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2010
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO
Hipóteses .......................................................................................................... 4
Metodologia ...................................................................................................... 6
Apresentação do Relatório .............................................................................. 12
Introdução....................................................................................................... 245
....................................................................................................................... 288
LISTA DE ACRÓNIMOS
INTRODUÇÃO
Introdução
INTRODUÇÃO
Este projecto de investigação tem como objecto central um tema que não
tem sido estudado em Portugal, de uma perspectiva multidisciplinar, englobando
aspectos económicos, sociais e culturais do corpo e da vida na lei e nas
decisões judiciais.
Hipóteses
Metodologia
1
O focus group, embora encontre as suas raízes históricas em Robert King Merton, no quadro de
um projecto coordenado por Paul Lazarsfeld, em 1941, na Universidade de Colômbia, é uma
forma de recolha de dados que só a partir da década de 1980 se desenvolveu mais intensamente
como importante estratégia de pesquisa por parte dos cientistas sociais.
Para além disso, tirámos ainda partido dos discursos e das conclusões do
Colóquio Final deste projecto, intitulado Corpo, Justiça e Reparação, e que teve
lugar no CES-Lisboa, no dia 1 de Julho de 2010. Os conteúdos apresentados e
problematizados condensam muito daquilo que foram os principais argumentos,
Apresentação do Relatório
Este relatório é composto por duas partes. A primeira (Capítulo 1), Estado,
Direito e Sinistralidade: para uma justiça corporal, tem como objectivo apresentar
e discutir, num primeiro momento, as novas configurações da desprotecção e da
vulnerabilidade social, à luz das tendências precarizadoras das sociedades
contemporênas. O risco e a sinistralidade surgem, assim, como um desafio à
refundação social do Estado e uma interpelação ao papel emancipatório do
direito. Num segundo momento (Capítulo 2), é desenhado e analisado o quadro
legal, substantivo e processual, que enforma as dinâmicas reparatórias do dano
corporal, atendendo aos diferentes domínios jurídicos que regulação a
indemnização: civil, laboral e penal.
CAPÍTULO 1
ESTADO, RISCO E SINISTRALIDADE NAS
SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS:
UMA PERSPECTIVA CRÍTICA
Estado, Risco e Sinistralidade nas Sociedades Contemporâneas: Uma Perspectiva Crítica
1
Directiva da Comissão Europeia 89/391/CEE, Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de Setembro,
acordo unânime de concertação social em 1991 e a criação do Instituto para o
3
Sobre o resgate do modelo de bem-estar como novo radicalismo para a transformação social,
cf. Judt, Tony (2010), Ill Fares the Land. Penguin Press HC.
4
Sobre as tensões negativas entre a crítica expressiva e a crítica social, cf. Boltanski e
Chiapello (2001).
5
Cf. Fascismo societal em Santos (2002).
6
Veja-se a adopção de uma Estratégia de Emprego (OCDE) e não de uma política de emprego
constitui um importante marcador discursivo que remete para a incerteza e para o
constrangimento intrínsecos à acção política, demitindo-a da sua possibilidade e legitimidade
de acção dobre as dinâmicas económicas, sobretudo quando regressivas.
7
Cf. as posições recentes do Conselho Económico e Social, sob a coordenação de Alfredo
Bruto da Costa.
8
Cf. O Nascimento da biopolítica de Michel Foucault (2010). O prefácio da tradução
portuguesa, da autoria de Bruno Maçães, ao contrário daquilo que são as leituras críticas do
património conceptual foucaultiano, exibe uma deriva celebratória do mercado manifestamente
capciosa e sociologicamente discutível.
aos capitais próprios foi de 6%9. Neste quadro de ganhos, a despesa com as
indemnizações por acidentes de trabalho rondaram, em 2006, os 5 milhões de
euros10 (Freire, 2008: 120).
9
Note-se, porém, que, segundo o presidente do ISP, Fernando Nogueira, “o ano passado
[2008] foi, como já se calculava, difícil para os operadores, especialmente na área Não Vida,
que teve uma evolução negativa [os dois principais ramos do negócio Não Vida são o seguro
Automóvel e os Acidentes de Trabalho]”.
10
Nesse sentido: “536 174 Apólices de seguro directo de trabalhadores por conta de outrem e
mais de 179 325 trabalhadores independentes; um total de 1 452 704 pessoas cobertas; e 286
319 sinistros participados” (2008: 120).
11
A cobertura contratual colectiva, tradicionalmente elevada mas em assinalável degradação,
reduziu-se a partir de 2004 mas manteve o predomínio sectorial (Livro Verde sobre as
Relações Laborais).
12
Se é possível constatar a existência de uma evolução indexada do crescimento do emprego
ao crescimento do PIB, há no entanto variações conjunturais importantes no progresso da
estrutura de emprego.
13
De acordo com o Relatório da UE The Working Poor in the European Union, os países do sul
da Europa registam, como seria de prever, a maior percentagem de trabalhadores pobres,
sendo que o caso português apresenta 6% de pobres no total dos assalariados (em 1999) e
lidera no número de mulheres pobres.
14
A generalidade das convenções tem referências genéricas ao dever dos empregadores
assegurarem aspectos preventivos, bem como o dos trabalhadores cumprirem as disposições
legais, com incidência sobre equipamentos de protecção individual, medidas especiais em
relação a substâncias ou agentes com particular perigosidade, exames de saúde, medidas de
higiene, primeiros socorros e prevenção de alcoolemia em 43 convenções. Quanto às
estruturas de prevenção, destaca-se a existência de serviços e encarregados de saúde, de
segurança e higiene, bem como mecanismos de informação, consulta e formação.
Relativamente aos quadros legais que regulam as obrigações empresariais na organização dos
serviços de segurança e saúde no trabalho, cf. Directiva 89/391/CEE e Lei n.º102/2009, de 10
de Setembro.
15
Neste sentido um dos nossos entrevistados referiu o seguinte: “Os cursos de higiene e
segurança de trabalho (CAP para licenciados) não são consistentes. Se em grandes obras não
são estes profissionais os contratados, em pequenas obras aparece um licenciado em Latim
com o CAP 5 que é o responsável. A complexidade técnica de um pontão não é diferente da
16
De acordo com um dos nossos entrevistados (Ent. 32), soterramentos e quedas em altura
ocorrem sobretudo em edifícios de pequeno porte.
17
Portaria n.º17 668, de 11 de Abril.
18
No desenvolvimento das respectivas actividades profissionais, os trabalhadores encontram-
se expostos a determinados factores de risco que podem ter influência, quer na saúde, quer na
integridade física. Tratando-se da execução de determinadas tarefas, a exposição aos
respectivos riscos profissionais poderá ter consequências mais gravosas, pelo que, nestes
casos, haverá que abordar a protecção dos trabalhadores relativamente aos factores de risco
de forma ainda mais aprofundada. A Lei nº 102/2009, de 10 de Setembro considera de risco
elevado as seguintes actividades: trabalhos em obras de construção, escavação,
movimentação de terras, túneis, com riscos de quedas de altura ou de soterramento,
demolições e intervenção em ferrovias e rodovias sem interrupção de tráfego; actividades de
indústrias extractivas; trabalho hiperbárico; actividades que envolvam a utilização ou
armazenagem de quantidades significativas de produtos químicos perigosos susceptíveis de
provocar acidentes graves; fabrico, transporte e utilização de explosivos e pirotecnia;
actividades de indústria siderúrgica e construção naval; actividades que envolvam o contacto
com correntes eléctricas de média e alta tensão; produção e transporte de gases comprimidos,
liquefeitos ou dissolvidos, ou a utilização significativa dos mesmos; actividades que impliquem
a exposição a radiações ionizantes; actividades que impliquem a exposição a agentes
cancerígenos, mutagénicos ou tóxicos para a reprodução; actividades que impliquem a
exposição a agentes biológicos do grupo 3 ou 4; trabalhos que envolvam risco de silicose.
19
Neste sentido vai também o nosso trabalho de campo qualitativo (Ent. 25).
20
Dados mais recentes da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) dão-nos números
mais actualizados sobre os acidentes que foram objecto de inquérito, embora sejam, por esse
motivo, excessivamente parcelares.
21
Os distritos do Porto, Lisboa, Braga e Aveiro registaram, em 2006, 50 304, 42 306, 22 067 e
27 620 acidentes de trabalho, respectivamente, perfazendo, em conjunto, 60% do total de
sinistros ocorridos nesse ano.
corpo geradores mais frequentes da lesão). Lesões nas mãos, braços, pernas
e pés são aquelas que custam sistematicamente mais dias ao trabalho: ao
todo, terão sido 4828136 no ano de 2006. Finalmente, distribuindo as perdas
por escalões diários, é desde logo assinalável que 33% dos acidentes de
trabalho comprometem mais se seis meses, o que é um bom testemunho da
sua gravidade ou da dificuldade/morosidade verificada na recuperação
funcional do sinistrado.
Reino Unido, entre 5% a 10% do lucro bruto de toda a actividade comercial era
afecto à cobertura dos custos da sinistralidade laboral. E como recupera
Ricardo Almeida na sua Análise Económica da Sinistralidade Laboral (2007),
revela-se cada vez mais
contemporâneas:
16000
14000
12000
10000
8000
6000
4000
2000
0
Masculino Feminino
Fonte: DJPJ/OPJ
Fonte: DJPJ/OPJ
Fonte: DJPJ/OPJ
22
Como mais à frente discutiremos, não será, neste sentido, exclusivamente por motivos de
gravidade que o sistema de mediação laboral irá abranger os acidentes de trabalho, mas
igualmente devido ao peso destes processos na actividade judicial.
Fonte: DJPJ/OPJ
Fonte: DJPJ/OPJ
Fonte: DJPJ/OPJ
23
O sistema de notação apenas regista um objecto de acção, sendo que muitas vezes são
vários os que transitam para a fase contenciosa. Assim, esta estatística é uma fonte potencial
de omissão de dados relativamente a objectos de acção que efectivamente são formulados e
resolvidos em sede contenciosa. Por outro lado, estes indicadores de natureza judicial não são
necessária nem inteiramente fiéis à realidade social: o desempenho dos operadores é
fundamental à emergência e visibilização de anomalias e irregularidades sociojurídicas, nem
sempre relevadas nos tribunais. O caso do rendimento formal e material do sinistrado é
particularmente ilustrativo desta tensão, pelo que assistimos a uma dupla subrepresentação:
estatística e sociojurídica.
Fonte: DGPJ/OPJ
Fonte: DJPJ/OPJ
Fonte: DJPJ/OPJ
Fonte: DJPJ/OPJ
Fonte: DGPJ/OPJ
Fonte: DGJP/OPJ
24
Seria importante proceder a uma análise estatística que nos permitesse compreender quais
as variáveis mais influentes nos padrões indemnizatórios, além daquelas que são juridicamente
atendidas e ponderadas: idade, rendimento e incapacidade. Porém, a variabilidade de
rendimento nas mesmas categorias profissionais e a agregação indiferenciada (pensões anuais
e pensões remidas) dos montantes indemnizatórios atribuídos é impeditiva desse exercício
analítico.
Fonte: DGPJ/OPJ
Fonte: DGPJ/OPJ
Se, em 1991, 96% dos processos eram patrocinados pelo MP, em 2006
encontramos valores inferiores a 90%. O ano de 2002 exibe uma quebra
abrupta do número de processos.
Fonte: OPJ
São cada vez menos os processos com duração inferior a 3 meses (de
21% em 2004 passamos para cerca de 12% em 2006) e regista-se um
aumento generalizado do peso dos processos cuja duração se alarga até um
ano, perfazendo um total de cerca de três quartos do universo global de
processos.
25
Cf. Livro Branco sobre os Transportes (2001), a partir do qual é proposto o objectivo de se
reduzir para metade o número de vítimas mortais nas estradas europeias até 2010. Aprovado
pelo Parlamento Europeu e por todos os Estados-Membros, foi adoptado, em 2003, o
Programa de Acção Europeu para a Segurança Rodoviária que prevê uma série de medidas
concretas para atingir esse objectivo. O princípio da responsabilidade partilhada, isto é, o
envolvimento de diferentes actores na prossecução dos objectivos preventivos da sinistralidade
rodoviária é veiculado pela Carta Europeia da Segurança Rodoviária, descentrando o papel do
Estado e alargando a responsabilidade às empresas e aos cidadãos: “Não cabe somente ao
Estado civilizar as estradas, mas a toda a sociedade civil, com a intervenção activa de
cidadãos e empresas.” (APS, 2007).
“Esta contenção dos custos tem sido bem mais modesta do que a redução dos
acidentes e a explicação reside no acréscimo dos custos médios. Na realidade,
constata-se que os respectivos custos médios têm registado um acréscimo
anual relativamente elevado, que nos últimos anos terá excedido, em média, os
4% e que tem sido bastante mais vincado (próximo dos 10%) na componente
dos danos corporais. Em consequência, os custos exclusivamente de danos
corporais (indemnizações por danos patrimoniais e morais, despesas médicas
e outras despesas) representam já mais de 40% do custo total da
Responsabilidade Civil, quando apenas 7% do número de acidentes totais
envolve danos corporais (incluindo atropelamentos).” (APS, 2007)
26
Cf. Relatório das Estradas de Portugal.
27
Ainda assim, a moldura penal abstracta para o homicídio negligente – em que podemos
incluir a delinquência rodoviária – poderá ir até aos 3 anos de prisão ou 5 em caso de
negligência grosseira, sendo que em França e no Reino Unido encontramos um máximo de 10
anos.
28
De acordo com a Associação Portuguesa de Seguradores, “o compromisso assumido pelos
Estados-Membros de conferir prioridade à segurança rodoviária para alcançar os objectivos
traçados pela Comissão Europeia tem vindo a dar os seus frutos. No entanto, e enquanto
existir uma só vítima, é essencial continuar a implementar medidas que visem: (i) incentivar
uma condução melhor e mais segura, (ii) aumentar a segurança dos veículos, promovendo a
investigação no domínio da segurança e (iii) melhorar as infra-estruturas rodoviárias,
nomeadamente reduzindo os chamados "pontos negros"“ (APS, 2007).
29
Condições meteorológicas que envolvam granizo, neve, nevoeiro, nuvens de fumo ou vento
forte encontram-se associadas, de acordo com o Observatório de Segurança Rodoviária, a
índices de gravidade bastante superiores à média (3,2 contra 2,2 em situação de bom tempo e
1,8 com precipitação de chuva).
30
A vitimação mortal por atropelamento, tanto dentro como fora das localidades, exibe valores
mais significativos quando acontece em plena faixa de rodagem (28 mortos em 2009).
31
Motivo de desresponsabilização das seguradoras.
32
Consideramos, todavia, que a distinção operada por Anthony Giddens (1999: 4) entre riscos
externos – “events that may strike individuals unexpectedly but that happen regularly enough
and often enough in a whole population of people to be broadly predictable, and so insurable” –
e riscos manufacturados – “created by the progression of human development, especially by
the progression of science and technology” – poderá padecer de insuficiência ou de um viés
analítico, sobretudo quando conformados com aquilo que tem vindo a ser designado como
velhos e novos riscos profissionais. As mudanças ocorridas na organização do trabalho e as
preocupações com a qualidade do emprego, a saúde e as condições de vida suscitam novos
temas, motivações e fundamentos indemnizatórios no quadro das relações laborais,
correspondendo, em grande medida, às noções de risco diferenciadas pelo autor. No entanto,
como alerta António Casimiro Ferreira, “alguns dos “novos riscos”correspondem, em bom rigor,
a tarefas antigas de produção industrial” (2005a: 374), o que introduz um acréscimo de
complexidade sociológica na caracterização dessa aparente dicotomia.
33
Neste sentido: “O princípio de risco profissional aplicado em França pela lei de 9 de Abril de
1898 passou a fazer parte, por avanços sucessivos, da legislação laboral da quase totalidade
dos países industriais no começo do século XX. Raramente um princípio social conseguiu
impor-se com tal força e obter, em tão pouco tempo, uma tão grande adesão” (Duclos apud
Oliveira, 1998: 77)
34
Em Portugal, a Lei n.º83, de 24/07/1913 é indiciária das primeiras transformações no
enquadramento jus laboral em matéria de acidentes de trabalho, emancipando-o das normas
reguladoras da responsabilidade civil baseada no conceito de culpa. Nesse sentido, a sua
abrangência chegava a todas as empresas “que exploram uma indústria”, aplicando-se com
uma única excepção: caso “as leis vigentes e os regulamentos especiais não determina[ssem]
indemnizações superiores”. Para além dos montantes indemnizatórios, estabelecia o direito do
sinistrado a assistência clínica e medicamentosa. De forma a operacionalizar este novo
sistema, abre desde logo a porta à transferência da responsabilidade patronal para mútuas de
patrões e companhias de seguros (no caso de pensões e tratamentos clínicos) e para
associações de socorros mútuos em caso de incapacidade temporária (Oliveira, 1998: 82).
35
Cf. “O seguro social obrigatório em Portugal (1919-1928): acção e limites de um Estado
previdente”, onde se procura dar conta da criação e do desenvolvimento de um sistema de
seguros sociais obrigatórios ao longo da I República, destacando o papel do legado mutualista
na edificação de práticas e racionalidades seguradoras. É ainda discutida a oposição política
movida pelos ideólogos do regime de previdência social da fase inicial do Estado Novo.
(apud Oliveira, 1998: 76). No fundo, como conclui Robert Castel, “num contexto
profundamente transformado, o seguro obrigatório assumirá a ambição de se
tornar o princípio de uma cobertura generalizada contra os riscos sociais”
(Castel, 1998: 410).
36
Cf. Decreto n.º5637.
37
Devendo fazer o depósito antecipado das garantias e das reservas matemáticas das
pensões (à taxa de 4,5% sobre o valor do salário).
“No século XX, governos e instituições fizeram proliferar textos legais com o fim
de promover a igualdade entre todas as pessoas. Surgiram múltiplos
programas, políticas e estratégias para lograr a integração social daqueles que
apresentavam sequelas importantes de um dano corporal e a quem,
frequentemente, se chama deficientes. O associativismo destas pessoas e a
sua contestação contribuíram, também, para melhorar a consciência social
acerca das suas dificuldades” (1998: 26).
38
Em Portugal, encontramos em 1895 um programa de reformas assistenciais deduzido da
Doutrina Social da Igreja, que visa precisamente “tornar obrigatória a criação de caixas de
auxílio para casos de doença, velhice, acidentes, morte, chegando mesmo a prever que os
patrões cubram os custos de imobilização por doença ou acidente ligados ao trabalho”
(Volovitch, 1982: 1199). Porém, como argumenta André Getting, a organização de obras de
beneficência e de assistência (hospitais, hospícios, caixas de reforma, etc.) apoiadas na
caridade privada confrontaram-se com uma forte desconfiança dos operários (1963: 12).
Não terá sido, de resto, por acaso que a própria obra de Karl Marx 39 se
deteve analiticamente nas condições de trabalho, através do estudo de
relatórios inspectivos bem como documentação especializada sobre o tema. O
relatório oficial do inspector Léonard Horner, citado por Marx, é lapidar no que
toca o valor do corpo em contexto fabril:
39
A reflexão sobre a exploração e as condições de trabalho é sobretudo evidente quando de
analisam as características do trabalho por turnos, no primeiro volume d’O Capital.
“The evidence suggests that mineowners gave money to widows of victims “to
silence them… and to shut out their demands for compensation”. Victims of
nonfatal accidents frequently lost their jobs and were left destitute” (Dwyer,
1991: 28).
40
O pensamento taylorista constitui um marco organizacional decisivo do ponto de vista da
reestruturação das dinâmicas do trabalho industrial. Nesse sentido, as doenças, os acidentes e
a fadiga física não só ganhavam visibilidade na gestão organizacional como devem ser, de
alguma forma, planeados e contabilizados, dado o impacto negativo na produtividade.
41
É possível encontrar uma síntese das principais linhas de pensamento sobre este modelo de
intervenção social do Estado em Harris (2004, 15-27).
42
“A morte da infeliz criança que apenas contava com 13 anos foi um verdadeiro assassinato.
Assassinato pelo Estado não ter até hoje feito cumprir a lei publicada, de protecção às
mulheres e menores das fábricas. Assassinato pela ambição desmedida de explorar […] sem
se importar da saúde, da vida, da segurança daqueles que tressuam nas oficinas […]
Assassinato pela indiferença, estupidez, parvoíce e desleixo dos próprios operários” –
publicado sob o título “Mais uma vítima da exploração burguesa” em O Tecido, Lisboa, a 4 de
Outubro de 1896 (apud Mónica, 1982: 125).
43
De acordo com Jacques Doublet, os acidentes de trabalho constituíram o “primeiro risco que,
em França, como em outros países, foi objecto das preocupações do legislador” (1961: 180), e
portanto uma das primeiras causas de reacção e organização operária.
44
Decreto-Lei n.º408/79.
“O acidente era visto como um azar (tanto um azar do condutor lesante como
um azar da vítima – como costumava dizer-se “o acidente só não acontecia a
quem não andava na estrada”) tudo porque, como já tinha acontecido com as
vítimas laborais saídas da revolução industrial, os acidentes eram tido como o
preço inevitável e socialmente aceitável para a modernização do País”
(Figueiredo, 2010: 17)
45
Traduzido, por exemplo, na redução das exclusões e no aumento sucessivo dos capitais
mínimos obrigatórios.
46
Neste sentido: “no quadro então vigente e no âmbito dos sinistros com danos corporais nem
com recurso a um oráculo era possível prever-se com algum grau de segurança que
indemnização seria devida a um sinistrado» (Figueiredo, 2010: 18)
“In insurance the term designates neither an event nor a general kind of event
nor a general kind of event occurring in reality, but a specific mod of treatment
of certain events capable of happening to a group of individuals – or, more
exactly, to values or capitals possessed or represented by a collectivity of
individuals: that is to say, a population.” (1992: 199)
47
Se práticas diferentes produzem conhecimento diferente, também novas formas de
conhecimento constituem formas activas de produção de realidade social. Nesse sentido, a
actividade seguradora não apenas calcula como produz risco: “[it] makes risks appear where
each person had hitherto felt obliged to submit resignedly to the blows of fortune” (Ewald, 1992:
200).
48
Michel Foucault aponta como exemplo as instituições médicas, as caixas de auxílio, os
seguros (2002: 299), cunhando todo esse processo como bio-regulamentação pelo Estado
(2002: 298).
49
Para além disso, a função mediadora cumprida pelas companhias de seguros na relação
entre empregador e trabalhador é ainda um marcador moderno da despersonalização
progressiva da responsabilidade (Dias, 2001: 28; Dessertine, 1990), reflectindo os desígnios
weberianos de especialização e diferenciação funcional nas respostas sociais e institucionais
fornecidas à complexidade crescente dos problemas.
50
Também designada como teoria colectiva do risco, é um subproduto das ciências actuariais,
estudando a vulnerabilidade de um segurador à insolvência, com base em modelos
matemáticos e probabilísticos. Esta teoria permite a derivação e o cálculo de medidas
correlacionadas, incluindo a probabilidade da ruína final, a distribuição do excesso de um
segurador imediatamente antes da ruína, o défice na altura da ruína, entre outros aspectos.
Considera-se também como uma área de probabilidade aplicada, porque a maioria das
técnicas e das metodologias adoptadas na teoria da ruína são baseadas na aplicação de
processos estocásticos.
Porém, este modelo, ainda que útil à administração eficiente dos ganhos
e perdas e essencial ao exercício de custo-benefício para as opções e
estratégias empresariais, reproduz e fortalece uma concepção hegemónica do
risco, que, ao invés de explorar a sua produção sistémica e reagir aos seus
efeitos desiguais na sociedade, privilegia uma visão lucrativa, gestionária e
selectiva, que equipara a integridade física a um produto financeiro e que,
dentro das margens legais – de que, em bom rigor, é facticamente co-autor –
impede a qualificação dos processos reparatórios e invisibiliza aquilo que são
os dramas sociais excluídos da sua contabilidade. Não que isto retire
importância a muitas das contribuições fornecidas pelas novas teorias do risk
management (Areosa, 2003: 42) ou do disability management (Corbett, 2004;
Sousa, 2005), enquanto conjunto de princípios, métodos, técnicas, ferramentas
e procedimentos a adoptar no seio das empresas.
Aquilo que Brian J. Glenn (2000) designou por mito do actuário ilustra o
outro lado da força financeira do sistema segurador dominante, que é, de
alguma forma, a sua profunda falibilidade social. Um estudo conduzido nos
EUA sobre a amplitude da cobertura do seguro comprovou a incapacidade de
os métodos estatísticos e actuariais darem conta da existência de mecanismos
de exclusão que o próprio sistema não testa nem controla:
“The myth of the actuary is predicated on the economics literature that states
that insurers should be expected to provide coverage for any group that they
can write profitably. Thus, the current approach to regulation focuses mostly on
the actuarial data provided by companies, ensuring that rates are justified and
fair marketing. But fair marketing and justified rates are irrelevant if applicants
are not accepted for coverage due to criteria that arte never tested statistically,
nor approved by the polity.” (Glenn, 2000: 781)
51
Para uma concepção bio-psico-social do prejuízo corporal, cf. a Classificação Internacional
de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde.
ordens sociais que Boaventura de Sousa Santos tem vindo a designar por
fascismos societais, revestindo-se de diferentes contornos em função dos seus
mecanismos actuantes e da sua incidência social.
52
Veja-se o caso do Instituto de Seguros de Portugal.
“Por boas tarifas (de prémios) é preciso entender, não tarifas muito baratas,
nem tarifas exageradas, mas tarifas que se apliquem aos diversos riscos. [...]
