vale dizer,
enquanto houver violações de direitos humanos, haverá violência urbana. Ou melhor, inexistirá
segurança pública, direito fundamental que deve ser estabelecido, a partir do objetivo
constitucional republicano de erradicação da pobreza e da marginalização (art.3º, III, da
CRFB/88), enquanto uma grande parcela da população viver sufocada em uma realidade febril
e militarizada de execuções sumárias, de invasões domiciliares, de prisão a céu aberto e de
incontrolável poder policial. Assim ensina a professora e ex-magistrada Maria Lúcia Karam:
17
KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1993, p. 145.
As permanências positivistas18 na política de segurança pública, com marcos
etiológicos19 , medicinais20 e biologistas, demonstradas nas suas origens por Mariza Corrêa, em
“As ilusões da Liberdade – a Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil” (Bragança
Paulista, 2001), se encontram presentes, no Estado do Rio de Janeiro, quando territórios pobres
são alvos de cercos, de controles e de tiros perpetrados por agentes de instituições públicas-
estatais, enquanto a mesma política é impensável para as áreas nobres do município ou do
estado-membro onde a criminalização secundária21 de condutas como o tráfico de drogas não é
marcada pelo mesmo nível de brutalidade. Observa-se, assim, a racialização social “no
atacado”, ou o que o jurista Silvio Luiz de Almeida identifica como elemento do racismo
estrutural22. Nesse sentido, escreve o delegado de Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando
Zaccone:
O controle sobre as populações pobres e, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro,
das áreas ocupadas por essa população, conhecidas por ´favelas`, é o exemplo mais
gritante do exercício configurador positivo. (...)
O poder penal exercita um poder de vigilância disciplinar de uso cotidiano, nas áreas
carentes.23
18
“Muito mais do que uma escola de pensamento, constitui-se numa cultura. O positivismo representa uma
atualização, um continuum e até uma sofisticação dos esquemas classificatórios, hierarquizantes, produzidos pela
colonização do mundo pelo capital” em BATISTA, Vera Malaguti, 1955-. Introdução à criminologia
brasileira/Vera Malaguti Batista.- Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição, julho de 2012, 2ª reimpressão, 2015.
p.41.
19
Busca-se a causa do crime, enquanto categoria ontológica, ou atributo da personalidade de pessoas. Para o
positivismo não há as indagações acerca do que é criminalizado e de quem é criminalizado, mas sim de quem é o
criminoso.
20
Nilo Batista denuncia o “enraizamento da infração na constituição biológica do sujeito”, em conferência
realizada pelo IBCCRIM, gravada e presente em https://soundcloud.com/segurancadosdireitos/episodio-61.
21
Segundo os ensinamentos de Eugenio Raúl Zaffaroni é “a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que
acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado
primariamente.”
22
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
23
D`ELLIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do Nada: quem são os traficantes de droga – Orlando
Zaccone D`Ellia Filho- Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.30.
sociais (ambiente, família, educação etc.), que seriam responsáveis pela super-
representação das classes dominadas e pela sub-representação das classes dominantes
nas estatísticas criminais. Mas a confiabilidade das “evidências” (no caso, o dado
estatístico) e a validade das teorias da criminologia tradicional são destruídas pela
relatividade do crime e pelas chamadas cifras negra e dourada da criminalidade: o
crime varia conforme o tipo de sociedade e o estágio de desenvolvimento tecnológico,
o que significa ausência de crimes naturais e identidade entre criminosos e não
criminosos, exceto pela condenação criminal. 24:
O serviço público é fundamental para democracia do país, porque pode ser impessoal,
transparente (art.37, caput, da CRFB/88), participativo, neutralizador de mercantilização
(Alessandro Baratta fala em mercantilização da segurança25) etc.
Ademais, as garantias de trabalho, inseridas no regime estatutário – a partir do qual
vislumbra-se o desenvolvimento das potencialidades produtivas do servidor fora dos marcos da
competitividade liberal -, ainda vigentes, são de suma importância para qualquer projeto
político e jurídico que mire a emancipação humana e a existência de uma sociedade mais justa
e igualitária, a partir do nosso marco atual. Todavia, a partir da compreensão das contradições
estruturais, apresenta-se necessário o reforço da cultura democrática a respeito dos direitos
24
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical [recurso eletrônico]/ Juarez Cirino dos Santos. -4.ed-
Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 12
25
BARATTA, Alessandro. Seguridad. In Criminologia y Sistema Penal: compilacíon in memoria. Buenos Aires:
B de F, 2013, p. 200/202.
fundamentais, inaugurada e estimulada pela redação constitucional, tanto para a proteção dos
servidores26, quanto para a proteção dos cidadãos.
O que parece valioso para a introdução dos direitos e garantias fundamentais no núcleo
duro da teoria dos atos administrativos é a confirmação por Baldez de que o objetivo
republicano de erradicação da marginalização (da qual a criminalização também é espécie)
funda o próprio universo e razão de existência desses direitos e garantias no Brasil.
Consequentemente, segurança pública deveria ser objetivada a partir da erradicação da
marginalização e da fomentação da cidadania. Vejamos.
