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DIREITO
PROCESSUAL
PENAL

PRÁTICA
FRANCISCA SÁ - COM COLABORAÇÃO DE
SOFIA RODRIGUES
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO
2022/2023
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

NOTA INTRODUTÓRIA

Esta sebenta de Direito Processual Penal, disponibilizada pela Comissão de Curso


dos estudantes do 3º Ano da licenciatura em Direito da Faculdade de Direito da
Universidade do Porto no ano letivo 2022/2023, foi elaborada pela estudante Francisca
Sá, com o apoio e colaboração de Sofia Rodrigues, que elaborou os apontamentos
semanais da Unidade Curricular.

Esta sebenta contém a compilação das aulas práticas (lecionadas pelo docente Tiago
Morais da Rocha) relativas à matéria lecionada pela docente Sandra Oliveira e Silva.
Além de se tratar de uma compilação das aulas práticas, este documento possui ainda
enquadramentos teóricos para ajudar os estudantes no processo de estudo e
enquadramento da matéria.

Relembra-se, ainda, que esta sebenta constitui apenas um complemento de estudo,


não dispensando, por isso, a presença nas aulas práticas e teóricas, assim como a leitura
da bibliografia obrigatória.

Bom estudo!

Francisca Sá e Sofia Rodrigues i


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Índice
1. A Tramitação do Processo Penal Português ................................................ 1

1.1 Introdução .................................................................................................................... 1

1.2 Formas Processuais Especiais...................................................................................... 3

1.3 Fases do processo comum............................................................................................ 5


1.3.1 Fase de Inquérito (Artigos 262º a 285º CPP) .............................................................. 6
1.3.2 Fase de Instrução (Artigos 286º a 310º CPP) ............................................................ 13
1.3.3 Fase de Julgamento (Artigos 311º a 380º CPP) ........................................................ 17
1.3.4 Fase de Recurso (Artigos 399º a 466º CPP) .............................................................. 23

1.4 Natureza dos Crimes .................................................................................................. 24


1.4.1 Crimes Públicos ......................................................................................................... 24
1.4.2 Crimes Semi-Públicos ............................................................................................... 25
1.4.3 Crimes Particulares em Sentido Estrito ..................................................................... 25

1.5 Denúncia VS Queixa ................................................................................................. 27

1.6 Medidas Cautelares e de Polícia ................................................................................ 29

2. Aplicação da Lei Processual Penal no Tempo............................................ 33

2.1 Introdução .................................................................................................................. 33

2.2 Conversão da natureza dos crimes ............................................................................. 38

2.3 Esquema para resolver todos os casos em matéria de aplicação da lei no tempo...... 40

2.4 Resolução dos Casos Práticos 1 a 3 ........................................................................... 40

3. Mecanismos de Diversão Processual ........................................................... 49

3.1 Introdução .................................................................................................................. 49

3.2 Arquivamento em caso de Dispensa de Pena – Caso Prático nº 6 ............................. 52

3.3 Suspensão Provisória do Processo – Caso Prático nº 7 ............................................. 57

3.4 Mediação Penal – Caso Prático nº 8 .......................................................................... 63

4. Princípios Orientadores do Modelo Processual Português....................... 69

4.1 Princípio da Oficialidade – Caso Prático nº 4 e 5 ...................................................... 69


4.1.1 A queixa .................................................................................................................... 71

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4.1.2 Princípio da Indivisibilidade da Queixa .................................................................... 77

4.2 Princípio da Acusação – Caso Prático nº 9 e 12 (Alínea c))...................................... 78


4.2.1 Garantias de Independência – Impedimentos e Suspeições ...................................... 82

4.3 Princípio da Suficiência – Caso Prático nº 10 ........................................................... 88


4.3.1 Questões Prejudiciais ................................................................................................ 89

4.4 Princípio da Livre Apreciação da Prova – Caso Prático nº 11 (Alíneas a) e b)) e 12


(Alínea e)) ............................................................................................................................... 92

4.5 Princípio in dubio pro reo – Caso Prático nº 11 (Alínea c)).................................... 103

4.6 Princípio da Publicidade – Caso Prático nº 12 (Alíneas a) e b)) ............................. 106


4.6.1 Segredo de Justiça ................................................................................................... 108

4.7 Princípios relacionados com o processo civil .......................................................... 111


4.7.1 Princípio da Adesão – Caso Prático nº 14 (alínea d)) ............................................. 111
4.7.2 Princípio do Pedido – Caso Prático nº 14 (Alínea e) e f)) ....................................... 115

5. Competência ................................................................................................ 118

5.1 Introdução ................................................................................................................ 118

5.2 Competência Material .............................................................................................. 118


5.2.1 Critério quantitativo ................................................................................................ 119
5.2.2 Critério qualitativo .................................................................................................. 120
5.2.3 Critério Subjetivo .................................................................................................... 121

5.3 Competência Funcional ........................................................................................... 122

5.4 Competência Territorial ........................................................................................... 122

5.5 Competência por conexão........................................................................................ 123


5.5.1 Conexão Homogénea e Heterogénea ...................................................................... 124

5.6 Resolução dos casos práticos 12 (Alínea d)), 13 (Alínea a)) e 14 (Alíneas a) e b)) 125

6. Sujeitos Processuais .................................................................................... 130

6.1 Defensor – Caso Prático nº 13 (Alínea b)) .............................................................. 130

6.2 Assistente – Caso Prático nº 13 (Alíneas c), d) e e)) e 14 (Alínea c)) ..................... 132

7. O Problema do Objeto do Processo – Caso Prático nº 15 e 16 ............... 137

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1. A Tramitação do Processo Penal Português


1.1 Introdução
Nota: Vamos acompanhar a bibliografia do Dr. Germano Marques da Silva – Tomo
III nesta parte da marcha processual.

O que é um processo? A palavra processo vem do latim, significa ir para a frente ou


andar para diante, o que significa que a palavra aponta para um conjunto de atos
ordenados que se seguem uns aos outros numa marcha ordenada para a concretização de
um certo fim. Esta é a noção geral de processo. A única diferença do processo penal em
relação a esta noção geral é a indicação do fim do processo penal, a obtenção de uma
decisão sobre a prática de um crime.

Processo Penal à De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional 403/2015,


o processo penal consiste na: “sequência de atos juridicamente preordenados praticados
por pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre a prática de um crime
e as suas consequências jurídicas”. Nesta definição encontramos o fim do processo
penal: a decisão sobre a prática de um crime, e se se confirmar a prática do crime aplicam-
se as respetivas consequências jurídicas plasmadas na lei.

Numa outra definição, mais doutrinária, o processo penal corresponde à sequência de


atos juridicamente preordenados e praticados por entidades ou sujeitos processuais
(Ministério Público, juiz, arguido, etc.) em ordem à emissão de uma decisão na qual se
apura se foi praticado algum crime e em caso afirmativo quais as respetivas consequências
jurídicas e a sua justa aplicação ao concreto agente.

O termo processo tem vários significados, desde logo, o suporte material físico onde
se condensa uma certa questão submetida aos órgãos de justiça, processo entendido como
suporte físico, material, o conjunto de papéis. Assim entendido, o processo designa-se por
autos, na prática veremos que na capa dos processos diz “autos de inquérito nº x”.

Nota: Ouve-se muito falar no desentranhamento dos autos à Um sujeito processual


pratica um ato que não devia praticar, apresenta uma peça processual inadmissível, a
consequência para a prática desse ato é o desentranhamento do auto, a peça processual é
retirada dos autos.

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Num outro sentido, a expressão remete para uma atividade que é praticada pelos
órgãos de justiça. De facto, o fim formalístico do processo penal é a obtenção da decisão
da prática de um crime e as suas consequências. Além deste fim formalístico, existe ainda
um fim material para qualquer processo à A descoberta da verdade material e a justa ou
boa decisão da causa.

É possível dividir as matérias que vamos abordar em 2 grandes núcleos:

Estática processual à Grandes Dinâmica processual à Conjunto


quadros, princípios, que informam toda a de atos ordenados de forma harmoniosa
atividade processual, determinam toda a e destinados à emissão de uma decisão,
atividade processual, as matérias à descoberta da verdade material e à
referentes aos sujeitos processuais, ao justa decisão da causa. Designa-se pela
objeto, princípios, etc. marcha processual, pela tramitação.

Para falarmos em marcha processual, há que saber primeiro o que são as formas
processuais. O que é uma forma processual?

Se dissermos que o processo corresponde a um conjunto de atos que são praticados


de determinada forma para se alcançar um fim, para se chegar a esse fim podem existir
vários caminhos. Uma forma processual corresponde justamente a uma sequência de
ritos, de atos processuais e a sua sucessão de determinada ordem. Se existem várias
formas processuais, existem diferentes conjuntos de ritos.

O legislador pode entender modificar a sequência de atos, retirar uns, modificar a


natureza de alguns, etc. No Processo Penal Português existem 2 grandes formas
processuais, a forma processual comum, e as formas processuais especiais. A forma
processual comum é a forma padrão, típica, a regra e é aquela que se aplica sempre que
não se aplique uma forma especial. Se ao caso concreto não for possível aplicar um
processo especial, aplica-se o comum. A forma comum é subsidiária às especiais. O
processo comum corresponde ao conjunto, à sequência ordenada de atos ideal e todas as

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formas especiais são desvios, alterações que são introduzidas em relação a essa forma
comum.

Forma Processual Comum VS Formas Processuais Especiais

Processo Processo
Sumário Sumaríssimo

Processo
Abreviado

1.2 Formas Processuais Especiais


• Processo Sumário à Artigo 381º a 391º CPP

Nos termos do artigo 381º, nº 1 CPP, o processo aplica-se quando o agente seja detido
em flagrante delito. O que é isto? O agente é encontrado a executar o crime, ou numa
situação em que já terminou o crime e está em fuga. Há ainda uma 3ª opção, para os casos
em que o agente for encontrado com objetos ou sinais que mostrem claramente que
acabou de praticar ou participar num crime. A noção de flagrante delito está prevista nos
artigos 255º e 256º CPP.

Para ser julgado nos termos do processo sumário, o crime que o agente cometeu não
pode ser punido com pena de prisão superior a 5 anos ou sendo um crime punível, em
abstrato, com pena de prisão superior a 5 anos, o MP declara que não pretende aplicar ao
arguido uma pena superior a 5 anos. Concluímos assim que nunca o arguido pode ser
condenado por uma pena superior a 5 anos, no âmbito do processo sumário.

Casos típicos: Crime de condução sem habilitação legal; Detenção na posse de


estupefacientes que ultrapassam as doses de referência. Em Portugal, o consumo não é
punido, e permite-se que as pessoas tenham na sua posse uma determinada quantidade
para cada tipo de droga, as tais doses de referência. Por vezes, um agente tem na sua posse
quantidades superiores a esses limites legais, mas não há indício que o agente seja
traficante e, portanto, há um certo vazio, sujeitando os agentes a este processo.

O principal desvio em relação ao processo comum é que em regra o agente é


imediatamente levado a julgamento. Que fase processual é que se elimina ou se encurta

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no processo sumário? A fase de inquérito, de investigação, porque não há propriamente


uma necessidade de longa investigação, o agente foi encontrado numa das situações que
vimos e, portanto, não se coloca essa necessidade em que se vai apurar se o crime
aconteceu ou não, e se vai recolher indícios. Em princípio os objetivos da fase de inquérito
já estão alcançados e daí que se permita avançar logo para a fase de julgamento.

• Processo Abreviado à Artigo 391º-A a 391º-G CPP

É semelhante ao processo sumário. Nos termos do artigo 391º-A CPP, aplica-se a


crimes:

o Que não sejam punidos com pena de multa ou pena de prisão superior
a 5 anos, ou sendo superior em abstrato, o MP declare que não
pretende aplicar ao arguido uma pena superior aos 5 anos à Este é o
requisito semelhante ao do processo sumário;
o Têm de existir provas simples e evidentes de onde se retire
facilmente a verificação de um crime. O código dá-nos uma noção do
que sejam provas simples e evidentes no artigo 391º-A, nº 3 CPP.

Concluindo, o processo abreviado aplica-se a casos em que há flagrante delito, mas


o julgamento não pode ser feito por qualquer razão relacionada com o processo sumário
ou em casos em que não há flagrante delito, mas existem provas claras e simples da
existência do crime e a sua autoria. À partida já existem provas do crime e do seu agente.
A fase que é novamente encurtada é a do inquérito, da investigação.

• Processo Sumaríssimo à Artigo 392º a 398º CPP

Procura-se alcançar soluções de consenso entre as partes, entre o arguido e a


acusação. É aplicável a casos em que o crime não seja punível com pena de prisão superior
a 5 anos ou só com pena de multa, ou em que o MP entende que ao caso concreto não
deva ser aplicada uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

Não há inquérito nem sequer há julgamento se o arguido e o assistente (se existir)


concordarem com a pena ou a medida de segurança não privativa da liberdade, proposta
pelo MP. Portanto:

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Se o arguido se opuser à sanção que Se o arguido concordar com a


o MP propõe sanção proposta pelo MP

O processo segue uma das outras Avança-se imediatamente para a


formas processuais. fase da decisão, da sentença.

Importa retirar desta explicação que as situações em que se aplicam os processos


especiais em nada se relacionam com a natureza do crime, isto é, o legislador não previu
diferentes processos tendo em conta o crime em causa, a previsão de diferentes tipos de
processos faz-se pela ocorrência de circunstâncias especiais:

• No processo sumário à O flagrante delito;


• No processo abreviado à Existência de provas simples e evidentes;
• No processo sumaríssimo à Consenso quanto à pena ou medida de segurança
não restritiva a aplicar.

Não obstante, é claro que se trata de situações de pequena e média criminalidade já


que nenhuma destas situações poderia resultar numa pena de prisão superior a 5 anos.

Nota: Além destes 3 processos especiais, existem ainda processos penais especiais
previstos em legislação avulsa como o processo penal tributário, processo penal militar,
entre outros. Mesmo para esses o CPP é a legislação subsidiária.

1.3 Fases do processo comum


Vamos a partir de agora concentramo-nos nas fases do processo comum. São 5 fases:

1ª 2ª 3ª 4ª 5ª

Fase de Fase de Fase de Fase de Fase de


Inquérito Instrução Julgamento Recurso Execução

Há umas fases que são obrigatórias e outras eventuais. São fases eventuais: a fase de
instrução na medida em que pressupõe que o arguido ou o assistente requeiram a abertura
de instrução; a fase de recurso, pois é necessário que alguém recorra de uma decisão e,

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por fim, a fase de execução. Há quem considere que a própria fase de julgamento também
é eventual uma vez que não havendo pronunciamento ou arquivamento do processo por
parte do MP também não há fase de julgamento.

Nas palavras de Maria João Antunes estas fases correspondem à “tramitação


tendencialmente unitária do processo penal comum”.

1.3.1 Fase de Inquérito (Artigos 262º a 285º CPP)

Para que qualquer crime possa ser investigado é preciso que seja conhecido, ou seja,
é preciso que as entidades competentes adquiram a notícia de que foi praticado um crime,
a notitia criminis, condição sine qua non para abertura da fase de inquérito, do processo
penal. Levantam-se 2 questões:

Qual é a autoridade judiciária competente para adquirir a notícia do crime e por que
meios pode adquirir?

A autoridade judiciária competente é o Ministério Público (MP). Porque não a


polícia (PSP, GNR, PJ)? Os órgãos de polícia criminal (OPC) não são uma autoridade
judiciária, são forças de segurança. Então, quem são as autoridades judiciárias?

Encontramos no artigo 1º, alínea b) CPP. São elas o juiz de julgamento ou coletivo,
juiz de instrução criminal e o MP. Os OPC atuam subordinados às autoridades judiciárias.
De acordo com o artigo 241º CPP é o MP a autoridade competente.

Quanto aos meios:

Conhecimento próprio à Conhecimento direto em que o MP através de perceção


sensorial adquire a notícia do crime. Exemplo: Um procurador está em julgamento e vê a
testemunha a mentir, está perante um crime de falsas declarações. Ou conhecimento
indireto através de perceções indiretas, a perceção de factos constitutivos de um crime
(“juntar as peças do puzzle”) através de notícias da comunicação social, através de
documentos reservados ou qualquer outra forma que não revista as caraterísticas da
denúncia.

Denúncia em sentido amplo à Na maior parte das vezes a notícia do crime é


recebida desta forma, um ato comunicativo. Alguém, um terceiro comunica determinados
factos que podem constituir a prática de um crime.

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O inquérito depende de uma notícia de crime, que se inicia com um despacho do MP.
O inquérito é a fase de investigação por excelência. É uma fase obrigatória no processo
comum à Artigo 262º, nº2 CPP, que prevê a obrigatoriedade de abertura de inquérito.

A expressão “inquérito” tem um duplo sentido. Por um lado, trata-se de uma fase
processual preliminar, é a primeira fase do processo penal. Por outro lado, é uma atividade
assente num conjunto de atos e diligências de investigação e recolha de prova sobre a
existência de um crime e os seus agentes.

E, portanto, a grande finalidade do inquérito é o esclarecimento da notícia do crime,


a investigação e a recolha de evidências ou provas sobre os crimes noticiados e os seus
responsáveis. Encontramos estas finalidades no artigo 262º, nº1 CPP. A finalidade última
é a emissão de uma decisão sobre saber se o arguido é ou não levado a julgamento.

Muitas vezes durante a fase de inquérito investigam-se questões relacionadas com o


agente e a sua personalidade. É importante porque a sentença vai ter em conta a sua
personalidade, anti socialidade, etc. De acordo com os resultados vai se calibrar a medida
da pena. Chamamos a isto de Relatório Social sobre o Arguido à Artigo 1º, nº 1, g)
CPP.

Nota: A decisão tomada no enceramento da fase de inquérito, pode ser uma acusação,
e sendo uma acusação, essa decisão do MP vai delimitar o objeto, o processo que
eventualmente chegue a julgamento. É a acusação que delimita substancialmente os
factos pelos quais o arguido poderá vir a ser condenado, razão pelo qual é necessário que
exista uma investigação prévia, para garantir que os factos pelos quais o arguido está a
ser acusado correspondem aos do julgamento, sob pena de no limite o procedimento
criminal cair.

O âmbito de inquérito reporta-se a 3 elementos essenciais:

• Factos constitutivos do crime;


• Circunstâncias do crime;
• Agente.

O Inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público nos termos do artigo


263º, nº1 e 53º, nº 2, b) CPP e nessa missão investigativa, ele é auxiliado pelos Órgãos de
Polícia Criminal. Estes, no âmbito do processo penal atuam sob a autorização e na
dependência funcional do MP, de acordo com o artigo 263º, nº2 CPP. Durante a fase de

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inquérito são praticados atos de inquérito que serão tendentes à prossecução das
finalidades do inquérito, previstas no artigo 262º CPP.

Atos de inquérito à Conjunto de atos ou diligências que são praticados na fase de


inquérito. Têm por finalidade preparar a decisão sobre o enceramento da fase de inquérito
ou sobre a decisão de acusar. São atos praticados pela autoridade competente, que é o
Ministério Público. Ainda assim, apesar de a direção competir ao MP, existem
determinados atos que não são praticados pelo MP. Quais são?

Em 1º lugar, o MP pode delegar a prática de certos atos, nos órgãos de polícia


criminal, nos termos do artigo 270º CPP. Em princípio esta delegação, pode abranger
todos e quaisquer atos de inquérito, nos termos do nº1, com exceção dos atos de inquérito
que sejam da competência do Juiz de Instrução Criminal e nos restantes casos referidos
no nº 2 do artigo 270º.

Em 2º lugar, alguns atos de inquérito só podem ser praticados direta e pessoalmente


pelo JIC, o Juiz de Instrução Criminal. Este atua durante a fase de inquérito como o juiz
das liberdades à Atua durante a fase de inquérito como garante dos direitos e liberdades
fundamentais dos sujeitos e intervenientes processuais. Determinados atos que
contendam mais diretamente com as liberdades e garantias previstas na CRP só podem
ser praticados pelo JIC.

Isto não significa que este se trate de um juiz de inquérito, pois tal seria contrário à
CRP, nos termos do artigo 219º, nº 1. Os atos que têm de ser praticados pelo JIC estão
previstos no artigo 268º CPP. Exemplos: Certas buscas domiciliárias, ou buscas a
escritórios de advogados, o primeiro interrogatório judicial do arguido, aplicação de
medidas de coação, etc.

Existem atos que têm de ser por ele autorizados ou ordenados, pelo JIC. Estão em
causa, mais uma vez, atos que contendam com os DF dos cidadãos. É o caso de certas
perícias não consentidas, sobre certas características físicas ou psicológicas do arguido,
certos exames, escutas, entre outros. Estão previstos no artigo 269º CPP.

Finalmente existe uma 3ª categoria de atos, que não são exatamente atos de inquérito,
praticados pelo JIC, mas sim atos jurisdicionais. Nos termos do artigo 17º CPP, o JIC tem
competência para exercer funções jurisdicionais durante todo o processo até à remessa
para julgamento. Que atos são esses?

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A admissão da constituição de assistente, o ofendido requerer a sua constituição como


assistente e esse requerimento tem de ser validado pelo JIC, isto é um ato jurisdicional e
não de inquérito à Artigo 68º, nº 4 CPP; A recolha de confissões para memória futura
à Artigo 271º CPP à Admite-se que uma vítima preste declarações previamente para
que depois sejam utilizadas durante o julgamento. Estas são presididas pelo JIC. Um outro
exemplo é a decisão sobre habeas corpus em caso de detenção ilegal à Artigo 220º CPP.

Que atos é que o MP pratica, promove, ordena, delega durante a fase de inquérito?
Todos os atos necessários ou convenientes e que se destinem a promover a realização das
finalidades da fase de inquérito, nos termos do artigo 267º CPP. Ele tem
discricionariedade para ordenar, delegar, todas as diligências de inquérito que
entenda necessárias. Mas ele não é inteiramente livre. Está sempre onerado, vinculado
a um Princípio de Estrita Objetividade, previsto no artigo 53º, nº1 do CPP.

É preciso fazer também uma distinção entre:

Atos de Inquérito Facultativos à A regra é que eles sejam facultativos, como


determina o artigo 267º CPP.

Atos de Inquérito Obrigatórios à Se não forem praticados geram a nulidade do


inquérito. Exemplos: O 1º interrogatório ao arguido, se não foram prestadas declarações
e o arguido não for interrogado; o 1º interrogatório judicial do arguido detido, se não for
logo presente a julgamento (artigo 141º CPP).

Relativamente à duração de fase de inquérito esta encontra-se regulada no artigo


276º do CPP. Existem diversos prazos. A regra é de 8 meses, se não houverem arguidos
detidos ou 6 meses, quando houverem arguidos detidos. Podem ser alargados segundo
determinadas circunstâncias, podendo ir no máximo atá 18 meses. A razão pelo qual não
vamos estudar estes prazos, é que não existe consequência para a violação dos mesmos.
São prazos meramente ordenadores. Não decorre nenhuma consequência jurídica, para a
validade da prova recolhida ou para a validade dos autos da decorrência do prazo.

Contudo, existe uma preocupação crescente com o prolongamento dos prazos,


existindo mecanismos a dispor para evitar estas situações:

• Avocação por um superior hierárquico à Quando se ultrapassa o prazo


segundo o artigo 276º, nº 7 CPP;

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• Aceleração processual à De acordo com os artigos 108º e 109º CPP, ex vi


do artigo 276º, nº 8 CPP.

As únicas consequências de passagem do tempo reportam-se à questão do segredo de


justiça (ultrapassados os prazos, o processo deixa de poder estar em segredo de justiça),
e à caducidade das medidas de coação.

Relativamente ao encerramento do inquérito, é preciso distinguir entre as


possibilidades de encerramento ao abrigo do princípio da legalidade, e as possibilidades
de encerramento ao princípio da oportunidade:

Possibilidades ao abrigo do Princípio da Legalidade à Os dois desfechos


possíveis são o arquivamento ou a acusação.

Despacho de Arquivamento à Artigo 277º CPP. O Ministério Público está


obrigado a arquivar o inquérito se:

• Tiver recolhido prova bastante de que afinal não se verificou nenhum crime;
• Tiver recolhido prova bastante que não foi o arguido a cometer o crime;
• O procedimento for legalmente inadmissível, por exemplo, estava dependente
de queixa e ela não foi apresentada, o titular desistiu da queixa, etc.;
• Não tiver obtido indícios ou provas suficientes da verificação do crime ou da
identidade dos agentes.

Nas primeiras 3 situações Na 4ª situação

O MP assim que faz prova de que O MP recolheu algumas provas, mas


não houve crime, tem de arquivar não são suficientes para levar o arguido
(Artigo 277º, nº 1 CPP) a julgamento (Artigo 277º, nº 2 CPP)

A diferença é que ao abrigo do nº 1, depois da decisão transitar em julgado, ela não


mais pode ser revista, o inquérito nunca mais pode ser aberto, já ao abrigo do nº 2, a
decisão de arquivar pode mais tarde ser revista, reabrindo-se o processo, se, entretanto,
surgirem novos indícios à Artigo 279º, nº 1 CPP.

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O despacho do arquivamento ao abrigo do nº 2 mantém-se sobre reserva da cláusula


rebus sic santibus (estando assim as coisas arquiva-se, mudando as coisas reage-se). A
decisão de arquivamento significa que o processo não vai continuar para as fases
posteriores.

Despacho de Acusação à Artigo 283º CPP. Se o MP, tiver recolhido indícios


suficientes de se ter verificado o crime e quem foi o seu agente, deduz acusação.

A lei define o que são considerados indícios suficientes no artigo 283º, nº 2 CPP à
São suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a
ser aplicada uma pena ou medida de segurança. Sempre que deles resultar uma
possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado. Ou seja, tem apenas de fazer um
juízo de probabilidade e considerar que é mais provável a condenação do que a
absolvição.

O artigo 283º, nº 3 CPP define os requisitos formais que a acusação deve ter. É preciso
ter em conta que a acusação é uma peça processual. Ela tem de identificar o arguido, e
tem de conter aquilo que se designa de narração sintética dos factos
(circunstancialização), o que é isto?

A acusação tem de conter, sob pena de nulidade, as circunstâncias de tempo, modo e


lugar do crime. Tem de explicar quando é que o crime correu, onde e como ocorreu.

Exemplo: Crime de violência doméstica: O que é imputado ao arguido é que o senhor


X agrediu a senhora Y. Isto não é nada, não sabemos quantas vezes, quando ou de que
modo é que a agrediu. Uma acusação circunstanciada, dirá que no dia x o senhor agrediu
y com uma arma x, etc...

Este princípio é temperado como espaços de oportunidade.

Possibilidades ao abrigo do Princípio da Oportunidade

Quando se verifiquem as hipóteses que determinam o arquivamento do processo, o


MP está sempre obrigado a arquivar. Porém, o mesmo não acontece quando se verifique
a hipótese de prolação. O sistema não se baseia estritamente no princípio da legalidade,
há espaços de oportunidade, recorrendo a determinados mecanismos processuais. Em vez
de o MP acusar, diverge o processo do seu curso normal e recorre a um destes
mecanismos:

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• Decisão de arquivamento em caso de dispensa de pena à Artigo 280º CPP;


• Decisão de suspensão provisória do processo à Artigo 281º CPP.

São verdadeiras alternativas ao despacho de acusação. O MP só pode recorrer a estes


mecanismos quando os requisitos de aplicação estiverem verificados (Abordado no Título
3 “Mecanismos de Diversão Processual”).

São mecanismos de diversão, uma vez que divergem o processo do seu curso
normal. Mas só quando determinados requisitos estiverem preenchidos é que o MP
poderá recorrer a estes mecanismos.

Nota: Há aqui que considerar uma questão particular. Nos crimes públicos e semi-
públicos, quando haja uma acusação, o assistente tem a possibilidade de deduzir também
uma acusação ancilar, paralela à do MP. Essa possibilidade que é meramente eventual
está prevista no artigo 284º CPP. Já nos crimes particulares em sentido estrito, o MP no
fim da fase de inquérito, informa o assistente se foram ou não recolhidos indícios da
prática do crime e se foram ou não suficientes. E, perante esta informação, o assistente
vai ou não deduzir acusação particular, mas o agente não está vinculado à informação
prestada pelo MP.

O que interessa saber é que nos crimes particulares em sentido estrito não é o MP
que acusa, é o assistente. Depois do assistente acusar, o MP tem a faculdade de
acompanhar a acusação do assistente, mas não está obrigado a fazê-lo. Se o assistente não
deduzir acusação particular o processo é arquivado, porque falta uma condição de
procedibilidade. Assim, depois do assistente ser notificado, o assistente pode acusar e,
nesse caso, o MP pode acompanhar, deduzindo acusação pública, pelos mesmos factos
ou não. Ou pode simplesmente não acusar e o processo é arquivado à Alteração da ordem
tendo em conta os requisitos de procedibilidade.

Quais os meios de reação à decisão de arquivar ou de acusar?

Controlo Judicial à Opera-se através da fase de instrução. Podem ser revistos ou


revisitados ou o despacho de arquivamento ou a acusação.

Intervenção Hierárquica à Nos termos do artigo 278º CPP, a intervenção


hierárquica pode apenas ocorrer quando haja despacho de arquivamento e aqui quem tem
legitimidade é o assistente, já que é o único que tem interesse.

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No âmbito dos mecanismos de diversão, a decisão que aplique esses institutos não é
recorrível, exceto quando esteja em causa a própria verificação das condições legais que
permitam a aplicação desse instituto. Fora estas hipóteses não é admissível recurso,
porque em regra a aplicação destes institutos depende do consentimento do arguido e do
assistente.

Nota: Existem 3 acusações distintas e as 3 têm regimes diferentes:

• Acusação Pública do MP à Artigo 283º CPP;


• Acusação Ancilar do Assistente em relação aos crimes públicos e semi-
públicos à Artigo 284º CPP;
• Acusação Particular do Assistente em relação aos crimes particulares em
sentido estrito à Artigo 285º CPP.

1.3.2 Fase de Instrução (Artigos 286º a 310º CPP)

É uma fase facultativa, de caráter jurisdicional e só ocorre no processo comum.


Como fase eventual e facultativa, encontra-se prevista no artigo 286º, nº2 CPP, e como
fase exclusiva do processo comum, esta encontra-se prevista no artigo 286º, nº3 CPP.

A fase de instrução só tem lugar se for requerida ou pelo arguido ou pelo assistente,
através de um requerimento que se designa por RAI à Requerimento de Abertura de
Instrução. Mas apenas em relação aquelas decisões que tenham interesse em contrariar.

Há que fazer uma precisão à No caso dos crimes particulares em sentido estrito, o
arguido pode requerer a abertura da instrução que resulte da acusação particular. Assim,
o arguido pode requerer abertura da instrução por factos de acusação pública (pelo MP)
ou de acusação particular caso se trate de crime particular à Artigos 283º e 285º CPP
caso se trate de um crime particular em sentido estrito e artigo 277º CPP, caso se trate de
um despacho de arquivamento do MP.

E o assistente nos crimes particulares em sentido estrito pode requerer abertura de


instrução? O assistente não pode requerer a abertura de instrução, porque no fim da fase
de inquérito, o processo é arquivado quando o assistente não deduz acusação, portanto, o
assistente não pode requerer, já que dependeu dele que o processo fosse arquivado.

O prazo para se requerer a abertura de instrução são 20 dias, nos termos do artigo
287º, nº1 CPP. O RAI não está sujeito a finalidades especiais, embora tenha de se

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descrever as razões que levam o arguido ou o assistente a discordar da decisão do MP.


Porém, tratando-se de abertura em seguimento de arquivamento, tem de existir
circunstancialização dos factos, no mesmo termo que um despacho de acusação, porque
aqui o RAI funciona como acusação alternativa, segundo a jurisprudência, sob pena de
inadmissibilidade legal por falta de objeto.

Nota: No Código de Processo Penal, da Coletânea da AEFDUP existe uma gralha.


No artigo 287º está anotado o Acórdão de Fixação de Jurisprudência, como sendo 7/2015,
mas é o Acórdão 7/2005!

Finalidade da Instrução à Artigo 286º, nº 1 CPP à Tem como objetivo comprovar


judicialmente a decisão de arquivar ou de acusar, em ordem de submeter a causa a
julgamento ou não.

A Instrução não serve para conhecer do mérito da acusação. A decisão que é


proferida no fim da fase de instrução não permite concluir nada da decisão que possa vir
a ser tomada na fase de julgamento, ao contrário do que muitas vezes é divulgado pelos
meios de comunicação social. A acusação ainda que seguida de decisão de pronúncia
nada permite extrair quanto à condenação do arguido em julgamento, pode na mesma ser
absolvido.

O JIC, Juiz de Instrução Criminal, não condena nem absolve o arguido, e a instrução
não é um julgamento antecipado do crime. Também não se faz um controlo de mérito da
atividade do MP. Não cabe ao JIC alterar a acusação, nem ordenar ao MP que altere a sua
decisão. O JIC vai apreciar e comprovar se se verificam ou não os pressupostos de que
depende a acusação ou arquivamento como vimos antes. Vai somente averiguar se foram
ou não verificados os requisitos legais.

A circunstância de a fase de instrução não corresponder a uma fase de julgamento


decorre do respeito pelo Princípio da Máxima Acusatoriedade Possível. Não é um
suplemento autónomo de investigação, serve para comprovar judicialmente a decisão de
arquivar ou acusar.

A direção da instrução, está prevista no artigo 288º, nº 1 CPP. Compete ao JIC e pode
ser assistido pelos OPC, Órgãos de Polícia Criminal.

Relativamente ao conteúdo da instrução, nos termos do artigo 289º, nº 1 CPP, esta é


formada pelos atos que o JIC entende dever levar a cabo, não há nenhuma vinculação do

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JIC. Contudo, é importante notar que existem dois tipos de atos: os atos facultativos que
são a regra, exceto dois que são obrigatórios. São eles:

• Debate Instrutório à Artigo 297º e seguintes CPP à É uma espécie de um


debate em que as partes discutem se realmente os requisitos legais estão ou
não verificados. É uma discussão de facto e de direito;
• Audição do arguido e da vítima quando requerida à Artigo 292º, nº 2
CPP.

Os atos de instrução à exceção destes não têm de ter lugar necessariamente, porque a
fase de instrução pode ser aberta só para discutir questões de direito ou ainda pode ter em
vista apenas a aplicação ao arguido do arquivamento por dispensa de pena.

De acordo com o nº 4 do artigo 288º CPP, o JIC investiga autonomamente o caso,


mas está limitado pelo RAI e pelas razões que aí sejam invocadas, a que se somam os
limites referentes à alteração substancial dos factos. O objeto da instrução corresponde
aos factos descritos na acusação do MP ou assistente o que leva o Dr. Germano da Silva
a falar de uma “congruência entre a acusação e a pronúncia”. Os atos de instrução dão-
se pela ordem que o JIC entender à Artigo 291º CPP.

Relativamente ao encerramento da fase de instrução, esta encerra-se depois de se


elaborar o debate instrutório (artigo 297º CPP) e depois da prolação da decisão instrutória,
prevista no artigo 307º CPP. No que diz respeito aos prazos máximos, estão previstos no
artigo 306º CPP.

Ao abrigo do Princípio da Legalidade, as duas possibilidades de encerramento da fase


de instrução são:

• Despacho de Pronúncia à Artigo 308º, nº 1 CPP à Quando o JIC tiver


recolhido durante a fase de inquérito ou instrução, indícios suficientes de se
terem verificados os pressupostos de aplicação de uma pena ou medida de
segurança. Atenção que basta aqui um juízo indiciário, uma convicção
razoável que o agente seja acusado ou absolvido.

