Você está na página 1de 4

05 de Maio 2009

ASD – 2.4 b) O direito de necessidade


Como é hábito, a matéria para o teste é a dada até ao final da aula de hoje.

Na aula passada, falámos da legitima defesa e hoje vamos começar com o direito de necessidade (
art. 34 CP). Se não estivesse previsto no Código Penal, aplicaríamos sem qualquer problema o art.
339 do Código Civil, pela razões que já compreenderam na aula passada.

O direito de necessidade é figura central dos chamados “estados de necessidade”.As figuras são
várias e o direito de necessidade não esgota o campo de justificação da figura em si. É apenas um
dos casos de justificação, embora ocupe o lugar central.

Começa o Prof. ASD por dizer que, no nosso sistema penal, o estado de necessidade tem uma
construção dualista. Tanto pode dar lugar a situações de justificação ou exclusão da ilicitude, como
pode lugar a situações da exclusão da culpa.

O estado de necessidade desculpante aparece no art. 35 do Cp. Estamos perante o estado de


necessidade desculpante quando não estiverem reunidos os pressupostos do estado de necessidade
justificante e se verificarem todos os pressupostos de estado de necessidade desculpante.

As situações de desculpa não funcionam por exclusão de partes. Não é o facto de não ser
justificante, logo ser desculpante. O estado de necessidade desculpante tem pressupostos próprios
que estão referidos no art. 35 e que haveremos de analisar depois.

No fundo, a distinção dentre as situações de estado de necessidade justicante e estado de


necessidade desculpante é uma distinção que decorre de uma distinção mais vasta entre ilicitude e
culpa. Essa é a distinção central mediante a qual a distinção entre estado de necessidade
justificante e estado de necessidade desculpante se explica.

Falaremos melhor deste quadro quando chegarmos à matéria da culpa.

O direito de necessidade assenta no principio de protecção de bens jurídicos próprios ou alheios, no


principio de ponderação de interesses ( tem aqui um papel central) e também no principio de
solidariedade/ tolerância por parte do titular do bem jurídico lesado.

Quer dizer, quando alguém pratica uma acção de necessidade, o destinatário dessa acção de
necessidade tem que suportar – em principio - o sacrifício do seu interesse. Se não for razoável
impor ao titular do b. jurídico sacrificado esse sacrifício, então, falta o pressuposto da alínea c) do
art.34 e não estamos perante uma situação de direito de necessidade.

Mas vejamos então os pressupostos do direito de necessidade um a um.

 situaçã o de perigo actual


O direito de necessidade é uma faculdade concedida para a remoção de situações de perigo actual
que ameaça determinados bens jurídicos. Portanto, por contraste com a legitima defesa, o perigo
para o bem jurídico não surge aqui imediatamente de uma acção humana mas de um ataque ao bem
jurídico ( de uma situação de colocação em perigo de um bem jurídico).
O caso da rejeição de um ataque de um animal pode estar coberto pelo direito de necessidade, mas
nunca pode estar coberta pela legitima defesa. O animal nunca pratica nenhuma agressão actual e
ilícita. O ataque de um animal nunca poderia constituir legitima defesa.

No entanto, se alguém atiça um animal a outrem e esse outro - para evitar que o cão o ataque -
atira uma pedra à pessoa que está a incitar o cão para que ela pare de o fazer. A reacção é de
defesa, i. é, destina-se a cessar uma agressão actual e ilícita praticada pela pessoa que esta a
incitar o cão para que ele ataque o outro.

Quer a defesa consista em parar a pessoa que está a atiçar o cão, quer a defesa consista na própria
destruição do meio ( animal como meio de agressão), em qualquer dos casos podemos considerar
que estamos perante uma legitima de defesa. Ainda é de defesa a acção de destruir o meio da

Dianes 1
05 de Maio 2009
ASD – 2.4 b) O direito de necessidade
agressão, se esse for o modo de fazer a agressão cessar.

A diferença é que o cão é, neste último caso, concretamente um meio de agressão.


Estas situações com animais que cabem dentro do direito de necessidade são situações em que é o
próprio animal, sem ser comandado por alguém, que ataca uma determinada pessoa. Aqui é um caso
de perigo actual para a integridade física que ameaça determinada pessoa.

 Acção adequada
A acção destinada a remover o perigo tem que ser uma acção adequada. Está sujeita a critérios de
adequação. É necessário ponderar aqui vários factores, designadamente:
_ os bens jurídicos em jogo;
_ a intensidade de ameaça ao bem jurídico.

Para além destes requisitos, o art. 34a) CP prevê a chamada situação de acção ilícita na causa: não
pode invocar o direito de necessidade aquele que desencadeou a situação de perigo. Aquele que se
auto coloca numa situação de perigo não pode depois advogar o direito de necessidade para sair
dela.

Voltando ao exemplo do cão: imaginem que A detestava o cão do vizinho e encontrou maneira de se
livrar dele. Atiçou-o a si próprio e, quando o cão o atacou, matou-o.
O Direito não permite a acção como uma acção de necessidade.

