Você está na página 1de 19

Entorno do Crime de Associação para o Tráfico: Territórios e racismo estrutural no

Rio de Janeiro.
Trilha para uma nova trilha1

Edgard Monteiro de Menezes2

Resumo: O artigo objetiva relacionar o recrudescimento das condenações por associação


para o tráfico de drogas e racismo estrutural, no Rio de Janeiro. Não obstante isso, essa
proposta está em composição com elementos específicos da arte, base de inspiração, da
cultura, da economia e do direito constitucional.

Palavras-chave: racismo estrutural. associação para o tráfico de drogas. encarceramento.


Erradicação da marginalização. Rio de Janeiro.

1. Introdução

Na quadra deste mundo conflituoso, confuso para a maioria das pessoas, mas
visível em seus sangues e banhos de sangue, falar de direitos fundamentais na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro –UERJ precisa dizer respeito a compor com o
que acontece a nossa volta, em termos de problemas, atos, artes, cultura e construções de
mudança.
No Rio de Janeiro, o ano de 2022 inicia com acontecimentos perceptivelmente3
racistas que, aparentemente, denotam um novo patamar da naturalização do assassinato
de pessoas negras e da eliminação de suas existências. A operação policial-militar -
inconstitucional e contrária a decisão cautelar na ADPF nº 635 – que ceifou oito vidas no
Complexo da Penha4, o homicídio do congolês Moise Kabagambe, em quiosque na Barra

1
DONL. Trilha para uma nova trilha. In: Roteiro Pra Ainouz, vol.2, Brasil: independente, 2021.
2
Mestrando em Direito, linha de pesquisa Direito Penal, UERJ, advogado.
3
“Achar que no Brasil não há conflitos raciais diante da realidade violenta e desigual que se nos apresenta
cotidianamente beira ao delírio, a perversidade ou a mais absoluta má-fé.” In: ALMEIDA, Silvio Luiz de.
O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.página 154
4
Portal G1, “Operação Policial na Vila Cruzeiro deixa 8 mortos e fecha escolas e posto de saúde”, por Bom
dia Rio, publicado em 11 de fevereiro de 2022, às 06 horas e 05 minutos, disponível em
da Tijuca, após a reivindicação de um salário5, e o assassinato do jovem vendedor de
balas, Hyago Macedo de Oliveira Bastos, supostamente por um policial militar, em
Niterói (RJ), à luz do dia6, indiciam essa percepção.
Paralelamente, no campo dos abusos institucionais, a Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro publicou, em 5 de agosto de 2020, “Pesquisa sobre os cinco
anos da Audiência de Custódia: Um olhar sobre o perfil dos presos em flagrante”7. Nesse
documento, é diagnosticado o fato de que negros são 80% dos suspeitos levados a
audiência de custódia, no Rio de Janeiro. De 17.777 casos com informação analisados,
pelo menos 12.248 casos dizem respeito a crimes contra o patrimônio e à Lei
11.343/2006, “Lei de Drogas”, (página 6), e relatos de agressão contra os suspeitos
correspondem a 8.490 casos (página 7).
Ampliando, rapidamente, a análise para o Brasil: segundo o Banco Nacional de
Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça (2018), as imputações do art.
33 e correlatos da Lei 11.343/2006, como o crime de Associação para o Tráfico (art.35),
são responsáveis por 25% da prisões (cautelares e pena) do país8. Em outras palavras, os
crimes da lei de drogas figuram em um quarto dos mandados de prisão. A respeito
também desses dados, cujas atualizações remontam o ano de 2018, destacamos que
54,96% dos presos, no Brasil, são negros – embora possamos questionar o método da
auto declaração individual diante da racialização como um processo histórico dotado de
relatividade político-geográfica9 – e mais de 86% dos detentos brasileiros não possuem o

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/02/11/moradores-relatam-intenso-tiroteio-na-vila-
cruzeiro-na-penha-zona-norte-do-rio.ghtml.
5
Portal O Tempo, “RJ: Congolês é espancado até a morte após cobrar salário atrasado, diz família”, por
FOLHAPRESS, publicado em 31 de janeiro de 2022, às 17 horas e trinta e nove minutos, disponível em
https://www.otempo.com.br/brasil/rj-congoles-e-espancado-ate-a-morte-apos-cobrar-salario-atrasado-diz-
familia-1.2604909
6
Portal G1, “Vendedor de balas é morto por policial de folga em frente à estação de barcas em Niterói”,
por Raoni Alves, Guilherme dos Santos, Isabela Vilela, Natália Oliveira e Carla Sant´anna, G1 Rio e TV
Globo, publicado em 14 de fevereiro de 2022, às13 horas e 38 minutos, disponível em
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/02/14/homem-e-morto-em-frente-a-estacao-das-
barcas-em-niteroi.ghtml
7
Disponível em 0b6d8d161c1b41739e7fc20cca0c1e39.pdf (rj.def.br)
8
Cadastro Nacional de Presos – BNMP 2.0- Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, Conselho
Nacional de Justiça, agosto de 2018. Disponível em https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-
penal/cadastro-nacional-de-presos-bnmp-2-0?utm_source=banner, acesso em 20/08/2021. p. 47
9
Nesse sentido, Silvio Luis de Almeida nos ensina que raça não tem sentido biológico, mas político e
relacional, sendo assim uma “relação social”. Portanto, sobretudo no Brasil, não é porque a pessoa tem tons
claros de pele que ela terá a passabilidade de um cidadão branco. In: ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é
racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018. p. 08.
ensino médio completo: falamos de analfabetos, pessoas com o ensino fundamental
incompleto, com educação formal que vai até o ensino fundamental etc10.
Considerando ainda as execuções – assassinatos perpetrados por agentes estatais –
em nome da abstrata “guerra às drogas”, os criminalizados costumam ter cara. Vale
destacar o Atlas da Violência de 2021, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que aponta que a chance de
uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior àquela de uma branca; as pessoas
negras representam 77% das vítimas de homicídio11. Ainda, a mesma pesquisa indica como a
“guerra às drogas” e seus efeitos colaterais, possivelmente, contribuem para a taxa de homicídios,
nos Estados-membros e a relação entre a violência e o racismo:

(...) as oscilações nas taxas de violências ocorridas nessas regiões, muito


marcadas pelas disputas entre organizações criminais, pela competição no
mercado das drogas e pela posição estratégica ocupada por alguns estados na
rota do tráfico (COUTO, 2018), contribuíram diretamente para a reprodução
da desigualdade racial nessas localidades, conforme mostrado a seguir. (...) Ao
analisarmos as proporções por raça/cor entre as vítimas de homicídios em
2019, podemos visualizar de forma mais evidente os níveis de desigualdade
racial entre as UFs, especialmente porque em estados como Alagoas, o
exemplo mais representativo, quase a totalidade das vítimas de violência letal
são negras, mesmo com os negros constituindo uma proporção bem inferior a
isso, 73,7% da população total. 12

Inicialmente, é o ponto de encontro entre a violência do racismo explícito e aquele


institucional, no Brasil, que nos desperta a inquietação. Em dezembro de 2021, o artista
cearense, Gabriel Linhares da Rocha, conhecido como Don L, lançou o álbum musical
“Roteiro para Ainouz, Vol. 2” – premiado pela Associação Paulista de Críticos das Artes
(APCA) - propondo a construção de um novo imaginário revolucionário para o país,
historicamente racista.
O rapper canta “Depois do massacre ergueram catedrais/ uma capela em cada
povoado/ como se a questão fosse guerra ou paz/ Mas sempre foi guerra ou ser

10
Cadastro Nacional de Presos – BNMP 2.0- Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, Conselho
Nacional de Justiça, agosto de 2018. Disponível em https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-
penal/cadastro-nacional-de-presos-bnmp-2-0?utm_source=banner, acesso em 20/08/2021. p. 54
11
CERQUEIRA, Daniel. Atlas da Violência 2021 / Daniel Cerqueira et al., — São Paulo: FBSP, 2021. p.
47.
12
Idem. p. 48/9.
devorado”13, na faixa Vila Rica; diagnostica em prosa que “nos consideravam drogas e
guerra às drogas não eram sobre os entorpecentes”, na faixa Pânico de nada; e mais além
declama:

E dizem que somos perigosos/ Eles que mataram, escravizaram,


torturaram na cela e confinaram na favela milhões nossos/ depois
querem recontar a história/e me negar os fatos/eu prefiro recontar os
corpos/ para gente medir o estrago/ Se quiseram me negar os fatos,
‘magina se iriam dividir os pratos (...) Cê não pode me dizer (me dizer
nada)/ simplesmente não tem moral para dizer nada, olha para você
(faixa “Pela Boca”)

Esse trabalho potente, que inspira este texto, rememora o pensamento segundo o
qual “o dilema social representado pelo negro liga-se à violência dos que cultivaram a
repetição do passado no presente. E exige uma contra violência que remova a
concentração racial da riqueza, da cultura e do poder" (FERNANDES, 2017, p.84). Não
é acepção de uma contra-violência física que nos seduz aqui, mas sim a necessidade de
construção de uma postura combativa, proativa e transformadora diante da estrutura
racista brasileira, que passa a ser objeto de instigação e de questionamento, neste artigo.
A partir disso, conjectura-se que o diálogo com o conceito de racismo estrutural
se torna uma ferramenta central para compreender a contradição violenta entre capital e
trabalho, conflito cujo acento é iniciado a partir da exploração brutal do trabalho
escravizado, no Brasil. Nesse sentido, colocar em questão a chamada “guerra às drogas”,
suas razões latentes, e sua relação com o racismo estrutural é objetivo deste trabalho. E,
mais especificamente, o dispositivo concernente ao crime de associação para o tráfico
(art.35 da Lei 13.343/2006) pode ser interessante para a análise de um problema histórico.

2. Civilização, Barbárie e quando negros14 se associam.

Não raramente, civilização e barbárie são colocados como conceitos em uma


relação dicotômica. Inclusive, o campo político da sociedade dito progressista, vez ou
outra, utiliza tal terminologia, denotando – por exemplo - que candidato b é mais

13
DONL. Vila Rica. In: Roteiro Pra Ainouz, vol.2, Brasil: independente, 2021.
14
Raça como relação social.
civilizado que candidato c, e que a luta dos trabalhadores contra o sistema de exploração
capitalista seria uma luta de civilização contra a barbárie.
Civilizar é “melhorar, sob o ponto de vista intelectual, moral e industrial”, “tornar
civil, cortês, polido”15, recebendo não raras vezes, neste país, o sentido de
branqueamento16. De outro lado, barbarizar possui uma conotação de embrutecer, ato
pertencente a uma etnia alienígena ao acusador17. Nesse sentido, barbárie é o que está
fora (MENEGAT, 2012, p. 159).
Em As Raças Humanas e Responsabilidade Penal no Brasil (1894), Raymundo
Nina Rodrigues sugere que nem a submissão do negro pela escravização seria capaz de
transformá-lo em homem civilizado (p.44) e que o negro, em África, nunca chegou a
civilizar-se (p.47), conservando-se sempre “negativos” ou “atrasados” (p.49)18. O
referido autor é considerado o fundador da antropologia criminal, e as reverberações
racistas e positivistas de seus métodos e conclusões talvez se perpetuem ainda hoje,
sobretudo nas sentenças judiciais que, supostamente, debruçam-se sobre alguns territórios
da periferia fluminense.
“O preto treme de frio, um frio que morde os ossos, o menino treme porque pensa
que o preto treme de raiva, o menino branco se joga nos braços da mãe: mamãe o preto
vai me comer”, escrevera Franz Fanon (1952, p.107), enquanto, em 2020, na jurisdição
fluminense, a magistratura sentencia que “há um preconceito na doutrina e,
principalmente na prática, de que o indício é uma fonte imperfeita, e menos atendível, de
certeza do que a prova direta. Isto não é exato. A eficácia do indício não é menor do que
a prova direta, tal como não é inferior a certeza racional à histórica e física.”, para
justificar a condenação de moradores de uma comunidade por associação para o tráfico,
com base na palavra do policial militar (Súmula 70 do TJ/RJ19), que não poderia ser
derrubada, porque “a Justiça não pode simplesmente considerar inidôneos ou suspeitos
os depoimentos de policiais, baseando-se somente na condição funcional dos mesmos,
pois, em assim sendo, instalar-se-ia o caos social”20.