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• Despacho de Não Pronúncia à Artigo 208º, nº 1 a contrario CPP à


Quando não tenha havido recolha de índicos suficientes de que estão
verificados os pressupostos de condenação ou absolvição.

O JIC pode também arquivar o processo em caso de dispensa de pena, ou suspender


provisoriamente o processo à Alternativas ao despacho de pronúncia.

Quanto aos meios de reação ao despacho de pronúncia ou não pronúncia, a regra


geral é a da recorribilidade, de acordo com o artigo 399º CPP. Contudo a decisão é
irrecorrível, nos termos do artigo 310º CPP, quando estivermos perante uma acusação
na fase de inquérito e um despacho de pronúncia na fase de instrução, isto é, quando 2
magistraturas estejam de acordo. Por razões evidentes, o processo seguirá para
julgamento e nessa fase o arguido poderá argumentar porque deverá ser absolvido e não
condenado.

Além disso, também não é recorrível a decisão de pronúncia na sequência de


acusação particular que tenha sido acompanhada por acusação do MP. O MP pode
acompanhar a acusação do assistente. Se o fizer e na fase de instrução houver decisão de
pronúncia, esse despacho também é irrecorrível.

Decisões Recorríveis:

Inquérito: Arquivamento Instrução: Pronúncia

Inquérito: Acusação Instrução: Não Pronúncia

Inquérito: Arquivamento Instrução: Não Pronúncia

Inquérito: Acusação particular Instrução: Pronúncia

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Decisões Não Recorríveis:

Inquérito: Acusação Instrução: Pronúncia

Inquérito: Acusação particular acompanhada por Instrução: Pronúncia


acusação do MP

Se é fácil percebermos esta lógica de não ser admitido recurso quando a acusação do
MP é seguida de um despacho de pronúncia por estarem duas magistraturas de acordo,
podíamos aplicar a mesma lógica ao caso em que o MP arquiva e o JIC emite uma decisão
de não pronúncia, mas nesta opção admite-se o recurso, porque se não houvesse
possibilidade de recurso estaríamos a retirar a possibilidade ao juiz natural da causa de
conhecê-la.

1.3.3 Fase de Julgamento (Artigos 311º a 380º CPP)

Terminada a fase de inquérito, com despacho de acusação e não havendo abertura de


instrução ou havendo que termine com despacho de pronúncia, o processo, uma vez
transitada em julgado a decisão de acusação ou pronúncia, segue para julgamento. Se
houver arquivamento e não pronúncia, o processo termina. Havendo o trânsito em
julgado, o processo, os autos são remetidos ao tribunal competente para julgamento, qual
é? (Isto reporta-nos para a matéria da competência, abordada no título 5 “Competência”).

Chegando ao tribunal competente, existem um conjunto de atos preliminares que tem


de ser praticados antes do julgamento propriamente dito.

Despacho saneador à Artigo 311º CPP. Saneamento do processo à “Limpará” o


processo de quaisquer invalidades, questões prévias ou incidentais ou nulidades que
possam afetar o conhecimento do mérito da causa. Se tiver havido fase de instrução, a
decisão instrutória já vai em grande medida produzir este saneamento, se não tiver havido,
o artigo 311º CPP obriga a que o tribunal se debruce sobre um conjunto de questões que
deveriam ter sido avaliadas na fase de instrução.

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Pode o tribunal recusar a acusação se a considerar manifestamente infundada e não


aceitar a acusação particular do assistente ou do MP por considerar estar perante uma
alteração substancial dos factos. Este trabalho é menos intenso do que é feito na fase de
instrução. A partir de 1998 eliminou-se a possibilidade do tribunal de julgamento recusar
a acusação por falta de prova, ela só será manifestamente infundada se a prova estiver
omissa.

Também se entende a acusação manifestamente infundada, nos termos do no nº 3 do


artigo 311º CPP, quando não tiver identificação do arguido, circunstancialização dos
factos, se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam ou
se os factos não constituírem crime.

Feito o saneamento, até à revisão do código de 2021, o que se seguia era um despacho
do juiz a agendar a data da audiência de julgamento, esse despacho era notificado ao
arguido, sendo que a partir daí, o mesmo podia contestar. Agora, modificou-se a ordem
dos despachos.

Em 1º lugar, o arguido é notificado para apresentar contestação, defesa e rol de


testemunhas, o requerimento probatório (Artigo 311º-B CPP) e só depois de apresentada
contestação ou decorrido o prazo é que há despacho que agenda a audiência de
julgamento (Artigos 312º e 313º CPP). Foi uma introdução positiva, tornou o processo
mais harmonioso. Muitas vezes o tribunal marcava a audiência, mas sem saber de quanto
tempo precisava para o julgamento, que prova o arguido ia apresentar. Quando marca
agora a audiência já sabe que prova os intervenientes querem produzir.

Artigo 311º-A CPP à Depois do arguido ser notificado, está obrigado a contestar?
Há alguma consequência jurídica para a não apresentação da contestação da defesa?

Em regra, a contestação é um ónus, mas sendo um ónus pressupõe que não havendo,
haja desvantagem para quem não pratica ou pelo menos a não obtenção de uma vantagem.
No processo civil, vigora o ónus da impugnação especificada e motivada, o réu se no
prazo estipulado não apresentar contestação, alguns factos, não todos, não são possíveis
de serem reconhecidos. Quanto aos outros implica o reconhecimento dos factos
apresentados pelo autor, ou seja, existe uma consequência negativa para a não
apresentação.

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No caso do processo penal, o arguido não está obrigado nem a contestação é um


ónus, não comporta nenhuma desvantagem ou impossibilidade de obtenção de vantagem,
porquê? Qual é o princípio que entra em jogo que permita afirmar isto com tanta
confiança?

Quando o arguido entra no julgamento, ele beneficia de uma presunção de inocência


(Artigo 32º, nº 2 CRP), todo o processo é baseado neste princípio, o réu quando entra no
processo civil não tem presunção. No limite, significa que o arguido pode entrar na sala
de audiências, não prestar declarações, não colaborar, não apresentar contestação e ainda
assim ser absolvido, porque por causa do princípio, o arguido não tem de provar que
não é culpado, é a acusação que tem a responsabilidade de apresentar a tribunal provas
que ilibam a presunção de que o arguido é inocente. Isto significa que a apresentação ou
não de contestação é uma estratégia de defesa do arguido, há um interesse do arguido em
apresentar contestação, por diversas razões, mas ela não é obrigatória.

Apresentada ou não a contestação, espera-se que decorra o prazo e é agendada a


audiência, são até duas datas, para o caso de não ser possível na 1ª.

Dia da audiência à No dia, hora e local no despacho que marca a audiência, os


agentes processuais estão reunidos no tribunal e virá, em princípio, um funcionário de
justiça fazer a chamada, identificará o processo e fará a chamada dos intervenientes
convocados, que entrarão na sala e o juiz declara aberta a audiência do julgamento à
Artigo 329º CPP.

Em regra, a falta de intervenientes processuais, testemunhas e até dos mandatários


não determina o adiamento da audiência do julgamento, mas há uma exceção. Se o
crime tiver natureza particular e o advogado do assistente faltar, tem de justificar a falta,
se não o fizer ou se não comparecer na 2ª data, isso equivale à retirada da acusação
particular. Isto será assim, a menos que o arguido se oponha, porque ele pode ter interesse
em que se faça julgamento para provar a sua inocência à Artigo 330º, nº 3 CPP.

O arguido está obrigado ou pode não comparecer? Além de ser direito é dever estar
presente na audiência (Artigos 332º a 334º CPP), só em casos excecionais é que se
admite a realização sem a presença do arguido. Se ele faltar, o juiz pode ordenar a
detenção (mandado de detenção) do arguido para que ele esteja presente no ato
processual. E se o arguido fugir para o Brasil ou ninguém souber onde é que ele está?

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Faz-se o julgamento sem ele? Temos as figuras do mandado de detenção europeu,


mandado de captura internacional, mas se ele está num sítio em que não o podemos
mesmo encontrar?

A lógica é esta à Se o arguido estiver evadido, não for possível encontrá-lo, é


declarado contumaz (declaração de contumácia) à Faz suspender o processo penal até
que o arguido seja encontrado ou voluntariamente se apresente à Artigos 335º e 337º
CPP.

Consequências à Mandados de detenção e o arguido fica impedido de obter


documentos civis, de identificação, sendo possível anular-se todos os negócios jurídicos
por ele praticados à A declaração caduca quando o arguido aparece.

Exemplo: Sujeito fugido para o brasil por falsificação de documentos, 15 anos depois
regressa e apresenta-se no tribunal para ser julgado, a declaração de contumácia caducou.

Atualmente, todavia, a declaração é menos frequente, graças a um expediente que o


legislador encontrou que se prende com uma medida de coação à Termo de Identidade
e Residência (TIR). Atualmente a todos os arguidos é obrigatoriamente aplicada esta
medida de coação. São comunicados ao arguido deveres processuais, está obrigado a
comunicar uma morada e um domicílio, sendo que esse servirá para que o tribunal o
notifique e ele vai se considerar notificado nesse domicílio, mesmo que não receba
efetivamente a correspondência. Além disso, se o arguido se ausentar por períodos
superiores a 5 dias está obrigado a comunicar aos autos para onde vai e onde pode ser
encontrado.

Uma das consequências da constituição ou aplicação do TIR é a possibilidade de o


arguido poder ser julgado na sua ausência, sendo julgado sem estar presente à Artigo
196º, nº 3, d) CPP.

Assumindo que tudo corre bem e o arguido está presente, vem a seguir à abertura da
audiência, o tratamento de eventuais questões prévias ou incidentais à Artigo 338º
CPP. Depois disso, há lugar às chamadas exposições introdutórias (Artigo 339º CPP),
que na prática raramente se realizam. O juiz identificaria os factos em discussão e o MP,
defensor e mandatários fariam uma espécie de resumo do que queriam provar, mas na
maioria dos casos dispensam a realização destas exposições.

De seguida à Produção da prova à Artigo 341º CPP

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Identificação do arguido à O arguido está obrigado a fornecer dados de


identificação e é o único momento em que está obrigado a falar verdade, tem de responder
com verdade os seus dados à Artigo 342º CPP.

Declarações do arguido à Artigo 343º CPP à Pode fazê-lo ou remeter-se ao


silêncio sem que daí possa resultar qualquer consequência negativa para a sua
condenação, o silêncio não pode ser valorado. Se prestar declarações, poderão ser feitas
perguntas quer pelo tribunal, quer pelos advogados, mas não está obrigado a responder a
nenhuma pergunta, inclusive pode não responder por aconselhamento do defensor e pode
mentir, o que não é possível no processo civil.

Confissão à Artigo 344º CPP à Também pode acontecer que o arguido confesse,
e se o fizer, e se essa confissão revestir determinadas caraterísticas, então não se procede
à produção de mais prova e passa-se de imediato para as alegações finais.

Nota: É logo no início do julgamento o momento ideal para prestar declarações, mas
se o arguido não quiser fazê-lo nesse momento, pode fazê-lo em qualquer altura até ao
fim do julgamento e às vezes pode ter interesse nisso.

Meios de prova apresentados pelo MP e pelo assistente lesado e meios de prova


apresentados pelo arguido e responsável civil.

Alegações finais à Artigo 360º CPP à MP, defensor e restantes advogados


apresentam conclusões de facto e de direito tendo em conta a prova produzida.

Finalmente é dada uma última oportunidade ao arguido para prestar declarações à


artigo 361º CPP.

Por fim à Encerramento da discussão.

Assim sendo, atos preliminares:

Despacho Despacho para Contestação e Despacho que


Saneador apresentação de Rol de designa dia para
contestação Testemunhas audiência

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Audiência:

Chamada e Questões Exposições Identificação Declarações


Abertura da Prévias e do arguido do arguido
Introdutórias
Audiência Incidentais

Encerramento Alegações Meios de Últimas Confissão


da discussão Finais Prova declarações
do arguido

Imediatamente a seguir à Fase da deliberação e sentença, reflexo do princípio da


concentração que estudaremos depois à Artigo 365º, nº 1 CPP à Importa que as provas
ainda estejam frescas na memória do julgador.

No momento da decisão da deliberação há que responder a 2 questões:

• Culpabilidade à Artigo 368º CPP;


• Determinação da sanção à Artigo 369º CPP.

Quando se fala em deliberação de um juiz individual é simples, quando há mais


juízes, procede-se à votação quanto às várias questões.

Na culpabilidade temos os elementos constitutivos do crime, se cometeu, se é o autor


do crime, se cometeu com culpa, etc. Se a resposta for positiva passa-se à determinação
da sanção à Escolher e graduar a sanção em concreto.

Para responder à determinação da sanção, pode ser necessário produzir prova


adicional à Artigo 370º CPP à O juiz pode solicitar a elaboração ou atualização do
relatório social e pode reabrir-se a audiência para determinação da sanção e ainda
ouvindo-se todas as pessoas que possam depor acerca da personalidade e condições de
vida do arguido à Artigos 369º, nº 2 e 371º CPP, são as chamadas testemunhas
abonatórias, nada sabem ou pouco sabem quanto aos factos que constituem o crime, mas
vão depor acerca do arguido.

Daí que se diga que em Portugal vigora o princípio da césure mitigada, porque a
decisão quanto à culpabilidade e sanção é separada.

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Concluída a deliberação à Elaboração da sentença (tribunal singular) e acórdão


(tribunal de júri ou coletivo). A decisão pode ser condenatória (Artigo 375º CPP), caso
aplique pena ou medida de segurança ou quando há dispensa de pena; absolutória (Artigo
376º CPP).

A decisão há de integrar 3 partes:

• Relatório à Onde se identifica o arguido, factos em discussão, resumo da


marcha processual até ao momento;
• Fundamentação à Começa-se por descrever os factos que foram dados
como provados e os que não foram dados como provados;
• Motivação à Em que o tribunal explica porque considerou uns factos como
provados e outros não. Se for condenado, procede-se à aplicação e gradação
da pena.

A sentença termina com um dispositivo à Resume todo o processo, dá-se o comando


jurídico, isto é, condena-se x, por y na pena de h, ou absolve-se x...

1.3.4 Fase de Recurso (Artigos 399º a 466º CPP)

Podem o arguido, ou o assistente, ou o MP ficar insatisfeitos com a decisão e recorrer.

Recursos Ordinários VS Recursos Extraordinários

Há recurso ordinário de decisão que ainda não tenha transitado em julgado, momento
em que ela se solidifica no ordenamento jurídico. Com o curso do tempo, enquanto uma
decisão não transitar em julgado e sendo recorrível estamos na órbitra dos recursos
ordinários.

Se já tiver transitado em julgado, estamos perante um recurso extraordinário, que


poderá ser para fixação de jurisprudência, é o recurso extraordinário de fixação de
jurisprudência ou um recurso de revisão, nos casos em que o arguido foi condenado,
mas mais tarde foram descobertas novas provas ou novos meios de prova que abalam a
decisão condenatória, e, por isso, é possível que se reveja a decisão condenatória.

Já vimos o princípio geral da recorribilidade à Artigo 399º CPP, com as suas


exceções no artigo 400º CPP e ao longo do código, mas no artigo 400º CPP encontra-se
o grosso dos casos.

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Além disso há uma tendência do legislador para restringir o duplo grau de


jurisdição. Temos na base os tribunais da 1ª instância, os tribunais judiciais, depois os
tribunais da relação e depois o STJ. Quando falamos no duplo grau, falamos na
possibilidade de a decisão adotada pela 1ª instância poder ser revista quer pela relação
quer pelo STJ. Mas, tem havido tendência para eliminar este grau, permitindo apenas
recurso para a relação (artigo 400º, c), d), e), f) CPP), isto em função da pena aplicada e
se houver dupla conforme, ou seja, o tribunal de 1ª instância e o tribunal da relação
concordarem na decisão.

Supremo Tribunal de Justiça

Tribunais da Relação

Tribunais Judiciais

Em todo o caso à Princípio da proibição da reformatio in pejus à Artigo 409º


CPP. Do acórdão proferido na relação ou STJ não pode resultar o agravamento da decisão
proferida na 1ª instância à Pode ser atenuada, mas não agravada.

1.4 Natureza dos Crimes

1.4.1 Crimes Públicos

São aqueles em que o MP depois de adquirir a notícia do crime, promove obrigatória


e oficiosamente, sem necessidade de qualquer ato integrativo da vontade de terceiro, o
processo penal, dando início à fase de inquérito à Artigo 48º CPP. Os crimes de natureza
pública correspondem ao expoente máximo do princípio da oficialidade.

Depois de concluir o inquérito, a investigação, o MP decide autonomamente se o


agente deve ou não ser sujeito a julgamento, se acusa ou não. Nos crimes públicos, o
ofendido, em regra a vítima (pode não ser, quando o ofendido está morto, por exemplo, é
representado pela família), o sujeito que viu lesado o seu bem jurídico penalmente
tutelado, pode constituir-se como assistente, atua como colaborador do MP, tem

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determinados poderes processuais, mas que em regra estão subordinados à atuação do


MP. A constituição como assistente, nestes crimes é possível, mas não é obrigatória.

Exemplos: Homicídio, sequestro, extorsão, formas qualificadas de certos crimes, etc.

1.4.2 Crimes Semi-Públicos

A promoção do processo penal pelo MP está dependente da apresentação de queixa


pelo titular do direito de queixa e no prazo legalmente fixado para o efeito, geralmente 6
meses. Quem é? Em regra, o titular é o ofendido à Artigo 113º CP.

Se o crime tiver esta natureza e não for apresentada queixa, ou se for apresentada
denúncia por quem não é titular do direito ou fora do prazo legal, em qualquer um destes
casos, o MP não tem legitimidade para dar início ao processo penal, nos termos do artigo
49º CPP, o que significa que a queixa é condição ou pressuposto de procedibilidade.

A partir do momento em que é apresentada queixa, tudo o resto funciona como nos
crimes públicos, o MP investiga, decide se o arguido vai ou não a julgamento e o titular
pode constituir-se como assistente, mas não é obrigatório.

Exemplos: Crimes de ofensa à integridade física simples, furto, dano, burla, ameaças,
fotografias e gravações ilícitas, etc.

1.4.3 Crimes Particulares em Sentido Estrito

Para que o MP possa promover o processo penal são necessários 3 requisitos:

• O titular do direito de queixa apresente queixa no prazo legal;


• No momento da apresentação da queixa, o titular do direito tem de manifestar
a sua intenção de se constituir como assistente no processo;
• Tem que efetivamente constituir-se como tal, dentro dos prazos previstos. A
constituição como assistente é obrigatória.

O MP investigará e no fim da fase de inquérito, vai notificar o assistente dos indícios


e se eles são ou não suficientes para acusar o indivíduo. Não obstante, quem acusa é o
assistente, é ele que deduz a chamada acusação particular. Falhando qualquer um dos
requisitos, o MP deixa de ter legitimidade nos termos do artigo 50º CPP. Sempre que
falha, o processo penal tem de ser arquivado.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 25


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Geralmente estão em causa crimes relacionados com a honra, nomeadamente, injúria,


difamação, ofensa à memória de pessoa falecida, etc. O objetivo é evitar que os tribunais
e o MP fossem inundados com processos penais de pessoas que se sentem ofendidas na
sua honra. O legislador instituiu este mecanismo como forma de limitar o exercício dos
direitos por quem se sente ofendido. Obriga a uma intervenção maior de quem se sente
ofendido à Obriga a que a pessoa se queixe, se constitua assistente (que pressupõe o
pagamento de uma quantia pecuniária) e que deduza acusação.

A questão mais importante é como é que se deduz a natureza de um crime, na prática?

Basta olhar para os tipos legais previstos no CP.

Quando se trata de um crime semi-público há de haver uma referência na norma que


dirá o seguinte “o procedimento criminal depende de queixa” à Artigo 212º, nº 3 CP à
Crime de dano.

Se se tratar de um crime particular haverá uma indicação na norma que dirá “o


procedimento criminal depende de acusação particular”. Se não disser nada é um crime
público. Não havendo nenhuma referência, vigora o princípio da oficialidade e tratar-
se-á de um crime público.

Nota (importante, dá origem a equívocos): Não é necessário que esta menção conste
da própria norma do tipo, pode encontrar-se mais à frente num outro artigo que remete
para os anteriores. Acontece com os crimes particulares em sentido estrito plasmados
entre os artigos 180º e 187º CP, por exemplo. Em nenhum deles é dito, mas no artigo 188º
CP encontramos a seguinte disposição à “o procedimento criminal pelos crimes
previstos no presente capítulo depende de acusação particular” à Ter em atenção que
não basta ir consultar o artigo do CP que contém o crime, mas todos os artigos que
integram o capítulo ou a secção para ver se não há nenhum que lhe atribua uma natureza
por remissão.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 26


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Crimes Públicos Crimes Semi-Públicos Crimes Particulares em


Sentido Estrito

MP promove O procedimento
obrigatória e criminal depende de O procedimento criminal
oficiosamente o queixa depende de queixa, da
procedimento criminal constituição de assistente e
depois de adquirir a dedução de acusação
notícia do crime particular

Regressando à matéria da denúncia, esta pode ser obrigatória ou facultativa. A


obrigatória impõe-se a determinados sujeitos, há sujeitos que quando tomem
conhecimento da ocorrência de um crime são obrigados a reportá-lo. É o caso dos OPC,
como consta do artigo 242º CPP e funcionários na ampla aceção do artigo 386º CP. Só
estão obrigados a reportar os crimes que tenham conhecimento no exercício das suas
funções e por causa delas, quem estiver obrigado e não o fizer pode incorrer em
responsabilidade disciplinar e criminal pelo crime de denegação de justiça e prevaricação
do artigo 369º CP.

A denúncia facultativa pode ser feita por qualquer pessoa, mas apenas quanto aos
crimes de natureza pública, é o que acontece, por exemplo, com o crime de violência
doméstica, que agora é um crime público. Relativamente aos crimes semi-públicos e
particulares em sentido estrito, só se pode queixar quem seja titular do respetivo direito
de queixa.

1.5 Denúncia VS Queixa


Uma denúncia é uma declaração de ciência, um mero ato comunicativo em que um
terceiro comunica ao MP a ocorrência de determinados factos que podem constituir a
prática de um crime.

A queixa é simultaneamente uma declaração de ciência e de vontade, não só são


comunicados determinados factos como é manifestada a vontade e intenção de que o MP

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 27


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averigue esses factos e investigue quem é o seu responsável (“eu quero que investigue
este crime e que leve esta pessoa a julgamento” à Ato de vontade).

Nos crimes públicos, a atuação do MP é oficiosa, é autónoma, não está dependente


de nenhum ato de vontade de terceiro. O MP investiga e acusa mesmo contra a vontade
dos ofendidos.

Desde 2007, é admitida a denúncia anónima (Artigo 246º, nº 6 a 8 CPP). Surgiu


essencialmente como forma de combate à corrupção. Não obedece a forma especial, mas
deve ser reduzia a escrito e deve ter determinados elementos essenciais. A ausência de
forma especial para a denúncia está prevista no artigo 246º, nº 1 e 2 CPP.

A denúncia pode ser feita diretamente ao MP, mas também junto dos OPC, neste
caso, estes órgãos estão obrigados, no prazo máximo de 10 dias a remeter as denúncias
ao MP (artigo 245º CPP), mesmo que sejam manifestamente infundadas, pois só o MP
é que tem competência para apreciar.

Pode também acontecer que os OPC tenham conhecimento próprio da prática de um


crime e, nesses casos, a denúncia reveste a forma especial de um auto de notícia (artigo
243º CPP). Nas operações STOP, por exemplo, os agentes têm de lavrar o auto (expressão
de autuar para aplicação de coimas).

Uma vez recebida a notícia do crime (artigo 252º, nº 2, a) CPP), o MP ou abre um


inquérito ou não o faz, mas será que o MP é plenamente livre nesta decisão, pode o MP
em relação a vários crimes dizer que uns vai investigar, outros não? É possível?

Não, o MP não é livre nessa decisão, não pode fazer juízos de oportunidade fora dos
espaços da lei, o MP está obrigado a promover o inquérito penal e a investigar, se todos
os requisitos estiverem preenchidos (artigo 262º, nº 2 CPP). Encontramos aqui outra
manifestação do princípio da oficialidade.

Exemplos de casos em que não há lugar a abertura do processo à Crime semi-público


e não foi apresentada queixa; O agente responsável está morto, cessou a responsabilidade
criminal, etc. Fora estas situações, o MP é sempre obrigado a abrir processo. A fase de
inquérito inicia-se com um despacho do MP ordenando a abertura do inquérito.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 28


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1.6 Medidas Cautelares e de Polícia


Não são ainda atos processuais, são atos de polícia, mas eles estão de tal forma
interligados com o processo penal, que o legislador entendeu alargar as regras do processo
penal aos processos policiais. Podem ser anteriores ao inquérito, contemporâneas ou
posteriores, e têm sempre de ser registadas, para permitir o aproveitamento destes atos no
processo, como dispõe o artigo 263º CPP.

• Providências Cautelares quanto aos meios de prova à Artigo 249º CPP

Exemplo: Estamos perante um homicídio, a vítima fica no chão, alguém chama a


polícia, aparece a PSP ou a PJ. Há que zelar a cena do crime, inquirir pessoas à volta,
recolher vestígios, ver se alguém tentou tirar a carteira ao morto, etc.

A especialidade destas providências é que os OPC podem levar a cabo estas tarefas
independentemente da autoridade judiciária competente. O que justifica qualquer
providência é a urgência e necessidade de preservar esses meios de prova. Se se demorar,
as provas podem desaparecer. Depois é necessário que o MP ou o juiz confirmem estes
atos para poderem depois ser integrados no processo penal.

• Identificação de Suspeitos e Pedido de Informações à Artigo 250º CPP

A prática dos agentes pedirem a identificação das pessoas é sancionada pelo CPP. O
poder que é dado aos órgãos de polícia criminal de pedirem a identificação de suspeitos
de crimes só se verifica quando existirem fundadas suspeitas da prática de um crime.

Para tal acontecer os agentes têm de confirmar a sua autoridade como agentes
policiais, explicar os fundamentos do pedido de identificação e informar a pessoa quanto
aos meios de identificação disponíveis que tem ao seu dispor. No limite, o suspeito pode
ser detido até 6 horas para ser identificado. Estes pedidos abrangem qualquer pessoa que
se presuma que tem conhecimentos relacionados com a prática do crime.

• Revistas e Buscas à Artigo 251º CPP

Existe uma exceção à regra de que as revistas e buscas estão dependentes de prévia
autorização da autoridade judiciária competente, o MP à Os casos em que a necessidade
e urgência assim o exigirem, pode o OPC fazer revistas e buscas sem prévia autorização
do MP. Têm de ser sempre comunicadas após a sua concretização ao MP e o artigo 251º
CPP só atribui esta competência em 2 situações:

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 29


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

o Revistas de suspeitos em caso de fuga iminente ou quando haja


fundada razão para crer que neles se ocultam objetos relacionados com
o crime, suscetíveis de servirem a prova e que de outra forma
poderiam perder-se;
o Revista de pessoas que tenham de participar em atos processuais ou
assistir aos mesmos.

Artigo 174º, nº 5 CPP à Outras situações em que não é preciso autorização prévia
à Crimes especialmente graves (terrorismo, por exemplo) sempre que haja fundado
indício da prática de crime que ponha em grave risco a vida ou integridade física, quando
o visado consinta desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma,
documentado ou aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de
prisão.

• Apreensão de Correspondência à Artigo 252º CPP

Por imperativos constitucionais (artigo 34º CRP), a apreensão de correspondência só


pode ser autorizada por um juiz e não pelo MP, em regra o juiz de instrução criminal, de
acordo com o artigo 179º e 269º, nº 1, d) CPP.

Situações de natureza urgente à Certos desvios no artigo 252º CPP, nomeadamente


encomendas ou valores fechados podem ser abertos, mas com prévia autorização do juiz,
e também podem os OPC determinar a suspensão de remessa e telecomunicações.

• Localização Celular à Artigo 252º-A CPP

Consiste na localização de um telemóvel, através dos sinais transmitidos pelas torres,


ou através de pedido dos dados às operadoras de telecomunicações. A constitucionalidade
desta norma é discutida na medida em que permite a um OPC, sem autorização prévia de
um juiz, proceder à localização celular de um sujeito, sempre que esteja em causa um
perigo para a vida ou para a integridade física de uma pessoa (casos graves à Sequestro,
rapto, etc.). Admite-se que sem a tal prévia autorização do juiz, exigida pelo artigo 34º,
nº 4 CRP, se proceda à localização celular. Daí a sua duvidosa conformidade
constitucional.

• Detenção à Artigos 254º a 258º CPP

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 30


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Esta só pode ter lugar em duas situações distintas, para duas finalidades. Quais são?
As previstas no artigo 254º CPP:

o Apresentação a julgamento sob a forma sumária ou ser presente a


juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para
aplicação ou execução de uma medida de coação. Neste primeiro
grupo de hipóteses, a detenção não se pode prolongar além das 48
horas.
o Assegurar a presença do detido perante uma autoridade judiciária
para a prática de um ato processual. Nestas hipóteses, a detenção
não se pode prolongar além das 24 horas. Visa-se compelir o arguido
a apresentar-se num ato processual como uma perícia, ou em
julgamento sob a forma de processo comum, quando não há
justificação para a falta. Nestes casos, é emitido então um mandado de
detenção para assegurar a sua presença.

Coisa distinta são as Modalidades da Detenção:

• Detenção em Flagrante Delito à Artigos 255º e 256º CPP

Esta pode ser feita por um OPC ou por qualquer cidadão (detenção civil), mas neste
último caso só quando não seja possível assegurar em tempo útil a presença da polícia.

Relativamente ao conceito de flagrante delito ele está previsto no artigo 256º CPP à
Abrange não apenas o momento da consumação do crime, mas também o momento
imediatamente posterior, e o momento em que o agente se encontre em fuga ou quando é
encontrado com objetos ou sinais que demonstrem claramente que ele praticou o crime.

Nos termos do artigo 255º, nº 4 CPP, a detenção em flagrante delito não pode ocorrer
relativamente a crimes particulares em sentido estrito. Relativamente aos crimes semi-
públicos eles admitem a detenção, mas esta só se mantém se no ato imediatamente
seguinte ao momento da detenção, o titular do direito de queixa apresentar queixa. Se não
exercer o direito de queixa, o agente terá de ser libertado.

• Detenção Fora de Flagrante Delito à Artigo 257º CPP

A regra é que deve ser sempre precedida de mandado (e não mandato!) de detenção
à Artigo 258º CPP. Este consiste numa ordem dada pela autoridade judicial competente.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 31


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Aqui, esta autoridade ou é o juiz de julgamento ou o JIC, ou o MP. O MP apenas para


crimes que admitam a aplicação da prisão preventiva (esses crimes estão previstos no
artigo 202º CPP). Para as outras hipóteses tem de ser o juiz.

A detenção fora do fragrante delito, além de ter de se destinar a uma das finalidades
previstas no artigo 254º CPP, só pode acontecer quando se verifiquem determinados
requisitos, previstos no artigo 257º, nº 1 CPP (semelhantes aos da aplicação de medida de
coação). Os OPC podem proceder a detenções fora de flagrante delito sem mandado
de detenção nos casos previstos no nº 2 do artigo 257º CPP. Que situações são essas?

o Tem de ser um crime que admita prisão preventiva;


o Têm de existir elementos que tornem fundados o receio de fuga ou da
continuidade da atividade criminosa;
o Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora,
esperar pela intervenção da autoridade judiciária.

Isto permite proceder a uma distinção entre preso e detido.

Preso Detido

Está num estabelecimento Goza da presunção de inocência


prisional por via de uma e tem de ter um tratamento
condenação transitada em julgado distinto do preso

A diferença entre a detenção em flagrante delito e detenção fora de flagrante delito


prende-se com o facto de que a primeira não exige a ordem prévia de uma autoridade
judiciária, ao passo que a segunda exige em regra, quase sempre, uma ordem emitida por
uma autoridade judiciária tendente à detenção.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 32


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2. Aplicação da Lei Processual Penal no Tempo


2.1 Introdução
Abstraindo-nos do processo penal, na teoria geral do direito, a regra geral no que toca
à sucessão da lei é o princípio da não retroatividade à Artigo 12º CC à A lei só dispõe
para o futuro, porém o próprio artigo 12º CC tem algumas nuances e faz uma distinção
entre condições de validade substancial ou formal de qualquer facto e os seus efeitos.

Imaginemos que no dia 1/1/2000, o senhor A celebrou um contrato de arrendamento


com B e à data da celebração, a lei que estava em vigor determinava que o contrato não
estava sujeito a nenhuma exigência de forma, podia ser um contrato verbal. No dia
1/1/2010 entra em vigor uma lei nova que passa a exigir a forma escrita para o contrato.
O senhor A, senhorio vem invocar a nulidade deste contrato por inobservância das
exigências formais, pode fazê-lo? Não, porque à data em que foi celebrado, o contrato
cumpria os requisitos. A lei nova que dispõe sobre condições formais, só se vai aplicar
aos factos que tenham ocorrido depois da sua entrada em vigor e não aos factos que já
existiam na sua entrada em vigor.

Outro caso à Imaginemos que em Portugal vigorava o regime de renda controlada e


a lei fixava os coeficientes de renda, as rendas que os senhorios poderiam cobrar. No
momento da celebração do contrato, tínhamos certos critérios, em 2010, a lei nova
aumenta as regras, as rendas aumentam. A lei nova aplica-se à relação jurídica entre o
senhor A e B? Aqui é sobre o próprio conteúdo da relação jurídica, logo altera a relação
jurídica constituída já anteriormente, pelo que em princípio aplicar-se-ia.

Mas será que em DPP é assim?

1ª Nota relevante à O momento determinante para o Direito Civil ao qual temos de


atender para determinar qual a lei aplicável é o momento do facto jurídico, do facto com
relevância jurídica, no DPP não é exatamente assim.

A regra geral do processo penal em matéria de aplicação da lei no tempo é o princípio


da aplicação imediata na lei nova à tempus regit actum à Artigo 5º, nº 1 CPP. A lei
nova aplica-se imediatamente a partir do momento em que entra em vigor, o que abrange
os processos pendentes à data relativos a crimes praticados anteriormente. A lei nova
aplica-se inclusive aos factos pendentes no momento da sua entrada em vigor.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 33


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Em relação a este princípio temos algumas salvaguardas. O artigo 5º CPP prevê uma
ressalva, a lei nova nunca se aplica aos atos já praticados à data em que entra em
vigor, esses não são invalidados, não saem afetados. A validade desses atos tem de ser
julgada de acordo com a lei revogada à Princípio da tutela dos atos juridicamente
perfeitos ao abrigo da lei que foram praticados.

Ao contrário do que acontece no Direito Civil, no DPP o momento relevante é o


momento da prática do ato processual e não, por regra, o momento da prática do ato
criminoso à Conceito atomístico, corresponde a qualquer trâmite, a qualquer evento
processual.

A regra do tempus regit actum tem exceções, e essas exceções determinam que a nova
lei não se vá aplicar a processos já pendentes à data da sua entrada em vigor, só se vai
aplicar aos processos iniciados após a entrada da lei em vigor.

Quais são as exceções?

