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⮚ Exemplo- Saber até que ponto é exigível, numa questão de perigo de vida de um
paciente, se configurar uma situação de estado de necessidade, quando se retira
um rim a terceiro para se salvar outra pessoa. Artº 34, al. c) do CP: nega-se este
estado de necessidade tendo em conta o grau de lesão.
Contrariamente à situação do rim, já é perfeitamente equacionável que haja estado de
necessidade relativamente a determinados tipos de produtos humanos que são
regeneráveis. Nesses casos, pode-se lesar a esfera jurídica de terceiro (Exemplo: a
extração de sangue para salvar a vida de outrem é lícita. Aqui, o grau de lesão que pode
vir a ser sofrido pelo necessitado é manifestamente superior ao grau de risco de lesão
que é afetado).
Deve-se ter sempre em conta a autonomia pessoal do lesado, nos termos do art. 34º al.
c). Na situação do rim, mesmo que essa seja a única forma de, por via de transplante,
salvar a vida de B, a tanto se opõe (apesar de o bem jurídico “vida” ser superior ao da
“integridade jurídica”), a autonomia pessoal de A, que deve ser preservada. O mesmo já
não acontece em relação à extração de sangue, visto que não está em causa um prejuízo
grave (o art. 34º, al. c) é um critério de exigibilidade).
Há uma ideia de exigibilidade relacionada com o juízo de culpa. Todo o ser humano e a
sua vida pode ser condicionado por circunstâncias indígenas/características intrínsecas
ao agente, que façam com que ele não seja suscetível de um juízo de culpa (exemplo: a
inimputabilidade).
Mas também se destacam características exógenas (por exemplo, numa situação de
naufrágio, há dois sobreviventes e apenas uma tábua para que um sobreviva. Existe aqui
uma tensão psicológica grave, que se resume a matar ou morrer. Atualmente, não é
exigível que estas pessoas deixem de lutar pela sua sobrevivência, independentemente
de qualquer ordem moral ou religiosa. Tal atuação não poder ser censurável à luz do
DP).
Na questão do barco, o critério é o mesmo. Apenas não há um tipo justificador porque o
interesse não é superior. Desta forma, esta situação não é englobada pelo art. 34º, mas
pode caber no art 35º, uma vez que o interesse é igual.
O problema aqui não é um problema de direito de necessidade, uma vez que a vida das
pessoas que permaneceram no barco teria que ser significantemente mais relevante do
que o das pessoas que foram atiradas borda fora, o que não é verdade. Como tal,
poderíamos muito estar perante um caso de necessidade desculpante do art 35.
Para além de ser atual, o meio tem de ser adequado para evitar essa mesma lesão.
Quando se fala de adequação, fazemos uma remissão para a teoria da adequação: o
meio tem de ser previsível à luz do concreto agente, para que se possa evitar a lesão
daquele mesmo bem jurídico.
Tal como na legítima defesa, não estamos perante uma situação de estado de
necessidade se houver uma pré-ordenação do agente, ou seja, não pode ter sido o
próprio agente a ter criado a situação de perigo (porém, o art 34 prevê um incentivo
para o agente afastar na mesma o perigo, podendo continuar a beneficiar do estado de
necessidade).
Ora, nesta situação, não se pode dizer que estamos perante um caso de legítima defesa,
uma vez que a agressão não era ilícita (já que o ciclista estava a cumprir todas as regras
do CP, simplesmente houve uma falha mecânica). Mas também não estamos perante um
estado de necessidade, uma vez que não há um terceiro (há sempre um terceiro em
qualquer estado de necessidade).
Esta seria uma situação que ficaria sem resposta do ponto de vista da justificação ou
exclusão da culpa por parte do DP. Por isso, começou a defender-se que estamos
perante um estado de necessidade defensivo.
Estado de necessidade defensivo: situação em que o próprio agente defende-se
contra uma ação lícita que atinge a própria esfera da fonte de perigo . Até agora, temos
estado a falar do estado ofensivo. Contudo, este estado de necessidade defensivo
também pode funcionar como um tipo justificador, à luz do art. 34º.
A diferença entre ser um tipo justificador ou uma causa de exclusão da culpa tem haver
com a natureza dos interesses que estão a ser postos em causa.
➔ No caso do ciclista, sacrifica-se uma vida por outra vida e, assim sendo, não há
uma exclusão da ilicitude, já que o interesse não é manifestamente superior mas
igual. Deste modo, pode ser aplicado o artº 35, ou seja, pode haver uma causa de
exclusão da culpa.
Conflito de deveres
O conflito de deveres é um outro tipo justificador previsto no Art 36 nº1 do CP,
repousando no mesmo fundamento justificador do direito de necessidade. Existe um
conflito de deveres quando na situação colidem distintos deveres de ação, dos quais
só um pode ser cumprido.
➔ Exemplo- Um salva-vidas tem duas pessoas a afogar-se, mas não consegue
salvar as 2. Há um conflito de deveres.