15
https://dicionario.priberam.org/civilizar
16
MOURA, Clovis. Sociologia do Negro brasileiro/ Clóvis Moura.- 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 2019. –
(Palavras negras).p. 134.
17
https://www.dicio.com.br/barbaro/
18
RODRIGUES, RN. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil [online]. Rio de Janeiro:
Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011.
19
“O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza
a condenação”
20
PJ nº0016356-72.2017.8.19.0001, TJ/RJ
Vale dizer, sob um diagnosticável fundamento de “evitação da barbárie”, impede-
se o “preconceito” contra um elemento informativo de inquérito (art.155 do CPP21) –
verdadeiro item sem vida- mas não contra o ser humano negro que, teoricamente, é
acobertado pela presunção de inocência do Estado de Direito (art.5º, LVII, da CRFB/88),
consequência jurídico-sistêmica da dignidade humana. Nada obstante, sob a mira da
“guerra às drogas”, acusados são diagnosticados como pessoas com a “personalidade
voltada para o crime”, bárbaros, detentores de periculosidade, conceito que, segundo o
professor Davi de Paiva Tangerino, remonta a temibilidade utilizada pelo criminólogo
positivista Raffaele Garofalo22.
De outro lado, Marildo Menegat afirma que barbárie é um conceito que advém do
excesso civilizacional, sendo que os bárbaros “são a própria identidade desta forma
social”23, que poderíamos traduzir, principalmente a partir do nosso lugar global de
dependência, como capitalismo liberal, cujo marco seria civilizatório. Nesse sentido,
todos os instrumentos necessários à manutenção da estrutura social capitalista (e
civilizatória), como as próprias instituições policiais, são contemplados pelo conceito de
barbárie referido neste parágrafo: a bruteza da colonização, exploração e manutenção da
ordem, no Brasil.
De toda maneira, seja pela separação absoluta entre o que é civilização e o que é
barbárie, seja pela imbricação dos referidos conceitos, de maneira aparente, aos
moradores das periferias fluminenses são destinadas denominações e conclusões que os
segregam do que é considerado padrão, limpo, polido24, principalmente quando tratamos
do tema do tráfico de drogas e de associação/colaboração para o tráfico de drogas.
Novamente, na prática judicial, é possível diagnosticar como ocorrem as
implicações a respeito do que pode ser civilização e do que pode ser barbárie. Por
exemplo, em uma fundamentação como “O endereço da apreensão fica no interior do
Complexo do Chapadão, local conhecido como ponto de venda de drogas e seria
impossível que o réu traficasse na comunidade sem que estivesse associado para tal

21
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório
judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na
investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
22
TANGERINO, Davi de Paiva Costa, 1979. Culpabilidade/Davi de Paiva Tangerino. – Rio de Janeiro:
Elsevier, 2011. p. 45
23
MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas/ Marildo Menegat. – Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca
de Criminologia, 2012. 1ª reimpressão, janeiro de 2015. p.160
24
RAMOS, Alberto Guerreiro, 1982. Introdução crítica à sociologia brasileira/ Alberto Guerreiro Ramos,
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. p. 240.
finalidade”25 pode haver alguma conotação de território, com raízes e reverberações
(talvez) racistas, tendo em vista também que a expressão “seria impossível” se afasta
completamente da legalidade exigível ao direito probatório e da norma de eficácia plena
e de aplicabilidade imediata, presente, juridicamente, na dimensão de tratamento da
cláusula fundamental da inocência constitucional.
Assim, em atenção ao que demonstram os dados do Banco Nacional de
Monitoramento de Prisões (CNJ) e da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,
mencionados no tópico superior, há a forte hipótese a respeito da uniformização dos
grupos racializados, a partir da demarcação de seus territórios, pelos agentes do poder ou
pelos “operadores do direito”, dentro de um protótipo do que se espera que eles –
barbarizados - sejam26: bandidos, membros de facção criminosas, traficantes perigosos e
inimigos públicos. No Rio de Janeiro, possivelmente havendo uma separação simbólica
dos territórios “civilizados” e “não civilizados”, tráfico de drogas e Associação para o
tráfico apresentam-se como uma venda casada, para a criminalização de negros e de
pobres.
Levando-se em consideração outra hipótese, segundo a qual “a punição é a
principal forma de acumulação do capital por espoliação de salários nas áreas periféricas
dependentes, pela qual a violência política do Estado atua como potência econômica para
ampliar o capital”(DOS SANTOS, 2021), a criminalização cada vez mais crescente de
pessoas pela capitulação de suas condutas ao tipo penal da associação para o tráfico
(art.35 da Lei 13.343/2006) – crime sem notório bem jurídico de referência27 - pode
acusar um dispositivo específico do racismo estrutural, e economicamente instrumental
no Rio de Janeiro, já que a valoração negativa a respeito do território do negro, do pobre,
dos despossuídos e criminalizados, como o local da barbárie, já os colocam numa
condição de escolha insuportável entre baixo salário e a criminalização pela própria

25
Processo nº 0140155-21.2018.8.19.0001, TJ/RJ
26
NOVAIS, Maysa Carvalhal. “A morte reiterada na vida e a vida que habita a mascarada da morte”: das
mortes em vida do negro. In: Justiça restaurativa em crimes de violência doméstica. 1-ed.- Belo Horizonte:
Editora Dialética, 2020. p. 33.
27
Bem jurídico é elemento da própria condição do sujeito e de sua projeção social e nesse sentido pode ser
entendido como dado da pessoa, que se incorpora à norma como seu objeto de preferência real e constituiu,
portanto, o elemento primário da estrutura do tipo, ao qual devem se referir a ação típica e todos os seus
demais componentes. (...) são inválidas normas incriminadoras sem referência direta a qualquer bem
jurídico, nem se admite sua aplicação sem resultado de dano ou de perigo concreto a esse mesmo bem
jurídico” TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal (livro eletrônico) /Juarez Tavares. – 4. Ed.- São Paulo:
Tirant Lo Blanch, 2019. p. 213.
vulnerabilidade28. E, segundo Silvio Luiz de Almeida, o racismo é elemento constituinte
da economia brasileira, sem o qual não seria possível compreender suas estruturas (2018,
p.141).
Talvez, se atentarmo-nos para a erradicação da marginalização, insculpida como
objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (Art.3º, III, da CRFB/88),
possível seria consolidar teses que apontariam a inconstitucionalidade do art.35 da Lei
13.343/2006, já que a conduta de se associar não ofende diretamente nenhum bem
jurídico, e a criminalização da prática da hipótese do texto legal denota verdadeira
marginalização, uma vez que a realidade fluminense indica que os mandados de prisão
por tais crimes são confeccionados a partir de uma aparente narrativa de “civilização vs
barbárie”. Além do mais, a vulnerabilidade das pessoas racializadas e proletarizadas
perante o mandado específico de criminalização do art. 35 da Lei de Drogas poderia
alavancar a tese de exculpação total de eventual conduta de agrupamento.
A seguir pensaremos.

