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A indemnização da vida e

do corpo na lei e nas


decisões judiciais

Boaventura de Sousa Santos


(Investigador Responsável)
Conceição Gomes
Tiago Ribeiro
Carla Soares

2010
AGRADECIMENTOS

O presente projecto de investigação, realizado no Centro de Estudos


Sociais da Universidade de Coimbra, financiado pela Fundação para a Ciência
e Tecnologia, teve como tema central a indemnização da vida e do corpo no
contexto dos tribunais portugueses. A complexidade do objecto de estudo e a
sua intersecção com diferentes actores e realidades sociais conduziu a um
intenso trabalho de campo, desenvolvido ao longo de cerca de dois anos. Para
a produção deste estudo foi fundamental a colaboração de muitas pessoas e
instituições. Sem essa cooperação alargada não seria possível obeter os
resultados apresentados e levar a cabo a reflexão e a discussão crítica que
desenvolvemos.

Assim, gostaríamos de agradecer aos magistrados judiciais e do


Ministério Público, advogados e peritos médico-legais que entrevistámos e
aceitaram participar nos paineis de discussão, e cujo contributo para o
desenvolvimento dos conceitos e das hipóteses de trabalho se revelou crucial.
Cabe também um agradecimento especial às organizações de defesa das
vítimas, em particular à Associação Nacional dos Deficientes Sinistrados do
Trabalho, à Associação dos Cidadãos Auto-Mobilizados, à Associação
Portuguesa de Apoio à Vítima e à Solidariedade Imigrante. À Confederação
Geral dos Trabalhadores Portugueses, ao Sindicato Nacional dos Profissionais
de Seguros e Afins, à Liberty Seguros, à Caixa Seguros e à Associação
Portuguesa de Seguradores é também devido um agradecimento, pela
disponibilidade, informações e pistas de investigação que nos fornecedram e
que se revelaram úteis ao longo de toda a pesquisa. Gostaríamos também de
agradecer a colaboração dos parlamentares e representantes dos partidos
políticos que entrevistámos e que ajudaram ao estudo das dinâmicas jurído-
políticas envolvidas no tema em análise.

A realização do trabalho de campo nos tribunais foi apenas possível


devido à diligência, compreensão e colaboração dos agentes de justiça. Assim,
uma palavra de reconhecimento e agradecimento é dirigida aos Sr. Juízes
Presidentes dos Tribunais de Trabalho de Braga e Coimbra e aos Srs. Juízes
Presidentes das Varas Mistas das mesmas comarcas. Os Srs. Secretários de
cada um daqueles tribunais prestaram um auxílio precioso no acesso aos
processos e em proporcionar as condições necessárias ao desenvolvimento do
trabalho de campo.

Gostaríamos, também, de deixar um agradecimento muito especial às


vítimas de acidentes de trabalho que entrevistámos e cujos testemunhos e
abertura às nossas interrogações sobre um processo que, para eles, foi
manifestamente doloroso e traumático, merece o nosso reconhecimento e
gratidão.

A riqueza da discussão desenvolvida no Colóquio Corpo, Justiça e


Reparação, realizado no âmbito deste projecto de investigação, não seria
possível sem a participação empenhada de todos os oradores, que constam do
respectivo programa, a quem pretendemos igualmente agradecer.

Além da equipa de investigação, este trabalho contou, em vários


momentos, com o apoio dos Drs. Madalena Duarte, Hugo Rascão e Fátima
Antunes, a quem deixamos o nosso profundo e especial agradecimento.
Finalmente, não podemos deixar de agradecer a todos os investigadores do
Observatório Permanente da Justiça que, directa ou indirectamente,
contribuíram para o desenvolvimento deste projecto de investigação.
ÍNDICE

INTRODUÇÃO

Hipóteses .......................................................................................................... 4
Metodologia ...................................................................................................... 6
Apresentação do Relatório .............................................................................. 12

PARTE I – ESTADO, DIREITO E SINISTRALIDADE: PARA UMA


JUSTIÇA CORPORAL

Capítulo 1 – Estado, risco e sinistralidade nas sociedades


contemporâneas: uma perspectiva crítica

1. A Armadilha da Autonomia: desprotecção e Vulnerabilidade ....................... 16

2. A Precariedade laboral em Portugal: um balanço......................................... 24

3. Os Acidentes de Trabalho em Portugal: um retrato sociológico ................... 37

4. Os Acidentes de Trabalho nos Tribunais Portugueses: alguns indicadores . 53

5. A Sinistralidade rodoviária em Portugal: o dano na estrada ......................... 69

6. Risco, responsabilidade e seguro na reparação do dano corporal ............... 74

6.1. Os Seguros de Acidentes de Trabalho: uma abordagem sócio-histórica


...................................................................................................................... 74

6.2. Os seguros de acidentes rodoviários ....................................... 87

6.3. As tecnologias do risco: algumas considerações ................................... 89


Capítulo 2 – Os quadros legais da indemnização da vida e do corpo

1. Modalidades da responsabilidade civil extracontratual .............................. 106

1.1. Responsabilidade por factos ilícitos ........................................................ 106

1.2. Responsabilidade por factos lícitos danosos........................................... 110

1.3. Responsabilidade pelo risco.................................................................... 111

2. O corpo e o direito ...................................................................................... 116

2.1. Caracterização dos quadros jurídicos gerais da reparação..................... 116

2.2. Caracterização dos quadros jurídicos específicos da reparação ............ 132

2.2.1 Os acidentes de trabalho....................................................................... 133

2.2.2 Os acidentes de viação ......................................................................... 170

2.2.3 A indemnização em contexto criminal ................................................... 191

3. A instanciação da reparação do dano corporal .......................................... 205

3.1 Quando o evento lesivo é um acidente de trabalho ................................. 206

3.2 Quando o evento lesivo é um acidente de viação .................................... 227

3.3 Quando o evento lesivo resulta da prática de um crime ........................... 239


PARTE II – O ROTEIRO DA VULNERABILIDADE

Capítulo 3 – As lógicas seguradoras e a construção do quadro da


reparação

Introdução....................................................................................................... 245

1. A Mediação Laboral e o Afastamento do Ministério Público ....................... 247

2. A Discussão política da Reparação e o processo legislativo: A lei 98/2009, de


04 de Setembro .............................................................................................. 252

2.1. Prestações suplementares e abaixamento do referencial de reparação


.................................................................................................................... 259

2.2. Revisão das incapacidades.................................................................. 262

2.3. Danos indemnizáveis e danos não indemnizáveis ............................... 263

3. A remição Obrigatória de pensões: objectivos e impactos ......................... 267

4. Do Rendimento Real ao Rendimento fiscalMENte declarado .................... 270

5. Uma proposta Razoável num contexto irrazoável ...................................... 273

6. A revisão da Tabela Nacional de Incapacidades ........................................ 276

7. O novo regime de Custas Processuais ....................................................... 280

Capítulo 4 – O acidente e o labirinto da sinistralidade

1. As desigualdades no acesso à Justiça e na defesa da vítima.................... 283


1.1. A cultura e o papel do Ministério Público................................................. 283

1.2. A velha questão da cultura de cidadania e da formação dos Magistrados

....................................................................................................................... 288

1.3. As lógicas da advocacia no patrocínio dos sinistrados............................ 292

1.4. Capacidade diferenciada de aquisição de perícias médico-legais .......... 293

2. O apuramento da responsabilidade: a triangulação entre sinistrado,

seguradora e entidade patronal...................................................................... 296

3. Hiatos de desprotecção: desarticulação e incapacidade de mobilização

institucional do sinistrado ............................................................................... 303

4. Informalidade salarial e subreparação das vítimas .................................... 307

Capítulo 5 – Dano, perícia e reparação

Introdução ...................................................................................................... 315

1. A construção histórica do dano corporal .................................................... 317

2. A construção histórica dos instrumentos periciais ...................................... 320

3. A evolução da pericialidade em portugal .................................................... 323

4. As funções e atribuições legais do inml ..................................................... 326

5. A relação do inml com os sinistrados e os tribunais ................................... 330

6. A clinicalização da peritagem e a pericialização da decisão ...................... 340

7. O perito na desocultação dos danos: práticas e percepções ..................... 343

8. Para ampliar o cânone pericial ................................................................... 350


Capítulo 6 – O tempo e o modo da reparação do dano corporal nos
tribunais: quando os processos falam

1. O sinistrado e o sinistro: algumas notas caracterizadores .......................... 354

2. Morosidade e articulação entre os tribunais e as instituições conexas....... 358

3. O termo do processo reparatório ................................................................ 373

Capítulo 7 – Pós-acidente: quando o sistema falha

1. Cidadania de segunda ou a invisibilidade do outro lado da linhas: dano


integral, reparação parcial? ............................................................................ 384

1.1. A degradação económica da vítima ..................................................... 391

2. Regra, excepção e futuro ........................................................................... 393

2.1. O dia seguinte: algumas dimensões da vulnerabilidade ...................... 395

2.2. Dupla vitimação: laboral e corporal ...................................................... 398

3. A resposta clínica e institucional às vitimas ................................................ 406

3.1. O sinistrado e a qualidade reparatória ................................................. 410

4. As Vítimas organizadas: as dinâmicas da sociedade civil .......................... 417

Conclusões e Recomendações ………………………………………………. 435

Bibliografia .……………………………………………………………………… 443


Lista de acrónimos

LISTA DE ACRÓNIMOS

ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho


AECOPS – Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas
ANDST – Associação Nacional dos Deficientes Sinistrados no Trabalho
APS – Associação Portuguesa de Seguradoras
BMJ – Boletim do Ministério da Justiça
CC – Código Civil
CRP – Constituição da república Portuguesa
CEE – Comunidade Económica Europeia
CES – Centro de Estudos Sociais
CP – Código Penal
CPC – Código de Processo Civil
CPP – Código de Processo Penal
CPT – Código de Processo de Trabalho
CT – Código de Trabalho
DGPJ – Direcção-geral da Política de Justiça
FAT – Fundo de Acidentes de Trabalho
FGA – Fundo de Garantia automóvel
FUNDAP – Fundo de Actualização de Pensões de Acidentes de Trabalho
GNR – Guarda Nacional Republicana
IAS – Indexante dos Apoios Sociais
INE – Instituto Nacional de Estatística
INML - Instituto Nacional de Medicina Legal
SP – Instituto de Seguros de Portugal
LAT – Lei dos Acidentes de Trabalho
MP – Ministério Público
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
OIT – Organização Internacional do Trabalho
OPJ – Observatório Permanente da Justiça Portuguesa
PIB – Produto Interno Bruto
RLAT – Regulamento dos Acidentes de Trabalho
STJ – Supremo Tribunal de Justiça
TNI – Tabela Nacional de Incapacidades
TRP – Tribunal da Relação do Porto
UE – União Europeia
I

INTRODUÇÃO
Introdução

INTRODUÇÃO

Este projecto de investigação tem como objecto central um tema que não
tem sido estudado em Portugal, de uma perspectiva multidisciplinar, englobando
aspectos económicos, sociais e culturais do corpo e da vida na lei e nas
decisões judiciais.

Esta é uma questão que assume uma particular complexidade na


sociedade de risco em que vivemos, em que as pressões da globalização
económica perante a segurança e a saúde dos trabalhadores e em que os
acidentes de viação não cessam de provocar mortes e lesões irreversíveis.
Estamos perante um quadro vivencial de disseminadas inseguranças e de
suspeições generalizadas. Os riscos laborais e rodoviários, não sendo
verdadeiramente novos, são cada vez mais diversificados. Este contexto levou à
implementação de novos modelos de socialização do risco e ao crescente
protagonismo das companhias de seguros, ao mesmo tempo que o Estado
parece diminuir a sua função de protecção social. A intensificação destes
fenómenos e a centralidade social e económica do corpo e da vida desafiam o
sistema político a proceder à sua reconfiguração normativa, judicial e
institucional.

Num Estado de Direito Democrático, este processo de reconfiguração


será ainda mais premente se considerarmos que numa questão tão central,
como é a vida e o corpo, o papel do sistema jurídico deve contribuir eficazmente
para a promoção da cidadania, para a consolidação da democracia e para a

2 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

protecção efectiva dos direitos sociais e humanos. Mas, se a natureza absoluta


da protecção constitucional do direito à vida e à integridade física é igual para
todos os cidadãos, o quadro legal ordinário definidor das indemnizações, bem
como a interpretação e aplicação da lei, podem implicar várias formas de
exclusão.

Uma questão essencial consiste em compreender qual a natureza e quais


as discrepâncias entre a law in books e a law in action no contexto da reparação
do dano corporal. Do ponto de vista teórico, esta é uma questão cara à relação
entre direito e sociedade por diferentes razões: se em Roscoe Pound a reflexão
sobre o direito, enquanto mecanismo de controlo social, levanta o problema da
efectividade, em Eugene Ehrlich, mais do que instrumento, o direito é concebido
como resultado e testemunho. Pelo que o clássico contraste que o primeiro
estabeleceu entre law in books e law in action – que encorajou o estudo da
mudança das condições sociais sobre as quais impende a normatividade jurídica
– é agora confrontado com o conceito de living law (por oposição a law for
decision) proposto pelo segundo. A aferição empírica desta problemática,
olhando para os princípios gerais e para as leis específicas que regulam os
processos indemnizatórios e confrontando-os com a realidade da experiência e
da condição do lesado, obrigou à mobilização permanente de uma hermêutica
da suspeição (Ricoeur, 1969), capaz tanto de compreender o funcionamento do
sistema judicial e instituições conexas, como de desocultar os problemas
inabarcados pelas respostas que têm vindo a ser fornecidas.

Qual o papel dos diferentes operadores judiciais, dos instrumentos


jurídicos e das instituições sociais? Qual o peso das funções periciais na
avaliação do sinistrado? Que variáveis sociojurídicas mais influenciam a
determinação de indemnizações? Estas são algumas das perguntas de partida
fundamentais que este projecto de investigação procurou responder. Cedo se
percebeu que o seu esclarecimento sociojurídico implicava o seu desdobramento
em outras questões: em que medida as respostas judiciais e institucionais dão
cabal solução aos problemas decorrentes da condição de vítima? A
indemnização recebida permite uma aproximação às reais condições de vida
prévias da vítima e/ou seus familiares? O tempo das decisões judiciais e as

3 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

garantias conferidas às vítimas vão ao encontro das necessidades e dos seus


direitos fundamentais?

Uma perspectiva analítica sobre a reparação do dano corporal no contexto


judiciário não poderia deixar de se interrogar sobre as dinâmicas associativas e
políticas da sociedade, cuja preponderância tanto na mobilização do direito e da
justiça, como no acompanhamento dos sinistrados suscita a máxima pertinência
cívica e científica: qual o papel das associações da sociedade civil na promoção
da igualdade e da cidadania e na real protecção dos direitos fundamentais das
vítimas na reparação? Qual o lugar e o papel das companhias de seguros na
configuração do quadro legislativo? Qual a sua relação com a provisão de
perícias médico-legais? Qual o seu desempenho, enquanto actor empresarial e
organizado, perante o sinistrado, individual, inexperiente e vulnerável? Em suma,
a grande questão que orienta este projecto de investigação é a seguinte: o valor
da vida e do corpo é igual para todos? Uma vez que o dano corporal abarca um
conjunto de danos respeitantes à pessoa, enquanto ser humano, e não à pessoa
enquanto produtor de riqueza, que importância terão as suas condições sociais
ou culturais?

Neste projecto procuramos dar resposta a estas e outras questões,


analisando o sistema social e jurídico de reparação da vida e do dano corporal.
Centrando-nos nos acidentes de trabalho e rodoviários como janelas priviligiadas
de observação do desempenho funcional do sistema jurídico e da desigualdade
social. Pretendemos averiguar os critérios e as lógicas que subjazem à definição
das indemnizações de modo a determinar os sistemas de estratificação social
que se ocultam sob a pretensa igualdade de todos os cidadãos perante a lei.

Hipóteses

Embora o cronograma de tarefas metodológicas que ajudou a organizar a


pesquisa se apresentasse, a montante, de forma encadeada e etápica, a
complexidade deste campo temático, a multiplicidade de actores, discursos e

4 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

experiências sobre as dinâmicas sociojurídicas da reparação e os diferentes


ângulos que a sua abordagem poderia privilegiar obrigaram à sua sobreposição
e articulação. A construção das hipóteses principais deste projecto beneficiou
dos resultados exploratórios decorrentes da conjugação de diferentes métodos e
técnicas de investigação.

Um argumento de fundo, que procurámos testar ao longo deste projecto,


reside na ideia forte de que este campo de análise padece de uma dominância
relativamente omnipresente das companhias de seguros nos diferentes
processos de definição e aplicação dos mecanismos reparatórios. Assim,
procurámos averiguar o grau de captura das dinâmicas indemnizatórias a vários
níveis, tanto na produção legislativa, desdobrada na produção dos critérios
técnicos da aplicação, como no próprio contexto em que as decisões são
tomadas para definir as reparações. Esta hipótese de partida assenta, desde
logo, numa outra, com a qual se articula intimamente: a hegemonia e a
capacidade de modelação do campo exercida pelas companhias de seguros
ocorrem devido aos recursos desiguais disponibilizados às partes e ao
desequilíbrio estrutural que se verifica na organização de interesses
potencialmente contraditórios ou conflituais.

A natureza deste desequilíbrio encontra nos princípios estruturantes das


sociedades capitalistas a sua razão de ser, na medida em que a reparação da
sinistralidade se constitui como uma zona de interface entre os interesses do
capital e os interesses do trabalho, condensados num corpo incapacitado que
requer compensação. O Estado Social, que estimulou a criação de mecanismos
correctivos da desigualdade e neutralizadores da vulnerabilidade, confiado-os às
instituições públicas e judiciárias, tem vindo a sofrer, porém, um desgaste
paulatino, revelando aquilo que é uma tripla crise – de confiança, de legitimação
e de hegemonia – dos pilares em que, na segunda metade do século XX, se
ancorou o consenso social da igualdade, da democracia, do bem-estar, da
redistribuição e da inclusão social. Assim, é da máxima importância avaliar e
discutir como e até que ponto esta realidade se tem vindo a aprofundar.

A quebra na mobilização social e sindical será um factor importante, mas


acresce-lhe uma outra problemática que merece uma análise sociológica

5 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

específica e reenvia para a disputa da hegemonia no interior do Estado: centra-


se na ideia de que os mecanismos e as instâncias do Estado, tal como o sistema
judicial, cuja missão é, em grande medida, a regularização e o reequilíbrio, não
estão a fazê-lo e, pelo contrário, quiçá estejam a aprofundar as assimetrias. Ou
seja, os elementos equilibradores que existiam estão a desaparecer, com
reflexos nos processos e nos resultados indemnizatórios.

Privilegiamos, assim, a análise das diferentes dimensões reparatórias dos


acidentes de trabalho, contrastando-as com a sinistralidade rodoviária. Por essa
via, é nosso objectivo testar a hipótese geral de que o trabalhador é, com as
devidas salvaguardas sociojurídicas, menos cidadão enquanto trabalhador do
que enquanto transeunte. Esta realidade testemunha tanto lógicas de captura do
Estado, como tendências mais amplas, de exclusão e vulnerabilidade, das
sociedades contemporâneas. Esta hipótese assenta, por isso, na ideia de que o
valor da vida e do corpo se encontra tão hierarquizado quanto a sociedade
capitalista se hierarquiza.

Metodologia

Factos, documentos e depoimentos constituem os elementos empíricos


centrais deste projecto de investigação. O modelo de análise pelo qual optámos,
privilegiou o recurso a metodologias de natureza qualitativa, baseando-se num
conjunto amplo de métodos e técnicas, cujo objectivo foi captar, desenvolver e
testar esse material empírico, de forma a desafiar ou consolidar as hipóteses que
previamente formulámos. A primeira etapa consistiu na reconstituição e análise
dos fundamentos doutrinários e dos quadros jurídicos que regulam a reparação
do dano corporal na sociedade portuguesa. Esta tarefa obrigou a uma
compreensão rigorosa da evolução da legislação laboral, concedendo particular
atenção aos conteúdos reparatórios de acidentes de trabalho, bem como dos
pressupostos da responsabilidade civil que estão na origem do dever de
indemnizar a perda da vida ou o dano corporal. Este trabalho foi, ainda,

6 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

submetido a uma perspectiva histórica, permitindo um entendimento mais


consistente das raízes jurídicas da reparação. Além disso, foram ainda
exploradas as disposições legais e algumas especificidades ressarcitórias no
domínio penal.

A jurisprudência dos últimos anos constituiu igualmente uma importante


fonte de informação, tanto no sentido de se compreender o caminho que as
decisões judiciais têm seguido, como para aceder às principais questões que
mobilizam o recurso às instâncias superiores. A análise da jurisprudência
cumpre, assim, dois objectivos distintos. Por um lado, identifica as decisões cuja
precedência se revelou fundamental e referencial para decisões posteriores.
Entre outros aspectos, a fixação das quantias indemnizatórias, nomeadamente
no campo dos danos não patrimoniais, tem sido matéria de forte
responsabilidade jurisprudencial, tendo, por isso, sido objecto de atenção por
parte dos decisores judiciais do que por parte do legislador. Por outro lado, as
decisões de recurso mais rotineiras constituem um objecto de estudo indiciário e
revelador de problemas e dinâmicas sociojurídicas importantes no quadro deste
projecto de investigação.

Assim, foram analisados os acórdãos mais estruturantes do actual


sistema judicial da reparação do dano corporal e, paralelamente, no sentido de
dar cumprimento ao segundo objectivo, foi efectuada uma análise exaustiva dos
acórdãos das Relações e do STJ, publicados na Colectânea de Jurisprudência,
entre 2005 e 2007, com recurso a uma grelha analítica que prevê um conjunto
de categorias de caracterização consideradas sociologicamente relevantes. Para
este fim, cedo se concluiu que os dados que era possível extrair correspondiam,
sobretudo, a elementos de controvérsias técnico-jurídicas cuja expressão e valia
sociológica é limitada, o que reforçou a importância das restantes fontes e
métodos utilizados.

Esta tarefa essencial de enquadramento legal do tema articulou-se com


uma revisão crítica, tanto da literatura mais genérica sobre as relações sociais e
laborais nas sociedades contemporâneas, as políticas públicas para este sector
e sobre o papel do Estado na protecção das vítimas, como de literatura mais
específica sobre a reparação, os contextos e os efeitos da sinistralidade. Assim,

7 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

procedeu-se à recolha de estudos, indicadores e bibliografia temática e


multidisciplinar, o que auxiliou e conferiu consistência à construção do quadro
teórico e à formulação das hipóteses.

Foram, também, analisadas as controvérsias políticas e os debates


parlamentares, nomeadamente no que toca às recentes alterações normativas,
através dos quais foi possível mapear as retóricas e os argumentos político-
jurídicos que têm vingado em matéria reparatória. Tínhamos planeado a
realização de um observatório de imprensa, cujo principal objectivo residia na
apreensão dos padrões de mediatização do sistema judicial e da valoração do
corpo e da vida na sociedade portuguesa. Todavia, os resultados que obtivemos
demonstram que este é um tema quase inexistente na imprensa portuguesa, à
excepção daquilo que são os seus contornos caricaturais, muitas vezes
espectacularizados à margem dos fundamentos e das consequências mais
gravosas deste problema. Os casos mais mediáticos, embora, em alguns casos,
sinalizem extravagâncias jurisprudenciais na decisão e no fundamento, bem
como dramas pessoais sociologicamente ponderáveis, padecem, muitas vezes,
de falta de rigor sociojurídico e ocultam aquilo que são os traços mais
significativos da experiência pessoal das vítimas e das dinâmicas sociais e
judiciais que se encontram na sua origem.

Foram, também, consultadas as Estatísticas da Justiça do Ministério da


Justiça / Direcção-Geral de Política Legislativa, bem como os vários indicadores
que têm sido trabalhados pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa
nos últimos anos. Nos domínios cível e penal, os dados disponíveis não
permitem autonomizar a reparação do dano corporal, pelo que o apuramento de
indicadores e tendências se viu comprometido. Em contrapartida, os dados
relativos aos acidentes de trabalho revelaram-se mais ricos e completos,
permitindo complementar os dados gerais da sinistralidade em Portugal nos
últimos anos com informações alusivas à sua reparação em sede judicial. Assim,
foi possível trabalhar e operacionalizar diferentes variáveis, como a duração dos
processos, a distribuição dos acidentes por coeficiente de incapacidade, os
principais objectos de acção litigiosa, o patrocínio judiciário, entre outros.

8 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

Uma dimensão importante explorada nas estatísticas da justiça consiste


no cruzamento dos montantes indemnizatórios atribuídos com outras variáveis
sociojurídicas disponibilizadas, de forma a melhor se compreender a sua
influência na reparação. Contudo, o sistema de notação apresenta-os de forma
agregada, numa quantia única. Sabendo à partida que a reparação é composta
por diferentes prestações (subsídios de terceira pessoa, de reabilitação
habitacional, cobertura de custos emergentes, etc.) e que, para além disso, ao
contrário do que acontece com as pensões remidas, as incapacidades
superiores a 30% se traduzem na atribuição de um montante mensal, revelou-se
impossível operacionalizar estatisticamente esta variável.

A realização de entrevistas serviu dois objectivos fundamentais deste


projecto: por um lado, aquelas que desempenharam uma função preliminar e
exploratória, permitiram ampliar as perguntas de partida, mapear as grandes
questões que têm vindo a ser discutidas no âmbito desta problemática e que têm
suscitado posições e opiniões menos consensuais; por outro, um segundo
conjunto de entrevistas permitiu testar e fundamentar as nossas hipóteses. Foi
adoptado um modelo semi-directivo na condução das entrevistas, que se, por um
lado, orientou os seus conteúdos para os tópicos inscritos nas nossas hipóteses
e interrogações, por outro conferiram liberdade e flexibilidade ao entrevistado
para apresentar e desenvolver os temas que considerasse pertinentes e, por
vezes, menos visíveis no quadro do debate dominante.

Assim, o trabalho de campo articulou uma lógica top-dwon com uma


lógica bottom-up no acesso aos actores, seus discursos, suas práticas e
respectivas representações. A primeira foi direccionada para os depoimentos, a)
do legislador, na figura das diferentes forças políticas com representação
parlamentar, b) dos operadores judiciários – magistrados judiciais, magistrados
do Ministério Público, advogados e peritos médico-legais – com competência
directa nos processos indemnizatórios, e c) das administrações de companhias
de seguros e organizações representativas dos seus interesses, com
responsabilidade, tanto na provisão da reparação como na interlocução política.
A captação da lógica bottom-up levou, sobretudo, à inquirição daquilo que é
comummente designado como sociedade civil, isto é, o espaço da mobilização
social fora das instituições institucionalmente envolvidas na reparação. Assim,

9 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

foram entrevistados dirigentes associativos de organizações de protecção e


apoio às vítimas, nos diferentes contextos em estudo (laboral, civil e penal), bem
como líderes e responsáveis sindicais.

No âmbito desta abordagem metodológica, optámos, ainda, por


diferenciar dois momentos complementares da inquirição. Um diz respeito à
entrevista individual, onde é respeitada a perspectiva e o argumentário do
entrevistado e onde se procuram explorar os seus próprios nexos e enriquecê-
los com informações úteis para a investigação. O outro está relacionado com o
contraditório e com o confronto de opiniões: foi realizado um focus group1, isto é,
uma entrevista de grupo focalizada, cujo objectivo se prendeu com a apreensão
da informação – consensual ou divergente – trocada e partilhada pelos
convidados presentes, todos eles informadores privilegiados, bem como com a
observação e condução da lógica argumentativa estabelecida entre si. Este
painel de discussão constitui uma metodologia particularmente frutuosa, tanto
pelos novos elementos que aí surgiram, como pela maneira como os actores
lidam com posições nem sempre coincidentes, apresentadas pelos restantes
entrevistados. Todos estes contributos foram, posteriormente, submetidos a uma
rigorosa análise de conteúdo.

Do ponto de vista bottom-up, os próprios sinistrados constituíram uma


relevante e insubstituível fonte de informação, fazendo emergir problemas e
desafios que o discurso profissional ou institucional dos operadores oculta,
desvaloriza ou desconhece. Foram recolhidos diversos testemunhos de
sinistrados, muito heterogéneos entre si e com diferentes focos de interesse
sociológico, o que nos permitiu aceder à narrativa pessoal de vítimas de
acidentes de trabalho, à sua experiência com as instituições públicas e sistema
judiciário, aos efeitos mais insondáveis do dano corporal nos seus contextos
sociais e familiares. Além do seu contributo mais amplo, estes depoimentos
funcionaram como pista e como prova indiciária, ganhando o estatuto de

1
O focus group, embora encontre as suas raízes históricas em Robert King Merton, no quadro de
um projecto coordenado por Paul Lazarsfeld, em 1941, na Universidade de Colômbia, é uma
forma de recolha de dados que só a partir da década de 1980 se desenvolveu mais intensamente
como importante estratégia de pesquisa por parte dos cientistas sociais.

10 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

histórias ou casos exemplares, em que as hipóteses delineadas assumem um


carácter extremo ou agravado, reunindo tanto características normais como
características excepcionais, porém com particular relevância sociológica.

Este estudo confere ainda uma especial atenção ao desempenho


funcional do sistema judicial, pelo que os processos judiciais que correm nos
tribunais portugueses constituem uma fonte documental imprescindível ao seu
apuramento. Se, por um lado, eles são portadores de informações preciosas
sobre a morosidade, sobre a relação dos tribunais com instituições conexas,
sobre as estratégias processuais das partes, sobre os argumentos das partes,
sobre o fundamento das decisões e, portanto, sobre a qualidade da justiça, são,
igualmente, prismas de observação empírica que nos permitem aceder à
singularidade do caso, do operador e da vítima concreta: o seu trabalho, o
acidente, os danos, a sua defesa, as suas perícias e a sua indemnização. Foi
seleccionada uma amostra aleatória de 150 processos judiciais, findos nos
últimos dois anos, relativos a acções por acidentes de trabalho e acidentes de
viação, bem como pedidos de indemnização por dano corporal deduzidos em
processos-crime.

Optámos por duas comarcas distintas: Coimbra e Braga. Se a primeira


constitui uma comarca com padrões de mobilização dos tribunais relativamente
comuns no domínio da reparação do dano corporal, com índices médios de
sinistralidade laboral e rodoviária, Braga representa um dos pontos do país com
cifras mais elevadas de sinistralidade laboral, com reflexos consequentes no
tribunal de trabalho. Assim, o trabalho de campo consistiu na amostragem,
selecção, triagem, consulta, análise e discussão de processos decorridos nos
Tribunais de Trabalho e nas Varas Mistas das referias comarcas, a partir dos
quais não apenas testámos as hipóteses formuladas previamente, como revimos
e aprofundámos áreas problemáticas até então inacessíveis por via das fontes e
dos métodos anteriormente explorados.

Para além disso, tirámos ainda partido dos discursos e das conclusões do
Colóquio Final deste projecto, intitulado Corpo, Justiça e Reparação, e que teve
lugar no CES-Lisboa, no dia 1 de Julho de 2010. Os conteúdos apresentados e
problematizados condensam muito daquilo que foram os principais argumentos,

11 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

linhas de análise e confirmações a que este projecto de investigação nos


conduziu. Este Colóquio contou com a participação tanto de operadores
judiciários, como de organizações de defesa das vítimas, entidades patronais,
sindicatos e Segurança Social. No âmbito dos outputs do projecto foi ainda
realizado um curso de formação dirigido à reparação de acidentes de trabalho,
que em muito ajudou a consolidar as nossas pistas de trabalho. Embora com um
enfoque exclusivamente jurídico, foram também assistidos e recenseados outros
eventos temáticos promovidos pelo Centro de Estudos Judiciários, pelo Supremo
Tribunal de Justiça e pela Ordem dos Advogados.

Apresentação do Relatório

Este relatório é composto por duas partes. A primeira (Capítulo 1), Estado,
Direito e Sinistralidade: para uma justiça corporal, tem como objectivo apresentar
e discutir, num primeiro momento, as novas configurações da desprotecção e da
vulnerabilidade social, à luz das tendências precarizadoras das sociedades
contemporênas. O risco e a sinistralidade surgem, assim, como um desafio à
refundação social do Estado e uma interpelação ao papel emancipatório do
direito. Num segundo momento (Capítulo 2), é desenhado e analisado o quadro
legal, substantivo e processual, que enforma as dinâmicas reparatórias do dano
corporal, atendendo aos diferentes domínios jurídicos que regulação a
indemnização: civil, laboral e penal.

Na segunda parte deste relatório procurámos traçar o Roteiro da


Vulnerabilidade, isto é, as diferentes dimensões e controvérsias da reparação,
que se reflectem no percurso do sinistrado. No Capítulo 3, as lógicas
seguradoras e a construção do quadro legislativo e técnico da reparação
constituem a primeira problemática abordada, onde damos conta da evolução e
dos modos de produção do direito, bem como das suas raízes jurídico-políticas e
dos seus efeitos junto das vítimas. No Capítulo 4, avançamos para o momento
do acidente, sublinhando as principais teias do labirinto em que o sinistrado se
move: as dificuldades e desigualdades na sua defesa e no acesso à justiça, as
tensões envolvidas no apuramento da responsabilidade, os hiatos de

12 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


Introdução

desprotecção institucional que pode experimentar e os prejuízos decorrentes da


informalidade salarial. O Capítulo 5 é dedicado à questão pericial. Depois de
recenseada a construção histórica do dano corporal e dos instrumentos periciais,
analisam-se algumas dimensões sociojurídicas da função pericial nos dias de
hoje, sinalizam-se as suas contingências e fragilidades e desafia-se o cânone
pericial. No Capítulo 6 é conferida particular atenção ao desempenho funcional
dos tribunais, através do escrutínio dos processos consultados. A morosidade, a
articulação inter-institucional, o sinistro, o sinistrado e a indemnização são os
focos da nossa análise. Finalmente, no Capítulo 7, avançamos na discussão,
olhando para a complexidade da condição da vítima e para as dificiências das
respostas existentes.

13 A indemnização da vida e do corpo na lei e nas decisões judiciais


PARTE I
ESTADO, DIREITO E SINISTRALIDADE:
PARA UMA JUSTIÇA CORPORAL
1

CAPÍTULO 1
ESTADO, RISCO E SINISTRALIDADE NAS
SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS:
UMA PERSPECTIVA CRÍTICA
Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

1. A ARMADILHA DA AUTONOMIA: DESPROTECÇÃO


E VULNERABILIDADE

A emergência e consolidação da designada sociedade de consumo


(Baudrillard, 2008) trouxe consigo uma discussão ideologicamente orientada
para o fim da centralidade do trabalho na estruturação e regulação dos valores,
princípios e dinâmicas sociais, e, portanto, na produção e parametrização da
igualdade e desigualdade social nas sociedades contemporâneas. Não será
por acaso que o corpo, instrumento funcional e produtivo por excelência,
começa a ser encarado como objecto de múltiplas preocupações de ordem
cultural, estética e identitária, sujeito a diferentes abordagens antropológicas e
comerciais (Fortuna, 2002; Rodrigues, 2005), com índices elevados de
reconhecimento e mediatização. Já o lugar ocupado pelo corpo no trabalho não
beneficiou dos mesmos níveis de atenção, pese embora a progressiva
relevância que matérias como a prevenção, higiene e segurança no trabalho
têm vindo a ganhar na produção legislativa1 e no apetrechamento técnico do
Estado e das empresas.

1
Directiva da Comissão Europeia 89/391/CEE, Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de Setembro,
acordo unânime de concertação social em 1991 e a criação do Instituto para o

16 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Ora, se o fim da centralidade do trabalho constitui uma falácia mal


resolvida que merece rejeição ou, no mínimo, refundamentação (Fitoussi e
Rosanvallon, 1997), será importante t\raçarmos uma visão panorâmica das
relações laborais na sociedade portuguesa dos dias de hoje. Orienta-nos, entre
outras, a perspectiva de que o grau e o modo de inserção no mundo do
trabalho são dimensões estruturantes da vida social, na medida em que à
participação na esfera produtiva se encontram vinculados, de forma mais ou
menos determinante, os processos básicos de desenvolvimento da identidade
social, níveis de rendimento, padrões de consumo, reconhecimento social,
referenciais de participação cívica e política, entre outras dimensões (Sousa,
Casanova e Pedroso, 2007). Procuramos, assim, recensear e compreender a
natureza e a evolução dos vínculos e das garantias sociais e laborais dos
trabalhadores e, por essa via, problematizar a sua relação tensa e complexa
com as condições de trabalho e, em particular, com os modelos, processos e
paradoxos da reparação do corpo lesado e incapacitado no contexto laboral
português.

O anúncio da crise do futuro trazido por Robert Castel (1999) encontra


materialização sociológica na de um paradigma de regulação social do
capitalismo cujos factores de equilíbrio – crescimento económico, concertação
e redistribuição social – quanto mais se ambicionavam replicáveis e
eternizáveis mais sucumbiam ao seu desgaste paulatino. A falência do
fordismo2 enquanto organizador das relações laborais, e a afirmação, nas

Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho, hoje Autoridade para as Condições


de Trabalho.
2
Nesse sentido: “Distinguir momentos de realidade, tendências e apostas políticas talvez nos
permita saber de que fordismo (ou pós-fordismo, ou neofordismo...) estamos a falar nesta nova
Babel de hoje em dia, onde o gritar de palavras fortemente fetichizadas – flexibilidade e
ligeireza, sucessoras de outras como “novas tecnologias” ou “automatização” – nos impede de
ouvir os sussurros do trabalho, dos actores sociais, da vida real, das possibilidades que
existem para os seres humanos neste final do século XX”. (Castillo, 1998: 56)

17 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

últimas décadas, das agendas de reforma neoliberal representadas pelas


principais instituições económico-financeiras internacionais, convergiu num
diagnóstico consensual sobre os novos códigos e padrões que viriam e
deveriam disciplinar o trabalho: flexibilidade, contingência, insegurança e
fragilização.

A análise da empiria comprova-o no caso português: a taxa de cobertura


da contratação colectiva de trabalho, tradicionalmente elevada, reduziu-se a
menos de metade no primeiro ano de aplicação do Código do Trabalho, e, no
segundo ano, só recuperou parcialmente (Livro Verde sobre as Relações
Laborais, 2006). Se o paradigma sociolaboral dos Estados de bem-estar
institucionalizado no pós-guerra assentava num quadro negociado e
estabilizado das relações de trabalho, as mudanças experimentadas nas
últimas décadas dão conta da

“Desintegração do tradicional modelo de emprego de base industrial, ao qual


se encontra associado um modelo normativo marcado pelos predicados da
segurança ontológica e previsibilidade legais.” (Ferreira, 2009)

Os pressupostos retóricos que organizavam a economia política do


trabalho sofre assim uma progressiva erosão que indicia a emergência de um
novo paradigma de governação e calibragem das relações laborais, pautado
pela lógica desreguladora, privatizadora e individualizadora da experiência e
dos vínculos de trabalho, o que, por sua vez, ganha força prática e eficácia
simbólica a partir da generalização de um novo regime de verdade (Foucault,
1994) ou universo de justificação (Boltanski e Chiapello, 2001) que lhe confere
sustentabilidade e operacionalidade política e ideológica. A nova semântica
prescritiva para o mundo do trabalho passa, em grande medida, por um duplo
tópico: a relativização e descredibilização das aquisições sociais resultantes do
kenesianismo e da matriz sociopolítica dos Estados-Providência (pleno

18 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

emprego, direitos e cidadania social, económica e cultural)3 e a reinvenção e


promoção de uma racionalidade gestionária da laboralidade, face à qual
liberdade e modernidade4 são sinónimos de flexibilidade, não raras vezes
conceito epidérmico para descontratualização5 e vulnerabilidade6.

Trata-se da introdução de um novo repertório discursivo que significa,


acima de tudo, uma devolução da responsabilidade aos indivíduos (através do
recurso a conceitos espúrios de reflexividade e capacitação) e à justificação do
fenómeno do desemprego e do mau emprego como produto de um fracasso
pessoal e individual (Mingione, 1998; Sennet, 2001), dessocializando a
responsabilidade e simulando um equilíbrio sociolaboral que é na prática
inexistente. A auto-representação das vítimas de sinistralidade laboral
incorpora, como veremos, uma noção de tragédia pessoal que se encontra, em
grande medida, associada a esta específica contextualidade sociolaboral. Vem,
aliás, nesse sentido a ideia de que o falso trabalho independente é muitas das
vezes subsidiado por novos recursos retóricos que visam a produção de
tolerância pública e privada ao paradoxo da generalização da atipicidade e da
clivagem entre os quadros legais e as práticas sociais na sociedade
portuguesa.

A ideia de individualismo negativo (Castel, 1999) ganha, assim,


conformidade e intimidade com as novas tendências civilísticas do direito do

3
Sobre o resgate do modelo de bem-estar como novo radicalismo para a transformação social,
cf. Judt, Tony (2010), Ill Fares the Land. Penguin Press HC.
4
Sobre as tensões negativas entre a crítica expressiva e a crítica social, cf. Boltanski e
Chiapello (2001).
5
Cf. Fascismo societal em Santos (2002).
6
Veja-se a adopção de uma Estratégia de Emprego (OCDE) e não de uma política de emprego
constitui um importante marcador discursivo que remete para a incerteza e para o
constrangimento intrínsecos à acção política, demitindo-a da sua possibilidade e legitimidade
de acção dobre as dinâmicas económicas, sobretudo quando regressivas.

19 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

trabalho, esvaziando a sua função correctora das desigualdades estruturais da


e na relação capital-trabalho, pelo que ao invés de potenciar o factor trabalho
tende a gerar efeitos desarmantes. Entrevêem-se, por isso, alguns sinais de
uma nova era pós-direito do trabalho (Ferreira, 2008) nas sociedades
contemporâneas, em que a narrativa da regulação do conflito é substituída pela
narrativa da fatalidade. A desmercadorização do trabalho (contrato de trabalho
e centros de emprego públicos contra o trabalho à jorna e o aluguer de
trabalhadores), objectivo dos Estados de bem-estar, assiste assim à
progressiva remercadorização (atipicidade laboral e empresas de trabalho
temporário).

A trajectória histórica e a condição semi-periférica da sociedade


portuguesa são, neste domínio, dimensões importantes que requerem uma
contextualização particular. Em síntese, é possível afirmar que o modelo
produtivo prevalecente articula, com arranjos variados, baixas qualificações (de
recursos humanos e administrações empresariais), forte desigualdade salarial
e pobreza assalariada7, assistindo-se à destruição ou retracção de alguns
mecanismos de protecção social e provisão pública de bem-estar num Estado
social incipiente, cuja consolidação se viu travada, entre outros factores, pela
viragem neoliberal da década de 80 do século passado e pela endogeneização
uma nova linguagem de mercado, tomado como descodificador8 do possível e
do desejável em matéria de regulação sociolaboral.

Num período da história pautado pela retórica e pela economia da crise,


em que as restrições orçamentais e a contracção das políticas públicas

7
Cf. as posições recentes do Conselho Económico e Social, sob a coordenação de Alfredo
Bruto da Costa.
8
Cf. O Nascimento da biopolítica de Michel Foucault (2010). O prefácio da tradução
portuguesa, da autoria de Bruno Maçães, ao contrário daquilo que são as leituras críticas do
património conceptual foucaultiano, exibe uma deriva celebratória do mercado manifestamente
capciosa e sociologicamente discutível.

20 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

atingem invariavelmente o domínio social, é da máxima importância recuperar


a ideia de que o Estado-Providência, em Portugal, começou tarde – apenas
depois do 25 de Abril – e em contra-ciclo, quando já estava em crise na
Europa. Em termos comparativos, as transferências de rendimento do Estado
para as classes populares são irrisórias quando comparadas com os restantes
países europeus e a essa debilidade estrutural agrava a vulnerabilidade no
quadro daquilo que nunca passou de um quase-Estado-Providência (Santos e
Ferreira, 2002).

Neste sentido, o défice de cumprimento das promessas do Estado Social


esbarra como o próprio questionamento do pouco que foi cumprido. A revisão
dos pactos sociais e compromissos adquiridos que, na realidade, nunca foram
efectivados e não passaram de contratos-promessa constitui um curto-circuito
nas expectativas legítimas dos cidadãos (Santos, 2002), com efeitos
exponenciais nos grupos sociais particularmente marginalizados do ideal da
cidadania plena, nomeadamente a pobreza assalariada e inválida.

Diferentes estudos têm vindo a mostrar uma das grandes


vulnerabilidades dos cidadãos nas últimas décadas continua a ter expressão na
pobreza (Paugam, 2005; Almeida, 1992). De acordo com Guerra, Pinto, Martins
e Almeida (2010), verifica-se uma forte privação material num conjunto muito
significativo de portugueses, tendo vindo a crescer os grupos sociais abaixo do
limiar da pobreza, com impacto assinalável na capacidade de pagamento de
contas da casa, alimentação e despesas escolares. As trajectórias de
mobilidade social descendente constituem, neste contexto, um dos mais
problemáticos geradores de tensão social.

Os resultados do inquérito aplicado no âmbito do estudo Necessidades


em Portugal: Tradição e Tendências emergentes (2010) mostram que 57% das
famílias inquiridas vive com menos de 900 euros por mês e 42% admite ainda
não poder gozar todo o período de baixa médica, enquanto 12% reconhece

21 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

não ter dinheiro para comprar todos os medicamentos de que necessita. Os


níveis de satisfação salarial são fortemente negativos, concluindo-se que
41,3% dos portugueses com actividade profissional remunerada experimenta,
de formas variadas, situações de precariedade laboral. Acresce que os níveis
de confiança nos outros e nas instituições apresentam valores muito reduzidos,
o que devolve suspeição e insegurança aos cidadãos, sobretudo àqueles que
se encontram em situações particularmente dependentes e fragilizadas.

A sociedade portuguesa é, no quadro europeu, aquela onde a


vulnerabilidade é maior, isto é, a probabilidade de alguém cair abaixo do limiar
da pobreza é mais alta. Exactamente porque cerca de 40% dos trabalhadores
aufere uma média de 600 euros mensais e 67% dos pensionistas dispõem de
um rendimento mensal que não ultrapassa os 435 euros. Face a esta realidade
social, não é muito difícil que uma redução pontual das prestações e um
aumento residual do desemprego possam fazer com que mais gente caia
abaixo do limiar da pobreza. É um problema sério para a sociedade portuguesa
e ele terá consequências no futuro.

Por outro lado, o conceito de crise social traz consigo a ambiguidade da


generalização: nem a crise não afecta todos da mesma forma nem os
sacrifícios cobrados aos cidadãos para lhe responder são equitativos. Esta não
é uma consequência conjuntural das dinâmicas económicas regressivas, antes
um modelo social caracterizado pela desigualdade estrutural. Por um lado, o
resultado líquido global das seguradoras que operam no mercado português
voltou a ser positivo em 2009, situando-se entre os 230 e os 260 milhões de
euros, segundo dados do Instituto de Seguros de Portugal. Os capitais próprios
das seguradoras supervisionadas pelo ISP ascenderam a 4 mil milhões de
euros, uma subida homóloga de 30%, o que significa que a rentabilidade face

22 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

aos capitais próprios foi de 6%9. Neste quadro de ganhos, a despesa com as
indemnizações por acidentes de trabalho rondaram, em 2006, os 5 milhões de
euros10 (Freire, 2008: 120).

Em contrapartida, de acordo com o estudo Fair and Unfair Income


Inequalities in Europe conduzido por Daniele Checchi, Vito Peragine e Laura
Serlenga (2010), Portugal apresenta um dos índices de desigualdade de
rendimento mais elevados da Europa, corroborando as conclusões avançadas,
por exemplo, por Farinha Rodrigues (2005), no que toca as fortes assimetrias
sociais com elevados níveis de pobreza económica. Aquele estudo regista
também níveis elevados de desigualdade em termos de oportunidades
oferecidas aos cidadãos: a desigualdade de rendimentos resulta de problemas
institucionais e não do baixo esforço dos mais desfavorecidos, ao contrário
daquilo que é o cerne argumentativo da nova retórica neoliberal. Isto é
especialmente verdade quando se analisa a desigualdade de oportunidades
após a entrada no mercado de trabalho. Ou seja, em termos de igualdade de
oportunidades ex-ante – fundamentalmente ao nível da educação e formação –
Portugal situa-se no meio da tabela europeia. Já quando se considera a
desigualdade de oportunidades ex-post – uma medida que depende muito da
presença de sindicatos e de políticas de redistribuição de rendimento –
Portugal salta para o topo. Estas são algumas conclusões de um recente
estudo onde se analisam as possíveis causas dos níveis de desigualdade em
25 países europeus, procurando avaliar o impacto de condições externas aos
indivíduos na desigualdade de rendimentos.

9
Note-se, porém, que, segundo o presidente do ISP, Fernando Nogueira, “o ano passado
[2008] foi, como já se calculava, difícil para os operadores, especialmente na área Não Vida,
que teve uma evolução negativa [os dois principais ramos do negócio Não Vida são o seguro
Automóvel e os Acidentes de Trabalho]”.
10
Nesse sentido: “536 174 Apólices de seguro directo de trabalhadores por conta de outrem e
mais de 179 325 trabalhadores independentes; um total de 1 452 704 pessoas cobertas; e 286
319 sinistros participados” (2008: 120).

23 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Em suma, se os instrumentos de contenção do capital produtivo


granjearam alguma eficácia reguladora (capacidade fiscal, provisão de serviços
públicos e garantias laborais), ampliando as classes médias, promovendo a
mobilidade social e arrefecendo o conflito social, o consenso neoliberal e a
financeirização da economia não encontram no Estado um actor capaz e
apostado na redisciplinação das dinâmicas sociais geradoras de exclusão e
desigualdade. E naturalmente o Estado recua com o desarme social e sindical
e vice-versa. É aqui que reaparece o fascismo societal: não se trata de uma
alusão ao regime político, antes da caracterização de um processo social mais
amplo, dinamizado pela despolitização do Estado e pela desestatização da
regulação social (Santos, 2002). Como veremos, a reparação da sinistralidade
é, em grande medida, uma ilustração nítida de todo este processo, confiando
às instituições privadas a função reparadora e desenvolvendo níveis elevados
de tolerância pública à degradação social.

2. A PRECARIEDADE LABORAL EM PORTUGAL: UM


BALANÇO

As especificidades históricas e estruturais da formação social e


económica portuguesa estão na origem de uma forte heterogeneidade na
configuração da laboralidade, combinando novas e velhas economias,
registando níveis significativos de informalidade e desfasamento entre as

24 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

práticas sociais e laborais e os quadros jurídicos que as visam regular, com a


complacência ou incentivo objectivo do próprio Estado (Santos, 1984). Como
diagnostica o Livro Verde sobre as Relações Laborais, os indicadores
disponíveis indiciam elevados graus de desconformidade entre as normas
legais e contratuais e as práticas empresariais em domínios como a natureza
do contrato de trabalho e o cumprimento dos horários de trabalho. Porém, se
este relatório sugere a necessidade de estudos específicos “quer para avaliar
com rigor o grau de efectividade de normas legais e contratuais em vigor, quer
para estudar as práticas de relacionamento laboral que não dão origem a
convenções colectivas de trabalho publicadas”, será sociologicamente
compreensível que, na maioria dos casos, as fasquias da informalidade laboral
tendam a situar-se abaixo e não acima da legalidade.

Entre muitas outras dimensões características do cenário contratual do


trabalho em Portugal, destacamos o problema da precariedade e da atipicidade
não apenas pela preponderância que têm vindo a ganhar na última década,
como também pelo seu impacto sociojurídico no apuramento judicial das
circunstâncias envolvidas na produção dos acidentes de trabalho e da
imputação de responsabilidade indemnizatória. De acordo com Fudge e Owens
(apud Ferreira, 2009), os fenómenos supramencionados assumem três
dimensões essenciais: o grau de segurança dos trabalhadores na continuidade
do emprego; o controlo do processo de trabalho que está associado à presença
ou ausência de sindicatos e representantes sindicais envolvidos no controlo
das condições de trabalho, fixação de salários e ritmos de trabalho; o grau de
protecção legal e o nível de rendimentos. De um ponto de vista ideal-típico,
poderemos remeter para universo da precariedade e atipicidade as diferentes
formas de emprego que reúnem o part time, o auto-emprego, o contrato a
termo, o trabalho temporário, trabalho à chamada, trabalho doméstico e
teletrabalho. Estas formas de trabalho, investidas de múltiplas nuances
fácticas, partilham o denominador comum da distância que possuem face ao

25 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

vínculo laboral de uma relação de emprego estandardizada, cujos principais


descritores passam por um contrato a tempo inteiro, celebrado com um único
empregador e por tempo indeterminado.

Freyssinet (1989) fornece uma definição mais ilustrativa: “cada activo


deve ocupar um emprego permanente e a tempo inteiro desde o fim da
escolaridade até à idade da reforma”. Este paradigma de emprego tem vindo a
sofrer uma substituição progressiva, cedendo lugar a novos cenários de
atipicidade que, de acordo com o Word Work Report 2008, ganhou incidência
crescente na sociedade portuguesa nas últimas duas décadas. De acordo com
o Livro Verde sobre as Relações Laborais, tem vindo a verificar-se uma
expansão significativa dos trabalhadores por conta de outrem com contrato
permanente, que, entre 1992 e 2005, passaram de 12,5% para 19,5% dos
trabalhadores por conta de outrem. A própria criação de emprego tende
igualmente a reflectir esta tendência, ideia reforçada pelo Employment in
Europe 2006 e 2009, registando um aumento da preponderância do emprego
precário no volume total de emprego criado. É por importante olhar criticamente
para os indicadores associados ao crescimento económico e à criação de
emprego, sobretudo no que concerne o peso que neles representa a
atipicidade laboral. Como sintetiza Ferreira (2009),

“Ao trabalho atípico encontram-se associadas salários baixos e menos


segurança no emprego; menos acesso a formação e a serviços que as
empresas oferecem aos funcionários, tais como creches; menor cobertura
pelos regimes de segurança social; menos oportunidades de promoção
profissional; e dificuldades no acesso ao crédito à habitação através de
instituições financeiras.”

Este conjunto de implicações sociais da precariedade laboral revelam-se


particularmente relevantes quando procuramos enquadrar as diferentes
dimensões sociológicas que envolvem a sinistralidade e a sua reparação,
conferindo visibilidade a aspectos pouco relevados nas abordagens habituais

26 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

do fenómeno. Embora a flexibilização das relações laborais não se encontre


proporcionalmente distribuída pelos sectores de actividade11, ganhando maior
expressão nos serviços que na indústria transformadora, as novas lógicas de
regulação social e contratual da laboralidade condicionam fortemente a
capacidade ou vulnerabilidade nas respostas desenvolvidas pelas vítimas de
acidentes de trabalho, em função das múltiplas esferas sociais atingidas ou
desestabilizadas.

A testemunhá-lo encontramos a relação directa entre a natureza do


vínculo contratual e as garantias fornecidas aos trabalhadores acidentados. Se
os países do sul europeu concentram taxas mais elevadas de auto-emprego e
trabalho independente sobretudo devido à persistência da actividade
económica agrícola e aos modos de organização, gestão e exploração da
propriedade, não será menos verdade que essas taxas albergam igualmente
aquilo que tem vindo a designar-se por falso trabalho independente, encobrindo
relações de trabalho subordinado e fragilizando os trabalhadores em matéria
fiscal, remuneratória, de protecção social e facilidade de despedimento. Além
disso, como veremos, este desfasamento entre o regime de trabalho formal e
as dinâmicas laborais efectivas constitui uma das grandes controvérsias
sociojurídicas e motivos de litigância no domínio da reparação de acidentes de
trabalho, desocultando, igualmente, os fortes níveis de informalidade na
regulação das práticas laborais portuguesas. Não será por acaso que na
Suécia e na Dinamarca, no extremo oposto, a proporção de trabalhadores
independentes, no cômputo geral do emprego, não ultrapassa os 10%,
contrastando com a Grécia, Itália, Espanha e Portugal, onde o trabalho por
conta própria oscila entre os 20 e os 30% (Employment Outlook, 2004).

11
A cobertura contratual colectiva, tradicionalmente elevada mas em assinalável degradação,
reduziu-se a partir de 2004 mas manteve o predomínio sectorial (Livro Verde sobre as
Relações Laborais).

27 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

No seu estudo Da sociedade precária à sociedade digna: balanço da


evolução social em Portugal, António Casimiro Ferreira sintetiza a evolução da
estrutura da população empregada na última década, destacando algumas
dimensões fundamentais: aumento da proporção de mulheres no mercado de
trabalho (45% em 2000 e 46,2% em 2008); redução da percentagem de jovens
– a que não será alheia a entrada tardia no mercado de trabalho –, a par do
aumento do escalão dos indivíduos com 45 e mais anos e da estagnação do
escalão mais significativo na estrutura do emprego (25 a 44 anos);
terciarização da economia, sendo que os serviços ocupam cerca de 60% da
população empregada. Do ponto de vista da taxa de variação do emprego por
situação na profissão, verifica-se uma redução dos trabalhadores familiares
não remunerados, ao contrário dos trabalhadores por contra de outrem, que
registam uma evolução positiva, associada, em grande medida, à expansão do
emprego feminino. Apesar de apresentar uma trajectória irregular, é ainda
evidenciado um aumento da proporção de trabalhadores por conta própria, com
e sem pessoal.

No quadro do trabalho subordinado, a contratação a termo corporiza as


primeiras tentativas de reformar o modelo clássico do direito do trabalho,
trazendo consigo a flexibilidade e o pluralismo contratual e, portanto, novas
relações de trabalho baseadas no risco e na insegurança no emprego. Na
última década, o peso do contrato permanente regrediu 3 pontos percentuais,
ao contrário do contrato a termo certo que aumentou de 13,7% em 2000 para
18,4% em 2008. Em termos globais, constata-se uma tendência para a

“Estabilidade estrutural dos dois regimes, patente na fixação dos valores em


torno dos 80% no caso dos contratos sem termo e dos 15% no caso dos
contratos sem termo. Todavia, a partir desta data assiste-se a um recuo da
percentagem dos trabalhadores sem contrato a termo ao mesmo tempo que os
contratados a termo ganham relevância.” (Ferreira, 2009: 22)

28 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Para além disso, tem vindo a ser progressivamente reforçada a ideia de


que a estrutura contratual das relações laborais portuguesas tem incorporado
variadas modalidades atípicas de emprego. Acresce que a noção de
atipicidade é ainda susceptível de discussão e ampliação sociológica, pelo
facto de uma parte significativa do emprego existente indiciar fraca
sustentabilidade, o que converte contratos nominais sem termo em contratos
reais a termo relativamente certo12 (Capucha et al, 2002: 21). No referido
estudo comprova-se um crescendo das formas atípicas de emprego (tomando
como indicador os contratos a termo, os contratos de prestação de serviço, o
trabalho sazonal e o trabalho pontual, de acordo com as categorias do Inquérito
ao Emprego do INE), travado entre 2002 e 2004, mas reiniciado a partir desse
último ano. Se em 1998 o emprego não permanente se verificava em 12,3%
dos casos, dez anos depois este valor ascende aos 17,4%. Assiste-se, além
disso, a uma desigual distribuição territorial da atipicidade, tendo maior
expressão em Lisboa, Alentejo e Algarve, apesar da tendência para o seu
aumento ser generalizada às restantes regiões do país.

De um ponto de vista de género, são as mulheres as mais afectadas


pelas modalidades de emprego precárias, atingindo o seu pico estatístico em
2002 com uma percentagem de 23,4%. Embora as mulheres concentrem uma
maior taxa de emprego a tempo parcial (17,2% contra 7,4% nos homens), será
importante sublinhar que, quando comparado com os restantes países sul,
Portugal apresenta níveis de prejuízo feminino muito mais elevados. Num
exercício estatístico mais ousado mas de maior fôlego analítico, que agrega o
trabalho não permanente ao trabalho independente sem pessoas ao serviço e
os contrapõe à contratação sem termo, foi possível traçar um balanço

12
Se é possível constatar a existência de uma evolução indexada do crescimento do emprego
ao crescimento do PIB, há no entanto variações conjunturais importantes no progresso da
estrutura de emprego.

29 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

sociolaboral da estrutura de emprego portuguesa: apesar de alguma oscilação


em meados da década, este indicador agregado atinge o seu valor máximo em
2008. Mas o estudo vai um pouco mais longe, ao problematizar a relação
complexa mas sociologicamente articulada entre a atipicidade laboral e risco de
pobreza, reenviando-nos para um processo longo de degradação da condição
salarial e, com ela, de emergência de tendências sociais fragmentárias de
desafiliação (Castel, 1999). De acordo com os dados do INE para 2008, a taxa
de risco de pobreza situa-se nos 18%. Embora este valor tenha vindo a
decrescer, o estudo de Jorge Caleiras (2008) permite, no entanto, concluir que
o risco de pobreza atinge ainda cerca de 11% da população activa empregada,
o que estará certamente na origem de uma bolsa de trabalhadores pobres 13,
cuja capacidade de resposta em contexto de acidente de trabalho se vê
estruturalmente debilitada: tanto pelo facto de a base salarial, a partir da qual a
indemnização é calculada, ser por si só francamente reduzida, como pelos
custos adicionais da incapacidade física que a reparação laboral não
contempla e que oneram substancialmente as vítimas da sinistralidade e
respectivas famílias.

A activação dos instrumentos de regulação colectiva do trabalho na


transformação das práticas sociolaborais associadas à segurança, higiene e
saúde constituem um bom ponto de partida para compreendermos a
importância que o corpo e a integridade psicofísica dos trabalhadores tem
merecido aos actores negociais na micro economia política laboral. De acordo
com os dados disponibilizados no Livro Verde sobre as Relações Laborais, do
conjunto das convenções apenas dois contratos colectivos dos sectores das
indústrias transformadoras e do comércio, celebrados por associações

13
De acordo com o Relatório da UE The Working Poor in the European Union, os países do sul
da Europa registam, como seria de prever, a maior percentagem de trabalhadores pobres,
sendo que o caso português apresenta 6% de pobres no total dos assalariados (em 1999) e
lidera no número de mulheres pobres.

30 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

sindicais, não regulam matérias com incidência em saúde, higiene e segurança


no trabalho14. Porém, a reparação é matéria ausente. A este propósito, será
importante mencionar o contributo de La Rosa (apud Freire, 2008), pela forma
como problematizou a articulação entre a oposição e a compatibilização de
interesses entre empregador e trabalhador, do ponto de vista da partilha de
resultados e da qualidade do trabalho. O projecto Safety, Prevention and
Quality of Work, desenvolvido no âmbito do programa europeu Leonardo da
Vinci (em Portugal, coordenado por João Freire e Raquel Rego), deu conta das
insuficiências legais e operacionais na implementação destas medidas,
sinalizando um decréscimo da participação dos trabalhadores, intimamente
relacionado com a progressiva externalização dos serviços de higiene e
segurança no trabalho. A obrigatoriedade destes serviços significou uma
oportunidade de negócio nem sempre atenta à educação do comportamento
laboral. A proliferação dos cursos de higiene e segurança no trabalho, embora
tenha permitido um aumento dos profissionais no terreno, certifica muitas das
vezes pessoas cuja preparação e percurso profissional se revelam aquém das
exigências, sobretudo quando os riscos de acidente são particularmente graves
ou recorrentes15. Há, ainda assim, muita heterogeneidade na actividade
económica portuguesa.

14
A generalidade das convenções tem referências genéricas ao dever dos empregadores
assegurarem aspectos preventivos, bem como o dos trabalhadores cumprirem as disposições
legais, com incidência sobre equipamentos de protecção individual, medidas especiais em
relação a substâncias ou agentes com particular perigosidade, exames de saúde, medidas de
higiene, primeiros socorros e prevenção de alcoolemia em 43 convenções. Quanto às
estruturas de prevenção, destaca-se a existência de serviços e encarregados de saúde, de
segurança e higiene, bem como mecanismos de informação, consulta e formação.
Relativamente aos quadros legais que regulam as obrigações empresariais na organização dos
serviços de segurança e saúde no trabalho, cf. Directiva 89/391/CEE e Lei n.º102/2009, de 10
de Setembro.
15
Neste sentido um dos nossos entrevistados referiu o seguinte: “Os cursos de higiene e
segurança de trabalho (CAP para licenciados) não são consistentes. Se em grandes obras não
são estes profissionais os contratados, em pequenas obras aparece um licenciado em Latim
com o CAP 5 que é o responsável. A complexidade técnica de um pontão não é diferente da

31 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

A estrutura empresarial ou o mundo social das empresas constitui uma


dimensão sociológica que não pode ser negligenciada na compreensão das
dinâmicas sociolaborais da sociedade portuguesa contemporânea. Nesse
sentido, não será novidade a constatação de que o heterogéneo tecido
empresarial português é sobretudo composto por pequenas e médias
empresas, com importância económica capital devido, entre outros factores, ao
volume de emprego que representam. Se na UE as micro, pequenas e médias
empresas corporizam a grande maioria da actividade económica, sendo
portanto responsáveis por cerca de 65 milhões de empregos, em Portugal esta
realidade é ainda mais acentuada: em 2006, 67,1% das 3 309 673 empresas
activas possuíam uma dimensão reduzida, não ultrapassando os 5
trabalhadores. Mais: 85% das empresas empregam até 9 trabalhadores
(Ferreira, 2009: 15) e, de acordo com o Livro Verde sobre as Relações
Laborais, as empresas até 49 trabalhadores – 97,7% das empresas –
empregavam, em 2003, cerca de 57% do emprego. Porém, os problemas
enfrentados pelas empresas cujos proprietários-dirigentes e restantes
trabalhadores apresentam níveis elevados de qualificação técnica e gozam de
um denso capital social, institucional e humano são bastante diferentes dos que
atravessam as unidades empresariais onde os patamares mínimos de
escolaridade são regra e a versatilidade e capacidade de modernização e
inovação são francamente limitadas (Guerreiro, 2001: 17). Nesse sentido, a
formação económica portuguesa aponta para um

“constrangimento no mercado de trabalho resultante do fraco potencial de


adaptabilidade e de inovação, do recrutamento centrado em pessoal pouco
qualificado, das reduzidas possibilidades de formação profissional e dos custos

ponte Vasco da Gama, a dimensão é que é diferente. Isto é indutor de ineficácia e de


acidentes.” (Ent. 32)

32 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

de oportunidade que se traduzem numa elevada taxa de mortalidade infantil


das empresas.” (Ferreira, 2009: 27)

Esta perspectiva converge com a análise do Observatório do Emprego e


Formação Profissional (2001: 54), quando nos dá conta da insuficiência da
qualificação tanto dos trabalhadores, como dos empresários nas pequenas e
médias empresas portuguesas, com clivagens evidentes entre sectores de
actividade. Apesar do apontado crescimento das exigências de mecanismos e
recursos humanos dedicados à prevenção de acidentes de trabalho, os níveis
de qualificação são factores decisivos, tanto do ponto de vista do sucesso da
prevenção da sinistralidade como da capacidade de proceder a uma reparação
atenta aos direitos dos trabalhadores e sociolaboralmente responsável e
inclusiva.

De acordo com os alertas sistematicamente enviados pelos parceiros


sociais ao sistema político, oriundos sobretudo das organizações sindicais, as
chamadas microempresas, cuja situação legal é muitas vezes duvidosa, são
aquelas onde mais facilmente se identificam irregularidades estruturais no
cumprimento das regras de segurança. São empresas que vivem no limite da
sua capacidade de sobrevivência, com práticas salariais abaixo daquilo que os
contratos colectivos exigem. São empresas fortemente dependentes e não
raras vezes exploradas a montante por outras organizações de maior estatura
económica e empresarial.
No sector da construção civil, as baixas qualificações dos trabalhadores
face ao risco e às funções desempenhadas são um dos factores mais
problemáticos, sobretudo quando associado a níveis elevados de mobilidade
dos trabalhadores, desfamiliarizando-se, com frequência, do seu local de
trabalho: ainda que a tarefa seja a mesma, a obra nunca é igual. As cadeias de
subcontratação agravam, para além disso, a dificuldade na afectação da
responsabilidade perante a segurança e perante a sinistralidade. Em grandes
obras públicas e privadas, onde é reconhecida a qualidade e competência dos

33 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

principais intervenientes, assiste-se a toda uma economia semi-regulada que a


suporta, patrocinada muitas vezes pelo Estado, nomeadamente à escala
local16. Esta precariedade empresarial é impeditiva da fidelização dos
trabalhadores, subempreiteiros e agentes em geral, colocando obstáculos à
consolidação de uma cultura de interconhecimento e segurança. Mas, o sector
da construção civil exibe ainda contornos específicos:

“Em conjunturas económicas favoráveis, o elevador social, isto é, a velocidade da


promoção, permite dois ou três saltos na cadeia de forma muito rápida e
desqualificada.” (Ent. 32)

Perante este cenário, as contribuições fornecidas pelas novas teorias do


risk management (Areosa, 2003: 42) ou do disability management (Corbett,
2004; Sousa, 2005), enquanto conjunto de princípios, métodos, técnicas,
ferramentas e procedimentos adoptados pelas empresas com o objectivo de
melhor prevenir o acidente e melhor integrar e reabilitar o sinistrado, revelam-
se inoperantes e eventualmente ficcionais.

Um estudo do Centro de Reabilitação Profissional de Gaia (2005) sobre


Risco Profissional: Factores e Desafios procura sistematizar os factores de
risco mais potenciadores da sinistralidade laboral, onde se destacam os
agentes físicos, químicos, biológicos, as características técnicas e específicas
do posto e do local de trabalho, os equipamentos, a movimentação de cargas,
a postura ergonómica dos trabalhadores, o enquadramento psicossocial
(violência no trabalho, intimidação ou assédio moral, discriminação, relações
hierárquicas, factores relacionados com o stress, consumo de álcool e drogas)
e ainda as características sociográficas do trabalhador (género, idade e tempo

16
De acordo com um dos nossos entrevistados (Ent. 32), soterramentos e quedas em altura
ocorrem sobretudo em edifícios de pequeno porte.

34 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

de trabalho). Mas do ponto de vista das novas dinâmicas laborais e da sua


relação com a sinistralidade, os factores de risco organizacionais merecem
particular atenção.

A precariedade dos vínculos laborais, a atipicidade e a organização mais


flexível do trabalho apresentam, como temos procurado avançar, uma
correlação negativa com a saúde no trabalho, o que se justifica tanto pelos
sentimentos generalizados de insatisfação, pelo menor envolvimento dos
trabalhadores na definição nos processos internos e portanto pela diminuição
dos comportamentos de segurança: “os trabalhadores temporários, sejam eles
contratados a prazo, ou através de agências de emprego temporário, referem
sentir-se mais expostos aos factores de risco que os trabalhadores
permanentes” (Sousa et al, 2005: 39). Não será por acaso que a probabilidade
de vitimação laboral sobe quando o tempo de trabalho numa organização é
inferior a dois anos. Além disso, como reforça e conclui este estudo,

“Grande parte dos acidentes acontecem com trabalhadores recém-admitidos,


temporários, subcontratados ou em part-time, salientando a importância da
aquisição de experiência concreta da situação em que se trabalha, sendo esta
uma aquisição incompatível com a nova política de gestão de recursos
humanos que aposta essencialmente nas aparentes vantagens da contratação
a curto prazo” (2005: 29).

A Agência Europeia para a Segurança e a Saúde no Trabalho (1999),


designadamente o seu relatório New forms of contractual relationships and the
implications for occupational safety and health, tem vindo igualmente a alertar
para uma transferência de risco para os trabalhadores subcontratados ou
contratados temporariamente, processo decorrente, tanto da relativa
desprotecção social e laboral destes trabalhadores, como da intermitência da
sua participação no mercado de trabalho, o que não permite uma incorporação
efectiva dos mecanismos e da pedagogia preventiva nem, em nosso entender,

35 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

de uma cultura de trabalho capaz de responder devidamente à sinistralidade


em matéria de reparação e reintegração profissional.

Mas, se a gestão flexível do trabalho diz respeito às modalidades


contratuais, não deixa também de se reportar ao contexto organizacional e ao
grau de controlo do trabalhador sobre o seu próprio trabalho, isto é, os níveis
de autonomia e influência na execução das tarefas que lhe são conferidos,
envolvendo a administração e os métodos de trabalho, ritmo, horas, intervalos,
pausas, folgas e férias. O cansaço e a complexidade afectos às tarefas
cumpridas e à performance do trabalhador são ainda aspectos a realçar,
sobretudo, pelos efeitos físicos e mentais provocados, podendo estimular
situações de stress.

A importância de uma gestão eficaz e adequada das pausas no


continuum laboral é, portanto, amplamente reconhecida (Caetano e Vale, 2002)
– tanto pela sua função preventiva de acidentes como, inclusivamente, ao nível
da manutenção dos padrões de produtividade – embora continue pouco
concretizada no contexto empresarial português. O ponto de vista das
desigualdades sociais permite-nos ainda um olhar sociologicamente mais
lúcido sobre as dinâmicas de poder e hierarquia no contexto da laboralidade, o
que, como veremos, poderá reflectir-se no apuramento da responsabilidade
perante o sinistro e na garantias indemnizatórias do trabalhador vítima de
acidente de trabalho.

“Quando o ritmo de trabalho de realização de uma tarefa é imposto, por uma


máquina, por objectivos de produção, por exigências externas, por colegas ou
mesmo pelo controlo directo do chefe, o trabalhador não pode regular o seu
trabalho, aumentando a probabilidade de ocorrência de acidentes. O
trabalhador encontra-se nesta situação face a um conflito de interesses,
caracterizado pela dificuldade em gerir e compatibilizar as normas e exigências
de produção e as normas de segurança “ (Sousa et al, 2005: 40).

36 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Se a dimensão das empresas – por diferentes motivos, como limitações


financeiras, cultura laboral e reduzida análise de riscos – é um dos factores de
risco mais evidenciados pelos números, há ainda outra ordem de factores
potenciadores do risco de acidente de trabalho: a rotatividade cíclica dos
postos de trabalho e os seus efeitos despersonalizadores da actividade, as
novas tecnologias de informação e comunicação (sobretudo em doenças
profissionais), o incentivo remuneratório, as exigências de produtividade ou a
obrigação de resultados e a impossibilidade de discutir condições de trabalho e
mudança organizacional (2005).

3. OS ACIDENTES DE TRABALHO EM PORTUGAL: UM


RETRATO SOCIOLÓGICO

“Quem se debruçar sobre as estatísticas respeitantes aos acidentes e doenças


do trabalho dolorosamente impressionado. Só casos de morte participados aos
tribunais têm sido cerca de 500 por ano. Também em cada ano não deve ser
inferior a 3 000 o total dos incapacitados permanentes derivados de sinistros no
trabalho, nem a 300 000 o número de desastres que no exercício das
actividades profissionais estão a verificar-se.”

À vista desarmada esta constatação poderia muito bem ser resultado de


uma análise dos dados mais recentes sobre a sinistralidade laboral em
Portugal. Porém, meia década a distância dos dias de hoje. Pertence ao

37 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

diploma que prorrogou uma campanha nacional de prevenção de acidentes de


trabalho iniciada em 196017, dando conta da extensão e gravidade de um
problema para o qual ainda se esboçavam respostas preventivas e reparatórias
ainda incipientes e embrionárias (Pereira, 1961). As últimas estatísticas do
Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho (2010)
apontam para um total de 237 392 acidentes de trabalho ocorridos no ano de
2006, dos quais resultaram 253 mortes. Embora a fiabilidade dos dados iniciais
seja substancialmente reduzida face à segurança estatística que estes últimos
nos garantem, não é, porém, negligenciável a relativa proximidade existente
entre eles. Embora com oscilações significativas ao longo das cinco décadas
passadas e das grandes transformações operadas no mundo social e laboral,
as cifras negras dos acidentes de trabalho são matéria merecedora de urgente
aprofundamento e discussão sociológica.

As estimativas da OIT apontam para a ocorrência anual de cerca de 270


milhões de acidentes, sendo que o número de mortos no trabalho ultrapassa os
2 milhões. Conjuntamente com 160 milhões de doenças profissionais, os
custos económicos gerados pela sinistralidade laboral excedem os 4% do PIB
mundial. No contexto da UE, a Agência Europeia para a Segurança e Saúde no
Trabalho aponta para a morte de cerca 9 000 pessoas na sequência de
acidentes de trabalho. Num tecido económico-empresarial composto por 19
milhões de pequenas e médias empresas que empregam quase 75 milhões de
pessoas, não será novidade o facto de serem estas a concentrar 82% das
lesões relacionadas com o trabalho, bem como 90% dos acidentes mortais.
Como veremos, esta realidade ganha proporções agravadas no contexto
português, tanto pela preponderância das pequenas empresas na provisão de

17
Portaria n.º17 668, de 11 de Abril.

38 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

emprego e na composição da actividade económica, como devido aos padrões


de práticas e relações laborais que se lhe encontram associados.

É importante não esquecer as características específicas da condição


semiperiférica portuguesa, que incentiva a persistência da informalidade nas
dinâmicas laborais, bem como a discrepância entre os quadros legais e as
práticas sociais a que já aludimos. Nesse sentido, as estatísticas da
sinistralidade padecem de um viés de estatura variável, relacionado com a sub-
notificação dos acidentes de trabalho ou com a ausência de contrato de seguro
que cubra o sinistro, o que extravasa a informação estatística que as fontes
oficiais são capazes de fornecer.

De acordo com a OIT, a cada minuto, morrem três pessoas no mundo


vítimas de condições de trabalho inapropriadas, o que ganha clarividência
quando confrontado com os dados do Social Watch (2005: 20), em que a cada
minuto, morre uma pessoa no mundo devido a violência armada. Em 2001, 2
milhões de pessoas morreram devido a acidentes de trabalho e doenças
profissionais (ILO, 2004). Em 2002, 559 mil pessoas terão morrido no mundo
devido a conflitos armados (Report on World Social Situation, 2005: 91-94).

Analisando distribuição da sinistralidade laboral por actividade


económica em Portugal no ano de 2006 (de acordo com as estatísticas oficiais
mais recentes), é desde logo possível verificar que as indústrias
transformadoras concentram cerca de 32% dos acidentes de trabalho
sinalizados, constituindo o sector com maior expressão neste domínio. Dentro
dele, o subsector metalúrgico de base e produtos metálicos lideram na
incidência, registando a ocorrência de 17 197 acidentes, seguindo-lhe as
indústrias alimentares, das bebidas e do taco (8 611) e o fabrico de produtos
minerais não metálicos (7 457). Ao todo, em zona industrial, foram 99 261 os
acidentes verificados em 2006. A construção civil é a segunda actividade
económica que, comportando maior exposição ao risco profissional, apresenta

39 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

níveis muito elevados de sinistralidade, tendo ocorrido ao longo do ano 51 790


acidentes, correspondentes, no cômputo geral, a 22%.

O facto de estes dois sectores de actividade concentrarem mais de


metade do número total de acidentes de trabalho no contexto económico-
laboral português permite-nos convergir com a hipótese da sectorização do
risco (Lima, 2004), isto é, com a ideia de que a natureza específica, não
apenas das práticas, mas igualmente das relações de trabalho prevalecentes,
são geradores privilegiados de risco e sinistralidade laboral18. Como sublinha a
autora, “essas especificidades têm a ver não apenas com aspectos técnicos,
mas também com aspectos sociais e tradições muito fortes” (2004: 5).

Nesse sentido, Baganha e Cavalheiro (2002) apontam, a título de


exemplo, para alguns factores de potenciação do risco que caracterizam a
construção civil portuguesa: grande deslocação/movimentação de mão-de-
obra, diversidade de actividades e profissões, contingências e alterações
permanentes dos locais de trabalho, o facto de ser um sector povoado por
lógicas de subcontratação e por pequenas empresas em situações de ampla
informalidade e ilegalidade, os baixos níveis de qualificação de empregadores

18
No desenvolvimento das respectivas actividades profissionais, os trabalhadores encontram-
se expostos a determinados factores de risco que podem ter influência, quer na saúde, quer na
integridade física. Tratando-se da execução de determinadas tarefas, a exposição aos
respectivos riscos profissionais poderá ter consequências mais gravosas, pelo que, nestes
casos, haverá que abordar a protecção dos trabalhadores relativamente aos factores de risco
de forma ainda mais aprofundada. A Lei nº 102/2009, de 10 de Setembro considera de risco
elevado as seguintes actividades: trabalhos em obras de construção, escavação,
movimentação de terras, túneis, com riscos de quedas de altura ou de soterramento,
demolições e intervenção em ferrovias e rodovias sem interrupção de tráfego; actividades de
indústrias extractivas; trabalho hiperbárico; actividades que envolvam a utilização ou
armazenagem de quantidades significativas de produtos químicos perigosos susceptíveis de
provocar acidentes graves; fabrico, transporte e utilização de explosivos e pirotecnia;
actividades de indústria siderúrgica e construção naval; actividades que envolvam o contacto
com correntes eléctricas de média e alta tensão; produção e transporte de gases comprimidos,
liquefeitos ou dissolvidos, ou a utilização significativa dos mesmos; actividades que impliquem
a exposição a radiações ionizantes; actividades que impliquem a exposição a agentes
cancerígenos, mutagénicos ou tóxicos para a reprodução; actividades que impliquem a
exposição a agentes biológicos do grupo 3 ou 4; trabalhos que envolvam risco de silicose.

40 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

e empregados e a imigração irregular em condições de sublaboralidade e


subcidadania. Para além disso, Pinto e Queiroz (1996) reportam-se ainda ao
facto de este sector possuir um dos mais antigos sistemas de formação,
baseado num modelo de transmissão de técnicas e saberes pautada por uma
pedagogia personalizada e autoritária. Como veremos, estas características
particulares tendem a reflectir-se em três patamares distintos mas interligados:
na dificuldade de implementação de medidas preventivas, no volume de
acidentes de trabalho registado e na qualidade e processualidade da respectiva
reparação.

Uma caracterização estrutural dos acidentes de trabalho requer um olhar


atento sobre a distribuição dos acidentes de trabalho por actividade económica.
A partir da série cronológica de 2000 a 2006, identificamos uma tendência
aparentemente contraditória: por um lado, e ainda que continuem a
testemunhar as cifras mais elevadas de sinistralidade, assistimos a um
decréscimo generalizado dos acidentes nas indústrias transformadoras (de 92
071 em 2001 para 74 698 em 2006), a que não será alheia a variabilidade do
dinâmica expansiva e retractiva da economia e da sua relação directa e
indirecta com este sector de actividade; por outro lado, um aumento global do
volume de acidentes de trabalho sinalizados nesse período, traduzido na
progressão dos 234 192 acidentes ocorridos em 2000 para 237 392 em 2006.

Os acréscimos mais acentuados, compensando a tendência oposta na


indústria, verificam-se em actividades que abrangem práticas profissionais
muito variadas e que se encontram agregadas e classificadas como
“imobiliárias, alugueres e serviços prestados às empresas”, nas quais se
verifica um aumento absoluto de 4 425 acidentes de trabalho (9 981 em 2000,
sucessivamente aumentados para 14 406 em 2006). Outro acréscimo sem
precedentes verifica-se nas actividades relacionadas com o sector da saúde e
acção social, que viram as cifras da sinistralidade aumentar de 3 991 em 2000
para 8 629 em 2006.

41 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

O cenário estatístico da mortalidade em contexto laboral evidencia uma


tendência distinta. Embora a contabilização do número de mortes emergentes
de um acidente de trabalho seja particularmente difícil e aquilo que é
considerado um acidente pode redundar, directa ou indirectamente, numa
morte19. Em 2000 verificaram-se 368 mortes no trabalho, valor que tem vindo a
ser reduzido nos últimos anos, atingindo um valor de 253 em 200620. A
construção civil é o sector de actividade mais destacado. Durante a primeira
metade da década de 2000 o número de mortes registadas oscilou entre os
100 e os 139, correspondendo a cerca de um terço do total dos acidentes
mortais no trabalho. As indústrias transformadoras encontram-se em segundo
lugar na incidência da mortalidade laboral (83 vítimas em 2006), seguidas do
sector dos transportes e comunicações (33) e das actividades imobiliárias,
alugueres e serviços prestados às empresas, que exibem forte variabilidade
neste domínio.

Para além da sectorização do risco por actividade económica e dos seus


reflexos nos indicadores de acidentes (mortais e não mortais) de trabalho, a
dimensão das empresas constituiu um factor determinante da maior ou menor
propensão para a sinistralidade laboral. A análise dos dados mais recentes
permite-nos desde logo concluir que a grande maioria dos acidentes ocorre no
seio de empresas de dimensão reduzida. Unidades compostas por 1 a 9
pessoas apresentam os níveis mais elevados, vitimando, em 2006, 63 195
trabalhadores (75 dos quais mortalmente), isto é, 27% do total de acidentes
ocorridos nesse ano.

19
Neste sentido vai também o nosso trabalho de campo qualitativo (Ent. 25).
20
Dados mais recentes da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) dão-nos números
mais actualizados sobre os acidentes que foram objecto de inquérito, embora sejam, por esse
motivo, excessivamente parcelares.

42 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Se ao aumento da dimensão empresarial não se encontra associada


uma progressão proporcional da sinistralidade, a distância estatística das
pequenas empresas face a outros contextos laborais que empregam um maior
número de pessoas é flagrante, o que se, por um lado, se articula com a
preponderância económica destas empresas na provisão de emprego, por
outro também nos dá conta das especificidades da cultura laboral relacionadas
com este tecido empresarial e do seu carácter particularmente vulnerável ao
risco e à sinistralidade. Do ponto de vista regional, a zona Norte é,
comparativamente, aquela que exibe os números mais significativos, que
ultrapassam os 40% no quadro da incidência global da vitimação corporal no
trabalho21.

Centrando-nos no perfil sociográfico dos sinistrados, é pertinente a


convocação do retrato-robot da vítima de acidentes de trabalho, traçado por
Teresa Maneca Lima:

“Podemos afirmar que os trabalhadores com idades compreendidas entre os


25-44 anos, e com mais de 65 anos, na sua maioria homens, com poucas
qualificações e habilitações escolares e trabalhando em sectores de actividade
mais tradicionais (agricultura, construção civil e indústria de transformação) têm
maiores probabilidades de serem vítimas de um acidente de trabalho.” (2004:
4)

Se observarmos os dados mais recentes, é possível reforçar essa


tipificação, tendo em conta os diferentes domínios a que se reporta. É
inequívoco o facto de serem os homens quem mais sofre acidentes de
trabalho, correspondendo a 78% dos casos em 2006. No entanto, o aumento
progressivo da vitimação feminina (um crescendo de 43 420 acidentes em

21
Os distritos do Porto, Lisboa, Braga e Aveiro registaram, em 2006, 50 304, 42 306, 22 067 e
27 620 acidentes de trabalho, respectivamente, perfazendo, em conjunto, 60% do total de
sinistros ocorridos nesse ano.

43 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

2000 para 52 628 em 2006) merece realce a caracterização das tendências


objectivas da sinistralidade laboral na sociedade portuguesa. Este facto não
será alheio ao alargamento da entrada de mulheres no mercado de trabalho,
(se em 2000 representavam 45%, em 2008 esse valor ascende aos 46,2%).

Do ponto de vista etário, o intervalo dos 25 aos 54 anos diz respeito a


54% dos acidentes de trabalho verificados no ano de 2006, o que se encontra
conformado com o perfil etário da população empregada. Há, porém, alguns
aspectos que merecem atenção: por um lado, a redução significativa do
número de acidentes de trabalho sofridos por menores de 18 anos, ocorrências
que em 2000 se fixavam nos 5 074 e que progressivamente têm vindo a baixar,
registando-se, em 2006, 1 689 acidentes – o que naturalmente não reduz a
importância do problema. Por outro, os acidentes mortais exibem maior
incidência na faixa etária entre os 45 e os 54 anos, o que significa que,
havendo menos acidentes, estes tendem a revestir-se de maior gravidade.
Neste sentido, é relevante sublinhar que a eficácia dos mecanismos de
prevenção e segurança no trabalho poderá revelar fragilidades adicionais em
gerações de trabalhadores mais velhos, o que requer metodologias de
intervenção sociolaboral adequadas e flexíveis.

Os dados mais recentes do Ministério do Trabalho e da Solidariedade


Social mais recente descrevem ainda a sinistralidade laboral dos últimos anos
do ponto de vista da nacionalidade do sinistrado. Em 2006 foram 19 450 as
vítimas estrangeiras de acidentes de trabalho em Portugal, das quais
resultaram 14 mortes. 14% dos imigrantes acidentados são de origem brasileira
e 7% de origem comunitária.

Simultaneamente, na categoria outro encontramos números expressivos


de acidentados laborais (com variações assinaláveis no período em análise),
culminando, em 2006, com um total de 4 789. A ocultação da nacionalidade
das vítimas não impede, em todo o caso, de reflectir sobre as tendências da

44 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

última década dos fluxos migratórios intraeuropeus e da inserção laboral da


população imigrante, que têm vindo a apontar para a chegada de um volume
significativo de mão-de-obra dos países da ex. URSS, com particular relação
com o sector da construção civil. Os trabalhadores angolanos e cabo-verdianos
registam igualmente números assinaláveis de vitimação, seguindo-lhes as
restantes ex-colónias com níveis inferiores.

Finalmente, será ainda importante destacar a existência de 7 835


sinistrados cuja nacionalidade é ignorada, o que obstaculiza uma análise mais
fina da especificidade migratória e da respectiva inserção socioprofissional no
âmbito da sinistralidade laboral. Sendo particularmente problemática a relação
entre imigração e sinistralidade, consideramos ser muito difícil que as
estatísticas espelhem as ocorrências efectivas, na medida em que a
indocumentação, as redes de tráfico laboral e a vulnerabilidade social dos
sinistrados imigrantes constituem fortes obstáculos à justiça reparatória e à
institucionalização do conflito.

No que diz respeito ao panorama dos acidentes de trabalho em função


da situação profissional do trabalhador vitimado, o crescimento global da
sinistralidade é testemunhado pelo aumento do número de acidentes nos
trabalhadores por conta de outrem (uma alteração de 189 488 em 2000 para
207 757 em 2006), o que faz jus à prevalência desta condição laboral no
contexto dos sectores de actividade mais afectados. Todavia, é contínua a
progressão do número de sinistros em trabalhadores independentes ou
empregadores, partindo em 2000 com 18 752 acidentes e chegando a 2006
com um total de 24 521, o que significa uma subida do seu valor proporcional
de 8% (2000) para 10% (2006). Em ambos os casos, o número de vítimas
mortais tem vindo a ser reduzido. Quanto aos restantes regimes laborais
(trabalhador familiar não remunerado, estagiários e praticantes/aprendizes),
sendo menos frequentes no cômputo geral do emprego, registam igualmente
uma quebra ao longo dos últimos anos.

45 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Do ponto de vista dos grandes grupos de profissões, o aumento da


sinistralidade laboral é transversal a todos eles, excepto nos operários, artífices
e similares, cujo pico foi atingido em 2001 com um total de 108 595 acidentes
de trabalho, reduzidos progressivamente para 97 550 em 2006. É, ainda assim,
o grupo profissional com maior incidência de acidentes, tal como de mortes no
trabalho em 2006 (86 de um total de 253).

Em contrapartida, pessoal dos serviços e vendedores tem sofrido um


processo idêntico, mas em sentido acentuadamente ascendente: se em 2000
eram 15 744 as vítimas de acidentes de trabalho, em 2006 esse número
encontra-se aumentado em 60%, assentando em 26 183 sinistros. Os quadros
superiores da administração pública e de empresas registam também uma
elevação relativamente continuada das cifras, tal como os especialistas de
profissões intelectuais e científicas (de 7 231 para 9 803 e de 1 549 para 3 257,
respectivamente).

O facto de se tratar de actividades profissionais com um nível reduzido


de exposição ao risco obriga-nos a reforçar a ideia de que o caracterização de
um acidente de trabalho abrange situações in itinere, isto é, acidentes de
viação que ocorrem em contexto de trabalho ou nos percursos rodoviários que
se lhe encontram associados. Embora não disponhamos de dados seguros
sobre a percentagem de acidentes laborais in itinere, será sociologicamente
realista presumirmos que uma parte importante destes acidentes ocorre nestas
circunstâncias. A esse propósito, é de 15 636 o número de acidentes de
trabalho que se sucederam em local público no ano de 2006. Ainda assim, sob
a especificação local de actividade terciária, escritório, entretenimento e
diversos encontramos cifras relevantes relativas à sinistralidade laboral, que se
em 2000 se situavam nos 26 436 acidentes, seis anos depois ficam próximas
dos 35 000 acidentes.

46 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

O apuramento e a notação de dados relativos à actividade física que se


encontra na origem dos acidentes de trabalho é uma opção no plano dos
descritores estatísticos oficiais a que apenas se deu início em 2005, o que nos
impossibilita uma análise das tendências verificadas neste domínio. Em todo o
caso, é possível afirmar que o trabalho com ferramentas de mão (60 563
acidentes), a manipulação de objectos (37 088 acidentes) e o transporte
manual (49 136 acidentes) são aquelas actividades que mais provocam lesões
físicas nos trabalhadores, o que explica o facto de as extremidades superiores
constituírem a parte do corpo mais atingida (em 35% dos casos). Já no plano
dos acidentes mortais, é a condução/presença a bordo de um meio de
transporte ou equipamento de movimentação que gera um maior número de
sinistros, tendo-se registado 96 em 2005 e 77 em 2006. O que é, de resto,
conforme à conclusão de que a perda total ou parcial de controlo de máquina
ou meio de transporte se assume como causa maior de mortes e acidentes de
trabalho: 107 e 67 520, respectivamente.

O movimento do corpo sujeito a constrangimento físico, sobretudo


conduzindo a lesão interna, regista igualmente números preocupantes, embora
sem provocação de mortes. Já o esmagamento contra objectos imóveis lidera
as cifras no que concerne a forma de contacto causadora de acidente de
trabalho, tal como o constrangimento físico ou psíquico do corpo e a pancada
por objecto em movimento, que, na sua globalidade, representam 70% dos
casos e, em 2006, registaram 153 mortes. Segue-se o contacto com agente
material cortante, com um número de acidentes laborais que ascende aos 37
097 nesse mesmo ano.

Do ponto de vista dos efeitos corporais da sinistralidade haverá duas


ideias a destacar: por um lado, o facto de serem 36 686 os trabalhadores
atingidos directamente na cabeça (74 dos quais morreram na sequência desse
acidente) é indiciário da particular vulnerabilidade corporal para que este
problema remete; por outro, embora as feridas, lesões superficiais,

47 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

deslocações, entorses, distensões, concussões e lesões internas representam


69% dos danos causados aos sinistrados, o facto de em 2006 mais de 10 000
trabalhadores terem sofrido fracturas, mais de 5 000 queimaduras,
escaldaduras e congelações e cerca de 4 000 choques, no contexto da sua
actividade laboral, não deixa projectar um cenário preocupante perante um
bem fundamental dos cidadãos que é a sua integridade corporal, a que nem
sempre corresponde proporcional sensibilidade no debate público.

Atentemos agora nas consequências laborais dos acidentes de trabalho,


para, posteriormente, nos determos nos respectivos custos económicos. Se
27% dos acidentes não provocaram baixa profissional, isto é, não obrigaram à
ausência do local de trabalho e portanto não tiveram impacto na assiduidade
do trabalhador, 29% requeram um período de tratamento e recuperação cuja
duração vai até duas semanas, em consequência da incapacidade absoluta a
que ficaram sujeitos. Esta realidade ascende aos 36% para os casos que
tomaram até três de absentismo, sendo cerca de 20 000 o número de
sinistrados cuja ausência do local de trabalho levou mais dias. No cômputo
geral, no ano de 2006, foram perdidos 7 082 066 dias de trabalho, o que sendo,
naturalmente, lesivo para os sinistrados, não deixa de constituir um prejuízo
significativo para a actividade económica, sobretudo quando 2 145 554 desses
dias dizem respeito a acidentes ocorridos em pequenas empresas que
empregam entre 1 e 9 trabalhadores e cuja escala se traduz numa afectação
económica incomparável.