1ª Exceção à Artigo 5º, nº 2, alínea b) CPP à Corresponde à quebra da harmonia


dos vários atos do processo, quando há modificações profundas na tramitação
processual. Imaginemos que há fases que são suprimidas ou cujo sentido é completamente
modificado, isto podia criar desarmonia na tramitação. Se estiver em causa a harmonia e
unidade do processo, a lei só se aplica aos processos que iniciam depois da sua entrada
em vigor. Aconteceu, por exemplo, quando o nosso código entrou em vigor. Foi publicado
em 1987, mas as leis só passaram a aplicar-se aos processos que se iniciariam a partir de
1 de janeiro de 1988. Todos os outros continuavam a ser tramitados tendo em conta o
código anterior.

2ª Exceção à Artigo 5º, nº 2, alínea a) CPP à Diz-nos que a lei nova também não
se vai aplicar imediatamente aos processos pendentes quando dessa lei resulte um
agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido,
nomeadamente uma limitação aos seus direitos de defesa, conforme garantidos pelo artigo
32º, nº 1 CRP. É o que acontece quando entra em vigor uma lei que restringe o acesso ao
recurso. Uma situação em que o arguido tinha acesso ao STJ, mas com uma nova lei só
pode recorrer à Relação, é desfavorável ao arguido, limita os seus direitos de defesa.
Nestas hipóteses a lei nova não será de aplicação imediata.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 34


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Este exemplo não é aleatório, permite que vejamos que há algumas especialidades.
Veremos o regime dos recursos depois, mas o que vai interessar vai ser o regime que
estava em vigor à data em que é proferida a decisão de que se quer recorrer. Se nesse
momento em que é proferida a sentença, o arguido tivesse direito a recorrer até ao STJ,
mantém esse direito. Se à data o arguido já não tinha esse direito, então a lei nova já se
aplicará nesse processo.

É nesta alínea que vai reentrar a construção dogmática que distingue normas
processuais materiais ou quasi-substantivas (quasi e não quase) das normas formais. As
normas processuais materiais são aquelas que contendem diretamente com DF, com o
estatuto do arguido ou com as suas garantias de defesa. As normas processuais formais
limitam-se a disciplinar a tramitação do processo. Às formais aplica-se o princípio do
tempus regit actum, para as materiais, temos de atender à teoria do professor Taipa de
Carvalho. Quais são elas? Podem agrupar-se em 3 grupos:

• Normas que condicionam a efetivação da responsabilidade criminal ao


estabelecerem condições positivas ou negativas de procedibilidade, como as
normas referentes à queixa, acusação particular;
• Normas que contendem diretamente com o estatuto do arguido, como as normas
relativas aos meios de prova, graus de recurso, medidas de coação, etc.;
• Normas que definem e estruturam as grandes linhas do sistema judicial e
penitenciário, como as normas relativas à organização e competência dos
tribunais, geralmente.

Não interessa onde a norma se encontra, se no CPP, CP ou legislação extravagante,


o que interessa é que seja uma norma que contenda diretamente com DF, com o estatuto
do arguido ou com as suas garantias de defesa. Qual é o regime que se aplica? O do
tempus regit actum?

Não, segundo o professor Taipa de Carvalho, às normas processuais materiais aplica-


se o regime do DP substantivo, constante do artigo 2º CP. Assim, deixa de ser relevante
o momento da prática do ato processual para ser relevante o momento da prática do facto.
Tal como no DP vigoram 2 princípios, o da proibição da retroatividade in malem
partem, desfavorável ao arguido e a regra da permissão da retroatividade in bonam
partem, favorável ao arguido.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 35


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Prática do crime de furto à À data da prática do facto, estava em vigor uma lei que
determinava a punição com pena de prisão até 2 anos. Mais tarde é publicada lei nova que
reduz para 1 ano de pena máxima, essa lei nova aplica-se? Sim, porque é favorável ao
arguido. Uma lei nova só será aplicada a factos praticados anteriormente à sua entrada
em vigor, se for mais favorável ao arguido e nunca se for mais gravosa e prejudicial ao
arguido. Há que procurar a lei concreta mais favorável ao arguido.

Exemplo 1:

1 de janeiro de 2009 à Lei que previa que a duração máxima da prisão preventiva
era de 3 anos (L1)

1 de fevereiro de 2012 à Lei Nova (LN) que aumenta a duração máxima da prisão
preventiva para 4 anos

Supondo que o senhor A praticou um crime que admite prisão preventiva no dia 1 de
fevereiro de 2010 (Momento da Prática do Facto – MPF) e que é detido preventivamente
(Prisão Preventiva – PP) no dia 1 de outubro de 2013. Quanto tempo no máximo poderá
ficar preso preventivamente?

L1 LN

01.01.2009 01.02.2012

MPF PP

01.02.2010 01.10.2013

As normas referentes à duração da prisão preventiva são normas materiais e


enquadram-se naquelas que contendem com o estatuto do arguido, logo aplica-se o regime
do DP substantivo, do artigo 2º CP. A L1 era aplicada, porque era concretamente
favorável ao arguido, ainda que no momento do ato processual a lei nova estabelecesse
que a duração era no máximo de 4 anos. Atendemos ao momento do facto, em que estava
em vigor a L1 que determina pena mais baixa do que a lei em vigor no momento da prática
do ato processual.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 36


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Suponhamos ainda que no dia 1 de dezembro de 2012 à Entra em vigor a LN2 que
reduz a duração máxima para 2 anos e 6 meses. Mantém-se tudo o resto, mas agora fica
por quanto tempo?
L1 LN PP

01.01.2009 01.02.2012 01.10.2013

MPF LN2

01.02.2010 01.12.2012

O arguido ficará detido preventivamente 2 anos e 6 meses, é a lei concretamente mais


favorável.

Exemplo 2:

O facto é praticado no dia 1 de março de 2013 e a LN2 aumenta a duração máxima


da prisão preventiva para 5 anos.

L1 LN2 PP

01.01.2009 01.12.2012 01.10.2013

LN MPF

01.02.2012 01.03.2013

Aplica-se a LN, é a concretamente mais favorável.

Às normas processuais formais, aquelas que se limitam a disciplinar a tramitação do


processo, aplica-se o princípio do tempus regit actum, sem consideração adicional a fazer.

Esta tese tem merecido muitas críticas, porque diz que se estivermos sempre a
procurar o regime concretamente mais favorável ao arguido, no caso português em que
há alterações aos códigos com tanta frequência, principalmente no que toca a crimes
praticados há muito tempo, estávamos a aumentar a dificuldade do processo penal
desnecessariamente à Torná-lo-íamos ingovernável.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 37


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Por outro lado, diz-se que a relação que existe no processo penal não é exclusiva entre
o arguido e Estado, é uma relação triangular que inclui o arguido, o Estado e a
comunidade, onde se inclui a vítima e o ofendido e é preciso atender às necessidades de
cada um. Podem existir regimes favoráveis ao arguido, mas que prejudicam a vítima.

Para tentar corrigir estes defeitos, foi introduzida a Teoria das Expectativas. Diz-
nos que as exigências da aplicação da lei processual penal devem pautar-se pelas
concretas expectativas a tutelar no caso, a proteção deve ir tão longe quanto a norma o
permita. Desta forma, quando a questão contenda com a efetivação da responsabilidade
criminal ou normas incriminadoras, faz todo o sentido que tenhamos em conta o
momento da prática do facto, nos outros casos em que não estejam em causa normas
do 1º grupo, analisamos a situação caso a caso. Por exemplo, tratando-se da matéria dos
recursos o que releva não é o momento da prática do facto, mas o da prolação da decisão
de que se quer recorrer à Acórdão 4/2009 STJ.

Portanto, quando estejamos perante normas incriminadoras e normas relacionadas


com a efetivação da responsabilidade criminal, aplicamos a tese do professor Taipa de
Carvalho, nas restantes normas vemos caso a caso qual a lei que se deve aplicar.

2.2 Conversão da natureza dos crimes


Uma lei que converte um crime semi-público ou particular em crime público é
desfavorável ao arguido porque elimina condições de procedibilidade. Nestas hipóteses
o professor Taipa de Carvalho diz-nos que a lei nova só vai ser aplicada aos factos
criminosos praticados depois da sua entrada em vigor.

Uma lei que converte um crime público em semi-público ou particular é favorável


ao arguido, porque introduz condições de procedibilidade. Se é favorável, a lei nova
aplica-se retroativamente (retroatividade in bonam partem), inclusive aos factos
praticados anteriormente à sua entrada em vigor.

Problemas adicionais à E se a lei nova entra em vigor na pendência de um processo?


E se a lei nova passar a exigir queixa, a partir de que momento é que começamos a contar
o prazo? E se a lei nova encurtar o prazo para o exercício do direito de queixa?

Se a lei nova converter um crime público em semi-público ou particular e o processo


ainda estiver em fase de inquérito, o MP só tem legitimidade para deduzir acusação se,

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 38


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entretanto, for apresentada queixa, pelo titular. Diz o professor Taipa de Carvalho que
a legitimidade do MP se afere em relação a cada ato processual concreto.

Se o processo já estiver em fase de instrução ou julgamento, esta conversão acaba


por não ter relevância, porque o MP quando deduziu acusação tinha legitimidade para o
efeito à Artigo 5º, nº 1, 2ª parte CPP. A nova natureza pode ter outras consequências, se
converter de crime público para semi-público, pode admitir-se a desistência da queixa já
depois de deduzida a acusação. Se converter um crime semi-público em público, na fase
de inquérito o MP vai continuar a precisar da queixa, a alteração prejudica o arguido.

Prazos para o exercício do direito de queixa à O prazo é de 6 meses a partir do


momento da prática do facto ou quando forem conhecidos os seus agentes e elementos
constitutivos à Artigo 115º, nº 1 CP.

• Se a lei nova converter um crime semi-público em público, ela não é aplicada,


porque se trataria de uma retroatividade in malem partem, logo o direito de queixa
tem de continuar a ser exercido no prazo normal.
• Se a lei nova converter um crime particular em público ou semi-público, o
assistente tem de deduzir acusação particular uma vez que a lei nova não é
aplicada (novamente retroatividade in malem partem).
• Se a lei nova converter um crime público em semi-público ou particular, é
aplicada retroativamente (retroatividade in bonam partem). O prazo legal para
a apresentação de queixa começa a contar de novo, de modo a permitir que o
ofendido expresse a sua vontade, em função do quadro legal emergente.
• Se a lei nova reduzir o prazo para o exercício de queixa, por exemplo de 6 para 4
meses, a jurisprudência segue a ideia de que a lei nova é aplicada, porque se trata
de retroatividade in bonam partem. Mas como há expectativas da vítima a
proteger, o prazo mais curto só vai contar a partir do momento de entrada em
vigor da lei nova, a não ser que se ele for contado a partir da lei antiga faltar menos
tempo do que a lei nova à Se no momento o prazo é 6 meses, entra em vigor a
lei nova e já só falta 1 mês, aí a vítima não vai receber nenhum benefício, o prazo
é mais longo do que aquele que já tinha direito. Se faltassem ainda 5 meses,
quando entra em vigor a lei nova, o ofendido vai ter na mesma direito aos 5 meses
a partir do momento em que entra em vigor a lei nova.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 39


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

2.3 Esquema para resolver todos os casos em matéria de


aplicação da lei no tempo
2º Lugar, a lei nova contém
normas processuais materiais?

1º Lugar Não, aplica-se o princípio do


tempus regit actum

Determinar a data do facto


Sim. É favorável ao arguido?
Determinar a data da entrada
Se sim, aplica-se a permissão da
em vigor da nova lei
retroatividade in bonam partem

Se não, aplica-se a proibição da


retroatividade in malem partem

2.4 Resolução dos Casos Práticos 1 a 3


Caso Prático nº 1

a) Em 10/09/2007, A, de 16 anos, foi abusado sexualmente por um tio, B, e contou


ao psicólogo da escola que, em 15/09/2007, participou os factos ao MP. Sabendo que,
por força da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, entrada em vigor em 15/09/2007, os
crimes de coação sexual contra menores foram convertidos em delitos públicos e que,
até então, o procedimento criminal até então dependia de queixa, diga se o MP tem
legitimidade para abrir inquérito contra B.

b) No dia 20/02/2003, C cometeu um crime de contrafação, imitação e uso ilegal


de marca. À data, o crime era público, mas o Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de março,
entrado em vigor a 01/07/2003, passou a exigir a queixa para que pudesse iniciar-se
procedimento criminal. Diga quem tem competência para promover o processo e, se
for caso disso, de que prazo beneficia o ofendido para apresentar a queixa.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 40


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c) No dia 28/02/2013, D entrou no hipermercado X durante o período da sua


abertura ao público, retirou da prateleira uma agenda que custava € 15,99, escondeu-a
no bolso interior do casaco e saiu sem pagar. Ainda no supermercado, D foi detido
pelo segurança, que recuperou a agenda e entregou o suspeito às autoridades. O MP
acusou D para julgamento na forma sumária no dia 01/03/2013. Sabendo que a lei n.º
19/2013, de 21 de fevereiro, entrada em vigor trinta dias após a publicação, converteu
em crime particular em sentido estrito (cf. art. 207.º, n.º2, do CP), diga quem tem
competência para deduzir acusação no caso em apreço.

a)

Qual é o problema aqui em causa? Temos uma lei nova que torna o crime público,
que até então tinha a natureza de crime semi-público, pelo que dependia de queixa para
que o MP tivesse legitimidade para prosseguir a ação penal, o que agora já não é condição
de procedibilidade à Transformação da natureza do crime. No momento do facto, no
tempus delicti, o crime tinha a natureza semi-pública. Na data em que o MP adquire a
notícia do crime, já tinha natureza pública.

Para que o MP pudesse abrir inquérito penal e deduzir acusação precisava ou não da
queixa? A queixa mantinha-se como condição de procedibilidade? Temos aqui o
problema da aplicação da lei processual penal no tempo ou a sucessão das leis
processuais no tempo.

Data da prática do facto à 10 de setembro de 2007

Data de entrada em vigor da LN à 15 de setembro de 2007


L1 LN

15.09.2007

MPF

10.09.2007

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 41


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Contém normas processuais materiais? Sim, é uma condição de procedibilidade. A


conversão da natureza de um crime corresponde a normas que contendem com condições
de procedibilidade, não aplicamos o princípio do tempus regit actum. É concretamente
favorável ou desfavorável ao arguido?

Converte um crime semi-público em crime público, deixa de ser preciso apresentar


queixa à A lei nova é desfavorável, é pior para o tio que qualquer pessoa possa denunciar
o que faz, do que só o próprio ofendido acusar à Aplica-se o princípio da retroatividade
in malem partem, logo, aplica-se a lei antiga.

O MP com os dados que temos no enunciado tinha legitimidade para abrir inquérito
contra B? Não, porque houve uma denúncia que não foi feita pelo titular do direito de
queixa (Artigo 113º CP). Nos termos do artigo 49º CPP, o MP não tinha legitimidade,
porque a denúncia partiu de um terceiro.

b)

Data da prática do facto à 20 de fevereiro de 2003

Data da entrada em vigor da LN à 1 de julho de 2003

L1 LN

01.07.2003

MPF

20.02.2003

Novamente uma conversão da natureza do crime à Crime público em semi-público.

É uma norma processual material? Sim, igual ao caso anterior, trata-se de condições
de procedibilidade, afastamos a aplicação do princípio do tempus regit actum. É favorável
ao arguido porque acrescenta-se uma condição de procedibilidade, o ofendido tem de
apresentar queixa à Retroatividade in bonam partem. Vamos ver o regime mais
favorável e vamos fazer esse regime retroagir à data da prática do crime.

O MP precisava que fosse apresentada queixa (artigo 49º CPP). Prazo à 6 meses
(artigo 115º, nº 1 CP). Após esse prazo o direito caduca, não pode ser mais exercido. Mas

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 42


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como é que vai ser contado o prazo? A partir de dia 1 de julho de 2003 para permitir ao
ofendido expressar a sua vontade de acordo com o novo quadro legal em vigor, tutela-se
o ofendido.

c)

Data da prática do facto à 28 de fevereiro de 2013

Data da entrada em vigor da LN à 23 de março de 2013

Aqui acrescentamos a data da acusação do MP (AMP) à 1 de março de 2013

L1 AMP

01.03.2013

MPF LN

28.02.2013 23.03.2013

Conversão da natureza do crime à Natureza do crime de furto (ver sempre a natureza


dos crimes no CP à Artigo 203º CP). Corresponde a um crime semi-público, porque
depende de queixa nos termos do nº 3. Tratando-se de uma especialidade do crime de
furto (shoplifting), porque o valor dos bens é diminuto, entre outros requisitos, o crime
depende de acusação particular, nos termos do artigo 207º, nº 2 CP à Crime particular
em sentido estrito.

A conversão é favorável ao arguido, passa a ser necessária a acusação particular e a


constituição como assistente à Permite-se a retroatividade in bonam partem. Mas na data
em que a LN entra em vigor, já o MP tinha deduzido acusação pública. Quid iuris?

A LN é concretamente mais favorável, aplica-se retroativamente, no entanto, quando


a lei nova entra em vigor o MP já tinha deduzido acusação pública. Temos algum
princípio que ajude nestes casos? É inválida a acusação pública do MP? Não, porque
temos o princípio da tutela dos atos juridicamente perfeitos validamente praticados à
luz da lei ao abrigo da qual foram praticados.

No momento em que o MP deduz a acusação, tinha legitimidade, o crime ainda era


semi-público, por força do artigo 5º, nº 1, 2ª parte CPP. A legitimidade do MP é aferida

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 43


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ato a ato. Se tivesse deduzido acusação no dia 24 de março já não teria legitimidade.
Assim, já não seria necessária a acusação particular, mas seria necessária a constituição
como assistente, se ainda não o tivesse feito, para que o MP continuasse a ter legitimidade
para promover o procedimento criminal.

Caso Prático nº 2

Em 06/05/2009, o MP abriu inquérito para investigar um crime de burla


informática (art. 221.º, n.º 5, al. a), do CP) cometido em 14/11/2008. No dia
16/11/2009, o MP requereu ao JIC que ordenasse à TV Cabo Portugal a identificação
do cliente e local de instalação de onde foram utilizados os elementos da conta de
acesso à internet por meio de determinados IP, no dia 14/11/2008, entre as 22H08.56
e as 23H17:40. A diligência probatória foi requerida ao abrigo do disposto nos artigos
11.º, n.º 1, e 14.º, n.ºs 1 e 4, da Lei do Cibercrime, entrada em vigor a 15/10/2009, e
não tinha, antes da Lei do Cibercrime, previsão legal. Deverá o JIC deferir o
requerimento do MP?

Data da Prática do Facto à 14 de novembro de 2008

Data da entrada em vigor da LN à 15 de outubro de 2009

Aqui interessa a data do requerimento ao JIC (RJIC) à 16 de novembro de 2009

L1 LN

15.10.2009

MPF RJIC

14.11.2008 16.11.2009

1ª Pergunta: A LN contém normas processuais materiais? Até à lei do cibercrime não


estava verdadeiramente previsto na legislação um determinado meio de prova relacionado
com identificação do IP de certos acessos à internet. Antes da entrada em vigor desta lei,
o crime regia-se pelo disposto no artigo 126º, nº 3 CPP à “Ressalvados os casos previstos
na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 44


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intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações


sem o consentimento do respetivo titular”.

Tratava-se de um método de prova proibido e se fosse utilizado tratar-se-ia de prova


nula, não podendo ser considerada para a condenação do arguido. Com a entrada em vigor
da LN é permitido pedir determinados dados da navegação na internet de pessoas
concretas.

Isto são meras normas processuais formais ou normas processuais materiais?


Materiais, contendem com DF, desde logo com a reserva da vida privada, mas também
com o estatuto do arguido. Como vimos existem 3 grupos de normas materiais, sendo que
estas pertencem ao grupo que identificamos como o 2º, o das normas que contendem
diretamente com o estatuto do arguido (relacionado com os meios de prova).

Tratando-se de normas processuais materiais, não se aplica o princípio do tempus


regit actum, encontramos outra solução. Esta LN é concretamente favorável ou
desfavorável ao arguido? Desfavorável, uma vez que antes aquele meio de prova só
poderia ser utilizado se o agente consentisse. A partir da entrada em vigor da lei nova,
passou a ser permitido, independentemente da autorização do arguido. Assim sendo,
aplicamos a proibição da retroatividade in malem partem. Não aplicamos a LN, o que
significaria que a LN se aplicaria somente aos factos praticados depois da sua entrada em
vigor.

Se admitíssemos este meio de prova que era inadmissível na data da prática do facto,
estávamos a agravar significativamente a posição processual do arguido, nos termos do
artigo 5º, nº 2, a) CPP porque na data da prática dos factos o arguido não podia
razoavelmente contar que os seus dados pudessem ser intersetados, daí que neste caso
concreto, o momento relevante ao abrigo da teoria das expectativas para aplicação da LN
é o momento da prática do facto. Nesta sequência, não restaria outra opção ao JIC se não
a de indeferir o requerido pelo MP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 45


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Caso Prático nº 3

No dia 01/09/2007, A foi condenado numa pena de 5 anos de prisão pela prática,
em 21/06/2005, de um crime de roubo qualificado (art. 210.º, n.º 2, al. a), do CP). Na
data em que o crime foi cometido e o processo se iniciou, eram recorríveis para o STJ
todas as decisões condenatórias por crimes puníveis com pena de prisão superior a 8
anos, mas a Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto, entrada em vigor a 15/09/2007,
circunscreveu o acesso à jurisdição do STJ às condenações em pena de prisão superior
a 8 anos ou não superior a 5 anos em caso de divergência entre as instâncias.

a) Caso a condenação de A venha a ser confirmada pela Relação, poderá o arguido


recorrer ainda para o Supremo?

b) A resposta seria a mesma se a sentença da primeira instância tivesse sido


proferida em 17/09/2007?

Data da prática do facto à 21 de junho de 2005

Data da entrada em vigor da LN à 15 de setembro de 2007

Interessa para este caso a data da condenação em 1ª instância (C1I) à 1 de setembro


de 2007

L1 C1I

01.09.2007

MPF LN

21.06.2005 15.09.2007

a)

Estamos perante uma lei que vem restringir o duplo grau de jurisdição, o que
significaria que uma decisão deixaria de ser recorrível até ao STJ, para ser apenas
recorrível à relação.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 46


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É uma norma processual material, inserida novamente no grupo respeitante ao


estatuto do arguido e às suas garantias de defesa. É concretamente desfavorável ao
arguido, visto que quanto mais hipóteses de recurso, melhor o escrutínio da decisão.

Estaríamos tentados a dizer que se aplicaria a retroatividade in malem partem e a LN


só se aplicaria aos factos praticados depois da sua entrada em vigor. Mas será assim? Não,
porque nós vimos que no âmbito da Teoria das Expectativas, a relação que se estabelece
no processo penal não é bilateral, entre o Estado e o arguido, mas triangular, abrangendo
a vítima.

E, portanto, aquilo que devemos fazer quando definimos o momento relevante para
aplicação da lei processual penal no tempo é atender às expectativas em presença. No
âmbito das leis incriminadoras e que contendem com DF, o momento é o da prática do
facto, nas restantes temos de ver caso a caso.

No caso anterior, estava presente uma temática relacionada com meios de prova e
achámos que faria sentido ser na mesma o momento da prática do facto. A jurisprudência
veio estabelecer que o momento relevante para aplicação da lei processual penal no tempo
é o momento do proferimento da decisão de que se quer recorrer. Então nestes casos,
fazemos a seguinte questão à Aquando da decisão de que se quer recorrer o arguido
podia esperar recorrer ao STJ? Se sim, a LN não se aplica, caso contrário a LN já se
aplicaria imediatamente, vigora o tempus regit actum.

Na nossa hipótese, na data em que a decisão da 1ª instância é proferida, o arguido


podia razoavelmente esperar recorrer ao STJ? Sim, porque a LN entra em vigor depois da
condenação da 1ª instância, ele tinha a expectativa que mantinha o duplo grau de
jurisdição, portanto a LN não se aplica ao caso concreto, mantém a possibilidade do
recurso, nos termos do artigo 5º, nº 2, a) CPP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 47


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b)
L1 LN

15.09.2007

MPF C1I

21.06.2005 17.09.2007

A resposta seria a mesma, tendo em conta que a sentença foi proferida no dia 17 de
setembro de 2007? Não, nesse caso o arguido não podia esperar razoavelmente expectar,
ter a expectativa legítima de que manteria o seu direito ao duplo grau de jurisdição à LN
de aplicação imediata e o arguido só poderia recorrer para o Tribunal da Relação, sendo
que neste caso teríamos até uma situação de dupla conforme.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 48


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3. Mecanismos de Diversão Processual


3.1 Introdução
Caso Prático nº 6

No final do inquérito movido contra A e B, com base em queixas-crime recíprocas


por ofensa à integridade física simples, o Ministério Público, depois de obtida a
concordância do Juiz de Instrução Criminal, determinou o arquivamento dos autos para
dispensa de pena com fundamento na circunstância de os arguidos se terem agredido
mutuamente e não existirem elementos probatórios para determinar quem iniciou as
agressões (art. 143.º, n.º 3, al. a), CP).

Um ano mais tarde, uma testemunha ocular, C, veio ao processo informar que foi
A quem agrediu B em primeiro lugar, exibindo uma gravação obtida pela câmara de
vigilância do seu supermercado em corroboração das declarações prestadas.

a) Verifique do cumprimento dos requisitos do arquivamento em caso de dispensa


de pena.

b) Poderá o Ministério Público determinar a reabertura do inquérito contra A com


fundamento no disposto no artigo 279.º CPP? Justifique.

a)

Temos aqui, um mecanismo de diversão processual sem intervenção, neste caso o


arquivamento em caso de dispensa de pena. Em termos factuais, temos um problema de
mútuas agressões, mútuas ofensas à integridade física e não se consegue fazer prova sobre
quem é que iniciou as agressões. Em consequência foi determinado um arquivamento de
dispensa de pena. A primeira questão é saber se os requisitos deste arquivamento estão
ou não preenchidos.

Qual é a natureza do crime de ofensa à integridade física simples?

Encontramos isso no Código Penal, no artigo 143º, nº 2, que nos diz que é um crime
semi-público exceto quando o ofendido seja um agente ou força de segurança, caso em
que passará a crime público, mas nos restantes casos as ofensas à integridade física são

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 49


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crime semi-público, depende da apresentação de queixa. Neste caso, houve uma queixa
recíproca à A contra B e B contra A.

O MP determinou o arquivamento dos autos por dispensa de pena e fê-lo com base
no artigo 280º, nº 1 CPP. Este despacho de arquivamento por dispensa de pena, proferido
pelo MP existe ao abrigo de que princípio de promoção processual? O princípio da
oportunidade, que é o contraponto de um outro princípio de promoção processual, o da
legalidade.

De acordo com o princípio da legalidade, o MP sempre que se verifiquem as


condições/pressupostos jurídico-factuais e indiciários está obrigado a acusar ou a
arquivar, nos termos do artigo 283º CPP ou 277º CPP. O MP não pode, em regra, fazer
nenhum juízo de oportunidade ou conveniência sobre a acusação ou arquivamento. Não
são atos que ele possa praticar ao abrigo de qualquer discricionariedade. Para o MP há
um dever de promoção, em determinado sentido, arquivando ou acusando, quando se
verificam os respetivos requisitos previstos na lei.

A designação “princípio da legalidade” decorre da circunstância de, neste domínio, a


atuação do MP ocorrer sob o signo da estrita vinculação à lei. É importante não confundir
o princípio da legalidade do processo, previsto no artigo 2º do CPP (“A aplicação de
penas e de medidas de segurança criminais só pode ter lugar em conformidade com as
disposições deste Código”) e o princípio da legalidade da promoção processual. Este
último tem um alcance distinto, e decorre do princípio da igualdade previsto no artigo 13º
da CRP, implicando que as autoridades públicas não possam atuar com qualquer
discricionariedade, têm de atuar para além de quaisquer suspeitas de parcialidade, sempre
na estrita objetividade. Todos os cidadãos são iguais e, por isso, todos são acusados se se
verificarem determinados requisitos.

Este princípio tem como contraponto o princípio da oportunidade. Segundo este


princípio, o MP pode ou não promover o processo penal em função de um juízo que
formule sobre a conveniência dessa promoção. No nosso sistema o princípio da
legalidade é dominante, mas existem certas limitações/aberturas a favor do princípio da
oportunidade. O Professor Costa Andrade fala de uma “legalidade aberta a soluções de
oportunidade”.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 50


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Hoje o princípio da legalidade deve ser entendido sob uma perspetiva de uma
legalidade aberta a algumas soluções de oportunidade. Nem todos os crimes em relação
aos quais se verifiquem aqueles pressupostos jurídico-factuais de que depende a acusação
vão ser submetidos a julgamento. Se ao abrigo do princípio da legalidade, em relação a
estes processos, o MP estaria obrigado a acusar, a submeter para julgamento, a abertura
a soluções de oportunidade implica que em alguns casos isso não vá acontecer.

São muitas as razões de política criminal que justificam estas concessões a favor do
princípio da oportunidade:

• Razões de economia processual;


• Finalidades do Direito Penal e Direito Processual Penal, que é um direito de
ultima ratio que só deve intervir quando estejam em causa lesões graves a
bens jurídicos comunitários;
• Ideia da ressocialização do arguido (se conseguirmos evitar a sujeição à
cerimónia degradante do julgamento, será benéfico);
• Todo um conjunto de teorias relacionadas com a criminologia, a labeling
approach, a ideia de etiquetagem (a partir do momento em que condenamos
alguém estamos a colocar-lhe uma “etiqueta”).

Daí que se assista cada vez mais a fenómenos de descriminalização. Quando não
temos estes fenómenos, podemos recorrer também a estes mecanismos. Esta tal abertura
à oportunidade, designada de “legalidade flexível”, nas palavras do Dr. Figueiredo Dias,
materializa-se nos tais mecanismos de diversão processual.

Estes apresentam duas modalidades:

• Mecanismos sem intervenção, que é o caso do arquivamento por dispensa de


pena;
• Mecanismos com intervenção, através da aplicação de injunções, como
acontece na Suspensão Provisória do Processo (SPP), prevista no artigo 281º
CPP.

Dizem-se mecanismos de diversão porque eles desviam o processo do seu curso


normal. O processo teria como destino o julgamento, mas através da aplicação destes
mecanismos, o julgamento é evitado.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 51


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Nota importante: Só há aplicação destes mecanismos como alternativa ao despacho


de acusação, isto significa que no momento em que se recorre a um destes mecanismos
têm de estar verificados os requisitos legais de que depende a acusação, nomeadamente
já têm de ter sido recolhidos indícios suficientes da prática do crime e dos seus agentes.
Só nestas hipóteses é que é possível o recurso a um mecanismo de diversão processual.

3.2 Arquivamento em caso de Dispensa de Pena – Caso


Prático nº 6
Neste caso concreto, foi aplicado um mecanismo de diversão processual, o
arquivamento por dispensa de pena. Os requisitos deste mecanismo estão previstos na lei,
no artigo 280º, nº 1 CPP. São 3 os requisitos:

• A possibilidade da dispensa de pena, tem de estar expressamente prevista na


lei penal substantiva, é preciso que se verifiquem os pressupostos previstos
na lei substantiva;
• A concordância do JIC;
• A promoção do arquivamento pelo MP.

O MP promove, o JIC concorda, a dispensa de pena tem de estar na lei e têm de se


verificar os seus pressupostos.

Estes são os pressupostos gerais do artigo 280º CPP, mas este artigo remete-nos para
a lei penal substantiva. Ainda há de haver outras normas do CP que vão adicionar mais
requisitos.

Há um regime geral da dispensa de pena que está previsto no artigo 74º CP.

Nota: Fazer remissão destes dois artigos à Do artigo 280º CPP remeter para o artigo
74º CP, e do artigo 74º CP remeter para o artigo 280º CPP.

Além deste podem existir normas especiais ao longo da parte especial do CP que vão
prever a possibilidade de dispensa de pena, geralmente para crimes não abrangidos pelo
artigo 74º CP. Olhando para este artigo, os requisitos aqui contidos são:

• Moldura penal abstrata à O crime tem de ser punido com pena de prisão não
superior a 6 meses ou pena de multa não superior a 120 dias;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 52


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• A ilicitude do facto e a culpa do agente serem diminutas, nos termos da alínea


a);
• O dano ter sido reparado, nos termos da alínea b);
• À dispensa de pena não se opuserem razões de prevenção geral ou especial.

São 4 requisitos, que se vão somar aos do artigo 280º CPP. Na resolução do caso
temos de ponderar todos estes pressupostos. Pode ainda ser necessário, como é no nosso
caso prático, convocar uma norma especial, que esteja na parte especial do Código.
Existindo uma norma especial o nº 3 do artigo 74º CPP diz-nos o seguinte “Quando uma
outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se
no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do n.º 1”, ou seja, se houver
uma norma, na parte especial do Código, que admita a dispensa de pena, aos pressupostos
contidos nessa norma especial, temos ainda que somar os pressupostos das 3 alíneas do
artigo 280º, nº1 CPP.

Requisitos ou pressupostos do arquivamento por dispensa de pena:

Artigo 280º, nº 1 CPP Artigo 74º, nº 1 CP Norma especial, se


houver

No nosso caso prático havia uma norma especial que admitia a dispensa de pena à
Artigo 143º, nº 3 CP, e que faz depender esse arquivamento da verificação de 2
pressupostos alternativos, o da alínea a) “Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver
provado qual dos contendores agrediu primeiro” ou o da alínea b) “O agente tiver
unicamente exercido retorsão sobre o agressor.”

Estamos em condições de aplicar tudo isto ao nosso caso prático, e determinar se os


requisitos estão ou não verificados. Começamos da norma especial para a geral.

Está verificado o requisito da norma especial, da alínea a) do artigo 143º, nº 3 CP. É


preciso vermos também as alíneas do artigo 74º, nº 1 CP.

• Não se aplica o requisito da moldura penal, porque estamos perante um


regime especial;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 53


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• E quanto à ilicitude do facto e culpa do agente, são diminutos? Sendo que


ninguém morreu e as ofensas à integridade física foram simples,
consideramos então que este requisito está verificado;
• E o dano, foi reparado? Não sabemos, mas vamos assumir que sim;
• Existem razões de prevenção geral ou especial que se oponham à dispensa de
pena? Parece que não, não resulta do caso prático, mas se, por exemplo, se
dissesse que um dos agentes era reincidente, ou seja, era a quinta vez que
estava envolvido numa situação destas, então já era de ponderar.

Por fim olhamos para os requisitos do artigo 280º, nº 1 CPP:

• O MP promoveu o arquivamento de dispensa de pena;


• O JIC concordou;
• A dispensa de pena está consagrada na lei penal substantiva e estão
verificados os seus pressupostos (artigo 143º, nº 3 CP).

Portanto, todos os pressupostos do arquivamento por dispensa de pena estavam, no


caso concreto, verificados. E se uma das partes, se um dos contendores não concordar
com o arquivamento da dispensa de pena? Pode reagir?

Não, não existem mecanismos de reação possível quanto à decisão de arquivamento


por dispensa de pena. A decisão não pode ser impugnada, nem dá lugar à abertura de
instrução, nos termos do artigo 280º, nº 3 CPP. A única hipótese em que se admite a
impugnação é se, em concreto, não estiverem preenchidos os requisitos legais de
arquivamento por dispensa de pena. É uma questão de legalidade e não de mérito.