Até aqui muito poucas companhias se preocuparam com a elaboração de
53
Neste sentido um dos nossos entrevistados disse o seguinte: “Eu tenho algumas reservas
sobre se os accionistas das seguradoras vão manter o interesse em continuar a explorar este
ramo se o legislador não tiver alguma cautela naquilo que anda a fazer.” (Ent.21)
54
Nomeadamente pelo facto de os seguros gerirem capitais alheios que lhe são confiados, dos
quais devem prestar contas.
CAPÍTULO 2
OS QUADROS LEGAIS DA INDEMNIZAÇÃO
DA VIDA E DO CORPO
Os Quadros Legais da Indemnização da Vida e do Corpo
A sua ilicitude;
55
Para além destas grandes directrizes constantes do artigo supramencionado, o legislador
deu, ainda, tratamento jurídico especial a alguns comportamentos antijurídicos que também
geram responsabilidade civil, nomeadamente, os factos ofensivos ao crédito ou ao bom nome
da pessoa (cf. artigo 484.º do CC), os conselhos, recomendações ou informações geradoras de
danos (cf. artigo 485.º do CC), ou as omissões (cf. artigo 486.º do CC).
56
Ou seja, violação de um direito de outrem ou a violação da lei que proteja interesses alheios.
57
A título exemplificativo podemos referir as situações de Acção Directa previstas no artigo
336.º do CC, as situações de legítima defesa previstas no artigo 337.º do CC, o Estado de
Necessidade previsto no artigo 339.º do CC, e as situações em que houve consentimento do
lesado previstas no artigo 340.º do CC.
58
Cf. Antunes Varela em anotação ao AC. do STJ de 26/03/1980.
59
Trata-se de uma conduta que, face às circunstâncias concretas, podia e devia ter sido
evitada, levando a que o agente tivesse agido de uma outra forma. Acresce que, para haver
culpa, temos que estar perante um agente imputável, dotado de discernimento (capacidade
intelectual e emotiva) e de certa liberdade de determinação (capacidade volitiva).
60
Quando o agente quis directamente realizar o facto ilícito e para tal representa determinado
efeito da sua conduta e quer que esse efeito se produza.
61
O agente, ainda que não querendo directamente o facto ilícito, previu-o como efeito
necessário da sua conduta.
62
O agente, ao actuar, não confiou em que o facto ilícito não se viesse a verificar.
63
Não sendo todavia necessário que se verifique a intenção de causar um dano. Basta,
apenas, que o agente tenha a consciência do prejuízo.
Situações em que haja danos causados por coisas ou animais (ou pelo
emprego destes) ou por actividades perigosas64 (cf. artigo 493.º do CC).
64
O carácter perigoso da actividade pode resultar da própria natureza da actividade ou da
natureza dos meios usados (cf. n.º 2 do artigo 504 do CC).
65
Prejuízo causado nos bens ou direitos existentes na titularidade do lesado à data da lesão.
66
Benefício que o lesado deixou de obter por causa da lesão mas a que ainda não tinha direito
a essa data.
67
Neste sentido: “Compreende-se que se alguém exerce uma actividade criadora de perigos
especiais possa responder pelos danos que ocasione a terceiros. Será como que uma
contrapartida das vantagens que aufere do exercício de tal actividade.” (Almeida Costa, 2001:
562).
pelo lesado, desde que este não tenha agido com culpa grave ou com dolo.”
(teoria da responsabilidade objectiva), (Antunes Varela, 2000: 523).
68
Nesse sentido “a tendência dos últimos tratadistas é toda orientada no sentido de ampliar o
domínio da responsabilidade fundada no risco e na prática de factos lícitos que, aproveitando a
determinadas pessoas, causem prejuízo a outrem” (Antunes Varela, 2000: 523).
69
A partir desta década passaram a coexistir dois regimes diferenciados: o rígido sistema
codificado da responsabilidade subjectivista e uma série de subsistemas imbuídos de um
escopo protector e direccionado para os lesado, predominantemente objectivista.
justo que recaísse sobre o trabalhador70. Numa segunda fase que coincide com
a chamada socialização do risco, foi-se mais longe e passou a defender-se
que, em determinados sectores, se deveria assegurar a indemnização ao
lesado, independentemente de culpa do agente71 72.
70
A este sector seguiu-se logicamente o sector dos acidentes de viação, defendendo-se que,
também aqui, se é o dono do veículo automóvel quem aproveita as vantagens da sua
utilização, então é sobre este que devem recair os riscos inerentes à sua utilização. E,
progressivamente, a tendência registada foi a de passar a defender-se o alargamento da
responsabilidade sem culpa a todos os utentes de coisas perigosas e em particular aos que
pela sua exploração ou utilização auferissem lucros ou vantagens.
71
E isto mesmo nos casos em que se desconhecesse o autor da lesão ou quando, sendo
conhecido, não tivesse meios suficientes para assegurar a reparação do dano. Para o efeito
avançou-se com a ideia da ampliação dos seguros sociais para, assim, se conseguir dar
resposta a estas situações de dever de indemnização.
72
O progressivo afastamento da regra da responsabilidade civil baseada na culpa foi
conseguido ao avançar por diversas direcções, sendo, aliás, algumas delas, bastantes subtis e
não assumidas como tal. A título de exemplo refira-se que, tanto em matéria de ónus da prova,
como no que respeita à percepção do nexo de causalidade adequada, se tem vindo a avançar
no sentido de aligeirar a sua demonstração por parte dos titulares do direito à indemnização.
Outra forma de conseguir o mesmo resultado é através do estabelecimento de presunções
legais de culpa.
referência de uma nova era”. Para este autor e no que em particular respeita ao
dano corporal, estamos a viver um momento de viragem em que, por força de
diferentes factores de perigosidade social, nos deparamos com a uma
imensidão de factores de compressão do direito à integridade física corpórea,
levando a uma incontestável “tendência de progressiva objectivação”.
2. O CORPO E O DIREITO
73
Segundo Almeida Costa, “ocorre quando uma pessoa deve reparar um dano sofrido por
outra. A lei faz surgir uma obrigação em que o responsável é devedor e o lesado o credor.
Trata-se, portanto, de uma obrigação que nasce directamente da lei e não da vontade das
partes, ainda que o responsável tenha querido causar o prejuízo” (2001: 473).
74
Sobre o concurso da responsabilidade contratual e da extracontratual ver Almeida Costa
(2001: 499). Esta problemática revela-se particularmente intricada quando a responsabilidade
emergente é médica. A título de exemplo, podemos referir o Acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa, de 22/03/2007. No sentido da tendência marcadamente contratual da
responsabilidade médica, ver “O problema da avaliação dos danos corporais”, in
Responsabilidade Civil dos Médicos, de Álvaro Dias; ou mesmo Responsabilidade Civil em
Instituições Privadas de Saúde: Problemas de Ilicitude e de Culpa, de Nuno Manuel Pinto
Oliveira.
75
De que constituem exemplo os direitos reais e, para o que aqui nos interessa, os direitos de
personalidade.
76
Segundo o prescrito pela designada Teoria da diferença.
77
Nos casos em que não haja dolo a indemnização pode ser fixada equitativamente e,
portanto, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que, o grau
de culpabilidade do agente, a situação económica do lesante e do lesado e as demais
circunstâncias do caso o justifiquem. Como exemplo destas “circunstâncias” costuma a
jurisprudência e a doutrina apontar a idade e o sexo da vítima, a natureza das suas
actividades, a possibilidade de melhoramento, de reeducação e de reclassificação.
lesado (cf. artigo 570.º do CC)78. Esta limitação é igualmente aplicável aos
casos de responsabilidade civil pelo risco (cf. artigo 499.º do CC), sendo,
todavia, controvertida a questão da aplicação desta limitação quando a
entidade responsável pela indemnização é uma seguradora79.
78
A este propósito, Sinde Monteiro (Reparação dos Danos Corporais em Portugal – A Lei e o
Futuro, in CJ, 1986, tomo 4, pág. 11), no que respeita em particular aos acidentes de viação,
considera que a atribuição de relevância jurídica a qualquer acto culposo do lesado é uma
posição obsoleta, sugerindo a adopção de princípios idênticos aos estabelecidos em sede de
reparação de acidentes de trabalho em que, por regra, apenas a culpa grave ou indesculpável
do lesado são susceptíveis de consideração.
79
A doutrina e jurisprudência dominantes têm vindo a defender que, nestes casos, apenas
deve relevar a situação económica do lesante (o segurado) e não a da seguradora para quem
se transferiu a responsabilidade.
80
Os prejuízos directos traduzem-se na perda, destruição ou danificação de um bem, o qual
tanto pode ser um objecto, um animal, ou uma parte do corpo lesado ou mesmo o próprio
direito à vida.
81
Estas correspondem ao custo de prestação dos serviços alheios necessários, quer para a
prestação de auxílio ou de assistência, quer para a eliminação de aspectos colaterais
decorrentes do acto ilícito, abrangendo realidades tão diversas como o reboque da viatura ou
as despesas com o funeral.
82
Neste sentido vai Conselheiro Sousa Dinis, num Estudo publicado na Colectânea de
Jurisprudência – Separata dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Ano IX, Tomo I,
2001.
83
Segundo o Conselheiro Sousa Dinis, nesse mesmo estudo, os ganhos cessantes
“correspondem à perda de possibilidade de ganhos concretos do lesado, incluindo-se na
categoria de lucros cessantes. Mas esta perda não deve ser confundida com a perda de
capacidade de trabalho, que é, nitidamente, um dano directo, que se pode aferir em função da
tabela nacional de incapacidades, nem com a perda da capacidade de ganho que é o efeito
danoso, de natureza temporária ou definitiva, que resulta para o ofendido do facto de ter sofrido
uma dada lesão impeditiva da obtenção normal de determinados proventos certos, em regra
até ao momento da reforma ou da cessação da actividade como paga do seu trabalho, e que
se inclui na categoria dos prejuízos directos, embora que com uma importante vertente de
danos futuros, nem ainda com a perda efectiva de proventos futuros de natureza individual,
ainda que em vias de concretização, que se inclui na categoria de lucros cessantes; nem com a
perda que possa resultar do eventual desaparecimento de uma situação de trabalho, produtora
ou potencialmente produtora de ganhos, que também se inclui na categoria de lucros
cessantes‖.
84
Todavia, a perda de rendimentos certos e regulares ou eventuais que possuam natureza
ilegítima ou sejam contrários ao direito não se encontram, como refere Armando Braga (2005:
226), incluídos na esfera ressarcitória.
85
Ainda segundo Sousa Dinis, no estudo acima referido, os danos futuros compreendem “os
prejuízos que, em termos de causalidade adequada, resultam para o lesado (ou resultarão de
acordo com os dados previsíveis da experiência comum) em consequência do acto ilícito que
foi obrigado a sofrer, ou, para os chamados lesados em 2.º grau, da ocorrência da morte do
ofendido em resultado de tal acto ilícito, e ainda os que poderiam resultar de uma hipotética
manutenção de uma situação produtora de ganhos durante um tempo de vida mais ou menos
prolongado, e que poderá corresponder, nalguns casos, ao tempo de vida laboral útil do
lesado, e compreendem ainda, determinadas despesas certas, mas que só se concretizarão
em tempo incerto”.
86
Abarcando a capacidade de gozo e a capacidade de exercício dos direitos legalmente
consagrados.
87
Por danos morais ou prejuízos de ordem não patrimonial o Conselheiro Sousa Dinis, no já
mencionado estudo, entende os “prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque
atingem bens que não integram o património do lesado”, referindo, ainda, que estes “não
devem confundir-se com os danos patrimoniais indirectos, isto é, aqueles danos morais que se
repercutem no património do lesado, como o desgosto que se reflecte na capacidade de ganho
diminuindo-a (pois esta constitui um bem redutível a uma soma pecuniária)”.
88
Na opinião do Professor Antunes Varela (in Das Obrigações em Geral, 1.º, pág. 628, 9.º
Edição, Almedina), a gravidade deve ser apreciada objectivamente.
Por sua vez, o n.º 3 deste normativo do artigo 496.º do CC, remete a
fixação do montante indemnizatório por estes danos para juízos de equidade,
haja culpa ou dolo, devendo-se, para tanto, atender ao disposto no já referido
artigo 494.º. Ou seja, ao grau de culpabilidade do agente, à situação
económica deste e do lesado, e, ainda, a quaisquer outras circunstâncias. Os
danos não patrimoniais, por não atingirem o património do lesado, fazem com
que se defenda que a obrigação de os ressarcir tenha uma natureza mais
compensatória do que indemnizatória, sem, contudo, esquecer que, como
89
Cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1.º, pág. 630, 9.º Edição, Almedina.
90
Onde se lê: “no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais
sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do
número anterior”.
91
Cf. AC. do STJ de 17/3/71, in BMJ 505, pág. 150.
92
Cf. “A Vida, a Morte e sua Indemnização”, in BMJ, 365, pág. 15.
93
Cf. Ac. TRE de 01-04-2008.
seguinte ao do sinistro‖.
94
Para este referencial indemnizatório também em muito contribuiu a decisão do Conselho de
Ministros no conhecido processo da ponte Entre-os-Rios. De acordo com essa decisão,
recorrentemente mencionada na jurisprudência como exemplar, os familiares das vítimas
desse acidente receberam um quantitativo indemnizatório próximo dos 50.000,00 euros
relativamente ao dano morte.
95
Neste sentido ver o Ac. STJ de 08-03-2005, da 1.ª Secção, onde se fixaram €100.000 pelos
danos não patrimoniais de uma jovem de 18 anos de idade incapaz para qualquer tipo de
trabalho e o Ac. STJ de 08-03-2005da 6.ª Secção, onde se fixou, numa situação de
tetraparesia de um lesado com 27 anos uma compensação em 250.000 €, “porque se a vida
humana é o bem supremo, a situação do autor pode considerar-se uma contínua e diária perda
daquele bem, prolongando-se tal calvário por toda a sua vida”.
96
Síntese sobre este debate em “O dano da morte. Reflexões sobre o artigo 496.º do CC” de
Francisco F. Garcia. Ver, igualmente, Leite de Campos (1992: 60), “A reparação do dano da
morte: prejuízo sem reparação possível?‖, bem como o Acórdão do STJ de 22/10/2001 (relator
Azevedo Ramos), disponível em www.dgsi.pt.
Como acima referimos, para além do dano morte, temos, ainda, o dano
sofrido pela vítima antes de morrer. Aqui o montante indemnizatório
depende precisamente do sofrimento e da respectiva duração, da maior ou
menor consciência da vítima sobre o seu estado e da aproximação da morte.
No que respeita ao dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte
dever-se-á considerar o grau de parentesco dos familiares, o relacionamento
entre eles, se a morte foi sentida. Estes critérios são importantes porque o que
se pretende aqui compensar é a angústia, a tristeza e a falta sentida pelos
familiares.
morte e que, por vezes, os familiares mais próximos sofrem danos morais bem
mais intensos do que os sofridos pelo próprio lesado97. Ou seja, a questão
prende-se com a interpretação que deve fazer-se do n.º 3 do artigo 496.º do
CC e que acaba por dividir tanto a nossa doutrina, como a nossa
jurisprudência, havendo quem lhe atribuía uma maior extensão interpretativa
por oposição aos que não conseguem conceber que aquele normativo permita
abranger as situações em que não há morte da vítima.
97
Neste sentido Rosa Maria Fernandes, “Ressarcibilidade dos Danos não Patrimoniais a
Familiares de Lesados Profundos”, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito,
2004.
agressão (crime). Mas antes de prosseguirmos podemos, desde já, alertar para
o facto de que, quer em Portugal, quer mesmo na grande maioria dos países
europeus, o quadro legislativo referente ao dano corporal e à sua reparação
constituir um verdadeiro mosaico de textos jurídicos que acabam por cada um
deles, isoladamente, obedecer a uma lógica própria e diferente das restantes,
sendo que tal resulta da opção política e legislativa de fazer depender o quadro
legal da reparação do dano em função da sua origem.
98
Como decorrerá da nossa exposição, a aplicação dos quadros legais que temos levam a que
a vítima de um acidente de trabalho apenas tenha direito a ser indemnizado pelos danos
patrimoniais e não na sua totalidade, e a vítima que não se encontre a trabalhar mas que sofra
o mesmo acidente de viação poderá ser indemnizado pela totalidade dos danos patrimoniais
sofridos e, ainda pelos danos não patrimoniais.
99
Marcelo Caetano rebaptiza estrategicamente o regime ao designá-lo por Estado Social,
mobilizando uma retórica política adequada aos parâmetros desenvolvimentistas e simulando o
resultado de um pacto social que, nos seus termos liberais ou keynesianos, nunca existira nem
viria a existir.
100
Através da alínea f) do nº 1 do artigo 59º da Constituição da República Portuguesa (CRP),
introduzido pela revisão constitucional de 1997.
101
Complementada com o Decreto-Lei n.º143/99, de 30 de Abril, que regulamenta a reparação
de danos emergentes dos acidentes de trabalho.
Acresce que, não obstante o artigo 186.º deste último diploma legal (Lei
n.º 98/2009, de 04 de Setembro) vir revogar todos os anteriores diplomas
legais aplicáveis até então102, a verdade é que, segundo a norma que estipula
a sua aplicação no tempo, o disposto no seu Capítulo II (Acidentes de
Trabalho) apenas se aplica a acidentes de trabalho ocorridos após a entrada
em vigor da referida lei, ou seja, a acidentes que tenham ocorrido após o dia 01
de Janeiro de 2010103. Portanto e uma vez que actualmente ainda se continua
a aplicar Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro aos acidentes ocorridos até ao
passado dia 01 de Janeiro de 2010104 passamos à sua análise e só num
segundo momento é que nos debruçaremos sobre os artigos do Código de
Trabalho (CT) e do respectivo diploma regulamentar (Lei n.º 98/2009, de 04 de
Setembro).
102
Leia-se, a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, o Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril que
regulamenta a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, no que respeita à reparação de danos
emergentes de acidentes de trabalho; e, ainda, o Decreto-Lei n.º 248/99, de 2 de Julho que
procede à reformulação e aperfeiçoamento global da regulamentação das doenças
profissionais em conformidade com o novo regime jurídico aprovado pela Lei n.º 100/97, de 13
de Setembro, e no desenvolvimento do regime previsto na Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto.
103
Cf. n.º 1 do artigo 187.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.
104
Esta opção legislativa, como mais à frente melhor veremos, tem levantado alguns
problemas em matéria de revisão de incapacidade.
Âmbito de aplicação
105
Consideram-se trabalhadores por conta de outrem ―os que estejam vinculados por contrato
de trabalho ou contrato legalmente equiparado e os praticantes, aprendizes, estagiários e
demais situações que devam considerar-se de formação prática, e, ainda, os que,
considerando-se na dependência económica da pessoa servida, prestem, em conjunto ou
isoladamente, determinado serviço‖. Refira-se, ainda, que “É aplicável aos administradores,
directores, gerentes ou equiparados, quando remunerados, o regime previsto na presente lei
para os trabalhadores por conta de outrem” – Cf. n.º 2 e 3, artigo 2.º LAT
106
Neste diploma prevê-se que “quando o sinistrado de acidente de trabalho for,
simultaneamente, trabalhador independente e trabalhador por conta de outrem e havendo
dúvida sobre o regime aplicável ao acidente, presumir-se-á, até prova em contrário, que o
acidente ocorreu ao serviço da entidade empregadora‖ e que, uma vez provado que o acidente
de trabalho ocorreu quando o sinistrado exercia funções de trabalhador independente, ―a
entidade presumida como responsável nos termos do número anterior adquire direito de
regresso contra a empresa de seguros do trabalhador independente ou contra o próprio
trabalhador” (cf. artigo 7.º Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio).
107
Considerando a lei que, para este efeito e como já se referiu, são trabalhadores por conta
de outrem os que estejam vinculados à entidade empregadora por contrato de trabalho ou por
contrato legalmente equiparado, independentemente da sua validade. Assim, se, por exemplo,
um empregador celebra um contrato com um menor de 16 anos este contrato, apesar de
inválido, não exonera o empregador do dever de reparar os danos de um acidente de trabalho.
108
Pedro Romano Martinez (2002) a respeito do conceito de “dependência económica” refere
que esta pressupõe a “integração do prestador da actividade no processo produtivo da
empresa beneficiária, associado a um requisito de continuidade da prestação de trabalho”.
109
A lei dá-nos uma noção ampla de local de trabalho. Assim, “Entende-se por local de trabalho
todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e
em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador” – cf. n.º 3 do
artigo 6.º da LAT.
110
Também aqui o conceito é amplo: “Entende-se por tempo de trabalho, além do período
normal de laboração, o que preceder o seu início, em actos de preparação ou com ele
relacionados, e o que se lhe seguir, em actos também com ele relacionados, e ainda as
interrupções normais ou forçosas de trabalho” - cf. n.º 4 do artigo 6.º da LAT. Dever-se-ão,
portanto, considerar integradas no tempo de trabalho todas as interrupções normais ou
forçosas do trabalho, nomeadamente, as pausas de descanso e as pausas que resultam da
avaria de um equipamento.
Segundo, por exemplo, José de Castro Santos “o atropelamento sofrido pelo trabalhador, antes
de iniciar o seu trabalho, quando vai buscar uma ferramenta a um barracão ao lado, ou quando
Mas é ainda a própria lei que, logo no n.º 2 do referido artigo 6.º, alarga
o conceito de acidente de trabalho aos que ocorram:
troca de roupa no vestiário da empresa; ou, quando, tendo já terminado o seu trabalho, vai
arrumar as ferramentas no mesmo barracão e este desaba; ou quando interrompe o seu
trabalho para ir beber água ou satisfazer uma necessidade fisiológica”, devem ser acidentes
considerados durante o tempo de trabalho.
111
A este respeito veja-se o n.º 2 e 3, do Artigo 6.º do RLAT:
“2 - Na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da lei estão compreendidos os acidentes que se
verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto
habitualmente gasto pelo trabalhador:
a. Entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas
comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local
de trabalho;
b. Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e os mencionados nas alíneas
a) e b) do n.º 4;
c. Entre o local de trabalho e o local da refeição;
d. Entre o local onde por determinação da entidade empregadora presta qualquer serviço
relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho
habitual”.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal
tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades
atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”.
112
Os acidentes in itinere passaram a ser protegidos em Portugal com a Lei n.º 2127, de 3 de
Agosto de 1965, ainda que o seu enquadramento no regime jurídico dos acidentes de trabalho
estivesse sujeito à verificação de outro tipo de pressupostos.
A Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, por sua vez, veio prescindir da verificação de tais
requisitos, passando a generalizar a cobertura deste tipo de acidentes, desde que o mesmo
ocorra dentro do trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto
habitualmente gasto pelo trabalhador. O trajecto normal será aquele que se venha a
considerar, objectivamente, como o ideal (ainda que não seja o mais curto), encontrando-se,
Por sua vez, também o RLAT, ao regulamentar esta matéria, acaba por
alargar o conceito em análise ao estipular que ainda estão compreendidos no
artigo 6.º da LAT os acidentes que se verifiquem nas seguintes circunstâncias:
ainda, algumas referências na doutrina em que se considera que tal trajecto será tão-somente
o trajecto escolhido pelo trabalhador, independentemente das razões da sua escolha.
113
Cf. n.º 5, do artigo 6.º da LAT.
114
Cf. n.º 1, do artigo 7.º do RLAT.
115
Neste sentido: “Para efeitos do disposto no artigo 7.º da lei, considera-se existir causa
justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de
incumprimento de norma legal ou estabelecida pela entidade empregadora da qual o
trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria
conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la” – cf. n.º 1 do artigo 8.º
do RLAT.
116
Inserem-se neste tipo de situações os casos de auto-mutilação e os actos de sabotagem
provocados pelo trabalhador com o objectivo de prejudicar a entidade patronal.
117
Veja-se: “Entende-se por negligência grosseira, o comportamento temerário em alto e
relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao
perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes
da profissão” - cf. n.º 2 do artigo 8.º do RLAT. Acresce que, sendo a negligência grosseira um
facto impeditivo do direito de reparação, é necessário que ela seja alegada e provada pela
entidade empregadora.
118
Para o efeito: “Só se considera caso de força maior o que, sendo devido a forças inevitáveis
da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições
de trabalho nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pela entidade
empregadora em condições de perigo evidente” – Cf. n.º 2 do artigo 7.º da LAT.
119
Esta culpa deve ser apreciada sempre casuisticamente e não em relação a um tipo
abstracto de comportamento.
120
Não se incluem aqui os serviços que ocorrem periódica ou sazonalmente, como, por
exemplo, os trabalhos agrícolas.
121
Por curta duração a jurisprudência tem vindo a considerar os serviços que não se
prolonguem por mais de uma semana.
122
O artigo 4.º da RLAT dispõe o seguinte: “Não se consideram lucrativas, para efeito do
disposto na lei e neste regulamento, as actividades cuja produção se destine exclusivamente
ao consumo ou utilização do agregado familiar da entidade empregadora”.
123
Note-se que, nestas situações, a responsabilidade subjectiva apenas recai sobre o agente
causador. Ou seja, e entidade empregadora. Tal equivale a dizer que a responsabilidade da
seguradora se continua a limitar às prestações ditas normais em acidentes de trabalho a que
mais à frente faremos referência.
Modalidades de reparação
124
A lei não impõe a forma das prestações em espécie o que equivale a dizer que, por vontade
das partes, estas podem ser substituídas por prestações em dinheiro.
“1 - As prestações em espécie previstas na alínea a) do artigo 10.º da lei têm por modalidades:
a) Assistência médica e cirúrgica, geral ou especializada, incluindo todos os necessários
elementos de diagnóstico e de tratamento;
b) Assistência farmacêutica;
c) Enfermagem;
d) Hospitalização e tratamentos termais;
e) Hospedagem;
f) Transportes para observação, tratamento ou comparência a actos judiciais;
g) Fornecimento de aparelhos de prótese, ortótese e ortopedia, sua renovação e reparação;
h) Reabilitação funcional.