Chama-se acção ilícita na causa porque realmente, no caso em que o agente mata o animal, fá-lo
em estado de necessidade. Mas na causa não estava. Quando podia ter evitado aquela situação, ele
não estava em estado de necessidade. Quando podia ter omitido a acção que praticou, ele não se
encontrava sob o efeito de uma situação de necessidade.

A alínea a) faz uma ressalva: “salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro ” . Ele pode criar a
situação de perigo e , se ele o fez, não pode invocar o direito de necessidade para sair dela. Mas, se
essa situação de perigo atingir bem jurídico de terceiro, a ressalva da alínea a) faz reentrar o
problema no âmbito do direito de necessidade.
Seria - por exemplo - o caso de um fulano que deita fogo à casa porque quer receber o seguro.
Claro que sendo assim o Dto. não permite que ele arrombe a porta da casa do vizinho para tirar uma
mangueira e apagar o fogo. Essa situação não é permitida pelo direito de necessidade porque ele
voluntariamente se colocou em perigo.
Se, por ventura, estiver alguém em perigo de vida na casa (sem o agente saber que lá se encontrava
alguém , disso tendo conhecimento só após se ter iniciado o incêndio), a acção de tirar a escada e a
mangueira para apagar o fogo e retirar a pessoa que está em perigo é uma acção de necessidade..
Trata-se de afastar consequências danosas, não para o próprio que criou a situação de perigo, mas
para terceiro que é completamente alheio à criação do próprio perigo.

A alínea b) do artigo 34 tem um papel central ( b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar
relativamente ao interesse sacrificado; ).
Apela a uma ideia de ponderação de interesses, interessa no
meio disto tudo fundamentalmente a natureza dos bens jurídicos em jogo. Tem de haver
uma certa desproporção entre a natureza do bem jurídico salvaguardado e a natureza do
bem jurídico sacrificado.

Também importa ter em conta para a ponderação a intensidade com que um e outro bem
jurídico são afectados. Porque, se para salvar a vida de uma pessoa for necessário dar um
empurrão noutra, a ofensa corporal em que o empurrão se traduz é tão insignificante que
(apesar da integridade física ser um bem jurídico pessoal) nós podemos dizer aqui que há
uma sensível superioridade do interesse a salvaguardar. O que está em causa é beliscar
alguém e salvar a vida do outro. A integridade física no exemplo dado não é seriamente
afectada. Isso também entra em conta : de que modo é que o bem jurídico a salvaguardar
está a ser ameaçado e de que modo é que a acção de necessidade vai afectar o bem
jurídico que não está a ser ameaçado, o que é sacrificado através da acção de necessidade.

Quanto à alínea c) ( c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do

Dianes 2
05 de Maio 2009
ASD – 2.4 b) O direito de necessidade
impõe um dever de tolerância ou de solidariedade ao titular do bem jurídico
interesse ameaçado.)
sacrificado. Esta alínea c) é importante pois ela condiciona, por vezes, a própria ponderação de
interesses. Há casos em que c) e b) não podem ser aplicadas em separado.
Ex.: imaginem que um pianista famoso precisava de um transplante renal para sobreviver, não havia
dadores nem voluntários e o pianista definhava. Ás tantas, a equipa médica decide ir para a rua e
apanhar o primeiro que encontrasse e, se dissesse como os outros que não estava interessado em
doar o rim, passava a ser um “dador à força”. E assim foi. Apanharam o indivíduo, deram-lhe
anestesia e tiraram-lhe o rim e o pianista famoso foi salvo.

Neste caso, não se trata apenas de questões de integridade física. A integridade física é posta em
causa de um modo que atenta contra a própria autonomia ética da pessoa. É diferente do caso em
que empurro alguém para salvar outrem. No caso do dador à força, ele não é tratado como pessoa, é
tratado como um conjunto de órgãos que pode ser posto ao serviço de terceiros. Nestes casos,
nunca é razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse e, também por isso, o bem jurídico a
salvaguardar ( embora seja a vida) não é sensivelmente superior ao bem jurídico sacrificado.

Aqui está um exemplo de como, quando o bem jurídico pela forma como é posto em causa, esgota a
autonomia ética do indivíduo, nestes casos nunca é razoável impor ao lesado o sacrifício do seu
interesse. Senão, ele está a ser tratado como um meio para a satisfação de fins alheios.

Este problema surge normalmente porque há três partes neste exemplo do pianista famoso: os
médicos que actuam em acção de necessidade, o titular do interesse ameaçado (pianista, perigo de
vida) e o destinatário da acção de necessidade ( dador forçado). Quando o bem jurídico sacrificado e
o bem jurídico salvaguardado são da mesma pessoa é possível estabelecer uma hierarquia entre
eles. Se tiver em jogo a vida ou o rim ( não estamos a pensar no rim, mas na extracção do rim), se
os bens jurídicos são da mesma pessoa, podemos estabelecer uma certa ordenação entre eles. Não
se pode realmente dizer que a vida de A é mais importante que a integridade física de B se
integridade física do B esgotar a tal autonomia ética do B. Se se disser isto, está-se a considerar o
B como um meio ou um instrumento para a realização de fins alheios. Isso é absolutamente
contrário ao principio da dignidade da pessoa humana.