Quanto ao sector de actividade com mais dias de trabalho perdidos na


sequência de um acidente laboral, as indústrias transformadoras e a
construção civil lideram, naturalmente, a estatística, com perdas na ordem dos
2 e dos 1,8 milhões de dias, respectivamente, sendo que, numa óptica
panorâmica, o número de dias perdidos tende a reflectir a incidência geral da
sinistralidade, acrescido da gravidade que se lhe encontra associada (matéria
em relação à qual se evidenciam o esmagamento e o constrangimento físico do

48 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

corpo geradores mais frequentes da lesão). Lesões nas mãos, braços, pernas
e pés são aquelas que custam sistematicamente mais dias ao trabalho: ao
todo, terão sido 4828136 no ano de 2006. Finalmente, distribuindo as perdas
por escalões diários, é desde logo assinalável que 33% dos acidentes de
trabalho comprometem mais se seis meses, o que é um bom testemunho da
sua gravidade ou da dificuldade/morosidade verificada na recuperação
funcional do sinistrado.

Embora seja rara, se não inexistente, uma avalição cuidadosa do


impacto económico, social e pessoal dos acidentes de trabalho junto do próprio
sinistrado, a análise dos seus custos financeiros tem alguma tradição nos
estudos empresariais. A determinação dos custos directos e indirectos com a
sinistralidade no trabalho é um exercício que não é novo na literatura
económica, sobretudo com o objectivo de visibilizar e contabilizar estes últimos,
de forma a compreender a sua preponderância no balanço geral do impacto
económico dos acidentes (Heinrich, 1959; Bird, 1966; Fletcher e Douglas,
1970; Andreoni, 1998). Já a introdução de uma metodologia que envolva os
custos segurados e não segurados e um sistema de classificação adequado
deve-se sobretudo a Simonds et al (1978).

Segundo dados da Agência Europeia para a Segurança e Saúde no


Trabalho (apud Rikhardsson, 2003), dos cerca de 4,6 milhões de acidentes de
trabalho estimados para o início da última década resultavam 146 milhões de
horas de trabalho perdidas, correspondentes a um valor entre 2,6 e 3,8% do
Produto Bruto Europeu. Num estudo conduzido por Miller e Galbraith em 1995
(apud Almeida, 2007) sobre as consequências económicas dos acidentes de
trabalho nos EUA, tomaram-se em conta os custos médicos ou primeiros
socorros, salários, custos administrativos, custos legais, custos originados pelo
desmembramento de postos de trabalho e custos originados pela perda de
qualidade de vida do sinistrado, o que rendudava numa média anual de 127 mil
milhões de dólares. Já de acordo com o Health and Safety Executive (2002), no

49 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Reino Unido, entre 5% a 10% do lucro bruto de toda a actividade comercial era
afecto à cobertura dos custos da sinistralidade laboral. E como recupera
Ricardo Almeida na sua Análise Económica da Sinistralidade Laboral (2007),
revela-se cada vez mais

«inaceitável que sejam os contribuintes a pagar os tratamentos médicos


dos sinistrados em ambiente laboral, apenas porque as entidades
empregadoras falham largamente na tomada de medidas que assegurem a
integridade da sua força de trabalho» (Barnes apud Paton, 2004).

O Livro Verde sobre a Organização das Actividades de Segurança e


Saúde no Trabalho, publicado pelo Instituto de Desenvolvimento de Inspecção
das Condições de Trabalho, estima que os acidentes de trabalho custaram, em
1994, cerca de 600 milhões de contos. Para o mesmo período, o Instituto de
Seguros de Portugal acusava gastos com acidentes de trabalho superiores a
55 milhões de contos. Já de acordo com o Relatório produzido pelo Bureau
Internacional do Trabalho (BIT) da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho 2008, os custos
económicos globais decorrentes dos acidentes de trabalho e doenças
profissionais totalizam cerca de 4% do Produto Interno Bruto mundial, isto é,
um valor 20 vezes superior ao destinado à ajuda oficial ao desenvolvimento.

Na óptica das empresas, a perda de serviços, os custos da litigância, os


atrasos no cumprimento de compromissos, a queda na produtividade e o
impacto negativo na motivação dos trabalhadores constituem alguns dos
efeitos significativos decorrentes da sinistralidade laboral (apud Sousa, 2005:
19). A perda reputação das empresas é ainda um elemento a ter em conta,
sobretudo face às novas exigências e classificações no quadro da
responsabilidade social das empresas.

O Health and Safety Executive (1993) avança com uma metodologia de


cálculo, já experimentada no Reino Unido, que envolve como critérios de

50 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

apuramento os custos imediatos com os acidentes, a investigação dos


acidentes, a recuperação da produtividade perdida, os custos com a força de
trabalho, sanções e penalidades e acções para garantir os compromissos
assumidos. Andreoni (1998) alerta para alguns efeitos adversos da
sinistralidade, nem sempre tomados em devida conta: o aumento do preço dos
produtos manufacturados, a descida do Produto Nacional Bruto e as despesas
adicionais relacionadas com os montantes indemnizatórios destinados às
vítimas de acidentes de trabalho, devido ao seu duplo reflexo: no prémio de
seguro e nas medidas de segurança necessárias à prevenção.

Em Portugal, o estudo mais recente sobre o assunto é da autoria de


Ricardo Almeida (2007) e baseia a sua análise de custos em factores diversos:
as indemnizações, as prestações em espécie, o prémio de seguro, o custo com
o pessoal, o serviço de medicina do trabalho, os custos materiais, a
investigação dos acidentes, os custos unitários segundo a natureza e a
localização da lesão e procura ainda dar conta da influência das tabelas
periciais nos montantes indemnizatórios finais. Entre outros aspectos, este
estudo, centrado numa amostra de empresas nortenhas, permite-nos concluir
da diversidade e relevância dos prejuízos não segurados, bem como o reflexos
de uma reparação de maior consistência e qualidade no valor do prémio de
seguro negociado. Estudos anteriores, como Acidentes de Trabalho e Doenças
Profissionais: Impactos nos Trabalhadores e Famílias (2005), promovidos pelo
Centro de Reabilitação Profissional de Gaia, introduzem uma perspectiva mais
alargada dos custos da sinistralidade, centrando-se, parta além da vertente
económica, nos seus impactos profissionais, psicológicos e morais, sociais e
familiares e, em termos mais gerais, no plano da qualidade de vida. Esta
perspectiva mais ampla de compreensão da incapacidade nas suas múltiplas
dimensões é precisamente aquela que nos permite aprofundar a temática a
partir das desigualdades sociais que caracretizam as sociedades

51 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

contemporâneas:

«Estas desigualdades estão presentes na relação com o trabalho e o tempo


livre e de lazer, com a escolaridade e a literacia, com a cidadania e a
participação cívica e política, com a habitação, com os transportes, com os
serviços públicos, com os cuidados de saúde, com a esperança de vida, etc. A
lista prolonga-se em áreas de carácter mais individual e pessoal, como a
constituição de uma família, a afectividade, a sexualidade, a amizade, etc.»
(Sousa, Casanova e Pedroso, 2007: 21).

Quanto aos impactos económicos, este trabalho recupera os resultados


do estudo publicado na Aon Consulting Meter (2004), onde se constata que
Portugal se classifica em segundo lugar no quadro dos países da UE no que
diz respeito ao suporte próprio dos encargos com doença profissional. O
contributo de Mossink et al (2002), é ainda importante para a reconstituição do
mapa de despesas a cargo das vítimas, carentes de políticas públicas capazes
de as socializar. Segundo este estudo, publicado no âmbito da Agência
Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho, são seis as dimensões a ter
conta. No que toca a saúde, o internamento hospitalar, os medicamentos,
outros tratamentos, reabilitação não-médica (por exemplo, profissional), as
adaptações arquitectónicas da habitação, entre outros, são despesas que
dependem, em grande medida, da comparticipação do seguro ou da entidade
patronal. Se atentarmos ao contexto português, caracterizado o acidente de
trabalho, a maioria destas despesas – em função das especificidades da
legislação atinente e da incapacidade pericialmente determinada – estaria a
cargo da seguradora, na proporção da transferência de responsabilidade que
efectivamente se verificou.

52 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

4. OS ACIDENTES DE TRABALHO NOS TRIBUNAIS


PORTUGUESES: ALGUNS INDICADORES

Como verificámos da análise das estatísticas da sinistralidade laboral,


em Portugal, a vitimação masculina é incomparável ao número de mulheres
atingidas por acidentes de trabalho, por motivos que radicam sobretudo na
ocupação profissional e na exposição ao risco a que se encontram
diferentemente submetidos. Esta realidade reflecte-se naturalmente nos
processos existentes nos tribunais de trabalho, a fim de ser determinada a
respectiva reparação. Atentemos a alguns dos indicadores sociojurídicos mais
relevantes dos processos findos, alusivos a acidentes de trabalho:

Gráfico 1 – Sexo dos sinistrados

16000
14000
12000
10000
8000
6000
4000
2000
0

Masculino Feminino

Fonte: DJPJ/OPJ

A expressão da mortalidade no trabalho nos tribunais acompanha as


tendências gerais de decréscimo, com oscilações variáveis, em função tanto
das ocorrências como da pendência e celeridade processuais:

53 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 2 – Morte dos sinistrados

Fonte: DJPJ/OPJ

Como acima apontámos, as faixas etárias com maior concentração de


acidentes de trabalho situam-se no intervalo entre os 25 e os 54 anos. Este
dado tem naturalmente reflexo na distribuição etária dos processos judiciais por
acidente de trabalho. É, porém, de salientar, no cômputo geral, uma
diminuição, nos últimos anos, do número de processos atinentes à reparação
de sinistrados jovens, com idades compreendidas entre os 21 e os 30 anos:

54 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 3 – Faixa etária dos sinistrados

Fonte: DJPJ/OPJ

Os coeficientes de incapacidade constituem um elemento fundamental


para a caracterização dos processos de acidente de trabalho e da gravidade
das lesões sofridas pelos sinistrados. Constata-se desde logo que o volume de
acidentes de trabalho geradores de uma incapacidade inferior a 10% regista
uma preponderância destacada na vitimação corporal no trabalho,
concentrando grande parte dos processos findos nos tribunais. É por isso
grande o seu impacto no volume processual alusivo à sinistralidade laboral22:

22
Como mais à frente discutiremos, não será, neste sentido, exclusivamente por motivos de
gravidade que o sistema de mediação laboral irá abranger os acidentes de trabalho, mas
igualmente devido ao peso destes processos na actividade judicial.

55 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 4 – Coeficientes de incapacidade

Fonte: DJPJ/OPJ

Por outro lado, como podemos ver no gráfico seguinte, a fixação da


incapacidade constitui o motivo mais frequente de litigação contenciosa no
domínio dos acidentes de trabalho – ascendendo, em 2006, aos 6003
processos, num universo total de 7697 acções reconduzidas à fase
contenciosa:

56 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 5 – Motivo de litígio

Fonte: DJPJ/OPJ

A discrepância entre os valores de incapacidade propostos pelo


sinistrado face aos avançados pela companhia de seguros constitui um dos
conflitos mais recorrentes na reparação do acidente, o que obriga ao recurso a
juntas médicas de avaliação pericial do dano, desta feita sob o comando
processual do magistrado judicial e não do Ministério Público, como acontece
na fase conciliatória. Como mais à frente veremos, o relevo crescente das
informações periciais no cálculo indemnizatório e a sua preponderância
processual encontram-se intimamente relacionados com a expansão e
institucionalização das perícias médico-legais no quadro do sistema de justiça
reparatória, incorporando e resolvendo, nos seus termos, aquilo que é um litígio
construído na relação entre sinistrado e seguradora.

Os modelos de notação estatística dos processos podem, todavia,


induzir uma cartografia sociojurídica distorcida: o facto de em cada processo
que transita para a fase contenciosa ser apenas identificado um objecto de
acção conduz a uma subrepresentação de um conjunto de conflitos conexos

57 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

com aquele que é mais frequente e, de alguma forma, determinante do


resultado indemnizatório final. Atentemos à evolução e distribuição de outros
objectos de acção nos tribunais de trabalho portugueses, desta vez sem o
efeito graficamente esmagador da fixação da incapacidade:

Gráfico 6 – Motivo de litígio sem a fixação da incapacidade

Fonte: DJPJ/OPJ

A última meia década evidencia um aumento significativo dos litígios em


que o apuramento do responsável pela reparação do acidente é objecto de
acção, testemunhando a triangulação sociojurídica que muitas vezes ocorre
entre sinistrado, empregador e companhia de seguros, isto é, a tentativa de,
em condições desiguais, cada uma das partes imputar o dever de indemnizar a
outrem, alegando, como veremos, argumentos distintos, desde a negligência
grosseira do trabalhador até à violação das regras de higiene e segurança no
trabalho por parte da entidade patronal. O crescimento contínuo deste
argumento em sede judicial é um indicador sociologicamente importante para

58 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

se compreender a racionalidade dos actores envolvidos e as estratégias de


litigação das partes.

A descaracterização do sinistro enquanto acidente de trabalho, isto é, o


desenquadramento do contexto laboral e das respectivas premissas jurídicas, é
uma outra estratégia das partes, tendo aumentado o número de processos em
que é tornada objecto de acção na fase contenciosa. O nexo de causalidade
entre a ocorrência e as lesões constitui também um factor de dissenso na
reparação do acidente.

Finalmente, a questão da determinação do salário diz respeito tanto a


valores residuais na base salarial como a fatias estruturantes do rendimento do
sinistrado, com reflexos automáticos nos montantes reparatórios a atribuir. A
expressão estatística deste objecto de acção, quando confrontada com os
processos judiciais analisados e com os depoimentos recolhidos de múltiplos
operadores de justiça, suscita dúvidas de consistência e fiabilidade
relativamente aos dados disponíveis23.

De entre a totalidade dos processos findos atinentes a acidentes de


trabalho, é ainda possível observar o baixo volume de casos em que não se
reconheceu ao sinistrado o direito a pensão ou indemnização – do que nada
poderemos inferir quanto à justeza dos montantes atribuídos. Em cerca de 12%

23
O sistema de notação apenas regista um objecto de acção, sendo que muitas vezes são
vários os que transitam para a fase contenciosa. Assim, esta estatística é uma fonte potencial
de omissão de dados relativamente a objectos de acção que efectivamente são formulados e
resolvidos em sede contenciosa. Por outro lado, estes indicadores de natureza judicial não são
necessária nem inteiramente fiéis à realidade social: o desempenho dos operadores é
fundamental à emergência e visibilização de anomalias e irregularidades sociojurídicas, nem
sempre relevadas nos tribunais. O caso do rendimento formal e material do sinistrado é
particularmente ilustrativo desta tensão, pelo que assistimos a uma dupla subrepresentação:
estatística e sociojurídica.

59 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

dos processos que surgem anualmente nos tribunais de trabalho o sinistrado


não recebeu nenhuma indemnização, por diferentes motivos sociojurídicos.

Gráfico 7 – Fundamentos de não condenação

Fonte: DGPJ/OPJ

Apesar de a maioria dos processos emergentes de acidente de trabalho


terminarem na fase conciliatória, por acordo das partes e sob a condução do
Ministério Público, o gráfico abaixo permite-nos concluir um decréscimo
continuado da percentagem de processos resolvidos na conciliação nas últimas
duas décadas. Se em 1989 eram cerca de 80% dos casos, em 2006 esse valor
fica abaixo dos 60%:

60 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


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Gráfico 8 – Processos findos na fase conciliatória

Fonte: DJPJ/OPJ

De acordo com a lei, a responsabilidade da entidade patronal pela


reparação dos acidentes de trabalho deve ser obrigatoriamente transferida para
uma companhia de seguros, a quem cabe proceder à recuperação e
indemnização do sinistrado. Porém, esta norma nem sempre é integralmente
cumprida pelos agentes económicos, e os trabalhadores não segurados ou
apenas parcialmente. São múltiplos os expedientes e operações de redução de
encargos com o seguro dos sinistrados, entre as quais a indicação de apenas
uma parte dos trabalhadores efectivamente subordinados àquela entidade
empregadora ou, como vimos, a declaração de rendimentos abaixo daquilo que
efectivamente é auferido. De todo o modo, a evolução da cobertura do
sinistrado pelo seguro identificada nos processos findos na última década e
meia revela níveis de regularização jurídica significativos:

61 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 9 – Sinistrados segurados

Fonte: DJPJ/OPJ

Contudo, se atentarmos especificamente aos números alusivos aos


sinistrados não segurados ou apenas em parte, verificamos oscilações
importantes no domínio da cobertura parcial do sinistrado, naturalmente
associadas a fenómenos estruturais de informalidade e atipicidade das
relações laborais no contexto empresarial português. Ainda que o sentido da
evolução seja decrescente, é notória uma persistência de irregularidades com o
seguro que se reflecte em mais de 500 acidentes anuais, sem alterações
assinaláveis na última década:

62 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 10 – Irregularidades com o contrato de seguro

Fonte: DJPJ/OPJ

As circunstâncias em que ocorrem o acidente – que as estatísticas


designam por causa externa – permitem-nos aceder ao contexto laboral
específico em que ocorre o acidente de trabalho e às dinâmicas de vitimação.
A queda do sinistrado destaca-se claramente dos restantes motivos,
concentrando cerca de 35% dos acidentes, sem evolução significativa. Verifica-
se também que o uso de máquinas está igualmente na origem de uma
percentagem significativa de acidentes de trabalho com entrada nos tribunais
de trabalho, o que se articulará, naturalmente, com a incidência profissional da
sinistralidade:

63 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 11 – Motivo do acidente

Fonte: DGPJ/OPJ

Já o local em que ocorre o acidente de trabalho constitui um indicador


sociológico importante na compreensão não apenas do contexto como da
microgeografia laboral da sinistralidade:

Gráfico 12 – Local do acidente

Fonte: DGJP/OPJ

Corroborando os dados gerais de que dispomos, a grande maioria dos


acidentes que chega aos tribunais ocorre no espaço fábril, embora tenha vindo

64 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

a aumentar em espaço não especificado – o que merecia maior afinação na


notação estatística dos tribunais. A construção civil, embora registe menos
acidentes em absoluto, apresenta o maior índice de incidência de mortalidade
laboral, pelo que, como é possível verificar, constitui um forte contexto de
sinistralidade, tendo vindo a aumentar, sobretudo na última década, o número
de processos nos tribunais.

O volume de processos atinentes à sinistralidade agrícola, com um


decréscimo progressivo mas ligeiro, mantem os seus patamares abaixo dos mil
casos anuais. Não havendo especificação estatística relativamente àquilo que
são os acidentes in itinere, isto é, acidentes de viação em contexto de trabalho,
é possível, todavia, presumir que grande parte daqueles que ocorrem na via
pública lhe dizem respeito. Assim, tem vindo a registar-se um aumento
progressivo ao longo dos últimos dez anos, com pequenas excepções,
rondando cerca de 2 500 acidentes anuais24.

No que diz respeito à evolução do patrocínio judiciário do sinistrado, na


grande maioria das acções por acidente de trabalho cabe ao Ministério Público
a defesa do sinistrado:

24
Seria importante proceder a uma análise estatística que nos permitesse compreender quais
as variáveis mais influentes nos padrões indemnizatórios, além daquelas que são juridicamente
atendidas e ponderadas: idade, rendimento e incapacidade. Porém, a variabilidade de
rendimento nas mesmas categorias profissionais e a agregação indiferenciada (pensões anuais
e pensões remidas) dos montantes indemnizatórios atribuídos é impeditiva desse exercício
analítico.

65 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 13 – Patrocínio do sinistrado

Fonte: DGPJ/OPJ

No entanto, a preponderância geral do Ministério Público na defesa dos


trabalhadores, isto é, o volume de patrocínios efectuados no universo dos
processos, tem vindo a diminuir ao longo dos últimos quinze anos, tal como é
ilustrado pelo gráfico seguinte:

66 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 14 – Patrocínio pelo Ministério Público

Fonte: DGPJ/OPJ

Se, em 1991, 96% dos processos eram patrocinados pelo MP, em 2006
encontramos valores inferiores a 90%. O ano de 2002 exibe uma quebra
abrupta do número de processos.

Finalmente, comparando o início com o termo do processo é possível


aferir os padrões de duração nos tribunais de primeira instância das acções por
acidentes de trabalho e, por essa via, a morosidade indemnizatória quando
dependente das decisões judiciais. Como é possível identificar no gráfico
seguinte, cerca de 28% dos processos termina entre os 3 e os 6 meses após
dada entrada no tribunal, sendo que este padrão de duração tem vindo a
ganhar preponderância nos últimos anos:

67 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Gráfico 15 – Duração dos processos

Fonte: OPJ

São cada vez menos os processos com duração inferior a 3 meses (de
21% em 2004 passamos para cerca de 12% em 2006) e regista-se um
aumento generalizado do peso dos processos cuja duração se alarga até um
ano, perfazendo um total de cerca de três quartos do universo global de
processos.

68 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

5. A SINISTRALIDADE RODOVIÁRIA EM PORTUGAL:


O DANO NA ESTRADA

O fenómeno da sinistralidade rodoviária tem vindo a ganhar uma


importância progressiva no contexto europeu, sobretudo a partir das últimas
décadas do século XX. À escala mundial, a Organização Mundial de Saúde
calcula serem cerca de 50 milhões as pessoas anualmente feridas na
sequência de acidentes de viação, e 1,2 milhões aquelas que perdem a vida na
estrada. No âmbito da União Europeia, ocorre, anualmente, uma média de 1,3
milhões de acidentes rodoviários dos quais resultam mais de 40 mil mortos e
aproximadamente 1,7 milhões de feridos.

As estimativas gerais sobre os custos da sinistralidade rodoviária em


Portugal apontam para 3% do PIB, rondando 4,5 mil milhões de euros e
colocando-se na lista dos dez países europeus com o maior número de mortos
na estrada. Cada vítima grave corresponde a um custo socio-económico
estimado de 1 milhão de euros (Albuquerque, 2006: 65). Dados da Comissão
Europeia sobre os diversos países, na sequência da publicação do European
Road Safety Action Programme (2003) - Reduzir para Metade o número de
Vítimas Mortais de Acidentes Rodoviários na União Europeia, até 201025, têm
vindo a demonstrar que, ao longo da primeira década de 2000, três países se

25
Cf. Livro Branco sobre os Transportes (2001), a partir do qual é proposto o objectivo de se
reduzir para metade o número de vítimas mortais nas estradas europeias até 2010. Aprovado
pelo Parlamento Europeu e por todos os Estados-Membros, foi adoptado, em 2003, o
Programa de Acção Europeu para a Segurança Rodoviária que prevê uma série de medidas
concretas para atingir esse objectivo. O princípio da responsabilidade partilhada, isto é, o
envolvimento de diferentes actores na prossecução dos objectivos preventivos da sinistralidade
rodoviária é veiculado pela Carta Europeia da Segurança Rodoviária, descentrando o papel do
Estado e alargando a responsabilidade às empresas e aos cidadãos: “Não cabe somente ao
Estado civilizar as estradas, mas a toda a sociedade civil, com a intervenção activa de
cidadãos e empresas.” (APS, 2007).

69 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

destacaram por terem apresentado reduções no número de vítimas superiores


às da média (14%) dos 25 países considerados: a França (32%), o
Luxemburgo (30%) e Portugal (23%)26.

O Balanço Intercalar ao Programa de Acção Europeu para a Segurança


(2006) avança indicadores que permitem desde logo concluir uma tendência
consolidada de decréscimo da mortalidade rodoviária no contexto europeu,
bem como a particular vulnerabilidade dos peões e dos idosos do ponto de
vista dos riscos e dos efeitos corporais decorrentes de acidentes de viação, o
que é corroborado, como veremos, pelas estatísticas portuguesas mais
recentes.

A redução das cifras de acidentes de viação produz naturalmente um


reflexo nos custos dispendidos pelas companhias de seguros nos processos
indemnizatórios, permitindo uma contenção da despesa com a cobertura do
dano corporal emergente, tanto do ponto de vista clínico como do ponto de
vista da compensação financeira das vítimas. Esta não é, porém, uma questão
formulada de forma inteiramente linear pela perspectiva seguradora:

“Esta contenção dos custos tem sido bem mais modesta do que a redução dos
acidentes e a explicação reside no acréscimo dos custos médios. Na realidade,
constata-se que os respectivos custos médios têm registado um acréscimo
anual relativamente elevado, que nos últimos anos terá excedido, em média, os
4% e que tem sido bastante mais vincado (próximo dos 10%) na componente
dos danos corporais. Em consequência, os custos exclusivamente de danos
corporais (indemnizações por danos patrimoniais e morais, despesas médicas
e outras despesas) representam já mais de 40% do custo total da
Responsabilidade Civil, quando apenas 7% do número de acidentes totais
envolve danos corporais (incluindo atropelamentos).” (APS, 2007)

26
Cf. Relatório das Estradas de Portugal.

70 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Como adiante problematizaremos, a variável económica dos acidentes


rodoviários constitui um elemento central na modelação das lógicas
reparatórias do dano corporal. Por agora, procuramos recensear e discutir os
indicadores dos acidentes de viação em Portugal.

De acordo com o Observatório da Segurança Rodoviária, Portugal tem


registado, na última década, um decréscimo contínuo e significativo na
vitimação corporal provocada pela sinistralidade rodoviária, tendo conseguido
uma redução do número de mortes na ordem dos 40% (de 1 865 em 1998 para
737 em 2009) e do número de feridos graves na ordem dos 32% (de 8 177 em
1998 para 2 624 em 2009). É naturalmente idêntico o balanço geral da
evolução registada na estatística relativa aos feridos leves (de 51 164 vítimas
com lesões leves em 1990 para 43 790 em 2009), apesar de algumas
oscilações intermédias. É ainda notória uma tendência regressiva no índice de
gravidade da sinistralidade.

Dentro destes valores, os peões, vítimas de atropelamento, ocupam um


lugar estatisticamente relevante, o que está, aliás, reflectido, como veremos
mais à frente, no teor dos processos judiciais analisados no âmbito da
responsabilidade civil. Foram 126 as vítimas pedestres de acidentes mortais
sinalizadas em 2009 e 501 os peões gravemente feridos por veículos
automóveis, ambas as cifras obedecendo a uma redução progressiva que
ronda os 30% face aos números apresentados em 1998. Já os condutores de
veículos de duas rodas correspondem a 20% dos mortos e dos feridos graves
na estrada no último ano, valor que tem sofrido igualmente um decréscimo
sequenciado de há uma década para cá.

A este propósito, será de mencionar que as metas e objectivos fixados


pelo Plano Nacional de Prevenção Rodoviária para 2009, no sentido de uma
redução generalizada da sinistralidade, terão sido, face aos indicadores
disponíveis, ultrapassados. Para isso haverá certamente múltiplos factores

71 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

associados, entre quais as políticas dirigidas ao problema: a melhoria das vias


de comunicação, a criminalização da condução sob efeito de álcool (1990), as
obrigatoriedade das inspecções aos veículos (1992), o agravamento geral das
sanções pecuniárias27 (e, em alguns casos, a obrigação do seu pagamento
imediato), nomeadamente relacionadas com o uso do cinto de segurança e de
capacete para ciclomotores ou, mais recentemente, do telemóvel, a redução do
limite de velocidade dentro das localidades (1994), ou as diferentes medidas e
campanhas previstas no Plano Nacional de Prevenção Rodoviária (2003) e na
Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária (2008)28.

A distribuição mensal da sinistralidade é ainda elucidativa das dinâmicas


sociais preponderantes na vitimação. Julho, Agosto e Setembro concentram
31% de sinistrados mortais na estrada face ao panorama anual, o que se
justifica em grande medida pela sua correspondência com o período típico de
férias, e portanto com o aumento dos fluxos rodoviários. A par dos factores
atmosféricos29, as condições de luminosidade são ainda atendíveis enquanto
factores importantes à compreensão do fenómeno. Embora o volume de
tráfego seja manifestamente superior durante o dia, o índice de gravidade dos

27
Ainda assim, a moldura penal abstracta para o homicídio negligente – em que podemos
incluir a delinquência rodoviária – poderá ir até aos 3 anos de prisão ou 5 em caso de
negligência grosseira, sendo que em França e no Reino Unido encontramos um máximo de 10
anos.
28
De acordo com a Associação Portuguesa de Seguradores, “o compromisso assumido pelos
Estados-Membros de conferir prioridade à segurança rodoviária para alcançar os objectivos
traçados pela Comissão Europeia tem vindo a dar os seus frutos. No entanto, e enquanto
existir uma só vítima, é essencial continuar a implementar medidas que visem: (i) incentivar
uma condução melhor e mais segura, (ii) aumentar a segurança dos veículos, promovendo a
investigação no domínio da segurança e (iii) melhorar as infra-estruturas rodoviárias,
nomeadamente reduzindo os chamados "pontos negros"“ (APS, 2007).
29
Condições meteorológicas que envolvam granizo, neve, nevoeiro, nuvens de fumo ou vento
forte encontram-se associadas, de acordo com o Observatório de Segurança Rodoviária, a
índices de gravidade bastante superiores à média (3,2 contra 2,2 em situação de bom tempo e
1,8 com precipitação de chuva).

72 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

acidentes ocorridos à noite é manifestamente maior (1,7 contra 2,9),


acentuando-se nos períodos de aurora ou crepúsculo (3,8).

Analisando agora os dados estatísticos disponíveis alusivos à natureza


do acidente, a colisão, o despiste e o atropelamento30 constituem as grandes
categorias de arrumação da sinistralidade rodoviária. A colisão frontal
distancia-se claramente das restantes submodalidades, tendo estado na
origem, em 2009, de 141 vítimas mortais, 474 feridos graves e 5 419 feridos
ligeiros, tocando um índice de gravidade de 4 pontos. Verificaram-se ainda 415
atropelamentos com fuga – circunstância de grande relevo em matéria de
efectivação indemnizatória das vítimas31 –, dos quais resultaram 8 mortos e 29
feridos graves. O mesmo fenómeno ocorreu em 434 colisões entre veículos,
provocando 4 mortes e 31 feridos graves, no ano de 2009. O despiste com
capotamento encabeça também os motivos de morte na estrada, sendo 104 o
número de pessoas que perderam a vida e 259 aquelas que ficaram
gravemente feridas na sequência de um sinistro.

A grande maioria dos acidentes rodoviários com vitimação mortal ocorre


em Estradas Nacionais e arruamentos, correspondendo, no seu conjunto, a
64% do total de mortes verificadas. É, no entanto, equilibrada a sua distribuição
dentro e fora das localidades, sendo na sua grande maioria acidentes
participados pela GNR. Das 737 vítimas mortais registadas em 2009, 450 eram
os condutores dos veículos acidentados (40 mulheres e 409 homens) e 157 os
passageiros (69 mulheres e 88 homens). Se os indicadores oficiais não nos
permitem diferenciar a estatística dos acidentes de viação convencionais face
aos acidentes de trabalho in itinere, a análise das vítimas por categoria do

30
A vitimação mortal por atropelamento, tanto dentro como fora das localidades, exibe valores
mais significativos quando acontece em plena faixa de rodagem (28 mortos em 2009).
31
Motivo de desresponsabilização das seguradoras.

73 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

veículos assegura-nos, em todo o caso, que foram 27 as vítimas mortais


sinistradas em veículos pesados, certamente em contexto laboral.

Os jovens entre os 20 e os 24 anos de idade são os que apresentam os


valores elevados de vitimação corporal grave e mortal nas estradas, o que não
estará inteiramente dissociado dos comportamentos de risco relacionado com
os modelos e os contextos de uso da estrada por parte desta faixa etária da
população (Oliveira, 2007). Porém, sinistrados com mais de 65 anos são
aqueles que lideram destacadamente as estatísticas, representando cerca de
25% das vítimas mortais no ano de 2009. A vulnerabilidade física será, em
grande medida, responsável pelos níveis de mortalidade rodoviária associados
a esta faixa etária em particular. A distribuição das vítimas por sexo revela que
a sinistralidade rodoviária afecta, a todos os níveis, mais homens do que
mulheres. Já do ponto de vista do panorama regional, a grande Lisboa e Vale
do Tejo concentram cerca de 33% dos acidentes e 31% das vítimas mortais,
seguindo-lhe a região centro e norte.

6. RISCO, RESPONSABILIDADE E SEGURO NA


REPARAÇÃO DO DANO CORPORAL

6.1. Os Seguros de Acidentes de Trabalho: uma


abordagem sócio-histórica

74 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Se o papel da mobilização operária terá sido crucial na definição de um


regime reparatório para a incapacitação laboral, um movimento mais amplo
germinava na transição do século XVIII para o século XIX e com ele
emergência da noção própria de risco, e naturalmente, de responsabilidade:
um produto da modernidade enquanto projecto societal alicerçado na
capacidade de expandir os referentes espácio-temporais e assim cumprir o
desiderato de colonizar o futuro (Giddens, 1994)32.

Ora, se “quando as situações se apreendem em termos de risco, a


questão das culpas pessoais e das atitudes individuais passa a ser secundária”
(Pierre Rosanvallon apud Menezes, 2009: 23), são duas as questões que
pretendemos sublinhar. Por um lado, a importância histórica da disputa social,
política e jurídica na conversão dos modelos de responsabilidade civil – o
conhecido princípio da culpa aquiliana – num regime baseado no risco
profissional33, que restituísse ao risco a sua natureza intrínseca e
eminentemente laboral e, portanto, reconhecesse a densidade social e
disciplinar das práticas e das relações de autoridade e subordinação que se

32
Consideramos, todavia, que a distinção operada por Anthony Giddens (1999: 4) entre riscos
externos – “events that may strike individuals unexpectedly but that happen regularly enough
and often enough in a whole population of people to be broadly predictable, and so insurable” –
e riscos manufacturados – “created by the progression of human development, especially by
the progression of science and technology” – poderá padecer de insuficiência ou de um viés
analítico, sobretudo quando conformados com aquilo que tem vindo a ser designado como
velhos e novos riscos profissionais. As mudanças ocorridas na organização do trabalho e as
preocupações com a qualidade do emprego, a saúde e as condições de vida suscitam novos
temas, motivações e fundamentos indemnizatórios no quadro das relações laborais,
correspondendo, em grande medida, às noções de risco diferenciadas pelo autor. No entanto,
como alerta António Casimiro Ferreira, “alguns dos “novos riscos”correspondem, em bom rigor,
a tarefas antigas de produção industrial” (2005a: 374), o que introduz um acréscimo de
complexidade sociológica na caracterização dessa aparente dicotomia.
33
Neste sentido: “O princípio de risco profissional aplicado em França pela lei de 9 de Abril de
1898 passou a fazer parte, por avanços sucessivos, da legislação laboral da quase totalidade
dos países industriais no começo do século XX. Raramente um princípio social conseguiu
impor-se com tal força e obter, em tão pouco tempo, uma tão grande adesão” (Duclos apud
Oliveira, 1998: 77)

75 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

encontram na sua origem, tal como o peso das vantagens e desvantagens


contratuais decorrentes da relação de trabalho:

“Até que os acidentes de trabalho viessem a ser captados segundo o viés do


«risco profissional» foi necessário percorrer um longo percurso que exigiu o
desmontar de um quadro argumentativo onde a ocorrência dos acidentes era
justificada tomando por referência, primordialmente, a falta do operário”
(Menezes, 2009: 134).

A natureza objectiva da responsabilidade associada ao acidente de


trabalho, que de alguma forma constitui o modelo prevalecente nos dias de
hoje, acabará por ser decisiva para os resultados indemnizatórios da
sinistralidade laboral, nomeadamente, entre outras coisas, pela inversão do
ónus da prova que pressupõe e pelo seu valor essencial num contexto de forte
discrepância de recursos e capitais jurídicos entre as partes (empregador e
trabalhador) – o que não elimina, como veremos, alguns fenómenos leoninos
recorrentes nos processos de reparação do dano corporal emergente de
acidentes de trabalho. Uma sociologia histórica do direito do trabalho em
matéria de reparação dos acidentes permite-nos, através dos quadros jurídicos,
compreender a evolução do pacto social, dos mecanismos compensatórios da
desigualdade no seio do trabalho subordinado e das garantias conferidas aos
trabalhadores. Do princípio da culpa aquiliana à teoria do risco económico ou
de autoridade percorreu-se um caminho sociojurídico longo e complexo34. A

34
Em Portugal, a Lei n.º83, de 24/07/1913 é indiciária das primeiras transformações no
enquadramento jus laboral em matéria de acidentes de trabalho, emancipando-o das normas
reguladoras da responsabilidade civil baseada no conceito de culpa. Nesse sentido, a sua
abrangência chegava a todas as empresas “que exploram uma indústria”, aplicando-se com
uma única excepção: caso “as leis vigentes e os regulamentos especiais não determina[ssem]
indemnizações superiores”. Para além dos montantes indemnizatórios, estabelecia o direito do
sinistrado a assistência clínica e medicamentosa. De forma a operacionalizar este novo
sistema, abre desde logo a porta à transferência da responsabilidade patronal para mútuas de
patrões e companhias de seguros (no caso de pensões e tratamentos clínicos) e para
associações de socorros mútuos em caso de incapacidade temporária (Oliveira, 1998: 82).

76 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

teoria da responsabilidade contratual, reagindo ao problema do ónus da prova


que a versão civil pura da responsabilidade não resolvia, constituiu um avanço
importante face ao carácter desigual da correlação de forças em matéria
reparatória. Porém,

“Esta teoria, que só contém de prático a inversão do ónus da prova, de nenhum


modo preenche as dificuldades relativas aos desastres de trabalho em que não
houve culpa, quer do patrão, quer do operário; não satisfaz o princípio da
justiça social, que não permite que fiquem sem reparação os operários feridos,
esmagados, intoxicados, mortos, enquanto os patrões continuam
enriquecendo, acobertando-se com a falta da sua responsabilidade nos
desastres de trabalho; e não dá solução alguma à questão das doenças
profissionais” (Gonçalves, 1939: 9)

Sucedeu-se um importante trabalho doutrinal no sentido de encontrar


uma solução jurídica que enfrentasse a desprotecção das vítimas e
reenquadrasse o risco em função da sua extrema gravidade social e laboral. As
lógicas objectivadoras da responsabilidade ganham assim uma projecção
progressiva através da teoria da responsabilidade sem culpa que, no âmbito
laboral, ficou conhecida como teoria do risco profissional ou do risco criado,
abrindo espaço para a regra da exigência de responsabilidade à entidade
patronal perante os sinistros.

Finalmente, a teoria do risco económico ou de autoridade, emanação da


anterior, consolida este quadro jurídico, alargando a caracterização dos
acidentes de trabalho a aspectos não directamente ligados à prática
profissional, como os acidentes in itinere. Ou seja, “não se trata já de um risco
específico de natureza profissional, traduzido numa ligação directa
acidente/trabalho, mas sim de um risco genérico ligado à noção ampla de
autoridade patronal” (1939: 10). As vantagens económicas e a autoridade
exercida pelo empregador, gerando condições objectivas para a

77 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

vulnerabilidade do factor trabalho, constituem, assim, os grandes fundamentos


desta aquisição doutrinal.

Foi historicamente controversa a imposição de um seguro obrigatório, de


cariz bismarkiano, como mecanismo de salvaguarda ressarcitória das vítimas
de acidentes laborais, face às múltiplas contingências associadas à obrigação
jurídica de indemnizar. No entanto, a ideia de uma protecção assente
exclusivamente na previdência e no seguro facultativo perdia terreno e
legitimidade política face à universalização da problemática dos riscos 35. Se em
Portugal esta realidade surge mais tarde, na Alemanha, Inglaterra, Império
Austro-Húngaro, Finlândia e Bélgica a produção legislativa sobre esta matéria
ocorre entre 1881 e 1897.

O carácter obrigatório da transferência de responsabilidade, nas


sociedades europeias, assinala um novo período organizado da modernidade
capitalista e, com ele, as raízes de uma nova economia política que mais tarde,
depois de grandes convulsões, viria a redundar nos Estados de bem-estar,
nomeadamente pela consolidação e generalização de mecanismos fiáveis de
segurança na cobertura social do risco e da reparação do dano corporal.

Não é, porém, novidade naquilo que é a literatura crítica do capitalismo:


Denis Duclos relembra a recomendação redigida por Karl Marx e os seus
colaboradores mais próximos, no sentido do reconhecimento “da
responsabilidade dos patrões em matéria de acidentes de trabalho, garantido
por um caucionamento entregue pelo patrão às caixas operárias, e
proporcional ao número de operários e aos riscos da respectiva indústria”

35
Cf. “O seguro social obrigatório em Portugal (1919-1928): acção e limites de um Estado
previdente”, onde se procura dar conta da criação e do desenvolvimento de um sistema de
seguros sociais obrigatórios ao longo da I República, destacando o papel do legado mutualista
na edificação de práticas e racionalidades seguradoras. É ainda discutida a oposição política
movida pelos ideólogos do regime de previdência social da fase inicial do Estado Novo.

78 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

(apud Oliveira, 1998: 76). No fundo, como conclui Robert Castel, “num contexto
profundamente transformado, o seguro obrigatório assumirá a ambição de se
tornar o princípio de uma cobertura generalizada contra os riscos sociais”
(Castel, 1998: 410).

Se recuarmos à génese do seguro social obrigatório em Portugal,


verificamos, como aliás acima indiciámos, que os primeiros quadros legais a
instituir um sistema compulsivo de protecção dos trabalhadores vítimas de
acidentes de trabalho – bem como de outros riscos sociais – remonta às
reformas empreendidas no contexto da I República, em 1919. Este processo
integra-se num movimento mais amplo de transformações da filosofia das
políticas sociais assumidas pelos Estados europeus, a quem passam a caber
“responsabilidades de intervenção neste domínio, sendo a sua acção
desenhada para estimular e completar as formas tradicionais de assistência
privada, beneficência e ajuda mútua, e não para as substituir” (Cardoso e
Rocha, 2009: 442).

Os desastres de trabalho passam então a gozar de uma regulamentação


própria36, assente no princípio da responsabilidade patronal face aos riscos
intrínsecos à actividade laboral desenvolvida pelos trabalhadores sob a sua
direcção. De acordo com estes autores, a preocupação de alargar este sistema
a todas as actividades profissionais constitui um contributo ímpar para o reforço
de uma aliança – até então difícil – entre capital e trabalho e para o
fortalecimento do espírito de justiça e de equidade nos processos de
organização do trabalho.

O referido decreto procede, assim, à “definição rigorosa da tipologia de


pensões e indemnizações que deveriam ser pagas em caso de acidente, tendo

36
Cf. Decreto n.º5637.

79 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

em atenção a sua gravidade, o valor do salário do trabalhador vitimado e a


dimensão do agregado familiar” (2009: 450). As sociedades mútuas de patrões
cedem progressivamente lugar às companhias de seguros na administração e
exploração deste ramo segurador37, conferindo ao Estado funções exclusivas
de tutela e fiscalização da gestão do seguro obrigatório.

O papel da mobilização colectiva na protecção das vítimas

A constituição de actores colectivos em torno da sinistralidade constitui


um aspecto de valor sociológico capital. Permitindo a produção de um discurso
politizado e conflitual sobre uma matéria facilmente atreita a noções
armadilhadas de tragédia e fatalidade pessoal, o risco laboral, a qualidade das
condições de trabalho e a consistência indemnizatória convertem-se assim
objecto de disputa política, ideológica e sindical, contribuindo tanto para a
redefinição da laboralidade, dos quadros regulatórios e das lógicas
provisionais, como para a visibilização de um conjunto de dinâmicas
sociolaborais incapazes de, por si só, ganhar projecção e relevância pública.

Simultaneamente, a reestruturação dos discursos e dos saberes que


dominam o repertório conceptual e jurídico sobre o dano corporal e os
acidentes de trabalho é um processo continuado que ora se articula ora se
confronta ou outras racionalidades prevalecentes neste campo temático. Ou
seja, a perspectiva das vítimas traz consigo novas verdades sobre os
fenómeno da sinistralidade que adquirem preponderância normativa ou judicial
em função da eficácia com que é possível inscrevê-las naquilo que poderíamos
designar como o governo do corpo e da vida e que extravasa os modelos
convencionais de observar, abordar e intervir sobre a sinistralidade laboral e

37
Devendo fazer o depósito antecipado das garantias e das reservas matemáticas das
pensões (à taxa de 4,5% sobre o valor do salário).

80 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

rodoviária e as forças contraditórias que nela operam. Como aponta Teresa


Magalhães,

“No século XX, governos e instituições fizeram proliferar textos legais com o fim
de promover a igualdade entre todas as pessoas. Surgiram múltiplos
programas, políticas e estratégias para lograr a integração social daqueles que
apresentavam sequelas importantes de um dano corporal e a quem,
frequentemente, se chama deficientes. O associativismo destas pessoas e a
sua contestação contribuíram, também, para melhorar a consciência social
acerca das suas dificuldades” (1998: 26).

É, aliás, nesse sentido que procuramos encarar a deficiência e


incapacidade como um capítulo específico mas importante da história das
desigualdades sociais (Sousa, Casanova e Pedroso, 2007). Se o preconceito e
a discriminação constituem factores poderosos ao viabilizarem e justificarem,
retórica e empiricamente, a subalternidade e exclusão sociais dos cidadãos
incapacitados, não será menos verdade que as respostas fornecidas pela
política pública e pelos tribunais contribuem decisivamente para a renovação
ou reprodução da abordagem do problema e, por essa via, para a correcção ou
manutenção das desigualdades sociais que se lhes encontram associadas.

De um ponto de vista histórico, terá residido na irrupção da questão


social a maior visibilidade concedida ao problema dos acidentes de trabalho 38.
Em França, a agudização progressiva deste problema desafiou diferentes
instâncias sociais à sua análise mais aprofundada, surgindo um grande
movimento de inquéritos sociais sobre a realidade da condição proletária,

38
Em Portugal, encontramos em 1895 um programa de reformas assistenciais deduzido da
Doutrina Social da Igreja, que visa precisamente “tornar obrigatória a criação de caixas de
auxílio para casos de doença, velhice, acidentes, morte, chegando mesmo a prever que os
patrões cubram os custos de imobilização por doença ou acidente ligados ao trabalho”
(Volovitch, 1982: 1199). Porém, como argumenta André Getting, a organização de obras de
beneficência e de assistência (hospitais, hospícios, caixas de reforma, etc.) apoiadas na
caridade privada confrontaram-se com uma forte desconfiança dos operários (1963: 12).

81 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

conduzidos, nomeadamente, por Villermé e Chateauneuf, membros da


Academia das Ciências Morais e Políticas (Oliveira, 1998: 73). O relatório sobre
o estado físico e moral dos trabalhadores das manufacturas de algodão, lã e
seda, realizado em 1837, apresenta alguns resultados elucidativos: dos 60 000
operários existentes no Alto-Reno, 13 000 eram crianças, que entravam aos
oito anos na mina, na sua maior parte, havendo casos de início de actividade
aos seis anos; o trabalho fabril balizava-se entre as 16h e as 17h diárias, de pé,
sem mudança de lugar nem de posição; é percorrido um longo trajecto até ao
local de trabalho, começado às 5h da manhã; a miséria, as carências de
descanso e de alimentação constituem, em conjunto com o trabalho e as
deslocações diárias, um bloco de condições e um pesado fardo que faz da
fadiga uma doença mortal, “como poderá ser, muito mais tarde, cientificamente
medido – e explorado – pelos nazis nos campos de concentração” (Kieler apud
Oliveira, 1998: 73).

Não terá sido, de resto, por acaso que a própria obra de Karl Marx 39 se
deteve analiticamente nas condições de trabalho, através do estudo de
relatórios inspectivos bem como documentação especializada sobre o tema. O
relatório oficial do inspector Léonard Horner, citado por Marx, é lapidar no que
toca o valor do corpo em contexto fabril:

“Ouvi fabricantes falar com imperdoável frivolidade de alguns acidentes,


afirmando por exemplo que a perda de um dedo é uma bagatela. A vida e as
oportunidades do operário dependem de tal forma dos seus dedos que um tal
acidente tem para ele as piores consequências” (apud Oliveira, 1998: 75)

A crítica sistémica desenvolvida pelo pensamento marxista sobre a


acumulação capitalista envolveu, portanto, uma forte componente

39
A reflexão sobre a exploração e as condições de trabalho é sobretudo evidente quando de
analisam as características do trabalho por turnos, no primeiro volume d’O Capital.

82 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

organizacional às suas unidades produtivas e à forma como integravam e


condensavam as desigualdades e a exploração social e corporal dos
trabalhadores. Os instrumentos regulamentares que disciplinavam o trabalho
fabril, à margem da igualdade formal e do sistema político representativo que o
liberalismo edificava, faziam do capitalista um legislador privado e
discricionário: o “espírito manhoso dos Licurgos de fábrica actua por forma a
beneficiarem mais da violação das suas leis do que do cumprimento destas”
(apud Oliveira, 1998: 75).

Sempre que este processo atingia patamares dramáticos de vitimação e


se convertia em factor de perturbação da ordem e da paz social no trabalho,
obrigava naturalmente à convocação de respostas públicas e privadas capazes
de estabilizar a força produtiva e de evitar a multiplicação dos custos directos e
indirectos com a sinistralidade:

“The evidence suggests that mineowners gave money to widows of victims “to
silence them… and to shut out their demands for compensation”. Victims of
nonfatal accidents frequently lost their jobs and were left destitute” (Dwyer,
1991: 28).

Cardoso e Rocha (2009) subscrevem e ampliam este argumento,


reconhecendo que a assumpção de responsabilidade pública na definição de
estratégias que garantissem a reparação dos danos corporais emergentes de
acidentes de trabalho combinou a necessidade de travar o conflito com a
urgência de assegurar as melhores condições para o aumento da produtividade
industrial40:

40
O pensamento taylorista constitui um marco organizacional decisivo do ponto de vista da
reestruturação das dinâmicas do trabalho industrial. Nesse sentido, as doenças, os acidentes e
a fadiga física não só ganhavam visibilidade na gestão organizacional como devem ser, de
alguma forma, planeados e contabilizados, dado o impacto negativo na produtividade.

83 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

“Por detrás desta nova motivação do Estado encontram-se factores, de que a


crescente perturbação da ordem social desencadeada pelo movimento
reivindicativo do operariado e as necessidades de aumento de produtividade
das classes trabalhadoras reconhecidas pelo meio patronal são referências
correntes na historiografia sobre o tema41“ (2009: 442)

Nesse sentido, a desarticulação do potencial contestatário caminhou em


conjunto com a construção de um paradigma assistencialista que cuja génese
remonta à formação do capitalismo industrial. Ganha, assim, consistência a
ideia de que o pauperismo, a incapacidade e a industrialização se acomodaram
nos princípios liberais predominantes por intermédio de uma hegemonia
retórica, cuja trajectória passa por diferentes topoi, desde a mensagem
moralista e do entendimento dos indivíduos como produtores dos seus próprios
riscos até se iniciarem os primeiros passos doutrinais na objectivação do risco
(Menezes, 2009: 56). Por um lado, desenvolvia-se um sistema organizado de
respostas sociais essenciais ao cuidado e à protecção mínima dos lesados, e
por outro consolidava-se um instrumento importante de controlo, reposição e
edificação da ordem social sob uma tutela institucional munida de dispositivos
discursivos (categorização, moralização) e de poder (coercivo e burocrático)
associados à noção de responsabilidade pública enquanto tecnologia de
governo.

Na sua acepção foucaultiana, esta tecnologia testemunha e procura


resolver um impasse na prossecução do projecto industrial da modernidade: a
existência de comportamentos contraditórios com a dinâmica de acumulação
capitalista requeria uma intervenção suplementar sobre o corpo social no
sentido de corrigir e modelar os comportamentos, ajustando-os às
necessidades desse projecto industrial (Giovanna Procacci apud Menezes,

41
É possível encontrar uma síntese das principais linhas de pensamento sobre este modelo de
intervenção social do Estado em Harris (2004, 15-27).

84 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

2009: 59) e reenunciando um conceito de segurança ao qual os indivíduos e a


política social deveriam obedecer, de forma a não comprometer os pilares
regulatórios da modernização. Em suma, será possível concluir que

“A organização de sistemas embrionários de previdência social ocorre em


Portugal a partir da década de 30 do século XIX, sob responsabilidade directa
das associações de socorros mútuos então emergentes. A mais antiga tradição
assistencialista e de protecção dos desamparados da sociedade – que no
nosso país foi matéria que se manteve sobretudo sob a alçada das
misericórdias e instituições filantrópicas – prosseguia agora em novos moldes,
procurando fazer face aos problemas sociais suscitados pelo desenvolvimento
do capitalismo industrial e pelas inevitáveis consequências negativas no que se
refere às deficientes condições de vida de largas camadas da população
trabalhadora” (Cardoso e Rocha, 2009: 442)

No contexto das sociedades europeias, o movimento operário e sindical


não se encontra imobilizado nem é mero espectador da institucionalização de
uma burocracia e de uma racionalidade assistencial no domínio da
sinistralidade laboral: pelo contrário, desenvolve diferentes estratégias de
acção organizada: a denúncia pública da vitimação fabril 42; a interposição de
acções na justiça e a judicialização da disputa ressarcitória; a reivindicação de
mudanças legislativas, abrindo campo à formulação e formalização do direito
social à justa reparação; e ainda a autorganização provisional dos
trabalhadores, com o objectivo de criar fundos de compensação face ao
infortúnio e à vulnerabilidade laborais enfrentados. A dimensão conflitual e

42
“A morte da infeliz criança que apenas contava com 13 anos foi um verdadeiro assassinato.
Assassinato pelo Estado não ter até hoje feito cumprir a lei publicada, de protecção às
mulheres e menores das fábricas. Assassinato pela ambição desmedida de explorar […] sem
se importar da saúde, da vida, da segurança daqueles que tressuam nas oficinas […]
Assassinato pela indiferença, estupidez, parvoíce e desleixo dos próprios operários” –
publicado sob o título “Mais uma vítima da exploração burguesa” em O Tecido, Lisboa, a 4 de
Outubro de 1896 (apud Mónica, 1982: 125).

85 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

negocial, relativamente longe dos esquemas actuais de diálogo social e


negociação colectiva, que envolveu todo o processo de produção de um regime
jurídico de reparação dos acidentes de trabalho, é bem espelhada no contexto
da sociedade francesa:

“Sendo votada em 1898, a Lei Sobre os Acidentes de Trabalho foi o resultado


de 18 anos de debates entre a classe política francesa, as associações
industriais e os sindicatos operários. Durante esse período, decorreram
distintos congressos internacionais [Paris – 1889; Berna – 1891; Milão – 1894;
Bruxelas – 1897] onde estas questões foram debatidas, muitos foram os
projectos de lei apresentados em França sobre esta matéria, no entanto, o que
ressaltava dos mesmos eram as divergências existentes entre os distintos
interlocutores – “depois de quinze anos, o parlamento oferece-nos, com efeito,
o mais lamentável espectáculo de impotência legislativa. Podendo o projecto
em mãos ser comparado à tapeçaria de Penélope” (Ernest Tarbouriech)”
(Menezes, 2009: 133).

Terá sido em grande medida esse movimento que permitiu a apreensão


da questão social como uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade
experimenta o enigma da sua coesão social e tenta conjurar o risco da sua
fractura (Castel, 1998: 30). Note-se, porém, o descompasso na maturação do
movimento social: em França43, a primeira associação apostada na defesa das
de vítimas de acidentes de trabalho nasce em 1920, enquanto em Portugal isso
apenas acontece 56 anos mais tarde, no período pós-revolucionário.

A extensão dos direitos sociais e o seu enquadramento organizado em


sistemas públicos (mais ou menos redistributivos), mistos ou privados de
segurança social representa um processo complexo que esteve na origem da

43
De acordo com Jacques Doublet, os acidentes de trabalho constituíram o “primeiro risco que,
em França, como em outros países, foi objecto das preocupações do legislador” (1961: 180), e
portanto uma das primeiras causas de reacção e organização operária.

86 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

consolidação dos Estados-Providência e do modelo social no contexto


europeu. Como tem vindo a ser recenseado pela literatura especializada
(Sousa, Casanova e Pedroso, 2007; Barnes, 1999; Finkelstein, 2001; Barton,
1993), os movimentos políticos e as organizações sociais das pessoas com
deficiência e incapacidade que ganham expressão progressiva em finais da
década de 60 têm o mérito principal de questionar a epistemologia hegemónica
do dano, convertendo aquilo que era conhecido e percepcionado como um
problema pessoal e individual num problema social e político. A fatalidade
individual (Martins, 2006) de um acidente cedia assim lugar a um novo topos
interpretativo, que o reenquadrava enquanto resultado de um processo social e
desigualmente construído, vincando-se as respectivas dimensões conflituais e
disputando-se mecanismos de resposta e repararão adequados à nova
concepção do indivíduo perante a responsabilidade pública do Estado e as
dinâmicas próprias do mercado.

6.2. Os seguros de acidentes rodoviários

Se a necessidade de reparação de danos corporais causados a terceiros


é, sob filosofias variáveis, historicamente constante, a emergência da
sinistralidade rodoviária, enquanto fenómeno merecedor de atenção social e
política pública é algo bem mais recente. O seguro automóvel, enquanto
modelo de protecção dos envolvidos e respectivos bens, nasce em 197944, com
um carácter exclusivamente voluntário. Visando sobretudo acautelar as perdas
e danos materiais provocados pelo acidente, este primeiro sistema de seguro
perante a sinistralidade rodoviária aparece num contexto em que o crescimento
económico, a democratização e generalização do acesso ao automóvel, valor

44
Decreto-Lei n.º408/79.

87 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

económico e social do automóvel e o aumento extraordinário dos acidentes de


viação justificam a criação de uma política de seguros capaz de responder
àquilo que, comum e complacentemente, se considerava uma consequência
natural da circulação rodoviária:

“O acidente era visto como um azar (tanto um azar do condutor lesante como
um azar da vítima – como costumava dizer-se “o acidente só não acontecia a
quem não andava na estrada”) tudo porque, como já tinha acontecido com as
vítimas laborais saídas da revolução industrial, os acidentes eram tido como o
preço inevitável e socialmente aceitável para a modernização do País”
(Figueiredo, 2010: 17)

A convergência europeia e a adesão de Portugal à CEE em 1986 foram


um passo fundamental nas dinâmicas de reforma desta matéria. Verifica-se, a
partir de então, um processo de europeização da política de regulação da
sinistralidade rodoviária, espelhada, entre outras coisas, na transformação do
seguro automóvel em seguro obrigatório e na assumpção de um clausulado
uniforme e capitais mínimos nos países da CEE. Se o sistema de seguros
constituía uma área apetecível no panorama financeiro europeu – dado o
volume de reserva de capital que o sistema acumula –, o estatuto das vítimas
foi também um grande motor da reforma legislativa na responsabilidade civil
automóvel45.

Sendo grande o crescimento do número de processos indemnizatórios a


chegar aos tribunais, as práticas judiciais sofreram desde logo uma pressão
acrescida face aos juízos de equidade na modelação e quantificação dos
danos corporais legalmente ressarcíveis. Neste sentido, a relativa flexibilidade
dos quadros normativos e a grande variabilidade das decisões judiciais sobre a

45
Traduzido, por exemplo, na redução das exclusões e no aumento sucessivo dos capitais
mínimos obrigatórios.

88 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

indemnização de danos corporais começam a constituir uma fonte de incerteza


e insegurança para o sector segurador46.

As medidas padrão começam a ganhar forma nos tribunais portugueses


(perda da vida, tabelas, etc.), muito embora a (in)justiça do caso concreto
requeresse uma ponderação específica para o dano e as suas circunstâncias e
a fundamentação das decisões nem sempre se orientou por critérios comuns e
generalizáveis, gerando fortes discrepâncias indemnizatórias. Estas
discrepâncias produziam dois tipos de impacto: por um lado, subvertiam um
princípio partilhado de justiça, suscitando atitudes muito críticas perante o
sistema e conotando-o ou com um mercado indemnizatório ou com o domínio
da pura aleatoriedade, reflectindo, por essa via, desigualdades de patrocínio.
Por outro lado, e como comprova a posição das companhias de seguros, estas
clivagens revelavam-se perturbadoras de uma política de seguros mais
garantida e imunizada aos riscos emergentes, por exemplo, da profecia que era
o cálculo do dano futuro e do subjectivismo dos danos não patrimoniais.

6.3. As tecnologias do risco: algumas considerações

Uma outra questão que pretendemos sublinhar acompanha as diferentes


tensões experimentadas na trajectória percorrida pelos fundamentos jurídicos
da reparação, mas reporta-se a uma problemática distinta, que, desta feita,
materializa o nosso argumento alusivo à emergência de uma racionalidade
biopolítica na governação dos acidentes de trabalho.

46
Neste sentido: “no quadro então vigente e no âmbito dos sinistros com danos corporais nem
com recurso a um oráculo era possível prever-se com algum grau de segurança que
indemnização seria devida a um sinistrado» (Figueiredo, 2010: 18)

89 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Embora se encontre originalmente associado ao aparecimento das


ciências demográficas e da estatística como instrumento de acção
governamental, este novo modelo de regulamentação biopolítica socorre-se de
um aparelho tecnológico de poder – cujo expoente é a racionalidade
seguradora – consistindo o seu principal objectivo em agrupar

“Os efeitos de massas próprios de uma população, procurando controlar uma


série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva [...]; controlar,
modificar a probabilidade desses eventos e compensar os seus efeitos”
(Foucault, 2002: 297).

Se o poder disciplinar – com o qual coexiste e se articula no quadro de


um comando hegemónico mais amplo –, assenta na confecção de dispositivos
anátomo-políticos de treino, vigilância, domesticação, rentabilização e punição
dos corpos individuais (Foucault, 2007), a biopolítica representa uma tecnologia
previdenciária e regulamentadora de teor massificante, investida na modulação
e no equilíbrio global – homeostase – de um sujeito não individual mas
populacional. Preocupa-se, por isso, com a segurança do conjunto em relação
aos seus perigos endémicos. Em suma,

“Nos mecanismos implantados pela biopolítica, vai se tratar, sobretudo, é claro,


de previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais; vai se tratar,
igualmente, não de modificar tal fenómeno em especial, não tanto tal indivíduo,
na medida em que é indivíduo, mas essencialmente, de intervir no nível daquilo
que são as determinações desses fenómenos gerais, desses fenómenos no
que eles têm de global. […] E trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos
reguladores que, nessa população, global com seu campo aleatório, vão poder
fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de
homeostase, assegurar compensações […] Em resumo, [trata-se de] levar em
conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre
eles não uma disciplina, mas uma regulamentação.” (Foucault, 2002: 294)

90 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Entendida como tecnologia do risco (Ewald, 1992: 197), a lógica


seguradora comporta duas dimensões fundamentais: uma leitura específica do
conceito de risco e a sua tradução social num aparelho regulatório que lhe
confere inteligibilidade. Quanto à primeira, François Ewald operacionaliza o
enunciado a partir do qual o risco é acomodado no quadro de um sistema
segurador:

“In insurance the term designates neither an event nor a general kind of event
nor a general kind of event occurring in reality, but a specific mod of treatment
of certain events capable of happening to a group of individuals – or, more
exactly, to values or capitals possessed or represented by a collectivity of
individuals: that is to say, a population.” (1992: 199)

Relativamente à segunda dimensão, o autor radica a sua análise nos


termos daquilo que foi uma viragem epistémica, isto é, uma mudança alusiva
aos modos de produzir conhecimento sobre um fenómeno social47, a partir da
consagração de um

“Schema of rationality, a way of breaking down, rearranging, ordering certain


elements of reality. […] One insures against accident. Against the probability of
some good. Insurance, through the category of risk, objectifies every event as
an accident. Insurance’s general model is the game of chance: a risk, an
accident comes up like a roulette number, a card pulled out of the pack. With
insurance, gaming becomes a symbol of the world.” (1992: 199).

É neste sentido que, segundo avança, a emergência dos sistemas


seguradores, mais do que sinalizar um modelo específico de compensação ou
reparação de prejuízos, corresponde à tradução prática de uma nova

47
Se práticas diferentes produzem conhecimento diferente, também novas formas de
conhecimento constituem formas activas de produção de realidade social. Nesse sentido, a
actividade seguradora não apenas calcula como produz risco: “[it] makes risks appear where
each person had hitherto felt obliged to submit resignedly to the blows of fortune” (Ewald, 1992:
200).

91 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

racionalidade baseada no cálculo agregado de probabilidades. Representa,


nesse sentido, um modelo de previsão, notação e gestão do fenómeno da
sinistralidade, dando conta de um sistema organizado de técnicas e saberes
que Michel Foucault designou por governamentalidade e que ganha forma no
aparecimento, ao longo de todo o século XIX, de um complexo heterogéneo de
instituições subestatais48 ou, com maior precisão, de um

“Conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões,


cálculos e tácticas que permitem exercer esta forma bastante específica e
complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber
a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de
segurança” (1979: 171).

Será portanto esta nova paisagem sociojurídica de institucionalização


dos modos de organização e compensação dos prejuízos que se encontrará na
base do moderno sistema biopolítico de reparação da sinistralidade, isto é, de
devolução de uma ordem e de um equilíbrio aos requisitos de capacidade e de
utilidade corporal estruturantes das relações sociais e de trabalho, no quadro
histórico do capitalismo liberal49.

Na sociedade contemporânea, não está, todavia, ultrapassada a


necessidade de se desenvolver uma teoria crítica do risco, que consiga
questionar as visões mais estabelecidas, porém menos desafiadoras, do
paradigma liberal do risco. Se em Beck (1992) a sociedade de risco surge da

48
Michel Foucault aponta como exemplo as instituições médicas, as caixas de auxílio, os
seguros (2002: 299), cunhando todo esse processo como bio-regulamentação pelo Estado
(2002: 298).
49
Para além disso, a função mediadora cumprida pelas companhias de seguros na relação
entre empregador e trabalhador é ainda um marcador moderno da despersonalização
progressiva da responsabilidade (Dias, 2001: 28; Dessertine, 1990), reflectindo os desígnios
weberianos de especialização e diferenciação funcional nas respostas sociais e institucionais
fornecidas à complexidade crescente dos problemas.

92 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

obsolescência da sociedade industrial, privilegiando a análise dos novos riscos


e a identificação da falência dos sistemas tradicionais de protecção, controlo e
monitorização, é importante não esquecer, na esteira de Douglas e Wildasvsky
(1982), que a génese e a construção social do risco é um produto de
simulações colectivas, isto é, de hegemonias sociais que relevam e destacam e
determinados riscos. Comportamentos, grupos e situações de risco são, assim,
produto de uma relação de forças e não consequência inesperada da incerteza.

Por um lado, as perspectivas tecnocráticas sobre a gestão do risco e do


prejuízo, frequentes nos estudos especializados de seguros, têm vindo a
construir todo um aparelho técnico e conceptual sobre sistemas de cálculo,
previsão e monitorização de risco segurado (laboral, rodoviário e ramo vida) e
respectiva sustentabilidade financeira, condensado num manual generalizado
no contexto europeu: o Core syllabus for actuarial training in Europe do Groupe
Consultatif des Associations d'Actuaires des Pays des Communautes
Europeennes. Ora estes quadros técnicos e conceptuais procuram modelar
matematicamente o risco associado a uma carteira de apólices, de forma a
determinar a distribuição das indemnizações agregadas, prémios e
majorações. As suas principais áreas de incidência residem, assim, nos
métodos e técnicas actuariais (Kaas, Goovaerts, Dhaene e Denuit, 2001), nas
distribuições de danos, nos modelos de risco (Centeno, 2003), nos princípios
de cálculo de prémio, no resseguro e na teoria da ruína50 (Dickson, 2005;
Egídio dos Reis, 1999).

50
Também designada como teoria colectiva do risco, é um subproduto das ciências actuariais,
estudando a vulnerabilidade de um segurador à insolvência, com base em modelos
matemáticos e probabilísticos. Esta teoria permite a derivação e o cálculo de medidas
correlacionadas, incluindo a probabilidade da ruína final, a distribuição do excesso de um
segurador imediatamente antes da ruína, o défice na altura da ruína, entre outros aspectos.
Considera-se também como uma área de probabilidade aplicada, porque a maioria das
técnicas e das metodologias adoptadas na teoria da ruína são baseadas na aplicação de
processos estocásticos.

93 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

Porém, este modelo, ainda que útil à administração eficiente dos ganhos
e perdas e essencial ao exercício de custo-benefício para as opções e
estratégias empresariais, reproduz e fortalece uma concepção hegemónica do
risco, que, ao invés de explorar a sua produção sistémica e reagir aos seus
efeitos desiguais na sociedade, privilegia uma visão lucrativa, gestionária e
selectiva, que equipara a integridade física a um produto financeiro e que,
dentro das margens legais – de que, em bom rigor, é facticamente co-autor –
impede a qualificação dos processos reparatórios e invisibiliza aquilo que são
os dramas sociais excluídos da sua contabilidade. Não que isto retire
importância a muitas das contribuições fornecidas pelas novas teorias do risk
management (Areosa, 2003: 42) ou do disability management (Corbett, 2004;
Sousa, 2005), enquanto conjunto de princípios, métodos, técnicas, ferramentas
e procedimentos a adoptar no seio das empresas.

Aquilo que Brian J. Glenn (2000) designou por mito do actuário ilustra o
outro lado da força financeira do sistema segurador dominante, que é, de
alguma forma, a sua profunda falibilidade social. Um estudo conduzido nos
EUA sobre a amplitude da cobertura do seguro comprovou a incapacidade de
os métodos estatísticos e actuariais darem conta da existência de mecanismos
de exclusão que o próprio sistema não testa nem controla:

“The myth of the actuary is predicated on the economics literature that states
that insurers should be expected to provide coverage for any group that they
can write profitably. Thus, the current approach to regulation focuses mostly on
the actuarial data provided by companies, ensuring that rates are justified and
fair marketing. But fair marketing and justified rates are irrelevant if applicants
are not accepted for coverage due to criteria that arte never tested statistically,
nor approved by the polity.” (Glenn, 2000: 781)

O conceito de colonialidade, inicialmente avançado por Aníbal Quijano e


depois retomado por autores como Walter Mignolo ou Edgar Lander e, mais
amplamente, pelos estudos pós-coloniais, tem sido crescentemente utilizado

94 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

para caracterizar a persistência, para além do fim da dominação colonial


formal, de modelos de conhecimento, de padrões culturais, de formas de
organização institucional, da economia e das relações sociais próprias das
antigas metrópoles colonizadoras nas sociedades do Sul global.

Esses modelos, e as práticas sociais que os acompanham, têm como


efeito a subordinação, marginalização, descredibilização ou destruição de
determinadas formas de cuidado, conhecimento e sociabilidade, de
organização política, económica e social, de visões do mundo e de práticas
sociais e culturais, denunciando-as como obstáculos à modernização ou
racionalização da sociedade, das instituições e da regulação social e jurídica.
Ora um dos grandes desafios que se colocam à teoria social contemporânea e
à reconstrução de uma teoria crítica do risco consiste em retomar, de maneira
mais geral, esse conceito de colonialidade como conceito adequado à análise
sociológica das formas e implicações da tecnocracia e da globalização
hegemónica ou neoliberal nas próprias sociedades do Norte, em particular na
maneira como se reflectem nas novas formas de encarar, dignificar e reparar a
perda, o sofrimento, a incapacidade e o dano corporal. Como lembra Edward
Said, se outras colónias tinham as little europes, hoje, as zonas metropolitanas,
têm little colonies. De acordo com Boaventura de Sousa Santos,

“O pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas abissais


que dividem o mundo humano do sub-humano, de tal forma que princípios de
humanidade não são postos em causa por práticas desumanas. As colónias
representam um modelo de exclusão radical que permanece actualmente no
pensamento e práticas modernas ocidentais tal como aconteceu no ciclo
colonial. Hoje, como então, a criação e ao mesmo tempo a negação do outro
lado da linha fazem parte integrante de princípios e práticas hegemónicos.
Portanto, esta linha abissal faz com que as diferenças na zona colonial sejam
de tal ordem que se nos tornam indiferentes.” (Santos, 2007: 9)

95 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

É no outro lado da linha abissal que encontramos o mundo do sinistrado,


trespassado por diferentes experiências e trajectórias, por níveis diferenciados
de dependência e vulnerabilidade, de capacitação ou desarme social. A crise
da função de confiança assumida pelos Estados modernos, que os converteu
numa instância que gere os riscos societais e detém capacidade para proteger
os cidadãos contra os riscos, significa acima de tudo um recuo, mais ou menos
selectivo e mais ou menos planeado, da cobertura provisional e regulatória que
o Estado confere aos cidadãos mais desprotegidos económica, social e
juridicamente.

As novas tendências informalizadoras e desjudicializadoras (Fernando e


Santos, 2010), embora sirvam interesses legítimos de racionalização
institucional, descongestionamento processual, simplificação procedimental e
aproximação da justiça à comunidade e aos cidadãos, constituem igualmente
uma oportunidade predatória e um risco de vulnerabilização face aos quais o
Estado, tradicionalmente, intervinha sob o argumento do equilíbrio, da
correcção e da justiça. Em contextos desiguais, a lei liberta e a liberdade
oprime e as garantias fundamentais dos cidadãos sinistrados não se
compadecem com experimentalismo nem podem sucumbir à chantagem da
eficiência.

O mundo da sinistralidade não é o mesmo mundo para todos. Dentro


dele também se cavam gritantes linhas abissais, sobretudo através de uma
distinção falaciosa entre a esfera do trabalho – onde impera a desigualdade – e
a esfera civil – onde vigora a presunção igualitária. Se o acidente de trabalho
se encontra, como vimos, confinado a grupos sociais destituídos de poder e
hegemonia, o acidente rodoviário, com as devidas nuances sociológicas,
constitui um risco potencialmente transversal e portanto universalizável. E aqui
emerge a tensão entre os riscos seguráveis e os riscos inseguráveis, entre os
riscos segurados e os riscos não segurados. Esta tensão é constitutiva da
teoria e das relações sociais do risco, influenciando e sendo influenciada pela

96 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

identificação e legitimação das condições e dos contextos sociais de maior


vulnerabilidade. Porque é que há danos corporais segurados no domínio civil
que não são segurados no domínio laboral? Por que é que, no trabalho, aquilo
que está em risco é a integridade produtiva do trabalhador, e, em matéria civil,
o bem protegido é a integridade física do cidadão?

O conceito de colonialidade permite-nos assim compreender este viés


político e epistemológico: na ordem das sociedades metropolitanas, o risco é
excepção; no caos das sociedades coloniais, o perigo é sistémico e intrínseco,
imprevisível e incomputável. Civilização e barbárie. Pelo que a questão do risco
não se coloca como um episódio ou acontecimento, na medida em que se trata
de uma condição de partida. De uma condição omnipresente e estrutural. Mas
se a racionalidade seguradora é por isso incompatível com a desordem
colonial, impeditiva do uso das tecnologias do risco a que já aludimos, a
sinistralidade laboral não o é. Aquilo que a coloca no lado de lá da linha abissal
é a desigualdade social e o desreconhecimento, invisibilização e tolerância ao
dano e ao sofrimento humano. Esta realidade é fortemente espelhada na
política do risco e na forma como o direito e a ciência permitem ampliar ou
reduzir a redistribuição e o reconhecimento (Fraser, 2001), isto é, funcionar ou
não funcionar enquanto códigos, recursos e racionalidades emancipatórias e
contra-hegemónicas (Santos, 2000).

O Direito e a Ciência são as duas grandes janelas através das quais é


possível identificar as contradições na sociedade capitalista (Santos, 2000). A
incapacidade de regulação dos interesses contraditórios que operam no
domínio da reparação da sinistralidade traduz-se, assim, na forma como os
operadores de seguros desenvolvem estratégias eficazes de captura do direito
– através da influência nos quadros jurídicos – e da ciência, através da
influência na actividade pericial e dos códigos epistemológicos que lhe
subjazem. Esta dupla captura possui um potencial destruidor só da pluralidade
interna do direito – espelhada em concepções alternativas do risco –, como da

97 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

pluralidade interna dos saberes especializados colocados ao serviço da justiça.


O monopólio da medicina sobre o corpo, para além de ser exercido através da
eliminação da divergência interna, compromete a emergência de outros
saberes essenciais à produção de novos enunciados e orientações para a
justiça corporal.

As questões do risco têm sido uma das instâncias por excelência de


despolitização da política do nosso tempo. E, tanto assim é, que hoje podemos
dizer que o grande sujeito histórico, no princípio do século XXI, parece ser o
medo e não outra coisa, e, naturalmente, que o medo é algo que alimenta o
trabalho pericial ad infinitum. Um pensamento alternativo, capaz de desarticular
os vícios estruturais da reparação corporal dominante, passa certamente por
duas dimensões entrecruzadas: epistemológica e política. A primeira procura
viabilizar áreas de conhecimento que aquilo que, mais à frente, designamos por
clinicalização da peritagem, impediu de emergir. No quadro de uma ecologia
dos saberes, só a articulação da disciplina médico-legal com outros domínios
do conhecimento é capaz de ampliar o cânone pericial e abarcar as diferentes
dimensões do prejuízo corporal do sinistrado: um coeficiente jamais traduzirá a
sua condição de lesado. A segunda ancora-se na necessidade de construção
de uma nova política de direitos e novos direitos fundamentais que, de alguma
maneira, possam reverter a espiral excludente e degradante da condição de
sinistrado – porque não basta ter um outro tipo de conhecimento, é preciso
colocar na agenda política novas concepções do risco, enfrentando as capturas
e os interesses contraditórios que, até hoje, dominam, de formas diversas e
muitas vezes insondáveis, o sistema legislativo e pericial.

A evolução das dinâmicas capitalistas, a institucionalização do pacto


social e a emergência dos Estados de bem-estar nas sociedades ocidentais
vieram densificar o catálogo de direitos sociais dos cidadãos, trabalhadores e
sinistrados, viabilizando-o através de um sistema moderno de regulação
biopolítica dos termos em que se processa a reparação dos acidentes de

98 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

trabalho. Todavia, as transformações na economia global e a natureza privada,


lucrativa e empresarial dos operadores de seguro de acidentes laborais e
rodoviários estará na origem da vinculação da racionalidade seguradora a um
objectivo de acumulação capitalista que é detentor de uma concepção
hegemónica de risco e segurança – enquanto premissas funcionais da
governamentalidade foucaultiana – que tem vindo a ser cabalmente contestada
por diferentes agentes sociais e políticos, porque é activamente geradora de
exclusão e subcidadania. Poderá opor-se, ideal-tipicamente, a biopolítica à
biocidadania enquanto tecnologias congéneres mas concorrenciais de gestão
de incapacidade e de enunciação de justiça corporal.

Esta noção de governação biopolítica do dano corporal permite-nos


incorporar as dinâmicas do fascismo societal como ponto de observação da
erosão da qualidade reparadora, submetida a princípios e valores que a
secundarizam e, paradoxalmente, desqualificam. A crise do contrato social
moderno, isto é, a turbulência dos critérios de inclusão e exclusão que
organizavam as sociedades modernas, tem vindo a indiciar uma transição
paradigmática (Santos, 2002). O seu regime geral de valores não resiste à
multiplicação de apartheids, o que tem vindo a colocar em causa não apenas a
luta pelo bem comum, como as próprias concepções de bem comum. A disputa
dessa concepção de bem comum converge com a luta pela noção de
segurança51 que os sistemas indemnizatórios emprestam à integridade
corporal, estruturando, por um lado, as garantias sociojurídicas dos cidadãos e
os processos reparatórios, e reconfigurando, por outro, a condição de lesado
numa sociedade desigual e com graves lacunas provisionais. Neste sentido, a
crise contratual a que já aludimos caracteriza-se pela prevalência dos
processos de exclusão sobre os processos de inclusão, produzindo novas

51
Para uma concepção bio-psico-social do prejuízo corporal, cf. a Classificação Internacional
de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde.

99 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

ordens sociais que Boaventura de Sousa Santos tem vindo a designar por
fascismos societais, revestindo-se de diferentes contornos em função dos seus
mecanismos actuantes e da sua incidência social.

O fascismo para-estatal, o fascismo da insegurança e o fascismo


financeiro constituem, de forma articulada, aqueles que melhor nos ajudam a
compreender as tendências sociais, políticas e jurídicas da reparação do dano
corporal na sociedade portuguesa contemporânea. O primeiro dá conta da
usurpação, por parte de poderosos actores sociais, das prerrogativas estatais
da regulação social, com a própria conivência do Estado, neutralizando o seu
potencial correctivo e emancipador. A discussão sobre as condições objectivas
do exercício e da eficácia da regulação levantam muitas vezes a hipótese da
conversão do regulado em regulador, indiciada pela migração dos
52
administradores de companhias de seguros para as funções de supervisão . A
essa problemática acresce o descrédito progressivo nos valores de controlo,
fiscalização e prestação de contas:

“À tutela do Estado no sector dos seguros cumpre, de facto, controlar e


fiscalizar o exercício das respectivas actividades, o que só pode traduzir-se na
concreta distribuição para a solidez do sector. Os desvios serão, em tais
circunstâncias, menos frequentes e, em todo o caso, detectados a tempo. Há
que operar no sentido da confirmação das possibilidades do sector e de todas
as empresas que o integram de responder pelos compromissos assumidos e
pelos meios financeiros de que são gerentes. É também preciso sublinhar que
a tutela tem o dever de velar pela protecção adequada dos legítimos interesses
e direitos dos segurados, de todos aqueles que directa ou indirectamente são
os destinatários do regime de garantias outorgadas pelo contrato de seguro e
dos interesses do Estado. Os valores do controlo e da fiscalização da

52
Veja-se o caso do Instituto de Seguros de Portugal.

100 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

actividade seguradora estão hoje ameaçados de diluição.” (Oliveira, 1998:


144/146)

A disparidade de poderes entre as companhias de seguros, actores


robustos e rotinizados, e o lesado, actor individual, inexperiente e vulnerável,
não encontra na regulação pública da reparação mecanismos que impeçam a
aceitação onerosa e despótica das condições contratuais que lhe são
apresentadas como possíveis, desejáveis e razoáveis. Os instrumentos
políticos, jurídicos e judiciais, na mão do Estado, revelam-se, assim, incapazes
de corrigir esse desequilíbrio, contribuindo, inclusivamente, para a sua
acentuação.

As controvérsias políticas sobre o sistema de reparação de acidentes de


trabalho são, a esse propósito, particularmente elucidativas. Apesar da Lei de
Bases da Segurança Social prever a possibilidade de incorporar a reparação
da sinistralidade laboral, esta hipótese tem sido progressivamente afastada
pelo legislador. Todavia, não deixa de ser uma opção que esteve em aberto
anos a fio, desde a reprivatização do sector segurador – o que não significa
que não haja uma retórica política justificativa mas evasiva perante a sua
aparente irreversibilidade. É forte a pressão sobre a regulação pública53, com o
objectivo de preservar as margens de lucro das seguradoras. Como os
recursos são escassos, a qualidade da reparação pode ficar comprometida. A
linguagem da cidadania e dos direitos sociais dos sinistrados colapsa perante a
linguagem do mercado, a que os sistemas indemnizatórios passam a obedecer:

“Por boas tarifas (de prémios) é preciso entender, não tarifas muito baratas,
nem tarifas exageradas, mas tarifas que se apliquem aos diversos riscos. [...]
Até aqui muito poucas companhias se preocuparam com a elaboração de

53
Neste sentido um dos nossos entrevistados disse o seguinte: “Eu tenho algumas reservas
sobre se os accionistas das seguradoras vão manter o interesse em continuar a explorar este
ramo se o legislador não tiver alguma cautela naquilo que anda a fazer.” (Ent.21)

101 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

rigorosas estatísticas e a construção, a partir delas, de tarifas exactas. As


alterações de tarifas não resultam de verificações estatísticas: são o resultado
da pressão da concorrência.” (PJ Richard apud Potin, 1948: 14)

Sucumbida às contingências do fascismo para-estatal, esta realidade


não se limita à progressão das lógicas seguradoras no aprovisionamento da
reparação aos sinistrados – abrangendo a contabilidade indemnizatória,
modelação e negociação da assistência clínica, política financeira, os
parâmetros e as opções de litigância, a formação e o investimento em recursos
humanos, as estratégias de gestão empresarial: mobiliza também diferentes
actores com múltiplas e complexas articulações entre si. Mas no que toca, em
particular, os processos desenvolvidos pelo sector segurador, são várias as
perspectivas críticas que têm vindo a ganhar visibilidade, questionando aquilo
que são as bases fundamentais da confiança que o Estado confere aos
operadores de seguros relativamente à efectivação dos direitos dos segurados.
Nesse sentido, Fernando Barbosa Oliveira procura desarticular algumas das
concepções dominantes sobre a filosofia e a prática seguradora, chamando a
atenção para

“A má gestão; a gestão aventureira e arrogante, por vezes largamente


publicitada como de primeira qualidade; a falta de respeito pelas bases
técnicas do seguro; o mergulho em grandes operações que dão falaciosos
sinais de prosperidade; os Seguros como pretexto para obter lucros noutros
lugares; as engenharias financeiras e os critérios do seu tratamento, critérios
que por inteiro se alheiam da origem dos fundos, mas que desabam
negativamente sobre os custos do seguro, e não sobre o património e as
pessoas dos seus autores e promotores” (Oliveira, 1998: 117)

Este testemunho não deixa de levantar um conjunto de questões da


máxima relevância no que concerne o impacto deste modelo de cobertura do
risco, tanto nos tomadores de seguros como nas vítimas de sinistralidade
laboral e rodoviária. O sistema de seguros reflecte, assim, muito daquilo que

102 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

são as nossas preocupações sociológicas relativamente aos processos


indemnizatórios: envolve não apenas valores patrimoniais54, mas sobretudo
valores sociais, inscritos numa economia moral muito própria que se desloca
desde a cobertura de uma despesa até à integridade e à vida humana, o que,
naturalmente, não só legitima como torna obrigatórias diferentes interpelações
de natureza sociojurídica sobre a responsabilidade e a efectividade da
reparação.

O fascismo da insegurança ocorre quando a precariedade da vida social


e a consciência do risco se transformam tanto em condições óptimas como em
recursos políticos para a degradação das garantias sociais dos cidadãos.
Assistimos a uma crescente ambivalência no panorama sociolaboral: se, por
um lado, determinadas franjas, dotadas de talento, competências e
conhecimentos escassos, legitimam a sua centralidade e indispensabilidade,
transitando de estádios de mera participação para a ribalta da performance e
desenvolvimento organizacional (Evans, 2003), aquelas que são as principais
vítimas da sinistralidade apontam para um papel e um estatuto desvirtuados,
lentamente, numa lógica do capitalismo flexível marcada pela impessoalidade,
descartabilidade e por vínculos laborais cada vez mais voláteis, virtuais e
psicológicos (Sennet, 2001). Só é mal reparado quem é fácil e indiferentemente
substituído.

O acidente, laboral ou rodoviário, imprevisível mas irreversível, constitui


um acontecimento desestabilizador que gera níveis tão elevados de ansiedade
e incerteza quanto ao presente e ao futuro que acaba por baixar o horizonte de
expectativas do sinistrado. Este processo torna-o disponível para tolerar e
suportar grandes custos sociais e económicos que assegurem o mínimo de

54
Nomeadamente pelo facto de os seguros gerirem capitais alheios que lhe são confiados, dos
quais devem prestar contas.

103 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica

protecção perante a sua condição vulnerável. A hegemonia e eficácia deste


sistema serve-se de ilusões retrospectivas e prospectivas: as primeiras
inflacionam a memória da insegurança, do desperdício e do perigo daquilo que
é uma gestão pública dos recursos, cavalgando a falácia do seu esgotamento e
assegurando-o ontologicamente incompetente; as segundas operam através de
cenários encantatórios, ocultando riscos e prejuízos. Como veremos, as
retóricas que procuram vender e legitimar a desjudicialização dos acidentes de
trabalho corroboram por inteiro este processo.

Finalmente, o fascismo financeiro encontra-se intimamente relacionado


com a financeirização do sector segurador. Constituindo uma das formas mais
virulentas de predação social, este processo resulta da concentração excessiva
de poder nos movimentos financeiros e especulativos, obedecendo em
exclusivo aos imperativos da rentabilização de capital, com efeitos incalculáveis
em bens e direitos fundamentais dos cidadãos, como é o caso da integridade
física e da sua justa indemnização. Se os produtos financeiros são, em si,
geradores de numerosos efeitos económicos perversos, a inclusão dos seguros
obrigatórios – laborais e rodoviários – nessa engrenagem gestionária
descaracteriza a sua vocação social e compromete os direitos reparatórios dos
cidadãos. Um ajuste financeiro pode significar, no limite, um direito sonegado e
um bem jurídico fundamental – que é a integridade física – desprotegido.

104 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


2

CAPÍTULO 2
OS QUADROS LEGAIS DA INDEMNIZAÇÃO
DA VIDA E DO CORPO
Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

1. MODALIDADES DA RESPONSABILIDADE CIVIL


EXTRACONTRATUAL

O ordenamento jurídico português reconhece várias modalidades de


responsabilidade civil extracontratual: a responsabilidade por factos ilícitos
(artigo 483.º a 498.º do CC), a responsabilidade por factos lícitos danosos
(artigos 339.º ou 1322.º, ambos do CC) e a responsabilidade pelo risco (artigo
499.º a 510.º do CC).

1.1. Responsabilidade por factos ilícitos

A responsabilidade por factos ilícitos encontra a seguinte enunciação no


articulado legal (artigo 483.º do CC): “Aquele que, com dolo ou mera culpa,
violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a
proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos
resultantes da violação”. Os pressupostos que asseguram a obrigação
indemnizatória ao abrigo desta modalidade de responsabilidade civil são,
portanto:

106 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Um facto voluntário do agente (e não um facto natural causador de danos);

A sua ilicitude;

Um nexo de imputação do facto ao lesante;

A emergência de um dano da violação da lei ou de um direito;

Um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano


sofrido pela vítima55.

A regra no nosso ordenamento jurídico é que a prática de um


determinado facto ilícito56, sendo este um acto (acção ou omissão) dominável
ou controlável pela vontade do agente (e que, portanto, tenha agido com culpa,
nos termos que a seguir passaremos a explicar), gera a obrigação de
indemnizar o lesado quando daí resultar um dano para este último e se
estabeleça o nexo de causalidade entre esse dano e o facto praticado pelo
agente. Não obstante ser esta a regra, a lei prevê um conjunto de situações
capazes de afastar a ilicitude e, por consequência, o dever de indemnizar.
Estamos a referir-nos às causas justificativas ou causas de exclusão da
ilicitude57. Assim, quando estas se verificam ou, ainda, quando o facto ilícito é

55
Para além destas grandes directrizes constantes do artigo supramencionado, o legislador
deu, ainda, tratamento jurídico especial a alguns comportamentos antijurídicos que também
geram responsabilidade civil, nomeadamente, os factos ofensivos ao crédito ou ao bom nome
da pessoa (cf. artigo 484.º do CC), os conselhos, recomendações ou informações geradoras de
danos (cf. artigo 485.º do CC), ou as omissões (cf. artigo 486.º do CC).
56
Ou seja, violação de um direito de outrem ou a violação da lei que proteja interesses alheios.
57
A título exemplificativo podemos referir as situações de Acção Directa previstas no artigo
336.º do CC, as situações de legítima defesa previstas no artigo 337.º do CC, o Estado de
Necessidade previsto no artigo 339.º do CC, e as situações em que houve consentimento do
lesado previstas no artigo 340.º do CC.

107 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

praticado “no exercício regular de um direito”58, dever-se-á considerar tal


comportamento como justificado e, por consequência, gerador do afastamento
do pressuposto da ilicitude.

A culpa, por sua vez, traduz-se uma conduta merecedora de censura ou


reprovação por parte do direito59 e esta pode revestir duas modalidades: o dolo
e a negligência ou mera culpa. O dolo (seja directo60, necessário61 ou
eventual62) aparece como a modalidade mais grave da culpa e,
consequentemente, aquela que se traduz numa conduta mais fortemente
censurável dado que o agente terá que ter um conhecimento das
circunstâncias de facto que integram a violação do direito ou da norma
tuteladora dos interesses alheios e a consciência da ilicitude desse facto 63. A
mera culpa ou negligência, por sua vez, traduz-se na omissão da diligência
exigível do agente, cabendo aqui os casos em que o agente prevê a
possibilidade de produção do facto ilícito como possível, mas, por leviandade
ou precipitação, acredita na sua não verificação, e, ainda, os casos em que o
agente, não usando da diligência devida, não chega sequer a conceber a

58
Cf. Antunes Varela em anotação ao AC. do STJ de 26/03/1980.
59
Trata-se de uma conduta que, face às circunstâncias concretas, podia e devia ter sido
evitada, levando a que o agente tivesse agido de uma outra forma. Acresce que, para haver
culpa, temos que estar perante um agente imputável, dotado de discernimento (capacidade
intelectual e emotiva) e de certa liberdade de determinação (capacidade volitiva).
60
Quando o agente quis directamente realizar o facto ilícito e para tal representa determinado
efeito da sua conduta e quer que esse efeito se produza.
61
O agente, ainda que não querendo directamente o facto ilícito, previu-o como efeito
necessário da sua conduta.
62
O agente, ao actuar, não confiou em que o facto ilícito não se viesse a verificar.
63
Não sendo todavia necessário que se verifique a intenção de causar um dano. Basta,
apenas, que o agente tenha a consciência do prejuízo.

108 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

possibilidade do facto ilícito se vir a verificar.

Sendo a culpa do lesante um elemento constitutivo do direito de


indemnização, cabe ao lesado fazer prova da mesma (cf. n.º 1 do artigo 342.º
do CC), ressalvadas as situações de presunção legal de culpa. Isto é, os casos
em que a lei, por si, presume a culpa do lesado. São elas:

Situações em que haja pessoas obrigadas à vigilância de alguém (cf. artigo


491.º do CC);

Situações em que haja danos causados por edifícios ou outras obras,


desde que a derrocada ou queda se tenha devido à vício de construção ou
defeito de conservação (cf. artigo 492.º do CC);

Situações em que haja danos causados por coisas ou animais (ou pelo
emprego destes) ou por actividades perigosas64 (cf. artigo 493.º do CC).

Não obstante a verificação de todos os pressupostos já elencados, só


uma vez verificado o dano é que nasce a obrigação de indemnização. E este
dano pode ser patrimonial ou não patrimonial. O dano patrimonial reflecte o
dano real sobre a situação patrimonial do lesado, cabendo aqui, portanto, o
dano emergente ou a perda patrimonial65, como o lucro cessante ou
frustrado66. O dano não patrimonial, por sua vez, engloba os prejuízos
insusceptíveis de avaliação pecuniária porque atingem bens que não integram
o património do lesado.

64
O carácter perigoso da actividade pode resultar da própria natureza da actividade ou da
natureza dos meios usados (cf. n.º 2 do artigo 504 do CC).
65
Prejuízo causado nos bens ou direitos existentes na titularidade do lesado à data da lesão.
66
Benefício que o lesado deixou de obter por causa da lesão mas a que ainda não tinha direito
a essa data.

109 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Mas será ainda necessário que se dê como provada a existência de um


nexo causal entre o referido facto ilícito e o dano ou prejuízo sofrido pela
vítima. Assim, o facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar deve ser a
causa do dano (doutrina da causalidade adequada) uma vez que o agente
apenas deverá responder pelos resultados para cuja produção a sua conduta
era adequada e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua
natureza e o normal curso das coisas, não era apta a produzir aquele
resultado, mas que o produziu em consequência de uma circunstância
extraordinária.

1.2. Responsabilidade por factos lícitos danosos

A responsabilidade por facto lícito, estando prevista ao longo de todo o


Código Civil e emergindo sobretudo no âmbito dos direitos reais, prescinde da
culpa e fundamenta-se na constituição de um risco perturbador do direito
alheio, sem incorrer na prática de um acto culposo. Ou seja, temos um
determinado conjunto de actos que, não obstante a sua licitude, obrigam
todavia a indemnizar o prejuízo causado a terceiro, sendo vários os exemplos
deste tipo de responsabilidade: quem actue em estado de necessidade (cf. n.º
2 do artigo 339.º do CC), quem para apanhar frutos provoque prejuízos a
terceiros (cf. artigo 1367.º do CC), quem detiver instalações prejudiciais para
terceiros, proceder a escavações ou tiver que se socorrer de uma passagem
forçada momentânea (cf. artigo 1347.º, 1348.º e 1349.º, todos do CC).