Deverá o agente ser punido pela morte da pessoa que não salvou? Será que se pode
imputar o crime de homicídio da pessoa que afogou ao salva vidas?
De acordo com o artº 36 nº1 do CP, considera-se justificado o facto correspondente ao
cumprimento de um dos deveres em colisão, mesmo à custa de deixar o outro
incumprido, desde que o valor do dever cumprido seja igual ou superior (mesmo que
não “sensivelmente”) ao daquele que se sacrifica.
E o que acontece se o que se sacrificar tiver uma valia inferior do que se protege?
Não obtemos bem uma resposta, mas tal não significa que esta situação não tenha uma
tutela por parte do DP. Defende-se a aplicação analógica do artº 35: este pode ser
aplicado quer em situações de estado de necessidade desculpante quer em conflitos de
deveres subjetivos ou desculpantes. Aqui a analogia é permitida pois é matéria
favorável ao indivíduo- artº 3 do CP
O art. 35 nº2 diz respeito a interesses que estão em perigo e que têm uma natureza
diversa, não precisando contudo de ter uma natureza pessoal. Aqui, a pena pode ser
especialmente atenuada, não havendo uma causa de exclusão da culpa, pois o agente
será na mesma punido. O que pode haver é uma especial atenuação da pena ou uma
dispensa de pena.
(nota: Especial atenuação de pena- Remissão para o art 73 do CP- diz como se faz a
contabilização da moldura penal abstrata. Dispensa de pena- art 74)
● teoria da legalidade- uma vez que a ordem é ilícita, apesar do art. 36 nº2 do
CP falar de “crime” e não contraordenação, defende-se uma interpretação
extensiva da norma. O dever de legalidade exige o incumprimento da ordem
dada pelo superior.
A última teoria tende a ser abandonada e, como tal, ficamos pela teoria da legalidade.
Consentimento
Durante muito tempo vigorou um paradigma monista nas questões do consentimento em
que só havia esta figura do consentimento. Entretanto, o autor Costa Andrade introduziu
uma nova figura da doutrina alemã semelhante ao consentimento: o acordo.
● Acordo- Resolve a questão a nível da tipicidade. É uma causa de exclusão da
tipicidade (a conduta acordada nem sequer se encaixa num tipo de ilícito).
● Consentimento- Resolve o problema a nível da ilicitude. Funciona como um
tipo justificador legal.
No acordo, o objetivo do ordenamento jurídico é o mesmo que o do titular do bem
jurídico. No consentimento, a conduta é típica, mas não é ilícita, funcionando como
causa de exclusão da ilicitude (há uma divergência entre a vontade do titular do bem
jurídico e o ordenamento jurídico).
(Por exemplo, no artigo 191º do CP, só se pode dizer que se pode colocar em abstrato a
possibilidade de alguém invadir o domicílio se o titular do bem jurídico não o consentir. Se
houver consentimento, estamos perante uma situação de acordo. O acordo elimina logo o caráter
típico da conduta. Tanto o ordenamento jurídico como o titular querem que só entre no lar do
titular quem ele quiser).
● No ponto de vista do acordo- Não há nenhuma perda do bem jurídico e por isso
é uma causa de exclusão da tipicidade
● No ponto de vista do consentimento- há sempre alguma perda, havendo porém
um tipo justificador
O consentimento durante muito tempo foi tratado como tendo uma justificação
diferente: como uma carência de interesses (Eduardo Correia). No entanto, também no
consentimento há uma ponderação de interesses entre a pessoa que consente e a
exigência do ordenamento jurídico de que não haja lesão de bens jurídicos.
Para que o consentimento seja válido, é necessário preencher os requisitos do art
38 do CP
1. O consentimento é válido e eficaz se disser respeito a interesses juridicamente
disponíveis
Como é que sabemos que os interesses são juridicamente disponíveis?
Exemplo: a vida é indisponível por terceiros mas disponível pelo próprio. Se me tentar
suicidar, o ordenamento jurídico não me censura. Coisa diferente é o incentivo ao
suicidio- artº 131 do CP (já há censura).
Por sua vez, o consentimento na integridade física já é uma situação mais complicada, e
por isso é que o art 38 do CP se refere a “além dos casos previstos na lei” (artº 143 e ss
do CP). Diz-se que a integridade física é livremente disponível, podendo eu dispor da
minha liberdade física. Contudo, podemos ter situações extremas e, assim sendo, diz-se
que a integridade física é disponível até certo limite (não é lícito cortar um membro).
Estes limites estão expressamente previstos no 149 nº2 (não obstante a enumeração aqui
prevista ser meramente exemplificativa).
A norma do art. 38º faz referência aos “bons costumes”, porque o que se exige para que
o consentimento seja válido é que o facto não ofenda os bons costumes. Bons costumes
é um conceito indeterminado que tem de ser concretizado casuisticamente. São
valorações gerais de uma dada sociedade num dado tempo.
