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DIREITO PENAL II

Causas de justificação
I. ESTADO DE NECESSIDADE JUSTIFICANTE
Certas condutas, quando praticadas num contexto de necessidade, não serão ilícitas – a ação
típica é realizada num contexto muito próprio de uma situação de necessidade: o agente atua
não de forma gratuita, mas por se encontrar numa situação difícil e fora do normal.
→ Exemplo: alguém sofre um acidente de aviação, está sem telemóvel e ferido, ao avistar uma casa
que parecia abandonada, arromba-a para procurar um telefone – há um facto típico de violação de
domicílio (art.190ºCP)

❖ Teoria diferenciada do estado de necessidade: neste contexto de situações de necessidade, é


feita uma diferenciação normativa entre os diferentes tipos de necessidade:
o Estado de necessidade justificante (ou objetivo): o facto típico é praticado como meio
adequado para salvaguardar um bem ou interesse jurídico, do agente ou do terceiro, de
maior valor do que o sacrificado (art.34ºCP);
o Estado de necessidade desculpante (ou subjetivo): o facto típico visa salvaguardar um
interesse que não tem maior valor do que o sacrificado – nestas situações a conduta não
é justificada, quanto muito há exclusão de culpa (art.35ºCP).
o Assim, distingue-se o estado de necessidade como causa de justificação (art.34ºCP) do
estado de necessidade como causa de exclusão de culpa (art.35ºCP). importa na página 26

❖ Fundamento justificador do estado de necessidade objetivo ou direito de necessidade


O cerne desta causa de justificação assenta numa natureza dual:
• Por um lado, uma razão de utilidade social – traduzida na maximização da proteção de um
interesse jurídico-socialmente mais importante ao que se sacrifica: é socialmente positivo.
o Exemplo: alguém é obrigado a suportar uma ofensa simples à sua integridade física para
afastar um perigo que ameaça a vida de outra pessoa
• Por outro lado, um mínimo de solidariedade entre os membros da comunidade humana –
a ideia de que o individuo se deve sacrificar um pouco pela salvaguarda de outros direitos;
Assim, quando alguém vê o seu bem jurídico sacrificado para proteger outro, conta que,
quando for ele numa situação semelhante, também os outros se vão sacrificar.

1. DIREITO DE NECESSIDADE DO ART.34ºCP


O art.34º diz que o facto não será ilícito se verificadas todas as condições numa situação
concreta previstas naquele artigo.
1.1. REQUISITOS:
A. Situação de necessidade
• É necessário que o agente atue num contexto de necessidade: a situação de necessidade
pressupõe que um “perigo atual que ameace interesses juridicamente protegidos” só possa
ser afastado se outro bem jurídico for lesado ou posto em perigo.
→ Porque é que o legislador se refere a “interesses juridicamente protegidos” e não a
“bens jurídicos”? A questão de saber qual o interesse preponderante é vista numa
globalidade que atende a um conjunto de fatores que não se esgota no bem jurídico.
O que significa que os bens jurídicos conflituantes constituem apenas uma perspetiva
entre várias relevantes para a ponderação.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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→ Quais os bens protegidos pelo direito de necessidade? Em princípio, qualquer bem
jurídico, penal ou não penal (p.e., direito de crédito – não é punido penalmente, mas é
um bem jurídico importante). Além de bens jurídicos individuais, também podem ser
protegidos interesses coletivos ou comunitários (p.e., se alguém comete um facto
típico patrimonial relativamente pequeno para afastar um perigo atual e significativo
de contaminação ambiental).

• A ameaça tem de ser sempre atual: o bem jurídico a salvaguardar tem de se encontrar
objetivamente em perigo, porque só então se pode justificar que um dever de suportar a
ação típica recaia sobre o atingido pela intervenção.
→ O perigo, para este efeito, deverá considerar-se atual mesmo quando não é ainda
iminente, mas o protelamento do facto representaria uma potenciação do perigo:
naqueles casos em que o perigo não se vai concretizar já de seguida, mas a sua
remoção no futuro poderá ser mais perigosa do que se tentando excluir já, por isso,
deve-se atuar já.
→ Perigos duradouros: há uma ameaça que se mantém no tempo, mas ainda não se sabe
quando se vai materializar.
o Exemplo: quando existe um edifício em perigo de desmoronamento, sem que se
possa determinar se e quando tal ocorrerá.

• A situação não pode ter sido criada voluntariamente pelo agente [alínea a)]: aqui deve
considerar-se que o afastamento da justificação só ocorre se a situação foi
intencionalmente provada pelo agente, isto é, se ele premeditamente criou a situação para
poder livrar-se dela à custa da lesão de bens jurídicos alheios, ou seja, não basta a
consciência, tem de haver intenção.
o Exemplo1: Se B, em estado de embriaguez, corta a sua própria orelha e não tem ninguém que
o leve ao posto médico, deverá abster-se de conduzir um veículo até ao hospital – art.292ºCP.
o Exemplo2: se A se lança numa corrida de esqui, mesmo depois de avertido dos perigos em que
incorre, deve o direito impedir que, mesmo tendo-se ferida numa queda, entre numa cabana
alheia sem autorização para solicitar socorro por telefone – art.190ºCP.
→ A própria provocação intencional do perigo não deverá servir para negar a justificação
por estado de necessidade quando se trata de proteger interesses de terceiro: seria
inadmissível que da provocação do agente pudesse resultar uma lesão não justificada
do terceiro posto em perigo.
o Exemplo: se A criou intencionalmente um perigo de incêndio na casa de habitação de
A e posteriormente se arrepende, pode louvar-se do estado de necessidade se entra
sem autorização na casa de C para chamar os bombeiros.

B. O princípio do interesse preponderante


De acordo com o disposto na alínea a) do art.34º, só tem lugar a justificação por direito de
necessidade se houver “sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao
interesse sacrificado”, ou seja, a lei exige que se pondere o valor dos interesses conflituantes.
Há uma ponderação de interesses no caso concreto, feita a priori pelo próprio legislador – há
critérios legalmente protegidos que depois serão tidos em conta pelo juiz para saber se aquela
conduta está ou não protegida pelo direito de necessidade – ponderar se, naquele caso
concreto, à luz das circunstâncias globais, o agente visa proteger um interesse preponderante.
• Hierarquia dos bens jurídicos em confronto – critérios relevantes para a ponderação:
→ O recurso à medida legal da pena constitui um dos pontos mais importantes para a
determinação da hierarquia respetiva – a vida de uma pessoa já nascida (art.131ºCP)
é hierarquicamente superior ao da “vida intrauterina” (art.140ºCP); direitos pessoais
prevalecem, em regra, a direitos patrimoniais.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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→ Intensidade da lesão do bem jurídico: importa saber qual o tipo de sacrifício que se
pede ao lesado para salvaguardar o interesse sob ameaça, ou seja, se está em causa o
aniquilamento completo do interesse ou só uma sua lesão parcial passageira – se for
ligeira, poderá admitir-se a justificação mesmo que o bem jurídico a salvaguardar não
tenha predominância.
o Exemplo: quem omite o auxílio devido em caso de acidente que põe em perigo pouco
grave a integridade física de outra pessoa (art.200ºCP), pode justificar-se que se afastou
do lugar do acidente por necessidade inadiável de participar numa importante reunião,
porque a sua falta acarretaria gravíssimos prejuízos patrimoniais, para ele ou para
outrem.
→ O grau do perigo: é fundamental perceber qual a probabilidade de o perigo se
materializar em dano, quer do lado do bem jurídico a ameaçar, quer do lado da
conduta típica. O grau de perigo que se faz sentir é essencial para avaliar a
superioridade do interesse.
o Exemplo: a corrida de uma ambulância que ponha de algum modo em perigo a vida
de um transeunte, sob a forma de negligencia (art.291º/2CP), pode justificar-se se ela
transporta um ferido grave, cujo tratamento é importantíssimo; se se tratar de um
ferido com apenas umas escoriações ligeiras ou uma perna previsivelmente partida,
não há justificação.
→ Autonomia pessoal do lesado [alínea c)]: o que se pretende salvaguardar é o princípio
da autonomia pessoal e, em última estância, a sua dignidade pessoal – a conduta não
pode ultrapassar essa dignidade, há limites a ter em conta, como a sua
autodeterminação e o poder de decidir o que lhes diz respeito, por exemplo, se podem
entrar na sua casa ou doar o seu órgão. A questão é saber se o sacrifício em causa é ou
não socialmente aceitável ao ponto de não chocar com a dignidade pessoal.
o Exemplo1: não está justificada a intervenção médica destinada a retirar, sem o seu
consentimento, um rim a A, cheio de saúde e que poderá viver só com um rim, mesmo
que essa seja a única forma de salvar a vida de B – apesar de o bem jurídico “vida de
B” ser de hierarquia superior ao da “integridade física de A”, a autonomia pessoal de
A, deve ser preservada.
o Exemplo2: no caso de C ser forçado – sem nenhum prejuízo grave para si – a dar
sangue, por ser a única pessoa com o tipo necessário indispensável à salvação de D: já
um sacrifício razoável de se impor a C, não sendo admissível invocar a violação da
autonomia pessoal de C.
→ A “imponderabilidade” da vida de pessoa já nascida [vida contra vida]: a vida é um
bem jurídico de valor incomparável e insubstituível, que ocupa um primeiro e
indisputável lugar na hierarquia dos bens jurídicos, pelo que não são legítimas
diferenciações qualitativas entre o valor de vidas humanas (p.e., a vida de um idoso
vale o mesmo que a de uma criança), nem ponderações quantitativas – uma vida vale
exatamente o mesmo que 10, 100 ou 1000 vidas. Assim, em caso de conflito de vida
contra vida, deve assentar-se no princípio da imponderabilidade da vida para efeito
de estado de necessidade justificante – tudo o que pode ficar em aberto é uma
eventual causa de exclusão de culpa.
• Coloca-se a questão de saber se este princípio deve ou não submeter-se a
limitações quando a ponderação deva ser levada a cabo perante outras vidas
humanas que, também elas, constituem fins em si mesmas – não se prende com a
“utilidade”, mas sim com o valor “ético” da preservação da vida dos outros. Ou seja,
é preciso saber se será possível descortinar casos em que o interesse preservação de
uma ou mais vidas prepondera sobre o sacrifício de outra ou outras.
o Comunidade de perigo: quando, havendo várias pessoas todas elas colocadas
numa situação comum de perigo para a vida, se sacrifica uma ou algumas delas
como única e adequada forma de impedir que outra ou outras pereçam.