110 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

1.3. Responsabilidade pelo risco

Há sectores em que as necessidades sociais de segurança acabaram


por se fazer sentir e, por consequência, assim temperar o pensamento clássico
da culpa (teoria da responsabilidade subjectivista), tendo sido no âmbito dos
acidentes de trabalho que desde logo se chegou a esta conclusão. Esta
modalidade de responsabilidade civil resulta, portanto, do facto de, à obtenção
de vantagens de uma dada conduta, deverem corresponder os encargos de
que a própria poderá ser geradora67, segundo um princípio de justiça
distributiva e de acordo com as premissas da teoria do risco. Ou seja, “quem
cria e mantém um risco em proveito próprio deve suportar as consequências
prejudiciais do seu emprego, já que deles colhe o principal benefício” (Antunes
Varela, 2000: 633). Nesse sentido, o dano não é imputado ao agente de uma
dada acção (ou omissão), mas justamente a quem domina a fonte de risco.
Pelo que a responsabilidade, não sendo subjectiva, não se encontra fundada
na culpa ou na ilicitude, mas no risco constitutivo das actividades
desenvolvidas, dotadas de níveis reconhecidamente atípicos de perigosidade.

Nesta dialéctica argumentativa destacamos, assim, os autores que, “fiéis


às linhas mestras do pensamento clássico, persistem em filiar a
responsabilidade extracontratual na ideia de culpa” (doutrina da
responsabilidade subjectiva) e “aqueles que, pelo contrário, tendem a
desprender-se cada vez mais desse pressuposto individual, para olharem de
preferência à necessidade ou conveniência social de reparar o dano sofrido

67
Neste sentido: “Compreende-se que se alguém exerce uma actividade criadora de perigos
especiais possa responder pelos danos que ocasione a terceiros. Será como que uma
contrapartida das vantagens que aufere do exercício de tal actividade.” (Almeida Costa, 2001:
562).

111 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

pelo lesado, desde que este não tenha agido com culpa grave ou com dolo.”
(teoria da responsabilidade objectiva), (Antunes Varela, 2000: 523).

O legislador, por sua vez, ainda que prevendo esta modalidade de


responsabilidade, não deixou de lhe atribuir um carácter excepcional através da
formulação constante no n.º 2 do artigo 483.º do CC. Assim sendo, a
responsabilidade por factos ilícitos representa a regra na responsabilidade civil
extracontratual, só existindo a obrigação de indemnizar, independentemente de
culpa, nos casos especificados na lei. Tal opção legislativa pode dever-se em
grande medida ao facto do nosso quadro doutrinário e jurisprudencial ter
origem numa matriz marcadamente subjectivista mas que, todavia, caminha
para uma matriz progressivamente mais objectivista 68.

Há 30 anos atrás, a doutrina e a jurisprudência começaram a questionar-


se sobre se a responsabilidade civil fundada na culpa dava resposta segura à
solução de todos os casos com que se confrontavam. Esta inquietação resultou
da exigência de prova de culpa a que a vítima está sujeita e que, não raras
vezes, acabava por a deixar numa situação em que não via o seu dano
reparado. Da resposta a esta questão surge a dialéctica que tem vindo a opor,
por um lado, aqueles que, fies à teoria da responsabilidade subjectiva, repelem
a ideia de que o agente do acto lesivo deve reparar o prejuízo causado mesmo
que não tenha agido com culpa; e, por outro, aqueles que, considerando a
teoria subjectivista insatisfatória, defendem a sua superação pela teoria do
risco, abraçando, assim, a ideia segundo a qual, uma vez apurado o dano, o
seu agente deverá sempre indemnizar a vítima.

68
Nesse sentido “a tendência dos últimos tratadistas é toda orientada no sentido de ampliar o
domínio da responsabilidade fundada no risco e na prática de factos lícitos que, aproveitando a
determinadas pessoas, causem prejuízo a outrem” (Antunes Varela, 2000: 523).

112 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Este movimento de superação da responsabilidade subjectiva, que


remonta a meados da década de 8069, foi alvo de duras críticas. A principal
dessas críticas reside no facto de, ao se dar demasiada atenção à vítima,
impondo cegamente o dever de reparar, levar-se-ia à equiparação de um
comportamento jurídico a um comportamento anti-jurídico do agente. Face a
esta e outras duras críticas, surgem aqueles que admitem como solução a
convivência daquelas duas teorias. Assim, a culpa exprimiria a noção básica e
o princípio geral definidor da responsabilidade, aplicando-se a doutrina do risco
nos casos especialmente previstos na lei ou, ainda, sempre que a lesão
provenha de uma situação criada por quem explora profissão ou actividade que
tenha exposto o lesado ao risco. E de facto, não obstante o entusiasmo
suscitado pela teoria do risco, a verdade é que, à semelhança do que
aconteceu entre nós, aquela teoria não chegou a substituir a teria da culpa nos
sistemas jurídicos de maior expressão. O que podemos observar é, portanto, a
convivência de ambas as teorias, sendo que a teria da culpa ocupa o espaço
da regra e a teoria do risco ocupa o espaço excedente.

Como acima já se referiu, esta discussão começou a fazer-se no âmbito


dos acidentes de trabalho. Numa primeira e numa tentativa de reacção contra a
injustiça de resultados práticos da orientação tradicional (teoria subjectivista),
houve a ideia de aplicar aos acidentes de trabalho o princípio da
responsabilidade contratual que presume a culpa. Mas, esta solução não
satisfez a doutrina mais atenta que logo percebeu que não era difícil para a
entidade empregadora provar a sua falta de culpa e o que estava em causa era
o risco inevitável das relações laborais que, portanto, não se considerava como

69
A partir desta década passaram a coexistir dois regimes diferenciados: o rígido sistema
codificado da responsabilidade subjectivista e uma série de subsistemas imbuídos de um
escopo protector e direccionado para os lesado, predominantemente objectivista.

113 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

justo que recaísse sobre o trabalhador70. Numa segunda fase que coincide com
a chamada socialização do risco, foi-se mais longe e passou a defender-se
que, em determinados sectores, se deveria assegurar a indemnização ao
lesado, independentemente de culpa do agente71 72.

O processo de ampliação do domínio da responsabilidade objectiva a


múltiplas esferas da vida social até então confinadas ao âmbito da
responsabilidade por facto ilícito terá correspondido a reclamações avançadas
de socialização do risco ou de comunização do dano. A alteração deste
instituto jurídico, no sentido da objectivação do risco (que, reforçamos,
prescinde da culpa do lesante e da ilicitude da conduta), significa,
simultaneamente, um regresso à intervenção seguradora do Estado. Assim e
como refere Álvaro Dias (2001: 25) “a percepção que o simples facto de criar
um risco ou potenciar um perigo comporta em si mesmo uma danosidade
social juridicamente relevante são sinais que, tendo prenunciado novos
tempos, se assumem [os parâmetros objectivistas] hoje como marca de

70
A este sector seguiu-se logicamente o sector dos acidentes de viação, defendendo-se que,
também aqui, se é o dono do veículo automóvel quem aproveita as vantagens da sua
utilização, então é sobre este que devem recair os riscos inerentes à sua utilização. E,
progressivamente, a tendência registada foi a de passar a defender-se o alargamento da
responsabilidade sem culpa a todos os utentes de coisas perigosas e em particular aos que
pela sua exploração ou utilização auferissem lucros ou vantagens.
71
E isto mesmo nos casos em que se desconhecesse o autor da lesão ou quando, sendo
conhecido, não tivesse meios suficientes para assegurar a reparação do dano. Para o efeito
avançou-se com a ideia da ampliação dos seguros sociais para, assim, se conseguir dar
resposta a estas situações de dever de indemnização.
72
O progressivo afastamento da regra da responsabilidade civil baseada na culpa foi
conseguido ao avançar por diversas direcções, sendo, aliás, algumas delas, bastantes subtis e
não assumidas como tal. A título de exemplo refira-se que, tanto em matéria de ónus da prova,
como no que respeita à percepção do nexo de causalidade adequada, se tem vindo a avançar
no sentido de aligeirar a sua demonstração por parte dos titulares do direito à indemnização.
Outra forma de conseguir o mesmo resultado é através do estabelecimento de presunções
legais de culpa.

114 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

referência de uma nova era”. Para este autor e no que em particular respeita ao
dano corporal, estamos a viver um momento de viragem em que, por força de
diferentes factores de perigosidade social, nos deparamos com a uma
imensidão de factores de compressão do direito à integridade física corpórea,
levando a uma incontestável “tendência de progressiva objectivação”.

Partindo deste pressuposto Álvaro Dias (2001: 515) conclui que o


ordenamento jurídico em geral e o direito civil em particular têm que se moldar
a esta nova marca que caracteriza os tempos actuais: a perigosidade. Para
este autor a função ressarcitória dos mecanismos de apuramento da
responsabilidade civil apenas poderá continuar a ser eficaz se todos os actores
interiorizarem esta nova vivência e as suas repercussões, sendo que, para
tanto, será imprescindível a institucionalização do “princípio geral do perigo”.
Esta conclusão leva Álvaro Dias a uma outra: a necessidade de repensar o
modo como devem ser avaliadas e reparadas as ofensas à integridade física.
Para este autor é “inquietante que o Direito Civil, dotado de uma engenharia e
de uma arquitectura milenarmente sedimentadas, tenha deixado na sombra,
olvidando ou preterindo, a centralidade da incolumidade corporal da pessoa
humana, na sua teórica reflexão e na sua concreção prática”.

De facto, a protecção dos sinistrados em geral impõe-se nas sociedades


modernas onde as ordens jurídicas tendem a desvalorizar a culpa como
fundamento do direito de indemnização pelos danos decorrentes dos acidentes
de viação, encontrando a razão de ser desse direito na própria circulação dos
veículos, encarada no seu todo. Um exemplo paradigmático desta perspectiva
é, na ordem jurídica Francesa, a chamada Lei Badinter segundo a qual
passageiros, pedestres e ciclistas são sempre compensados pelos seus
ferimentos, não sendo a culpa grave do lesado relevante nos casos em que os

115 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

acidentados tenham menos de 16 anos ou mais de 70, ou sejam titulares de


uma incapacidade de pelo menos 80%.

O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem entendido que


apenas em circunstâncias excepcionais, nomeadamente quando estejam em
causa ocupantes de veículo causador do sinistro que sabiam ter sido roubado,
se poderá limitar a extensão da indemnização da vítima, com base numa
apreciação individual da sua conduta. Este entendimento foi afirmado no
Acórdão Elaine Farrell do mesmo Tribunal, que considerou ter carácter
excepcional a possibilidade de limitar a indemnização às vítimas de acidente de
viação. Nestas matérias em que se vai desbravando um caminho conducente à
denominada socialização do risco, particularmente quando estejam em causa
menores ou peões, é no Direito Europeu, e não no pátrio, que encontramos
mecanismos acrescidos de protecção da vítima a densificar e concretizar na
prática judiciária por todos aqueles que lidam com tais situações no quotidiano
dos tribunais.

2. O CORPO E O DIREITO

2.1. Caracterização dos quadros jurídicos gerais da


reparação

116 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

A responsabilidade civil, enquanto instituto do Direito das Obrigações,


poderá definir-se, em termos gerais, como a obrigação pela reparação de
danos ou prejuízos infligidos a outrem73, com origem num facto humano, activo
ou omissivo, detendo, por isso, uma dupla natureza: preventiva e restauradora.
Pode ter origem contratual (que supõe uma relação jurídica, designadamente
um contrato, entre as partes) ou extracontratual74. Esta última modalidade,
como acima já referimos, funda a obrigação de indemnizar na violação de um
dever geral de conduta imposto pela ordem jurídica vigente, estando em causa,
quase sempre, uma lesão de direitos absolutos75.

O princípio geral da reparação integral do dano encontra-se inscrito


no artigo 562.º do CC e prevê a reconstituição da “situação que existiria, se não
tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. A concretização desta
finalidade requer a mobilização do princípio da restauração natural, ou seja, da
exacta reconstituição da situação anterior ao evento lesante, salvo excepções
bem delimitadas. Em termos concretos, não é, efectivamente, a precisa
situação anterior à lesão que visa ser reconstituída, mas antes a que
hipoteticamente existiria caso o evento não se concretizasse – o que se poderá

73
Segundo Almeida Costa, “ocorre quando uma pessoa deve reparar um dano sofrido por
outra. A lei faz surgir uma obrigação em que o responsável é devedor e o lesado o credor.
Trata-se, portanto, de uma obrigação que nasce directamente da lei e não da vontade das
partes, ainda que o responsável tenha querido causar o prejuízo” (2001: 473).
74
Sobre o concurso da responsabilidade contratual e da extracontratual ver Almeida Costa
(2001: 499). Esta problemática revela-se particularmente intricada quando a responsabilidade
emergente é médica. A título de exemplo, podemos referir o Acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa, de 22/03/2007. No sentido da tendência marcadamente contratual da
responsabilidade médica, ver “O problema da avaliação dos danos corporais”, in
Responsabilidade Civil dos Médicos, de Álvaro Dias; ou mesmo Responsabilidade Civil em
Instituições Privadas de Saúde: Problemas de Ilicitude e de Culpa, de Nuno Manuel Pinto
Oliveira.
75
De que constituem exemplo os direitos reais e, para o que aqui nos interessa, os direitos de
personalidade.

117 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

revelar determinante no momento da avaliação dos custos pessoais gerados


ou potenciados pelos danos em causa.

A fixação da indemnização pelo equivalente pecuniário, plasmada no


artigo 566.º do CC, possui um carácter estritamente subsidiário (e não
alternativo) face à modalidade ressarcitória natural, devendo apenas aplicar-se
caso a “reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os
danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”. As diferentes
limitações à restituição em espécie deverão, portanto, ser aferidas segundo
critérios objectivos, cabendo igualmente ao decisor judicial ponderar os
interesses envolvidos na reparação do dano, evitando a oneração excessiva ou
desproporcional do devedor.

De acordo com o disposto na lei civil, a determinação do quantum


indemnizatório resulta da diferença entre “a situação patrimonial do lesado, na
data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa
data se não existissem danos”76, cabendo ao tribunal, mediante produção de
prova, julgar equitativamente sobre o valor dos danos indemnizáveis, caso a
sua averiguação se revele impossibilitada. No entanto, esta regra de cálculo
sofre algumas excepções, nomeadamente, nos casos de actuação do lesante
com mera culpa (cf. artigo 494.º do CC)77 ou nos casos de culpa do próprio

76
Segundo o prescrito pela designada Teoria da diferença.
77
Nos casos em que não haja dolo a indemnização pode ser fixada equitativamente e,
portanto, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que, o grau
de culpabilidade do agente, a situação económica do lesante e do lesado e as demais
circunstâncias do caso o justifiquem. Como exemplo destas “circunstâncias” costuma a
jurisprudência e a doutrina apontar a idade e o sexo da vítima, a natureza das suas
actividades, a possibilidade de melhoramento, de reeducação e de reclassificação.

118 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

lesado (cf. artigo 570.º do CC)78. Esta limitação é igualmente aplicável aos
casos de responsabilidade civil pelo risco (cf. artigo 499.º do CC), sendo,
todavia, controvertida a questão da aplicação desta limitação quando a
entidade responsável pela indemnização é uma seguradora79.

Na operação conducente ao cálculo da indemnização dos danos


patrimoniais dispõe o artigo 564.º do CC quo o julgador deverá atender aos
seguintes aspectos:

O prejuízo causado (danos emergentes), onde se enquadram os prejuízos


directos80 e as despesas directas, imediatas ou necessárias81. O cálculo
destes danos obedece, por regra, a uma pura operação aritmética.

O problema que aqui se colocava antes de surgir a Tabela Nacional para


Avaliação de Incapacidades Permanente em Direito Civil (a que mais à
frente faremos referência) era o de que, no âmbito da reparação dos danos
corporais, a perda de uma parte do corpo era indemnizável como dano
emergente e, face a esta interpretação, havia quem defendesse que o

78
A este propósito, Sinde Monteiro (Reparação dos Danos Corporais em Portugal – A Lei e o
Futuro, in CJ, 1986, tomo 4, pág. 11), no que respeita em particular aos acidentes de viação,
considera que a atribuição de relevância jurídica a qualquer acto culposo do lesado é uma
posição obsoleta, sugerindo a adopção de princípios idênticos aos estabelecidos em sede de
reparação de acidentes de trabalho em que, por regra, apenas a culpa grave ou indesculpável
do lesado são susceptíveis de consideração.
79
A doutrina e jurisprudência dominantes têm vindo a defender que, nestes casos, apenas
deve relevar a situação económica do lesante (o segurado) e não a da seguradora para quem
se transferiu a responsabilidade.
80
Os prejuízos directos traduzem-se na perda, destruição ou danificação de um bem, o qual
tanto pode ser um objecto, um animal, ou uma parte do corpo lesado ou mesmo o próprio
direito à vida.
81
Estas correspondem ao custo de prestação dos serviços alheios necessários, quer para a
prestação de auxílio ou de assistência, quer para a eliminação de aspectos colaterais
decorrentes do acto ilícito, abrangendo realidades tão diversas como o reboque da viatura ou
as despesas com o funeral.

119 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

disposto no n.º 1 do artigo 564.º do CC era uma norma redutora porque


acabava por circunscrever tudo ao aspecto patrimonial que podia, no
entanto, não dar resposta às situações de, por exemplo, perda do baço ou
de disfunção sexual82.

Os benefícios perdidos pelo lesado (ganhos cessantes83 ou lucros


cessantes) em consequência das lesões sofridas84. Esta é uma operação
algo delicada porque obriga a ter em conta uma situação hipotética em que
o lesado estaria se não tivesse sofrido a lesão. Para tanto, dever-se-á
recorrer a critérios de probabilidade ou verosimilhança.

E os danos futuros85, desde que sejam previsíveis.

82
Neste sentido vai Conselheiro Sousa Dinis, num Estudo publicado na Colectânea de
Jurisprudência – Separata dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Ano IX, Tomo I,
2001.
83
Segundo o Conselheiro Sousa Dinis, nesse mesmo estudo, os ganhos cessantes
“correspondem à perda de possibilidade de ganhos concretos do lesado, incluindo-se na
categoria de lucros cessantes. Mas esta perda não deve ser confundida com a perda de
capacidade de trabalho, que é, nitidamente, um dano directo, que se pode aferir em função da
tabela nacional de incapacidades, nem com a perda da capacidade de ganho que é o efeito
danoso, de natureza temporária ou definitiva, que resulta para o ofendido do facto de ter sofrido
uma dada lesão impeditiva da obtenção normal de determinados proventos certos, em regra
até ao momento da reforma ou da cessação da actividade como paga do seu trabalho, e que
se inclui na categoria dos prejuízos directos, embora que com uma importante vertente de
danos futuros, nem ainda com a perda efectiva de proventos futuros de natureza individual,
ainda que em vias de concretização, que se inclui na categoria de lucros cessantes; nem com a
perda que possa resultar do eventual desaparecimento de uma situação de trabalho, produtora
ou potencialmente produtora de ganhos, que também se inclui na categoria de lucros
cessantes‖.
84
Todavia, a perda de rendimentos certos e regulares ou eventuais que possuam natureza
ilegítima ou sejam contrários ao direito não se encontram, como refere Armando Braga (2005:
226), incluídos na esfera ressarcitória.
85
Ainda segundo Sousa Dinis, no estudo acima referido, os danos futuros compreendem “os
prejuízos que, em termos de causalidade adequada, resultam para o lesado (ou resultarão de
acordo com os dados previsíveis da experiência comum) em consequência do acto ilícito que
foi obrigado a sofrer, ou, para os chamados lesados em 2.º grau, da ocorrência da morte do
ofendido em resultado de tal acto ilícito, e ainda os que poderiam resultar de uma hipotética

120 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Ou seja, a protecção conferida aos indivíduos “contra qualquer ofensa


ilícita ou ameaça à sua personalidade física e moral” (artigo 70.º do CC), no
âmbito da tutela geral da personalidade86, dá conta das garantias jurídicas
existentes em matéria de integridade corporal. A obrigação indemnizatória da
dimensão patrimonial dos danos corporais emergentes de um evento lesivo,
isto é, das perdas ou prejuízos susceptíveis de avaliação pecuniária, encontra-
se enquadrada tanto no artigo 495.º do CC – que prevê a cobertura de
despesas de tratamento e assistência à vítima, tentativas de salvamento,
funeral e obrigações naturais do lesado – como, implicitamente, no referido
artigo 564.º do CC.

Quanto aos danos não patrimoniais87, igualmente passíveis de


compensação, diz a lei que a sua indemnização se restringe àqueles que, “pela
sua gravidade, mereçam a tutela do direito”88 (cf. n.º 1 do artigo 496.º do CC),
não aludindo à sua possibilidade decompositiva. De todo o modo e no
seguimento da jurisprudência maioritária, dever-se-ão considerar danos não

manutenção de uma situação produtora de ganhos durante um tempo de vida mais ou menos
prolongado, e que poderá corresponder, nalguns casos, ao tempo de vida laboral útil do
lesado, e compreendem ainda, determinadas despesas certas, mas que só se concretizarão
em tempo incerto”.
86
Abarcando a capacidade de gozo e a capacidade de exercício dos direitos legalmente
consagrados.
87
Por danos morais ou prejuízos de ordem não patrimonial o Conselheiro Sousa Dinis, no já
mencionado estudo, entende os “prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque
atingem bens que não integram o património do lesado”, referindo, ainda, que estes “não
devem confundir-se com os danos patrimoniais indirectos, isto é, aqueles danos morais que se
repercutem no património do lesado, como o desgosto que se reflecte na capacidade de ganho
diminuindo-a (pois esta constitui um bem redutível a uma soma pecuniária)”.
88
Na opinião do Professor Antunes Varela (in Das Obrigações em Geral, 1.º, pág. 628, 9.º
Edição, Almedina), a gravidade deve ser apreciada objectivamente.

121 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

patrimoniais, por já virem a ser valorados para fins indemnizatórios, os


seguintes danos:

O dano estético que simboliza o prejuízo anatomo-funcional associado às


deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e
recuperação da vítima.

O prejuízo de afirmação social que se traduz no dano indiferenciado que


respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar,
profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural cívica).

O prejuízo da saúde geral e da longevidade, isto é, o dano da dor e o défice


de bem-estar, [valorizando-se] os danos irreversíveis na saúde e bem-estar
da vítima e o corte na expectativa de vida.

O pretium juventutis que realça a especificidade da frustração do viver em


pleno a chamada primavera da vida.

O pretium doloris que se traduz nas dores físicas e morais sofridas no


período de doença e de incapacidade temporária. Este dano deve reportar-
se ao período que começa com o acto lesivo e termina com o momento em
que o estado do lesado não pode ser melhorado, de acordo com os
conhecimentos médicos à data.

Por sua vez, o n.º 3 deste normativo do artigo 496.º do CC, remete a
fixação do montante indemnizatório por estes danos para juízos de equidade,
haja culpa ou dolo, devendo-se, para tanto, atender ao disposto no já referido
artigo 494.º. Ou seja, ao grau de culpabilidade do agente, à situação
económica deste e do lesado, e, ainda, a quaisquer outras circunstâncias. Os
danos não patrimoniais, por não atingirem o património do lesado, fazem com
que se defenda que a obrigação de os ressarcir tenha uma natureza mais
compensatória do que indemnizatória, sem, contudo, esquecer que, como

122 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

refere o Professor Antunes Varela89, não pode deixar de estar presente a


vertente sancionatória.

A morte da vítima, dada a sua especificidade, suscitou a necessidade


de tratamento normativo autónomo. Assim, aquele mesmo dispositivo legal
contempla-a isoladamente no seu n.º 2, podendo aí ler-se que, independente
dos fundamentos indemnizatórios do próprio dano da morte, deverão ser
compensados os danos morais causados ao cônjuge não separado
judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes. Na falta
destes, tais danos deverão ser atribuídos aos pais e outros ascendentes, e, por
último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

A redacção da 2.ª parte do n.º 3 do artigo 496.º do CC90 gerou alguma


controvérsia doutrinal e jurisprudencial, estando a mesma já devidamente
ultrapassada91. Assim, desde a década de 70 do século passado passou a ser
jurisprudência firme que, naquele normativo, estão contemplados três tipos de
danos não patrimoniais:

O dano pela perda da vida;

O dano sofrido pela vítima antes de morrer;

E o dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte.

89
Cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1.º, pág. 630, 9.º Edição, Almedina.
90
Onde se lê: “no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais
sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do
número anterior”.
91
Cf. AC. do STJ de 17/3/71, in BMJ 505, pág. 150.

123 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

O valor pecuniário do direito à vida, mesmo que ponderado por


factores objectivos como a idade ou o estado de saúde da vítima, constitui, de
todo o modo, uma questão também ela delicada e controversa A procura de
critérios e equivalências para apurar o valor a atribuir prestou-se mesmo a
considerações muitas vezes infelizes, nomeadamente a do celebre acórdão
que fez a comparação do valor da vida ao valor de um automóvel de gama
média.

Leite de Campos92, a esse propósito, defende um montante


indemnizatório igual para todas as vítimas, devendo ser “superior a todos os
outros danos pessoais possíveis e imagináveis, não devendo o responsável
ficar numa situação patrimonial mais favorável àquela que teria se não tivesse
causado a morte”. Em nota, diga-se, que esta discussão ainda não se encontra
encerrada e exemplo disso é um acórdão recente93 da Relação de Évora, que
indo ao encontro de um outro acórdão do STJ de 28 de Fevereiro de 2008
refere que “nada impede que, em face do caso concreto, se arbitre
indemnização por danos não patrimoniais, a uma vítima sobrevivente de um
acidente de viação, superior ao montante médio atribuído pela jurisprudência
ao dano morte”. Esta posição é seguidamente justificada pelo facto de
“nenhuma valia [ter] o argumento de que o dano vida é o maior dano sofrido
pela pessoa humana”.

Ainda sobre esta matéria é de fazer referência a um acórdão do STJ de


27 de Novembro de 2007 onde se procedeu a uma compilação de algumas
decisões anteriores relativamente à questão da valoração do dano morte. O

92
Cf. “A Vida, a Morte e sua Indemnização”, in BMJ, 365, pág. 15.
93
Cf. Ac. TRE de 01-04-2008.

124 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

objectivo desta compilação foi o de tentar encontrar um valor razoável para a


indemnização do dano morte. Vejamos alguns dos acórdãos e fundamentos
aos quais aí se faz referência:

125 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Processo Data Indemnização Fundamentos

0281/05 - 7 03-03-2005 € 43.000,00 “A vítima do acidente de viação tinha 32 anos, era


casado, as suas filhas menores tinham 8 e 11
anos; era trolha; fazia ainda horas
extraordinárias”.

0728/05 - 1 27-04-2005 €50.000,00 “Tendo a vítima próximo dos cinquenta anos à


data do acidente e auferindo o vencimento mensal
de 428,97 € x 14”.

Mais 7.500,00 euros pelo dano não patrimonial


sofrido pela própria vítima antes de falecer.

0935/05 - 1 19-05-2005 € 75.000,00 “Considerando que, aos 20 de idade, foi vítima de


acidente de viação, para cuja ocorrência não teve
qualquer culpa”.

1096/05 - 2 09-06-2005 € 49.880,00 “À data do acidente, o falecido tinha 51 anos de


idade e um rendimento laboral anual de 3.748,00
€ e contribuía para os encargos do seu agregado
familiar, composto de esposa e duas filhas”.

3017/05 - 2 10-11-2005 € 49.880,00 “O falecido tinha 24 anos, era activo e trabalhador,


dedicando-se a uma actividade empresarial”.

2831/05 - 5 24-11-2005 € 50.000,00 “A vítima tinha 33 anos de idade e era,


aparentemente, trabalhador, alegre e saudável”.

0656/06 - 3 15-03-2006 € 40.000,00 “Pessoa de 29 anos, alegre, jovial, saudável,

126 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

dinâmica, trabalhadora, com uma vida inteira


cheia de projectos e de sonhos pela frente”.

3941/05 - 6 24-01-2006 € 50.000,00 “A vítima estava na força da vida, com 34 anos de


idade, tinha à sua frente todo um futuro
prometedor, que se desenhava em contornos
positivos, tudo apontando no sentido da sua
felicidade familiar, na companhia da mulher e filha,
e também profissional”.

2520/06 - 7 12-10-2006 € 50 000 ―Considerando que o falecido tinha 40 anos,


gozava de boa saúde, era pessoa amante da vida,
estimado pelos amigos, família e vizinhos e era
agente da GNR‖.

3737/06 - 6 14-12-2006 € 51.411,00 ―O montante indemnizatório pelo dano "morte" (na


sua componente perda de direito à vida e
desgosto pela morte do filho e ainda dores
sofridas pela própria vítima antes do decesso) de
51.411 € encontra-se dentro das balizas da
jurisprudência que vem sendo sustentada pelo
STJ‖.

4433/06 - 2 11-01-2007 € 50.000,00 ―Jovem alegre, de 18 anos, cheios de vitalidade‖.

Mais € 9.000,00 pelo “sofrimento entre o facto e a


morte, passadas horas”.

4654/06 - 7 25-01-2007 € 49.880,00 ―A vítima tinha 25 anos à data do acidente, era


uma jovem saudável que estava a concluir a sua
licenciatura, planeava casar-se em breve, tinha
uma vida familiar harmoniosa e faleceu no dia

127 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

seguinte ao do sinistro‖.

0482/07 - 2 29-03-2007 € 40.000,00 ―O falecido tinha 60 anos à data do acidente que o


vitimou, era saudável, robusto e trabalhador, vivia
em perfeita harmonia com a sua mulher e convivia
com os filhos‖.

0225/07 - 7 17-04-2007 € 50.000,00 ―A vítima na data do seu decesso tinha 44 anos de


idade e era saudável, alegre e bem disposta‖.

0827/07 - 2 26-04-2007 € 50.000,00 ―O marido e filhos da falecida Adélia constituíam


uma família muito unida; esta última tinha 35
anos; limpava a casa, tratava das roupas,
preparava as refeições, tratava dos animais de
criação e vendia peixe‖.

1583/07 - 3 11-07-2007 € 35.000,00 ―Tomando-se em conta a idade da vítima (60


anos), que sofreu dores físicas e morais ao ser
crivado pelo chumbo do disparo da caçadeira, e
as fortes emoções morais (aflições, angústia e
inquietações: tendo a vítima pressentido todo o
processo patológico da morte, sentiu a angústia
causada pela consciência do risco da lesão
eminente e dos funestos resultados e, no
momento da morte, apercebeu-se de que era o
último momento da sua vida)‖.

Mais €10.000,00 pelo dano moral advindo nos


momentos que antecederam a morte.

128 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Analisando a anterior tabela, é possível identificar um padrão


indemnizatório em volta dos 50.000,00 euros. Excepcionalmente, encontramos
uma indemnização de 75.000,00 euros para um jovem, sendo que o factor
idade (ou expectativa de vida) constitui um dos argumentos para a elevação do
montante indemnizatório. Ou seja, podemos concluir a partir da jurisprudência
que o factor mais relevante na determinação do montante concreto a atribuir é
a idade da vítima numa relação inversamente proporcional entre a idade e a
quantia monetária a fixar. No entanto, não se poderá descurar das outras
inúmeras questões de direito e de facto envolvidas na ponderação final do
montante a atribuir e que aí também são retratadas94.

Numa outra vertente, esta recondução do dano à noção de expectativa


de vida, vem também convergir de modo mais acutilante com a perspectivação
pela nossa jurisprudência da importância da noção de qualidade de vida
relativamente àquele lesado que, não tendo perecido no acidente, arrostará, no
futuro, com um quotidiano limitado pelas sequelas das lesões de que padece.
De tal forma que sendo recorrente a afirmação doutrinal segundo a qual o
direito à vida é o bem de maior valor absoluto em função do qual a violação de
todos os outros direitos, designadamente à integridade física, deve ser
valorada, facto é que as indemnizações para sinistrados com graves
incapacidades físicas são arbitradas em montantes que excedem, por vezes

94
Para este referencial indemnizatório também em muito contribuiu a decisão do Conselho de
Ministros no conhecido processo da ponte Entre-os-Rios. De acordo com essa decisão,
recorrentemente mencionada na jurisprudência como exemplar, os familiares das vítimas
desse acidente receberam um quantitativo indemnizatório próximo dos 50.000,00 euros
relativamente ao dano morte.

129 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

em mais do triplo ou do quádruplo, as quantias atribuídas pela violação do


direito à vida, desmentindo claramente essa hierarquia95.

Outra questão que se discute na doutrina é a construção jurídica que


permite sustentar o direito de indemnização pela ofensa do direito à vítima
quando esta própria já se encontra morta. Ou seja, está em causa o
fundamento indemnizatório do dano morte: se a via sucessória, ou, pelo
contrário, se se trata de um direito ex novo96, nascendo na esfera jurídica do
indemnizado. Galvão Teles, por exemplo atribui o direito de indemnização ao
sofrimento causado à vítima – ainda que a morte seja imediata. Para este autor
trata-se de uma ofensa a um bem (vida ou integridade física), pelo que não
pode deixar de ser ressarcido em sede civil. E se “o momento da morte é o
último momento da vida”, então esse direito à indemnização, ingressado na
esfera jurídica da vítima, é passível de ser transmitido aos seus herdeiros.
Dário Martins de Almeida possui uma leitura idêntica da indemnização pela
violação do direito à vida, reforçando a ideia de que a sua atribuição deverá
seguir os termos da via sucessória. Para Leite de Campos é a via hereditária,
segundo a ordem estabelecida no art. 496º do CC, que fundamenta o direito à
indemnização aos familiares pelo dano morte emergente.

95
Neste sentido ver o Ac. STJ de 08-03-2005, da 1.ª Secção, onde se fixaram €100.000 pelos
danos não patrimoniais de uma jovem de 18 anos de idade incapaz para qualquer tipo de
trabalho e o Ac. STJ de 08-03-2005da 6.ª Secção, onde se fixou, numa situação de
tetraparesia de um lesado com 27 anos uma compensação em 250.000 €, “porque se a vida
humana é o bem supremo, a situação do autor pode considerar-se uma contínua e diária perda
daquele bem, prolongando-se tal calvário por toda a sua vida”.
96
Síntese sobre este debate em “O dano da morte. Reflexões sobre o artigo 496.º do CC” de
Francisco F. Garcia. Ver, igualmente, Leite de Campos (1992: 60), “A reparação do dano da
morte: prejuízo sem reparação possível?‖, bem como o Acórdão do STJ de 22/10/2001 (relator
Azevedo Ramos), disponível em www.dgsi.pt.

130 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Pereira Coelho e Antunes Varela, Pires de Lima ou Capelo de Sousa


consideram-no, por sua vez, como um direito próprio dos familiares. Para estes
autores esses direitos de indemnização são adquiridos directa e
originariamente (iure proprio) pelas pessoas indicadas no n.º 2 do artigo 496.º
do CC, e não cabem à vítima desaparecida com o sinistro. Para quem assim
entende, a noção de compensar os familiares próximos do lesado pela sua
inesperada perda é a que melhor se harmoniza com o modo casuístico e
assente na equidade como é fixado o montante devido por esse defraudamento
na expectativa de vida partilhada. O que se pretende compensar quando se
atribui uma quantia monetária aos herdeiros estabelecidos não será, portanto,
a perda do valor vida, enquanto bem absoluto, mas, sobretudo, o fim abrupto
de uma dada expectativa do prolongamento dessa vida, interrompida por força
de um evento danoso, castigando-se o responsável que antecipou o que só
depois viria.

Como acima referimos, para além do dano morte, temos, ainda, o dano
sofrido pela vítima antes de morrer. Aqui o montante indemnizatório
depende precisamente do sofrimento e da respectiva duração, da maior ou
menor consciência da vítima sobre o seu estado e da aproximação da morte.
No que respeita ao dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte
dever-se-á considerar o grau de parentesco dos familiares, o relacionamento
entre eles, se a morte foi sentida. Estes critérios são importantes porque o que
se pretende aqui compensar é a angústia, a tristeza e a falta sentida pelos
familiares.

Uma das questões que se coloca é a de saber se, só em caso de morte


da vítima, é que os danos sofridos pelos familiares da vítima devem ser
indemnizados, havendo quem sustente que há situações de lesões que
significam um rebate nos familiares tão ou mais grave quanto as situações de

131 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

morte e que, por vezes, os familiares mais próximos sofrem danos morais bem
mais intensos do que os sofridos pelo próprio lesado97. Ou seja, a questão
prende-se com a interpretação que deve fazer-se do n.º 3 do artigo 496.º do
CC e que acaba por dividir tanto a nossa doutrina, como a nossa
jurisprudência, havendo quem lhe atribuía uma maior extensão interpretativa
por oposição aos que não conseguem conceber que aquele normativo permita
abranger as situações em que não há morte da vítima.

Por fim, é de salientar que o prazo de prescrição do direito de


indemnização se encontra consagrado no artigo 498.º do CC e que,
exceptuando os prazos específicos atinentes à ocorrência de um ilícito criminal,
o direito de indemnização caduca três anos após a data em que o lesado “teve
conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da
pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da
prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto
danoso”.

2.2. Caracterização dos quadros jurídicos específicos da


reparação

Até aqui traçamos um esboço do regime jurídico geral no que respeita à


indemnização do corpo e da vida. De seguida passaremos a analisar o regime
jurídico que, em particular, se aplica ao dano corporal por acidente de trabalho;
ao dano corporal por acidente de viação; e, por fim, ao dano corporal por

97
Neste sentido Rosa Maria Fernandes, “Ressarcibilidade dos Danos não Patrimoniais a
Familiares de Lesados Profundos”, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito,
2004.

132 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

agressão (crime). Mas antes de prosseguirmos podemos, desde já, alertar para
o facto de que, quer em Portugal, quer mesmo na grande maioria dos países
europeus, o quadro legislativo referente ao dano corporal e à sua reparação
constituir um verdadeiro mosaico de textos jurídicos que acabam por cada um
deles, isoladamente, obedecer a uma lógica própria e diferente das restantes,
sendo que tal resulta da opção política e legislativa de fazer depender o quadro
legal da reparação do dano em função da sua origem.

A consequência desta opção é a amálgama e pluralidade de regimes


que encontramos e que, juntamente com o resultado do nosso trabalho de
campo, nos levam a concluir pela existência de situações de verdadeira
desigualdade e de injustiça social quando comparamos as diferentes
indemnizações concedidas perante um mesmo dano corporal mas segundo a
aplicação de diferentes regimes. O que aqui está em causa e que mais à frente
melhor ilustraremos é o facto de dois traumatismos idênticos poderem ser
indemnizados de maneira completamente distinta se um deles resultar, por
exemplo, de um acidente de trabalho e o outro de não, ainda que ambos
tenham sido provocados por um mesmo acidente de viação98.

2.2.1 Os acidentes de trabalho

Em Portugal a consolidação de um modelo técnica e politicamente


moderno de regulação da reparação dos acidentes de trabalho opera-se num

98
Como decorrerá da nossa exposição, a aplicação dos quadros legais que temos levam a que
a vítima de um acidente de trabalho apenas tenha direito a ser indemnizado pelos danos
patrimoniais e não na sua totalidade, e a vítima que não se encontre a trabalhar mas que sofra
o mesmo acidente de viação poderá ser indemnizado pela totalidade dos danos patrimoniais
sofridos e, ainda pelos danos não patrimoniais.

133 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

momento muito particular da sua história política contemporânea, caracterizado


pela emergência dos sectores tecnocráticos à elite política governamental99,
num contexto de autoritarismo tardio. Assim, é em 1965 que é publicada a Lei
n.º2127, de 3 de Agosto que, todavia, só será objecto de regulamentação em
1971, através do Decreto-Lei n.º360/71, de 21 de Agosto.

Estes diplomas foram de tal forma estruturantes do modelo e da filosofia


reparatória da sinistralidade laboral que só em 1997 é que são operadas
alterações significativas. Este momento coincide com a revisão da nossa
Constituição que passou a prever que a “assistência e justa reparação [a]
vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional”100 ganhavam
dignidade constitucional, surgindo, em consequência e posteriormente, um
novo regime jurídico para a regulação desta matéria – a Lei n.º100/97101.

Durante mais de 30 anos, vigorou em Portugal a Lei n.º 2127, de 3 de


Agosto de 1965, sendo esta a base jurídica que sustentava a reparação dos
acidentes de trabalho e doenças profissionais no que concerne aos
trabalhadores por conta de outrem. Depois deste longo período, sentiu-se a
necessidade de adaptação do regime jurídico existente à evolução da realidade
sócio-laboral e ao desenvolvimento de legislação complementar no âmbito das
relações de trabalho, da jurisprudência e das convenções internacionais sobre

99
Marcelo Caetano rebaptiza estrategicamente o regime ao designá-lo por Estado Social,
mobilizando uma retórica política adequada aos parâmetros desenvolvimentistas e simulando o
resultado de um pacto social que, nos seus termos liberais ou keynesianos, nunca existira nem
viria a existir.
100
Através da alínea f) do nº 1 do artigo 59º da Constituição da República Portuguesa (CRP),
introduzido pela revisão constitucional de 1997.
101
Complementada com o Decreto-Lei n.º143/99, de 30 de Abril, que regulamenta a reparação
de danos emergentes dos acidentes de trabalho.

134 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

a matéria. E foi assim, com o objectivo de assegurar aos sinistrados condições


adequadas de reparação dos danos decorrentes dos acidentes de trabalho e
doenças profissionais, mas também de dar tradução à nova redacção
constitucional, que surgiu a já referida Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Lei
dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais), revogando a anterior lei e
toda a legislação complementar.

Prosseguindo os mesmos objectivos da Lei dos Acidentes de Trabalho e


Doenças Profissionais (LAT), surgiu, quase dois anos depois, o Decreto-Lei n.º
143/99 de 30 de Abril - Regulamento dos Acidentes de Trabalho (RLAT), que
visava a regulamentação daquela mesma lei. Conforme consta do preâmbulo
daquele diploma regulamentar, o seu propósito era o de prosseguir a filosofia
subjacente à lei a regulamentar e que, segundo aí pode ler-se, se traduzia na
melhoria do sistema de protecção e de prestações conferidas aos sinistrados
em acidentes de trabalho, procurando, simultaneamente, garantir o equilíbrio e
estabilidade do sector segurador para o qual as entidades empregadoras são
obrigadas a transferir a responsabilidade pela reparação destes danos.

Posteriormente, foi publicada a Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto que


veio aprovar o Código do Trabalho que, por sua vez, passou a dispor de um
Capítulo dedicado à temática dos Acidentes de Trabalho. No entanto, tais
disposições só passaram a aplicar-se após a entrada em vigor do respectivo
diploma regulamentar – o que aconteceu apenas no passado dia 1 de Janeiro
de 2010, através da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.

Acresce que, não obstante o artigo 186.º deste último diploma legal (Lei
n.º 98/2009, de 04 de Setembro) vir revogar todos os anteriores diplomas

135 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

legais aplicáveis até então102, a verdade é que, segundo a norma que estipula
a sua aplicação no tempo, o disposto no seu Capítulo II (Acidentes de
Trabalho) apenas se aplica a acidentes de trabalho ocorridos após a entrada
em vigor da referida lei, ou seja, a acidentes que tenham ocorrido após o dia 01
de Janeiro de 2010103. Portanto e uma vez que actualmente ainda se continua
a aplicar Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro aos acidentes ocorridos até ao
passado dia 01 de Janeiro de 2010104 passamos à sua análise e só num
segundo momento é que nos debruçaremos sobre os artigos do Código de
Trabalho (CT) e do respectivo diploma regulamentar (Lei n.º 98/2009, de 04 de
Setembro).

A) Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro: Lei dos Acidentes de


Trabalho (LAT)

O regime normativo de reparação dos danos emergentes de acidentes


de trabalho é tipicamente imperativo, tendo como consequência a nulidade de
qualquer cláusula do contrato individual de trabalho ou de convenção colectiva
que coloque em causa os direitos e garantias que a lei confere nesta matéria,
bem como de qualquer acto de renúncia aos mesmos.

102
Leia-se, a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, o Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril que
regulamenta a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, no que respeita à reparação de danos
emergentes de acidentes de trabalho; e, ainda, o Decreto-Lei n.º 248/99, de 2 de Julho que
procede à reformulação e aperfeiçoamento global da regulamentação das doenças
profissionais em conformidade com o novo regime jurídico aprovado pela Lei n.º 100/97, de 13
de Setembro, e no desenvolvimento do regime previsto na Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto.
103
Cf. n.º 1 do artigo 187.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.
104
Esta opção legislativa, como mais à frente melhor veremos, tem levantado alguns
problemas em matéria de revisão de incapacidade.

136 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Âmbito de aplicação

A Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Lei dos Acidentes de Trabalho e


Doenças Profissionais – LAT) tem por objecto os trabalhadores e seus
familiares que, por via e nos termos da mesma, passaram a ter consagrado o
“direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e
doenças profissionais” (cf. n.º 1, artigo 1.º LAT). O seu âmbito de aplicação
são os “trabalhadores por conta de outrem105 de qualquer actividade, seja ou
não explorada com fins lucrativos” (cf. n.º 1, do artigo 2.º LAT), fazendo-se,
todavia, referência aos trabalhadores independentes no sentido destes
deverem efectuar um seguro que garanta as prestações previstas nesta lei,
remetendo a restante matéria para o Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio106.

O direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho


abrange, portanto, os trabalhadores por conta de outrem, seja qual for a

105
Consideram-se trabalhadores por conta de outrem ―os que estejam vinculados por contrato
de trabalho ou contrato legalmente equiparado e os praticantes, aprendizes, estagiários e
demais situações que devam considerar-se de formação prática, e, ainda, os que,
considerando-se na dependência económica da pessoa servida, prestem, em conjunto ou
isoladamente, determinado serviço‖. Refira-se, ainda, que “É aplicável aos administradores,
directores, gerentes ou equiparados, quando remunerados, o regime previsto na presente lei
para os trabalhadores por conta de outrem” – Cf. n.º 2 e 3, artigo 2.º LAT
106
Neste diploma prevê-se que “quando o sinistrado de acidente de trabalho for,
simultaneamente, trabalhador independente e trabalhador por conta de outrem e havendo
dúvida sobre o regime aplicável ao acidente, presumir-se-á, até prova em contrário, que o
acidente ocorreu ao serviço da entidade empregadora‖ e que, uma vez provado que o acidente
de trabalho ocorreu quando o sinistrado exercia funções de trabalhador independente, ―a
entidade presumida como responsável nos termos do número anterior adquire direito de
regresso contra a empresa de seguros do trabalhador independente ou contra o próprio
trabalhador” (cf. artigo 7.º Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio).

Outra especificidade de regime para os trabalhadores independentes e regulada neste diploma


legal é o conceito de remuneração anual a considerar para efeito do cálculo dos prémios e das
prestações em dinheiro a qual deverá corresponder, no mínimo, a 14 vezes a remuneração
mínima mensal mais elevada, ou a qualquer outro valor, à escolha do trabalhador - cf. artigo
11.º Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio.

137 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

actividade107, bem como todos aqueles que devam considerarem-se em


situação de formação prática, e, ainda, os que se venha a considerar que
estejam na dependência económica108 da pessoa a quem prestem serviços (cf.
artigo 2.º da LAT e artigo 12.º do o Decreto-Lei n.º 143/99 de 30 de Abril -
Regulamento dos Acidentes de Trabalho (RLAT)).

Dada a dificuldade de enunciar uma formulação suficientemente elástica


para abranger a imensidão de situações que podem ser consideradas como
acidente de trabalho, o nosso legislador tem vindo a adoptar como solução a
enunciação dos requisitos que deverão preencher-se, caso a caso, para que se
possa concluir que estamos perante uma situação de sinistro com direito à
reparação. Assim, por acidente de trabalho entende-se, por regra, aquele que
“se verifique no local109 e no tempo de trabalho110 e produza directa ou

107
Considerando a lei que, para este efeito e como já se referiu, são trabalhadores por conta
de outrem os que estejam vinculados à entidade empregadora por contrato de trabalho ou por
contrato legalmente equiparado, independentemente da sua validade. Assim, se, por exemplo,
um empregador celebra um contrato com um menor de 16 anos este contrato, apesar de
inválido, não exonera o empregador do dever de reparar os danos de um acidente de trabalho.
108
Pedro Romano Martinez (2002) a respeito do conceito de “dependência económica” refere
que esta pressupõe a “integração do prestador da actividade no processo produtivo da
empresa beneficiária, associado a um requisito de continuidade da prestação de trabalho”.
109
A lei dá-nos uma noção ampla de local de trabalho. Assim, “Entende-se por local de trabalho
todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e
em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador” – cf. n.º 3 do
artigo 6.º da LAT.
110
Também aqui o conceito é amplo: “Entende-se por tempo de trabalho, além do período
normal de laboração, o que preceder o seu início, em actos de preparação ou com ele
relacionados, e o que se lhe seguir, em actos também com ele relacionados, e ainda as
interrupções normais ou forçosas de trabalho” - cf. n.º 4 do artigo 6.º da LAT. Dever-se-ão,
portanto, considerar integradas no tempo de trabalho todas as interrupções normais ou
forçosas do trabalho, nomeadamente, as pausas de descanso e as pausas que resultam da
avaria de um equipamento.

Segundo, por exemplo, José de Castro Santos “o atropelamento sofrido pelo trabalhador, antes
de iniciar o seu trabalho, quando vai buscar uma ferramenta a um barracão ao lado, ou quando

138 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte


redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte” (cf. n.º 1 do Artigo
6.º LAT).

Mas é ainda a própria lei que, logo no n.º 2 do referido artigo 6.º, alarga
o conceito de acidente de trabalho aos que ocorram:

No trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho (acidentes in


itinere), matéria devidamente regulamentada no RLAT111 e que em muito
se deve a uma longa e construção jurisprudencial112;

troca de roupa no vestiário da empresa; ou, quando, tendo já terminado o seu trabalho, vai
arrumar as ferramentas no mesmo barracão e este desaba; ou quando interrompe o seu
trabalho para ir beber água ou satisfazer uma necessidade fisiológica”, devem ser acidentes
considerados durante o tempo de trabalho.
111
A este respeito veja-se o n.º 2 e 3, do Artigo 6.º do RLAT:
“2 - Na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da lei estão compreendidos os acidentes que se
verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto
habitualmente gasto pelo trabalhador:
a. Entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas
comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local
de trabalho;
b. Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e os mencionados nas alíneas
a) e b) do n.º 4;
c. Entre o local de trabalho e o local da refeição;
d. Entre o local onde por determinação da entidade empregadora presta qualquer serviço
relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho
habitual”.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal
tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades
atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”.
112
Os acidentes in itinere passaram a ser protegidos em Portugal com a Lei n.º 2127, de 3 de
Agosto de 1965, ainda que o seu enquadramento no regime jurídico dos acidentes de trabalho
estivesse sujeito à verificação de outro tipo de pressupostos.

A Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, por sua vez, veio prescindir da verificação de tais
requisitos, passando a generalizar a cobertura deste tipo de acidentes, desde que o mesmo
ocorra dentro do trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto
habitualmente gasto pelo trabalhador. O trajecto normal será aquele que se venha a
considerar, objectivamente, como o ideal (ainda que não seja o mais curto), encontrando-se,

139 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa


resultar proveito económico para a entidade empregadora;

No local de trabalho, quando no exercício do direito de reunião ou de


actividade de representante dos trabalhadores;

No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação


profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização
expressa da entidade empregadora para tal frequência;

Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal


concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação de contrato
de trabalho em curso;

Fora do local ou do tempo de trabalho, quando verificado na execução de


serviços determinados pela entidade empregadora ou por esta consentidos.

Por sua vez, também o RLAT, ao regulamentar esta matéria, acaba por
alargar o conceito em análise ao estipular que ainda estão compreendidos no
artigo 6.º da LAT os acidentes que se verifiquem nas seguintes circunstâncias:

No local do pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí


permanecer para tal efeito;

ainda, algumas referências na doutrina em que se considera que tal trajecto será tão-somente
o trajecto escolhido pelo trabalhador, independentemente das razões da sua escolha.

Relativamente à exigência do carácter consecutivo do percurso admitem-se algumas


excepções que são as constantes do já mencionado n.º 3 do artigo 6.º do RLAT, cabendo
sempre ao julgador apreciar casuisticamente os motivos alegados.

A responsabilidade do empregador só termina, portanto e segundo o que se vem fixando na


nossa jurisprudência, quando o trabalhador transpõe a porta de casa onde vive, mantendo-se,
todavia, se o acidente ocorrer nas partes comuns do edifício.

140 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

No local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de


assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente e enquanto aí
permanecer para esses fins (cf. n.º 3 do artigo 6.º do RLAT).

Além destes elementos (espacial e temporal), para que estejamos


perante um acidente de trabalho indemnizável, é ainda necessária a verificação
de um nexo causal entre o acidente e a lesão e, por sua vez, entre estes e a
redução da capacidade de trabalho ou de ganho, ou a morte. Não obstante
esta exigência, a lei estabelece duas presunções a favor do trabalhador: se
a lesão corporal for reconhecida a seguir a um acidente presume-se
consequência deste113 e toda a lesão constatada no local e tempo de trabalho
presume-se consequência do acidente114. O sentido prático destas presunções
é o de libertar o trabalhador sinistrado da prova do nexo de causalidade.

No entanto e não obstante a verificação dos pressupostos atrás


elencados, existe a possibilidade de ocorrerem causas expressamente
previstas na lei que podem vir a provocar a exclusão ou redução da
responsabilidade da entidade patronal na ocorrência do acidente de trabalho.
Nesse sentido dispõem os artigos 7.º e 8.º da LAT. O artigo 7.º trata das
situações de descaracterização do acidente, onde se diz que não confere
direito a reparação o acidente que:

113
Cf. n.º 5, do artigo 6.º da LAT.
114
Cf. n.º 1, do artigo 7.º do RLAT.

141 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou


omissão, que importe violação, sem causa justificativa115, das condições de
segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei116;

Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado117;

Que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do


sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria
prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se a
entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado do
sinistrado, consentir na prestação;

Que provier de caso de força maior118.

À exigência da verificação dos pressupostos que levam à


descaracterização do acidente acresce um a outra. É, igualmente,
imprescindível que, cumulativamente, se verifique a culpa grave e

115
Neste sentido: “Para efeitos do disposto no artigo 7.º da lei, considera-se existir causa
justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de
incumprimento de norma legal ou estabelecida pela entidade empregadora da qual o
trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria
conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la” – cf. n.º 1 do artigo 8.º
do RLAT.
116
Inserem-se neste tipo de situações os casos de auto-mutilação e os actos de sabotagem
provocados pelo trabalhador com o objectivo de prejudicar a entidade patronal.
117
Veja-se: “Entende-se por negligência grosseira, o comportamento temerário em alto e
relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao
perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes
da profissão” - cf. n.º 2 do artigo 8.º do RLAT. Acresce que, sendo a negligência grosseira um
facto impeditivo do direito de reparação, é necessário que ela seja alegada e provada pela
entidade empregadora.
118
Para o efeito: “Só se considera caso de força maior o que, sendo devido a forças inevitáveis
da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições
de trabalho nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pela entidade
empregadora em condições de perigo evidente” – Cf. n.º 2 do artigo 7.º da LAT.

142 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

indesculpável da vítima119 e a exclusividade dessa culpa. Vale dizer que,


por um lado, não basta a culpa leve, isto é, uma simples imprudência,
distracção ou comportamento equivalente, e, por outro, é imprescindível que
essa seja a única causa do acidente uma vez que caso haja concorrência de
culpa da entidade empregadora a responsabilidade deste já não é afastada.

A mais destas situações, são igualmente excluídas do âmbito de


aplicação da LAT algumas situações especiais e expressamente previstas na
lei, desde que o acidente não resulte da utilização de máquinas e de outros
equipamentos de especial perigosidade (cf. artigo 8.º da LAT). Estamos a
referir-nos aos acidentes ocorridos:

Aquando da prestação de serviços eventuais ou ocasionais120, de curta


duração121, a pessoas singulares em actividades que não tenham por
objecto exploração lucrativa122;

Na execução de trabalhos de curta duração se a entidade a quem for


prestado o serviço trabalhar habitualmente só ou com membros da sua
família e chamar para o auxiliar, acidentalmente, um ou mais trabalhadores.

Em contrapartida às situações de exclusão e redução da


responsabilidade, a lei também prevê que, quando o acidente tiver sido

119
Esta culpa deve ser apreciada sempre casuisticamente e não em relação a um tipo
abstracto de comportamento.
120
Não se incluem aqui os serviços que ocorrem periódica ou sazonalmente, como, por
exemplo, os trabalhos agrícolas.
121
Por curta duração a jurisprudência tem vindo a considerar os serviços que não se
prolonguem por mais de uma semana.
122
O artigo 4.º da RLAT dispõe o seguinte: “Não se consideram lucrativas, para efeito do
disposto na lei e neste regulamento, as actividades cuja produção se destine exclusivamente
ao consumo ou utilização do agregado familiar da entidade empregadora”.

143 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de


falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho,
as prestações fixar-se-ão segundo determinadas regras especiais, fixadas no
artigo 18.º da LAT, e que, na prática, importam o agravamento da
responsabilidade da entidade empregadora. Por regra a obrigação de
reparação é delimitada em termos de montante de indemnização dado que as
prestações devidas correspondem à percentagem do dano. No entanto, nestas
situações em que o sinistro ocorre por culpa do empregador, seja por
comportamento activo ou omissivo, o legislador prevê um regime jurídico mais
próximo do regime geral da responsabilidade civil acima referido. Assim, nestas
situações, as prestações passam a fixar-se do seguinte modo:

Nos casos de incapacidade absoluta, permanente ou temporária, e de


morte, as prestações devidas ao sinistrado serão iguais à retribuição;

Nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, as


prestações devidas terão por base a redução de capacidade resultante do
acidente123.

Sendo todavia uma certeza que o direito de reparação no âmbito dos


acidentes de trabalho não prejudica a responsabilidade por eventuais danos
morais, nem a responsabilidade criminal em que a entidade empregadora, ou o
seu representante, possam ter incorrido, não é menos certo que a vítima ou
seus familiares, para se fazerem ressarcir, devem contudo lançar mão aos
expedientes processuais previstos nos termos da lei geral e tal obrigação
resulta da própria lei (cf. n.º 2, artigo 18.º da LAT). Resulta deste normativo

123
Note-se que, nestas situações, a responsabilidade subjectiva apenas recai sobre o agente
causador. Ou seja, e entidade empregadora. Tal equivale a dizer que a responsabilidade da
seguradora se continua a limitar às prestações ditas normais em acidentes de trabalho a que
mais à frente faremos referência.

144 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

legal que, num acidentado laboral, apenas é possível exigir da entidade


empregadora uma indemnização pelos danos não patrimoniais nestas
situações especiais, uma vez que, por regra e como melhor veremos, estes
danos não são passíveis de ressarcimento.

De facto, no âmbito dos acidentes de trabalho, apenas são


indemnizáveis os danos patrimoniais, excluindo-se, assim, os danos não
patrimoniais. A opção pela não indemnização dos danos não patrimoniais
emergentes do acidente de trabalho, além de constituir matéria discutida com
recorrência, tem fervorosos críticos. O fundamento desta opção é o de que o
bem jurídico protegido nesta área é, essencialmente, a integridade económica
ou produtiva do trabalhador sinistrado. Assim, o mesmo acontece tratando-se
do dano morte, cuja reparação visa apenas a reposição do rendimento que
favorecia os familiares do lesado ou dependentes economicamente.

Ainda a este respeito é de salientar que, de acordo com o já mencionado


artigo 562.º do CC, o princípio geral da obrigação de indemnizar funda-se na
ideia de que a reparação de um dano deve reconstituir a situação que existia
se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Assim, a
limitação operada pela lei no âmbito dos acidentes de trabalho tem vindo a ser
doutrinalmente entediada como incongruente, uma vez que, na prática, leva a
que a protecção legal dos sinistrados vítimas deste tipo de acidente fique muito
aquém da protecção legal conferida pelo princípio acima referido. A isto
acresce que, como refere Carlos Alegre (2000), a não admissibilidade de
reparação dos danos não patrimoniais faz como que não se satisfaçam
cabalmente todos os interesses lesados na via e pessoa do sinistrado, sendo
esta limitação tanto mais flagrante quando comparamos este regime com os
demais regimes, nomeadamente, o regime dos acidentes de viação.

145 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Modalidades de reparação

No que toca agora ao modo como pode ser concretizado direito à


reparação vale o disposto no artigo 10.º da LAT onde se tipifica,
expressamente, as diferentes formas de reparação:

Prestações em espécie124 – quando estejam em causa prestações de


natureza médica125, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras,
seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas126 ao

124
A lei não impõe a forma das prestações em espécie o que equivale a dizer que, por vontade
das partes, estas podem ser substituídas por prestações em dinheiro.

No artigo 23.º do RLAT elencam-se apenas as modalidades de prestações em espécie:

“1 - As prestações em espécie previstas na alínea a) do artigo 10.º da lei têm por modalidades:
a) Assistência médica e cirúrgica, geral ou especializada, incluindo todos os necessários
elementos de diagnóstico e de tratamento;
b) Assistência farmacêutica;
c) Enfermagem;
d) Hospitalização e tratamentos termais;
e) Hospedagem;
f) Transportes para observação, tratamento ou comparência a actos judiciais;
g) Fornecimento de aparelhos de prótese, ortótese e ortopedia, sua renovação e reparação;
h) Reabilitação funcional.
2 - A assistência a que se refere a alínea a) do número anterior inclui a assistência psíquica,
quando reconhecida como necessária pelo médico assistente.”
125
Neste conceito é também considerada a assistência psicológica ou psiquiátrica que venha a
ser reconhecida como necessária – cf. n.º 2, artigo 23.º LAT.
126
O n.º 1 do artigo 14.º da LAT, sob a epígrafe “Observância de prescrições clínicas e
cirúrgicas” estabelece o dever dos sinistrados se submeterem aos tratamentos e demais
prescrições clínicas e cirúrgicas do médico designado pela entidade responsável, desde que
necessários e adequados. No entanto, a lei também prevê o direito do sinistrado poder
reclamar para o Tribunal do Trabalho no caso de discordância, solicitando para o efeito exame
pericial.

Ainda neste sentido, o n.º 2 estipula que “Não conferem direito às prestações estabelecidas
nesta lei as incapacidades judicialmente reconhecidas como consequência de injustificada
recusa ou falta de observância das prescrições clínicas ou cirúrgicas ou como tendo sido
voluntariamente provocadas, na medida em que resultem de tal comportamento”.

146 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de


ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa127;

Prestações em dinheiro – quando esteja em causa uma indemnização por


incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho; uma
indemnização em capital ou uma pensão vitalícia correspondente à redução
na capacidade de trabalho ou de ganho, em caso de incapacidade
permanente; pensões aos familiares do sinistrado; subsídio por situações
de elevada incapacidade permanente; subsídio para readaptação de
habitação; e subsídio por morte e despesas de funeral.

Relativamente às prestações em dinheiro importa apurar como elas são


calculadas. Diga-se, desde já, que o seu montante está dependente do dano
do trabalhador, do grau de incapacidade, e da retribuição auferida. A mais disto
e como acima já se referiu, a indemnização, por estarmos perante um regime
que se assume essencialmente compensatório, por regra, não é fixada pela
totalidade da retribuição, mas por uma percentagem desta, como mais à frente
iremos passar a expor128.

Retribuição e incapacidade

A retribuição a considerar para efeitos de cálculo é diferente consoante


estejamos perante indemnizações por incapacidade temporária absoluta ou
parcial ou pensões por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou
parcial. Assim,

127
No artigo 40.º da LAT encontramos, ainda, outras prestações devidas ao sinistrado e que
têm como finalidade a promoção e a recuperação da capacidade para a vida activa.
128
Sendo esta uma opção que suscita alguma polémica nos termos que passaremos a referir
mais à frente.

147 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

As indemnizações por incapacidade temporária, absoluta ou parcial, serão


calculadas com base na retribuição diária, ou na trigésima parte da
retribuição mensal ilíquida, auferida à data do acidente, quando esta
represente retribuição normalmente recebida pelo sinistrado (cf. n.º 1 do
artigo 26 da LAT);

As pensões por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou parcial,


que serão calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente
recebida pelo sinistrado (cf. n.º 2 do artigo 26 da LAT).

Para este efeito, dispõe a lei que por retribuição mensal se entende
“tudo o que a lei considera como seu elemento integrante e todas as
prestações recebidas mensalmente que revistam carácter de regularidade e
não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios” (cf. n.º 3,
artigo 26.º da LAT) e por retribuição anual ―o produto de 12 vezes a retribuição
mensal acrescida dos subsídios de Natal e de férias e outras remunerações
anuais a que o sinistrado tenha direito com carácter de regularidade” (cf. n.º 4,
artigo 26.º da LAT).

A mais disto a lei, prevê, ainda, que se a retribuição correspondente ao


dia do acidente não representar a retribuição normal, deverá a mesma ser
calculada pela “média tomada com base nos dias de trabalho e correspondente
a retribuições auferidas pelo sinistrado no período de um ano anterior ao
acidente” e, na falta destes elementos, deverá o referido cálculo ser feito
“segundo o prudente arbítrio do juiz, tendo em atenção a natureza dos serviços
prestados, a categoria profissional do sinistrado e os usos” (cf. n.º 5, artigo 26.º
da LAT)129, sendo que “em nenhum caso a retribuição pode ser inferior à que

129
O disposto neste normativo também se aplica aos trabalhadores a tempo parcial vinculados
a mais de uma entidade empregadora (cf. n.º 9 do artigo 26.º da LAT).

148 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

resulte da lei ou de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho” (cf.


n.º 8, artigo 26.º da LAT).

Caso o sinistrado seja praticante, aprendiz ou estagiário, a lei estipula,


expressamente, um desvio ao que se deixou dito uma vez que, aqueles, a
terem direito a pensão, a mesma será calculada tendo por base, não a
retribuição dita real, mas sim a “retribuição anual média ilíquida de um
trabalhador da mesma empresa ou empresa similar e categoria profissional
correspondente à formação, aprendizagem ou estágio” (cf. n.º 7, artigo 26.º da
LAT).

No cálculo da indemnização a atribuir, para além da retribuição e como


acima já se referiu, importa também atender ao grau de incapacidade
atribuído ao sinistrado. Assim e antes de avançar, importa salientar que,
como resulta do que se deixou dito, dos acidentes de trabalho podem resultar
diferentes tipos de incapacidade:

Incapacidades temporárias para o trabalho, que, por sua vez, podem ser
parciais ou absolutas;

Incapacidades permanentes para o trabalho, que podem ser parciais,


absolutas para o trabalho habitual e absolutas para todo e qualquer
trabalho.

A determinação do grau de incapacidade deverá ser efectuada através


de coeficientes a apurar de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades
por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (cf. n.º 1, artigo 41.º
RLAT). Esta tabela consta do Anexo I do Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de
Outubro que veio substituir a constante do Decreto-lei n.º 341/93, de 30 de

149 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Setembro130. De acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23


de Outubro, a “avaliação médico-legal do dano corporal, isto é, de alterações
na integridade psico-física, constitui matéria de particular importância, mas
também de assinalável complexidade‖, atribuindo-se a mesma, por um lado, a
factores diversos, tais como, a “dificuldade que pode existir na interpretação de
sequelas, da subjectividade que envolve alguns dos danos a avaliar, da óbvia
impossibilidade de submeter os sinistrados a determinados exames
complementares, de inevitáveis reacções psicológicas aos traumatismos, de
situação de simulação ou dissimulação, entre outros”.

Por outro, diz-se aí que esta complexidade também resulta da


circunstância de serem “necessariamente diferentes os parâmetros de dano a
avaliar consoante o domínio do direito em que essa avaliação se processa,
face aos distintos princípios jurídicos que os caracterizam131”, sendo que, no
direito laboral, o que está em causa é a avaliação da incapacidade para o
trabalho resultante de acidente e que, portanto, determina perda da capacidade
de ganho. Assim e nos termos do n.º 3 do artigo 2.º Decreto-Lei n.º 352/2007

130
A este respeito e como mais à frente veremos há algumas vozes que se levantam no
sentido de que esta nova tabela, na prática, não veio em nada beneficiar os sinistrados do
trabalho.
131
Neste sentido pode, ainda, ler-se que: “O que se torna hoje de todo inaceitável é que seja a
Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (TNI),
aprovada pelo Decreto-lei n.º 341/93, de 30 de Setembro, utilizada não apenas no contexto das
situações especificamente referidas à avaliação de incapacidade laboral, para a qual foi
efectivamente perspectivada, mas também por vezes, e incorrectamente, como tabela de
referência noutros domínios do direito em que a avaliação de incapacidades se pode suscitar,
para colmatar a ausência de regulamentação específica que lhes seja directamente aplicável.
Trata-se de situação que urge corrigir pelos erros periciais que implica, que conduz a
avaliações destituídas do rigor que as deve caracterizar, e potencialmente geradora de
significativas injustiças. Por isso mesmo opta o presente decreto-lei pela publicação de duas
tabelas de avaliação de incapacidades, uma destinada a proteger os trabalhadores no domínio
particular da sua actividade como tal, isto é, no âmbito do direito laboral, e outra direccionada
para a reparação do dano em direito civil”.

150 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

de 23 de Outubro, a incapacidade permanente do lesado para efeitos de


reparação civil do dano “deverá ser calculada por médicos especialistas em
medicina legal ou por especialistas noutras áreas com competência específica
no âmbito da avaliação médico-legal do dano corporal no domínio do direito
civil e das respectivas regras”.

A tabela em análise tem, assim, por objectivo fornecer as bases de


avaliação do dano corporal ou prejuízo funcional sofrido em consequência de
acidente de trabalho ou de doença profissional, com redução da capacidade de
ganho132. Para tal, a cada dano corporal ou prejuízo funcional corresponde um
coeficiente133 expresso em percentagem, que traduz a proporção da perda da
capacidade de trabalho resultante da disfunção, como sequela final da lesão
inicial, sendo a disfunção total, designada como incapacidade permanente
absoluta para todo e qualquer trabalho, expressa pela unidade.

Na operação de determinação do valor da incapacidade a atribuir devem


ser observadas um conjunto de regras elencadas no diploma legal em análise,
destacando-se as seguintes:

Possibilidade de bonificação dos coeficientes de incapacidade previstos se


a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho ou tiver 50
anos ou mais quando não tiver beneficiado da aplicação desse factor; ou,
ainda, quando a lesão implicar alteração visível do aspecto físico que
afecte, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho134;

132
Cf. Instruções Gerais do Anexo I da TNI.
133
Os coeficientes ou intervalos de variação correspondem a percentagens de desvalorização,
que constituem o elemento de base para o cálculo da incapacidade a atribuir.
134
Estas duas possibilidades de bonificação não são cumuláveis.

151 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

No caso de lesões múltiplas, o coeficiente global de incapacidade é obtido


pela soma dos coeficientes parciais segundo o princípio da capacidade
restante, calculando-se o primeiro coeficiente por referência à capacidade
do indivíduo anterior ao acidente ou doença profissional e os demais à
capacidade restante fazendo-se a dedução sucessiva de coeficiente ou
coeficientes já tomados em conta no mesmo cálculo135.

Quanto à atribuição de incapacidade absoluta para o trabalho


habitual diz naquele mesmo diploma legal que se deve ter em conta, por um
lado, a capacidade funcional residual para outra profissão compatível com esta
incapacidade atendendo a factores como a idade, qualificações profissionais e
escolares e a possibilidade, concretamente avaliada, de integração profissional
do sinistrado; e, por outro, a avaliação seja feita por junta pluridisciplinar136.

Por fim, diz-se que “sempre que circunstâncias excepcionais o


justifiquem, pode ainda o perito afastar-se dos valores dos coeficientes
previstos, inclusive nos valores iguais a 0.00 expondo claramente e
fundamentando as razões que a tal o conduzem e indicando o sentido e a
medida do desvio em relação ao coeficiente em princípio aplicável à situação
concreta em avaliação” e que na determinação da incapacidade global a
atribuir devem ser ponderadas as efectivas possibilidades de reabilitação
profissional do sinistrado, face às suas aptidões e às suas capacidades
restantes.

135
Sobre este ponto e como mais à frente faremos referência alguns dos nossos entrevistados
concluíram que se tratava de um retrocesso para o sinistrado relativamente à anterior tabela.
136
Diz-se na lei que esta junta pluridisciplinar deverá ser constituída por um médico do
Tribunal, um médico representante do sinistrado e um médico representante da entidade
legalmente responsável, no caso de acidente de trabalho. Relativamente a esta referência e
como melhor daremos conta num dos próximos capítulos há quem entenda que a mesma,
além de trazer nada de novo, ainda veio gerar dificuldades interpretativas.

152 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Prestações por incapacidade

Voltando à LAT, diz-se aí que, se do acidente resultar redução na


capacidade de trabalho ou ganho do sinistrado, traduzida numa incapacidade
fixada nos termos ante descritos e por aplicação da TNI, aquele terá então
direito às seguintes prestações137:

Em caso de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer


trabalho, o sinistrado terá direito a uma pensão anual e vitalícia igual a
80% da retribuição, acrescida de 10% por cada familiar a cargo138, até ao
limite da retribuição e subsídio por situações de elevada incapacidade
permanente;

137
Todas estas indemnizações por incapacidade são devidas enquanto o sinistrado estiver em
regime de tratamento ambulatório ou de reabilitação profissional, sendo, no entanto, reduzidas
a 45% durante o período de internamento hospitalar ou durante o tempo em que correrem por
conta da entidade empregadora ou seguradora as despesas com assistência clínica e
alimentos do mesmo sinistrado, desde que este seja solteiro, não viva em união de facto ou
não tenha filhos ou outras pessoas a seu cargo (cf. artigo 17.º da LAT).
138
De acordo com o artigo 45.º RLAT:

“1 - Para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 17.º da lei, considera-se familiar a
cargo do sinistrado, desde que com ele viva em comunhão de mesa e habitação: a) Os
descendentes solteiros; b) Os descendentes casados, bem como os separados de pessoas e
bens, divorciados e viúvos, com rendimentos mensais inferiores ao dobro da pensão social ou
ao valor desta, respectivamente; c) Os ascendentes com rendimentos mensais inferiores ao
valor da pensão social ou ao dobro deste valor, tratando-se de casal.
2 - São equiparados a descendentes do sinistrado, para efeitos do disposto no número anterior:
a) Os enteados; b) Os tutelados; c) Os adoptados restritamente; d) Os menores que, mediante
confiança judicial ou administrativa, se encontrem a seu cargo com vista a futura adopção; e)
Os menores que lhe estejam confiados por decisão dos tribunais ou de entidades ou serviços
legalmente competentes para o efeito.
3 - São equiparados a ascendentes do sinistrado, para efeitos do disposto no n.º 1: a) Os
padrastos e madrastas; b) Os adoptantes restritivamente; c) Os afins compreendidos na linha
recta ascendente”.

153 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Em caso de incapacidade permanente absoluta para o trabalho


habitual, o sinistrado terá direito a uma pensão anual e vitalícia
compreendida entre 50% e 70% da retribuição, conforme a maior ou menor
capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão
compatível e subsídio por situações de elevada incapacidade permanente;

Em caso de incapacidade permanente parcial igual ou superior a 30%,


o sinistrado terá direito a uma pensão anual e vitalícia correspondente a
70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho e subsídio por
situações de elevada incapacidade permanente, em caso de incapacidade
permanente parcial igual ou superior a 70%;

Em caso de incapacidade permanente parcial inferior a 30%, o


sinistrado terá direito ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia
correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho,
calculado nos termos que vierem a ser regulamentados;

Em caso de incapacidade temporária absoluta, o sinistrado terá direito a


uma indemnização diária igual a 70% da retribuição;

Em caso de incapacidade temporária parcial, o sinistrado terá direito a


uma indemnização diária igual a 70% da redução sofrida na capacidade
geral de ganho139 (cf. artigo 17.º da LAT).

Diz, ainda, a lei que quando se verifique “modificação da capacidade de


ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria
da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou de intervenção clínica ou
aplicação de prótese ou ortótese, ou ainda de formação ou reconversão

139
Sendo que as indemnizações por incapacidade temporária começam a vencer-se no dia
seguinte ao do acidente e as pensões por incapacidade permanente no dia seguinte ao da alta.

154 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

profissional‖140as prestações atribuídas poderão ser revistas e aumentadas,


reduzidas ou extintas, sempre de harmonia com a alteração verificada. No
entanto, nos termos da Lei n.º100/97 de 13 de Setembro, a revisão só poderá
ser requerida dentro dos 10 anos posteriores à data da fixação da pensão, uma
vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos
imediatos. Esta matéria relativa ao prazo de 10 anos, como a seguir daremos
conta, foi alterada pela Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.

A LAT prevê igualmente a possibilidade de se estabelecer uma pensão


provisória por incapacidade permanente entre o dia seguinte ao da alta e o
momento de fixação da pensão definitiva (cf. n.º 5 do artigo 17.º da LAT),
estando o seu modo de fixação devidamente regulamentado no artigo 47.º do
RLAT. Esta pensão provisória por incapacidade permanente será atribuída pela
entidade responsável e calculada nos termos ante descritos para a pensão
definitiva, com base, por um lado, na desvalorização definida pelo médico
assistente e, por outro, na retribuição garantida, sendo que os montantes
pagos serão considerados aquando da fixação final dos respectivos direitos.

Por sua vez, se, em consequência da lesão resultante do acidente, “o


sinistrado não puder dispensar a assistência constante de terceira pessoa‖ este
terá direito a uma prestação suplementar “não superior ao montante da
remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço
doméstico” (cf. n.º 1 do artigo 19.º LAT)141. Em caso de incapacidade
permanente absoluta, o sinistrado terá direito ao pagamento das despesas que

140
Cf. Artigo 25.º da LAT.
141
Este será um tema a tratar num dos capítulos que se seguem uma vez que nos foi apontado
como um retrocesso social trazido pela nova LAT que entrou em vigor no início do ano de
2010.

155 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

venha a suportar com a readaptação de habitação, até ao limite de 12 vezes


a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data do acidente (cf.
artigo 24.º LAT). Se, por outro lado, a incapacidade permanente absoluta ou a
incapacidade permanente parcial que atingir o sinistrado for igual ou superior a
70%, este terá o direito a usufruir de um subsídio por elevada incapacidade,
igual a 12 vezes a remuneração mínima mensal garantida à data do acidente,
ponderado pelo grau de incapacidade fixado, sendo o mesmo pago de uma só
vez aos sinistrados nessas situações (cf. artigo 23.º LAT).

Pensões por morte

Nos casos em que do acidente resultar a morte do acidentado do


trabalho, há lugar a pensões anuais por morte a favor de determinadas
pessoas consideradas como beneficiárias do lesado (cf. artigo 20.º da LAT):

O cônjuge ou a pessoa em união de facto, receberá uma pensão


correspondente a 30% da retribuição do sinistrado até perfazer a idade de
reforma por velhice e, a partir daquela idade ou no caso de doença física ou
mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho, 40% dessa
mesma retribuição;

O ex-cônjuge ou cônjuge judicialmente separado à data do acidente e com


direito a alimentos, terá direito a uma pensão a determinar até ao limite do
montante dos alimentos fixados judicialmente;

Os filhos, incluindo os nascituros e adoptados plena ou restritamente à data


do acidente, até perfazerem 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentarem,
respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino
superior (ou, sem limite de idade, quando afectados de doença física ou
mental que os incapacite sensivelmente para o trabalho) terão direito a uma
pensão na medida correspondente a 20% da retribuição do sinistrado se for

156 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

apenas um, 40 % se forem dois, 50% se forem três ou mais, recebendo o


dobro destes montantes, até ao limite de 80% da retribuição do sinistrado,
se forem órfãos de pai e mãe;

Os ascendentes e quaisquer parentes sucessíveis à data do acidente até


perfazerem 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentarem, respectivamente, o
ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior (ou, mais uma
vez, sem limite de idade quando afectados de doença física ou mental que
os incapacite sensivelmente para o trabalho), desde que o sinistrado
contribuísse com regularidade para o seu sustento, terão direito a uma
pensão no montante de 10% da retribuição do sinistrado, não podendo o
total das pensões exceder 30% desta.

Os beneficiários do sinistrado terão, ainda, direito à reparação por


despesas de funeral (igual a quatro vezes a remuneração mínima mensal
garantida mais elevada, aumentada para o dobro, se houver trasladação) e a
um subsídio por morte igual a 12 vezes a remuneração mínima mensal
garantida mais elevada, sendo atribuído na seguinte proporção (cf. artigo 22.º
LAT):

Metade ao cônjuge ou à pessoa em união de facto e metade aos filhos que


tiverem direito a pensão por morte;

Por inteiro ao cônjuge ou pessoa em união de facto, ou aos filhos previstos


na alínea anterior, não sobrevivendo, em simultâneo, cônjuge ou pessoa
em união de facto ou filhos.

Remissão das pensões

Outra questão que se coloca com alguma acuidade em matéria de


pensões é a da sua remissão. Nos termos da lei, as pensões anuais devidas a

157 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

sinistrados e a beneficiários legais de pensões vitalícias que não sejam


superiores a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada
à data da fixação da pensão, bem como as pensões devidas a sinistrados,
independentemente do valor da pensão anual, por incapacidade permanente e
parcial inferior a 30% são, ambas, nos termos artigo 56.º RLAT,
obrigatoriamente remidas. Por sua vez, a requerimento dos pensionistas ou
das entidades responsáveis e com autorização do tribunal competente, podem
ser parcialmente remidas as pensões anuais vitalícias correspondentes a
incapacidade igual ou superior a 30 % ou as pensões anuais vitalícias de
beneficiários em caso de morte, desde que cumulativamente respeitem os
seguintes limites: a pensão sobrante não seja inferior a seis vezes a
remuneração mínima mensal garantida mais elevada e o capital de remição
não seja superior ao que resultaria de uma pensão calculada com base numa
incapacidade de 30 %142.

As bases técnicas aplicáveis ao cálculo do capital de remição das


pensões, bem como as tabelas práticas de cálculo dos capitais de remição
estão previstas na Portaria n.º 11/2000, de 13 de Janeiro143. Nos termos
fixados nesta portaria, a iniciativa da remição obrigatória das pensões em
pagamento cabe ao MP, devendo as empresas de seguros, nos casos de
pensões a seu cargo, remeter aos tribunais de trabalho listagens relativas aos
pensionistas com indicação do valor actualizado da pensão por pensionista.

142
A remição, obrigatória ou facultativa, não prejudica o direito às prestações em espécie, o
direito de o sinistrado requerer a revisão da sua pensão, os direitos atribuídos aos beneficiários
legais do sinistrado, se este vier a falecer em consequência do acidente, nem tão-pouco a
actualização da pensão remanescente no caso de remição parcial ou resultante de revisão de
pensão, nos termos da lei (cf. cf. artigo 58.º RLAT).
143
Esta é uma questão que também será retratada mais à frente uma vez que também ela foi
apontada como um retrocesso social.

158 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Transferência de responsabilidade para as seguradoras

Como forma de garantir todos os direitos atribuídos ao sinistrado do


trabalho a lei começa por estabelecer que todos créditos provenientes do
direito às prestações estabelecidas pela LAT são inalienáveis, impenhoráveis e
irrenunciáveis e gozam dos privilégios creditórios consignados na lei geral
como garantia das retribuições do trabalho, com preferência a resultante desta
classificação legal (cf. artigo 35.º da LAT).

Para dar efectivo cumprimento a esta orientação é estabelecida uma


obrigação para a entidade patronal que consiste na transferência da sua
responsabilidade pela indemnização para entidades legalmente autorizadas a
realizar este seguro. No entanto, e como acima já se referiu, sempre que o
acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou resultar de falta
de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho a
obrigação de indemnizar nos termos especiais (cf. artigo 18.º da LAT) recai
sobre a entidade empregadora, sendo a instituição seguradora apenas
subsidiariamente responsável pelas prestações normais previstas na lei. A
mais disto se a entidade patronal não declarar, por razões atinentes à fixação
do prémio de seguro, o valor real da retribuição do trabalhador, a seguradora
apenas responderá em função do valor declarado e a entidade empregadora
terá que responder pela diferença que resultar do valor da retribuição declarada
em comparação com o valor real (cf. artigo 37.º da LAT).

A LAT fixa igualmente a obrigatoriedade de uma apólice uniforme do


seguro de acidentes de trabalho144, a qual deve ser devidamente adequada às

144
O facto de existir uma apólice uniforme com cláusulas típicas previamente aprovadas faz
com que a este tipo de contrato não se aplique o diploma legal das cláusulas contratuais gerais
– artigo 3.º do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.

159 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

diferentes profissões e actividades. Esta apólice deve configurar-se de


harmonia com os princípios estabelecidos na LAT e no RLAT. A sua aprovação
está dependente do Instituto de Seguros de Portugal, uma vez ouvidas as
associações representativas das empresas de seguros145. A referida apólice
obedecerá, ainda, “ao princípio da graduação dos prémios de seguro em
função do grau de risco do acidente, tidas em conta a natureza da actividade e
as condições de prevenção implantadas nos locais de trabalho”, sendo nulas
as cláusulas adicionais que contrariem os direitos ou garantias previsto a este
respeito no artigo 38.º da LAT.

O contrato de seguro é um negócio jurídico bilateral146, consensual,


entre vivos, formal, patrimonial, oneroso e aleatório. O seu regime jurídico

145
A actividade seguradora encontra-se regulamentada no Decreto-lei n.º 176/1995, de 26 de
Julho, com a alteração e aditamento introduzidos pelo Decreto-Lei n.º 60/2004, de 22 de
Março. Este diploma legal estabelece regras de transparência para a actividade seguradora e
disposições relativas ao regime jurídico do contrato de seguro. Segundo o preâmbulo deste
diploma, o Decreto-Lei n.º 102/94, de 20 de Abril, veio abrir um novo espaço à concorrência,
que se traduz por uma maior e mais complexa oferta de produtos. Assim, “a diversidade de
coberturas, exclusões e demais condições, com maior ou menor grau de explicitação no
contrato, justifica que, à semelhança do que se verificou no sector bancário, se introduzam
regras mínimas de transparência nas relações pré e pós-contratuais”. O objectivo era o de
definir regras sobre a informação que deve ser prestada aos tomadores e subscritores de
contratos de seguro pelas seguradoras, assim, reduzir o potencial de conflito entre as
seguradoras e os tomadores de seguro, minimizando as suas principais causas e clarificando
direitos e obrigações.

O Decreto-lei n.º 94-B/1998, de 17 de Abril, alterado Decreto-Lei n.º 2/2009, de 5 de Janeiro


que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2005/68/CE, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 16 de Novembro de 2005, relativa ao resseguro, vem, ainda,
proceder à revisão pontual do regime jurídico do acesso e exercício da actividade seguradora e
resseguradora, em particular quanto às matérias relativas ao sistema de governo e conduta de
mercado. Por sua vez, a Norma Regulamentar 10/2009-R, do ISP, veio estabelecer os
princípios gerais a observar pelas empresas de seguros no seu relacionamento com os
tomadores de seguros, segurados, beneficiários ou terceiros lesados, em particular quanto à
respectiva política de tratamento, à gestão das reclamações que lhes sejam por estes
apresentadas, ao provedor do cliente e à política anti-fraude.
146
Ainda assim não se pode dizer que seja o paradigma da fonte das obrigações onde as
partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos. Ou seja, trata-se de um

160 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

encontra-se actualmente consagrado no Anexo I do Decreto-Lei n.º 72/2008,


de 16 de Abril, que entrou em vigor no de 01 de Janeiro de 2009, revogando,
assim, o Decreto-Lei n.º 142/2000, de 15 de Julho, bem como, e entro outros,
os artigos 425.º a 462.º do C.Com.. Segundo pode ler-se no preâmbulo
daquele diploma legal, o objectivo do legislador foi o de proceder a “uma
consolidação do direito do contrato de seguro vigente, tornando mais acessível
o conhecimento do respectivo regime jurídico, esclarecendo várias dúvidas
existentes, regulando alguns casos omissos na actual legislação e,
obviamente, introduzindo diversas soluções normativas inovadoras. Importa
referir que a consolidação e adaptação do regime do contrato de seguro têm
especialmente em conta as soluções estabelecidas no direito comunitário, já
transpostas para o direito nacional, com especial relevo para a protecção do
tomador do seguro e do segurado nos designados seguros de riscos de
massa”.

Uma das alterações de relevo prende-se com a declaração inicial de


risco. Assim, e com o objectivo de evitar as dúvidas resultantes do disposto no
artigo 429.º do C.Com., manteve-se a regra que dá preponderância ao dever
de declaração do tomador sobre o ónus de questionação do segurador, mas
são introduzidas exigências ao segurador, nomeadamente impondo-se o dever
de informação ao tomador do seguro sobre o regime relativo ao incumprimento
da declaração de risco, distinguindo-se entre comportamento negligente e
doloso do tomador do seguro ou segurado, com consequências diversas

contrato de adesão em que o aderente é livre de aceitar ou não o clausulado apresentado pela
seguradora. Em consequência sãs restrições ao princípio da liberdade contratual, o legislador e
a jurisprudência acabam por tomar partido da parte negocial dita de “mais fraca”,
nomeadamente em caso de dúvida interpretativa de determinada cláusula da apólice uma vez
que quem redige as cláusulas é a seguradora.

161 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

quanto à validade do contrato (cf. artigo 24.º, 25.º e 26.º do Decreto-Lei n.º
72/2008, de 16 de Abril).

Quanto à forma do contrato, passou a admitir-se a sua validade sem


observância de forma especial, mantendo-se, todavia, a obrigatoriedade de
redução a escrito da apólice (cf. artigo 32.º Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de
Abril). Deste modo, e de acordo com o preâmbulo deste diploma legal “o
contrato de seguro considera-se validamente celebrado, vinculando as partes,
a partir do momento em que houve consenso (por exemplo, verbal ou por troca
de correspondência), ainda que a apólice não tenha sido emitida”. Por sua vez,
continua a haver menções que devem obrigatoriamente constar da apólice e
certas cláusulas, designadamente as que excluem ou limitam a cobertura, que
têm de ser incluídas em destaque, de molde a serem facilmente detectadas (cf.
artigo 37.º Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril).

Fundo de Acidentes de Trabalho

Voltando à temática das garantias do trabalhador, prevê a lei que a


garantia do pagamento das pensões por incapacidade permanente ou morte e
das indemnizações por incapacidade temporária “que não possam ser pagas
pela entidade responsável por motivo de incapacidade económica
objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo
equivalente, ou processo de recuperação de empresa ou por motivo de
ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação” deverá ser
assumida e suportada por um fundo e que este, uma vez accionado, se
constituirá “credor da entidade economicamente incapaz, ou da respectiva
massa falida, cabendo aos seus créditos, caso a entidade incapaz seja uma
empresa de seguros, graduação idêntica à dos credores específicos de
seguros” (cf. artigo 39.º do RLAT).

162 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Esta matéria continua a ser regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 142/99


de 31 de Agosto que veio criar um fundo, dotado de autonomia financeira e
administrativa, no âmbito dos acidentes de trabalho - Fundo de Acidentes de
Trabalho (FAT), que, na sua essência, substituiu o Fundo de Actualização de
Pensões de Acidentes de Trabalho (FUNDAP), assumindo ainda novas
competências que lhe foram atribuídas pela Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.
O FAT veio apresentar um leque de garantias mais alargado, contemplando,
para além das actualizações de pensões de acidentes de trabalho e dos
subsídios de Natal, o pagamento dos prémios de seguro de acidentes de
trabalho de empresas que, estando em processo de recuperação, se
encontrem impossibilitadas de o fazer, competindo-lhe, ainda, ressegurar e
retroceder os riscos recusados de acidentes de trabalho147. Assim e sendo o

147
Cf. Artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99 de 31 de Agosto:

“1 – É criado o Fundo de Acidentes de Trabalho, dotado de autonomia administrativa e


financeira, adiante designado abreviadamente por FAT, a quem compete:
a) Garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre
que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial
de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo
de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela
entidade responsável;
b) Pagar os prémios do seguro de acidentes de trabalho das empresas que, no âmbito de um
processo de recuperação, se encontrem impossibilitadas de o fazer;
c) Reembolsar as empresas de seguros dos montantes relativos:
i) Às actualizações das pensões devidas por incapacidade permanente igual ou superior a 30%
ou por morte derivadas de acidente de trabalho;
ii) Aos duodécimos adicionais criados pelo n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 466/85, de 5 de
Novembro;
iii) Aos custos adicionais decorrentes das alterações, em consequência da nova redacção dada
ao artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 360/71, de 21 de Agosto, pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º
459/79, de 23 de Novembro, de pensões de acidentes de trabalho, por incapacidade
permanente igual ou superior a 30% ou por morte, que tenham sido fixadas anteriormente a 31
de Outubro de 1979;
d) Ressegurar e retroceder os riscos recusados.
2 – Relativamente aos duodécimos referidos no número anterior, o FAT só assume as
responsabilidades decorrentes de acidentes ocorridos até à data da entrada em vigor do
presente diploma.

163 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

objectivo do FAT prevenir que, em caso algum, os pensionistas de acidentes


de trabalho deixem de receber as pensões que lhe são devidas, em situação
de fundado conflito sobre quem recai o dever de indemnizar o sinistrado,
caberá também ao FAT, em primeira linha, satisfazer as prestações que lhe
são devidas, sem prejuízo de vir a ser reembolsado após decisão do tribunal
competente.

Acidentes originados por outro trabalhador ou terceiros

Os acidentes originados por outro trabalhador ou terceiros são tratados


no artigo 31.º da LAT. Este artigo prevê que, nestas situações, o trabalhador
sinistrado continua a ter o direito de exigir a reparação à entidade
empregadora, sem, contudo, ficar prejudicado o seu direito de agir
judicialmente contra o causador do acidente nos termos da lei geral. No
entanto, cumpre salientar que as diferentes indemnizações devidas ao
sinistrado não se cumulam, completam-se até ao ressarcimento completo dos
danos. Por sua vez, nos termos do n.º 4 do referido artigo 31.º e com o intuito
de proteger os interesses da entidade empregadora e da seguradora, prevê-se
que, caso uma destas tenha pago a indemnização pelo acidente, tem, em
contrapartida, o direito de se sub-rogar no direito do sinistrado e, portanto, vir a
exigir judicialmente do responsável do acidente os montantes por si
suportados.

3 – O FAT não é responsável pela reparação ou substituição de aparelhos quando


consequência de acidente, salvo nos casos previstos na alínea a) do n.º 1”.

164 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Reabilitação profissional

O sistema de responsabilidade por danos laborais não tem apenas por


função a compensação da redução da capacidade de ganho, mas também a
função de reconstituição da integridade do indivíduo sinistrado no exercício
profissional. Daí que a lei, como, aliás, já se fez referência, o artigo 40.º da
LAT, assegure ao sinistrado alguns direitos ligados à reabilitação profissional,
designadamente, o direito de ver assegurado na empresa ao serviço da qual
ocorreu o acidente a ocupação em funções compatíveis com o respectivo
estado e, ainda, o direito de lhe ser atribuída pela entidade empregadora a
necessária formação profissional, adaptação do posto de trabalho, trabalho a
tempo parcial, licença para formação ou novo emprego. Note-se que de acordo
com o preâmbulo da LAT este era um dos seus três grandes objectivos,
estando aqui essencialmente em causa o direito do sinistrado à sua
reabilitação, seja através da formação profissional e adaptação do posto de
trabalho; seja através do direito de poder trabalhar a tempo parcial; ou, ainda,
do direito a licença para formação ou novo emprego.