Imaginemos agora que o MP não arquiva, mas acusa ambos. Podia um deles,
conhecendo o regime aplicável, isto é, sabendo que lhe podia ser aplicado o arquivamento
por dispensa de pena, requerer a abertura de instrução para que lhe fosse aplicado o
arquivamento por dispensa de pena?

Trata-se de um juízo de oportunidade do MP, mas a discricionariedade do MP não é


total, ele está também sujeito a regras, à legalidade. A parte pode ter não só o interesse,
mas o direito que pelo menos lhe seja apreciada a aplicação do mecanismo de
diversão processual. Esta possibilidade é expressamente admitida no artigo 280º, nº 2
CPP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 54


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Neste caso, a única coisa que muda é que a concordância já não será do JIC, mas sim
do MP, e do arguido, enquanto na dispensa de pena promovida pelo MP não é necessária
a aprovação por parte do arguido. Aqui exige-se a concordância do arguido porque já
houve, entretanto, uma acusação pública o que faz com que o arguido possa ter interesse
numa decisão de mérito que afaste a sua culpabilidade, pode ter interesse em ser
absolvido.

O MP, e o JIC não estão obrigados a recorrer a um mecanismo de diversão processual,


mas estão obrigados se assim for requerido pelo arguido ou até pelo assistente, a verificar
se no caso estão verificados os requisitos, e estando têm de aplicar o mecanismo de
diversão processual. Daí que se dê esta possibilidade ao arguido de atacar a falta de
ponderação do MP quanto à verificação dos pressupostos. Durante a fase de inquérito o
arguido pode requerer a aplicação desse instituto.

b)

Poderá o MP determinar a reabertura do inquérito contra A com base no disposto no


artigo 279º CPP?

O artigo 279º CPP diz-nos que “o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos
elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no
despacho de arquivamento.”

No nosso caso, C, uma testemunha ocular, com um vídeo, mostra que foi A a agredir
primeiro B. Isto tem algum efeito? Se essa informação fosse conhecida antes do despacho
de arquivamento por dispensa de pena teria algum efeito?

Sim, uma vez que o requisito do artigo 143º, nº 3, a) CPP, não estava verificado, pelo
que não haveria norma especial a aplicar neste caso, tratando-se de um crime de ofensas
à integridade física nos termos no nº 1 do artigo 143º CP. Daí que o arquivamento por
dispensa de pena só poderia ser aplicado se estivessem a verificados os requisitos gerais
do artigo 74º CP, mas nem era necessário ver as alíneas porque resulta logo do nº 1, o
pressuposto quanto à moldura penal, que o crime de ofensas à integridade física simples
tem uma moldura penal superior a 6 meses, pelo que não era possível aplicar o despacho
por dispensa de pena.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 55


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Contudo, estas informações só foram conhecidas depois do despacho por dispensa de


pena. Ele pode ser reaberto? Podíamos anular o arquivamento por dispensa de pena,
reabrir a investigação e levar A a julgamento?

Não, o arquivamento por dispensa de pena não equivale a uma decisão de


condenação ou de absolvição, não implica nenhuma pronúncia de mérito, o arguido não
se pode opor ao arquivamento por dispensa de pena, pelo que ele continua a presumir-se
inocente.

O artigo 279º CPP só se aplica ao despacho de arquivamento proferido ao abrigo do


artigo 277º, nº 2 do CPP. Neste caso, este arquivamento não é o do artigo 277º, nº2, mas
sim o proferido ao abrigo do artigo 280º CPP, e uma vez arquivado o processo ele nunca
mais pode ser reaberto à O arquivamento por dispensa de pena corresponde à solução
definitiva que é dada ao problema penal.

O sistema penal, orienta-se pela descoberta da verdade material, mas por vezes aceita
decisões injustas desde que sejam absolutórias. O sistema convive razoavelmente bem
com culpados em liberdade, não pode é conviver com inocentes condenados.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 56


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

3.3 Suspensão Provisória do Processo – Caso Prático nº 7


Caso Prático nº 7

Chegou ao Ministério Público da comarca de Coimbra uma denúncia anónima por


crime de violência doméstica cometido por A sobre B. Constituído arguido e
informado dos seus direitos, A admitiu em interrogatório judicial que discutiu com o
namorado no dia referido na denúncia e que no contexto dessa discussão ambos
trocaram palavras azedas, negando, todavia, ter havido entre eles qualquer gesto de
violência física.

Findo o inquérito, o MP determinou, a pedido de B e depois de verificar que não


existia qualquer condenação ou suspensão provisória do processo por crimes da mesma
natureza, a suspensão do processo pelo período de um ano. O JIC inviabilizou a
solução por ter entendido que «não há no caso indícios suficientes da prática do crime
imputado, sendo certo que, se os houvesse, a suspensão do processo só poderia ter
lugar mediante imposição ao arguido de injunções e regras de conduta».

a) Comente criticamente o despacho do JIC, aludindo ao sentido e alcance do


instituto da suspensão provisória do processo no âmbito específico dos crimes de
violência doméstica.

b) Poderá interpor-se recurso da decisão do JIC que negou a concordância à


suspensão? Justifique.

Neste caso, temos uma denúncia anónima. A terá agredido B, não sabemos bem em
que termos, A foi constituído arguido e admitiu que tinha discutido com o namorado e
que no contexto dessa situação ambos trocaram palavras azedas, mas que não tinham
ocorrido agressões físicas. O MP suspendeu provisoriamente o processo, mas o JIC não
deu concordância.

a)

Natureza do crime de violência doméstica à Crime público à Artigo 152º CP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 57


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Nos termos do artigo 281º e 282º CPP, a Suspensão Provisória do Processo é um


mecanismo de diversão processual, neste caso, com intervenção. Há que relembrar que a
SPP é uma alternativa à acusação. Só quando o MP está em condições de acusar é que
pode lançar mão da SPP.

A SPP assenta na busca de soluções consensuais, para a proteção de bens jurídicos


penalmente tutelados, para a ressocialização dos agentes e tem por pressuposto que o grau
de culpa e ilicitude não seja concretamente elevado e, seja possível atingir por meios mais
benignos do que através do julgamento, os fins de DP.

Trata-se de um mecanismo de diversão com intervenção na medida em que são


aplicadas injunções ou regras de conduta, mas elas não têm a natureza de penas, daí
que possam ser aplicadas ou pelo MP ou pelo JIC. Se o arguido cumprir, pode no fim do
prazo de suspensão, ver o processo arquivado. Estas injunções têm como objetivo
sensibilizar o arguido para a validade da ordem jurídica e tentar despertar nele um
sentimento de fidelidade ao direito. Por isso, a aplicação da SPP e o cumprimento ou
incumprimento das injunções não contendem com a presunção de inocência que se
mantém sempre.

Requisitos gerais da SPP à Artigo 281º, nº 1 CPP:

• Referente à moldura penal à Se o crime for punível com pena de prisão não
superior a 5 anos ou com sanção diferente de prisão. Ao contrário do
arquivamento por dispensa de pena que se aplica sobretudo à criminalidade
bagatelar, a SPP abrange também a média criminalidade;
• A promoção do MP à Pode ser oficiosa, pode ser o MP tomar a iniciativa ou
pode ser a requerimento do arguido ou do assistente;
• A concordância do arguido e do assistente à Só é exigível se não forem eles
a requerer a aplicação do instituto. Além disso, em relação ao assistente só se
exige a concordância se ele se tiver constituído no processo enquanto
assistente;
• Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
• Ausência de aplicação anterior de SPP por crime da mesma natureza;
• Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
• Ausência de um grau de culpa elevado;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 58


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

• Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda


suficientemente às exigências de prevenção geral e especial que se façam
sentir;
• A concordância do JIC.

Têm legitimidade para requerer a SPP o arguido, assistente ou o MP, oficiosamente,


nos termos do artigo 281º, nº 1 CPP e a condição da SPP é que ao arguido sejam aplicadas
regras de conduta ou injunções que perdurem por um período de tempo, podendo ser
aplicadas cumulativa ou separadamente à Artigo 281º, nº 2 CPP.

Algumas delas podem ser indemnizar o lesado, residir em determinado local,


frequentar certos programas ou atividades, não exercer certas profissões, não participar
em determinadas reuniões, não ter no seu poder determinados animais, coisas ou objetos,
ou de acordo com a alínea m), qualquer outro comportamento exigido para o caso.

Em todo o caso, nos termos do nº 5 do artigo 281º CPP, não são oponíveis ao arguido
injunções ou regras de conduta que possam ofender a sua dignidade.

Quanto à duração da SPP, esta tem no máximo 2 anos à Artigo 282º, nº 1 CPP. Se
o arguido cumprir as injunções e além disso, se não praticar nenhum crime da mesma
natureza durante o período da suspensão, o processo é arquivado e não pode ser
reaberto, também aqui não se aplica o artigo 279º CPP, nos termos do artigo 282º, nº 3
CPP.

Se ele não cumprir as injunções ou se praticar um crime da mesma natureza, durante


o período de suspensão, pelo qual venha a ser condenado o processo segue e o arguido é
acusado, nos termos do artigo 282º, nº 4 CPP.

Isto é o quadro geral da SPP. Aqui interessa-nos um dos regimes especiais, para os
crimes de violência doméstica, que com a nova formulação, está previsto no artigo 281º,
nº 8 CPP.

As grandes diferenças face ao regime geral é que vítima, e só ela, pode requerer,
livre e esclarecidamente a SPP. E depois não se aplicam os demais requisitos gerais do
artigo 280º, nº 1 CPP com exceção dos das alíneas b) e c). E existe ainda um terceiro
requisito, o do arguido não ser reincidente.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 59


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Porque é que neste caso o legislador se afasta do regime geral da SPP e estabelece
este regime especial? Esta alteração à lei coincide com a alteração dos crimes de violência
doméstica de crime semi-público para crime público. Qual a intenção do legislador?

É, no fundo, equilibrar. Transforma o crime de violência doméstica em crime público,


e por isso a perseguição penal pode ocorrer contra a vontade da vítima, mas para obstar
às consequências negativas dessa conversão, previu o regime especial de SPP em que a
vítima pode requerer, de forma livre e esclarecida a suspensão provisória do processo.

Há muitas coisas que pesam como o sofrimento irreparável relacionado com os


processos deste tipo, a publicidade do processo, os constrangimentos psicológicos para a
própria vítima, a estigmatização social, etc. O que está em causa é a proteção da vítima e
não do arguido. O Professor Costa Andrade diz que “quer o nº 8 quer o nº 9 são corpos
estranhos no âmbito da suspensão provisória do processo”.

A doutrina tem entendido, que a vítima pode ver solucionada a situação de violência
doméstica de forma mais célere por via da SPP do que por via convencional. A vítima é
convidada a participar ativamente na aceitação das injunções e regras de conduta, de tal
maneira que ela tem alguma capacidade de modelação dessas injunções face à situação
concreta. Ela pode acautelar os seus interesses junto do MP. As próprias injunções, que
podem ser aplicadas como a terapia familiar, ou o tratamento de certas dependências
podem ser mais eficazes do que algumas medidas de reação criminal normais. O facto de
o arguido ter de concordar, pode ainda fomentar a sua autorresponsabilização.

Por outro lado, entende-se que se potencia a aproximação do arguido à vítima no


sentido de ele se sensibilizar em relação às suas expectativas, ao mal que eventualmente
lhe causou, etc.

Uma outra diferença face ao regime regra é que a SPP quer nos crimes de violência
doméstica quer nos crimes de abusos sexuais contra menores, pode ir até aos 5 anos, nos
termos do artigo 282º, nº 5 CPP, não ficando limitada aos 2 anos normais.

No nosso caso prático, o JIC não deu a sua concordância à aplicação da SPP porque
entendeu que não havia indícios suficientes da prática do crime imputado, sendo certo
que se os houvesse, a SPP só poderia ser aplicada mediante a aplicação de injunções e
regras de conduta.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 60


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Vamos analisar o primeiro fundamento do despacho do JIC de que não há indícios


suficientes da prática do crime à O MP tinha uma denúncia anónima, constituiu o
denunciado como arguido e o arguido negou qualquer gesto de violência. Isto é suficiente
para o MP deduzir uma acusação? Não e, por isso, não poderia aplicar a SPP. A SPP é
um meio alternativo à acusação. O MP só poder recorrer a um mecanismo de diversão
processual quando tiver recolhido indícios suficientes da prática do crime e dos seus
agentes.

O que acontece na prática é que se for aplicada a SPP e se houver alguma injunção
que não seja cumprida, o MP tem de estar em condições de no momento, sem qualquer
diligência de inquérito adicional, deduzir acusação. No momento em que o MP suspende
o processo tem de estar preparado a acusar. Neste caso, ao abrigo do princípio da
legalidade, o que é que o MP estava obrigado a fazer, se não quisesse investigar mais?
Arquivar, nos termos do artigo 277º, nº 2 CPP.

Quanto à segunda parte do despacho do JIC de que a suspensão do processo só


poderia ter lugar mediante imposição ao arguido de injunções e regras de conduta à O
JIC não acerta neste caso. No âmbito dos crimes de violência doméstica não é obrigatória
a aplicação de injunções e regras de conduta, pode acontecer, normalmente são aplicadas,
mas não é obrigatório que assim seja. Na SPP existe apenas a garantia que no período de
suspensão, se o arguido praticar um crime da mesma natureza vai ser condenado por dois
crimes, é um período de vigilância.

b)

A SPP é decidida pelo MP, mas é preciso que haja um despacho do JIC a concordar.
Este despacho pode ser objeto de um recurso? Imaginemos que o juiz dá a concordância
à SPP e ela é aplicada, pode o assistente invocar que discorda e recorrer? Não, o artigo
281º, nº 7 CPP diz-nos que a decisão de suspensão não é suscetível de impugnação, uma
vez que quer o arguido quer o assistente, tiveram de aceitar a aplicação do SPP, e se
depois viessem impugnar estariam a incorrer num abuso de direito, num venire contra
factum proprium. Mas essa não é a nossa questão.

O despacho do JIC, que nega a concordância é ou não recorrível? Esta não é uma
questão pacífica. Aquilo que se vem a entender é que quando o JIC dá a sua concordância
à SPP não está a expressar uma vontade livre semelhante à do arguido ou assistente, está

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 61


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

a atuar enquanto juiz das liberdades no exercício da sua função jurisdicional. O juízo
do JIC está condicionado a todos os elementos que constituem a proposta no MP de
aplicação do SPP.

O juiz tem de verificar se existem indícios do crime e da sua responsabilidade, avaliar


a dimensão e natureza das injunções para verificar se o requisito do artigo 281º, nº 1,
alínea f) CPP está cumprido, tem de verificar se o grau de culpa do arguido é elevado, se
as injunções não ofendem a dignidade do arguido ou o núcleo de DF do arguido, etc.

E, portanto, a decisão do JIC trata-se de uma verdadeira decisão jurisdicional. Porém,


o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 18/11/2009 do STJ fixou que a
discordância do JIC em relação à determinação do MP não é passível de recurso.

Qual é a argumentação do STJ? A decisão do JIC não é um ato decisório formal, pelo
que é irrecorrível, só os despachos e as sentenças ou acórdãos é que podem ser recorríveis.

Esta posição é criticada na doutrina e não foi pacífica do STJ, havendo vários votos
de vencido a este acórdão, aliás tem se admitido abundantes recursos de despachos do
JIC que negam a concordância. O Sr. Professor defende que a melhor solução é a de que
o despacho do JIC que nega a concordância à SPP é recorrível, a posição do STJ é que é
irrecorrível.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 62


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3.4 Mediação Penal – Caso Prático nº 8


A mediação penal à semelhança do que já conhecemos do processo civil, trata-se de
um mecanismo de resolução alternativa do litígio. Entre nós, a mediação penal foi
introduzida em 2007, através da Lei 21/2007 e até hoje nunca teve nenhuma expressão
significativa entre nós. A mediação penal nunca produziu os efeitos que se esperaria
enquanto resolução alternativa de litígios. Isto começou como um projeto piloto, em que
a nossa faculdade esteve envolvida, mas verdadeiramente o número de casos que vai para
mediação penal é muito pouco expressivo.

A criação deste regime decorre de uma imposição europeia, da decisão quadro de


2001 relativa ao estatuto da vítima em processo penal e a mediação é definida nos termos
do artigo 4º, nº 1 da Lei 21/2007 à “A mediação é um processo informal e flexível,
conduzido por um terceiro imparcial, o mediador, que promove a aproximação entre o
arguido e o ofendido e os apoia na tentativa de encontrar ativamente um acordo que
permita a reparação dos danos causados pelo facto ilícito e contribua para a restauração
da paz social.” à Visa a aproximação entre o arguido e ofendido na tentativa de
chegarem a um acordo que vise reparar o mal do crime e ao mesmo tempo restabelecer a
paz social, a paz jurídica.

Por isso mesmo, diz-se que a mediação é uma modalidade de justiça restaurativa.
A justiça restaurativa opõe-se ao modelo da justiça tradicional. Diz-se que a justiça
restaurativa é uma justiça de escudo enquanto a justiça tradicional é uma justiça de
espada. Há algumas notas que permitem distinguir os 2 modelos de justiça, sendo certo
que há inúmeras construções doutrinárias.

De uma forma geral, podemos dizer que a justiça tradicional diz-se que representa o
roubo do conflito à comunidade, a institucionalização e a profissionalização do conflito
penal, na medida em que o debate sobre a questão se faz entre profissionais forenses,
juristas, numa linguagem que é fechada e que não atende à experiência concreta das
pessoas envolvidas.

Enfim, esta crítica é uma crítica procedente, na medida em que as questões penais
discutem-se nos tribunais, por operadores judiciais que dedicam a sua vida a decidir,
defender ou acusar situações semelhantes aquelas. Como em todas as profissões há um

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 63


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

certo afastamento por força dos ritos e das rotinas em relação às concretas situações e aos
concretos valores e sentimentos em causa. Há uma visão mais ritual do processo, e não
tanto uma visão que atenda ao sofrimento que poderá estar ali eventualmente em causa.
Por oposição, requer-se na justiça restaurativa, uma justiça que seja um processo de cura,
no sentido de curar as relações sociais e a relação de confiança entre os cidadãos e o
Estado que o crime quebra.

• Na justiça tradicional, o processo penal é um processo formal, em que cada


um desempenha um papel pré-estabelecido, enquanto na justiça restaurativa
o processo é flexível e a vítima está no centro do processo, o processo é
orientado para a vítima;
• Na justiça tradicional, o conceito de verdade é essencialmente formal, embora
se diga que se quer alcançar a verdade material, na realidade quer-se alcançar
essa verdade material, mas de acordo com regras preestabelecidas. Na justiça
restaurativa há um menor formalismo processual, há um enfoque maior em
decisões consensuais;
• Na justiça tradicional, o processo orienta-se para o apuramento da culpa do
agente, determinarmos se o agente é ou não culpado pelo crime, enquanto na
justiça restaurativa mais do que a culpa do agente, aquilo que se quer é a
responsabilização do agente, no sentido de ele compreender as consequências
e que se esforce por repará-las;
• Diz-se ainda que na justiça tradicional existe alguma opacidade, formalidade,
tecnicismo, enquanto na justiça restaurativa prevalecerá a transparência, a
abertura.

A mediação penal enquanto materialização desta justiça restaurativa orienta-se em


torno de 4 princípios básicos:

• Voluntariedade à Quer o ofendido quer o arguido só participam no processo


de mediação penal se quiserem e enquanto quiserem. São livres de a qualquer
momento o abandonarem;
• Confidencialidade à Nada do que for dito durante as reuniões ou sessões de
mediação pode depois ser usado como prova no processo penal à Artigo 4º,
nº 5 da lei;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 64


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• Igualdade à O ofendido e arguido encontram-se numa posição de tendencial


igualdade, não há favorecimento da vítima em função do arguido. São ambos
ouvidos e são ambos decisivos para a solução que se quer alcançar;
• Imparcialidade do mediador à Atua desligado, sem nenhum interesse no
conflito penal.

Olhando um bocadinho para a Lei 21/2007 temos desde logo os casos que podem ser
enviados para a mediação penal. A mediação penal só pode ter lugar em relação a crimes
particulares em sentido estrito ou crimes semi-públicos, mas em relação a estes últimos
só aqueles que tenham como bem jurídico protegido as pessoas e o património, ou seja,
só em relação a crimes contra as pessoas e contra o património, nos termos do artigo 2º,
nº 1 e 2 da referida lei.

Estão ainda previstos na lei um conjunto de fatores de exclusão da mediação penal


e se se verificar algum destes fatores, o processo não pode ser enviado para a mediação
penal:

• Não se pode tratar de um tipo legal cuja pena de prisão em abstrato seja
superior a 5 anos;
• Não se pode tratar de um crime contra a liberdade ou a autodeterminação
sexual;
• Não se pode tratar de um crime de colação ou tráfico de influência;
• O ofendido não pode ser menor de 16 anos;
• Não pode ao caso ser aplicado um processo sumário ou sumaríssimo.

Todos estes requisitos nos termos do artigo 2º, nº 3 da lei.

Como é que o processo pode chegar à mediação penal? Pode chegar à mediação penal
essencialmente por 2 vias:

Por iniciativa do MP e isso só pode ocorrer quando o MP tiver recolhido indícios


suficientes da prática do crime e dos seus autores, o que significa que a mediação penal
também funciona como verdadeira alternativa à acusação, tal como os mecanismos de
diversão processual e o MP só pode enviar o processo para a mediação penal durante a
fase de inquérito.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 65


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

A 2ª opção passa por serem o arguido e o ofendido a requererem a mediação penal


por acordo, o que só pode ocorrer também durante a fase de inquérito, o que significa
que o processo só pode ir para mediação penal na fase de inquérito.

Havendo esta iniciativa, é nomeado um mediador a partir de uma lista existente de


mediadores penais e esse mediador contactará o ofendido e o arguido no sentido de obter
o seu consentimento para participarem na mediação penal.

Se obtiver o consentimento de ambos, o processo segue para a mediação, se não


obtiver o consentimento de ambos ou de um deles, o processo penal segue o curso normal,
em princípio com a acusação. Resulta do artigo 4º, nº 2 da lei que a qualquer momento
quer o arguido quer o ofendido podem revogar o seu consentimento e abandonar a
mediação penal.

Quanto ao processo de mediação penal em si, trata-se de um conjunto de sessões de


mediação, em que o mediador tenta alcançar um acordo que possa ser subscrito por ambos
e que repare a situação do conflito penal.

O processo de mediação penal, em regra, não pode ultrapassar os 3 meses, embora


seja possível pedir uma prorrogação por mais 2 meses, não podendo ir além dos 5 meses
na prática. Se durante esse período de 3 ou 5 meses se concluir que não é possível obter
um acordo de mediação, o mediador comunica esse facto ao MP e o processo seguirá os
seus normais termos. E ainda, se findos os 3 ou 5 meses também não for possível obter
um acordo, o processo seguirá o seu curso normal. Se houver acordo, ele é reduzido a
escrito e o seu teor é transmitido ao MP.

O acordo de mediação penal equivale, para o ofendido, à desistência da queixa (só


pode haver mediação penal para os crimes particulares em sentido estrito e semi-públicos,
logo há sempre queixa) e, para o arguido, à não oposição a essa desistência. Se o acordo
de mediação penal não for cumprido, o ofendido pode renovar a queixa no prazo de 1
mês, sendo o inquérito reaberto.

Quanto ao conteúdo do acordo, ele é fixado livremente, entre as partes, com alguns
limites à Artigo 6º, nº 2 da Lei 21/2007 à Não pode o acordo incluir:

• Sanções privativas da liberdade;


• Deveres que ofendam a dignidade;
• Deveres cujo cumprimento se prolongue para lá dos 6 meses.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 66


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Caso Prático nº 8

A apresentou queixa-crime contra B, imputando-lhe a prática de um crime de


difamação (art. 180.º, n.º 1, do CP). Admitida a intervenção de A como assistente, o
MP remeteu os autos para mediação penal.

O processo de mediação culminou na assinatura de um acordo com as seguintes


cláusulas: «1.º O arguido compromete-se a apresentar um pedido público de desculpas
ao ofendido; 2.º O arguido obriga-se a entregar € 100 (cem euros) à “Animalia -
Associação de proteção dos direitos dos animais”; 3.º O arguido obriga-se a frequentar
a missa dominical da paróquia de Aldoar durante seis meses».

a) Pronuncie-se sobre a admissibilidade do acordo de mediação nos termos em que


está exarado. Como deve o MP proceder?

b) Expurgado de eventuais ilegalidades, o acordo foi recebido pelo MP, que o


considerou conforme e homologou a desistência de queixa. Um ano mais tarde, o
ofendido renovou a queixa alegando que A, apesar de ter cumprido escrupulosamente
os demais deveres, nunca apresentou o pedido público de desculpas. Quid iuris?

a)

Neste caso concreto, estavam preenchidos os requisitos para a remessa do processo


para mediação penal? Tratava-se de um crime particular em sentido estrito ou semi-
público?

Sim, está em causa o crime de difamação que é um crime particular em sentido estrito
e não se verificava nenhum dos fatores de exclusão, pelo menos do enunciado não resulta
isso. Quanto à admissibilidade do acordo, do seu teor, tendo em conta o previsto no artigo
6º, nº 2:

• 1ª Cláusula do pedido de desculpas à Válida, não apresenta nada de mais;


• 2ª Cláusula à Válida;
• 3ª Cláusula à Não é válida. Vai contra a liberdade religiosa do indivíduo.
Seria uma cláusula inadmissível, viola um DF.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 67


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Este acordo podia ser homologado pelo MP? Não, o que é que o MP devia fazer? Nos
termos do artigo 5º, nº 8 da lei, o MP devia devolver o processo ao mediador para que ele
no prazo de 30 dias sanasse a ilegalidade junto do ofendido e do arguido.

b)

Em caso de incumprimento do acordo, o que poderia fazer o ofendido? Podia renovar


a queixa no período de 1 mês. Neste caso, podia fazê-lo?

Não, porque tinha passado 1 ano, já se tinha ultrapassado o prazo de 1 mês após o
conhecimento do incumprimento.

Esta solução do artigo 5º, nº 4 da lei, da renovação da queixa é muito criticada na


doutrina, desde logo porque coloca nas mãos dos particulares uma tarefa que é do Estado,
uma tarefa de acompanhar o cumprimento do acordo de mediação tal qual o Estado faz
com a SPP, o Estado controla se o arguido cumpre ou não as injunções.

Depois porque potencia a vitimização secundária, porque obriga a vítima a renovar a


queixa.

Além disso, tem um prazo curtíssimo e, talvez a principal razão é porque


dogmaticamente isto é uma solução absurda, porque no regime geral se alguém desistir
da queixa, não pode mais ser renovada, contra o mesmo agente pelos mesmos factos. Não
faz muito sentido aqui haver esta possibilidade, há uma incoerência sistemática.

Por fim, não é exigível na prática que o ofendido vá controlar ou verificar o


cumprimento do acordo, principalmente quanto a prestações quanto a terceiros.

Esta lei nunca foi objeto de alterações, o que por um lado também explica porque é
que este instituto tem entre nós tão pouco sucesso.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 68


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4. Princípios Orientadores do Modelo Processual


Português
4.1 Princípio da Oficialidade – Caso Prático nº 4 e 5
Caso Prático nº 4

No início do ano escolar, B, colega de turma de A, entrou sem autorização e contra


a vontade daquela, no quarto que a mesma tinha arrendado no apartamento de C, e,
intencionalmente, de modo a arreliar A, partiu o interruptor da lâmpada da casa de
banho.

Após ter tido conhecimento destes factos, a mãe de A dirigiu-se ao posto da PSP
e apresentou, em nome da filha, que contava apenas 17 anos, queixa-crime contra B.
Comunicada a queixa ao Ministério Público, foi proferido o seguinte despacho: “Os
factos imputados a B, de dezasseis anos, consubstanciam, em abstrato, a prática de um
crime de violação de domicílio (art. 190.º CP) e de um crime de dano (art. 212.º CP).
Estando em causa a tutela do espaço habitacional e da propriedade, o portador dos bens
jurídicos violados é o proprietário do apartamento, C, e não o arrendatário da divisão
em causa. Assim, e por faltar o pressuposto processual da queixa do ofendido,
determino a imediata extinção do presente procedimento criminal”.

Comente o despacho proferido pelo Ministério Público. Diga quem, no caso em


apreço, teria legitimidade para promover o processo criminal, e em que prazo(s).

Qual é a matéria em causa? Que princípio está em causa? Princípio da oficialidade e


as suas restrições.

A mãe de A (jovem de 17 anos), apresenta queixa-crime em nome da filha e o


procurador do MP diz que o titular do direito de queixa era C, proprietário do quarto
arrendado por A, faltando um pressuposto de procedibilidade que determinava a extinção
do procedimento criminal. Extinção por via de que despacho? Que despacho seria este
em que o procurador determinava a extinção do procedimento? Despacho de
Arquivamento, mas seria um despacho de arquivamento ao abrigo do nº 1 ou nº 2 do

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 69


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artigo 277º CPP? Nº 1, última parte “ser legalmente inadmissível o procedimento”. Que
crimes é que são imputados a B?

• Crime de violação de domicílio à Artigos 190º e 198º CP à Crime semi-


público, o procedimento criminal depende de queixa;
• Crime de dano à Artigo 212º, nº 3 CP à Crime semi-público.

A questão é: O princípio da oficialidade aplica-se em toda a sua extensão, estando em


causa 2 crimes semi-públicos? O que diz este princípio? Este princípio resolve 2 questões:

• A quem é que compete a iniciativa de investigar a prática de uma infração;


• Quem é que decide se submete essa infração ou não a julgamento, quem acusa
ou não.

A iniciativa pode pertencer em abstrato ou a uma entidade pública que interpreta o


interesse da comunidade de perseguição ex officio, por sua iniciativa, das infrações ou a
uma entidade privada como por exemplo, o ofendido, à semelhança do processo civil
(onde aquele que se sente lesado tem de acionar o processo).

A maioria das legislações, todavia, tendo em conta, as finalidades do processo penal


e do próprio DP (como a dignidade penal, necessidade de pena, intervenção em ultima
ratio) entrega esse poder de iniciativa a uma entidade pública que atua em completa
independência da vontade de quaisquer particulares, ou seja, a entidade pública a quem
compete promover o processo penal e decidir se leva o crime a julgamento ou não, vai
fazê-lo independentemente e até contra a vontade do ofendido. O princípio da oficialidade
é uma faceta da proibição da autodefesa (artigo 1º CPC) e do princípio do monopólio
estadual da função jurisdicional (artigo 202º CRP).

Por força do princípio da oficialidade cabe a uma entidade pública, entre nós, ao MP,
a iniciativa de investigar a prática de um crime e a decisão de submetê-la ou não a
julgamento. Compete ao MP promover o processo penal, após a aquisição da notícia do
crime, nos termos dos artigos 241º e 262º, nº 2 CPP e no fim da fase de inquérito, decidir,
sobre a acusação, arquivamento ou o envio para os mecanismos de diversão processual.

Este princípio comporta uma:

• Limitação à Em relação aos crimes semi-públicos em que o poder de iniciativa


não está nas mãos do ofendido, mas no titular do direito de queixa, o MP só pode

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 70


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atuar se houver um ato de vontade do titular do direito de queixa, a iniciativa tem


de ser integrada por ato de vontade de terceiro. É uma limitação na medida em
que a partir do momento em que a queixa é apresentada é o MP que vai decidir se
submete ou não o arguido a julgamento independentemente do titular do direito
de queixa;
• Exceção à Em relação aos crimes particulares em sentido estrito, porque para
além do MP depender da queixa, também não é ele a decidir se o arguido é ou não
levado a julgamento, mas sim o assistente (competência de deduzir acusação
particular). Contrariamente, nos crimes públicos é o MP que promove
oficiosamente, por si próprio, o procedimento com total independência face ao
ofendido.

4.1.1 A queixa

Neste caso prático temos 2 crimes semi-públicos, que como já referido, dependem de
queixa, um ato declarativo, uma manifestação de vontade, que expressa a vontade do
titular do respetivo direito a que se proceda criminalmente contra alguém pela prática de
um crime. Não está sujeita a formalidades especiais, mas dela tem de resultar
inequivocamente a vontade, a intenção do titular que se promova contra alguém um
procedimento criminal. A queixa apresenta 3 caraterísticas:

• Facultativa à Ninguém está obrigado a apresentar queixa;


• Renunciável à Antes da apresentação da queixa, o respetivo titular pode declarar
que não pretende exercer esse direito, renunciar a ele;
• Passível de desistência à Mesmo que se apresente a queixa, até à 1ª instância é
possível desistir.

Titulares do Direito de Queixa à Artigo 113º CP:

• Ofendido, considerando-se o titular dos interesses que a lei quis proteger com a
incriminação, ou seja, não é qualquer pessoa que tenha sido prejudicada pelo
crime, mas somente, o titular do interesse que constitui o objeto imediato da norma
penal.

Por exemplo, num crime de ofensa à integridade física, A quer ofender B, atirando
várias pedras e uma delas vai acidentalmente embater no carro de C e parte o vidro. Neste

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 71


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crime só é ofendido B, só ele é titular do interesse especialmente protegido, a integridade


física. C podia apresentar queixa por outro crime, por crime de dano, por exemplo.

• Familiares do ofendido à Há situações em que o ofendido já não está cá para


exercer o direito. Os familiares estão agrupados em 2 classes distintas, numa
primeira os mais próximos que têm preferência em relação aos segundos;

Exemplo: Crimes de homicídio consumado, o bem tutelado é a vida, mas ela perde-
se. Na verdade, este não é um exemplo, porque se trata de um crime público, mas ficamos
a perceber a ideia. A vida pode ser perdida na sequência de outros crimes.

• Representante Legal à Caso dos inimputáveis em razão de idade e anomalia


psíquica. Se for menor de 16 anos ou não tiver discernimento para entender o
alcance do exercício do direito, pertence ao representante legal do menor ou da
pessoa sem capacidade de entendimento. Na falta de representante legal, cabe aos
familiares;
• MP à Norma excecional, quando o MP considerar que o interesse do ofendido,
pode dar início ao procedimento, se o ofendido for menor ou pessoa que não
possua discernimento ou ainda quando o direito de queixa não possa ser exercido
porque caberia ao agente do crime.

Exemplo: Atentado ao pudor do pai na pessoa da filha de 16 anos menor, se o pai


fosse o representante legal, o MP teria legitimidade.

Em todo o caso, se for um menor de 16 anos, e não for exercido o direito de queixa
nem pelo representante legal nem pelo MP, o menor pode exercê-lo a partir da data em
que fizer 16 anos, mas no máximo até 6 meses depois dos 18 à Artigo 113º, nº 6 e 115º,
nº 2 CP.

Assim, há que perceber os interesses que a lei quis especialmente proteger com a
incriminação, nos termos do artigo 113º, nº 1 CP e ver se os interesses são coincidentes
em cada um dos crimes em causa. Na violação do domicílio, o bem jurídico tutelado é a
reserva da intimidade da vida privada. No crime de dano, o bem jurídico tutelado é a
propriedade, o património.

Nota: Se houver dúvidas quanto ao bem jurídico em causa é ler a epígrafe do capítulo.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 72


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Quem é o titular do interesse do crime de violação do domicílio? A ou C? É A e


somente A, o senhorio não vê a reserva da sua vida privada colocada em causa. Em
relação ao crime de dano é C, foi a sua propriedade que foi danificada. E A não poderá
ser também?