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▪ Exemplo1: 2 náufragos agarram-se a uma tábua tentando alcançar a
praia, mas como a tábua só é capaz de suportar o peso de um, um
empurra o outro para a água, salvando-se aquele e morrendo o outro
afogado.
▪ Exemplo2: A, um dos vários montanhistas unidos por uma mesma
corda, resvala para o precipício, de tal modo que é impossível içá-lo e
a corda vai partir, arrastando todos eles, por isso, B, outro
montanhista, corta-a, matando A, mas salvando-se a si e a todos os
restantes.
A comunidade de perigo não pode, por si e por si mesma, justificar o facto
que sacrifica alguma ou algumas vidas para salvar outra ou outras – não é
juridicamente admissível que alguém se arrogue o direito de escolher quem
deva morrer e quem deva sobreviver, tal como não deve prevalecer a lei do
mais forte.
▪ No caso dos montanhistas, não há desde logo, qualquer escolha da
vítima, esta encontra-se “marcada pelo destino”, pelo que não é o
(des)valor da vida que se sacrifica que justifica o facto, mas o valor das
vidas que se salvam à custa de uma já condenada pelo destino. Assim,
nestes casos, Figueiredo Dias admite que se exclua a ilicitude – a
conduta de quem “antecipa” a morte do lesado, seria justificada.
▪ No caso da tábua, não há justificação porque seria admitir o direito do
mais forte, ficando, quanto muito, em aberto uma exclusão de culpa.

C. A “sensível superioridade” do interesse salvaguardado


Segundo a alínea B) do art.34º, para que a justificação seja reconhecida é necessário não
apenas que, na ponderação dos bens, o bem jurídico a salvaguardar prepondere sobre o
sacrificado, mas que haja “sensível superioridade do interesse a salvaguardar”.
No estado de necessidade, a ação de afastamento do perigo atinge, em regra, interesses de
terceiros, no sentido de estranhos à situação de necessidade, pelo que não se trata apenas de
hierarquizar bens ou interesses jurídicos, mas de selecionar “fatores de ponderação” que não
são estritamente de ordem, mas de “normal sensibilidade aos valores (cultural e socialmente
determinada)”.
Sensível superioridade – esta não será uma expressão quantitativa, em que o interesse
salvaguardado se situe muito acima do interesse sacrificado. Significa antes que a justificação
ocorra quando é clara, inequívoca ou terminante a superioridade à luz dos fatores relevantes
de ponderação.
Notas:
• A avaliação deve processar-se de acordo com critérios basicamente objetivos, mas, em
certos casos, não pode ficar de completamente fora de consideração a avaliação subjetiva da
importância do bem a salvaguardar
o Exemplo: não pode recorrer à justificação do direito de necessidade o médico que leva a cabo
uma intervenção cirúrgica que salvaria o paciente, mas que este recusa porque está disposto a
morrer (art.156ºCP).
• Perigos especiais: há casos em que a lei exige a certas pessoas um especial dever de sacrifício,
em virtude de certos estados ou profissões – não está aqui em causa qualquer “renúncia” do
titular do seu interesse ou bem jurídico, p.e., o polícia não está obrigado a deixar-se matar
ou ferir gravemente para salvação de bens pessoais de outra pessoa, mas pode ter de
suportar perigos acrescidos em nome da função ou do cargo que desempenham, ou de
utilizar apenas certos meios para salvaguarda de interesses próprios.

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D. A adequação do meio
O facto não está coberto por direito de necessidade se o agente utilizar um meio que, segundo
a experiência comum e uma consideração objetiva, não é idóneo/adequado para a proteção do
interesse ameaçado

1.2. REQUISITOS SUBJETIVOS


O agente deve conhecer a situação de conflito e atuar com a consciência de salvaguardar o
interesse preponderante.
Deve exigir-se uma vontade de defender o interesse preponderante? Não, seria conferir valor
decisivo aos motivos da ação.

2. ESTADO DE NECESSIDADE DEFENSIVO JURÍDICO-PENAL


O agente que atua em estado de necessidade defende-se de um perigo que tem origem na
pessoa que vai ser vítima da ação necessitada.
Sucede que, neste caso, o agente não pode louvar-se de uma legítima defesa, porque falta de
um requisito do facto perigoso:
o Ou porque nem sequer configura uma agressão – A, em pleno ataque epilético, vai
quebrar um jarrão de elevado valor de B, se não for afastado à força
o Ou porque não é ilícito – um automobilista, apesar de guiar com cuidado e em
observância de todas as regras, entra em derrapagem e mata um peão
o Ou porque não é atual – C, a quem D furtou uma bicicleta, encontra-o com ela no dia
seguinte e ofende levemente a sua integridade física como única forma de recuperar o
objeto furtado
A generalidade na doutrina entende que, nestes casos, deve ser creditada a justificação.
Contudo, há muitas divergências quando a saber qual a concreta causa de justificação que lhes
credita e, por conseguinte, quais os seus pressupostos.
Existem 2 grandes vias de solução:
→ Uma via pretende-se reconduzir ainda a situação ao direito de necessidade
justificante acentuando que esta dificuldade se pode ultrapassar através de uma
correta interpretação do que seja a “sensível superioridade do interesse a
salvaguardar”: quando ela não se reduza a um conflito de bens jurídicos, mas se
alargue, como deve, a uma ponderação global e concreta do conflito de interesses em
jogo – onde isso não for de todo possível, a justificação deve ser negada.

→ Outra via, cingindo-se rigorosamente à hierarquia dos bens jurídicos conflituantes,


defende que a via anterior é inaplicável e que a única solução reside em criar uma
causa supralegal de justificação – o estado de necessidade defensivo. Teria como
pressupostos:
o Uma situação de defesa à qual falta um dos pressupostos indispensáveis para
configurar uma situação de legítima defesa
o A impossibilidade para o agente de evitar o perigo
o A necessidade do facto para o repelir, desde que
o O bem lesado pela defesa não seja muito superior ao bem defendido

→ Figueiredo Dias diz que não há necessidade de autonomizar esta categoria porque o
estado de necessidade defensivo participa do fundamento do estado de necessidade
justificante: o de conferir prevalência, numa situação complexa de conflito de bens
interesses, ao interesse que, numa consideração global da situação concreta, deva
representar-se como o de maior valor. Sem prejuízo de se admitir, em princípio, a
distinção conceitual entre estado de necessidade interventivo e defensivo, não parece
impossível ou inadequado submeter ambas as figuras à regulamentação contida no
art.34º, fazendo, assim, do estado de necessidade defensivo apenas um aspeto mais

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da ponderação de interesses conflituantes como cerne da figura do direito de
necessidade.

3. O conflito de deveres de atuar justificante do art.36º


Existe quando colidem distintos deveres de ação, dos quais só um pode ser cumprido.
o Exemplo: quando o pai vê 2 filhos em risco de se afogarem e apenas pode salvar um
deles.

❖ Fundamento de autonomia
Remetendo esta figura pura e simplesmente para o direito de necessidade teríamos que a
justificação só teria lugar se o dever cumprido fosse de valor sensivelmente superior àquele
que se infringe. Deste modo, seria ilícito o facto de o pai salvar apenas um dos seus dois filhos
em risco de afogamento, porque este salvamento tornou impossível salvar também o outro.
A única solução materialmente justa é considerar justificado o facto correspondente ao
cumprimento de um dos deveres em colisão, mesmo à custa de deixar o outro incumprido,
supondo que o valor do dever cumprido seja pelo menos igual ao daquele que se sacrifica.

❖ Regime
• No conflito de deveres, contrariamente do que sucede no conflito de bens, o agente não é
livre de se imiscuir ou não do conflito. Mesmo perante deveres iguais, ele deve pelo menos
cumprir um deles, sob pena de o seu comportamento ser ilícito. Se, com isto, ele torna
impossível o cumprimento do outro dever, em todo o caso o seu comportamento, porque
correspondente a uma imposição jurídica não pode ser ilícita. No caso do pai, se não conseguir
salvar nenhum dos 2, mas tiver tentado salvar um deles, a conduta será justificada.
• Também no conflito de deveres o resultado da ponderação não deve resultar simplesmente
da hierarquia dos bens jurídicos em colisão, mas da ponderação concreta dos interesses em
conflito no quadro da situação global.
o Exemplo: se uma corporação de bombeiros é chamada simultaneamente para apagar
2 incêndios, deve dar preferência ao que se revele de maiores proporções, ou
contenha maiores perigos para as pessoas, ou ameace bens patrimoniais de maior
valor.

II. OS CONSENTIMENTOS JUSTIFICANTES


1. CONSENTIMENTO REAL OU EFETIVO – ART.38ºCP
Estão em causa situações em que o agente pratica um facto típico, mas com o (real e efetivo)
consentimento do lesado.
o Exemplo: numa peça de teatro, uma atriz permite que o outro ator lhe dê uma bofetada.
No consentimento o que temos é a realização de um facto típico com a manifestação de
vontade concordante, sendo que esta manifestação afasta a ilicitude ou tipicidade (o típico
incriminador nem se preenche).

❖ Fundamento: a legitimação da força justificante do consentimento provem da intenção


político-criminal de fazer com que em certos casos, perante a vontade de auto-realização do
titular do bem jurídico, o direito penal permita que essa vontade se sobreponha ao interesse
comunitário de preservação do bem jurídico e acabe por lhe conferir prevalência – a lei resolve
o conflito de interesses concedendo prevalência à realização do “sistema pessoal” do agente
sobre a perda ao nível do “sistema social”.