Com este objectivo de reabilitação profissional, o artigo 30.º da LAT148,


devidamente conjugando com o artigo 54.º do RLAT149, dispõem sobre a

148
Assim:

“1 - Durante o período de incapacidade temporária parcial, as entidades empregadoras serão


obrigadas a ocupar, nos termos e na medida em que vierem a ser regulamentarmente
estabelecidos, os trabalhadores sinistrados em acidentes ao seu serviço em funções
compatíveis com o estado desses trabalhadores. A retribuição terá por base a do dia do
acidente, excepto se entretanto a retribuição da categoria correspondente tiver sido objecto de
alteração, caso em que será esta a considerada, e nunca será inferior à devida pela
capacidade restante.
2 - O despedimento sem justa causa de trabalhador temporariamente incapacitado em
resultado de acidente de trabalho confere àquele, sem prejuízo de outros direitos consagrados

165 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

ocupação e as possibilidades de despedimento do sinistrado durante o período


de incapacidade temporária, conferindo assim ao trabalhador alguns direitos
tanto no que respeita à obrigação de ocupação efectiva (que apenas impede
sobre os empregadores com, pelo menos, 10 trabalhadores e de que podem
beneficiar apenas os sinistrados afectados por uma incapacidade temporária
parcial não superior a 50%)150, como no que toca às situações de
despedimento, prevendo-se que a sua ilicitude por não ocorrência de justa
causa dá lugar a um regime de indemnização mais favorável para o trabalhador
(o dobro daquele a que teria direito numa situação normal).

na lei aplicável, caso opte pela não reintegração, o direito a uma indemnização igual ao dobro
da que lhe competiria por despedimento sem justa causa”.
149
Veja-se o normativo em causa:

“1 - As entidades empregadoras que empreguem pelo menos 10 trabalhadores são obrigadas a


ocupar, em funções e condições de trabalho compatíveis com o respectivo estado, os
sinistrados de acidentes ao seu serviço, ainda que a título de contrato a termo e mesmo para
além desse termo, quando afectados de incapacidade temporária de coeficiente não superior a
50%.
2 - Cessa a obrigação prevista no número anterior quando o sinistrado não se apresentar à
entidade empregadora dentro de 10 dias após a fixação da incapacidade, no caso de a
ausência não ser devidamente justificada.
3 - A entidade empregadora que não cumprir o disposto no n.º 1, e sem prejuízo de outras
prestações que por lei forem devidas, pagará ao sinistrado a retribuição que lhe competiria nos
termos da segunda parte do n.º 1 do artigo 30.º da lei, salvo se o contrato tiver sido rescindido”.
150
Tanto a doutrina, como a jurisprudência, têm vindo a divergir quando à natureza absoluta ou
relativa do dever de ocupação. Ou seja, existe quem defenda que se trata de um dever
absoluto e que, portanto, o empregador terá sempre se encontrar função compatível com o
estado de saúde do trabalhador; outros entendem que é um dever relativo e que, por
consequência, cessa quando não houver posto de trabalho ou função compatível e faz como
que se opere a caducidade do contrato de trabalho por impossibilidade superveniente.

166 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

B) O actual Código de Trabalho e a actual LAT (Lei n.º 98/2009,


de 04 de Setembro)

Como acima já se referiu desde o passado dia 1 de Janeiro de 2010 que


o regime jurídico aplicável aos acidentes de trabalho que tenham ocorrido
desde essa data é o que consta dos artigos 281.º a 284.º (Regime relativo a
acidentes de trabalho e doenças profissionais) do Código de Trabalho (CT),
aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro e do diploma legal que veio
regulamentar esse mesmo regime de reparação de acidentes de trabalho e de
doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, a
Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.

No artigo 4.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro refere-se, desde logo


e no seguimento do que já se previa anteriormente, que o regime relativo a
acidentes de trabalho e doenças profissionais, previsto nos artigos 283.º e
284.º do CT, aplicar-se-á, para além dos trabalhador por conta de outrem, com
as necessárias adaptações, aos praticantes, aprendizes, estagiários e demais
situações que devam considerar-se de formação profissional; bem como aos
administradores, directores, gerentes ou pessoas equiparadas, ainda que sem
contrato de trabalho, desde que sejam remunerados por essa actividade; e,
ainda, aos prestadores de trabalho, sem subordinação jurídica, que
desenvolvam a sua actividade na dependência económica, nos termos do
artigo 10.º do Código do Trabalho.

Por sua vez, no artigo 281.º do CT estão consagrados os princípios


gerais em matéria de segurança e saúde no trabalho, devendo o empregador
informar os trabalhadores sobre todos os aspectos que se prendam com a
protecção da sua segurança e saúde, bem como a de terceiros (cf. 282.º do
CT) e, ainda, assegurar formação adequada nesta área (cf. 283.º do CT). O CT

167 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

refere igualmente que os trabalhadores e os seus familiares têm direito à


reparação de danos emergentes de acidente de trabalho, desde que se prove
que a lesão corporal ou perturbação funcional desde que se prove “serem
consequência, necessária e directa, da actividade exercida e não representem
normal desgaste do organismo” (cf. 284.º do CT). Neste mesmo dispositivo diz-
se expressamente que o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade
pela reparação para as seguradoras e que as prestações que forem devidas e
que não possam ser pagas pela entidade responsável, nomeadamente por
motivo de incapacidade económica, deverão ser assumidas pelo Fundo de
Acidentes de Trabalho. Por fim diz, ainda, que o “empregador deve assegurar a
trabalhador afectado de lesão provocada por acidente de trabalho ou doença
profissional que reduza a sua capacidade de trabalho ou de ganho a ocupação
em funções compatíveis”, remetendo no demais para a Lei n.º 98/2009, de 04
de Setembro (cf. 284.º do CT).

Esta nova lei regulamentar (Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro) não


parece ter como fim romper com o regime jurídico estabelecido anteriormente,
mas sim proceder a uma sistematização das matérias e, ainda, segundo o
legislador, corrigir aqueles normativos que, pela sua aplicação prática, se
vinham a revelar desajustados, quer do ponto de vista social, quer do ponto de
vista constitucional e legal, como é exemplo o caso da remição obrigatória de
pensão por incapacidade parcial permanente. No entanto e como veremos
mais à frente, há vozes que, ao contrário do que seria a intenção do legislador,
afirmam que na prática, esta nova LAT se traduz em mais uma manifestação
de retrocesso social, nomeadamente porque não se aproveitou a oportunidade
de ir mais longe e de passar a entender o sinistrado do trabalho para além da
sua capacidade retributiva.

168 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

De entre as alterações trazidas por esta nova LAT destacamos as que


se seguem:

Na senda do que vinha sendo defendido por alguma doutrina e


jurisprudência, o conceito de acidente de trabalho passa a abranger o
acidente que se verifique nos trajectos normalmente utilizados pelo
trabalhador, bem como o acidente ocorrido fora do local de trabalho quando
no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos
trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho (cf. artigo 9.º
Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro);

Reconheceu-se à família do trabalhador sinistrado o direito a apoio


psicoterapêutico, sempre que necessário (cf. alínea j), n.º 1 do artigo 9.º Lei
n.º 98/2009, de 04 de Setembro);

Passou a prever-se a atribuição de pensão calculada nos termos aplicáveis


aos casos em que não haja actuação culposa do empregador, quando o
acidente tenha sido provocado pelo empregador, seu representante ou
entidade por aquele contratada, ou resultar de incumprimento de regras de
segurança e saúde no trabalho (cf. artigo 18.º Lei n.º 98/2009, de 04 de
Setembro);

Garantiu-se ao sinistrado o acesso à sua informação clínica (art. 36.º),


passando a ter consagrado expressamente o direito a pedir cópia dessa
informação, designadamente do boletim de alta e dos exames
complementares, para assim poder entregar a outros peritos ou ao seu
advogado, para poder fundamentar a sua acção judicial;

Reconheceu-se ao beneficiário legal do sinistrado o direito ao pagamento


de transporte sempre que for exigida a sua comparência em tribunal (cf. n.º
6 do artigo 39.º Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro);

169 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Passou a prever-se mais detalhadamente a obrigação de garantia de


reabilitação e reintegração profissional e a adaptação do posto de trabalho,
cabendo ao empregador assegurar a sua ocupação e criar condições para
a sua integração no mercado de trabalho, nomeadamente através da
atribuição ao sinistrado de um subsídio para a frequência de acções no
âmbito da reabilitação profissional (cf. artigo 155.º e ss. Lei n.º 98/2009, de
04 de Setembro);

Estabeleceu-se o direito a pensão por morte do sinistrado a pessoa que


tenha celebrado casamento declarado nulo ou anulado, bem como, a
exclusão de pessoa que tenha sido excluída da sucessão por indignidade e
deserdação (cf. artigo 58.º Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro);

Eliminou-se a regra que determinava que a pensão por acidente de trabalho


só podia ser revista nos 10 anos posteriores à sua fixação, passando a
permitir a sua revisão a todo o tempo (cf. artigo 70.º Lei n.º 98/2009, de 04
de Setembro);

Alterou-se o regime de remição de pensões (cf. artigo 75.º, 76.º e 77.º Lei
n.º 98/2009, de 04 de Setembro);

Passou a regular-se a prestação de trabalho a tempo parcial e a licença


para formação ou novo emprego de trabalhador vítima de acidente de
trabalho.

2.2.2 Os acidentes de viação

Durante a vigência do Decreto-Lei n.º 408/79, de 31 de Dezembro, o


seguro automóvel não era obrigatório e tinha como objectivo primeiro a
protecção do próprio veículo segurado e, portanto, garantir o custo da sua

170 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

reparação ou substituição151. Posteriormente com a entrada em vigor do


Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro, devidamente conjugado com o
Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, o seguro automóvel passou a ser
obrigatório, contribuindo, assim, para que este tipo de seguro se assumisse
como um seguro de responsabilidades e como um seguro a favor de
terceiros152.

Na perspectiva de Duarte Nuno Vieira e José Alvarez, esta ideia de


protecção das vítimas de acidentes de viação “viria a tornar-se o motor das
sucessivas reformas que o seguro de responsabilidade civil automóvel seria
alvo”, com tradução na redução das exclusões e no aumento dos capitais
mínimos obrigatórios. Mais recentemente, e da necessidade de transpor para o
ordenamento jurídico português a 5.ª Directiva Automóvel, foi publicado o
Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto (Novo Regime de Responsabilidade
Civil Automóvel). Desta transposição resultou a actualização dos capitais
mínimos da cobertura de responsabilidade civil obrigatória 153; a redefinição das
responsabilidades do Fundo de Garantia Automóvel (FGA) que passou a

151
Segundo Duarte Nuno Vieira e José Alvarez “neste período (…) o capital garantido em cada
apólice, servia de tecto (pelo menos psicológico) aos pedidos indemnizatórios e,
consequentemente, às indemnizações (judiciais ou não) atribuídas”.
152
Neste nosso trabalho, a análise do regime jurídico dos acidentes de trabalho irá servir-nos,
sobretudo, como ponto de referência e de avaliação do regime jurídico dos acidentes de
trabalho.
153
O anterior capital obrigatório de 600.000,00 euros sofreu progressivos aumentos, passando
a incluir sub-limites para danos corporais e materiais. Desde 01/12/2009 que o capital
obrigatório é de 2.500.000,00 euros para danos corporais e de 750.000,00 euros para danos
materiais, sendo que a partir de 01/06/2012 passará para 5.000.000,00 euros no que respeita a
danos corporais e 1.000.000,00 euros para danos materiais. Depois desta data os capitais
passarão a ser revistos de 5 em 5 anos, sob proposta da Comissão Europeia, em função do
índice europeu de preços do consumidor.

171 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

garantir as indemnizações, até ao valor do capital mínimo do seguro


obrigatório, nas seguintes condições:

Danos corporais, quando o responsável seja desconhecido, não beneficie


de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da companhia de
seguros;

Danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie


de seguro válido eficaz; existam simultaneamente danos corporais
significativos, passíveis de ser indemnizados pelo FGA, e o responsável
seja desconhecido; e, o veículo causador do acidente tenha sido
abandonado no local do acidente, não beneficiando de seguro válido e
eficaz, e a autoridade policial haja efectuado o respectivo auto de notícia,
confirmando a presença do veículo no local do acidente154.

A) O Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro (Tabela


Indicativa para a Avaliação da Incapacidade em Direito Civil)

Por sua vez, o já referido Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro,


que aprovou a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho,
também aprovou a Tabela Indicativa para a Avaliação da Incapacidade em
Direito Civil, produzindo, assim, legislação específica no âmbito na avaliação
do dano corporal em direito civil e marcando uma nova etapa nos padrões
normativos atinentes à indemnização do corpo e da vida.

154
No entanto e em contrapartida, o FGA deixa de garantir danos materiais causados aos
incumpridores da obrigação de segurar, bem como pelos passageiros que, voluntariamente, se
encontrassem no veículo sem seguro e causador do acidente, sempre que se possa provar que
tinham conhecimento da inexistência de seguro.

172 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

O princípio da tabelação (baremização) das incapacidades é um assunto


cuja discussão histórica sempre se revelou polémica e contraditória 155. As
críticas à sua inexistência têm, porém, vindo a tornar-se progressivamente
prevalecentes sobretudo devido às discrepâncias e subjectivismo em que se
traduz a sua não existência. Em Portugal, há muito (desde 1993) que se
contava com uma Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de
Trabalho e Doenças Profissionais. Mas, o facto de ser utilizada (errada mas
recorrentemente) como instrumento de referência para outros domínios
jurídicos tinha vindo a redundar, como já referimos e segundo a exposição de
motivos da nova lei, em “avaliações destituídas do rigor que as deve
caracterizar, [sendo] potencialmente geradoras de significativas injustiças”. E
tal deve-se, sobretudo, a um princípio normativo fundamental já sobejamente
tratado: no direito do trabalho a indemnização visa repor a capacidade de
ganho do sinistrado e, no direito civil visa a reparação integral do dano.

A vaga promotora da adopção de uma tabela indicativa para o direito


civil foi marcadamente europeia e tem por base a tentativa de estabelecimento
de critérios e metodologias comuns aos Estados-membros na avaliação e
reparação do dano corporal156. O «Guide barème européen d’évaluation des
atteintes à l’intégrité physique e psychique» constituiu o primeiro projecto de
definição de uma norma comum à escala europeia – um trabalho para o qual

155
Cf., por exemplo, Bisogni, K.; De Rosa, C.; Ricci, P. (2006), “A Tabela Italiana de avaliação
do dano corporal. Percurso histórico”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal.
156
Por oposição aos que criticam os barémes com fundamento na falta de concepção
científica, outros defendem que não se justifica que numa Europa sem fronteiras a perda dos
mesmos órgãos e das mesmas funções, com as mesmas sequelas, sejam avaliadas de formas
completamente distintas.

173 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

muito contribui Lambert-Fevre157, precursora dos principais estudos sobre o


dano corporal –, que incluiria as taxas de incapacidade correspondentes a tipos
de sequelas predefinidas. Neste documento apenas estão plasmadas as
grandes incapacidades, ficando tudo o demais à consideração legislativa de
cada país membro. De acordo com o seu preâmbulo salientamos algumas das
suas grandes linhas de orientação: a percentagem de ofensa à integridade
física e psíquica não é uma unidade de medidas mas antes uma unidade de
apreciação e que, além disto, a baremização não exclui uma certa
personalização uma vez que o perito médico tem sempre que explicar as
repercussões das sequelas na vida diária do lesado e só depois deve proceder
à fixação da taxa de incapacidade.

A nova tabela portuguesa partiu desse documento inicial, contando, na


sua elaboração, com a participação do Instituto de Medicina Legal. Para além
desta participação que se ateve ao aspecto médico, os técnicos da Associação
Portuguesa de Seguradoras (APS), tendo por base a Tabela de Indemnizações
Espanhola, passaram a fazer ensaios para apurar até onde poderiam ir as
indemnizações em termos pecuniários158. Segundo o preâmbulo deste diploma

157
A sociedade francesa tem levado a cabo um amplo debate no domínio da protecção das
vítimas e da indemnização de danos corporais. Em 2005, no sob a presidência de Nicole Guedj
desta Secretaria de Estado, foi planeada a reforma do quadro jurídico que regula a
indemnização dos danos corporais, baseando-se no relatório encomendado em 2003 pelo
Ministério da Justiça a uma comissão de especialistas dirigida por Yvonne Lambert-Faivre. A
linha uniformizadora é bem expressa por esta autora: «le corps humain étant universel,
l’amputation d’un bras ne doit pas être chiffrée différemment d’un lieu à l’autre. Si l’on admet
que tous les hommes sont égaux, on doit admettre l’égalité des corps humains. Or, je suis
frappé par le fait que les taux d’incapacité ne sont pás les mêmes pour une même atteinte à
l’intégrité physique.».
158
Note-se que ainda é muito difícil apurar o seu impacto nas decisões judiciais subsequentes,
sobretudo por ser recente a sua entrada em vigor e isso significar, do ponto de vista das
práticas judiciais e periciais, um período de transição naturalmente turbulento. Nesse sentido,
uma parte da análise empírica desenvolvida assenta no quadro legal anterior, carente de uma
especificação normativa explícita, como a inscrita nesta nova tabela civil.

174 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

legal (leia-se, Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro) esta nova tabela


“visa a criação de um instrumento adequado de avaliação neste domínio
específico do direito, consubstanciado na aplicação de uma tabela médica com
valor indicativo, destinada à avaliação e pontuação das incapacidades
resultantes de alterações na integridade psico-física”. Assim, e numa
perspectiva de progressiva autonomização da avaliação do dano corporal em
direito civil que vem tendo lugar nas legislações de diversos países, encontram-
se aqui vertidas “as grandes incapacidades, estabelecem-se as taxas para as
sequelas referentes aos diferentes sistemas, aparelhos e órgãos e respectivas
funções e avaliam-se as situações não descritas por comparação com as
situações clínicas descritas e quantificadas”. O legislador salienta ainda que
esta tabela se destina a ser utilizada ―(…) por peritos conhecedores dos
princípios da avaliação médico-legal no âmbito do direito civil e das respectivas
regras, desde os problemas decorrentes de um eventual estado anterior, à
problemática das sequelas múltiplas, constituindo assim um elemento auxiliar
que se reputa de grande utilidade prática para a uniformização de critérios e
procedimentos”.

B) A Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio

Posteriormente, em finais de Maio de 2008, foi publicada a Portaria n.º


377/2008, de 26 de Maio que, na linha do sucedido com a avaliação médico-
legal do dano, procura igualmente uniformizar as decisões judiciais, já não
relativamente à avaliação médico-legal de incapacidades, mas antes no que
respeita à reparação pecuniária de danos corporais em direito civil. Dirigida
especificamente a acidentes rodoviários – pelo que se articula expressamente
com a transposição da já mencionada 5.ª Directiva de Seguro Automóvel
(2007), introduz um novo quadro indicativo de montantes indemnizatórios que,

175 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

segundo o legislador, procuram suprir uma lacuna normativa que tinha estado
na origem de diferentes problemas: opacidade, morosidade e clivagens
significativas nos critérios de atribuição de indemnizações por morte, danos
morais e danos corporais.

A densificação legislativa conseguida com a referida Portaria n.º


377/2008, de 26 de Maio, fixando valores meramente referenciais, reforçando o
papel do legislador no enquadramento e na valoração dos danos ressarcíveis,
constitui um caminho sociologicamente expressivo das tensões que
atravessavam esta esfera, que cruza uma intensa actividade seguradora com
níveis volumosos de ocorrências e com um impacto de extrema relevância
junto dos cidadãos. Da exposição de motivos daquele normativo importa reter a
ideia de que “A defesa dos interesses das vítimas dos acidentes de viação tem
sido uma das prioridades do Governo”. É, portanto, nesse sentido que se
propõem medidas de penalização tanto pelo incumprimentos de prazos para
quem se vê obrigado a indemnizar, como pela formulação de propostas
irrazoáveis face aos danos a serem reparados. Em contrapartida, o cálculo das
indemnizações por danos patrimoniais deve agora ser baseado nos
rendimentos declarados pelo lesado à administração fiscal.

São salientadas pelo legislador outras medidas, nomeadamente e com


particular relevância, a adopção de um princípio de que “só há lugar à
indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do
lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual ou
qualquer outra”. Em contrapartida, prossegue o legislador, “ainda que não
tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de
incapacidade permanente parcial o lesado terá direito à indemnização pelo seu
dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica”,

176 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

cuja indemnização deverá ser calculada segundo a idade e o grau de


desvalorização apurado de acordo com a já referida Tabela Nacional para
Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, e com referência
inicial ao valor da retribuição mínima mensal garantida. O método de cálculo
avançado para o dano patrimonial futuro deverá resultar de uma fórmula que
combina o rendimento anual, a taxa de juro e taxa anual de crescimento, fixada
em 2%159. Por fim, é ainda referida a garantia do lesado, quando não lhe for
atribuída qualquer incapacidade permanente, a ser indemnizado pelo dano
moral decorrente de dano estético e ou do quantum doloris, que lhe sejam
medicamente reconhecidos.

Avaliação do dano corporal

Com esta nova legislação o dano corporal, no âmbito dos acidentes de


viação, é susceptível de uma tripla avaliação:

Como dano a se, tertium genus

Como dano patrimonial

Como dano não patrimonial

Tertium genus

Assim e desde logo naquele tertium genus que respeita ao dano


biológico ou dano psico-físico (cf. alínea b) artigo 3.º da Portaria) inserem-se
todas as “incapacidades funcionais provenientes das sequelas de um acidente

159
Cf. Anexo III da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio.

177 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

de viação, representando uma alteração morfológica do lesado, limitativo da


sua capacidade de viver a vida como a vivia antes do mesmo acidente, por
violação da sua personalidade humana”160. Segundo esta definição percebe-se
que este dano deve ser, portanto, indemnizado como dano emergente e
independentemente da perda ou não de capacidade de ganho161, conferindo ao
lesado o direito a uma compensação ancorada na tabela constante no Anexo
IV da mencionada Portaria, sendo por referência a esta tabela que se
preenchem os requisitos da Proposta Razoável (cf. artigo 8.º da Portaria).

Como refere Armando Braga162, num esforço de ultrapassar os conceitos


clássicos, a nossa jurisprudência já vinha a reconhecer expressamente o dano
biólogo. Já em 1997163 a Relação do Porto caracterizou este dano como “a
limitação da capacidade de viver a vida por parte da vítima, comparativamente
com a forma como ela a vivia antes do facto lesante, considerando-o uma
forma de violação de personalidade humana traduzida num prejuízo concreto,
consistente na privação ou diminuição do gozo de bens espirituais,
insusceptíveis de avaliação pecuniária: a saúde, a inteligência, os sentimentos,
a vontade, a capacidade afectiva e criadora, a liberdade, a reserva de
privacidade individual, o prazer proporcionado pela vida e pelos bens
materiais”. Este acórdão distingue, ainda, este dano biológico do desgosto que
a vítima sente por se sentir diminuída nestes valores não patrimoniais uma vez
que, ao representar uma alteração morfológica do lesado, é merecedor de

160
Cf. Ac. TRP de 07 de Abril de 1997.
161
Estamos a referir-nos ao dito rebate profissional que deverá ser avaliado enquanto dano
patrimonial futuro.
162
Cf. Armando Braga, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil
Extracontratual, 1955-2005, Almedina, pág. 230 e 231.
163
Ac. TRP, in CJ, 1997, Tomo 2, pág. 204.

178 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

tutela tal qual a que é atribuída às dores físicas ou psíquicas. Nesta linha de
argumentação conclui que deve ser fixado um quantitativo unitário nos termos
do artigo 496.º do CC. Posteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça, num
acórdão de 3 de Junho de 2004, veio considerar como “dano biológico
flagrante” a perda de visão do olho direito. Num outro acórdão de 27 de Abril do
mesmo ano, o Supremo Tribunal de Justiça recorreu a este conceito para
caracterizar como dano o atrofio de um testículo.

Voltando a este novo modelo indemnizatório e de acordo com o já


mencionado Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto (Novo Regime de
Responsabilidade Civil Automóvel) que veio transpor a 5.ª Directiva Automóvel,
a Seguradora, sempre que lhe seja comunicada a ocorrência de um sinistro
automóvel coberto por um contrato de seguro deve, entre outras obrigações,
comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de
45 dias, a contar da data do pedido de indemnização, caso tenha entretanto
sido emitido o relatório de alta clínica e o dano seja totalmente quantificável,
informando daquele facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro
lesado, por escrito ou por documento electrónico. (cf. al. c) do n.º 1 do artigo
37.º Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto). Sendo que, nos termos do n.º 1
do artigo 39.º desse mesmo diploma legal, a posição aí assumida pela
seguradora “consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no
caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser
quantificável, no todo ou em parte”. Se, todavia, o montante proposto for
manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei
aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante
fixado na decisão judicial. Para efeitos deste diploma legal, entende-se por
proposta razoável “aquela que não gere um desequilíbrio significativo em
desfavor do lesado” (cf. n.º 6 do artigo 39.º Decreto-Lei 291/2007, de 21 de
Agosto). Quando os sinistrados entendam que a oferta que lhes foi

179 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

apresentada não se traduz numa oferta aceitável poderão recorrer às


tradicionais vias judiciais.

Danos patrimoniais

A vítima de um acidente de viação deverá, ainda, ser indemnizada pelas


perdas salariais decorrentes de incapacidade temporária havida entre a data
do acidente e a data da fixação da incapacidade e por todas as despesas
comprovadamente suportadas pelo lesado em consequência das lesões
sofridas no acidente (cf. alínea a) c) e d) do artigo 3.º da Portaria) 164 e pelos
danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente
absoluta, ou de incapacidade para a profissão habitual, e isto não obstante
poder haver reconversão profissional.

O artigo 7.º da Portaria refere quais as regras e critérios a que deve


obedecer a referia Proposta Razoável quando tenham ocorrido danos
patrimoniais futuros, distinguindo entre duas situações:

Nos casos de incapacidade permanente absoluta, o dano patrimonial


futuro é calculado de acordo com a fórmula constante do anexo III da
presente portaria. Sendo que, para o cálculo do tempo durante o qual a
prestação se considera devida, parte-se da presunção de que o lesado se
reformaria aos 70 anos de idade. No que toca à fórmula para apuramento

164
Para este efeito entende-se que a proposta razoável deve contemplar o pagamento integral
dos rendimentos perdidos, decorrentes da incapacidade temporária do lesado e que sejam
fiscalmente documentáveis, bem como das despesas médicas e medicamentosas, refeições,
estadas e transportes, desde que sejam apresentados os originais dos respectivos
comprovativos. Nos casos de auxílio de terceira pessoa, adaptação de veículo ou de
residência, consideram -se como valores de referência os constantes do anexo V da presente
portaria – cf. artigo 10.º da Portaria.

180 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

do rendimento mensal do lesado, mandam-se aplicar as regras dos nºs 2 a


4 do artigo 6.º da Portaria165.

Nos casos de incapacidade permanente absoluta para a prática da


profissão habitual, sem possibilidade de reconversão para outras
profissões dentro da sua área de formação técnico profissional, a proposta
indemnizatória corresponde a dois terços do capital calculado nos termos
descritos no ponto anterior.

Por sua vez, nas situações em que se verifique incapacidade permanente


absoluta para a prática da profissão habitual, embora com
possibilidade da reconversão, a proposta indemnizatória corresponde a
quatro anos de rendimentos líquidos166.

No que respeita aos valores indicativos para indemnização do dano


patrimonial futuro em caso de morte e para efeitos de Proposta Razoável, o
artigo 6.º da Portaria (que dispõe sobre as regras e critérios a que se deve

165
Onde se pode ler:

“2 — Para efeitos de apuramento do rendimento mensal da vítima, são considerados os


rendimentos líquidos auferidos à data do acidente fiscalmente comprovados.
3 — É considerada a retribuição mínima mensal garantida (RMMG) à data da ocorrência,
relativamente a vítimas que não apresentem declaração de rendimentos, não tenham profissão
certa ou cujos rendimentos sejam inferiores à RMMG.
4 — No caso de a vítima estar em idade laboral, ter profissão, mas encontrar -se numa
situação de desemprego, é considerada a média dos últimos três anos de rendimentos líquidos
declarados fiscalmente, majorada de acordo com a variação do índice de preços no
consumidor (total nacional, excepto habitação), nos anos em que não houve rendimento, ou o
montante mensal recebido a título de subsídio de desemprego, consoante o que for mais
favorável ao beneficiário”.
166
Nos termos do artigo 11.º da Portaria, a proposta razoável para ressarcimento destes danos
e, em especial, relativamente aos lesados com idade inferior a 25 anos e ou de incapacidades
iguais ou superiores a 60%, “deve preferencialmente ser efectuada através do oferecimento de
uma renda ou de um sistema misto de renda e capital que reserve para o pagamento em
renda, salvo em situações especialmente fundamentadas, verba não inferior a dois terços da
indemnização”.

181 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

obedecer nesta situação) remete para o já referido Anexo III que trata do
método de cálculo do dano patrimonial futuro em geral e estipula que, para
calculo do tempo durante o qual a prestação se considera devida ao cônjuge
sobrevivo ou filho dependente por anomalia física ou psíquica, se presume que
a vítima se reformaria aos 70 anos. Neste artigo diz-se, ainda, que para efeitos
de apuramento do rendimento mensal da vítima, “são considerados os
rendimentos líquidos auferidos à data do acidente fiscalmente comprovados”,
sendo que relativamente a vítimas que não apresentem declaração de
rendimentos, não tenham profissão certa ou cujos rendimentos sejam inferiores
à retribuição mínima mensal garantida, para este efeito, será o valor desta
última que a ter em linha de conta. Por sua vez, caso a vítima se encontre
desempregada àquela data, deverá ser considerada para o efeito a média dos
últimos três anos de rendimentos líquidos declarados fiscalmente.

Danos não patrimoniais

Esta Portaria atribui ao lesado o direito a ser indemnizado,


autonomamente, por danos morais complementares. Nos termos do artigo
4.º da Portaria, estes danos são indemnizáveis nas seguintes situações:

Quando haja internamento hospitalar167;

Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente absoluta para


a prática de toda e qualquer profissão ou da sua profissão habitual;

167
A indemnização devida ao lesado pode variar entre os 20,00 euros e os 30,00 euros por
cada dia de internamento hospitalar – cf. Anexo I da Portaria.

182 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que exija


esforços acrescidos para o desempenho da sua actividade profissional
habitual;

Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente absoluta e


que, pela sua idade, ainda não tenha ingressado no mercado de trabalho e
que, portanto, não tenha direito à indemnização por danos patrimoniais
futuros nos termos da al. a) do artigo 3.º da Portaria.

Nestas três últimas situações estão portanto em causa os danos morais


geradores de repercussões na vida laboral do lesado. Estes danos
completares deverão, assim, ser indemnizados conforme valores indicativos da
tabela que se segue e que consta do Anexo I da Portaria:

Repercussão
<=30 anos 31-45 anos 46-60 anos 61-70 anos
na vida laboral

>10 P E <= 35 P Até €25.000,00 Até €20.000,00 Até €15.000,00 Até €10.000,00

>35 P E <= 70 P Até €62.500,00 Até €50.000,00 Até €37.500,00 Até €25.000,00

>70 P Até €100.000,00 Até €80.000,00 Até €60.000,00 Até €40.000,00

Outros danos morais complementares que são igualmente contemplados


como indemnizáveis nos termos do referido artigo 4.º da Portaria são o dano

183 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

estético168 e quantum doloris. Os valores indemnizatórios indicativos para


este tipo de dano constam também da referida tabela (Anexo I) e são os
seguintes:

Dano estético Até (euros)

1 ponto €800,00

2 pontos €1.600,00

3 pontos €2.400,00

4 pontos €4.000,00

5 pontos €5.600,00

6 pontos €7.250,00

7 pontos €10.000,00

168
Cf. Sáiz, Eduardo Murcia (2003), “La valoración médico-legal del prejuicio estético”, in
Revista Portuguesa Do Dano Corporal.

184 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Quantum Até (euros)


Doloris

4 pontos* €800,00

5 pontos €1.600,00

6 pontos €3.200,00

7 pontos €5.200,00

* Até 3 pontos, sem indemnização

Mas a introdução desta tabela no nosso ordenamento jurídico não


resolve, todavia, algumas das questões sócio-periciais mais controversas, tanto
no domínio do dano estético e dos pressupostos orientadores da apreciação
médico-legal, como na avaliação e mensuração da dor169. Assim estas
temáticas continuam a ser remetidas para uma problemática muito explorada
nos últimos anos em estudos de antropologia, medicina e terapia da dor.

Dano morte

A par de todos estes danos temos ainda um outro não menos complexo
na sua avaliação que também é contemplado por esta Portaria – o dano

169
Cf. Cueto, Claudio Hernández (2002), “El precio del dolor”, Revista Portuguesa do Dano
Corporal.

185 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

morte. De facto, a indemnização pela perda da vida constitui uma das


questões não inteiramente resolvidas pela doutrina jurídica. A crítica às
“indemnizações miseráveis” fez progressivamente o seu caminho e o
argumento de que a “vida não tem valor”, porque falacioso e viciado, caiu em
inteiro descrédito. O controverso aresto do STJ de 17 de Março de 1971, com
nada menos do que cinco votos de vencido, reconhece pela primeira vez que
“a perda do direito à vida por morte ocorrida em acidente de viação é em si
mesmo passível de reparação pecuniária”.

Ainda nos termos do diploma em análise (Artigo 2.º da Portaria n.º


377/2008, de 26 de Maio), temos, então, que em caso de morte, são
indemnizáveis os danos decorrentes da violação do direito à vida e os danos
morais dela decorrentes, nos termos do já analisado artigo 496.º do CC. Assim,
para efeitos de “Proposta Razoável” no que toca ao direito à vida, a Portaria
remete para o seu Anexo II onde consta a seguinte:

Até 25 anos Entre 25 e 49 anos Entre 50 e 75 anos Mais de 75 anos

Até € 60.000,00 Até € 50.000,00 Até € 40.000,00 Até € 30.000,00

Paralelamente ao dano morte e ainda no âmbito dos danos não


patrimoniais pela morte da vítima, temos, desde logo, os danos causados à
própria vítima desde o evento lesivo até à sua morte e que são, igualmente,
alvo de referenciação indemnizatória no referido Anexo II da Portaria, nos
termos da tabela que se segue:

186 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Tempo de sobrevivência Até 24 horas Até 72 horas Mais do que 72 horas

Aos herdeiros, divididos Até €2.000,00 Até € 4.000,00 Até € 7.000,00


em partes iguais

Assim, considerando-se 72 horas como o período crítico de


sobrevivência, os valores repartidos equitativamente pelos herdeiros podem
variar entre os 2.000,00 euros e os 7.000,00 euros quando, sendo que os
níveis de sofrimento e de antevisão da morte podem permitir a aplicação de
majorações em 50% dos montantes indicados.

Por sua vez, também os herdeiros da vítima, por si, devem ser
compensados pelo impacto da perda de um familiar. O critério aqui utilizado
para apurar os montantes indemnizatórios é, igualmente, o da idade e da
relação familiar mantida entre a vítima e o seu herdeiro, nos termos da tabela
que se segue e que, pelo que temos vindo a analisar, não andam longe do que
é mais frequentemente arbitrado em sede judicial:

187 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

188 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Deste Anexo II constam, ainda, os valores indicativos para a


indemnização devida pelo dano moral decorrente da perda de um feto,
consagrando, assim e expressamente, que a perda deste, na sequência de um
evento lesivo, merece tratamento indicativo quanto à sua valoração
indemnizatória, variando os montantes em função do período de gestão em
que ocorre evento lesivo, bem como de estar em causa ou não a gravidez de
um primeiro filho:

Número de filhos

Tempo de gravidez
2º filho
1º filho
ou posterior

Até às 10 semanas de gravidez, para ambos os pais,


Até € 7.500,00 Até 2.500,00
divido em partes iguais

A partir da 10ª semana de gravidez, para ambos os pais,


Até € 12.500,00 Até 7.500,00
divido em partes iguais

Álvaro Dias (2003)170 explorou com notável densidade a problemática da


indemnização relativa à vida intra-uterina, embora detendo-se sobretudo na
possibilidade de, depois de nascido, o nascituro poder peticionar uma
indemnização – inclusivamente à mãe – por danos corporais ocorridos no

170
“Dano corporal – lesões pré-natais e maus-tratos infantis”, Revista Portuguesa do Dano
Corporal.

189 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

período de gestação171. A título ilustrativo, é possível referir um acórdão da


Relação de Évora de 01 de Abril de 2008 em que a perda de um feto com 32
semanas fez elevar os patamares indemnizatórios aos 90.000,00 euros, a título
de danos não patrimoniais.

Ainda decorrente da morte da vítima surge o dever de indemnizar, não


só pelos referidos danos não patrimoniais, mas também pelos danos
patrimoniais, designadamente:

Pelos danos patrimoniais futuros daqueles que, nos termos do Código Civil,
podiam exigir alimentos à vítima, ou aqueles a quem esta os prestava no
cumprimento de uma obrigação natural;

Pelas perdas salariais da vítima decorrentes de incapacidade temporária


havida entre a data do acidente e a data do óbito;

E, ainda, pelas despesas feitas para assistir e tratar a vítima bem como as
de funeral, luto ou transladação, contra apresentação dos originais dos
comprovativos172.

Acidentes de viação e acidentes de trabalho em simultâneo

Outra disposição não menos importante desta Portaria trata dos


acidentes que, simultaneamente, sejam acidente de viação e acidentes de
trabalho. Assim, e nos termos do artigo 9.º se o acidente que originou o direito

171
Esta questão foi submetida a um longo debate na sociedade norte-americana e o impacto
que produziu no domínio da concepção moral e da protecção da família gerou efeitos
perniciosos quando à apreciação e depreciação de condutas sociais. Entre nós, o debate é
incipiente.
172
Cf. Artigo 2.º da Portaria.

190 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

à indemnização se enquadrar nesta situação, o lesado pode optar entre a


indemnização a título de acidente de trabalho ou a indemnização devida ao
abrigo da responsabilidade civil automóvel, mantendo-se, assim, a actual
complementaridade entre os dois regimes.

2.2.3 A indemnização em contexto criminal

A autonomização da responsabilidade civil face à responsabilidade penal


em diferentes ordenamentos jurídicos europeus teve como corolário, na
perspectiva do enquadramento jurídico dos danos corporais gerados por uma
dada conduta, a atribuição da função punitiva e de último ratio ao domínio
penal e da função reparadora ao domínio civil. Pelo que, na sequência da
publicação do Código Penal de 1982 e segundo Simas Santos 173, “a
indemnização de perdas e danos emergentes de um crime releva, em
exclusivo, do direito civil e do direito processual penal, tendo-se tornado
estranha à doutrina das reacções criminais: tratando-se embora formalmente
de uma consequência jurídica do crime, não se alisa substancialmente numa
consequência jurídica de carácter criminal.” Neste contexto, a atribuição de
uma indemnização por danos corporais, mesmo que originados pela prática de
um crime, constitui matéria, no seu quantitativo e nos seus pressupostos,
apreciada e decidida de acordo com o quadro normativo civil, como disposto
pelo artigo 129º do CP (CP). Ou seja, ainda que a indemnização seja avaliada
no âmbito do processo penal, as questões relativas àquela matéria são, ainda
assim, reguladas pela lei civil.

173
Até então, a indemnização de perdas e danos decorrente de um crime tratava-se de “um
efeito penal da condenação‖, hoc sensu, de uma ―parte da pena pública‖ (Simas Santos, 2004:
25).

191 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Vigora, por conseguinte, o princípio da adesão (cf. artigo 71.º do


CPP)174, que vincula o pedido cível ao processo-crime, estabelecendo que, por
regra, a dedução do pedido de indemnização deverá ocorrer na acção penal
correspondente, salvo nas situações em que a lei expressamente preveja em
sentido contrário175. Como consequência do não cumprimento desta obrigação
a lei prevê que, nas situações de crime particular ou semi-público, a prévia
dedução do pedido de indemnização cível perante os tribunais civis equivale à
renúncia do direito de apresentar queixa ou de deduzir acusação particular (cf.
n.º 2 do artigo 72.º do CPP). Nesta lógica jurídico-processual percebe-se que a
lei contemple a possibilidade de o pedido de indemnização civil ser deduzido
em processo penal contra pessoas com responsabilidade meramente civil (cf.
artigo 73.º do CP).

174
Onde pode ler-se: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é
deduzido na acção penal respectiva, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil,
nos casos previstos na lei”.
175
O n.º 1 do artigo 72º do CPP prevê as oito condições que permitem a dedução do pedido de
indemnização em separado, perante o tribunal civil:

“a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia
do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;
b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se
tiver extinguido antes do julgamento;
c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;
d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem
conhecidos em toda a sua extensão;
e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos
do n.º 3 do artigo 82.º;
f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou
somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido;
g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal
correr perante tribunal singular;
h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;
i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo
penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º”

192 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

A disciplina processual penal relativa à questão indemnizatória e que, no


CPP, se encontra previstas nos artigos 68.º a 84.º sofreu, nos últimos anos,
uma reforma significativa do ponto de vista da protecção dos lesados no
domínio criminal. Esta reforma, operada essencialmente através da Lei
n.º59/98, de 25 de Agosto, veio introduzir alterações importantes, relativas ao
princípio do pedido de indemnização, com o objectivo de:

Valorizar o dever de informação do lesado no decurso do processo-crime,


permitindo-lhe, em caso de omissão, a dedução em separado do pedido de
indemnização;

Impor, como prazo máximo, para declarar a intenção de vir a deduzir


pedido de indemnização cível, a data de encerramento do inquérito;

Maximizar o funcionamento do princípio da adesão, permitindo uma


intervenção espontânea do lesado;

Facilitar a obtenção do ressarcimento dos danos por via de simples


declaração no processo (com indicação dos prejuízos e respectivas
provas);

Garantir a representação, por intermédio do MP, das pessoas e interesses


a quem o Estado deve protecção, designadamente dos incapazes, incertos
e ausentes;

Possibilitar a arbitragem oficiosa de um montante reparatório dos danos


comprovados, quando “particulares exigências de protecção da vítima o
imponham”.

Posteriormente a Lei 48/2007, de 29/8 que veio proceder à 15.º


alteração ao CPP, introduziu algumas pequenas alterações nesta matéria,
designadamente, no que respeita ao dever de informação. A nova redacção
do artigo 75.º do CPP vem reforçar e concretizar os termos do dever de

193 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

informação. Assim, quer as autoridades judiciárias, quer os órgãos de polícia


criminal, logo que, no decurso do inquérito, tomem conhecimento da existência
de eventuais lesados devem informá-los da possibilidade de deduzirem pedido
de indemnização civil em processo penal, bem como das formalidades a
observar. Por sua vez, quem assim tiver sido informado, ou não o tendo sido e
ainda assim se considere lesado, pode manifestar no processo o propósito de o
fazer até ao encerramento do inquérito.

Tem legitimidade para deduzir pedido de indemnização civil o


lesado176, restringindo-se a sua intervenção processual à sustentação da prova
do pedido de indemnização (cf. n.º 1 e 2 do artigo 74.º do CPP). A lei atribui ao
lesado os mesmos direitos que confere ao assistente177. Os demandados têm
uma posição processual idêntica à do arguido no que respeita à sustentação e
à prova das questões civis, ressalvando a lei que caso a mesma pessoa seja,
simultaneamente, demandado e arguido, são independentes cada um das
defesas. Os lesados podem fazer-se representar por advogados sendo que
esta faculdade passa a ser obrigação nos casos em que, dado o valor do
pedido, se este fosse apresentado em separado, seria obrigatória a
constituição de mandatário nos termos da lei processual civil. Quanto aos
lesados estes devem fazer-se representar por advogado (cf. artigo 76.º do
CPP).

176
Cf. n.º 1 do artigo 73.º do CPP: “(…) a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime,
ainda que se não tenha constituído assistente ou não possa constituir-se assistente”.
177
Estes encontram-se previstos no artigo 69.º do CPP. Em termos genéricos podemos dizer
que lhes é atribuída a posição de colaboradores do Ministério Publico, competindo-lhes, em
especial, oferecer provas e requerer diligências.

194 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Neste contexto importa, ainda, fazer uma breve referência ao facto de,
para que determinada conduta possa ser tida como crime e assim lhe ser
atribuir relevância jurídico-penal, é sempre necessária uma prévia averiguação
sobre a verificação dos pressupostos da punição criminal ou da
responsabilização criminal. Assim, para além das particularidades de cada tipo
de crime, importa averiguar e apurar o circunstancialismo objectivo e
subjectivo, o grau de culpa do agente e as consequências do facto praticado.
Sendo que, para avaliar as consequência, o julgador nem sempre possui todos
os conhecimentos que se revelam indispensáveis. Nestes casos, a lei permite-
lhes o recurso a meios auxiliares de avaliação. E, segundo Maia Gonçalves178,
é neste auxílio que constitui a perícia179. De acordo com o artigo 151.º do CPP,
a prova pericial tem lugar sempre que a percepção ou a apreciação dos factos
exija especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos180. Portanto,
compreende-se que no processo de aplicação da justiça penal, a perícia
médico-legal tenha um importante relevo. De facto, a avaliação do dano
corporal poderá ter lugar sempre que as normas incriminadoras em causa
tenham como elemento do tipo a verificação de um dano corporal181. Nestes

178
Cf. Maia Gonçalvez, Código Penal Anotado, 9.ª Edição, Coimbra, Almedina, 1996.
179
Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. II, Lisboa, Editorial Verbo, 1993) define a
perícia como a “actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por
pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”.
180
Não obstante o princípio da livre apreciação da prova em processo penal (cf. artigo 127.º do
CPP) no que à prova pericial diz respeito a lei estabelece uma presunção no sentido de que a
mesma se encontra subtraída à livre apreciação do julgador, exigindo que, sempre que a
convicção deste seja divergente à do juízo contido no parecer dos peritos, tal divergência seja
devidamente fundamentada (cf. artigo 163.º do CPP).
181
O dano corporal surge, essencialmente, nos crimes contra a vida, nos crimes contra a vida
intra-uterina, nos crimes contra a integridade física, nos crimes contra a liberdade pessoal, nos
crimes contra a liberdade sexual e contra a autodeterminação sexual. Ou seja e entre muitos
outros:

195 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

casos é quase sempre através deste tipo de perícia que se procede à


verificação do resultado da conduta e à verificação do nexo causal entre a
conduta e o resultado para que, assim, se possa subsumir essa mesma
conduta num determinado tipo legal de crime. Para levar a cabo tal tarefa os
peritos deverão descrever pormenorizadamente o dano e as suas
consequências para o ofendido, nomeadamente a sua extensão, efeitos para o
corpo e saúde do ofendido, eventual criação de perigo para a vida, a influência
e adequabilidade da conduta do agente para a produção do resultado.

De entre os vários tipos legais de crime acima elencados, o único que


expressamente concretiza os resultados típicos que constituem formas de
ofensa ao corpo ou à saúde é o crime de ofensa à integridade física grave (cf.
artigo 144.º do CP). Assim sendo, os vários resultados aqui previstos devem
constituir parâmetros de avaliação do dano que sirvam de referência ao perito
quanto à natureza da informação e aos termos em que a mesma deve ser
prestada. São eles:

Homicídio (Artigo 131.º a 134.º e 137.º do CP);


Incitamento ou ajuda ao suicídio (Artigo 135.º do CP);
Infanticídio (Artigo 136.º do CP);
Exposição ou abandono (Artigo 138.º do CP);
Aborto (Artigo 140.º e 141.º do CP);
Ofensa à integridade física (Artigo 143.º a 148.º do CP);
Violência doméstica (Artigo 152.º do CP);
Maus-tratos (Artigo 152.º A do CP);
Ameaça (Artigo 153.º do CP);
Coacção (Artigo 154.º do CP);
Sequestro (Artigo 158.º do CP);
Tráfico de pessoas (Artigo 160.º do CP);
Rapto e tomada de reféns (Artigo 161.ºe 162.º do CP);
Coacção Sexual (Artigo 163.º do CP);
Violação (Artigo 164.º do CP);
Abuso sexual (Artigo 165.º, 166.º, 171.º, 172.º e 173.º do CP);
Coacção Sexual (Artigo 163.º do CP).

196 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Privação de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e


permanentemente, ou seja, lesões ao nível do corpo182;

Tirar ou afectar, de maneira grave, a capacidade de trabalho183, as


capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a
possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem, ou seja, o
dano ao nível funcional.

Doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica


grave e incurável.

Perigo para a vida.

É esta avaliação do dano que permite, por sua vez, fundamentar


juridicamente a reparação do mesmo. Portanto, será indispensável que o
relatório médico-legal produzido no âmbito do direito penal (leia-se, para a

182
Aqui as dificuldades são sobretudo de interpretação conceitual. O termo “órgão”, por
exemplo, não entendido da mesma forma por médicos legistas e por juristas. Mas também é
questionável saber o que entender por “importante” sendo que parece, todavia, estar assente a
ideia de que os órgãos e membros contemplados neste artigo serão aqueles que
funcionalmente (e não apenas anatomicamente) sejam relevantes pelo facto da sua privação,
total ou parcial, impedir a realização da sua função como parte integrante do corpo, seja
temporária ou permanentemente. Esta avaliação dever-se-á fazer casuisticamente e tendo em
conta todos os factores pessoais do lesado.

O conceito “desfiguração” também suscita algumas dúvidas. Aqui será de ter em conta a noção
de dano estético, indicando-nos o Código Penal apenas que aquela, neste âmbito do direito
penal, terá que ser grave e permanente. Para densificar a gravidade, o perito deverá lançar
mão de critérios de valorização como a intenção e visibilidade do dano, bem como, mais uma
vez, a circunstâncias pessoais da vítima. Note-se, ainda, que não se trata somente do dano do
seu ponto de vista estático, como, por exemplo, uma cicatriz ou uma amputação, mas também
do seu ponto de vista dinâmico, contemplando-se, assim, entre muitos outros, a claudicação na
marcha.
183
Das muitas questões interpretativas suscitadas, tem-se vindo a defender que aqui se inclui
tanto o dano temporário, como o dano permanente, bastando, apenas, que o mesmo seja
grave; que a capacidade para o trabalho dever ser entendida como a possibilidade de exercício
da profissão da vítima, bem como de qualquer outra actividade não profissional.

197 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

qualificação criminal da ofensa) não se afaste muito daquele que seria


produzido no âmbito do direito civil para a atribuição de uma indemnização,
contemplando, por consequência, a totalidade dos parâmetros de danos
sofridos e avaliando-os de acordo com a mesma metodologia. Assim, e ainda
que a lei penal se refira à descaracterização, por exemplo, no relatório médico-
legal poderá constar a sua quantificação com base na escala do dano estético.

Acresce, por fim, fazer uma breve referência ao relativamente recente


movimento nas sociedades contemporâneas centrado na protecção das vítimas
de crimes e na sua importância no contexto tanto da política como da justiça
penal. Tal fez com que se tenha vindo a atribuir ao Estado algumas obrigações
no sentido de acautelar a compensação dos lesados vítimas de crimes. Nesse
sentido, o artigo 130º do CP184 veio fixar as condições em que o Estado deverá
assegurar a indemnização dos danos decorrentes de actos criminalmente
tipificados, embora de forma estritamente subsidiária face ao agente do
crime185. Em 1991, foi criado, pelo Decreto-Lei n.º 423/91 de 30 de Outubro

184
Produto da reforma penal de 1982:

“1 - Legislação especial fixa as condições em que o Estado poderá assegurar a indemnização


devida em consequência da prática de actos criminalmente tipificados, sempre que não puder
ser satisfeita pelo agente.
2 - Nos casos não cobertos pela legislação a que se refere o número anterior, o tribunal pode
atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objectos
declarados perdidos ou o produto da sua venda, ou o preço ou o valor correspondentes a
vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos
artigos 109.º e 110.º
3 - Fora dos casos previstos na legislação referida no n.º 1, se o dano provocado pelo crime for
de tal modo grave que o lesado fique privado de meios de subsistência, e se for de prever que
o agente o não reparará, o tribunal atribui ao mesmo lesado, a requerimento seu, no todo ou
em parte e até ao limite do dano, o montante da multa.
4 - O Estado fica sub-rogado no direito do lesado à indemnização até ao montante que tiver
satisfeito.”
185
Cf. n.º1 do artigo 130 do CP: “sempre que não puder ser satisfeita [a indemnização] pelo
agente”.

198 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

(Regime Jurídico das Vítimas de Crimes Violentos), um seguro social186,


com a finalidade de evitar a privação dos lesados deste tipo de crimes dos
meios reparadores do crime de que foram alvo.

Esta nova atribuição do Estado evidencia uma preocupação social com o


acesso a mecanismos ressarcitórios cuja activação convencional – pedido de
indemnização civil ao agente causador do dano – se vê impedida pelas
circunstâncias específicas em que o crime é praticado. Posteriormente, em
1996, surge outro diploma187 que amplia as hipóteses de atribuição da
indemnização por parte do Estado, concedendo ao Ministro da Justiça a
possibilidade de, em “relevantes circunstâncias morais ou materiais”, dispensar
a verificação dos pressupostos indemnizatórios constantes do referido Decreto-
Lei n.º 423/91 de 30 de Outubro. Este papel provisional desempenhado pelo
poder público na protecção das vítimas visa, em termos amplos, constituir um
“regime mínimo a que qualquer cidadão [deverá ter] direito”. O legislador não
deixa, em todo o caso, de lhe reafirmar um cariz estritamente solidário (não se
tratado de um regime de responsabilidade civil do Estado), na medida em que,
segundo a respectiva exposição de motivos, à tarefa estatal de combate à
criminalidade apenas cabe “uma obrigação de meios, não de resultado‖.

Mais recentemente foi publicada a Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro


(Regime de Concessão de Indemnização às Vítimas de Crimes Violentos e
de Violência Doméstica, que entrou em vigor no passado dia 01 de Janeiro de
2010, revogando, assim, o referido Decreto-Lei n.º 423/91 de 30 de Outubro

186
Este diploma legal veio regulamentar o já referido artigo 130º do CP (Indemnização de
perdas e danos por crime). A regulamentação dada vai ao encontro dos parâmetros
decorrentes, nomeadamente, da Convenção Europeia relativa à indemnização de vítimas de
infracções violentas, de 1983.
187
Lei n.º10/96 de 23 de Março.

199 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

(Regime Jurídico das Vítimas de Crimes Violentos) e, ainda, a Lei n.º 129/99,
de 20 de Agosto (Regime Jurídico das Vítimas de Violência Conjugal). De
acordo com o n.º 1 do artigo 2.º deste novo diploma legal, “as vítimas que
tenham sofrido danos graves para a respectiva saúde física ou mental
directamente resultantes de actos de violência” têm direito à concessão de um
adiantamento da indemnização pelo Estado, desde que, cumulativamente, se
verifiquem os seguintes pressupostos:

A lesão tenha provocado uma incapacidade permanente, uma incapacidade


temporária e absoluta para o trabalho de pelo menos 30 dias ou a morte;

O facto tenha provocado uma perturbação considerável no nível e


qualidade de vida da vítima ou, no caso de morte, do requerente;

Não tenha sido obtida efectiva reparação do dano em execução de


sentença condenatória relativa a pedido deduzido nos termos dos artigos
71.º a 84.º do CPP ou, se for razoavelmente de prever que o delinquente e
responsáveis civis não venham a reparar o dano, sem que seja possível
obter de outra fonte uma reparação efectiva e suficiente.

Esta modalidade reparatória, ainda que declarada independente das


condições económicas do lesado, possui uma natureza eminentemente social,
pelo que toma em consideração as suas condições objectivas de vida e a
gravidade dos danos sofridos. Nesse sentido, são apenas indemnizadas as
sequelas patrimoniais das lesões corporais graves, desde que geradoras de
uma perturbação significativa no nível de vida do lesado ou das pessoas com
direito a alimentos188. Este seguro social cobre, assim, as vítimas aquando da

188
Cf. Artigo 2.º, n.º 2 da Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro: “O direito a obter o
adiantamento previsto no número anterior abrange, no caso de morte, as pessoas a quem, nos
termos do n.º 1 do artigo 2009.º do CC, é concedido um direito a alimentos e as que, nos
termos da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, vivam em união de facto com a vítima”.

200 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

inexistência de uma efectiva reparação do dano em execução de sentença


condenatória ou, se for ―razoavelmente de prever” que o agente e responsáveis
civis não repararão o dano, sem que seja possível obter de outra fonte
reparação efectiva e suficiente. O direito de indemnização é mantido mesmo
que não seja conhecida a identidade do autor dos danos, ou, por outra razão,
ele não possa ser acusado ou condenado189. Para além das vítimas efectivas
de lesões corporais, este fundo de indemnização por parte do Estado confere
igualmente o direito à sua mobilização às pessoas que auxiliaram
voluntariamente a vítima ou colaboraram com as autoridades na prevenção da
infracção, perseguição ou detenção do arguido190. O montante de
indemnização atribuível segue, em termos gerais, as normas civis em vigor,
sendo estritamente indemnizáveis os danos patrimoniais, de acordo com os
limites máximos previstos na lei191. O referido diploma que regulamenta este

189
Cf. Artigo 2.º, n.º 3, Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro.
190
Cf. Artigo 2.º, n.º 4, Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro.
191
Cf. artigo 4º, Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro:

“1 - O adiantamento da indemnização é fixado em termos de equidade, tendo como limites


máximos, por cada lesado, o valor equivalente a 340 unidades de conta processual (UC) para
os casos de morte ou lesão grave.
2 - Nos casos de morte ou lesão de várias pessoas em consequência do mesmo facto, o
adiantamento da indemnização tem como limite máximo o valor equivalente a 300 UC para
cada uma delas, com o máximo total correspondente a 900 UC.
3 - Se o adiantamento da indemnização for fixado sob a forma de renda anual, o limite máximo
é equivalente a 40 UC por cada lesado, não podendo ultrapassar o montante de 120 UC
quando sejam vários os lesados em virtude do mesmo facto.
4 - Na fixação do montante do adiantamento da indemnização é tomada em consideração toda
a importância recebida de outra fonte, nomeadamente do próprio delinquente ou da segurança
social.
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, os seguros privados de vida ou acidentes
pessoais só são tomados em consideração na medida em que a equidade o exija.
6 - Nos casos a que se refere o n.º 3 do artigo 2.º, há igualmente lugar a um adiantamento da
indemnização por danos de coisas de considerável valor, tendo como limite máximo o valor
correspondente a 150 UC.

201 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

seguro social estipula ainda algumas causas de exclusão ou redução da


indemnização, entre as quais a conduta da vítima ou do requerente antes,
durante ou após a prática dos factos, as suas relações com o autor ou o seu
meio, ou se mostrar contrária ao sentimento de justiça ou à ordem pública192.

Em termos de funcionamento, cabe à Comissão de Protecção de


Vítimas de Crimes, composta por um magistrado judicial, um advogado e um
funcionário superior do Ministério da Justiça, proceder a todas as diligências
úteis para a instrução do pedido de indemnização, por parte do Estado, às
vítimas de crimes violentos, tal como dar parecer sobre a concessão da
indemnização e respectivo montante. O esquema de financiamento das
indemnizações a pagar pelo Estado às vítimas encontra-se ancorado na
criação de um Fundo de Indemnização às Vítimas de Crimes, encontrando-se o
mesmo sob a tutela executiva do Ministério da Justiça.

Diga-se, ainda, que o tratamento desta matéria à escala europeia tem


vindo a ser traduzido na elaboração de diferentes documentos legais. Na

7 - A fixação do adiantamento da indemnização por lucros cessantes tem como referência as


declarações fiscais de rendimentos da vítima relativas aos três anos anteriores à prática dos
factos, bem como, no caso de morte, da do requerente ou, verificando-se a falta dessas
declarações, tomando por base um rendimento não superior à retribuição mínima mensal
garantida.
8 - No caso de não ter sido concedida qualquer indemnização no processo penal ou fora dele
por facto unicamente imputável ao requerente, nomeadamente por não ter deduzido pedido de
indemnização cível ou por dele ter desistido, o limite máximo do montante do adiantamento da
indemnização a conceder pelo Estado é reduzido para metade, salvo quando circunstâncias
excepcionais e devidamente fundamentadas aconselhem o contrário.
9 - Sem prejuízo da aplicação dos critérios indemnizatórios estabelecidos na presente lei,
podem ainda ser conferidas às vítimas medidas de apoio social e educativo, bem como
terapêuticas adequadas à recuperação física, psicológica e profissional, em cumprimento das
demais disposições legais aplicáveis, e no quadro de protocolos a celebrar entre a Comissão
de Protecção às Vítimas de Crimes e entidades públicas e privadas pertinentes em razão da
matéria”.
192
Cf. Artigo 3.º, Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro.

202 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

sequência das várias orientações comunitárias sobre as múltiplas esferas que


compõem a problemática das vítimas, do seu estatuto e da reparação de
danos, o Livro Verde da Indemnização das Vítimas de Criminalidade (CE)
(2001), veio abordar algumas questões relacionadas tanto com a indemnização
estatal das vítimas de crimes, sendo que alguns países, como Portugal, já
dispunham de grande parte dos instrumentos avançados.

A Directiva 2004/80/CE do Conselho Europeu, transposta em Julho de


2006 para o ordenamento jurídico português193, visou responder à necessidade
de criação de um sistema de cooperação entre as autoridades dos estados-
membros em matéria de indemnização das vítimas de criminalidade em
situação transfronteiriça194 no território europeu. A importância da vítima195 no
âmbito judicial tem vindo, assim, a ser progressivamente avolumada e
reconhecida. Ao longo dos anos 90, assistimos a uma muito significativa
densificação legislativa no âmbito da protecção e acompanhamento das vítimas
de criminalidade, para o que também contribuíram as orientações
comunitárias196 transpostas para os ordenamentos jurídicos nacionais.

O estatuto da vítima em processo penal mereceu igualmente a atenção


do Conselho Europeu197, procurando assegurar um conjunto amplo de

193
Lei n.º31/2006 de 21 de Julho, que veio alterar o já mencionado Decreto-Lei 423/91 de 30
de Outubro.
194
Ou seja, naqueles casos em que o crime foi praticado num Estado-membro diferente
daquele em que a vítima tem a sua residência.
195
Vitimologia e justiça restaurativa; mediação penal; Declaração de Lovaina.
196
Resolução n.º(77)27, de 28 de Setembro de 1977, com incidência na indemnização às
vítimas de infracções criminais; Convenção Europeia relativa à indemnização de vítimas de
infracções violentas, de 1983.
197
Decisão Quadro n.º2001/220/JAI do Conselho, 15 de Março

203 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

garantias às vítimas de crimes, cujo objectivo essencial passa não apenas pelo
reconhecimento do direito dos lesados a uma indemnização justa e
atempada198 – já enquadrada no ordenamento jurídico português –, mas
sobretudo pelo recentramento dos processos judiciais ou extra-judiciais na
figura da vítima, concedendo-lhe, para além de um quadro de direitos que
visam protegê-la ao longo do decurso do processo, meios de restabelecimento
e de intervenção autónoma nesse mesmo processo. Esta nova visão do direito
penal e dos seus procedimentos de aplicação aposta, nesse sentido, numa
mais ampla concepção das funções da institucionalidade judicial, introduzindo
mecanismos participativos, flexíveis e compreensivos de resolução de conflitos,
ora mais ora menos compatíveis com as lógicas do sistema criminal em vigor.
Este novo paradigma de justiça restaurativa procura, nesse sentido, generalizar
o recurso à mediação penal entre a vítima e o agressor, enquanto instrumento
promotor de justiça reparadora e de pacificação social199.

Os efeitos da evolução e consolidação das experiências restaurativas no


domínio da indemnização de danos corporais não são, de modo algum,
lineares. Embora partilhem o espírito reparador, as bases normativas e
doutrinárias em que se fundam são substancialmente diferentes e requerem
ópticas interpretativas e questionadoras adequadas. Uma das problemáticas
mais debatidas consiste na diferenciação entre justiça penal, justiça civil e
política social. Algumas das contribuições mais avançadas que encontramos
nos estudos vitimológicos e restaurativos têm vindo a ser encaradas como

198
Cf. artigo 9º: “dentro de um prazo razoável”, a par da devolução à vítima, com a brevidade
possível, dos objectos apreendidos no âmbito do processo penal.
199
Recomendação n.º R(99)19 do Conselho da Europa; Lei n.-º21/2007 de 12 de Junho, que
cria um regime de mediação penal, em execução do artigo 10º da Decisão Quadro supra
mencionada.

204 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

perversoras dos termos em que a função penal do Estado deve ser exercida,
gerando resultados distorcidos relativamente a importantes aquisições judiciais
modernas, entre as quais não figura a comunidade enquanto interlocutor. Em
matéria indemnizatória, a vulnerabilidade a que muitas vezes a vítima se
encontra votada exige um debate mais alargado que não deve ser cingido aos
princípios da indemnização cível, mas antes observado à luz dos modelos de
protecção social fornecidos e promovidos pelo Estado, pelo que se verifica uma
importante tensão entre a responsabilidade civil, o seguro de riscos e a função
social do Estado.

3. A INSTANCIAÇÃO DA REPARAÇÃO DO DANO


CORPORAL

Depois de percorrermos os caminhos que configuram o direito


substantivo, nas diferentes áreas, em matéria de reparação do dano corporal, e
de esboçarmos diferentes problemáticas associadas ao corpo incapacitado,
iremos dar conta dos diferentes procedimentos e processos a seguir após a
ocorrência do evento lesivo.

205 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

3.1 Quando o evento lesivo é um acidente de trabalho

A) Primeiro passo: as comunicações

Se dano corporal resultar de um acidente de trabalho o primeiro passo é


dar conhecimento do evento lesivo. Estamos a referir-nos a todo um
procedimento previsto na lei e que se inicia com as comunicações
obrigatórias do acidente, quer à entidade empregadora, quer à entidade
seguradora, quer ao próprio tribunal. Para dar cumprimento às exigências
legais, o sinistrado ou, em caso de morte, os seus beneficiários legais, devem
participar o acidente de trabalho, ao empregador, salvo se este o tiver
presenciado ou dele vier a ter conhecimento no mesmo período (cf. n.º 1 do
artigo 86.º da já referida Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro). Esta
comunicação que é o primeiro passo a dar após o acidente, deverá ser
efectuada, oralmente ou por escrito, nas 48 horas seguintes ao acidente. Se,
todavia, o estado do sinistrado ou outra circunstância devidamente comprovada
não o permitir, a contagem daquele prazo contar-se-á apenas a partir da
cessação do impedimento200.

O mesmo normativo legal refere quais as consequências para o não


cumprimento daquela obrigação. Assim, caso o sinistrado não participe o
acidente tempestivamente e por tal motivo tiver sido impossível ao empregador
prestar-lhe a assistência necessária, a incapacidade judicialmente reconhecida
como consequência daquela falta não confere ao sinistrado, ou seus

200
Se, todavia, a lesão apenas se revelar ou for reconhecida em data posterior à do acidente, o
referido prazo de 48 horas conta-se a partir da data da revelação ou do reconhecimento.

206 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

beneficiários, o direito às diversas prestações estabelecidas na lei e que


resultem da ocorrência de danos provocados pela falta de assistência. Ou seja,
a falta de participação do acidente e a eventual e consequente falta de
primeiros socorros pode resultar em incapacidades que a vítima não viria a
padecer caso esses mesmos primeiros socorros tivessem sido prestados
oportunamente. Se assim for, a entidade empregadora não poderá ser
responsabilizada pelas prestações devidas por essas mesmas incapacidades.

Por sua vez, a entidade empregadora com a responsabilidade


transferida, deverá, no prazo de 24 horas, participar à seguradora a ocorrência
do acidente, sob pena de poder ser responsabilizada e, em contrapartida, a
seguradora fica exonerada das obrigações que advenham do agravamento das
lesões que resultarem da falta atempada da participação (cf. n.º 1 do artigo 87.º
da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro). Esta participação terá que ser
remetida por meio informático, nomeadamente em suporte digital ou correio
electrónico, salvo nos casos de microempresa em que a entidade empregadora
ainda pode continuar a remeter a participação em suporte de papel. Caso o
empregador não tenha, como lhe competia, transferido a responsabilidade,
deve igualmente participar o acidente, por escrito e no prazo de 8 dias a contar
da sua ocorrência ou do seu conhecimento, não à empresa de seguros, mas
sim ao tribunal competente e deverá faze-lo independentemente de qualquer
apreciação das condições legais relativas à reparação. Se ocorrer a morte do
sinistrado, esta comunicação deve ser imediata e pode ser efectuada quer por
correio electrónico, quer por telecópia (cf. artigo 88.º da Lei n.º 98/2009, de 04
de Setembro).

Também à empresa seguradora são impostas por lei algumas


obrigações em matéria de comunicações, nomeadamente, o dever de participar
ao tribunal competente, por escrito e no prazo de 8 dias a contar da alta clínica,

207 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

o acidente de que tenha resultado incapacidade permanente e, imediatamente


após o seu conhecimento, por correio electrónico, telecópia ou outra via com o
mesmo efeito de registo escrito de mensagens, o acidente de que tenha
resultado a morte201. A seguradora deverá igualmente participar e nas mesmas
condições, todos os casos de incapacidade temporária que, consecutiva ou
conjuntamente, ultrapassem 12 meses (cf. artigo 89.º da Lei n.º 98/2009, de 04
de Setembro). A lei confere de igual forma a faculdade de participação do
acidente de trabalho ao tribunal a um outro conjunto alargado de pessoas: o
sinistrado, directamente ou por interposta pessoa; um familiar ou equiparado do
sinistrado; qualquer entidade com direito a receber o valor de prestações; a
autoridade policial ou administrativa que tenha tomado conhecimento do
acidente; o director do estabelecimento hospitalar, assistencial ou prisional
onde o sinistrado esteja internado, tendo o acidente ocorrido ao serviço de
outra entidade.

B) Segundo passo: o conhecimento do acidente por parte do


Tribunal

Como se depreende do que ficou dito, a regra é a de que qualquer


acidente de trabalho acaba por ser comunicado ao tribunal, seja pela entidade
empregadora quando não transferiu a responsabilidade, seja pela entidade
empregadora nas situações de morte, incapacidade permanente ou
incapacidade temporária superior a 12 meses, ou, ainda, voluntariamente por
uma das pessoas acima referidas. Não obstante, mesmo nestes casos em que

201
A participação por correio electrónico, telecópia ou outra via com o mesmo efeito de registo
de mensagens não dispensa a participação formal, que deve ser feita no prazo de 8 dias
contados do falecimento ou do seu conhecimento.

208 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

haja comunicação ao tribunal, é possível que as partes cheguem a um acordo


extrajudicial e que o processo em tribunal termine antes da fase contenciosa.
No entanto, dada a natureza dos direitos aqui em causa e a relação
desequilibrada das partes, a lei impõe que, ainda que as partes tenham entre si
chegado a um acordo e os termos em que o mesmo se deve efectivar, este
terá sempre que ser sempre junto aos autos para ser apreciado pelo Ministério
Publico e, posteriormente, remetido ao juiz.

Nos termos do n.º 3 do artigo 100.º do Código de Processo do Trabalho


(CPT), em caso de morte do sinistrado, o MP, após receber o acordo
extrajudicial celebrado entre as partes, terá que designar data para tomar
declarações dos beneficiários. Se, por um lado, se confirmar que o que consta
do acordo corresponde à vontade das partes e, por outro, estas confirmarem as
bases do acordo, o MP considerar que esse mesmo acordo se encontra em
conformidade com o resultado das perícias médicas, com os restantes
elementos fornecidos pelo processo e com as informações complementares
que repute necessárias, submete-o, com o seu parecer, a homologação do juiz.
Caso contrário, o MP deverá promover tentativa de conciliação nos termos que
mais à frente melhor descreveremos, seguindo-se os demais termos do
processo que se teriam seguido se não tivesse sido apresentado qualquer
acordo extrajudicial.

Se estivermos perante uma situação em que, em consequência do


acidente de trabalho, tenha resultado para o sinistrado uma incapacidade
permanente, e for junto aos autos acordo extrajudicial até à data designada
para a realização da tentativa de conciliação, o MP dispensa a tentativa de
conciliação desde que a perícia médica, as declarações que tomar ao
sinistrado, e as demais diligências que venha a tomar confirmem as bases em
que o acordo tenha sido celebrado (cf. artigo 101.º do CPT). Em qualquer uma

209 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

destas situações, o acordo extrajudicial, após ter sido homologado, produz


efeitos desde a data da sua realização (cf. n.º 1 do artigo 115.º do CPT). Se,
todavia, não for homologado e, ainda assim, o MP considerar possível a
remoção dos obstáculos à sua homologação, deverá tentar junto das partes a
celebração de novo acordo para substituir aquele cuja homologação foi
recusada.

Não havendo a acordo extrajudicial ou não sendo este homologado,


o litígio terá que ser resolvido por via judicial, ainda que através da conciliação
das partes, não se chegando, portanto, a fase contenciosa do processo 202.
Como resulta do exposto, todo o percurso judicial a seguir e a forma de o
palmilhar encontra previsto no Código de Processo do Trabalho (Decreto-Lei
n.º 480/99, de 09 de Novembro)203. Este diploma legal dedica um Título (VI)
aos Processos Especiais onde, por sua vez, podemos encontrar um Capitulo
(II) em que são tratados os Processos emergentes de acidentes de trabalho e
de doença profissional204. Neste Capítulo temos, ainda, quatro tipos distintos de
processos, cada qual tratado em secção própria:

Processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho;

Processo para declaração de extinção de direitos resultantes de acidentes


de trabalho;

202
A este respeito cumpre salientar que actualmente em matéria de acidentes de trabalho
ainda não é possível recorrer à mediação laboral embora esta, como mais à frente passaremos
a referir, seja uma matéria que se encontra em discussão.
203
Contém as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, pelo
Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08 de Março, pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13 de Outubro e
pela Rectificação n.º 86/2009, de 23 de Novembro.
204
Trata-se, portanto, de processos especiais que, em tudo o que não estejam especialmente
regulados, se regem pelos termos gerais do processo comum.

210 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Processo para efectivação de direitos de terceiros conexos com acidente de


trabalho;

Processo para efectivação de direitos resultantes de doença profissional.

Relativamente a estes três últimos tipos de processos apenas nos


cumpre salientar alguns aspectos mais relevantes, passando, de seguida, para
o esboço dos traços gerais do Processo para efectivação de direitos
resultantes de acidente de trabalho pois é aqui que se centra o nosso objecto
de estudo. Assim, no que respeita ao Processo para declaração de extinção de
direitos resultantes de acidentes de trabalho, a lei limita-se a referir que “as
acções para declaração de prescrição ou de suspensão de direito a pensões e
para declaração de perda de direito a indemnizações seguem, com as
necessárias adaptações, os termos do processo comum” (cf. n.º 1 do artigo
151.º do CPT). A mais disto, é de destacar que, quando o direito a pensão
caducar em razão da idade, morte, segundas núpcias ou união de facto, é a
entidade responsável quem deve requerer que seja declarada a sua
caducidade, apresentando, para tanto, os respectivos meios de prova. No que
toca ao processo para efectivação de direitos de terceiros conexos com
acidente de trabalho a lei remete igualmente para os termos do processo
comum e no processo para efectivação de direitos resultantes de doença
profissional remete para os normativos que regulam a fase contenciosa do
Processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho.

É, neste âmbito, evidente o papel de relevo atribuído ao Ministério


Publico a quem são atribuídos poderes gerais de representação nos termos do
artigo 6.º do CPT. Para além destes poderes gerais e não obstante o regime de
apoio judiciário, a lei refere expressamente que sempre que a lei o determine

211 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

ou as partes o solicitem, o MP exerce o patrocínio dos trabalhadores e seus


familiares (cf. alínea a) do artigo 7.º do CPT)205. Uma vez constituído
mandatário judicial pela parte representada pelo Ministério Publico cessa a
representação, sempre sem prejuízo da intervenção acessória do Ministério
Publico206.

No artigo 15.º do CPT diz-se que todas as acções deste tipo devem ser
propostas no tribunal do lugar onde o acidente ocorreu, sendo também para
este tribunal que devem ser remetidas todas as participações acima
referidas207. Não obstante esta regra geral de competência, a lei também
confere a possibilidade ao sinistrado de requerer, até à fase contenciosa do
processo ou se aí tiver apresentado a participação, que o processo corra os
seus termos no tribunal da sua área de domicílio 208. Vale dizer que se, de
acordo com a aplicação destas regras de competência, não houver um tribunal
de trabalho que abranja essa área, este tipo de acções correm em tribunal de

205
Mas a lei prevê, igualmente, que o MP “deve recusar o patrocínio a pretensões que repute
infundadas ou manifestamente injustas e pode recusá-lo quando verifique a possibilidade de o
autor recorrer aos serviços do contencioso da associação sindical que o represente” (cf. n.º 1
do artigo 8.º do CPT). Em caso de recusa, o Ministério Publico deve notificar imediatamente o
interessado de que pode reclamar, dentro de 15 dias, para o imediato superior hierárquico,
sendo que, os prazos de propositura da acção e de prescrição não correm entre a notificação
da recusa e a notificação da decisão que vier a ser proferida sobre a reclamação.
206
A representação ou não do sinistrado ou dos seus familiares pelo Ministério Publico tem
consequência ao nível das custas devidas no processo. O artigo 4.º do Regulamento das
Custas Processuais (Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro) que trata das Isenções faz
referência ao facto de estarem isentos de custas os trabalhadores e seus familiares, em
matéria de direito de trabalho.
207
Todas as participações e demais documentos são obrigatoriamente apresentados ao
Ministério Publico que, por sua vez, deve ordenar as diligências convenientes (cf. artigo 22.º do
CPT).
208
Caso sejam vários os sinistrados a exercer tal faculdade, é territorialmente competente o
tribunal da área de residência do maior número deles ou, em caso de ser igual o número de
requerentes, o tribunal da área de residência do primeiro a requerer.

212 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

competência genérica209. Por fim, realce-se que este tipo de processo tem
natureza urgente210, corre oficiosamente, iniciando-se a instância com o
recebimento da participação, não dependendo, portanto, de qualquer iniciativa
ou impulso das partes (cf. n.º 1, 3 e 4 do artigo 26.º do CPT), e pode
desenrolar-se em duas fases: a fase conciliatória e a fase contenciosa.

Processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de


trabalho

No que em particular respeita ao procedimento para efectivação de


direitos resultantes de acidente de trabalho é de referir, desde logo, que o
processo se inicia com a fase conciliatória, dirigida pelo Ministério Publico (cf.
artigo 99.º do CPT). A respeito da importância do papel do MP, pode ler-se no
preâmbulo do Decreto-Lei n.º 480/99, de 09 de Novembro (CPT) que veio
substituir o anterior diploma vigente desde 1982, que as modificações
introduzidas por aquele diploma legal se destinavam ―a regular com maior
precisão e apuro técnico e de modo mais completo alguns aspectos da sua
peculiar tramitação, nomeadamente quanto ao modo de exercício das funções
do MP, a quem incumbe a direcção da fase conciliatória, e cuja omissão a
experiência mostrou ser causadora de embaraços e bloqueios prejudiciais à

209
Esta realidade poderá vir a ser alterada em 01 de Setembro de 2010 se, tendo em conta a
avaliação do período experimental da aplicação da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto às
comarcas piloto (Alentejo Litoral, Baixo-Vouga e Grande Lisboa Noroeste), se passar a aplicar
a todo o território nacional a reforma do mapa judiciário uma vez que uma das grandes
alterações passa pela institucionalização uma justiça especializada. A ser assim, este tipo de
processo passará a ser da competência dos Juízos de Trabalho (cf. al. c) do artigo 118.º)
210
Não se suspendendo, portanto, durante as férias judiciais. A mais disto, deve ser-lhes dada
prioridade relativamente a outros processos não urgentes.

213 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

rápida definição dos direitos e obrigações emergentes de sinistros do trabalho,


área em que, mais do que em nenhuma outra, se torna urgente aquela
definição, tanto mais que a lei impõe que ela se faça sempre pela via judicial,
em homenagem aos valores de interesse e ordem pública envolvidos‖.

Compreende-se que, nos termos do artigo 104.º do CPT, seja atribuída


ao Ministério Publico a obrigação de se assegurar da veracidade dos
elementos constantes do processo e das declarações das partes. Para tal e até
ao início da fase contenciosa, o Ministério Publico pode requisitar a realização
de inquérito urgente e sumário sobre as circunstâncias em que ocorreu o
acidente, quando:

Do acidente tenha resultado a morte ou incapacidade grave;

O sinistrado não estiver a ser tratado;

Houver motivos para presumir que o acidente ou as suas consequências


resultaram da falta de observância das condições de higiene ou de
segurança no trabalho;

Houver motivos para presumir que o acidente foi dolosamente


211
ocasionado .

Iniciando-se o processo e, portanto, a Fase Conciliatória com a


recepção de uma das participações exigidas por lei212 ou efectuada

211
A este dever acresce o dever de, sempre que, em resultado de um acidente, não seja de
excluir a existência de responsabilidade criminal, dar conhecimento do facto às instâncias
criminais competentes.
212
Quando a participação deva ser efectuada por uma seguradora, a lei exige que esta seja
acompanhada por um determinado conjunto de elementos: documentação clínica e nosológica
disponível; cópia da apólice e seus adicionais em vigor; declaração de remunerações do mês
anterior ao do acidente; nota discriminativa das incapacidades e internamentos; e, ainda, cópia
dos documentos comprovativos das indemnizações pagas desde o acidente.

214 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


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voluntariamente por uma das pessoas a quem é conferida essa possibilidade e


que, como também já se referiu, deve ser remetida para o Ministério Publico, o
processamento a seguir-se é, todavia, distinto consoante a situação em
concreto:

Se estivermos perante um caso em que tenha ocorrido a morte do


sinistrado, o MP deverá, desde logo, determinar a realização da autópsia
ou a junção aos autos do respectivo relatório e, em seguida, ordenar as
diligências indispensáveis à determinação dos beneficiários legais dos
sinistrados213 e, por consequência, à obtenção das provas de parentesco.
Após a instrução do processo com a certidão de óbito, o relatório da
autópsia e certidões comprovativas do parentesco dos beneficiários com a
vítima, o MP, caso não tenha sido junto aos autos qualquer acordo
extrajudicial celebrado entre as partes nos termos acima mencionados,
designará data para a tentativa de conciliação.

Nos casos de incapacidade permanente, o MP deverá solicitar aos


serviços médico-legais a realização de perícia médica, seguindo-se a
tentativa de conciliação, salvo se, com a participação, for junto acordo
extrajudicial ou se este for apresentado até à data designada.

Nos restantes casos, ou seja, se o sinistrado ainda não estiver curado


quando for recebida a participação e estiver sem tratamento adequado ou
sem receber a indemnização devida por incapacidade temporária, o MP
deverá solicitar perícia médica214, seguida de tentativa de conciliação. Este

213
Se não for possível determinar quem são os beneficiários do sinistrado o processo será
arquivado. Este arquivamento será, todavia, provisório durante um ano, podendo ser reaberto
caso apareça algum beneficiário. Se tal não acontecer, o processo deverá ser reaberto e a
pensão deverá reverter a favor do Fundo de Actualização de Pensões de Acidentes de
Trabalho (cf. n.º 4, 5 e 6 do artigo 100.º do CPT).
214
O local e a competência para a realização da perícia médica são definidos nos termos da lei
que estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses.

215 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


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mesmo processamento deverá ter lugar sempre que o sinistrado não se


conformar com a alta, a natureza da incapacidade ou o grau de
desvalorização por incapacidade temporária que lhe tenha sido atribuído,
ou ainda se esta se prolongar por mais de 12 meses (cf. artigo 102.º do
CPT)215.

À audiência de tentativa de conciliação é chamado o sinistrado ou dos


seus beneficiários legais e as entidades empregadoras ou seguradoras216,
sendo que a presença do sinistrado ou beneficiário pode ser dispensada em
casos justificados de manifesta dificuldade de comparência ou de ausência em
parte incerta, pertencendo a sua representação ao substituto legal de quem, no
exercício de funções do MP, presidir à diligência. No entanto, a presença da
entidade empregadora ou da entidade seguradora não é dispensada aquando
da realização da primeira tentativa de conciliação. Caso uma destas entidades
não compareça, o Ministério Publico toma declarações ao sinistrado ou ao seu
beneficiário sobre as circunstâncias em que ocorreu o acidente e recolhe os
demais elementos necessários à determinação do direito daqueles,
designando, nesse mesmo dia, nova data para a segunda tentativa de

Não obstante, o n.º 3 do artigo 105.º do CPT estipula que, “quando a perícia exigir elementos
auxiliares de diagnóstico ou conhecimento de alguma especialidade clínica não acessíveis a
quem deva realizá-lo, são requisitados tais elementos ou o parecer de especialistas aos
serviços médico-sociais da respectiva área e se estes não estiverem habilitados a fornecê-los
em tempo oportuno são requisitados a estabelecimentos ou serviços adequados ou a médicos
especialistas”, sendo que fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, se os não
houver na respectiva circunscrição, o MP pode solicitar a outro tribunal com competência em
matéria de trabalho a obtenção desses elementos ou pareceres, bem como a obtenção da
perícia.
215
No entanto, a perícia médica pode ser dispensada nos casos em que o sinistrado se
declarar curado sem desvalorização e apenas reclamar a indemnização devida por
incapacidade temporária, ou qualquer outra quantia a que acessoriamente tiver direito.
216
Para além destas pessoas, o Ministério Publico deverá ainda convocar para uma segunda
audiência quaisquer outras entidades cuja necessidade de convocação resulte das declarações
prestadas em sede da primeira audiência de tentativa de conciliação.

216 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

conciliação. Se, ainda, assim, a entidade empregadora ou a seguradora


voltarem a não comparecer e desde que não seja apresentada justificação para
a falta, a tentativa de conciliação é dispensada e tem como consequência a
presunção de que os factos declarados pelo sinistrado ou pelo seu beneficiário
legal em sede de primeira audiência são verdadeiros (cf. artigo 108.º do CPT).

Estando presentes ambas as partes, a função do MP é a de “promover o


acordo de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os
elementos fornecidos pelo processo, designadamente o resultado da perícia
médica e as circunstâncias que possam influir na capacidade geral de ganho
do sinistrado” (cf. artigo 109.º do CPT). Ou seja, o objectivo primeiro é o de,
atendendo aos direitos de cada uma das partes e ao circunstancialismo levado
aos autos, fomentar a celebração de um acordo entre as mesmas e assim fazer
cessar o processo. Se este objectivo não for cumprido, o Ministério Publico
deverá fazer constar do auto da tentativa de conciliação todos os factos sobre
os quais tenha havido acordo, designada e expressamente, se houve ou não
acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre
a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da
natureza e grau da incapacidade atribuída (cf. n.º 1 do artigo 112.º do CPT).

Frustrada a tentativa de conciliação, o MP deve, desde logo, recolher os


elementos necessários à elaboração e apresentação da petição inicial. Em
contrapartida, se for celebrado acordo entre as partes217, este é de imediato

217
Como acima já se disse, também pode acontecer que as partes tenham celebrado acordo
extrajudicial e o tenham junto aos autos. Nestas situações esse acordo deverá ser colocado à
consideração do MP. Se tal acordo, no entender do Ministério Publico, se encontrar em
conformidade com o resultado das perícias médicas, com os restantes elementos fornecidos
pelo processo e com as informações complementares que repute necessárias, deverá
igualmente ser submetido a homologação do juiz, juntamente com o parecer do Ministério
Publico (cf. n..º 2 do artigo 114.º do CPT).

217 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


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submetido à apreciação do juiz, que, por sua vez, o deverá homologar se se


verificar a sua conformidade com os elementos constantes do processo e com
as normas legais, regulamentares ou convencionais (cf. n.º 1 do artigo 114.º do
CPT). Daquele acordo deverá constar a identificação completa dos
intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são
atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que
servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações (cf. artigo 111.º do
CPT).

É importante acentuar que, não obstante a celebração do acordo,


sempre que o grau de incapacidade fixado naquela data tiver carácter
provisório ou temporário, o acordo que venha a ser celebrado terá igualmente,
na parte que se refere a este aspecto em concreto, validade provisória ou
temporária (cf. n.º 1 do artigo 110.º do CPT). Nestas situações é atribuída ao
MP a competência para rectificar as pensões ou indemnizações segundo o
resultado das perícias ulteriores, devendo, posteriormente, notificar essas
mesmas rectificações às entidades responsáveis. Quando, em resultado de
uma perícia médica, venha a ser atribuída ao lesado incapacidade de natureza
permanente e, assim, fixado um grau de desvalorização já não mais provisório
ou, ainda, caso o sinistrado seja dado como curado sem desvalorização, o MP
deverá diligenciar pela marcação e realização de um nova tentativa de
conciliação, seguindo-se, os demais termos do processo.

Não tendo sido possível chegar a um acordo que, ulteriormente, viesse a


ser homologado, passamos à Fase Contenciosa. Esta inicia-se por uma de
duas vias (cf. artigo 117.º do CPT):

218 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


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Com a apresentação em juízo da petição inicial onde o sinistrado ou


respectivos beneficiários formulam o seu pedido, expondo, para tanto, os
seus fundamentos;

Com um requerimento do interessado que se não conformar com o


resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo,
para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho.

Em ambas as situações, é ao MP que compete assumir o patrocínio do


sinistrado ou dos seus beneficiários legais, apresentando, para tanto e no
prazo de 20 dias, um dos articulados acima mencionados. Findo este prazo ou
a sua prorrogação (requerida com fundamento na insuficiência nos elementos
de facto necessários à elaboração da petição inicial), o processo é concluso ao
juiz.

Processo Principal

Como mais à frente saremos conta, na fase contenciosa o processo


pode desdobrar-se, em Processo principal e em Apenso para fixação da
incapacidade para o trabalho, desde que hajam outras questões para decidir
em sede de processo principal (cf. artigo 132.º do CPT). Em sede de Processo
Principal e após o recebimento da petição inicial, o réu (ou rés em caso de
pluralidade de entidades responsáveis218) é citado para contestar no prazo de
15 dias (cf. artigo 128.º do CPT) e, assim, apresentar a sua defesa, requerer a
fixação da incapacidade do sinistrado ou indicar outra entidade que considere

218
Discutindo-se a determinação da entidade responsável, o juiz, até ao encerramento da
audiência, pode mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual
responsável (cf. n.º 1 do artigo 127.º do CPT).

219 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

como sendo a responsável. A consequência da não apresentação da


contestação por parte do réu devidamente citado equivale à confissão dos
factos articulados pelo autor, podendo, por consequência, logo ser proferida
sentença (cf. n.º 1 do artigo 57.º do CPT).

Havendo contestação o juiz deverá, no prazo de 15 dias, proferir


despacho saneador219 nos termos do artigo 131.º do CPT, seguindo-se os
termos do processo comum ressalvadas algumas especificidades previstas na
lei. Assim, teremos a fase de instrução do processo, cabendo às partes indicar
os seus meios de prova220. Uma vez finda a fase de instrução segue-se a
discussão e julgamento da causa por tribunal singular, salvo nos casos em que
a lei atribui tal competência ao tribunal colectivo221. Tal acontece quando o
valor da acção seja superior à alçada da Relação222 e desde que as partes o

219
O despacho saneador destina-se:

“a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas
pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir,
sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos
ou de alguma excepção peremptória;
c) Considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e
nos articulados;
d) Seleccionar a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias
soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida;
e) Ordenar o desdobramento do processo, se for caso disso”.
220
O rol de testemunhas deve ser apresentado no prazo de 10 dias. Cada parte pode
apresentar no máximo 10 testemunhas que serão notificadas para comparecer na audiência de
julgamento (cf. artigo 133.º; 64.º e 66.º todos do CPT).
221
Nos casos em que a causa vá ser apreciada por tribunal colectivo, o tribunal deverá reunir
imediatamente antes da audiência para que os juízes que ainda não tiverem acesso ao
processo possam tomar conhecimento do mesmo (cf. artigo 69.º do CPT).
222
Leia-se, quando o valor da acção é superior a 30.000,00 euros.

220 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

requeiram e não tenham requerido a gravação da audiência uma vez que


nestas situações (cf. artigo 68.º do CPT).

Todavia, antes da abertura da audiência, o juiz deverá ainda e mais


uma vez tentar conciliar as partes223. Havendo conciliação, os seus termos
deverão constar pormenorizadamente do auto, nomeadamente no que respeita
à prestação, prazos e lugares de cumprimento cf. artigo 53.º). Frustrando-se a
conciliação, é aberta a audiência, começando-se pela produção de prova e
terminando-se pelas alegações dos advogados. Por fim e no prazo máximo de
20 dias, será proferida sentença, onde, por um lado, devem constar como
definitivamente assentes as questões que não tenham sido discutidas na fase
contenciosa e, por outro, se tome posição tanto relativamente às questões do
processo principal, como em relação à questão da fixação da incapacidade
para o trabalho que seja discutida em apenso. Se desta sentença resultar que
deva ser prestada caução ou constituída reserva matemática, deverá ser
enviado ao Instituto de Seguros de Portugal um exemplar ou do acordo com o
despacho de homologação, ou certidão da decisão que condenar no
pagamento da pensão, de que conste o teor da sua parte dispositiva, e, em
todos os casos, as certidões necessárias aos respectivos cálculos (cf. artigo
137.º do CPT).

223
Neste momento, pode haver lugar à desistência da instância, à confissão ou à transacção
que ao serem efectuadas perante o juiz não carecem de homologação para produzir efeitos de
caso julgado, devendo este apenas certificar-se da capacidade das partes e da legalidade do
resultado da conciliação (cf. artigo 52.º do CPT).

221 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


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Fixação de pensão ou indemnização provisória

Uma vez iniciada a fase contenciosa a lei prevê a possibilidade de poder


ser fixada uma pensão ou indemnização provisória. Temos, todavia, que
distinguir duas situações: havendo ou não acordo acerca da existência e
caracterização do acidente como acidente de trabalho. Se houver esse acordo
(cf. artigo 121.º do CPT), o juiz, a requerimento ou se assim resultar
directamente da lei, pode fixar provisoriamente uma pensão ou indemnização
que considere ser devida pela morte ou pela incapacidade atribuída pelo
exame médico. Esta pensão ou indemnização deverá ser calculada com base
na última remuneração auferida pelo sinistrado, se outra não tiver sido
reconhecida na tentativa de conciliação, ou, não sendo possível determinar a
última retribuição, tendo por base um mínimo que o juiz considere que
presumivelmente venha a ser reconhecido. Se, todavia, o grau de incapacidade
fixado tiver carácter provisório ou temporário, o juiz rectificará a pensão ou
indemnização logo que seja conhecido o resultado final do exame médico que
define a incapacidade ou lhe reconhece natureza permanente.

Se, ainda que havendo acordo acerca da existência e caracterização do


acidente, não houver acordo quanto à transferência da responsabilidade, a
pensão ou indemnização ficará a cargo da entidade seguradora cuja apólice
abranja a data do acidente ou, não tendo esta sido junta aos autos, da entidade
empregadora. Não sendo possível fazer com que alguma destas entidades
suporte tais quantias, estas deverão ser garantidas pelo Fundo de Actualização
de Pensões de Acidentes de Trabalho. A entidade que suportar
provisoriamente a pensão ou indemnizações, também deverá custear os
tratamentos do sinistrado cuja necessidade o juiz determinar.

Não havendo o referido acordo sobre a existência e caracterização do


acidente, o juiz, mais uma vez a requerimento da parte interessada ou se assim

222 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

resultar directamente da lei, fixa, com base nos elementos fornecidos pelo
processo, pensão ou indemnização provisória desde que forme a convicção de
que tais prestações são necessárias ao sinistrado, ou aos beneficiários, e
desde que do acidente tenha resultado a morte ou uma incapacidade grave ou,
ainda, se o sinistrado ainda não estiver curado e estiver sem tratamento
adequado ou sem receber indemnização por incapacidade temporária.
Também esta pensão ou indemnização provisória, bem como os encargos com
o tratamento do sinistrado, se não forem suportados por outra entidade por
ainda não se ter apurado a sua responsabilidade, são adiantados ou garantidos
pelo Fundo de Actualização de Pensões de Acidentes de Trabalho até que haja
decisão final condenatória (cf. artigo 122.º e 123.º do CPT).

Processo para fixação de incapacidade para o trabalho

No que em particular respeita ao já referido Apenso para fixação de


incapacidade para o trabalho é de destacar que, em prol da celeridade
processual, se apenas houver discordância quanto a esta questão, o pedido de
junta médica pode ser efectuado por mero requerimento224. O que aqui está em
causa são as situações em que uma das partes não se conforma com o
resultado da perícia realizada durante a fase conciliatória nos termos acima
referidos. Para por cobro a estas discordâncias a lei prevê a possibilidade de
realização de nova perícia agora com recurso a junta médica. Esta perícia, que
reveste carácter urgente e natureza secreta, será realizada por três peritos e
presidida pelo juiz (cf. artigo 139.º do CPT). Uma outra nota relevante é a de

224
Note-se que se este requerimento não for apresentado, o juiz deverá ainda assim proferir
decisão com base nos elementos de que dispõe, fixando a natureza e grau da incapacidade e
o valor da causa (cf. artigo 138.º do CPT).

223 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

que, se na perícia da fase conciliatória tiverem sido usados pareceres


especializados, deverão intervir nesta junta médica pelo menos dois médicos
dessas mesmas especialidades225, prevendo a lei que, “sempre que possível”,
deverão intervir nesta perícia peritos que não tenham intervindo na fase
conciliatória226. Finda a junta médica, o juiz profere decisão, fixando a natureza
e o grau de incapacidades.