3. A trilha do art.1º e 3º da Constituição da República Federativa do Brasil de


1988

Não é fácil demarcar caminhos legitimamente afrontosos, cortar matagais no


pensamento e construir uma trilha comunitária. Cientes estamos de que doutrinas
jurídicas das mais sofisticadas, com fundamento e autoridade incontestável, afirmam a
relatividade dos direitos fundamentais29.
No entanto, grande ironia não é um sarcasmo, mas uma contradição: entre a
sociedade de mercado, cuja religiosidade seria o capital, como canta a canção (DON L,
2021)30, e o Estado de Direito, muitas vezes defendido como mera formalidade. A
primeira aparenta exercer uma influência muito maior nos processos judiciais.
Por exemplo, a respeito do princípio constitucional da presunção de inocência,
cláusula capaz de, em tese, preservar a vida e a integridade corporal das pessoas
criminalizadas, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso, no

28
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição/
Juarez Cirino dos Santos. -1.ed.- Tirant lo Blanch: 2021. pg. 419.
29
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes; Paulo Gustavo
Gonet Branco. -16. ed.- São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 147.
30
“Seu Deus é o tal metal, é o capital, é terra banhado a sangue escravizado. Jesus nunca estaria do seu
lado”. DON L. Roteiro para Ainouz, Vol.2. Vila Rica. São Paulo: Independente. 2021
julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº43 –DF, fundamentou em seu
voto que “Na medida em que o processo avança e se chega à condenação em 2º grau, o
interesse social na efetividade mínima do sistema penal adquire maior peso que a
presunção de inocência”31.
Destacamos que, no Rio de Janeiro, na prática e em regra, os processos criminais
que dizem respeito à Lei de Drogas são julgados com base na tarifação da palavra
militar32, constatável inconstitucionalidade protegida pelo Enunciado da Súmula nº70 do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Assim, ainda que se desconsidere a eficácia plena
e a aplicabilidade imediata da garantia individual prevista no art.5º, LVII, da CRFB/8833,
a perda de peso da presunção de inocência em relação ao “interesse social na efetividade
mínima do sistema penal”, cujo substrato de realidade não é identificável para ser um
princípio34 – a não ser na acepção de valor ou ideologia de uma classe social, que não
seriam universais -, não faria sentido.
Há outros tantos pontos judicializados e causos judiciais para destaque.
Enfatizando a questão da imputação da associação para o tráfico e sua relação com os
territórios racializados no Rio de Janeiro, a naturalidade com a qual as autoridades (do
direito) tratam as operações militares com helicópteros que sobrevoam armados as
comunidades cariocas merece atenção, igualmente.
No Agravo de Instrumento 0061192-31.2020.8.19.0000, interposto e julgado
durante esta pandemia, a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, PGE- RJ
sustentou que: (i) a decisão a respeito dos sobrevoos armados está inserida no âmbito de
discricionariedade da Administração, elaborada por quadros técnicos, de modo que o
Poder Judiciário não pode intervir no mérito administrativo, (ii) a Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro não é instituição com atribuição de fiscalização da Polícia

31
https://www.conjur.com.br/dl/leia-voto-ministro-barroso-execucao.pdf
32
“Em 65,85% das vezes que o local é citado como ponto de venda de drogas, há menção à ocorrência em
favelas, morros ou comunidades. Outro argumento usado pelos magistrados, em 36,56% das sentenças
pesquisadas, foi o fato de o réu portar rádio transmissor ou armas”, disse Carolina Haber, diretora de
Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria, à ConJur.” In: https://www.conjur.com.br/2018-
abr-27/morar-favela-aumenta-chance-acusacao-associacao-trafico
33
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
34
Pegando como referência Robert Alexy quando escreve que “Princípios são mandamentos de otimização
em face das possibilidades jurídicas e fáticas”, em ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais.
Suhrkamp Verlag, 1986. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, da 5ª edição alemã. 2ª ed. pg.117, a
efetividade do sistema penal não apresenta possibilidade fática de existência, já que a população carcerária
no brasil é de 917.052 pessoas (BNP/CNJ/2022) e a violência social nunca amenizou (ao menos a suposição
contrária não pode ser demonstrada), e que a pena não justifica suas funções declaradas, nem de prevenção,
nem de ressocialização, como demonstra o professor Nilo Batista, a respeito do Direito Penal Brasileiro
(1990).
Militar, (iii) há escolas e instituições de ensino em todo o território e que a determinação
da distância em sobrevoo colocaria em risco a vida dos policiais, já que impediria
manobras de fuga defensiva mais expansivas. Vejamos:

A previsão do art.9º da Portaria nº 832 é a de que “As Operações policiais a


serem realizadas em áreas sensíveis de alto risco e iminente probabilidade de
confrontos armados, próximas a unidades de ensino, creches, postos de saúde
e hospitais, deverão observar, sempre que possível, o seguinte: I- Evitar,
preferencialmente, os horários de maior fluxo de entrada e saída de pessoas em
tais estabelecimentos, principalmente de alunos nos estabelecimentos de
ensino; II- o não baseamento de recursos operacionais nas proximidades e
interior de tais estabelecimentos, de maneira a evitar que os mesmos tornem-
se alvos em potencial de infratores armados.” Dessa maneira, a existência da
própria norma regulamentar na área de segurança pública demonstra ser
cristalina a preocupação do Estado em evitar que operações policiais sejam
realizadas nas proximidades e no interior de escolas, por meio de protocolos
operacionais e de procedimentos específicos. Mas, é preciso ter em mente que
estas medidas são recentes e demoram um tempo razoável para serem
implementadas e para alcançarem o efeito pretendido.35