2 - A assistência a que se refere a alínea a) do número anterior inclui a assistência psíquica,
quando reconhecida como necessária pelo médico assistente.”
125
Neste conceito é também considerada a assistência psicológica ou psiquiátrica que venha a
ser reconhecida como necessária – cf. n.º 2, artigo 23.º LAT.
126
O n.º 1 do artigo 14.º da LAT, sob a epígrafe “Observância de prescrições clínicas e
cirúrgicas” estabelece o dever dos sinistrados se submeterem aos tratamentos e demais
prescrições clínicas e cirúrgicas do médico designado pela entidade responsável, desde que
necessários e adequados. No entanto, a lei também prevê o direito do sinistrado poder
reclamar para o Tribunal do Trabalho no caso de discordância, solicitando para o efeito exame
pericial.
Ainda neste sentido, o n.º 2 estipula que “Não conferem direito às prestações estabelecidas
nesta lei as incapacidades judicialmente reconhecidas como consequência de injustificada
recusa ou falta de observância das prescrições clínicas ou cirúrgicas ou como tendo sido
voluntariamente provocadas, na medida em que resultem de tal comportamento”.
Retribuição e incapacidade
127
No artigo 40.º da LAT encontramos, ainda, outras prestações devidas ao sinistrado e que
têm como finalidade a promoção e a recuperação da capacidade para a vida activa.
128
Sendo esta uma opção que suscita alguma polémica nos termos que passaremos a referir
mais à frente.
Para este efeito, dispõe a lei que por retribuição mensal se entende
“tudo o que a lei considera como seu elemento integrante e todas as
prestações recebidas mensalmente que revistam carácter de regularidade e
não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios” (cf. n.º 3,
artigo 26.º da LAT) e por retribuição anual ―o produto de 12 vezes a retribuição
mensal acrescida dos subsídios de Natal e de férias e outras remunerações
anuais a que o sinistrado tenha direito com carácter de regularidade” (cf. n.º 4,
artigo 26.º da LAT).
129
O disposto neste normativo também se aplica aos trabalhadores a tempo parcial vinculados
a mais de uma entidade empregadora (cf. n.º 9 do artigo 26.º da LAT).
Incapacidades temporárias para o trabalho, que, por sua vez, podem ser
parciais ou absolutas;
130
A este respeito e como mais à frente veremos há algumas vozes que se levantam no
sentido de que esta nova tabela, na prática, não veio em nada beneficiar os sinistrados do
trabalho.
131
Neste sentido pode, ainda, ler-se que: “O que se torna hoje de todo inaceitável é que seja a
Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (TNI),
aprovada pelo Decreto-lei n.º 341/93, de 30 de Setembro, utilizada não apenas no contexto das
situações especificamente referidas à avaliação de incapacidade laboral, para a qual foi
efectivamente perspectivada, mas também por vezes, e incorrectamente, como tabela de
referência noutros domínios do direito em que a avaliação de incapacidades se pode suscitar,
para colmatar a ausência de regulamentação específica que lhes seja directamente aplicável.
Trata-se de situação que urge corrigir pelos erros periciais que implica, que conduz a
avaliações destituídas do rigor que as deve caracterizar, e potencialmente geradora de
significativas injustiças. Por isso mesmo opta o presente decreto-lei pela publicação de duas
tabelas de avaliação de incapacidades, uma destinada a proteger os trabalhadores no domínio
particular da sua actividade como tal, isto é, no âmbito do direito laboral, e outra direccionada
para a reparação do dano em direito civil”.
132
Cf. Instruções Gerais do Anexo I da TNI.
133
Os coeficientes ou intervalos de variação correspondem a percentagens de desvalorização,
que constituem o elemento de base para o cálculo da incapacidade a atribuir.
134
Estas duas possibilidades de bonificação não são cumuláveis.
135
Sobre este ponto e como mais à frente faremos referência alguns dos nossos entrevistados
concluíram que se tratava de um retrocesso para o sinistrado relativamente à anterior tabela.
136
Diz-se na lei que esta junta pluridisciplinar deverá ser constituída por um médico do
Tribunal, um médico representante do sinistrado e um médico representante da entidade
legalmente responsável, no caso de acidente de trabalho. Relativamente a esta referência e
como melhor daremos conta num dos próximos capítulos há quem entenda que a mesma,
além de trazer nada de novo, ainda veio gerar dificuldades interpretativas.
137
Todas estas indemnizações por incapacidade são devidas enquanto o sinistrado estiver em
regime de tratamento ambulatório ou de reabilitação profissional, sendo, no entanto, reduzidas
a 45% durante o período de internamento hospitalar ou durante o tempo em que correrem por
conta da entidade empregadora ou seguradora as despesas com assistência clínica e
alimentos do mesmo sinistrado, desde que este seja solteiro, não viva em união de facto ou
não tenha filhos ou outras pessoas a seu cargo (cf. artigo 17.º da LAT).
138
De acordo com o artigo 45.º RLAT:
“1 - Para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 17.º da lei, considera-se familiar a
cargo do sinistrado, desde que com ele viva em comunhão de mesa e habitação: a) Os
descendentes solteiros; b) Os descendentes casados, bem como os separados de pessoas e
bens, divorciados e viúvos, com rendimentos mensais inferiores ao dobro da pensão social ou
ao valor desta, respectivamente; c) Os ascendentes com rendimentos mensais inferiores ao
valor da pensão social ou ao dobro deste valor, tratando-se de casal.
2 - São equiparados a descendentes do sinistrado, para efeitos do disposto no número anterior:
a) Os enteados; b) Os tutelados; c) Os adoptados restritamente; d) Os menores que, mediante
confiança judicial ou administrativa, se encontrem a seu cargo com vista a futura adopção; e)
Os menores que lhe estejam confiados por decisão dos tribunais ou de entidades ou serviços
legalmente competentes para o efeito.
3 - São equiparados a ascendentes do sinistrado, para efeitos do disposto no n.º 1: a) Os
padrastos e madrastas; b) Os adoptantes restritivamente; c) Os afins compreendidos na linha
recta ascendente”.
139
Sendo que as indemnizações por incapacidade temporária começam a vencer-se no dia
seguinte ao do acidente e as pensões por incapacidade permanente no dia seguinte ao da alta.
140
Cf. Artigo 25.º da LAT.
141
Este será um tema a tratar num dos capítulos que se seguem uma vez que nos foi apontado
como um retrocesso social trazido pela nova LAT que entrou em vigor no início do ano de
2010.
142
A remição, obrigatória ou facultativa, não prejudica o direito às prestações em espécie, o
direito de o sinistrado requerer a revisão da sua pensão, os direitos atribuídos aos beneficiários
legais do sinistrado, se este vier a falecer em consequência do acidente, nem tão-pouco a
actualização da pensão remanescente no caso de remição parcial ou resultante de revisão de
pensão, nos termos da lei (cf. cf. artigo 58.º RLAT).
143
Esta é uma questão que também será retratada mais à frente uma vez que também ela foi
apontada como um retrocesso social.
144
O facto de existir uma apólice uniforme com cláusulas típicas previamente aprovadas faz
com que a este tipo de contrato não se aplique o diploma legal das cláusulas contratuais gerais
– artigo 3.º do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
145
A actividade seguradora encontra-se regulamentada no Decreto-lei n.º 176/1995, de 26 de
Julho, com a alteração e aditamento introduzidos pelo Decreto-Lei n.º 60/2004, de 22 de
Março. Este diploma legal estabelece regras de transparência para a actividade seguradora e
disposições relativas ao regime jurídico do contrato de seguro. Segundo o preâmbulo deste
diploma, o Decreto-Lei n.º 102/94, de 20 de Abril, veio abrir um novo espaço à concorrência,
que se traduz por uma maior e mais complexa oferta de produtos. Assim, “a diversidade de
coberturas, exclusões e demais condições, com maior ou menor grau de explicitação no
contrato, justifica que, à semelhança do que se verificou no sector bancário, se introduzam
regras mínimas de transparência nas relações pré e pós-contratuais”. O objectivo era o de
definir regras sobre a informação que deve ser prestada aos tomadores e subscritores de
contratos de seguro pelas seguradoras, assim, reduzir o potencial de conflito entre as
seguradoras e os tomadores de seguro, minimizando as suas principais causas e clarificando
direitos e obrigações.
contrato de adesão em que o aderente é livre de aceitar ou não o clausulado apresentado pela
seguradora. Em consequência sãs restrições ao princípio da liberdade contratual, o legislador e
a jurisprudência acabam por tomar partido da parte negocial dita de “mais fraca”,
nomeadamente em caso de dúvida interpretativa de determinada cláusula da apólice uma vez
que quem redige as cláusulas é a seguradora.
quanto à validade do contrato (cf. artigo 24.º, 25.º e 26.º do Decreto-Lei n.º
72/2008, de 16 de Abril).
147
Cf. Artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99 de 31 de Agosto:
Reabilitação profissional
148
Assim:
na lei aplicável, caso opte pela não reintegração, o direito a uma indemnização igual ao dobro
da que lhe competiria por despedimento sem justa causa”.
149
Veja-se o normativo em causa:
Alterou-se o regime de remição de pensões (cf. artigo 75.º, 76.º e 77.º Lei
n.º 98/2009, de 04 de Setembro);
151
Segundo Duarte Nuno Vieira e José Alvarez “neste período (…) o capital garantido em cada
apólice, servia de tecto (pelo menos psicológico) aos pedidos indemnizatórios e,
consequentemente, às indemnizações (judiciais ou não) atribuídas”.
152
Neste nosso trabalho, a análise do regime jurídico dos acidentes de trabalho irá servir-nos,
sobretudo, como ponto de referência e de avaliação do regime jurídico dos acidentes de
trabalho.
153
O anterior capital obrigatório de 600.000,00 euros sofreu progressivos aumentos, passando
a incluir sub-limites para danos corporais e materiais. Desde 01/12/2009 que o capital
obrigatório é de 2.500.000,00 euros para danos corporais e de 750.000,00 euros para danos
materiais, sendo que a partir de 01/06/2012 passará para 5.000.000,00 euros no que respeita a
danos corporais e 1.000.000,00 euros para danos materiais. Depois desta data os capitais
passarão a ser revistos de 5 em 5 anos, sob proposta da Comissão Europeia, em função do
índice europeu de preços do consumidor.
154
No entanto e em contrapartida, o FGA deixa de garantir danos materiais causados aos
incumpridores da obrigação de segurar, bem como pelos passageiros que, voluntariamente, se
encontrassem no veículo sem seguro e causador do acidente, sempre que se possa provar que
tinham conhecimento da inexistência de seguro.
155
Cf., por exemplo, Bisogni, K.; De Rosa, C.; Ricci, P. (2006), “A Tabela Italiana de avaliação
do dano corporal. Percurso histórico”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal.
156
Por oposição aos que criticam os barémes com fundamento na falta de concepção
científica, outros defendem que não se justifica que numa Europa sem fronteiras a perda dos
mesmos órgãos e das mesmas funções, com as mesmas sequelas, sejam avaliadas de formas
completamente distintas.
157
A sociedade francesa tem levado a cabo um amplo debate no domínio da protecção das
vítimas e da indemnização de danos corporais. Em 2005, no sob a presidência de Nicole Guedj
desta Secretaria de Estado, foi planeada a reforma do quadro jurídico que regula a
indemnização dos danos corporais, baseando-se no relatório encomendado em 2003 pelo
Ministério da Justiça a uma comissão de especialistas dirigida por Yvonne Lambert-Faivre. A
linha uniformizadora é bem expressa por esta autora: «le corps humain étant universel,
l’amputation d’un bras ne doit pas être chiffrée différemment d’un lieu à l’autre. Si l’on admet
que tous les hommes sont égaux, on doit admettre l’égalité des corps humains. Or, je suis
frappé par le fait que les taux d’incapacité ne sont pás les mêmes pour une même atteinte à
l’intégrité physique.».
158
Note-se que ainda é muito difícil apurar o seu impacto nas decisões judiciais subsequentes,
sobretudo por ser recente a sua entrada em vigor e isso significar, do ponto de vista das
práticas judiciais e periciais, um período de transição naturalmente turbulento. Nesse sentido,
uma parte da análise empírica desenvolvida assenta no quadro legal anterior, carente de uma
especificação normativa explícita, como a inscrita nesta nova tabela civil.
segundo o legislador, procuram suprir uma lacuna normativa que tinha estado
na origem de diferentes problemas: opacidade, morosidade e clivagens
significativas nos critérios de atribuição de indemnizações por morte, danos
morais e danos corporais.
Tertium genus
159
Cf. Anexo III da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio.
160
Cf. Ac. TRP de 07 de Abril de 1997.
161
Estamos a referir-nos ao dito rebate profissional que deverá ser avaliado enquanto dano
patrimonial futuro.
162
Cf. Armando Braga, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil
Extracontratual, 1955-2005, Almedina, pág. 230 e 231.
163
Ac. TRP, in CJ, 1997, Tomo 2, pág. 204.
tutela tal qual a que é atribuída às dores físicas ou psíquicas. Nesta linha de
argumentação conclui que deve ser fixado um quantitativo unitário nos termos
do artigo 496.º do CC. Posteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça, num
acórdão de 3 de Junho de 2004, veio considerar como “dano biológico
flagrante” a perda de visão do olho direito. Num outro acórdão de 27 de Abril do
mesmo ano, o Supremo Tribunal de Justiça recorreu a este conceito para
caracterizar como dano o atrofio de um testículo.
Danos patrimoniais
164
Para este efeito entende-se que a proposta razoável deve contemplar o pagamento integral
dos rendimentos perdidos, decorrentes da incapacidade temporária do lesado e que sejam
fiscalmente documentáveis, bem como das despesas médicas e medicamentosas, refeições,
estadas e transportes, desde que sejam apresentados os originais dos respectivos
comprovativos. Nos casos de auxílio de terceira pessoa, adaptação de veículo ou de
residência, consideram -se como valores de referência os constantes do anexo V da presente
portaria – cf. artigo 10.º da Portaria.
165
Onde se pode ler:
obedecer nesta situação) remete para o já referido Anexo III que trata do
método de cálculo do dano patrimonial futuro em geral e estipula que, para
calculo do tempo durante o qual a prestação se considera devida ao cônjuge
sobrevivo ou filho dependente por anomalia física ou psíquica, se presume que
a vítima se reformaria aos 70 anos. Neste artigo diz-se, ainda, que para efeitos
de apuramento do rendimento mensal da vítima, “são considerados os
rendimentos líquidos auferidos à data do acidente fiscalmente comprovados”,
sendo que relativamente a vítimas que não apresentem declaração de
rendimentos, não tenham profissão certa ou cujos rendimentos sejam inferiores
à retribuição mínima mensal garantida, para este efeito, será o valor desta
última que a ter em linha de conta. Por sua vez, caso a vítima se encontre
desempregada àquela data, deverá ser considerada para o efeito a média dos
últimos três anos de rendimentos líquidos declarados fiscalmente.
167
A indemnização devida ao lesado pode variar entre os 20,00 euros e os 30,00 euros por
cada dia de internamento hospitalar – cf. Anexo I da Portaria.
Repercussão
<=30 anos 31-45 anos 46-60 anos 61-70 anos
na vida laboral
>10 P E <= 35 P Até €25.000,00 Até €20.000,00 Até €15.000,00 Até €10.000,00
>35 P E <= 70 P Até €62.500,00 Até €50.000,00 Até €37.500,00 Até €25.000,00
1 ponto €800,00
2 pontos €1.600,00
3 pontos €2.400,00
4 pontos €4.000,00
5 pontos €5.600,00
6 pontos €7.250,00
7 pontos €10.000,00
168
Cf. Sáiz, Eduardo Murcia (2003), “La valoración médico-legal del prejuicio estético”, in
Revista Portuguesa Do Dano Corporal.
4 pontos* €800,00
5 pontos €1.600,00
6 pontos €3.200,00
7 pontos €5.200,00
Dano morte
A par de todos estes danos temos ainda um outro não menos complexo
na sua avaliação que também é contemplado por esta Portaria – o dano
169
Cf. Cueto, Claudio Hernández (2002), “El precio del dolor”, Revista Portuguesa do Dano
Corporal.
Por sua vez, também os herdeiros da vítima, por si, devem ser
compensados pelo impacto da perda de um familiar. O critério aqui utilizado
para apurar os montantes indemnizatórios é, igualmente, o da idade e da
relação familiar mantida entre a vítima e o seu herdeiro, nos termos da tabela
que se segue e que, pelo que temos vindo a analisar, não andam longe do que
é mais frequentemente arbitrado em sede judicial:
Número de filhos
Tempo de gravidez
2º filho
1º filho
ou posterior
170
“Dano corporal – lesões pré-natais e maus-tratos infantis”, Revista Portuguesa do Dano
Corporal.
Pelos danos patrimoniais futuros daqueles que, nos termos do Código Civil,
podiam exigir alimentos à vítima, ou aqueles a quem esta os prestava no
cumprimento de uma obrigação natural;
E, ainda, pelas despesas feitas para assistir e tratar a vítima bem como as
de funeral, luto ou transladação, contra apresentação dos originais dos
comprovativos172.
171
Esta questão foi submetida a um longo debate na sociedade norte-americana e o impacto
que produziu no domínio da concepção moral e da protecção da família gerou efeitos
perniciosos quando à apreciação e depreciação de condutas sociais. Entre nós, o debate é
incipiente.
172
Cf. Artigo 2.º da Portaria.
173
Até então, a indemnização de perdas e danos decorrente de um crime tratava-se de “um
efeito penal da condenação‖, hoc sensu, de uma ―parte da pena pública‖ (Simas Santos, 2004:
25).
174
Onde pode ler-se: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é
deduzido na acção penal respectiva, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil,
nos casos previstos na lei”.
175
O n.º 1 do artigo 72º do CPP prevê as oito condições que permitem a dedução do pedido de
indemnização em separado, perante o tribunal civil:
“a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia
do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;
b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se
tiver extinguido antes do julgamento;
c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;
d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem
conhecidos em toda a sua extensão;
e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos
do n.º 3 do artigo 82.º;
f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou
somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido;
g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal
correr perante tribunal singular;
h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;
i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo
penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º”
176
Cf. n.º 1 do artigo 73.º do CPP: “(…) a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime,
ainda que se não tenha constituído assistente ou não possa constituir-se assistente”.
177
Estes encontram-se previstos no artigo 69.º do CPP. Em termos genéricos podemos dizer
que lhes é atribuída a posição de colaboradores do Ministério Publico, competindo-lhes, em
especial, oferecer provas e requerer diligências.
Neste contexto importa, ainda, fazer uma breve referência ao facto de,
para que determinada conduta possa ser tida como crime e assim lhe ser
atribuir relevância jurídico-penal, é sempre necessária uma prévia averiguação
sobre a verificação dos pressupostos da punição criminal ou da
responsabilização criminal. Assim, para além das particularidades de cada tipo
de crime, importa averiguar e apurar o circunstancialismo objectivo e
subjectivo, o grau de culpa do agente e as consequências do facto praticado.
Sendo que, para avaliar as consequência, o julgador nem sempre possui todos
os conhecimentos que se revelam indispensáveis. Nestes casos, a lei permite-
lhes o recurso a meios auxiliares de avaliação. E, segundo Maia Gonçalves178,
é neste auxílio que constitui a perícia179. De acordo com o artigo 151.º do CPP,
a prova pericial tem lugar sempre que a percepção ou a apreciação dos factos
exija especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos180. Portanto,
compreende-se que no processo de aplicação da justiça penal, a perícia
médico-legal tenha um importante relevo. De facto, a avaliação do dano
corporal poderá ter lugar sempre que as normas incriminadoras em causa
tenham como elemento do tipo a verificação de um dano corporal181. Nestes
178
Cf. Maia Gonçalvez, Código Penal Anotado, 9.ª Edição, Coimbra, Almedina, 1996.
179
Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. II, Lisboa, Editorial Verbo, 1993) define a
perícia como a “actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por
pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”.
180
Não obstante o princípio da livre apreciação da prova em processo penal (cf. artigo 127.º do
CPP) no que à prova pericial diz respeito a lei estabelece uma presunção no sentido de que a
mesma se encontra subtraída à livre apreciação do julgador, exigindo que, sempre que a
convicção deste seja divergente à do juízo contido no parecer dos peritos, tal divergência seja
devidamente fundamentada (cf. artigo 163.º do CPP).
181
O dano corporal surge, essencialmente, nos crimes contra a vida, nos crimes contra a vida
intra-uterina, nos crimes contra a integridade física, nos crimes contra a liberdade pessoal, nos
crimes contra a liberdade sexual e contra a autodeterminação sexual. Ou seja e entre muitos
outros:
182
Aqui as dificuldades são sobretudo de interpretação conceitual. O termo “órgão”, por
exemplo, não entendido da mesma forma por médicos legistas e por juristas. Mas também é
questionável saber o que entender por “importante” sendo que parece, todavia, estar assente a
ideia de que os órgãos e membros contemplados neste artigo serão aqueles que
funcionalmente (e não apenas anatomicamente) sejam relevantes pelo facto da sua privação,
total ou parcial, impedir a realização da sua função como parte integrante do corpo, seja
temporária ou permanentemente. Esta avaliação dever-se-á fazer casuisticamente e tendo em
conta todos os factores pessoais do lesado.
O conceito “desfiguração” também suscita algumas dúvidas. Aqui será de ter em conta a noção
de dano estético, indicando-nos o Código Penal apenas que aquela, neste âmbito do direito
penal, terá que ser grave e permanente. Para densificar a gravidade, o perito deverá lançar
mão de critérios de valorização como a intenção e visibilidade do dano, bem como, mais uma
vez, a circunstâncias pessoais da vítima. Note-se, ainda, que não se trata somente do dano do
seu ponto de vista estático, como, por exemplo, uma cicatriz ou uma amputação, mas também
do seu ponto de vista dinâmico, contemplando-se, assim, entre muitos outros, a claudicação na
marcha.
183
Das muitas questões interpretativas suscitadas, tem-se vindo a defender que aqui se inclui
tanto o dano temporário, como o dano permanente, bastando, apenas, que o mesmo seja
grave; que a capacidade para o trabalho dever ser entendida como a possibilidade de exercício
da profissão da vítima, bem como de qualquer outra actividade não profissional.
184
Produto da reforma penal de 1982:
186
Este diploma legal veio regulamentar o já referido artigo 130º do CP (Indemnização de
perdas e danos por crime). A regulamentação dada vai ao encontro dos parâmetros
decorrentes, nomeadamente, da Convenção Europeia relativa à indemnização de vítimas de
infracções violentas, de 1983.
187
Lei n.º10/96 de 23 de Março.
(Regime Jurídico das Vítimas de Crimes Violentos) e, ainda, a Lei n.º 129/99,
de 20 de Agosto (Regime Jurídico das Vítimas de Violência Conjugal). De
acordo com o n.º 1 do artigo 2.º deste novo diploma legal, “as vítimas que
tenham sofrido danos graves para a respectiva saúde física ou mental
directamente resultantes de actos de violência” têm direito à concessão de um
adiantamento da indemnização pelo Estado, desde que, cumulativamente, se
verifiquem os seguintes pressupostos:
188
Cf. Artigo 2.º, n.º 2 da Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro: “O direito a obter o
adiantamento previsto no número anterior abrange, no caso de morte, as pessoas a quem, nos
termos do n.º 1 do artigo 2009.º do CC, é concedido um direito a alimentos e as que, nos
termos da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, vivam em união de facto com a vítima”.
189
Cf. Artigo 2.º, n.º 3, Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro.
190
Cf. Artigo 2.º, n.º 4, Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro.
191
Cf. artigo 4º, Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro:
193
Lei n.º31/2006 de 21 de Julho, que veio alterar o já mencionado Decreto-Lei 423/91 de 30
de Outubro.
194
Ou seja, naqueles casos em que o crime foi praticado num Estado-membro diferente
daquele em que a vítima tem a sua residência.
195
Vitimologia e justiça restaurativa; mediação penal; Declaração de Lovaina.
196
Resolução n.º(77)27, de 28 de Setembro de 1977, com incidência na indemnização às
vítimas de infracções criminais; Convenção Europeia relativa à indemnização de vítimas de
infracções violentas, de 1983.
197
Decisão Quadro n.º2001/220/JAI do Conselho, 15 de Março
garantias às vítimas de crimes, cujo objectivo essencial passa não apenas pelo
reconhecimento do direito dos lesados a uma indemnização justa e
atempada198 – já enquadrada no ordenamento jurídico português –, mas
sobretudo pelo recentramento dos processos judiciais ou extra-judiciais na
figura da vítima, concedendo-lhe, para além de um quadro de direitos que
visam protegê-la ao longo do decurso do processo, meios de restabelecimento
e de intervenção autónoma nesse mesmo processo. Esta nova visão do direito
penal e dos seus procedimentos de aplicação aposta, nesse sentido, numa
mais ampla concepção das funções da institucionalidade judicial, introduzindo
mecanismos participativos, flexíveis e compreensivos de resolução de conflitos,
ora mais ora menos compatíveis com as lógicas do sistema criminal em vigor.
Este novo paradigma de justiça restaurativa procura, nesse sentido, generalizar
o recurso à mediação penal entre a vítima e o agressor, enquanto instrumento
promotor de justiça reparadora e de pacificação social199.
198
Cf. artigo 9º: “dentro de um prazo razoável”, a par da devolução à vítima, com a brevidade
possível, dos objectos apreendidos no âmbito do processo penal.