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❖ Estatuto dogmático-sistemático do consentimento
1. Sistema monista – acordo que exclui a tipicidade: o consentimento não constitui nunca
uma causa de justificação, mas sempre uma causa de exclusão da tipicidade do facto.
Em todos os casos em que a lei proteja a liberdade de disposição do individuo, o acordo
do interessado faz com que não possa, nem deva falar-se da violação do bem jurídico.
Deste modo, o consentimento seria sempre uma causa de atipicidade do
comportamento, porque nem está preenchido o típico incriminador.
2. Sistema dualista – consentimento que exclui a ilicitude: Costa Andrade afirma que
continua a ser essencial levar a cabo uma distinção fundamental entre acordo e
consentimento e propõe uma contraposição entre o sistema pessoal e o sistema social
(valoração social a um interesse protegido) – é preciso ver se a concordância está ou não em
oposição com aquele bem jurídico.
a. Há casos em que o acordo do interessado faz com que a realização do
comportamento corra no mesmo sentido da tutela do e jurídico e faça com que
a ação, antes de “lesar” o bem jurídico contribua para a sua mais perfeita
realização.
o Exemplo: “introdução em casa alheia” – se A se põe de acordo com B no sentido
em que este vá a sua casa jantar. Aqui, a introdução de B em casa de A não
representa qualquer lesão para o seu bem jurídico (intimidade da vida privada),
pelo contrário, a vontade manifestada consiste numa realização daquele bem
jurídico – a concordância designa-se acordo.
b. Contrariamente, há outros casos em que a lei se depara com um autêntico
conflito entre o valor da auto-realização pessoal e uma perda efetiva ao nível
do bem jurídico efetivamente lesado, ou seja, entre o “sistema pessoal” e o
“sistema social”. Por exemplo: A consente que B lhe dê uma pancada – a lei
pode conceder prevalência à auto-realização de A, mas se o faz, fá-lo em
detrimento da “perda” (ao nível do sistema social) de bens jurídicos que
efetivamente lhe competia proteger – a integridade corporal de A. Nestes casos,
o conflito é inarredável e a sua solução depende de qual o bem jurídico
conflituante a lei entende dar prevalência – a concordância assume a forma de
consentimento.
Deste ponto de vista, em que há um choque entre o sistema pessoal e o sistema
social, o que leva à exclusão da ilicitude é a prevalência da autonomia privada.

❖ Pressupostos de eficácia do consentimento justificante


1. Caráter pessoal e a disponibilidade do bem jurídico:
a. Caráter pessoal – o bem lesado tem de ser pessoal porque só este tem um titular
individualizável e porque, se e a relevância do consentimento advém do respeito
pelo valor da auto-realização pessoal, só a pessoa pode prestar de forma eficaz
o seu consentimento
b. Disponibilidade do bem jurídico – quais são os bens jurídicos disponíveis? Bens
jurídicos comunitários. Quanto aos bens jurídicos individuais, o património é, em
princípio, disponível pelo seu titular; quanto à vida e à integridade física, a sua
disponibilidade é altamente questionável.
➢ Vida: a doutrina segundo a qual a vida constitui um bem jurídico
absolutamente indisponível é praticamente unânime. Contudo, só é
indisponível perante lesões provenientes de terceiros, não quando
provenientes do seu próprio titular – daí que o suicídio, mesmo que de
forma tentada, não constitua um ilícito típico. Já perante ataques de
terceiros, a prova positiva resulta da circunstância de constituir um ilícito
típico punível o matar alguém, ainda que com o seu consentimento,

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perante pedido sério (art.134ºCP), ou ajudar alguém a cometer suicídio
(art.135º).
➢ Integridade física: poderá considerar-se disponível, mesmo face a
ataques de terceiros. Contudo, o art.38º estabelece um requisito
negativo quanto aos bons costumes, pelo que a questão quanto à
integridade física só pode ser decidida em definitivo à luz desta cláusula.

2. A não contrariedade do facto consentido aos “bons costumes”: o entendimento desta


contrariedade deve remeter para a ideia de que o facto consentido constitui ofensa
sempre que ele possui uma gravidade e sobretudo uma irreversibilidade, de tal modo
que, apesar da disponibilidade do bem jurídico, a lei valore mais a sua lesão do que a
auto-realização do seu titular. Portanto, o consentimento será ineficaz quando a ofensa
à integridade física possua uma gravidade – nomeadamente uma irreversibilidade, p.e.,
uma mutilação. Pelo contrário, quando seja uma ofensa simples e passageira não
ofenderá os bons costumes, quaisquer que tenham sido os motivos ou os fins que
tenham estado na base do consentimento.

3. O ato de autodeterminação – condições relativamente a quem consente:


a. Incapacidade e representação (art.38º/3): quem consente tem de ser capaz de
compreender o alcance do facto e o significado do consentimento. O que supõe
a maturidade é a idade (+16 anos) e uma certa normalidade psíquica (não pode
sofrer de nenhuma anomalia psíquica). Em caso de incapacidade penal – a
legitimidade para consentir em nome do incapaz cabe ao seu representante
legal.
b. Falta de liberdade da vontade (art.38º/2): o consentimento deve traduzir uma
vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegida.
➢ Consentimento esclarecido: no âmbito das intervenções médico-
cirúrgicas (art.157ºCP) exige-se que que o consentimento seja
informado – sempre que possível, o paciente deve ser previamente
informado quanto aos riscos inerentes dessa intervenção.
➢ Consentimento livre: não pode sofrer de qualquer vício de vontade
(ameaça, coação, engano e erro). Atualmente, a doutrina leva a cabo
uma consideração diferenciada:
o Ameaça (art.153º) e coação (art.154º) – devem conduzir à
ineficácia do consentimento por meio delas obtido.
o Engano (erro provocado) e erro em sentido estrito
(espontâneo):
▪ Engano: faz-se uma distinção entre erros que se referem a bens jurídicos
e erros que não se referem a bens jurídicos:
• A eficácia do consentimento só pode ser posta em causa se o
engano se referir ao bem jurídico, ou seja, se o erro cai dentro da
área de tutela da norma de proteção. Exemplo: se A receita a B certos
comprimidos, ocultando dolosamente que estes vão prejudicar a sua
saúde. Aqui o erro diz respeito à própria lesão que vai sofrer.
• Quando está em causa um engano não referido ao bem jurídico o
consentimento é eficaz. Exemplo: no caso em que o gerente de uma
clínica falida obtém de C o consentimento para doar sangue contra o
pagamento de uma soma de dinheiro, ocultando a situação de falência,
pelo que no fim não lhe presta o tal pagamento – aqui não foi posta em
causa uma manifestação de autonomia pessoal do lesado perante o bem
jurídico da integridade física. É irrelevante para o bem jurídico o engano
do pagamento.

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• A doutrina faz uma distinção relativamente àqueles casos em que
quem consente se deixa iludir por uma finalidade altruísta.
Exemplo: no caso de Pedrogão, em que várias pessoas contribuíram
com doações para ajudar as vítimas, mas depois se soube que a
finalidade das doações não se verifica. Entre nós e a doutrina
maioritária, embora o engano não se refira especificamente ao
bem jurídico, o consentimento deve ser considerado ineficaz.
▪ Erro em sentido estrito: parte da doutrina entende que o erro é
irrelevante e, por conseguinte, o consentimento eficaz, salvo quando o
erro seja conhecido do agente e por ele aproveitado ou quando sobre
este impenda um dever jurídico de esclarecimento. O que acontece é que
o autor exprime a sua autonomia pessoal, mas de forma errada: do autor
do facto nada mais se pode exigir senão que se deixe conduzir pela
expressão da vontade do titular do bem jurídico, salvo se ele souber que
radica num erro. Exemplo: se A pede a B que consinta o derrube de uma
árvore do jardim de B e este, em resposta escrita, lhe comunica
erradamente “consinto” quando a sua intenção era ter escrito “não
consinto”, não pode deixar de se considerar eficaz o consentimento de A.
c. Formalismo (art.38º/2): a lei não obriga, em geral, a que o consentimento fique
registado, podendo haver diferentes maneiras de transmitir a concordância
(“por qualquer meio”). Não são exigidos quaisquer formalismos, basta que ele
existe e seja manifestado. Contudo, existem casos especiais – quando o
consentimento só é idóneo a excluir a ilicitude se for manifestada antes da
prática do facto. Por isso também se afirma que o consentimento é revogável
até à execução do facto.
o Nota: se o consentimento não for revogado e não houver razoes subsequentes
para supor que o autor do documento mudou de opinião, não há fundamento
bastante para que se ponha em dúvida a validade do consentimento (vale
sobretudo para o chamado testamento de paciente).

4. Conhecimento do consentimento: o consentimento deve ser conhecido de quem o


recebe, quando tal não aconteça o agente deve ser punido, não por crime consumando,
mas (analogicamente) por tentativa.

2. O CONSENTIMENTO PRESUMIDO – ART.39ºCP


Estão em causa situações em que o titular do bem jurídico lesado não consentiu a ofensa, mas
teria presumivelmente consentido se lhe tivesse sido possível pôr a questão. Há casos em que
alguém se depara com uma situação em que parece fazer sentido realizar um facto típico, mas
não está em condições de receber o consentimento para tal – daí que se fale em caráter
subsidiário do consentimento presumido: este só entra em jogo se não for possível obter a
manifestação expressa da vontade ou houver perigo sério na demora.
o Exemplo1: nas intervenções médico-cirúrgicas, quando o paciente não se encontra em
condições de prestar eficazmente o seu consentimento (por estar inconsciente), mas a
necessidade de intervenção não se compadece com demoras (exemplo de grande relevância
prática)
o Exemplo2: casos de vida diária como quando um vizinho entra na casa de outro sem
autorização para fechar uma torneira que foi deixada aberta e está a causar uma inundação.

❖ Fundamento: reside numa presunção, não do interesse do lesado, mas da direção da sua
vontade: seria uma equiparação a um consentimento real de um facto no qual o lesado teria
presumivelmente consentido se tivesse conhecido a situação (art.39º/1). Neste sentido, a
autodeterminação do lesado não é ofendida quando o agente, numa consideração objetiva e ex
ante, pratica solidariamente o facto numa situação em que uma decisão não pode ser retardada.

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❖ Requisitos de eficácia
1. Uma vez que o consentimento presumido se equipara ao consentimento efetivo, hão-
de concorrer, em princípio os mesmos requisitos, desde logo, deve dizer respeito a
interesses jurídicos livremente disponíveis e que o facto não ofenda os bons costumes.
2. A presunção tem que referir-se ao momento da prática do facto, sendo irrelevante a
esperança de uma posterior aprovação.
3. Necessidade de uma decisão que não pode ser retardada (há um perigo de demora,
não seria seguro aguardar pelo consentimento) e impossibilidade de ela ser tomada
pelo interessado
4. Verificar que a realização daquele facto seja provavelmente desejada pelo interessado
– deve sempre presumir-se que o interessado teria reagido como é normal e razoável.
O que conta é o momento ex ante: se naquele momento existiam razoes para
objetivamente considerar a presunção do consentimento, a ilicitude considera-se
excluída, mesmo que ex post se venha concluir que a vontade seria outra.
Nota: se, segundo um juízo ex ante, for reconhecível ou sabido que a vontade do
interessado estaria contra a intervenção, então esta não pode considerar-se justificada,
por mais desrazoável que se afigure tal vontade.
o Exemplo: no caso de uma testemunha de Jeová que se encontra inconsciente,
sendo indispensável uma transfusão de sangue para lhe salvar a vida – sabendo-
se que presumivelmente a sua vontade seria a de recusar essa transfusão, dado
ser conhecida a sua crença religiosa, a transfusão, apesar de necessária de forma
imediata, não pode considerar-se justificada em nome do consentimento
presumido.