Os direitos fundamentais possuem como características a universalidade, a
historicidade, a indivisibilidade, a imprescritibilidade e a inalienabilidade, a relatividade, a
inviolabilidade, a complementariedade, a interdependência e a efetividade28. Sobre a
Efetividade, Nathália Masson afirma que:
26
Nesse sentido, é importante registrar o aumento no índice de suicídio do trabalhador policial, afetado pela
violência institucional e alvo de muito assédio e de críticas. Pesquisa mencionada em IPPES Brasil:
encurtador.com.br/ehizU
27
BALDEZ, Miguel Lazellotti. Sobre a questão urbana. Revista da faculdade de Direito de Campos, ano 1, nº
1, Jan/Jun. 2000. p.16.
28
AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional/ Walber de Moura Agra. -9. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2018. p.194
A atuação dos Poderes Públicos deve se pautar (sempre) na necessidade de se efetivar
os direitos e garantias institucionalizados, inclusive por meio da utilização de
mecanismos coercitivos, se necessário for.
Direitos fundamentais formam um sistema harmônico, coerente e indissociável, o que
importa na impossibilidade de compartimentalização dos mesmos, seja na tarefa
interpretativa, seja na de aplicação às circunstâncias concretas. 29
29
MASSON, Nathália. Manual de Direito Constitucional. Salvador: editora JusPODIVM, 2016, p.196.
30
Reportagem “Rio está entre as 10 metrópoles mais desiguais do mundo, diz estudo da Casa Fluminense”. In:
sítio eletrônico g1.globo.com, do dia 13 de julho de 2020. Amostra de dados obtidos por pesquisadores da Casa
Fluminense.
31
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, ISSN 1983-7364, ano 14. Fórum Brasileiro de Segurança
Pública. Coordenação Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima. p.90.
32
IPEA- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência 2020. Brasília, 2020. p.47. Disponível em
https://dx.doi.org/10.38116/riatlasdaviolencia2020
A respeito da presunção de inocência - direito fundamental de primeira geração,
redigido para possuir eficácia plena e aplicabilidade imediata -, o jurista e professor de Direito
Penal aposentado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Juarez Tavares, ensina:
Em nossa opinião, por força do devido processo legal e dos princípios da publicidade,
da finalidade e da motivação, a administração pública tem de demonstrar os fatos que
ensejaram sua atuação, com o que, portanto, não concordamos com um princípio de
veracidade dos fatos alegados pela administração, salvo em casos excepcionais em
que essa prova seria, para ela, de impossível realização (a chamada “prova
diabólica”)35
33
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal (livro eletrônico) / Juarez Tavares. - 4.ed. – São Paulo: Tirant lo
Blanch, 2019. p. 320-321.
34
A exemplo: AC nº 0311082-54.2017.8.19.0001, AC nº 0281833-92.2016.8.19.0001, AC nº 0008458-
94.2017.8.19.0037.
35
DE ARAGÃO, Alexandre Santos. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro-
Algumas Notas Críticas Sobre o Princípio da Presunção de Veracidade dos Atos Administrativos. Rio de Janeiro:
Centro de Estudos Jurídicos- CEJUR, 2015.p. 37.
Em sentido parecido, Celso Antônio Bandeira de Mello escrevera que a presunção de
veracidade e legitimidade dos atos administrativos apenas vige enquanto não contendidos em
juízo36.
Como exposto acima, Alexandre Aragão apresenta a hipótese da prova diabólica. No
entanto, não é fácil imaginar uma prova que seria de impossível realização pelo Estado. Em
casos protagonizados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro – aproveitando, aqui, que
essa é uma instituição de grande importância para o tema de direito à segurança-, o alcance de
materiais que confirmem os elementos informativos declarados ou redigidos pelos
trabalhadores policiais é plenamente viável.
Neste Estado-membro, por exemplo, segue vigente a Lei Estadual de nº 5.588/2009, que
há dez anos determina a instalação de câmeras e aparelhos de captações de áudios nas viaturas
policiais, assim dispondo:
“Art.1º. Deverá o Poder Executivo instalar câmeras de vídeo e de áudio nas viaturas
automotivas que vierem a ser adquiridas para servir as áreas de Segurança Pública e
defesa civil.
Parágrafo único. Nas viaturas já existentes, a instalação do referido sistema deverá ser
implantada de forma gradativa.
Art.2º. As câmeras ou microcâmeras deverão ser integradas ao sistema de
comunicação central dos órgãos de Segurança Pública e Defesa Civil, para geração e
transmissão de imagens e som do interior da viatura em formato digital.
Art.3º. As imagens devem ser arquivadas por um período mínimo de dois anos e
poderão ser utilizadas para atender a demanda judicial e administrativa.
Art.4º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.” 37
36
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p.40.
37
Fonte: alerj.rj.gov.br
Nessa direção, merece crítica o enunciado da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro que, embora de natureza aparentemente processual e penal, possui aptidão de
interferência na vida dos moradores deste Estado- membro, já que implica na
administrativização dos processos e que fomenta o aumento do poder policial, num contexto
de expansão (para-) militar. A norma contêm o famigerado texto "O fato de restringir-se a
prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a
condenação."