Nota-se que prevaleceram questionamentos e ponderações a respeito de uma


Portaria da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que – segundo aquela advocacia, de muita
importância, sublinha-se – ainda não teria alcançado a aptidão de gerar efeitos sociais
(efetividade). A norma policial “não pegou”, mas e a Constituição Federal? Não somente
nesse processo, mas de um modo geral (possivelmente), existe uma profunda rejeição às
cláusulas pétreas constitucionais (art.60 §4º da CRFB/88) e, sobretudo, ao que é mais
explícito na CRFB/88 a respeitos dos direitos fundamentais: “As normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (art.5º, §1º da CRFB/88).
Aparentemente, a discussão em torno de Portarias (policiais), Regulamentos e
Decretos propicia uma sensação de especialidade e de tecnicidade ao suposto direito de
estabelecimento de ordem, enquanto a observação dos direitos fundamentais, sobretudo
da imensa população não-branca brasileira - se restringe à órbita das recomendações
franciscanas e da utopia constitucional. Levantemos a possibilidade de tratar-se de grave

35
Agravo de Instrumento 0061192-31.2020.8.19.0000, página 7.
vício característico de Estado Policial36, em que a Constituição é superada pela gestão
sobre quem vive com dignidade e quem não, segundo uma urgência de dia ou de mercado.
No dia 22 de janeiro de 2021, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro permitiu “o sobrevoo extraordinário sobre escolas, em hipóteses concretas e, de
caráter eminentemente excepcional na atividade policial, determinando-se que o Estado
do Rio de Janeiro apresente relatório circunstanciado, nos termos da Medida Cautelar na
ADPF nº635-RJ”37. Ocorre que, para além da raiz democrática concernente à dignidade
humana e à igualdade formal entre as pessoas, é de se pensar que o direito à moradia é o
direito à moradia digna38, significando dizer, livre de riscos, ambientalmente saudável e
protegida pela inviolabilidade.
Diante desses problemas sociais e jurídicos concretos, trazidos a partir de um
histórico atual da “guerra às drogas”, neste Estado, faz-se um laço com o tópico passado,
na defesa de que a dignidade humana, enquanto fundamento do Estado Democrático de
Direito, e a erradicação da marginalização, enquanto objetivo federativo, formam um
caminho de discurso obrigatório e sem volta. Em outras palavras, deve ser possível
defender a dignidade humana como barreira absoluta e limitadora do Poder punitivo,
inclusive como censura às defesas da guerra em regiões da zona norte e da zona oeste do
Rio de Janeiro, e a erradicação da marginalização como fundamento (i) da declaração de
inconstitucionalidade de normas incriminadoras, (ii) da exclusão do injusto no tipo penal
e (iii) de exculpação penal. Mais do que isso, o art.1º,III, da e o art.3º, III, da CRFB/88
podem fundamentar e direcionar a aplicabilidade de direitos e garantias, inclusive, para
impossibilitar a privatização da prestação de serviços essenciais, que tornam os negros
mais vulneráveis perante o Estado policial e, consequentemente, mais sujeitos ao sistema
carcerário.
Vale dizer, sem perder o ponto – e repetindo -, a economia apresenta-se como um
dos planos do racismo estrutural, como pontua Silvio de Almeida, e como planos que são,
passíveis de serem tocados, nos trazem responsabilidade pelo problema. Não basta não
sermos racistas, disse o jurista. Sem ter a mínima ingerência sobre os seus meios básicos
de sobrevivência – como a energia elétrica39- ou dinheiro suficiente para adimplir a tarifa

36
KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1993.
37
Agravo de Instrumento nº 0061192-31.2020.8.19.0000, página 770.
38
BALDEZ, Miguel Lazellotti. Sobre a questão urbana. Revista da faculdade de Direito de Campos, ano
1, nº 1, Jan/Jun. 2000.
39
Como exemplo apontamos a publicação da Lei 14.182/2021, que autoriza a privatização da Eletrobrás,
abrindo brechas, inclusive, para que a perda do controle acionário da União se dê pela venda de ações
ordinárias fora do país (desnacionalização de setor estratégico). A energia elétrica é bem essencial para a
do serviço essencial prestado, enquanto igualmente labora sem que o sistema signifique
qualquer aspecto de sua individualidade, o trabalhador periférico tem seu trabalho
realmente subsumido ao capital, e sua existência vulnerabilizada. E vulnerabilizada em
relação à vigência dos tipos penais abertos. Portanto, o problema da desigualdade não
pode, a princípio, ser tratado como problema de desigualdade formal; e a criminalização
da população negra pela via da associação para o tráfico, como tática de racismo
estrutural, possivelmente também não pode ser analisada apenas pelo direito material e
processual penal.
O funcionalismo redutor de professores como Juarez Tavares propõe para o direito
penal a tarefa de limitação do poder punitivo40. Na seara da leitura constitucional, a
radicalização da defesa das primeiras linhas constitucionais, capazes de serem
transportadas para as fases analíticas de eventuais injustos penais e sociais, pode ser
estimulada pela prática da defesa dos direitos humanos.

4. Associação para o Tráfico no Rio de Janeiro.

Há quatro anos, no Estado fluminense, em 41% das prisões por tráfico de drogas,
o acusado também respondia por associação ao tráfico. A média nacional era de 12%41.
Associar é um verbo que tem por significado unir, aliar, reunir, criar relação42.
Cogitamos um paradoxo aparente entre a criminalização de condutas que envolvam
associação e a sociedade brasileira cada vez mais individualista e competitiva, na qual as
relações de trabalho são cada vez menos coletivas, conforme determinaria a contradição
capital/trabalho, na fase neoliberal do capitalismo.