A é arrendatário, porque tem o direito de uso e fruição, direito de gozo sobre a


propriedade. Isto já foi dúbio na jurisprudência até ao Acórdão 7/2011 do STJ, acórdão
de fixação de jurisprudência, que definiu que nos crimes de dano a legitimidade para
apresentar queixa cabe quer ao proprietário quer à pessoa que esteja no uso da coisa,
portanto tanto C como A poderiam exercer o direito de queixa.

Interpretação dos fundamentos do despacho do MP à O procurador identifica bem


os bens jurídicos em causa? Não, é a reserva da vida privada e propriedade. Por outro
lado, também não há correta identificação do ofendido, A teria direito a exercer o direito
de queixa quanto aos dois crimes.

Nota: Nestas situações de concurso de crimes, há uma regra especial quanto à


legitimidade, presente no artigo 52º CPP à “No caso de concurso de crimes, o Ministério
Público promove imediatamente o processo por aqueles para que tiver legitimidade, se
o procedimento criminal pelo crime mais grave não depender de queixa ou de acusação
particular, ou se os crimes forem de igual gravidade.”

Interpretação da conclusão do despacho do MP à O direito não foi exercido pelo que


o procedimento se deve extinguir. Esta conclusão está correta? Temos 2 hipóteses que
podemos equacionar:

• A mãe apresentou queixa em nome da filha. Parece apontar para uma situação de
representação voluntária. Nos termos do artigo 49º, nº 3 CPP, a queixa pode ser
apresentada por titular do respetivo direito, mandatário judicial ou mandatário
provido de poderes especiais, alguém que tenha uma procuração com poderes
especiais. Podia ser esse o nosso caso e se assim fosse, A tinha exercido através
da mãe o direito de queixa e o MP tinha legitimidade para promover o
procedimento em relação aos 2 crimes;
• Se a mãe não tivesse provida da procuração com poderes especiais, o despacho
era acertado e o procedimento poderia ser arquivado.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 73


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Imaginemos agora que A não concordava com o despacho do MP, o que podia fazer?
A quer que B seja julgado, o que podia fazer? Que fase processual é que existe e se destina
a aferir da legalidade da decisão tomada pelo MP? A fase de instrução.

A podia requerer a abertura de instrução (Artigo 287º, nº 1, b) CPP) ou a


intervenção hierárquica do superior do procurador do MP (Artigo 278º CPP), sendo
certo que neste caso A tinha primeiro de se constituir como assistente, nos termos do
artigo 68º, nº 3, b) CPP.

Quem tinha legitimidade para promover o procedimento? O MP integrado por ato de


vontade de A quanto ao crime de violação de domicílio, e de A ou C no crime de dano.
O prazo para o exercício do direito de queixa é de 6 meses (Artigo 115º, nº 1 CP) a partir
da data do conhecimento do crime e agentes, pelo que os prazos seriam diferentes para A
e C. O prazo contava-se autonomamente para A e para C, nos termos do nº 4 do artigo
115º CP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 74


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Caso Prático nº 5

C, que sofre de esquizofrenia de grau moderado, apresentou queixa-crime contra


D, E e F, imputando-lhes factos subsumíveis à prática, em coautoria, de um crime de
ameaça (art. 153.º, n.º 1 CP).

Encerrado o inquérito, o Ministério Público notificou o ofendido para que este se


constituísse assistente e deduzisse acusação particular. Apesar de considerar que a tal
não era obrigado, o advogado de C procedeu como solicitado, tendo o Ministério
Público acompanhado a acusação deste (art. 285.º, n.º 4, CPP).

Durante a fase de instrução, C desistiu da queixa apresentada contra D, declarando,


todavia, continuar a desejar procedimento criminal contra E e F. Aberta conclusão ao
Juiz de Instrução Criminal, foi proferido o seguinte despacho “Vão os autos com vista
ao magistrado do Ministério Público que conduziu o presente inquérito, de modo a que
este se pronuncie sobre a eventual homologação da desistência de queixa. Mais
determino, desde já, a manutenção do procedimento criminal contra E e F”.

Responda, fundamentando:

a) Poderia a queixa ter sido apresentada, pessoalmente, por C?

b) Concorda com o conteúdo da notificação do Ministério Público no final do


inquérito? Em caso de resposta negativa, qual deveria ter sido tal conteúdo?

c) Qual é, no caso, a autoridade judiciária competente para homologar a desistência


de queixa? Que atitude(s) processual(ais) deveria ela ter tomado?

d) A desistência de queixa em relação a D tem algum efeito quanto aos demais


arguidos? Justifique.

Temos C, esquizofrénico que apresentou queixa contra D, E, F pelo crime de ameaça.


Durante a fase de instrução, C pretendia desistir do procedimento criminal contra D, mas
manter contra E e F. Não vamos falar outra vez do princípio da oficialidade, aplica-se o
mesmo que dissemos no caso anterior.

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A situação de C insere-se em alguma previsão do artigo 113º CP, onde é estabelecida


a titularidade do direito de queixa?

Sim, no nº 4, mas o facto de estar descrita a patologia é suficiente para tirarmos esta
conclusão? Não, mais relevante do que a doença é perceber se em concreto, C tinha a
capacidade para compreender o alcance e significado do ato que estava a praticar. Temos
um indício que poderá revelar que tinha capacidade para compreender, a apresentação de
queixa, não sendo determinante, indicia que C tinha capacidade para entender. Aqui a
doença não é suficiente para conseguirmos determinar se ele teria discernimento ou não.
Se não compreendesse, o titular seria um representante legal, ou na falta dele os
familiares.

b)

Concordamos com o despacho do MP, do parágrafo 2?

O crime de ameaça é um crime semi-público à Artigo 153º, nº 2 CP. Trata-se da


limitação ao princípio da oficialidade e não da exceção. Compete ao MP, uma vez
apresentada a queixa, decidir se leva o arguido ou não a julgamento, logo não é de
concordar com o despacho do MP.

Portanto, o despacho de acusação deveria ser o do artigo 283º CPP e nunca o do artigo
285º CPP. O conteúdo da notificação no fim da fase de inquérito ao ofendido, a C, teria
de ser ou da acusação ou do arquivamento, ou da remissão para mecanismos de diversão
processual (Obrigação de notificação à Artigo 277º, nº 3 CPP – para o caso de
arquivamento e 283º, nº 5 CPP – para o caso de acusação).

Deveria ter ainda notificado o ofendido da sua decisão e mais, devia tê-lo notificado
para que ele, se quisesse, se constituísse como assistente, se ainda não o tivesse feito e
deduzisse acusação ancilar à do MP à Artigo 284º CPP.

Se o conteúdo tivesse sido correto e a decisão fosse de acusar, o ofendido podia


constituir-se como assistente, nos termos do artigo 68º, nº 3 CPP e deduzir a acusação
ancilar do artigo 284º CPP. Se tivesse arquivado, o ofendido poderia requer a abertura de
instrução (artigo 287º, nº 1, b) CPP) ou requerer intervenção hierárquica nos termos do
artigo 279º CPP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 76


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c)

Autoridade judiciária à Artigo 1º, nº 1, b) CPP.

Quando C desiste da queixa, estamos ainda durante a fase de instrução, pelo que seria
o JIC, a autoridade judiciária competente para homologar. Encontramos no artigo 51º, nº
2 CPP, as regras quanto à homologação da desistência de queixa.

Que atitude processual é que o JIC devia ter tomado? Artigo 51º, nº 3 CPP à
Notificar o arguido para que ele diga se se opõe à desistência, o arguido pode ter interesse
que o procedimento vá até ao fim, para ser absolvido e “limpar o seu nome”.

Nota: Remissão do artigo 51º CPP para o CP à Artigo 116º, nº 2 CP

4.1.2 Princípio da Indivisibilidade da Queixa

d)

Princípio da indivisibilidade passiva da queixa (a desistência da queixa ou a sua


extinção relativamente a 1 dos comparticipantes, aproveita a todos os outros) à Artigo
115º, nº 3 e 116º, nº 3 CP.

Tem como contraponto a indivisibilidade ativa da queixa (em caso de


comparticipação de um crime, a apresentação de queixa contra 1 torna o procedimento
extensível aos demais) à Artigo 114º CPP.

A ratio por trás desta solução legal é a de não se optar que o queixoso pudesse
escolher quais os participantes que queria perseguir criminalmente e quais os que queria
perdoar. Se assim fosse, o processo penal tinha mais uma finalidade pessoal, de vingança
do que uma natureza pública e, portanto, concluímos, que o despacho também é
desacertado.

Desacertado, em 1º lugar, porque um magistrado do MP não tinha de se pronunciar


quanto a uma desistência de queixa e em 2º lugar porque não se poderia manter o
procedimento somente contra E e F.

Qual seria o despacho correto? O que devia o JIC ter feito quando recebesse a
desistência de queixa em relação a D à Artigo 51º, nº 3 CPP à Notificar o ofendido,
mas também nos termos do 116º, nº 3 CP, os outros arguidos, para saber se eles se
opunham.

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4.2 Princípio da Acusação – Caso Prático nº 9 e 12 (Alínea


c))
Caso Prático nº 9

Findo inquérito, A, magistrado do MP titular do processo, deduziu, em 20/5/2019,


acusação contra B pela prática do crime de participação em rixa (art. 151.º, n.º 1, do
CP). Em 12/4/2020, na qualidade de magistrado judicial e agora a exercer funções nos
Juízos Criminais do Porto, foi distribuído a A, para julgamento, o mesmo processo em
que deduzira acusação contra B.

No início da audiência de julgamento, o defensor pediu a palavra e ditou para a ata


o seguinte requerimento: «Encontra-se o Mº Juiz impossibilitado de intervir na
presente audiência de julgamento, dado ter intervindo já no processo em fase de
inquérito, motivo pelo qual o mesmo deve declarar-se impedido». Dada a palavra ao
Procurador-adjunto, foi dito que: «O requerido deve ser indeferido, uma vez que não
está colocada em questão a imparcialidade do juiz do julgamento e, para além disto, o
princípio da acusação apenas prescreve que a entidade que acusa seja funcionalmente
diferente da que julga, o que está assegurado». O juiz, aderindo aos fundamentos
aduzidos pelo magistrado do MP, indeferiu o requerido.

Concorda com o despacho judicial? Justifique.

Qual é o princípio referente à promoção processual a identificar neste caso prático?

Princípio da acusação. Não se deve confundir o princípio da acusação da promoção


processual com a estrutura acusatória do processo, um processo pode integrar uma
acusação e não ter estrutura acusatória. Que 2 modelos que estruturam o processo penal
conhecemos? Modelo acusatório e modelo inquisitório. A evolução histórica contrapõe
estes dois modelos. Caraterísticas dos modelos nas suas versões puras:

Modelo Inquisitório:

• Quem julga é também quem investiga, é a mesma entidade, o juiz. O juiz é o


dominos de todo o processo e atua com total discricionariedade;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 78


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• O arguido não é um sujeito processual, é o objeto do processo. O processo é


feito para o arguido, mas ele não participa nele ativamente;
• É um modelo essencialmente presente nos Estados autoritários ou
absolutistas;
• O processo penal é dominado pelo interesse do Estado na punição dos crimes;
• Atropelam-se DF do arguido em prol da busca da verdade material, admite-
se, por exemplo, a tortura como meio de confissão, ou a prisão preventiva
ilegítima;
• O juiz é conduzido à posição de burocrata da justiça, não há independência
entre o poder judicial e político.

Modelo Acusatório:

• Dominante na sua versão mais pura nos EUA e em geral em todos os Estados
de feição liberal;
• Procura alcançar uma igualdade de poderes de atuação processual entre a
acusação e defesa, uma paridade entre a acusação e defesa;
• Baseia-se ou tem como grande paradigma a independência e a imparcialidade
do julgador, o julgador encontra-se numa posição supra-partes. O juiz está
acima da acusação e da defesa e está apenas interessado na apreciação
objetiva do caso que é submetido pela acusação;
• Está organizado num verdadeiro processo de partes que opõe a acusação e a
defesa, há uma espécie de duelo entre duas partes disciplinada por terceiro, o
juiz. Esse atua com passividade. Não há um princípio de investigação como
acontece entre nós;
• Procura-se promover a maior igualdade de armas e meios possível entre
acusação e defesa;
• Existe um contraditório público e oral do processo;
• Vigoram os princípios do dispositivo, são as partes responsáveis para trazer
ao processo os factos que querem ver julgados;
• A verdade é uma verdade formal;
• Há uma autorresponsabilização probatória das partes, havendo regras
relativas à repartição de quóruns;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 79


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• O arguido é visto como verdadeiro sujeito processual, está armado com o seu
direito de defesa e garantias individuais face à acusação e ao próprio tribunal.
• O processo penal transforma-se em ordenação e conforma o poder do Estado
em favor do indivíduo acusado;
• Tem como caraterística principal o facto da entidade que investiga e acusa ser
necessariamente distinta da entidade que julga à Assegurar supremacia,
independência e a imparcialidade do julgador quer face ao acusador quer face
ao acusado.

No seu estado mais puro, o modelo acusatório corresponderá tendencialmente ao dos


EUA. Mas na verdade, não existe uma verdadeira igualdade de meios ou armas,
geralmente os meios da acusação são mais intensos, há um trabalho quase umbilical entre
a acusação e os OPC. A defesa, na maior parte dos casos é uma defesa pública, com meios
mais limitados e a investigação é muito frequentemente desvirtuada por uma espécie de
acórdãos de sentença, diz-se que estão presentes em 85% das vezes à O processo não
chega a julgamento, porque há um acordo de sentença, em que o arguido se declara como
culpado e é logo sentenciado, isto com o objetivo de obter uma pena menor. O
entendimento geral no processo penal norte-americano é que é mais arriscado ir a
julgamento do que assumir a culpa logo, mesmo quando se é inocente.

Além destes modelos, há modelos mistos, que é o caso do modelo do inquisitório


mitigado, adota-se o princípio acusatório, mas apenas na sua forma e não substância, há
uma aparente cisão entre a entidade que acusa (MP) e a entidade que julga, só que essa
cisão formal é desvirtuada pelo facto de pertencer ao juiz a competência para proceder ou
não a uma instrução preparatória e o poder de ordenar ao MP que acuse ou não. Já vigorou
entre nós, designadamente durante o Estado Novo.

Atualmente, a estrutura do processo penal português é uma estrutura acusatória


integrada por um princípio subsidiário de investigação. Isto significa que do ponto de
vista da estrutura acusatória carateriza-se pela adoção de um princípio de acusação, nos
termos do qual a entidade que investiga e acusa é distinta da que julga, havendo inclusive
repartição de funções entre magistraturas diferentes (máxima acusatoriedade possível) à
Artigo 32º, nº 5 CRP.

Nota: As duas magistraturas diferentes são naturalmente a magistratura do MP e a


magistratura judicial.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 80


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O nosso processo carateriza-se ainda por existir um leque muito alargado de sujeitos
e intervenientes processuais, que têm uma participação constitutiva na declaração do
direito do caso, desde logo o arguido, tem amplos direitos de defesa, direitos próprios e
autónomos relacionados com a concreta conformação do objeto do processo e com a
concreta tramitação do processo penal, mas sem que o processo penal português seja
organizado em torno de um processo de partes. Ao contrário do que acontece nos EUA,
o MP tem além da função acusatória, uma função da defesa dos DLG dos cidadãos,
admite-se em Portugal que o MP recorra de uma decisão no estrito interesse do arguido,
para baixar a pena, por exemplo. Diferentemente também, o MP entre nós encontra-se
vinculado a um princípio de estrita objetividade.

Carateriza-se o nosso modelo também pela garantia do contraditório, para a prova e


sobre a prova, na imparcialidade do juiz e na sua vinculação à acusação, no estatuto
processual do arguido enquanto sujeito que se presume inocente e a quem é assegurado o
direito de defesa.

Este modelo é então integrado por um princípio de investigação autónomo e oficioso


por parte do tribunal à Artigo 240º, nº 1 CPP. O tribunal tem o poder-dever de esclarecer
autonomamente, independentemente dos contributos da defesa e acusação, o facto
sujeito a julgamento, tendo ele próprio de criar as bases da sua decisão.

No fundo quer-se alcançar mais do que uma verdade formal, do que o resultado do
confronto entre as duas versões colocadas em oposição, quer-se a verdade material, real
ou história do acontecimento sempre de formas processualmente válidas, que garantam a
proteção do arguido e terceiros, sendo que entre nós é também possível recorrer para
arguir a omissão da utilização pelo tribunal do princípio da investigação, do seu poder-
dever de investigação.

Curiosidade: Também no processo civil existe um princípio de investigação, embora


de forma extraordinariamente mitigada face a este, mas curiosamente também no âmbito
do direito civil é possível recorrer para a relação ou supremo para se censurar o não uso
do poder-dever de investigação do tribunal da instância inferior.

O princípio da acusação quer garantir que o julgador atua no processo de forma


independente e a imparcialidade só é alcançada quando a entidade que julga não tiver
simultaneamente funções de investigação ou acusação.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 81


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O princípio da acusação propugna uma cisão entre a entidade que investiga e acusa
(o MP) e a entidade que julga (o juiz). Entre nós o cumprimento deste princípio implica
uma separação de magistraturas, embora isso não seja necessário para o cumprimento do
princípio da acusação. É irrelevante que a acusação caiba ao MP ou a um juiz de instrução
desde que não caiba ao juiz de julgamento. É a CRP que propugna esta máxima nos
termos do artigo 219º, nº 1 CRP.

São 3 as consequências que se retiram do princípio da acusação:

• O tribunal de julgamento não pode por livre iniciativa começar uma


investigação, essa iniciativa tem de pertencer a outra entidade, numa fase
prévia ao julgamento e também não pode ter legitimidade para dirigir ou
encerrar a investigação;
• A dedução da acusação é pressuposto de toda a atividade jurisdicional de
investigação, conhecimento e decisão, a acusação tem de ser anterior ao
julgamento;
• A acusação define e fixa o objeto do processo perante o tribunal.

Tendencialmente o objeto do processo penal tem de ser o mesmo desde a acusação


até à sentença ou acórdão.

Olhando agora para os dados do caso à Temos o magistrado A, que atua como
representante do MP, deduz acusação contra B e depois vai ser o juiz de julgamento por
força de uma mudança de magistratura. Será que ele pode? Não. Não basta uma separação
funcional em que são entidades distintas, o MP e tribunal, é preciso uma separação
material, em concreto, não pode ser a mesma pessoa.

Tem de se tratar de uma separação efetiva. O princípio da acusação tem de ser


interpretado, teleologicamente, como exigindo uma cisão material e subjetiva entre a
pessoa responsável pela acusação e investigação e a pessoa responsável pelo julgamento.
Sem mais dados legais positivos, já podíamos discordar do despacho inicial proferido. Há
uma errada interpretação do princípio da acusação.

4.2.1 Garantias de Independência – Impedimentos e Suspeições

Mas a verdade é que tanto a CRP como o CPP contêm um conjunto de normas
destinadas a assegurar a independência e imparcialidade dos juízes. São geralmente

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 82


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proclamadas como pressupostos de uma boa administração da justiça e liberdade. A


independência pode ser apreciada sob duas perspetivas.

• De um ponto de vista externo, não podem intervir os restantes poderes do


Estado na atividade dos tribunais;
• Pode também ser encarada sob uma perspetiva de uma independência interna,
ou seja, os juízes não estão sujeitos na sua tarefa jurisdicional a quaisquer
pressões nem sequer às decisões dos outros órgãos jurisdicionais, exceto
quando outra coisa decorra da lei.

A independência dos tribunais está prevista no artigo 203º CRP, e a vinculação estrita
e exclusiva à lei é a principal garantia da independência dos tribunais, face aos outros
órgãos de soberania, face aos outros tribunais, e a grupos da vida pública. A
independência dos tribunais e dos juízes protege-os de pressões externas e internas à É
uma condição necessária, mas não exclusiva da imparcialidade.

A CRP prevê uma serie de garantias da independência:

• Artigo 216º, nº 1 que prevê a garantia da inamovibilidade;


• Artigo 216º, nº 2 prevê o princípio da irresponsabilidade, os juízes não
podem ser responsabilizados pelas suas decisões, exceto nos casos previstos
na lei;
• Princípio da exclusividade, nos termos do artigo 217º, nº 3, segundo o qual
os juízes não podem exercer outras funções, para além da magistratura;
• Proibição da ingerência dos demais poderes públicos no preenchimento dos
quadros e na efetivação das promoções dos magistrados.

A imparcialidade reporta-se a um campo subjetivo do juiz. A melhor garantia de


imparcialidade reside no caráter das pessoas, mas a lei tenta garantir a objetividade ou
pelo menos a aparência da objetividade das decisões. A imparcialidade implica que o juiz
não seja parte do conflito e prossupõe uma atuação equidistante descomprometida em
relação a todos os sujeitos envolvidos. No que toca à imparcialidade, mais do que saber
se o juiz está efetivamente comprometido com a causa e os seus intervenientes, o que
interessa é a aparência de neutralidade perante a comunidade.

Se à luz da comunidade, o juiz não parecer neutral, pouco ou nada interessa que ele
efetivamente o seja, a confiança na decisão já foi comprometida. Vale aqui aquela

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 83


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máxima de que “à mulher de César não basta ser, é preciso parecer.” O que está na base
da imparcialidade é uma especial relação que liga o juiz ao caso concreto.

O CPP prevê uma série de mecanismos para garantir a imparcialidade do juiz. São
essencialmente dois:

Impedimentos à Artigos 39º e 40º CPP

Correspondem a impossibilidades legais de o juiz exercer a sua função num


determinado processo. Os factos que conduzem ao impedimento do juiz podem agrupar-
se em 3 grupos:

• A existência de uma ligação pessoal do juiz ao arguido, ou ofendido ou outro


interveniente processual, de acordo com o artigo 39º, nº1 alínea a) e b) CPP;
• A intervenção anterior no processo, quer como juiz quer noutra qualidade, nos
termos do artigo 39º, nº 1 alínea c) e d) e artigo 40º CPP;
• A existência de vínculos familiares e equiparados entre os juízes, nos termos
do artigo 39º, nº 3 CPP. Não podem intervir no mesmo processo, num coletivo
de juízes, dois juízes que sejam cônjuges, por exemplo. Os impedimentos são
taxativos, são só os que estão previstos na lei e operam automaticamente mal
sejam declarados pelo juiz, nos termos do artigo 41º, nº 1 e 2 CPP. A
consequência de declaração de impedimento é o afastamento imediato do juiz
do processo e a nulidade dos atos praticados pelo juiz impedido, nos termos
do artigo 41º, nº 2 CPP. O despacho em que o juiz reconhece o impedimento
é irrecorrível, mas quando ele reconheça que não está impedido esse despacho
já é recorrível nos termos do artigo 42º, nº 1 CPP.

Suspeições à Artigo 43º CPP

Correspondem a situações de afastamento do juiz do exercício da sua função num


determinado processo por estar em causa a aparência de falta de neutralidade. Existem
dois tipos de suspeições em termos de iniciativa: temos as recusas e as escusas.

A recusa ocorre quando a suspeição e o afastamento é suscitada pelo MP, arguido ou


assistente, ou pelas partes, nos termos do artigo 43º, nº 3 CPP. A escusa ocorre quando é
o próprio juiz que suscita a suspeição.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 84


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As grandes diferenças, são as seguintes: a primeira é que a invocação de uma


suspeição não opera imediata e automaticamente. É preciso que um tribunal superior
decida sobre um pedido de escusa, tratando-se de uma decisão irrecorrível, de acordo com
o artigo 45º, nº 1 e 6 CPP.

As suspeições não são taxativas aferem-se por via de uma cláusula geral, prevista no
artigo 43º, nº 1 CPP à “A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando
correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a
gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”

Há muitos exemplos que podem consubstanciar fundamento grave e sério para o


afastamento de um juiz: a amizade ou inimizade com intervenientes processuais; ligações
de parentesco; relações de proximidade existencial fora das situações previstas no artigo
40º CPP; existência de ligações de interesse; declarações no processo, ou fora deste, que
revelem uma preconceção sobre a culpabilidade do arguido.

Exemplo: Um juiz que é chamado a pronunciar-se sobre uma questão e que num
despacho faz um juízo adiantado sobre a hipotética inocência ou culpabilidade do arguido,
pode ser molde a criar uma situação de suspeição, por ele já ter uma ideia pré-concebida
relativamente ao arguido.

Há um prazo para se invocar a recusa e a escusa à Até ao início da audiência de


julgamento, até ao início da conferência dos recursos e até ao início do debate instrutório.
Esta regra está prevista no artigo 44º CPP.

Nesta situação estamos perante uma hipótese de impedimento. Inseria-se no segundo


grupo de impedimentos à Intervenção no processo anterior noutra qualidade. Prevê-se
esse impedimento, no artigo 39º, nº 1, alínea c) CPP. Deste modo, para garantir o respeito
pelo princípio da acusação, e o respeito pelo princípio da imparcialidade e igualdade
estava impedido de participar neste processo.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 85


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Caso Prático nº 12

No final do ano transato, deu entrada na secção do Ministério Público do Tribunal


de Santa Maria da Feira uma denúncia anónima que dava conta que A e B, irmãos,
aceitavam de forma recorrente objetos em ouro e dinheiro para exercerem a sua
(suposta) influência junto do Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de X,
primo daqueles, no sentido de mais facilmente serem aprovados certos pedidos de
licenciamento de obras.

No âmbito do inquérito penal a que esta notitia criminis deu lugar, ainda em Santa
Maria da Feira, o Juiz de Instrução Criminal, a requerimento do Ministério Público,
ordenou escutas telefónicas aos aparelhos de A e B, a realização de buscas
domiciliárias e a apreensão dos objetos em ouro que fossem encontrados, tudo com
fundamento na suspeita séria da prática de crimes de tráfico de influência (cfr. art.
335.º, n.º 1, al. a), CP). Depois de recolhidos elementos probatórios bastantes, o
magistrado titular do inquérito ordenou a detenção dos dois suspeitos. No
interrogatório que se seguiu, realizado na esquadra da Polícia Judiciária, os suspeitos
foram constituídos arguidos e de imediato confessaram a prática dos crimes que lhes
eram imputados, referindo que os pormenores do “negócio” eram discutidos à mesa,
num restaurante em Oliveira de Azeméis, embora os objetos em ouro e dinheiro fossem
posteriormente entregues na casa de A, no Porto, e de B, em Vila Nova de Gaia.

Findas as investigações, e tendo recolhido indícios suficientes da prática dos


crimes, o Ministério Público deduziu acusação contra A e B pela prática, em coautoria,
de três crimes de tráfico de influência (art. 335.º, n.º 1, al. a), CP), e validou apenas
nesse momento a sua constituição como arguidos.

c) Diga se o JIC que impôs a proibição de contactos entre os arguidos poderá


intervir no julgamento. E o juiz que ordenou as escutas telefónicas e a realização da
busca domiciliária (supondo que se trata de pessoa diferente)?

c)

O JIC que impôs a medida de coação poderia ser o juiz do julgamento?

Reportamos aqui à matéria referente ao princípio da acusação e às garantias de


imparcialidade e independência dos juízes. O CPP contém um conjunto de mecanismos

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 86


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que visam garantir a imparcialidade dos juízes, nomeadamente através dos impedimentos
e suspeições. Neste caso concreto, estaríamos perante algum impedimento ou suspeição?

Sim, o impedimento constante do artigo 40.º, a) CPP, porque o JIC aplicou uma
medida de coação prevista entre o artigo 200.º e 202.º CPP, pelo que não podia
efetivamente intervir posteriormente na fase de julgamento. Porque é que só se aplica este
impedimento às medidas de coação dos artigos 200.º, 201.º e 202.º CPP?

Porque a aplicação destas três medidas de coação implica que se faça um juízo sobre
a existência de fortes indícios da prática do crime, no sentido de se antever uma acusação
e, posteriormente, uma condenação. Ao fazê-lo, o JIC já está de certa forma a tomar uma
posição quanto à natureza dos indícios presentes nos autos. Entende-se que
posteriormente não atuaria com a imparcialidade desejada, daí este impedimento. O JIC
não poderia intervir no julgamento.

E o juiz que ordenou as buscas domiciliárias e a realização de escutas telefónicas? Já


não estamos perante medidas de coação, mas sim meios de obtenção de prova à Artigo
174.º (revistas e buscas) e 187.º e seguintes (escutas telefónicas) CPP. A busca pode ser
ordenada quando exista o indício da prática de um crime e as escutas se forem
indispensáveis para a descoberta da verdade. Estava aqui em causa algum impedimento?

Não, esta situação não está abrangida por nenhuma das situações do artigo 39.º ou
40.º CPP à Os impedimentos são taxativos, têm de estar expressamente previstos, mas
poderia haver alguma situação de suspeição?

As suspeições são aferidas em torno de uma cláusula geral à Artigo 43.º, nº 1 CPP.
O nº 2 refere que “pode constituir fundamento a intervenção do juiz de recusa, nos termos
do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo
fora dos casos do artigo 40.º.” Seria aqui o caso, aqui o juiz atuou para autorizar
determinadas diligências probatórias. À partida não há situação de suspeição, mas podia
dar-se o caso de no despacho de ordenação destas diligências, o juiz fizesse qualquer
declaração que levantasse dúvidas quanto à sua neutralidade e mostrasse um pré-juízo,
caso contrário não haveria fundamento de suspeição.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 87


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4.3 Princípio da Suficiência – Caso Prático nº 10


Caso Prático nº 10

O MP da comarca de Ribeira de Pena deduziu acusação contra A, suinicultor,


imputando-lhe a prática de um crime de alteração de marcos (art. 216.º CP). Referia-
se no competente despacho que o arguido teria arrancado uma estaca de pedra que
delimitava as suas propriedades rústicas, separando-as do lote de terreno onde B tinha
começado a construir uma casa.

Descontente, A requereu a abertura de instrução, invocando que não estavam


preenchidos os elementos constitutivos do crime de alteração de marcos, já que o
indicado lote de terreno lhe pertencia e o ofendido beneficiava apenas de uma
promessa de venda, além do mais desprovida de eficácia real. Concluiu requerendo a
suspensão do processo nos termos e para os efeitos do n.º 3 do artigo 7.º do CPP.

O requerimento foi indeferido pelo JIC, que entendeu «tratar-se de uma questão
simples, que pode ser perfeitamente resolvida no contexto da ação penal, com
vantagens para a celeridade da justiça». Deste despacho interpôs recurso o arguido,
mas o mesmo não foi admitido porque, nas palavras do JIC, «a decisão sobre a
devolução é do domínio da discricionariedade do tribunal penal» (cf. art. 400.º, n.º 1,
al. b), CPP).

Comente.

O que é temos aqui neste caso? Temos um suinicultor que praticou um crime de
alteração de marcos, é um crime na medida em que grande parte da conflitualidade que
existe no interior é em prol destas disputas. O nosso suinicultor requer abertura de
instrução, porque diz que o terreno de onde ele arrancou as estacas era dele. E requereu a
suspensão do processo nos termos do artigo 7º CPP.

O crime de alteração de marcos é um crime semi-público, nos termos do artigo 116º,


nº 2 CP.

Estamos no âmbito dos princípios da prossecução processual, mais concretamente o


Princípio da Suficiência, previsto no artigo 7º CPP, que define que no processo podem
ser resolvidas todas as questões que importem para a decisão da questão do crime

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 88


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independentemente da sua natureza. Pode acontecer que a decisão da questão penal esteja
dependente das chamadas questões prejudiciais.

4.3.1 Questões Prejudiciais

São questões jurídicas que condicionam a decisão sobre a questão principal sendo
simultaneamente autónomas face à questão principal do processo em que surgem, e por
isso suscetíveis de constituir objeto num outro processo. São antecedentes lógicos e
necessários da resolução da questão prejudicada. Têm 3 características:

• Tem de ser um antecedente jurídico concreto da decisão da questão principal;


• Tem de se tratar de uma questão autónoma quer no seu objeto quer na sua
natureza;
• Tem de ser uma questão necessária à decisão da questão principal.

Exemplo: Num crime relacionado com o exercício de funções públicas é uma questão
prejudicial saber se o agente é um funcionário público.

As questões prejudiciais distinguem-se das questões prévias. Ambas condicionam


a decisão da questão principal, mas enquanto as primeiras são questões de direito
substantivo, as questões prévias são apenas questões processuais. Segundo a doutrina
distinguem-se três tipos de questões prejudiciais:

• As questões prejudiciais não penais em processo penal;


• As questões prejudicais penais em processo não penal;
• As questões prejudiciais penais em processo penal e aqui aplicam-se as regras
da conexão de processos.

Que sistemas de solução podemos equacionar para as questões prejudiciais? São três:

O sistema de conhecimento obrigatório ou suficiência absoluta, em que o juiz


competente para questão principal é sempre o competente para resolver todas as questões
prejudiciais. Contudo este sistema deve ser afastado, na medida em que existem questões
de muita complexidade, para as quais os juízes criminais não estão preparados.

Um outro sistema, é o sistema da devolução obrigatória, em que o juiz competente


para a questão principal está sempre obrigado a remeter a resolução da questão prejudicial
para o tribunal que seria competente caso se tratasse de uma questão autónoma, mas
também deve ser afastado, na medida em que contribui para atrasos no processo.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 89


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Por fim, temos um sistema misto que é o nosso sistema.

Temos um sistema misto ou intermédio nos termos do qual a regra geral vem prevista
no artigo 7º CPP, a consagração da suficiência penal, mas em razão da complexidade
que revestem certas questões prejudiciais admite-se a devolução ao tribunal competente,
desde que estejam verificados os pressupostos do artigo 7º, nº 2 CPP. Os requisitos são:

• Tem de se tratar de uma questão prejudicial não penal;


• Tem de se tratar de uma questão cuja resolução é necessária para se conhecer
da existência de um crime, ou seja, tem de implicar o conhecimento de um
elemento constitutivo do crime;
• O tribunal tem de verificar que essa questão não pode ser convenientemente
resolvida no processo penal.

A conveniência é um conceito indeterminado, que se interpretará de acordo com a


especialidade do conceito em causa. Quanto à iniciativa, o artigo 7º, nº 3 CPP diz-nos que
após a acusação ou o requerimento de abertura de instrução, a suspensão pode ser
requerida pelo MP, pelo assistente ou arguido, e conhecida oficiosamente pelo tribunal.
De acordo com o artigo 7º, nº 4 CPP, se esgotar o prazo máximo de suspensão de 1 ano,
ou se a ação autónoma não for proposta num prazo máximo de 1 mês, volta a valer a regra
da suficiência do artigo 7º, nº 1 CPP.

No nosso caso, estamos perante uma questão prejudicial?

Sim. O próprio tipo de crime, previsto no artigo 216º, nº 1 CP refere que é elemento
objetivo do tipo de crime que a coisa imóvel seja alheia, se ela própria é um dos elementos
do crime e não está verificada não existe crime de alteração de marcos. Trata-se de um
antecedente jurídico concreto da questão principal. É uma questão autónoma, pode dar
lugar a um processo autónomo, e é uma questão necessária à solução da questão principal.
É uma questão prejudicial não penal em processo penal.

O suinicultor tinha legitimidade e estava dentro do prazo de requerer a questão


prejudicial?

Sim, nos termos do artigo 7º, nº 3 CPP. Estão verificados os requisitos da suspensão,
do artigo 7º, nº 2 CPP? Os dois primeiros requisitos estão verificados. Quanto ao terceiro
requisito à A questão não pode ser convenientemente resolvida pelo tribunal penal?