Reforma do pedido

A lei prevê ainda outras situações que, pela sua especificidade,


merecem tratamento próprio, numa Divisão autónoma: Assim, no que respeita
à Reforma do Pedido este pode ter lugar numa de duas situações:

Se, durante a pendência da acção, o autor falecer;

Se, o falecimento do autor ocorrer depois do julgamento da causa ou da


extinção da instância por outro motivo.

Na primeira situação, suspende-se a instância e citam-se os seus


herdeiros para, querendo, abrirem habilitação (cf. artigo 141.º do CPT). É de
salientar que também aqui o Ministério Publico tem um papel relevante:
averiguar se a morte do sinistrado resultou directa ou indirectamente do
acidente. Havendo elementos suficientes no processo para presumir essa
relação de causalidade, o Ministério Publico deve organizar todo o processo

225
Fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, se não for possível constituir a junta
nos termos descritos, a perícia deverá ser deprecada ao tribunal com competência em matéria
de trabalho mais próximo da residência da parte.
226
Os peritos das partes devem ser apresentados até ao início da diligência sob pena de o juiz
ter que os nomear oficiosamente.

224 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

nos termos acima descritos para as situações de morte do sinistrado 227.


Frustrando-se a tentativa de conciliação ou não sendo homologado o acordo, o
Ministério Publico apresenta petição inicial onde fixa os pedidos
correspondentes aos direitos dos beneficiários legais do sinistrado, sem
necessidade de habilitação. Não obstante esta regra geral, a lei dispõe que as
novas partes têm de aceitar os articulados das partes que substituem,
mantendo-se, assim, os actos e os termos já processados desde que os
mesmos não estejam em oposição com as novas circunstâncias (cf. artigo
142.º do CPT). Na segunda situação a instância renova-se com vista à
obtenção dos mesmos efeitos e segundo os mesmos termos do que o que se
encontra previsto para a primeira situação.

Incidente de revisão da incapacidade ou da pensão

Uma outra situação com tratamento próprio respeita ao pedido de


revisão da incapacidade ou do pedido. Assim, mesmo após de proferida
decisão judicial, as partes podem, ainda, requer, através de incidente próprio,
revisão da incapacidade ou da pensão atribuídas. Este requerimento de pedido
de revisão também pode ser apresentado pelo beneficiário legal do sinistrado
que esteja a receber uma pensão228. Uma vez recebido tal requerimento, numa
ou noutra situação, cabe ao juiz ordenar nova perícia médica (cf. artigo 145.º
do CPT). Finda a perícia, o seu resultado é notificado ao sinistrado ou seu
beneficiário e à entidade responsável pela reparação dos danos resultantes do
acidente, sendo que, se alguma das partes não se conformar com o resultado

227
Ou seja, ordenar a autópsia, determinar os beneficiários legais, instruir o processo e
agendar tentativa de conciliação.

225 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

obtido, pode requerer, também nesta situação e no prazo de 10 dias, perícia


por junta médica. Se, pelo contrário, nenhuma das partes o requerer, pode,
ainda assim, a perícia ser ordenada pelo juiz caso a considere indispensável
para a boa decisão do incidente.

Efectuada perícia por junta médica nesta situação, ou não tendo havido
lugar à mesma, e efectuadas quaisquer diligências que se mostrem
necessárias, o juiz decide por despacho, mantendo, aumentando ou reduzindo
a incapacidade ou a pensão ou declarando extinta a obrigação de as pagar229.
Não obstante o que ficou dito, se a entidade considerada como responsável
vier discutir neste incidente a responsabilidade do agravamento, a questão só
poderá ser discutida com recurso a outros meios de prova, seguindo-se,
portanto a instrução e, posteriormente, a discussão e julgamento.

Remissão de pensões

Por fim, a lei prevê o processamento a respeitar em caso de remissão


das pensões – distinguindo entre as situações em é facultativa e aquelas em
que é obrigatória. Sendo facultativa esta terá que ser requerida. Depois deste
impulso processual, o juiz terá que ouvir quer o Ministério Publico, quer a parte
não requerente para depois decidir por despacho fundamentado (cf. artigo
148.º do CPT). Caso a decisão do juiz seja no sentido de recusar tal pretensão,
o requerente pode apresentar novo pedido uma vez passado um ano desde

228
O fundamento para este pedido pode ser o agravamento ou superveniência de doença física
ou mental que afecte a sua capacidade de ganho (cf. artigo 147.º do CPT).
229
Este incidente terá igualmente lugar numa outra situação: quando, sendo responsável uma
seguradora, o acidente não tenha sido participado ao tribunal por o sinistrado ter sido
considerado curado sem incapacidade (cf. artigo 145.º do CPT).

226 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

daquela data, tendo que, para tal, provar que já não se verifica o fundamento
que sustentou a recusa inicial.

Sendo a remissão concedida230, a secretaria tem competência para


proceder ao cálculo do capital, sendo, posteriormente, o processo concluso ao
Ministério Publico que terá, por um lado, que verificar o cálculo efectuado, e,
por outro, ordenar a tomada de diligências necessárias à entrega do capital.

3.2 Quando o evento lesivo é um acidente de viação

No âmbito dos acidentes de viação, dada esta ser igualmente uma área
em que o seguro de responsabilidade civil é obrigatório e em que, portanto, por
regra há transferência da responsabilidade civil para a seguradora, também há
comunicações que devem ser obrigatoriamente efectuadas.

A) Comunicações

O Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto (Regime de Responsabilidade


Civil Automóvel)231 refere que, em caso de sinistro, o tomador do seguro ou o
segurado, encontram-se obrigados a comunicar tal facto à seguradora, no mais
curto prazo de tempo possível e nunca podendo tal prazo ir para além dos 8
dias a contar da data do sinistro ou da data em que tenham ido conhecimento

230
Sendo a remissão obrigatória o processo inicia-se nesta fase.
231
Que, como já salientamos, surgiu em consequência da necessidade de transpor para o
ordenamento jurídico português a 5.ª Directiva Automóvel.

227 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

do mesmo. Com esta comunicação o tomador do seguro ou o segurado devem


fornecer todas as indicações e provas documentais e ou testemunhais
relevantes para uma correcta determinação das responsabilidades (cf. n.º 1 do
artigo 34.º). Caso esta obrigação não seja cumprida, o tomador do seguro ou o
segurado podem vir a ser responsabilizados pelas perdas e danos decorrentes
de tal incumprimento. A lei também prevê a possibilidade de o próprio terceiro
lesado poder fazer esta comunicação, sob forma de reclamação. Nestas
situações, a seguradora notifica o tomador do seguro ou o segurado para que
estes efectuem a participação no prazo de 8 dias. Se não o fizerem,
constituem-se imediatamente na obrigação de pagar à seguradora uma
penalidade correspondente ao prémio comercial do seguro, salvo se fizerem
prova da impossibilidade absoluta de ter cumprido tal obrigação e de que tal
impossibilidade não lhes é imputável.

Esta comunicação deverá ser efectuada em impresso próprio fornecido


pela empresa de seguros ou disponível no seu sítio na Internet, de acordo com
o modelo aprovado por norma do Instituto de Seguros de Portugal, ou por
qualquer outro meio de comunicação que possa ser utilizado sem a presença
física e simultânea das partes, desde que dela fique registo escrito ou gravado.
Quando a participação do sinistro seja assinada conjuntamente por ambos os
condutores envolvidos no sinistro, a lei estabelece a presunção de que o
sinistro se verificou nas circunstâncias, nos moldes e com as consequências
constantes da mesma, salvo prova em contrário por parte da empresa de
seguros (cf. n.º 2 do artigo 35.º).

Uma vez recebida a comunicação, quer a mesma tenha sido efectuada


pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado, a seguradora
deve, desde logo, tomar um conjunto de diligências, destacando-se as
seguintes:

228 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


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Entrar em contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o


terceiro lesado no prazo de 2 dias úteis, marcando as peritagens que
devam ter lugar;

Concluir as peritagens no prazo dos 8 dias úteis seguintes ao fim do prazo


referido no ponto anterior;

Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo de 4 dias úteis após a


conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis
à sua compreensão;

Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo


de 30 dias úteis a contar da data do primeiro contacto, informando desse
facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou
por documento electrónico (cf. artigo 36.º).

Havendo danos corporais, as diligências e prontidão exigíveis à


seguradora são maiores. Assim, após ter sido recebida uma comunicação de
um sinistro que envolva danos corporais, a seguradora deve, no que em
particular respeita à regularização dos mesmos:

Informar o lesado se entende necessário proceder a exame de avaliação do


dano corporal por perito médico designado pela empresa de seguros, num
prazo não superior a 20 dias a contar do pedido de indemnização por ele
efectuado, ou no prazo de 60 dias a contar da data da comunicação do
sinistro, caso o pedido indemnizatório não tenha ainda sido efectuado;

Disponibilizar ao lesado esse exame de avaliação do dano corporal no


prazo máximo de 10 dias a contar da data da sua recepção, bem como dos
relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão;

Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo


de 45 dias, a contar da data do pedido de indemnização, caso tenha
entretanto sido emitido o relatório de alta clínica e o dano seja totalmente

229 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

quantificável, informando daquele facto o tomador do seguro ou o segurado


e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico. Se, todavia,
dentro deste prazo, tal relatório de alta médica não seja emitido ou o dano
não seja totalmente quantificável, a empresa seguradora a assunção da
responsabilidade constante da comunicação assume a forma de proposta
provisória. Desta proposta provisória deve constar especificamente os
montantes relativos a despesas já havidas e ao prejuízo resultante de
períodos de incapacidade temporária já decorridos. Se esta proposta, ainda
que provisória, tiver sido aceite, a empresa de seguros deve efectuar a
assunção da responsabilidade consolidada no prazo de 15 dias a contar da
data do conhecimento do relatório de alta clínica, ou da data a partir da qual
o dano deva considerar-se como totalmente quantificável, se posterior (cf.
artigo 37.º).

B) Proposta razoável

A referida comunicação da seguradora onde esta assuma a


responsabilidade pela indemnização reflecte, portanto, a posição daquela
relativamente ao sinistro e, nos termos do n.º 1 do artigo 38.º, consubstancia a
já aludida novidade introduzida por este diploma legal – a Proposta Razoável
de Indemnização. Se, todavia, o montante proposto vier a ser considerado
como manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista
na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido pela
seguradora naquela proposta e o montante fixado em sede de decisão judicial.
Não obstante esta regra geral, quando a proposta da seguradora tiver sido
efectuada no cumprimento dos termos substanciais e procedimentais previstos
no sistema de avaliação e valorização dos danos corporais por utilização da
Tabela Indicativa para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito
Civil, os juros são devidos apenas à taxa legal e calculados sobre a diferença

230 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, e,


relativamente aos danos não patrimoniais, a partir da data da decisão judicial
que torne líquidos os montantes devidos (n.º 3 do artigo 38.º). Outra
especificidade prende-se com os prejuízos futuros. A Proposta Razoável
apresentada pela seguradora pode ser limitada ao prejuízo mais provável para
os três meses seguintes à data de apresentação da mesma, excepto se já for
conhecido o quadro médico e clínico do lesado, e sem prejuízo da sua futura
adaptação razoável.

Como consta do preâmbulo do diploma legal em análise, a intenção do


legislador foi a de, na sequência da transposição parcial da 5.ª Directiva pelo
Decreto-Lei n.º 83/2006, de 3 de Maio, alargar o procedimento da Proposta
Razoável à generalidade dos acidentes de viação ocorridos em Portugal e
estender agora a sua aplicação aos sinistros com danos corporais. Temos aqui,
portanto, um mecanismo legal que tem como objectivo a celeridade dos
procedimentos e a diminuição da litigância judicial. Sempre que as partes não
cheguem a um acordo por esta via, resta aos sinistrados o recurso às
tradicionais vias judiciais.

C) Recurso às vias judiciais

Para o efeito o lesado terá que intentar uma acção declarativa de


condenação para efectivação de responsabilidade civil decorrente de acidente
de viação que, em termos processuais, se rege pelo Código de Processo Civil
(CPC). Assim, será obrigatória a constituição de mandatário quando o valor da

231 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

acção seja superior a 5.000,00 euros232 podendo o lesado, caso preencha os


requisitos, requerer apoio judiciário nos termos previstos na Lei n.º 34/2004, de
29 de Junho, regulamentada pela Portaria n.º 10/2008, de 3 de Janeiro e pela
Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto233.

A acção deve ser proposta no tribunal competente, atendendo, para


tanto, às regras gerais de competência dos tribunais234, referindo-se, a este
respeito, que actualmente, e de acordo com as leis de organização judiciária,
não existem tribunais de competência especializada para resolver este tipo de
litígios. Para tal, o lesado ou o seu mandatário, devem dar entrada em juízo,
através de um dos meios previsto na lei235, uma petição inicial onde contestem
todos os elementos elencados no n.º 1 do artigo 467.º do CPC236, juntando em

232
Cf. al. a) do n.º 1 do artigo 32.º do CPC.
233
Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Lei 34/2004, de 29 de Junho, “O sistema de acesso ao
direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em
razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o
conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos”. Para este efeito, entende-se que se
encontra em situação de insuficiência económica “aquele que, tendo em conta o rendimento, o
património e a despesa permanente do seu agregado familiar, não tem condições objectivas
para suportar pontualmente os custos de um processo” (cf. n.º 1 do artigo 8.º).

O apoio judiciário compreende várias modalidades:

Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo;


Nomeação e pagamento da compensação de patrono;
Pagamento da compensação de defensor oficioso;
Pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo;
Nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono;
Pagamento faseado da compensação de defensor oficioso.
Atribuição de agente de execução (cf. n.º 1 do artigo 16.º).
234
Nos termos do n.º 2 do artigo 74.º do CPC, em termos de competência territorial, o tribunal
competente para a acção destinada efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito
ou fundada no risco, é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.
235
Cf. artigo 150.º do CPC.
236
Leia-se:

232 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

anexo o respectivo comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça ou da


concessão de apoio judiciário e, ainda, todos os documentos que comprovem
os factos articulados237.

Uma vez recebida a petição inicial pela secretária e desde que não se
verifique nenhum dos fundamentos para a sua recusa238 o réu será citado para
contestar no prazo de 30 dias239. Através deste articulado o réu irá defender-se
relativamente aos factos alegados pelo autor em sede de petição inicial, por
impugnação240 ou por excepção241, sob pena de os factos articulados pelo

O tribunal e respectivo juízo em que a acção é proposta;


Identificação das partes, indicando os seus nomes, domicílios ou sedes e, sempre que
possível, números de identificação civil e de identificação fiscal, profissões e locais de
trabalho;
Indicação do domicílio profissional do mandatário judicial;
Indicação da forma do processo;
Exposição dos factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção;
Formulação do pedido;
Declaração do valor da causa.
Designação do agente de execução incumbido de efectuar a citação ou o mandatário
judicial responsável pela sua promoção.
237
Cf. n.º 1 do artigo 523.º do CC, não obstante o n.º 2 deste mesmo dispositivo legal prever a
possibilidade de os mesmo serem juntos até enceramento da discussão em 1.ª instância ainda
que sob a cominação de pagamento de multa.
238
Cf. artigo 474.º do CPC.
239
Cf. artigo 480.º e 486.º do CPC, se estivermos perante uma acção cujo valor é superior a
30.000,00 euros e que, portanto, reveste a forma de processo ordinário. Se não atingir esse
valor mas este seja superior a 5.000,00 euros, a acção reveste a forma de processo sumário e
o prazo para a contestação é de 20 dias (cf. artigo 783.º do CPC). Por fim, se o valor da acção
for inferir a 5.000,00 euros reveste a forma de processo sumaríssimo e o prazo para a
contestação é de 15 dias (cf. artigo 794.º do CPC).
240
Quando se contradizem os factos alegados ou quando se defende que estes factos não
podem produzir o efeito pretendido (cf. artigo 487.º do CPC).
241
Quando se alegam factos que obstam à apreciação do mérito da causa (excepções
dilatórias) ou que serviam de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado
pelo autor, determinado a improcedência do pedido (excepções peremptórias).

233 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

autor serem admitidos por acordo242, devendo de igual modo juntar a este
articulado o comprovativo do pagamento da taxa de justiça ou do pedido de
apoio judiciário e os documentos que comprovem os factos agora por si
articulados. A estes articulados ainda podem seguir-se, em situações
especialmente previstas na lei, outros dois articulados: a réplica243 (se o réu se
defender por excepção ou deduzir reconvenção244) e a tréplica245 (se houver
réplica e tiver sido modificado o pedido ou a causa de pedir ou se, havendo
reconvenção, tiver sido deduzida alguma excepção).

Findos os articulados, o processo é concluso ao juiz que pode ou não


proferir despacho saneador246. Este despacho destina-se a, tendo em conta o
poder de direcção do processo conferido ao juiz e o princípio do inquisitório 247,
providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis
de sanação, e, ainda, convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados,
suprindo irregularidades ou insuficiências. Terminadas as diligências desta fase
do pré-saneador, o juiz pode designar data para a audiência preliminar ou
dispensar a sua realização248, proferindo de imediato despacho saneador. A

242
Cf. artigo 490.º do CPC.
243
Cf. artigo 502.º.
244
Trata-se de uma possibilidade que é dada ao réu, em sede de processo ordinário, de, na
mesma acção, deduzir um pedido contra o autor desde que se verifiquem um conjunto de
pressupostos legais previstos no artigo 274.º do CPC.
245
Cf. artigo 503.º do CPC.
246
Cf. artigo 508.º do CPC.
247
Cf. artigo 265.º do CPC.
248
A convocação desta audiência pode ser dispensada quando destinando-se à fixação da
base instrutória, a simplicidade da causa o justifique ou quando a sua realização tenha como
fim facultar a discussão de excepções dilatórias já debatidas nos articulados ou do mérito da
causa, nos casos em que a sua apreciação revista manifesta simplicidade (cf. n.º 1 do artigo

234 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

realizar-se a audiência esta será convocada, através de despacho, destinando-


se, entre outros fins249, à realização de uma tentativa de conciliação. Esta
diligência, ainda que inserida no âmbito da audiência preliminar, tem carácter
autónomo e pode ter lugar quando, cabendo a causa no âmbito dos poderes de
disposição das partes, em qualquer estado do processo, desde que as partes
conjuntamente o requeiram ou o juiz a considere oportuna. No entanto, a lei
refere que as partes não podem ser convocadas exclusivamente para esse fim
mais que uma vez. A tentativa de conciliação é presidida pelo juiz e terá em
vista a solução de equidade mais adequada aos termos do litígio, devendo para
tanto o juiz procurar conhecer da disponibilidade das partes em transigir.
Frustrando-se, total ou parcialmente, a conciliação, ficam consignados em acta

508.º - B do CPC). Em caso de dispensa, o juiz profere, no prazo de 20 dias, despacho


saneador destinado a conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam
sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar
oficiosamente; conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo
permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos
deduzidos ou de alguma excepção peremptória. Ou seja, este despacho constitui, logo que
transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas e tem efeitos de
sentença (cf. artigo 510.º do CPC).
249
Os restantes fins da audiência preliminar são os que constam do n.º 1 do artigo 508.º A do
CPC:

“b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra
apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em
parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as
insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se
tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador, nos termos do artigo 510.º;
e) Quando a acção tenha sido contestada, seleccionar, após debate, a matéria de facto
relevante que se considera assente e a que constitui a base instrutória da causa, nos termos
do artigo 511.º, decidindo as reclamações deduz das pelas partes”.

235 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

os fundamentos que, no entendimento das partes, justificam a persistência do


litígio250.

É no decurso da audiência preliminar que as partes indicam os seus


meios de prova e se decide sobre a sua admissão251. Não se realizando, a
secretaria deverá notificar as partes para o efeito252, dando-se, assim, início à
fase de instrução do processo253. Por regra a prova é produzida em sede de
julgamento mas pode justificar-se a sua produção antecipada desde que
alguma das partes o requeira fundamentadamente254.

Prova pericial

A prova pericial, de especial relevância nos processos onde esteja em


causa a reparação do dano corporal, deve ser requisitada pelo tribunal a
estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não
seja possível ou conveniente, realizada por um único perito, nomeado pelo juiz
de entre pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em
causa. Para o efeito, as partes são ouvidas sobre a nomeação do perito,
podendo sugerir quem deve realizar a diligência. Havendo acordo das partes
sobre a identidade do perito a designar, o juiz deve, por regra, nomear esse

250
Cf. artigo 508.º- A,; artigo 508.º - B; artigo 509.º, todos do CPC.
251
Cf. al. a) do n.º 2 do artigo 508.º - A do CPC.
252
Cf. artigo 512.º do CPC.
253
A prova pode ser feita por documentos, por confissão das partes, por perícia, por inspecção
judicial ou através de testemunhas.
254
Cf. artigo 520.º e 521.º do CPC.

236 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

perito255. Mas a perícia também pode ser perícia colegial. Esta será realizada
por mais de um perito, até ao número de três e tem lugar o juiz oficiosamente o
determine, por entender que a perícia reveste especial complexidade ou exige
conhecimento de matérias distintas ou, ainda, quando alguma das partes o
requeira. Nestes casos, ou as partes acordarem na nomeação dos peritos, ou,
caso contrário, cada uma delas escolhe um dos peritos e o juiz nomeia o
terceiro256.

Ao requerer a perícia, a parte indicará logo, sob pena de rejeição, o


respectivo objecto, enunciando as questões de facto que pretende ver
esclarecidas através da diligência, podendo incidir tanto sobre os factos
articulados pelo requerente, como pelos alegados pela parte contrária257. O
resultado da perícia que constará de relatório próprio e devidamente
fundamentado deverá ser notificado às partes para que estas se possam
pronunciar relativamente ao mesmo. Não estando alguma das partes satisfeita
com o resultado pode requerer nova perícia alegando, para tanto, os motivos
da sua discordância258. Nesta segunda perícia não podem intervir os peritos
que tenham realizado a primeira perícia e está será, por regra, colegial
expendendo em dois o número de peritos em relação à primeira. Acresce
salientar que o resultado da segunda perícia não invalida o resultado da
primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal259. A pedido

255
Cf. artigo 568.º do CPC.
256
Cf. artigo 569.º do CPC.
257
Cf. artigo 577.º do CPC.
258
Cf. artigo 589.º do CPC. Note-se que se o tribunal entender como necessária a realização
de uma segunda perícia pode ordena-la oficiosamente e a todo o tempo.
259
Cf. artigo 591.º do CPC.

237 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

das partes ou oficiosamente por iniciativa do juiz, podem os peritos ser


notificados para comparecerem em audiência final para aí prestarem os
devidos esclarecimentos260.

As perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais


ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no Regime
jurídico da das perícias médico-legais e forenses (Lei n.º 45/2004, de 19 de
Agosto). Nos termos do artigo 2.º deste diploma legal, as perícias médico-
legais deverão ser realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e nos
gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), nos
termos dos respectivos estatutos. Quando se verifique a necessidade de
formação médica especializada noutros domínios e que não possam ser
realizadas nas delegações do INML ou nos gabinetes médico-legais, por aí não
existirem peritos com a formação requerida ou condições materiais para a sua
realização, as perícias poderão ser efectuadas, por indicação do INML, em
serviço universitário ou de saúde público ou privado.

O passo processual que se segue é, então, a marcação e convocação


as partes para a audiência de discussão e julgamento que se fará com
intervenção do tribunal colectivo se ambas as partes o tiverem requerido. Feita
a chamada das pessoas convocadas, a audiência é aberta e, mais uma vez, o
juiz deverá tentar conciliar as partes261. Se tal não for possível, segue-se a
discussão sobre a matéria de facto. Posto isto, o tribunal irá proferir decisão
sobre os factos que considera provados e os factos não provados, seguindo-

260
Cf. artigo 588.º do CPC.
261
Cf. artigo 652.º do CPC.

238 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

se, por fim, a discussão sobre o aspecto jurídico da causa. Concluída esta
discussão, o processo é concluso ao juiz para que este profira sentença.

3.3 Quando o evento lesivo resulta da prática de um


crime

Resta-nos fazer uma breve referência às especificidades do processo a


seguir quando os danos corporais a reparar tenham sido originados pela
prática de um crime. Como já resulta do que deixamos dito, a prática de uma
infracção criminal pode ser fundamento de duas pretensões: uma acção penal
e uma acção cível. Nesta última o que se pretende é o ressarcimento dos
danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha causado. Esta
unidade que faz com que exista uma forte conexão entre as duas acções não
implica, no entanto, que as mesmas se confundam. Para dar forma a esse
estreito relacionamento, entre nós, como, aliás, na maioria das legislações, o
legislador optou pelo sistema da interdependência ou da adesão (cf. artigo
71.º do CPP)262, apenas sendo possível deduzir pedido de indemnização civil
em separado nas situações especificamente previstas na lei (cf. artigo 72.º do
CPP).

262
Para Manuel Lopes Maia Gonçalves, in Código de processo Penal Anotado, 16.ª Edição,
2007, pág. 207, esta opção pela regra da obrigatoriedade da adesão ao processo penal “(…)
justifica-se inteiramente nos casos em que estejam em causa lesados de recursos modestos,
nos quais há razões de política social a militar no sentido de fazer decidir no processo criminal,
paralelamente à questão penal, a matéria cível. Mas relativamente a outro tipo de situações,
nomeadamente acidentes de viação em que estejam envolvidas companhias seguradoras e em
que as partes sejam assistidas por advogados, impõe-se antes que, desligadas da obrigação
de recurso à jurisdição penal, procurem no foro civil a solução do litígio dos danos emergentes
do crime”.

239 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

Em consequência desta opção legislativa, estamos perante uma matéria


que, como já referimos, no seu quantitativo e nos seus pressupostos, continua
a ser apreciada e decidida de acordo com o quadro normativo civil. O que
acontece é que a dedução do pedido de indemnização deverá ocorrer na acção
penal correspondente levando a que a tramitação processual a seguir seja a
constante do Código de Processo Penal. Ou seja, a lei substantiva a aplicar é a
constante do Código Civil, mas a lei processual é a do Código de Processo
Penal263.

A legitimidade para deduzir pedido de indemnização civil é atribuída


ao lesado. Para este efeito entende-se por lesado a pessoa que sofreu danos
ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa
constituir-se assistente264. Não obstante esta regra de legitimidade processual,
o pedido de indemnização civil em sede de processo penal pode, ainda e para
além do lesado que se tenha constituído assistente265, ser apresentado pelo
MP. Não tendo o lesado deduzido pedido de indemnização civil em processo
penal ou em separado, o tribunal pode, ainda, em caso de condenação, arbitrar

263
Neste sentido Ac. do STJ de 12 de Janeiro de 1995, in CJ, Acs. do STJ, III, Tomo 1, pág.
181: “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil
quantitativamente e nos seus pressupostos; porém, processualmente, é regulada pela lei
processual penal‖. Como consequências desta posição temos, assim, que uma vez que em
processo penal vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação de prova estes
também valem para o pedido de indemnização civil, não devendo, portanto, considerar-se o
princípio do ónus da prova‖.
264
Ou seja, por lesado entende-se todo aquele que, perante a lei processual civil, tiver
legitimidade para formular pedido de indemnização.
265
Nos termos do n.º 1 do artigo 68.º do CPP, podem constitui-se assistentes os ofendidos ou
os seus representantes legais se este for menor de 16 anos. Em caso de morte destas, podem
constitui-se assistentes o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou
a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que vivesse com o ofendido em condições análogas às
dos cônjuges, ou, ainda os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta
destes, os irmãos ou seus descendentes, desde que nenhuma destas pessoas tenha
comparticipado na prática do crime.

240 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando “particulares


exigências de protecção da vítima o imponham” (cf. artigo 82.º A do CPP).
Desta forma procurou manter-se a autonomia e a natureza civil do pedido de
indemnização sem que, todavia, a protecção das vítimas mais desfavorecidas
ficasse postergada. Assim, por via de um processo em que se não exige
qualquer formalidade a não ser o respeito pelo contraditório, determinadas
vítimas podem, ainda, ser ressarcidas.

A pessoa contra quem for deduzido pedido de indemnização civil será


notificada para apresentar contestação no prazo de 20 dias. A especificidade
aqui é que a não apresentação de contestação não implica a confissão dos
factos (cf. artigo 78.º do CPP) e, portanto, a condenação irremediável do
demandado266. Outra especificidade resulta de que, se depois da produção de
prova em audiência de discussão e julgamento, o tribunal considerar que não
dispõe de “elementos bastantes para fixar a indemnização”, pode limitar-se a
condenar no que se liquidar em execução de sentença e esta correrá perante o
tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal (cf. n.º 1 do artigo
82.º do CPP)267. Não obstante, o tribunal, caso tenha elementos bastante para
tanto, pode, ainda assim, estabelecer, quer oficiosamente, quer a
requerimento, uma indemnização provisória por conta da indemnização que
venha a ser fixada posteriormente (cf. n.º 2 do artigo 82.º do CPP). Outro
aspecto a saltitar é que, o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, pode
remeter as partes para os tribunais civis sempre que as questões suscitadas
pelo pedido de indemnização civil poderem inviabilizar uma decisão rigorosa ou

266
Face à regulamentação legal desta matéria, conclui-se que com a contestação se esgotam
os articulados do arguido e dos demandados, não sendo admissíveis pedidos reconvencionais.
267
Nesta situação apenas é remetida a liquidação do quantitativo da indemnização, tendo já
sido decidido que existe direito a uma indemnização.

241 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo

forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o


processo penal (cf. n.º 3 do artigo 82.º do CPP).

Por fim, é de realçar que a decisão penal que conhecer do pedido de


indemnização civil, ainda que absolutória, constitui caso julgados exactamente
nos mesmos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças
civis (cf. artigo 84.º do CPP). Tal compreende-se uma vez que a sentença,
ainda que absolutória, deve condenar o arguido em indemnização sempre que
o pedido venha a revelar-se fundado (cf. n.º 1 do artigo 377.º do CPP). Ou seja,
também por esta via se percebe a autonomia da acção cível ainda que
enxertada em acção penal. Neste sentido vale recordar o Assento do STJ n.º
7/99, publicado no Diário da República, Primeira Série, n.º 179, de 03/08/1999
que sobre esta matéria decidiu que “se em processo penal for deduzido pedido
cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o
caso previsto no Art.º 377º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a
absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se
o pedido de fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com
responsabilidade da responsabilidade contratual”. Tal significa que, de acordo
com um outro acórdão do STJ de 07/02/2007, publicado no site da DGSI;
nestas situações, importa averiguar se estão verificados os pressupostos da
obrigação de indemnizar, em consonância com a responsabilidade civil
extracontratual.

242 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


PARTE II
O ROTEIRO DA VULNERABILIDADE
3

CAPÍTULO 3
AS LÓGICAS SEGURADORAS
E A CONSTRUÇÃO DO QUADRO DA REPARAÇÃO
As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

INTRODUÇÃO

As transformações operadas nas últimas décadas na economia global, a


par da natureza privada, lucrativa e empresarial dos operadores de seguro de
acidentes laborais e rodoviários, estarão na origem da vinculação da
racionalidade seguradora a um objectivo de acumulação capitalista que é
detentor de uma concepção hegemónica de segurança que, por sua vez, tem
vindo a ser cabalmente contestada por diferentes agentes sociais e políticos. O
sector segurador tem vindo assim a assumir-se como um dos principais
dinamizadores da redefinição do quadro legal, cultural e institucional em que se
processa a reparação do dano corporal. São, portanto, várias as mudanças
promovidas no domínio da indemnização do corpo e da vida, que envolvem os
acidentes de trabalho, mas também a sinistralidade rodoviária.

O sector segurador tem vindo a assumir-se como um dos principais


dinamizadores da redefinição do quadro legal, cultural e institucional em que se
processa a reparação do dano corporal. São várias as mudanças promovidas
no domínio da indemnização do corpo e da vida, que envolvem tanto os
acidentes de trabalho como a sinistralidade rodoviária. É neste contexto que
têm vindo a ser travadas sucessivas batalhas pelas seguradoras, algumas das
quais com reflexos directos no actual quadro legal que rege estas matérias.
Outras que, muito provavelmente, poderão vir a reflectir-se, nomeadamente a

245 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

orientação indemnizatória defendida veemente pela Associação Portuguesa de


Seguradores no sentido do abaixamento dos montantes relativos às pequenas
incapacidades, com o objectivo de, alegadamente, se melhorar a indemnização
dos grandes incapacitados. O argumento mais recorrente para justificar esta
tomada de posição é o de que, por esta via, conseguir-se-ia indemnizar de
forma mais justa e generosa os lesados afectados por maiores graus de
incapacidade, privilegiando-se, assim, a protecção das situações mais graves e
socialmente mais necessitadas. Acontece, todavia, que como, resulta do já
referido, as pequenas incapacidades constituem a grande maioria dos casos de
acidentes de trabalho e, por consequência, o grosso das indemnizações
atribuídas pelas seguradoras aos sinistrados.

Outra bandeira de luta das seguradoras é a de tentar travar o


alargamento da abrangência indemnizatória em sede laboral de modo a não
integrar os danos não patrimoniais no âmbito dos danos indemnizáveis. Agora,
com o argumento de que só por esta via se consegue salvaguardar as
garantias oferecidas pela objectivação do risco e, por consequência, a
celeridade, as seguradoras, ao vencer mais esta batalha, conseguem, por um
lado, evitar o potencial aumento dos seus custos, e, por outro, afastar a
introdução dos temíveis custos imprevisíveis que, portanto, são de difícil
previsão e contabilização no momento da fixação do prémio de seguro. È
portanto esta lógica gestionária e normalizadora que orienta a actuação das
seguradoras enquanto agentes conformadores da construção do nosso quadro
legal.

246 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

1. A MEDIAÇÃO LABORAL E O AFASTAMENTO DO


MINISTÉRIO PÚBLICO

Como já referimos um dos grandes argumentos que, ultimamente, vem


sendo recorrentemente utilizado pelas seguradoras é o da celeridade. Assim,
sob o véu da morosidade do sistema judicial, as seguradoras têm vindo a
defender a desjudicialização dos acidentes de viação. Esta tomada de posição
e pressão exercida pelas seguradoras acabou por, mais uma vez, ser tida em
consideração pelo poder político, materializando-se na Resolução do Conselho
de Ministros n.º 172/2007, de 11 de Outubro de 2007268.

Em cumprimento do Plano de Acção para o Descongestionamento dos


Tribunais, aprovado em 2005, o Conselho de Ministros resolveu, ―com vista a
garantir uma gestão racional do sistema de justiça, libertando os meios
judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a protecção de bens jurídicos
que efectivamente mereçam a tutela judicial‖, adoptar um conjunto de
orientações e medidas, entre as quais destacamos a ―dispensa da necessidade
de apresentação de uma acção judicial em matéria de acidentes de trabalho
quando, após a realização dos exames médicos necessários, exista acordo
entre trabalhador e empregador e decisão favorável de entidade administrativa
ou equivalente‖269.

Esta orientação legislativa parece ter resultado da pressão antiga e de


negociações governamentais com a Associação Portuguesa de Seguradores,
estabelecendo-se como indicação que nos casos de acidentes de trabalho em

268
Publicada no Diário da República, 1.ª série, N.º 213, de 6 de Novembro de 2007.

269
Cf. al. m), n.º 1 da Resolução n.º 172/2007, de 11 de Outubro de 2007.

247 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

que resultem incapacidades inferiores a 20% para os sinistrados, as


companhias de seguros passariam a participá-los ao Instituto de Medicina
Legal e não ao Ministério Público. O instituto realizaria o exame médico que
determinaria o grau de incapacidade e seguradora e sinistrado tentam chegar a
um acordo270. Conseguido o acordo entre as partes, o seu conteúdo seria
homologado pelo Instituto de Segurança Social. Convém todavia salvaguardar
que esta homologação não teria por objectivo dar quaisquer garantias de
protecção ao sinistrado, mas apenas apurar se o acordo está ou não
formalmente conforme com o estabelecido na lei. Na prática teríamos um
regime em que se dispensa o recurso a uma acção judicial em matéria de
acidentes de trabalho quando exista um suposto acordo entre trabalhador e a
seguradora, passando a verificação do grau de incapacidade resultante do
acidente a ser definida por uma entidade administrativa.

Esta e outras recentes tendências desjudicializadoras dos acidentes de


trabalho a que mais à frente faremos referência, emitem o sinal sociológico de
que o poder político e, em particular, o legislador, encara os tribunais como um
obstáculo à eficiência da governação da sinistralidade. Perante esta tomada de
posição e defendendo-se que o êxito da sua governação dependerá do
afastamento dos tribunais e do próprio Ministério Público, estaremos a
caminhar no sentido da supressão das garantias dos sinistrados no confronto
com as seguradoras. De facto, este dispositivo de desjudicialização, ainda que
funcione exclusivamente para pequenas incapacidades, poderá constituir, na
prática e segundo opinião de quase a maioria dos nossos entrevistados, uma
forma altamente perigosa de conciliação repressiva no âmbito de direitos
fundamentais, como a integridade física dos trabalhadores.

270
Como resulta do Capítulo 2 da Parte I, actualmente, as companhias têm de comunicar
obrigatoriamente os sinistros ao Ministério Público. E são os serviços do Ministério Público que
passam a representar o sinistrado na tentativa de conciliação com a seguradora. O Ministério
Público conduz o processo e, caso siga para fase contenciosa, pode patrocinar o sinistrado.

248 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

Confirmando este receio um dos decisores políticos por nós entrevistado


afirmou que ainda é “sensível aos riscos envolvidos na adopção de meios
extrajudiciais de resolução de conflitos para esta matéria‖, acrescentando,
ainda que a mediação ―não pode ser repressiva, de escolha entre a rapidez
com sacrifício, ou a lentidão, sem garantia de que não tenha à mesma
sacrifício. Esta é uma escolha de Sofia e, por definição, é uma escolha imoral
que trai a justiça e trai o direito, sob a pressão da angústia do sofrimento e do
labirinto jurídico e o apelo de uma gratificação instantânea mas injusta‖ (Ent.
33). Outro dos nossos entrevistados, magistrado, afirmou que “esta solução
poderia ter efeitos catastróficos porque colocaria os sinistrados, sozinhos,
perante a seguradora a fazer acordos completamente desprotegidos,
nomeadamente em termos de informação‖ (Ent. 28).

A conciliação repressiva a que fizemos referência resultará, desde logo,


do facto de deixar de haver um acompanhamento e um controlo por parte do
Ministério Público em matérias que representam direitos indisponíveis do
trabalhador. O sinistrado, colocado ao lado da seguradora, isolado e sem o
acompanhamento do Ministério Público, poderá muito mais facilmente vir a
concordar com compensações gravosas para si próprio, desconhecendo,
inclusive, quais os direitos e garantias que lhe são atribuídos e reconhecidos
por lei ou o conteúdo de determinados conceitos jurídicos essenciais para a
determinação da incapacidade, nomeadamente, o conceito de retribuição. A
esta falta de informação e acessória jurídica do sinistrado acresce a sua falta
de poder de argumentação e negociação, em comparação com o seu
interlocutor.

―Os trabalhadores normalmente encostam-se ao Ministério Público, porque os


advogados pegam pouco nestes processos, e o MP é o único capaz de proteger o
sinistrado e reequilibrar a situação. O sinistrado precisa de ter um representante‖ (Ent.
25).

―O tribunal, designadamente através da intervenção do MP, consegue fazer com que


os sinistrados conheçam os seus direitos. Há um papel fundamental na promoção dos
direitos dos sinistrados que se perderia com o recurso à mediação. (…) Há um défice

249 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

muito grande em termos de informação por parte dos cidadãos quanto esta matéria
desde logo no que respeita à percepção que tem sobre o que se entende por
retribuição para estes efeitos‖ (Ent. 28).

A desprotecção do sinistrado agravar-se-á ainda mais pelo


desaparecimento do processo a avaliação da responsabilidade pelo acidente
de trabalho e, consequentemente, do empregador. Como se fez referência no
Capitulo 2 da Parte I, ainda que a responsabilidade se encontre devidamente
transferida para a seguradora, se o acidente tiver sido provocado pela entidade
empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das
regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão
segundo determinadas regras especiais, importando, assim o agravamento da
responsabilidade da entidade empregadora. Com esta opção legislativa, estas
situações deixam de ser devidamente apuradas com prejuízo directo para o
sinistrado.

Finalmente, estabelecendo-se um limiar de 20% para acordos não


seguidos pelo Ministério Público, é provável que venha a verificar-se um efeito
perverso: a avaliação do grau de incapacidade das baixas incapacidades
poderá tender a ser fixada abaixo desse limite. Tudo conjugado, leva a concluir
que, a efectivar-se esta opção legislativa, os sinistrados podem ser levados a
aceitar – em grau de coerção ou consentimento variáveis – valores mais baixos
de indemnização.

Em suma, normalização, previsibilidade, modelação populacional,


celeridade e desdiferenciação constituem o novo código operacional da
resolução destes conflitos, ganhando espaço no debate público através de uma
nova linguagem. Tal como verificámos no Capítulo 1 a propósito das relações
contratuais, as novas semânticas da autonomia visam uma nova realidade de
fragilização. E aquilo que eram as prerrogativas essenciais do direito do
trabalho, entre as quais, nesta matéria, se destaca a irrenuciabilidade da
reparação, passam agora a tomar como referência o direito civil mais

250 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

indiferenciador, abstraindo a ocorrência da sua contextualidade – e


subalternidade – laboral:

―Todas as soluções que visem a desburocratizar esse processo, não havendo indícios
e não regulando a prática e a experiência que as seguradoras têm nesta matéria
indícios de conflitos graves. Tudo o que seja descomplicar é bem-vindo. Quanto mais
podermos descomplicar melhor, mas se descomplicarmos um bocadinho será sempre
melhor do que o sistema actual. Eu não estou identificada com o sistema de mediação
laboral. Se for mais fácil que o processo judicial, será bem-vindo obviamente. Se
pudermos evitar a mediação, porque só se vai mediar conflitos e se as partes se
poderem entender, não faz sentido haver mediação. (Ent. 23)

Ao contrário da posição deste entrevistado, algumas administrações de


companhias são mais cautelosas relativamente à nova solução legislativa:

―Na minha opinião isto só devia funcionar com seguradoras. Aí não há pressão do
patrão. (…).‖ (Ent. 21)

Estas reticências poderão ser, ainda assim, pouco eficazes e


eventualmente mistificadoras: ainda que, aparentemente, não seja visível
nenhuma incongruência na relação laboral, o que é certo é que o papel do
Ministério Público visa precisamente desocultuar as irregularidades latentes -
independentemente de, na prática, ou fazer ou não. Esta intervenção é
essencial uma vez que tais contornos menos visíveis nem sempre são
inteiramente inteligidos pelo próprio sinistrado, sobretudo na sua condição
subalterna e dependente.

251 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

2. A DISCUSSÃO POLÍTICA DA REPARAÇÃO E O


PROCESSO LEGISLATIVO: A LEI 98/2009, DE 04 DE
SETEMBRO

A responsabilidade política pela actual Lei dos Acidentes de Trabalho


(LAT) – Lei 98/2009, de 4 de Setembro não é partilhada por todas as forças
políticas. Como nos referiu um dos nossos entrevistados, ainda que exista a
tendência para utilizar a expressão o legislador, acabando por ―meter no
mesmo saco todo um grupo de parlamentares‖, a verdade é que ―o legislador
não é uma entidade homogénea‖ (Ent. 18).

O que acontece é que é a correlação de forças que existe num


parlamento numa determinada altura acaba por determinar uma legislação ou
outra. Alguns dos nossos entrevistados, de determinados grupos
parlamentares, não se revêem na referida lei, tendo, em consequência,
apresentado várias propostas de alteração à mesma ainda que, na sua maioria
e dada a referida correlação de forças, não tenham sido aprovadas. A sua
aprovação deveu-se, assim, ao voto favorável do Partido Socialista e à
abstenção do Partido Social Democrata, levando um dos nossos entrevistados
a afirmar que esta lei reflecte o facto de ―cada grupo parlamentar ter defendido
a sua perspectiva de defesa de interesses‖, indo ainda mais longe ao referir
que, à data, ―o PCP acusou o PS de ter feito uma lei à medida dos interesses
das seguradoras‖ (Ent. 18). O processo de produção das leis, tão contestado
relativamente a muitas matérias, é, assim, descrito:

―Estes processos legislativos são, por regra, atirados para o fim da sessão legislativa e
são feitos a correr. A Lei 98/2009, de 4 de Setembro foi feita na AR em condições muito
pouco dignas tendo em conto o processo legislativa que estava em causa porque não
havia tempo para uma discussão profunda. Apareceu no meio de um conjunto
vastíssimo de revisão legislativa. Desta forma não foi possível fazer a discussão que
era exigida” (Ent. 18).

252 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

Neste mesmo sentido, um dos outros entrevistados referiu que ―o tempo


dispensado no processo legislativo com a Lei 98/2009, de 4 de Setembro foi
muito pouco. No dia em que esta lei foi discutida no plenário da AR os grupos
parlamentares tiveram três minutos para discutir o CPT relativamente ao
trabalho de menores, o regime do trabalho ao domicílio, a LAT e os Conselhos
Europeus de Empresa‖, acrescentado ainda que ―nem um minuto deu, em
termos de debate parlamentar, para fazermos a discussão da LAT‖ e que ―foi
no final da sessão legislativa que discutimos este material pesado que viria a
ser publicado no mês de Agosto e Setembro‖ (Ent. 17).

O Projecto de Lei que este na origem da Lei 98/2009, de 4 de Setembro


foi da autoria de Jorge Strechet, Esmeralda Salero Ramires, Maria José
Gamboa e Isabel Coutinho, todos eles do Grupo Parlamentar do Partido
Socialista. Na exposição de motivos deste Projecto de Lei 786/X271 pode ler-se
que o Grupo Parlamentar do Partido Socialista, ―inspirando-se na Proposta de
Lei n.º 88/X, cujo conteúdo considera adequado, oportuno e necessário, bem
como no conjunto de audições feitas na Comissão Parlamentar de Trabalho,
Segurança Social e Administração Pública em torno da mesma‖ decidiu
apresentar o referido projecto de lei que visa regulamentar o artigo 283.º do
Código do Trabalho, relativo ao regime de reparação dos acidentes de trabalho
e doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais. O
propósito aí traçado não visa romper com o regime jurídico estabelecido quer
pela Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º
143/99, de 30 de Abril, quer pelo Decreto-Lei n.º 248/99, de 2 de Julho, quer
mesmo pelas disposições normativas constantes no anterior Código do
Trabalho entretanto revogadas, ―mas sim proceder a uma sistematização das

271
In

http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.doc?path=6148523063446f764c3246795a5868774d
546f334e7a67774c325276593342734c576c75615668305a586776634770734e7a67324c56677
55a47396a&fich=pjl786-X.doc&Inline=tru (Julho de 2010).

253 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

matérias que o integram, organizando-o de forma mais inteligível e acessível, e


corrigir os normativos que se revelaram desajustados na sua aplicação prática,
quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista constitucional e legal‖.

O projecto de lei 786/X deu, assim, entrada no dia 20 de Maio de 2009,


seguindo-se a sua aceitação, anúncio e publicação no dia 23 do memos mês
de Maio no Diário da República, II série, A, N.º 120/X/4 2009.05.23 (pág. 12-60)
e na Separata N.º 104/X/4, Separata 2009.05.30. Ainda no dia 21 de Maio de
2009, o projecto baixou à comissão competente (Comissão de Trabalho,
Segurança Social e Administração Pública), sendo votado na Reunião da
Comissão n.º 117 em 30 de Junho de 2009 e aprovado por unanimidade. O
Relatório/Parecer desta Comissão foi remetido no dia 01 de Julho de 2009 para
o Presidente da Assembleia da República. O Relator, Miguel Santos do PSD;
reservou a sua posição para a discussão em Plenário da Assembleia da
República, bem como todos os grupos parlamentares.

Entretanto, o projecto foi submetido a Audição nas Assembleias


Legislativas Regionais, tendo sido emitido um Parecer do Governo regional da
Madeira (Secretaria Regional dos Recursos Humanos), publicado no Diário da
República, II série, A, Nº.140/X/4 2009.06.24 (pág. 11-12)272, um Parecer
Comissão de Assuntos Parlamentares, Ambiente e Trabalho da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma dos Açores, publicado no Diário da República,
II série, A, Nº.154/X/4, 2009.07.09 (pág. 19-21)273 e um Parecer do Governo

272
Texto não disponível no site da Assembleia da República, com a indicação ―Documento não
disponível!‖.
273
Foi deliberado, por maioria, com os votos a favor do PS e as abstenções do PSD, do CDS-
PP e do PCP, emitir parecer favorável à aprovação do projecto de lei n.º 786/X, com a proposta
de alteração aprovada em sede de apreciação na especialidade. Esta proposta, apresentada
pelo PS e aprovada com os votos a favor do PS, do PSD e do CDS-PP e a abstenção do
Deputado do PCP, foi a seguinte:

―Artigo 184.º Regiões autónomas

254 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

Regional dos Açores, publicado no Diário da República, II série, A, Nº. 173/X/4,


2009.08.14 (pág. 68-78)274.

Assim, e como acima já se fez referência, no dia em que se procedeu à


discussão na generalidade estavam agendadas para discussão conjunta, em
Plenário o Projecto de Lei 780/X que veio estabelecer o Regime Jurídico do
trabalho no domicílio, o Projecto de Lei 781/X que trata dos Conselhos de
Empresa Europeus, o Projecto de Lei 847/X que alterou o Código de Trabalho,
assegurando uma melhor protecção do trabalho de menores e, ainda, o
Projecto Lei que temos em análise. As actas desta discussão estão publicadas
do Diário da República, I série, N.º 100/X/4 2009.07.11 (pág. 45-50). O
Deputado Mário Mourão o PS teve a palavra para apresentar o diploma, tendo,
para o efeito, dito que com aprovação destes projectos de lei e das propostas
de lei que baixaram à comissão,

―Fica concluída a reforma da legislação laboral e o País ficará dotado de um


ordenamento jurídico-laboral mais coerente e mais apto a responder aos
desafios do futuro, numa perspectiva de afirmação dos direitos dos
trabalhadores e numa óptica de competitividade e de produtividade das
empresas‖.

No que em particular respeita ao regime de reparação dos acidentes de


trabalho e doenças profissionais e fazendo salientar que não é intenção do PS
romper com passado, apresenta como

As competências atribuídas às autoridades e serviços administrativos são exercidas nas


Regiões Autónomas dos Açores e da. Madeira pelos competentes órgãos e serviços das
respectivas administrações regionais autónomas.‖
274
Foi apresentada seguinte alteração ao artigo 184.º do projecto: "Sem prejuízo das
competências legislativas próprias que as Regiões Autónomas venham a exercer sobre esta
matéria, na aplicação da presente lei são tidas em conta as competências legais atribuídas aos
respectivos órgãos e serviços regionais.‖. Foi, ainda, sugerida a introdução de um novo n.º 3 ao
artigo 168.º, sob pena de inconstitucionalidade indirecta, devendo o conteúdo do mesmo prever
que ―O produto das coimas cobradas nas Regiões Autónomas resultantes da violação das
normas de acidente de trabalho constituem receitas próprias da correspondente Região‖.

255 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

―Dimensão inovadora o regime de reabilitação e reintegração profissional das


vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais, o que passa pela
intervenção do serviço público de emprego, pela consagração do direito a um
subsídio de formação profissional ou pela readaptação do posto de trabalho,
para além de se aperfeiçoar o conceito de acidente de trabalho e de se
reconhecer ainda novos direitos aos trabalhadores, como é o caso do apoio
psicoterapêutico destinado às famílias dos sinistrados‖.

Em resposta, o Deputado Jorge Machado do PCP275, frisando uma ideia


que já foi referida, disse o seguinte:

―Hoje discutimos em 3 minutos quatro projectos de lei muito importantes. Se a


discussão na generalidade é apressada, mais apressada e inaceitável é a
discussão na especialidade, uma vez que não resta tempo suficiente para uma
discussão profunda, que, por exemplo, o diploma da reparação dos sinistrados
de trabalho merece.” Ainda sobre esta matéria este deputado afirmou que a
proposta de diploma apresentada mostra a “clara a opção do PS em construir
um diploma à medida dos interesses das seguradoras e em prejuízo dos
sinistrados ou dos trabalhadores com doenças profissionais. É inaceitável que
este diploma mantenha uma visão utilitarista dos trabalhadores. O Governo PS
considera, para alegria das seguradoras, o trabalhador como uma máquina

275
Os restantes grupos parlamentares tiveram a palavra para comentar/apresentar os restantes
projectos e propostas de lei. Assim, a Deputada Mariana Aiveca do BE teve a palavra para
apresentar o projecto de lei n.º 847/X (4.ª), do BE, a Deputada Helena Oliveira do PSD para
comentar o projecto de lei n.º 780/X, tendo ainda referido relativamente ao projecto de lei n.º
786/X em análise que ―o PSD não se opõe a esta iniciativa mas lamenta que matéria tão
sensível seja colocada em fim de mandato e de forma tão apressada e sem ponderação‖. O
Deputado Pedro Mota Soares do CDS-PP também salientou este aspecto, chamando a
atenção para o seguinte: ―Na semana passada, tivemos aqui a discussão de um conjunto de
propostas de lei do Governo muito extensas; agora temos a discussão de mais estes três
projectos de lei do PS, que também tratam de matérias sensíveis e que, do ponto de vista
técnico, levantam muitas dificuldades” e, ainda, que o Parlamento, e muito especialmente a
Comissão de Trabalho, Segurança Social e Administração Pública, vai ter de legislar sobre
estas matérias (quase 800 artigos na sua totalidade) ―literalmente a correr, sem acautelar a
necessária ponderação técnica, um período de audições, de ponderação, de apresentação de
propostas alternativas, o que objectivamente será sempre péssimo conselheiro para a forma
como se legisla nestas matérias” e que, mais grave, ―estamos a debater em 3 ou 4 minutos
matérias sobre as quais nem temos a possibilidade de colocar questões concretas ao PS‖.

256 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

que, uma vez estragada, se repara e se despacha com a menor indemnização


possível. Este diploma tem uma discriminação que, na nossa opinião, além de
inaceitável é inconstitucional”, fazendo o contraponto com uma pessoa que
sofra um acidente de viação e que vá receber uma indemnização por perda de
ganho “mas também por danos morais, estéticos e lucros cessantes, o
sinistrado de trabalho apenas recebe uma indemnização por perda de ganho,
com base no salário que auferia na altura e nada mais que isto, o que é
absolutamente vergonhoso‖.

A intervenção deste deputado criticou, ainda, o facto de, em sua opinião,


o PS não resolver o problema das remissões das pensões e permitir que se
reduza ou se elimine a compensação devida ao sinistrado em função da
atribuição de uma prótese, ―como se a deficiência ou a mazela no trabalhador
desaparecessem por via da aplicação ou atribuição dessa mesma prótese‖,
concluindo que, com este diploma, ―ganham as seguradoras, perdem todos os
trabalhadores‖.

Finda esta breve discussão, o projecto de lei n.º 786/X foi colocado à
votação na generalidade e foi aprovado, com votos a favor do PS, votos contra
do PCP, do BE, do PEV e de uma Deputada não inscrita e as abstenções do
PSD, do CDS-PP e de um Deputado não inscrito. Assim, no dia 10 de Julho de
2009, o projecto de lei baixou à comissão de especialidade (Comissão de
Trabalho, Segurança Social e Administração Pública), tendo o respectivo
relatório de discussão e votação sido publicado no Diário da República, II série,
N.º 166/X/4 2009.07.25 (pág. 34-109)276.

276
In

http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=34568
(Julho de 2010)

257 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

Segundo um dos nossos entrevistados só em sede de discussão na


especialidade houve oportunidade de se fazer uma discussão mais
aprofundada. No entanto, salienta, ―o regime que passou a continuar a
perspectivar o trabalhador como mera entidade económica produtiva‖ (Ent. 17).

No final da votação na especialidade, o PSD apresentou a seguinte


declaração de voto:

―O Partido Social Democrata protesta mais uma vez pela forma intempestiva,
imponderada e apressada como o Partido Socialista pressiona a Assembleia
da República, com base na maioria absoluta de que dispõe, para fazer aprovar,
em fim de Legislatura, mais este diploma. Na verdade, a complexidade e
melindre que a regulamentação destas matérias implica exigem uma aturada
maturação e sopesamento das diversas soluções possíveis, por forma a
assegurar uma boa técnica legislativa e uma boa solução para a economia,
empregadores e trabalhadores. Ao coarctar um debate amplo e com tempo,
profundo e esclarecido, o Partido Socialista atropela os fundamentos básicos
do sistema democrático ao fazer refém da sua maioria a discussão parlamentar
e, ao escolher o agravamento das onerações sobre o trabalho e as empresas,
prejudica a economia, os empregadores e os trabalhadores, em suma o País‖.

O texto final que resultou da Comissão de Trabalho, Segurança Social e


Administração Pública foi votado na Reunião Plenária n.º 105 e aprovado, mais
uma vez, com os votos a favor do PS, os votos contra do PCP, do BE, do PEV
e de uma Deputada não inscrita e as abstenções do PSD, do CDS-PP e de um
Deputado não inscrito. Posteriormente enviado para promulgação e publicado
no dia 04 de Setembro de 2009 (Diário da República, I série, N.º 172/X/4 (pág.
5894-5920).

258 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

2.1. Prestações suplementares e abaixamento do


referencial de reparação

Na perspectiva de grande parte dos nossos entrevistados não houve


grandes avanços em relação à lei anterior, tendo mesmo esta nova lei piorado
relativamente a alguns aspectos que passaremos a destacar. Como referimos
no Capítulo 2, para além das indemnizações e das pensões, podem ainda ser
atribuídos ao sinistrado subsídios ou prestações suplementares em
determinadas situações, nomeadamente uma prestação suplementar para
assistência por terceira pessoa ou um subsídio para a readaptação da
habitação ou por situação de elevada incapacidade permanecente. Até à
entrada em vigor da nova LAT (Lei 98/2009 de 4 de Setembro) o referencial de
cálculo para a atribuição destas prestações suplementares ou subsídios era a
remuneração mínima mensal garantida277.

Actualmente a situação alterou-se e o referencial em causa deixou de


ser a remuneração mínima mensal garantida e passou a ser o indexante dos
apoios sociais (IAS). Assim, resulta do n.º 1 do artigo 54.º278, bem como do n.º

277
Cf. N.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro: ―1 - Se, em consequência da
lesão resultante do acidente, o sinistrado não puder dispensar a assistência constante de
terceira pessoa, terá direito a uma prestação suplementar da pensão atribuída não superior
ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço
doméstico”. Ou, ainda, o artigo 24.º do mesmo diploma legal que refere que ―A incapacidade
permanente absoluta confere direito ao pagamento das despesas suportadas com a
readaptação de habitação, até ao limite de 12 vezes a remuneração mínima mensal
garantida mais elevada à data do acidente” e o artigo 23.º onde se pode ler que ―A
incapacidade permanente absoluta ou a incapacidade permanente parcial igual ou superior a
70% confere direito a um subsídio igual a 12 vezes a remuneração mínima mensal
garantida à data do acidente, ponderado pelo grau de incapacidade fixado, sendo pago de
uma só vez aos sinistrados nessas situações‖.
278
O referido normativo dispõe da seguinte forma: ―1 - A prestação suplementar da pensão
prevista no artigo anterior é fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de
1,1 IAS‖. No n.º 4 do mesmo dispositivo legal refere-se que as prestações suplementares são
anualmente actualizáveis na mesma percentagem em que o for o IAS.

259 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

2 do artigo 68.º279 e o artigo 67.º280, todos da Lei 98/2009 de 4 de Setembro.


Segundo um dos magistrados entrevistados esta alteração vem prejudicar
substancialmente os sinistrados uma vez que temos agora ―um referencial mais
baixo e, portanto, todas estas prestações e subsídios vão ter valores mais
baixos daqueles que tinham até à entrada em vigor da nova LAT‖ (Ent. 28). Na
prática, podemos concluir que este ano, por exemplo, temos um salário mínimo
nacional de 475,00 euros e um indexante para apoios sociais que ronda os
420,00 euros. E, portanto, 1,1 do indexante dos apoios sociais perfaz, este ano,
461,00 euros. Temos, assim, um abaixamento real de 475,00 euros para
461,00 euros em termos de referencial para cálculo daquelas prestações ou
subsídios.

Em matéria de prestação suplementar para assistência por terceira


pessoa também se registaram algumas pequenas alterações. Uma primeira,
apontada por um dos nossos entrevistados como sendo de difícil entendimento
e alcance prático, prende-se com o facto de a lei anterior fazer uso da
terminologia assistência constante e a lei ter substituído essa expressão por
assistência permanente. A questão que se poderá vir a colocar em
consequência desta mera alteração de terminologia é a seguinte: será que a
intenção do legislador era a de passar a exigir que o sinistrado necessite de

De acordo com este normativo: ―2 - No caso previsto no número anterior, o sinistrado tem
279

direito ao pagamento das despesas suportadas com a readaptação de habitação, até ao limite
de 12 vezes o valor de 1,1 IAS à data do acidente‖.
280
Neste sentido:

―2 - A incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho confere ao sinistrado o


direito a um subsídio igual a 12 vezes o valor de 1,1 IAS.
3 - A incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual confere ao beneficiário direito
a um subsídio fixado entre 70 % e 100 % de 12 vezes o valor de 1,1 IAS, tendo em conta a
capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível.
4 - A incapacidade permanente parcial igual ou superior a 70 % confere ao beneficiário o
direito a um subsídio correspondente ao produto entre 12 vezes o valor de 1,1 IAS e o
grau de incapacidade fixado.
5 - O valor IAS previsto nos números anteriores corresponde ao que estiver em vigor à
data do acidente”.

260 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

assistência de 24 horas por dia ou de um qualquer outro período mínimo, para


aplicação deste normativo? Outra alteração nesta matéria é a referência
expressa que se passou ao montante mensal. Aquele mesmo magistrado
salientou que, em consequência desta pequena alteração, ―deixa de poder
fazer-se a interpretação que também é devida a essa pessoa a retribuição do
subsídio de férias e do subsídio de Natal‖ e que, na prática, ―o que vai
acontecer com estas novas condições é que deixa de ser viável encontrar
pessoas dispostas a prestar este tipo de serviço‖ (Ent. 28), levando a que, com
ainda mais frequência, o que acabe por acontecer é que um dos cônjuges, por
regra a mulher, deixe de trabalhar para tomar conta do outro.

Consultadas as actas referentes à votação na especialidade podemos


constar que, no que toca ao montante da prestação suplementar para
assistência a terceira pessoa, foram apresentadas pelo PCP propostas de
substituição da expressão ―o valor de 1,1 IAS‖ por ―duas vezes a retribuição
mínima mensal garantida‖ e de ―o IAS‖ por ―a retribuição mínima mensal
garantida‖, tendo as mesmas sido rejeitadas com voto contra do PS, abstenção
do PSD e do CDS-PP e votos a favor do PCP e do BE281.

Acerca desta temática e da relevação exclusiva da capacidade de ganho


enquanto dano indemnizável a que mais à frente faremos referência, podemos,
desde já, remeter para o parecer da CGTP-IN à Proposta de Lei 786/X282, que,
discordando com esta opção, sublinhou ser

281
In

http://app.parlamento.pt/DARPages/DAR_FS.aspx?Tipo=DAR+II+s%c3%a9rie+A&tp=A&Nume
ro=166&Legislatura=X&SessaoLegislativa=4&Data=2009-07-25&Paginas=34-
109&PagIni=0&PagFim=0&Observacoes=Relat%c3%b3rio+da+discuss%c3%a3o+e+vota%c3
%a7%c3%a3o+na+especialidade+e+texto+final&Suplemento=.&PagActual=7&PagGrupoActual
=0&TipoLink=0&pagFinalDiarioSupl= (Julho de 2010).
282
Apreciação da CGTP-IN da Proposta de Lei n.º88/X que regulamenta os artigos 281º a 312º
do Código do Trabalho, relativos a acidentes de trabalho e doenças profissionais.

261 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

―Totalmente inaceitável a substituição do salário mínimo nacional pela pensão


mínima mais elevada do regime geral como indexante das prestações por
acidente de trabalho e doença profissional, na medida em que implica uma
injustificada redução de um conjunto de prestações atribuíveis os sinistrados do
trabalho e actualmente fixadas em múltiplos do salário mínimo.‖283

2.2. Revisão das incapacidades

A Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro afastou a regra que determinava


que uma pensão por acidente de trabalho só podia ser revista nos 10 anos
posteriores à sua fixação. Assim, passou a ser possível a sua revisão a todo o
tempo, podendo ser requerida uma vez em cada ano civil 284. Todavia, como a
nova LAT só se aplica aos acidentes de trabalho que tenham ocorrido após a
sua entrada em vigor285, ou seja, depois do dia 01 de Janeiro de 2010286,
também a alteração referente à matéria de revisão só se aplicará nos
processos iniciados após aquela data e não nos anteriores.

283
Merece ainda sublinhar-se que, quanto ao regime de remição de pensões a que a seguir
faremos referência, esta força sindical propõem a ―autonomia da vontade dos beneficiários‖,
evitando assim as conhecidas penalizações constitutivas desta modalidade.
284
Cf. Artigo 70.º:

―1 - Quando se verifique uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado


proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem
à reparação, ou de intervenção clínica ou aplicação de ajudas técnicas e outros dispositivos
técnicos de compensação das limitações funcionais ou ainda de reabilitação e reintegração
profissional e readaptação ao trabalho, a prestação pode ser alterada ou extinta, de harmonia
com a modificação verificada.
2 - A revisão pode ser efectuada a requerimento do sinistrado ou do responsável pelo
pagamento.
3 - A revisão pode ser requerida uma vez em cada ano civil‖.
285
Cf. Artigo 187.º Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.
286
Cf. Artigo 188.º Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.

262 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

Como nos referiu um dos magistrados entrevistados, poder-se-á colocar


aqui um problema de inconstitucionalidade (Ent. 28). Tanto assim é que o
Tribunal Constitucional já apreciou o referido artigo 70.º, tendo-a considerado
inconstitucional num caso concreto, mas não com força obrigatória geral.
Segundo aquele nosso entrevistado a questão que se coloca é de

―Saber se esta norma não se traduz num tratamento desigual do sinistrado


fundamentado apenas no facto de um trabalhador ter tido um acidente em 2009 e de
um outro trabalhador ter tido o acidente em 2010, sendo certo que se trata de uma
situação que se prolonga no tempo e que os seus efeitos não se cingem ao momento
do acidente‖. (Ent. 28)

Para outro dos nossos entrevistados (Ent. 18) esta alteração legislativa
pode ter associado um objectivo pernicioso dado que, ―com a evolução médica,
um sinistrado que receba, por exemplo, uma prótese e se esta lhe der
capacidade de ganho, o que pode vir a acontecer é que esse sinistrado deixe
de ter direito a uma pensão‖. Ou seja, é como se o sinistrado não tivesse
sofrido um acidente de trabalho dado que, adquirindo a capacidade de ganho,
este deixa de ser sinistrado.

2.3. Danos indemnizáveis e danos não indemnizáveis

Uma crítica que a grande maioria dos nossos entrevistados deixou


relativamente à Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro prende-se com o facto de
desta não ter alterado a matéria dos danos indemnizáveis e não indemnizáveis.
Ou seja, é consensual a ideia de que se desperdiçou uma oportunidade única
para repensar a opção legislativa que vai no sentido da não indemnização dos
danos não patrimoniais no âmbito dos acidentes de trabalho. A travagem da
possibilidade de indemnização dos danos não patrimoniais em sede laboral

263 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

representa, para além de uma reacção preventiva ao potencial aumento de


custos sem equivalente aumento da receita em prémio de seguro 287, uma
forma de evitar a introdução de custos imprevisíveis no sistema, à semelhança
do que acontece na justiça cível. Os acidentes in itinere constituem um ângulo
sociológico interessante, de forma a compreender esta retórica.

―E se eu lhe disser que a maior parte dos acidentes de trabalho são in itinere? (…) São
remunerados para correr esse risco também, não é? Portanto, temos que encarar as
coisas. Veja do outro lado. A entidade empregadora não contribuiu nada para o
acidente, ele ocorreu e ainda quer que a entidade empregadora seja responsável por
danos morais, para os quais não teve nenhum contributo?” (Ent. 21)

A ideia de que a remuneração é proporcional ao risco corrido constitui


uma armadilha epistemológica facilmente desconstruível através da análise dos
padrões salariais nos sectores de actividade mais expostos ao risco: indústria
transformadora e construção civil. Mas é com base nas garantias oferecidas
pela objectivação do risco em sede laboral que se subtrai a responsabilidade
pela cobertura de danos não patrimoniais, indemnizando-se apenas
parcialmente o sinistrado. A lógica gestionária e normalizadora é, também, um
argumento:

―A APS sempre se manifestou contrária à indemnização dos danos morais. Até porque
eles não são objectivos. Não são danos objectivos, são danos subjectivos. O regime de
acidentes de trabalho é todo ele um regime objectivado. Ele não tem litigiosidade
quanto ao valor da indemnização, ela está perfeitamente regularizada e controlada.
Introduzir litigiosidade nessa vertente é introduzir morosidade, é introduzir dificuldade
sem que as pessoas sejam indemnizadas o mais rapidamente possível.‖ (Ent. 23)

A reparação do corpo lesado é condicionada pela celeridade,


regularidade e normalização. A lógica biopolítica ganha assim fôlego analítico
na compreensão do fenómeno, da prática e da racionalidade seguradora.
Segundo um dos nossos entrevistados esta solução legislativa pode conduzir à

287
Devido ao seu impacto e às resistências do tecido económico.

264 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

ideia de que ―A actividade legislativa ficou capturada por interesses


económicos privados das seguradoras‖, prosseguindo afirmando a intervenção
parlamentar se continua a justificar nesta matéria de forma a aproximar a
legislação laboral das normas constitucionais, bem como para requerer ao
Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva de normas que possam ser
alvo de um juízo de inconstitucionalidade (Ent. 19).

Esta matéria foi discutida em sede de debate da especialidade, tendo o


PCP confrontado o PS com esta questão e deixando claro que não concordava
com esta opção política. Neste sentido, é de fazer referência ao facto de, para
o actual artigo 47.º sob a epígrafe ―Modalidades‖, ter sido apresentada pelo
PCP uma proposta de aditamento de uma nova alínea b) do seguinte teor: ―A
indemnização por danos não patrimoniais‖. Esta proposta foi rejeitada, com a
seguinte votação: PS — Contra, PSD — Abstenção, PCP — Favor, CDS-PP —
Abstenção, BE — Favor. Assim o referido artigo 46.º do projecto de lei foi
aprovado com o seguinte resultado com os votos s favor do PS, a abstenção
do PSD e do CDS-PP e os votos contra do PCP e do BE288.

Todavia, o resultado legislativo não se alterou e, portanto, segundo um


dos nossos entrevistados, optou-se ―deliberada e conscientemente, por manter
a discriminação que se regista nesta matéria. Assim, se duas pessoas sofrerem
o mesmo acidente estas recebem indemnizações diferentes consoante se
encontrem ou não a trabalhar‖ (Ent. 18). Este mesmo entrevistado não deixou
de realçar que, em sua opinião, ―esta descriminação, que apenas serve os
interesses das seguradoras, é inconstitucional e imoral‖, tratando-se de uma

288
In

http://app.parlamento.pt/DARPages/DAR_FS.aspx?Tipo=DAR+II+s%c3%a9rie+A&tp=A&Nume
ro=166&Legislatura=X&SessaoLegislativa=4&Data=2009-07-25&Paginas=34-
109&PagIni=0&PagFim=0&Observacoes=Relat%c3%b3rio+da+discuss%c3%a3o+e+vota%c3
%a7%c3%a3o+na+especialidade+e+texto+final&Suplemento=.&PagActual=5&PagGrupoActual
=0&TipoLink=0&pagFinalDiarioSupl= (Julho de 2010)

265 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

desvalorização da pessoa apenas pelo factor trabalho ―como que se quem


esteja a trabalhar fosse menos cidadão, tivesse menos direitos‖. Por fim, é de
salientar que ainda que o artigo 18.º da nova LAT preveja que assim não seja
nas situações em que haja uma actuação culposa da entidade empregadora, a
verdade é que a prova desta culpa é extremamente difícil.

Como também já referimos, no cálculo dos danos indemnizáveis (danos


corporais que produzam incapacidade de ganho e para o trabalho) no âmbito
dos acidentes de trabalho não é considerada a retribuição integral do
sinistrado. Como referiu um dos nossos entrevistados, ainda que a entidade
empregadora tenha que ―transferir, obrigatoriamente a sua responsabilidade
indemnizatória para a seguradora e, para o fazer, tem que declarar a
retribuição integral do sinistrado‖, sendo com base neste montante que a
seguradora vai cobrar os prémios de seguro ao empregador, a verdade é que
―no momento de reparação dos danos por parte da seguradora, a lei limita essa
reparação a 70% da retribuição integral do sinistrado‖ (Ent. 28). Ou seja, a
regra é a de que, para o cálculo indemnizatório, só são considerados 70% da
retribuição do sinistrado e não os 100% transferidos para a seguradora.

Assim, com excepção do que está previsto para os casos raros de


incapacidades absolutas e permanentes para todo e qualquer trabalho em que
a referência para o cálculo indemnizatório são 80% da retribuição e, ainda, nos
casos de incapacidade temporárias absolutas que, de acordo com a nova LAT,
quando ultrapassem os 12 meses, devem ter como referência os 75% da
retribuição do sinistrado (art. 48.º), o cálculo dos valores indemnizatórios é feito
com base em 70% do valor da retribuição do sinistrado. Tal equivale a dizer,
como conclui aquele nosso entrevistado, que ―mesmo nos danos indemnizáveis
não se considera a totalidade do prejuízo sofrido pelo sinistrado‖ (Ent. 28).

266 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

3. A REMIÇÃO OBRIGATÓRIA DE PENSÕES:


OBJECTIVOS E IMPACTOS

Um outro aspecto a realçar é a alteração legislativa segundo a qual a


opção por remir as pensões deixou de estar na disponibilidade do sinistrado,
passando a ser obrigatória (Portaria n.º 11/2000, de 13 de Janeiro). Assim,
desde 2000 que, para as incapacidades inferiores a 30%, passou a ser imposto
aos sinistrados remir as suas pensões289. A esta alteração estão subjacentes
ganhos para as seguradoras que se reflectem, desde logo, na ausência de
custos administrativos com a manutenção do processo. Também nesta data a
actualização das pensões deixou de ser indexada ao salário mínimo nacional e
passou a ser indexada ao valor das pensões do regime geral da segurança
social290. E, como o valor destas últimas é inferior ao dos salários mínimos
nacionais, baixaram, por consequência, os patamares de referência
indemnizatória.

Em consequência a esta alteração legal a Associação Nacional dos


Deficientes Sinistrados no Trabalho (ANDST), em Nota à Imprensa (n.º

289
Com a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro estabeleceu-se no n.º 1 do artigo 33.º que
passavam a ser obrigatoriamente remidas as pensões vitalícias de reduzido montante. No n.º 2
do mesmo normativo fixou-se que ―podem ser parcialmente remidas as pensões vitalícias
correspondentes a incapacidade igual ou superior a 30%, nos termos a regulamentar, desde
que a pensão sobrante seja igual ou superior a 50% do valor da remuneração mínima mensal
garantida mais elevada, nos termos que vierem a ser regulamentados‖. Esta matéria foi
posteriormente regulamentada pela referida Portaria n.º 11/2000, de 13 de Janeiro, tendo sido
aprovadas as bases técnicas aplicáveis ao cálculo do capital de remição das pensões de
acidentes de trabalho e aos valores de caucionamento das pensões de acidentes de trabalho a
que as entidades empregadoras tenham sido condenadas ou a que se tenham obrigado por
acordo homologado, bem como, as respectivas tabelas práticas. A mais disto estabeleceu-se
que ―a iniciativa da remição obrigatória das pensões em pagamento cabe ao Ministério Público,
devendo as empresas de seguros, nos casos de pensões a seu cargo, remeter aos tribunais de
trabalho listagens relativas aos pensionistas com indicação do valor actualizado da pensão por
pensionista‖.
290
Cf. Artigo 6.º do DL 142/99, de 31 de Agosto.

267 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

01/08)291, pronunciou-se sobre a injustiça em que considera traduzir-se este


regime legal. Após o 25 de Abril, as pensões devidas por acidente de trabalho
ou doença profissional foram actualizadas com a promulgação do Decreto-lei
668/75 de 24 de Novembro, sendo a sua actualização indexada à actualização
ao salário mínimo nacional. Assim, a partir dessa data e até ao ano de 2000,
sempre a actualização destas pensões se fez com base na percentagem de
aumento do salário mínimo nacional. Em 1999, o Instituto Nacional de Seguros
veio propor que as pensões passassem a ser actualizadas em conformidade
com as actualizações das pensões do regime geral da segurança social e esta
proposta veio a concretizar-se na publicação do Decreto-lei nº 142/99 de 30 de
Abril e Decreto-Lei nº 143/99, da mesma data. Ora, como se pode ler naquela
nota à imprensa, desde 1999 que as pensões perdem poder de compra,
concluindo, ainda, que

―Mais uma vez os estranhos interesses dos grandes grupos económicos, em


que se integram as seguradoras, têm a protecção do Estado que, antes, devia
assegurar a melhoria de condições de vida daqueles que tiveram o infortúnio
de ficarem incapacitados e cuja capacidade de trabalho e de ganho fica
seriamente ameaçada e, em alguns casos, mesmo impossibilitada‖.

Para além desta perda directa de capital para os sinistrados e da


redução de custos das seguradoras, é de referir uma outra consequência: a
desestruturação da organização familiar. Muitos dos sinistrados e as suas
famílias que, de um momento para o outro, receberam o capital remido, tiveram
dificuldades em saber gerir esta nova realidade, acabando, não raras vezes,
por gastar aquelas quantias de forma pouco razoável e passando a viver com
maiores dificuldades dado deixarem de auferir, mensalmente, uma quantia que

291
In

http://www.cnod-deficientes.org/semanario/ANEXO%2001%20(SEM.%2020_08).pdf (Julho de
2010)

268 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

fazia parte do orçamento familiar. Ou seja, sinistrados que, apesar de ter sido
decidido judicialmente que teriam direito a uma pensão vitalícia, acabaram por
ver a sua pensão transformada numa quantia única, calculada segundo
critérios de idade e que, portanto, fazem pressupor um critério baseado na
expectativa de vida doa mesmos.

Mais tarde veio o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 58/06 292,


considerar o regime disposto no artigo 56.º, alíneas a) do Decreto-Lei n.º
143/99, ou seja, a remissão total obrigatória e, portanto, independentemente da
vontade do seu titular e nos casos em que grau de incapacidade seja superior
a 30 %, inconstitucional, por ofender o princípio consagrado no artigo 59.º, n.º 1
alínea f) da Constituição da República Portuguesa que estabelece a justa
reparação por acidentes de trabalho. O que estava em causa era o facto de um
tribunal emitir uma decisão atribuindo ao trabalhador uma pensão vitalícia, ou
seja, até à data em que o sinistrado morra, então não caberia ao legislador
passar por cima dessa decisão e impor a remição da mesma atendendo, para
tal, a critérios de expectativa de vida. Neste sentido pode ler-se no referido
acórdão que

―Quando em causa estiverem acidentes de trabalho cuja gravidade


acentuadamente diminuiu a capacidade laboral do sinistrado e, reflexamente, a
possibilidade de auferir salário condigno com, ao menos, a sua digna
subsistência, servindo a pensão de complemento à parca (e por vezes nula)
remuneração que aufere em consequência da reduzida capacidade de
trabalho, então a aplicação de um capital, mesmo que no momento em que é
feito aparente ser um investimento adequado, porquanto proporcionador de um
rendimento mais satisfatório do que o correspondente à percepção da pensão
anual, é sempre algo que, por ser aleatório, comporta riscos. Neste último tipo
de situações, tornar legalmente obrigatória a remição significaria privar o

292
In http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060058.html (Julho de 2010)

269 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

trabalhador da faculdade de ponderar se é menos arriscado continuar a


receber a pensão e recusar a remição, impondo-lhe a assunção de um risco
que, com a extensão que a dimensão normativa admite, torna precário e limita
o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, quando vítimas de acidente
de trabalho‖.

4. DO RENDIMENTO REAL AO RENDIMENTO


FISCALMENTE DECLARADO

No âmbito do direito civil, em particular da sinistralidade rodoviária, a


Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio passou a fazer referência ao rendimento
fiscalmente declarado. Aparentemente esta é uma solução justa. De acordo
com Alvarez Quintero (2004), em sua defesa,

―O desequilíbrio entre a indemnização por danos morais e patrimoniais vigente


no nosso sistema, num contexto de impunidade penal, incentiva o recurso a
expedientes vários para obter indemnizações superiores. Como o recurso
sistemático a rendimentos “extras” fiscalmente não declarados, a fabulação de
rendimentos futuros (praticantes de desporto que chegariam a ser campeões
na sua especialidade…) ou a transmutação abusiva de incapacidades
genéricas (que implicam um dano moral, que pode ser importantíssimo) em
incapacidades profissionais (porque são as que determinam a perda de
rendimentos)‖.

270 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

Porém, como referiu um dos nossos entrevistados, ―temos que aferir a


justiça pela sociedade concreta que temos e pelos nossos padrões de vida
social” (Ent. 29) e, não podemos esquecer que, por exemplo, ―ainda hoje uma
parte substancial da nossa população desenvolve actividades agrícolas
complementares”. Assim, o cidadão incapacitado deixa também de as poder
fazer, como deixa de poder realizar muitas outras actividades que contribuíam
para o proveito comum do seu agregado familiar. Sendo certo que todas essas
actividades complementares têm valor económico porque, ou o sinistrado deixa
de contar com esse rendimento complementar, ou tem que contratar alguém
para as passar a desempenhar. Portanto, estamos a referir-nos a actividades
que, ainda que complementares, têm relevância económica e que, diga-se,
são, até à data, frequentemente consideradas pelos nossos tribunais aquando
do cálculo para a atribuição de indemnizações ao sinistrado.

Por outro lado, um pedreiro, por exemplo, pode fazer obras na sua
própria casa. Dessa actividade advém um rendimento que o sinistrado perde
mas que, todavia, não é considerado fiscalmente. Esta solução legal vem,
portanto, e como salienta um dos nossos entrevistados ―tentar fazer com que
não se atenda a uma solução equitativa atendendo à realidade concreta‖,
acrescentando, ainda, que, na prática, ―o legislador tenta impor limites ao que
integra o direito de indemnização, estabelecidos de forma consolidada no CC e
sobre os quais a jurisprudência se pronunciava, em regra, de forma adequada
e satisfatória‖ (Ent. 29).

Danos Futuros

A matéria dos danos futuros também teve um novo tratamento dado pela
Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio. Até esta data, a nossa jurisprudência, de
forma consolidada, entendia que no cálculo dos danos futuros deveria ser
devidamente ponderado todo o circunstancialismo, defendendo-se, ainda, que
mesmo quando não há perda de rendimento concreto podem ser atribuídos

271 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

danos futuros. Todavia, no preâmbulo daquele diploma legal lê-se, que ―uma
das alterações de maior impacte será a adopção do princípio de que só há
lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação
incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional
habitual ou qualquer outra‖. Esta nova orientação, nas palavras de um dos
nossos entrevistados é uma ―machadada na nossa jurisprudência‖ (Ent. 29).

No entanto, como refere esse mesmo entrevistado, um acórdão recente


do STJ (Junho de 2010) e já proferido no âmbito desta legislação, defende que,
independentemente de poder até admitir-se a possibilidade de o autor não vir a
ter qualquer prejuízo de carácter patrimonial em consequência da incapacidade
permanente, a verdade é que esta repercutir-se-á residualmente em diminuição
da condição e capacidade física, da capacidade de resistência, da capacidade
de realizar certos esforços e da correspondente necessidade de esforços
suplementares para obtenção do mesmo resultado. Este acórdão vem, assim,
consolidar o referido entendimento dos tribunais superiores, segundo o qual há
sempre uma penosidade que não pode deixar de ser valorada. Ainda nas
palavras no nosso entrevistado ―o que se pretende realçar com aquele acórdão
é o primado das regras de equidade e do livre arbítrio do julgador, sem as
quais se esvazia de conteúdo a função de julgar” (Ent. 29). Resta esperar para
ver se a nossa jurisprudência vai continuar na senda deste entendimento já há
muito sedimentado, ou se, pelo contrário, atenta àquela nova orientação,
progressivamente se vai afastar do mesmo.

272 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

5. UMA PROPOSTA RAZOÁVEL NUM CONTEXTO


IRRAZOÁVEL

Embora verificada essa diminuição dos acidentes rodoviários, segundo


Alvarez Quintero (2004), da Império-Bonança, o sistema de indemnizações
caminha para a ruptura e a sustentabilidade financeira das seguradoras ver-se-
á agravada com a entrada em vigor da 5ª Directiva, pelo facto de,
alegadamente, as provisões não serem suficientes para pagar os sinistros.
Apear de tudo, segundo números da própria Associação Portuguesa de
Seguradores, de 2003 a 2005 é decrescente a evolução dos custos com os
sinistros. Estes números, porém, são confrontados, segundo o ramo, por um
acréscimo na ordem dos 4% (2006) dos custos médicos, sobretudo relativos a
danos corporais, a que se acrescentam aumentos significativos nas
indemnizações por morte e danos morais decorrentes:

―Em consequência, os custos exclusivamente de danos corporais


(indemnizações por danos patrimoniais e morais, despesas médicas e outras
despesas) representam já mais de 40% do custo total da Responsabilidade
Civil, quando apenas 7% do número de acidentes totais envolve danos
corporais (incluindo atropelamentos).‖

São três, no entender de Quintero, as soluções possíveis para a suposta


crise no sector segurador: a redução do número e da gravidade dos sinistros; o
aumento dos prémios de seguro; ou uma reforma do sistema de indemnização.
Sendo naturalmente uma perspectiva comprometida, não deixa de ser
significativo o facto de se verificar uma correlação inversa entre o nível de
riqueza dos estados e a respectiva segurança rodoviária, o que produz um
impacto particular no sistema de seguro dos riscos e na qualidade da
reparação dos danos. O investimento na redução da sinistralidade aparenta
ser, nesse sentido, um objectivo comum às diferentes partes: seguradoras e

273 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

cidadãos. Mas se o controlo sobre a sinistralidade é difícil, a sustentabilidade


deverá ser conseguida de outro modo.

Como já referimos no capítulo referente ao enquadramento legal, com o


Novo Regime de Responsabilidade Civil Automóvel293, foi imposto às
Seguradoras que, sempre que lhe seja comunicada a ocorrência de um sinistro
automóvel, comuniquem ao sinistrado a assunção ou não da sua
responsabilidade, bem como dos montantes que estão dispostas a oferecer-lhe
em termos de indemnização. Nos termos do n.º 1 do artigo 39.º desse mesmo
diploma legal, a posição aí assumida pela seguradora consubstancia-se numa
proposta razoável de indemnização.

Um dos problemas frequentemente apontados a esta nova solução legal


é o de que a Proposta Razoável é vendida pelas seguradoras como uma
Proposta Legal, levando a que uma parte significativa dos sinistrados de
acidente de viação não procure informação juridicamente fundamentada sobre
os seus direitos e aceite a proposta da seguradora, ainda que desadequada à
situação concreta. Segundo um dos nossos entrevistados isto acontece por
duas ordens de razão. Por um lado, porque sendo aquela proposta vendida
pelas seguradoras como sendo uma proposta legal, então

―Não vale a pena ir gastar dinheiro com advogados uma vez que o sinistrado não tem
mais direitos do que os aí plasmados”; e, por outro, porque as seguradoras recorrem
ao argumento da morosidade da justiça e “o sinistrado convence-se que não lhe
compensa recorrer aos tribunais‖. (Ent. 29)

Em consequência e a pretexto de que com esta inovação se acelera a


resolução do conflito criando, assim, benefícios para o sinistrado, o que
acontece, na opinião de muitos dos nossos entrevistados, é que o legislador

293
Cf. Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto que transpôs a 5.ª Directiva Automóvel.

274 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

acabou por criar armas a favor das seguradoras e contra o efectivo e integral
ressarcimento dos danos sofridos pelo sinistrado.

―Há casos concretos em que a Proposta Razoável de indemnização, após a


intervenção do advogado aumenta significativamente e, em sede de julgamento, esse
aumento conseguido mantém-se‖. (Ent. 29)

Assim, e no contexto recente de desvalorização do papel dos Tribunais,


foi-nos muitas vezes referido pelos nossos entrevistados de que deve encarar-
se com reserva o protagonismo atribuído à proposta razoável feita pelas
entidades seguradoras. Esta reserva resulta, desde logo, do facto de apenas o
universo segurador ter estado presente na elaboração dos critérios de tais
propostas. Mas, também, resulta da convicção, manifestada também pela
maioria dos nossos entrevistados, de que os mecanismos conciliadores, como
pretende ser a proposta razoável, deverem estar reservados apenas ao
domínio restrito da resolução extra-judicial dos conflitos e, mesmo aqui, aplicar-
se sobretudo aos conflitos de menor gravidade. Segundo um dos nossos
entrevistados,

―Nesta matéria em que estão em causa para as companhias de seguros volumes


elevados de encargos financeiros, a estratégia a seguir revela-se clara: a aposta na
desjudicialização do conflito, procurando encerrá-lo a montante da possibilidade
jurisdicional através de um simplificado e expedito mecanismo de fixação do dano em
que a vítima, no confronto com a poderosa parte contrária, é empurrada para um
montante indemnizatório sem que disponha do apoio técnico de um jurista e
descartando o recurso a um terceiro imparcial‖. (Ent. 27)

Caso aquelas reservas não sejam tidas em consideração arriscamo-nos


a avançar num caminho sem volta pelo qual, ao fugir da orientação da
reparação do dano atendendo à lógica única e irrepetível do caso concreto,
chagar-se-á a uma nova realidade em que vingam os padrões niveladores que
abstractamente mensuram a dor humana. Neste sentido, um dos nossos
entrevistados conclui que

275 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

―Constitui um perigo real na efectivação da protecção dos direitos fundamentais dos


cidadãos, vítimas de sinistros, no âmbito civil ou laboral, a tentação de uma formatação
abstracta na fixação destas indemnizações”. (Ent. 27)

Em suma, as novas tabelas indicativas de indemnização constituem,


assim, um instrumento de governação biopolítica da reparação, visando
fomentar e regularizar os acordos extra-judiciais, desmotivando o recurso aos
tribunais e jogando, em larga medida, com os aspectos negativos que se lhe
encontram associados: será preferível uma indemnização mais baixa mas
agora que uma indemnização maior, incerta e morosa. Para além disso,
normas recentes apontam para ser tomada como base de rendimento das
declarações fiscais, o que, fazendo prevalecer o princípio da legalidade,
descuida o princípio da reparação integral do dano. Constitui, no entanto, uma
ferramenta essencial para emprestar celeridade e automatismo ao processo.

6. A REVISÃO DA TABELA NACIONAL DE


INCAPACIDADES

O Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, aprovou a revisão da


Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e, ainda, a nova
Tabela Indicativa para a Avaliação da Incapacidade em Direito Civil. Como se
percebe pelo seu conteúdo, ambas as tabelas são documentos de elaboração
muito complexa e de intervenção técnica delicada. A Tabela Nacional de

276 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

Incapacidades por Acidentes de Trabalho são apelidadas por alguns dos


nossos entrevistados como ―as tabelas das seguradoras‖, por, sucessivamente,
deixarem de reflectirem a salvaguarda dos interesses dos sinistrados.

―Entre a tabela de 1993 e esta tabela de 2007 há alterações muito prejudiciais para os
sinistrados‖ (Ent 15).

Nesta nova Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de


Trabalho temos previstas, por exemplo, as seguintes situações:

Uma fractura da clavícula consolidada e com ligeira deformação: 0% de


incapacidade;
A amputação de 50% da terceira falange do dedo auricular (mindinho): 0%
de incapacidade.

Tal vale dizer que se um sinistrado do trabalho tiver sofrido uma destas
lesões não terá direito a ser indemnizado uma vez que estas, de acordo com a
TNI de 2007, não reapresentam qualquer incapacidade para o trabalho. A isto
acresce que, como já referimos, os trabalhadores desenvolvem muitas vezes
outras actividades das quais podem obter rendimentos. A lesão que resultar do
acidente pode prejudicar os ganhos daí decorrentes, não estando, todavia,
prevista uma avaliação pericial e a consequente reparação desses prejuízos.

Se, por outro lado, quisermos comparar a TNI de 1993 e a TNI de 2007,
relativamente ao aparelho locomotor, temos o seguinte panorama regressivo:

277 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

Lesões TNI de 1993 TNI de 2007

Coluna vertebral – apenas com raquialgia 0,05 a 0,15% 0,02 a 0,10%


residual (de acordo com objectivação da dor)

Coluna vertebral – fractura de um ou mais 0,025 a 0,40% 0,021 a 0,40%


corpos vertebrais, consolidada com deformação
acentuada (com colapso grave de um ou mais
corpos vertebrais)

Mobilidade da coluna - grau ligeiro na flexão ou 0,10 a 0,14% 0,10 a 0,12%


na extensão

Mobilidade da coluna - graus de imobilidade na 0,11 a 0,14 0,11 a 0,12


rotação lateral (ângulo em que se fixam os
0,15 a 0,16 0,14 a 0,15
movimentos)

Um outros dos nossos entrevistados caracteriza a TNI de 2007 como


―regressiva perante o valor da vida e do corpo dos trabalhadores, feita a pedido
e à medida das companhias de seguros‖ (Ent. 5), justificando a sua posição
com os seguintes exemplos:

A amputação da segunda falange do polegar: de 8 a 14% de incapacidade


na TNI anterior para 6 a 8% de incapacidade na TNI de 2007;
A amputação de quatro dedos da mão: até 50% de incapacidade na TNI
anterior e até 35% de incapacidade na TNI de 2007;
A amputação do pé: de 35 a 45% de incapacidade na TNI anterior e até
35% de incapacidade na TNI de 2007.

A conclusão que retiramos, tanto do discurso dos nossos entrevistados,


como da análise das várias tabelas é a de que, ao longo do tempo, tem vindo a
verificar-se um abaixamento dos coeficientes de incapacidade,

278 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

designadamente nos que respeitam às mãos que, como já referimos, é um dos


órgãos mais afectados por acidentes. Um outro exemplo dessa constatação
prende-se com o facto de, numa das anteriores tabelas, se prever que , quando
eram afectados vários dedos de uma mão, para o cálculo da incapacidade, se
devia atender de forma proporcionalmente mais gravosa a essa lesão. Ou seja,
não se considerava a mera soma aritmética das várias lesões isoladamente
consideradas porque se entendia que, do ponto de vista técnico, é diferente ter
uma lesão num único dedo, ou num dedo de cada mão, do que dois ou três
dedos da mesma mão. Esta possibilidade encontra-se actualmente afastada.

Por fim resta salientar uma alteração legal que, à primeira vista, poderia
ser um avança para a protecção dos sinistrados mas que, na prática, se
traduza apenas em dificuldade de aplicação. Segundo a TNI de 2007, nos
casos de incapacidade absoluta para o trabalho habitual prevê-se que o
sinistrado seja avaliado por uma junta pluridisciplinar, acrescentando-se que
esta deve ser composta por um médico da seguradora, um médico do tribunal
e um médico do sinistrado. Acontece, dada a redacção, não se percebe onde
está a pluridisciplinariedade pretendida pelo legislador dado que não se diz
nada sobre especialidades distintas ou outras áreas de saber. Provavelmente o
que o legislador teria em mente seria que, este tipo de incapacidades, dada a
sua gravidade, deveria ser avaliado, não só por médicos, mas também por
outro tipo de especialistas, designadamente na área da saúde ocupacional.
Todavia não foi isso que foi dito e a isto acresce uma outra dificuldade. O CT já
previa que a junta médica fosse composta por três médicos, como agora se
volta a referir no diploma legal em análise. A questão que se poderá colocar
perante esta redacção é a de saber se se trata de uma mera redundância ou
se, pelo contrário, o legislador pretendia que assim também passasse a ser na
fase conciliatória e já não só na fase contenciosa.

279 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

7. O NOVO REGIME DE CUSTAS PROCESSUAIS

A dificuldade no acesso à justiça também se manifesta nesta matéria e


resulta na desmotivação dos sinistrados em recorrer aos tribunais para
efectivarem os seus direitos. Ao acabar com a isenção subjectiva de custas,
mesmo para as pessoas que possam ter direito ao apoio judiciário, criou-se um
processo burocrático e moroso que também é um factor desmotivador do
recurso ao sistema de justiça.