No Rio de Janeiro, esse enunciado torna absoluta a desproporção de armas entre as
partes de um processo administrativo ou penal, inaugurando possivelmente uma categoria de
“juiz de beco”, cuja sentença é um Termo de Declaração em delegacia, e endereça o
aprisionamento daqueles que estão na periferia do centro financeiro. Assim, a mencionada
norma de incidência estadual é fator determinante de caracterização, em específico, das relações
sociais entre cidadão e polícia militar (cujos trabalhadores ficam ainda mais distanciados de sua
classe) e do próprio processo penal, no Rio de Janeiro, a despeito da competência exclusiva da
União (art.22, I, da CRFB/88).
Em outras palavras, a condenação de um cidadão já se torna viável – ou quase certa- a
partir da abordagem militar não passível de regulação e de avaliação, na localidade de uma viela
sombria, em franca afronta às atribuições conferidas pela Constituição de 1988 ao policiamento
ostensivo (art.144, §5º da CRFB/88). Em suma, a presunção de veracidade atribuída à palavra
do policial militar é dissonante do direito à segurança pública democraticamente possível,
pautado segundo o objetivo republicano de erradicação da marginalização e de garantia da
cidadania.
Por outro aspecto, a transformação do trabalhador policial em prova, na medida em que
a criação dessa é mera expressão de pequeno poder redigida a partir de uma expectativa externa
e funcional imposta sobre o militar, pode ser o que Marildo Menegat identifica como
coisificação do homem38. Em outras palavras: mediante a mercantilização da segurança pública,
forjada sob uma narrativa que constrói bodes expiatórios (no Rio de Janeiro, são esses os
comerciantes das favelas varejistas das “drogas”), o servidor público passa a ser determinado
pelas coisas (imensa coleção de mercadorias, e são as formas de “ordem” o que mais se vende),
tornando-se reificado.
38
MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas.- Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2012.
1ª reimpressão, janeiro de 2015. p.412.
Assim, pode ser notada também a violação da dignidade humana do policial ou do
servidor público, instrumentalizado porque posto na condição de ser criador de “provas”.
Não é de se duvidar que o conteúdo do enunciado da Súmula nº 70 do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro tenha profunda ligação com a doutrina confirmativa do “Princípio de
presunção de veracidade dos atos administrativos”.
De acordo com a doutrina convencional do Direito Administrativo39, os elementos do
ato administrativos são extraídos do art.2º da Lei 4.717/1965 e são: sujeito, forma, objeto,
motivo e finalidade. O motivo é o fato que enseja a prática do ato e, grosso modo, a motivação
é a redação desses fatos em documento lavrado conforme a forma necessária.
Rafael Carvalho Rezende Oliveira afirma que a motivação é:
Se, logo, a motivação é a redação de fato que existiu, tais fatos devem ser demonstrados.
Novamente, Alexandre Santos de Aragão (2015, p. 33) ensina que:
39
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26.ed. São Paulo: Atlas, 2013.
40
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: Método,2018. p. 354.
interesses de toda a coletividade, esta, sim, senhora de tais interesses, visto que, nos
termos da Constituição, “todo o poder emana do povo (...)” (art- Ia, parágrafo único).
Logo, parece óbvio que, praticado o ato em um Estado onde tal preceito é assumido e
que, ademais, qualifica-se como “Estado Democrático de Direito” (art. Ia, caput),
proclamando, ainda, ter como um de seus fundamentos a “cidadania” (inciso II), os
cidadãos e em particular o interessado no ato têm o direito de saber por que foi
praticado, isto é, que fundamentos o justificam. Há de se entender que as razões
expostas, em princípio, exigem mais do que a simples enunciação ulterior das razões
que o estribaram, vez que para ciência a posteriori bastaria o supedâneo fornecido
pelos incisos XXXIII e XXXIV, “b”, do art. 5º, segundo os quais, e respectivamente,
é garantido aos administrados o direito de receber dos órgãos públicos “informações
de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”, e obter “certidões em
repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse
pessoal.
O devido processo legal precisa ser material, o contraditório e a ampla defesa precisam
ser materiais, a presunção de inocência nas suas dimensões de tratamento, de garantia e de
julgamento precisa ser material. No mesmo sentido, a possibilidade de controle dos atos
administrativos, derivada do art. 37, caput, da CRFB/88, é meio de combate à corrupção, o que
é fundamental para o direito à segurança.
Ilustrando: embora vigente a Lei Estadual de nº 5.588/2009, o carros policiais circulam
sem câmeras41. A partir desse fato, não seria possível imaginar que, diante da ausência de meios
idôneos de prova em contrário, um agente público poderia forjar um flagrante baseando-se
apenas em sua presunção de veracidade?