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 90


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Pode, uma vez que era uma questão simples cuja prova se faz por via documental, e,
por isso, não parece estar verificado este requisito. Atenta a excecionalidade da
suspensão, o despacho do JIC andou bem.

O nosso A recorreu do despacho do JIC, mas o JIC não admitiu o despacho pelo facto
de a decisão ser do domínio do Tribunal Penal, invocando como fundamento o artigo
400.º, nº 1, b) CPP. Esta decisão foi acertada? A regra geral da recorribilidade está
prevista no artigo 399.º CPP, mas o JIC invoca a do artigo 400.º CPP. No nosso caso,
estamos perante um ato dependente da livre resolução do tribunal?

Não. O tribunal não é inteiramente livre na apreciação que faz, uma vez que tem de
a fazer de acordo com o artigo 7.º, nº 2 CPP. Este artigo abre alguma margem de
discricionariedade ao juiz, utilizando o conceito indeterminado de conveniência. Por isso,
entendeu-se durante algum tempo na doutrina, que esta era uma livre decisão do tribunal
e por isso não era recorrível. Esta posição era defendida pelo Dr. Castanheira Neves.

Todavia, a doutrina maioritária, defendida, nomeadamente, pelo Dr. Figueiredo Dias,


entende que nunca se pode considerar como livre, a decisão que verse sobre a
conveniência da devolução em matéria de prejudicialidade porque o juiz está sempre
vinculado aos critérios plasmados na lei, e aos fins que a lei teve em vista ao conceder
aquela parcela de discricionariedade. Esses fins são a celeridade processual. Assim a
decisão do JIC é recorrível.

Por curiosidade: Imaginando que a decisão tinha sido outra, a da devolução, e o


processo tinha sido proposto, num outro tribunal, tinha havido uma sentença que
determinava que a propriedade era de A, que efeitos é que essa decisão tinha no Processo
Penal? Tinha de ser aceite pelo processo penal? Sim, formaria caso julgado, não faria
sentido suspendermos o processo se depois o tribunal ficasse livre da decisão proferida
no outro processo.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 91


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4.4 Princípio da Livre Apreciação da Prova – Caso Prático


nº 11 (Alíneas a) e b)) e 12 (Alínea e))
Caso Prático nº 11

Em Fevereiro de 2018, o Ministério Público deduziu acusação contra A,


imputando-lhe a prática do crime de homicídio privilegiado na pessoa de B (art. 133.º
do CP). Na acusação refere-se que o arguido, «movido pelo ímpeto ou choque
emocional, repentino e violento, determinado pela agressão mortal da sua mãe por B,
atingiu-o mortalmente com um machado que se encontrava perto do corpo da
progenitora».

No decurso do inquérito, foi ordenada perícia psiquiátrica no sentido de apurar se


A teria atuado em estado de inimputabilidade. Pode ler-se no relatório pericial
apresentado: «o examinado padece de Síndrome de Asperger, uma anomalia psíquica
que condiciona a sua personalidade e volição, limitando-lhe a capacidade de avaliar a
ilicitude dos factos e de se auto-determinar, o que justifica a formulação de um juízo
de imputabilidade sensivelmente diminuída».

a) Diga se, e em que termos, o tribunal ficará condicionado, na sua apreciação,


pelas conclusões do perito.

b) O arguido não apresentou contestação. Durante o julgamento, A confessou que


matara B «porque este era mau». C, testemunha indicada pelo Ministério Público,
referiu que D, falecida três semanas depois dos factos em causa lhe tinha contado logo
a seguir ao homicídio, que «vira como tudo acontecera»: quando A desferiu os golpes
de machado sobre B este ainda estava sobre o corpo da mãe de A, estrangulando-a.
Aprecie a questão à luz dos princípios de direito probatório estudados.

a)

A, vê a mãe a ser agredida mortalmente e reage matando B com um machado, que


estava colocado perto do corpo da mãe. O que está em causa é a prática de um crime de
homicídio privilegiado punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos termos do artigo
133.º CP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 92


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O homicídio privilegiado ocorre quando há uma diminuição sensível da culpa do


agente, por alguma circunstância, nomeadamente porque a sua conduta foi determinada
por uma emoção violenta, desespero, compaixão, etc.

Durante a fase de inquérito foi ordenada uma perícia psiquiátrica que concluiu que A
sofria de um Síndrome de Asperger e que essa anomalia condiciona a capacidade de
formular juízos de ilicitude e de se autodeterminar. Segundo a perícia, tinha de se
formular, em relação a A um juízo da imputabilidade sensivelmente diminuída, nos
termos do artigo 20.º CP.

O princípio relativo à prova, que está aqui em causa é o princípio da livre apreciação
da prova, ou princípio da prova livre, previsto no artigo 127.º CPP. Nos termos deste
princípio, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre apreciação da
entidade competente, exceto quando a lei dispuser em sentido diverso. Vale a pena notar
que este princípio, embora tenha um lugar privilegiado durante a fase de julgamento, mais
concretamente, na decisão final, a verdade é que é um princípio transversal a todas as
fases do processo, impondo-se ao Ministério Público, ao Juiz de Instrução Criminal, bem
como aos Órgãos de Polícia Criminal.

Esta temática da prova pode ser decomposta em três fases distintas:

• Admissibilidade da Prova;
• Produção e Formação da Prova;
• Valoração da prova.

Em qual destas fases é que o princípio da livre apreciação intervém? Na valoração.

Relativamente à admissibilidade, o que se quer saber é quais são os meios de prova


admissíveis. A resposta a esta pergunta encontra-se no artigo 125.º CPP, segundo o qual
são admissíveis todos os meios de prova que não sejam proibidos por lei, e as provas
proibidas estão previstas no artigo 126.º CPP. Também é nesta fase, que se define quem
é que pode ter a iniciativa para a produção da prova.

Depois temos a fase da produção da prova e aí o que se quer saber é a que regras é
que a produção de um determinado meio de prova tem de obedecer para que possa ser
validamente considerada pelo tribunal, no momento em que vai decidir sobre os factos
sujeitos a julgamento. Essas regras procedimentais quanto à produção de prova variam de
meio de prova para meio de prova.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 93


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Finalmente temos a fase da valoração da prova e responde à questão de como é que


a prova produzida vai ser avaliada ou apreciada pelo tribunal. Existem provas com valor
superior a outras? Não. É aqui que assume especial importância o princípio da livre
apreciação.

Este princípio surge após a Revolução Francesa, associado à introdução dos tribunais
de júri, por contraposição ao sistema da prova legal, que vigorava antes da revolução. A
introdução do princípio da livre apreciação da prova representa um corte radical,
relativamente ao anterior, em que cada meio de prova tinha um valor legalmente pré-
determinado, a chamada prova tarifada. Este sistema assentava num receio que o julgador
incorresse em erros de valoração dos meios de prova, pelo que se estabeleceu regras legais
de valoração dos meios de prova com base nas regras da experiência comum.

A confissão era a prova rainha à “unus testis, nullus testis” à Se só há uma


testemunha que depõe num certo sentido, isso não vale, é preciso mais do que uma
testemunha para comprovar uma certa história, entre outros.

Com a Revolução Francesa, mudamos para um sistema diametralmente oposto, de


íntima convicção, em que os meios de prova, ou a verdade, era encontrada na convicção
íntima dos jurados. Daí que o sistema de livre apreciação seja designado pelo sistema da
íntima convicção.

Quanto ao conteúdo deste princípio à Pela negativa, este princípio diz-nos que não
existem critérios legais que pré-determinem o valor da prova. Pela positiva, diz-nos que
as entidades competentes para a valoração a prova, o têm de fazer segundo o seu dever
de descoberta da verdade material, pelo que ainda que a valoração seja integrada por um
momento de convicção pessoal e íntima, essa convicção é sempre objetivada, motivada e
suscetível de controlo.

Significa que este princípio não aponta para uma valoração incontrolável,
subjetiva ou arbitrária da prova produzida. Mesmo nos espaços de discricionariedade
que possam existir, essa discricionariedade tem limites que não podem ser ilicitamente
ultrapassados. A doutrina diz que a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de
acordo com um dever. Trata-se de uma liberdade para a objetividade. O que se quer, é
alcançar uma verdade que transcende a pura subjetividade e que se imponha, com a sua
racionalidade aos outros. A apreciação da prova tem sempre de ser reconduzível a

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 94


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critérios objetivos e motivados. Impõe-se uma valoração racional e crítica, assente nas
regras da lógica e experiência comum, do normal acontecer e agir, remetendo-se aos
conhecimentos técnicos e científicos, tudo para permitir objetivar a decisão.

Se é certo que a convicção do juiz é ainda uma convicção pessoal, subjetiva, até
porque há um papel relevante que desempenha a componente emocional (Por exemplo à
Quando atribui maior ou menor credibilidade a uma testemunha pela forma como ela se
comporta ou reage durante as inquirições, a verdade é que essa convicção nem sempre é
completamente explicável ou racional, é ainda uma convicção pessoal, mas tem que ser
capaz de se impor aos outros por ser objetiva e motivada). O juiz tem de ser capaz de
explicar as razões da sua convicção pessoal.

Essa convicção só existe se o tribunal tiver ficado convencido dos factos para além
de toda a dúvida razoável. No fundo o tribunal tem de ter conseguido afastar
racionalmente qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões.

Imaginemos uma determinada situação de facto para a qual existem duas explicações
credíveis, a defesa defende uma coisa e a acusação outra à A condenação só ocorre se o
tribunal, face à prova produzida, tiver ficado convencido que foi, a explicação dada pela
acusação, aquela que efetivamente foi a mais credível, e que foi para além da dúvida
razoável, tem de destruir a tese da defesa de forma motivada.

O princípio da livre apreciação da prova conhece limites:

• Internos à Traduzem-se no respeito, que o artigo 127.º CPP impõe pelas


regras da experiência comum, e pelas regras científicas probabilísticas e não
probabilísticas. Quando falamos da normalidade do acontecer e agir,
queremos sobretudo afastar absurdos;
• Externos à São dados pela necessidade de se motivar a convicção do
tribunal. Qualquer decisão judicial tem de ser devidamente fundamentada e
tem de especificar, sob pena de nulidade, os motivos de facto, nos termos do
artigo 97.º, nº 5 CPP. Além disso, o CPP exige no âmbito da fundamentação
da sentença, aquilo que vem designado na lei como exame crítico das provas,
nos termos do artigo 374.º, nº 2 CPP. Neste exame crítico o julgador está
obrigado a motivar a sua convicção, ou seja, a explicar objetivamente o

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 95


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porquê de ter considerado mais credível uma testemunha do que a outra, ou o


porquê de não ter dado relevância a certo documento, etc.;
• Normativos à Casos em que o legislador intervém na determinação do valor
a atribuir a um meio de prova, podendo fazê-lo quer em sentido positivo,
fixando um valor para esses meios de prova, ou negativo, em que proíbe a
valoração de um meio de prova, é o que acontece na proibição da valoração
desfavorável do silêncio do arguido.

Neste caso, interessa saber se o princípio da valoração vale em toda a sua amplitude
ou se está limitado.

O meio de prova utilizado foi a prova pericial, regulado entre os artigos 151.º e 163.º
CPP. Geralmente realizam-se perícias para a apreciação de determinados atos através de
métodos de natureza científica, técnica, artística, etc. É obrigatório que a perícia seja
realizada por pessoas que tenham especiais conhecimentos na área periciada, por
exemplo, a determinação se um quadro é falso ou não.

Qual é o valor da prova pericial? Ela está sujeita ao princípio da livre apreciação da
prova em toda a sua amplitude ou não? O princípio da livre apreciação não funciona em
toda a sua amplitude, no âmbito da prova pericial. O artigo 163.º, nº 1 CPP, diz-nos que
“o juízo técnico científico ou artístico, presume-se subtraído à livre apreciação do
julgador”. Mas trata-se apenas de uma presunção à É possível ao juiz divergir do
relatório pericial, mas para fazê-lo tem de contra-argumentar com um juízo da mesma
natureza, ou seja, tem de apresentar um argumento de natureza técnico, científico ou
artístico, que se oponha ao relatório pericial. Isto acontece, por exemplo, quando há um
relatório pericial junto aos autos, e depois a defesa ou a acusação apresenta um outro
relatório pericial que apresenta conclusões divergentes.

O juiz também pode afastar ou ilidir esta presunção se invocar um erro inequívoco
de que o relatório padeça ou contrariar a base de facto em que assenta a perícia. Fora
destes casos, o juiz está obrigado a aceitar o juízo técnico, científico ou artístico, contido
no relatório pericial. Trata-se assim de um limite, um desvio, de sentido negativo, ao
princípio da livre apreciação e justifica-se, uma que vez que se a lei prevê a intervenção
de pessoas com conhecimentos especiais, era incompreensível que depois admitisse que
esses relatórios, não tivessem qualquer relevância, principalmente em domínios que o juiz

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 96


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não tivesse as mesmas competências. O julgador não é o juiz da perícia, mas continua a
ser o juiz dos peritos.

Olhando para o caso, o juiz, em princípio, não se verificando nenhuma das situações
que a lei expressamente permite no artigo 163.º CPP, teria de aceitar o juízo médico
quanto à anomalia psíquica existente, e de aceitar o juízo formulado no relatório pericial
quanto às consequências dessa síndrome.

Mas relativamente ao último segmento, onde a perícia justifica a formulação de um


juízo de imputabilidade sensivelmente diminuída, aí efetivamente, o tribunal já não estava
vinculado ao relatório pericial porque se trata de um juízo de direito. A inimputabilidade
do agente, nos termos do artigo 20.º CP, corresponde a matéria de direito. Podia até dar-
se o caso de apesar de se aceitar que A tinha um Síndrome de Asperger, que condicionava
a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos factos, ele fosse ainda considerado imputável
O tribunal não estava vinculado a esse último segmento.

b)

No âmbito deste caso, o princípio da livre apreciação da prova continua a ser aplicado.
Temos a confissão e o depoimento indireto.

Começando pela confissão ela é um meio de prova geral do direito, nos termos do
artigo 352.º e seguintes CC. Há confissão sempre que alguém reconhece a realidade de
um facto que lhe é desfavorável, neste caso a prática de um crime. Ela pode ocorrer em
qualquer fase processual. Se ocorrer durante a fase de inquérito ou instrução está sujeita
ao princípio da livre apreciação. Quando ocorra em julgamento, e dependendo das suas
características, pode ou não estar sujeita ao princípio da livre apreciação. Como?

Durante a fase de julgamento, logo no início da audiência de julgamento, pergunta-


se ao arguido se quer prestar declarações, sendo certo que o poderá fazer posteriormente
em qualquer altura. Em sede de audiência de julgamento, o arguido pode ter um de quatro
comportamentos:

• Remeter-se ao silêncio, tendo lugar um desvio negativo ao princípio da livre


apreciação. Nos termos do artigo 343.º, nº 1 CPP, o arguido não pode ser
obrigado a prestar declarações e o seu silêncio não pode desfavorecê-lo;
• O arguido pode falar e negar os factos e aí vale o princípio da livre apreciação
da prova;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 97


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• Pode confessar parcialmente ou com reserva dos factos, situação em que vale
o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artigo 344.º, nº 4 CPP;
• Pode confessar de forma livre, integral e sem reserva.

Interessa-nos a confissão livre e integral e sem reservas, prevista no artigo 344.º CPP.
Aplica-se o nº 2, e estamos perante um desvio positivo ao princípio da livre apreciação.
Havendo uma confissão livre integral e sem reservas não há lugar à produção de prova
passando-se logo às alegações orais e à determinação do nível da sanção, nos termos da
alínea b) do nº 2 do artigo 344.º CPP.

A confissão é integral quando se reporta à totalidade dos factos, e é sem reservas,


quando o arguido não faz depender a confissão de uma condição futura, por exemplo, ser
condenado com uma pena mais baixa, ou o reconhecimento de outros factos que não estão
incluídos da acusação. É preciso notar que mesmo nos casos em que a lei atribui à
condição integral e sem reservas, efeitos especiais (são os efeitos de não se produzir prova
e passar-se logo para as alegações orais), tal só acontece num momento posterior ao
funcionamento do princípio da livre apreciação à O tribunal valora de acordo com a sua
livre convicção se a confissão foi livre e sem reservas. É preciso atender às exceções do
nº 3 do artigo 344.º CPP à Os efeitos da confissão integral e sem reservas não operam,
mantendo-se a produção da prova sujeita ao princípio da livre apreciação. São três
exceções:

• O crime ter uma moldura penal abstrata superior a cinco anos;


• O tribunal, na sua livre apreciação, suspeitar do caráter livre da confissão, por
existirem dúvidas quanto à inimputabilidade do sujeito ou quanto à
veracidade dos factos confessados. Por exemplo, quando o juiz suspeita que
o arguido está a ser coagido a confessar;
• Se existirem coarguidos e algum deles não confessar, integralmente e sem
reservas, ou se as confissões não foram coerentes entres si.

Nessas hipóteses do nº 3, em que não funcionará o artigo 344.º, nº 2 CPP o tribunal


vai apreciar livremente a confissão e determinar que prova deve ser produzida, nos termos
do artigo 344.º, nº 4 CPP.

No nosso caso esta confissão reunia as características necessárias para que se passasse
imediatamente para as audições orais, e que se prescindisse da produção da prova?

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 98


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Dizer que ele era mau não afasta a responsabilidade, logo seria uma confissão sem
reservas, mas seria livre? Sabemos que o relatório diz que A, em virtude da sua anomalia
psíquica tinha capacidade condicionada de avaliar a ilicitude dos factos e de se
autodeterminar, logo não é de todo claro que ele conseguisse perceber o conteúdo, sentido
e alcance da confissão.

Não se pode dizer que a confissão é livre. De facto, foi integral e sem reservas, mas
pode suspeitar-se do caráter livre. Se não era livre, não se tratava de uma confissão que
reunia aquelas três características, de que depende a limitação positiva ao princípio da
livre apreciação, logo essa confissão ficaria sujeita à livre convicção do julgador. Nos
termos do artigo 127.º CPP e nos termos do artigo 344.º, nº 4 CPP, o tribunal tinha de
decidir se iria ter lugar, e em que medida a produção de prova quanto aos factos
confessados.

Falta-nos a parte do testemunho indireto à Trata-se de um desvio ao princípio da


livre apreciação da prova. Estão em causa os testemunhos de ouvir dizer, a testemunha
não presenciou nada. Nos termos do artigo 129º, nº 1 CPP, a regra é de que o depoimento
indireto não pode ser valorado, sendo o tribunal chamado a depor as pessoas que tenham
contacto pessoal com os factos.

Esta limitação à livre apreciação do testemunho indireto só conhece as exceções do


artigo 129.º CPP. Nesses casos já se admite o depoimento indireto. Porque é que se proíbe
o depoimento indireto? Qual o princípio que justifica essa proibição? O princípio da
imediação, interessa-nos a vertente em que impõe ao juiz o dever de apreciar e obter os
meios de prova mais diretos possíveis, os direitos de prova originais.

O testemunho indireto está mais distante dos factos, razão pela qual se prefere o
testemunho direto, porque se presume que esse está sujeito a uma menor probabilidade
de erro. Neste caso qual era a solução? Podemos admitir o depoimento indireto?

B tinha morrido, e por isso enquadrava-se na exceção do artigo 129.º, nº 1 CPP.


Assim, admite-se o depoimento indireto de C que seria livremente apreciado pelo
tribunal. Se D não estivesse morto, não sofresse de anomalia psíquica, então o tribunal
tinha o poder dever de o convocar para que fosse ele a prestar o depoimento.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 99


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Caso Prático nº 12

No final do ano transato, deu entrada na secção do Ministério Público do Tribunal


de Santa Maria da Feira uma denúncia anónima que dava conta que A e B, irmãos,
aceitavam de forma recorrente objetos em ouro e dinheiro para exercerem a sua
(suposta) influência junto do Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de X,
primo daqueles, no sentido de mais facilmente serem aprovados certos pedidos de
licenciamento de obras.

No âmbito do inquérito penal a que esta notitia criminis deu lugar, ainda em Santa
Maria da Feira, o Juiz de Instrução Criminal, a requerimento do Ministério Público,
ordenou escutas telefónicas aos aparelhos de A e B, a realização de buscas
domiciliárias e a apreensão dos objetos em ouro que fossem encontrados, tudo com
fundamento na suspeita séria da prática de crimes de tráfico de influência (cfr. art.
335.º, n.º 1, al. a), CP). Depois de recolhidos elementos probatórios bastantes, o
magistrado titular do inquérito ordenou a detenção dos dois suspeitos. No
interrogatório que se seguiu, realizado na esquadra da Polícia Judiciária, os suspeitos
foram constituídos arguidos e de imediato confessaram a prática dos crimes que lhes
eram imputados, referindo que os pormenores do “negócio” eram discutidos à mesa,
num restaurante em Oliveira de Azeméis, embora os objetos em ouro e dinheiro fossem
posteriormente entregues na casa de A, no Porto, e de B, em Vila Nova de Gaia.

Findas as investigações, e tendo recolhido indícios suficientes da prática dos


crimes, o Ministério Público deduziu acusação contra A e B pela prática, em coautoria,
de três crimes de tráfico de influência (art. 335.º, n.º 1, al. a), CP), e validou apenas
nesse momento a sua constituição como arguidos.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 100


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

e) Suponha agora que, na audiência de julgamento, os arguidos se remeteram ao


silêncio. Para colmatar eventuais lacunas probatórias, o juiz-presidente ordenou a
leitura das declarações prestadas em inquérito perante a Polícia Judiciária, bem como
a inquirição do inspetor que conduziu os interrogatórios. Na fundamentação da decisão
condenatória que, entretanto, foi proferida pode ler-se: «a convicção do tribunal
assenta decisivamente nas declarações prestadas pelos arguidos durante o
interrogatório policial, cujo conteúdo, valorado nos termos do artigo 127.º CPP, foi
confirmado, de modo consistente e credível, pelo inspetor que acompanhou a referida
diligência. Para mais, a atitude pouco colaborante e até mesmo refratária dos arguidos
durante a audiência é um elemento que corrobora a convicção sobre a sua
culpabilidade».

Comente.

e)

Princípio da livre apreciação da prova, princípio da imediação (proximidade


comunicante entre o tribunal e os agentes no processo, na medida em que há leituras no
julgamento de outros atos), princípio da oralidade (os atos processuais devem produzir-
se de forma oral).

De acordo com o artigo 355.º CPP e por força da imediação não valem em
julgamento, nomeadamente para formação da convicção do tribunal, quaisquer provas
que não tenham sido examinadas ou produzidas durante a audiência de julgamento.
Porém, o nº 2 contém uma exceção para os atos cuja leitura ou visualização em audiência
de julgamento sejam permitidos à Atos contidos no artigo 356.º e 357.º CPP à Leitura
de autos, declarações do assistente, partes civis e testemunhas, reprodução ou leitura de
declarações prestadas anteriormente perante autoridade judiciária.

Nos termos do artigo 357.º CPP, a reprodução e leitura das declarações do arguido
são muito restritas, condicionadas para colocar o menos possível em causa o princípio da
imediação.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 101


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Assim, não podia o juiz tê-lo feito, o artigo 357.º CPP determina que isso só possa
acontecer em duas hipóteses à Ou se o próprio arguido requerer ou se essas declarações
tiverem sido feitas perante autoridade judiciária com assistência do defensor e o arguido
tenha sido informado que aquelas declarações que proferiu naquele momento poderão ser
mais tarde utilizadas em julgamento. Era este o nosso caso, as declarações foram
prestadas perante uma autoridade judiciária, a PJ é autoridade judiciária?

Não, é um OPC, desde logo por aqui não seria possível a leitura das declarações
prestadas. Não há nota sequer que os arguidos tivessem acompanhados de defensor nem
que tenham sido advertidos para os efeitos do artigo 141.º, nº 4, b) CPP, logo a leitura
tratava-se de prova proibida.

O tribunal fez mais, chamou a depor o inspetor da PJ que tomou essas declarações e
esse corroborou que os arguidos teriam dito o que constava do auto de inquirição à Não
faz sentido, então se a lei proíbe as declarações íamos chamar a pessoa que ouviu as
declarações a corroborar? Seria uma forma de contornar a lei à A lei prevê isto
claramente no artigo 356.º, nº 7 CPP. Não se poderia ter ouvido o inspetor quanto ao teor
das declarações prestadas pelos arguidos na fase de inquérito.

Finalmente, o juiz na sua fundamentação da decisão escreveu que a convicção do


tribunal assenta na atitude pouco colaborante e até refratária dos arguidos durante a
audiência à O silêncio não pode ser valorado em sentido desfavorável ao arguido à
Desvio negativo ao princípio da livre apreciação da prova, uma decorrência da proibição
da autoincriminação. Esta limitação está prevista no artigo 343.º, nº 1 e 61.º, nº 1, d) CPP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 102


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4.5 Princípio in dubio pro reo – Caso Prático nº 11 (Alínea


c))
Caso Prático nº 11

Em Fevereiro de 2018, o Ministério Público deduziu acusação contra A,


imputando-lhe a prática do crime de homicídio privilegiado na pessoa de B (art. 133.º
do CP). Na acusação refere-se que o arguido, «movido pelo ímpeto ou choque
emocional, repentino e violento, determinado pela agressão mortal da sua mãe por B,
atingiu-o mortalmente com um machado que se encontrava perto do corpo da
progenitora».

No decurso do inquérito, foi ordenada perícia psiquiátrica no sentido de apurar se


A teria atuado em estado de inimputabilidade. Pode ler-se no relatório pericial
apresentado: «o examinado padece de Síndrome de Asperger, uma anomalia psíquica
que condiciona a sua personalidade e volição, limitando-lhe a capacidade de avaliar a
ilicitude dos factos e de se auto-determinar, o que justifica a formulação de um juízo
de imputabilidade sensivelmente diminuída».

c) Diga como deverá o tribunal proceder em caso de dúvida sobre a verificação ou


não dos factos referidos pela testemunha C.

c)

Qual é a relevância destes factos?

Trata-se de Legítima Defesa à A questão é atual, a legítima defesa pode verificar-


se em relação a bens jurídicos próprios ou de terceiros, portanto, a relevância destes factos
é apontada para uma causa de exclusão da ilicitude, a legítima defesa. Qual é o princípio
relativo à prova que está aqui em causa?

Princípio in dubio pro reo. Tem relevância naquelas situações em que o tribunal,
depois de conduzida toda a prova, permanece num estado de dúvida. Este princípio
decorre de um outro, o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 32.º, nº
2 CRP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 103


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Se apesar de toda a prova recolhida e produzida, existirem factos relevantes para a


decisão, quer digam respeito ao facto criminoso, quer digam respeito à pena, que não
possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, ou seja, que fiquem aquém da dúvida
razoável, então eles não podem ser dados como provados, devendo a dúvida ser valorada
a favor do arguido, dando-se como provados os factos que lhe sejam favoráveis.

A primeira exigência do princípio in dubio pro reo, é que o tribunal esgote as


possibilidades que dispõe ao abrigo do princípio da investigação, ou seja, o tribunal está
obrigado a produzir todos os meios de prova necessários à descoberta da verdade material,
que permitam que ele saia de um estado de dúvida razoável. Quando já foram produzidos
todos os meios de prova possíveis, o juiz pode chegar a uma de três conclusões:

• Foi produzida prova dos factos imputados ao arguido, razão pelo qual o
tribunal os dá como provados;
• Não foi produzida prova dos factos imputados ao arguido, em que os dá como
não provados;
• Apesar de toda a prova produzida, sobra ainda uma dúvida razoável sobre os
factos imputados ao arguido. Nesta hipótese, o tribunal tem de demonstrar os
factos que forem favoráveis ao arguido, sob o princípio in dubio pro reo. Na
dúvida beneficia-se o arguido.

O in dubio pro reo só vale relativamente a questões de facto e não relativamente a


questões de direito. Prevalece a solução jurídica mais exata. Relativamente aos factos, o
in dubio pro reo, vale sem reservas para qualquer circunstância relevante para a
efetivação da responsabilidade criminal e para a determinação da sanção, designadamente
elementos fundamentadores e agravantes, atenuantes, causas de exclusão da ilicitude e da
culpa, entre outras.

No nosso caso o tribunal deveria começar por dar uso aos seus poderes de
investigação previstos no artigo 340.º, nº 1 CPP, ordenando a obtenção de todos os meios
de prova que pudessem corroborar e dar coerência ao relato de C. Não sendo possível
ultrapassar o estado de dúvida, a única opção que o tribunal tinha era dar como
completamente provados os factos narrados por C na medida em que eles eram favoráveis
ao arguido.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 104


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Nota: O funcionamento do princípio in dubio pro reo, nem sempre é muito óbvio.
Mas o pressuposto é este à Se em relação a algum facto apontado ao arguido, o tribunal
permaneça num estado de dúvida razoável, quando não tem elementos probatórios que
permitam constatar esse facto, se esse facto for favorável ele é dado como provado, na
dúvida.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 105


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4.6 Princípio da Publicidade – Caso Prático nº 12 (Alíneas a) e


b))
Caso Prático nº 12

e)No
Suponha agora
final do ano que, na audiência
transato, de julgamento,
deu entrada na secção os
doarguidos se remeteram
Ministério Público doao silêncio.
Tribunal
Para colmatar
de Santa Mariaeventuais
da Feiralacunas probatórias,
uma denúncia o juiz-presidente
anónima que dava contaordenou
que A ea B,leitura das
irmãos,
declarações prestadas em inquérito perante a Polícia Judiciária, bem como a inquirição do
aceitavam de forma recorrente objetos em ouro e dinheiro para exercerem a sua
inspetor que conduziu os interrogatórios. Na fundamentação da decisão condenatória que
(suposta) influência junto do Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de X,
entretanto foi proferida pode ler-se: «a convicção do tribunal assenta decisivamente nas
primo daqueles, no sentido de mais facilmente serem aprovados certos pedidos de
declarações prestadas pelos arguidos durante o interrogatório policial, cujo conteúdo,
licenciamento de obras.
valorado nos termos do artigo 127.º CPP, foi confirmado, de modo consistente e credível,
No âmbito
pelo inspetor que do inquérito penal
acompanhou a que
a referida esta notitia
diligência. criminis
Para mais, adeu lugar,
atitude ainda
pouco em Santa e
colaborante
Maria
até da Feira,
mesmo o Juiz
refratária dosdearguidos
Instrução Criminal,
durante a requerimento
a audiência do Ministério
é um elemento Público, a
que corrobora
ordenou sobre
convicção escutas
a suatelefónicas aos aparelhos de A e B, a realização de buscas
culpabilidade».
domiciliárias e a apreensão dos objetos em ouro que fossem encontrados, tudo com
fundamento na suspeita séria da prática de crimes de tráfico de influência (cfr. art.
335.º, n.º 1, al. a), CP). Depois de recolhidos elementos probatórios bastantes, o
magistrado titular do inquérito ordenou a detenção dos dois suspeitos. No
interrogatório que se seguiu, realizado na esquadra da Polícia Judiciária, os suspeitos
foram constituídos arguidos e de imediato confessaram a prática dos crimes que lhes
eram imputados, referindo que os pormenores do “negócio” eram discutidos à mesa,
num restaurante em Oliveira de Azeméis, embora os objetos em ouro e dinheiro fossem
posteriormente entregues na casa de A, no Porto, e de B, em Vila Nova de Gaia.

Findas as investigações, e tendo recolhido indícios suficientes da prática dos


crimes, o Ministério Público deduziu acusação contra A e B pela prática, em coautoria,
de três crimes de tráfico de influência (art. 335.º, n.º 1, al. a), CP), e validou apenas
nesse momento a sua constituição como arguidos.

a) Durante o inquérito, entretanto transitado para o DIAP, foi judicialmente


determinada, a requerimento do Ministério Público, a proibição de contactos entre os
arguidos. Admitindo que o inquérito corre sob segredo de justiça, diga se o defensor
de B poderá aceder aos elementos probatórios constantes dos autos caso pretenda
recorrer da aplicação da medida de coação.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 106


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b) Ultrapassados os prazos legalmente previstos de duração do inquérito, sem que


este tenha sido concluído, o defensor de A pretende consultar imediatamente todos os
elementos dos autos. Poderá fazê-lo?

a)

Está em causa um crime de tráfico de influência. Temos os irmãos A e B que


aceitavam certos objetos em ouro e dinheiro para exercerem a sua (suposta) influência
junto do Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de X, no sentido de mais
facilmente serem aprovados certos pedidos de licenciamento de obras. Realizou-se um
inquérito em Santa Maria da Feira, foram ordenadas escutas, os suspeitos foram detidos,
sendo certo que se apurou que os detalhes dos negócios eram discutidos num restaurante
em Oliveira de Azeméis e que os objetos deveriam ser entregues na casa de A, no Porto
e na casa de B, em Vila Nova de Gaia.

O crime de tráfico de influência tem como bem jurídico protegido a autonomia


intencional do Estado, na construção própria do Dr. Almeida Costa que, entretanto, foi
aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência. Neste crime, alguém habilitado a
praticar certa conduta assume o compromisso de a levar a cabo perante a outra parte,
mediante uma contrapartida de natureza patrimonial ou não patrimonial.

O ato a praticar pela pessoa habilitada tanto pode ser lícito como ilícito. Para que
principio remete esta alínea? Para o princípio da publicidade. Trata-se de um princípio
relativo à forma do processo. Em regra, o processo é público, nos termos do artigo 86.º,
nº 1 CPP, em todas as suas fases, apesar de a CRP impor apenas a publicidade das
audiências de julgamento, nos termos do artigo 206.º CRP. As implicações da publicidade
do processo estão previstas no artigo 86.º, nº 6, nas três alíneas:

• Implica o direito de assistência pelo público aos atos processuais,


nomeadamente ao debate instrutório e audiência de julgamento;
• Direito de crónica à Narração e menção pública dos atos processuais, ou
reprodução dos seus termos pela comunicação social;
• O direito de consulta do processo e obtenção de cópias, estratos e certidões
de partes do processo.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 107


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Que razões justificam a publicidade do processo? Por um lado, a proteção e garantia


do arguido contra a possibilidade de julgamentos secretos e ocultos. Por outro lado, trata-
se de uma forma de garantir a confiança da comunidade na aplicação da justiça. A
publicidade assegura a independência e imparcialidade do processo penal.

A publicidade do processo, não é absoluta, pode sofrer limitações. Em princípio, a


publicidade do processo é mais forte durante a fase de julgamento e mais fraca durante as
fases anteriores.

Durante muito tempo, a regra era de que só a fase de julgamento era totalmente
pública, havendo restrições nas fases anteriores. Depois de 2007, a regra passou a ser a
de publicidade em todas as fases, muito por causa do Caso Casa Pia. Em qualquer uma
das fases processuais a publicidade nunca abrange os dados relativos à reserva da vida
privada dos intervenientes processuais à A identificação, a morada, a religião, etc. Na
jurisprudência publicada online eliminam-se essas referências.

Quanto à fase de julgamento a CRP prevê que ela possa decorrer com exclusão da
publicidade para proteção da dignidade das pessoas e para garantir a moral pública ou o
seu normal funcionamento. Esta situação é materializada no artigo 87.º CPP à O juiz
pode restringir ou excluir a livre audiência pública dos atos processuais.

O direito de crónica, narração e reprodução dos termos processuais pela


Comunicação Social, estão também sujeitos aos limites do artigo 88.º CPP à Não é
permitido, sem prévia autorização, a reprodução de peças processuais ou documentos até
que seja concedida a sentença em primeira instância; a transmissão ou registo de imagens
captadas em atos processuais e publicação da identidade das vítimas em certos crimes, e
a publicação de escutas. Mas nenhuma destas é a principal limitação ao princípio da
publicidade.