garantia da dignidade humana, e a substituição das regras de direito pelas regras de mercado coloca parte
do país em risco de insalubridade, de profunda precariedade, haja vista que a inadimplência das contas de
luz já é uma realidade, bem como o risco de grandes apagões.
40
“A manifestação mais importante do Estado de Polícia é o poder punitivo, que por sua estrutura é violento
e discriminatório. A função do Direito Penal liberal é contê-lo dentro de limites de menor irracionalidade,
de tal forma que o Direito Penal se converta em apêndice indispensável do Direito Constitucional do Estado
de Direito. Daí que a dialética entre Estado de Direito e o Estado de Polícia seja inevitável e se manifeste
em todos os extratos analíticos da teoria do delito, a qual, sob a perspectiva de um Direito Penal de
contenção do poder punitivo, está destinada a assumir a função de um sistema inteligente de comportas, de
modo que, agindo como filtro, só permita que se invoque o poder punitivo que se apresente com menor
conteúdo de irracionalidade.” In: TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal [livro eletrônico]/Juarez
Tavarez.- 4.ed.- São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. Página 11.
41
Cadastro Nacional de Presos – BNMP 2.0- Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, Conselho
Nacional de Justiça, agosto de 2018. Disponível em https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-
penal/cadastro-nacional-de-presos-bnmp-2-0?utm_source=banner, acesso em 20/01/2022.
42
https://www.dicio.com.br/associar/
Sob o aspecto da hipótese racista e classista lançada aqui, vale a informação a
título de curiosidade: o valor mínimo da pena de multa cominada pelo art.35 da Lei
11.343/2006 alcança a importância de R$25.669,00 (vinte e cinco mil, seiscentos e
sessenta e nove reais)43, em 2022, e é maior do que aquele atrelado ao tipo penal do art.33
dessa lei. O não pagamento da multa penal tem implicações na possibilidade de
progressão de regime44 e obstado a extinção da pena45, embora no final do ano passado,
o Superior Tribunal de Justiça tenha sinalizado o contrário, no Resp. 1.785.861-SP46:

Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de


liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo
condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o
reconhecimento da extinção da punibilidade.

Aprofundando os termos: a fundamentação das condenações de pessoas


criminalizadas pela prática do art.35 da Lei de Drogas costuma ser exclusivamente
composta, do ponto de vista material (o que existe nos autos), pelo termo da testemunha
policial47. Dificilmente, deparamo-nos com a demonstração concreta, pelo titular da ação
penal, da estabilidade e da permanência da associação criminosa (DPERJ, 2018, p.60).
Isso denota que, possivelmente, o estigma a respeito da reunião de pessoas não-brancas,
em territórios marginalizados, e o aumento da pauperização de uma pessoa, pela multa

43
De acordo com o art.49, §1º, do CP, o valor mínimo do “dia-multa” é 1/30 do salário mínimo vigente.
As penas para os crimes de tráfico e de associação são calculadas a partir de 500 e 700 dias-multa,
respectivamente. Em 2021, o salário mínimo é valorado em R$1.100,00 (mil e cem reais).
44
STF - HC: 197847 SP 0048020-98.2021.1.00.0000, Relator: NUNES MARQUES, Data de
Julgamento: 12/03/2021, Data de Publicação: 17/03/2021
45
REsp nº 1.785.861/SP
46
(...) Ainda na seara dos malefícios oriundos do não reconhecimento da extinção da punibilidade quando
pendente apenas o pagamento da pena de multa, é imperioso destacar as implicações para o reconhecimento
da reincidência. Consoante disposto no art. 64, I, do Código Penal, "[p]ara efeito de reincidência: [...] não
prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior
tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou
do livramento condicional, se não ocorrer revogação" (sublinhei). Todavia, a compreensão da pena de multa
como sanção criminal sujeita a extinção da punibilidade à satisfação do valor arbitrado na sentença
condenatória, prorrogando a condição de reincidente do jurisdicionado. É dizer, o status de reincidente para
quem não adimple a pena pecuniária se eterniza, sendo despiciendo aludir às consequências penais e
processuais que de tal situação advém para o condenado (...) Ministro Rogério Schietti
47
DPERJ, Relatório Final. Pesquisa sobe as sentenças judiciais por Tráfico de Drogas na cidade e região
metropolitana do Rio de Janeiro, em 1º de março de 2018, pgs. 61 e 62: “A credibilidade dada à palavra do
agente de segurança pública acaba dispensando a produção de qualquer prova da associação criminosa,
bastando a afirmação de que o réu, naquela localidade onde foi encontrado, não poderia estar traficando
sozinho. (...) Ao lado da concepção de que a palavra do policial é suficiente para demonstrar uma relação
associativa complexa, encontra-se, portanto, a interpretação de que o território onde o réu foi encontrado
basta para justificar sua associação ao tráfico local.”
https://defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea468d9df83d0913fa8a96.pdf
penal, são praticados por instituições que não são jurídicas, mas que recebem respaldo e
convalidação do Poder Judiciário.
O crime previsto em destaque tem por pressuposto os artigos 33 e 34 da Lei de
Drogas; tipos penais de ações múltiplas ou plurinucleares. Não seria absurdo cogitar a
ausência de concretude no enunciado do suposto comportamento indesejado, porque o
tipo é de núcleo um tanto quanto indeterminado, sendo certo que a subsunção do ato
humano ao verbo não precisa ocorrer por conduta reiterada (art.35). Do mesmo modo,
esse tipo penal depende de outro (art.33), tornando o conjunto da obra extremamente
impreciso.
É de se destacar que a doutrina, majoritariamente, entende que o bem jurídico
tutelado pelo art.35 da Lei 11.343/2006 seria a paz pública48 e, tal como o tráfico de
drogas, o sujeito passivo do crime seria a sociedade, tornando-o de perigo abstrato49.
Desse jeito, o tipo penal em branco homogêneo também não se distancia de um tipo ideal
fantástico ou fantasmagórico, já que, além de ser responsável por 25% dos mandados de
prisão (2018) – como destacado no início do texto –, sem resolver o problema da violência
urbana, é um aparente “cheque em branco” para o arbítrio judicial. Como exemplo,
indicamos Acórdão da 3ª Câmara Criminal do TJ/RJ que resultou na condenação de
Renan Santos da Silva, artista popular conhecido como DJ Renan da Penha.
O músico foi condenando pelo crime de associação para o tráfico em razão dos
bailes funks que organizaria (onde, surpreendentemente, parte do público consumia
drogas), em razão das manifestações públicas de afeto e de saudades a amigos que
morreram supostamente em confronto com a polícia militar, e por informar à sua
comunidade sobre a aproximação dos “caveirões”, quando direcionavam-se à entrada da
favela onde nasceu. Eis o fundamento curioso:
Cite-se, também, a indicação de que o caveirão estava subindo o
morro, sem qualquer chamada ou referência aos moradores para
proteção dos seus veículos (doc. 000614 – n. 21).