Com o novo Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo


Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro, é retirada a isenção subjectiva nos
processos laborais (acidentes e doenças profissionais), com excepção dos
casos de verdadeiro baixo rendimento294. A mais deste requisito, o sinistrado,
para beneficiar de isenção, terá que ter, previamente, recorrido a uma estrutura
de resolução de conflitos295. Esta nova solução legal rompe com toda a
tradição nesta matéria e traduz-se, entre outros, no facto de os sinistrados
passarem a suportar todos os encargos com exames médicos e outros, o que,
como se compreende, pode conduzir à denegação da justiça, se estiverem em
causa exames dispendiosos, como TACs e perícias.

Esta alteração do regime das custas judiciais que restringe a tradicional


isenção de custas dos trabalhadores com menores rendimentos à

294
Cf. Artigo 4.º, n.º 1, al. h: ―Estão isentos de custas: (…) Os trabalhadores ou familiares, em
matéria de direito do trabalho, quando sejam representados pelo Ministério Público ou pelos
serviços jurídicos do sindicato, quando sejam gratuitos para o trabalhador, desde que o
respectivo rendimento ilíquido à data da proposição da acção ou incidente ou, quando seja
aplicável, à data do despedimento, não seja superior a 200 UC, quando tenham recorrido
previamente a uma estrutura de resolução de litígios, salvo no caso previsto no n.º 4 do artigo
437.º do Código do Trabalho e situações análogas‖.
295
Ainda não se aplica no âmbito dos acidentes de trabalho uma vez que ainda não foi
aprovado o diploma referente à mediação.

280 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação

obrigatoriedade do recurso à mediação laboral, antes de obter tutela judicial,


devidamente conjugada com a imposição emanada do Decreto Lei nº153/2008,
de 6 de Agosto, que impõe, para efeitos de apuramento do rendimento mensal
do lesado em qualquer acidente, que o juiz se baseie exclusivamente nos
rendimentos fiscalmente comprovados, consagra, segundo um dos nossos
entrevistados ―uma velha aspiração das seguradoras que são as únicas
beneficiárias reais de uma eventual fuga ao fisco do lesado‖ (Ent. 27).

Tudo isto, concomitantemente a um acréscimo significativo das custas


judiciais, nomeadamente em sede de acção executiva com a incidência dos
honorários do solicitador de execução, bem como as alterações no que
respeita à concessão do benefício de apoio judiciário, tornou-se numa via-sacra
de desfecho ainda mais moroso para o sinistrado.

281 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


4

CAPÍTULO 4
O ACIDENTE E O LABIRINTO DA SINISTRALIDADE
O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

1. AS DESIGUALDADES NO ACESSO À JUSTIÇA E N A


DEFESA DA VÍTIMA

Após o acidente, os sinistrados deparam-se logo com uma primeira


dificuldade: o acesso à informação. Por regra, e como já registamos, os
sinistrados desconhecem os seus direitos e o modo como os fazer valer. Daí
que o défice de pró-actividade, de formação e de cultura de cidadania dos
vários operadores que intervém no processo de reparação do sinistrado e que
registamos no nosso trabalho de campo, numa área que facilmente se presta à
automatização dos procedimentos e à desvinculação dos tribunais da realidade
material das relações de trabalho e da vitimação corporal, requeira uma
atenção redobrada às diferentes dimensões que compõem sobretudo as
magistraturas e à necessidade de accountability no que respeita a defesa dos
direitos fundamentais do sinistrado em matérias tão sensíveis como a
dependência económica e a integridade física.

1.1. A cultura e o papel do Ministério Público

Ao recordarmos as competências atribuídas ao Ministério Público nesta


matéria e às quais já fizemos larga referência, percebemos a centralidade do

283 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

papel que este operador assume no sinuoso percurso que o sinistrado tem que
percorrer, desde o acidente de trabalho até à reparação dos danos sofridos.
Retomando sucintamente a exposição que fizemos no Capitulo 2, relembramos
que, iniciando-se o processo e a sua fase conciliatória, é ao Ministério Público
que cabe a direcção do processo, nomeadamente solicitando aos serviços
médico-legais a realização de perícia médica. Depois, segue-se a tentativa de
conciliação, pertencendo ao Ministério Público a tarefa de representação do
sinistrado e de presidir à diligência. A função do Ministério Público neste acto é
a de “promover o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei,” (cf.
artigo 109.º do CPT). Se desta diligência não resultar o acordo das partes, o
Ministério Público deve recolher os elementos necessários à elaboração e
apresentação da petição inicial, nomeadamente no que respeita ao apuramento
da retribuição do sinistrado. Compreende-se, portanto, a centralidade da figura
do Ministério Público que, aliás, também nos foi frequentemente retratada pelos
nossos entrevistados.

“O MP faz falta na fase conciliatória. Porque é na fase conciliatória que são – ou devem
– ser recolhidos a maior parte dos elementos. Por exemplo, a questão da retribuição é
fundamental. Porque é com base na retribuição que é calculada a pensão. E portanto
se não houver a preocupação de uma recolha exaustiva de todos os elementos que
componham a retribuição do trabalhador, é óbvio que ele vai ser prejudicado. (…) E
esse é um trabalho que tem de ser feito logo na fase conciliatória pelo MP”. (Ent. 16)

No entanto, segundo apuramos pelo nosso trabalho de campo, nem


sempre os procuradores actuam em conformidade com as atribuições que lhe
estão legalmente atribuídas, sendo frequentes os relatos de episódios que,
pelo contrário, muito deixam a desejar relativamente à sua actuação na
salvaguarda dos interesses do sinistrado. A este respeito vejamos o relato de
um caso alarmante que nos foi dado a conhecer por um dos nossos
entrevistados.

“Veio aqui uma senhora, jovem, estava de baixa, e sofria de amputação da mão
esquerda e perdeu todas as funções da mão direita. E pediu-nos que fossemos com
ela ao tribunal, e eu fui com a senhora. O Ministério Público não ouviu a senhora,
aquilo foi feito com a funcionária do tribunal, e eu pedi uma cópia do auto de

284 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

conciliação… e no final, verifiquei que faltava também a prestação para terceira


pessoa. A funcionária dizia que não, que não tinha direito, que tudo o que tinha a
receber já lá estava. Eu disse que a senhora não ia assinar e pedimos um adiamento
para consultar um médico. E entretanto… eu tinha combinado com a senhora, uma
meia hora antes, no jardim, para conversarmos, e a senhora tinha levado as duas
filhas, uma de 9 ou 10 anos, e a outra de 4 ou 5 anos. E o marido também estava lá. E
eu percebi, com alguma facilidade, que aquele era um casal muito deprimido, o
acidente ainda era muito recente, e que aquela menina de 10 anos também precisava
urgente de acompanhamento especializado… Porque percebi, pelas conversas, que
era a miúda que agora tratava da lida da casa… e tinha que estudar… e tudo. E eu
disse ao tribunal que teria de haver uma avaliação da necessidade ou não do apoio
psicológico àquela família, e fundamentalmente às crianças. Pois nem sequer
mencionaram isso no auto. Telefonei para a companhia de seguros e disseram-me que
a senhora já tinha tido alta e que agora não era nada com eles… que fosse ao médico
de família. Foi um processo complicado. Acabou-se por resolver a questão da terceira
pessoa – com o nosso médico, na altura tínhamos um ortopedista que fez o relatório,
depois tinha-se sido atribuída uma incapacidade de 80% e ele pôs 92% de
incapacidade… e pronto. As coisas acabaram por se resolver”. (Ent. 5)

Como podemos ver através deste caso que ilustra algumas das
situações que encontramos no terreno, os sinistrados, para além de não
conhecerem os seus direitos e não saberem onde e a quem recorrer, deparam-
se com a dura realidade de serem colocados, sozinhos, perante toda uma
equipa de pessoas devidamente preparadas, que actuam em defesa da
seguradora. E isto acontece porque, aqueles que deveriam actuar em sua
defesa, nem sempre o fazem e quando o fazem, fazem-no, não raras vezes, de
forma displicente. Casos de procuradores que não atendem pessoalmente os
sinistrados, que não falam com os sinistrados, que sequer chegam a conhecer
as suas histórias de vida e que não estão presentes nas diligências são
frequentemente relatados.

“Era o funcionário do tribunal e o representante da companhia de seguros. Mais


ninguém. E ainda por cima, o sinistrado ficava do lado de fora do balcão e o funcionário
da companhia de seguros entrava lá para dentro, estava à conversa com o funcionário
do tribunal, na secretária. Claro que dá um mau aspecto, aquilo. O sinistrado,
naturalmente, tinha todo o direito de estar a pensar que estão ali a cozinhar… com todo
o direito… E, de facto, havia muitas coisas que não estavam correctas nas
conciliações. Porque o Ministério Público não assistia, não participava. O auto era feito,
não era dito nada… e ainda hoje acontece isso… é dito ao sinistrado: Assine aqui e
pode ir à sua vida. E eram assim feitas as coisas…. E ainda são.” (Ent. 5)

285 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

De facto, segundo os nossos entrevistados, a tentativa de conciliação


parece ser encarada pelos magistrados do Ministério Público como um acto de
menor importância, não lhe sendo, portanto, atribuída a solenidade e dignidade
que seria exigida dada a sua relevância processual. Ainda que a realidade seja
esta, todos os nossos entrevistados são de opinião de que é uma melhor ou
menos boa prestação do Ministério Público nesta fase processual que pode
influenciar determinantemente o desfecho final do processo. Assim,
questionados pela razão que levaria os procuradores a, por regra, terem aquele
tipo de comportamento, alguns dos nossos entrevistados apontaram, além da
questão transversal a todos os operadores de défice de cidadania, a da falta de
interesse desta magistratura por estas matérias, sendo esta, muitas vezes,
causada pela falta de preparação em matéria de acidentes de trabalho. Nesse
sentido fica o registo da opinião de um magistrado entrevistado que nos disse o
seguinte:

“Isso acontece [conciliação feita pelo representante da companhia de seguros e por um


funcionário do tribunal, sem a presença do MP] precisamente porque o procurador ou
não está preparado ou não se quer estar para chatear em fazer as conciliações.
Desculpe o termo, mas é assim. Mas isso já é uma questão de má conduta do
procurador e de pouco interesse com o sinistrado. Eu sei que há casos desses. Eu sei,
eu conheço-os” (Ent.16).

Acresce referir que, com a reforma do final da década de 90 e a


reorganização interna do Ministério Público296, foram abertas vagas nos
Tribunais de Trabalho para procuradores. O problema foi que, segundo nos
relatou um magistrado por nós entrevistados:

“A maior parte dos procuradores que foram para os Tribunais de Trabalho não tinham
nada a ver com a área do direito de trabalho nem dos acidentes de trabalho. Vinham

296
A lei 60/98, de 27 de Agosto marca a diferença pelo facto de abandonara designação de “lei
orgânica” e adoptar a de “Estatuto”.

286 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

todos do crime ou do cível. Conclusão: chegaram aos Tribunais de Trabalho e


praticamente… não sabiam – a verdade é esta!” (Ent. 16).

A consequência desta alteração foi a queda abrupta do número de


acções propostas pelo Ministério Público que, não raras vezes, aconselhavam
o sinistrado a procurar um advogado uma vez que não se sentiam preparados
para propor uma acção deste foro.

“Vê-se, e nós temos casos desses lá em cima, que procuradores não sabem articular
uma acção de acidente de trabalho, nomeadamente quando ela é mais complicada.
Então nos acidentes in itinere é uma desgraça. Normalmente é só conclusões e os
factos não estão lá” (…) O MP tem de se consciencializar de que tem de estudar, tem
de aprender e se calhar de se especializar nesta área; os procuradores que estão
agora no Tribunal de Trabalho têm de investir nesta área e eles vão ser obrigados a
investir se se mantiver o mesmo sistema até aqui: que é a fase conciliatória nos
Tribunais de Trabalho” (Ent. 16).

É, ainda, de referir que a referida saída de grande número de delegados


do Ministério Público que foram substituídos por procuradores recém
promovidos e, na maioria dos casos, como referimos, sem qualquer saber e
experiência na área dos acidentes de trabalho, coincidiu, igualmente, com a
saída, por promoção para as Relações, de um número significativo de juízes
que haviam feito a sua carreira nos tribunais de trabalho. E, como não havia o
número suficiente de juízes para preencher os lugares em aberto (com anos de
carreira e nota de mérito), foram aí colocados juízes interinos, como pouca
preparação nesta matéria. A consequência foi portanto drástica para os
sinistrados dado que este vazio de experiência e preparação foi preenchido,
em contrapartida, por peritos médicos, cada vez mais bem preparados, que
passaram a determinar, quase em exclusivo, qual a grau de incapacidade dos
sinistrados.

287 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

1.2. A velha questão da cultura de cidadania e da


formação dos Magistrados

Não obstante o que ficou dito relativamente aos magistrados do


Ministério Público, não podemos deixar de referir que também encontramos
alguns entrevistados cuja opinião relativamente aos magistrados vai no sentido
contrário. Como exemplo disso fica este depoimento de um perito:

(…) Eu acho que os senhores magistrados que estão ligados à reparação do dano, no
civil, mas sobretudo no trabalho, são magistrados muito empenhados e que revelam
em todas as situações uma defesa inquestionável dos sinistrados. Eu admiro a postura
dos magistrados, acho que são pessoas vocacionadas para defender até à exaustão os
direitos dos sinistrados. (Ent. 15)

De facto, compreende-se a essencialidade de uma actuação diligente de


ambas as magistraturas. Se, por um lado, o papel do Ministério Público é
central na fase conciliatória, o juiz passa a ter um papel relevante na fase
contenciosa. O nosso trabalho evidenciou que a cultura e prática judicial têm
sido cruciais na tramitação dos processos e no apuramento dos factos
relevantes para a reparação no âmbito dos acidentes de trabalho. E, como bem
se compreende, esta cultura e prática têm reflexos especialmente na defesa do
sinistrado, nomeadamente no que respeita à produção de prova. Como já
referimos, a lei exige que se verifique em concreto a falta de cumprimento ou a
violação das regras de segurança por parte da entidade empregadora para que
esta possa ser responsabilizada. Ou seja, a culpa que não se presume. Não se
presumindo e de acordo com as regras do ónus da prova, cabe ao sinistrado
fazer prova da mesma. Por regra, essa prova seria feita pelos colegas de
trabalho que presenciaram o acidente e que, por sua vez, se inibem de depor
contra a sua entidade empregadora.

Nesta lógica bem se perece a relevância de uma actuação mais ou


menos cuidadosa de um juiz na árdua tarefa de apurar a verdade matéria.
Neste sentido um dos magistrados entrevistados disse-nos o seguinte:

288 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

“Um dos nós górdios nesta matéria é a produção de prova. E aqueles que viram,
muitas vezes inibem-se e não dizem tudo o que viram – porque são pressionados pela
entidade patronal ou mesmo pela seguradora, porque a responsabilidade às vezes é
repartida, e portanto aqui, às vezes, há um conluio em relação à prova testemunhal”.
(Ent. 16)

Perante esta realidade é importante que o juiz esteja especialmente


atento e consiga detectar duas situações relatadas como sendo muito
frequentes: testemunhas que viram como tudo aconteceu e que, no entanto,
não dizem ao tribunal tudo o que efectivamente viram; por contraposição a
testemunhas que não viram e que vão a tribunal dizer o que ouviram com o
objectivo de levar o tribunal a valorar os seus depoimentos como se os
mesmos fossem de pessoas que lá tivessem estado na altura do acidente. E, a
verdade é que, não obstante esta não ser prova admissível, acontecem muitas
situações em que, incompreensivelmente, acabam por ser tidas em
consideração.

“Há vários casos, e eu já tenho acórdãos escritos sobre isso, a desmontar toda essa
valoração, essa mecânica, esse modo de valorar a prova. Testemunhas que as
seguradoras indicam, que não estiveram no local do acidente, elas próprias o dizem,
mas foram, passados 15 dias ou um mês, fazer avaliações com aquelas empresas de
avaliação… Portanto o perito avaliador foi falar com A, B e C que lhe contou a história.
Muitas vezes são dadas como testemunhas os peritos avaliadores e os relatórios que
eles fazem são entregues no processo e os juízes valoram esses relatórios… Isto é
que é grave!” (Ent. 16)

Para contrariar este tipo de situações, é necessária uma cultura de pró-


actividade, nomeadamente através da adopção da máxima que alguns
magistrados defendem de que, em matéria de acidentes de trabalho, é
necessário “sair do gabinete”, ir ao local dos acidentes, conhecer o ambiente
de trabalho. Todavia, pelo resultado do nosso trabalho, esta não parece ser
uma prática recorrente.

“Eu nunca fiz nenhum acidente de trabalho ou de viação em que não fosse ao local. É
a única maneira. E toda a gente aqui ficou de boca aberta. Agora já percebo porque é
que aparecem situações destas na Relação…” (…) “eu ia às empresas… e não era só
eu! Íamos às empresas fazer o julgamento. Saber qual era o ambiente que se vivia
naquela empresa. Caso contrário, não temos hipótese nenhuma!” (Ent. 16)

289 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

“Há decisões pouco cuidadas. E todas elas em primeira instância. Pouco cuidadas.
Menos ponderadas. De facto houve algumas decisões que nos espantaram, feitas com
algum facilitismo… essencialmente pelo Ministério Público. Mas também, depois, o juiz
também… se calhar não estudava tanto os processos e confiava no Ministério Público.
Mas houve muitos processos que, até há pouco tempo, nos deixaram muito
incomodados”. (Ent. 5)

Não podemos esquecer que o papel do julgador também é o de corrigir


alguma injustiça que, atendendo às especificidades do caso, possa resultar da
aplicação cega das leis e, sobretudo, nesta matéria em concreto, das tabelas
indicativas. A este respeito cumpre salientar que o artigo 11.º, n.º 2 da nova
LAT carece de uma atenção especial por parte do juiz uma vez que, por regra e
de acordo com os nossos entrevistados, não é cumprido em sede de avaliação
clínica. Trata-se de uma das normas de maior protecção social dos sinistrados
e aquela que mais tentativas de incumprimento sofre por parte dos peritos
médicos das seguradoras por a considerarem “injusta” uma vez que esta
norma obriga a entidade responsável pelo sinistro a assumir os danos por uma
lesão ou doença consecutiva ou agravada pelo acidente de trabalho. Daqui
resulta, mais uma vez, a importância da presença e atenção dos juízes nos
exames por junta médica, obrigando os médicos a fundamentar mais e em
pormenor a perícia médica.

“Mas acho que é importante a presença deles por várias razões. Às vezes a gente
[peritos] tem dúvidas... Ele próprio pode ter dúvidas... E é mais fácil... Atendendo que
na nossa profissão nós temos uma linguagem de fácil acesso e se as pessoas
entenderem torna-se tudo muito mais fácil para depois, em termos de decisão. Eu
considero que é importante a presença do Sr. Dr. Juiz”. (Ent. 15)

Todo o processo gestionário das empresas seguradoras, apostado na


contratação de profissionais altamente qualificados nas várias áreas do saber,
acaba por ter um efeito agudizar da debilidade dos sinistrados e, face à aos
recursos desiguais das partes, condicionar a defesa a que estes têm
efectivamente acesso. Assim, por um lado, à medida que os seus serviços
jurídicos se foram renovando com advogados das novas gerações, a

290 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

autonomia dos representantes das seguradoras nas fases de conciliação


acabou por desaparecer e passou a aumentar o número de processos em fase
contenciosa. Segundo alguns dos nossos entrevistados esta é uma das causas
que contribuiu para que, nos últimos vinte anos, as juntas médicas passassem
a ter uma maior importância e a discussão da diminuição das sequelas
passasse a ser discutida ao centésimo. Por outro lado, o recurso a peritos
médicos cada vez mais bem preparados e rotinizados com estes
procedimentos, fez com, como já referimos, fossem as seguradoras que, na
maioria dos casos, fixassem “unilateralmente” a incapacidade dos sinistrados.

O combate à esta realidade pode ser ganho através da aposta na


formação, académica e de cidadania, de todos os operadores que intervém na
área dos acidentes de trabalho e, em particular, nos que actuam em defesa dos
sinistrados. Esta formação deveria iniciar-se logo nas faculdades de direito que,
como é sabido, relegam o estudo destas matérias. Bem como acontece
igualmente no âmbito da formação ministrada pela Ordem dos Advogados. No
que em particular respeita aos magistrados é de realçar que, de acordo com os
nossos entrevistados, a formação que lhes é dada posteriormente no CEJ
também é insuficiente, com a agravante de esta ser esquecida entre o muito
tempo que media entre o estágio e o acesso aos tribunais de trabalho. A este
respeito foi-nos mesmo dito que esta situação tem tendência a agravar-se
porque os juízes de primeira instância, com carreira exclusiva nos tribunais de
trabalho, irão ter muitas mais dificuldades no acesso aos tribunais superiores e,
portanto, esta não será uma primeira opção para os magistrados.

“Formação específica nesta área é fundamental. E Porquê? Porque o único controlo


que há nesta desigualdade, neste binómio seguradoras/ sinistrados é o tribunal. É o
único que controla e é o único que pode controlar. E se ele não estiver preparado, ele
não o consegue fazer. (…) Mas a sociologia, aqui, é fundamental. Isto também tem
muito a ver com a formação humana de cada um. Isto não é só direito. Aliás, esta área
do trabalho não é só direito. Às vezes tem mais de sociologia e psicologia do que de
direito” (Ent. 16).

291 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

1.3. As lógicas da advocacia no patrocínio dos


sinistrados

A advocacia, por sua vez, começa a intervir cada vez mais nos
processos emergentes de acidentes de trabalho. No entanto, e mais uma vez
segundo o que resultou do nosso trabalho de campo, tal não se reflecte numa
maior preparação por parte da classe mas sim numa tentativa de conseguir
contornar as consequências da massificação da profissão e, diga-se, da
precariedade profissional em que muitos dos seus pares se encontram. Esta
conclusão resulta de testemunhos de alguns dos nossos entrevistados que, ao
referirem-se à preparação dos advogados, caracterizam a sua intervenção da
seguinte forma:

“O primeiro requerimento apresentado pelos advogados é para juntar procuração


forense com poderes para receber o capital de remição a que o sinistrado venha a ter
direito. (…) Apresentada a PI é formulado o convite para aperfeiçoamento, por duas e
três vezes, para que a acção possa prosseguir.” (Ent. 16)

Tirando os casos em que os sinistrados são trabalhadores com um


poder económico acima da média e que, portanto, tem possibilidades para
recorrer aos melhores e mais bem preparados advogados sem preparação
que, não obstante, por o sinistrado ser uma pessoas amiga, familiar, um cliente
que não se quer perder ou uma nomeação oficiosa, acabam por aceitar o caso.
Esta realidade depois reflecte-se da defesa que é feita pelo advogado:

“Há casos de advogados que propõem as acções, porque é cliente da empresa ou da


família, por isto ou por aquilo, e vão perguntar ao procurador da comarca como é que
devem propor a acção… e muitas vezes copiam o que está no auto de conciliação,
sem saber”. (Ent. 16)

E, de facto, uma nota comum aos vários processos consultados é a


utilização de peças processuais muito idênticas. Aliás, na nossa amostragem,
conseguimos encontrar várias petições iniciais, subscritas por diferentes

292 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

advogados, mas que utilizam o mesmo tipo de formulações, não atendendo,


portanto, às especificidades concretas do caso. Da análise dessas petições é
notório o recurso a minutas que vão passando de advogado a advogado e que,
dada a falta de conhecimentos sobre a matéria, não são melhoradas ou
adaptadas a cada caso concreto, sendo praticamente idênticas, quer em
termos de formulações, quer em termos de argumentação.

A falta de investimento da advocacia nesta área de conhecimento, pela


sua especificidade e carácter técnico, exige uma maior disponibilidade, é
explicada por muitos dos nossos entrevistados, desde logo, por se tratar de
uma área que, tradicionalmente, pertence ao Ministério Público. A mais disto, é
frequentemente apontada como uma área jurídica pouco apetecível para os
advogados dado que, por regra, os sinistrados não têm grandes recursos
financeiros para poder pagar honorários compensadores. Aliás, a grande
maioria sequer tem possibilidade de pagar honorários recorrendo logo ao apoio
judiciário na modalidade de nomeação de defensor oficioso.

“O MP teve e continua a ter um papel fundamental neste controlo da área dos


acidentes de trabalho… aliás, era uma área exclusiva do MP porque a advocacia nunca
quis saber dela… nunca quis saber… e continua a não querer saber por uma razão
simples: porque é uma área que dá pouco dinheiro” (Ent. 16).

1.4. Capacidade diferenciada de aquisição de perícias


médico-legais

Outro aspecto que fragiliza a defesa do sinistrado é a sua capacidade


diferenciada de obtenção de perícias médico-legais relativamente às
seguradoras. Como acima referimos, as seguradoras, cada vez mais bem
apetrechadas de peritos, não se apresentam perante o sinistrado numa posição
paritária mas sim de supremacia de meios, nomeadamente periciais. Assim,
como aliás referiu um dos nossos entrevistados, “o contraditório pericial é um
processo desigual, dada a preparação e organização técnica e rotinizada das

293 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

companhias de seguros face ao sinistrado” (Ent. 15). Além disso, o preço das
perícias médico-legais e do recurso a um perito médico próprio constitui, por si,
um outro obstáculo à defesa do sinistrado.

Como já deixamos demonstrado, as perícias são centrais neste


processo de determinação da incapacidade e, por consequência, da
indemnização a atribuir ao sinistrado. E, segundo apuramos através do
trabalho de campo realizado, por regra, os sinistrados não tem um perito
próprio porque é caro, tanto o relatório médico, como a ida do perito a tribunal.
As seguradoras, por sua vez, têm um corpo médico especializado, rotinado e
profissionalizado em matéria de perícias. Perante o cenário que encontramos
temos, portanto e como salientou um dos magistrados entrevistados, “um
problema de garantia de igualdade no acesso à justiça” (Ent. 28).

Na prática, esta limitação económica traduz-se na impossibilidade do


sinistrado poder ter um perito próprio que sustente a sua posição numa junta
médica, perante o perito da seguradora. Como já referimos, uma junta médica
é composta por três peritos. E o que acontece é que a seguradora leva o seu
perito, o tribunal recorre ao INML e para o sinistrado, por regra, é nomeado um
perito oficiosamente. Este “perito de ocasião” como o apelidou um dos nossos
entrevistados, não conhece o sinistrado, não conhece o seu historial clínico,
nem consultou o processo com tempo suficiente e, portanto, é incapaz de
defender uma posição contrária à do perito da seguradora de forma
sustentada. E como era de prever esta realidade acaba por ter um forte
impacto na defesa do sinistrado uma vez que o resultado pericial é decisivo
para a decisão final, tanto se se tratar de um acordo que venha a ser celebrado
entre as partes, como se se tratar de uma decisão judicial dado que o juiz, que
não é perito, vai ter que decidir com base nos resultados periciais que constam
no processo. E esta situação é tanto mais grave porque, segundo nos
relataram vários dos nossos entrevistados, é frequente que um mesmo perito
intervenha num processo como perito do sinistrado e, logo de seguida, num
outro processo como perito de uma seguradora. A conclusão é a de que,

294 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

actualmente, não há clareza e transparência suficientes nos procedimentos de


nomeação oficiosa de peritos.

Como referimos num dos capítulos anteriores, o sinistrado deixou de


beneficiar do regime de isenção subjectiva e integral de custas, sem
dependência de qualquer outro pressuposto. E também esta alteração legal
tem reflexos directos na defesa do sinistrado. O que acontece agora é que se
um sinistrado discordar, por exemplo, da avaliação da incapacidade efectuada
na fase conciliatória e levar o processo para junta médica (fase litigiosa), pode
ter que pagar as respectivas custas, sendo que a realização de uma junta
médica pode custar cerca de 500,00 euros em taxa de justiça. A consequência
é que alguns sinistrados não têm possibilidade de pagar esta quantia e, mais
uma vez, acabam por se sentir coagidos a aceitar a proposta indemnizatória
apresentada pela seguradora, ainda que não concordem com a justeza da
mesma.

Na opinião de um magistrado por nós entrevistado, pode aqui


equacionar-se um juízo de inconstitucionalidade, uma vez que está em causa o
direito à justa reparação constitucionalmente garantida e que tem tradução em
termos de lei ordinária (no facto dos créditos emergentes de acidente de
trabalho serem direitos indisponíveis). No entanto e como o próprio salienta,
apesar desta ser uma solução que em teoria se podia construir e defender, a
verdade é que, na prática, os sinistrados não estão dispostos a esperar pela
decisão de um recurso em que se alegue inconstitucionalidade. O que temos é
um sinistrado que tem um problema no momento e este não se resolve se não
houver junta médica. E, portanto, ainda que com sacrifício, optam ou por
arranjar o dinheiro de alguma forma ou, então, acabam por resolver o litígio
extrajudicialmente com a seguradora.

Sublinha-se, ainda, a importância dos registos clínicos e de internamento


hospitalar das vítimas, no sentido de ser possível uma reconstituição segura da
sua trajectória, dos momentos mais críticos e do seu processo de recuperação.

295 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

Por que razão as seguradoras não dão aos sinistrados o conteúdo integral da
sua situação clínica, para que eles possam a fazer a sua própria avaliação? As
pessoas devem poder dispor de toda a sua informação clínica, sob o
argumento legalmente precário de que os exames são realizados e financiados
pela actividade seguradora, pelo que são seus proprietários. Esta realidade
constitui uma violação flagrante dos direitos fundamentais dos sinistrados e um
atentado aos direitos fundamentais dos cidadãos. A exposição do sinistrado a
múltiplas avaliações deve ainda ser repensada, não devendo tratar-se de um
acto forense trivial, antes da sujeição dos corpos lesados a um escrutínio
invasivo e não raras vezes doloroso.

2. O APURAMENTO DA RESPONSABILIDADE: A
TRIANGULAÇÃO ENTRE SINISTRADO, SEGURADOR A
E ENTIDADE PATRONAL

Desde logo, a tensão triangular, evidenciada na figura seguinte, entre o


sinistrado, a entidade empregadora e a companhia de seguros ganha forma
nas diferentes estratégias argumentativas e processuais das partes, segundo
os interesses que lhes são correspondentes.

296 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

Como mais à frente daremos conta, na nossa amostragem encontramos


alguns processos em que este era o motivo do litígio que opunha as partes,
representando cerca de 20% dos processos consultados. Entre estes
processos encontramos duas situações distintas: a seguradora a afastar a
responsabilidade pela indemnização alegando a violação das regras de higiene
ou, ainda, a culpa ou negligência grosseira na produção do acidente por parte
do sinistrado e, por outro, a entidade empregadora a tentar também ela alegar
a descaracterização do acidente com o mesmo fundamento. Aliás, segundo os
processos consultados, estas duas situações estão quase sempre intimamente
interligadas dado eu quando a seguradora tenta alegar a violação das regras
de higiene e segurança chamando a entidade empregadora ao processo esta,
por sua vez, em sua defesa alega a descaracterização do acidente.

Sendo legalmente obrigatória a transferência de responsabilidade do


empregador para a seguradora como já demos conta, o cerne da controvérsia
sociojurídica desloca-se, assim, para o cumprimento das condições de higiene
e segurança no trabalho, já que a sua eventual violação devolve a
responsabilidade à entidade empregadora, uma vez que, como também, já

297 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

referimos, ante a responsabilidade do empregador na produção do sinistro, não


há dever de indemnizar por parte da seguradora. Vejamos um dos processos
ilustrativos desta situação:

Caso 1

O sinistrado, pedreiro de 34 anos, faleceu quando este, juntamente com outros colegas de
trabalho, colocavam uma manilha dentro de uma vala e se deu um desabamento de terra
provocado pelo facto de as paredes da vala na se encontravam escoradas. Neste processo,
além da questão do valor da retribuição auferida pelo sinistrado (75.700$00 alegado pela
seguradora contra os 110.000$00 alegado pela viúva), discutia-se a responsabilidade pela
ocorrência do acidente: apesar das rés (seguradora e entidade empregadora) aceitarem o
acidente como sendo de trabalho, a seguradora não aceita a responsabilidade pela pensão
vitalícia devida à beneficiária, uma vez que considera que houve violação das regras de higiene
e segurança no trabalho por parte da entidade empregadora. Não tendo as partes logrado
conciliarem-se, fez o julgamento e ambas as rés foram condenadas.

Caso 2

O sinistrado, motorista, faleceu. No processo discutia-se a descaracterização ou não do


acidente. A beneficiária, viúva do sinistrado, apresentou articulado inicial onde reclamava, para
si e para as suas duas filhas, o pagamento das quantias previstas na lei, atribuindo a
responsabilidade pelo pagamento da mesma à entidade patronal. Fazia porque considerava
que tinha havido culpa desta entidade na produção do acidente. Ainda assim e
subsidiariamente, demandava a seguradora. As partes não se conciliaram. Em fase
contenciosa, a seguradora, por sua vez, contestou alegando para tanto que, o falecido
trabalhava sob ordens e direcção da empresa proprietária da máquina que o mesmo
manobrava e que a esta empresa competia informar e informar o trabalhador sob o modo de
manobrar a máquina. A mais disto alegou que o trabalhador não respeitou as mais elementares
normas de segurança, não estando sequer habilitado para manobrar a máquina daquela
tonelagem e que a máquina não possuía sistema de segurança.

A entidade patronal também contestou alegando que não houve de sua parte violação das
normas de segurança e que a responsabilidade estava totalmente transferida para a

298 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

seguradora. Acrescentando que o falecido não manobrava a máquina de tonelagem superior


ao que lhe era permitido, antes sim fazia o carregamento dessa máquina, tarefa que lhe
competia pela categoria de motorista profissional.

Já a relação litigiosa entre as entidades empregadoras, por um lado, e,


por outro, os sinistrados tem, como referimos, como principal estratégia a
tentativa de descaracterização do acidente, sobretudo por via da imputação de
negligência grosseira ao trabalhador. Um aspecto que em muito contribui para
o resultado das decisões judiciais relativamente a esta matéria é a posição da
nossa jurisprudência no que concerne ao que considera caber no conceito de
“negligência grosseira”. Neste ponto cumpre referir que, como aliás salienta um
dos nossos entrevistados, “O STJ tem tido uma intervenção muito correcta, no
sentido em que só em casos muito extremos é que pode ser atribuída a culpa
ao sinistrado”. (Ent. 16)

Face ao exposto percebe-se a centralidade, mais uma vez, da definição


do conteúdo profissional do trabalhador e da consideração das tarefas que,
ainda que não façam parte do conteúdo profissional do trabalhador em termos
legais, sejam, na prática do dia a dia, actos e tarefas que aquele acaba por
desempenhar, como o conhecimento e muitas vez sob ordens da própria
entidade empregadora. Veja-se, a título exemplificativo, o caso que nos foi
relatado por um dos nossos entrevistados:

“Era um senhor que trabalhava num moinho, estava sozinho, e sempre esteve, e
havendo uma avaria qualquer, ele tentava resolver a avaria. O dono do moinho
praticamente nunca lá estava e ele fazia e desfazia. A certa altura, falhou a luz. O
quadro eléctrico foi abaixo e o moinho parou. O senhor, como costumava fazer, tentou
ver o que é que se passava. Tinha a chave e foi ao quadro. Abriu-o e morreu. Ficou
electrocutado. A esposa, em tribunal, deparou-se com a questão do conteúdo funcional
do marido. Segundo ela, ele sempre fez aquela tarefa e o patrão sabia que ele fazia
aquilo, tendo-lhe mesmo entregue a chave do quadro, apesar daquela não ser a área
dele, porque ele não era electricista. O que se alegou em julgamento foi que a
obrigação dele deveria ser a de telefonar ao patrão para este enviar um electricista.
Mas não fez isso. Tentou desenrascar-se, como sempre tinha feito. O Ministério
Público, perante este mesmo relato, considerou que a viúva não tinha direito a qualquer
indemnização, porque, de facto, ele fez aquilo que não lhe competia fazer.” (Ent. 5)

299 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

Relacionadas com esta matéria estão duas outras problemáticas


apontadas pelos nossos entrevistados. Uma delas respeita à já muito
mencionada informalidade e precariedade das relações laborais e que, na
prática, conduz a que os trabalhadores acabam efectivamente por não cumprir
zelosamente todas as regras de higiene e segurança a que estavam obrigados.
Outra traduz no facto de, quando as entidades empregadoras acabam por ser
condenadas, não raras vezes, apresentarem-se à insolvência porque não
dispõem de capacidade económica para conseguir suportar o pagamento das
indemnizações em que são condenadas. Sendo que, como a seguir veremos,
só a partir deste momento é que os sinistrados podem accionar o FAT.
Vejamos dois depoimentos dos nossos entrevistados que retratam estas
problemáticas:

“Hoje em dia é a grande defesa das seguradoras. É a tendência para as seguradoras


atribuírem a culpa à entidade patronal. Agora tenta-se mais essa manobra. É a única
forma de defesa que têm. (…) E algum conluio… relativamente a empresas próximas
da falência… as entidades empregadoras normalmente defendem-se. Só não contesta
aquela que realmente não tem… ou está perto de fechar, ou na falência…”. (Ent. 16)

“Há casos em que o acidente foi numa máquina, nós perguntámos se a máquina tinha
os sistemas de protecção e dizem-nos que tinha mas não eram usados porque o patrão
decidiu tirá-los para que a produção fosse mais rápida ou porque, naquela máquina, se
estiver o sistema de protecção implementado, há determinadas peças que não se
conseguem fazer ali e tem de se mudar para outra máquina, ou se calhar o patrão tem
de comprar outra máquina… e para poupar dinheiro, correm-se alguns riscos. Eles [os
trabalhadores] reconhecem que às vezes sabem que estão a correr alguns riscos, mas
mesmo assim fazem. Agora, a culpa. A culpa essencialmente é da falta de
conhecimento de muitas empresas e de muitos patrões – essencialmente pequenos
patrões, que não têm noção nenhuma do que é trabalhar em segurança, porque
também nunca ninguém lhes ensinou, nunca houve acções de formação quer da parte
dos industriais, quer fundamentalmente dos órgãos do Estado, para tentar sensibilizar
as pessoas para a necessidade de uma protecção maior.” (Ent. 5)

O nosso estudo evidencia, portanto, que o esforço de regulação (dado


que o problema não decorre da ausência de normas) nem sempre tem igual
tradução prática. A ausência de implementação de mecanismos rigorosos que
impeçam o exercício laboral sem a cobertura de seguro, por exemplo, acaba

300 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

por ter reflexos no processo de reparação dos sinistrados do trabalho. Dada


esta factualidade, consideramos que, na ausência desses mecanismos, o
Estado deveria assumir integralmente os mesmos deveres da seguradora.
Assentando o nosso tecido empresarial em micro, pequenas e médias
empresas (ou empresas familiares), como acima já se referiu, onde ocorre a
maioria dos acidentes de trabalho graves, o Estado não neutraliza, quer pela
acção da fiscalização, quer através de apoios específicos (que devem ser
necessariamente fiscalizados), no que respeita às regras de segurança, higiene
e saúde no trabalho, as situações de risco a que os trabalhadores são
quotidianamente expostos.

Esta situação pode ser, e é em muitos casos, devastadora para o


trabalhador quando a seguradora, em processo judicial, vem invocar o
incumprimento de regras de segurança e higiene por parte da entidade patronal
ou do próprio trabalhador, que na verdade não existiam na empresa, tentando-
se eximir à transferência da responsabilidade civil decorrente do contrato de
seguro.

Por outro lado, dadas as dificuldades salientadas, poder-se-á colocar em


causa que o sistema esteja assente na procura de culpados ou na sua
responsabilização. Neste sentido um dos nossos entrevistados avança com a
ideia de que a tradição da procura da culpa deve ser questionada face aos
interesses das vítimas dos acidentes, sobretudo no que respeita aos
sinistrados rodoviários.

“O sistema judicial responde mal às pessoas porque não tem instrumentos eficazes
para identificar outros problemas que não a culpa. Não havendo culpa, o sistema anda
à procura de fantasmas. A responsabilização pelo acidente deve implicar não apenas
os intervenientes directos, mas compreender as causalidades indirectas. É
absolutamente claro, e nomeadamente o Ministério Público, nunca vai investigar estas
causalidades indirectas, ou porque são difíceis de provar e enquadrar”. (Ent. 12)

Esta posição vai de encontro à tensão doutrinária por nós exposta no


capítulo em que retratamos a evolução dos quadros da responsabilidade civil.

301 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

A este respeito foram-nos ainda retratados os seguintes casos que, aliás, foram
sobejamente noticiados pelos meios de comunicação:

Em 2007, uma condutora, psicóloga, circulava a 120 km/h numa avenida


rápida, e, de repente, depara-se com uma zona de obras não sinalizada,
no Terreiro do Paço, às 5h da manhã. A condutora é apanhada numa
armadilha. Perde o controlo do carro e atropela mortalmente duas
pessoas que iam para o trabalho. A condutora, sendo este um caso de
excepção, foi condenada a prisão efectiva, dada a gravidade do acidente
e a sua irresponsabilidade, segundo o juiz.

Um outro caso deu-se em final de 2009, e envolveu uma via rápida, em


hora de ponta. Estava em causa um comportamento rodoviário diferente,
não autorizado pelo sistema. Felizmente o acidente não foi mortal, houve
feridos graves. O Secretário-geral da Administração Interna, mandante de
uma infracção rodoviária grave, precisava de ir a uma tomada de posse
de governadores civis e a urgência reflectiu-se na condução do seu
motorista. Houve um abuso das normas que justificam marcha de
urgência para interesse público. Entretanto saiu a notícia que
responsabiliza o condutor pelo acidente.

Esta temática está directamente relacionada como uma outra por nós já
abordada no que respeita aos acidentados do trabalho. Como já referimos,
quando um acidente de trabalho ocorre por culpa da entidade empregadora e o
sinistrado alega tal factualidade este depara-se com o enorme obstáculo do
ónus da prova. Para o superar o sinistrado teria ao seu dispor a prova
testemunhal dos seus colegas de trabalho que, como se percebe, foram os
únicos a assistir ao acidente. No entanto, dadas as relações de subordinação e
dependência, entre as únicas testemunhas oculares e a entidade empregadora,
aquelas acabam quase sempre por se recusar a prestar depoimento ou, sendo
ainda assim convocadas para o efeito, defendem-se com a desculpa de que
nada viram ou de que nada sabem sobre o assunto.

302 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

3. HIATOS DE DESPROTECÇÃO: DESARTICULAÇÃO


E INCAPACIDADE DE MOBILIZAÇÃO INSTITUCIONAL
DO SINISTRADO

A delação no tempo da discussão jurídica sobre a responsabilidade pode


ter como consequência a criação de hiatos de desprotecção social absoluta
das vítimas. Estão em causa lacunas institucionais que, na vida dos
sinistrados, se traduzem em perda salarial, pendência indemnizatória e
ausência de protecção social. Esta situação é tanto mais grave se tivermos em
consideração, por um lado, a desarticulação institucional já por diversas vezes
retratada e, em particular, no que respeita à acção da Segurança Social. Por
outro e como também já referimos, o sinistrado do trabalho, por regra, está
desprovido de informação e capacidade de mobilização institucional. Neste
ponto a única via que muitas vezes lhes resta é o recurso ao apoio pelas
associações civis a que mais à frente faremos referência.

O caso que se segue resulta da análise de um dos processos por nós


consultado e que evidencia a situação de desprotecção em que um sinistrado
se pode vir a deparar após ter sofrido um acidente de trabalho. O que se
discute é a transferência ou não da responsabilidade pela indemnização da
entidade empregadora para a seguradora. Enquanto isso nenhuma das partes
assegurou a reparação dos danos sofridos pelo sinistrado, com a agravante de
a entidade empregadora, temendo a sua condenação, vir alegar a culpa do
sinistrado na produção do acidente.

Caso 3

O sinistrado, motorista, sofreu um acidente de viação quando conduzia um veículo pesado de


mercadorias, ao serviço e sobre as ordens da entidade patronal. A determinada altura do seu,
a seguradora declinou a responsabilidade pelas consequências do acidente, remetendo-a

303 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

exclusivamente para a entidade patronal. Para tanto informou os autos que não assumiria
qualquer responsabilidade pelo sinistro uma vez que o sinistrado não constava das respectivas
folhas de férias enviadas pela entidade patronal. Em consequência, suspendeu todos os
tratamentos que estava a ministrar ao sinistrado numa altura em que o mesmo se encontrava
totalmente dependente da ajuda de terceira pessoa. Até esta data a seguradora já tinha pago
ao sinistrado uma indemnização no valor de 4.00,00 euros.

Agendada tentativa de conciliação, a mesma foi adiada por um mês dada a falta de
comparência dos representantes legais da entidade patronal. Na segunda data, voltando a não
comparecer os representantes legais da entidade empregadora, as partes presentes, sinistrado
e seguradora, declararam as suas pretensões e a seguradora reiterou a sua posição. Numa
nova audiência de tentativa de conciliação realizada um mês mais tarde, já com a presença da
entidade patronal, esta defende-se alegando, designadamente, que não aceita que o acidente
se tenha devido a qualquer avaria do veículo que o sinistrado conduzia. Já em fase
contenciosa, a entidade patronal passou a alegar a descaracterização do acidente como
acidente de trabalho, atribuindo a culpa do mesmo ao sinistrado por “grosseira, voluntária e
injustificada violação dos deveres rodoviários”.

Realizado o julgamento, considerou-se que “O A ficou quase cego, parcialmente surdo e com o
lado esquerdo do seu corpo semi-paralisado e sem sensibilidade”, atribuindo-lhe o tribunal uma
IPP 73,84%. Em consequência foi a entidade empregadora condenada a pagar ao sinistrado
7.034,84 euros referentes à diferença de indemnização pelos períodos de incapacidade
temporária recebida pelo sinistrado e que resulta da diferença salarial; uma pensão anual e
vitalícia de 17.372,00 euros; prestação suplementar por necessidade de assistência de terceira
pessoa, correspondente ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os
trabalhadores em serviço doméstico; 4.630,08 euros a título de subsídio por elevada
incapacidade; e, ainda, 45.000,00 euros a título de danos não patrimoniais. A seguradora, por
seu, lado foi absolvida de todo o pedido. A entidade patronal recorreu para o Tribunal da
Relação que lhe negou provimento, mantendo a decisão recorrida.

Este problema obriga-nos desde logo a pensar no sistema de


solidariedade, segurança e protecção social de que as vítimas dispõem e cujas
lacunas e desconexação são amplamente apontadas no nosso trabalho de
campo. Vejamos o depoimento que se segue e que retrata o drama de muitos

304 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

sinistrados quando confrontados com a falta total de apoio por parte das
diferentes instituições:

“Nem sequer chegamos a essa fase da pensão provisória. Apenas a companhia de


seguros entendeu, por uma averiguação que fez ou por um testemunho qualquer que
lhe prestaram, que suspeita que o acidente foi por culpa do trabalhador ou da entidade
patronal… Logo a companhia de seguros deixa até de prestar os tratamentos, deixa de
prestar o pagamento de indemnização por incapacidade temporária… acabou. O
processo bloqueou ali. A empresa é informada de que o acidente foi por culpa deste ou
daquele, e portanto que a seguradora não se responsabiliza e apenas vai pedir para
ser ressarcida do dinheiro que gastou com o sinistrado. E o sinistrado tem
conhecimento dessa decisão da companhia de seguros. Algumas vezes até é uma
informação prestada oralmente… nem sequer é por escrito. E o trabalhador pergunta:
“E agora, o que é que eu vou fazer?”. Isto tem acontecido com muita frequência nestes
últimos 3, 4 anos. Dizem-lhe “Primeiro tem de ir à segurança social pedir baixa… tente
dizer que não é nada do acidente… Ou conta toda a verdade ao médico e explica-lhe a
sua angústia… e o médico, se tiver consciência do problema, põe lá baixa por doença
natural e você recebe.” Mas na maior parte dos casos o médico tem de especificar que
é acidente de trabalho e portanto é baixa sem retribuição e o trabalhador não recebe. E
pode andar assim 2, 3 meses (…) A segurança social responde por doenças naturais e
não por acidentes de trabalho… Se o trabalhador vai lá e diz a verdade ao médico, que
foi um acidente de trabalho… Se diz que foi a jogar futebol, tem baixa e remunerada…
Se é uma lesão mais grave, diz a verdade ao médico e o médico coloca: “Motivo da
baixa: acidente de trabalho” e quando chega aos serviços da Segurança Social não lhe
pagam. A mesma coisa sucede quando a companhia de seguros dá alta e o sinistrado
ainda não está em condições de trabalhar. Tem duas soluções: ou o patrão faz isso por
escrito ou arranja duas testemunhas e tem de ir pedir baixa à segurança social, pelo
menos para justificar a falta ao serviço, para não ser despedido por faltas
injustificadas… mas ele não recebe. É baixa sem retribuição. E pode andar assim
durante meses.” (Ent. 15)

Mas este drama vai, ainda, mais além. É que, mesmo quando não se
verificam atritos ou pendências judiciais, os atrasos no pagamento das
indemnizações por parte das companhias de seguros ou da entidades
empregadoras são frequentes e, como bem se compreende, são sinalizados
pelos sinistrados como mais um factor de vulnerabilização. Outra problemática
coloca-se quando a entidade responsável pelo pagamento da indemnização
acaba por não pagar ao sinistrado. É nestas situações que se justifica a
intervenção do FAT. Mas, segundo opinião maioritária dos nossos
entrevistados, o FAT tem uma intervenção muito tardia dado que, por regra,
apenas é chamado a intervir depois da declaração de insolvência da entidade
responsável pela indemnização. Entretanto e enquanto se apura se aquela

305 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

entidade, quase sempre a entidade empregadora, dispõe de bens para


ressarcir o sinistrado, nomeadamente através de diligência de penhora no
âmbito de um processo de execução, o sinistrado fica sem receber qualquer
indemnização. O que se defende nestas situações é que o FAT seja accionado
desde o momento em que se apura qual a entidade responsável pela
indemnização e que, posteriormente, caso venha a verificar-se que essa
entidade tem bens para cumprir com a obrigação de reparação do sinistrado, o
FAT exerça o seu direito de regresso. Neste sentido vejamos alguns
depoimentos:

“O FAT também mudou de estratégia. Agora a estratégia é depois de declarada a


falência ou a insolvência é que o FAT paga. Até lá ninguém repara o sinistrado. Porque
até aqui bastava a acção executiva (…). Agora, depois destas crises todas, a partir de
2004, eles fecharam a torneira. E estão a exigir, na maior parte dos casos, a
declaração de falência ou de insolvência e só a partir daí…”. (Ent. 15)

“O objectivo do FAT é, de facto, importante. Agora há muitas coisas que devem ser
revistas… que devem ser mais profundamente analisadas. O Ministério Público apenas
faz a transferência para o FAT quando é feito o pedido de falência da empresa… e isso
demora muito tempo… Antes disso procura-se, através do solicitador ou dos serviços
do tribunal, fazer penhoras a bens… O FAT devia responder, como deriva da própria
lei, perante entidades que não têm a sua transferência feita para nenhuma companhia
de seguros, e depois terá o direito de regresso quanto à entidade patronal. (…) Ainda
no outro dia aconteceu um caso idêntico, em que o senhor já está, desde Janeiro deste
ano, sem receber qualquer retribuição exactamente porque quem foi condenada foi a
entidade patronal, assumiu toda a responsabilidade, é um caso muito grave…. Já
foram penhorados alguns bens, que ninguém sabe se existem, já foi pedido ao tribunal
para que o FAT respondesse pela pensão daquele trabalhador, mas o FAT só
responde depois de empresa ser declarada insolvente… E entretanto o trabalhador
continua sem retribuição… Por que é que não há-de o FAT, a pedido do tribunal,
começar a pagar as prestações que são devidas ao sinistrado? (…) A responsabilidade
já está apurada… no auto de conciliação a entidade patronal responsabilizou-se pela
indemnização por elevada incapacidade, por terceira pessoa, tudo isso. Só que não
tem por onde lhe pagar. Se o FAT respondesse de imediato… e depois seria ressarcido
pela entidade patronal… O trabalhador é que não pode, de forma alguma, estar sem
receber qualquer retribuição.” (Ent. 15)

Neste entretanto, ou seja, enquanto se apuram responsabilidades e,


depois de apuradas, enquanto são se verificarem os pressupostos para a
intervenção do FAT, o trabalhador que sofreu o acidente de trabalho ou os
seus beneficiários não recebem nenhuma prestação referente ao direito de

306 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

reparação dos danos sofridos, apenas se podendo socorrer, como aliás resulta
do nossos trabalho de campo, de familiares que continuam a ser o suporte
social da nossa sociedade. Pelo resultado no nosso trabalho de campo parece-
nos que também aqui o MP revela mais uma faceta da já mencionada falta de
pró-actividade, não se tendo conseguido apurar quaisquer diligências que
sejam encetadas para, numa situação deste tipo, promover uma maior
protecção social do sinistrado.

4. INFORMALIDADE SALARIAL E SUBREPARAÇÃO


DAS VÍTIMAS

A incorrecção dos valores pagos pelo seguro, tanto no que se reporta


aos períodos de incapacidade temporária, como no quadro da remição
obrigatória de pensões, figuram no rol de reclamações dos sinistrados.
Associado a este problema, e como é amplamente comprovado pelos
processos judiciais que analisámos, as discrepâncias entre o rendimento
efectivo do sinistrado e aquele que é declarado e descontado pelas entidades
patronais para as companhias de seguros constitui uma persistente
regularidade sociojurídica, o que é, de resto, reflectido no mapa de objectos de

307 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

acção que estão na origem da passagem à fase contenciosa da reparação de


acidentes laborais297.

“Portanto o meu seguro estava em dia, só que veio-se a descobrir que o seguro estava
pelo ordenado mínimo nacional e eu ganhava mais… estava a pagar-me abaixo da
tabela e nunca me tinha pago o subsídio de alimentação, a que tinha direito”. (S3)

E quem é que descobriu tudo isso, essas incorrecções?

“Foi o tribunal de trabalho, o procurador. Portanto o único problema que eu tenho tido
em termos de ordem legal é com a entidade empregadora.(...) Sinceramente, a culpa
foi minha, porque… mas eu na altura nunca me passou pela cabeça. Eu levava os
cheques, ficava com os cheques assinados em branco, tudo, tudo… nunca… eu fazia
os pagamentos à segurança social, ia levar as folhas, tudo… nunca tinha ficado com
ideia de que estivesse a ser lesada de alguma forma. E fui.” (S3)

“Não. Quer dizer, o salário era, mas o meu patrão não declarava o subsídio de
alimentação. E portanto esse subsídio de alimentação nunca me foi pago. A entidade
patronal como não declarava… e eram logo 6,5 euros por dia, sr. dr…. era muito
dinheiro. Por isso é que eu pedi ao patrão para me deixar ir trabalhar.” (S4)

Vejamos um exemplo ilustrativo, de um processo judicial, em que o


desfasamento salarial é da ordem dos 100%:

297
Ainda assim, como veremos, os números relativamente baixos alusivos a esta realidade não
exprimem a sua relevância, nomeadamente pelo facto de a notação das estatísticas da justiça
obrigar à selecção de um objecto de acção quando, muitas vezes, são vários os conflitos
resolvidos em fase contenciosa.

308 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

Caso 4
Trata-se de um acidente mortal, que vitimou um jovem de 27 anos, motorista, com um
rendimento mensal declarado de cerca de 620 euros, que tinha sob sua dependência
económica a esposa, dois filhos e uma enteada. O advogado da viúva alega que a vítima
recebia, à data do acidente, a retribuição base de 1 047,48 euros mensais (acrescidos de 98,76
mensais de subsídio de alimentação). No que toca a responsabilidade da companhia de
seguros, esta aceita integralmente as suas obrigações reparatórias, na proporção do
rendimento declarado. Porém, a família do sinistrado alega que este recebia, mensalmente e
com regularidade, dois cheques, um com o valor indicado pela entidade patronal, e outro com o
remanescente.
Acontece que a entidade patronal insistia que “o segundo cheque” mensal não era salarial,
servindo apenas para pagar as despesas de manutenção da viatura, que o trabalhador
adiantava. Arrolou o contabilista para o comprovar. O contabilista compromete-se com a
entrega dos recibos das despesas até à audiência de discussão e julgamento – coisa que não
fez, pelo que se concluiu tratar-se de uma prática fraudulenta. O advogado da entidade
patronal, na audiência, afirma perder a confiança no cliente e renuncia ao seu patrocínio, pelo
facto de a testemunha (contabilista) que chamou a depor ter afirmado possuir os documentos
comprovativos, coisa que não aconteceu: “não obstante as várias insistências por parte do
mandatário da aqui ré patronal, nunca chegaram às suas mãos. Assim, entende o mandatário
da mesma co-ré [entidade patronal] não ter condições materiais e de confiança para prosseguir
com o seu mandato”.
Conclusão: a entidade empregadora foi obrigada a assumir a responsabilidade indemnizatória
perante a família da vítima e o contabilista sofreu uma multa elevada pela manobra de
diversão. Na execução da sentença foi ainda alegada falta de liquidez por parte da entidade
patronal, possuindo uma dívida indemnizatória de cerca de 100 000 euros para com a família.
Passa-se à penhora dos respectivos bens, processo que ainda se pautou por acidentes
diversos e morosos, sem intervenção do Fundo de Acidentes de Trabalho.

Num outro processo por acidente de trabalho, corrido num outro tribunal,
em que a base de cálculo da reparação é igualmente alvo de disputa na fase
contenciosa do processo

309 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

Caso 5
A vítima, mulher, tinha 23 anos e era auxiliar de educação numa creche (IPSS), dispondo de
um rendimento mensal aproximado de 470 euros. Porém, a entidade patronal não efectuava o
pagamento de subsídio de alimentação à trabalhadora 298, na medida em que a mesma
almoçava na cantina da creche. Esta realidade constituiu o cerne da contenda, concluindo-se
pela irregularidade da prática patronal, que prejudicara o direito reparatório da vítima: “a
sinistrada tem direito a receber o respectivo valor que o recebia em espécie. [...] A entidade
patronal só transferiu para a seguradora o valor de 414,5 euros – ordenado base –, não
transferindo o valor relativo ao subsídio de alimentação nem às ajudas de custo pagas
mensalmente com carácter de habitualidade”.

Se o valor diferencial parece, à primeira vista, irrisório, observado à


escala do ordenado da vítima fará toda a diferença no seu orçamento familiar.
A sua amputação significaria uma perda económica significativa, subreparando
a vítima. A interacção entre as vítimas de acidentes de trabalho, as instituições
seguradoras, as entidades patronais e o sistema judicial suscita este problema
crónico de informalidade laboral, relacionado – entre outros aspectos – com o
carácter ausente ou parcial da transferência obrigatória do seguro, o que se
reflecte num aumento da morosidade do processo e na corresponsabilização
do empregador. Assim, por um lado, nem sempre os tribunais, e o MP em
particular, se revelam capazes de conduzir uma investigação que apure esses
problemas e, por outro, pode suscitar diferentes incidentes no andamento do
processo com impactos negativos na protecção do lesado.

Como apontámos no Capítulo 1, as novas paisagens laborais são


pautadas pela atipicidade e pela desregulação (Estanque, 2005),
caracterizadas pela fluidez entre o que é ou não considerado trabalho ou pela

298
Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/05/2008 e Acórdão do STJ de
13/01/93.

310 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

falácia da autonomia e do trabalho independente. Este novo contexto


sociolaboral repercute-se de igual forma nos modos de exposição corporal ao
trabalho e nas condições de reparação dos danos emergentes. Nesse sentido,
a proliferação dos comummente apelidados falsos recibos verdes induz um
enquadramento jurídico da relação laboral descoincidente com a subordinação
efectiva que caracteriza essa relação, alterando o código normativo que
assegura os direitos indemnizatórios, em prejuízo das vítimas:

“A minha seguradora tem um universo pequeno, como sabe, tem um contrato no


mercado de acidentes de trabalho de qualquer coisa, portanto é uma pequena
seguradora, mesmo assim já é média, mas o que eu lhe posso garantir é que na
totalidade dos casos que nós dissemos que não é pessoa segura e ele me diz que é
trabalhador independente o tribunal actua. Actua e condena o empregador a não ser
que se prove claramente que é trabalhador independente e aí ele tinha que ter um
seguro de trabalhador independente.” (Ent. 21)

O papel do Ministério Público na recolha exaustiva de todos os


elementos que reconstituam a relação de trabalho em questão revela-se
fundamental, de forma a impedir a reprodução, por parte dos tribunais, de uma
discrepância antidistributiva entre law in books e law in action (Krieger, 2003).
Para além disso, as especificidades da formação social portuguesa, o seu
carácter semiperiférico e a complexidade histórica do respectivo pacto social
conduziram àquilo que Boaventura de Sousa Santos (1992) designou por
Estado paralelo, no sentido em que

“Perante este relativo bloqueio do processo de revinculação do Estado ao


processo de acumulação, o Estado passou a tolerar e até a promover a
violação maciça dos direitos laborais e sociais conquistados pelas classes
populares, alguns deles consignados na Constituição política.”

O governo (em sentido foucaultiano) da sinistralidade laboral, onde se


incluem os processos, mecanismos e dispositivos reparatórios, encontra-se
assim indexado a uma ordem sociojurídica que gere e estabiliza as suas

311 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

próprias contradições. Os tribunais poderão desempenhar um papel importante


na correcção de algumas das disparidades, nomeadamente quando decidem
sobre direitos humanos fundamentais, como o direito à vida e à integridade
física – e portanto à sua justa indemnização. É, assim, importante reiterar que a
fase conciliatória dos processos judiciais constitui uma etapa de extrema
importância na colecção de dados e factos indispensáveis às soluções que
advierem, detendo o Ministério Público um forte protagonismo na averiguação
das condições de cálculo das pensões: não apenas no tipo de relação laboral
realmente existente, como também no rendimento que servirá de base à
quantificação da indemnização.

Ainda assim, é-nos apontado que o risco de deterioração da relação


laboral através dos conflitos conexos que um litígio desta natureza pode
suscitar produz, muitas vezes, um efeito dissuasor da pró-actividade do
Ministério Público, em nome da armadilha, com contornos variáveis, da paz
laboral:

“O Ministério Público tenta ver isso, mas o próprio Ministério Público também é uma
pessoa sensata, se apurar que há um desfasamento… é capaz de não dizer nada
porque não quer criar um conflito. A principal preocupação é verificar se o segurador
está a agir correctamente depois tenta saber se não há um desfasamento grande. E se
houver diz ao sinistrado que há ali… E é obvio que isto pode criar um conflito, mas nem
sempre cria, eu já tive alguns exemplos que era ignorância do empregador e não sabia
que tinha de transferir aquilo. Mas pode criar e essa parte preocupa-me.” (Ent. 21)

A generalização de um conjunto de expedientes retributivos que


permitem a redução dos encargos fiscais e sociais com os trabalhadores obriga
à qualificação da investigação desenvolvida pelo Ministério Público, no sentido
de reconstituir os rendimentos regulares do sinistrado e evitar que a engenharia
retributiva penalize o seu cálculo indemnizatório. A percepção dos operadores
relativamente a esta temática não deixa de ser contraditória. A perspectiva
seguradora demonstra confiança nos procedimentos habituais, no sentido de
conformar as bases salariais com a transferência de responsabilidade:

312 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Acidente e Labirinto da Sinistralidade

“Sempre que o juiz se apercebe que há um determinado tipo de pagamento, não


interessa qual é a designação que o empregador dá aquilo que paga, mas que esse
pagamento nem que seja designado por horas extraordinárias, é efectuado com certa
regularidade, o juiz entende que quer retribuição para acidentes de trabalho. Nós
quando fazemos o seguro o que aconselhamos a quem o celebra é “o que é que o
senhor paga sistematicamente?”. E tem que pôr tudo. Uma coisa é paga uma vez na
vida ou outra, isso não. E portanto o conceito é fácil. Por vezes há uma situação ou
outra daquilo que é pago que não poderá ser fácil.” (Ent. 21)

Porém, foram múltiplos os processos em que se verificam, ora mais


ligeiros, ora mais graves, desfasamentos entre o enquadramento laboral e a
referência salarial do sinistrado, pelo que são vários e de vária ordem os
bloqueios nas práticas da justiça reparatória quotidiana. Como já vimos, o
afastamento do Ministério Público dos processos de pequenas incapacidades
pode significar, para além de uma forma de conciliação repressiva, uma forma
de ocultação de irregularidades legais, altamente penalizadora para as vítimas.
A celeridade na resolução do processo não se compadece com a
complexidade e desigual relação de poder e forças na aferição das condições
materiais em ocorre tanto o acidente de trabalho como a relação laboral e
salarial que lhe subjaz. Os prejuízos acumulados a este nível subreparam e
fragilizam as vítimas, violando os seus direitos constitucionais à justa
reparação.

313 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


5

CAPÍTULO 5
DANO, PERÍCIA E REPARAÇÃO
Dano, Perícia e Reparação

INTRODUÇÃO

Aquilo que hoje comummente designamos por dano corporal nem


sempre possuiu o mesmo estatuto e significado social. Com ou sem origem
natural, a atitude e as respostas que a sociedade desenvolveu à diferença
corporal (Martins, 2006) variaram fortemente ao longo dos séculos, o que se
reflectiu tanto nas múltiplas denominações que este foi assumindo, bem como
nos diferentes modos de encarar e construir o estigma (Goffman, 1993), desde
a sua conotação antropológica com o mal e castigo divino até à sua
perspectivação enquanto invalidez ou incapacidade funcional. Todo este
processo evolutivo, a que não é estranha a modelação da atenção social sobre
o comportamento e a competência corporal (Elias, 2006), foi pautado por uma
ambivalência que, em última instância, condensa a tensão constitutiva dos
pilares regulador e emancipador da modernidade (Santos, 1999).

Por um lado, a deformidade física percepcionava-se como uma ameaça


à ordem e à sobrevivência social, constituindo um fenómeno simultaneamente
estranho e ameaçador299 que requeria mecanismos de depreciação,

299
A enunciação da deficiência como diferença cultural permite-nos alargar o escopo analítico
do fenómeno e compreender como, historicamente, é tão verdadeira a desqualificação como a
dignificação: “no antigo Egipto, os cegos os anões ou as crianças com malformações

315 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

inviabilização, exclusão e neutralização social300. Por outro, esta dinâmica de


teor regulatório confrontava-se com a emergência de novas formas de observar
e cuidar do lesado, em que a compaixão passa a mobilizar o zelo da
intervenção social junto da deficiência. Estas lógicas conviveram
articuladamente e são, de alguma forma, os antepassados mais ancestrais
daquilo que Luc Boltanki (2001) designou por política da piedade301, jogando
um papel importante na enunciação de um conceito de justiça corporal que,
além daquela que é normatividade legal traduzida no processo e na decisão
judicial, extravasa para outras linguagens e racionalidades sociais.

Teresa Magalhães (1998) desenvolve uma reconstituição histórica e


epistémica do dano corporal, questionando alguns dos estereótipos mais
enraizados acerca desta realidade e permitindo compreender a trajectória
social, cultural e política do corpo lesado. Simultaneamente, discute algumas
controvérsias históricas acerca dos processos de indemnização do dano

anatómicas ou dificuldades de aprendizagem eram considerados dádivas dos deuses e


beneficiavam estatuto que os honrava. A «diferença» era entendida, muitas vezes, como um
sinal de poder sobrenatural, encontrando-se inúmeras referências a indivíduos com diferentes
tipos de deformidades, em papiros e baixos relevos” (Hernández apud Magalhães, 1998: 28).

300
Neste sentido: “Os romanos tinham direito a matar os filhos que nasciam com deformidades
se, depois de mostrados a cinco vizinhos, estes dessem o seu consentimento. A Lei das XII
Tábuas, redigida em Roma e promulgada nos anos 542-541 a. C. Ampliou ainda mais o direito
do pai a dispor da vida dos filhos, até ao ponto deste poder privar a vida de uma criança
disforme, depois do nascimento, sem necessidade do consentimento de alguma pessoa. No
entanto, esta prática não era norma comum em Roma. As crianças eram abandonadas no rio
Tibre, em cestas de flores, talvez para provocar a compaixão e evitar assim a morte ou
tranquilizar a consciência.” (Montalvo; Hernández apud Magalhães, 1998: 27).

301
A compaixão diferencia-se da piedade pela distância e pelo estatuto do observador face ao
sujeito observado em sofrimento. A segunda demarca-se da primeira pela sua imunidade
perante a experiência da dor: “Os sofredores infortunados estão distantes; não podem ser
objecto de uma acção imediata” (Boltanski, 2001: 6).

316 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

corporal, nomeadamente os modos de organização da competência na


avaliação do dano, os meios utilizados para esse fim e os valores em que
historicamente se fundou quer a avaliação, quer a indemnização do dano físico
e psíquico.

1. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DANO CORPORAL

A Revolução Francesa e a Revolução Industrial302 são seguramente dos


marcos históricos fundamentais no que diz respeito à consagração de um novo

302
Recuando um pouco mais, no Paleolítico, descobertas antropológicas sobre tribos nómadas
comprovam a tolerância daqueles grupos à incapacidade física, contrariando as visões mais
funcionais da socialidade (Hamonet e Whitehead, 1994). Já na civilização helénica, a
deformidade congénita era considerada contranatural, sendo por isso causa de exclusão da
cidadania. Ainda assim, terá sido no consulado de Péricles que a indigência, a invalidez e a
mutilação suscitaram as primeiras abordagens assistenciais, bem como a primeira forma
estruturada de solidariedade baseada na ideia de recompensa (Geertz, 1962).

No contexto medieval, a mutilação e a enfermidade adquiriram contornos sociais e semióticos


muito particulares, pois a ideia da salvação vincula-se a uma política da esmola: função
manifesta de salvação espiritual e função latente de regulação social. Nesse sentido, como
aponta Teresa Magalhães (1998), o êxito da mendicidade produziu a sua própria perversão, ao
ponto de, por exemplo, as crianças serem mutiladas para ser exploradas com este fim. Por
outro lado, os surtos de lepra obrigaram a fortes medidas de isolamento, com efeitos jurídicos
estrondosos. Só com os auspícios da modernidade (e com a rarificação da doença) é que os
leprosos deixaram de ser considerados mortos para fins civis (Imbert, 1958). Em termos

317 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

estatuto epistémico e normativo dos lesados corporais, a partir daquilo que foi o
contributo do racionalismo científico e a afirmação moderna dos ideais de
liberdade e igualdade:

“Começou a admitir-se que [as pessoas com deficiência ou incapacidade física]


eram pessoas como as outras, capazes de realizar uma vida normal se lhes
fossem dados meios adequados para pôr em marcha as suas capacidades de
superarem as limitações que possuíam, passando, então, a ser aceites pela
comunidade como uma carga pública à qual o Estado deveria prestar atenção
numa perspectiva mais ampla do que apenas a cura” (Montalvo apud
Magalhães, 1998: 31/32).

A emergência e o crescimento de uma massa social proletária exposta a


fortes riscos industriais terá sido um factor decisivo na transformação dos
quadros mentais e normativos associados à reparação dos danos corporais
decorrentes de actividades sociais mais estruturadas na desigualdade. A noção
de independência económica no contexto da invalidez adquire uma nova
importância nas respostas fornecidas aos lesados, atendendo-se, para além do
tratamento médico, às necessidades da vida diária e à educação ou
reeducação nos casos em que se frustrava a possibilidade de regresso ao

globais, é possível afirmar que, na Idade Média, se verifica uma retracção no sentido de
responsabilidade perante o lesado, agravada inclusivamente pela estagnação médica devido à
orientação dos saberes para os textos antigos, negligenciando a observação clínica e as
investigações fisiológicas e anatómicas.

A ruptura operada pela modernidade trouxe uma nova forma de enquadrar o dano corporal,
reenunciando progressivamente o problema na óptica da responsabilidade pública, embora
emprestando-lhe objectivos repressivos e reclusivos no sentido de assegurar a estabilidade
ontológica da sociedade. As tecnologias de poder desenhadas e executadas sofisticaram
sobremaneira os modelos de organização e ordenação social e o relevo da integridade corporal
e da subjectividade individual é claramente ampliado. É aliás no século XVII que surgem as
primeiras organizações especializadas no tratamento socioclínico dos soldados inválidos, bem
como as primeiras indemnizações por ferimentos de guerra.

318 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

trabalho inicial. O drama e a violência dos acidentes laborais com o


crescimento subregulado das actividades industriais e do trabalho subordinado
já foram apontados, a par das reformas jurídicas e provisionais do Estado na
reparação do fenómeno. Porém, as profundas lesões corporais geradas nos
palcos de guerra foram verdadeiros laboratórios de ensaio tanto para a
compensação do dano físico das vítimas como para a rentabilização da força
de trabalho dos estropiados:

“Depois da Primeira Guerra Mundial, surgiu em França a ideia de


reclassificação e reinserção para os antigos combatentes, com a possibilidade
de formação profissional de obtenção de emprego, através da criação dos
empregos reservados e da obrigação de emprego. Ao mesmo tempo, para
substituir os válidos mobilizados no teatro das operações militares, foram
empreendidas iniciativas com vista à utilização, no trabalho das fábricas, da
capacidade restante dos mutilados” (Magalhães, 1998: 34).

A afirmação dos Estados-Providência na Europa trouxe consigo


diferentes formas de promover políticas sociais compensadoras e integradoras
das pessoas com deficiência congénita ou adquirida, tal como envolveu
políticas públicas mais amplas no sentido da protecção social e judicial do
sinistrado. Em 1975, a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes303 fixa,
desde logo, um catálogo de direitos fundados no preceito da igualdade, da
independência, do tratamento, da readaptação, instrução e formação
profissional, da qualidade de vida, do emprego, do apoio familiar e da
protecção acrescida perante a vulnerabilidade (Dessertine, 1990). Embora a
Comunidade Europeia não seja particular fonte de legislação em matéria de
reparação de acidentes de trabalho, não deixou de influenciar uma grande

303
Ai pode ler-se que “Por pessoa com handicap entende-se toda a pessoa que na sequência
de uma deficiência das suas capacidades físicas e mentais, congénita ou não, não consegue
assegurar, no todo ou em parte, e pelos seus próprios meios, as necessidades de uma vida
individual e/ou social normal”. Cf. também Hamonet (1994).

319 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

parte dos quadros legais relacionados com matérias de higiene e segurança no


trabalho. A Organização Internacional do Trabalho, por sua vez, tem vindo a
alargar a sua reflexão em torno do trabalho, operacionalizando o conceito de
trabalho digno e, com ele, avançando um conjunto de disposições em torno do
trabalho seguro, o que envolve a prevenção, a reparação e a reabilitação no
contexto da sinistralidade laboral.

2. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS INSTRUMENTOS


PERICIAIS

A provisão de perícias médico-legais e o sistema de procedimentos


clínicos construídos para a avaliação do dano corporal, enquanto práticas e
saberes auxiliares da justiça, nem sempre possuíram os contornos sociais,
legais e institucionais que hoje conhecemos304. Se atentarmos aos próprios

304
As primeiras tentativas de quantificação do dano para fins indemnizatórios, isto é, de
classificar e avaliar o prejuízo corporal com o objectivo de auxiliar a prática de justiça perante
um corpo lesado, encontram-se na Tábua de Nipur n.º3191, de 2050 a.C., através da qual se
elencavam incapacidades, a que se faziam corresponder quantias monetárias. Há vários
documentos históricos alusivos às diferentes formas de se proceder à correlação entre dano e
indemnização. Um dos exemplos mais nítidos e significativos é o Mincha ou Segunda Lei,
redigido nos primeiros séculos da era cristã, que estipulava valores específicos para o dinheiro
da dor, os custos do tratamento, o tempo perdido e o dinheiro da honra associados ao dano no
corpo e à responsabilidade daí emergente.

320 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

fundamentos da reparação, verificamos que a perturbação da integridade física


nem sempre convocou duas ordens distintas de justiça: a punição do culpado
(responsabilidade criminal) e a indemnização da vítima (responsabilidade
civil)305:

“A vingança privada foi restringida pela Lei de Talião e o sistema das


composições voluntárias, em que o ofensor tinha que pagar ao ofendido uma
determinada quantia para comprar o seu direito de vingança privada,
transformou-se no sistema de composições obrigatórias, mas só com a
aparição dos Estados modernos as duas formas de responsabilidade se
autonomizaram completamente” (Magalhães, 1998: 47).

A fragmentação jurídica experimentada na Europa, em contrapartida, fez


conviver diferentes regimes indemnizatórios306: as lógicas tabelares e

305
A este respeito veja-se: “Quando dois homens se envolverem em questões, e um deles ferir
o outro com uma pedra ou com um punhal, sem causar a morte, mas obrigando-o a estar na
cama, aquele que o tiver ferido não será punido, se o outro se restabelecer e puder sair
apoiado no seu bordão. Contudo, indemnizá-lo-á do trabalho perdido e das despesas com o
tratamento” (Êxodo, capítulo 21, versículos 18 e 19).

306
Antes de avançarmos diga-se que um aspecto historicamente relevante na compreensão da
economização do corpo, isto é, na conversão do corpo numa linguagem económica e num
código de valor, reside precisamente na escravatura. O entendimento dos escravos enquanto
mercadoria de trabalho transaccionável fez com que a sua incapacidade física produzisse um
impacto directo e negativo na força de trabalho à disposição do seu proprietário e na cotação
económica do escravo. A medição desse impacto cumpria, por vias travessas, uma função de
medição do dano e prejuízos emergentes, embora na perspectiva do proprietário e não na
perspectiva da vítima corporal.

Por sua vez, também na história dos árabes pré-islâmicos é possível encontrar registos sobre
valoração moral e corporal em sede de justiça, o que, entre outras coisa, pressupunha que a
mulher valia metade do homem e um judeu ou um cristão valiam um terço de um muçulmano.
Para se proceder à reparação das lesões físicas recorria-se a valores tarifados em função da
anatomia atingida e da gravidade da ocorrência. A perda do valor global da vítima era também
uma forma de se apurar o impacto do dano, pelo que a desvalorização relativa seria muitas

321 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

reparatórias perderam progressivamente terreno e aquilo que hoje designamos


por medicina legal converte-se num domínio de saber com preponderância
exclusivamente penal. Em 1382, com o Código Civil Francês, a separação
entre a regulação penal (colectiva e objectiva) e civil (individual e subjectiva) 307
da sociedade permitiu a emergência uma forma específica de
responsabilidade. A ideia da perícia civil só virá, ainda assim, a consagrar-se
mais tarde, cujo primeiro grande exemplo, segundo Geertz (1962), remonta a
1716 com a regulamentação militar que previa a realização de autópsias, a fim
de se poder fixar o direito a pensão aos familiares como resultado de acidente
de trabalho.

De acordo com Oliveira Sá (1992), o código napoleónico terá sido o


grande enquadrador da reparação civil e do surgimento organizado das
perícias médico-legais, cabendo em larga escala à doutrina e à jurisprudência
percorrer o longo e complexo caminho da delimitação e depuração do dano
corporal e das respectivas especificidades indemnizatórias. Como conclui
Teresa Magalhães,

“No fim do século XIX, devido à complexidade crescente do relacionamento


social, ao progresso tecnológico e industrial e à difusão dos meios de
transporte, criaram-se riscos acrescidos de acidentes (que num grande número
de casos não configuravam comportamentos culposos), aumentando o número
de conflitos e de demandas judiciais” (1998: 54).

vezes objecto de apreciação especializada. Contudo, a adopção sistemática de instrumentos


tabelares pelo sistema legal, como auxílio pericial para a fixação de valores compensatórios
para o dano corporal, apenas se consolida na sequência da desagregação do Império Romano
e com a afirmação dos Germanos.

307
Distinção cuja génese, em bom rigor, se encontra no Direito Romano, através da regulação
diferenciada das relações entre particulares (ius civile) e o Direito das Gentes e Direito Natural.

322 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

3. A EVOLUÇÃO DA PERICIALIDADE EM PORTUGAL

Também entre nós o século XX foi o grande período de desenvolvimento


e maturação da medicina legal e das ciências forenses. Como decorre do que
ficou exposto, no rescaldo da II Guerra Mundial, o incremento da circulação
rodoviária e a protecção social dirigida aos trabalhadores sinistrados
convergiram, no quadro da emergência dos Estados de bem-estar, num
aumento do protagonismo da avaliação pericial do dano corporal, de que dá
conta o aumento progressivo do volume anual de perícias médico-legais. Em
Portugal, é nos finais dos anos 80 que surgem os primeiros cursos de pós-
graduação dirigidos à avaliação do dano, se esboça a criação de uma
comunidade científica organizada em torno da sua especificidade temática, e
se preparam alguns mecanismos de regulação da prática médico-legal (Vieira,
2008: 35). A expansão do INML na última década, a multiplicação dos
gabinetes médico-legais e, portanto, o aumento da sua cobertura nacional será
certamente um factor importante para a redução da discricionariedade e
opacidade do sistema pericial no contexto da avaliação de incapacidades,
determinantes das indemnizações a atribuir.

“Há 10 anos atrás havia Lisboa, Porto e Coimbra [delegações do INML]. Nada mais. As
perícias todas, no resto do país, eram feitas por peritos contratados pelos tribunais,
muitas vezes por uma simples razão de amizade com o juiz… às vezes passava de
pais para filhos… sem nenhuma formação pericial, os lugares, sobretudo os que eram
mais rentáveis, até eram vendidos, tipo trespasse como as farmácias, e um perito
quando ia sair de um tribunal de trabalho onde havia muito movimento e se ganhava
muito bem, no final, quando se ia reformar, trespassava o lugar e vendia o lugar por 2
ou 3 mil contos ao colega que lhe oferecesse mais e ele então indicava ao juiz, mesmo
que não tivesse formação pericial nenhuma”. (Ent. 14)

A produção e densificação ad hoc de redes clientelares em torno da


provisão de perícias médico-legais para os tribunais, imunes a qualquer
escrutínio e destituídas de controlo institucional e disciplinar, constituiu um
problema essencial para a qualidade da justiça e da reparação do dano

323 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

corporal, levantando problemas de vária ordem, desde a formação dos


profissionais à transparência do sistema e às garantias fundamentais dos
cidadãos. No que toca a institucionalização, formação e controlo do acesso à
carreira pericial, a criação de concursos públicos, no âmbito do INML, constitui
uma alteração de fundo no modelo de recrutamento dos profissionais,
submetendo-os a uma avaliação mais rigorosa. Para além disso, a estruturação
de uma carreira que assegura lógicas de formação e actualização contínua
constitui uma aquisição fundamental para a justiça reparatória.

“Isto estimulou a formação das pessoas, porque sabem que de 3 em 3 anos vão ter de
concorrer e que pode aparecer um gajo com mais habilitação que lhe passa à frente e
perde o lugar se não vier fazer pós-graduações, se não vier fazer formação em
actividade pericial… Portanto isto melhorou porque criou a necessidade de assegurar
formação contínua e de as pessoas adquirirem qualificação, e isso é inegável: nós
cada vez que abrimos um curso de avaliação do dano corporal concorrem muitos mais
candidatos do que a capacidade de absorver essas pessoas que nós temos. E
portanto, nesse aspecto, a formação e a qualificação dos profissionais que trabalham
para o Instituto e que trabalham nesta área, nomeadamente nos tribunais de trabalho e
em civil, acho que melhorou abissalmente.” (Ent. 14)

Como se vê, a formação de um corpo ou de uma geração de peritos


médico-legais envolve diferentes esforços, quer por parte dos próprios peritos,
quer por parte do INML. No entanto e apesar da evolução, o panorama actual
ainda não é o desejável.

“Primeiro, porque ainda não temos todo o número de médicos qualificados de que
precisávamos face ao número de exames periciais que temos. Ainda não há um
número de especialistas, de verdadeiros especialistas, nesta área, que dê resposta a
todas as solicitações do país. Mas Roma e Pavia não se fizeram num dia. Nós temos
hoje quase o dobro dos especialistas que tínhamos quando o INML foi criado. Também
não podemos, de um momento para o outro, formar todos os peritos, porque
naturalmente os médicos não têm essa capacidade (…) o Instituto vai todos os anos
abrindo lugar para 7, 8, 9 especialistas. Como o internato são 4 anos, se começarem
todos os anos a sair 8, 9, nós em 10, 15 anos poderemos criar um primeiro corpo e
hoje, felizmente, já não há só especialistas em Lisboa, Porto e Coimbra, mas já temos
vários gabinetes médico-legais com especialistas.” (Ent. 14)

A este respeito é de salientar que até muito recentemente a medicina


legal não era uma especialidade. Só no ano de 1998 é que se passou a

324 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

equiparar a medicina legal a todas as outras especialidades. A consequência é


óbvia.

“Os médicos mais velhos não fizeram nenhum internato, não tiveram nenhum programa
de formação, aprenderam naquela base… depois obtiveram o título de especialistas
quando isto foi criado, por consenso, mas não tiveram formação. Dessa geração,
felizmente, já só restam poucos, mas ainda há alguns, e portanto também nos criam
alguns problemas.” (Ent. 14)

Por fim, é de salientar a alteração positiva no que respeita às condições


em que se realizam actualmente as perícias, por oposição ao que tínhamos há
poucos anos atrás. A evolução que se fez sentir é notória.

“Também há que reconhecer que há dez anos atrás não havia condições. Como sabe a
maior parte destes exames era feito na sala de audiência do tribunal, mas perícias às
vezes eram feitas na secretaria, se era preciso despir o examinado ou a examinada às
vezes eram à frente das outras pessoas com tudo a tentar deitar o olho… Não havia o
mínimo de condições de dignidade, de intimidade… Muitas vezes nem se olhava para o
sinistrado.” (Ent. 14)

Hoje, há gabinetes médico-legais espalhados por todo o país, hospitais


com gabinetes médicos perfeitamente adequados, com condições de higiene e
segurança que também são fundamentais para estas áreas e com condições
de dignidade, tanto para quem é submetido, como para quem executa a
perícia. Relatos de situações como a que seguir damos conta já não têm lugar
nos dias actuais.

“Ouça, há 10 anos atrás eu lembro-me de ir fazer autópsias a Alvaiázere, por exemplo,


e era numa sala de autópsias no meio do cemitério, e era um barracão que não tinha
nem luz eléctrica, nem água canalizada… e portanto aquilo era feito num barracão no
meio do cemitério em que a gente tinha de deixar a janela e a porta aberta, enquanto
fazia a autópsia numa pedra mármore com um buraco no meio onde o sangue caía
para um alguidar, quando o alguidar estava cheio a gente tinha de despejar para cima
de uma campa e tornava a pôr por baixo… Isto eram autópsias feitas há 10 anos atrás.
(…) Eu trabalhei muito em tribunais de trabalho quando era assistente e vi muito
sinistrado em salas de audiência, nas secretarias, no vão de umas escadas, porque
não havia condições, nem tinha que haver… os tribunais não são salas de exames
médicos… e portanto não havia condições. Hoje em dia nada disto tem a ver. Há
deficiências e insuficiências ainda? Há claro, que há.” (Ent. 14)

325 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

4. AS FUNÇÕES E ATRIBUIÇÕES LEGAIS DO INML

Como se depreende do que já ficou dito, em Portugal, o Instituto


Nacional de Medicina Legal (INML) é o organismo responsável pela
coordenação da actividade dos serviços médico-legal. É um instituto público,
integrado na administração indirecta do Estado, dotado de autonomia
administrativa e financeira e de património próprio, que tem por fim a
prossecução das atribuições do Ministério da Justiça, actuando, assim, sob
superintendência e tutela do respectivo ministro. A sua missão é a assegurar a
formação e coordenação científicas da actividade no âmbito da medicina legal
e de outras ciências forenses, superintendendo e orientando a actividade dos
seus serviços médico-legais e dos peritos contratados para o exercício de
funções periciais. No âmbito das suas atribuições, o INML é considerado
instituição nacional de referência, sendo suas atribuições, entre outras, as que
se seguem:

Contribuir para a definição da política nacional na área da medicina legal e


de outras ciências forenses;

Cooperar com os tribunais e demais serviços e entidades que intervêm no


sistema de administração da justiça, realizando os exames e as perícias de
medicina legal e forenses que lhe forem solicitados, nos termos da lei, bem
como prestar-lhes apoio técnico e laboratorial especializado, no âmbito das
suas atribuições;

Programar e executar as acções relativas à formação, gestão e avaliação


dos recursos humanos afectos à área da medicina legal e de outras
ciências forenses;

Adoptar programas de garantia de qualidade aplicados aos exames e às


perícias médico-legais e forenses da sua competência e promover a
harmonização das suas metodologias, técnicas e relatórios periciais,
nomeadamente emitindo directivas técnico-científicas sobre a matéria.

326 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

Trata-se de um organismo central, com sede em Coimbra, com


jurisdição sobre todo o território nacional, contando, ainda, com três
Delegações, uma delas também em Coimbra, outra em Lisboa e uma no Porto.
Destas três delegações dependem directamente os Gabinetes Médico-Legais
(e extensões), garantindo, assim, a cobertura nacional do universo da
actividade médico-legal. Como já se referiu, este processo de expansão foi
sobretudo conseguido na última década.

As atribuições das delegações são, genericamente, as do INML, mas


restringem-se, geograficamente, à sua área de actuação, sem prejuízo das
competências reservadas aos órgãos e serviços centrais. Para o efeito, cada
uma das delegações dispõe dos seguintes serviços técnicos:

Serviço de Patologia Forense – a estes serviços compete a realização de


um conjunto alargado de perícias e exames, tais como, autópsias médico-
legais aos óbitos verificados nas comarcas do âmbito territorial de actuação
da delegação; ou, exames de anatomia patológica forense no âmbito das
actividades da delegação e dos gabinetes médico-legais que se encontrem
na sua dependência, bem como a solicitação das autoridades e entidades
para o efeito competentes e do presidente do conselho directivo. Este
Serviço de Patologia é, ainda, responsável, no âmbito das suas áreas de
competência, pela supervisão técnico-científica dos gabinetes médico-
legais dependentes da respectiva delegação;

Serviço de Clínica Forense – compete-lhes a realização das perícias e


exames em pessoas com vista à descrição e avaliação dos danos
provocados na integridade psicofísica, nos diversos domínios do direito,
designadamente no âmbito do direito penal, civil e do trabalho, nas
comarcas do âmbito territorial de actuação da delegação, bem como a
realização das perícias de natureza psiquiátrica e psicológica. Também
este Serviço é responsável, no âmbito das suas áreas de competência, pela
supervisão técnico-científica dos gabinetes médico-legais dependentes da
respectiva delegação;

327 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

Serviço de Toxicologia Forense – compete-lhe assegurar a realização de


perícias e exames laboratoriais químicos e toxicológicos, no âmbito das
actividades da delegação e dos gabinetes médico-legais que se encontrem
na sua dependência, bem como a solicitação das autoridades e entidades
para o efeito competentes e do presidente do conselho directivo;

Serviço de Genética e Biologia Forense – compete-lhe assegurar a


realização de perícias e exames de identificação genética, nomeadamente
os de investigação biológica de parentesco, de identificação individual, de
criminalística biológica ou outros, no âmbito das actividades da delegação e
dos gabinetes médico-legais que se encontrem na sua dependência, a
solicitação das autoridades e entidades para o efeito competentes e do
presidente do conselho directivo.

Aos gabinetes médico-legais, por sua vez, compete-lhes a realização


das autópsias médico-legais respeitantes aos óbitos ocorridos nas comarcas
integradas na sua área de actuação, bem como de outros actos neste domínio,
e, ainda, nas comarcas da sua competência, a realização de exames e perícias
em pessoas, para descrição e avaliação dos danos provocados na integridade
psicofísica, nomeadamente, no âmbito do direito penal, civil e do trabalho.
Excepcionalmente e sempre por determinação do conselho directivo, podem os
peritos dos gabinetes podem realizar os exames na comarca da residência das
pessoas a submeter a exame, quando as dificuldades de deslocação aos
gabinetes, ou outras circunstâncias, o justifiquem.

Por fim, é de salientar que o serviço dos gabinetes médico-legais é


assegurado por médicos do quadro do INML ou, na medida em que isso não
seja possível, por médicos contratados para o exercício de funções periciais. O
INML pode solicitar directamente aos serviços e organismos públicos,
nomeadamente do Ministério da Saúde, bem como às entidades privadas, as
informações e os elementos necessários ao desempenho das suas funções, no
âmbito de processos judiciais em curso, estando estas entidades, nos termos
da lei, sujeitas ao dever de colaboração. A mais disto, são atribuídos poderes
para celebrar protocolos com os hospitais e outros serviços de saúde públicos

328 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

ou privados, com vista, designadamente, à formação técnico-científica; à


utilização das suas instalações e dos seus equipamentos para a instalação de
gabinetes médico-legais e para a realização de perícias médico-legais e
forenses da sua competência do INML; à colaboração de pessoal destas
instituições no âmbito dos exames e perícias médico-legais e forenses. Neste
quadro de faculdades, o INML também está autorizado a atribuir ou adquirir a
outros serviços e entidades públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, a
realização de exames e de perícias médico-legais que lhe forem solicitadas,
bem como a realização de cursos e outras acções de formação.

Atendendo agora ao disposto no artigo 19.º do Regulamento Interno do


Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., os serviços médico-legais são “os
serviços oficiais de apoio técnico-pericial aos tribunais e ao Ministério Público,
na área da medicina legal e de outras ciências forenses”, devendo actuar em
conformidade com o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e
forenses estabelecido na Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto. Assim, no
desenvolvimento da sua actividade pericial, o INML deve pautar toda a sua
actividade pelos princípios da legalidade, independência, isenção,
confidencialidade e rigor. Também neste diploma legal se faz menção expressa
à forma de articulação do INML com as várias entidades judiciárias, referindo-
se que aquele deve proceder à realização dos exames, perícias e emissão de
pareceres em sempre estreita articulação com as autoridades judiciárias que os
solicitam, “tendo em conta o respectivo objecto que por elas é fixado, em
conformidade com as leges artis e com as normas, os modelos e as
metodologias periciais em vigor no Instituto, nos termos do n.º 5 do artigo 5.º da
Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto”. A mais disto, é importante destacar que, no
que toca ao acesso à informação e nos termos do referido Regulamento
Interno, no exercício das funções periciais dos serviços médico-legais, o
Presidente do Conselho Directivo, os directores das delegações, os directores
dos serviços técnicos, ou os coordenadores dos gabinetes médico-legais,
“podem solicitar informações clínicas referentes aos examinados em processos
médico-legais, directamente às autoridades policiais e judiciárias e aos serviços

329 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

clínicos hospitalares, serviços clínicos de companhias seguradoras ou outras


entidades públicas ou privadas, nos termos do artigo 10.º da Lei n.º 45/2004,
de 19 de Agosto”.

5. A RELAÇÃO DO INML COM OS SINISTRADOS E OS


TRIBUNAIS

A relação que este estabelece entre o INML e os sinistrados, por um


lado, e entre o INML e os Tribunais, por outro, foi-nos apresentada como algo
tensa e nem sempre de fácil entendimento. De acordo com o resultado do
nosso estudo, quer através das muitas entrevistas realizadas, quer mesmo dos
processos consultados, destacamos alguns dos pontos mais críticos:

Casos de incompatibilidade

Este melhoramento generalizado na função pericial não significa, de


todo o modo, que as garantias fundamentais dos cidadãos estejam
asseguradas quando, por um lado, é manifesto, como já vimos, o
desfasamento entre os recursos e as competências litigiosas das partes, se
atentarmos à estruturação jurídica e pericial das companhias de seguros e à
fragilidade das vítimas de acidentes, ainda que patrocinadas pelo MP. Por
outro lado, e como também já referimos, a incapacidade de nomeação de um
perito próprio por parte do lesado conduz à sua nomeação oficiosa pelo

330 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

tribunal, sendo que a observância face a eventuais incompatibilidades nem


sempre é respeitada e isso repercute-se naturalmente na base clínica a partir
da qual o sinistrado é avaliado e ressarcido.

Em matéria de incompatibilidades são vários os entrevistados que,


embora salvaguardando os avanços registados, relataram, ainda assim e na
primeira pessoa, situações de que tiveram conhecimento, destacando-se os
seguintes depoimentos.

