Você está na página 1de 4

António, cobrador da Carris, foi assaltado em plena viagem de eléctrico.

Com efeito, de repente


sentiu um forte puxão pela correia da mala de mão em que guardava o dinheiro, que o fez
desequilibrar-se e cair, largando a mala na queda. Só que, tendo sido atacado pelas costas dentro
do eléctrico apinhado de gente, não teve tempo nem possibilidade de ver o ladrão. Não obstante,
ao recobrar o equilíbrio, imediatamente notou que alguém saltara, com alguma precipitação, do
eléctrico em andamento e se lançara numa corrida pela rua acima que mais parecia ser uma fuga.
Julgando ter descoberto o assaltante, António pendurou-se no corrimão da porta e, segurando
uma pistola que trazia consigo, disparou dois tiros quase simultâneos sobre o dito corredor,
Bento, sendo sua intenção fazê-lo parar, por forma a recuperar a mala do dinheiro. Com o
primeiro dos tiros atingiu uma das pernas do desafortunado passageiro corredor mas, com o
segundo atingiu, por falta de pontaria, uma terceira pessoa, Carlos, causando-lhe a morte. Por
acaso, essa terceira pessoa era o verdadeiro ladrão que, segundos antes descera já do eléctrico
para se afastar, com aparente tranquilidade, com a mala do dinheiro escondia debaixo do casaco.
RESPOSTA:
a) De acordo com o caso em concreto, podemos retirar o seguinte: António tem uma acção,
que é dar dois tiros penalmente relevante, porque é um comportamento humano
dominado pela vontade: António não actuou coagido, no âmbito de uma coacção física
ou “vis absoluta”; também não actuou no âmbito de nenhum movimento reflexo, nem de
sonambulismo ou qualquer outro estado de inconsciência. A acção de António é um
comportamento humano dominado pela vontade que produz uma alteração objectiva no
mundo exterior.
Aquilo que se identifica imediatamente nesta situação é que António quer atingir Bento, dispara
dois tiros que lhe são dirigidos e atinge Bento, mas também atinge Carlos. Seria mais fácil se
houvesses apenas um tiro; mas houve dois tiros, ou seja, pode dizer-se que houve duas acções:
Um tiro dirigido a Bento, que atinge Bento; Outro tiro dirigido a Bento, que atinge Carlos.
Por outro lado, identifica-se aqui também desde logo uma situação de “aberratio ictus”, em que o
agente visualiza um objecto e atinge outro, não porque tenha confundido os objectos mas
precisamente por uma ineficiente execução. Assim, Em relação a Bento e dentro do primeiro
disparo: A intenção do agente era pará-lo para assim conseguir reaver a mala. Podemos portanto
dizer que o agente tem um dolo de ofensas corporais (art. 171º do código penal moçambicano).
Assim, vamos verificar se uma primeira acção o tipo do art. 171º CP está preenchido.
Quanto aos Elementos objectivos: Há um agente, António. Há uma conduta que é pegar na
arma e disparar, que corresponde à conduta descrita no tipo, que é ofender corporalmente outra
pessoa. O resultado típico é o ferimento, a própria ofensa sofrida por Bento na perna. Há
imputação objectiva, firma-se facilmente o nexo de causalidade, porque é previsível que de um
tiro ocorra um ferimento na perna – objectivamente o tipo do art. 171º CP está preenchido.
Quanto aos Elemento subjectivo: Há dolo, o dolo (de tipo) é conhecer e querer os elementos
objectivos de um tipo. O agente conheceu e quis aquilo que fez: o agente conheceu e quis
disparar a arma para ferir o ladrão; o agente quer aquele resultado típico que previamente
conheceu. Portanto, há dolo. Objectiva e subjectivamente o tipo está preenchido
Em relação ao segundo disparo: O agente quer atingir Bento e atinge Carlos. Temos aqui uma
situação, já identificada de “aberratio ictus”. A regra geral será punir agente em concurso
efectivo por uma tentativa, é um facto negligente:Tentativa em relação ao objecto que o agente
visou, mas não atingiu; É um facto negligente em relação ao objecto que o agente não visualizou,
mas que efectivamente atingiu.