III. OUTRAS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO


1. ATUAÇÃO OFICIAL
Ao titular de um poder são concedidos concretos direitos de intervenção cujo exercício,
numa relação igualitária, seria ilícito, mas que, no caso representam o exercício de um direito
(art.31º/2/b) ou o cumprimento de um dever (art.31º/2/c), sendo, por isso, além de típicos,
justificados na precisa medida.
Há muitos atos praticados por autoridades públicas que têm significado típico contra a
pessoa e/ou o seu património – são medidas que podem legitimamente ser atuadas pela
autoridade competente, inclusivamente com recurso à força, se tanto for necessário e
legalmente admissível. Exemplo: se o juiz decreta a prevenção preventiva de um sujeito, temos
um ato típico de sequestro – art.158ºCP).
Nestes casos, uma vez verificados os respetivos pressupostos formais e materiais de
legitimidade, a atuação oficial constitui uma causa de justificação, no quadro do exercício de
um direito ou no cumprimento de um dever.
Desde logo, é necessário que haja uma autorização legal – se os pressupostos legais
estiverem todos verificados, o facto será justificado; se o agente estadual atua com base numa
norma legal, o seu comportamento é lícito e, sendo ilícito, resultam várias consequências, tais
como:
o Não pode ser exercida legítima defesa contra ele. Exemplo: um polícia, deparando-
se com um assalto, vai ao local para deter o agente. Ao detê-lo, o agente tem de se
deixar prender, se reagir contra ele poderá incorrer num crime de desobediência ou
resistência (art.347º).

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2. OBEDIÊNCIA DEVIDA
O art.31º/2/c prevê que quando o facto típico seja praticado em obediência a uma ordem
legítima de superior hierárquico, não será ilícito. Neste sentido, o facto decisivo para a exclusão
da ilicitude será o cumprimento da ordem que o agente recebe.
Há, neste contexto, normas de grande relevância (art.271º/3CRP e arts.36º/2 e 31º/2/c):
adotam o princípio da proibição de obediência a ordens criminais. O dever de obediência cessa
quando conduz à prática de um crime – tudo vai depender da legitimidade da ordem:
• Se a ordem recebida pelo inferior conduz à prática de um facto criminalmente típico,
mas não ilícito – a ordem é legítima e de cumprimento devido e o facto está
justificado tanto perante o superior que deu a ordem como perante o inferior que a
cumpre, em virtude da obediência devida.
• Se o facto constitui um ilícito criminal, nunca a ordem oficial ou de serviço pode em
si mesma constituir uma causa de justificação.
→ Quem recebe a ordem está obrigado a cumpri-la? Tem de verificar se a ordem é
transmitida por quem tem competência para o fazer.
Há pressupostos de ordem formal de natureza material – deve ser substancialmente legítima:
aquele que a ordena tem base legal permita que se realize aquela concreta ação.
• Se a ordem for dada com base numa autorização legal, reunidos os factos dessa
autorização, a ordem é legítima, pelo que o inferior está obrigado a obedecer, sendo
a sua conduta justificada.
• Se a ordem não tiver cobertura legal, não pode obedecer porque se o fizer a sua
conduta será ilícita – há um dever de desobediência. Deste modo, decorre uma
consequência muito importante: não há o dever de obediência cega – quando o
funcionário recebe a ordem, tem a prerrogativa de examinar a legalidade dessa
ordem. A única reserva a esta prerrogativa situa-se no âmbito do exercício da ação
judicial: quando a ordem é dada pelo tribunal, em regra, o funcionário não pode
desobedecer à mesma.

O tipo de culpa
I.QUESTÕES BÁSICAS DA DOUTRINA DA CULPA
O princípio da culpa constitui uma máxima fundamental de todo o direito penal, tendo
natureza jurídico-constitucional (arts.1º e 2ºCRP). A prática pelo agente de um facto ilícito-típico
não basta em caso algum para que se possa aplicar a pena – a aplicação da pena supõe sempre
que aquele facto tenha sido praticado com culpa (art.40º/2).
Nesta sua configuração, é compreendida abrangendo 2 dimensões:
• A responsabilidade penal terá de ser uma responsabilidade própria: o facto deve
representar uma obra pessoal do agente, algo dominado por si, seja a título de dolo,
seja de negligência. Por conseguinte, proíbe-se a responsabilidade por facto de
outrem. O art.30ºCRP estabelece o princípio da personalidade da responsabilidade
penal, proibindo a transmissibilidade de penas – esta ideia de que a pessoa só deve
ser punida por facto pessoal é uma ideia que diz respeito à dignidade da pessoa – é
um direito absoluto que não admite transações.
• Quanto à sua natureza subjetiva, proíbe-se uma responsabilidade puramente objetiva,
pela simples causação de dano. Se isto fosse permitido, haveria o risco de as pessoas
serem punidas pelo acaso, pelo que apenas se permite a responsabilidade subjetiva
por dolo ou negligência.
O art.40ºCP prevê que a medida da pena não pode ser superior à medida da culpa, pelo que a
culpa pode ter diferentes medidas – a censura dirigida a A pode ser diferente da censura dirigida
a B. Isto leva a uma diferenciação entre factos dolosos, factos negligentes e respetivas culpas –
são fatores importantes para a graduação da culpa.

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II. O CONTEÚDO MATERIAL DA CULPA JURÍDICO-PENAL
Para apreensão exata do conteúdo material da culpa é necessário dar um passo na explicitação
do valor da garantia e da função limitadora inseridos no apelo à dignidade da pessoa humana.
Tal explicação costuma ser feita através de ideias de liberdade, igualdade e da solidariedade.
A liberdade da pessoa (neste contexto da pessoa do agente do facto ilícito-típico é o íntimo
pressuposto comum a toda a consideração da culpa.

1. TEORIAS DA CULPA DA VONTADE – A LIBERDADE COMO “LIVRE ARBÍTRIO”:

A. Culpa e poder concreto e individual de agir de outra maneira na situação


Há um juízo de censura pelo facto de o agente ter agido como agiu quando podia ter atuado
de outra maneira. O poder de agir de outra maneira na situação é, deste modo, requisito
irrenunciável do conceito de culpa – esta vê-se diretamente na decisão livre e consciente da
vontade a favor do ilícito.
Críticas:
• Indemonstrabilidade – é muito difícil, senão impossível, demonstrar que, naquele caso,
a pessoa poderia ter agido de outra forma: há demasiada margem de subjetividade
quando à questão do livre-arbítrio, quer no seu se, quer no seu quando, quer ainda não
seu quanto – é impossível conceber que o livre-arbítrio seja igual para todos.
• Insustentabilidade político-criminal – esta conceção conduz a consequências político-
criminais insuportáveis, que põe em causa a função do princípio da culpa no sistema:
o Sempre que o delinquente afirmasse não ter podido agir de outra maneira e não se
fizesse prova do contrário, a consequência seria forçosamente a absolvição.
o Há pessoas com maior tendência para o crime e esta tendência pode advir de
condições que não possam ser censuráveis (p.e., cresceram e viveram num meio
adverso). Consequentemente, os mais perigosos seriam os menos censurados em
virtude do seu diminuído poder de agir de outra maneira, sendo que são os que
merecem uma tutela penal mais efetiva.

B. Tentativas de abstração ou generalização do poder de agir de outra maneira


Reconduzem-se à tentativa de operar uma abstração do poder de agir de outra maneira na
situação e à correlativa generalização para o poder de que do agente se deve esperar ou exigir,
segundo um critério de “homem médio” ou invocando a “permeabilidade ao apelo normativo”
– característica do agente imputável e capaz de conhecer o ilícito.
Traduzem-se numa indiscutível realidade da nossa consciência social e humana, chegando-se
a afirmar que a culpa jurídico-penal é, neste sentido, culpa social.
O que está em questão é de continuar a aceitar o poder de autodeterminação como conteúdo
material da culpa, mas apenas como suposição de liberdade – não significa que o agente podia
facticamente agir de outra maneira, mas apenas que ele, em caso de orientação intacta e, por
via dela de “apelabilidade” normativa, é tratado como livre.
Críticas:
• Mantém-se o problema da imputação do facto à culpa nos casos em que não se dá (ou só
duvidosamente se dá) a suposta capacidade de “orientação”.
• É difícil compreender como é que a culpa pode cumprir a sua função de limite da medida
da pena se se trata de algo cuja existência se presume em função de um padrão
generalizante.

C. A culpa do (ou pelo) caráter


Uma outra via de superação reside em ligar o poder de agir de outra maneira e a culpa ao
caráter ou personalidade do agente.

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O que está em causa não é substituir a responsabilidade pelo facto por uma responsabilidade
pela personalidade, mas sim substituir a ideia de culpa, sempre com base no facto, não à
vontade que a este presidiu, mas ao caráter ou à personalidade que no facto que se exprime.
Críticas:
• Esta tese modifica o conteúdo material da culpa, mas não o seu critério e o seu
fundamento: o poder de agir de outra maneira e a consequente liberdade da vontade,
pelo que na sua base também a ideia de culpa repousará no fundamento não esclarecido
do livre-arbítrio.