Nesse sentido, é de se supor e de se defender que a teoria ou a dogmática a respeito dos
atos administrativos atravesse a filtragem constitucional, capaz de eliminar as sujeiras
autoritárias. A “presunção de veracidade dos atos administrativos” cairia por terra, quando a
motivação administrativa se apresentasse como mera redação sem subsídios materiais, sem
vinculação de conteúdo concreto. Dessa maneira, poderíamos fortalecer o projeto
constitucional do direito à segurança, igualitária e humanamente aceitável, porque, a partir da
incompatibilização entre dogmática e as “duras para averiguação” justificadas pela narrativa da
Administração, estaria comprometido com a erradicação da marginalização (BALDEZ, 2000),
com a presunção de inocência (TAVARES, 2019), com o devido processo legal e,
consequentemente, com a vida de todos.
41
Matéria do jornal Extra “Menos de 10% das viaturas da PM do Rio têm câmera, obrigatórias por lei”, datada em
15 de Janeiro de 2019.
corresponde a 51.643 pessoas, em dezembro de 202042. Se pensarmos a respeito das famílias
que são atingidas pela realidade do cárcere e seus efeitos concretos e simbólicos, talvez
poderíamos estimar que quase duzentas mil pessoas são afetadas, de alguma maneira, pelas
implicações das normas que regulamentam o sistema penitenciário.
A principal porta de entrada do sistema presidiário fluminense, a Cadeia Pública José
Frederico Marques, está localizada no bairro de Benfica, zona norte carioca. Qualquer um se
espantaria com as audiências de custódia, porque há uma imensa fila de mulheres negras (mães,
filhas e esposas) à espera de notícias sobre seus entes queridos.
Com um sol para cada cabeça, quase diariamente, mulheres, em maioria negras, esperam
horas por respostas sobre a vida dos custodiados. “Telefones sem fio” ou fake news sobre mortes
de jovens e brigas entres facções rivais percorrem o espaço hostil externo ao presídio,
proporcionando agonia nas pessoas que ali esperam. Eis uma realidade de tortura psicológica.
Além disso, em todas as instituições que pertencem ao sistema penitenciário, essas mulheres
sofrem humilhações e constrangimentos de complicada descrição.
Muito rotineiras no Estado do Rio de Janeiro eram as revistas íntimas. A revista íntima
e, portanto, vexatória, é uma modalidade de revista, sem objetivos terapêuticos ou sanitários,
que envolve o desnudamento parcial ou completo, e a inspeção de partes genitais, de cavidades
corporais do ou da revistada, comumente, por agentes de segurança. Esse é um tipo de
procedimento que, lido como meio de obtenção de provas, obriga(va) as mulheres visitantes a
fazerem agachamentos em estado de nudez, posições com o ânus apontado para o teto, e força
de parto capaz de expelir eventual objeto dentro de seus corpos. Mediante um consentimento
imposto, as visitantes poderiam, ainda, ficar sujeitas à colocação de espelhos debaixo de suas
pernas ou a toques ginecológicos.
Tais atos denotam um objetivo policial de controle não apenas dos presidiários, mas de
familiares que sofrem mesmo “livres” a violência da prisão, e violam, portanto, os art.1º, III,
art. 5º, X e XLV, da CRFB/88 segundo o qual “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”.
No mesmo sentido, a inspeção vexatória, com muita probabilidade, implica a retificação do
corpo feminino e mais ainda do corpo negro, tendo em vista ser de conhecimento público a
“clientela” do sistema prisional.
Não obstante o fato das revistas íntimas no presídios, a realidade dá conta de que as
revistas íntimas e vexatórias também ocorrem nas abordagens policiais, como se fossem buscas
42
Em: gmf.tjrj.jus.br/censo-sistema-prisional
pessoais43. Por exemplo, histórias de policiais militares que colocam a mão por dentro da
calcinha de mulheres revistadas, na suposta busca por material de flagrância para a imputação
do tráfico de drogas, não são tão incomuns.
Nesse sentido, retornamos aos problemas pertinentes à presunção de veracidade do que
é dito pelo servidor público em ato administrativo e à necessidade de cumprimento da Lei
Estadual de nº 5.588/2009, que obriga a instalação de câmeras e captadores de sons nos carros
policiais, apenas por exemplo. O direito à segurança democrático deve possibilitar o controle
da polícia e dos atos do serviço público pela população.
Há mais de cinco anos, foi aprovada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro, a lei de número 7.010/2015, proibindo a revista íntima. O conteúdo legislativo é
iniciado pela ênfase ao respeito à dignidade humana da pessoa a ser revistada, o que atende aos
objetivos da República Federativa do Brasil (art.3º da CRFB/88).
Igualmente curioso - porque no tópico anterior analisamos a hipótese de a
Administração se confrontar com a “prova diabólica” - é a explicitação de que o Estado possui
a capacidade de aquisição de tecnologias avançadas, capazes de proporcionar a não cogitação
da violação de direitos individuais. Estamos nos referindo à revista mecânica, realizada por
meio de aparelhos de raio-x, scanners corporais e detectores de metais (art.2º, §2º). Ademais,
destacam-se os seguintes artigos:
43
em:itcc.org.br/revista-vexatória-audiências-de-custódia
Os críticos dessa lei estadual argumentam que as garantias contra uma inspeção
completa em um visitante de presídio fortalecem os grupos organizados entorno de execuções
de práticas delituosas, instalados dentro do presídio, fortalecendo a insegurança da sociedade
perante o “crime organizado”. Igualmente, no intuito de criticar a aquisição de scanners
corporais, chegam a argumentar a crise financeira pela qual o Estado do Rio de Janeiro passa.