Sabemos da matéria de facto que António, quando dispara contra Bento, tem intenção de o parar
porque está convencido que Bento é o ladrão. Por outras palavras, António pensa que está a
actuar em legítima defesa quando na realidade não está, porque para isso era necessário que
Bento tivesse praticado uma agressão. Temos então uma situação em que o agente actua com
“animus defendendi” ou seja, elemento subjectivo da causa de justificação, mas em que avalia
mal a realidade porque julga que esta excluiria a ilicitude do seu facto.
Ou seja, o agente está em erro sobre um pressuposto de facto de uma causa de justificação, que é
uma situação subsumível ao art. 35º/2 do código penal, erro sobre uma circunstância que a exigir
excluiria a ilicitude do facto. Assim, em relação a Bento: Os factos típicos que António praticou
foram o do art. 159º do código penal (primeiro disparo) mais tentativa do art. 17º (segundo
disparo). Mas quando os praticou António está em erro sobre um pressuposto de facto de uma
causa de justificação. Se o regime de relevância desse erro nos é dado pelo n.º 2 do art. 35º CP,
então exclui-se o dolo.
Nos termos do n.º 3 do art. 35º do código penal ressalva-se a punibilidade por negligência nos
termos gerais. Então: Em relação às ofensas corporais consumadas (primeiro disparo) o agente
poderá ser responsabilizado por ofensas corporais negligentes, nos termos do art. 171º do código
penal.
b) Em relação a Carlos: O agente praticou o facto típico de homicídio negligente (art. 159º
cojugado com art.13.º ambos do código penal). Se o facto é típico, vamos ver se também
é ilícito, uma vez que sabemos que a tipicidade indicia a ilicitude. Simplesmente, esse
juízo de ilicitude pode ser quebrado por contra-norma, por causas de exclusão da ilicitude
ou de justificação, que vêm aprovar o facto.
Recapitulando a matéria de facto nos temos que António, por força de uma “aberratio ictus”,
mata Carlos, que na realidade tinha sido o verdadeiro ladrão. Por parte de Carlos verifica-se a
existência de uma agressão. Agressão, para efeitos de legítima defesa, é todo o comportamento
humano que contraria a ordem jurídica e que o defendente não é obrigado a suportar. No caso
concreto essa agressão ofende bens de natureza patrimonial de terceiro.
É uma agressão ilícita porque é contrária à lei (conceito de ilicitude formal), que neste caso
consubstancia desde logo um tipo legal de crime que é o furto (ou, virtualmente, roubo, porque
houve violência para a subtracção). É uma agressão actual: há já uma consumação formal, mas
ainda não há uma consumação material.
Quanto ao meio é necessário. Em primeiro lugar, a adequação do meio afere-se no caso concreto;
o meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita tem que ser o meio menos gravoso para
o agressor, mas tem que ser simultaneamente um meio eficaz.
Uma arma de fogo em determinadas circunstâncias é um meio adequado para repelir a agressão,
se (X) está na iminência de uma agressão à sua vida e se utiliza uma arma de fogo para repelir
essa agressão, o meio é adequado, ainda que seja previsível a morte do agressor. Em segundo
lugar, a utilização de uma arma de fogo, mesmo que seja para salvaguardar bens de natureza
patrimonial, desde que dirigida a um órgão não vital do agressor, é também um meio adequado.
Portanto, a arma de fogo em si nada nos diz quando ao meio ser ou não ser adequado. A legítima
defesa (ao contrário do direito de necessidade), não assenta numa ideia de ponderação de
interesses: não tem de haver uma sensível superioridade entre o bem que se defende e o bem que
se lesa com a defesa.