199
Recomendação n.º R(99)19 do Conselho da Europa; Lei n.-º21/2007 de 12 de Junho, que
cria um regime de mediação penal, em execução do artigo 10º da Decisão Quadro supra
mencionada.
perversoras dos termos em que a função penal do Estado deve ser exercida,
gerando resultados distorcidos relativamente a importantes aquisições judiciais
modernas, entre as quais não figura a comunidade enquanto interlocutor. Em
matéria indemnizatória, a vulnerabilidade a que muitas vezes a vítima se
encontra votada exige um debate mais alargado que não deve ser cingido aos
princípios da indemnização cível, mas antes observado à luz dos modelos de
protecção social fornecidos e promovidos pelo Estado, pelo que se verifica uma
importante tensão entre a responsabilidade civil, o seguro de riscos e a função
social do Estado.
200
Se, todavia, a lesão apenas se revelar ou for reconhecida em data posterior à do acidente, o
referido prazo de 48 horas conta-se a partir da data da revelação ou do reconhecimento.
201
A participação por correio electrónico, telecópia ou outra via com o mesmo efeito de registo
de mensagens não dispensa a participação formal, que deve ser feita no prazo de 8 dias
contados do falecimento ou do seu conhecimento.
202
A este respeito cumpre salientar que actualmente em matéria de acidentes de trabalho
ainda não é possível recorrer à mediação laboral embora esta, como mais à frente passaremos
a referir, seja uma matéria que se encontra em discussão.
203
Contém as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, pelo
Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08 de Março, pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13 de Outubro e
pela Rectificação n.º 86/2009, de 23 de Novembro.
204
Trata-se, portanto, de processos especiais que, em tudo o que não estejam especialmente
regulados, se regem pelos termos gerais do processo comum.
No artigo 15.º do CPT diz-se que todas as acções deste tipo devem ser
propostas no tribunal do lugar onde o acidente ocorreu, sendo também para
este tribunal que devem ser remetidas todas as participações acima
referidas207. Não obstante esta regra geral de competência, a lei também
confere a possibilidade ao sinistrado de requerer, até à fase contenciosa do
processo ou se aí tiver apresentado a participação, que o processo corra os
seus termos no tribunal da sua área de domicílio 208. Vale dizer que se, de
acordo com a aplicação destas regras de competência, não houver um tribunal
de trabalho que abranja essa área, este tipo de acções correm em tribunal de
205
Mas a lei prevê, igualmente, que o MP “deve recusar o patrocínio a pretensões que repute
infundadas ou manifestamente injustas e pode recusá-lo quando verifique a possibilidade de o
autor recorrer aos serviços do contencioso da associação sindical que o represente” (cf. n.º 1
do artigo 8.º do CPT). Em caso de recusa, o Ministério Publico deve notificar imediatamente o
interessado de que pode reclamar, dentro de 15 dias, para o imediato superior hierárquico,
sendo que, os prazos de propositura da acção e de prescrição não correm entre a notificação
da recusa e a notificação da decisão que vier a ser proferida sobre a reclamação.
206
A representação ou não do sinistrado ou dos seus familiares pelo Ministério Publico tem
consequência ao nível das custas devidas no processo. O artigo 4.º do Regulamento das
Custas Processuais (Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro) que trata das Isenções faz
referência ao facto de estarem isentos de custas os trabalhadores e seus familiares, em
matéria de direito de trabalho.
207
Todas as participações e demais documentos são obrigatoriamente apresentados ao
Ministério Publico que, por sua vez, deve ordenar as diligências convenientes (cf. artigo 22.º do
CPT).
208
Caso sejam vários os sinistrados a exercer tal faculdade, é territorialmente competente o
tribunal da área de residência do maior número deles ou, em caso de ser igual o número de
requerentes, o tribunal da área de residência do primeiro a requerer.
competência genérica209. Por fim, realce-se que este tipo de processo tem
natureza urgente210, corre oficiosamente, iniciando-se a instância com o
recebimento da participação, não dependendo, portanto, de qualquer iniciativa
ou impulso das partes (cf. n.º 1, 3 e 4 do artigo 26.º do CPT), e pode
desenrolar-se em duas fases: a fase conciliatória e a fase contenciosa.
209
Esta realidade poderá vir a ser alterada em 01 de Setembro de 2010 se, tendo em conta a
avaliação do período experimental da aplicação da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto às
comarcas piloto (Alentejo Litoral, Baixo-Vouga e Grande Lisboa Noroeste), se passar a aplicar
a todo o território nacional a reforma do mapa judiciário uma vez que uma das grandes
alterações passa pela institucionalização uma justiça especializada. A ser assim, este tipo de
processo passará a ser da competência dos Juízos de Trabalho (cf. al. c) do artigo 118.º)
210
Não se suspendendo, portanto, durante as férias judiciais. A mais disto, deve ser-lhes dada
prioridade relativamente a outros processos não urgentes.
211
A este dever acresce o dever de, sempre que, em resultado de um acidente, não seja de
excluir a existência de responsabilidade criminal, dar conhecimento do facto às instâncias
criminais competentes.
212
Quando a participação deva ser efectuada por uma seguradora, a lei exige que esta seja
acompanhada por um determinado conjunto de elementos: documentação clínica e nosológica
disponível; cópia da apólice e seus adicionais em vigor; declaração de remunerações do mês
anterior ao do acidente; nota discriminativa das incapacidades e internamentos; e, ainda, cópia
dos documentos comprovativos das indemnizações pagas desde o acidente.
213
Se não for possível determinar quem são os beneficiários do sinistrado o processo será
arquivado. Este arquivamento será, todavia, provisório durante um ano, podendo ser reaberto
caso apareça algum beneficiário. Se tal não acontecer, o processo deverá ser reaberto e a
pensão deverá reverter a favor do Fundo de Actualização de Pensões de Acidentes de
Trabalho (cf. n.º 4, 5 e 6 do artigo 100.º do CPT).
214
O local e a competência para a realização da perícia médica são definidos nos termos da lei
que estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses.
Não obstante, o n.º 3 do artigo 105.º do CPT estipula que, “quando a perícia exigir elementos
auxiliares de diagnóstico ou conhecimento de alguma especialidade clínica não acessíveis a
quem deva realizá-lo, são requisitados tais elementos ou o parecer de especialistas aos
serviços médico-sociais da respectiva área e se estes não estiverem habilitados a fornecê-los
em tempo oportuno são requisitados a estabelecimentos ou serviços adequados ou a médicos
especialistas”, sendo que fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, se os não
houver na respectiva circunscrição, o MP pode solicitar a outro tribunal com competência em
matéria de trabalho a obtenção desses elementos ou pareceres, bem como a obtenção da
perícia.
215
No entanto, a perícia médica pode ser dispensada nos casos em que o sinistrado se
declarar curado sem desvalorização e apenas reclamar a indemnização devida por
incapacidade temporária, ou qualquer outra quantia a que acessoriamente tiver direito.
216
Para além destas pessoas, o Ministério Publico deverá ainda convocar para uma segunda
audiência quaisquer outras entidades cuja necessidade de convocação resulte das declarações
prestadas em sede da primeira audiência de tentativa de conciliação.
217
Como acima já se disse, também pode acontecer que as partes tenham celebrado acordo
extrajudicial e o tenham junto aos autos. Nestas situações esse acordo deverá ser colocado à
consideração do MP. Se tal acordo, no entender do Ministério Publico, se encontrar em
conformidade com o resultado das perícias médicas, com os restantes elementos fornecidos
pelo processo e com as informações complementares que repute necessárias, deverá
igualmente ser submetido a homologação do juiz, juntamente com o parecer do Ministério
Publico (cf. n..º 2 do artigo 114.º do CPT).
Processo Principal
218
Discutindo-se a determinação da entidade responsável, o juiz, até ao encerramento da
audiência, pode mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual
responsável (cf. n.º 1 do artigo 127.º do CPT).
219
O despacho saneador destina-se:
“a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas
pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir,
sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos
ou de alguma excepção peremptória;
c) Considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e
nos articulados;
d) Seleccionar a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias
soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida;
e) Ordenar o desdobramento do processo, se for caso disso”.
220
O rol de testemunhas deve ser apresentado no prazo de 10 dias. Cada parte pode
apresentar no máximo 10 testemunhas que serão notificadas para comparecer na audiência de
julgamento (cf. artigo 133.º; 64.º e 66.º todos do CPT).
221
Nos casos em que a causa vá ser apreciada por tribunal colectivo, o tribunal deverá reunir
imediatamente antes da audiência para que os juízes que ainda não tiverem acesso ao
processo possam tomar conhecimento do mesmo (cf. artigo 69.º do CPT).
222
Leia-se, quando o valor da acção é superior a 30.000,00 euros.
223
Neste momento, pode haver lugar à desistência da instância, à confissão ou à transacção
que ao serem efectuadas perante o juiz não carecem de homologação para produzir efeitos de
caso julgado, devendo este apenas certificar-se da capacidade das partes e da legalidade do
resultado da conciliação (cf. artigo 52.º do CPT).
resultar directamente da lei, fixa, com base nos elementos fornecidos pelo
processo, pensão ou indemnização provisória desde que forme a convicção de
que tais prestações são necessárias ao sinistrado, ou aos beneficiários, e
desde que do acidente tenha resultado a morte ou uma incapacidade grave ou,
ainda, se o sinistrado ainda não estiver curado e estiver sem tratamento
adequado ou sem receber indemnização por incapacidade temporária.
Também esta pensão ou indemnização provisória, bem como os encargos com
o tratamento do sinistrado, se não forem suportados por outra entidade por
ainda não se ter apurado a sua responsabilidade, são adiantados ou garantidos
pelo Fundo de Actualização de Pensões de Acidentes de Trabalho até que haja
decisão final condenatória (cf. artigo 122.º e 123.º do CPT).
224
Note-se que se este requerimento não for apresentado, o juiz deverá ainda assim proferir
decisão com base nos elementos de que dispõe, fixando a natureza e grau da incapacidade e
o valor da causa (cf. artigo 138.º do CPT).
Reforma do pedido
225
Fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, se não for possível constituir a junta
nos termos descritos, a perícia deverá ser deprecada ao tribunal com competência em matéria
de trabalho mais próximo da residência da parte.
226
Os peritos das partes devem ser apresentados até ao início da diligência sob pena de o juiz
ter que os nomear oficiosamente.
227
Ou seja, ordenar a autópsia, determinar os beneficiários legais, instruir o processo e
agendar tentativa de conciliação.
Efectuada perícia por junta médica nesta situação, ou não tendo havido
lugar à mesma, e efectuadas quaisquer diligências que se mostrem
necessárias, o juiz decide por despacho, mantendo, aumentando ou reduzindo
a incapacidade ou a pensão ou declarando extinta a obrigação de as pagar229.
Não obstante o que ficou dito, se a entidade considerada como responsável
vier discutir neste incidente a responsabilidade do agravamento, a questão só
poderá ser discutida com recurso a outros meios de prova, seguindo-se,
portanto a instrução e, posteriormente, a discussão e julgamento.
Remissão de pensões
228
O fundamento para este pedido pode ser o agravamento ou superveniência de doença física
ou mental que afecte a sua capacidade de ganho (cf. artigo 147.º do CPT).
229
Este incidente terá igualmente lugar numa outra situação: quando, sendo responsável uma
seguradora, o acidente não tenha sido participado ao tribunal por o sinistrado ter sido
considerado curado sem incapacidade (cf. artigo 145.º do CPT).
daquela data, tendo que, para tal, provar que já não se verifica o fundamento
que sustentou a recusa inicial.
No âmbito dos acidentes de viação, dada esta ser igualmente uma área
em que o seguro de responsabilidade civil é obrigatório e em que, portanto, por
regra há transferência da responsabilidade civil para a seguradora, também há
comunicações que devem ser obrigatoriamente efectuadas.
A) Comunicações
230
Sendo a remissão obrigatória o processo inicia-se nesta fase.
231
Que, como já salientamos, surgiu em consequência da necessidade de transpor para o
ordenamento jurídico português a 5.ª Directiva Automóvel.
B) Proposta razoável
232
Cf. al. a) do n.º 1 do artigo 32.º do CPC.
233
Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Lei 34/2004, de 29 de Junho, “O sistema de acesso ao
direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em
razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o
conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos”. Para este efeito, entende-se que se
encontra em situação de insuficiência económica “aquele que, tendo em conta o rendimento, o
património e a despesa permanente do seu agregado familiar, não tem condições objectivas
para suportar pontualmente os custos de um processo” (cf. n.º 1 do artigo 8.º).
Uma vez recebida a petição inicial pela secretária e desde que não se
verifique nenhum dos fundamentos para a sua recusa238 o réu será citado para
contestar no prazo de 30 dias239. Através deste articulado o réu irá defender-se
relativamente aos factos alegados pelo autor em sede de petição inicial, por
impugnação240 ou por excepção241, sob pena de os factos articulados pelo
autor serem admitidos por acordo242, devendo de igual modo juntar a este
articulado o comprovativo do pagamento da taxa de justiça ou do pedido de
apoio judiciário e os documentos que comprovem os factos agora por si
articulados. A estes articulados ainda podem seguir-se, em situações
especialmente previstas na lei, outros dois articulados: a réplica243 (se o réu se
defender por excepção ou deduzir reconvenção244) e a tréplica245 (se houver
réplica e tiver sido modificado o pedido ou a causa de pedir ou se, havendo
reconvenção, tiver sido deduzida alguma excepção).
242
Cf. artigo 490.º do CPC.
243
Cf. artigo 502.º.
244
Trata-se de uma possibilidade que é dada ao réu, em sede de processo ordinário, de, na
mesma acção, deduzir um pedido contra o autor desde que se verifiquem um conjunto de
pressupostos legais previstos no artigo 274.º do CPC.
245
Cf. artigo 503.º do CPC.
246
Cf. artigo 508.º do CPC.
247
Cf. artigo 265.º do CPC.
248
A convocação desta audiência pode ser dispensada quando destinando-se à fixação da
base instrutória, a simplicidade da causa o justifique ou quando a sua realização tenha como
fim facultar a discussão de excepções dilatórias já debatidas nos articulados ou do mérito da
causa, nos casos em que a sua apreciação revista manifesta simplicidade (cf. n.º 1 do artigo
“b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra
apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em
parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as
insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se
tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador, nos termos do artigo 510.º;
e) Quando a acção tenha sido contestada, seleccionar, após debate, a matéria de facto
relevante que se considera assente e a que constitui a base instrutória da causa, nos termos
do artigo 511.º, decidindo as reclamações deduz das pelas partes”.
Prova pericial
250
Cf. artigo 508.º- A,; artigo 508.º - B; artigo 509.º, todos do CPC.
251
Cf. al. a) do n.º 2 do artigo 508.º - A do CPC.
252
Cf. artigo 512.º do CPC.
253
A prova pode ser feita por documentos, por confissão das partes, por perícia, por inspecção
judicial ou através de testemunhas.
254
Cf. artigo 520.º e 521.º do CPC.
perito255. Mas a perícia também pode ser perícia colegial. Esta será realizada
por mais de um perito, até ao número de três e tem lugar o juiz oficiosamente o
determine, por entender que a perícia reveste especial complexidade ou exige
conhecimento de matérias distintas ou, ainda, quando alguma das partes o
requeira. Nestes casos, ou as partes acordarem na nomeação dos peritos, ou,
caso contrário, cada uma delas escolhe um dos peritos e o juiz nomeia o
terceiro256.
255
Cf. artigo 568.º do CPC.
256
Cf. artigo 569.º do CPC.
257
Cf. artigo 577.º do CPC.
258
Cf. artigo 589.º do CPC. Note-se que se o tribunal entender como necessária a realização
de uma segunda perícia pode ordena-la oficiosamente e a todo o tempo.
259
Cf. artigo 591.º do CPC.
260
Cf. artigo 588.º do CPC.
261
Cf. artigo 652.º do CPC.
se, por fim, a discussão sobre o aspecto jurídico da causa. Concluída esta
discussão, o processo é concluso ao juiz para que este profira sentença.
262
Para Manuel Lopes Maia Gonçalves, in Código de processo Penal Anotado, 16.ª Edição,
2007, pág. 207, esta opção pela regra da obrigatoriedade da adesão ao processo penal “(…)
justifica-se inteiramente nos casos em que estejam em causa lesados de recursos modestos,
nos quais há razões de política social a militar no sentido de fazer decidir no processo criminal,
paralelamente à questão penal, a matéria cível. Mas relativamente a outro tipo de situações,
nomeadamente acidentes de viação em que estejam envolvidas companhias seguradoras e em
que as partes sejam assistidas por advogados, impõe-se antes que, desligadas da obrigação
de recurso à jurisdição penal, procurem no foro civil a solução do litígio dos danos emergentes
do crime”.
263
Neste sentido Ac. do STJ de 12 de Janeiro de 1995, in CJ, Acs. do STJ, III, Tomo 1, pág.
181: “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil
quantitativamente e nos seus pressupostos; porém, processualmente, é regulada pela lei
processual penal‖. Como consequências desta posição temos, assim, que uma vez que em
processo penal vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação de prova estes
também valem para o pedido de indemnização civil, não devendo, portanto, considerar-se o
princípio do ónus da prova‖.
264
Ou seja, por lesado entende-se todo aquele que, perante a lei processual civil, tiver
legitimidade para formular pedido de indemnização.
265
Nos termos do n.º 1 do artigo 68.º do CPP, podem constitui-se assistentes os ofendidos ou
os seus representantes legais se este for menor de 16 anos. Em caso de morte destas, podem
constitui-se assistentes o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou
a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que vivesse com o ofendido em condições análogas às
dos cônjuges, ou, ainda os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta
destes, os irmãos ou seus descendentes, desde que nenhuma destas pessoas tenha
comparticipado na prática do crime.
266
Face à regulamentação legal desta matéria, conclui-se que com a contestação se esgotam
os articulados do arguido e dos demandados, não sendo admissíveis pedidos reconvencionais.
267
Nesta situação apenas é remetida a liquidação do quantitativo da indemnização, tendo já
sido decidido que existe direito a uma indemnização.
CAPÍTULO 3
AS LÓGICAS SEGURADORAS
E A CONSTRUÇÃO DO QUADRO DA REPARAÇÃO
As Lógicas Seguradoras e a Construção do Quadro da Reparação
INTRODUÇÃO
268
Publicada no Diário da República, 1.ª série, N.º 213, de 6 de Novembro de 2007.
269
Cf. al. m), n.º 1 da Resolução n.º 172/2007, de 11 de Outubro de 2007.
270
Como resulta do Capítulo 2 da Parte I, actualmente, as companhias têm de comunicar
obrigatoriamente os sinistros ao Ministério Público. E são os serviços do Ministério Público que
passam a representar o sinistrado na tentativa de conciliação com a seguradora. O Ministério
Público conduz o processo e, caso siga para fase contenciosa, pode patrocinar o sinistrado.
muito grande em termos de informação por parte dos cidadãos quanto esta matéria
desde logo no que respeita à percepção que tem sobre o que se entende por
retribuição para estes efeitos‖ (Ent. 28).
―Todas as soluções que visem a desburocratizar esse processo, não havendo indícios
e não regulando a prática e a experiência que as seguradoras têm nesta matéria
indícios de conflitos graves. Tudo o que seja descomplicar é bem-vindo. Quanto mais
podermos descomplicar melhor, mas se descomplicarmos um bocadinho será sempre
melhor do que o sistema actual. Eu não estou identificada com o sistema de mediação
laboral. Se for mais fácil que o processo judicial, será bem-vindo obviamente. Se
pudermos evitar a mediação, porque só se vai mediar conflitos e se as partes se
poderem entender, não faz sentido haver mediação. (Ent. 23)
―Na minha opinião isto só devia funcionar com seguradoras. Aí não há pressão do
patrão. (…).‖ (Ent. 21)
―Estes processos legislativos são, por regra, atirados para o fim da sessão legislativa e
são feitos a correr. A Lei 98/2009, de 4 de Setembro foi feita na AR em condições muito
pouco dignas tendo em conto o processo legislativa que estava em causa porque não
havia tempo para uma discussão profunda. Apareceu no meio de um conjunto
vastíssimo de revisão legislativa. Desta forma não foi possível fazer a discussão que
era exigida” (Ent. 18).
271
In
http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.doc?path=6148523063446f764c3246795a5868774d
546f334e7a67774c325276593342734c576c75615668305a586776634770734e7a67324c56677
55a47396a&fich=pjl786-X.doc&Inline=tru (Julho de 2010).
272
Texto não disponível no site da Assembleia da República, com a indicação ―Documento não
disponível!‖.
273
Foi deliberado, por maioria, com os votos a favor do PS e as abstenções do PSD, do CDS-
PP e do PCP, emitir parecer favorável à aprovação do projecto de lei n.º 786/X, com a proposta
de alteração aprovada em sede de apreciação na especialidade. Esta proposta, apresentada
pelo PS e aprovada com os votos a favor do PS, do PSD e do CDS-PP e a abstenção do
Deputado do PCP, foi a seguinte:
275
Os restantes grupos parlamentares tiveram a palavra para comentar/apresentar os restantes
projectos e propostas de lei. Assim, a Deputada Mariana Aiveca do BE teve a palavra para
apresentar o projecto de lei n.º 847/X (4.ª), do BE, a Deputada Helena Oliveira do PSD para
comentar o projecto de lei n.º 780/X, tendo ainda referido relativamente ao projecto de lei n.º
786/X em análise que ―o PSD não se opõe a esta iniciativa mas lamenta que matéria tão
sensível seja colocada em fim de mandato e de forma tão apressada e sem ponderação‖. O
Deputado Pedro Mota Soares do CDS-PP também salientou este aspecto, chamando a
atenção para o seguinte: ―Na semana passada, tivemos aqui a discussão de um conjunto de
propostas de lei do Governo muito extensas; agora temos a discussão de mais estes três
projectos de lei do PS, que também tratam de matérias sensíveis e que, do ponto de vista
técnico, levantam muitas dificuldades” e, ainda, que o Parlamento, e muito especialmente a
Comissão de Trabalho, Segurança Social e Administração Pública, vai ter de legislar sobre
estas matérias (quase 800 artigos na sua totalidade) ―literalmente a correr, sem acautelar a
necessária ponderação técnica, um período de audições, de ponderação, de apresentação de
propostas alternativas, o que objectivamente será sempre péssimo conselheiro para a forma
como se legisla nestas matérias” e que, mais grave, ―estamos a debater em 3 ou 4 minutos
matérias sobre as quais nem temos a possibilidade de colocar questões concretas ao PS‖.
Finda esta breve discussão, o projecto de lei n.º 786/X foi colocado à
votação na generalidade e foi aprovado, com votos a favor do PS, votos contra
do PCP, do BE, do PEV e de uma Deputada não inscrita e as abstenções do
PSD, do CDS-PP e de um Deputado não inscrito. Assim, no dia 10 de Julho de
2009, o projecto de lei baixou à comissão de especialidade (Comissão de
Trabalho, Segurança Social e Administração Pública), tendo o respectivo
relatório de discussão e votação sido publicado no Diário da República, II série,
N.º 166/X/4 2009.07.25 (pág. 34-109)276.
276
In
http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=34568
(Julho de 2010)
―O Partido Social Democrata protesta mais uma vez pela forma intempestiva,
imponderada e apressada como o Partido Socialista pressiona a Assembleia
da República, com base na maioria absoluta de que dispõe, para fazer aprovar,
em fim de Legislatura, mais este diploma. Na verdade, a complexidade e
melindre que a regulamentação destas matérias implica exigem uma aturada
maturação e sopesamento das diversas soluções possíveis, por forma a
assegurar uma boa técnica legislativa e uma boa solução para a economia,
empregadores e trabalhadores. Ao coarctar um debate amplo e com tempo,
profundo e esclarecido, o Partido Socialista atropela os fundamentos básicos
do sistema democrático ao fazer refém da sua maioria a discussão parlamentar
e, ao escolher o agravamento das onerações sobre o trabalho e as empresas,
prejudica a economia, os empregadores e os trabalhadores, em suma o País‖.
277
Cf. N.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro: ―1 - Se, em consequência da
lesão resultante do acidente, o sinistrado não puder dispensar a assistência constante de
terceira pessoa, terá direito a uma prestação suplementar da pensão atribuída não superior
ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço
doméstico”. Ou, ainda, o artigo 24.º do mesmo diploma legal que refere que ―A incapacidade
permanente absoluta confere direito ao pagamento das despesas suportadas com a
readaptação de habitação, até ao limite de 12 vezes a remuneração mínima mensal
garantida mais elevada à data do acidente” e o artigo 23.º onde se pode ler que ―A
incapacidade permanente absoluta ou a incapacidade permanente parcial igual ou superior a
70% confere direito a um subsídio igual a 12 vezes a remuneração mínima mensal
garantida à data do acidente, ponderado pelo grau de incapacidade fixado, sendo pago de
uma só vez aos sinistrados nessas situações‖.
278
O referido normativo dispõe da seguinte forma: ―1 - A prestação suplementar da pensão
prevista no artigo anterior é fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de
1,1 IAS‖. No n.º 4 do mesmo dispositivo legal refere-se que as prestações suplementares são
anualmente actualizáveis na mesma percentagem em que o for o IAS.
De acordo com este normativo: ―2 - No caso previsto no número anterior, o sinistrado tem
279
direito ao pagamento das despesas suportadas com a readaptação de habitação, até ao limite
de 12 vezes o valor de 1,1 IAS à data do acidente‖.
280
Neste sentido:
281
In
http://app.parlamento.pt/DARPages/DAR_FS.aspx?Tipo=DAR+II+s%c3%a9rie+A&tp=A&Nume
ro=166&Legislatura=X&SessaoLegislativa=4&Data=2009-07-25&Paginas=34-
109&PagIni=0&PagFim=0&Observacoes=Relat%c3%b3rio+da+discuss%c3%a3o+e+vota%c3
%a7%c3%a3o+na+especialidade+e+texto+final&Suplemento=.&PagActual=7&PagGrupoActual
=0&TipoLink=0&pagFinalDiarioSupl= (Julho de 2010).