48
MASSON, Cleber Lei de Drogas: aspectos penais e processuais / Cleber Masson, Vinícius Marçal. –
Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. p.98.
49
“Conforme relatos dos policiais, o mesmo teria recebido as drogas "em consignação", circunstância essa
que, embora não seja suficiente, no caso concreto, para caracterizar o delito de associação para o tráfico,
demonstra que o mesmo vinha se dedicando a atividades criminosas, ligadas ao tráfico de drogas na região,
chegando a fazer transporte de diversidade de entorpecentes no interior de transporte coletivo, para fins de
comercialização. Por outro lado, as circunstâncias aventadas na denúncia e a extrema gravidade do crime
em comento, com conseqüências nefastas para toda a sociedade, determinam a fixação de regime prisional
mais severo.” (TJ-RJ - APL: 00215515120138190042 RJ 0021551-51.2013.8.19.0042, Relator: DES.
CLAUDIO TAVARES DE OLIVEIRA JUNIOR, Data de Julgamento: 26/03/2014, OITAVA CAMARA
CRIMINAL, Data de Publicação: 11/04/2014 14:54)
Chamam a atenção também as fotos de possíveis pessoas mortas,
com referência de afeto e saudades, sem explicação para uma
divulgação através do meio utilizado, salvo uma possível
exaltação à morte durante a repressão ao tráfico (doc. 000614 –
n.03). Em relação à exaltação, há uma foto de um elemento
desconhecido, mas que é apontado pelo ora apelado como
“soldado perigoso” (doc. 000614 – n. 12). Consequentemente,
levando em conta o depoimento do Delegado Dr. Carlos Eduardo,
do adolescente R.M.S., a confirmação pela testemunha Leandro
da existência de bailes funk na comunidade com venda de
entorpecente, a confissão do próprio RENAN de que os organiza
e recebe rendimentos através desta atividade, bem como a
exibição das postagens em redes sociais nitidamente indicativas
do seu envolvimento com o tráfico de drogas, vejo como
suficiente a prova colhida de forma a permitir a procedência do
pleito ministerial de reforma da sentença absolutória.50
Seguindo o fio da anamnese deste artigo, apontamos mais indícios de que o Poder
Judiciário utiliza as condições materiais dos acusados, seus estereótipos sociais
imputados pelas classes altas, e, sobretudo, cavalga no racismo estrutural, para condená-
los por associação (art.35). O indício no Rio de Janeiro é bastante significativo.
Como hipótese inicialmente lançada, aqui, o acionamento do dispositivo do art.35
da Lei de Drogas no Rio de Janeiro e o racismo estrutural aparentam possuir estreita
relação.
Adilson Moreira aduz que “a discriminação racial implica a existência de práticas
arbitrárias dirigidas contra minorias raciais”, devendo ser analisada “a partir dos seus
efeitos na vida dos alvos das práticas sociais”51, e a empiria da prática do advogado e da
advogada criminalista demonstra-lhes a imensa fila de mulheres negras, nos dias de
custódia da Cadeira Pública do José Frederico Marques, em Benfica.
Seguindo a proposição de Juarez Cirino dos Santos, segundo a qual o racismo
inerente à seletividade do sistema penal “tem suas raízes nas estruturas econômicas e de
poder de Estado, determinado pela necessidade de superexploração da força de trabalho

50APELAÇÃO CRIMINAL N. 0233004-17.2015.8.19.0001, p. 5730.


51
MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório – São Paulo: Editora
Contracorrente, 2020. 16ª página do capítulo 17 do livro em PDF.
negra na produção de mais valor”52, a conduta de associação talvez ganhe relevo para o
Estado Policial, nos último anos, quando ocorre o progressivo avanço e espalhamento do
neoliberalismo brasileiro, com golpes às organizações classistas como os sindicatos 53, e
ataques aos direitos coletivos das grandes massas populares54.
Puxando o fio da introdução deste texto, poder-se-ia prognosticar que, no ano de
2022, o pudor de grupos sociais extremistas em atentar contra a vida de pessoas negras –
vulnerabilizadas no plano subjetivo, político, jurídico e econômico (ALMEIDA, 2018),
está menor.
Nesse aspecto, é de se observar o aumento de atos explicitamente racistas,
fenômeno que pode se articular mas que, também, entra em contraste com as ferramentas
do próprio racismo estrutural, que são manipuladas pelo direito: como a criminalização
dada pela legislação penal. Em outras palavras, aquilo que pode ser compreendido
inequivocamente como racismo, nesta sociedade, pela brutal grosseria, também pode tirar
a atenção das ferramentas mais sofisticadas da violência estrutural contra determinadas
pessoas, já que, por exemplo, o campo crítico ao encarceramento em massa vem sofrendo
derrotas até o presente momento.
Talvez, o problema não diga respeito a uma crise do ser coletivo, ou de moralidade
da sociedade fluminense, mas à economia-política colocada em prática, de maneira
organizada55. A reunião de trabalhadores, de estudantes, de negros, de mulheres, da
população LGBTQI+, de candomblecistas é inconveniente ao status quo, que na
superestrutura reafirma a forma de relação social de subjetividade jurídica (direito) como
mercadoria, e a estrutura do tipo penal contido no art.35 da Lei 11.343/2006 demonstra-

52
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição/
Juarez Cirino dos Santos. -1.ed.- Tirant lo Blanch: 2021. p. 424.
53
O fim da obrigatoriedade da contribuição sindical previsto na Lei 13.467/2017, cuja constitucionalidade
foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 5.794) é um indicativo que a aliança e reunião de
pessoas, em oposição – até meramente reformista- à ordem vigente, é um fato indesejado pelas classes
dominantes.
54
Enfatizamos novamente a Lei 14.182/2021 que desnacionaliza o controle sobre a energia elétrica do
Brasil (art.3º, II, a), cuja fonte é majoritariamente hídrica, impondo – ainda - a alteração do marco
regulatório do setor elétrico, mediante investimento em modelagem mais cara e poluente. O pagamento de
dividendos cada vez maiores aos acionistas dar-se-á em detrimento da prestação de um serviço regular,
contínuo e com preço módico, aumentando o preço dos alimentos, transformando inúmeras moradias em
locais insalubres tais como os presídios. Junto a isso, vale destacar outros ataques constitucionais: marco
temporal das terras indígenas, reforma da previdência, reforma administrativa, reforma trabalhista.
55
Silvio Luis de Almeida compreende que o autoritarismo é sintoma de economia-política, e não apenas
uma falha moral ou má compreensão técnica da Constituição. ALMEIDA, Silvio Luis de. A democracia
como fetiche e a ocultação do debate econômico. Colunas. Folha de São Paulo. 02 de setembro de 2021.
Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/silvio-almeida/2021/09/a-democracia-como-
fetiche-e-a-ocultacao-do-debate-economico.shtml
se ainda mais manipulável pela polícia e pelo poder judiciário, em um ano em que se
prolongam e se acentuam a exploração econômica, a fome e as chacinas.