2. TESES DA CULPA DA PESSOA – A LIBERDADE PESSOAL

A. Conceção básica – culpa ética (posição do curso)


Trata-se de uma substituição de uma liberdade indeterminista (“livre-arbítrio”) por uma
liberdade pessoal. O ponto de partida é a imagem que fazemos do Homem: não é um indivíduo
abstrato e isolado, mas Pessoa concreta e socializada, no sentido de que vive no mundo, em
sociedade.
O Homem tem de se decidir a si e sobre si, sem que possa em qualquer momento obviar-se de
tal decisão. Só existe enquanto age e, no plano da ação, é-lhe oferecida uma série de
possibilidades – o Homem determina a sua ação através da sua livre decisão sobre si mesmo.
Nisto reside a autêntica liberdade pessoal do Homem, a sua característica irrenunciável: ele,
no concreto existir, é sempre ser-livre. Consequentemente, daqui deriva o conceito material de
culpa jurídico-penal como violação pelo homem do dever de conformar a sua existência de
modo a que não lese ou ponha em causa bens jurídico-penais.
Portanto, tem a ver com a atuação do agente em sociedade e a forma como ele, ao agir em
sociedade se decide a si mesmo. O agente é portador de uma liberdade que vai materializar-se
em tudo aquilo que faz e que vai mostrando aquilo que é – materialmente a culpa é o ter que
responder pelas qualidades (pessoais) juridicamente desvaliosas da personalidade que
fundamentam um facto ilícito-típico e nele se exprimem, ou seja, a censura penal diz respeito
ao facto praticado que revela a sua personalidade e forma de estar contrárias à ordem jurídica.
Esta culpa dirige-se a uma personalidade desvaliosa, pelo que temos:
• Culpa dolosa
• Culpa negligente

O erro com relevo no âmbito da culpa – tipo de culpa doloso


I. CULPA E TIPO DE CULPA DOLOSO
Verifica-se apenas quando, perante um ilícito-típico doloso, se comprova que o seu
cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao
Direito e às suas normas.
Para que se possa censurar uma pessoa com um juízo de culpa doloso, a culpa dolosa tem de
corresponder a uma atitude de hostilidade, inimizade e indiferença pela norma penal. O agente
poderá ser censurado, a título de dolo se, ao praticar o facto, evidenciar uma atitude desvaliosa
manifestada naquele facto, que revela uma atitude de indiferença em relação à norma penal.
Uma censura desta natureza pressupõe, antes de mais, um conhecimento pleno das
circunstâncias de facto em que o agente atuou. Contudo, há casos em que o agente representa
o facto corretamente e, no entanto, não chega a formar uma noção de que está a atuar
ilicitamente. Esta falta de noção suscita problemas ao nível da culpa – quando o agente
percecionou toda a factualidade típica, pode acontecer que o agente não tenha chegado a
formar um conhecimento ou uma perceção da ilicitude do facto que está a praticar. Coloca-se,

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então, o problema da consciência do ilícito, ou seja, se esse erro pode ou não justificar a sua
responsabilização penal a título de dolo.

II. DOLO E FALTA DE CONSCIÊNCIA DO ILÍCITO

❖ EVOLUÇÃO DO TRATAMENTO LEGISLATIVO E DOUTRINAL


A. Doutrina normativista
1. TEORIA DO DOLO ESTRITA: segundo muitos autores, o cerne dos delitos dolosos reside
precisamente na consciência do ilícito com que o agente atuou. O normativismo
encarava a ilicitude como tendo uma natureza objetiva composta por um desvalor de
resultado – a contrariedade da situação em relação à ordem jurídica. Deste ponto de
vista, a dimensão subjetiva do facto (formada, sobretudo, pelo dolo) era localizada no
âmbito da culpa. Isto é, estas teorias entendiam que a culpa, que compreende o dolo,
abrange também a própria consciência da ilicitude: para que se pudesse censurar
alguém a titulo de dolo, teria de se comprovar que aquela pessoa tinha noção de que
estava a atuar ilicitamente e, mesmo assim, quis atuar. Daqui resultava que, se o agente
atuasse sem ter noção da ilicitude do seu facto, havia uma exclusão do dolo porque a
culpa dolosa pressupõe o conhecimento da ilicitude; nestes casos, o agente podia,
quanto muito, responder por negligência se o erro sobre a ilicitude em que incorrei fosse
censurável e a lei previsse expressamente a punição daquele tipo de facto também a
título de negligência.
→ Críticas:
o Censura-se as lacunas de punibilidade insuportáveis a que conduziria – a
condenação por qualquer crime doloso suporia a prova de que o agente atuou com
a consciência atual de que o seu facto era contrário ao direito, o que implica no
agente um conhecimento da ciência jurídica que não pode sequer ser naturalmente
presumido na generalidade da população criminosa.
o Esta forma de ver as coisas pode levar a resultados chocantes, nomeadamente
naqueles casos em que se conseguisse provar que o agente atua sem consciência
da ilicitude, mas essa falta de consciência fosse incompreensível do ponto de vista
social. Surgiram, então, várias correções a esta conceção.

2. TEORIA DO DOLO LIMITADA: defende que, em regra, a falta de consciência da ilicitude


deverá implicar a negação do dolo e, assim, da culpa dolosa. Mas no caso em que essa
falta de consciência é resultado de uma personalidade completamente desconforme ao
direito, de uma falta de compreensão em relação aos valores essenciais da ordem
jurídica, o agente responde por dolo. Foi neste contexto que o professor Eduardo Correia
avançou com a chamada “culpa pela não formação da personalidade” – nesses cassos,
o agente deveria ser censurado, não só pelo que fez, mas também por não ter orientado
a sua vida ou formado a sua personalidade em termos conformes à ordem jurídica. Estas
teorias foram criticadas pelos finalistas.

B. Doutrina finalista – para o finalismo, esta forma de encarar o problema não é


consentânea com o método da responsabilidade porque facilmente desculpa aquele que
deveria ser censurado e, por conseguinte, uma teoria assim desculpabilizadora não devia ser
aceite. Segundo esta doutrina, o dolo não se localiza no âmbito da culpa, mas no âmbito do
tipo e, por isso, corresponde a um representar e querer a prática do facto. Portanto, basta
que queira praticar o facto, não é necessário que tenha consciência da ilicitude. Avançaram
com as teorias da culpa:

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1. TEORIA DA CULPA ESTRITA: de acordo com esta, o problema sobre a proibição não afeta
o dolo porque o dolo corresponde ao conhecimento e vontade, sendo independente da
consciência da ilicitude, pelo que podia, quanto muito, implicar a exclusão de culpa
quando não fosse censurável. Neste contexto, surgiu uma outra polémica sobre uma
espécie de erro – o chamado ERRO SOBRE AS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO: o facto típico
indicia uma ilicitude e, em certos casos, a ilicitude pode ser afastada se o agente atuar ao
abrigo de uma causa de justificação. Por vezes acontece que o agente realiza o facto típico
sabendo que está a praticar o facto típico, mas está convencido de que está juridicamente
autorizado a atuar porque tem do seu lado uma causa de justificação, quando na verdade
não está. Este erro foi enquadrado pelas várias doutrinas referidas em modos similares:
• Doutrina do dolo: este tipo de erro, porque implica uma falta de consciência da
ilicitude, também deve levar ao afastamento do dolo. Fizeram-no através da
compreensão dos tipos justificadores como elementos negativos do tipo: o tipo
ilícito teria elementos positivos (matar uma pessoa) e elementos negativos
(aqueles que excluem a ilicitude).
• Teorias da culpa: mantinham a ideia de que o dolo não releva ao nível da ilicitude
e só poderia levar, no máximo, à exclusão da culpa. Dentro destas teorias, surge
uma forma de tratar o problema que ainda hoje perdura: teoria da culpa limitada.

2. TEORIA DA CULPA LIMITADA: defende que a punição do agente a título de dolo sempre
atue com culpa não deve ter lugar sempre que, apesar de ter atuado com conhecimento
e vontade de realização do tipo objetivo, a falta de consciência de estar a praticar um
facto ilícito provenha de ter suposto falsamente a existência dos pressupostos materiais
de uma causa de justificação. Dentro do erro sobre as causas de justificação há que
distinguir 2 situações:
• Erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação: o agente atua
pensando que estão reunidas as circunstâncias que o autorizam a atuar
ilicitamente quando não estão, pelo que se deve excluir o dolo por ser
materialmente parecido ao erro sobre a factualidade típica.
• Erro sobre a existência ou limites da causa de justificação: o agente sabe e
conhece toda a factualidade, mas pensa que tem um direito de agir tipicamente
quando na verdade não tem. Exemplo: há muitos anos, quando um professor
batia num aluno com régua para o castigar, era socialmente aceite e estimulado,
era o chamado direito de correção. Atualmente, a lei proíbe que o professor exerça
violência física sobre o aluno. Se o professor, numa determinada situação, dá uma
bofetada ao aluno para o corrigir porque achar que está em conformidade com o
direito por achar que é um direito de correção, há um erro sobre a ilicitude ou
proibição. Aqui, o dolo existe e só leva à exclusão de culpa.

3. CONCLUSÃO INTERMÉDIA – FIGUEIREDO DIAS


A conclusão a retirar é que existem 2 espécies de erro jurídico-penalmente relevantes, a
cada uma das quais cabem diferentes formas de relevância e diferentes efeitos sobre a
responsabilidade do agente:
• Uma das espécies exclui o dolo, ficando ressalvada a punibilidade da negligência nos
termos gerais;
• A outra espécie exclui a culpa se não for censurável (causa de exclusão de culpa) – se
for censurável deixa persistir a punição a título de dolo, podendo a pena ser
eventualmente atenuada.
• Nota: um erro que exclui o dolo existe em 3 casos:
o Quando verse sobre elementos, de facto ou de direito, de um tipo de crime

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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o Quando verse sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de uma
causa de exclusão da culpa
o Quando verse sobre proibições cujo conhecimento seria razoavelmente
indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito

➢ Qual a diferença de culpa que permite distinguir um erro que exclui o dolo e outro que
não o exclui? Critério de autonomia da falta censurável da consciência do ilícito e a culpa dolosa
→ O erro excluirá o dolo sempre que determine uma falta de conhecimento necessário
a uma correta orientação da consciência ética do agente para o desvalor. Por isso,
estamos perante uma deficiência da consciência psicológica, imputável a uma falta de
informação ou esclarecimento que, quando censurável, revela uma atitude interna de
descuido perante o dever-ser jurídico-penal, conformando-se com o tipo específico da
culpa negligente.
→ O erro fundamenta o dolo (da culpa) sempre que, embora detendo todo o
conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, o agente atua em
estado de erro sobre o caráter ilícito do facto. Neste caso, o erro não radica ao nível
da consciência psicológica, mas ao nível da própria consciência ética, revelando falta
de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal.
Assim, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença
perante o dever-ser jurídico-penal e conforma-se com o tipo específico de culpa
dolosa.
→ É esta conceção básica que está na base do regime constante dos arts.16º e 17ºCP.

❖ Erro intelectual ou de conhecimento VS erro moral ou de valoração


Transpondo esta conceção para o plano dogmático da teoria do erro, Figueiredo Dias
aborda o problema com base numa nova dicotomia:
→ ERRO INTELECTUAL: o que importa é averiguar se o agente, quando atuou, estava na
posse de todos os dados necessários para formar um juízo de ilicitude. O que está em
causa é uma falta de conhecimento pois não dispunha de todos os dados para levar a
cabo um juízo plenamente informado sobre a ilicitude do facto e o consequente
significado desvalioso do comportamento. Nestes casos, de falta de ciência ou
conhecimento positivo, são erros que excluem o dolo (art.16ºCP).
→ ERRO MORAL: situações em que o agente representa de forma completa e cabal todos
os dados de facto que envolvem a questão – se ela representar toda a factualidade e
pensar que atua conforme ao direito, temos um problema de consciência, de
valoração do significado antijurídico daquele facto, pelo que estamos num plano ético
que já não se coloca no plano do dolo, mas no plano da culpa. O que falta aqui é a
perceção do significado de desvalor do comportamento (art.17ºCP).