4.6.1 Segredo de Justiça

O segredo de justiça é a maior limitação à O processo só pode ficar sujeito a


segredo de justiça durante a fase de inquérito, sendo que pode resultar de um interesse da
investigação, de um interesse de Estado ou pode ter como objetivo a proteção do próprio
arguido. A natureza do crime pode levar a danos para o bom nome, para evitar o
julgamento do arguido em praça pública, etc., mas também pode o segredo de justiça

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 108


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

resultar da ponderação de interesses do assistente ou do ofendido, tendo em conta a


natureza dos crimes e os efeitos sobre a reputação dos visados.

Quanto à iniciativa para submeter o processo a segredo de justiça, a iniciativa pode


ser do arguido, do assistente ou do ofendido, caso em que a decisão é do JIC, ouvindo-
se o MP, nos termos do artigo 86.º, nº 2 CPP, ou pode o MP ter a iniciativa de sujeitar o
processo a segredo de justiça numa decisão que tem que ser validada pelo JIC, no prazo
de 72 horas, sendo que o MP tem que invocar interesse na investigação, ou uma
preocupação com os direitos dos sujeitos processuais, nos termos do artigo 86.º, nº 3 CPP.

Quanto às implicações do segredo de justiça à Por um lado, a proibição de


assistência à prática de atos processuais, e a proibição da tomada de conhecimento do
conteúdo do ato, exceto se o interveniente tiver o direito ou dever de assistir ao ato,
segundo o artigo 86.º, nº 8 CPP. Por outro lado, a proibição de narração de atos
processuais pelos meios de comunicação social e proibição de reprodução nos seus
termos. Finalmente, a proibição de consulta do processo e seus elementos e cópias,
extratos e certidões do processo, a menos que isso seja autorizado, nos termos do artigo
89.º, nº 1 e 90.º, nº 1 CPP.

É possível distinguirmos dois tipos de segredo à Segredo Interno e Externo:

• Segredo Interno à Impede o conhecimento dos autos pelos próprios


intervenientes processuais, pelo arguido, o assistente, as partes civis, etc.;
• Segredo Externo à Impede o conhecimento dos atos pela comunidade em
geral, embora os sujeitos processuais já possam aceder. O segredo vincula
todos os sujeitos processuais e também terceiros que tenham tido contacto
com o processo.

A consequência para a quebra do segredo de justiça, é de âmbito criminal à Crime


de violação de segredo de justiça, previsto no artigo 371.º CP.

Voltando ao nosso caso à Foi determinado pelo JIC a aplicação de uma medida de
coação, de proibição de contactos entre os arguidos, prevista no artigo 200.º, nº 1, alínea
c) CPP. O defensor pretende recorrer da aplicação dessa medida de coação. Pode recorrer?

Artigo 194.º, nº 8 CPP à “Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 6, o arguido


e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação
da medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 109


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residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de


recurso.”

Há uma limitação que resulta da alínea b) do nº 6 do mesmo artigo, de que não há


consulta a esses elementos se daí resultar um perigo para a investigação. Além disso, a
consulta dos elementos do processo cinge-se aos elementos determinantes para a
aplicação da medida de coação, portanto não é a consulta de todo o processo. Além do
mais, podia acontecer que o MP não se opusesse à consulta do processo, caso em que se
aplicaria o artigo 89.º, nº 1 CPP e o arguido, poderia proceder a essa consulta.

Nota: Estão indicados na coletânea da AEFDUP os acórdãos que julgaram


inconstitucional a antiga redação do artigo 194.º, que impedia a consulta dos autos.
Acórdão 121/97 e depois o 416/2003 e 417/2003, este último relacionado com o processo
Casa Pia.

b)

O crime de tráfico de influência é altamente organizado à Artigo 1.º, m) CPP.


Admite-se a prorrogação por 3 meses. Ultrapassados todos os prazos, ultrapassado o
prazo máximo de duração de inquérito, ultrapassada a possibilidade de prorrogação por 3
meses e ainda uma prorrogação a fixar pelo juiz para determinado tipo de criminalidade,
como fica o segredo de justiça?

O segredo de justiça interno cai à Artigo 89.º, nº 6 CPP à O arguido, o assistente e


o ofendido passam a ter acesso aos documentos, mas mantém-se o segredo externo. A
partir daí o processo passa a poder ser consultado pela comunidade.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 110


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4.7 Princípios relacionados com o processo civil

4.7.1 Princípio da Adesão – Caso Prático nº 14 (alínea d))

Caso Prático nº 14

No final do inquérito tramitado no Departamento de Investigação e Acção Penal


do Porto (DIAP), foi deduzida acusação contra A pela prática de um crime de ofensa
à integridade física agravado pelo resultado morte (arts. 143.º, n.º 1, e 147.º, n.º 1, do
CP). Apurou-se que A e B se envolveram numa discussão no interior do mercado
municipal da Póvoa de Varzim, tendo A atingido B com uma navalha de estripar peixe,
com o propósito consumado de o atingir corporalmente. Os ferimentos causados à
vítima resultaram na sua morte após quatro dias de internamento no Hospital de S.
João no Porto.

d) C pretende ainda obter de A o pagamento de uma indemnização por danos não


patrimoniais decorrentes da morte de B. Poderá formular o correspondente pedido no
processo penal? De que prazo dispõe?

O irmão morre, é assassinado, e C pretende uma indemnização por danos não


patrimoniais. Pode formular esse pedido no processo penal? Que princípio é que está em
causa?

Princípio da Adesão à Artigo 71.º CPP. Nos termos desse artigo o pedido de
indemnização cível fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal
respetivo. Só pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil nos casos
expressamente previstos no artigo 72.º CPP.

Com muita frequência os factos que são objeto do processo penal podem ser também
ser fundamento da responsabilidade civil, por factos ilícitos, nos termos do artigo 483.º
CC.

A indemnização por danos e perdas emergentes de um crime é regulada no CC,


conforme determina o artigo 129.º CP à As regras aplicáveis à indemnização cível são
as previstas no CC, de onde decorre que as responsabilidades criminal e civil não são

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 111


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necessariamente idênticas do ponto de vista subjetivo à O lesado pode não ser


somente o ofendido, e o lesante/responsável civil pode não ser somente o arguido, por
exemplo, nos casos em que a responsabilidade foi transferida para uma seguradora. Por
outro lado, a responsabilidade civil pode existir ainda que o arguido seja absolvido do
crime, na medida em que são responsabilidades independentes com critérios
independentes. Esta independência decorre do artigo 84.º CPP, e do artigo 377.º CPP.

Que sistemas existem para resolver a questão da cumulação da responsabilidade penal


com responsabilidade civil?

• Sistema da identidade à Não há nenhuma diferença e todas as questões são


resolvidas no processo penal;
• Sistema de independência absoluta à Organizam-se processos distintos,
para se conhecer cada uma das responsabilidades, a criminal e a civil;
• Sistema da interdependência.

Entre nós a regra é a da identidade ou adesão expressa no artigo 71.º CPP, o que
significa que o tribunal penal é via de regra, competente para conhecer quer da
responsabilidade civil quer criminal, sendo que esse duplo reconhecimento é obrigatório
exceto nos casos previstos no artigo 72.º CPP, em que a lei determina que podem ser
deduzidos pedidos em separado. Que exceções são essas ao princípio da adesão? Há
várias, e estão previstas no artigo 72.º CPP:

“a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar
da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;

b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o


procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;

c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;

d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou
não forem conhecidos em toda a sua extensão;

e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil,


nos termos do artigo 82.º, n.º 3;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 112


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente


civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa ação, a intervenção principal
do arguido;

g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o


processo penal correr perante tribunal singular;

h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;

i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no


processo penal ou notificado para o fazer, nos termos dos artigos 75.º, n.º 1, e 77.º, n.º
2.”

O Sr. Professor chama a atenção para a alínea c), quando o procedimento depender
de queixa ou acusação particular, atendendo à sua conjugação com artigo 72.º, nº 2 CPP.
Nos crimes semi-públicos e particulares em sentido estrito, se o lesado deduzir
previamente, antes de apresentar a respetiva queixa, um pedido de indemnização cível
junto dos tribunais cíveis, isso equivale à renúncia do direito de queixa. Neste tipo de
crimes se o ofendido, titular do direito de queixa, tiver interesse no processo criminal,
tem que primeiro deduzir a respetiva queixa e só depois é que pode deduzir em separado
o pedido de indemnização cível.

Atenção que estes casos do artigo 72.º, nº 1 CPP, são meras faculdades à O lesado
pode deduzir um pedido de indemnização cível em separado, mas não está obrigado a
fazê-lo, pode na mesma deduzir no processo penal.

Quem é que tem legitimidade para deduzir o chamado PIC à Pedido de


Indemnização Cível? Nos termos do artigo 74.º, nº 1 CPP, tem legitimidade a pessoa
que sofreu os danos do crime ainda que não possa constituir-se como assistente.

C, teria legitimidade para deduzir o PIC? Podia considerar-se como lesado? É preciso
procurar o fundamento da legitimidade de C no CC à Nos termos do artigo 496.º, nº 2 e
3 CC, C poderia ter legitimidade. Se B não tivesse nem cônjuge, filhos ou pais, ou avós,
podia de facto C, o irmão, deduzir o pedido de indemnização cível.

Nota: O Sr. Professor aconselha no artigo 74.º CPP fazermos uma remissão para o
artigo 495.º e 496.º CC.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 113


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Quanto ao prazo para dedução do PIC à É preciso atender ao dever de informação


que está previsto no artigo 75.º CPP à Os OPC, logo que tenham conhecimento da
existência de eventuais lesados têm que lhes informar da possibilidade de deduzir um
pedido de indemnização cível e as formalidades a observar, sendo que quem tiver sido
informado pode não deduzir imediatamente e depois manifestar o interesse em deduzir o
pedido, ou seja, manifestar o propósito de deduzir o pedido à Atendendo a esta
circunstância a contagem dos prazos para a dedução do PIC podem ser distintos. Estão
previstos no artigo 77.º CPP:

Se o lesado for o MP em representação do Estado ou o assistente, o PIC tem de ser


deduzido, em requerimento, no prazo em que a acusação deva ser formulada. No caso do
MP, no prazo de acusação pública, no caso do assistente no prazo da acusação ancilar ou
acusação particular.

Atenção à Isto não significa que o assistente tenha de deduzir acusação ancilar para
que possa deduzir o PIC. O que significa é que o prazo é o mesmo. Durante o prazo para
a acusação ancilar, decorre prazo para a dedução do PIC. Se o assistente for deduzir uma
acusação ancilar dita a economia processual que faça tudo no mesmo requerimento. Se
não for deduzir acusação particular, entrega só o requerimento do PIC;

Se o lesado tiver manifestado o propósito de deduzir o PIC, nos termos do artigo 75.º,
nº 2 CPP, ele deve fazê-lo após 20 dias de ter sido notificado da acusação ou da pronúncia.
Se o lesado não tiver manifestado o propósito de deduzir o PIC tem 20 dias, após o arguido
ter sido notificado da acusação ou pronuncia para deduzir.

No nosso caso, C ia constituir-se assistente para deduzir uma acusação ancilar à do


MP. Assim, era nessa peça processual que ele deveria deduzir o PIC e tinha um prazo de
10 dias, nos termos do artigo 284.º, nº 1 CPP. Se C, por hipótese não fosse deduzir a
acusação ancilar, dispunha na mesma dos 10 dias, mas deduziria o PIC por requerimento
autónomo. Se não se tivesse constituído como assistente tinha um prazo de 20 dias, nos
termos do artigo 72º, nº 2 e 3 CPP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 114


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4.7.2 Princípio do Pedido – Caso Prático nº 14 (Alínea e) e f))

Caso Prático nº 14

e) Poderá o tribunal condenar o arguido numa indemnização superior à


peticionada, se considerar que os danos sofridos o justificam? E se o tribunal condenar
numa indemnização inferior à peticionada, que poderá C fazer depois de esgotados
todos os recursos na parte penal?

f) Admita agora que C não deduziu pedido cível no processo-crime e que A veio
a ser condenado pelo crime imputado. Poderá o tribunal condenar oficiosamente o
arguido no pagamento de uma reparação a C? E se não o fizer, pode ainda C deduzir
pedido cível em separado?

e)

Vigora o Princípio do Pedido à O tribunal cível não pode condenar em espécie


diferente ou quantidade superior à que tiver sido peticionada pelo autor à É a chamada
proibição da condenação extra vel ultra petitum.

Se o tribunal o fizer, a sentença é nula nos termos do artigo 615.º, e) CPC, ou nos
termos do artigo 379.º, nº 1, alínea c) CPP. E pode o tribunal condenar numa
indemnização inferior à peticionada? Pode, uma vez que a proibição só se aplica ao
limite máximo. Nada impede que o tribunal condene em menos do que aquilo que foi
peticionado. E se C não se conformasse com esta condenação com um valor inferior
aquele que tinha sido peticionado, ele podia recorrer aos tribunais civis para intentar uma
nova ação de responsabilidade civil?

Nos termos do artigo 84.º CPP a decisão penal que conhecer do pedido civil constitui
caso julgado. No processo civil existiria uma exceção dilatória do caso julgado que
impedia o conhecimento do mérito desse processo. Se C não se conformar com o
montante de indemnização que é fixado, o que é que ele pode fazer?

Pode recorrer, mas tem de estar ciente que as regras que se aplicam ao recurso da
decisão civil, são diferentes das regras que se aplicam ao recurso da decisão penal,
nomeadamente em matéria da alçada.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 115


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Exemplo: Neste caso em que C é condenado, e a indemnização fixada é 5.000, mas


ele pede 20.000, a decisão é recorrível até ao Tribunal da Relação, e não até ao STJ porque
não tem alçada para isso. As regras que se aplicam aos recursos do processo civil aplicam-
se também aqui no segmento da decisão em matéria cível. Resulta do artigo 400.º, nº 3
CPP à Mesmo quando não seja admissível recurso quanto à matéria penal pode ser
intentado recurso da sentença relativa à indemnização civil, mas por força do nº 2 é
preciso atender ao valor do pedido e às alçadas dos tribunais. Nos tribunais de 1ª instância
a alçada é de 5.000 euros, já na 2ª instância a alçada é de 30.000 euros.

f)

Isto remete para o artigo 82.º-A CPP, com a epígrafe “reparação da vítima em casos
especiais”. A reparação é decretada pelo tribunal oficiosamente, sem dependência de
pedido, quando não tenha havido a dedução do PIC no processo penal, ou em separado,
e quanto existirem especiais exigências de proteção da vítima.

Segundo a doutrina, nomeadamente o Prof. Dr. Germano Marques da Silva, esta


reparação não se trata do pagamento de uma indemnização cível, mas de uma espécie de
efeito civil da condenação penal. O arguido é condenado e tem de reparar a vítima. A
quantia da reparação é determinada pelo juiz, o obrigado ao pagamento é sempre o
responsável penal, o condenado, nunca é o responsável civil, e se houver lugar à
atribuição desta reparação excecional ela depois é tida em conta, ou seja, descontada
aquando da dedução de uma ação de responsabilidade civil, nos termos do artigo 82.º-A,
nº 3 CPP.

Quanto ao conceito de vítima, está previsto no artigo 67.º-A CPP à Resulta que C
podia ser considerado vítima, logo em abstrato tinha legitimidade para ser o beneficiário
desta reparação extraordinária oficiosa a determinar pelo tribunal, mas era uma questão
de saber se existia aqui alguma exigência especial de proteção da vítima. Podíamos
hipoteticamente considerar que sim.

Segunda parte da pergunta à E se o tribunal não determinar a reparação da vítima


em casos especiais, pode ainda ser deduzido pedido cível em separado? Já vimos que sim,
se tivesse prevista alguma das hipóteses previstas no artigo 72.º, nº 1 CPP. Se não
estivesse preenchida nenhuma dessas situações, C não o poderia fazer, e se o fizesse o

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 116


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tribunal civil seria incompetente em razão de matéria o que daria origem à absolvição da
instância à Seria um caso de incompetência absoluta.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 117


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5. Competência
5.1 Introdução
Quanto à matéria da competência no processo penal ou princípio da jurisdição, nos
termos do artigo 202.º e 29.º CRP, só os tribunais podem reprimir a violação da
legalidade democrática e só eles podem aplicar definitiva e coercivamente uma pena
ou medida de segurança à Artigo 8.º CPP.

Portanto, existe uma reserva de competência dos tribunais para aplicação de penas e
medidas de segurança. Etimologicamente, jurisdição significa o poder de dizer o direito
e a jurisdição designa genericamente a função de julgar atribuída ao conjunto dos
tribunais.

Jurisdição e competência são conceitos dependentes, a competência corresponde


à parcela ou fração entregue a cada concreto tribunal e juiz específico, em função das
normas de distribuição e repartição da competência. Entre jurisdição e competência não
se estabelece nenhuma diferença qualitativa, mas quantitativa, a competência determina
o quantum de jurisdição atribuído a cada tribunal e juiz. A matéria da competência
encontra-se prevista no CPP entre os artigos 10.º e 38.º CPP.

Segundo o CPP, a fixação da competência do tribunal penal tem de ter em atenção


três tipos de competência:

• Material;
• Funcional;
• Territorial.

5.2 Competência Material


Delimita a jurisdição penal dos vários tribunais em razão ou da natureza dos crimes
ou da gravidade da moldura penal aplicável ou da qualidade dos arguidos, que vai dar
origem a um critério:

• Quantitativo à Reporta à gravidade do crime, às molduras penais aplicáveis;


• Qualitativo à Reporta à natureza do crime;
• Subjetivo à Reporta ao agente do crime.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 118


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No fundo está essencialmente em causa a repartição dos processos pelas diferentes


espécies de tribunais de 1ª instância à Tribunal de júri, tribunais coletivos e tribunais
singulares.

Os critérios derrogam-se uns aos outros, começamos pelo critério subjetivo e se o


caso se puder subsumir a este critério é ele que define a competência material. Se não for
aplicável passamos para o critério qualitativo, e se se poder subsumir a este critério
derroga o critério quantitativo. Na falta de todos os outros, quem decide a competência
material é o critério quantitativo, trata-se de um critério supletivo.

Em sede de determinação de competência material podem ser adotados dois métodos


distintos:

• Determinação abstrata da competência;


• Determinação concreta da competência.

O nosso legislador usa ambos. De acordo com o primeiro, o critério de determinação


abstrata, a competência decorre imediata e incondicionalmente das regras legais, que ora
fixam a competência por apelo à natureza do crime ou qualidade do agente ou por apelo
à moldura penal abstrata. Sempre que o legislador recorre a este método (Artigo 15.º CPP)
para determinação da pena abstrata são tidas em conta todas as situações agravantes, para
que a pena seja o mais alta possível.

Segundo o critério de determinação concreta, a competência material determina-se


em função da pena máxima que previsivelmente virá a ser aplicada ao caso, havendo juízo
prévio quanto à pena a aplicar feito pelo MP.

Assim, no critério de determinação abstrata da competência, trata-se de medidas


previstas. No critério de determinação concreta da competência, o MP diz em concreto
qual é a pena que quer ver aplicada aquele agente e é essa que determina a competência
material. Isto acontece, por exemplo, quando o MP numa moldura penal abstrata que vai
para além dos 5 anos, diz que não pretende aplicar uma pena superior a 5 anos.

5.2.1 Critério quantitativo

A competência do tribunal de júri está fixada no artigo 13.º, nº 2 CPP à “Compete


ainda ao tribunal do júri julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo Tribunal
singular e tendo a intervenção do júri sido requerida pelo Ministério Público, pelo

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 119


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assistente ou pelo arguido, respeitarem a crimes cuja pena máxima, abstratamente


aplicável, for superior a oito anos de prisão.” à Os tribunais de júri são competentes
para crimes cuja pena abstrata seja superior a 8 anos, mas só se a intervenção for requerida
pelo MP, arguido ou assistente, a intervenção do tribunal de júri tem de ser requerida.

Ainda neste critério, a competência do tribunal coletivo, está prevista no artigo 14.º,
nº 2 CPP à “Compete, ainda, ao tribunal coletivo julgar os processos que, não devendo
ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes: a) Dolosos ou agravados pelo
resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa; ou b) Cuja pena máxima,
abstratamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de
concurso de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime.” à
Crimes com pena máxima abstrata superior a 5 anos de prisão e crimes que não sejam
julgados no tribunal de júri.

A competência do tribunal singular está prevista no artigo 16.º, nº 2, b) CPP à


“Compete também ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que
respeitarem a crimes: a) Previstos no capítulo II do título V do livro II do Código Penal;
ou b) Cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja igual ou inferior a cinco anos de
prisão.” à Crimes com pena máxima abstrata igual ou inferior a 5 anos de prisão e crimes
que sejam da competência do tribunal coletivo de acordo com o critério quantitativo,
quando o MP usando o método de determinação concreta entender que ao caso não deva
ser aplicada em concreto, pena superior a 5 anos, casos em que o tribunal singular não o
pode fazer porque seria incompetente à Artigo 16.º, nº 3 e 4 CPP.

O critério quantitativo é supletivo, se nenhum dos outros se aplicar é este que vai
determinar qual é o tribunal materialmente competente.

5.2.2 Critério qualitativo

A competência do tribunal de júri, prevista no artigo 13.º, nº 1 CPP abrange os crimes


contra a paz e identidade cultural e identidade pessoal (Artigos 236.º a 256.º CP), crimes
contra a segurança do Estado (artigo 308.º a 386.º CP) crimes tipificados na lei relativa à
violação do direito internacional humanitário (Lei 31/2004).

Nota: Fazer remissão no artigo 13.º, nº 1 CPP para os artigos do CP e Lei 31/2004.

Mais uma vez, para que o tribunal de júri possa ser competente é necessário que a sua
intervenção seja requerida pelo MP, arguido ou assistente. Como estamos no âmbito do

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 120


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critério qualitativo é indiferente a moldura penal, o tribunal de júri é competente em


função da natureza do crime, independentemente da moldura penal respetiva.

Competência do tribunal coletivo ao abrigo do critério qualitativo à Artigo 14.º, nº


1 e 2, a) CPP. Para que crimes é que o tribunal coletivo é competente à Crimes da mesma
natureza dos crimes do tribunal de júri, mas em que a intervenção do tribunal de júri não
tenha sido requerida. Além destes, o tribunal coletivo é também competente para os
crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma
pessoa, independentemente da moldura penal.

Finalmente, o tribunal singular é competente nos termos do artigo 16.º, nº 1 e 2, a)


CPP para julgar os crimes contra a autoridade pública à Artigos 347.º e 348.º CP.

Nota: O tribunal singular tem uma competência residual para julgar todos os
processos que não caibam na competência dos tribunais de outra espécie à Artigo 16.º,
nº 1 CPP.

5.2.3 Critério Subjetivo

Quanto ao critério subjetivo, trata de casos em que os tribunais de graus superiores,


não de 1ª instância, vão atuar como tribunal de 1ª instância para conhecer de crimes
praticados por certos agentes detentores de cargos públicos ou jurisdicionais (certas
qualidades do agente). O que está em causa é a preservação da dignidade dos cargos e a
garantia de que são julgados por pessoas mais experientes.

Competência do Pleno das Secções Criminais do STJ à Artigo 11.º, nº 3 CPP à


Crimes praticados pelo Presidente da República, Primeiro-Ministro e Presidente da
Assembleia da República no exercício de funções.

Competência das Secções Criminais do STJ à Artigo 11.º, nº 4 CPP à Crimes


cometidos por juízes do STJ, Tribunais das Relações ou Magistrados do MP que exerçam
funções nesses tribunais.

Competência das Secções Criminais do Tribunal da Relação à Artigo 12.º, nº 3


CPP à Juízes de direito e procuradores do MP.

Sempre que se verificar uma destas situações, o critério subjetivo derroga todos os
outros.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 121


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5.3 Competência Funcional


Delimitação da jurisdição penal dos vários tribunais materialmente competentes para
conhecer certo processo-crime em função de dois critérios:

• Critério funcional por graus à Competência em razão de hierarquia e


corresponde à delimitação do tribunal competente para examinar a decisão
proferida por outro órgão jurisdicional. Temos de considerar os tribunais de
1ª instância e o JIC, tribunais de 2ª instância, os tribunais da relação e o
tribunal de 3º grau, o STJ;
• Critério funcional por fases à Delimita a competência ao longo das várias
fases do processo:
o Fase de inquérito e instrução à JIC à Artigos 17.º e 288.º CPP
respetivamente;
o Fase de julgamento à Tribunais judiciais;
o Fase de Recurso à Tribunais superiores (critério por graus);
o Fase de execução à Tribunal de execução de penas.

5.4 Competência Territorial


Delimita a jurisdição penal, repartindo as causas penais pelos diversos tribunais da
mesma espécie em função do lugar do crime.

A regra consta do artigo 19.º, nº 1 CPP à A competência pertence ao tribunal em


cuja área se tiver verificado a consumação. A escolha deste critério justifica-se por vários
fatores, nomeadamente a facilidade da recolha da prova e ser o local onde se verificou a
consumação, o lugar onde é necessário afirmar a vigência contra-fáctica da norma.

Para conseguirmos determinar a competência territorial, há que previamente perceber


se estamos perante um crime de resultado ou um crime de mera atividade. No crime de
resultado, o lugar da consumação corresponde ao lugar da verificação do resultado típico,
no crime de mera atividade, a consumação ocorre no lugar onde o agente atuou ou em
caso de omissão, onde devia ter atuado.

Além deste critério, que é a regra geral, existem critérios supletivos previstos até ao
artigo 23.º CPP, como os crimes de resultado que compreendem como elemento típico a
morte da pessoa, essencialmente por causa dos hospitais (evitar que viesse a ser

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 122


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

competente o tribunal da zona do hospital), crimes habituais, de execução continuada ou


crimes duradouros, critérios para a tentativa e atos preparatórios, etc.

Resumindo à A competência material diz se é competente tribunal coletivo, singular


ou de júri. A competência funcional diz-nos qual é o tribunal competente em função da
fase do processo e depois em função da hierarquia. A competência territorial diz-nos de
entre todos os tribunais competentes ao abrigo dos outros critérios, qual o tribunal
competente em concreto em função do local.

5.5 Competência por conexão


Artigo 24.º e seguintes CPP à Esta matéria sofreu alterações. O CPP parte do
princípio geral de que a cada crime corresponde um processo para o qual é competente
um tribunal de acordo com as regras da competência material à Um crime, um agente,
um processo. Todavia, esta regra admite exceções à Casos em que são conhecidos e
julgados vários crimes ou vários agentes.

O que está em causa é a existência, entre esses crimes, de uma certa ligação que torna
conveniente a sua apreciação conjunta. Essencialmente são três os fundamentos de
conexão:

• Quando vários crimes tenham sido praticados pelo mesmo agente à Artigo
24.º, nº 1, a) e b) e artigo 25.º CPP à Conexão pessoal ou subjetiva à
Unidade do agente, um só agente pratica vários crimes;
• Quando vários agentes participem no mesmo crime à Artigo 24.º, nº 1, c)
CPP à Conexão de tipo material ou objetiva à Pluralidade de crimes ou
agentes, relacionada através do conteúdo das infrações;
• Vários crimes praticados por diferentes agentes, mas que tenham uma
ligação especial entre si à Artigo 24.º, nº 1, d) e e) CPP.

Não obstante a verificação de um destes fundamentos, a sua operância em concreto


só se verifica se não existir nenhum dos obstáculos legalmente previstos à conexão dos
processos à São quatro:

• O primeiro está previsto no artigo 24.º, nº 2 CPP à A conexão só opera até


à fase de julgamento, sendo, por isso, inadmissível na fase de recurso;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 123


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

• O segundo consta do artigo 24.º, nº 2 CPP à Os processos a conexionar têm


de estar na mesma fase processual;
• O terceiro é uma novidade (Lei 94/2021) à Artigo 24º, nº 3 CPP à Só opera
quando não seja previsível que sejam ultrapassados os prazos máximos da
instrução ou quando não seja previsível que da conexão resulte o retardamento
excessivo. Está essencialmente em causa uma preocupação do legislador com
os megaprocessos, isto é, de evitar que estes levem a uma duração
inadmissível do processo-crime. Se no momento em que é deduzida acusação
ou antes for previsível que aquele processo vai levar a que sejam incumpridos
os prazos de duração máxima da instrução ou o retardamento excessivo da
fase processual ou da audiência de julgamento, então não há conexão;
• Nenhum dos processos pode ser da competência dos tribunais de menores à
Artigo 26.º CPP.

5.5.1 Conexão Homogénea e Heterogénea

A conexão pode ser:

Homogénea à Quando a conexão só afeta as regras da competência territorial, na


medida em que para todos os crimes seriam competentes tribunais da mesma espécie e
hierarquia à Diferentes competências territoriais, nestas hipóteses à Artigo 28.º CPP
à “Se os processos devessem ser da competência de tribunais com jurisdição em
diferentes áreas ou com sede na mesma comarca, é competente para conhecer de todos:
a) O tribunal competente para conhecer do crime a que couber pena mais grave; b) Em
caso de crimes de igual gravidade, o tribunal a cuja ordem o arguido estiver preso ou,
havendo vários arguidos presos, aquele à ordem do qual estiver preso o maior número;
c) Se não houver arguidos presos ou o seu número for igual, o tribunal da área onde
primeiro tiver havido notícia de qualquer dos crimes.”

Heterogénea à São competentes para os diferentes processos, tribunais de espécies


ou hierarquias distintas, por exemplo para um processo é competente o tribunal singular
e para outro o tribunal coletivo à Artigo 27.º CPP à É sempre competente o tribunal da
espécie ou hierarquia mais elevada.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 124


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5.6 Resolução dos casos práticos 12 (Alínea d)), 13 (Alínea


a)) e 14 (Alíneas a) e b))
Caso Prático nº 12

No final do ano transato, deu entrada na secção do Ministério Público do Tribunal


de Santa Maria da Feira uma denúncia anónima que dava conta que A e B, irmãos,
aceitavam de forma recorrente objetos em ouro e dinheiro para exercerem a sua
(suposta) influência junto do Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de X,
primo daqueles, no sentido de mais facilmente serem aprovados certos pedidos de
licenciamento de obras.

No âmbito do inquérito penal a que esta notitia criminis deu lugar, ainda em Santa
Maria da Feira, o Juiz de Instrução Criminal, a requerimento do Ministério Público,
ordenou escutas telefónicas aos aparelhos de A e B, a realização de buscas
domiciliárias e a apreensão dos objetos em ouro que fossem encontrados, tudo com
fundamento na suspeita séria da prática de crimes de tráfico de influência (cfr. art.
335.º, n.º 1, al. a), CP). Depois de recolhidos elementos probatórios bastantes, o
magistrado titular do inquérito ordenou a detenção dos dois suspeitos. No
interrogatório que se seguiu, realizado na esquadra da Polícia Judiciária, os suspeitos
foram constituídos arguidos e de imediato confessaram a prática dos crimes que lhes
eram imputados, referindo que os pormenores do “negócio” eram discutidos à mesa,
num restaurante em Oliveira de Azeméis, embora os objetos em ouro e dinheiro fossem
posteriormente entregues na casa de A, no Porto, e de B, em Vila Nova de Gaia.

Findas as investigações, e tendo recolhido indícios suficientes da prática dos


crimes, o Ministério Público deduziu acusação contra A e B pela prática, em coautoria,
de três crimes de tráfico de influência (art. 335.º, n.º 1, al. a), CP), e validou apenas
nesse momento a sua constituição como arguidos.

d) Refira qual o tribunal competente para o julgamento, pronunciando-se, em


especial, sobre a verificação ou não de algum fundamento de conexão processual.
Poderá o julgamento ser efetuado pelo tribunal de júri?

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 125


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

d)

Qual é o tribunal competente neste caso?

O crime de tráfico de influência encontra-se previsto no artigo 335.º CP e é punido


com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa porque aqui estavam em causa atos lícitos
à Trata-se de criminalidade altamente organizada, nos termos da alínea m) do artigo 1.º
CPP.

Nota: A competência funcional não vai ter interesse aqui, estamos perante a fase de
julgamento.

Competência material à O critério subjetivo não era aplicável. E o critério


qualitativo podia ser aplicado? Sim, a competência material afere-se de acordo com o
critério qualitativo.

A CRP determina no artigo 207.º, nº 1 CPP que o tribunal de júri não pode conhecer
crimes de determinada natureza, nomeadamente crimes de terrorismo e criminalidade
altamente organizada como é o caso do crime de tráfico de influência. A competência do
tribunal de júri está limitada constitucionalmente quanto a estes crimes. O único tribunal
materialmente competente para este processo era o tribunal coletivo, nos termos do artigo
14.º, nº 1 CPP.

Passamos então à competência territorial à Há muitos tribunais coletivos no país,


qual seria o concreto tribunal coletivo competente aqui? O critério geral é que é
competente o tribunal do lugar da consumação. As negociações faziam-se em Oliveira de
Azeméis e a entrega das vantagens patrimoniais realizavam-se no Porto ou em Vila Nova
de Gaia. O crime é um crime de mera atividade, e assim sendo o crime consuma-se no
lugar onde o agente atuou ou deveria ter atuado, portanto em Oliveira de Azeméis à Era
competência do tribunal coletivo da área de Oliveira de Azeméis.

Nota: Se quiséssemos determinar com rigor ainda tínhamos outros passos. É o


tribunal coletivo da área de Oliveira de Azeméis à Para efeitos de exame isto seria
suficiente, mas na verdade há mais algumas questões. O país está dividido numa série de
comarcas que correspondem de grosso modo aos distritos, com a exceção de Porto e
Lisboa, nos termos da LOSJ. Além disso, há um detalhe, nos termos da lei se for
competente um tribunal singular, isso significa que a competência é diferida a um juízo
local criminal ou um juízo de pequena instância criminal. Se for da competência de

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 126


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

tribunal coletivo ou tribunal de júri a competência pertence a um juízo central criminal,


neste caso à À partida seria o juízo central criminal de Aveiro, mas depois teríamos de
ir à lei e ver qual o juízo central criminal competente para a área de Oliveira de Azeméis
e concluiríamos que seria competente o juízo central criminal de Santa Maria da Feira.

Temos 2 arguidos, A e B, e cada um deles foi acusado por 3 crimes à Pela regra,
teríamos de organizar 6 processos, a menos que houvesse algum fundamento de conexão
à Artigo 24.º, b) CPP à Fundamento material ou objetivo e, portanto, organizar-se-ia
apenas 1 processo para conhecer todos estes crimes, em concreto não se verificava
nenhum obstáculo à conexão, pelo menos aparente. Por fim, tratava-se de conexão
homogénea ou heterogénea?

Homogénea à Os crimes seriam todos julgados pelo mesmo tribunal.

Caso Prático nº 13

A, Juiz Desembargador no Tribunal da Relação de X, foi acusado pela prática de


crime de peculato (cf. arts. 375.º, n.º 1, e 386.º, n.º 1, al. c), do CP), por ter incumbido
B, advogado, de elaborar os acórdãos de que era relator, serviços que eram pagos à
custa de uma avença suportada pela Instituição Particular de Solidariedade Social e
Utilidade Pública Y, de que A era presidente. B, que exercia as funções de vice-
presidente da mesma instituição, foi também acusado por peculato.