Talvez, seja mais custoso ao Erário Público o encarceramento em massa e as perdas em
processos administrativos e civis nos quais se discute a responsabilidade civil objetiva da
Administração, por seus atos capazes de atingir a ordem moral do cidadão.
Significante registrar que, no ano de 2015, foram movimentadas Representações de
Inconstitucionalidade da Lei 7.010/2015, pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro e pelo
Ministério Público do Rio de Janeiro. Em 2018, curiosamente, nos autos dos processos
0026431-47.2015.8.19.0000, 0026457-45.2015.8.19.0000 e 0036136-69.2015.8.19.0000, o
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manteve a validade da lei, a partir de fundamentos que
reforçam a ótica deste trabalho, vale dizer, afirmando que a Administração Pública deve pautar a
política de segurança tendo como principal referência a proteção dos direitos fundamentais.
44
LIMA, Raquel da Cruz. Parecer Técnico sobre a inconstitucionalidade da Revista Íntima de visitantes que
ingressam em estabelecimentos penais. São Paulo: Rede Justiça Criminal, 2020.
5. Operações Policiais com sobrevoos de helicópteros
Embora a ameaça à cidade tenha sido executada por gente ‘também de pele branca’, o
medo latente é dos escravos, sempre potencialmente perigosos, seja pelo ‘estado de
escravidão’ seja pela sua ‘bruteza’.46
45
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história/ Vera Malaguti
Batista.- Rio de Janeiro: Revan, 2003, 2ª reimpressão, outubro de 2014. p 193.
46
Idem, 2003. p.173.
47
Afirmação do governador Wilson Witzel, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, em 01 de novembro
de 2018.
48
“O Globo”, edição de quinta-feira, 25 de outubro de 2007. “Cabral defende aborto para reduzir crimes”. Rio.
p.29. Localizado em http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/412939
civilização e barbárie, citando Sylvio Romero, arguiu que “não há exemplo de civilização negra.
A única civilização africana, a do Egito, era branca, do ramo cuschitosemita ...”49.
Como exemplo das permanências dos cortes raciais marcados pelas políticas públicas,
a partir do que Malaguti se referencia, em novembro de 2019, os moradores de favelas do Rio
de Janeiro denunciavam o aumento do sobrevoo de helicópteros em operações policiais.
Aparentemente, a perturbação e a violação domiciliar são os primeiros e imediatos tópicos de
queixa, em relatos como “parece que está pousando em cima da sua casa”50, e o medo de morrer
ganha contundência em declarações como “tinha gente atirando de cima, era muita gente
correndo lá fora. Não havia para onde ir”51 e em desabafos que demonstram a incerteza dos
atingidos a respeito da capacidade de resistência das casas ante a força dos projéteis das armas
militares52.
Em 2018, o Observatório da Intervenção, iniciativa do Centro de Estudos de Segurança
e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC/UCAM), registra:
49
RODRIGUES, Raymundo Nina. As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil [online]. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011. p.43 e p.46.
50
Reportagem “Helicópteros da polícia semeiam pânicos nas favelas do Rio”, publicado no sítio eletrônico
istoe.com.br, em 21 de novembro de 2019.
51
Reportagem “´Tinha helicóptero atirando de cima’: professores acalmam alunos com música durante operação
que matou 8 no Rio”, patrocinada pela BBC News Brasil, jornalista Júlia Dias Carneiro, em 07 de maio de 2019.
52
Reportagem “Tiros de Helicóptero: os relatos nas comunidades do Rio”, do jornal Nexo, de 18-09-2019. In:
https://soundcloud.com/durma-com-essa/tiros-de-helicoptero-os-relatos-nas-comunidades-do-rio-18set19
53
Observatório da Intervenção. Relatório 4: “Cinco meses de intervenção federal”, 16/02/2018 – 16/07/2018,
disponível em observatoriodaintervencao.com.br.
54
Matéria “online” do jornal “O Globo”, “Helicóptero com Witzel a bordo metralhou tenda de orações em Angra
dos Reis”, datada em 08 de maio de 2019.
A primeira vista, a divisão ideológica entre um mundo civilizado e outro onde não estão
vigentes quaisquer direitos ilustra o cenário do Rio de Janeiro do século XXI e não tão somente
a sociedade dos importadores do positivismo europeu, do século XIX.
Curiosamente, a despeito do debate jurídico – com repercussões no STF e no TJ/RJ -
relativo a essas incursões militares que alvejam tiros aéreos contra “pessoas suspeitas”, em
“territórios perigosos”, segue formalmente em vigor o Decreto nº 20.557 de 27 de setembro 94,
assinado pelo governador à época em exercício, Nilo Batista:
55
Consulta em ALERJ.
56
Deveria, porque o sistema penal é intrinsicamente seletivo, como bem demonstram Alessandro Baratta, Eugênio
Raul Zaffaroni, Juarez Cirino dos Santos, Nilo Batista e outros grandes estudiosos de igual envergadura.