❖ Delimitação da falta de consciência do ilícito e as suas espécies


Importa agora determinar o que é a consciência do ilícito em causa para efeito de afirmação
ou negação da culpa dolosa, sendo que, tratando-se de uma verdadeira falta de consciência do
ilícito, há que determinar se ela é ou não censurável (art.17º/1CP).
A maioria da doutrina faz equivaler a consciência do ilícito à consciência da ilicitude como
juízo de desvalor jurídico da ação, ao que acresce outro ponto: o do que não se exige para
afirmação do dolo da culpa uma clara e distinta forma de consciência, mas bastará uma
advertência do sentimento no sentido da ilicitude da conduta. Daqui decorre um conjunto de
consequências:
1. Consciência do ilícito e consciência da imoralidade da ação:
A consciência do ilícito não equivale à consciência da imoralidade da ação: a censura dirige-
se à falta de consciência da norma jurídica de comportamento. Por outro lado, a norma

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jurídico-penal não coincide, nem se fundamenta em qualquer normal moral, mas na
necessidade de proteção subsidiária de bens jurídico-penais.

2. Consciência do ilícito e consciência da punibilidade:


A falta de consciência do ilícito não deve ser afirmada quando o agente tomou consciência
de que a sua conduta era contraria ao direito, mas não concretamente ao direito penal. Seria
exigir do agente uma consciência da ilicitude penal ou da punibilidade do facto.
O caráter ilícito do facto, cuja consciência ou falta dela releva para a culpa, não se confunde
com a sua punibilidade ou natureza jurídico-penal: à afirmação do dolo basta a consciência
do sentido de desvalor jurídico que à conduta concreta se liga.

3. Cindibilidade (tipicidade) da consciência do ilícito:


Não basta à requerida consciência do ilícito a consciência de qualquer desvalor jurídico, é
necessário que o desvalor de que o agente tomou consciência corresponda no essencial ao do
ilícito típico praticado. Caso contrário, seria aceitar uma violação ao princípio da culpa: toda a
culpa se afirma só na base do concreto ilícito-típico praticado e o objeto da censura da culpa
não pode ser uma culpa geral da personalidade, mas apenas uma atitude pessoal que se
exprime no singular tipo de ilícito e fundamento.

4. Consciência do ilícito e não da ilicitude


4.1. Desconhecimento da lei (da proibição) e consciência do ilícito: importa realçar o que
verdadeiramente separa a falta de consciência do ilícito-típico requerida pela culpa da
ignorância da lei ou da proibição. O agente pode não ter conhecimento da norma geral ou
da proibição abstratamente aplicáveis, mas possuir a consciência do ilícito relevante para
a culpa. Isto pode acontecer, sobretudo, nos casos em que a valoração jurídico-penal da
ilicitude se encontra incluída numa valoração mais ampla – moral, social ou cultural – de
que o agente tem consciência e que pode, em concreto, revelar-se mais importante e
decisiva para a aquisição da concreta consciência do ilícito. Não pode negar-se a
possibilidade de o agente, mesmo na completa ignorância da lei ou proibição aplicáveis, ser
conduzido à consciência do ilícito pela sua intuição ou pelo seu sentimento jurídico.

4.2. Conhecimento da lei (proibição legal) e falta de consciência do ilícito: o agente pode
representar a lei ou proibição abstratamente aplicável ao caso e não possuir, contudo, a
consciência do ilícito relevante para a culpa.
• É o que sucede quando se trate de erros que recaem sobre elementos normativos do
tipo: o agente pode atuar com conhecimento da proibição geral e mesmo do conteúdo
exigido dos elementos normativos do tipo e, ainda assim, não alcançar a consciência
do ilícito do comportamento, como tal concretamente levado a cabo.
Exemplo: A, que mal informado pelo seu advogado ou mesmo induzido em erro sobre a leitura
de uma sentença judicial anterior quanto ao conteúdo e significado de um elemento normativo,
leva a cabo um comportamento concretamente ilícito, na convicção de que é lícito.
• O mesmo se diz quando se trate de um erro sobre a existência ou os limites de uma
causa de justificação ou de exclusão de culpa.
Exemplo1: B pode, conhecendo a aludida proibição, bater em C como meio adequado de
recuperar a bicicleta que este lhe furtou uns dias antes, na convicção errada de que age a
coberto do direito de legítima defesa.
Nestes casos configura, não um erro que exclui o dolo nos termos do art.16ºCP, mas
uma forma de falta de consciência do ilícito ou de erro sobre a ilicitude que, nos termos
do art.17ºCP, não exclui o dolo, embora possa excluir a culpa.

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III. ERRO SOBRE OS PRESSUPOSTOS DE UMA CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO – ART.16º/2CP
1. Noção:
O agente erra sobre uma situação que, se existisse, excluiria a ilicitude do facto, ou seja,
objetivamente não se dão os elementos justificadores exigidos, mas o agente supõe falsamente
que eles se verificam. O dolo que está em causa não é o dolo do tipo, sobre a factualidade típica,
mas sim o chamado dolo da culpa. Estamos perante situações de justificação putativa – uma
justificação que o agente pensa que existe, mas não existe – ou de erro sobre os elementos do
tipo justificador.
Exemplo: o médico C interrompe a gravidez de D, a pedido desta, porque lhe fora diagnosticada uma
doença que poria em perigo a sua vida se a gravidez continuasse; vem depois a comprovar-se que D não
sofria da tal doença e se tratara de um erro de diagnóstico.

Notas:
❖ Não se enquadram aqui os casos em que o agente não incorre em qualquer erro relativo
aos pressupostos de uma causa de justificação, mas supõe falsamente a existência de uma
causa de justificação que a ordem jurídica não reconhece ou erra sobre o âmbito ou os limites
de uma causa de justificação efetivamente existente.
o Exemplo: A furta a pasta de B e foge; no dia seguinte, B encontra A com a sua pasta e agride-o
para a recuperar, supondo que o seu facto é considerado legítima defesa, quando, na verdade,
esta só permite repelir agressões atuais (art.32ºCP).
Nestes casos não se trata de um erro de conhecimento ou intelectual, mas de um erro de
valoração, pelo que deve ser tratado nos quadros do problema da falta de consciência do
ilícito.

❖ A questão que se coloca é a de saber se, nos casos em que atua em erro sobre os
pressupostos da causa de justificação, o agente deve ser punido a título de dolo ou de
negligência. A solução é apontada pelo art.16º/2CP: exclusão do dolo. Apesar desta
solução definitiva, permanecem divergências suscitadas ao nível de diversos pontos
importantes do facto punível:
→ O ponto de partida da discussão reside na controvérsia entre a teoria do dolo e a teoria
da culpa (VER PÁGINA 15). A solução da teoria da culpa limitada é a correta: a situação de
quem erra sobre os pressupostos do tipo justificador é materialmente idêntica à de
quem era sobre os elementos que pertencem a um tipo incriminador, ao nível da
responsabilidade dos agentes – nenhum deles tem, por virtude do erro em que incorre,
a sua consciência ética corretamente orientada, nem possuem o conhecimento
indispensável (consciência psicológica) a uma correta avaliação da ilicitude.
Consequentemente, a consequência deve ser a mesma – exclusão da punição a título de
dolo.
→ Se o agente poderia ter evitado o erro através de uma cuidadosa comprovação da
situação justificadora fica fundada uma eventual condenação pelo facto a título de
negligência, se o respetivo tipo de ilícito previr a punibilidade a este título (art.16º/3CP).

❖ Uma questão muito importante é a de saber qual o ponto de vista que se deverá adotar
para verificar se realmente o agente incorreu em erro ou não: se é o ponto de vista ex-ante
ou ex-post. Há casos em que, do ponto de vista do agente, nada levaria a supor que não
estaria verificada a situação de facto, ou seja, ex-ante tudo aquilo que sucedeu levaria a
pensar que, sem que pudesse ser censurado por isso, a situação de facto justificante estava
verificada. No entanto, a teoria prevalente é a que coloca do ponto de vista relevante para
aferição do erro, no momento ex-post – vamos olhar para trás e verificar se houve ou não
divergência entre o que agente julgou que acontecia e o que de facto aconteceu.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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1. ERRO SOBRE A ILICITUDE – ART.17ºCP
1. Noção:
O erro sobre a ilicitude prende-se com a questão de estarmos perante situações em que há
uma dissonância da valoração que a ordem jurídica penal faz de um certo comportamento e a
valoração que o agente faz. Ou seja, há uma desconformidade entre a forma como
ordenamento jurídico valora um certo facto e a forma como a agente valora esse facto.
▪ Exemplo1: um médico realiza uma transfusão de sangue a uma testemunha de Jeová, sabendo que,
sendo testemunha de jeová, não aceitaria a transfusão se estivesse consciente, mas está convencido
de que é o seu dever enquanto médico. Então, atua com uma consciência diferente daquela que é
postulada pela ordem jurídica – intervenções médicas só podem ser realizadas com consentimento
ou presunção de consentimento.
▪ Exemplo2: numa família cigana, os pais promovem um casamento da filha de 14 anos com um
homem mais velho, como manda a tradição cigana. Os avós estão convencidos de que é um facto
aceitável, embora, de acordo com o art.?, não seja.

Nestas situações, em que o agente atua de forma típica, que resposta deverá ser dada pelo
direito penal, quando se conclua que o agente não formou, ao nível da sua consciência ética
uma valoração da ilicitude do facto – estamos perante um erro de ilicitude. Este tipo de erro
convive com outra espécie de erro – erro sobre as proibições legais (1).
O critério distintivo é o seguinte: se o conhecimento da proibição for indispensável para que
o agente forme a consciência da ilicitude, temos um erro de conhecimento (1) e é excluído o
dolo. Se, pelo contrário, essa falta de perceção de ilicitude do facto deriva de uma errada
valoração de facto (erro moral), estamos no plano do art.17ºCP. A regra é de que se passe pela
identificação da relevância ética daquela conduta antes e independentemente da proibição
legal:
• Quando o facto em si mesmo é eticamente neutro quando dissociado da proibição, ou
seja, se não se desperta na generalidade das pessoas como um problema de ilicitude,
então, o conhecimento da factualidade típica em si mesmo não é suficiente para que se
afigure o dolo, é preciso que o agente conheça a proibição: art.16º/1/2ª parte – se o
agente atua desconhecendo essa proibição, atuando sem noção da ilicitude, ele atua sem
dolo.
• Se o facto for efetivamente relevante à luz das valorações, morais, culturais dominantes,
antes e independente da proibição, então, o enquadramento normativo é o do art.17º
CP.