282
Apreciação da CGTP-IN da Proposta de Lei n.º88/X que regulamenta os artigos 281º a 312º
do Código do Trabalho, relativos a acidentes de trabalho e doenças profissionais.
283
Merece ainda sublinhar-se que, quanto ao regime de remição de pensões a que a seguir
faremos referência, esta força sindical propõem a ―autonomia da vontade dos beneficiários‖,
evitando assim as conhecidas penalizações constitutivas desta modalidade.
284
Cf. Artigo 70.º:
Para outro dos nossos entrevistados (Ent. 18) esta alteração legislativa
pode ter associado um objectivo pernicioso dado que, ―com a evolução médica,
um sinistrado que receba, por exemplo, uma prótese e se esta lhe der
capacidade de ganho, o que pode vir a acontecer é que esse sinistrado deixe
de ter direito a uma pensão‖. Ou seja, é como se o sinistrado não tivesse
sofrido um acidente de trabalho dado que, adquirindo a capacidade de ganho,
este deixa de ser sinistrado.
―E se eu lhe disser que a maior parte dos acidentes de trabalho são in itinere? (…) São
remunerados para correr esse risco também, não é? Portanto, temos que encarar as
coisas. Veja do outro lado. A entidade empregadora não contribuiu nada para o
acidente, ele ocorreu e ainda quer que a entidade empregadora seja responsável por
danos morais, para os quais não teve nenhum contributo?” (Ent. 21)
―A APS sempre se manifestou contrária à indemnização dos danos morais. Até porque
eles não são objectivos. Não são danos objectivos, são danos subjectivos. O regime de
acidentes de trabalho é todo ele um regime objectivado. Ele não tem litigiosidade
quanto ao valor da indemnização, ela está perfeitamente regularizada e controlada.
Introduzir litigiosidade nessa vertente é introduzir morosidade, é introduzir dificuldade
sem que as pessoas sejam indemnizadas o mais rapidamente possível.‖ (Ent. 23)
287
Devido ao seu impacto e às resistências do tecido económico.
288
In
http://app.parlamento.pt/DARPages/DAR_FS.aspx?Tipo=DAR+II+s%c3%a9rie+A&tp=A&Nume
ro=166&Legislatura=X&SessaoLegislativa=4&Data=2009-07-25&Paginas=34-
109&PagIni=0&PagFim=0&Observacoes=Relat%c3%b3rio+da+discuss%c3%a3o+e+vota%c3
%a7%c3%a3o+na+especialidade+e+texto+final&Suplemento=.&PagActual=5&PagGrupoActual
=0&TipoLink=0&pagFinalDiarioSupl= (Julho de 2010)
289
Com a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro estabeleceu-se no n.º 1 do artigo 33.º que
passavam a ser obrigatoriamente remidas as pensões vitalícias de reduzido montante. No n.º 2
do mesmo normativo fixou-se que ―podem ser parcialmente remidas as pensões vitalícias
correspondentes a incapacidade igual ou superior a 30%, nos termos a regulamentar, desde
que a pensão sobrante seja igual ou superior a 50% do valor da remuneração mínima mensal
garantida mais elevada, nos termos que vierem a ser regulamentados‖. Esta matéria foi
posteriormente regulamentada pela referida Portaria n.º 11/2000, de 13 de Janeiro, tendo sido
aprovadas as bases técnicas aplicáveis ao cálculo do capital de remição das pensões de
acidentes de trabalho e aos valores de caucionamento das pensões de acidentes de trabalho a
que as entidades empregadoras tenham sido condenadas ou a que se tenham obrigado por
acordo homologado, bem como, as respectivas tabelas práticas. A mais disto estabeleceu-se
que ―a iniciativa da remição obrigatória das pensões em pagamento cabe ao Ministério Público,
devendo as empresas de seguros, nos casos de pensões a seu cargo, remeter aos tribunais de
trabalho listagens relativas aos pensionistas com indicação do valor actualizado da pensão por
pensionista‖.
290
Cf. Artigo 6.º do DL 142/99, de 31 de Agosto.
291
In
http://www.cnod-deficientes.org/semanario/ANEXO%2001%20(SEM.%2020_08).pdf (Julho de
2010)
fazia parte do orçamento familiar. Ou seja, sinistrados que, apesar de ter sido
decidido judicialmente que teriam direito a uma pensão vitalícia, acabaram por
ver a sua pensão transformada numa quantia única, calculada segundo
critérios de idade e que, portanto, fazem pressupor um critério baseado na
expectativa de vida doa mesmos.
292
In http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060058.html (Julho de 2010)
Por outro lado, um pedreiro, por exemplo, pode fazer obras na sua
própria casa. Dessa actividade advém um rendimento que o sinistrado perde
mas que, todavia, não é considerado fiscalmente. Esta solução legal vem,
portanto, e como salienta um dos nossos entrevistados ―tentar fazer com que
não se atenda a uma solução equitativa atendendo à realidade concreta‖,
acrescentando, ainda, que, na prática, ―o legislador tenta impor limites ao que
integra o direito de indemnização, estabelecidos de forma consolidada no CC e
sobre os quais a jurisprudência se pronunciava, em regra, de forma adequada
e satisfatória‖ (Ent. 29).
Danos Futuros
A matéria dos danos futuros também teve um novo tratamento dado pela
Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio. Até esta data, a nossa jurisprudência, de
forma consolidada, entendia que no cálculo dos danos futuros deveria ser
devidamente ponderado todo o circunstancialismo, defendendo-se, ainda, que
mesmo quando não há perda de rendimento concreto podem ser atribuídos
danos futuros. Todavia, no preâmbulo daquele diploma legal lê-se, que ―uma
das alterações de maior impacte será a adopção do princípio de que só há
lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação
incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional
habitual ou qualquer outra‖. Esta nova orientação, nas palavras de um dos
nossos entrevistados é uma ―machadada na nossa jurisprudência‖ (Ent. 29).
―Não vale a pena ir gastar dinheiro com advogados uma vez que o sinistrado não tem
mais direitos do que os aí plasmados”; e, por outro, porque as seguradoras recorrem
ao argumento da morosidade da justiça e “o sinistrado convence-se que não lhe
compensa recorrer aos tribunais‖. (Ent. 29)
293
Cf. Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto que transpôs a 5.ª Directiva Automóvel.
acabou por criar armas a favor das seguradoras e contra o efectivo e integral
ressarcimento dos danos sofridos pelo sinistrado.
―Entre a tabela de 1993 e esta tabela de 2007 há alterações muito prejudiciais para os
sinistrados‖ (Ent 15).
Tal vale dizer que se um sinistrado do trabalho tiver sofrido uma destas
lesões não terá direito a ser indemnizado uma vez que estas, de acordo com a
TNI de 2007, não reapresentam qualquer incapacidade para o trabalho. A isto
acresce que, como já referimos, os trabalhadores desenvolvem muitas vezes
outras actividades das quais podem obter rendimentos. A lesão que resultar do
acidente pode prejudicar os ganhos daí decorrentes, não estando, todavia,
prevista uma avaliação pericial e a consequente reparação desses prejuízos.
Se, por outro lado, quisermos comparar a TNI de 1993 e a TNI de 2007,
relativamente ao aparelho locomotor, temos o seguinte panorama regressivo:
Por fim resta salientar uma alteração legal que, à primeira vista, poderia
ser um avança para a protecção dos sinistrados mas que, na prática, se
traduza apenas em dificuldade de aplicação. Segundo a TNI de 2007, nos
casos de incapacidade absoluta para o trabalho habitual prevê-se que o
sinistrado seja avaliado por uma junta pluridisciplinar, acrescentando-se que
esta deve ser composta por um médico da seguradora, um médico do tribunal
e um médico do sinistrado. Acontece, dada a redacção, não se percebe onde
está a pluridisciplinariedade pretendida pelo legislador dado que não se diz
nada sobre especialidades distintas ou outras áreas de saber. Provavelmente o
que o legislador teria em mente seria que, este tipo de incapacidades, dada a
sua gravidade, deveria ser avaliado, não só por médicos, mas também por
outro tipo de especialistas, designadamente na área da saúde ocupacional.
Todavia não foi isso que foi dito e a isto acresce uma outra dificuldade. O CT já
previa que a junta médica fosse composta por três médicos, como agora se
volta a referir no diploma legal em análise. A questão que se poderá colocar
perante esta redacção é a de saber se se trata de uma mera redundância ou
se, pelo contrário, o legislador pretendia que assim também passasse a ser na
fase conciliatória e já não só na fase contenciosa.
294
Cf. Artigo 4.º, n.º 1, al. h: ―Estão isentos de custas: (…) Os trabalhadores ou familiares, em
matéria de direito do trabalho, quando sejam representados pelo Ministério Público ou pelos
serviços jurídicos do sindicato, quando sejam gratuitos para o trabalhador, desde que o
respectivo rendimento ilíquido à data da proposição da acção ou incidente ou, quando seja
aplicável, à data do despedimento, não seja superior a 200 UC, quando tenham recorrido
previamente a uma estrutura de resolução de litígios, salvo no caso previsto no n.º 4 do artigo
437.º do Código do Trabalho e situações análogas‖.
295
Ainda não se aplica no âmbito dos acidentes de trabalho uma vez que ainda não foi
aprovado o diploma referente à mediação.
CAPÍTULO 4
O ACIDENTE E O LABIRINTO DA SINISTRALIDADE
O Acidente e Labirinto da Sinistralidade
papel que este operador assume no sinuoso percurso que o sinistrado tem que
percorrer, desde o acidente de trabalho até à reparação dos danos sofridos.
Retomando sucintamente a exposição que fizemos no Capitulo 2, relembramos
que, iniciando-se o processo e a sua fase conciliatória, é ao Ministério Público
que cabe a direcção do processo, nomeadamente solicitando aos serviços
médico-legais a realização de perícia médica. Depois, segue-se a tentativa de
conciliação, pertencendo ao Ministério Público a tarefa de representação do
sinistrado e de presidir à diligência. A função do Ministério Público neste acto é
a de “promover o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei,” (cf.
artigo 109.º do CPT). Se desta diligência não resultar o acordo das partes, o
Ministério Público deve recolher os elementos necessários à elaboração e
apresentação da petição inicial, nomeadamente no que respeita ao apuramento
da retribuição do sinistrado. Compreende-se, portanto, a centralidade da figura
do Ministério Público que, aliás, também nos foi frequentemente retratada pelos
nossos entrevistados.
“O MP faz falta na fase conciliatória. Porque é na fase conciliatória que são – ou devem
– ser recolhidos a maior parte dos elementos. Por exemplo, a questão da retribuição é
fundamental. Porque é com base na retribuição que é calculada a pensão. E portanto
se não houver a preocupação de uma recolha exaustiva de todos os elementos que
componham a retribuição do trabalhador, é óbvio que ele vai ser prejudicado. (…) E
esse é um trabalho que tem de ser feito logo na fase conciliatória pelo MP”. (Ent. 16)
“Veio aqui uma senhora, jovem, estava de baixa, e sofria de amputação da mão
esquerda e perdeu todas as funções da mão direita. E pediu-nos que fossemos com
ela ao tribunal, e eu fui com a senhora. O Ministério Público não ouviu a senhora,
aquilo foi feito com a funcionária do tribunal, e eu pedi uma cópia do auto de
Como podemos ver através deste caso que ilustra algumas das
situações que encontramos no terreno, os sinistrados, para além de não
conhecerem os seus direitos e não saberem onde e a quem recorrer, deparam-
se com a dura realidade de serem colocados, sozinhos, perante toda uma
equipa de pessoas devidamente preparadas, que actuam em defesa da
seguradora. E isto acontece porque, aqueles que deveriam actuar em sua
defesa, nem sempre o fazem e quando o fazem, fazem-no, não raras vezes, de
forma displicente. Casos de procuradores que não atendem pessoalmente os
sinistrados, que não falam com os sinistrados, que sequer chegam a conhecer
as suas histórias de vida e que não estão presentes nas diligências são
frequentemente relatados.
“A maior parte dos procuradores que foram para os Tribunais de Trabalho não tinham
nada a ver com a área do direito de trabalho nem dos acidentes de trabalho. Vinham
296
A lei 60/98, de 27 de Agosto marca a diferença pelo facto de abandonara designação de “lei
orgânica” e adoptar a de “Estatuto”.
“Vê-se, e nós temos casos desses lá em cima, que procuradores não sabem articular
uma acção de acidente de trabalho, nomeadamente quando ela é mais complicada.
Então nos acidentes in itinere é uma desgraça. Normalmente é só conclusões e os
factos não estão lá” (…) O MP tem de se consciencializar de que tem de estudar, tem
de aprender e se calhar de se especializar nesta área; os procuradores que estão
agora no Tribunal de Trabalho têm de investir nesta área e eles vão ser obrigados a
investir se se mantiver o mesmo sistema até aqui: que é a fase conciliatória nos
Tribunais de Trabalho” (Ent. 16).
(…) Eu acho que os senhores magistrados que estão ligados à reparação do dano, no
civil, mas sobretudo no trabalho, são magistrados muito empenhados e que revelam
em todas as situações uma defesa inquestionável dos sinistrados. Eu admiro a postura
dos magistrados, acho que são pessoas vocacionadas para defender até à exaustão os
direitos dos sinistrados. (Ent. 15)
“Um dos nós górdios nesta matéria é a produção de prova. E aqueles que viram,
muitas vezes inibem-se e não dizem tudo o que viram – porque são pressionados pela
entidade patronal ou mesmo pela seguradora, porque a responsabilidade às vezes é
repartida, e portanto aqui, às vezes, há um conluio em relação à prova testemunhal”.
(Ent. 16)
“Há vários casos, e eu já tenho acórdãos escritos sobre isso, a desmontar toda essa
valoração, essa mecânica, esse modo de valorar a prova. Testemunhas que as
seguradoras indicam, que não estiveram no local do acidente, elas próprias o dizem,
mas foram, passados 15 dias ou um mês, fazer avaliações com aquelas empresas de
avaliação… Portanto o perito avaliador foi falar com A, B e C que lhe contou a história.
Muitas vezes são dadas como testemunhas os peritos avaliadores e os relatórios que
eles fazem são entregues no processo e os juízes valoram esses relatórios… Isto é
que é grave!” (Ent. 16)
“Eu nunca fiz nenhum acidente de trabalho ou de viação em que não fosse ao local. É
a única maneira. E toda a gente aqui ficou de boca aberta. Agora já percebo porque é
que aparecem situações destas na Relação…” (…) “eu ia às empresas… e não era só
eu! Íamos às empresas fazer o julgamento. Saber qual era o ambiente que se vivia
naquela empresa. Caso contrário, não temos hipótese nenhuma!” (Ent. 16)
“Há decisões pouco cuidadas. E todas elas em primeira instância. Pouco cuidadas.
Menos ponderadas. De facto houve algumas decisões que nos espantaram, feitas com
algum facilitismo… essencialmente pelo Ministério Público. Mas também, depois, o juiz
também… se calhar não estudava tanto os processos e confiava no Ministério Público.
Mas houve muitos processos que, até há pouco tempo, nos deixaram muito
incomodados”. (Ent. 5)
“Mas acho que é importante a presença deles por várias razões. Às vezes a gente
[peritos] tem dúvidas... Ele próprio pode ter dúvidas... E é mais fácil... Atendendo que
na nossa profissão nós temos uma linguagem de fácil acesso e se as pessoas
entenderem torna-se tudo muito mais fácil para depois, em termos de decisão. Eu
considero que é importante a presença do Sr. Dr. Juiz”. (Ent. 15)
A advocacia, por sua vez, começa a intervir cada vez mais nos
processos emergentes de acidentes de trabalho. No entanto, e mais uma vez
segundo o que resultou do nosso trabalho de campo, tal não se reflecte numa
maior preparação por parte da classe mas sim numa tentativa de conseguir
contornar as consequências da massificação da profissão e, diga-se, da
precariedade profissional em que muitos dos seus pares se encontram. Esta
conclusão resulta de testemunhos de alguns dos nossos entrevistados que, ao
referirem-se à preparação dos advogados, caracterizam a sua intervenção da
seguinte forma:
companhias de seguros face ao sinistrado” (Ent. 15). Além disso, o preço das
perícias médico-legais e do recurso a um perito médico próprio constitui, por si,
um outro obstáculo à defesa do sinistrado.
Por que razão as seguradoras não dão aos sinistrados o conteúdo integral da
sua situação clínica, para que eles possam a fazer a sua própria avaliação? As
pessoas devem poder dispor de toda a sua informação clínica, sob o
argumento legalmente precário de que os exames são realizados e financiados
pela actividade seguradora, pelo que são seus proprietários. Esta realidade
constitui uma violação flagrante dos direitos fundamentais dos sinistrados e um
atentado aos direitos fundamentais dos cidadãos. A exposição do sinistrado a
múltiplas avaliações deve ainda ser repensada, não devendo tratar-se de um
acto forense trivial, antes da sujeição dos corpos lesados a um escrutínio
invasivo e não raras vezes doloroso.
2. O APURAMENTO DA RESPONSABILIDADE: A
TRIANGULAÇÃO ENTRE SINISTRADO, SEGURADOR A
E ENTIDADE PATRONAL
Caso 1
O sinistrado, pedreiro de 34 anos, faleceu quando este, juntamente com outros colegas de
trabalho, colocavam uma manilha dentro de uma vala e se deu um desabamento de terra
provocado pelo facto de as paredes da vala na se encontravam escoradas. Neste processo,
além da questão do valor da retribuição auferida pelo sinistrado (75.700$00 alegado pela
seguradora contra os 110.000$00 alegado pela viúva), discutia-se a responsabilidade pela
ocorrência do acidente: apesar das rés (seguradora e entidade empregadora) aceitarem o
acidente como sendo de trabalho, a seguradora não aceita a responsabilidade pela pensão
vitalícia devida à beneficiária, uma vez que considera que houve violação das regras de higiene
e segurança no trabalho por parte da entidade empregadora. Não tendo as partes logrado
conciliarem-se, fez o julgamento e ambas as rés foram condenadas.
Caso 2
A entidade patronal também contestou alegando que não houve de sua parte violação das
normas de segurança e que a responsabilidade estava totalmente transferida para a
“Era um senhor que trabalhava num moinho, estava sozinho, e sempre esteve, e
havendo uma avaria qualquer, ele tentava resolver a avaria. O dono do moinho
praticamente nunca lá estava e ele fazia e desfazia. A certa altura, falhou a luz. O
quadro eléctrico foi abaixo e o moinho parou. O senhor, como costumava fazer, tentou
ver o que é que se passava. Tinha a chave e foi ao quadro. Abriu-o e morreu. Ficou
electrocutado. A esposa, em tribunal, deparou-se com a questão do conteúdo funcional
do marido. Segundo ela, ele sempre fez aquela tarefa e o patrão sabia que ele fazia
aquilo, tendo-lhe mesmo entregue a chave do quadro, apesar daquela não ser a área
dele, porque ele não era electricista. O que se alegou em julgamento foi que a
obrigação dele deveria ser a de telefonar ao patrão para este enviar um electricista.
Mas não fez isso. Tentou desenrascar-se, como sempre tinha feito. O Ministério
Público, perante este mesmo relato, considerou que a viúva não tinha direito a qualquer
indemnização, porque, de facto, ele fez aquilo que não lhe competia fazer.” (Ent. 5)
“Há casos em que o acidente foi numa máquina, nós perguntámos se a máquina tinha
os sistemas de protecção e dizem-nos que tinha mas não eram usados porque o patrão
decidiu tirá-los para que a produção fosse mais rápida ou porque, naquela máquina, se
estiver o sistema de protecção implementado, há determinadas peças que não se
conseguem fazer ali e tem de se mudar para outra máquina, ou se calhar o patrão tem
de comprar outra máquina… e para poupar dinheiro, correm-se alguns riscos. Eles [os
trabalhadores] reconhecem que às vezes sabem que estão a correr alguns riscos, mas
mesmo assim fazem. Agora, a culpa. A culpa essencialmente é da falta de
conhecimento de muitas empresas e de muitos patrões – essencialmente pequenos
patrões, que não têm noção nenhuma do que é trabalhar em segurança, porque
também nunca ninguém lhes ensinou, nunca houve acções de formação quer da parte
dos industriais, quer fundamentalmente dos órgãos do Estado, para tentar sensibilizar
as pessoas para a necessidade de uma protecção maior.” (Ent. 5)
“O sistema judicial responde mal às pessoas porque não tem instrumentos eficazes
para identificar outros problemas que não a culpa. Não havendo culpa, o sistema anda
à procura de fantasmas. A responsabilização pelo acidente deve implicar não apenas
os intervenientes directos, mas compreender as causalidades indirectas. É
absolutamente claro, e nomeadamente o Ministério Público, nunca vai investigar estas
causalidades indirectas, ou porque são difíceis de provar e enquadrar”. (Ent. 12)
A este respeito foram-nos ainda retratados os seguintes casos que, aliás, foram
sobejamente noticiados pelos meios de comunicação:
Esta temática está directamente relacionada como uma outra por nós já
abordada no que respeita aos acidentados do trabalho. Como já referimos,
quando um acidente de trabalho ocorre por culpa da entidade empregadora e o
sinistrado alega tal factualidade este depara-se com o enorme obstáculo do
ónus da prova. Para o superar o sinistrado teria ao seu dispor a prova
testemunhal dos seus colegas de trabalho que, como se percebe, foram os
únicos a assistir ao acidente. No entanto, dadas as relações de subordinação e
dependência, entre as únicas testemunhas oculares e a entidade empregadora,
aquelas acabam quase sempre por se recusar a prestar depoimento ou, sendo
ainda assim convocadas para o efeito, defendem-se com a desculpa de que
nada viram ou de que nada sabem sobre o assunto.
Caso 3
exclusivamente para a entidade patronal. Para tanto informou os autos que não assumiria
qualquer responsabilidade pelo sinistro uma vez que o sinistrado não constava das respectivas
folhas de férias enviadas pela entidade patronal. Em consequência, suspendeu todos os
tratamentos que estava a ministrar ao sinistrado numa altura em que o mesmo se encontrava
totalmente dependente da ajuda de terceira pessoa. Até esta data a seguradora já tinha pago
ao sinistrado uma indemnização no valor de 4.00,00 euros.
Agendada tentativa de conciliação, a mesma foi adiada por um mês dada a falta de
comparência dos representantes legais da entidade patronal. Na segunda data, voltando a não
comparecer os representantes legais da entidade empregadora, as partes presentes, sinistrado
e seguradora, declararam as suas pretensões e a seguradora reiterou a sua posição. Numa
nova audiência de tentativa de conciliação realizada um mês mais tarde, já com a presença da
entidade patronal, esta defende-se alegando, designadamente, que não aceita que o acidente
se tenha devido a qualquer avaria do veículo que o sinistrado conduzia. Já em fase
contenciosa, a entidade patronal passou a alegar a descaracterização do acidente como
acidente de trabalho, atribuindo a culpa do mesmo ao sinistrado por “grosseira, voluntária e
injustificada violação dos deveres rodoviários”.
Realizado o julgamento, considerou-se que “O A ficou quase cego, parcialmente surdo e com o
lado esquerdo do seu corpo semi-paralisado e sem sensibilidade”, atribuindo-lhe o tribunal uma
IPP 73,84%. Em consequência foi a entidade empregadora condenada a pagar ao sinistrado
7.034,84 euros referentes à diferença de indemnização pelos períodos de incapacidade
temporária recebida pelo sinistrado e que resulta da diferença salarial; uma pensão anual e
vitalícia de 17.372,00 euros; prestação suplementar por necessidade de assistência de terceira
pessoa, correspondente ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os
trabalhadores em serviço doméstico; 4.630,08 euros a título de subsídio por elevada
incapacidade; e, ainda, 45.000,00 euros a título de danos não patrimoniais. A seguradora, por
seu, lado foi absolvida de todo o pedido. A entidade patronal recorreu para o Tribunal da
Relação que lhe negou provimento, mantendo a decisão recorrida.
sinistrados quando confrontados com a falta total de apoio por parte das
diferentes instituições:
Mas este drama vai, ainda, mais além. É que, mesmo quando não se
verificam atritos ou pendências judiciais, os atrasos no pagamento das
indemnizações por parte das companhias de seguros ou da entidades
empregadoras são frequentes e, como bem se compreende, são sinalizados
pelos sinistrados como mais um factor de vulnerabilização. Outra problemática
coloca-se quando a entidade responsável pelo pagamento da indemnização
acaba por não pagar ao sinistrado. É nestas situações que se justifica a
intervenção do FAT. Mas, segundo opinião maioritária dos nossos
entrevistados, o FAT tem uma intervenção muito tardia dado que, por regra,
apenas é chamado a intervir depois da declaração de insolvência da entidade
responsável pela indemnização. Entretanto e enquanto se apura se aquela
“O objectivo do FAT é, de facto, importante. Agora há muitas coisas que devem ser
revistas… que devem ser mais profundamente analisadas. O Ministério Público apenas
faz a transferência para o FAT quando é feito o pedido de falência da empresa… e isso
demora muito tempo… Antes disso procura-se, através do solicitador ou dos serviços
do tribunal, fazer penhoras a bens… O FAT devia responder, como deriva da própria
lei, perante entidades que não têm a sua transferência feita para nenhuma companhia
de seguros, e depois terá o direito de regresso quanto à entidade patronal. (…) Ainda
no outro dia aconteceu um caso idêntico, em que o senhor já está, desde Janeiro deste
ano, sem receber qualquer retribuição exactamente porque quem foi condenada foi a
entidade patronal, assumiu toda a responsabilidade, é um caso muito grave…. Já
foram penhorados alguns bens, que ninguém sabe se existem, já foi pedido ao tribunal
para que o FAT respondesse pela pensão daquele trabalhador, mas o FAT só
responde depois de empresa ser declarada insolvente… E entretanto o trabalhador
continua sem retribuição… Por que é que não há-de o FAT, a pedido do tribunal,
começar a pagar as prestações que são devidas ao sinistrado? (…) A responsabilidade
já está apurada… no auto de conciliação a entidade patronal responsabilizou-se pela
indemnização por elevada incapacidade, por terceira pessoa, tudo isso. Só que não
tem por onde lhe pagar. Se o FAT respondesse de imediato… e depois seria ressarcido
pela entidade patronal… O trabalhador é que não pode, de forma alguma, estar sem
receber qualquer retribuição.” (Ent. 15)
reparação dos danos sofridos, apenas se podendo socorrer, como aliás resulta
do nossos trabalho de campo, de familiares que continuam a ser o suporte
social da nossa sociedade. Pelo resultado no nosso trabalho de campo parece-
nos que também aqui o MP revela mais uma faceta da já mencionada falta de
pró-actividade, não se tendo conseguido apurar quaisquer diligências que
sejam encetadas para, numa situação deste tipo, promover uma maior
protecção social do sinistrado.