“Eu não lhe posso dizer que não aconteça ainda… a lei permite que, quando não
houver outra possibilidade, possa acontecer, isto é, o perito pode… Há tribunais em
zonas onde não há gente qualificada, e portanto aí a lei permite que, com autorização,
se o juiz autorizar… A lei aconselha a que assim não seja, mas não proíbe… eu
conheço bem a lei porque fiz parte da comissão que a redigiu… A lei diz que, mediante
autorização… Porque às vezes não há outra possibilidade, e não podemos criar uma
situação que cause ruptura e que o tribunal depois não possa trabalhar… Porque há
zonas geográficas onde há muito poucos peritos. Se for para Évora, por exemplo, se
for para Beja, são zonas onde há pouca gente com formação pericial. E às vezes,
inevitavelmente, o mesmo perito… Desejavelmente, no futuro, não deverá ser assim. E
eu diria que hoje isso ainda acontece numa minoria de situações, enquanto
antigamente era a rotina.” (Ent. 14)

“Há incompatibilidades. E eu defendo que era urgente – e digo-lhe isto com toda a
sinceridade – eu acho que era urgente que se definissem e que se fizessem avaliações
em relação a pessoas que são peritos e que só podem fazer perícias para os gabinetes
e nunca para as seguradoras. Não pode haver, de forma nenhuma, mistura entre
peritos de seguradoras – e eu tenho todo o respeito por peritos de seguradoras –, mas
cada um tem de estar no seu devido lugar. Um perito não pode ser hoje um perito de
uma seguradora e, noutro tribunal, ser perito de um sinistrado pela medicina legal ou
designado como perito do tribunal. Eu aí sou categórica e defendo que tem de haver
uma separação: o perito da seguradora defende o seu segurado e merece-me todo o
respeito. Portanto defende aquela instituição. E um perito que esteja a representar o
tribunal ou o INML não pode ser perito da seguradora. Eu acho que isso tem de haver e
neste momento eu acho que, de facto, se deve fazer uma investigação e saber... quem
quer ser perito, é. É como um serviço de exclusividade. Se quiser, está, se não quiser,
vai para outro. Agora, de facto, essa mudança... Porque nós nunca conseguimos ser de
tal forma isentos que nos permita ter o mesmo critério e o mesmo rigor perante as
circunstâncias. Mas esta é a minha opinião. Acho que temos um papel... E não fica
bem. Se eu fizesse uma perícia um dia para uma seguradora, outro dia para um
tribunal, eu ia sentir algum desconforto. Não porque eu deixasse de avaliar da mesma
forma, mas porque, de facto, estava em posições diferentes e isso até poderia criar
alguma angústia na parte dos sinistrados, porque hoje eu estava pela seguradora,
amanhã eu estava no tribunal... Mesmo sendo isenta, podia criar algum desconforto e
isso deve ser evitado. Defendo que cada um deve estar na sua instituição.” (Ent. 15)

331 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

Como se percebe pelo enunciado, o que está em causa são situações


em que, o mesmo médico, faz perícias para a seguradora e para o tribunal. A
ocorrência deste tipo de circunstâncias faz, inevitavelmente, suscitar dúvidas
quanto às condições objectivas e imparciais da perícia clínica, com implicações
importantes na avaliação e indemnização do sinistrado. Assim e não obstante
se revelar de extrema importância o acompanhamento sistemático dos
modelos de regulação institucional das práticas periciais, de forma a que
assegurem uma avaliação independente ou dissipadora das lógicas clientelares
e sujeita a menos contingências penalizadoras do sinistrado, é de realçar que a
influência do perfil, da atitude e do quadro de valores do perito na avaliação
destes dos danos e no resultado pericial é vincada pelos próprios, sendo
verdadeiramente necessário um estudo sociológico aprofundado sobre quem
são os peritos médico-legais.

Qualidade das perícias e tendência para a adesão acrítica

A qualidade das perícias e a tendência para adesão acrítica dos peritos


às indicações tabelares, embora permita maior equidade, pode redundar num
viés pericial. Acresce que a igual tendência que verificamos nos processos
para a adesão do julgador às decisões periciais agrava essa circunstância. De
facto, passando o processo para a fase contenciosa, o que acontece é que,
não havendo acordo entre as partes e o litígio termine, portanto, por sentença,
a decisão do julgador na atribuição da incapacidade ao sinistrado baseia-se,
quase sempre e exclusivamente, no resultado pericial da junta médica.

Caso 6
Um sinistrado, com 28 anos à data do acidente, metalúrgico, foi atingido por um objecto no olho
esquerdo. Em consequência do acidente foi-lhe atribuída pela seguradora uma IPP de
18,775%. Não tendo concordado com este coeficiente de incapacidade, o sinistrado pediu
realização de exame pericial ao INML que, por sua vez, reconheceu uma IPP de 27,75%. Não
tendo a seguradora, por sua vez, concordado com este coeficiente, requereu a realização de
junta médica que veio a atribuir uma IPP de 21,34%. Em sede de audiência de julgamento a

332 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

seguradora foi condenada a pagar ao sinistrado uma indemnização cujo cálculo se baseou
apenas na IPP atribuída pela junta médica, independentemente da existência nos autos de
relatórios periciais divergentes e sem exigência maior de fundamentação.

Uma das causas que certamente contribui para este desfecho e que já
foi por nós retratada prende-se com o facto do sinistrado não ter efectivamente
a mesma capacidade de aquisição de periciais médico-legais. E esta
constatação reflecte-se, por um lado, no facto de não conseguir defender
devidamente os seus interesses em junta médica, mas também no facto de não
conseguir levar ao tribunal peritos que pudessem esclarecer melhor o julgador
e, por consequência, justificar o afastamento relativamente ao resultado
pericial. É certo que as seguradoras também elas poderiam usar da mesma
faculdade e mesmo tendo meios para o efeito, tal não parece reflectir-se nas
decisões finais que, como dissemos, são fies aos resultados periciais. Todavia
este raciocínio sofre de um viés de formulação: é que, como já dissemos, as
seguradoras têm condições para conseguir impor e defender os seus
interesses directamente e logo nas juntas médicas, não se justificando, assim,
a presença de peritos no julgamento.

Outro aspecto que também resulta da análise dos processos prende-se


com as divergências periciais atribuídas por diferentes peritos a um mesmo
sinistrado. Os casos que se seguem ilustram esta realidade encontrada em
muitos dos processos consultados.

Caso 7
Um agricultor de 77 anos caiu de uma escada enquanto podava uma videira. Do acidente
resultaram traumatismos dos membros inferiores (mais precisamente, hipotrofia dos músculos
da coxa direita, fractura da rótula, hipotrofia da coxa esquerda, fractura da tíbia e perónio,
lesões do nervo ciático poplíteo interno e limitação da mobilidade articular do joelho). Após
avaliação clínica pelo perito da seguradora foi-lhe atribuída uma IPP de 27,4%. Esta cifra, no
entanto, ficou muito aquém do resultado obtido com a realização da perícia médica requerida
pelo MP ao Gabinete Médico-legal geograficamente competente que lhe atribuiu uma IPP de
60,6%, reconheceu uma IPATQP, confirmou a dependência de terceira pessoa e ajudas
técnicas e, ainda, a necessidade de tratamentos adequados para a sua reabilitação física. Em

333 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

audiência de Tentativa de Conciliação, a seguradora apenas reconheceu a IPP por si fixada,


não aceitando, portanto, o resultado da perícia médica e o processo segue para a fase
contenciosa. Nesta fase, é requerida a realização de junta médica, quer pelo sinistrado, quer
pela seguradora. A junta médica, por unanimidade, determina ao sinistrado uma IPP de
56,795% para o trabalho habitual e reconhece a necessidade de assistência durante duas a
três horas diárias.

Caso 8
Um sinistrado de 48 anos, motorista, no exercício das suas funções, foi vítima de um acidente
de viação. Este provocou-lhe traumatismo no ombro direito e fractura do punho esquerdo,
tendo desenvolvido uma periatrite do ombro e do punho, com doloroso pós-traumático. Após 59
dias de ITA, os serviços clínicos da seguradora deram-lhe alta médica sem qualquer IPP. Não
concordando, o sinistrado requereu ao MP a realização de um exame médico-legal, tendo-lhe
sido fixada uma IPP de 17,471%. A Seguradora e entidade patronal não aceitaram qualquer
IPP e requerem ao Tribunal de Trabalho a realização da competente Junta Médica que, por
sua vês, fixou uma IPP de 5,91104%. Posteriormente o sinistrado, representado pelo MP,
apresentou pedido de revisão de incapacidade para actualização do coeficiente atribuído,
apresentando um parecer médico-legal que lhe atribui uma incapacidade de 16,3%. Em
contrapartida, o exame efectuado pelo INML fixou a IPP actual em 9,8308%. A seguradora
recusou este resultado e requereu perícia por Junta Médica que atribuiu uma IPP ao sinistrado
de 8,8656%.

Caso 9
Uma sinistrada, auxiliar de gráfica, com 62 anos, sofreu um acidente in itinere em resultado de
uma queda no percurso do trabalho para casa, tendo-lhe sido atribuída pelos serviços médicos
da seguradora uma IPP de 2%. Em contrapartida, o INML reconheceu uma IPP de 17,55. Por
não ter sido possível a conciliação das partes dada a grade diferença de coeficientes apurados,
foi solicitada uma junta médica que veio a fixar ao sinistrado uma IPP de 3%. O tribunal aceitou
este resultado e decidiu com base no mesmo.

Indo de encontro ao que encontramos nos processos, também alguns


dos nossos entrevistados nos relataram experiências muito similares,
destacando-se, a título exemplificativo, a que se segue.

334 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

“Por sua vez também há uma cultura de perícias que são feitas no âmbito particular
mas a minha postura é exactamente a mesma de que quando estava a ser perita do
tribunal ou do IMML. A minha postura é exactamente a mesma independentemente do
lugar onde estou. E portanto nós não podemos enganar os sinistrados. É uma falta de
ética. Se eu digo que aquela sequela tem 5% naturalmente eu tenho de manter aquele
valor no tribunal, por isso é que eu avaliei e determinei dessa forma. Às vezes isso
também não acontece. (…) Por sua vez, se nós fôssemos responsabilizados e penso
que a curto prazo isso vai acontecer – e eu espero que assim seja. Eu sou uma
defensora de princípios e regras e acho que cada um tem de ser responsável por
aquilo que faz. E o ser responsável por aquilo que faz é a gente ter seriedade temos de
estar tecnicamente bem preparados. Mas temos de assumir as nossas
responsabilidades em relação à expectativa que criámos no sinistrado. Se eu fizesse
uma avaliação a um sinistrado e lhe desse 10% e depois ele fosse à junta e lhe
dessem 5% de certeza que eu estava a criar uma expectativa dentro da cabeça
daquele sinistrado que não correspondia à realidade. E portanto eu defendo que isso
devia ser penalizado. Esta é a minha postura de vida, doa a quem doer. E, de facto,
acho que temos de ser assim. (…) “Há algumas situações que são controversas e que
para mim são inexplicáveis. [Em casos iguais], a atribuição tem de ser igual. Muitas
vezes isso não acontece, de facto, e por questões de carácter que eu não queria
mencionar, porque são delicadas, faz com que existam essas diferenças. (…) Nós não
podemos enganar os sinistrados. É uma falta de ética.” (Ent. 15)

Voltando à referida adesão do julgador ao resultado pericial conjugada,


por sua vez, com a tendência verificada de adesão acrítica dos peritos às
indicações tabelares, os instrumentos periciais são, portanto, outro aspecto que
merece que aqui seja feita alguma discussão mais aturada. Os argumentos
sobre as vantagens e inconvenientes da racionalidade uniformizadora
introduzida por via de instrumentos periciais de referência indicativa como as
tabelas de incapacidade, que conferem menor autonomia apreciativa mas
promovem maior equidade pericial, são uma constante no nosso trabalho de
campo. No entanto, mesmo do lado dos que defendem o recurso a
instrumentos como as tabelas, e que compreendem e aceitam a sua essência
com o argumento de que correspondem a um esforço de objectivação que
pode ser benéfico para o sinistrado, eliminando a discricionariedade excessiva,
é sempre realçado o seu carácter meramente indicativo.

“No entanto nunca podemos esquecer a sua natureza meramente indicativa e,


portanto, o julgador deve continuar a atender à dimensão do caso concreto. O papel do
julgador é o de corrigir alguma injustiça que, atendendo às especificidades, poderia
resultar da aplicação das tabelas”. (Ent. 19)

335 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

Todavia, no rigor da verdade, o que o trabalho de campo nos mostrou, é


que os profissionais acabam, tendencialmente, por atribuir um carácter
obrigatório de conversão tabelar de lesões e incapacidades psicofísicas em
quocientes e percentagens globais, por um lado e, por outro, por fazer uma
colagem da avaliação efectuada aos descritores tabelares. Veja-se, a este
propósito, os seguintes depoimentos, o primeiro de um magistrado e o segundo
de um perito.

“Há uma Tabela Nacional de Incapacidades, que é indicativa, não é valorativa, só que
os médicos das seguradoras… para eles é um missal, é um breviário… é uma bíblia.
Porquê? Porque estabelece um limite mínimo e um limite máximo e está ali taxado.
Independentemente de o sinistrado apresentar uma situação clínica diferente daquela.
O valor indicativo para aquele grupo de profissionais é letra morta. O juiz, como é mais
fácil para ele cingir-se – até porque é difícil fundamentar porque é que se sai de um
número e se vai para outro. Se o parecer técnico é aquele, é aquele que fica. Depois o
cálculo está fixado na lei. (…) As únicas margens de manobra que há é nas
incapacidades para o trabalho habitual… há ali uma margem de manobra… e alguma
doutrina entende que o tribunal pode valorar mais ou menos em função do grau
académico do sinistrado, da idade, da profissão, enfim das capacidades que ele pode
ter ou não para angariar novo emprego”. (Ent. 16)

“No âmbito do direito de trabalho o sistema, quanto a mim, está profundamente


inquinado porque em direito do trabalho todo o processo indemnizatório está
fortemente dependente da taxa de incapacidade que é arbitrada pela medicina legal ou
pela perícia médico-legal. O que é um erro flagrante. [...] Um perito médico quando fixa
taxas de incapacidade fica sempre com a percepção de que quando está a dar 20
aquilo podia 15, podia ser 25… que aqueles valores deviam servir apenas como uma
linha de orientação, mas não deviam ser o elemento fundamental para determinar o
montante indemnizatório. Ora em direito do trabalho, lamentavelmente, a nossa lei
determina a aplicação automática de uma fórmula matemática no cálculo da
indemnização ou da pensão a atribuir ao trabalhador sinistrado onde entra a taxa de
incapacidade e quando o médico dá 8 ou dá 10 está automaticamente a condicionar o
montante indemnizatório, quando a medicina não devia estar a estabelecer esta
condicionante”. (Ent. 14)

Dupla vitimação: corporal e pericial

O trabalho de campo junto dos operadores periciais permitiu-nos


identificar uma outra problemática, desta feita relacionada com a revitimação
do lesado. Esta situação testemunha o dramatismo invisível que, muitas vezes,
as práticas periciais encerram. Neste sentido vejamos o depoimento ilustrativo
desta realidade que nos foi dado por um perito por nós entrevistado.

336 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

“E portanto o diploma em medicina era um passaporte para a impunidade. A pessoa


podia peritar fosse o que fosse, e eu não tenho dúvida nenhuma de que há centenas
ou milhares de processos em tribunal de vítimas que foram vítimas do acidente, e
depois foram vítimas do médico que apanharam pela frente a peritá-los que ou deixou
metade dos danos no tinteiro, ou fez uma avaliação apenas parcelar, ou fez uma
avaliação incompleta. Hoje começam-nos a surgir no Conselho Médico-Legal os
primeiros casos de responsabilidade médica de peritos que não avaliaram
correctamente as situações. Hoje as vítimas começam a ver que também podem pedir
indemnizações e meter em tribunal o perito que não soube cumprir a sua missão e que
não cumpriu de acordo com as leges artis.” (Ent. 14)

Juntas Médicas

No contexto das juntas médicas308 e como já referimos, sobressai, desde


logo, a manifesta discrepância dos seus resultados relativamente às propostas
periciais iniciais, não sendo perceptíveis, quer através da análise dos
processos, quer através das muitas entrevistas realizadas, quais os critérios
que possam justificar essa situação. Aliás, este é um ponto crítico apontado
pela quase totalidade dos entrevistados que reclama, em consequência, uma
maior transparência para este momento processual e a responsabilização pela
prática pericial. Em abono da verdade cumpre todavia referir que começam a
surgir os primeiros casos de denúncia contra peritos médicos junto do
Conselho Médico-Legal, órgão do INML responsável pela regulação e controlo
do sistema pericial.

Como já referimos anteriormente, uma das causas que em muito pode


contribuir para esta realidade são os chamados peritos de ocasião. Dada a já
descrita desigualdade de meios entre seguradora e sinistrado este, por regra,
vê-se obrigado a socorrer-se do perito que lhe é nomeado oficiosamente pelo
tribunal. Este perito, que não foi escolhido pelo sinistrado e que não conhece o
processo, para além de, como também já referimos, num outro processo poder

308
Como mais à frente melhor demonstraremos, também nos na nossa amostragem de
processos a determinação da incapacidade constitui, nos tribunais portugueses, o principal
objecto de acção na fase contenciosa.

337 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

representar aquela mesma seguradora que naquele caso específico litiga


contra o sinistrado que agora representa, não se apetrechou de argumentos
que lhe permitam argumentar contra a posição defendida pela seguradora em
sede de junta médica. Esta constatação resulta evidente da análise que
fizemos aos processos. De facto, percebemos que, quando as partes não
conseguem por termo ao litígio na fase conciliatória e o processo passa para a
fase contenciosa com a consequente realização da perícia por junta médica, a
regra é a seguinte: o coeficiente de incapacidade que é atribuído pela junta
médica ao sinistrado é o mesmo, ou muito próximo, do coeficiente que foi
inicialmente proposto pelo perito da seguradora, ainda que diferente do que foi
proposto pelo perito do INML em sede de exame pericial realizado durante a
fase conciliatória. Vejamos apenas alguns exemplos:

Caso 10
Um sinistrado, com 50 anos à data do acidente, em consequência de uma queda fracturou o
calcâneo. A seguradora fixou uma IPP de 12,5% e o perito do INML a quem foi solicitado
exame pericial atribuiu uma IPP de 18,75%. As partes não chegaram a acordo e realizou-se
junta médica que conclui exactamente como o perito da seguradora, atribuindo ao sinistrado
uma IPP de 12,5%.

Caso 11
Uma sinistrada, auxiliar de gráfica com 62 anos sofreu uma queda no percurso do trabalho
para casa, sofrendo lesões nos membros superiores. A seguradora fixou uma IPP de 2% e o
perito do INML a quem foi solicitado exame pericial atribuiu uma IPP de 17,55%. As partes não
chegaram a acordo e realizou-se junta médica que atribuiu à sinistrada uma IPP de 3%.

Neste mesmo sentido vejamos, ainda, o depoimento de um perito e de


um magistrado por nós entrevistados que nos relataram o modo de
funcionamento das juntas médicas e que também salientaram alguns dos

338 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

aspectos que, nas suas opiniões, contribuem para as falhas apontadas às


perícias realizadas por esta via.

“As juntas médicas foram a grande desilusão da minha actividade pericial. Primeiro
porque eu acreditava que pelo facto de existirem juntas médicas ia diminuir o recurso
nos tribunais. O que não aconteceu. Depois outra coisa que me surpreendeu é que a
maioria das juntas é por unanimidade. Mas também há muitas juntas que são por
maioria. Eu posso defender uma incapacidade, mas se estou sozinha tenho de me
sujeitar à decisão da maioria.” (Ent. 15)

“E não estando presente o juiz, várias situações ocorrem: os peritos médicos fazem
peritagens rotativas. Neste exame o perito médico do sinistrado é um, naquele exame o
perito médico do sinistrado já é o que foi naquele da seguradora, e vice-versa. E isto
cria aqui um conluio entre os médicos que é terrível para os sinistrados. Eu quando
cheguei a Coimbra funcionava este sistema. (…) Para 3 sinistrados diferentes, há 3
exames de juntas médicas. Há um perito nomeado pelo tribunal que normalmente é o
mesmo. E depois há um perito nomeado pelo sinistrado e um perito nomeado pela
seguradora. As seguradoras nomeiam sempre o seu perito. O sinistrado normalmente
não nomeia, é o tribunal que tem de nomear um perito pelo sinistrado. (…) Só que
muitas vezes não há peritos suficientes para isto tudo. Não há peritos que cheguem.
Mais grave que isso: há tribunais em que não é o juiz que controla a marcação de
juntas médicas. Há tribunais em que o juiz se abstém de ser ele a controlar as juntas
médicas. Desde a marcação do exame, a partir daí ele perde o controlo completo
daquilo que lá se passa. É a secretaria que controla”. (Ent. 14)

Esta problemática dos peritos de ocasião está directamente relacionada


como uma outra que nos foi abordada por alguns dos nossos entrevistados.
Estamos a refiro-nos a uma nova realidade médica e pericial que se prende
com as Sociedades Médicas. No início do séc. XXI, com a atribuição da
competência para realização dos exames singulares ao INML, surge esta nova
realidade. Os peritos médicos passam a constituir Sociedades Médicas
contratadas pelas seguradoras para a realização dos exames por junta médica.
E, dalgumas dessas sociedades médicas, passam a fazer parte médicos que
eram peritos exclusivos das seguradoras, médicos que eram peritos exclusivos
dos tribunais de trabalho, e médicos que faziam peritagens nos gabinetes de
medicina legal. Mas, mais grave é que, como nos refere um dos nossos
entrevistados

“Há casos em que essas sociedades médicas intervém com os seus associados no
exame inicial do sinistrado e subscrição do boletim de alta dos serviços clínicos das
seguradoras, no exame singular na fase conciliatória e no exame por junta médica,

339 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

quer como peritos nomeados pelas seguradoras, quer como peritos nomeados pelos
sinistrados, sem qualquer controlo externo, mormente pelos tribunais de trabalho ou
pelo INML”. (Ent. 16)

6. A CLINICALIZAÇÃO DA PERITAGEM E A
PERICIALIZAÇÃO DA DECISÃO

Antes de avançarmos cumpre salientar que os saberes periciais


resultam em grande medida de construções sociais e culturais sobre o corpo e
o seu valor numa determinada economia técnica, moral e simbólica. O dano
corporal e a sua valoração encontram-se, por isso, indexados a um sistema de
referências de valores e práticas, suscitando uma tensão entre tabelas
padronizadas e singularidade na ponderação dos impactos objectivos e
subjectivos dos danos corporais emergentes de um acidente.

No âmbito da criação da Tabela Europeia para o Direito Civil, a discussão


em torno do grau de incapacidade atribuído aos casos de amputação
traumática do pénis gerou acesa controvérsia interna: os alemães
achavam que 20% seria um valor suficiente, ao contrário dos italianos
que consideravam 80% um valor insatisfatório.

As perícias que auxiliam a avaliação do impacto do acidente e das


lesões na integridade produtiva e nos gestos diários dos sinistrados devem,
portanto, atender às diferentes disciplinas capazes de dar conta da

340 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

multidimensionalidade dos prejuízos e da sua, nem sempre evidente,


gravidade. A isto acresce o facto de as já referidas lógicas automáticas de
produção da decisão judicial, que se atêm à indicação pericial da incapacidade,
reservarem escassa margem manobra para a sua livre apreciação. Temos
assim, por um lado, o contributo pericial de natureza clínica que procura
traduzir a lesão num código centrado nas suas específicas preocupações
disciplinares de cariz médico-legal; e, por outro lado, os instrumentos tabelares
ao serviço dos profissionais periciais que requerem um trabalho interpretativo
que os obriga a uma apreciação cujo rigor e consistência dependem, muitas
vezes, da capacidade de indisciplinar a sua observação perante o corpo lesado
submetido à perícia médico-legal. Neste sentido e para reforçar o que já atrás
foi dito, passamos a referir o seguinte depoimento de um dos nossos
entrevistados:

“A taxa de incapacidade é uma coisa muito relativa. A medicina não é uma ciência
exacta e as ciências que não são ciências exactas, por definição, não têm uma
tradução matemática. Como é que eu posso dizer que um braço vale 20 ou vale 30 e
que uma perna vale 40 ou vale 50 se eu sei inclusivamente que os meus 100% não são
os 100% da minha mãe, não são os 100% da minha filha, não são os 100% de outro
cidadão.” (Ent. 14)

Historicamente assistiu-se, por isso, a um duplo processo: a


clinicalização da peritagem, em que o saber médico na avaliação da
incapacidade ganha um valor absoluto e determinante face a outros repertórios
epistémicos; e a pericialização da decisão que se reflecte nas lógias
automáticas de produção da decisão judicial, que se atêm à indicação pericial
da incapacidade, a partir da qual o cálculo indemnizatório é desenvolvido,
reservando escassa margem manobra além daquilo que são as disposições
normativas que constituem direitos reparatórios dos sinistrados.

“A taxa de incapacidade devia dar uma referência, mas depois o juiz, no seu critério,
atendendo a todas as outras circunstâncias, à possibilidade de reintegração no
mercado de trabalho, às habilitações, ao próprio mercado de trabalho no momento e às
perspectivas, e a muitos outros factores, à capacidade de reabilitação, àquilo que a
sociedade pode oferecer em termos de recuperação e de acompanhamento do
sinistrado, etc. … o juiz depois é que deveria determinar. E não ser uma fórmula
matemática, condicionada pela taxa de incapacidade, a determinar o montante
indemnizatório.” (Ent. 14)

341 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

Saliente-se que, como já se referiu, para esta situação também contribui


um outro aspecto: a postura pouco interventiva das magistratura, e aqui em
particular da magistratura judicial que, ao contrário do que seria expectável,
raramente preside às juntas com as consequências e prejuízos normais daí
decorrentes para o sinistrado:

“Eu normalmente presidia sempre às juntas médicas. Mas essa é outra questão que, às
vezes, funciona mal nos tribunais: a maior parte dos juízes não preside às juntas
médicas. E deviam fazê-lo. Porque muitas vezes é nas juntas médicas, com a presença
do juiz, que as questões se decidem. E às vezes são pequenas questões que estão
interligadas. Não são as questões técnicas, da avaliação clínica. Não digo isso. Mas a
interligação, às vezes, daquela avaliação clínica com o direito e com a tabela. E aí o
juiz pode ter um papel importante.” (Ent. 15)

Neste ponto é, ainda, de assinalar a relevância da também já


mencionada natureza complexa e não raras vezes truncada do contraditório
pericial no que concerne o acesso/disponibilização de todas as informações
relevantes que assegurem a fiabilidade da avaliação pericial e que na maior
parte das vezes se encontram concentradas numa das partes interessadas do
litígio – as companhias de seguros –, materializando as respectivas estratégias
internas de governação biopolítica da reparação corporal. Pelo que, do ponto
de vista da sociologia dos actores em conflito, será importante repensar sobre
o papel das funções periciais e judiciais na correcção dos desequilíbrios
genéticos entre sujeitos e estruturas, incapazes de litigar com
proporcionalidade estratégica e recursiva, sendo que em jogo se encontra um
corpo ferido e lesado num contexto de subordinação laboral ou de infortúnio
rodoviário.

342 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

7. O PERITO NA DESOCULTAÇÃO DOS DANOS:


PRÁTICAS E PERCEPÇÕES

O ponto anterior leva-nos para uma temática já aflorada em diversos


pontos e que se traduz na importância dos peritos no processo de
desocultação dos danos e na avaliação dos prejuízos efectivos. Cabe ao perito,
na sua actuação, avaliar o sinistrado. E, para o fazer devidamente, terá que
olhar para o sinistrado e para toda a realidade que o rodeia, tendo, não raras
vezes, que tentar ir além daquilo que o próprio sinistrado lhe apresenta como
sendo a sua realidade. Assim, o carácter especializado dos saberes médicos
mobilizados para o relatório pericial deve envolver também a ponderação de
diferentes prejuízos corporais insusceptíveis de identificação e valoração
clínica, mas que são, todavia, parte significativa dos efeitos pessoais e
profissionais da sinistralidade rodoviária e laboral.

“O dano sexual, por exemplo, é uma questão tabu. É um problema que afecta tanto
homens, como mulheres, embora tenha uma expressão particularmente problemática
no caso dos homens. Esta repercussão pessoal pode perturbar o dia-a-dia do
sinistrado. Embora não seja encarado como um dano patrimonial ou profissional, o que
é certo é que prejudica o desempenho funcional do sinistrado, produzindo efeitos
perturbadores na sua vida pessoal e profissional. A relação afectiva entre os casais, em
que a parte sexual é importante, faz com que a pessoa perca a auto-estima”. (Ent. 15)

Um perito, ao avaliar o sinistrado, tem que abordar questões de melindre


como esta e, para o fazer, deva munir-se de certas cautelas. O objectivo será,
portanto, perceber quais os prejuízos sofridos pelo sinistrado. No que em
particular respeita ao prejuízo sexual importa perceber se existe uma lesão que
perturba o acto sexual do sinistrado ou a sua dinâmica afectiva, sendo que esta
tarefa se torna bem mais complicada quando este dano não é demonstrável
pela existência de uma lesão orgânica. Nestas situações o perito terá que
revelar uma especial atenção aos demais sintomas.

“Se uma pessoa tiver uma artrose na anca, por exemplo, a perda de mobilidade pode
colocar em causa o desempenho sexual. Mesmo que não haja dano orgânico, esta

343 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

limitação potencia muitas vezes tensões interpessoais. Isto pode ter mais ou menos
valor para cada pessoa em particular, mas é uma situação de vida diária com
repercussões de vária ordem, nomadamente sexuais”. (Ent. 15)

Nestes casos, para além da dificuldade de diagnóstico, surge uma outra


contrariedade que se prende com a própria actuação do perito: “Quando não
existe isto [lesão orgânica] eles [peritos] dizem que isso é da cabeça do
sinistrado e que tem de controlar a cabeça” (Ent. 15). De facto, de acordo com
o nosso trabalho de campo e, em particular, pelos depoimentos dos nossos
entrevistados, percebemos que a grande parte dos peritos não tem
sensibilidade e à vontade suficiente para perguntar ao sinistrado sobre a
existência de prejuízos de carácter mais íntimo. Uma das causas apontadas é
a dificuldade de abordagem e verbalização, pelos próprios peritos, das
questões a colocar e, posteriormente, de as transpor para o relatório.

A dificuldade de relacionamento com o sinistrando torna-se mais grave


quando esteja em causa a avaliação de prejuízos corporais insusceptíveis de
identificação e valoração clínica uma vez que, nestas situações, entra em jogo
uma outra condição determinante: a impressionabilidade e vivência de cada
perito. Como bem nos relatou um dos nossos entrevistados, estes são, de
facto, factores que também acabam por se reflectir na avaliação que é feita do
sinistrado.

“Nós somos independentes... eu posso ter por exemplo uma avaliação do dano
estético, por exemplo no âmbito do direito civil, que para mim é um dano estético que
eu valorizo porque me sensibiliza... tenho se calhar uma perspectiva do dano estético
diferente das outras pessoas, mas isso são as pequenas nuances da nossa
experiência pessoal, da nossa maneira de encarar a nossa imagem corporal, e das
repercussões que podem existir em relação ao nosso corpo”. (Ent. 15)

A avaliação do dano estético envolve uma avaliação personalizada da


imagem em relação a si próprio e perante os outros. Segundos os peritos que
entrevistamos há muitas dificuldades em avaliar este tipo de dano porque,
como resulta daquele testemunho, cada perito olha para a imagem corporal do
sinistrado e avalia-a de acordo com a sua percepção, a sua experiência, o seu

344 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

conhecimento científico e a sua própria imagem corporal. Ou seja, trata-se de


uma avaliação com um grande pendor de subjectivismo. Para além disso, uma
lesão mínima na face de uma pessoa pode ser altamente determinante e
impeditiva, até em termos profissionais, e nem sempre é fácil traduzir isso num
resultado pericial. Para tornar a avaliação deste dano ainda mais complexa, o
perito não deve descurar que sempre que o sinistrado se vê ao espelho acaba
por recordar todo o acontecimento negativo da sua vida e, portanto, também os
efeitos psíquicos da degradação corporal devem ser tidos em conta aquando
desta avaliação.

Não obstante toda esta carga de subjectividade da actividade pericial,


não podemos deixar de salientar que se trata de uma actividade balizada por
orientações e modelos de referência periciais.

“Contudo, há orientações que são por nós respeitadas em todas as circunstâncias, e


portanto é importante que a gente tenha algum aferimento... não é só o senso. Como
temos as tabelas que não são vinculativas, mas são modelos de referência, também as
nossas avaliações têm de ter modelos de referência, para não se encontrarem
disparidades ou, digamos assim, incapacidades que podem ir em desencontro em
situações praticamente semelhantes. As pessoas são todas diferentes, os danos são
todos diferentes, e as atribuições também são todas diferentes. No entanto há um
parâmetro comum na avaliação daquele dano que temos de reparar”. (Ent. 15)

Exemplo disso, na avaliação da dor e do sofrimento físico e psíquico do


lesado, sendo este um procedimento pericial de grande dificuldade e
complexidade, há um padrão metodológico a seguir. Para medir a dor o perito
deve socorrer-se de uma das duas Escalas de intensidade de dor que existem
para o efeito: a escala numérica de 0 a 10 (sem dor, dor e dor insuportável) e a
escala visual analógica (sinalizar a dor num segmento de recta não
demarcado). Nesta empreitada deverão ser tidos em contas os seguintes
critérios de avaliação: tipo de traumatismo e as suas circunstâncias; tipo de
lesões e os tratamentos instituídos; duração do internamento, complicações
médicas e cirúrgicas e duração do período de reabilitação funcional;
sentimentos compreensivelmente vividos pela vítima durante esse período e
por eles descritos, nomeadamente, angústia, ansiedade, medo, consciência do

345 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

perigo de vida, sofrimento pelo afastamento do meio familiar e das


responsabilidades profissionais.

Por sua vez, na determinação da incapacidade geral permanente desde


2007 que a avaliação pericial se faz através do sistema de pontos. Não
obstante, no caso de elevadas incapacidades (superiores a 70%), não devem
ser atribuídos pontos dada a gravidade das repercussões quer nos actos de
vida diária das pessoas, quer na sua actividade laboral. Nestes casos o
sinistrado deverá ser avaliado por uma equipa multidisciplinar, com uma perícia
exaustivamente descritiva, capaz de abarcar as dimensões mais insondáveis
do prejuízo corporal. Segundo nos avançaram os nossos entrevistados, uma
das dificuldades periciais na avaliação da incapacidade geral permanente é a
autonomização do dano corporal face aos seus efeitos profissionais. Ou seja, o
perito tem que reconhecer e sinalizar no relatório situação em que, por
exemplo, uma incapacidade geral permanente de 5% para os actos de vida
diária (para a pessoa se lavar, vestir, calçar, gerir os seus bens), não ter
qualquer repercussão profissional uma vez que a pessoa é capaz de
desenvolver as suas actividades profissionais, sem esforço acrescido.

Podemos então concluir que o carácter experiencial, contextual, íntimo e


muitas vezes inacessível dos prejuízos corporais, sensoriais e subjectivos das
vítimas, conferem particular importância à entrevista médica. Ou seja, o
sinistrado não deve ser entendido como um mero objecto de análise, destituído
de interesse para a avaliação do dano. O sinistrado deve ser encarado pelo
perito como um sujeito debilitado e vulnerável, com capacidade variável de
expressão e verbalização da dor e do sofrimento. A sua colaboração deve,
portanto, encontrar-se devidamente enquadrada e dignificada na perícia
médico-legal pois só desta forma é possível que o perito alcance os aspectos
essenciais da vivência do traumatismo nas suas circunstâncias ante e pós-
traumáticas.

“Apesar de todas as metodologias possíveis, cada caso é único e o que é adequado a


uma vítima não é necessariamente indicado para outra, ainda que com sequelas
lesionais e funcionais comparáveis. A função do perito é avaliar o dano de forma

346 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

personalizada e traduzir a sua complexidade por palavras simples, para que seja
apreciado com bases concretas”. (Ent. 15)

Assim, e apesar do referido padrão metodológico que é necessário


seguir na perícia médico-legal, a percepção de cada sinistrado é, todavia,
singular. Sendo que, esta singularidade, ganha maior relevância no cálculo do
dano futuro em que está em causa a estimativa da degradação da condição
física do sinistrado, sendo este um exercício preditivo cuja precariedade
pericial, segundo os peritos entrevistados, deve ser reconhecida. Como
exemplo ilustrativo da complexidade da avaliação do dano futuro podemos dar
conta de um dos processos cíveis por nós consultado:

Caso 12
Estava em causa a atropelamento de uma menina de 8 anos e a questão de maior melindre
prendia-se, exactamente com a determinação do dano futuro podendo aí ler-se o seguinte:
“Não poderá deixar de ser tido em conta, no caso concreto, que a autora tinha 8 anos de idade,
não tendo então, como agora, completado a idade escolar. Assim, os danos sofridos não
podem ser vistos como tendo automaticamente causado um dano pecuniário efectivo e actual,
passível de ser definido por referência a um salário efectivamente auferido. Assim, ter-se-á que
analisar o acidente e a IPP decorrente das lesões sofridas como causa de repercussão sobre a
sua capacidade de ganhos futura, entendida esta como capacidade aquisitiva de rendimento. A
ausência de um rendimento efectivo no momento do acidente não pode excluir o dano
associado à incapacidade permanente, porquanto este, por se projectar no futuro, vai incidir
sobre a capacidade de ganho da autora a partir do momento em que esta comece a trabalhar.
(…) Também neste sentido se vem pronunciando há muito a nossa jurisprudência (cf. entre
muitos outros o Ac. Do STJ de 08/06/1993, CJ, Tomo 2, p.138; Ac. Da Relação do Porto de
27/03/1995. BMJ n.º445, pág. 607 e, mais recentemente, o Ac. Do STJ de 17/10/2002, relatado
pelo Sr. Conselheiro Araújo de Barros, disponível na DGSI). Como se refere no penúltimo
parágrafo dos citados arestos, a incapacidade parcial permanente para o trabalho, ainda que o
lesado seja menor, gera um dano futuro indemnizável com recurso à equidade.
Tendo em conta que é desconhecido o sentido profissional que a vida da autora seguirá, sendo
consequentemente desconhecido o padrão médio de rendimentos que virá a auferir, terá o
tribunal que se apoiar num valor seguro de referência, que será o salário mínimo nacional à
data de hoje (por ser a data mais actual possível de previsão de repercussão média que a IPP

347 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

sofrida terá futuramente na capacidade aquisitiva dos menores). Muito embora seja algo
redutor supor que a autora não será capaz de obter um rendimento superior ao salário mínimo
nacional, não se pode igualmente olvidar que não foram alegados factos que permitam ao
tribunal aferir das capacidades intelectuais da autora ou do seu grau de rendimento e empenho
escolar.
Teremos assim que ter em conta, para fixação da indemnização devida a título de perda de
capacidade aquisitiva derivada da IPP sofrida, a idade da autora à data do acidente e,
consequentemente, o período de vida activa que terá pela frente, presumindo-se que
ingressará numa carreira profissional aos 18 anos de idade (quando atinja a maioridade);
antecipando que irá auferir o salário mínimo nacional, que actualmente equivale a 403 euros
(de acordo com o Decreto-Lei n.º2/2007 de 3 de Janeiro), que tal valor será auferido 14 vezes
por ano. Por último atender-se-á à percentagem de IPP de que ficou afectada.
Assim, em face de todos os indicados elementos, sem esquecer que a quantia a fixar será
paga de uma só vez, bem como que inexiste prova de repercussão limitativa real na
capacidade de marcha ou de exercício de específicas funções profissionais, temos por
equitativamente justa e adequada uma indemnização relativa ao dano futuro em que se traduz
a IPP no montante de 4 500 euros”.

A tenra idade da sinistrada também foi tida em consideração para a atribuição dos danos não
patrimoniais: “O dano não patrimonial, pela sua especial incidência na própria pessoa do
lesado, torna difícil o cálculo compensatório e totalmente desligado da simples soma aritmética
o seu cômputo, caracterizando-se por não ser verdadeiramente indemnizável – procura apenas
compensar a vítima lesada, permitindo-lhe, designadamente, adquirir bens que de alguma
forma reduzam a dimensão do seu sofrimento, sendo que este é associado a perdas
directamente derivadas do acidente e tidas por irreparáveis. (…) Sendo o parâmetro ou critério
normal para aferir a dimensão da dor física a extensão e gravidade das lesões e da
complexidade do seu tratamento clínico, haverá que reconhecer a presença, no caso concreto,
de danos não patrimoniais dignos de tutela compensatória, agravados pela idade e fragilidade
da vítima, que era menor, com apenas oito anos de idade, nessa medida fragilizada na sua
capacidade de suportar a dor, bem como a contrariedade e os incómodos próprios da
imobilização decorrente de uma fractura num membro inferior. De atender são também as
contrariedades geradas pela retenção em tratamentos numa altura da vida como aquela em
que o acidente lhe ocorreu, em que é tão relevante a liberdade de movimentos, bem como a
circunstância de estar internada num ambiente estranho e de ser submetida a cirurgia,
elemento relevante enquanto danos passíveis de compensação.”

348 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

A relevância do papel dos peritos também é predominante na definição


do que se entende por “trabalho habitual”. No entanto, segundo apuramos
através do nosso trabalho de campo, uma falha frequentemente apontada aos
peritos é a de que, na sua actuação, raramente analisam o conteúdo
profissional das funções específicas desempenhadas pelo sinistrado. Como
nos referiu um dos nossos entrevistados o conteúdo profissional de um médico,
por exemplo, varia consoante a sua especialidade:

“Eu posso trabalhar como médica, mas o meu conteúdo profissional ser específico para
determinada tarefa. Se eu perder um dos dedos, a repercussão profissional é muito
diferente se eu for médica de família, do que se eu for uma médica internista ou
cirurgiã”. (Ent. 15)

Para esta falha dos peritos contribui igualmente o conteúdo dos


relatórios que são solicitados às entidades patronais. Deste relatório deve
constar o estudo do posto de trabalho ocupado pelo trabalhador e a descrição
das tarefas desenvolvidas. No entanto o que se verifica é que, o que resulta
desse relatório e que pode mesmo ter por base o que figura da documentação
da empresa, nem sempre condiz com a diversidade das tarefas efectivamente
realizados pelo sinistrado e a realizar aquando da reintegração.

“Neste momento não é feita a avaliação das instituições onde os sinistrados trabalham,
onde se descreva os riscos e os gestos ocupacionais. Não há vigilância e não há
auditorias que nos permitam saber onde trabalha exactamente aquele sinistrado, que
tipo de funções é que exerce efectivamente. A profissão formalmente declarada não
corresponde, muitas vezes, aos gestos e funções executadas. Este aspecto é
particularmente relevante tanto na alta que é dada ao sinistrado, podendo voltar ao
trabalho, como na avaliação da sua capacidade de reintegração ou reconversão
profissional.” (Ent. 15)

349 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

8. PARA AMPLIAR O CÂNONE PERICIAL

Em consequência de todo o nosso trabalho de campo percebemos que


os múltiplos (e muitas das vezes, à vista desarmada, inimagináveis) impactos
psicofísicos de um acidente de trabalho na expressão corporal das vítimas –
que se reflectem não apenas na sua integridade mas também na sua
expectativa produtiva – requerem um reequacionamento do cânone pericial que
permita uma decisão judicial esclarecida e efectivamente reparadora. A
apontada clinicalização da peritagem e pericialização da decisão levam-nos até
ao o conceito de ecologia dos saberes avançado por Boaventura de Sousa
Santos (2006: 127), constituindo este um ponto de partida ímpar para reflectir
sobre a reconstrução e rearticulação crítica dos saberes periciais com
incidência no dano corporal, não apenas no sentido da ampliação do quadro de
pareceres entendidos como relevantes e portanto requeridos a outras
disciplinas que não a medicina legal, como também na sua inter-contaminação,
de forma a qualificar a decisão judicial e evitar a eternização de prejuízos
corporais científica e juridicamente irreconhecíveis ou silenciados.

Há, ainda, uma outra perspectiva de fundo que deverá ser mencionada a
propósito da questão pericial – e este é o segundo desafio – que se relaciona
com o repertório epistémico que subjaz o sistema mais amplo de práticas e
procedimentos técnicos accionados pelos clínicos médico-legais no âmbito da
avaliação corporal dos prejuízos profissionais emergentes de um acidente de
trabalho. À partida, a peritagem, enquanto mecanismo auxiliar da justiça, é
consensualmente compreendida como a utilização dos “conhecimentos de um
técnico no sentido de facilitar a percepção e a apreciação dos factos ou
questões cuja solução requeira competências técnicas numa relação de
adequação, complementaridade e articulação com outras competências”
(Antunes, 1991: 12).

350 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

Contudo, e como resulta do exposto, assistimos a um processo


crescente de cientifização dos tribunais. A relevância e o contributo das
indicações periciais para a decisão judicial sobre a medida da incapacidade do
sinistrado requerem uma problematização adicional, que discuta a natureza e
os modos de acomodação daquilo que confere eficácia a esse trabalho: a
autoridade pericial e a sua construção social, profissional e institucional. O
conceito de intelectual específico proposto por Michel Foucault (1994),
diferentemente do papel interlocutório de um sujeito universal imputado ao
intelectual orgânico desenvolvido nos textos gramscianos, contém forte
capacidade explicativa dos parâmetros de intervenção técnico-científica no
quadro da institucionalidade burocrática contemporânea, concorrendo
activamente para a co-produção de um regime de verdade:

“Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua «política geral» de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros
dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.” (1994:
10)

Este constitui um ponto de vista que confere uma outra dimensão às


práticas periciais e lhes confia simultaneamente uma outra responsabilidade
que, embora por via de nexos internos, extravasa os limites da ideologia
profissional. É aliás nesse sentido que é possível repensar o papel dos peritos
médico-legais não apenas à luz do princípio da integridade mas igualmente da
dignidade corporal dos trabalhadores sinistrados sob sua avaliação e
apreciação, o que “não passa pelo recurso privilegiado à produção de textos
públicos, mas pelas suas intervenções enquanto especialistas ou portadores de
um determinado tipo de competência ou de saber” (Nunes e Serra, 2003: 217).

A problemática da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais em direito


do trabalho, a que já aludimos, poderá, de alguma forma, fornecer ancoragem
empírica a esta ideia. Neste domínio particular da indemnização do corpo e da

351 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Dano, Perícia e Reparação

vida em contexto laboral, o conceito de intelectuais específicos não se confina


às tarefas médico-legais. Vai aliás de encontro ao próprio conceito de activismo
judicial (Wolfe, 1997; Santos, 2001), que, reportando-se a um movimento
articulado e cumulativo de decisões judiciais progressistas, participa dessa
leitura crítica, empenhada e contra-hegemónica do direito e da justiça. A
autonomização do dano corporal enquanto dano biológico (Braga, 2005), ainda
que no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, foi disso exemplo
paradigmático no contexto da jurisprudência italiana309, não lhe sendo estranha
a emergência de uma noção recente de cidadania biológica (Rose e Novas,
2003; Petryna, 2002).

309
“A experiência italiana pode considerar-se exemplar no tocante à criação de um sistema
jurídico que coloca o homem no centro da tutela dos direitos fundamentais, no respeitante à
figura do dano corporal e à sua reparação. A jurisprudência italiana teve o mérito de conferir
concretização prática aos preceitos constitucionais respeitantes à dignidade humana e aos
bens da saúde e da integridade física e psíquica. Com a força criadora da jurisprudência
italiana foi possível influenciar positivamente todo o sistema jurídico, inovando de forma
profunda a metodologia da reparação do dano corporal […] sem que tenha existido intervenção
por parte do legislador.” (Braga, 2005: 37)

352 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


6

CAPÍTULO 6
O TEMPO E O MODO DA REPARAÇÃO DO DANO
CORPORAL NOS TRIBUNAIS:

QUANDO OS PROCESSOS FALAM


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

1. O SINISTRADO E O SINISTRO: ALGUMAS NOTAS


CARACTERIZADORES

A análise categorizada da amostra de processos consultados nos


tribunais permite-nos refinar a caracterização das vítimas e dos acidentes,
articulando-a com os constrangimentos estruturais do sistema de justiça no
quadro da reparação. Podemos assim confirmar a sectorização do acidentes
por actividade profissional, o que, de resto, já foi sinalizado na análise
estatística da sinistralidade e da sua expressão nos tribunais de trabalho. As
vítimas são, na sua maioria, operários da construção civil e os operários fabris
e os motoristas.

354 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 16

Profissão dos sinistrados do trabalho

Mecânico
Electrecista
Função pública
Quadro superior
Comercial
Funções de gerência
Outros
Operário fabril
Motorista
Construção Cívil
Agriculltor
Serralheiro

0 2 4 6 8 10 12

Relativamente aos salários auferidos pelos sinistrados do trabalho


concluímos que, por regra, estamos perante trabalhadores com rendimentos
muito baixos – o que se agrava ainda mais pelo facto de, não raras vezes, o
rendimento declarado e transferido para a seguradora não corresponder ao
salário real. Como podemos ver pelo gráfico que seguinte, quase 50% dos
sinistrados do trabalho auferiam rendimentos entre os 500,00 euros e os
750,00 euros, com uma elevada percentagem de processos – cerca de 30% –
em que os sinistrados recebiam menos de 500,00 euros.

355 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 17

Rendimento dos sinistrados do trabalho

Mais de €1000

€750 a €1000

€500 a €750

€250 a €500

0,0% 10,0% 20,0% 30,0% 40,0% 50,0% 60,0%

De acordo com os processos consultados nos tribunais de trabalho, a


causa mais recorrente destes sinistros é a queda, representando cerca de 39%
da totalidade dos acidentes. Segue-se o manuseamento de máquinas ou
utensílios/ferramentas de trabalho e a condução de veículos (cerca de 29%) e
os acidentes de trabalho in itinere (20%).

356 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 18

Causas dos acidentes

Explusão

Desabamento
Descarregar
mercadoria
Máquinas/utensílios
de trabalho
Viação

Descarga eléctrica

Queda

0 5 10 15 20 25

Uma outra nota caracterizadora dos prende-se com o tipo de lesão dos
sinistrados do trabalho. Como se vê pelo gráfico 19, as lesões dos sinistrados
do trabalho, de acordo com a nossa amostragem, atingem, sobretudo, os
membros superiores, representando cerca de 33% das lesões encontradas,
destacando-se as lesões nas mãos. Seguem-se as lesões dos membros
inferiores, com especial incidência nos joelhos e nos pés e, no mesmo patamar
de incidência, a morte dos sinistrados (cada uma delas representando 23% do
resultados dos acidentes de trabalho).

357 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 19

Tipo de lesões

Olhos

Morte
Membros superiores
Membros inferiores

Tronco

0 5 10 15 20

2. MOROSIDADE E ARTICULAÇÃO ENTRE OS


TRIBUNAIS E AS INSTITUIÇÕES CONEXAS

358 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Um dos factores que em muito contribui para a morosidade processual


resulta da falta de articulação entre os tribunais e as instituições conexas ou
complementares. Esta desarticulação é mais acentuada na troca de
informações sobre a situação clínica dos sinistrados.

Caso 13

Num caso em que um sinistrado, tractorista de profissão, com 59 anos sofreu um acidente de
trabalho no dia 09 de Março de 2006 foi marcada junta médica para o dia 21 de Maio de 2008.
Como esta não se realizou em virtude ainda não terem sido remetidos ao INML a
documentação clínica do sinistrado, foi agendada nova data para o dia 22 de Outubro de 2008.
Nesta data foi solicitada a realização de um RX ao sinistrado e foi marcada nova junta médica
que se realizou no dia 08 de Julho de 2009. Quanto à demora na obtenção dos resultados
periciais é ilustrativo o seguinte de uma despacho do magistrado judicial: “é de lamentar, pelo
menos, a desarticulação dos serviços dos HUC, sendo certo que a decisão sobre a fixação da
incapacidade já foi tomada, afigurando-se-me que em todo o caso, o seu resultado não sofreria
alteração face ao serôdio relatório agora apresentado.”

Caso 14

Em consequência de um acidente de viação ocorrido no dia 19 de Junho de 2002 foi solicitada


ao INML a realização de uma perícia médica, tendo a mesma sido realizada dois meses
depois. Nessa data foi enviada a primeira parte do relatório com a seguinte informação “para
além, da documentação que o examinado tenha em seu dispor, torna-se indispensável, para
realização do exame, o envio prévio da restante documentação clínica e radiográfica
relacionada com o caso em avaliação e existente nas instituições hospitalares onde foi
socorrido. Não se verificando tal envio até à data do exame, não nos podemos responsabilizar
pelo cumprimento de qualquer prazo”.

Neste seguimento, no dia 17 de Janeiro de 2006, o tribunal solicitou a referida informação à


seguradora, tendo esta, dificultado o acesso à mesma. O tribunal, em 09 de Fevereiro
encaminhou pedido de informações à seguradora sobre as instituições que acompanharam o
sinistrado, a fim de lhes solicitar directamente a documentação necessária à perícia do INML. A
seguradora forneceu as informações solicitadas no dia 22 desse mesmo mês e o tribunal, no
dia 03 de Março, remeteu um pedido a solicitar a documentação clínica do sinistrado às

359 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

instituições identificadas. O relatório final foi entregue pelo INML no dia 29 de Maio de 2006 e a
audiência de julgamento foi agendada para o dia 21 de Fevereiro de 2007 com a justificação
“não há dia disponível antes”.

Da análise da nossa amostragem de processos concluímos que um dos


grandes problemas que condiciona o desempenho dos tribunais é a
morosidade e que esta se revela a três diferentes níveis: morosidade na
entrega dos relatórios periciais por parte do INML, morosidade no
agendamento da audiência de julgamento e morosidade decorrente da acção
das partes. Sendo certo que todas elas contribuem, em maior ou menor
medida, para que o momento da reparação do dano acabe por se afastar no
tempo relativamente ao momento do acidente. Da amostra de processos
consultados resultam anomalias particularmente graves no que diz respeito à
morosidade processual. Fora o tempo de recurso, foram identificados
processos por acidente de trabalho cujo período de resolução se estende por
cerca de três a quatro anos após a data da ocorrência.

Caso 15

Acidente de trabalho ocorrido 09 de Junho de 2005. A decisão final apenas foi proferida no dia
20 de Outubro de 2009. Assim, desde a data do acidente até à data da sentença judicial que
colocou termo ao litígio passaram 4 anos, 4 meses e 24 dias. Sendo que, 16 meses deste
período, decorreram, em fase conciliatória, entre a data de pedido de exame pericial ao INML e
data do envio do respectivo relatório pericial.

Detalhes do caso: O sinistrado, solteiro, 23 anos à data do acidente, era vidraceiro, e auferia
um salário médio mensal de 588,00 euros, «ao transportar um vidro este partiu-se e feriu o
sinistrado», atingindo-o no pescoço e membro superior direito, com sequelas cerebrais
(enfarte), oftalmológicas, na laringe, entre outras. Com o acidente sofreu 599 dias de ITA e 242
dias de ITP. O que se discutia no processo era o coeficiente de incapacidade a atribuir ao
sinistrado. Por junta média foi-lhe fixada uma IPP de 50%, com base na qual foi proferida a
decisão final. A IPP que foi fixada pela junta médica correspondia à IPP atribuída pela
seguradora mas com a qual o sinistrado não concordava.

360 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Caso 16

Acidente de trabalho ocorrido a 23 de Agosto de 2002. A decisão final apenas foi proferida no
dia 09 de Outubro de 2006. Entre a data do acidente e a data da sentença judicial decorreram
4 anos, e mês e 6 dias. Saliente-se que, neste período, cerca de 23 meses decorreram entre a
data da realização da tentativa de conciliação em fase conciliatória e a junção aos autos do
relatório da junta médica que foi requerida uma vez que não foi possível as partes conciliarem-
se.

Detalhes do caso: O sinistrado, com 72 anos de idade à data do acidente, casado, operário da
construção civil, recebia um salário mensal de 348,01 euros. O acidente ocorreu quando o
trabalhador, enquanto serrava um taipal, escorregou. O trabalhador segurava uma serra
eléctrica e, com a queda, acabou por amputar o dedo polegar da mão esquerda e lesionar a
mão esquerda, tendo daí resultado uma hipertrofia do dedo médio desta mão. O que se
discutia no processo era, por um lado, a descaracterização do acidente uma vez que a
seguradora não aceitava a responsabilidade pelo acidente porque considerava que tinha
havido culpa do sinistrado (violação das regras de segurança).

Considerando a amostra de processos, em média, a duração total de um


processo judicial de acidente de trabalho, desde a data do sinistro, é de cerca
de 2 anos. De facto, 50% termina no prazo compreendido entre 1 ano e 2 anos,
sendo que mais de 37% demora mais de 2 anos e, destes, uma parte ainda
significativa (cerca de 10%), vai par além dos 4 anos.

361 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 20

Duração total dos processos - Trabalho

10% 13%
6% Até 1 ano
1 ano a 2 anos
2 anos a 3 anos
21% 3 anos a 4 anos
50% Mais de 4

Outro aspecto a salientar relaciona-se com a forma como findaram estes


processos: 42% terminaram antes da audiência de discussão e julgamento por
acordo celebrado entre as partes. Acresce que este acordo, por regra, foi
conseguido antes do processo passar à fase contenciosa, o que permite
concluir que aquela média de duração de 2 anos foi, sobretudo, induzida pelos
processos que terminaram por acordo das partes. Quando analisamos a
duração dos processos que terminaram em fase contenciosa e, em particular,
com julgamento, a duração é, por norma, superior a 3 anos.

É de salientar que, nos processos relativos a acidentes rodoviários, a


morosidade é mais elevada. A duração média de um processo é de cerca de 5
anos e identificam-se mais processos reveladores de casos extremos de
morosidade processual. Outra nota a destacar é que, nos acidentes de viação,
em regra, os processos só dão entrada no tribunal (provavelmente parados nos
escritórios de advogados e certamente ao serviços das lógicas da advocacia)
muito próximo do prazo prescricional (três anos após a data do acidente caso
não se tenha verificado nenhuma causa de interrupção da prescrição nos
termos do artigo 323.º, 325.º e 326.º do CC). Na grande maioria dos processos
verificou-se a entrada da acção em data muito próxima do fim do prazo de
prescrição.

362 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Caso 17

Acidente de viação ocorrido em 31 de Dezembro de 1999 e com data de entrada da acção de


06 de Janeiro de 2003. Verificou-se o esgotamento do prazo de exercício de direito de acção,
tendo sido inclusive alegada a prescrição por parte da seguradora. O processo só terminou em
12 de Abril de 2007, cerca de 7 anos e 3 meses depois da data do acidente, com a celebração
de um acordo extrajudicial entre as partes, já após a marcação da data de audiência de
julgamento e de um adiamento da mesma.

Detalhes do caso: A sinistrada, divorciada, funcionária pública (enfermeira), com 42 anos à


data do acidente e com rendimentos mensais de cerca de 315.300$00, foi vítima de
atropelamento numa passadeira, sofrendo traumatismo crânio-encefálico grave e perda de
conhecimento. O condutor abandonou imediatamente o local.

Caso 18

Acidente de viação ocorrido em 14 de Maio de 1999 e com data de entrada da acção em 13 de


Maio de 2002, no último dia do fim do prazo de prescrição. O processo terminou no dia 18 de
Julho de 2007, cerca de 8 anos e 2 meses depois da data do acidente, com a repetição da
audiência de julgamento.

Detalhes do caso: A sinistrada foi vítima de atropelamento numa passadeira, sofrendo


traumatismos vários e hemorragias internas.

A amostra de processos relativos a acidentes de viação evidencia uma


duração média desde a data do acidente até à data do termo do litígio de cerca
de 5 anos, sendo que cerca de 63% destes processos demorou de 4 a 6 anos
e 5% tem uma duração que vai para além dos 6 anos.

363 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 21

Duração total dos processos - Cível

3% 5% 3% 5% 1 ano a 2 anos
8% 13% 2 anos a 3 anos
3 anos a 4 anos
4 anos a 5 anos
5 anos a 6 anos

29% 6 anos a 7 anos


7 anos a 8 anos
34%
Mais de 8

Os gráficos 18 e 19 mostram as escalas de duração desde a data do


evento lesivo até á sua entrada no sistema de justiça. O tempo prévio à entrada
do processo no sistema de justiça, envolvendo diferentes razões como a
tentativa de negociação, estratégias da advocacia, produção de prova, entre
outras, é manifestamente mais longo no caso dos processos relativos a
acidentes de viação. A entrada do processo em data muito próxima da data de
prescrição merece também ser sublinhada, sobretudo no domínio da
responsabilidade civil emergente dos acidentes de viação.

364 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 22

Duração dos processos entre a data do


acidente e a data de autuação - Trabalho

2% 4% Até 6 meses
25% 40% 6 meses a 12 meses
12 meses a 18 meses
18 meses a 24 meses
29% Mais de 24 meses

Gráfico 23

Duração dos processos entre a data do


acidente e a data de autuação - Cível

4% 6%
16% 14% Menos de 1 ano
1 ano a 2 anos
2 anos a 3 anos
3 anos a 4 anos
Mais de 4 anos
60%

Morosidade da entrega dos relatórios periciais por parte do


INML

No que respeita ao tempo dos resultados periciais finais, resulta da


amostra que a duração média é de cerca de um ano. Os principais factores
invocados prendem-se, por um lado, com a necessidade de realização de
perícias da especialidade e, por outro, com a demora no envio da

365 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

documentação clínica. Esta morosidade é ainda mais acentuada nos processos


cíveis.

Caso 19

Em acidente de trabalho ocorrido 09 de Junho de 2005, foi solicitada, no dia 11 de Dezembro


de 2007, a realização da competente perícia médica. Esta foi realizada três meses mais tarde
(Março de 2008). No entanto, só nesta data, é que foi verificado que a elaboração do relatório
final ainda exigia que se procedesse a exames de especialidade (cirurgia vascular,
neurocirurgia, oftalmologia e otorrinolaringologia) que vieram, por sua vez, a realizar-se entre
os dias 14 e 28 de Abril de 2008. Posteriormente e, antes que tivesse sido entregue o relatório
final (Novembro de 2008), foi realizada ainda nova perícia médica, uma vez que o sinistrado
passou a manifestar novos sintomas. Assim, dada a necessidade de mais exames de
especialidade, a perícia final foi realizada no dia 03 de Abril de 2009, com entrega subsequente
do relatório final. Como se verifica, o tempo entre o pedido inicial e a finalização da perícia
quase que chegou aos 16 meses.

Caso 20

Num processo cível analisado, foi pedido ao INML, no dia 10 de Outubro de 2005, para que
fosse realizada a competente perícia médica. Em Dezembro do mesmo ano foi solicitado ao
tribunal os documentos clínicos relativos à urgência hospitalar e internamento do sinistrado. Em
Abril de 2006, o tribunal solicitou ao Gabinete Médico-legal da Figueira da Foz o envio do
relatório final e este comunica que será necessário requerer a realização de exames
complementares. Em Novembro de 2006, o pedido de entrega do relatório final da medicina
legal é reiterado, tendo o mesmo sido remetido no dia 26 de Janeiro de 2007. Acontece que o
relatório remetido não correspondia, pelo seu conteúdo, ao sinistrado em causa. Em
consequência desta situação, o sinistrado, no dia 14 de Fevereiro de 2007, requer a realização
de uma segunda perícia médico-legal colegial. O tribunal reiterou mais duas vezes o pedido de
relatório final, que apenas foi remetido em 14 de Junho de 2007, quase dois anos após o seu
primeiro pedido.

Analisado o tempo que decorre, nos processos de trabalho, entre a data


do pedido de exame pericial por parte do MP ao INML e a data em que o
mesmo é realizado e/ou junto aos autos (ainda durante a fase conciliatória), em

366 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

média, decorrem 4 meses. No entanto, é de referir que, em cerca de 20% dos


processos consultados, os resultados apenas foram juntos aos autos mais de 6
meses após terem sido pedidos, encontrando-se situações extremas em que a
demora foi além dos 12 meses, mais precisamente 14 meses, 16 meses e 17
meses.

Gráfico 24

Duração dos processos entre a data do pedido de exame ao


INML e a data da sua realialização e/ouda sua junção aos autos -
Trabalho (Fase Conciliatória)

9%
12%
Até 6 meses
6 meses a 12 meses
12 meses a 18 meses
79%

A duração acentua-se nos casos que passaram à fase contenciosa.


Analisada a duração do processo entre a data do fim desta fase e a data em
que são juntos aos autos os resultados periciais das juntas médicas, conclui-se
que não raras vezes o processo “pára” mais 6 meses. Em cerca de 9%, a
espera pelo resultado da junta médica vai além dos 18 meses.

367 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 25

Duração dos processos entre o fim da Fase Conciliatória e a


data da Junta Médica - Trabalho

0% 9%
18% Até 6 meses
6 meses a 12 meses
12 meses a 18 meses
18 meses a 24 meses
73%

No domínio cível, por sua vez, entre a data em que é requerida a perícia
e a data em que a o relatório pericial é junto aos autos passam, em média, 8
meses. Não obstante, cerca de 26% do total dos processos cíveis consultados
chega a esperar pelo relatório pericial mais de um ano, com casos a chegar
mesmo aos 2 anos.

368 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 26

Duração dos processos entre a data do pedido de perícia e


a realização da mesma - Cível

13%

13% Menos de 6 meses


45%
6 meses a 12 meses
12 meses a 18 meses
18 meses a 24 meses
29%

Morosidade no agendamento da audiência de julgamento

Da consulta dos processos resulta que a falta, real ou aparente, de


disponibilidade de agendas, tanto do tribunal, como dos mandatários das
partes, leva à dilação na marcação de diligências várias, em especial das
audiências de parte e de julgamento, sendo igualmente muito frequente
encontrar despachos de adiamento da audiência de julgamento.

Caso 21

O tribunal, após receber o relatório final em finais de Março de 2006, agenda a audiência de
discussão e julgamento para o dia 26 de Setembro de 2007. Nesta data não foi possível
realizar a audiência e o tribunal agenda nova data para o dia 29 de Fevereiro de 2008.

369 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Casos 22

A audiência de julgamento é marcada para o dia 29 de Novembro de 2005. Nesse dia


nenhuma das partes compare-se e o tribunal adia a audiência para o dia 20 de Fevereiro de
2006. Entretanto, a magistrada judicial do processo declara-se impedida pelo facto de o
mandatário da autora ser o seu marido e, entretanto, a audiência volta a ser agendada para
nova data. Agora para o dia 26 de Junho de 2007!

Morosidade decorrente da acção das partes

É muito frequente as partes requererem vásrias vezes a suspensão da


instância, com vista a celebração de um acordo extrajudicial. As negociações
entre as partes parecem só começar a surgir após a entrega do relatório final
por parte do INML. Com excepção dos processos do trabalho que terminam
antes de passar à fase contenciosa, o momento em que se nota uma maior
pró-actividade para encontrar uma solução extrajudicial é, apenas, depois do
agendamento da audiência de discussão e julgamento, levando a sucessivos
adiamentos. Contudo, muitas vezes, essas diligências não têm qualquer efeito
prático, o que leva à suspeição de que, com frequência, possa tratar-se de
meros expedientes dilatórios ou de estratégias de advocacia. No cível esta
causa de morosidade é ainda mais acentuada, sendo muito mais frequentes os
adiamentos de diligências e as suspensões da instância.

Caso 23

Num dos processos do trabalho, a audiência de julgamento foi marcada para o dia 04 de Março
de 2008. Nessa data as partes requereram a suspensão da instância pelo período de 15 dias,
com vista a chegar a um acordo. Ainda assim foi agendada nova data para o dia 29 de Abril de
2008. Nesse dia e dado que não houve acordo, tentou realizar-se a audiência mas verificou-se
que o representante legal da entidade patronal não tinha sido devidamente convocado. Foi,
então, agendada nova marcação para o dia 20 de Maio de 2008. Nessa data foram juntos aos
autos alguns documentos para prova do salário real e o advogado da seguradora, não
prescindido de prazo, levou a que fosse marcada nova data para o dia 25 de Junho de 2008.

370 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Caso 24

Num outro processo também no âmbito dos acidentes de trabalho, em que a Tentativa de
conciliação na fase contenciosa já se havia realizado Junho de 2006 e estando nos autos os
relatórios perícias desde Fevereiro do mesmo ano, após vários adiamentos da audiência de
julgamento por impossibilidade de agendas, quer dos mandatário, quer do tribunal bem como,
ainda, derivado a factores de outra ordem como, por exemplo, notificações que não foram
feitas de acordo com a lei, a audiência de julgamento foi marcada para o dia 13 de Março de
2007. No entanto, nesta data a seguradora requereu a junção de documentos, não tendo as
restantes partes prescindido do prazo de exame dos referidos documentos, salientando-se que
os referidos documentos eram apenas certidões da conservatória do registo comercial das
sociedades em litígio. Assim, foi marcada nova data para o dia 16 de Maio de 2007 e, no dia
anterior, as partes requerem a suspensão da instância com vista a obter um acordo. Entretanto
é marcada nova audiência para o dia 18 de Junho de 2007 que, todavia, fica sem efeito por
impossibilidade de agenda de um dos mandatários. Dados estes sucessivos adiamentos o
julgamento apenas tem lugar no dia 10 de Setembro de 2007.

Caso 25

Num dos processos cíveis, no dia de audiência de julgamento, a 7 de Novembro de 2006, as


partes requerem a suspensão da instância para negociações. O tribunal aceita e marca nova
data para o dia 17 de Abril de 2007. Ao aproximar-se esta data e ainda não havendo acordo, as
partes voltam a requerer a suspensão da instância e é agendada nova data de audiência para
o dia 28 de Setembro de 2007, o que volta a acontecer e nova data 12 de Maio de 2008.

Caso 26

Num outro processo cível, em 30 de Outubro de 2006 é marcada audiência de discussão e


julgamento para o dia 31 de Janeiro de 2007. Nesse mesmo dia é apresentado um pedido de
suspensão da instância por requerimento das partes, uma vez que estas se encontram em vias
de obter acordo. Não sendo junto aos autos tal acordo, no dia 2 de Abril de 2007 é marcada
nova data de audiência para o dia 24 de Setembro de 2007 e as partes apenas chegam juntam
a transacção aos autos no dia 21 desse mesmo mês.

371 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Dos referidos factores de morosidade é possível compreender os


motivos do hiato temporal que medeia a entrega dos relatórios periciais e o
termo do processo. Para além da morosidade resultante do compasso de
espera na obtenção das perícias, também se verificam fenómenos de
morosidade decorrente do congestionamento dos tribunais, conjugada com as
lógicas da advocacia. Esta situação torna-se mais preocupante quando o
processo transita para a fase contenciosa e é cerca de meio ano o intervalo de
tempo entre a data da junção aos autos do relatório da junta médica e a data
do julgamento. No domínio cível, esta situação vê-se agravada, sendo que
numa percentagem significativa de casos esse período vai além dos 24 meses.

372 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 27

Duração dos processos entre a data de entrega do relatório


pericial e a data do fim do processo - Cível

13% 13%
Menos de 6 meses
6 meses a 12 meses
12 meses a 18 meses
26% 18 meses a 24 meses
45% mais 24 meses
3%

3. O TERMO DO PROCESSO REPARATÓRIO

Da totalidade dos processos que terminaram com o julgamento, apenas


4 foram alvo de recurso e, todos eles, intentados pelas seguradoras.
Corroborando os resultados das entrevistas realizadas no que respeita à
desigualdade de meios entre as partes, em apenas um dos processos foi
apresentado relatório médico por iniciativa do sinistrado.

373 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

A amostra de processos confirmou a existência de discrepâncias


significativas entre indicações periciais, matéria a que já fizemos referência
anteriormente. Há, no entanto, dados adicionais confirmam as pistas
delineadas. Os valores decorrentes da nossa amostra de processos indicam
que o relatório pericial resultante da Junta Médica atribui ao sinistrado menos
19% de incapacidade do que o relatório pericial do perito singular realizado na
Fase Conciliatória, aproximando-se, assim, dos resultados apresentados pelos
peritos das seguradoras. Estão em causa, em média, menos 3 p.p., existindo
um número significativo de casos em que esta variação ronda os 10 a 15 p.p. e
tendo mesmo encontrado um caso em que foram atribuídos menos 30
p.p..Casos em que o relatório pericial da Junta Médica tenha aumentado a
incapacidade atribuída ao sinistrado pelo perito singular apenas encontramos
dois.

A análise dos processos permite reiterar a atribuição do coeficiente de


incapacidade como momento fulcral dos processos. Nos casos em que do
relatório pericial do perito singular do INML apresentado, em Fase Conciliatória,
constam resultados periciais próximos dos que foram determinados pelos
peritos das seguradoras, por regra, os processos terminam nesta fase, não
avançando para a Fase Contenciosa. Aliás, em 73% dos casos consultados o
motivo do litígio que opõe a seguradoras aos sinistrados é a determinação do
coeficiente de incapacidade. A esta causa segue-se uma outra, igualmente
representativa, que se prende com a determinação da responsabilidade pela
indemnização, discutindo-se temas como a culpa do sinistrado ou da entidade
empregadora.

374 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 28

Motivo de litigiosidade com as seguradoras -


Trabalho
Coeficiente de incapacidade

2% 6%
Responsabilidade/culpa pelo
19%
acidente
Validade do contrato de
seguro
73%
Legitimidade activa

Se analisarmos agora os processos em que há intervenção da entidade


empregadora concluímos que, por um lado, não é a regra esta ser chamada e,
por outro, quando é chamada, o maior motivo de litígio que a opõe aos
sinistrados e mesmo à seguradora é a questão da determinação do rendimento
auferido pelo sinistrado. O outro motivo de litígio, ainda que com um peso
menos significativo em termos percentuais mas que, na prática, reflecte, como
já vimos anteriormente, sérias dificuldades na vida dos sinistrados, é a
determinação da responsabilidade pelo acidente.

375 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

Gráfico 29

Motivo de litigiosidade com as entidades


empregadoras

Salário

1; 2% Responsabilidade/culpa pelo
16; 31%
acidente

Processos sem intervenção da


32; 61% 3; 6% entidade empregadora

Reintegração

A maioria dos processos de acidente de viação termina por acordo


(cerca de 55%). No entanto, e como já se referiu, na quase totalidade dos
processos que findam por acordo, isso apenas acontece depois de marcada ou
mesmo depois da data da audiência de discussão e julgamento, sendo,
portanto, muito frequentes os adiamentos e as suspensões de instância com
vista à obtenção de acordo, ainda que muitos acabem por terminar por decisão
judicial. Nestes casos, ao contrário da esfera laboral, regista-se um número
mais elevado de recurso aos tribunais superiores.

Outro aspecto interessante que resultou da análise dos processos cíveis


foi a enorme diferença entre o valor peticionado e o valor atribuído. Para
perceber a discrepância a que nos estamos a referir diga-se que, em termos
médios, os sinistrados recebem menos 55% do valor que inicialmente
peticionaram. Sendo que em mais de metade dos processos consultados os
sinistrados acabaram por receber menos de 50% do valor por si peticionado. A
esta constatação acresce uma outra. Esta situação, transversal a todos os
processos, tem igual incidência nos casos em que os processos terminam por
acordo. O que equivale a dizer que os sinistrados que peticionam os valores

376 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

iniciais elevadíssimos acabam por depois, eles próprios, fazer acordos por
montantes indemnizatórios muito inferiores. Ou seja, não podemos imputar
esta discrepância entre os valores peticionados e os valores atribuídos às
decisões judiciais até porque, nestes casos, os valores em que a seguradora é
condenada são, por regra, bem mais próximos dos valores peticionados pelos
sinistrados. Outro aspecto não menos estranho é que aqueles acordos são
conseguidos apenas após o agendamento da audiência de julgamento e, não
raras vezes, após alguns adiamento da mesma. Talvez esta seja também uma
das lógicas da advocacia marcada pela estratégia dos honorários.

Caso 27

Em virtude de um acidente de viação acorrido no dia 27 de Abril de 2004, um sinistrado de 30


anos de idade, trabalhador por conta própria na área da jardinagem, com um rendimento médio
mensal de 1.000,00 euros, “sem estudos de qualquer natureza”, apresentou um pedido de
indemnização de 183.593,43 euros (100.000.00 euros a título de perda de capacidade de
ganho; 17.050,00 euros a título de perdas salariais; 25.000,00 euros pela não realização de
uma cirurgia à coluna cervical; 1.543,43 euros de despesas e 40.000,00 euros a título de danos
não patrimoniais). Na data agendada para a audiência de julgamento e depois de alguns
adiamentos (mais de quatro anos depois da data do acidente), acabou por reduzir o pedido
apresentado e fazer um acordo com a seguradora por 25.000,00 euros (dos quais 15.000,00
euros foram atribuídos a título de danos não patrimoniais, 4.000,00 euros a título de danos
patrimoniais presentes e 6.000,00 euros de danos patrimoniais futuros).

Caso 28

Um sinistrado, solteiro, estafeta na área da restauração, com o 11º ano de escolaridade,


nascido a 18/07/1980, alegando receber 750,00 euros mensais, deduziu um pedido de
indemnização civil contra a seguradora no montante de 138.000,00 euros. No entanto, este
mesmo sinistrado acabou por, depois da primeira data agendada para o julgamento, requerer a
suspensão da instância e, posteriormente, reduzir o referido pedido, celebrando, assim, um
acordo com a seguradora no valor total por 38.500,00 euros. Isto quase 6 anos depois da data
do acidente. Talvez para tal tenham contribuído os resultados perícias do INML uma vez que,
por exemplo, esse mesmo sinistrado alegou uma IPP de 25% para toda e qualquer profissão e
um IPP de 35% para a sua profissão e do relatório final do INML apenas constava uma IPP

377 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


O Tempo e o Modo da Reparação do Dano Corporal nos Tribunais: Quando os Processos
Falam

para toda e qualquer profissão de 10% e, ainda, “capacidade para o exercício da sua profissão,
mas com esforços acrescidos”.

378 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


7

CAPÍTULO 7
PÓS-ACIDENTE:
QUANDO O SISTEMA FALHA
Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

1. CIDADANIA DE SEGUNDA OU A INVISIBILIDADE


DO OUTRO LADO DA LINHAS: DANO INTEGRAL,
REPARAÇÃO PARCIAL?

Se os impactos morais e psicológicos encontram suporte legal no


contexto da responsabilidade civil, no caso dos acidentes de trabalho estes não
auferem da mesma cobertura reparatória. Este desfasamento, sustentado
pelos princípios jurídicos diferenciados que regulam as dinâmicas específicas
da sinistralidade, não significa que os prejuízos não patrimoniais gerados pela
lesão corporal não tenham expressão relevante em ambos os cenários sociais
da sua ocorrência e que, portanto, não mereçam idêntica atenção sociológica.
Vejamos o seguinte depoimento de um operador judicial, baseado em decisões
recentes dos tribunais portugueses:

Um jovem de 18 anos ia a caminho da empresa e antes de chegar sofreu um acidente de


viação. Estamos perante um caso, simultaneamente, de acidente de trabalho e de acidente de
viação.

No âmbito do acidente de trabalho foi-lhe atribuída uma IPP de 27% e no âmbito do acidente
de viação uma IPP de 25% mais 10% de dano futuro. Correu o processo emergente em
acidente de trabalho e este jovem, com a pensão remida, recebeu 19.000,00 euros. Este
mesmo jovem, no processo civil em que se discutia o acidente de viação, recebeu 150.000,00
euros de indemnização a título de danos patrimoniais futuros.

Os argumentos utilizados pelo tribunal foram deste tipo: este jovem, no tipo de empresa em
que trabalha, nunca mais poderá ser promovido (o tribunal de trabalho não pode fazer este tipo

384 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

de ponderação); ou, ainda, que passou a ter dificuldades na realização de tarefas da sua vida
corrente. Isto só em sede de danos patrimoniais porque este jovem recebeu mais 50.000,00
euros a título de danos não patrimoniais.

A questão que se coloca é se isto será razoável? Será aceitável que, no âmbito dos acidentes
de trabalho, não sejam indemnizáveis quaisquer danos não patrimoniais? Será aceitável que
apenas se avalie a capacidade produtiva do sinistrado, como se ele não fosse mais do que isso
e sem atender aos reflexos que a capacidade tem na sua vida para além do trabalho?

Se um processo cível de indemnização por danos corporais concede


cobertura jurídica à petição e argumentação em torno dos efeitos do acidente
na qualidade de vida do sinistrado (dano sexual, dano estético, dano de
afirmação pessoal, quantum doloris, entre muitos outros), os sinistrados do
trabalho, embora beneficiem de um regime legal mais objectivo, não vêem,
porém, equacionada uma reparação sensível às diferentes consequências e
manifestações do drama pessoal resultante da lesão do corpo e da vida. Nesse
sentido, é importante compreender que

“Muitas vítimas, após o acidente ou lesão, ao depararem-se com limitações


físico-funcionais, perdem a sua auto-confiança. O facto de deixarem de poder
continuar com os seus hobbies também lhes retira parte da alegria, podendo
levar à depressão e ao isolamento”. (Sousa et al, 2005: 31)

São vários os relatos de familiares de sinistrados que apontam para


mudanças significativas no modo de funcionamento psicológico das vítimas,
desde a introversão à dificuldade de relacionamentos interpessoais ou à
inconformação com a nova aparência física e com o próprio corpo lesado,
condicionando tanto a exposição pública como a experiência da intimidade,
provocando assim frustração ou insatisfação pessoal, o que redunda, por
vezes, em difíceis rupturas conjugais. O testemunho de um sinistrado do
trabalho, que, na sequência do acidente de trabalho, se confrontou com
limitações sexuais irreparáveis no âmbito da justiça laboral, é, a esse propósito,
esclarecedor:

385 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

“Fiquei, fiquei imobilizado. Parti a bacia, este braço… tenho aqui… levei 60 e tal pontos
e fui operado… tenho aqui uma prótese… porque desfiz o cotovelo... Quer dizer, tenho
problemas… olhe… a bexiga… problemas de erecção…” (S1)

Este tipo de impactos encontra-se excluído de todo o processo


indemnizatório emergente de acidentes de trabalho, carecendo, na maioria das
vezes, de respostas complementares capazes de restituir a qualidade de vida
perdida ou degradada Em contrapartida, a jurisprudência cível tem vindo a
incorporar dimensões mais avançadas e menos visíveis do prejuízo pessoal,
alargando, por exemplo, o dano sexual à esfera jurídica do cônjuge. Um
acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26 de Junho de 2003, reconhece
expressamente que o cônjuge de um sinistrado em acidente de viação que, em
virtude do acidente, ficou afectado na sua capacidade sexual, tem direito a ser
indemnizado pelos prejuízos causados directamente no seu direito à
sexualidade310. Face a esta problemática, autores como Burton et al (2002) têm
apontado a perda temporária ou permanente de intimidade entre parceiros
como consequência das lesões corporais, pelo que a vida sexual acaba por
representar um custo emergente, muitas vezes irreversível, do acidente sofrido.

A desfiguração, amputação ou queimadura constituem, em muitos


casos, os principais motivos que estão na origem deste processo de corrosão e
degradação da intimidade das vítimas. Este processo é ainda agravado quando
observamos os efeitos da incapacidade corporal na dificultação dos gestos
quotidianos das vítimas que envolvem outras dimensões essenciais e
elementares da sua intimidade, nomeadamente a autonomia na realização da

310
Um reconhecimento alargado dos prejuízos emergentes do acidente e causados aos
familiares mais próximos da vítima constitui um sinal positivo do ponto de vista dos direitos dos
lesados a ser indemnizados. Todavia, a fundamentação do presente acórdão baseia-se nos
direitos e deveres conjugais das partes, matéria amplamente susceptível de, noutros contextos,
gerar múltiplos efeitos perversos (cf. lei do divórcio).

386 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

higiene pessoal. O grau de exposição e vulnerabilidade que isso comporta, tal


como o sentimento de dependência perante os seus próximos mais
significativos, desafiam a auto-estima e os esquemas funcionais da vida
familiar, subvertendo as lógicas e os papéis predefinidos:

“É que eu quase não faço nada. Porque… é assim, eu não me tenho de pé… eu não
me posso calçar… ao não me poder calçar quase que não posso fazer mais nada.
Faço a higiene… a barba e não sei quê… Agora em Janeiro fomos para esta casa… eu
já estava em casa sem tomar banho… banho mesmo, não é… já a caminho de 3 anos.
Sem saber o que era água no corpo… água… quer dizer, a minha mulher lavava-me
todos os dias. Agora pronto, comprou uma tábua… e eu por acaso consigo-me sentar
nela, e subo para a banheira e já tomo, já…” (S2)

A relação entre conjugalidade e provisão de cuidados no interior da


família emerge como um nexo importante nas respostas familiares à deficiência
e incapacidade, pelo que a tipicidade do papel da mulher no auxílio do
sinistrado merece especial atenção sociológica. Se, em circunstâncias ditas
normais, a divisão das tarefas domésticas, sobretudo no interior das classes e
dos sectores sociais mais afectados pelos acidentes de trabalho com maior
efeito incapacitante, se encarrega de atribuir à mulher as funções de cuidado e
assistência familiar, o surgimento de uma lesão corporal que requeira o
acompanhamento de uma terceira pessoa tende a constituir um ónus para a
mulher do cônjuge incapacitado, processo que muitas das vezes acaba por
forçá-la a interromper ou abandonar a sua actividade profissional:

A sua mulher trabalha?

“Na altura trabalhava”.

E então como é que foi para trabalhar e o ajudar ao mesmo tempo?

“Não… ela deixou de trabalhar, porque eu comecei a não me poder mexer, e ela deixou
de trabalhar, passou a ficar com o rendimento social de inserção (…) Felizmente tenho
um casamento de 30 anos que vai durando… Quer dizer, também tratei sempre bem a
mulher, nunca lhe bati, nunca tive assim problemas… Nunca a maltratei… Se calhar
agora ela fazia-me igual e ia à vida dela…” (S2)

Ainda que a legislação laboral sobre acidentes de trabalho e a


abrangência ressarcitória no direito civil possam acautelar a necessidade de

387 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

ajuda de uma terceira pessoa dada a incapacidade temporária ou permanente


da vítima, o que é certo é que, sobretudo no primeiro cenário, os patamares a
partir dos quais essa disposição legal pode ser mobilizada – sendo assim
subfinanciada – ficam francamente aquém daquilo que são as carências
quotidianas dos lesados e o acréscimo de trabalho social dispendido no seu
suporte311:

“Era um homem que tinha sofrido a biamputação dos membros superiores. A esposa,
por acaso, tinha-o [o auto de conciliação] na carteira. Eu comecei a ver o auto de
conciliação e no final disse-lhe: «Você disse que a companhia de seguros e o tribunal
tiveram pena de si. O que fará se não tivessem! Acho que com a deficiência que tem
tem a necessidade de uma prestação suplementar para terceira pessoa. Você não
pode fazer a sua higiene, não pode… Mas nem o tribunal nem a companhia de seguros
lhe deram esse subsídio para terceira pessoa e poderá corresponder a 25% do valor da
sua prestação. Diz ele: «Não me diga! E agora, o que é que a gente vai fazer?» Eu
respondi: «Eu vou falar com o Procurador da República». E fui. Era um senhor muito
simpático. Inicialmente disse-me que não, que o senhor tinha recebido tudo o que
estava previsto na lei. E eu disse-lhe que não tinha sido concedida a prestação
suplementar para terceira pessoa e aquele senhor não tem os braços… E ele pegou no
livro, começou a ler… e disse-me: «Ó diabo, você tem razão! E agora, o que é que a
gente há-de fazer? É que isto agora é complicado… se você fizesse um requerimento e
trouxesse um relatório…» E eu disse-lhe: «É preciso o relatório de um médico?!»
Pronto… por caso foi um médico amigo que resolveu a situação, embora nem sequer
fosse da especialidade (era clínico geral), mas ele percebeu logo. Lá se fez o
requerimento e o senhor passou a receber a prestação para terceira pessoa”. (Ent. 5)

O impacto da incapacidade corporal na parentalidade, isto é, na relação


e interacção das vítimas com os filhos, é um aspecto apontado pela literatura
que aprofundámos no trabalho de campo, dando conta dos diferentes níveis de

311
Neste sentido: “Os acidentes e doenças profissionais, nas situações mais graves, poderão
ter um impacto profissional não só na vítima, que se vê, por exemplo, obrigada a interromper a
sua actividade profissional, como para o próprio cônjuge ou familiar que se dedique à sua
prestação de cuidados, que poderá ter de alargar o seu emprego e/ou mudar ou arranjar outro
emprego no sentido de tentar auferir mais rendimentos para contrabalançar a perda de
rendimentos sofrida. Noutros casos, o cônjuge deixa de trabalhar para poder prestar os
cuidados necessários ao seu parceiro, o que culmina numa perda substancial do rendimento
familiar”. (Sousa et al, 2005: 42)

388 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

limitações no exercício dos gestos típicos de cuidado e afecto, redundando em


atitudes e manifestações de isolamento, frustração e revolta ou resignação:

“Estou um bocado desanimado com a vida, ver uma criança a brotar, a nascer, e não
lhe poder dar colo, nem dar mimo, não poder ir à praia com ela… Considero-me um
abandonadozito.” (S 2)

É ainda possível apontar sentimentos profundos de isolamento, variando


em função da gravidade da incapacidade experienciada e da reconstrução da
subjectividade das vítimas. A tensão entre as expectativas e a efectividade da
recuperação física, somada às mudanças forçadas no estilo de vida e à
dependência abrupta de terceiros, constitui ainda um factor pós-traumático
potenciador da ansiedade e do sofrimento, com implicações significativas no
estado de humor e na irritabilidade das vítimas. Simultaneamente,

“Os sentimentos de culpa não são raros, existindo quer na sequência de um


acidente de trabalho, pelo facto do trabalhador achar que o acidente derivou de
alguma distracção, erro, ou descuido seu. (…) Este sentimento de culpa é,
muitas vezes, aumentado pela reacção das entidades empregadoras que, no
sentido de abafar o problema, procuram culpar o trabalhador ou mostrar que a
doença ou acidente se deveu a outros factores, como o abuso de álcool ou
drogas, o tabaco, entre outros”. (Sousa et al,2005: 32)

Em suma, o luto (no sentido do reajustamento à situação), a ansiedade


(sentimento de medo incontroláveis, sintomas físicos e fobia a estímulos
associados ao acidente), a depressão (perda de interesse generalizada e
ideação suicida) e a dor (memórias intrusivas, evitamento de estímulos e
evolução para quadros crónicos e incapacitantes) condensam aquilo que é a
experiência psicológica e moral pós-traumática das vítimas da sinistralidade,
traduzindo a incerteza sobre a extensão da recuperação, a apreensão sobre o
futuro profissional e a antecipação das dificuldades (financeiras, familiares,
profissionais, entre outras) a enfrentar. As dificuldades na gestão dos
processos junto dos diferentes intervenientes – seguradoras, entidades
patronais, operadores judiciais –, a situação clínica (operações cirúrgicas,

389 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

internamentos, fisioterapia) e a percepção do estigma social312, imagem


corporal negativa e suporte social reduzido são ainda apontados por Sousa et
al (2005: 36) e espelhados no respectivo modelo interaccional dos impactos
psicológicos e morais da sinistralidade.

Assim, os impactos sociais e familiares revelam uma importância


extrema na compreensão dos prejuízos decorrentes da sinistralidade, embora
nem sempre se encontrem acomodados nos quadros jurídicos e sejam portanto
passíveis de conversão em danos indemnizáveis em sede judicial. Nesta
matéria, apesar de as recentes alterações à legislação laboral incluírem, por
exemplo, apoio psicológico aos familiares das vítimas, é ainda profunda a
clivagem normativa entre a responsabilidade civil e a reparação dos acidentes
de trabalho.

Ainda assim, grande parte dos impactos sociais e familiares da


sinistralidade são comuns a ambas as realidades, reflectindo-se no suporte,
distribuição e execução das tarefas domésticas, na comunicação interpessoal
entre os diferentes elementos da família, na tensão entre a experiência e as
expectativas conjugais e parentais, nas rupturas operadas nos projectos
familiares, na incorporação de narrativas de fracasso pessoal com efeitos
perturbadores nas dinâmicas familiares e amicais. O potencial desestabilizador
da vitimação corporal no contexto sociofamiliar é assim conjugado com os
impactos psicológicos e comportamentais (stress, depressão, sentimento de
revolta generalizado, estigmatização, isolamento, violência, suicídio e
comportamentos aditivos), profissionais e económicos (redução de rendimento,
diminuição de produtividade, desemprego e necessidade de formação) e físico-
funcionais (incapacidade, deficiência, dor e boa aprendizagem de gestão da
rotina diária).

312
Cf. “Estigma” de Erving Goffman.

390 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

A incapacidade adquirida, muito em função da sua gravidade ou


particularidade, constitui uma disrupção num percurso biográfico, alterando o
significado personalizado das noções de tempo, espaço e capacidade
judicativa, forçando uma recontextualização do sujeito face à nova situação.
(Oliveira et al, 2006: 17). As diferentes limitações no desempenho das
obrigações sociais, profissionais e familiares estão assim na origem de um
novo sentido de perspectiva (Langer, 1994) na construção de identidade e
alteridade, muito embora o sentimento de perda (física, cognitiva ou simbólica)
e a consciência da desigualdade muito dificilmente se diluam.

Os desafios à reparação judicial, ao suporte social, ao processo


reabilitacional e ao acompanhamento psicológico das vítimas passam, de
acordo com Oliveira et al (2006), pela atenção à evolução da condição
incapacitada; o grau de dor e desconforto físico; o tempo de evolução; a
personalidade pré-mórbida; os recursos sociais disponíveis, tendo em conta a
idade, o estilo pessoal e a forma como os elementos significativos lidam eles
mesmos com a deficiência; o significado pessoal da deficiência e da
incapacidade para o indivíduo; o significado social e cultural da deficiência e da
incapacidade no contexto em que o sujeito se insere; a tolerância à frustração;
as implicações noutras dimensões específicas, nomeadamente na situação
profissional e financeira, qualidade de vida, contactos sociais futuros,
acessibilidade ambiental; e as experiências prévias com a circunstância da
deficiência ou incapacidade.

1.1. A degradação económica da vítima

As microdespesas agregadas a uma despesa maior são pouco


contabilizadas face aos efeitos que acabam por produzir nos orçamentos
familiares dos sinistrados. A manutenção de padrões mínimos de qualidade de
vida corresponde ainda a um esforço financeiro suplementar à cobertura das

391 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

despesas pré-existente, tal como os custos (próprios e familiares) associados à


dor e ao sofrimento da vítima carecem de um método fiável de cálculo, embora
não deixem de ter uma tradução material: convencional, mas aproximada.

Não estando juridicamente prevista a compensação por danos não


patrimoniais para o domínio laboral da sinistralidade, a globalidade destes
encargos será da responsabilidade da vítima e seus familiares. Já as perdas
salariais no presente e no futuro constituem o cerne da reparação, o que não
lhe subtrai controvérsia e complexidade. O endividamento sequencial ao
sinistro é, entre outros, um aspecto da máxima relevância do ponto de vista dos
efeitos económicos da sinistralidade junto das vítimas:

“Sinto-me assim um bocado revoltado com essas coisas e… não sei dizer grande
coisa, desculpe lá… não sei explicar…(…) Eu sou franco, não sei dizer grande coisa,
porque isto… er… para já tenho dívidas grandes.” (S2)

Os baixos salários que encontramos nas profissões com maior


incidência de acidentes de trabalho, associado à degradação generalizada das
condições e da qualidade de vida, convergem numa lógica incontrolada de
endividamento das famílias. Se, por um lado, este fenómeno pode relacionar-
se com os hiatos de desprotecção social absoluta das vítimas que pressionam
a contracção de dívidas, encontra-se igualmente articulado com os modelos de
gestão do rendimento, nomeadamente quando as pensões são remidas313.
Situações de privação material interrompidas pela colocação à sua disposição
de montantes financeiros elevados e em bloco redundam muitas vezes em má
gestão e planeamento dos recursos, naturalmente em desfavor do próprio
sinistrado.