Mas pode dizer-se que a vida do A é mais importante que a integridade física do A. Mas só o posso
dizer quando souber o que é que o A pensa disso. Não posso impor ao A a extracção do rim para
lhe salvar a vida. Um médico não pode fazer isto, invocando o direito de necessidade. Porquê?
Porque há uma proibição jurídico-penal de tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários ( tratamentos
médico-cirúrgicos contrários à vontade do paciente).

O médico não pode dizer “ você não quer, mas a sua vida é mais importante que a sua integridade
física e portanto tenha paciência”. O médico não pode fazer este juízo, não lhe assiste o direito de
necessidade nesta ordenação que ele faz dos bens jurídicos à revelia do titular desses bens
jurídicos.

O art. 156 Cp. prevê justamente o crime de tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários em que o
bem jurídico protegido é a liberdade de disposição do próprio corpo, naturalmente, por parte do
paciente. Claro que há problemas relacionados com a vontade do paciente que neste caso se
colocam que não iremos abordar aqui ( como deve ser expressa, se basta ou não basta o testamento
vital, etc.).

O que importa ter aqui em conta é isto: sempre que um bem jurídico esgota a autonomia ética de um
indivíduo, não é possível invocar o direito de necessidade. E também não é possível invocar o
direito de necessidade quando se trate de bens jurídicos da mesma pessoa sem ter em conta a
vontade da mesma. Claro que, se a pessoa não estiver capaz de expressar a vontade e se o médico
não tiver razão nenhuma que lhe indique qual a vontade do paciente, temos o art. 156 que também
responde a isso – funciona ai o consentimento presumido.

Não se fique com a ideia de que não e possível proceder à ponderação de bens jurídicos pessoais.
Exemplo do empurrão. Pode perfeitamente haver Dto. de necessidade quando estão em jogo bens
pessoais, desde que o interesse sacrificado não o seja de modo a poder atingir a autonomia ética
do lesado.

Outras situações de justificação em estado de necessidade:

Dianes 3
05 de Maio 2009
ASD – 2.4 b) O direito de necessidade
* estado de necessidade defensivo: não está previsto no Código Penal. No entanto, quer a
doutrina quer a jurisprudência de muitos países ( Ex.: Alemanha) têm considerado a
aplicação de uma situação que fica a meio caminho entre a legitima defesa e o direito de
necessidade. ex.: o caso do homem gordo. ( a Prof. Fernanda Palma fala deste caso num artigo de uns
estudos que publicou em homenagem ao Prof. Eduardo Correia) . Um grupo de espeleólogos andava a
investigar umas grutas e um deles era particularmente avantajado e, ao tentar passar de
uma gruta para outra, ficou entalado. Os companheiros ficaram encurralados. Assim, ou
esperavam que o homem gordo emagrecesse e conseguisse passar o buraco para que
todos se salvassem, ai as probabilidades de todos diminuíam porque o ar faltaria, a maior
probabilidade era de todos morrerem ali; ou, então, rebentarem com o homem gordo para
poderem sair e sobreviver.

Aqui não há verdadeiramente legitima defesa porque não há agressão actual e ilícita por
parte do homem gordo. Mas também não há verdadeiramente um direito de necessidade
porque o homem gordo – não praticando uma agressão actual e ilícita - coloca
objectivamente em perigo a vida dos outros companheiros. A vida dos companheiros é
posta em risco por aquela situação em que o homem gordo se encontra involuntariamente.
Não se pode aplicar aqui o direito de necessidade porque a ponderação de bens não o
permite. Nenhum dos bens jurídicos em jogo é sensivelmente superior ao outro. E também
aqui não se pode quantificar os bens jurídicos porque os bens jurídicos pessoalíssimos não
são quantificáveis. A quantidade de bens jurídicos a salvaguardar contra a quantidade de
bens jurídicos a sacrificar não é aqui factor decisivo porque, numa perspectiva não
utilitarista do Direito ,nós não podemos dizer que 5 vidas valem mais que 1 ( só numa
perspectiva utilitarista é que isto era possível). Também a quantidade de vidas de um lado
e de outro não nos ajuda aqui a resolver o problema através do direito de necessidade.

Todavia, não faz sentido que isto seja uma situação de estado de necessidade desculpante
por uma razão: as possibilidades de salvamento são completamente assimétricas. As
alternativas que existem aqui é : ou se salvam aqueles ( através da morte do homem
gordo) ou morrem todos ( homem gordo e os outros).

Esta circunstância das hipóteses de salvamento serem completamente desniveladas


permite que o caso não seja reconduzido para o estado de necessidade desculpante.

No fundo, as situações de estado de necessidade desculpante são aquelas em que todos se


encontram na mesma situação, no “mesmo barco”.

A desnivelação faz com que a situação possa ser vista ainda no terreno da justificação e
através justamente desta causa de justificação de estado de necessidade defensivo.

A ultima situação de justificação em estado de necessidade de que vamos falar é a do


conflito de deveres. art. 36. Quando haja uma situação de perigo para dois bens jurídicos.

!! Fim da gravação !! ( 40m: 21s)

Dianes 4

Você também pode gostar