“Portanto o meu seguro estava em dia, só que veio-se a descobrir que o seguro estava
pelo ordenado mínimo nacional e eu ganhava mais… estava a pagar-me abaixo da
tabela e nunca me tinha pago o subsídio de alimentação, a que tinha direito”. (S3)
“Foi o tribunal de trabalho, o procurador. Portanto o único problema que eu tenho tido
em termos de ordem legal é com a entidade empregadora.(...) Sinceramente, a culpa
foi minha, porque… mas eu na altura nunca me passou pela cabeça. Eu levava os
cheques, ficava com os cheques assinados em branco, tudo, tudo… nunca… eu fazia
os pagamentos à segurança social, ia levar as folhas, tudo… nunca tinha ficado com
ideia de que estivesse a ser lesada de alguma forma. E fui.” (S3)
“Não. Quer dizer, o salário era, mas o meu patrão não declarava o subsídio de
alimentação. E portanto esse subsídio de alimentação nunca me foi pago. A entidade
patronal como não declarava… e eram logo 6,5 euros por dia, sr. dr…. era muito
dinheiro. Por isso é que eu pedi ao patrão para me deixar ir trabalhar.” (S4)
297
Ainda assim, como veremos, os números relativamente baixos alusivos a esta realidade não
exprimem a sua relevância, nomeadamente pelo facto de a notação das estatísticas da justiça
obrigar à selecção de um objecto de acção quando, muitas vezes, são vários os conflitos
resolvidos em fase contenciosa.
Caso 4
Trata-se de um acidente mortal, que vitimou um jovem de 27 anos, motorista, com um
rendimento mensal declarado de cerca de 620 euros, que tinha sob sua dependência
económica a esposa, dois filhos e uma enteada. O advogado da viúva alega que a vítima
recebia, à data do acidente, a retribuição base de 1 047,48 euros mensais (acrescidos de 98,76
mensais de subsídio de alimentação). No que toca a responsabilidade da companhia de
seguros, esta aceita integralmente as suas obrigações reparatórias, na proporção do
rendimento declarado. Porém, a família do sinistrado alega que este recebia, mensalmente e
com regularidade, dois cheques, um com o valor indicado pela entidade patronal, e outro com o
remanescente.
Acontece que a entidade patronal insistia que “o segundo cheque” mensal não era salarial,
servindo apenas para pagar as despesas de manutenção da viatura, que o trabalhador
adiantava. Arrolou o contabilista para o comprovar. O contabilista compromete-se com a
entrega dos recibos das despesas até à audiência de discussão e julgamento – coisa que não
fez, pelo que se concluiu tratar-se de uma prática fraudulenta. O advogado da entidade
patronal, na audiência, afirma perder a confiança no cliente e renuncia ao seu patrocínio, pelo
facto de a testemunha (contabilista) que chamou a depor ter afirmado possuir os documentos
comprovativos, coisa que não aconteceu: “não obstante as várias insistências por parte do
mandatário da aqui ré patronal, nunca chegaram às suas mãos. Assim, entende o mandatário
da mesma co-ré [entidade patronal] não ter condições materiais e de confiança para prosseguir
com o seu mandato”.
Conclusão: a entidade empregadora foi obrigada a assumir a responsabilidade indemnizatória
perante a família da vítima e o contabilista sofreu uma multa elevada pela manobra de
diversão. Na execução da sentença foi ainda alegada falta de liquidez por parte da entidade
patronal, possuindo uma dívida indemnizatória de cerca de 100 000 euros para com a família.
Passa-se à penhora dos respectivos bens, processo que ainda se pautou por acidentes
diversos e morosos, sem intervenção do Fundo de Acidentes de Trabalho.
Num outro processo por acidente de trabalho, corrido num outro tribunal,
em que a base de cálculo da reparação é igualmente alvo de disputa na fase
contenciosa do processo
Caso 5
A vítima, mulher, tinha 23 anos e era auxiliar de educação numa creche (IPSS), dispondo de
um rendimento mensal aproximado de 470 euros. Porém, a entidade patronal não efectuava o
pagamento de subsídio de alimentação à trabalhadora 298, na medida em que a mesma
almoçava na cantina da creche. Esta realidade constituiu o cerne da contenda, concluindo-se
pela irregularidade da prática patronal, que prejudicara o direito reparatório da vítima: “a
sinistrada tem direito a receber o respectivo valor que o recebia em espécie. [...] A entidade
patronal só transferiu para a seguradora o valor de 414,5 euros – ordenado base –, não
transferindo o valor relativo ao subsídio de alimentação nem às ajudas de custo pagas
mensalmente com carácter de habitualidade”.
298
Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/05/2008 e Acórdão do STJ de
13/01/93.
“O Ministério Público tenta ver isso, mas o próprio Ministério Público também é uma
pessoa sensata, se apurar que há um desfasamento… é capaz de não dizer nada
porque não quer criar um conflito. A principal preocupação é verificar se o segurador
está a agir correctamente depois tenta saber se não há um desfasamento grande. E se
houver diz ao sinistrado que há ali… E é obvio que isto pode criar um conflito, mas nem
sempre cria, eu já tive alguns exemplos que era ignorância do empregador e não sabia
que tinha de transferir aquilo. Mas pode criar e essa parte preocupa-me.” (Ent. 21)
CAPÍTULO 5
DANO, PERÍCIA E REPARAÇÃO
Dano, Perícia e Reparação
INTRODUÇÃO
299
A enunciação da deficiência como diferença cultural permite-nos alargar o escopo analítico
do fenómeno e compreender como, historicamente, é tão verdadeira a desqualificação como a
dignificação: “no antigo Egipto, os cegos os anões ou as crianças com malformações
300
Neste sentido: “Os romanos tinham direito a matar os filhos que nasciam com deformidades
se, depois de mostrados a cinco vizinhos, estes dessem o seu consentimento. A Lei das XII
Tábuas, redigida em Roma e promulgada nos anos 542-541 a. C. Ampliou ainda mais o direito
do pai a dispor da vida dos filhos, até ao ponto deste poder privar a vida de uma criança
disforme, depois do nascimento, sem necessidade do consentimento de alguma pessoa. No
entanto, esta prática não era norma comum em Roma. As crianças eram abandonadas no rio
Tibre, em cestas de flores, talvez para provocar a compaixão e evitar assim a morte ou
tranquilizar a consciência.” (Montalvo; Hernández apud Magalhães, 1998: 27).
301
A compaixão diferencia-se da piedade pela distância e pelo estatuto do observador face ao
sujeito observado em sofrimento. A segunda demarca-se da primeira pela sua imunidade
perante a experiência da dor: “Os sofredores infortunados estão distantes; não podem ser
objecto de uma acção imediata” (Boltanski, 2001: 6).
302
Recuando um pouco mais, no Paleolítico, descobertas antropológicas sobre tribos nómadas
comprovam a tolerância daqueles grupos à incapacidade física, contrariando as visões mais
funcionais da socialidade (Hamonet e Whitehead, 1994). Já na civilização helénica, a
deformidade congénita era considerada contranatural, sendo por isso causa de exclusão da
cidadania. Ainda assim, terá sido no consulado de Péricles que a indigência, a invalidez e a
mutilação suscitaram as primeiras abordagens assistenciais, bem como a primeira forma
estruturada de solidariedade baseada na ideia de recompensa (Geertz, 1962).
estatuto epistémico e normativo dos lesados corporais, a partir daquilo que foi o
contributo do racionalismo científico e a afirmação moderna dos ideais de
liberdade e igualdade:
globais, é possível afirmar que, na Idade Média, se verifica uma retracção no sentido de
responsabilidade perante o lesado, agravada inclusivamente pela estagnação médica devido à
orientação dos saberes para os textos antigos, negligenciando a observação clínica e as
investigações fisiológicas e anatómicas.
A ruptura operada pela modernidade trouxe uma nova forma de enquadrar o dano corporal,
reenunciando progressivamente o problema na óptica da responsabilidade pública, embora
emprestando-lhe objectivos repressivos e reclusivos no sentido de assegurar a estabilidade
ontológica da sociedade. As tecnologias de poder desenhadas e executadas sofisticaram
sobremaneira os modelos de organização e ordenação social e o relevo da integridade corporal
e da subjectividade individual é claramente ampliado. É aliás no século XVII que surgem as
primeiras organizações especializadas no tratamento socioclínico dos soldados inválidos, bem
como as primeiras indemnizações por ferimentos de guerra.
303
Ai pode ler-se que “Por pessoa com handicap entende-se toda a pessoa que na sequência
de uma deficiência das suas capacidades físicas e mentais, congénita ou não, não consegue
assegurar, no todo ou em parte, e pelos seus próprios meios, as necessidades de uma vida
individual e/ou social normal”. Cf. também Hamonet (1994).
304
As primeiras tentativas de quantificação do dano para fins indemnizatórios, isto é, de
classificar e avaliar o prejuízo corporal com o objectivo de auxiliar a prática de justiça perante
um corpo lesado, encontram-se na Tábua de Nipur n.º3191, de 2050 a.C., através da qual se
elencavam incapacidades, a que se faziam corresponder quantias monetárias. Há vários
documentos históricos alusivos às diferentes formas de se proceder à correlação entre dano e
indemnização. Um dos exemplos mais nítidos e significativos é o Mincha ou Segunda Lei,
redigido nos primeiros séculos da era cristã, que estipulava valores específicos para o dinheiro
da dor, os custos do tratamento, o tempo perdido e o dinheiro da honra associados ao dano no
corpo e à responsabilidade daí emergente.
305
A este respeito veja-se: “Quando dois homens se envolverem em questões, e um deles ferir
o outro com uma pedra ou com um punhal, sem causar a morte, mas obrigando-o a estar na
cama, aquele que o tiver ferido não será punido, se o outro se restabelecer e puder sair
apoiado no seu bordão. Contudo, indemnizá-lo-á do trabalho perdido e das despesas com o
tratamento” (Êxodo, capítulo 21, versículos 18 e 19).
306
Antes de avançarmos diga-se que um aspecto historicamente relevante na compreensão da
economização do corpo, isto é, na conversão do corpo numa linguagem económica e num
código de valor, reside precisamente na escravatura. O entendimento dos escravos enquanto
mercadoria de trabalho transaccionável fez com que a sua incapacidade física produzisse um
impacto directo e negativo na força de trabalho à disposição do seu proprietário e na cotação
económica do escravo. A medição desse impacto cumpria, por vias travessas, uma função de
medição do dano e prejuízos emergentes, embora na perspectiva do proprietário e não na
perspectiva da vítima corporal.
Por sua vez, também na história dos árabes pré-islâmicos é possível encontrar registos sobre
valoração moral e corporal em sede de justiça, o que, entre outras coisa, pressupunha que a
mulher valia metade do homem e um judeu ou um cristão valiam um terço de um muçulmano.
Para se proceder à reparação das lesões físicas recorria-se a valores tarifados em função da
anatomia atingida e da gravidade da ocorrência. A perda do valor global da vítima era também
uma forma de se apurar o impacto do dano, pelo que a desvalorização relativa seria muitas
307
Distinção cuja génese, em bom rigor, se encontra no Direito Romano, através da regulação
diferenciada das relações entre particulares (ius civile) e o Direito das Gentes e Direito Natural.
“Há 10 anos atrás havia Lisboa, Porto e Coimbra [delegações do INML]. Nada mais. As
perícias todas, no resto do país, eram feitas por peritos contratados pelos tribunais,
muitas vezes por uma simples razão de amizade com o juiz… às vezes passava de
pais para filhos… sem nenhuma formação pericial, os lugares, sobretudo os que eram
mais rentáveis, até eram vendidos, tipo trespasse como as farmácias, e um perito
quando ia sair de um tribunal de trabalho onde havia muito movimento e se ganhava
muito bem, no final, quando se ia reformar, trespassava o lugar e vendia o lugar por 2
ou 3 mil contos ao colega que lhe oferecesse mais e ele então indicava ao juiz, mesmo
que não tivesse formação pericial nenhuma”. (Ent. 14)
“Isto estimulou a formação das pessoas, porque sabem que de 3 em 3 anos vão ter de
concorrer e que pode aparecer um gajo com mais habilitação que lhe passa à frente e
perde o lugar se não vier fazer pós-graduações, se não vier fazer formação em
actividade pericial… Portanto isto melhorou porque criou a necessidade de assegurar
formação contínua e de as pessoas adquirirem qualificação, e isso é inegável: nós
cada vez que abrimos um curso de avaliação do dano corporal concorrem muitos mais
candidatos do que a capacidade de absorver essas pessoas que nós temos. E
portanto, nesse aspecto, a formação e a qualificação dos profissionais que trabalham
para o Instituto e que trabalham nesta área, nomeadamente nos tribunais de trabalho e
em civil, acho que melhorou abissalmente.” (Ent. 14)
“Primeiro, porque ainda não temos todo o número de médicos qualificados de que
precisávamos face ao número de exames periciais que temos. Ainda não há um
número de especialistas, de verdadeiros especialistas, nesta área, que dê resposta a
todas as solicitações do país. Mas Roma e Pavia não se fizeram num dia. Nós temos
hoje quase o dobro dos especialistas que tínhamos quando o INML foi criado. Também
não podemos, de um momento para o outro, formar todos os peritos, porque
naturalmente os médicos não têm essa capacidade (…) o Instituto vai todos os anos
abrindo lugar para 7, 8, 9 especialistas. Como o internato são 4 anos, se começarem
todos os anos a sair 8, 9, nós em 10, 15 anos poderemos criar um primeiro corpo e
hoje, felizmente, já não há só especialistas em Lisboa, Porto e Coimbra, mas já temos
vários gabinetes médico-legais com especialistas.” (Ent. 14)
“Os médicos mais velhos não fizeram nenhum internato, não tiveram nenhum programa
de formação, aprenderam naquela base… depois obtiveram o título de especialistas
quando isto foi criado, por consenso, mas não tiveram formação. Dessa geração,
felizmente, já só restam poucos, mas ainda há alguns, e portanto também nos criam
alguns problemas.” (Ent. 14)
“Também há que reconhecer que há dez anos atrás não havia condições. Como sabe a
maior parte destes exames era feito na sala de audiência do tribunal, mas perícias às
vezes eram feitas na secretaria, se era preciso despir o examinado ou a examinada às
vezes eram à frente das outras pessoas com tudo a tentar deitar o olho… Não havia o
mínimo de condições de dignidade, de intimidade… Muitas vezes nem se olhava para o
sinistrado.” (Ent. 14)
Casos de incompatibilidade
“Eu não lhe posso dizer que não aconteça ainda… a lei permite que, quando não
houver outra possibilidade, possa acontecer, isto é, o perito pode… Há tribunais em
zonas onde não há gente qualificada, e portanto aí a lei permite que, com autorização,
se o juiz autorizar… A lei aconselha a que assim não seja, mas não proíbe… eu
conheço bem a lei porque fiz parte da comissão que a redigiu… A lei diz que, mediante
autorização… Porque às vezes não há outra possibilidade, e não podemos criar uma
situação que cause ruptura e que o tribunal depois não possa trabalhar… Porque há
zonas geográficas onde há muito poucos peritos. Se for para Évora, por exemplo, se
for para Beja, são zonas onde há pouca gente com formação pericial. E às vezes,
inevitavelmente, o mesmo perito… Desejavelmente, no futuro, não deverá ser assim. E
eu diria que hoje isso ainda acontece numa minoria de situações, enquanto
antigamente era a rotina.” (Ent. 14)
“Há incompatibilidades. E eu defendo que era urgente – e digo-lhe isto com toda a
sinceridade – eu acho que era urgente que se definissem e que se fizessem avaliações
em relação a pessoas que são peritos e que só podem fazer perícias para os gabinetes
e nunca para as seguradoras. Não pode haver, de forma nenhuma, mistura entre
peritos de seguradoras – e eu tenho todo o respeito por peritos de seguradoras –, mas
cada um tem de estar no seu devido lugar. Um perito não pode ser hoje um perito de
uma seguradora e, noutro tribunal, ser perito de um sinistrado pela medicina legal ou
designado como perito do tribunal. Eu aí sou categórica e defendo que tem de haver
uma separação: o perito da seguradora defende o seu segurado e merece-me todo o
respeito. Portanto defende aquela instituição. E um perito que esteja a representar o
tribunal ou o INML não pode ser perito da seguradora. Eu acho que isso tem de haver e
neste momento eu acho que, de facto, se deve fazer uma investigação e saber... quem
quer ser perito, é. É como um serviço de exclusividade. Se quiser, está, se não quiser,
vai para outro. Agora, de facto, essa mudança... Porque nós nunca conseguimos ser de
tal forma isentos que nos permita ter o mesmo critério e o mesmo rigor perante as
circunstâncias. Mas esta é a minha opinião. Acho que temos um papel... E não fica
bem. Se eu fizesse uma perícia um dia para uma seguradora, outro dia para um
tribunal, eu ia sentir algum desconforto. Não porque eu deixasse de avaliar da mesma
forma, mas porque, de facto, estava em posições diferentes e isso até poderia criar
alguma angústia na parte dos sinistrados, porque hoje eu estava pela seguradora,
amanhã eu estava no tribunal... Mesmo sendo isenta, podia criar algum desconforto e
isso deve ser evitado. Defendo que cada um deve estar na sua instituição.” (Ent. 15)
Caso 6
Um sinistrado, com 28 anos à data do acidente, metalúrgico, foi atingido por um objecto no olho
esquerdo. Em consequência do acidente foi-lhe atribuída pela seguradora uma IPP de
18,775%. Não tendo concordado com este coeficiente de incapacidade, o sinistrado pediu
realização de exame pericial ao INML que, por sua vez, reconheceu uma IPP de 27,75%. Não
tendo a seguradora, por sua vez, concordado com este coeficiente, requereu a realização de
junta médica que veio a atribuir uma IPP de 21,34%. Em sede de audiência de julgamento a
seguradora foi condenada a pagar ao sinistrado uma indemnização cujo cálculo se baseou
apenas na IPP atribuída pela junta médica, independentemente da existência nos autos de
relatórios periciais divergentes e sem exigência maior de fundamentação.
Uma das causas que certamente contribui para este desfecho e que já
foi por nós retratada prende-se com o facto do sinistrado não ter efectivamente
a mesma capacidade de aquisição de periciais médico-legais. E esta
constatação reflecte-se, por um lado, no facto de não conseguir defender
devidamente os seus interesses em junta médica, mas também no facto de não
conseguir levar ao tribunal peritos que pudessem esclarecer melhor o julgador
e, por consequência, justificar o afastamento relativamente ao resultado
pericial. É certo que as seguradoras também elas poderiam usar da mesma
faculdade e mesmo tendo meios para o efeito, tal não parece reflectir-se nas
decisões finais que, como dissemos, são fies aos resultados periciais. Todavia
este raciocínio sofre de um viés de formulação: é que, como já dissemos, as
seguradoras têm condições para conseguir impor e defender os seus
interesses directamente e logo nas juntas médicas, não se justificando, assim,
a presença de peritos no julgamento.
Caso 7
Um agricultor de 77 anos caiu de uma escada enquanto podava uma videira. Do acidente
resultaram traumatismos dos membros inferiores (mais precisamente, hipotrofia dos músculos
da coxa direita, fractura da rótula, hipotrofia da coxa esquerda, fractura da tíbia e perónio,
lesões do nervo ciático poplíteo interno e limitação da mobilidade articular do joelho). Após
avaliação clínica pelo perito da seguradora foi-lhe atribuída uma IPP de 27,4%. Esta cifra, no
entanto, ficou muito aquém do resultado obtido com a realização da perícia médica requerida
pelo MP ao Gabinete Médico-legal geograficamente competente que lhe atribuiu uma IPP de
60,6%, reconheceu uma IPATQP, confirmou a dependência de terceira pessoa e ajudas
técnicas e, ainda, a necessidade de tratamentos adequados para a sua reabilitação física. Em
Caso 8
Um sinistrado de 48 anos, motorista, no exercício das suas funções, foi vítima de um acidente
de viação. Este provocou-lhe traumatismo no ombro direito e fractura do punho esquerdo,
tendo desenvolvido uma periatrite do ombro e do punho, com doloroso pós-traumático. Após 59
dias de ITA, os serviços clínicos da seguradora deram-lhe alta médica sem qualquer IPP. Não
concordando, o sinistrado requereu ao MP a realização de um exame médico-legal, tendo-lhe
sido fixada uma IPP de 17,471%. A Seguradora e entidade patronal não aceitaram qualquer
IPP e requerem ao Tribunal de Trabalho a realização da competente Junta Médica que, por
sua vês, fixou uma IPP de 5,91104%. Posteriormente o sinistrado, representado pelo MP,
apresentou pedido de revisão de incapacidade para actualização do coeficiente atribuído,
apresentando um parecer médico-legal que lhe atribui uma incapacidade de 16,3%. Em
contrapartida, o exame efectuado pelo INML fixou a IPP actual em 9,8308%. A seguradora
recusou este resultado e requereu perícia por Junta Médica que atribuiu uma IPP ao sinistrado
de 8,8656%.
Caso 9
Uma sinistrada, auxiliar de gráfica, com 62 anos, sofreu um acidente in itinere em resultado de
uma queda no percurso do trabalho para casa, tendo-lhe sido atribuída pelos serviços médicos
da seguradora uma IPP de 2%. Em contrapartida, o INML reconheceu uma IPP de 17,55. Por
não ter sido possível a conciliação das partes dada a grade diferença de coeficientes apurados,
foi solicitada uma junta médica que veio a fixar ao sinistrado uma IPP de 3%. O tribunal aceitou
este resultado e decidiu com base no mesmo.
“Por sua vez também há uma cultura de perícias que são feitas no âmbito particular
mas a minha postura é exactamente a mesma de que quando estava a ser perita do
tribunal ou do IMML. A minha postura é exactamente a mesma independentemente do
lugar onde estou. E portanto nós não podemos enganar os sinistrados. É uma falta de
ética. Se eu digo que aquela sequela tem 5% naturalmente eu tenho de manter aquele
valor no tribunal, por isso é que eu avaliei e determinei dessa forma. Às vezes isso
também não acontece. (…) Por sua vez, se nós fôssemos responsabilizados e penso
que a curto prazo isso vai acontecer – e eu espero que assim seja. Eu sou uma
defensora de princípios e regras e acho que cada um tem de ser responsável por
aquilo que faz. E o ser responsável por aquilo que faz é a gente ter seriedade temos de
estar tecnicamente bem preparados. Mas temos de assumir as nossas
responsabilidades em relação à expectativa que criámos no sinistrado. Se eu fizesse
uma avaliação a um sinistrado e lhe desse 10% e depois ele fosse à junta e lhe
dessem 5% de certeza que eu estava a criar uma expectativa dentro da cabeça
daquele sinistrado que não correspondia à realidade. E portanto eu defendo que isso
devia ser penalizado. Esta é a minha postura de vida, doa a quem doer. E, de facto,
acho que temos de ser assim. (…) “Há algumas situações que são controversas e que
para mim são inexplicáveis. [Em casos iguais], a atribuição tem de ser igual. Muitas
vezes isso não acontece, de facto, e por questões de carácter que eu não queria
mencionar, porque são delicadas, faz com que existam essas diferenças. (…) Nós não
podemos enganar os sinistrados. É uma falta de ética.” (Ent. 15)
“Há uma Tabela Nacional de Incapacidades, que é indicativa, não é valorativa, só que
os médicos das seguradoras… para eles é um missal, é um breviário… é uma bíblia.
Porquê? Porque estabelece um limite mínimo e um limite máximo e está ali taxado.
Independentemente de o sinistrado apresentar uma situação clínica diferente daquela.
O valor indicativo para aquele grupo de profissionais é letra morta. O juiz, como é mais
fácil para ele cingir-se – até porque é difícil fundamentar porque é que se sai de um
número e se vai para outro. Se o parecer técnico é aquele, é aquele que fica. Depois o
cálculo está fixado na lei. (…) As únicas margens de manobra que há é nas
incapacidades para o trabalho habitual… há ali uma margem de manobra… e alguma
doutrina entende que o tribunal pode valorar mais ou menos em função do grau
académico do sinistrado, da idade, da profissão, enfim das capacidades que ele pode
ter ou não para angariar novo emprego”. (Ent. 16)
Juntas Médicas
308
Como mais à frente melhor demonstraremos, também nos na nossa amostragem de
processos a determinação da incapacidade constitui, nos tribunais portugueses, o principal
objecto de acção na fase contenciosa.
Caso 10
Um sinistrado, com 50 anos à data do acidente, em consequência de uma queda fracturou o
calcâneo. A seguradora fixou uma IPP de 12,5% e o perito do INML a quem foi solicitado
exame pericial atribuiu uma IPP de 18,75%. As partes não chegaram a acordo e realizou-se
junta médica que conclui exactamente como o perito da seguradora, atribuindo ao sinistrado
uma IPP de 12,5%.