5. Considerações finais

“O retorno de teorias francamente racistas que dividem a humanidade: por um


lado, humanos ou super-humanos, por outro, os untermenschen, os sub-
humanos, e esse reaparecimento de teorias abertamente racistas é um fato
perturbador. A reação se manifesta em suas formas mais bárbaras, tão bárbaras
que negam o conceito de moralidade, porque negam o conceito de humanidade.
Desde Kant, pelo menos, moral é o que é universalmente válido para todos os
homens. Mas, se alguém começa a quebrar a humanidade, se alguém a divide
entre humanos e sub-humanos, é claro que a moralidade é destruída. Nesse
ponto, devemos insistir com particular força.” (LOSURDO, 2020, 194)56

“Na luta para ninguém silenciar nossa voz, voltamos a falar dos sonhos pelas
manhãs”57. Existindo, na conversa com Silvio de Almeida, um mandamento anti-racista,
é de se cogitar uma reelaboração radical da prática jurídica e do pensamento jurídico-
instrumental perante o poder judiciário e a academia. Primeiramente, exercendo sem
constrangimento a relação entre as condenações recentes de jovens negros, por associação
para o tráfico, com o racismo.

Tomando como indicativo os casos que representam o agravamento das


violências raciais, no Rio de Janeiro, possível que não seja uma frente ampla com os
setores mais sofisticados que operam o racismo estrutural, contra grupos abertamente
racistas, o razoável a se fazer. Vale dizer, dobrar a aposta na radicalização da defesa e da
aplicação dos direitos fundamentais como barreiras às novas criminalizações,
considerando-se criminalização espécie de marginalização (art.3º, III, da CRFB/88),
aparenta ser o caminho necessário, nesse campo limitado mas estratégico que é o direito.

De igual sorte, elaborar que os campos de saber dentro do direito não são estáticos,
podendo determinado fenômeno de criminalização da periferia ter relações com violações

56
LOSURDO, Domenico, 1941-2018 Colonialismo e luta anticolonial [recurso eletrônico]: desafios da
revolução no século XXI / Domenico Losurdo ; organização Jones Manoel ; tradução Diego Silveira ...[et
al.]. - 1. ed. - São Paulo : Boitempo, 2020.p. 194.
5757
DONL.Primavera. In: Roteiro Pra Ainouz, vol.2, Brasil: independente, 2021.
à direitos sociais e fundamentais que não pertençam à discussão do direito penal, pode
ser um porta para descobertas e encaminhamentos mais interessantes.

O tipo penal da associação para o tráfico aparenta ser dispositivo que “quebra a
humanidade”, aqui, uma vez que as condutas dos criminalizados, em geral negros, pobres,
moradores de favela e jovens, são subsumidas à redação do art.35 da L. 11.343/06 sem
esforço algum. Na prática, o critério de análise material das condutas e de julgamento são
baixos.

O álbum do artista cearense homenageado neste texto tem como postura a não-
aceitação de narrativas que naturalizam o racismo que forjou a formação social brasileira
e o exercício de imaginar um mundo novo, pela superação do sistema vigente de classes
sociais com realidades discrepantes. A inquietação que fica, a partir da leitura do dado
segundo o qual no Rio de Janeiro há mais responsabilizados pelo crime do art.35 da Lei
11.343/2006 do que em outros Estados no país, é a de necessidade de maior manipulação
do mandamento de erradicação da marginalização como entrave penal-constitucional às
novas tentativas de criminalização, que em hipótese são dispositivos especiais do racismo
estrutural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG):
Letramento, 2018.

BALDEZ, Miguel Lazellotti. Sobre a questão urbana. Revista da faculdade de Direito


de Campos, ano 1, nº 1, Jan/Jun. 2000.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Criminologia: contribuição para crítica da economia


da punição/ Juarez Cirino dos Santos. -1.ed.- Tirant lo Blanch: 2021

FANON, Franz. Pele negra máscaras brancas/ Franz Fanon ; tradução de Renato da
Silveira. – Salvador: EDUFBA, 2008.

FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro – 1. Ed.- São Paulo: Expressão


Popular co-edição Editora da Fundação Perseu Abramo., 2017
KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1993

LOSURDO, Domenico, 1941-2018 Colonialismo e luta anticolonial [recurso


eletrônico]: desafios da revolução no século XXI / Domenico Losurdo ; organização
Jones Manoel ; tradução Diego Silveira ...[et al.]. - 1. ed. - São Paulo : Boitempo, 2020.

MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas.- Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca
de Criminologia, 2012. 1ª reimpressão, janeiro de 2015.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes;


Paulo Gustavo Gonet Branco. -16. ed.- São Paulo: Saraiva Educação, 2021

MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório – São Paulo: Editora


Contracorrente, 2020.

MOURA, Clovis. Sociologia do Negro brasileiro/ Clóvis Moura.- 2.ed. São Paulo:
Perspectiva, 2019. – (Palavras negras).

NOVAIS, Maysa Carvalhal. “A morte reiterada na vida e a vida que habita a mascarada
da morte”: das mortes em vida do negro. In: Justiça restaurativa em crimes de violência
doméstica. 1-ed.- Belo Horizonte: Editora Dialética, 2020.

RAMOS, Alberto Guerreiro, 1982. Introdução crítica à sociologia brasileira/ Alberto


Guerreiro Ramos, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

RODRIGUES, Raymundo Nina. As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no


Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011.

TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal [livro eletrônico]/Juarez Tavarez.- 4.ed.-


São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019

Você também pode gostar