❖ A questão que se coloca aos casos conduzidos ao art.17º é a da consequência para o agente.
Importa, desde logo, a comprovação do erro – para que se possa dizer que estamos perante
um caso de erro sobre a ilicitude, é preciso que se prove que, na realidade, o agente atuou
convencido da legalidade da sua atuação. Que critérios devem ser tidos em conta para avaliar
se atuou em erro ou não? Requisitos:
o Não é necessário que o agente tenha uma perceção completamente nítida do caráter
ilícito da sua conduta e dos termos em que ele é ilícito penalmente, basta que ele tenha
uma noção vaga dessa contrariedade à ordem jurídica. Portanto, só quando o agente
não tinha a mínima noção.
o O agente tem de formar um juízo de ilicitude penal? Tem de equacionar de que aquilo
que está a fazer é um crime ou basta que tenha uma noção de contrariedade à ordem
jurídica? A larga maioria da doutrina tem vindo a entender que a noção de contrariedade
é suficiente.

❖ Haverá casos em que esse erro poderá não ser censurado e, se assim for, o agente será
absolvido. A questão é a de saber se o erro é ou não censurado. A chave da questão está na
censurabilidade do erro.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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Como o que está em causa é um erro de valoração, a censurabilidade do erro não deve ser
definida à luz da possibilidade de o agente se inteirar do regime jurídico que vale para aquela
situação, isto é, não pode ser resolvida em função da possibilidade de o agente procurar
saber qual o regime aplicável – a censurabilidade não radica no descuido da falta de
empenho na obtenção de informação necessária para formar o juízo de ilicitude, mas na
própria personalidade do erro, ou seja, se está a ter uma personalidade desconforme ao
direito penal. Deve perguntar-se se a falta de consciência da ilicitude advém de uma
personalidade desconforme à ordem de valores, daí que o que importa é saber se o agente
atua ou não com uma consciência ética /consciência reta. Nas situações em que se possa
concluir que o agente atuou em erro, mas com consciência ética, a culpa é excluída. Ou seja,
apesar da ilicitude praticada, procurou prosseguir valores que são vistos como positivos pela
ordem jurídica. Se, pelo contrário, não poder verificar-se uma consciência ética, porque
manifesta naquele facto uma personalidade desconforme à ordem jurídica, será censurado
a título de dolo.

2. A OBEDIÊNCIA INDEVIDA DESCULPANTE – ART.37ºCP


1. Noção:
Liga-se à obediência indevida (art.31º/1/c CP) – se a ordem for ilegítima, por não haver base legal
para praticar o facto típico, o ordenado não está obrigado a obedecer, tendo até o dever de
desobedecer. Se o ordenado obedecer a uma ordem que é ilegítima, pratica um facto ilícito, sendo
que pode ficar em aberto uma causa de exclusão de culpa do subordinado que a cumpre.

2. Fundamento: a obediência indevida desculpante prende-se com a inexigibilidade ou trata-se


de um erro?
• Certa parte da doutrina encarava esta exclusão de culpa no plano da inexigibilidade – não
seria exigível ao funcionário que ele desobedecesse e, por isso, não o podíamos censurar.
Contudo esta forma deve recusar-se. Críticas:
o Esta ideia de que o funcionário está numa relação de dependência tal em relação
ao superior hierárquico é uma ideia que deve ser ultrapassada porque existem
mecanismos para que, por um lado, possa dizer que não quando recebe uma ordem
criminosa e, por outro, poder reagir a retaliações do superior por ter dito que não.
• Portanto, o que se trata é de um erro. Isto percebe-se, desde logo, pela redação do artigo:
“sem conhecer” – o que está em causa é um desconhecimento. O legislador não tem em
mente uma pressão, mas um equívoco do funcionário que o impede de recusar a ordem.

3. Regime legal:
O simples facto de se obedecer a uma ordem não é suficiente para desculpar seja quem for,
pelo que não estão em causa situações em que o funcionário obedece só porque a ordem veio
“de cima”. Se, porventura, o funcionário pratica um facto ilícito típico, convencido da legalidade
da situação, porque acarreta uma ordem superior, estamos no plano da falta de consciência da
ilicitude censurável. Então, a culpa é excluída por força da própria falta de consciência da
ilicitude, salvo se a ilicitude fosse evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas.
Neste contexto, o art.37ºCP avança com um critério muito mais amplo e menos exigente de
desculpa – sempre que a questão da ilicitude do facto se revelar discutível ou mesmo pouco
clara, está verificada uma causa de exclusão da culpa.

4. Pressupostos – o art.37º assenta no quadro do erro e a lei estabelece um conjunto de


pressupostos para a desculpa neste caso:
• Tem de ser um funcionário público (só se aplica a funcionários públicos e não a
trabalhadores de empresas privadas), ou seja, abrangido pelo art.386ºCP
• O funcionário pratique o facto no cumprimento de uma ordem superior

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• O subordinado, ao cumprir a ordem, está convencido de que a ordem é legítima,
quando não o é
• A ilegalidade da ordem não seja evidente – qual o erro em causa? Intelectual ou de
valoração?
o Figueiredo Dias entende que é um caso particular de erro sobre a ilicitude
(art.17ºCP), em virtude da circunstância de a consequência deste erro ser de
exclusão da culpa.
o Já Nuno Brandão entende que não se trata de um erro sobre a ilicitude, nem de
valoração, mas sim, um erro de conhecimento, porque a própria lei faz apelo às
“circunstâncias representadas” pelo agente e, neste ponto de vista do critério de
evidência, apela mais a uma falta de informação do que propriamente a uma
consciência reta. O agente atua sobre um erro dos pressupostos de legitimidade
da ordem e, sendo a ordem ilegítima, ele atua ilicitamente, mas em erro, pelo que
se exclui o dolo, mas há a possibilidade de responder a título de negligência.
Contudo, o legislador quer afastar esta possibilidade de negligência nos casos em
que não é evidente, pelo que deve ser excluído o dolo e a culpa.

A inimputabilidade
I. A INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DA IDADE
1. Noção:
Nos termos do art.19º do CP, os menores de 16 anos são inimputáveis. Isto significa que a este
agente não podemos aplicar uma pena, ou seja, não pode ser criminalmente sancionado por ser
inimputável em razão da idade.

2. Fundamento:
• A imputabilidade deve ser excluída relativamente a qualquer agente que não atingiu
ainda, em virtude da idade, a sua maturidade psíquica e espiritual – só quando a pessoa
pratica uma ação num estádio de desenvolvimento é que se torna possível a apreensão,
pelo juiz, das conexões de sentido objetivo que derivam da atitude do agente e que se
exprimem no facto.
• Esta exclusão está relacionada com o princípio da humanidade – deve evitar-se a todo o
custo a submissão de uma criança ou adolescente às sanções mais graves previstas no
ordenamento jurídico para evitar efeitos estigmatizadores que a pena produz ao nível dos
direitos de personalidade do menor, marcando inevitavelmente todo o seu crescimento
e toda a sua vida futura.
• É em relação aos menores, dado serem particularmente influenciáveis e se encontrarem
numa situação de especial vulnerabilidade, que mais se fazem sentir os efeitos
criminógenos da pena de privação da liberdade – não se promoverá a sua reinserção
social, mas poderá antes contribuir para a sua dessocialização, integrando-os
definitivamente no “mundo do crime”.
• Relaciona-se ainda com a necessidade de compreensão da pena pelo agente e,
consequentemente, de poder ser por ela influenciado no sentido da sua socialização.

3. Regime:
→ Regime tutelar: só estão sujeitas a responsabilidade penal as pessoas que, no momento da
prática do facto, tenham já perfeito os 16 anos. Isto não significa, porém, que até aos 16 anos
não haja qualquer intervenção quando alguém cometa um facto ilícito típico. Esta circunstância
determina um outro tipo de intervenção essencialmente determinada pelo interesse do menor
– a Lei Tutelar educativa, aprovada pela L 166/99, que define o regime aplicável aos menores

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com idades compreendidas entre os 12 e os 16 anos que tenham praticado um facto qualificado
pela lei como crime.
A LTE introduziu um modelo que distingue entre menores em perigo e menores delinquentes
– tem como preocupação responsabilizar e educar o menor: responsabilizar o menor pelo dano
social provocado, mostrando-lhe que essa conduta não é tolerada pela sociedade, educando-o
para o Direito de modo a que interiorize o respeito pelas normas e valores fundamentais da
comunidade.
• Pressupostos de aplicação de medidas tutelares:
o Prática de um ilícito-típico penal
o Necessidade, subsistente no momento da sua aplicação, de correção da
personalidade do menor no sentido do respeito para com os valores e princípios
essenciais da comunidade, sendo que a aplicação de uma medida tutelar deve ser
decisivamente orientada por uma finalidade de (re)inserção social do menor, pela
ideia de prevenção especial de socialização.
→ Regime penal especial (transitório) para jovens adultos: entre os 16 e os 21 anos há um
regime transitório – a partir dos 16 anos a pessoa já é responsabilizada pela prática de um crime,
mas até aos 21 anos ainda está protegida por um regime penal de proteção dos jovens adultos,
previsto no art.9ºCP.

• Em que é que se caracteriza este regime penal?


o Desde logo, ao nível da pena: o jovem beneficiará de uma especial atenuação da
pena.
o Beneficiam também da circunstância de poderem cumprir a pena de prisão que lhes
seja aplicável não num estabelecimento “normal”, mas num estabelecimento
próprio para jovens (ex.: prisão escola de leiria).

II. INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA


1. Fundamento da sua natureza de obstáculo à determinação da culpa – o que é, em termos
dogmáticos, a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica?
Não foi sempre vista da mesma forma em função das diversas conceções de culpa que
existiram.
A. Paradigma biopsicológico – o relacionamento das ciências humanas e o naturalismo com
a culpa e a imputabilidade jurídico-penais levou a um conceito de culpa concebido como
relação psicológica entre o agente e o comportamento que permite imputar-lhe este a
título de dolo ou de negligência. Neste contexto, a imputabilidade do agente é pressuposto
da culpa: só poderíamos considerar o agente culpado da prática de um crime se essa
pessoa fosse imputável e seria inimputável se sofria de uma doença mental biopsicológica
comprovável, fosse permanente, temporária ou mesmo acidental, de tal modo grave
que afetasse as suas faculdades de entendimento, discernimento e avaliação do facto
cometido. Portanto, o decisivo para declarar alguém inimputável é o juízo médico de que
aquele agente padece de alguma loucura (anomalia psíquica).