Caso 11
Uma sinistrada, auxiliar de gráfica com 62 anos sofreu uma queda no percurso do trabalho
para casa, sofrendo lesões nos membros superiores. A seguradora fixou uma IPP de 2% e o
perito do INML a quem foi solicitado exame pericial atribuiu uma IPP de 17,55%. As partes não
chegaram a acordo e realizou-se junta médica que atribuiu à sinistrada uma IPP de 3%.
“As juntas médicas foram a grande desilusão da minha actividade pericial. Primeiro
porque eu acreditava que pelo facto de existirem juntas médicas ia diminuir o recurso
nos tribunais. O que não aconteceu. Depois outra coisa que me surpreendeu é que a
maioria das juntas é por unanimidade. Mas também há muitas juntas que são por
maioria. Eu posso defender uma incapacidade, mas se estou sozinha tenho de me
sujeitar à decisão da maioria.” (Ent. 15)
“E não estando presente o juiz, várias situações ocorrem: os peritos médicos fazem
peritagens rotativas. Neste exame o perito médico do sinistrado é um, naquele exame o
perito médico do sinistrado já é o que foi naquele da seguradora, e vice-versa. E isto
cria aqui um conluio entre os médicos que é terrível para os sinistrados. Eu quando
cheguei a Coimbra funcionava este sistema. (…) Para 3 sinistrados diferentes, há 3
exames de juntas médicas. Há um perito nomeado pelo tribunal que normalmente é o
mesmo. E depois há um perito nomeado pelo sinistrado e um perito nomeado pela
seguradora. As seguradoras nomeiam sempre o seu perito. O sinistrado normalmente
não nomeia, é o tribunal que tem de nomear um perito pelo sinistrado. (…) Só que
muitas vezes não há peritos suficientes para isto tudo. Não há peritos que cheguem.
Mais grave que isso: há tribunais em que não é o juiz que controla a marcação de
juntas médicas. Há tribunais em que o juiz se abstém de ser ele a controlar as juntas
médicas. Desde a marcação do exame, a partir daí ele perde o controlo completo
daquilo que lá se passa. É a secretaria que controla”. (Ent. 14)
“Há casos em que essas sociedades médicas intervém com os seus associados no
exame inicial do sinistrado e subscrição do boletim de alta dos serviços clínicos das
seguradoras, no exame singular na fase conciliatória e no exame por junta médica,
quer como peritos nomeados pelas seguradoras, quer como peritos nomeados pelos
sinistrados, sem qualquer controlo externo, mormente pelos tribunais de trabalho ou
pelo INML”. (Ent. 16)
6. A CLINICALIZAÇÃO DA PERITAGEM E A
PERICIALIZAÇÃO DA DECISÃO
“A taxa de incapacidade é uma coisa muito relativa. A medicina não é uma ciência
exacta e as ciências que não são ciências exactas, por definição, não têm uma
tradução matemática. Como é que eu posso dizer que um braço vale 20 ou vale 30 e
que uma perna vale 40 ou vale 50 se eu sei inclusivamente que os meus 100% não são
os 100% da minha mãe, não são os 100% da minha filha, não são os 100% de outro
cidadão.” (Ent. 14)
“A taxa de incapacidade devia dar uma referência, mas depois o juiz, no seu critério,
atendendo a todas as outras circunstâncias, à possibilidade de reintegração no
mercado de trabalho, às habilitações, ao próprio mercado de trabalho no momento e às
perspectivas, e a muitos outros factores, à capacidade de reabilitação, àquilo que a
sociedade pode oferecer em termos de recuperação e de acompanhamento do
sinistrado, etc. … o juiz depois é que deveria determinar. E não ser uma fórmula
matemática, condicionada pela taxa de incapacidade, a determinar o montante
indemnizatório.” (Ent. 14)
“Eu normalmente presidia sempre às juntas médicas. Mas essa é outra questão que, às
vezes, funciona mal nos tribunais: a maior parte dos juízes não preside às juntas
médicas. E deviam fazê-lo. Porque muitas vezes é nas juntas médicas, com a presença
do juiz, que as questões se decidem. E às vezes são pequenas questões que estão
interligadas. Não são as questões técnicas, da avaliação clínica. Não digo isso. Mas a
interligação, às vezes, daquela avaliação clínica com o direito e com a tabela. E aí o
juiz pode ter um papel importante.” (Ent. 15)
“O dano sexual, por exemplo, é uma questão tabu. É um problema que afecta tanto
homens, como mulheres, embora tenha uma expressão particularmente problemática
no caso dos homens. Esta repercussão pessoal pode perturbar o dia-a-dia do
sinistrado. Embora não seja encarado como um dano patrimonial ou profissional, o que
é certo é que prejudica o desempenho funcional do sinistrado, produzindo efeitos
perturbadores na sua vida pessoal e profissional. A relação afectiva entre os casais, em
que a parte sexual é importante, faz com que a pessoa perca a auto-estima”. (Ent. 15)
“Se uma pessoa tiver uma artrose na anca, por exemplo, a perda de mobilidade pode
colocar em causa o desempenho sexual. Mesmo que não haja dano orgânico, esta
limitação potencia muitas vezes tensões interpessoais. Isto pode ter mais ou menos
valor para cada pessoa em particular, mas é uma situação de vida diária com
repercussões de vária ordem, nomadamente sexuais”. (Ent. 15)
“Nós somos independentes... eu posso ter por exemplo uma avaliação do dano
estético, por exemplo no âmbito do direito civil, que para mim é um dano estético que
eu valorizo porque me sensibiliza... tenho se calhar uma perspectiva do dano estético
diferente das outras pessoas, mas isso são as pequenas nuances da nossa
experiência pessoal, da nossa maneira de encarar a nossa imagem corporal, e das
repercussões que podem existir em relação ao nosso corpo”. (Ent. 15)
personalizada e traduzir a sua complexidade por palavras simples, para que seja
apreciado com bases concretas”. (Ent. 15)
Caso 12
Estava em causa a atropelamento de uma menina de 8 anos e a questão de maior melindre
prendia-se, exactamente com a determinação do dano futuro podendo aí ler-se o seguinte:
“Não poderá deixar de ser tido em conta, no caso concreto, que a autora tinha 8 anos de idade,
não tendo então, como agora, completado a idade escolar. Assim, os danos sofridos não
podem ser vistos como tendo automaticamente causado um dano pecuniário efectivo e actual,
passível de ser definido por referência a um salário efectivamente auferido. Assim, ter-se-á que
analisar o acidente e a IPP decorrente das lesões sofridas como causa de repercussão sobre a
sua capacidade de ganhos futura, entendida esta como capacidade aquisitiva de rendimento. A
ausência de um rendimento efectivo no momento do acidente não pode excluir o dano
associado à incapacidade permanente, porquanto este, por se projectar no futuro, vai incidir
sobre a capacidade de ganho da autora a partir do momento em que esta comece a trabalhar.
(…) Também neste sentido se vem pronunciando há muito a nossa jurisprudência (cf. entre
muitos outros o Ac. Do STJ de 08/06/1993, CJ, Tomo 2, p.138; Ac. Da Relação do Porto de
27/03/1995. BMJ n.º445, pág. 607 e, mais recentemente, o Ac. Do STJ de 17/10/2002, relatado
pelo Sr. Conselheiro Araújo de Barros, disponível na DGSI). Como se refere no penúltimo
parágrafo dos citados arestos, a incapacidade parcial permanente para o trabalho, ainda que o
lesado seja menor, gera um dano futuro indemnizável com recurso à equidade.
Tendo em conta que é desconhecido o sentido profissional que a vida da autora seguirá, sendo
consequentemente desconhecido o padrão médio de rendimentos que virá a auferir, terá o
tribunal que se apoiar num valor seguro de referência, que será o salário mínimo nacional à
data de hoje (por ser a data mais actual possível de previsão de repercussão média que a IPP
sofrida terá futuramente na capacidade aquisitiva dos menores). Muito embora seja algo
redutor supor que a autora não será capaz de obter um rendimento superior ao salário mínimo
nacional, não se pode igualmente olvidar que não foram alegados factos que permitam ao
tribunal aferir das capacidades intelectuais da autora ou do seu grau de rendimento e empenho
escolar.
Teremos assim que ter em conta, para fixação da indemnização devida a título de perda de
capacidade aquisitiva derivada da IPP sofrida, a idade da autora à data do acidente e,
consequentemente, o período de vida activa que terá pela frente, presumindo-se que
ingressará numa carreira profissional aos 18 anos de idade (quando atinja a maioridade);
antecipando que irá auferir o salário mínimo nacional, que actualmente equivale a 403 euros
(de acordo com o Decreto-Lei n.º2/2007 de 3 de Janeiro), que tal valor será auferido 14 vezes
por ano. Por último atender-se-á à percentagem de IPP de que ficou afectada.
Assim, em face de todos os indicados elementos, sem esquecer que a quantia a fixar será
paga de uma só vez, bem como que inexiste prova de repercussão limitativa real na
capacidade de marcha ou de exercício de específicas funções profissionais, temos por
equitativamente justa e adequada uma indemnização relativa ao dano futuro em que se traduz
a IPP no montante de 4 500 euros”.
A tenra idade da sinistrada também foi tida em consideração para a atribuição dos danos não
patrimoniais: “O dano não patrimonial, pela sua especial incidência na própria pessoa do
lesado, torna difícil o cálculo compensatório e totalmente desligado da simples soma aritmética
o seu cômputo, caracterizando-se por não ser verdadeiramente indemnizável – procura apenas
compensar a vítima lesada, permitindo-lhe, designadamente, adquirir bens que de alguma
forma reduzam a dimensão do seu sofrimento, sendo que este é associado a perdas
directamente derivadas do acidente e tidas por irreparáveis. (…) Sendo o parâmetro ou critério
normal para aferir a dimensão da dor física a extensão e gravidade das lesões e da
complexidade do seu tratamento clínico, haverá que reconhecer a presença, no caso concreto,
de danos não patrimoniais dignos de tutela compensatória, agravados pela idade e fragilidade
da vítima, que era menor, com apenas oito anos de idade, nessa medida fragilizada na sua
capacidade de suportar a dor, bem como a contrariedade e os incómodos próprios da
imobilização decorrente de uma fractura num membro inferior. De atender são também as
contrariedades geradas pela retenção em tratamentos numa altura da vida como aquela em
que o acidente lhe ocorreu, em que é tão relevante a liberdade de movimentos, bem como a
circunstância de estar internada num ambiente estranho e de ser submetida a cirurgia,
elemento relevante enquanto danos passíveis de compensação.”
“Eu posso trabalhar como médica, mas o meu conteúdo profissional ser específico para
determinada tarefa. Se eu perder um dos dedos, a repercussão profissional é muito
diferente se eu for médica de família, do que se eu for uma médica internista ou
cirurgiã”. (Ent. 15)
“Neste momento não é feita a avaliação das instituições onde os sinistrados trabalham,
onde se descreva os riscos e os gestos ocupacionais. Não há vigilância e não há
auditorias que nos permitam saber onde trabalha exactamente aquele sinistrado, que
tipo de funções é que exerce efectivamente. A profissão formalmente declarada não
corresponde, muitas vezes, aos gestos e funções executadas. Este aspecto é
particularmente relevante tanto na alta que é dada ao sinistrado, podendo voltar ao
trabalho, como na avaliação da sua capacidade de reintegração ou reconversão
profissional.” (Ent. 15)
Há, ainda, uma outra perspectiva de fundo que deverá ser mencionada a
propósito da questão pericial – e este é o segundo desafio – que se relaciona
com o repertório epistémico que subjaz o sistema mais amplo de práticas e
procedimentos técnicos accionados pelos clínicos médico-legais no âmbito da
avaliação corporal dos prejuízos profissionais emergentes de um acidente de
trabalho. À partida, a peritagem, enquanto mecanismo auxiliar da justiça, é
consensualmente compreendida como a utilização dos “conhecimentos de um
técnico no sentido de facilitar a percepção e a apreciação dos factos ou
questões cuja solução requeira competências técnicas numa relação de
adequação, complementaridade e articulação com outras competências”
(Antunes, 1991: 12).
“Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua «política geral» de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros
dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.” (1994:
10)
309
“A experiência italiana pode considerar-se exemplar no tocante à criação de um sistema
jurídico que coloca o homem no centro da tutela dos direitos fundamentais, no respeitante à
figura do dano corporal e à sua reparação. A jurisprudência italiana teve o mérito de conferir
concretização prática aos preceitos constitucionais respeitantes à dignidade humana e aos
bens da saúde e da integridade física e psíquica. Com a força criadora da jurisprudência
italiana foi possível influenciar positivamente todo o sistema jurídico, inovando de forma
profunda a metodologia da reparação do dano corporal […] sem que tenha existido intervenção
por parte do legislador.” (Braga, 2005: 37)
CAPÍTULO 6
O TEMPO E O MODO DA REPARAÇÃO DO DANO
CORPORAL NOS TRIBUNAIS:
Gráfico 16
Mecânico
Electrecista
Função pública
Quadro superior
Comercial
Funções de gerência
Outros
Operário fabril
Motorista
Construção Cívil
Agriculltor
Serralheiro
0 2 4 6 8 10 12
Gráfico 17
Mais de €1000
€750 a €1000
€500 a €750
€250 a €500
Gráfico 18
Explusão
Desabamento
Descarregar
mercadoria
Máquinas/utensílios
de trabalho
Viação
Descarga eléctrica
Queda
0 5 10 15 20 25
Uma outra nota caracterizadora dos prende-se com o tipo de lesão dos
sinistrados do trabalho. Como se vê pelo gráfico 19, as lesões dos sinistrados
do trabalho, de acordo com a nossa amostragem, atingem, sobretudo, os
membros superiores, representando cerca de 33% das lesões encontradas,
destacando-se as lesões nas mãos. Seguem-se as lesões dos membros
inferiores, com especial incidência nos joelhos e nos pés e, no mesmo patamar
de incidência, a morte dos sinistrados (cada uma delas representando 23% do
resultados dos acidentes de trabalho).
Gráfico 19
Tipo de lesões
Olhos
Morte
Membros superiores
Membros inferiores
Tronco
0 5 10 15 20
Caso 13
Num caso em que um sinistrado, tractorista de profissão, com 59 anos sofreu um acidente de
trabalho no dia 09 de Março de 2006 foi marcada junta médica para o dia 21 de Maio de 2008.
Como esta não se realizou em virtude ainda não terem sido remetidos ao INML a
documentação clínica do sinistrado, foi agendada nova data para o dia 22 de Outubro de 2008.
Nesta data foi solicitada a realização de um RX ao sinistrado e foi marcada nova junta médica
que se realizou no dia 08 de Julho de 2009. Quanto à demora na obtenção dos resultados
periciais é ilustrativo o seguinte de uma despacho do magistrado judicial: “é de lamentar, pelo
menos, a desarticulação dos serviços dos HUC, sendo certo que a decisão sobre a fixação da
incapacidade já foi tomada, afigurando-se-me que em todo o caso, o seu resultado não sofreria
alteração face ao serôdio relatório agora apresentado.”
Caso 14
instituições identificadas. O relatório final foi entregue pelo INML no dia 29 de Maio de 2006 e a
audiência de julgamento foi agendada para o dia 21 de Fevereiro de 2007 com a justificação
“não há dia disponível antes”.
Caso 15
Acidente de trabalho ocorrido 09 de Junho de 2005. A decisão final apenas foi proferida no dia
20 de Outubro de 2009. Assim, desde a data do acidente até à data da sentença judicial que
colocou termo ao litígio passaram 4 anos, 4 meses e 24 dias. Sendo que, 16 meses deste
período, decorreram, em fase conciliatória, entre a data de pedido de exame pericial ao INML e
data do envio do respectivo relatório pericial.
Detalhes do caso: O sinistrado, solteiro, 23 anos à data do acidente, era vidraceiro, e auferia
um salário médio mensal de 588,00 euros, «ao transportar um vidro este partiu-se e feriu o
sinistrado», atingindo-o no pescoço e membro superior direito, com sequelas cerebrais
(enfarte), oftalmológicas, na laringe, entre outras. Com o acidente sofreu 599 dias de ITA e 242
dias de ITP. O que se discutia no processo era o coeficiente de incapacidade a atribuir ao
sinistrado. Por junta média foi-lhe fixada uma IPP de 50%, com base na qual foi proferida a
decisão final. A IPP que foi fixada pela junta médica correspondia à IPP atribuída pela
seguradora mas com a qual o sinistrado não concordava.
Caso 16
Acidente de trabalho ocorrido a 23 de Agosto de 2002. A decisão final apenas foi proferida no
dia 09 de Outubro de 2006. Entre a data do acidente e a data da sentença judicial decorreram
4 anos, e mês e 6 dias. Saliente-se que, neste período, cerca de 23 meses decorreram entre a
data da realização da tentativa de conciliação em fase conciliatória e a junção aos autos do
relatório da junta médica que foi requerida uma vez que não foi possível as partes conciliarem-
se.
Detalhes do caso: O sinistrado, com 72 anos de idade à data do acidente, casado, operário da
construção civil, recebia um salário mensal de 348,01 euros. O acidente ocorreu quando o
trabalhador, enquanto serrava um taipal, escorregou. O trabalhador segurava uma serra
eléctrica e, com a queda, acabou por amputar o dedo polegar da mão esquerda e lesionar a
mão esquerda, tendo daí resultado uma hipertrofia do dedo médio desta mão. O que se
discutia no processo era, por um lado, a descaracterização do acidente uma vez que a
seguradora não aceitava a responsabilidade pelo acidente porque considerava que tinha
havido culpa do sinistrado (violação das regras de segurança).
Gráfico 20
10% 13%
6% Até 1 ano
1 ano a 2 anos
2 anos a 3 anos
21% 3 anos a 4 anos
50% Mais de 4
Caso 17
Caso 18
Gráfico 21
3% 5% 3% 5% 1 ano a 2 anos
8% 13% 2 anos a 3 anos
3 anos a 4 anos
4 anos a 5 anos
5 anos a 6 anos
Gráfico 22
2% 4% Até 6 meses
25% 40% 6 meses a 12 meses
12 meses a 18 meses
18 meses a 24 meses
29% Mais de 24 meses
Gráfico 23
4% 6%
16% 14% Menos de 1 ano
1 ano a 2 anos
2 anos a 3 anos
3 anos a 4 anos
Mais de 4 anos
60%
Caso 19
Caso 20
Num processo cível analisado, foi pedido ao INML, no dia 10 de Outubro de 2005, para que
fosse realizada a competente perícia médica. Em Dezembro do mesmo ano foi solicitado ao
tribunal os documentos clínicos relativos à urgência hospitalar e internamento do sinistrado. Em
Abril de 2006, o tribunal solicitou ao Gabinete Médico-legal da Figueira da Foz o envio do
relatório final e este comunica que será necessário requerer a realização de exames
complementares. Em Novembro de 2006, o pedido de entrega do relatório final da medicina
legal é reiterado, tendo o mesmo sido remetido no dia 26 de Janeiro de 2007. Acontece que o
relatório remetido não correspondia, pelo seu conteúdo, ao sinistrado em causa. Em
consequência desta situação, o sinistrado, no dia 14 de Fevereiro de 2007, requer a realização
de uma segunda perícia médico-legal colegial. O tribunal reiterou mais duas vezes o pedido de
relatório final, que apenas foi remetido em 14 de Junho de 2007, quase dois anos após o seu
primeiro pedido.
Gráfico 24
9%
12%
Até 6 meses
6 meses a 12 meses
12 meses a 18 meses
79%
Gráfico 25
0% 9%
18% Até 6 meses
6 meses a 12 meses
12 meses a 18 meses
18 meses a 24 meses
73%
No domínio cível, por sua vez, entre a data em que é requerida a perícia
e a data em que a o relatório pericial é junto aos autos passam, em média, 8
meses. Não obstante, cerca de 26% do total dos processos cíveis consultados
chega a esperar pelo relatório pericial mais de um ano, com casos a chegar
mesmo aos 2 anos.
Gráfico 26
13%
Caso 21
O tribunal, após receber o relatório final em finais de Março de 2006, agenda a audiência de
discussão e julgamento para o dia 26 de Setembro de 2007. Nesta data não foi possível
realizar a audiência e o tribunal agenda nova data para o dia 29 de Fevereiro de 2008.
Casos 22
Caso 23
Num dos processos do trabalho, a audiência de julgamento foi marcada para o dia 04 de Março
de 2008. Nessa data as partes requereram a suspensão da instância pelo período de 15 dias,
com vista a chegar a um acordo. Ainda assim foi agendada nova data para o dia 29 de Abril de
2008. Nesse dia e dado que não houve acordo, tentou realizar-se a audiência mas verificou-se
que o representante legal da entidade patronal não tinha sido devidamente convocado. Foi,
então, agendada nova marcação para o dia 20 de Maio de 2008. Nessa data foram juntos aos
autos alguns documentos para prova do salário real e o advogado da seguradora, não
prescindido de prazo, levou a que fosse marcada nova data para o dia 25 de Junho de 2008.
Caso 24
Num outro processo também no âmbito dos acidentes de trabalho, em que a Tentativa de
conciliação na fase contenciosa já se havia realizado Junho de 2006 e estando nos autos os
relatórios perícias desde Fevereiro do mesmo ano, após vários adiamentos da audiência de
julgamento por impossibilidade de agendas, quer dos mandatário, quer do tribunal bem como,
ainda, derivado a factores de outra ordem como, por exemplo, notificações que não foram
feitas de acordo com a lei, a audiência de julgamento foi marcada para o dia 13 de Março de
2007. No entanto, nesta data a seguradora requereu a junção de documentos, não tendo as
restantes partes prescindido do prazo de exame dos referidos documentos, salientando-se que
os referidos documentos eram apenas certidões da conservatória do registo comercial das
sociedades em litígio. Assim, foi marcada nova data para o dia 16 de Maio de 2007 e, no dia
anterior, as partes requerem a suspensão da instância com vista a obter um acordo. Entretanto
é marcada nova audiência para o dia 18 de Junho de 2007 que, todavia, fica sem efeito por
impossibilidade de agenda de um dos mandatários. Dados estes sucessivos adiamentos o
julgamento apenas tem lugar no dia 10 de Setembro de 2007.
Caso 25
Caso 26
Gráfico 27
13% 13%
Menos de 6 meses
6 meses a 12 meses
12 meses a 18 meses
26% 18 meses a 24 meses
45% mais 24 meses
3%
Gráfico 28
2% 6%
Responsabilidade/culpa pelo
19%
acidente
Validade do contrato de
seguro
73%
Legitimidade activa
Gráfico 29
Salário
1; 2% Responsabilidade/culpa pelo
16; 31%
acidente
Reintegração
iniciais elevadíssimos acabam por depois, eles próprios, fazer acordos por
montantes indemnizatórios muito inferiores. Ou seja, não podemos imputar
esta discrepância entre os valores peticionados e os valores atribuídos às
decisões judiciais até porque, nestes casos, os valores em que a seguradora é
condenada são, por regra, bem mais próximos dos valores peticionados pelos
sinistrados. Outro aspecto não menos estranho é que aqueles acordos são
conseguidos apenas após o agendamento da audiência de julgamento e, não
raras vezes, após alguns adiamento da mesma. Talvez esta seja também uma
das lógicas da advocacia marcada pela estratégia dos honorários.
Caso 27
Caso 28
para toda e qualquer profissão de 10% e, ainda, “capacidade para o exercício da sua profissão,
mas com esforços acrescidos”.
CAPÍTULO 7
PÓS-ACIDENTE:
QUANDO O SISTEMA FALHA
Pós-Acidente: Quando o Sistema Falha
No âmbito do acidente de trabalho foi-lhe atribuída uma IPP de 27% e no âmbito do acidente
de viação uma IPP de 25% mais 10% de dano futuro. Correu o processo emergente em
acidente de trabalho e este jovem, com a pensão remida, recebeu 19.000,00 euros. Este
mesmo jovem, no processo civil em que se discutia o acidente de viação, recebeu 150.000,00
euros de indemnização a título de danos patrimoniais futuros.
Os argumentos utilizados pelo tribunal foram deste tipo: este jovem, no tipo de empresa em
que trabalha, nunca mais poderá ser promovido (o tribunal de trabalho não pode fazer este tipo
de ponderação); ou, ainda, que passou a ter dificuldades na realização de tarefas da sua vida
corrente. Isto só em sede de danos patrimoniais porque este jovem recebeu mais 50.000,00
euros a título de danos não patrimoniais.
A questão que se coloca é se isto será razoável? Será aceitável que, no âmbito dos acidentes
de trabalho, não sejam indemnizáveis quaisquer danos não patrimoniais? Será aceitável que
apenas se avalie a capacidade produtiva do sinistrado, como se ele não fosse mais do que isso
e sem atender aos reflexos que a capacidade tem na sua vida para além do trabalho?
“Fiquei, fiquei imobilizado. Parti a bacia, este braço… tenho aqui… levei 60 e tal pontos
e fui operado… tenho aqui uma prótese… porque desfiz o cotovelo... Quer dizer, tenho
problemas… olhe… a bexiga… problemas de erecção…” (S1)
310
Um reconhecimento alargado dos prejuízos emergentes do acidente e causados aos
familiares mais próximos da vítima constitui um sinal positivo do ponto de vista dos direitos dos
lesados a ser indemnizados. Todavia, a fundamentação do presente acórdão baseia-se nos
direitos e deveres conjugais das partes, matéria amplamente susceptível de, noutros contextos,
gerar múltiplos efeitos perversos (cf. lei do divórcio).
“É que eu quase não faço nada. Porque… é assim, eu não me tenho de pé… eu não
me posso calçar… ao não me poder calçar quase que não posso fazer mais nada.
Faço a higiene… a barba e não sei quê… Agora em Janeiro fomos para esta casa… eu
já estava em casa sem tomar banho… banho mesmo, não é… já a caminho de 3 anos.