Daí que se compreenda que o agente, para salvaguardar o seu património (propriedade), possa
ferir o ladrão. E ninguém diz que o agente está em excesso de legítima defesa por excesso do
meio empregue. Da mesma forma que para salvaguardar a sua honra ou a sua autodeterminação
sexual o agente possa lesar a vida do agressor. Não deixa de estar a actuar em legítima defesa.
Na legítima defesa a necessidade do meio não joga com a natureza dos interesses em causa.
Assim, meio necessário será aquele, dentro dos meios que o agente tem à sua disposição, o meio
de eficácia mais suave, ou seja, aquele cujas consequências são menos gravosas para o agressor.
Mas meio simultaneamente eficaz. Então, entre uma pedra, um pau e uma arma de fogo, o meio
certamente mais suave será a pedra ou mesmo o pau. Mas poderá não ser um meio eficaz, tudo
depende das circunstâncias do caso concreto.
Na hipótese, atendendo às circunstâncias, parece que se pode afirmar que o meio utilizado foi
um meio necessário. Assim, uma vez verificada a existência de todos os elementos objectivos da
legítima defesa, vai-se agora analisar o elemento objectivo desta causa de justificação que é o
“animus defendendi”, consciência e vontade que pessoa tem de se defender.
António não sabe que Carlos é o ladrão, portanto ele não tem consciência da agressão. Sendo
assim, ele não pode ter querido repelir a agressão. Logo, falta o elemento subjectivo da
justificação. Então, que o facto é ilícito ninguém dúvida, uma vez que falta um elemento da
causa de justificação. O que o agente fez, o resultado, no fim de contas foi bem feito, porque
Carlos era o ladrão. Mas a acção de António, porque não sabia que Carlos era o ladrão, é
desvaliosa. Quando existe desvalor na acção, mas não existe desvalor no resultado, temos a
punibilidade por facto tentado.
Então aplica-se analogicamente, mesmo à legítima defesa, o n.º 4 do art. 56º CP e pune-se o
agente por facto tentado.
Se António está na iminência de ver a sua integridade corporal lesada e, para repelir essa
agressão, pega na pasta e dá com ela na cabeça da pessoa que o vai ofender corporalmente,
António, do ponto de vista jurídico-penal tem uma acção penalmente relevante que é típica:
preenche os elementos objectivos do crime de ofensas corporais, bem como os elementos
subjectivos porque actuou com dolo, conheceu e quis ferir o seu agressor.
O facto é típico mas está justificado pela intervenção desta causa de justificação, porque estão
preenchidos os elementos objectivos da legítima defesa: António actuou com consciência de que
estava perante a iminência dessa agressão. Do ponto de vista jurídico-penal António pratica um
crime de ofensas corporais negligentes, porque quando partiu a cabeça àquela pessoa não
conheceu nem quis aquele resultado, isso resultou de uma falta de cuidado.
Logo, repare-se: Se na primeira situação, em que o agente dolosamente quer partir a cabeça ao
seu agressor, o facto está justificado.
Nesta segunda situação, e que há um facto negligente, em que há um desvalor do resultado mas
não há um desvalor da acção, o facto tem de estar necessariamente justificado. Se o facto doloso
está justificado, o facto negligente que é menos desvalioso também tem de estar justificado,
presidindo-se do elemento subjectivo da justificação, da consciência que o agente tinha de que
estava na iminência de ser vítima de uma ofensa corporal.
Se fosse necessário esse elemento, nunca poderia haver justificação de factos negligentes, porque
o agente para ter consciência de que estava perante a iminência de uma agressão, para repelir
essa agressão tinha de sempre de actuar querendo repelir essa agressão. E portanto, tinha sempre
de actuar dolosamente. Se os factos dolosos são justificados, e para esses é preciso a existência
do elemento subjectivo da justificação; Os factos negligentes são justificados, prescindindo-se do
elemento subjectivo da justificação. Portanto, na nossa hipótese, como se trata de um facto
negligente (homicídio negligente) prescinde-se do elemento subjectivo da justificação. Donde,
como o agente objectivamente está perante uma situação de legítima defesa, o facto por ele
praticado esta justificado.

Você também pode gostar