Não obstante isso, no início deste século, o Decreto Estadual de nº 27.795 de 2001
acrescentou às normas locais vigentes, por meio de seu art.1º, que as decolagens não previstas
no Decreto de nº20.557/94 ficam sujeitas à autorização do Secretário de Estado Chefe do
Gabinete Civil. No entanto, não foi revogada a disposição de 1994, segundo o qual “Em
nenhuma hipótese o helicóptero poderá ser usado em confronto armado direto, e somente no
caso do inciso III do artigo anterior a aeronave transportará armas, as quais só poderão ser
utilizadas após o desembarque”.
Em razão da notória abusividade policial, impingindo à população pobre morte e
sofrimento, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizou a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental, cuja denominação e numeração processual se publiciza como ADPF de
nº 635. Em decisão datada no dia 07 de agosto de 2020, o Ministro Edson Fachin determinou,
cautelarmente:
Deferir a medida cautelar pleiteada, em menor extensão, para dar interpretação
conforme ao art. 2º do Decreto 27.795, de 2001, a fim de restringir a utilização de
helicópteros nas operações policiais apenas nos casos de observância da estrita
necessidade, comprovada por meio da produção, ao término da operação, de relatório
circunstanciado.
O Estado do Rio de Janeiro, por meio de sua Procuradoria Geral, interpôs Agravo de
Instrumento (0061192-31.2020.8.19.0000) sustentando que: (i) a matéria está inserida no
âmbito de discricionariedade da Administração, elaborada por quadros técnicos, de modo que
o Poder Judiciário não pode intervir no mérito administrativo, (ii) a Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro não é instituição com atribuição de fiscalização da Polícia Militar,
(iii) há escolas e instituições de ensino em todo o território e que a determinação da distância
em sobrevoo colocaria em risco a vida dos policiais, já que impediria manobras de fuga
defensiva mais expansivas.
Nota-se que prevaleceu reivindicação a respeito de uma Portaria da Polícia Civil, que –
segundo aquela advocacia – ainda não teria alcançado a aptidão de gerar efeitos sociais
(efetividade). A norma policial “não pegou”, mas e a Constituição? Não somente nesse
processo, mas de um modo geral (talvez), existe uma profunda rejeição às cláusulas pétreas
constitucionais (art.60 §4º da CRFB/88) e, sobretudo, ao que é mais explícito na Constituição
57
Agravo de Instrumento 0061192-31.2020.8.19.0000, página 7.
a respeitos dos direitos fundamentais: “As normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata” (art.5º, §1º da CRFB/88).
Aparentemente, a discussão em torno de Portarias (policiais), Regulamentos e Decretos
propicia uma sensação de especialidade e de tecnicidade ao suposto direito de estabelecimento
de ordem, enquanto a observação dos direitos fundamentais se restringe à órbita das
recomendações franciscanas e da utopia. Possivelmente, trata-se de grave vício de Estado
Policial, em que a Constituição é superada pela gestão sobre quem vive e sobre quem morre,
segundo uma urgência de dia.
No dia 22 de janeiro de 2021, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
permitiu “o sobrevoo extraordinário sobre escolas, em hipóteses concretas e, de caráter
eminentemente excepcional na atividade policial, determinando-se que o Estado do Rio de
Janeiro apresente relatório circunstanciado, nos termos da Medida Cautelar na ADPF nº635-
RJ”58.
Na medida em que vigora o entendimento, chamado de princípio, segundo o qual a
palavra do servidor público possui veracidade presumida, os direitos fundamentais cujas
proteções ficam vinculadas aos protocolos da Administração (a exemplo a Portaria n.º 832, de
02/01/18, da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e o Relatório Circunstanciado
mencionado na decisão da 6ª Câmara Cível do TJ/RJ) passam a ser mera formalidade; sugestões
interpretativas ou histórias que não reverberam na estrutura desigual da sociedade.
A pretensão deste trabalho não é limitar essa matéria de segurança pública, que diz
respeito aos “caveirões áereos” e às incursões truculentas da polícia nas periferias, à ADPF nº
635 e à Ação Civil Pública de nº 0033269-27.2020.8.19.0001. Todavia, esses processos
entregam alguns materiais para análise e para crítica jurídica, eis que casos concretos e, de certa
forma, ricos. E, nesse sentido, a atuação da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro,
instituição fundamental para garantia dos direitos fundamentais, no território fluminense,
merece alguma atenção.
Os direitos fundamentais de primeira dimensão merecem proteção constante e sem
interrupções, razão pela qual é delicado arguir o afastamento da prestação jurisdicional (art.5º,
XXXV, da CRFB/88), quando há demonstrações de abusos, invasões, torturas e mortes a partir
da atuação de agentes públicos. A letalidade policial no Rio de Janeiro é evidente para o mundo
inteiro59. Desse modo, não se trata de fiscalizar a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro,
58
Agravo de Instrumento nº 0061192-31.2020.8.19.0000, página 770.