Sem saber o que era água no corpo… água… quer dizer, a minha mulher lavava-me
todos os dias. Agora pronto, comprou uma tábua… e eu por acaso consigo-me sentar
nela, e subo para a banheira e já tomo, já…” (S2)
“Não… ela deixou de trabalhar, porque eu comecei a não me poder mexer, e ela deixou
de trabalhar, passou a ficar com o rendimento social de inserção (…) Felizmente tenho
um casamento de 30 anos que vai durando… Quer dizer, também tratei sempre bem a
mulher, nunca lhe bati, nunca tive assim problemas… Nunca a maltratei… Se calhar
agora ela fazia-me igual e ia à vida dela…” (S2)
“Era um homem que tinha sofrido a biamputação dos membros superiores. A esposa,
por acaso, tinha-o [o auto de conciliação] na carteira. Eu comecei a ver o auto de
conciliação e no final disse-lhe: «Você disse que a companhia de seguros e o tribunal
tiveram pena de si. O que fará se não tivessem! Acho que com a deficiência que tem
tem a necessidade de uma prestação suplementar para terceira pessoa. Você não
pode fazer a sua higiene, não pode… Mas nem o tribunal nem a companhia de seguros
lhe deram esse subsídio para terceira pessoa e poderá corresponder a 25% do valor da
sua prestação. Diz ele: «Não me diga! E agora, o que é que a gente vai fazer?» Eu
respondi: «Eu vou falar com o Procurador da República». E fui. Era um senhor muito
simpático. Inicialmente disse-me que não, que o senhor tinha recebido tudo o que
estava previsto na lei. E eu disse-lhe que não tinha sido concedida a prestação
suplementar para terceira pessoa e aquele senhor não tem os braços… E ele pegou no
livro, começou a ler… e disse-me: «Ó diabo, você tem razão! E agora, o que é que a
gente há-de fazer? É que isto agora é complicado… se você fizesse um requerimento e
trouxesse um relatório…» E eu disse-lhe: «É preciso o relatório de um médico?!»
Pronto… por caso foi um médico amigo que resolveu a situação, embora nem sequer
fosse da especialidade (era clínico geral), mas ele percebeu logo. Lá se fez o
requerimento e o senhor passou a receber a prestação para terceira pessoa”. (Ent. 5)
311
Neste sentido: “Os acidentes e doenças profissionais, nas situações mais graves, poderão
ter um impacto profissional não só na vítima, que se vê, por exemplo, obrigada a interromper a
sua actividade profissional, como para o próprio cônjuge ou familiar que se dedique à sua
prestação de cuidados, que poderá ter de alargar o seu emprego e/ou mudar ou arranjar outro
emprego no sentido de tentar auferir mais rendimentos para contrabalançar a perda de
rendimentos sofrida. Noutros casos, o cônjuge deixa de trabalhar para poder prestar os
cuidados necessários ao seu parceiro, o que culmina numa perda substancial do rendimento
familiar”. (Sousa et al, 2005: 42)
“Estou um bocado desanimado com a vida, ver uma criança a brotar, a nascer, e não
lhe poder dar colo, nem dar mimo, não poder ir à praia com ela… Considero-me um
abandonadozito.” (S 2)
312
Cf. “Estigma” de Erving Goffman.
“Sinto-me assim um bocado revoltado com essas coisas e… não sei dizer grande
coisa, desculpe lá… não sei explicar…(…) Eu sou franco, não sei dizer grande coisa,
porque isto… er… para já tenho dívidas grandes.” (S2)
313
O que acontece obrigatoriamente, como vimos no capítulo 1, para os casos de IPP inferior a
30%.
314
Seria suposto o pedido, a cada acidente de trabalho, dos recibos e/ou tabela de vencimento,
do Inquérito Profissional (a que alude a Tabela Nacional de Incapacidades) e o Estudo do
Posto de Trabalho, com o objectivo de melhor se caracterizar a realidade laboral em análise.
Porém, esta informação nem sempre é requerida e tomada como referência judicial e pericial.
315
A este respeito: “não obtenção de compreensão e apoio pelas suas dificuldades e ter de
lidar com a indiferença perante a sua nova condição profissional” (Sousa et al, 2005: 18)
316
A este respeito: “falta de qualificação e de finalidade de trabalho, quando após um acidente
ou doença são colocados em funções para as quais não conhecem a própria significação do
seu trabalho em relação ao conjunto da actividade da organização” (Sousa et al, 2005: 18)
317
A este respeito: “vergonha de não exercer funções compatíveis com a sua experiência e
qualificação ou não ter oportunidade de sobressair nas suas funções, o que muitas vezes
acontece quando o retorno ao trabalho não é realizado tendo em conta todo o manancial de
experiências que o trabalhador foi adquirindo e que poderá aplicar noutros contextos” (Sousa et
al, 2005: 18)
318
Particular destaque para Outcomes in work-related injuries: A comparison of older and
younger workers (2005).
“Fui trabalhar normalmente, o serviço era o mesmo… e depois não houve aquela
compreensão, mesmo por ter de faltar por causa da minha esposa, mesmo consultas
minhas… e começaram-me a pôr de lado… a arrumar… não havia aquilo que havia
antigamente… normal… Eles fizeram uma reunião, com os empregados todos, deram
um aumento a toda a gente e chegaram a mim e não me deram… disseram que eu
tinha de colaborar mais com a empresa… e eu disse “como é que eu posso colaborar
mais com a empresa se a minha vida está assim?”, e eles “ah, você tem de
compreender…”, e eu “e vocês não me compreendem?”. E eu dentro do meu horário
tentava fazer o meu melhor e… houve essas situações… cheguei ao ponto de um ano
depois do acidente… 2 anos… fui obrigado a sair de lá. Porque me cortaram… prémios
fiquei sem eles, tudo o que era prémio por fora cortaram-me, pronto… Eu antes até era
dos melhores, era o único operário com categoria e formação profissional, que eles
tinham lá dentro. Após isso a empresa que trabalhava com eles e pedia essas
certificações deixou de lhes dar serviço… Se calhar foi por isso que eles ficaram
magoados… como seu eu tivesse culpa disso… Porque trabalhava-se com uma
empresa com um nome bastante acentuado aqui no nosso país, e essa empresa exigia
a qualificação e fazia exames constantemente. Depois quando eu tive o acidente…
havia coisas que os meus colegas me contavam… chegaram a meter pessoal, só que
o material vinha todo para trás, as coisas não ficavam em condições e acabaram por
deixar de dar serviço…”
“Não, não. Depois comecei a procurar…Fui eu que me despedi. Eu como já não estava
bem… e não adiantava, não me estavam a dar aumento… quer dizer, humilharam-
me… houve lá situações que me humilharam… por exemplo, puseram lá um mocito e
ao fim de 8 dias puseram-no a soldar… depois as peças vinham para trás e acusavam-
me a mim… Eu disse que me responsabilizava por aquilo que fazia… Eles ainda se
viraram a mim, e eu tive de andar a queimar-me todo, a rectificar aquilo tudo, a fazer o
serviço que os outros tinham feito mal. E isso magoou-me muito. Porque as
informações que chegam aos maiores é como se tivesse sido eu. E isso… mais não
darem os prémios, ajudas de custo… para mim cortaram-me tudo… E a gente começa
a entrar no sistema e diz “não vale a pena…”. Não tinha futuro. Acabei por deixar de ter
futuro ali.” (S5)
“E ele pôs-me 4 dias em frente ao computador sem fazer nada… e eu aguentei. 4 dias.
Ao fim de 4 dias de manhã perguntou-me o que é que eu estava a fazer. Ele disse que
estava a fazer uma experiência, que tinham muito trabalho… Depois passado uma
semana de eu lá estar, chamou-me ao bar, um barzito que tínhamos lá ao lado, e
perguntou-me porque é que os meus colegas se sentiam incomodados a olhar para
mim, por ser anormal, eles estavam habituados a ver-me na vertical, agora vêem
praticamente sentada, e têm pena. “Porque a [entrevistada] foi sempre muito para a
frente…” e depois perguntou-me “por que é que a [entrevistada] não procura uma
empresa familiar?”. Eu percebi o que é que ele queria: “a única coisa que se pode fazer
é o senhor despedir-me, dá-me direito à minha indemnização e eu vou-me embora”. E
ele disse: “não, o que você queria era mamar”. E depois, ao fim, pôs-me no arquivo e
eu recusei-me a trabalhar no arquivo. Eu tinha que ir ao chão, tinha de me ajoelhar, e
com o pé partido, quer dizer… sem gesso sem nada… então mandou-me pôr isso por
escrito319. E eu passei por escrito e disse: “no momento em que o senhor me
contratou, teve benefícios que o Estado lhe deu, e contratou-me com 70% de
deficiência. Eu também tive benefícios, que não pago IRS. O senhor sabia
perfeitamente que eu não posso andar com pastas na mão. O senhor contratou-me
para vir fazer propostas, porque nós trabalhamos com as Câmaras. O senhor sabia de
isso tudo. Portanto eu não vou fazer arquivo e recuso-me, porque eu não posso fazer
arquivo a nível físico”. E ele disse: “ah, você já fez coisas piores de certeza absoluta do
que o arquivo”. Entretanto mandou-me para outra função, e eu recuperei um bocado
aquilo que eu sabia fazer, que é atender clientes. Um dia eu cheguei ao emprego mal
disposta, aí já sem cadeira de rodas, tinha deixado a cadeira de rodas há uma semana,
319
A sinistrada entrevistada revela impossibilidade de locomoção natural, amparando-se em
dispositivos próprios.
ele chamou-me cabra, que eu não passava de uma cabra, por causa de uma questão
com um cliente, e mandei-o chamar cabra à mãezinha dele… já era a quarta vez, já
tinha aguentado bastante, e ele mandou-me sair da firma e eu disse “saio já!”,
apresentei a minha carta de demissão e demiti-me. Foi a borrada que eu fiz! Mas eu
sou assim, sou… é o que vai naquele momento.” (S4)
“Porque eu fui despedida por extinção do posto de trabalho. (…) O seguro dizia que eu
estava apta a poder voltar a trabalhar, mas a entidade patronal disse que não (…). Mas
320
É um despedimento justificado por motivos económicos, que não se reportam a actuação
dolosa do trabalhador ou do empregador. É necessário que a subsistência da relação de
trabalho seja praticamente impossível, que não haja contratos a termo para as tarefas que
correspondem ao posto de trabalho extinto, e não se aplique o regime do despedimento
colectivo.
a entidade empregadora disse que não estava para sustentar mais “meia pessoa”.
Porque entretanto resolve fechar a firma, a clínica… e reabri-la com outro nome,
segundo investigações já do senhor procurador, que me informou. [...] Só que
entretanto eu sei que ela já abriu outra clínica com outro nome e é a mesma coisa… foi
o senhor procurador que descobriu.” (S3)
“A legislação dos acidentes de trabalho não permite que um sinistrado seja despedido
– o empregador é obrigado a aceitar o trabalhador sinistrado. Todos nós sabemos que
na maior parte das situações isto vale praticamente zero. Funciona a não renovação do
contrato a termo e outros mecanismos de precarização. Aqui a lei funciona de forma
impotente ou perversa.” (Ent. 25)
321
Neste contexto, como já foi referido, é mobilizado o Fundo de Acidentes de Trabalho, muito
embora as regras mais recentes de accionamento tenham sido em sentido restritivo.
322
Neste sentido: “Quando eu cheguei ao seguro, mandaram-me tirar uma radiografia por cima
do gesso e então disseram que iam tirar o gesso. Eles disseram que se eu negasse que perdia
o direito ao seguro.” (S4)
“Ela foi automaticamente [na sequência do acidente] para o hospital de São João,
esteve lá a fazer os cuidados intensivos, cuidados intermédios, e depois, quando podia
estar numa coisa mais… foi transferida para a casa de saúde da Boavista, por
intermédio da companhia de seguros. Foi para a casa de saúde da Boavista e desde aí
começaram a dar-lhe tratamentos, mas não o suficiente. (…) [desde que foi para a
Boavista – seguradora] a minha esposa começou a atrofiar, começou a ficar com os
membros todos encolhidos. E esta mãozinha já nem abria tão pouco… até fazia ferida
num dos peitos, porque atrofiou. Na altura foi uma guerra, principalmente com o doutor
da companhia de seguros. Porque eles diziam que não. Que era suficiente, que não
havia… [silêncio] que ela nunca viria a ter comunicação comigo… pronto, que não se
justificava ela ser transferida…”. (S5)
Além dos cuidados médicos, esta questão das políticas internas envolve
também orientações de natureza pericial, embora a preponderância do INML e
a adopção de instrumentos tabelares na avaliação do dano sejam apontados
como garantias periciais para os sinistrados:
“E nós fazemos uma análise – isso é mais interno, é mais da minha seguradora – entre
os graus que eu dou e os que ficam no fim. E se não houver divergências significativas
sistematicamente, está tudo bem”.
“É o médico que decide. Nós não temos que intervir nessa área, temos que ser um
bocado honestos nisso mas depois isso consegue-se medir porque repare porque isso
é medido no futuro. Se houver alguma seguradora, e eu não estou a dizer que há, em
que há sempre um desfasamento, está a funcionar mal, está a prestar um mau serviço,
na minha opinião.” (…) “É difícil porque se há uma seguradora – e com a minha eu
garanto-lhe que nós fazemos uma estatística disto e não acontece – em que os valores
finais são sempre superiores aos que o médico deu é porque está a tentar enganar
alguém. É porque está a funcionar mal, pode não ser voluntário, pode não estar a
tentar enganar alguém mas que está a prestar um mau serviço, está. Ou seja, os
próprios médicos ou não são bons conhecedores da tabela ou então das duas, uma: ou
há uma ignorância embora boa fé, ou há má fé e eu não quero ir por aí também. Mas
consegue-se saber se tivermos esse interesse e eu faço-o para mim próprio se houver
desfasamentos e eu já lhe estou a dizer porque alguém no final decidiu diferente e
vingou o diferente, se vingou o diferente o sinistrado não ficou prejudicado, agora a
actuação inicial da seguradora é que não é correcta. Não quer dizer que num caso ou
noutro isto não aconteça e que não aconteça comigo, agora não pode acontecer é
sistematicamente. Há situações que são mais complexas e há divergência de opinião,
eu aceito isso, agora não pode é acontecer isso sempre, alguma coisa estará mal. Nós
temos que recorrer não só a médicos que tratem bem como a outros que avaliem bem
e sejam bons conhecedores da tabela.” (Ent. 21)
“Se for comparar essa situação com a nossa em que pomos a maior parte dos
sinistrados em clínicas privadas e os tratamos rapidamente e bem, até porque se correr
mal nós vamos ser responsáveis por uma futura incapacidade permanente e somos
nós que a pagamos e temos sempre a possibilidade do Tribunal do Trabalho nos
controlar.” (Ent. 21)
Então não foi ouvido pela procuradora? Foi por intermédio da funcionária?
“Pois”.
Mas fez alguma declaração? Disse o que aconteceu? Assinou alguma coisa?
“Isso é que eu não sei! Porque ela disse que a Dr.ª acreditava naquilo que eu disse,
não ia acreditar na companhia… E por isso é que me iam mandar logo para a Medicina
Legal. Já não ia a nenhum procurador. Se é assim ou não, já não sei!” (S1)
sinistrados é ainda um ponto que merece ser sublinhado323. Para além dos
bloqueios culturais e institucionais, os aspectos legais constituem ainda um
factor crítico no enquadramento da protecção e do cuidado das vítimas. A
necessidade do apoio de uma terceira pessoa, embora legalmente prevista em
situações de grande incapacidade, nem sempre abrange outras situações em
que a incapacidade fixada fica aquém do mínimo legal, mas em que a
vulnerabilidade objectiva dos sinistrados requer um acompanhamento
acrescido, destituído de protecção social e legal.
323
Nesta matéria, será importante conferir o papel das organizações de protecção das vítimas.
324
Na sequência de um estudo anterior: Study os the physical, psychological and material
impacts (1993).
325
Impact of Road Death and Injury.
“Logo após o 25 de Abril, em 75, houve essencialmente duas pessoas, dois sinistrados
do trabalho, uma aqui no Porto e outra em Famalicão, que decidiram, através da rádio,
divulgar a sua situação e apelar aos sinistrados em geral para que se juntassem, para
que se criasse um movimento… e naquela altura criava-se movimentos quase por tudo
e por nada. E no fundo foi assim que surgiu. Essas duas pessoas não se conheciam,
mas as coisas foram feitas quase em simultâneo. Um ouviu o outro, depois
contactaram um com o outro, e decidiram fazer um apelo para que as pessoas se
juntassem na Praça da Batalha. E eu fui um dos que foi lá. Porque vi… eu também era
sinistrado… mais ou menos recente… e quis saber o que é que se passava. E foi mais
ou menos assim que surgiu. Depois as coisas foram começando… as pessoas foram
começando a aparecer, houve necessidade de pedir à Câmara um pequenino espaço,
uma sala, foi-nos concedido uma sala… uma coisa muito velha, mas dava para nos
juntarmos. E um ano depois, em 1976, nós concluímos que teríamos de estar mais
bem organizados… éramos uma Comissão de Sinistrados sem qualquer registo… e
havia a necessidade de criarmos uma Associação. Arranjámos uns estatutos, copiando
um bocadinho dali, um bocadinho de acolá, procurámos um advogado nas Páginas
Amarelas que nos tratasse dos estatutos, registá-los, e no fundo foi assim que surgiu.”
(Ent. 5)
específica do sinistrado e pelas instituições que este mobiliza, que lhe prestam
serviços e que, em última instância, lhe efectivam (ou não) os diferentes
direitos de que são portadores. Com as companhias de seguros, responsáveis
pela recuperação clínica e pela compensação económica do sinistrado, é
igualmente desenvolvido um trabalho de articulação no sentido de salvaguardar
os interesses e o cumprimento das obrigações face às vítimas:
“Era a preocupação de pessoas que se queixavam que tinham a cadeira de rodas toda
partida e a companhia de seguros não lhe dava outra cadeira de rodas… e nós
contactávamos com a companhia de seguros no sentido de substituir aquela cadeira de
rodas… Houve pessoas que tinham próteses ou nos membros superiores ou nos
membros inferiores que também estavam estragadas e a companhia não queria
substituir e reparar… E portanto houve a necessidade de estabelecer muitos contactos
com as seguradoras. Tudo essencialmente aqui no norte… aqui no Porto.” (Ent. 5)
problema é resolvido por aí. Nós tivemos alguns patrões que vieram aqui à Associação
remediar os males que fizeram, nomeadamente pagar coisas em atraso.” (Ent. 13)
326
São relatados casos em que, na sequência de um acidente de trabalho, à saída do
imigrante sinistrado do hospital a primeira instituição pública a recebê-lo é, precisamente, o
SEF.
“Nós damos um prazo ao patrão… se o patrão não quer resolver a bem, através do
diálogo, e não quer respeitar os direitos que a pessoa tem, nós vamos para o tribunal!
“Vais com esta cartinha ao Tribunal de Trabalho, fazes a participação, e vamos pedir
apoio judiciário. Tu tens direito a isso, independentemente de estares ou não
documentado! Sejas regularizado ou não!” Uma coisa são as leis do trabalho, outra
coisa são as leis de entrada, permanência e afastamento dos imigrantes em Portugal.
Então nós incentivamos a ida aos tribunais. E os tribunais chegaram à seguinte
conclusão, ainda não há muitos anos: é que efectivamente a participação dos
imigrantes e a procura dos tribunais de trabalho cresceu bastante. E nós tivemos uma
quota-parte de responsabilidade em relação a isso.” (Ent. 13)
327
Membro da Federação Europeia de Vítimas Rodoviárias – FEVR, da Federação
Internacional de Peões – IFP, da Estrada Viva – Liga contra o Trauma, e da International
Federation Against Road Trauma – ICART.
sociedade civil, tendo como grande objectivo o “fim da guerra civil nas estradas
portuguesas, advogando um pacto social que valorize a segurança e a
cidadania nos transportes. Propõe-se defender os direitos humanos e cívicos
dos transeuntes portugueses (sejam eles condutores, passageiros ou peões), e
pugnar pela sua mobilização e responsabilização cívica” (Ent. 12). Neste
sentido, procura assumir-se como uma instância de mediação de conflitos entre
os cidadãos e o Estado e entre interesses particulares e colectivos, exigindo
responsabilização dos poderes públicos e dos agentes políticos, financeiros e
económicos, em matérias de segurança, fiscalização e regulamentação
rodoviária. A sua relação com os tribunais não tem, no entanto, conferido
centralidade à problemática da indemnização do corpo e da vida, pelo que, na
grande maioria dos casos, o foco do activismo radica no domínio da prevenção
geral da sinistralidade, da construção de rodovia e das condições que se lhe
encontram associadas, do combate ao excesso de velocidade, ou da
mobilidade e estatuto do peão nas novas gramáticas urbanas. Reconstituamos
um pouco da história desta associação.
“Eu acho que sim. Acabam por ser pessoas com capacidade discursiva e com
capacidade de colocar junto da comunicação social o problema, em termos de
novidade…” (Ent. 12)
328
A ideia de que o infractor rodoviário não corresponde o perfil ideal-típico do criminoso, tanto
pela natureza da prática como pelo transclassimo da sua incidência, surge como factor
particularmente poderoso na produção desta realidade.
329
De que se destacam Direito à Vida – Contra o Crime Rodoviário em Portugal, a partir da
Carta Comum das Associações Cívicas Promotoras de Segurança Rodoviária.
330
Entre e outras, é possível nomear as campanhas Vamos acabar com os pontos negros nas
estradas portuguesas, Cortesia ao Volante, a celebração do Dia da memória (das vítimas das
estradas),
331
A ACA-M chegou a disponibilizar um serviço de acompanhamento psicológico às vítimas de
acidentes rodoviários e familiares, embora tenha posteriormente enveredado pela solução de
encaminhamento.
“Pois… eu acho que é muito saudável que as pessoas não estejam sempre a apelar
aos tribunais…”
“Poderá… mas aí… é a lei darwiniana… o que é que se há-de fazer à lei darwiniana? A
selecção é sempre dos melhores… até certo ponto, claro. Ou seja, tem este aspecto
saudável. Acho que é bom que a sociedade portuguesa se desligue um bocado dessa
ideia de que todos somos clientes do Estado, eu acho que é bom que assim não
seja”.(Ent. 12)
332
Cf. Nova tabela indicativa de indemnizações para o direito civil / acidentes rodoviários.
“Vamos às vezes um bocadinho mais além: aqueles actos que as pessoas podem fazer
por si, sem necessidade de constituição de mandatário, por exemplo, a apresentação
de uma queixa ou de uma denúncia, a dedução do pedido cível… todo esse tido de
requerimentos ou processos que se podem fazer sem ser necessário advogado… nós
auxiliamos as pessoas a fazê-lo. Enfim, quando eu digo que estamos a funcionar
paralelamente à lei, estamos nós, mas estão as juntas de freguesia que também fazem
aconselhamento jurídico, está metade do país… Portanto o que se passa, na nossa
opinião, é que é uma lei claramente corporativa e um bocadinho restritiva. E, de facto,
nós sentimos que as pessoas têm esse tipo de dificuldade, e portanto quando se vêem
sem apoio judiciário e tendo de constituir mandatário ou puxam o pedido para baixo ou
então pura e simplesmente não o fazem…” (Ent. 11)
“Não estamos aqui a falar de alguém que esteve meia hora com a pessoa e com base
nisso vai fazer um relatório, estamos a falar de alguém que acompanhou, com uma
terapia que dura algumas semanas, ou eventualmente alguns meses, alguém que
acompanhou a vítima. E no fim desse acompanhamento, ou durante esse
acompanhamento – se o acompanhamento ainda estiver a decorrer – é muitas vezes
pedido pelo tribunal um relatório”. (Ent. 11)
333
Neste sentido: “Agora, é um relatório nosso, não é da medicina legal. Não tem valor pericial.
Muitas vezes, até, os técnicos que fazem o relatório são depois chamados a tribunal… e depois
aqui há sempre esse problema: em que qualidade é que vão a tribunal? Se é na qualidade de
testemunhas se é na qualidade de peritos. Levanta-se muitas vezes isso e é uma questão que
ainda não está resolvida, mas são muitas vezes chamados a tribunal para, no fundo,
corroborarem o relatório que eles próprios fizeram.” (Ent. 11)
CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
Um outro plano que, todavia, acaba por estar sempre intimamente ligado
como todo o demais processo reparatório no âmbito dos acidentes de trabalho,
prende-se com o papel central do Ministério Público. Em consequência dessa
centralidade, a formação dos magistrados, e em particular do Ministério
Público, deve atender não apenas à preparação técnico-jurídica e aos
critérios éticos e deontológicos, mas igualmente à capacitação para uma
interpretação adequada da realidade social que subjaz aos autos. A sua
função é essencial no sentido de contribuir para a desocultar as relações
materiais de trabalho e as circunstâncias em que ocorre o sinistro. Os impactos
deste processo nos resultados indemnizatórios não podem ser omitidos. É,
igualmente, importante que as Faculdades de Direito confiram atenção à
sinistralidade laboral no campo do direito do trabalho e que o CEJ, por sua vez,
assegure formação crítica e de qualidade aos magistrados.
BIBLIOGRAFIA
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Income Inequalities in Europe. IZA: Discussion Paper Series;
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contractual relationships and the implications for occupational safety and health.
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graduate school”, Professional Psychology, II, pp.283-290;
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and Social Welfarein England and Wales, 1800-1945. Londres e Nova Iorque:
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Judt, Tony (2010), Ill Fares the Land. Penguin Press HC;
Kaas, R.; Goovaerts, M.; Dhaene, J.; Denuit, M. (2001), Modern Actuarial
Risk Theory. Boston: Kluwer Academic Publishers;