313
O que acontece obrigatoriamente, como vimos no capítulo 1, para os casos de IPP inferior a
30%.

392 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

Um outro problema que será importante recensear prende-se com o


carácter não-linear do impacto económico do acidente no sinistrado. Isto
significa que a filosofia reparatória que procura traduzir a perda de capacidade
laboral em perda de rendimento sofre de um enviesamento lógico que não leva
em conta as diferenças qualitativas dos prejuízos sofridos pelos sectores mais
vulneráveis da sociedade (recebendo mensalmente, por exemplo, o salário
mínimo que não ultrapassa os 500 euros) face aos restantes patamares
socioeconómicos. Em termos simples, a proporcionalidade da indemnização
face ao rendimento faz com que um acidente de trabalho faça muito mais
diferença à qualidade de vida dos mais pobres – condições materiais de vida e
descartabilidade laboral – do que à dos restantes cidadãos. A negligência deste
factor permite-nos concluir que os tribunais não só reproduzem como agravam
as desigualdades sociais.

2. REGRA, EXCEPÇÃO E FUTURO

Uma outra problemática que nos merece atenção consiste na relação


entre a sinuosidade das expectativas e trajectórias de vida que marcam os
contextos sociais e económicos contemporâneos e a estimação judicial do
futuro. O cálculo indemnizatório é sempre um exercício preditivo que procura
antecipar os efeitos dos danos corporais sofridos pelo sinistrado no seu curso
de vida profissional. Nesse sentido, socorre-se de diferentes convenções que
exigem apreciação sociológica e espelham com grande nitidez alguns dos

393 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

elementos da racionalidade biopolítica que preside à agregação e normalização


de um conjunto populacional exposto ao risco da sinistralidade laboral.
Privilegia, por um lado, uma perspectiva de continuidade profissional, olhando
para a incapacidade laboral à luz das possibilidades produtivas preservadas, e
avaliando, em caso de incapacidade absoluta, se é apenas para o trabalho
habitual ou se é para todo e qualquer trabalho.

Ora esta distinção normativa é naturalmente geradora de ambiguidade:


quando os padrões de trabalho requerem cada vez mais adaptabilidade,
reconversão continuada e versatilidade multi-task por parte dos trabalhadores,
a aferição daquilo que é o seu trabalho habitual é bastante permeável a
diferentes pressupostos argumentativos que merecem reflexão e maturação
jurisprudencial. O conteúdo funcional das profissões nem sempre se encontra
bem determinado pelas entidades patronais – sendo muito raros os casos em
que é enviado o estudo do posto de trabalho ao tribunal e aos peritos médico-
legais314 – e a aferição da incapacidade vê-se enviesada tanto pela
variabilidade informal das tarefas efectivamente desempenhadas como pela
dificuldade na identificação de mecanismos de adaptação profissional. Nesse
sentido,

“Era importante as pessoas começarem a preocupar-se, para que nas contratações


laborais fosse definido exactamente o tipo de funções que a pessoa desempenha, que
as próprias seguradoras fossem advertidas do trabalho desempenhado pelo
funcionário, e se responsabilizassem por todas as situações que ocorrem no decurso
do trabalho”. (Ent. 14)

Por outro lado, o desfasamento progressivo entre as qualificações


adquiridas e o trabalho desempenhado não permite previsões seguras sobre as

314
Seria suposto o pedido, a cada acidente de trabalho, dos recibos e/ou tabela de vencimento,
do Inquérito Profissional (a que alude a Tabela Nacional de Incapacidades) e o Estudo do
Posto de Trabalho, com o objectivo de melhor se caracterizar a realidade laboral em análise.
Porém, esta informação nem sempre é requerida e tomada como referência judicial e pericial.

394 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

oportunidades profissionais que um acidente de trabalho pode


irreversivelmente eliminar ao sinistrado, condenando-o à estagnação
profissional, se não ao retrocesso. Há ainda uma outra dimensão desta
problemática que se prende com a acumulação de diferentes fontes de
rendimento que se vêem condicionadas ou dissipadas pelos efeitos corporais
do sinistro, sem que no entanto essas perdas sejam ponderadas nos cálculos
indemnizatórios finais.

2.1. O dia seguinte: algumas dimensões da


vulnerabilidade

A importância das redes sociais em que o sinistrado se move é um


aspecto que deve sublinhado: há décadas que vários estudos têm vindo a
demonstrar que o tamanho das redes sociais possui uma correlação com as
taxas de sobrevivência (Berkman e Syme, 1979), com a capacidade adaptativa
à deficiência física (Evans e Northwood, 1983), com o sucesso profissional e
escolar (Goplerud, 1980) e com o próprio risco de deterioração funcional
(Morgan, Patrick e Charlton, 1984). O capital jurídico e institucional do
sinistrado é igualmente um elemento decisivo à sua recuperação, bem como os
padrões de interacção que desenvolve com o sistema judicial e instituições
conexas num contexto crítico da sua experiência pós-traumática. Para além
disso, a forma como o lesado é reparado face aos prejuízos nas actividades de
lazer e recreação é um factor importante da sua recuperação (Esquenazi,
2004). Este será um desafio importante ao alargamento da esfera jurídica dos
danos não patrimoniais aos acidentes de trabalho, sendo que, actualmente, é
matéria exclusiva da responsabilidade civil.

A legislação recente sobre acidentes de trabalho exibe preocupações


acrescidas no que diz respeito à reabilitação e reintegração profissional das
vítimas de acidentes de trabalho. Este tem sido aliás um tema que, nos últimos
anos, tem mobilizado a atenção de muita investigação social (Lima, 2001;
395 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS
Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

Camarate, 2001; Capucha et al, 2004). Mas se atendermos à perspectiva de


Bainbridge (apud Oliveira et al, 2006) – segundo a qual uma taxa de emprego
elevada e a coesão social dependem do aumento do emprego de quatro
grupos da população (jovens pouco qualificados, mulheres em idade activa,
idosos e sujeitos com desvantagens no mercado de trabalho – por exemplo,
portadores de incapacidade ou deficiência) –, o enfoque político na qualificação
da reparação e da reabilitação dos sinistrados tem sido claramente insuficiente,
tal como tem esbarrado com múltiplas resistências e obstáculos sociais e
laborais.

Um estudo desenvolvido pelo ISPA, IEFP e ANDST (Oliveira et al,


2006), sobre a reintegração sócio-profissional da pessoa com deficiência
adquirida por acidente de trabalho, apresenta conclusões muito relevantes para
a problematização sociojurídica da reparação do dano corporal nas suas
vertentes judicial, institucional, laboral e pessoal. O baixo nível de qualificação
dos sinistrados afectados por incapacidade é, desde logo, um dos grandes
obstáculos à sua reconversão profissional. As respostas sociais e institucionais
a este problema não se encontram ainda especializadas nem capazes de
inverter o ciclo de degradação profissional inerente à perda de capacidade.
Para além disso, o facto de as famílias deterem a seu cargo filhos menores de
idade é ainda uma agravante relativamente aos efeitos do acidente na vida
familiar, o que merece uma atenção redobrada no apoio social que é
importante destacar.

As taxas de reincidência da sinistralidade, sobretudo na actividade


industrial, atingem valores assinaláveis, ocorrendo em trabalhadores com
habilitações comparativamente mais baixas. Este fenómeno é particularmente
acentuado nos sinistrados que desconhecem qual o valor da incapacidade que
lhes está atribuída, bem como o respectivo diagnóstico clínico. É aliás por isso
que, com relativa segurança, é possível concluir que a capacidade do sujeito
acidentado em conceptualizar consequências futuras e preventivas decorrentes
da sua situação pode encontrar-se condicionada. O reingresso pós-acidente à

396 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

entidade empregadora de origem, apontando para situações de manutenção da


profissão e ausência de mudança organizacional e ocupacional, constitui um
factor de relevo na produção de cenários propícios à reincidência e não deixam
de ser consequências dramáticas da sinistralidade, cujas réplicas nem sempre
se revelam transparentes e o apoio técnico disponibilizado ao sinistrado é
amplamente deficitário.

A problemática do acidente no local de trabalho convoca um aspecto


que merece ser sublinhado e que consiste na dificuldade a obtenção de prova
testemunhal no âmbito do conjunto de trabalhadores que poderão assistir ao
sinistro, o que se tem vindo a evidenciar e acentuar através das lógicas de
controlo disciplinar sofisticadas em contexto empresarial, associadas a um
processo de precarização e vulnerabilização das relações laborais que, para
alguns pensadores sociais, inaugura uma nova e nebulosa era pós-direito do
trabalho (Ferreira, 2008). Sobre os elementos que permitem a produção de
prova, o testemunho de um sinistrado converge com já foi referido sobre esta
matéria, dando conta de circunstâncias específicas em que os meios
probatórios se revelam contingentes:

“É que antigamente… quer dizer, há 2 ou 3 anos, as companhias tinham os próprios


peritos deles que iam fazer a peritagem… agora não, andam empresas fora… sabe
como é, isto anda tudo atrás do dinheiro. Quanto menos eles prejudicarem a
companhia, mais ganham. E quem paga é o desgraçado. Agora explique-me! Como é
que eu podia vir amarrado até cá abaixo ao fundo? Eu não posso, tenho de me
desamarrar para descer! Agora tenho de procurar o melhor sítio… e o melhor sítio,
para mim, é a caleira! Agora… se me disserem, “opá, tu podias andar mais 2 ou 3
metros”… podia! Mas nada me dizia que eu ia cair naqueles 2 metros! Podia cair
depois!” (S1)

À parte a questão da complexidade e enviesamento pericial, esta


tecnologia do poder actua num momento decisivo da investigação judicial,
incidindo no conjunto da população empresarial, ela é igualmente activada no
período sequencial à reintegração profissional do sinistrado, produzindo
múltiplos efeitos fragilizadores.

397 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

2.2. Dupla vitimação: laboral e corporal

Detendo-nos um pouco mais sobre os efeitos profissionais da


sinistralidade, note-se que os sentimentos de indignidade315, inutilidade316 e
desqualificação317 constituem experiências recorrentes que tendem a verificar-
se nos momentos de reingresso no mercado de trabalho do sinistrado,
assistindo-se a processos de subutilização de capacidades e qualificações,
através de situações involuntárias de emprego a tempo parcial, percepcionadas
pelos sinistrados como subemprego (Sousa, Casanova e Pedroso, 2007: 21) e,
em larga medida, subcidadania.

Esta particular vulnerabilidade das vítimas poderá, por um lado, suscitar


dinâmicas laborais sobrelesivas do trabalhador, gerando uma dupla vitimação –
corporal e laboral –, e, por outro lado, condicionar a progressão na carreira fora
dos termos em que a reparação o prevê. O absentismo e as perdas de prémios
de produtividade e de assiduidade corporizam ainda um conjunto de efeitos
disseminados junto das vítimas e seus familiares, cujo impacto nos orçamentos
familiares, nas expectativas profissionais e na satisfação com o trabalho se
encontra verdadeiramente subestimado. São ainda vários estudos

315
A este respeito: “não obtenção de compreensão e apoio pelas suas dificuldades e ter de
lidar com a indiferença perante a sua nova condição profissional” (Sousa et al, 2005: 18)

316
A este respeito: “falta de qualificação e de finalidade de trabalho, quando após um acidente
ou doença são colocados em funções para as quais não conhecem a própria significação do
seu trabalho em relação ao conjunto da actividade da organização” (Sousa et al, 2005: 18)

317
A este respeito: “vergonha de não exercer funções compatíveis com a sua experiência e
qualificação ou não ter oportunidade de sobressair nas suas funções, o que muitas vezes
acontece quando o retorno ao trabalho não é realizado tendo em conta todo o manancial de
experiências que o trabalhador foi adquirindo e que poderá aplicar noutros contextos” (Sousa et
al, 2005: 18)

398 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

internacionais (Pransky, Benjamin, Savageau, Currivan e Fletcher, 2005318;


Belwal e Haight, 2006) a documentar e a convergir na ideia de que a
severidade das lesões, as taxas de mortalidade, o curso de tempo da
incapacidade e os níveis de problemas de saúde possuem expressões
diferenciadas em função da categoria etária do trabalhador sinistrado.

A antecipação da reforma por motivos de saúde ou na sequência da


contracção de uma lesão no contexto laboral significa, nesse sentido, um
aumento da probabilidade de estes trabalhadores empobrecerem face aos que
se retiram em níveis de saúde médios, matéria que suscita particular
preocupação num contexto de envelhecimento acelerado da força de trabalho
nas sociedades europeias. Simultaneamente, os sinistrados mais velhos,
portadores de uma capacidade de trabalho diminuída, vêem ainda reduzidas as
opções de trabalho disponíveis (Sousa et al, 2005: 20). Esta relação
problemática entre sinistralidade laboral e abandono profissional é recenseada
no estudo supramencionado do Centro de Reabilitação profissional de Gaia
(2005), conferindo-lhe particular atenção, nomeadamente no que diz respeito à
percepção dos indivíduos sobre o seu estado de saúde e à decisão de uma
reforma antecipada (Fries, 2005). São, porém, múltiplas as dimensões desta
relação entre laboralidade e sinistralidade, e as próprias perspectivas da OIT
sobre trabalho digno e seguro visam reenquadrar as relações de trabalho face
às armadilhas que a sua combinação poderá despoletar junto das vítimas de
acidentes de trabalho.

Muitas destas armadilhas ganham contornos particularmente graves,


com incidência directa tanto no apuramento das circunstâncias em que ocorre
o acidente, bem como na realidade laboral que se lhe segue, testemunhando a
dupla vitimação a que acima aludimos. Será, todavia, importante sublinhar que

318
Particular destaque para Outcomes in work-related injuries: A comparison of older and
younger workers (2005).

399 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

muitos dos efeitos relatados não se confinam à sinistralidade laboral, dando


igualmente conta dos impactos da incapacidade e da deficiência –
nomeadamente emergente de acidentes de viação – na actividade profissional
dos lesados.

Um dos efeitos que nos parece mais relevante consiste no processo


recorrente de esvaziamento de funções e de assédio moral, perpetrado, mais
uma vez, sob o topos da inutilidade ou da diminuição da rentabilidade
corporal/laboral do sinistrado e socorrido de mecanismos subjectivos e
interaccionais de depreciação – eficazes porque entendidos, no limite, como
legítimos.

Quando as relações contratuais são rígidas e o empregador não


beneficia da precarização jurídica do factor trabalho, o despedimento por
iniciativa do sinistrado reintegrado será o resultado expectado e, não raras
vezes, conseguido. Nesse sentido, do facto de, de acordo com António
Casimiro Ferreira, “o grande aumento das acções de acidentes de trabalho
[ser] acompanhado pela diminuição das acções de contrato de trabalho, não
poderemos sociologicamente inferir que existam menos conflitos conexos com
os despedimentos” (2005a: 376). Tratar-se-á, em nosso entender, de um
exemplo paradigmático de supressão da procura, no termos em que o próprio
autor o referencia:

“O princípio do mercado combina-se com diferentes modos informais de


composição dos litígios, sendo de destacar o papel desempenhado pelos
gabinetes de advogados, Direcções de Recursos Humanos e, em última
análise, os poderes de facto que no espaço da empresa conduzem à regulação
dos conflitos por resignação e à procura suprimida. Sobretudo nas grandes e
médias empresas, onde em regra existem departamentos de recursos
humanos e jurídicos, é frequente estes forçarem a composição dos conflitos.”
(2005b: 6)

O seguinte testemunho é particularmente revelador dos conflitos laborais


conexos a sinistralidade, cuja latência sociológica, a debilidade jurídica das

400 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

relações de trabalho e a incapacidade de mobilização dos tribunais por parte


do trabalhador deixam a sua dinâmica ofuscada e invisível:

“Fui trabalhar normalmente, o serviço era o mesmo… e depois não houve aquela
compreensão, mesmo por ter de faltar por causa da minha esposa, mesmo consultas
minhas… e começaram-me a pôr de lado… a arrumar… não havia aquilo que havia
antigamente… normal… Eles fizeram uma reunião, com os empregados todos, deram
um aumento a toda a gente e chegaram a mim e não me deram… disseram que eu
tinha de colaborar mais com a empresa… e eu disse “como é que eu posso colaborar
mais com a empresa se a minha vida está assim?”, e eles “ah, você tem de
compreender…”, e eu “e vocês não me compreendem?”. E eu dentro do meu horário
tentava fazer o meu melhor e… houve essas situações… cheguei ao ponto de um ano
depois do acidente… 2 anos… fui obrigado a sair de lá. Porque me cortaram… prémios
fiquei sem eles, tudo o que era prémio por fora cortaram-me, pronto… Eu antes até era
dos melhores, era o único operário com categoria e formação profissional, que eles
tinham lá dentro. Após isso a empresa que trabalhava com eles e pedia essas
certificações deixou de lhes dar serviço… Se calhar foi por isso que eles ficaram
magoados… como seu eu tivesse culpa disso… Porque trabalhava-se com uma
empresa com um nome bastante acentuado aqui no nosso país, e essa empresa exigia
a qualificação e fazia exames constantemente. Depois quando eu tive o acidente…
havia coisas que os meus colegas me contavam… chegaram a meter pessoal, só que
o material vinha todo para trás, as coisas não ficavam em condições e acabaram por
deixar de dar serviço…”

Acha que houve ressentimento?

“Acho que sim… disso não tenho dúvida”.

E continua a trabalhar lá?

“Não, não. Depois comecei a procurar…Fui eu que me despedi. Eu como já não estava
bem… e não adiantava, não me estavam a dar aumento… quer dizer, humilharam-
me… houve lá situações que me humilharam… por exemplo, puseram lá um mocito e
ao fim de 8 dias puseram-no a soldar… depois as peças vinham para trás e acusavam-
me a mim… Eu disse que me responsabilizava por aquilo que fazia… Eles ainda se
viraram a mim, e eu tive de andar a queimar-me todo, a rectificar aquilo tudo, a fazer o
serviço que os outros tinham feito mal. E isso magoou-me muito. Porque as
informações que chegam aos maiores é como se tivesse sido eu. E isso… mais não
darem os prémios, ajudas de custo… para mim cortaram-me tudo… E a gente começa
a entrar no sistema e diz “não vale a pena…”. Não tinha futuro. Acabei por deixar de ter
futuro ali.” (S5)

Embora o caso transcrito se reporte aos impactos laborais originados por


um acidente sofrido pela mulher do trabalhador, consegue porém sinalizar os
efeitos sociais e menos óbvios da sinistralidade, bem como a particular
desprotecção dos trabalhadores, submetidos a dinâmicas de poder desiguais e
armadilhadas e sobrevitimam as famílias e face às quais as autoridades
inspectivas e os tribunais de trabalho se encontram longe de conseguir intervir

401 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

com abrangência, profundidade e eficácia. O tratamento discriminatório, a


perda dos prémios, a negação da formação, a invisibilização e a depreciação
em contexto laboral desorientam e vitimam o trabalhador, sem capacidade de
apelo.

Este trabalhador encontrava-se ao serviço da sua entidade patronal há


cerca de 20 anos (começando a trabalhar aos 14 anos), sendo que o processo
que conduziu à rescisão do seu contrato se precipitou na sequência do
acidente de trabalho in itinere que foi vítima, conjuntamente com a sua esposa.
Um outro testemunho, ainda que menos claro e objectivo quanto às dinâmicas
sociolaborais pós-aciente, não deixa de apontar algumas das perplexidades
experimentadas no retorno ao trabalho, culminando no término da relação
laboral por iniciativa do trabalhador, com as respectivas penalizações
financeiras:

“E ele pôs-me 4 dias em frente ao computador sem fazer nada… e eu aguentei. 4 dias.
Ao fim de 4 dias de manhã perguntou-me o que é que eu estava a fazer. Ele disse que
estava a fazer uma experiência, que tinham muito trabalho… Depois passado uma
semana de eu lá estar, chamou-me ao bar, um barzito que tínhamos lá ao lado, e
perguntou-me porque é que os meus colegas se sentiam incomodados a olhar para
mim, por ser anormal, eles estavam habituados a ver-me na vertical, agora vêem
praticamente sentada, e têm pena. “Porque a [entrevistada] foi sempre muito para a
frente…” e depois perguntou-me “por que é que a [entrevistada] não procura uma
empresa familiar?”. Eu percebi o que é que ele queria: “a única coisa que se pode fazer
é o senhor despedir-me, dá-me direito à minha indemnização e eu vou-me embora”. E
ele disse: “não, o que você queria era mamar”. E depois, ao fim, pôs-me no arquivo e
eu recusei-me a trabalhar no arquivo. Eu tinha que ir ao chão, tinha de me ajoelhar, e
com o pé partido, quer dizer… sem gesso sem nada… então mandou-me pôr isso por
escrito319. E eu passei por escrito e disse: “no momento em que o senhor me
contratou, teve benefícios que o Estado lhe deu, e contratou-me com 70% de
deficiência. Eu também tive benefícios, que não pago IRS. O senhor sabia
perfeitamente que eu não posso andar com pastas na mão. O senhor contratou-me
para vir fazer propostas, porque nós trabalhamos com as Câmaras. O senhor sabia de
isso tudo. Portanto eu não vou fazer arquivo e recuso-me, porque eu não posso fazer
arquivo a nível físico”. E ele disse: “ah, você já fez coisas piores de certeza absoluta do
que o arquivo”. Entretanto mandou-me para outra função, e eu recuperei um bocado
aquilo que eu sabia fazer, que é atender clientes. Um dia eu cheguei ao emprego mal
disposta, aí já sem cadeira de rodas, tinha deixado a cadeira de rodas há uma semana,

319
A sinistrada entrevistada revela impossibilidade de locomoção natural, amparando-se em
dispositivos próprios.

402 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

ele chamou-me cabra, que eu não passava de uma cabra, por causa de uma questão
com um cliente, e mandei-o chamar cabra à mãezinha dele… já era a quarta vez, já
tinha aguentado bastante, e ele mandou-me sair da firma e eu disse “saio já!”,
apresentei a minha carta de demissão e demiti-me. Foi a borrada que eu fiz! Mas eu
sou assim, sou… é o que vai naquele momento.” (S4)

Esta dimensão fáctica das relações laborais constitui matéria empírica


que não poderá ser desligada dos resultados indemnizatórios e da reparação
efectiva dos acidentes de trabalho. É precisamente nesse sentido que a cultura
judicial, neste domínio em particular, se revela crucial no decurso do processo
e no apuramento dos factos relevantes para a reparação. Face às duas
questões que enunciámos – prova testemunhal e assédio pós-acidente –,
relevamos duas aspirações: por um lado, a reaproximação a decisão judicial do
contexto socioespacial em que é produzido o acidente de trabalho, concedendo
maior consistência ao seu enquadramento circunstancial e contribuindo para a
desarticulação das lógicas disciplinares que impedem a investigação exaustiva
do sinistro. Por outro lado, é da máxima relevância uma monitorização efectiva
da reintegração profissional do trabalhador sinistrado, dissuadindo a activação
dos dispositivos disciplinares que frequentemente redundam na sua auto-
exclusão da relação laboral e na impunidade judicial dos múltiplos agentes que
concorrem para esse fenómeno. A simulação de uma justa causa para o
despedimento, alegando-se extinção do posto de trabalho320, é uma
submodalidade de prejuízo cuja importância sociojurídica é necessário
destacar:

“Porque eu fui despedida por extinção do posto de trabalho. (…) O seguro dizia que eu
estava apta a poder voltar a trabalhar, mas a entidade patronal disse que não (…). Mas

320
É um despedimento justificado por motivos económicos, que não se reportam a actuação
dolosa do trabalhador ou do empregador. É necessário que a subsistência da relação de
trabalho seja praticamente impossível, que não haja contratos a termo para as tarefas que
correspondem ao posto de trabalho extinto, e não se aplique o regime do despedimento
colectivo.

403 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

a entidade empregadora disse que não estava para sustentar mais “meia pessoa”.
Porque entretanto resolve fechar a firma, a clínica… e reabri-la com outro nome,
segundo investigações já do senhor procurador, que me informou. [...] Só que
entretanto eu sei que ela já abriu outra clínica com outro nome e é a mesma coisa… foi
o senhor procurador que descobriu.” (S3)

Serão dois os grandes motivos que, autónoma ou conjugadamente,


poderão potenciar esta realidade: por um lado, os atritos e a conflituosidade de
que muitas vezes se reveste a ocorrência e a sequência de um sinistro, abrindo
espaço à adopção de soluções empresariais denegadoras dos direitos laborais
dos trabalhadores; e a percepção de que o trabalhador sinistrado significa uma
diminuição da rentabilidade (“meia pessoa”), constituindo um ónus que o
empregador não está disposto a suportar, à revelia das garantias fundamentais
dos trabalhadores. É forte a relação entre sinistralidade e descartabilidade e os
tribunais deverão cumprir uma função fundamental na vigilância e correcção
dessas espirais de alegalidade e degradação social, atendendo não apenas à
reparação imediata do acidente, mas igualmente aos seus efeitos sequenciais
mais invisíveis.

A forte relação entre trabalho e saúde mental não é novidade dos


estudos sociais: as lesões corporais, fisicamente incapacitantes, produzem
sempre implicações de ordem psíquica, muito embora esta esfera específica do
prejuízo continue excluída da reparação. Neste sentido, é bom clarificar que o
sofrimento psicológico não é directamente proporcional ao grau de deficiência
física da vítima (Oliveira, 2001), o que nem sempre é devidamente ponderado,
por exemplo, na indemnização por danos não-patrimoniais no domínio cível, ao
abrigo do automatismo e da estandardização das petições iniciais.

De acordo com os dados do inquérito lançado pelo ISPA, IEFP e


ANDST, o regresso ao trabalho é sobretudo realizado por meios próprios, muito
embora os centros de emprego não deixem de surgir como instâncias
importantes no reencaminhamento profissional dos sinistrados. Na sequência
do acidente, em apenas em 17% das situações estudadas se operaram
ajustamentos no posto de trabalho, o que é indiciário das dificuldades de

404 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

análise e de mudança das condições ou dos comportamentos dos


trabalhadores expostos ao risco. No caso dos sinistrados que sofreram
traumatismo crânio-encefálico, as redes informais de familiares e amigos
constituem os principais fornecedores de apoio e bem-estar, sendo que o papel
da Segurança Social é, segundo os sinistrados, pouco preponderante.

As causas de mudança de empresa são também sondadas e


recenseadas neste estudo. Do ponto de vista contratual, o despedimento, a
não renovação do contrato de trabalho e a insatisfação com o trabalho
desempenhado constituem os grandes motivos da ruptura (voluntária ou
compulsiva) com o primeiro empregador:

“A legislação dos acidentes de trabalho não permite que um sinistrado seja despedido
– o empregador é obrigado a aceitar o trabalhador sinistrado. Todos nós sabemos que
na maior parte das situações isto vale praticamente zero. Funciona a não renovação do
contrato a termo e outros mecanismos de precarização. Aqui a lei funciona de forma
impotente ou perversa.” (Ent. 25)

A ilegalidade ou insolvência da empresa321 são aspectos igualmente


elencados, tal como a incapacidade de a empresa responder às necessidades
ocupacionais do sinistrado. A mudança de actividade é também um processo
que, não raras vezes, ocorre na sequência de um acidente de trabalho, tal
como a reforma. Finalmente, os conflitos legais com a entidade patronal não
podem ser esquecidos a propósito do bem-estar laboral do trabalhador e da
anatomia das relações de poder num contexto de subordinação laboral, como
acima apontámos.

A situação profissional pós-acidente, como mencionámos, envolve vários


cenários de vulnerabilidade e nem sempre os instrumentos jurídicos e sociais
disponíveis conseguem travar uma espiral de degradação na condição do

321
Neste contexto, como já foi referido, é mobilizado o Fundo de Acidentes de Trabalho, muito
embora as regras mais recentes de accionamento tenham sido em sentido restritivo.

405 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

sinistrado. Na sequência dos períodos de incapacidade temporária absoluta,


nem sempre o retorno ao trabalho redefine o trajecto biográfico das vítimas. A
reforma, a aposentação devido ao acidente, a frequência de programas de
formação ou reabilitação profissional e o desemprego são algumas dos
caminhos e contingências associados.

3. A RESPOSTA CLÍNICA E INSTITUCIONAL ÀS


VITIMAS

Os resultados do inquérito conduzido pelo ISPA, IEFP e ANDST,


ministrado a uma amostra de sinistrados do trabalho, apontam ainda para uma
duração média do internamento hospitalar superior a 2 meses e para um
período de incapacidade temporária de cerca de 1 ano, o que, entre outras
coisas, se reflecte numa redução dos rendimentos mensais das famílias. É
elevada a percentagem de sinistrados clinicamente deprimidos, sendo que
apenas metade recorre a auxílio especializado. Além disso, as tendências
depressivas agudizam-se nos casos em que o retorno ao trabalho se vê
impossibilitado.

A atribuição da incapacidade constitui, como atrás comprovámos, o


principal objecto de acção na fase litigiosa dos processos, é um dos aspectos
apresentados como particularmente difícil: se a determinação do grau de
incapacidade envolve uma média de 20 meses, um pedido de revisão
ultrapassa os 3 anos de espera. O impasse e o arrastamento destas situações

406 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

são certamente um factor de perturbação da recuperação do sinistrado,


sinalizando a especial importância da celeridade processual no domínio do
dano corporal. Relativamente à interacção entre os sinistrados e as diferentes
instituições, a insatisfação generalizada com os serviços das companhias de
seguros é uma das conclusões deste inquérito, nomeadamente no que toca a
qualidade do atendimento médico, a adequação da legislação em vigor e as
prestações indemnizatórias. Todavia,

“Uma opinião satisfatória é conseguida sobretudo a partir de um bom nível de


comunicação entre seguradora e sinistrado, clara, empática, que consiga
transmitir a ideia de preocupação, envolvimento por forma a que a pessoa se
sinta tratada e olhada como alguém significativo e distinto de um todo. Este
aspecto, associado à eficácia no apoio financeiro e médico disponibilizado,
fomentam claramente a construção de uma ideia positiva dos cuidados
prestados pela seguradora” (Oliveira et al, 2006: 122).

É aliás neste sentido que se propõe uma maior relação entre as


estruturas do IEFP, centros de formação, ANDST e companhias de seguros, o
que alargamos aos operadores judiciais, de forma a assegurar qualidade e
celeridade nos processos, bem como flexibilização dos serviços perante as
especificidades de cada caso. Os apoios institucionais procurados pelos
sinistrados, além das redes sociais de que dispõem e cujo papel na provisão de
cuidado e bem-estar é fundamental, passam também pelas instituições de
reabilitação, organismos municipais, escolas e centros paroquiais. Mas se as
companhias de seguros detêm uma responsabilidade e obrigatoriedade legal
na reparação dos sinistrados, constituindo-se como o actor principal da
recuperação e da indemnização, será relevante dar conta das dos aspectos
relacionais, médicos, psicológicos, financeiros, jurídicos que o estudo
supramencionado procurou mapear, na perspectiva das vítimas e a partir da
sua experiência pessoal.

Assim, no que toca os serviços clínicos prestados pelas seguradoras, a


maioria das críticas radica na falta de apoio e na deficiente qualidade no

407 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

atendimento médico recebido322, na recusa de assistência médica e


medicamentosa ou na subestimação da situação clínica do sinistrado,
incentivando o retorno ao trabalho quando este ainda não se considerada
recuperado do acidente.

As práticas periciais produzidas pela seguradora são também objecto de


crítica, sobretudo no que diz respeito ao funcionamento das juntas médicas.
Relativamente à abrangência dos serviços médicos prestados, sinaliza-se a
falta de apoio psicológico às vítimas e familiares, o que constitui, do ponto de
vista dos sinistrados inquiridos, uma grave lacuna nas respostas activadas para
a sua recuperação. A racionalidade gestionária dos cuidados médicos
fornecidos pelos serviços reflecte-se também nas políticas internas dos
operadores. Os depoimentos, a este propósito, são naturalmente contraditórios,
em função da perspectiva e do lugar de enunciação ocupado pelos diferentes
entrevistados. Na perspectiva das companhias de seguros,

“As seguradoras marcam a intervenção de um dia para o outro, e nalguns casos no


próprio dia. Se o sinistrado não estiver satisfeito com o tratamento que está a ser
administrado e eu estou mais preocupado agora com a versão do atendimento
propriamente dita, pode reclamar perante o Tribunal do Trabalho e ele tem força
coerciva para nos impor o que entender correcto designadamente mandar o sinistrado
ser ratado noutro sitio e nós pagarmos, perguntar o que é que se passa, porque regra
geral não há grandes reclamações, não há, nem grandes nem com significado em
termos de numero no que concerne a esta matéria do tratamento dos sinistrados mas
uma coisa é certa o sinistrado tem a possibilidade de reclamar perante um Tribunal que
tem um poder coercivo se não estiver satisfeito com o tratamento que lhe está a ser
ministrado.” (Ent.21)

Em contrapartida, a experiência das vítimas demonstra a prevalência de


outras hierarquias de valor no momento de fazer escolhas e tomar decisões
relativamente aos sinistrados:

322
Neste sentido: “Quando eu cheguei ao seguro, mandaram-me tirar uma radiografia por cima
do gesso e então disseram que iam tirar o gesso. Eles disseram que se eu negasse que perdia
o direito ao seguro.” (S4)

408 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

“Ela foi automaticamente [na sequência do acidente] para o hospital de São João,
esteve lá a fazer os cuidados intensivos, cuidados intermédios, e depois, quando podia
estar numa coisa mais… foi transferida para a casa de saúde da Boavista, por
intermédio da companhia de seguros. Foi para a casa de saúde da Boavista e desde aí
começaram a dar-lhe tratamentos, mas não o suficiente. (…) [desde que foi para a
Boavista – seguradora] a minha esposa começou a atrofiar, começou a ficar com os
membros todos encolhidos. E esta mãozinha já nem abria tão pouco… até fazia ferida
num dos peitos, porque atrofiou. Na altura foi uma guerra, principalmente com o doutor
da companhia de seguros. Porque eles diziam que não. Que era suficiente, que não
havia… [silêncio] que ela nunca viria a ter comunicação comigo… pronto, que não se
justificava ela ser transferida…”. (S5)

Outros testemunhos recolhidos apontam para subavaliação da condição


das vítimas no período de incapacidade temporária. A caracterização deficiente
dos conteúdos profissionais, associada à instabilidade pessoal das vítimas e à
redução dos custos da seguradora – nem sempre vantajosa a médio prazo –
com o regresso prematuro ao trabalho condicionam a recuperação do
sinistrado e comprometem a sua qualidade de vida e os seus direitos
reparatórios essenciais.

Além dos cuidados médicos, esta questão das políticas internas envolve
também orientações de natureza pericial, embora a preponderância do INML e
a adopção de instrumentos tabelares na avaliação do dano sejam apontados
como garantias periciais para os sinistrados:

“E nós fazemos uma análise – isso é mais interno, é mais da minha seguradora – entre
os graus que eu dou e os que ficam no fim. E se não houver divergências significativas
sistematicamente, está tudo bem”.

Nessa matéria há uma política própria relativamente ao grau de flexibilidade?

“É o médico que decide. Nós não temos que intervir nessa área, temos que ser um
bocado honestos nisso mas depois isso consegue-se medir porque repare porque isso
é medido no futuro. Se houver alguma seguradora, e eu não estou a dizer que há, em
que há sempre um desfasamento, está a funcionar mal, está a prestar um mau serviço,
na minha opinião.” (…) “É difícil porque se há uma seguradora – e com a minha eu
garanto-lhe que nós fazemos uma estatística disto e não acontece – em que os valores
finais são sempre superiores aos que o médico deu é porque está a tentar enganar
alguém. É porque está a funcionar mal, pode não ser voluntário, pode não estar a
tentar enganar alguém mas que está a prestar um mau serviço, está. Ou seja, os
próprios médicos ou não são bons conhecedores da tabela ou então das duas, uma: ou
há uma ignorância embora boa fé, ou há má fé e eu não quero ir por aí também. Mas
consegue-se saber se tivermos esse interesse e eu faço-o para mim próprio se houver
desfasamentos e eu já lhe estou a dizer porque alguém no final decidiu diferente e
vingou o diferente, se vingou o diferente o sinistrado não ficou prejudicado, agora a

409 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

actuação inicial da seguradora é que não é correcta. Não quer dizer que num caso ou
noutro isto não aconteça e que não aconteça comigo, agora não pode acontecer é
sistematicamente. Há situações que são mais complexas e há divergência de opinião,
eu aceito isso, agora não pode é acontecer isso sempre, alguma coisa estará mal. Nós
temos que recorrer não só a médicos que tratem bem como a outros que avaliem bem
e sejam bons conhecedores da tabela.” (Ent. 21)

A tensão entre o sector público e privado na prestação dos cuidados de


saúde aos sinistrados reaparece no discurso dos operadores, conferindo
sobretudo centralidade ao papel dos tribunais, em particular do MP, no controlo
do processo. É aliás por isso que, segundo este testemunho, o tratamento
clínico e a cobertura de despesas (nomeadamente de deslocação) são as
áreas em que a reclamação dos sinistrados é menor. Nessa perspectiva, os
principais motivos de litigiosidade na área dos acidentes de trabalho reportam-
se mais à relação laboral e menos ao cumprimento das funções atribuídas às
companhias de seguros.

“Se for comparar essa situação com a nossa em que pomos a maior parte dos
sinistrados em clínicas privadas e os tratamos rapidamente e bem, até porque se correr
mal nós vamos ser responsáveis por uma futura incapacidade permanente e somos
nós que a pagamos e temos sempre a possibilidade do Tribunal do Trabalho nos
controlar.” (Ent. 21)

A cobertura das despesas de deslocação aos tratamentos é por vezes


considerada intermitente, o que potencia a percepção negativa dos sinistrados
quando se conjuga com a “falta de transparência e honestidade nos
procedimentos da seguradora” (Oliveira, 2006: 70). A ideia de que o grau de
incapacidade atribuído pela companhia se encontra subavaliado, penalizando-
se os montantes indemnizatórios finais, é também apontada, bem como
dificuldades processuais na reavaliação da incapacidade, na sequência de
agravamento clínico das lesões.

3.1. O sinistrado e a qualidade reparatória

410 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

Outro estudo desenvolvido pela ANDST (Machado e Ribeiro, 2005)


sobre o atendimento prestado pelas companhias de seguros às vítimas de
acidentes de trabalho procura explorar algumas das suas subdimensões mais
críticas. Inquirida uma amostra de sinistrados, consideram-se, por um lado,
globalmente insuficientes os exames solicitados para o diagnóstico da lesão e
para a quantificação do grau de incapacidade; por outro lado, o atendimento
inicial nos serviços administrativos das companhias de seguros é
percepcionado como insuficiente ou mediano face às circunstâncias
específicas do acidentado e à sua particular vulnerabilidade.

A abordagem dos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros,


fisioterapeutas) fica aquém das expectativas das vítimas de acidentes de
trabalho acompanhadas pelas seguradoras e algumas das críticas apontadas
centram-se no fornecimento deficitário de informação tanto sobre o estado
clínico como sobre os processos (administrativos e institucionais) posteriores à
alta definitiva. O preenchimento dessas lacunas e a rearticulação inter e
intrainstitucional é, de resto, um papel reivindicado pela própria ANDST. Os
resultados do nosso estudo permitem ampliar esta conclusão ao sistema
judicial. Como testemunha o seguinte sinistrado, a falta de conhecimento sobre
as etapas do processo e o seu significado real produzem uma forte
desorientação das vítimas que, para além de prejudicar a sua recuperação
psicológica, corrói a sua confiança no Estado e nas instituições:

Então não foi ouvido pela procuradora? Foi por intermédio da funcionária?

“Pois”.

Mas fez alguma declaração? Disse o que aconteceu? Assinou alguma coisa?

“Isso é que eu não sei! Porque ela disse que a Dr.ª acreditava naquilo que eu disse,
não ia acreditar na companhia… E por isso é que me iam mandar logo para a Medicina
Legal. Já não ia a nenhum procurador. Se é assim ou não, já não sei!” (S1)

Neste quadro geral, a par da morosidade, as dificuldades de


compreensão da informação (jurídica e procedimental) recebida por parte dos

411 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

sinistrados é ainda um ponto que merece ser sublinhado323. Para além dos
bloqueios culturais e institucionais, os aspectos legais constituem ainda um
factor crítico no enquadramento da protecção e do cuidado das vítimas. A
necessidade do apoio de uma terceira pessoa, embora legalmente prevista em
situações de grande incapacidade, nem sempre abrange outras situações em
que a incapacidade fixada fica aquém do mínimo legal, mas em que a
vulnerabilidade objectiva dos sinistrados requer um acompanhamento
acrescido, destituído de protecção social e legal.

Um estudo324 aprofundado, conduzido pela Federação Europeia de


Vítimas Rodoviárias325, que deu origem ao relatório Social and Economic
Consequences of Road Traffic Injury in Europe (2007) do European Transport
Safety Council, procurou mapear e problematizar as diferentes dimensões
sociais envolvidas no processo pós-acidente rodoviário e os pontos críticos nas
respostas sociais, institucionais e judiciais fornecidas às vítimas, concluindo
desde logo que lesados e familiares sofrem um declínio dramático nos seus
padrões e qualidade de vida (Haegi e Chaudhry, 1995). Os resultados deste
estudo são produto de um inquérito administrado por 16 organizações de
defesa das vítimas da sinistralidade rodoviária a cerca de 10 000 famílias.

Verificou-se que a informação fornecida às vítimas de acidentes de


viação sobre os seus direitos legais e mecanismos de apoio a que podem
recorrer é insuficiente, inadequada e ineficaz; a grande maioria das vítimas e
seus familiares necessitam de apoio prático, emocional e jurídico; os níveis de
satisfação com o sistema de justiça cível e criminal são baixo; não existe

323
Nesta matéria, será importante conferir o papel das organizações de protecção das vítimas.

324
Na sequência de um estudo anterior: Study os the physical, psychological and material
impacts (1993).

325
Impact of Road Death and Injury.

412 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

reconhecimento jurídico para o dano psíquico, cuja frequência é notória,


responsável por uma degradação substancial das vítimas e por níveis elevados
de sofrimento. Neste sentido, muitas famílias inquiridas sublinham que a
informação dos familiares da vítima sobre a morte deverá ser efectuada por
pessoas especializadas e que o acesso ao corpo da vítima mortal deve ser
imediato, no sentido da facilitar a conciliação psicológica dos familiares com a
morte. Esta é uma matéria à qual é prestada pouca atenção pelos operadores
portugueses e que deveria ser submetida a critérios de boas práticas.

Os inquiridos assinalam ainda ser importante a realização de exames


compulsivos de sangue aos condutores, no sentido da determinação do efeito
do consumo de álcool na ocorrência do acidente e com isso evitar renúncias ao
dever de indemnizar. Assim, 80% dos inquiridos, vítimas e familiares
declararam ainda grande insatisfação tanto com os serviços fornecidos pela
companhia de seguros, como com os montantes indemnizatórios que lhes
foram atribuídos; 60% apresentam ainda reclamações relativamente à
compulsividade dos exames médico a que foram submetidos, para fins
periciais.

No que diz respeito ao cuidado físico concedido às vítimas, 60% dos


respondentes considera subestimados os valores de incapacidade atribuídos
pela seguradora no âmbito da avaliação pericial dos danos corporais e, como já
referimos, 40% considera insatisfatório o cuidado médico no tratamento e
reabilitação. A maioria dos inquiridos afirma ter recuperado totalmente num
período inferior a 3 anos, embora o mesmo não aconteça com as vítimas de
lesões na cabeça, gerando, muitas vezes, problemas do foro psíquico e
neurológico (perda de memória e incapacidade de concentração, incapacidade
para a realização de tarefas diárias, distúrbios linguísticos), para os quais as
respostas clínicas nem sempre se revelam adequadas e eficazes.

Problemas psicológicos e prejuízos pessoais causados aos familiares da


vítima são ainda apontados como consequências muitas vezes invizibilizadas
da morte rodoviária: perda de interesse nas diferentes tarefas do dia-a-dia,

413 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

como a vida profissional, tarefas domésticas, estudo, fobias à condução


rodoviária, perdas de autoconfiança, ansiedade, ideação suicida, depressão,
distúrbios alimentares, raiva, medo, dificuldades de comunicação, problemas
sexuais, entre outros. Não será de somenos lembrar que, no universo dos
inquiridos, o apoio aos familiares das vítimas mortais de acidentes de viação
envolveu como figuras essenciais os amigos (87% dos casos), médicos (40%),
psicólogos (23%), comunidade religiosa (22%), empregadores (9%) e grupos
de terapia (5%).

É ainda notório um aumento do consumo de substâncias psicotrópicas


(tabaco, álcool e drogas) na sequência do acidente, para além de uma
degradação relacional a diferentes níveis sociais. As rupturas conjugais podem
também surgir no contexto deste processo de degradação geral da vida das
vítimas. No plano ocupacional, as mudanças de profissão ocorrem não apenas
pelo rebate profissional da incapacidade física, mas igualmente devido a
factores psicológicos, nem sempre salvaguardados na ponderação geral dos
danos emergentes do acidente.

Neste sentido, é sugerida a criação de centros gratuitos de assistência


às vítimas e familiares, com apoio no domínio jurídico, médico e psicológico. As
organizações de protecção das vítimas deverão receber apoio e financiamento
público pelo papel privilegiado que poderão desempenhar no acompanhamento
e protecção das vítimas; a função das polícias, sobretudo pelo facto de
desenvolverem os primeiros contactos com as vítimas, deverá ser qualificada
com formação adequada à especificidade da vitimação rodoviária e respectivos
impactos emocionais e familiares; para o caso de danos corporais graves,
deverá ser ainda nomeado um advogado dedicado exclusivamente à
formulação do pedido indemnizatório e ao acompanhamento das diferentes
respostas ressarcitórias às vítimas.

A insatisfação tanto com os serviços prestados pelas companhias de


seguros como pelas indemnizações atribuídas, nomeadamente em casos de
morte e grande incapacidade tem suscitado grande preocupação. Nesse

414 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

sentido, propõem a consagração de um sistema de adiantamento imediato, por


parte das companhias de seguros, da cobertura das múltiplas despesas
sequenciais ao acidente e à morte da vítima (funeral, perda de rendimento do
trabalho, tratamento médico e farmacológico), com o objectivo de prevenir os
lesados e familiares de privações financeiras inaceitáveis; alteração urgente
das lógicas e políticas de pagamento das seguradoras. Do ponto de vista dos
danos psicológicos causados aos familiares das vítimas, este estudo reivindica
a necessidade da sua dignificação jurídica, isto é, do reconhecimento desses
prejuízos não como efeitos secundários do acidente, mas como resultado da
sua ocorrência. Em bom rigor, o sistema jurídico português já contempla os
danos morais gerados na esfera jurídica dos familiares dos lesados, e o teor
dos processos judiciais analisados testemunha a progressiva abrangência dos
danos ponderados para efeitos indemnizatórios. Em todo o caso, é ainda uma
realidade passível de grande contingência e variabilidade, o que se reflecte
tanto na amplitude e qualidade da fundamentação das petições indemnizatórias
como na sensibilidade judicial para o problema.

De acordo com o estudo desenvolvido por Allard E. Dembe (2001) sobre


as consequências sociais e ocupacionais dos acidentes de trabalho e doenças
profissionais, as repercussões ultrapassam as fronteiras estritas do local de
trabalho e da casa da vítima, projectando-se para uma rede de relações
recíprocas que se alastram até aos hospitais, tribunais e comunidade
envolvente, afectando e convocando indivíduos, grupos e instituições sociais.
Sousa et al (2005) procuraram adaptar este contributo, redesenhando um
esquema de estruturas, actores e interacções que dinamizam os múltiplos
interfaces estabelecidos no contexto da sinistralidade.

O contexto macro-sociológico e as condições macro-económicas e


políticas constituem um cenário de fundo com relevância capital para
compreender, por um lado, a especificidade das formações sociais, o padrão
de desigualdade e mobilidade sociais, as relações de classe ou mesmo os
papéis de género que caracterizam a sociedade, e, por outro lado, o clima

415 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

político, as disposições legais vigentes e a oportunidade económica positiva ou


negativa na expansão ou contracção dos direitos do sinistrado e no
desenvolvimento e financiamento de políticas públicas. Este cenário macro
estabelece diferentes níveis de interacção e de influência mútua com as
relações, condições e métodos de trabalho, que entendemos resultantes de
diferentes proveniências, desde processos conflituais ou do diálogo social até
determinações de natureza tecnocrática.

Entidade patronal e trabalhadores corporizam, de alguma forma, este


agregado de feixes políticos, sociais e laborais, articulando-se com outros
actores naquilo que poderemos designar como a governação não apenas da
segurança, como, na nossa perspectiva, dos próprios acidentes de trabalho.
Estes actores são as companhias de seguros, cuja função, como veremos,
passa pela assumpção do risco e pela provisão de respostas reparadoras
(clínicas e indemnizatórias); os tribunais e a função judicial, representando o
controlo público e a instanciação dos conflitos emergentes do sinistro; os
restantes operadores de justiça, que envolvem tanto o Ministério Público no
patrocínio do sinistrado ou a advocacia, ao seu serviço, da seguradora ou da
entidade patronal; o legislador, responsável pela adopção de soluções legais e
normativas perante a problemática preventiva, reguladora e reparadora dos
acidentes de trabalho; o sistema de saúde, na prestação de cuidados ao
trabalhador vitimado; e, finalmente, o grupo de trabalhadores, que inclui os
sindicatos, os colegas de trabalho e, em particular, os trabalhadores que
ocupam o mesmo posto de trabalho.

Como concluímos do nosso estudo, numa óptica reparatória, este


mapeamento dos principais actores interactuantes com o sinistrado na
sequência de um acidente é, todavia, insuficiente. Haverá pelo menos três
agentes fundamentais envolvidos nos múltiplos processos sociais, jurídicos e
institucionais da reparação e que, em conjunto, integram o sistema de
governação dos acidentes de trabalho e que o esquema apresentado não
contempla. Nesse sentido, destacamos operadores periciais, cujo papel na

416 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

avaliação do dano corporal e na determinação da incapacidade é decisivo,


reflectindo-se directamente nos montantes indemnizatórios atribuídos; a
segurança social, com funções insubstituíveis na protecção dos cidadãos em
contexto de vulnerabilidade e com responsabilidades acrescidas na
coordenação da provisão de bem-estar; e ainda as associações de defesa das
vítimas, desempenhando diferentes funções sociais, desde a mediação entre o
sinistrado e os tribunais e a promoção do acesso à justiça, até à interlocução
política ou ao apoio directo às vítimas de acidentes.

4. AS VÍTIMAS ORGANIZADAS: AS DINÂMICAS DA


SOCIEDADE CIVIL

Nas décadas mais recentes, a par das lutas protagonizadas pelas


centrais sindicais na defesa da prevenção e na melhoria da reparação, a
Associação Nacional dos Deficientes Sinistrados no Trabalho (ANDST) tem
representado, no contexto português, esse movimento social centrado na
problemática dos acidentes de trabalho na perspectiva e a partir da experiência
das vítimas. É amplo e diversificado o trabalho desenvolvido por esta
organização, desempenhando funções importantes que, a diferentes escalas,
se fortalecem mutuamente: desde o cuidado e apoio directo ao trabalhador
acidentado até à sua constituição enquanto parceiro social e político junto do
legislador e de instituições públicas e privadas conexas com o seu âmbito de
acção. Foi criada por sinistrados e as suas orientações associativas passam

417 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

pela prestação de apoio jurídico, médico, de informação e aconselhamento às


vítimas de acidentes de trabalho ou doença profissional. Encontra-se filiada na
Confederação Nacional dos Organismos de Deficientes e representa Portugal
na Federação Internacional dos Mutilados, dos Inválidos do Trabalho e
Inválidos Civis.

É uma Instituição Particular de Solidariedade Social, sedeada no Porto,


cujo nascimento, em 1976, coincide com um período particularmente dinâmico
e mobilizador da história social portuguesa. Segundo o depoimento de um dos
seus fundadores,

“Logo após o 25 de Abril, em 75, houve essencialmente duas pessoas, dois sinistrados
do trabalho, uma aqui no Porto e outra em Famalicão, que decidiram, através da rádio,
divulgar a sua situação e apelar aos sinistrados em geral para que se juntassem, para
que se criasse um movimento… e naquela altura criava-se movimentos quase por tudo
e por nada. E no fundo foi assim que surgiu. Essas duas pessoas não se conheciam,
mas as coisas foram feitas quase em simultâneo. Um ouviu o outro, depois
contactaram um com o outro, e decidiram fazer um apelo para que as pessoas se
juntassem na Praça da Batalha. E eu fui um dos que foi lá. Porque vi… eu também era
sinistrado… mais ou menos recente… e quis saber o que é que se passava. E foi mais
ou menos assim que surgiu. Depois as coisas foram começando… as pessoas foram
começando a aparecer, houve necessidade de pedir à Câmara um pequenino espaço,
uma sala, foi-nos concedido uma sala… uma coisa muito velha, mas dava para nos
juntarmos. E um ano depois, em 1976, nós concluímos que teríamos de estar mais
bem organizados… éramos uma Comissão de Sinistrados sem qualquer registo… e
havia a necessidade de criarmos uma Associação. Arranjámos uns estatutos, copiando
um bocadinho dali, um bocadinho de acolá, procurámos um advogado nas Páginas
Amarelas que nos tratasse dos estatutos, registá-los, e no fundo foi assim que surgiu.”
(Ent. 5)

Se, por um lado, as circunstâncias históricas seriam especialmente


propícias à emergência de actores colectivos na reivindicação de direitos
sociais e laborais que o antigo regime reprimiu e inviabilizou, por outro lado o
carácter aparentemente particularista dos interesses dos sinistrados do
trabalho não terá fornecido as condições necessárias à sua assumpção pela
agenda política como matéria digna de reflexão estruturada e priorização
reformista. Iniciando-se a normalização democrática, aquela que era a principal
agenda do movimento dos sinistrados do trabalho concentrava-se na urgência
da actualização de pensões, cuja desvalorização degradava consideravelmente

418 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

os seus padrões de vida. Conseguido esse primeiro objectivo, a ANDST


ganhou espaço na sociedade como pólo agregador das vítimas de acidentes
laborais, aumentando a procura por parte dos sinistrados e conseguindo a sua
confiança associativa. Em 2007, estavam inscritos cerca de 13 000 sócios,
todos eles vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais. Nesse
mesmo ano foram apoiados mais de 4 000 associados, quem foi prestado
apoio jurídico, médico e informativo, tendo sido desenvolvido um trabalho de
acompanhamento judicial de 200 sinistrados:

“Acompanhamento, a ajuda e a informação aos sinistrados mais recentes. Aqueles que


tinham tido um acidente recentemente e que estavam em litígio com a companhia de
seguros, ou com o Tribunal do Trabalho… Nós procurámos acompanhar esses
processos, informar as pessoas de quais eram os seus direitos, tentar perceber quais
eram, através de meios de prova como os recibos de vencimento ou testemunhas, ou
outra coisa qualquer, ou até mesmo com os salários constantes no contrato colectivo
de trabalho que eram superiores aos efectivamente pagos… essencialmente foi esse
trabalho de acompanhamento nos autos de conciliação no Tribunal do Trabalho.” (Ent.
5)

Esta é uma das frentes de actuação da ANDST particularmente


privilegiada, dando conta da importância desta organização na mobilização dos
tribunais e no acesso ao direito e à justiça. Constituindo um vector fundamental
para uma protecção das vítimas mais consistente, este interface estabelecido
entre a esfera associativa e a esfera judicial testemunha a importância da
sociedade civil na construção de uma cidadania judicial que os tribunais, por si,
são incapazes de assegurar. O reconhecimento do direito ao patrocínio judicial
de sinistrados seus associados tem, de resto, representado uma das suas lutas
mais antigas, o que se, por um lado, poderia conferir maior protagonismo e
enraizamento sociojurídico à associação, e por outro introduziria um novo actor
social na dinâmica reparatória desenvolvida nos tribunais.

No quadro da protecção dos sinistrados e do acompanhamento dos


processos de indemnização decorrentes de acidentes de trabalho, os interfaces
estabelecidos pela ANDST não se esgotam na sua relação com os tribunais,
projectando-se para as diferentes focos de tensão suscitados pela condição

419 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

específica do sinistrado e pelas instituições que este mobiliza, que lhe prestam
serviços e que, em última instância, lhe efectivam (ou não) os diferentes
direitos de que são portadores. Com as companhias de seguros, responsáveis
pela recuperação clínica e pela compensação económica do sinistrado, é
igualmente desenvolvido um trabalho de articulação no sentido de salvaguardar
os interesses e o cumprimento das obrigações face às vítimas:

“Era a preocupação de pessoas que se queixavam que tinham a cadeira de rodas toda
partida e a companhia de seguros não lhe dava outra cadeira de rodas… e nós
contactávamos com a companhia de seguros no sentido de substituir aquela cadeira de
rodas… Houve pessoas que tinham próteses ou nos membros superiores ou nos
membros inferiores que também estavam estragadas e a companhia não queria
substituir e reparar… E portanto houve a necessidade de estabelecer muitos contactos
com as seguradoras. Tudo essencialmente aqui no norte… aqui no Porto.” (Ent. 5)

São ainda fornecidos serviços de apoio psicoterapêutico para os


incapacitados e famílias, individualmente, em grupos de ajuda mútua, e visitas
domiciliárias e hospitalares. Paralelamente, a ANDST actua enquanto grupo de
pressão com o objectivo de reclamar uma política de recuperação, de
reabilitação e inserção social e profissional, a partir de um repertório discursivo
baseado na igualdade de oportunidades para as vítimas do trabalho, na
promoção do trabalho seguro, colocando ênfase nas necessidades prementes
de fiscalização dos organismos responsáveis pela reparação. Reivindicam-se,
nesse sentido, alterações legislativas de índole variada, no sentido da
ampliação dos instrumentos e da sua amplitude e consistência reparatória (de
que é exemplo a reivindicação do pagamento de todas as prestações que
sejam reconhecidas judicialmente aos sinistrados mobilizadores do Fundo de
Acidentes de Trabalho (FAT), incluindo juros moratórios e danos morais).

O acordo de cooperação de cooperação com o Centro Distrital de


Segurança Social do Porto, celebrado em 1996, proporcionou a manutenção
das actividades regulares de funcionamento da associação, tal como um
reforço do número de colaboradores especializados, nomeadamente nas

420 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

valências de Serviço Social de Coimbra e Lisboa, melhorando, alargando e


qualificando o apoio aos sinistrados associados.

Porém, é de sublinhar que a grande maioria do trabalho associativo


evidencia forte concentração territorial, sobretudo nos grandes centros
urbanos, carecendo de uma cobertura nacional que dê conta tanto da
heterogeneidade dos problemas associados à reparação em função das
especificidades e dos serviços de apoio público locais, como dos custos
exponenciais da interioridade, produtores de cenários sociológicos bem
distintos nas dinâmicas de recuperação e reparação das vítimas.

Também a associação Solidariedade Imigrante (SOLIM), com um âmbito


de intervenção mais amplo, dedicado à integração legal, social, económica e
cultural dos cidadãos imigrantes, tem ganho relativa preponderância na relação
dos cidadãos com os tribunais. Neste contexto, o seu principal eixo de
intervenção é dirigido às políticas de inclusão social, aos obstáculos legais à
documentação e regularização, e à actuação do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras perante os cidadãos imigrantes. Porém, segundo nos testemunha
um dirigente da associação, o apoio e protecção extravasa para os diferentes
campos em que a questão migratória de cruza com as condições sociais dos
imigrantes, nomeadamente com o risco, a informalidade e a exploração
laborais. O facto de um dos sectores de actividade mais expostos ao risco –
construção civil – incorporar níveis elevados de mão-de-obra em situações de
particular precariedade e vulnerabilidade social obriga o trabalho associativo a
combinar múltiplas lutas políticas e frentes de apoio ao imigrante:

“E as pessoas começaram a ir aos Tribunais de Trabalho porque nós incentivámos


isso. “Ah, porque eu não sei português, não compreendo, não consigo ir lá, porque eu
não tenho dinheiro para pagar a um advogado”… O problema não será esse. Não é por
isso que as pessoas vão deixar de exercer os seus direitos. A questão do português:
nós próprios fazemos uma exposição, uma queixa ou uma participação ao Tribunal de
Trabalho. Porque nós vamos ao Tribunal de Trabalho e eles próprios disseram que era
melhor que as pessoas chegassem com alguma coisa escrita, para entenderem melhor
e inserirem a informação no computador. Nós fazemos isso. Muitas vezes… o primeiro
passo que a gente dá, antes de se enviar as pessoas para o Tribunal de Trabalho, é
entrar em contacto com a entidade patronal. Normalmente, quase sempre, por escrito.
Não por telefone. Por escrito. Carta registada e aviso de recepção. Muitas vezes o

421 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

problema é resolvido por aí. Nós tivemos alguns patrões que vieram aqui à Associação
remediar os males que fizeram, nomeadamente pagar coisas em atraso.” (Ent. 13)

A SOLIM constitui, neste sentido, um meio privilegiado de contenção e


modelação de conflitos, quando as instituições falham ou se revelam incapazes
de dar conta das dinâmicas exploradoras e opressoras que estão na origem
tanto da ocorrência de graves acidentes de trabalho como da sua absoluta
invizibilização. Para além dos mecanismos predatórios que dinamizam a
participação no mercado de trabalho desprotegerem por completo os
trabalhadores em matéria de reparação da sinistralidade, a sua situação
irregular é, por vezes, usada como estratégia dissuasora do recurso ao direito e
à justiça. Além disso, em contextos mais críticos, aos tribunais associa-se todo
um campo simbólico e institucional conotado com potenciais efeitos repressivos
perante a imigração (SEF e deportação), o que favorece a desconfiança
perante a justiça e, em termos gerais, perante o Estado326. A vitimação, neste
contexto, é exponenciada.

O papel da SOLIM no encaminhamento dos acidentes para os tribunais


de trabalho evidencia a relevância desta organização não apenas para a
viabilização de uma reparação efectiva dos danos sofridos, como no sentido de
se conseguir desarmadilhar os nexos sociojurídicos que barram o acesso
destes trabalhadores sinistrados à justiça. Todo o trabalho de preparação e
capacitação jurídica dos imigrantes desenvolvido pela organização configura,
por conseguinte, um interface fundamental com o sistema judicial cujo
reconhecimento público está longe de ser suficiente, no sentido de incorporar o
contributo destas dinâmicas associativas nas políticas públicas de acesso ao
direito e à justiça, sobretudo quando tocam aspectos essenciais do Estado de

326
São relatados casos em que, na sequência de um acidente de trabalho, à saída do
imigrante sinistrado do hospital a primeira instituição pública a recebê-lo é, precisamente, o
SEF.

422 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

direito democrático como a integridade física dos cidadãos. Do ponto de vista


da SOLIM, essa articulação é, porém, entendida como uma componente
estruturante das suas funções de capitalização social, institucional e jurídica
dos imigrantes em condições degradadas e vulneráveis:

“Nós damos um prazo ao patrão… se o patrão não quer resolver a bem, através do
diálogo, e não quer respeitar os direitos que a pessoa tem, nós vamos para o tribunal!
“Vais com esta cartinha ao Tribunal de Trabalho, fazes a participação, e vamos pedir
apoio judiciário. Tu tens direito a isso, independentemente de estares ou não
documentado! Sejas regularizado ou não!” Uma coisa são as leis do trabalho, outra
coisa são as leis de entrada, permanência e afastamento dos imigrantes em Portugal.
Então nós incentivamos a ida aos tribunais. E os tribunais chegaram à seguinte
conclusão, ainda não há muitos anos: é que efectivamente a participação dos
imigrantes e a procura dos tribunais de trabalho cresceu bastante. E nós tivemos uma
quota-parte de responsabilidade em relação a isso.” (Ent. 13)

Já o surgimento da sinistralidade rodoviária, com os seus riscos e efeitos


lesivos e dramáticos na sociedade, aparece e percepciona-se muito mais tarde
enquanto problema merecedor de atenção social, política pública preventiva e
reparadora e mobilização da sociedade civil. No contexto do pós-guerra, a
expansão do mercado automóvel, a generalização da sua aquisição, a
universalização do uso e o aumento progressivo do tráfego estão na origem de
um forte movimento organizado, sobretudo no espaço europeu, cujo objectivo
essencial é, acima de tudo, a protecção das vítimas de acidentes de viação.
Este movimento assentou em diferentes estratégias de intervenção pública,
tanto no sentido do endurecimento penal face à infracção, como no sentido de
se atender às condições e aos perigos estradais da circulação rodoviária.

Observando o panorama associativo português no contexto da


sinistralidade rodoviária, a Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados327 (ACA-
M) tem vindo a constituir-se como um dos mais projectados actores da

327
Membro da Federação Europeia de Vítimas Rodoviárias – FEVR, da Federação
Internacional de Peões – IFP, da Estrada Viva – Liga contra o Trauma, e da International
Federation Against Road Trauma – ICART.

423 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

sociedade civil, tendo como grande objectivo o “fim da guerra civil nas estradas
portuguesas, advogando um pacto social que valorize a segurança e a
cidadania nos transportes. Propõe-se defender os direitos humanos e cívicos
dos transeuntes portugueses (sejam eles condutores, passageiros ou peões), e
pugnar pela sua mobilização e responsabilização cívica” (Ent. 12). Neste
sentido, procura assumir-se como uma instância de mediação de conflitos entre
os cidadãos e o Estado e entre interesses particulares e colectivos, exigindo
responsabilização dos poderes públicos e dos agentes políticos, financeiros e
económicos, em matérias de segurança, fiscalização e regulamentação
rodoviária. A sua relação com os tribunais não tem, no entanto, conferido
centralidade à problemática da indemnização do corpo e da vida, pelo que, na
grande maioria dos casos, o foco do activismo radica no domínio da prevenção
geral da sinistralidade, da construção de rodovia e das condições que se lhe
encontram associadas, do combate ao excesso de velocidade, ou da
mobilidade e estatuto do peão nas novas gramáticas urbanas. Reconstituamos
um pouco da história desta associação.

A petição contra a Guerra Civil nas estradas portuguesas, entregue ao


Presidente da República a 24 de Novembro de 1998, foi o primeiro passo
fundador da ACA-M, dado na sequência de uma homenagem aos mortos no
IP5, no cemitério da Guarda. Surgiu desde logo como um movimento com
feições sociológicas bem distintas daquelas que originaram, por exemplo, a
ANDST: partia de uma iniciativa muito cunhada pela mão do seu fundador e
dirigente Manuel João Ramos, e o seu impacto e visibilidade pública foi
sobretudo conseguido pela reunião de um conjunto amplo de personalidades
públicas ligadas aos meios cultural, televisivo e intelectual:

“Portanto a Associação nasceu em 1998, formalizou-se em 1999, e acho que, em


termos de impacto público temos tido bastante sucesso, em parte devido à nossa
formação, porque a maior parte das pessoas que fundaram a Associação são ou
professores universitários, ou escritores, ou engenheiros…”

Portanto foi um movimento de elites?

424 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

“Eu acho que sim. Acabam por ser pessoas com capacidade discursiva e com
capacidade de colocar junto da comunicação social o problema, em termos de
novidade…” (Ent. 12)

O repensamento das categorias tradicionalmente associadas à questão


da sinistralidade rodoviária, como a condição de peão, a condição de condutor,
a condição de vítima ou a condição de infractor, constitui um dos contributos
reivindicados pela ACA-M na influência que conseguiu provocar no debate
público e na decisão política sobre a matéria. Por outro lado, o endurecimento
do quadro penal alusivo à infracção rodoviária esteve ainda na agenda desta
associação, bem como o alerta para a condescendência que o crime
rodoviário, expressa na sua baixa censura social, com efeitos nas próprias
decisões judiciais328. Este contributo passou sobretudo pela entrega de
pareceres, propostas e recomendações às autoridades públicas, pela
promoção de vários abaixo-assinados329, acções de protesto, campanhas
publicitárias330, bem como pela realização de debates públicos sobre
segurança rodoviária ou investigação académica aplicada, de que relevam
trabalhos como o Estudo da Cultura da Violência Rodoviária nas Estradas
Portuguesas, Túneis e circulação pedonal na zona das avenidas novas,
Aspectos do impacto social decorrentes da construção de uma variante ao IP5,
projectada para circundar a sul a cidade de Viseu, Care of the Road, entre

328
A ideia de que o infractor rodoviário não corresponde o perfil ideal-típico do criminoso, tanto
pela natureza da prática como pelo transclassimo da sua incidência, surge como factor
particularmente poderoso na produção desta realidade.

329
De que se destacam Direito à Vida – Contra o Crime Rodoviário em Portugal, a partir da
Carta Comum das Associações Cívicas Promotoras de Segurança Rodoviária.

330
Entre e outras, é possível nomear as campanhas Vamos acabar com os pontos negros nas
estradas portuguesas, Cortesia ao Volante, a celebração do Dia da memória (das vítimas das
estradas),

425 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

outros. A fundação da Estrada Viva – Liga Contra o Trauma, representa ainda


uma tentativa de agrupar diferentes organizações com preocupações
rodoviárias numa plataforma comum.

Esta paisagem da acção associativa comporta ainda a mobilização dos


tribunais com diferentes objectivos, nomeadamente através da interposição de
providências cautelares centradas na construção e nos riscos rodoviários.
Também os serviços de saúde têm merecido a sua atenção, como é o caso da
tutela sobre o INEM, tal como a questão da educação para a segurança
rodoviária. Em termos gerais, a ACA-M entende que os principais actores
envolvidos na governação da segurança e da sinistralidade rodoviária
continuam a ser

“Empresas, muitas delas públicas… ou então as grandes associações empresariais,


como as dos seguros dos automóveis… e do combustível… e das estradas… são os
grandes participantes. “ (Ent.12)

A reparação dos danos corporais emergentes dos acidentes de viação


não tem, todavia mobilizado o interesse desta organização. Muito embora o
contexto pós-traumático e a recuperação clínica das vítimas331 suscite a
denúncia da incapacidade do Estado e das instituições de saúde responderem
qualificada e eficazmente ao trauma físico e psíquico com origem rodoviária, o
lugar que este problema ocupa nos tribunais portugueses na perspectiva da
compensação dos prejuízos corporais não tem sido submetido ao escrutínio e à
intervenção da ACA-M, pelo que se encontra fora da sua agenda política. Para
além disso, aquilo que são dimensões importantes do acordo e da resolução
dos conflitos indemnizatórios, nomeadamente os cenários pré-judiciais da
negociação entre as vítimas e as seguradoras responsáveis pela

331
A ACA-M chegou a disponibilizar um serviço de acompanhamento psicológico às vítimas de
acidentes rodoviários e familiares, embora tenha posteriormente enveredado pela solução de
encaminhamento.

426 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

indemnização, constituem processos face aos quais a posição da organização


tem revelado relativo desconhecimento e distância crítica:

“Pois… eu acho que é muito saudável que as pessoas não estejam sempre a apelar
aos tribunais…”

Não poderá ser perverso?

“Poderá… mas aí… é a lei darwiniana… o que é que se há-de fazer à lei darwiniana? A
selecção é sempre dos melhores… até certo ponto, claro. Ou seja, tem este aspecto
saudável. Acho que é bom que a sociedade portuguesa se desligue um bocado dessa
ideia de que todos somos clientes do Estado, eu acho que é bom que assim não
seja”.(Ent. 12)

Esta perspectiva, convergindo com a retórica dominante do


descongestionamento dos tribunais e afirmando, nesse sentido, melhor
responsabilizar a função judicial pelo seu desempenho face àquilo que tem em
mãos, não deixa de significar um evidente desinvestimento da acção cívica e
política da ACA-M no problema da redução dos padrões indemnizatórios em
sede extrajudicial332, o que tem efeito directo na defesa das vítimas e na
qualidade da respostas reparadoras desenvolvidas pelas dinâmicas judiciais
amplamente consideradas.

Como já sublinhámos na exposição dos quadros jurídicos relativos à


reparação de danos corporais no contexto criminal, a importância da vítima no
âmbito judicial tem vindo a ser progressivamente avolumada e reconhecida,
como comprova, a título de exemplo, a criação da francesa Secretaria de
Estado dos Direitos das Vítimas. Ao longo dos anos 90, assistimos a uma muito
significativa densificação legislativa no âmbito da protecção e
acompanhamento das vítimas de criminalidade, para o que também
contribuíram as orientações comunitárias transpostas para os ordenamentos
jurídicos nacionais.

332
Cf. Nova tabela indicativa de indemnizações para o direito civil / acidentes rodoviários.

427 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

Neste sentido, é já longo o caminho percorrido por múltiplas


organizações e instituições internacionais relativamente à problemática da
protecção das vítimas de crimes e à definição de modelos de intervenção social
e judicial capazes quer de prestar auxílio, quer de fornecer respostas eficazes
às perdas sofridas e de renovar o quadro penal (justiça restaurativa, mediação
penal) em que opera a reparação dos danos causados à vítima, a conciliação e
a pacificação social.

Enquanto a criação da ANDST partiu da experiência e da mobilização


das vítimas de acidentes de trabalho, com fortes conexões sindicais mas por
oposição ao regime reparatório e às práticas laborais negligentes em matéria
de segurança no trabalho e indemnização corporal, a Associação Portuguesa
de Apoio à Vítima (APAV) é, em larga medida, o produto top down de um
movimento europeu nascido no início dos anos 80, com diferentes penetrações
normativas, sociais e institucionais. A génese diferenciada das organizações
condiciona, naturalmente, a sua relação com o Estado e com os diferentes
poderes sociais, o que fará a primeira integrar a sociedade civil estranha e a
segunda a sociedade civil íntima do Estado, com impactos e efeitos
naturalmente distintos no estatuto institucional, no patrocínio público, nas
dinâmicas associativas e na interlocução política.

O principal objectivo da APAV consiste na prestação de apoio às vítimas


de crimes, tendo como grandes orientações a individualização do cuidado e da
assistência, em função da específica e pessoal reacção ao crime, bem como
das perspectivas de reconstrução vivencial, a gratuitidade dos serviços, e a
igualdade no acesso e na qualidade da sua prestação junto das vítimas.
Fundada em 1990, na sua fase inicial de implantação apostou na criação de
uma rede mínima de apoio, através dos Gabinetes de Apoio à Vítima, de um
sistema de voluntariado social e na cooperação com diferentes instituições
públicas e privadas já existentes no terreno. O crescimento e a maturação
desta organização reflectem-se no grau de profissionalização dos serviços e
das pessoas envolvidas nos diferentes projectos da APAV, bem como na

428 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

articulação protocolada com os Ministérios da Administração Interna, do


Trabalho e Solidariedade Social e da Justiça, que envolve financiamento,
parcerias e colaboração a diferentes níveis.

O seu quadro actual de actividades passa pela formação dos recursos


humanos residentes e voluntários e de técnicos de outras instituições que lidam
regularmente com vítimas de crimes, pelo desenvolvimento de projectos
nacionais, europeus e internacionais de investigação e informação no domínio
do apoio às vítimas, pela expansão da rede nacional de Gabinetes de Apoio à
Vítima, pela realização de campanhas de sensibilização da opinião pública,
pela definição de modelos de intervenção para novas problemáticas de
vitimação, pela monitorização da qualidade dos próprios serviços prestados e
por acções de prevenção da vitimação e da violência, nomeadamente junto de
crianças e jovens. O acolhimento de mulheres e crianças vítimas de violência
doméstica é uma das missões mais reconhecidas ao trabalho social da APAV,
sobretudo quando cerca de 90% da procura é movida por problemas sociais e
criminais dessa natureza.

No momento crítico em que é desencadeada essa procura, a questão da


indemnização pelos danos morais e corporais sofridos pelas vítimas não é, de
acordo com a organização, aquilo que mais preocupa as vítimas, pelo que
tende a ser relegado para um plano de menor urgência ou prioridade. O défice
de centralidade da justiça civil, no seu sentido ressarcitório, face às diferentes
respostas sociais e judiciais fornecidas às vítimas de crimes com incidência
corporal, está ainda espelhado na colecção de dados alusivos aos processos
acompanhados pela APAV. Para cada vítima de crime atendida na APAV é
preenchido um registo – o boletim de processo de apoio –, que se encontra
devidamente reconhecido pelo INE e que constitui um importante instrumento
de trabalho com pontos comuns com outras organizações. Este boletim não
contempla, porém, qualquer alusão à assistência ou necessidade de pedidos
de indemnização civil que compensem as vítimas pelos múltiplos danos
sofridos. Isto não significa que não haja, efectivamente, trabalho de auxílio à

429 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

formulação de pedidos: não é, todavia, matéria que suscite uma focagem


específica por parte da associação.

À semelhança das restantes organizações recenseadas, a APAV não


pode fornecer patrocínio judicial às vítimas, pelo que o seu procedimento
habitual, face a diferentes litígios judiciais, passa pelo encaminhamento e pela
facilitação do recurso aos mecanismos de apoio judiciário. A provisão de
auxílio, consulta e informação jurídica não se esgota, porém, no
aconselhamento das vítimas:

“Vamos às vezes um bocadinho mais além: aqueles actos que as pessoas podem fazer
por si, sem necessidade de constituição de mandatário, por exemplo, a apresentação
de uma queixa ou de uma denúncia, a dedução do pedido cível… todo esse tido de
requerimentos ou processos que se podem fazer sem ser necessário advogado… nós
auxiliamos as pessoas a fazê-lo. Enfim, quando eu digo que estamos a funcionar
paralelamente à lei, estamos nós, mas estão as juntas de freguesia que também fazem
aconselhamento jurídico, está metade do país… Portanto o que se passa, na nossa
opinião, é que é uma lei claramente corporativa e um bocadinho restritiva. E, de facto,
nós sentimos que as pessoas têm esse tipo de dificuldade, e portanto quando se vêem
sem apoio judiciário e tendo de constituir mandatário ou puxam o pedido para baixo ou
então pura e simplesmente não o fazem…” (Ent. 11)

Este trabalho de mediação, que identificámos igualmente na ANDST e


na SOLIM, reflecte-se, em grande medida, não apenas no aumento da
acessibilidade aos tribunais e instituições públicas por parte dos cidadãos
lesados, mas igualmente na tradução do discurso e da linguagem jurídica, não
apenas com o objectivo de esclarecer as vítimas sobre o enquadramento e as
etapas jurídicas do seu processo, como também no sentido de as dotar de
competência sociojurídica face às garantias e incumbências que o sistema
legal lhes reserva:

“As pessoas recebem a notificação, que também às vezes é um bocadinho indecifrável


para elas, porque lhes fala do artigo 75º e seguintes do Código de Processo Penal e as
pessoas não percebem bem o conteúdo daquilo, e vêm muitas vezes até nós e pedem-
nos para descodificar a notificação. Nós explicamos à pessoa o que é e muitas vezes
auxiliamos a pessoa a ir ao processo manifestar o propósito de deduzir o pedido [de
indemnização cível por danos corporais]. O que acontece é que mesmo quando as
pessoas manifestam este propósito depois não são notificadas da acusação, e depois
não sabem quando começa a correr o prazo, não sabem quando acaba o prazo para
deduzir o pedido de indemnização”. (Ent. 11)

430 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

O facto de a APAV ter como missão a protecção de vítimas de crimes


faz com que detenha relações próximas e privilegiadas com o Ministério
Público, assumindo-se como um parceiro no âmbito dos diferentes gabinetes
espalhados pelo país. Essa colaboração concretiza-se de formas variadas,
como o carreamento de informação da associação para o MP, o que permite
acréscimos de consistência, qualidade e informação nas suas diferentes
decisões processuais, nomeadamente em questões de segurança ou de
avaliação do grau de risco em que as vítimas se encontram.

Há ainda uma outra dimensão do trabalho da APAV, relacionada com o


reconhecimento, visibilização e avaliação do dano físico e psíquico das vítimas.
Sobretudo no contexto da violência doméstica e violência sexual sinalizados e
acompanhados pela organização, começa a estabelecer-se uma cultura de
parceria e articulação com os tribunais, sendo muitas vezes os próprios a
solicitar os relatórios de apoio à vítima, no sentido de melhor se proceder a um
apuramento dos factos e dos efeitos gerados na integridade corporal dos
lesados:

“Não estamos aqui a falar de alguém que esteve meia hora com a pessoa e com base
nisso vai fazer um relatório, estamos a falar de alguém que acompanhou, com uma
terapia que dura algumas semanas, ou eventualmente alguns meses, alguém que
acompanhou a vítima. E no fim desse acompanhamento, ou durante esse
acompanhamento – se o acompanhamento ainda estiver a decorrer – é muitas vezes
pedido pelo tribunal um relatório”. (Ent. 11)

Esses relatórios de apoio à vítima possuem diferentes elementos


caracterizativos, com algum grau de profundidade nomeadamente do ponto de
vista da avaliação psicológica. Embora não detenham valor pericial, não
deixam de ser recursos essenciais, tanto em matéria avaliativa como
probatória333. Ainda assim, a valorização jurídica destes elementos, no sentido

333
Neste sentido: “Agora, é um relatório nosso, não é da medicina legal. Não tem valor pericial.
Muitas vezes, até, os técnicos que fazem o relatório são depois chamados a tribunal… e depois

431 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha

da sua conversão em danos susceptíveis de indemnização cível (prejuízos


psicológicos temporários ou permanentes, perda de dias de trabalho, despesas
adicionais, entre muitos outros danos gerados na esfera jurídica da vítima)
continua a permanecer secundarizada face à resolução criminal do problema,
subtraindo aos lesados uma reparação a que legalmente têm direito, mas que,
na prática, carece de efectivação.

aqui há sempre esse problema: em que qualidade é que vão a tribunal? Se é na qualidade de
testemunhas se é na qualidade de peritos. Levanta-se muitas vezes isso e é uma questão que
ainda não está resolvida, mas são muitas vezes chamados a tribunal para, no fundo,
corroborarem o relatório que eles próprios fizeram.” (Ent. 11)

432 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


C ONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
Conclusões e Recomendações

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

Este estudo sobre a indemnização da vida e do corpo na lei e nas


decisões judiciais procurou responder a uma pergunta simples que : como é
que as vidas atravessadas por vulnerabilidade e exposição ao risco são
precarizadas ou protegidas em Portugal? É conclusão geral que a reparação
do dano corporal envolve relações conflituais muito desiguais, entre
trabalhador e empregador, entre trabalhador e seguradora, na medida em que
as partes envolvidas se encontram estruturadas e organizadas de forma
desequilibrada, com reflexos nas dinâmicas judiciais e nos resultados
indemnizatórios.

A primeira e importante conclusão de todo o nosso trabalho de campo é


a de que os sinistrados laborais, do ponto da vista da reparação do dano
corporal, são encarados segundo uma visão essencialmente produtivista.
Esta visão das vítimas deve ser substituída por uma nova visão que permita a
reparação integral dos danos directos e indirectos resultantes do acidente.
Ainda que sob um modelo de responsabilidade objectiva, tomar como critério
exclusivo a perda de capacidade de ganho desprotege os trabalhadores
sinistrados face a todo um conjunto de danos não patrimoniais – dano
psicológico, dano sexual, dano estético, dano de afirmação pessoal,
quantum doloris – cuja gravidade não pode ser invisibilizada e deixada por
indemnizar.

435 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Conclusões e Recomendações

Uma outra conclusão geral consiste no facto de a delação no tempo da


discussão jurídica sobre a responsabilidade, a insolvência do empregador
responsável em situação irregular e a desconexação interinstitucional geram
muitas vezes hiatos de desprotecção absoluta das vítimas. Estas lacunas
na protecção social dos sinistrados, que se traduzem na perda salarial durante
a pendência indemnizatória e a ausência de protecção pública, obrigam a
maior articulação entre os tribunais e as instituições (Companhia de Seguros e
Segurança Social) no sentido de acautelar os direitos fundamentais dos
sinistrados e evitar que caiam numa espiral de degradação social, familiar e
financeira. Esta situação, apesar de transversal, é particularmente grave no
contexto dos acidentes rodoviários, devido à morosidade do processo e à
ausência do Ministério Público no patrocínio do sinistrado. Para combater estes
efeitos dever-se-á avançar no sentido do reforço da responsabilização das
seguradoras na prestação de cuidados de saúde, no aprofundamento dos
mecanismos de indemnização imediata das vítimas na sequência do
sinistro e, ainda, na especialização dos serviços da Segurança Social no
acompanhamento às vítimas se sinistros laborais e rodoviários.

A isto acresce a deficiência das respostas fornecidas às vítimas, tanto


neste plano, como em muito outros, conduzindo, muitas vezes, ao
agravamento das condições de vida e à privação material. Em períodos de
crise económico-social, como a que actualmente vivemos, é fundamental
reflectir sobre as dimensões e os mecanismos de reprodução e agravamento
das desigualdades estruturais na sociedade portuguesa, bem como sobre as
debilidades do Estado social na resposta às vítimas. É imperioso empreender
reformas consequentes que reajam aos principais bloqueios no acesso ao
direito e à justiça e no desempenho de uma justiça, de forma a responder com
eficiência, eficácia e qualidade às vítimas de acidentes, em especial, no caso
dos acidentes de trabalho. Este é um desafio incontornável à democracia e à
cidadania na sociedade portuguesa.

436 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Conclusões e Recomendações

O sobre-endividamento sequencial ao acidente é um fenómeno que


merece atenção dos serviços públicos, no sentido de proteger as vítimas mais
vulneráveis. Como seria de prever, este problema ganha ainda mais
relevância nos trabalhadores que auferem baixos salários. Assim, seria de
ponderar a criação de um sistema de bonificação da reparação nos casos de
baixos rendimentos, pelo efeito sobrelesivo na sua condição social degrada.

Outro aspecto a considerar é a fragilidade familiar que resulta quase


sempre da ocorrência do sinistro. Assim, e embora a legislação mais recente
aponte para o fornecimento de assistência psicológica ou psiquiátrica aos
familiares das vítimas, são ainda fortes os impactos conjugais e parentais da
incapacidade, corroendo e degradadando a intimidade das vítimas e
fragilizando a vida familiar. É importante reforçar este apoio às vítimas e não
desvalorizar a sua centralidade na recuperação e reabilitação. Ainda neste
campo é necessário que o reconhecimento médico-jurídico da necessidade de
uma terceira pessoa seja mais abrangente e que a remuneração que lhe é
prevista seja mais realista e alivie a sobrecarga familiar acumulada. Será
necessário rever os patamares a partir dos quais essa possibilidade legal pode
ser mobilizada dado que esta fica aquém das carências quotidianas dos
lesados.

Outra linha de recomendação vai no sentido de se melhorar a definição


dos conteúdos funcionais do trabalho habitual do sinistrado, tanto para
fins periciais, como para fins indemnizatórios. Esta deve ser uma operação
muito mais rigorosa e controlada. Note-se que a subavaliação das exigências
corporais da profissão pode redundar, por um lado, em coeficientes de
incapacidade deflacionados e, portanto, em injustiça indemnizatória e, por
outro, na atribuição de alta médica ao trabalhador quando na verdade ainda
não está apto para desenvolver todas as tarefas que terá que efectivamente de
realizar, independentemente de não caberem no seu conteúdo funcional.

Relacionada com esta temática está a necessidade de uma


monitorização efectiva da reintegração profissional do trabalhador sinistrado,

437 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Conclusões e Recomendações

de forma a sinalizar, evitar ou corrigir fenómenos de esvaziamento de funções,


assédio, simulação de justa causa no despedimento, entre outras formas de
exclusão do sinistrado. Esta monitorização deve envolver tanto profissionais da
Segurança Social como o Ministério Público, nomeadamente para vigiar
eventuais conflitos conexos em sede laboral.

Um outro plano que, todavia, acaba por estar sempre intimamente ligado
como todo o demais processo reparatório no âmbito dos acidentes de trabalho,
prende-se com o papel central do Ministério Público. Em consequência dessa
centralidade, a formação dos magistrados, e em particular do Ministério
Público, deve atender não apenas à preparação técnico-jurídica e aos
critérios éticos e deontológicos, mas igualmente à capacitação para uma
interpretação adequada da realidade social que subjaz aos autos. A sua
função é essencial no sentido de contribuir para a desocultar as relações
materiais de trabalho e as circunstâncias em que ocorre o sinistro. Os impactos
deste processo nos resultados indemnizatórios não podem ser omitidos. É,
igualmente, importante que as Faculdades de Direito confiram atenção à
sinistralidade laboral no campo do direito do trabalho e que o CEJ, por sua vez,
assegure formação crítica e de qualidade aos magistrados.

Assim, numa área que facilmente se presta à automatização dos


procedimentos, à desvinculação dos tribunais da realidade material das
relações de trabalho e da vitimação corporal, e à relativização de direitos
fundamentais como a integridade física, seria exigível uma maior pró-actividade
por parte do Ministério Público. A cultura judicial técnico-burocrática não
permite alcançar a qualidade da justiça indemnizatória. É importante
aproximar os magistrados do sinistrado e da sua realidade familiar, bem como
do contexto socioespacial em que se verificou o acidente, para melhor
compreender os contornos da sua ocorrência. Seria essencial que os
magistrados conhecessem presencialmente os locais de trabalho para melhor
colectarem dados, investigarem e compreenderem as dinâmicas da produção

438 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Conclusões e Recomendações

de acidentes e as relações laborais que efectivamente existem (salário


declarado, falso trabalho independente, autoritarismo laboral, etc.).

A inclusão dos acidentes de trabalho (em incapacidades inferiores a


20%) no sistema de mediação laboral, retirando-os dos tribunais de trabalho e
eliminando o patrocínio do Ministério Público, é uma opção muito
preocupante. Embora a celeridade seja uma mais-valia assinalável para uma
boa reparação, são elevados os riscos a que este sistema expõe os
sinistrados. A conciliação repressiva e a invisibilização de irregularidades são
alguns dos efeitos nocivos que este sistema pode introduzir na reparação dos
acidentes de trabalho.

Porém, não é menos verdade que a morosidade na indemnização dos


danos corporais é um fenómeno com grande impacto na vida dos sinistrados e,
com especial destaque, nos acidentes rodoviários. No que concerne à
morosidade provocada pela demora da resposta pericial, é importante agilizar
canais de comunicação entre as diferentes entidades que se relacionam nesta
matéria, designadamente hospitais públicos ou clínicas das seguradoras.
Assim, às solicitações do tribunal e do INML relativamente à documentação
clínica do sinistrado e, em particular aos exames médicos realizados, aquelas
entidades deveria ser obrigadas a responder com a máxima prontidão, sob
pena de poderem vir a ser sancionadas. Outra solução para combater esta
causa de morosidade seria consagrar expressamente a abertura de todos os
registos clínicos na posse das seguradoras aos sinistrados. Note-se que este é,
de facto, um dos grandes motivos da morosidade e que, portanto, tem de ser
corrigido. O recurso a juntas de especialidade médica é também um outro
processo muito moroso, que requer forçosamente maior celeridade. O facto de
se tratar de danos corporais e de um direito fundamental como a integridade
física obriga a maior investimento público neste domínio de forma a combater
estes obstáculos à celeridade. Neste ponto convém salientar que, nesta
matéria da reparação, estamos perante um impacto desigual da ineficiência do

439 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Conclusões e Recomendações

funcionamento dos tribunais, sentida de forma particularmente injusta: estamos


perante aquilo que pode ser chamado de “picos de injustiça”.

Mas não são apenas estas as causas da morosidade processual. As


estratégias da advocacia jogam também com o prolongamento dos processos.
A introdução de novos mecanismos penalizadores do alongamento dos
processos poderia ser útil à celeridade pretendida. A isto acresce o recurso
sistemático a modelos tipificados de petições iniciais sobre prejuízos corporais,
reproduzindo, muitas vezes, conteúdos gerais e abstractos em detrimento de
uma defesa do sinistrado mais assertiva e, por consequência, com melhores
resultados. Assim, seria importante formar e preparar a advocacia, tanto do
ponto vista técnico, designadamente no que toca à formulação de pedidos
indemnizatórios que atendam à singularidade das vítimas e que sejam capazes
de viabilizar dimensões importantes do dano, da perda e do impacto corporal
do acidente, como do ponto de vista deontológico para que os profissionais da
classe percebam as implicações sociais das matérias aqui em causa.

Ainda no que toca aos operadores que co-determinam processo


reparatório, e à semelhança de outros estudos sobre as profissões jurídicas,
seria interessante conhecer a influência do perfil, da atitude e do quadro de
valores do perito médico-legal nas práticas e resultados profissionais. A
avaliação de um corpo lesado é um processo delicado que merece uma
profunda reflexão crítica de natureza ética, cívica e científica.

No quadro particular das juntas médicas, as discrepâncias entre as


propostas periciais iniciais e os valores saídos das juntas médicas são
reveladoras de inconsistência pericial. É importante atender a este problema e
encontrar mecanismos de controlo consequentes e, por consequência, fazer da
avaliação pericial no um processo em que haja uma maior atenção às
especificidades do sinistrado.

Destacamos igualmente que, embora a expansão do INML tenha


ampliado as garantias de independência dos peritos médico-legais, persistem

440 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Conclusões e Recomendações

fenómenos de peritos que servem o sinistrado e simultaneamente a


Companhia de Seguros. Os peritos médico-legais não podem, em alguma
circunstância, peritar um sinistrado e simultaneamente trabalhar para
Companhias de Seguros. A exclusividade é, nesta matéria, crucial e quando o
tribunal nomeia o perito do sinistrado deverá assegurar-se de que não incorre
neste risco.

Nesta temática da pericilaidade acresce salientar que o exclusivismo dos


saberes médico-legais no auxílio da decisão judicial sobre as incapacidades
corporais está a impedir apreciação mais ampla dos prejuízos corporais mais
insondáveis. É, por isso, importante o recurso a outros e diferentes saberes
que permitam uma decisão judicial esclarecida e efectivamente reparadora,
ultrapassando assim a clinalização da peritagem e ampliando o cânone
pericial. Para ser possível ultrapassar o processo de pericialização da decisão
será necessário repensar as tendências para a automatização das
decisões judiciais, sobretudo no quadro da sinistralidade laboral e nos grupos
sociais com menor capital jurídico e económico. Confinadas à indicação pericial
da incapacidade e às bases salariais do trabalhador, a lei e a prática reservam
escassa margem de manobra à livre apreciação dos danos e a uma efectiva
reparação do sinistrado. Uma outra medida a adoptar prende-se com a
actuação do Instituto de Seguros de Portugal. Uma maior pró-actividade na
fiscalização dos cuidados prestados pelas Companhias de Seguros aos
sinistrados seria essencial. Não basta uma provedoria que aja por reacção. É
importante a criação de mecanismos que protejam o sinistrado laboral e
rodoviário e acautelem os seus direitos, num contexto de particular debilidade
física e vulnerabilidade pessoal, nomeadamente através dos seguintes
vectores.

Todas estas fragilidades do sinistrados perante e na relação com os


demais operadores se acentuam porque vivemos numa sociedade em que a
debilidade das organizações de protecção da vítimas é notória. Assim seria

441 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


Conclusões e Recomendações

importante robustecer estas dinâmicas da sociedade civil, para, desta forma,


melhor se poder travar uma batalha pela melhoria da reparação.

Face ao exposto, será importante sublinhar que as metodologias e os


resultados emergentes deste projecto de investigação se revelaram
particularmente complexos, sobretudo porque se adoptou uma linha de
pesquisa baseada na identificação do invisível, não por não existir, mas por
escapar à métrica do sistema institucional mais rotinizado. Trata-se, assim, de
um estudo que deve funcionar como “despertador de consciência”, sendo
importante considerar os resultados apresentados em novas soluções
legislativas que venham a surgir.

A responsabilidade do legislador, com as suas diferentes faces políticas


e ideológicas, na construção de políticas públicas que protejam os direitos
fundamentais das vítimas e assegurem a qualidade reparatória da
incapacidade e do dano corporal, devia ser mais democraticamente assumida.
A gravidade deste problema e a extrema vulnerabilidade dos trabalhadores
mais expostos ao risco – verdadeiros cidadãos de segunda – não se
compadece com um processo legislativo ligeiro e negligente perante dramas
sociais, na grande parte das vezes, invisíveis, atomizados e destituídos de
interlocução política.

Por outro lado, as tendências de recuo do Estado Social, alimentadas


pelo pensamento hegemónico neoliberal e dando sinais de captura do direito
e da ciência por actores poderosos e interesses lesivos do bem comum,
constituem fortes entraves a uma nova concepção de cidadania e democracia
que permita o aprofundamento do papel das instituições públicas (políticas e
judiciais) na correcção das desigualdades e na neutralização da vulnerabilidade
social. Disputar esse regime de verdade e reconstruir uma sociedadade
reparadora, inclusiva e solidária não é um chavão contra-hegemónico, antes a
condição para a emergência de uma efectiva justiça social e corporal.

442 A INDEMNIZAÇÃO DA VIDA E DO CORPO NA LEI E NAS DECISÕES JUDICIAIS


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