59
“ ’Licença para matar’: por trás do ano recorde de homicídios cometidos pela polícia no Rio”, New York Times,
em 18 de maio de 2020. In: nytimes.com/pt/2020/05/18/world/américas/rio-abuso-policial.html
mas sim de questionar juridicamente a política de segurança pública a qual a instituição policial
está vinculada, a partir do momento em que os direitos (moradia, integridade corporal, vida,
educação, saúde – inclusive mental-) estão desprotegidos, desrespeitados e, logo, sem
segurança.
A respeito da suposta tecnicidade dos gestores da “ordem pública”, essa compreensão
aparenta ser meramente ideológica, em primeiro lugar porque a qualidade de vida do cidadão
não pode ficar à mercê do resultado eleitoral ou da política imediata. Com efeito, apresenta-se
como notória marca positivista o cientificismo que atribuiu verdades, direitos e proteções à
capacidade técnica de selecionados observadores60, ignorando os objetivos políticos de quem
ocupa os grandes espaços de poder. Nessa direção, talvez, seguiu a PGE/RJ na página 22 do
Agravo de Instrumento mencionado, senão vejamos:
Ao contrário do que se defende61, a violência policial não é uma exceção. Fosse exceção,
seria explicado por que a Polícia Militar do Rio de Janeiro matou em média três pessoas por
dia, no ano de 2020, neste Estado62. No mesmo sentido, essa letalidade não parece consequência
de má-formação do trabalhador policial63, cuja dignidade deve ser igualmente protegida, ou de
índole de alguns servidores que se desvirtuam e mancham a imagem da instituição. A hipótese
forte aponta para a estrutura institucional, para o projeto político de segurança pública, que
merece controle da população, e mais profundamente para o sistema social de produção
capitalista.
60
“ O discurso que inventa ‘conhecimento científico’ como afim à prática policial no Brasil traz consigo uma
variedade de novos termos e procedimentos que ampliam os significados das ações antes limitadas à esfera da
repressão (...) desde os primeiros anos do século XX chamavam a atenção para o despreparo, a violência e
brutalidade de policiais ‘não civilizados’” em CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e
a produção cotidiana da (in) diferença n o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002. p. 198
61
Passagem do Agravo de Instrumento 0061192-31.2020.8.19.0000, interposto pelo Estado do Rio de Janeiro,
página 04: “A verdade é que o corpo policial é composto por policiais dedicados que, no dia a dia, dão inúmeros
exemplos de combate à criminalidade e ao salvamento da população em geral, como por exemplo, o recente caso
da dupla de policiais (1º sargento César e 2º Sargento Valeriana) que, ao realizarem o patrulhamento, salvaram um
bebê de se engasgar com o próprio leite materno, em Itaperuna, no Estado do Rio de Janeiro.”
62
Instituto de Segurança Pública. Segurança em Números 2020, p.7. Arquivo em isp.rj.gov.br.
63
Novamente, em “Intenção e Gesto”, Olívia Maria Cunha demonstra com farta documentação como a violência
policial, estruturada sobre a ideologia do “civilizar” os territórios pobres (“barbárie”), atravessa o século XIX para
o século XX, completamente orientada pelo ideias liberais da Europa e por vetores (neo) coloniais.
A respeito da desmistificação da criminalidade dada como tal, e do papel da polícia a
partir da concepção de segurança como ordem (manutenção das desigualdades sociais e
econômicas), podemos capturar os ensinamentos do professor Juarez Cirino dos Santos que, a
partir da criminologia crítica, também destaca essa atribuição policial:
64
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical [recurso eletrônico]/ Juarez Cirino dos Santos. -4.ed-
Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 42
6. Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro e democracia:
Nessa linha, é necessário insistir, o que aqui volto a fazer, com muito empenho e com
muita esperança nas reservas morais deste País, que os Estados não se confundem
com seus Governos e, muito menos, com seus governantes e, por conseqüência,
Advogados de Estado não podem ser tidos como advogados de governos ou, com mais
razão, como advogados de governantes. A Advocacia de Estado, tanto quanto os
demais ramos constitucionais das Funções Essenciais à Justiça, serve à sociedade, pois
zela, no desempenho de seus respectivos cometimentos fundamentais, a representação
judicial e a consultoria, por suas mais importantes instituições – Estado e Direito – em
todas e em cada uma das múltiplas relações da Administração.65
65
NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. A Advocacia do Estado Revisitada * Essencialidade ao Estado
Democrático de Direito. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo. Vitória: PGE/ES, 2005.
Semestral. p.21.
ordem jurídica e apenas secundariamente referidas ao aparelhamento do
Estado. Com efeito, o dever precípuo cometido aos Advogados e Procuradores
de qualquer das entidades estatais é o de sustentar e de aperfeiçoar a ordem
jurídica, embora secundariamente, e sem jamais contrariar essa primeira
diretriz constitucional, possam esses agentes atuar em outras missões de
natureza jurídica ou administrativa voltadas às atividades-meio, como aquelas
que se desenvolvam em sustentação às medidas governamentais, à assessoria
jurídica, à direção de corpos jurídicos etc.66
Com efeito, segurança pública deve ser reivindicada e protegida pela Procuradoria. No
entanto, a desvinculação ideológica (narrativas repetidas e viciadas que trazem névoa sobre a
realidade) é primordial para interlocução entre objeto e Constituição Federal. A orientação da
atuação jurídica mediante a leitura atenta dos direitos fundamentais pode ser a única forma de
buscar-se um Estado não violento; na dialética, fruto e produtor de uma sociedade não violenta.