Como é difícil concretizar os bons costumes, temos um artigo muito mais preciso e
seguro: o artº 149. Assim, aquilo que se defende é que os critérios do art. 149º, nº2
sejam aplicados a todos os bens jurídicos penalmente relevantes, e não só ao
consentimento da ordem jurídica.
Por outro lado, segundo esse artigo, é necessário que o consentimento seja expresso
através de uma vontade séria, livre e esclarecida, podendo ser revogado a qualquer
momento até à execução do facto.
O consentimento assume 2 modalidades:
❖ consentimento real /efetivo- art 38 do CP
➢ Pode ser efetivo expresso
➢ Pode ser efetivo tácito
Culpa
É possível encontrar o conceito de culpa em várias disciplinas científicas. Não obstante,
no DP a culpa é sempre um juízo de censura individual e concreto.
Ao contrário da ilicitude, em que o juízo de censura é geral e abstrato, não sendo
necessário remeter para o caso concreto, a culpa exige que se remeta ao concreto agente.
Só posso dizer que um determinado agente atuou de forma culposa quando conheço
todas as circunstâncias do caso concreto. A culpa é o reino da subjetividade, ao
contrário da ilicitude que é o reino da objetividade.
O conceito de culpa para o DP repousa num outro conceito sem o qual não se pode
configurar a culpa: o conceito de liberdade humana.
Liberdade humana
Até hoje, não há uma concepção unívoca do que é a liberdade. Destaca-se a questão do
determinismo e do indeterminismo: saber se somos realmente livres ou não.
● indeterminismo- somos livres
● determinismo- não somos livres. Somos fruto das nossas circunstâncias
Na verdade, partimos de um princípio de indeterminismo relativo, que no fundo, tira o
melhor das duas perspectivas: não somos totalmente determinados, nem totalmente
livres.
No crime concorrem fatores de natureza biológica, psicológica e social, sem que haja
uma natureza preferencial de uns em relação aos outros. Não temos um único fator
responsável pelas práticas desses crimes, tal como não temos um único fator
responsável pela liberdade humana. Assim sendo, temos que aceitar que o agente teve a
liberdade de atuação para aceitar a punibilidade de um crime (um inimputável não é
livre, daí ele não poder praticar crimes).
Podemos considerar internamente que a liberdade humana existe, embora não seja uma
certeza. Deste modo, podemos partir da ideia de liberdade humana como:
● uma liberdade de adesão ( adere-se a esta ideia tal como se adere a uma crença)
● uma hipótese de trabalho
Para certos autores, como Schunemann, a liberdade é uma hipótese de trabalho. Estes
autores mais deterministas afirmam que a liberdade é uma mera hipótese de trabalho.
Assim, seguindo uma perspetiva mais funcionalista e utilitarista, aproveita-se o facto da
comunidade no seu conjunto acreditar que é livre para repousar neste conceito de
liberdade a culpa.
Destacam-se 2 grandes concepções de culpa que marcaram as últimas décadas,
desde a década de 1940 ( 2º Guerra Mundial) até à atualidade:
1- Autores neokantianos/ normativistas
Cavaleiro de Ferreira, Eduardo Correia, Bockelman, Mezger. Estes autores
denominavam a culpa de formas diferentes, mas a ideia era a mesma.
➢ Bockelman falava na culpa na condução da vida
➢ Eduardo Correia falava na culpa pela não formação da personalidade .
A base é sempre a mesma. Estes autores partem da ideia de que o ser humano é livre, ou
seja, partem de uma ideia indeterminista de que o ser humano pode ser responsabilizado
pelos seus atos devido ao seu livre arbítrio.
No entanto, caso se consiga provar que uma pessoa não foi livre durante uma certa
conduta, então não poderia haver culpa e, consequentemente, pena. Isto leva-nos ao
problema dos delinquentes por tendência.
A pena relativamente indeterminada- artº 83 e ss. do CP – trata de dois grupos de
delinquentes:
● delinquentes por tendência
● alcoólicos equiparados
Esta pena relativamente indeterminada significa que o condenado não será punido com
uma pena fixa. A pena relativamente indeterminada tem apenas um mínimo e um
máximo. Será em função do comportamento do agente que veremos o exato tempo de
pena que será cumprido. Este foi um instrumento criado pelo Dr. Eduardo Correia para
os delinquentes mais graves que têm tendência a reincidir no crime.
A posição de Figueiredo Dias é atualmente maioritária mas não é uma posição que
esteja isenta de críticas:
Tendo tudo isto em conta, na prática, seguir uma ou outra posição não tem quaisquer
tipo de reflexos/consequências sensíveis. Assim, a formulação de dizer que posso dirigir
um juízo de culpa a um agente no sentido de o agente deve agir de outra forma pode ser
entendido numa perspetiva muito mais prática.
Ao invés de se dizer que o agente devia ter agido de outra forma, segundo o sentido da
formação da sua personalidade, podemos seguir uma perspetiva muito mais
axiologicamente neutra e dizer que era exigível uma outra atuação simplesmente porque
o ordenamento jurídico assim o exige.