O processo teve origem numa denúncia apresentada por C.

a) Diga, justificando a sua resposta, qual o tribunal materialmente competente para


o julgamento de A e B.

a)

Estamos perante um crime de peculato à Crime específico, ou seja, só há crime de


peculato se o agente for um funcionário, na aceção do artigo 386.º CP. Neste tipo legal, o
funcionário apropria-se ilegitimamente de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou
particular que seja acessível no âmbito das suas funções.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 127


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Tribunal materialmente competente quanto a A à Critério subjetivo à Secções


criminais do STJ à Artigo 11.º, nº 4, a) CPP. As secções criminais assemelham-se a um
tribunal coletivo, na medida em que cada secção é composta por 3 juízes conselheiros.

Tribunal materialmente competente quanto a B à Critério quantitativo à Tribunal


Coletivo à Artigo 14.º, nº 2, b) CPP. Aplicar-se-ia o critério quantitativo, já que o caso
não se subsumia a nenhuma das possibilidades do artigo 13.º, 14.º e 16.º, nº 1 CPP.

Neste caso, existe algum fundamento de conexão que permita que em vez de se
organizar um processo para A e um para B se organize apenas um só processo onde se
vão conhecer os crimes praticados pelos 2 agentes?

Sim, de acordo com o artigo 24.º, nº 1, c) CPP à Comparticipação no crime. A


conexão não é homogénea, para um crime eram competentes as secções criminais do STJ
e para o outro era competente o tribunal coletivo, não eram as regras da competência
territorial que estavam em causa, mas sim as regras da competência em função da
hierarquia à Conexão de tipo heterógena à A solução é nos dada pelo artigo 27.º CPP,
sendo competente o tribunal hierarquicamente superior, o STJ. Concluindo organizar-se-
ia apenas um processo para conhecer os crimes de A e B, sendo competentes as secções
criminais do STJ.

Caso Prático nº 14

No final do inquérito tramitado no Departamento de Investigação e Acção Penal


do Porto (DIAP), foi deduzida acusação contra A pela prática de um crime de ofensa
à integridade física agravado pelo resultado morte (arts. 143.º, n.º 1, e 147.º, n.º 1, do
CP). Apurou-se que A e B se envolveram numa discussão no interior do mercado
municipal da Póvoa de Varzim, tendo A atingido B com uma navalha de estripar peixe,
com o propósito consumado de o atingir corporalmente. Os ferimentos causados à
vítima resultaram na sua morte após quatro dias de internamento no Hospital de S.
João no Porto.

a) Refira qual o tribunal territorial e materialmente competente para o julgamento.

b) No início da audiência, verificou-se que A é também arguido num inquérito


penal por furto simples no Tribunal de Bragança, de onde é natural. Poderão os
processos ser apensados, caso se considere útil, em termos probatórios, o julgamento
conjunto?

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 128


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

a)

Crime de ofensa à integridade física, agravado pelo resultado morte. Não é um


homicídio porque falta o elemento volitivo, a intenção de causar a morte, mas o resultado
verifica-se por erro na execução. A moldura tem como limite máximo os 3 anos de prisão,
mas verificando-se a morte, o limite é agravado em 1/3 à Limite máximo de 4 anos.

O critério subjetivo não é relevante. Já o qualitativo sim à O tribunal competente


seria o tribunal coletivo à Artigo 14.º, nº 2, a) CPP. Aqui era irrelevante a moldura, mas
se esta disposição não existisse seria competente o tribunal singular e para além disso não
podia ser competente o tribunal de júri à Artigo 13.º, nº 1 e 2 CPP.

Territorialmente, o tribunal competente é o tribunal da Póvoa de Varzim, e não o do


Porto, ainda que tenha sido no Porto que se tenha consumado o resultado típico. A regra
é a do artigo 19.º, nº 1 CPP que nos diz que é competente o tribunal do lugar da
consumação do crime, mas estamos perante uma exceção, nos termos do nº 2 do mesmo
artigo à Se for elemento típico a verificação do resultado morte passa a ser competente
o tribunal da área onde o agente atuou, para evitar estas situações onde a vítima vem a
morrer num local diferente onde foi praticado o crime.

Tínhamos de procurar o Juízo Central Criminal, dentro da Comarca do Porto, o juízo


competente para a área da Póvoa de Varzim à Juízo Central de Vila do Conde (instalado
provisoriamente em Matosinhos).

b)

Pode ou não haver conexão nestes processos? Não, não havia crimes cometidos no
âmbito da mesma ação, não eram causa efeito uns dos outros, não se verificava a
possibilidade do artigo 25.º CPP, de haver vários crimes cujo conhecimento seja da
competência dos tribunais com sede na mesma comarca. Não se verificava nenhum
fundamento que justificasse a conexão. Ainda que existisse fundamento de conexão,
verifica-se um obstáculo previsto no artigo 24.º, nº 2 CPP à Os processos não se
encontravam na mesma fase processual. Não havia nenhuma possibilidade de se
apensarem estas ações.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 129


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

6. Sujeitos Processuais
6.1 Defensor – Caso Prático nº 13 (Alínea b))
Caso Prático nº 13

A, Juiz Desembargador no Tribunal da Relação de X, foi acusado pela prática de


crime de peculato (cf. arts. 375.º, n.º 1, e 386.º, n.º 1, al. c), do CP), por ter incumbido
B, advogado, de elaborar os acórdãos de que era relator, serviços que eram pagos à
custa de uma avença suportada pela Instituição Particular de Solidariedade Social e
Utilidade Pública Y, de que A era presidente. B, que exercia as funções de vice-
presidente da mesma instituição, foi também acusado por peculato.

O processo teve origem numa denúncia apresentada por C.

b) No decurso do inquérito, A foi ouvido em declarações perante o JIC


competente, tendo-se recusado a mandatar advogado para o assistir na sua defesa. Quid
iuris?

b)

Neste caso, quem seria o JIC competente? Nestes casos em que a competência
pertence ao STJ, o JIC competente seria um dos juízes que integra a secção criminal à
Artigo 11.º, nº 7 CPP à “Compete a cada juiz das secções criminais do Supremo
Tribunal de Justiça, em matéria penal, praticar os atos jurisdicionais relativos ao
inquérito, dirigir a instrução, presidir ao debate instrutório e proferir despacho de
pronúncia ou não pronúncia nos processos referidos na alínea a) do n.º 3 e na alínea a)
do n.º 4.”

Podia o arguido A prestar declarações perante o JIC, no interrogatório judicial, sem


estar assistido por um defensor, por um advogado?

Não à O artigo 64.º CPP prevê as situações em que é obrigatória a presença de


um defensor. No nosso caso, estava em causa a alínea b). Sendo o JIC uma autoridade
judiciária nos termos do artigo 1.º, nº 1, b) CPP, estavam preenchidos todos os requisitos
para que fosse obrigatória a assistência de A por defensor.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 130


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Mas A era juiz desembargador, tinha conhecimentos técnico-jurídicos, porque é que


não pode abdicar de ter defensor? Está em causa o princípio da proibição da autodefesa,
os arguidos mesmo que não queiram têm obrigatoriamente de ser assistidos por defensor.

Há boas razões para que assim seja. Para quem não tenha conhecimentos jurídicos, é
claro, estando em causa DF dos cidadãos, possibilidade de privação da liberdade ou do
património, entende o legislador e a CRP que o arguido deve ser assistido por alguém que
atue no estrito interesse da justiça e que se seja um órgão da administração da justiça e
um sujeito processual, o defensor. Entende-se que o direito à defesa que assiste ao
arguido, inclui o direito a ser assistido por um defensor.

Para sujeitos como A, com conhecimentos técnico-jurídicos elevados, entende-se que


a assistência por defensor introduz um grau de racionalidade ao processo, o arguido está
demasiado próximo dos factos, emocionalmente envolvido com o processo para que
possa ter uma atitude racional face ao mesmo, coisa que em princípio não acontecerá com
o defensor, que tem um distanciamento face aos factos e uma obrigação deontológica de
não atuar contra legem.

Este princípio é consubstanciado no artigo 64.º CPP, que visa três tipos de situações
em que é obrigatório ter defensor:

• Situações em que há uma posição de maior fragilidade do arguido, que será


o caso da alínea a) e d);
• Situações em que a prática de certos atos pressupõe conhecimentos
técnico-jurídicos, o caso da alínea e);
• Situações em que são praticados atos com eficácia probatória, que seria a
nossa situação no caso e as alíneas b) e f).

No fundo, a defesa, a atuação do defensor é uma obrigação que decorre da lei, sem
ou contra a vontade do arguido.

O defensor pode ser constituído pelo arguido, caso contrário, o tribunal nomear-lhe-
á um defensor oficioso. O arguido pode constituir defensor em qualquer altura do
processo, nos termos do artigo 62.º, nº 1 CPP e não o fazendo, é nomeado, mais tardar
com a dedução da acusação, de acordo com o artigo 64.º, nº 3 CPP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 131


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Também B que era advogado não podia autodefender-se, coisa que já não acontece
no processo civil, os advogados podem atuar em causa própria, embora não seja
aconselhado.

Quanto aos assistentes, também estão obrigados a constituir mandatários, também


não podem defender-se a eles próprios, há uma obrigação do assistente constituir
mandatário, nos termos do artigo 70.º, nº 1 CPP.

6.2 Assistente – Caso Prático nº 13 (Alíneas c), d) e e)) e 14


(Alínea c))
Caso Prático nº 13

A, Juiz Desembargador no Tribunal da Relação de X, foi acusado pela prática de


crime de peculato (cf. arts. 375.º, n.º 1, e 386.º, n.º 1, al. c), do CP), por ter incumbido
B, advogado, de elaborar os acórdãos de que era relator, serviços que eram pagos à
custa de uma avença suportada pela Instituição Particular de Solidariedade Social e
Utilidade Pública Y, de que A era presidente. B, que exercia as funções de vice-
presidente da mesma instituição, foi também acusado por peculato.

O processo teve origem numa denúncia apresentada por C.

c) Suponha que a Instituição Particular de Solidariedade Social e Utilidade Pública


Y pretende constituir-se assistente no processo. Em que termos e prazos poderá fazê-
lo?

d) C e a Associação Cívica Transparência e Integridade desejam também


constituir-se assistentes no processo. Têm legitimidade?

e) Admita agora que A foi absolvido dos crimes imputados e apresentou


imediatamente queixa por denúncia caluniosa contra C. Poderá A constituir-se
assistente no processo a que esta queixa der lugar?

c)

O assistente é outro sujeito processual no processo penal, também tem uma


capacidade de contribuir de forma constitutiva para a declaração do direito do caso, tem
o poder de conformar a marcha processual.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 132


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A figura do assistente é uma particularidade do sistema português, traduz a


preocupação com a vítima, inclusive tem reflexos no artigo 32.º, nº 7 CRP e podem
constituir-se como assistente as pessoas previstas no artigo 68.º, nº 1 CPP. Neste regime
há uma simetria com o artigo 113.º CP que define os titulares do direito de queixa.

Nos termos do artigo 68.º, nº 1, a) podem constituir-se como assistentes:

• Alínea a) à Os ofendidos, aqueles que são titulares dos interesses que a lei
quis especialmente proteger e têm de ser maiores de 16 anos, o que pode levar
à questão, mas afinal qual é a diferença entre o assistente e o ofendido?

Não há muita à A diferença é simples, o ofendido pode ou não constituir-se como


assistente e se não fizer é um mero participante processual, ao passo que o assistente é
um sujeito processual, tem a capacidade de conformar a marcha processual, o ofendido
não tem essa capacidade.

• Alínea b) à Podem constituir-se como assistente também todos os que sejam


titulares do direito de queixa ou as pessoas que devam deduzir acusação
particular, mesmo que sejam distintas do arguido;

Titulares do direito de queixa à Artigo 113.º CP. São distintos no caso de o ofendido
ser menor, incapaz, ter morrido, etc.

• Alínea c) à Morte do ofendido nos casos dos crimes públicos, porque se


estivermos perante um crime semi-público ou particular em sentido estrito, o
fundamento da legitimidade para constituição como assistente retira-se da
alínea b) e não desta alínea, embora a solução seja a mesma;
• Alínea d) à Ofendido ser menor de 16 anos, em termos semelhantes à
titularidade do direito de queixa;
• Alínea e) à Introduz uma novidade à Pode constituir-se como assistente
qualquer pessoa em determinados crimes, como os crimes contra a paz,
humanidade, tráfico de influência, prevaricação, etc. à Esta criminalidade
tem em comum o facto de serem crimes em que está em causa um bem
jurídico supra-individual ou comunitário à Alarga o âmbito daqueles que se
podem constituir como assistente quando estejam em causa bens supra-
individuais cuja violação é particularmente grave para a vida em comunidade.
Nestas situações qualquer pessoa maior de 16 anos pode exercer o direito de

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 133


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

cidadania colaborando na administração da justiça penal. Infelizmente esta


possibilidade, nos processos mediáticos, dá azos a que os jornalistas se
constituam como assistentes.

No nosso caso, Y era a IPSS que pagava à avença e suportava os serviços de B. A era
juiz desembargador e era B que fazia os Acórdãos que A proferia, mas quem pagava era
uma avença suportada por esta instituição de que B era presidente. Y podia constituir-se
como assistente?

Havia sempre a válvula de escape da alínea e), mas nem era preciso, porque Y é
também neste caso ofendida. O crime é duplo no que toca ao bem jurídico tutelado, por
um lado tutela a fidelidade dos funcionários, mas por outro lado tutela também os bens
jurídicos patrimoniais, portanto neste caso era o património da instituição que estava a
ser indevidamente utilizado para pagar a B. Y podia constituir-se como assistente nos
termos do artigo 68.º, nº 1, a) CPP.

E em que prazo é que o poderia fazer? Resulta do artigo 68.º, nº 3 CPP, que o
assistente pode constituir-se como tal em qualquer momento do processo, embora a
lei estabeleça 3 limites temporais, nos termos dos quais já não é possível a constituição
como assistente:

• Até 5 dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento;


• Prazo de dedução da acusação ancilar à do MP, nos termos do artigo 284.º
CPP (10 dias) ou no prazo da abertura de instrução nos termos do artigo 287.º
CPP (20 dias);
• Prazo de interposição de recurso.

O que é que Y teria de fazer processualmente para se constituir como assistente? Teria
de fazer um requerimento, mas um requerimento que endereçava a quem? Quem é que
decide se alguém pode ou não ser assistente no processo? O juiz, mas que juiz? Depende
da fase. Se for durante o inquérito ou instrução é o JIC, se for durante a fase de julgamento
é o juiz de julgamento.

A constituição como assistente paga taxa de justiça, 102€, mas essa taxa pode ser
revista no final do processo e pode chegar aos 1020€. Há sempre a opção de pedir apoio
judiciário.

d)

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 134


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C foi o indivíduo que fez a denúncia. Nos termos do artigo 68.º, nº 1, e), qualquer
pessoa pode constituir-se como assistente para crimes que digam respeito a bens jurídicos
supra-individuais, entre os quais o crime de peculato, e, por isso, quer C, quer a
Associação Cívica poderiam constituir-se como assistentes.

O legislador até incentiva a que estas associações se constituam como assistente,


porque não pagam taxa de justiça.

e)

Crime de denúncia caluniosa à Artigo 365.º CP à Crime contra a realização da


justiça. Ocorre sempre que alguém, por qualquer meio, perante uma autoridade ou
publicamente denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de um
crime, estando consciente de que essa suspeita é falsa, para que seja movido procedimento
criminal contra essa pessoa.

C denunciou A por peculato. A foi absolvido e denunciou C por denúncia caluniosa


e A quer constituir-se como assistente no procedimento criminal movido contra C, pode?

Sim, a jurisprudência tem entendido que neste crime, o denunciado pode constituir-
se como assistente por também ser ofendido. É um crime cujo bem jurídico é duplo. Por
um lado, tutela a boa administração da justiça e por outro a honra da pessoa à Acórdão
8/2006.

A tinha legitimidade enquanto ofendido, para se constituir como assistente à Artigo


68.º, nº 1, a) CPP.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 135


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Caso Prático nº 14

No final do inquérito tramitado no Departamento de Investigação e Ação Penal do


Porto (DIAP), foi deduzida acusação contra A pela prática de um crime de ofensa à
integridade física agravado pelo resultado morte (arts. 143.º, n.º 1, e 147.º, n.º 1, do
CP). Apurou-se que A e B se envolveram numa discussão no interior do mercado
municipal da Póvoa de Varzim, tendo A atingido B com uma navalha de estripar peixe,
com o propósito consumado de o atingir corporalmente. Os ferimentos causados à
vítima resultaram na sua morte após quatro dias de internamento no Hospital de S.
João no Porto.

c) C, irmão de B, pretende constituir-se assistente no processo e acompanhar a


acusação do MP. Poderá fazê-lo? Em que prazo?

c)

B, a nossa vítima, está morto e C é irmão da vítima, podia constituir-se como


assistente no processo? Se não se houvesse nenhum familiar integrado no 1º grupo, podia
o irmão efetivamente constituir-se como assistente, nos termos do artigo 68.º, nº 1, c)
CPP. Regime este idêntico ao previsto no artigo 113.º CP, relativo ao direito de queixa.
De notar que bastava que B tivesse um pai, mãe, etc. para que a legitimidade pertencesse
a essas pessoas. Ainda que esses não se constituíssem como assistentes, C não poderia
fazê-lo.

Quanto ao prazo à Teria de se constituir como assistente, nos termos do artigo 68.º,
nº 3, b) CPP que remete para o artigo 284.º CPP à Prazo de 10 dias após a notificação
da acusação proferida pelo MP, para que o assistente deduza acusação ancilar nesse prazo.
Se assim não fosse, se C não se constituísse como assistente, não poderia acompanhar a
acusação do MP, não poderia deduzir acusação ancilar.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 136


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7. O Problema do Objeto do Processo – Caso Prático nº


15 e 16
É um dos temas mais complicados do processo penal. Pode ser estudado numa
perspetiva teórica e numa perspetiva prática. De uma perspetiva prática as soluções são
muito simples à O decurso do processo penal pressupõe que se identifiquem os factos,
que tendo relevância criminal, podem ser imputados ao arguido no processo. Estes factos,
em conjunto com a própria identidade do arguido e os bens jurídicos violados constituem
aquilo que se designa como objeto do processo. Os factos em torno dos quais se vai
conhecer da responsabilidade podem ser traduzidos por 3 vias:

• Acusação proferida pelo MP;


• Acusação Ancilar à Artigo 284.º CPP, ou Particular à Artigo 285.º CPP;
• RAI à Requerimento de Abertura de Instrução.

Esta problemática do objeto do processo prende-se com a necessidade de os factos


trazidos ao processo terem de ficar cristalizados, ou seja, não sofrerem modificações
sensíveis nas fases subsequentes do processo à Devem ficar cristalizados. No que toca
ao objeto do processo, vigora o efeito da vinculação temática do tribunal à Os factos
descritos na acusação ou na pronúncia fixam e definem o objeto do processo, delimitando
os poderes de cognição do tribunal no âmbito do caso julgado. Deste efeito de vinculação
temática do tribunal aos factos constantes da acusação ou da pronúncia decorrem três
princípios fundamentais:

Princípio da Identidade à Os factos que constituem o objeto do processo devem


se manter os mesmos desde a acusação ou pronúncia, ao trânsito em julgado. Tem de
haver identidade entre o acusado, o conhecido e o decidido. Tem de existir uma
estabilidade da realidade factual levada para o processo nos três momentos à Acusação,
julgamento e decisão;

Princípio da Unidade ou Indivisibilidade à Os factos que compõem o objeto do


processo devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade. Os factos que compõem a
unidade jurídica não podem ser segmentados na sua sequência à Devem ser tratados
conjuntamente;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 137


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Princípio da Consunção à Mesmo quando o objeto do processo não tenha sido


conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, os poderes de
cognição do tribunal esgotam-se não só no efetivamente conhecido e decidido, como
também naquilo que estando em sequência unitária com o acusado e conhecido deveria
ter sido efetivamente apreciado pelo tribunal, ficando preterida a possibilidade do seu
conhecimento autónomo.

O objeto do processo está intimamente ligado à estrutura acusatória do processo,


ao princípio do inquisitório. Há também uma relação com a problemática do princípio
da investigação à O poder-dever conferido ao tribunal de investigar livremente os
factos, está limitado pelo efeito de vinculação temática. Não pode o tribunal investigar
livremente o que não pode conhecer. Esta vinculação temática visa também assegurar as
garantias de defesa do arguido, incluindo o princípio do contraditório e da confiança de
modo a evitar que ele pudesse perante o julgamento ser surpreendido por novos factos
que não haviam sido imputados na acusação.

Finalmente o objeto do processo é ainda fundamental para apurar a existência de


litispendência à A pendência de dois ou mais processos com idêntico objeto e do caso
julgado à Decorrência do princípio ne bis in idem, nos termos do artigo 29.º, nº 5 CRP
à Proíbe que alguém possa ser julgado duas vezes pelo mesmo crime.

Contudo, é preciso reconhecer que as acusações contêm uma narração sintética dos
factos, pelo que é natural que durante o julgamento surjam novos factos que alterem,
complementem ou comprometam o anteriormente descrito na acusação. O objeto do
processo pode apesar do princípio da identidade sofrer algumas modificações entre o
acusado o decidido e julgado, mas só aquelas modificações que a lei permite.

O conhecimento de outros factos pelo tribunal que não tenham sido trazidos ao
processo, pela acusação pública, particular ou ancilar ou pelo RAI, só pode ocorrer dentro
dos limites e regimes fixados no CPP à Artigo 303.º CPP, para a fase de instrução e
artigo 358.º e 359.º CPP para a fase de julgamento. O regime é igual.

Temos de saber qual o critério de identidade do processo à O conceito de identidade


do facto é de natureza material e corresponde a um conceito normativo para o qual
existem diversas teorias. A identidade do objeto pressupõe sempre dois prismas à O

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 138


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prisma subjetivo, quanto ao arguido, e o prisma objetivo à Mesmo crime, mesmos


factos, mesmos bens jurídicos violados. Quanto às três teses:

• Teses Naturalistas à O objeto do processo é o facto na sua existência


histórica;
• Teses Ativistas à O objeto do processo é a concreta e hipotética violação
jurídico criminal;
• Tese Fenomenológica à Defendida pelo Dr. Figueiredo Dias à O objeto do
processo é um recorte, um pedaço de vida, um conjunto de factos em conexão
natural. É um esboço que dá origem a um quadro, sendo que o produto final
não pode ser completamente diferente do esboço, mas podem surgir novos
factos, desde que integrem ainda o mesmo pedaço de vida. Por outro lado, a
decisão não pode transmutar o bem jurídico e não pode haver uma
transmutação da valoração social do crime.

É destas teses que emergem as soluções legais. Para a fase de instrução regula o artigo
303.º CPP, que não vamos estudar autonomamente porque é igual ao regime do
julgamento.

Quanto à fase de julgamento, regulam os artigos 358.º e 359.º CPP à Parte de uma
distinção entre alteração substancial e não substancial dos factos. A este propósito é
necessário analisarmos o conceito de alteração dos factos previsto no artigo 1.º, f) CPP.
É um critério relacional, entre aquilo que é definido na acusação ou pronúncia e aquilo
que se apura durante a fase de julgamento. Existe uma alteração substancial dos factos
sempre que estes tiverem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou o
agravamento dos limites máximos das sanções aplicadas. Apesar de a lei nos dizer quando
há uma alteração dos factos, esta não opera em quatro circunstâncias:

• Quando os factos conhecidos durante o julgamento sejam novos e estranhos


ao objeto do processo à Só existe alteração dos factos quando os factos
conhecidos depois da acusação ou pronúncia ainda estão relacionados com o
objeto do processo. Caso não estejam, não é um problema de alteração dos
factos, são factos novos à Devem ser comunicados ao MP para dar início ao
processo criminal;

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 139


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• Quando os factos levam apenas à alteração dos limites mínimos das


molduras abstratas;
• Quando não se faz prova, falta prova dos factos favoráveis ao arguido, por
exemplo, homicídio a pedido da vítima em que não se prova o pedido nos
termos do CP;
• Alteração da qualificação jurídica.

Vamos ver quais as soluções previstas na lei:

Alteração dos Factos

Alteração Substancial Alteração Não Substancial

Artigo 358º, nº 1 e 2 CPP

Factos Factos
Autonomizáveis Não Autonomizáveis
Artigo 359º, nº 2 Artigo 359º, nº 2 CPP
CPP

Este é o esquema que temos de ter em mente para a resolução de qualquer caso prático
que verse sobre este tema. Tratando-se uma alteração substancial e se os factos novos não
puderem ser autonomizáveis do objeto do processo, determina o artigo 359.º, nº 1 CPP
que os novos factos não podem ser tomados em conta pelo tribunal nem implicam a
extinção da instância atual à Se não forem autonomizáveis, o arguido sai impune.
Nem eles podem dar objeto a um novo processo-crime, nem se extingue aquela instância
atual para se dar início a uma nova. Prende-se com o facto de se entender que o arguido
não pode ser prejudicado por uma falha de investigação do MP. Portanto tem de ser obtida
decisão de mérito sem considerar os novos factos. Ao abrigo da consunção, não pode dar
origem a um processo novo.

Se os factos forem autonomizáveis daquele objeto vale como denúncia os novos


factos, cabendo ao MP iniciar um novo processo criminal. Artigo 359.º, nº 3 CPP à O
chamado caso julgado de consenso à Situação em que existe acordo entre o MP,

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 140


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arguido e assistente para a continuação do julgamento pelos factos novos,


independentemente de serem autonomizáveis ou não.

O objeto do processo pode ser alargado conhecendo-se aí factos que impliquem uma
alteração substancial independentemente de serem autonomizáveis ou não. Nestes casos
concede-se ao arguido um prazo suplementar de 10 dias para a preparação da defesa dos
novos factos, de acordo com o artigo 359.º, nº 4 CPP à Se a alteração dos factos for
simples ou não substancial, o tribunal deve apenas comunicar essa alteração ao arguido
dando-lhe um prazo necessário para a preparação da sua defesa, exceto se os novos factos
forem alegados pela própria defesa à Artigo 358.º, nº 1 e 2 CPP.

A condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou pronúncia acarreta a


nulidade da sentença ou acórdão, de acordo com o artigo 379.º, nº 1, b) CPP.

Quando é que sabemos quando o facto é autonomizável ou não autonomizável?

É autonomizável quando os factos que constituem o quadro fáctico são


completamente distintos do que consta da acusação ou pronúncia. É um novo pedaço de
vida diferente do que compõe o objeto em curso. Eles podem desligar-se daqueles que
compõem o processo em curso e ser integrados num novo processo penal sem violação
do princípio ne bis in idem.

Já os não autonomizávies são aqueles que estão imbricados nos factos da acusação
ou pronúncia, não podem ser destacados face a esse núcleo. Nestes casos, existe uma tal
unidade de sentido que a autonomização não é possível porque esses factos por si só não
poderiam ser objeto de valoração num outro processo penal.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 141


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Caso Prático nº 15

O Procurador-adjunto da Comarca de Vila Real acusou A pela prática de um crime


de homicídio simples na pessoa de B (art. 131.º do CP). Durante a audiência de
julgamento, foram introduzidos elementos probatórios que indicam que B era, afinal,
pai de A, circunstância conhecida deste, mas ignorada pela generalidade das pessoas,
e nunca tida em conta nos autos ou na acusação do Ministério Público.

a) Poderá o tribunal atender ao novo facto para efeitos de condenação do arguido


no processo em curso? Em que termos?

b) Desconsiderando os dados anteriores, admita agora que se descobriu, na fase de


julgamento, que A usou de tortura. Na hipótese de o arguido não dar o seu acordo,
poderá o Ministério Público determinar a abertura de inquérito por ofensas à
integridade física?

a)

No nosso caso prático, estamos perante uma alteração dos factos? Sim e é substancial.
Para além disso, o novo facto, é não autonomizável, aplicando-se o artigo 359.º, nº 1 CPP
à O tribunal não pode ter em conta para a condenação de A o facto de ser filho de B e
não pode extinguir esse processo penal. Tem de desconsiderar a relação de parentesco, a
menos que existisse o caso julgado de consenso, ou seja, o MP, o arguido e o assistente
por acordo entenderem alargar o objeto do processo o que seria improvável.

b)

Sim. Tratar-se-ia aqui de uma alteração de factos ou de uma alteração da qualificação


jurídica? Trata-se de uma alteração de factos, existem circunstâncias de factos que são
introduzidas no processo e não constavam da acusação. Alteração substancial ou não
substancial? Substancial à Artigo 1.º, f) CPP à Ocorre em duas circunstâncias:

• Quando os novos factos resultam na imputação ao arguido de um crime


diverso;
• Tratando-se do mesmo crime, ocorre um agravamento das molduras penais
abstratas nos seus limites máximos.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 142


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

No nosso caso estamos perante um crime diverso. Nos termos do artigo 132.º, nº 2,
d) CP a circunstância de alguém empregar tortura é uma qualificante do homicídio, ou
seja, faz aumentar as molduras penais quer nos limites mínimos quer nos limites
máximos. Era imputado ao arguido um homicídio simples (8 a 16 anos de prisão), mas
com a tortura, passamos para um homicídio qualificado (12 a 25 anos de prisão) à O
limite máximo aumenta com os novos factos que são descobertos na fase de julgamento.

Esta circunstância, o facto de ter havido tortura é autonomizável? Estaríamos perante


um crime complexo em que existe uma relação de especialidade entre um tipo legal e dois
ou mais tipos fundamentais. Neste caso à O crime de homicídio simples como tipo
fundamental é depois qualificado pela circunstância de ter havido tortura, que em si
mesmo constitui autonomamente um crime de ofensa à integridade simples.

Se a tortura tivesse sido alegada, se constasse da acusação, o arguido seria apenas


acusado por crime qualificado na medida em que de acordo com a relação de
especialidade o homicídio qualificado consome a ofensa à integridade física, mas não
constou, a investigação não foi tão completa como deveria ter sido. A maioria da doutrina
aceita a autonomização deste facto quando a vinculação temática do tribunal não permite
que o facto seja conhecido no âmbito daquele processo para efeitos de condenação.
Efetivamente a tortura é suscetível de valoração autónoma num outro processo penal, mas
esta autonomização não é unânime, Paulo de Sousa Mendes entende que os elementos
típicos de um crime não podem ser pulverizados em processos penais independentes.

Vamos admitir que se trata de facto autonomizável à Artigo 359.º, nº 2 CPP à A


comunicação da alteração substancial dos factos ao MP valeria como denúncia, para que
ele procedesse a novos factos. Assim a resposta à questão seria afirmativa.

Nota: Constava do enunciado que o arguido não autorizava que os factos fossem
autonomizados à Não é um caso julgado de consenso. Em sede de exame temos de
ponderar se não constar do enunciado.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 143


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Caso Prático nº 16

Durante cerca de quatro anos, A exerceu o cargo de tesoureiro da junta de freguesia


de Almedina, funções que acumulava com as de funcionário do Banco X no balcão de
Coimbra. Em virtude de tais funções, A era o responsável pela movimentação das
contas da junta de freguesia no Banco X, incumbindo-lhe, por exemplo, depositar as
verbas remetidas em duodécimos pela câmara municipal. Em determinada ocasião, A,
aproveitando-se dessa dupla qualidade, decidiu creditar na sua conta pessoal os
cheques cruzados emitidos pela câmara municipal e dirigidos à junta de freguesia. Para
ocultar o desvio das verbas, A forjou o extrato de conta da junta de freguesia, nele
fazendo constar movimentos e saldos falsos. Por ter sido bem-sucedido na primeira
vez, A resolveu usar deste mesmo método de forma reiterada e, assim, conseguiu
apropriar-se de 19 cheques, no valor total de 17 425,00 Euros.

a) Suponha que o Ministério Público deduziu acusação contra A por furto


qualificado (art. 204.º, n.º 1, al. a), do CP) e falsificação de documento (art. 256.º, n.º
3, do CP), ambos na forma continuada. Quid iuris, na hipótese de se apurar que, para
além dos identificados na acusação, A se havia apropriado do valor de mais um cheque,
e que era coadjuvado por B, gerente de balcão, com quem dividia parte das quantias
de que se apropriava?

b) Depois de ter sido declarada encerrada a audiência, o presidente do coletivo


verificou que A tinha sido acusado por furto qualificado, e não por peculato (art. 375.º
do CP), apesar de a sua qualidade de funcionário ter sido referida na acusação e estar
amplamente documentada nos autos. Poderá o tribunal condenar por peculato? Em que
termos?

a)

Em julgamento é descoberto que A descobriu 20 cheques e além disso que B tinha


comparticipado no crime.

Apropriação de mais um cheque à Trata-se de uma alteração de factos que surge


durante o julgamento. Substancial ou não? Não é alterado o crime nem resulta num
aumento do limite máximo da moldura penal, portanto é uma alteração não substancial
dos factos à Artigo 358.º, nº 1 CPP. Se recorremos às teorias a propósito da identidade

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 144


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

do processo, podemos afirmar que ainda estamos perante o mesmo pedaço de vida,
estamos dentro do rascunho que é feito na acusação. Diria o Dr. Figueiredo Dias que não
há uma alteração substancial do quadro fáctico. Há apenas a descoberta de mais um crime
que integra a continuação. Sendo uma alteração não substancial, competia ao tribunal
comunicar a alteração ao arguido e se ele o requeresse dar-lhe prazo para que ele
preparasse a sua defesa.

Facto de B ter comparticipado no crime com A à Problema que contende com o


objeto do processo ou não? Podia a sentença aproveitar para condenar B também?

Não, B não foi acusado de nada, é estranho a este processo à Estaríamos perante
uma violação flagrante do princípio da acusação, não podemos condenar alguém que
não foi acusado à O tribunal, como decorrência do princípio da acusação, não pode
autonomamente começar uma investigação nem acusar alguém da prática do crime, essa
é tarefa exclusiva do MP. Só por aqui ficava resolvido.

Do prisma do objeto do processo à Vimos 3 elementos do processo:

• Factos;
• Bem jurídico violado;
• Identidade do arguido.

Os dois primeiros dizem respeito ao crime, a identidade do arguido corresponde ao


requisito subjetivo. Se começássemos o processo com um arguido e acabássemos com 2,
teríamos um alargamento do objeto do processo, o que é inadmissível. A doutrina tende
a aplicar a estes casos o regime da alteração substancial de factos. Neste caso, trata-se de
factos autonomizáveis, pelo que esta alteração valeria como denúncia, para que depois o
MP procedesse criminalmente contra B.

b)

O que está em causa? O senhor A é presidente da junta de freguesia de Almedina à


É funcionário na aceção do CP e não devia ser acusado por crime de furto qualificado,
mas antes pelo crime de peculato, crime específico para os funcionários. Estamos
perante alteração de factos ou alteração da qualificação jurídica?

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 145


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Alteração da qualificação jurídica, não há nenhum facto novo, a circunstância de A


ser funcionário constava da acusação, só não foi devidamente tida em conta pelo MP.

Nos termos do artigo 339.º, nº 4 CPP, o tribunal de julgamento não está vinculado à
qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, pelo que pode
alterar essa qualificação a qualquer momento. Tratando-se de alteração da qualificação
jurídica aplicava-se o nº 1 do artigo 358.º, por remissão do nº 3 do mesmo artigo do CPP
e devia o tribunal comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e se ele
requeresse dar-lhe prazo para preparar a sua defesa.

Francisca Sá e Sofia Rodrigues 146

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