Sendo a democracia substancial uma razão e um fim, talvez, torna-se correto dizer,
como lembrou Vera Malaguti a respeito de Alessandro Baratta: a Advocacia Pública também é
fundamental para a segurança dos direitos.
7. Considerações Finais
66
Idem. p. 48.
67
LOSURDO, Domenico. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer; tradução
Ana Maria Chiarini, Diego Silveira Coelho. -1 ed.- São Paulo: Boitempo, 2018. p.69
discriminação se alastra também na própria metrópole capitalista, como
demonstra o caso dos negros estadunidenses, ´em grande parte desprovidos de
direitos elementares, discriminados e perseguidos’.
A leitura de Nina Rodrigues, cuja obra é citada neste trabalho, também demonstra que
certa fração do liberalismo político clássico, enquanto defendia as liberdades e as garantias dos
cidadãos ingleses "de bens", arquitetava “ciências” e justificações que respaldaram os campos
de concentração na África, vide Herbert Spencer68, bastante citado e bem falado em “As Raças
Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil.”
O intuito dessa digressão é apontar que determinados conceitos e acepções quase sempre
são usados, ideologicamente; vale dizer, armas de discurso – de esvaziamento das lutas por
conquistas substanciais-, sem conotação material necessária. Na maioria das vezes em que se
reivindica a segurança pública, no Rio de Janeiro, esse pedido público ou socorro assinado pela
“sociedade civil organizada” é determinado à alguma pequena parcela da população. Não é a
segurança do morador do Complexo do Caramujo ou do Arará que está sendo pensada. Fosse
o contrário, o sobrevoo de aeronaves com metralhadoras apontadas contra residências de
trabalhadores, idosos e crianças seria vista como um absurdo; a Súmula nº70 do TJ/RJ não
estaria vigente, e jovens negros poderiam andar tranquilamente de noite, a despeito da polícia.
Busca Pessoal de madrugada, por funcionário público militarizado, em razão da suspeita
meramente visual justificada pelo servidor, e contato ginecológico em busca de “flagrante”
poderiam ser relatados como histórias terríveis e superadas, anos antes da promulgação
constitucional.
Talvez seja a “ordem”, melhor dizendo, a manutenção do distanciamento entre as
classes sociais, com a ampliação das invisibilidades sobre as violências estruturais, o objeto de
reivindicação, quando segurança não significa a proteção dos direitos fundamentais de todos.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é estruturada a partir de
fundamentos e objetivos fincados, respectivamente, na dignidade humana e na erradicação da
pobreza e da marginalização. Não é propriamente liberal, já que é dirigente. A partir dela, os
68
“Qual é o efeito da mistura das raças sobre a natureza mental, inquire Spencer (Essais scientifiques, Paris, 1879),
como um dos grandes problemas da psicologia comparada da humanidade? Em todo o reino animal, temos motivo
para crê-lo, todo cruzamento entre variedades que se tem tornado muito estranhas uma da outra, no físico nada
produz que preste; ao contrário, a união entre variedades ligeiramente diferentes do físico dá bons resultados. Dá-
se o mesmo para a natureza mental? A julgar por certos fatos, a mistura entre raças de homens muito
dessemelhantes parece produzir um tipo mental sem valor, que não serve nem para o modo de viver da raça
superior, nem para o da raça inferior, que não presta enfim para gênero algum de vida. (...) O mestiçamento no
Brasil confirma e exemplifica essas previsões” página 54.
direitos fundamentais não são mera formalidade (ou, pelo menos, não poderiam ser lidos dessa
forma), muito menos “gota de óleo”.
Segurança Pública constitucional, assim, não pode significar marginalizar, muito menos
territorializar pela imposição da violência. As garantias fundamentais são para todos, sem
distinção: no Jardim Catarina e no Jardim Botânico, devem valer os mesmos direitos. Nesse
sentido, a advocacia da segurança dos direitos fundamentais – paradigma de segurança pública
aqui defendido - pode se projetar como instrumento de modificação dos trajes autoritários
vestidos ainda pelo Estado de Direito, e como chave de ruptura da forma de relação social de
subjetividade jurídica, em que a propriedade privada dos meios de produção é alvo de proteção
e o ser humano alvo de coisificação.
A inspiração em Miguel Baldez, procurador do Estado e advogado popular substancial,
ilustra esse trabalho. Seres humanos e suas ideias fazem as instituições. Nesse sentido, a defesa
da função essencial de proteger os direitos da população fluminense ser a da Procuradoria Geral
do Estado, para além de sua atribuição constitucional, parece fazer todo o sentido. Não é um
esgotamento de tema, mas uma pequena proposição para uma leitura substantiva a respeito da
segurança pública, no Rio de Janeiro atual.
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