B. Paradigma normativo – o direito desprende-se do naturalismo e passa a ser visto como


uma ordem normativa autónoma substituindo uma conceção psicológica por uma
conceção normativa de culpa portadora da censura de um comportamento humano por
o culpado ter atuado contra o dever, quando podia ter atuado “de outra maneira”. Assim,
liga a imputabilidade à questão do livre-arbítrio e da liberdade da vontade humana – o
ato de cometer um crime é um ato livre, como o fez de forma livre é merecedor da
aplicação de uma pena.
Este paradigma sucede contemporaneamente com o surgimento do ramo da psiquiatria
– quando se afirma a responsabilidade penal, no sentido que hoje conhecemos, surge a

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medicina no sentido de autonomizar o ramo do saber médico – a psiquiatria. Neste
quadro, passamos a dar importância não só à anomalia em si, mas aos efeitos da mesma
– passamos a ver a inimputabilidade como exclusão da culpa, pois o que se enfatizava era
que a anomalia psíquica priva o agente de avaliar a ilicitude e de se determinar de acordo
com essa ilicitude, pelo que não poderia agir “de outra maneira”.

C. Paradigma “compreensivo” (Figueiredo Dias) – a inimputabilidade como obstáculo à


comprovação da culpa: a anomalia psíquica não destrói o princípio pessoal e o ser-livre,
pois também o ser psicologicamente anómalo, na sua maneira modificada, se realiza a si
mesmo. Mas a anomalia psíquica destrói as conexões reais e objetivas de sentido da
atuação do agente, de tal modo que os atos destes podem ser “explicados”, mas não
“compreendidos” como factos de uma pessoa ou de uma personalidade, ou seja, há
impossibilidade de “compreensão” da sua personalidade manifestada no facto – o facto
pode ser explicado pela anomalia, mas o julgador não pode compreender como um facto
de uma pessoa. Por isso, o juízo de culpa jurídico-penal não poderá efetivar-se quando a
anomalia mental oculte a personalidade do agente, impedindo que ela se ofereça à
contemplação compreensiva do juiz, de modo a que não possa comprovar as qualidades
desvaliosas do agente. Consequentemente, a inimputabilidade constitui, mais do que uma
causa de exclusão de culpa, verdadeiramente um obstáculo à determinação da culpa.

2. ELEMENTOS
O quadro da inimputabilidade concretiza-se no art.20ºCP – interpretação:
• “por força de uma anomalia psíquica” – é necessária uma conexão biopsicológica (1º
elemento): nos termos do nº1, é requisito de inimputabilidade que o agente sofra de uma
anomalia psíquica. O que é ter uma anomalia psíquica neste contexto? Tudo aquilo que
couber nas classificações psiquiatras (classificação europeia ou americana de doenças
mentais).
• “incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação” –
é necessária uma conexão normativo-compreensiva (2º elemento): olhamos para os efeitos
da inimputabilidade – é preciso concluir que agiu como agiu porque tinha uma anomalia
psíquica que o tornou incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo
com a avaliação feita. Nem todas as anomalias psíquicas levam a uma declaração de
inimputabilidade, porque só levam a esta declaração se a anomalia psíquica privar o agente
de avaliar a ilicitude do facto (exemplo: em regra, o pedófilo não é inimputável porque essa
anomalia – a pedofilia – não o impede de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo
com essa avaliação).
• “no momento da prática do facto” – é necessária uma conexão fáctica (3º elemento): a
inimputabilidade já não é um estado, mas uma característica do concreto facto de um agente.
O inimputável já não é um “louco”, mas uma pessoa que, no momento da prática do facto,
se encontra onerada com um substrato biopsicológico (1) determinante de um certo efeito
normativo (2), sendo indispensável que a anomalia psíquica se tenha exprimido num facto
concreto típico e o fundamente (3). Neste quadro, numa mesma conexão temporal, é
possível ter um agente imputável relativamente a um facto e inimputável em relação ao
outro (exemplo: viola alguém por consequência de uma tara sexual grave, sendo inimputável em
relação ao crime da violação. Entretanto, também lhe furta a carteira – aí já é imputável em
relação ao furto).

3. A IMPUTABILIDADE DIMINÚIDA
Na conceção tradicional, há 3 tipos de delinquentes, ou seja, uma pessoa pode ser inimputável,
imputável ou ter uma imputabilidade diminuída. Fala-se de imputabilidade diminuída quando
a anomalia psíquica tenha como efeito normativo não a incapacidade do agente para avaliar a

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ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com essa avaliação, mas uma capacidade
ainda subsistente em grau sensivelmente diminuído.
Figueiredo Dias defende uma posição intermédia: trata-se de casos de imputabilidade
duvidosa no sentido de que neles se comprova a existência de uma anomalia psíquica, mas sem
que se tornem claras as consequências que daí devem fazer-se derivar relativamente ao
elemento normativo-compreensivo exigido (compreender a ilicitude).
O sistema criminal português é monista, nunca foi dualista 1– o art.20º/2 vem permitir que
essa pessoa que é imputável seja declarada inimputável. Assim nunca aplicamos ambas as coisas
– ou declaramos uma pena porque é imputável ou uma medida de segurança porque é
inimputável em virtude de uma imputabilidade diminuída.
Como é que o juiz escolhe? Verifica se está ou não perante um caso de suficiência da pena: se
o juiz achar que a pena, naquele caso, cumpre as finalidades preventivas, aplica uma pena e
declara-o imputável. Se se mostrar que não é suficiente, por ser considerado perigoso, aplica-
lhe uma medida de segurança.
4. A “ACTIO LIBERA IN CAUSA”
Noção: falamos dos casos em que o estado de imputabilidade foi culposamente provocado
pelo agente, falando-se então de uma “ação livre na causa”.
Exemplo: A coloca-se em estado de inimputabilidade (p.e., sob a forma de embriaguez) com a
intenção de, uma vez embriagado, ter coragem para a matar.
Para Figueiredo Dias, a conceção que subjaz ao direito português encontra-se expressamente
regulada no art.20º/4 CP – se o agente sabe que, com álcool, é capaz de praticar um crime que
não seria capaz sóbrio, a imputabilidade não é excluída, ou seja, o agente é portador, no
momento do facto, de uma anomalia psíquica, mas é imputável. Consequentemente, tem de
ser tratado como imputável, pelo que a ALIIC não suscita qualquer especialidade no tratamento
do facto.
❖ Casos em que a ALIIC não é pré-ordenadamente – embora seja culposamente –
provocada, isto é, em que ela é provocada com dolo eventual ou negligência: o CP pune no
seu art.295º não o facto praticado, mas, de forma autónoma e independente, o ato de
auto-colocação em estado de inimputabilidade por dolo (eventual) ou negligência). Nota:
isto não deve impedir que possa vir a ser aplicada uma medida de segurança pelo facto
praticado em estado de inimputabilidade se o agente dever ser considerado perigoso.

III.MEDIDAS DE SEGURANÇA CRIMINAL

1. AS MEDIDAS DE SEGURANÇA CRIMINAIS NO SISTEMA SANCIONATÓRIO


O sistema das sanções jurídico-criminais do direito penal português assenta em 2 polos: o das
penas e o das medidas de segurança. Enquanto as primeiras têm a culpa por pressuposto e
limite, as segundas têm na base a perigosidade (individual) do delinquente.
Enquadramento histórico: As medidas de segurança surgem, historicamente, como uma
consequência da inadequação e insuficiência da pena. Inadequação porque, por força do ideal
iluminista, deixámos de considerar penalmente responsáveis aqueles que tinham uma alienação
mental e, se não têm culpa, não podemos aplicar penas, portanto, deixaram de ser inadequadas
porque pressupõe a culpa. Insuficiência do ponto de vista preventivo, nomeadamente nas
situações de imputabilidade diminuída – o agente de imputabilidade diminuída era menos

1
Sistema sancionatório dualista: quando ao agente aplicamos cumulativamente, pelo mesmo facto,
uma pena e uma medida de segurança em razão da sua perigosidade criminal.
Sistema sancionatório monista: aplicamos ou uma pena ou uma medida de segurança.

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culpado, logo aplicávamos uma pena menor. Mas, ao mesmo tempo, esse agente era mais
perigoso porque tinha uma anomalia psíquica que fizesse com que tivesse a sua capacidade
diminuída, logo a pena é insuficiente do ponto de vista preventiva – estes agentes imputáveis,
além de culpados, eram também perigosos e, para essa perigosidade criminal, a pena era
insuficiente.
Assim, ao lado da culpa, surge autonomamente uma ideia de perigosidade criminal: não há
pena sem culpa, e não há medida de segurança sem pressuposto de aplicação (perigosidade
criminal) – não se aplica a estes agentes (de imputabilidade diminuída e delinquentes por
tendência) por serem culpados, mas por serem perigosos.

2. FINALIDADE DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA – ART.40º CP


A. A prevenção especial em função de um facto ilícito típico – finalidade prevalente
As medidas de segurança, porque a prioridade é a criminalidade do agente, prosseguem
primariamente uma finalidade de prevenção especial – a sua aplicação dirige-se a prevenir
uma futura reincidência daquele agente, é uma medida que atua fundamentalmente sobre
aquele agente. Esta finalidade de prevenção especial faz- se sentir, quer no momento em que
é aplicada a medida de segurança (porque é nesse momento que o tribunal comprova a
prática de um facto ilícito típico, tendo de avaliar se há possibilidade ou não de o agente vir a
praticar novos factos. Se esse receio existir, existe perigosidade pelo que se aplica a medida de
segurança. Portanto, é em função dessa perigosidade que a medida de segurança é aplicada.);
quer no decurso da execução – a medida de segurança cessa quando se sabe que terminou a
perigosidade, porque não se justifica a manutenção da medida de segurança.
Nota: o fundamento da aplicação de qualquer medida de segurança criminal não é em
exclusivo a perigosidade do agente – é aquela perigosidade apenas se e quando revelada
através da prática pelo agente de um facto ilícito-típico. Portanto, facto ilícito-típico e
perigosidade constituem os 2 fundamentos autónomos da medida de segurança criminal.

B. Prevenção geral – finalidade secundária


Discute-se muito se, a par desta finalidade de prevenção especial, a medida de segurança
também procede de forma autónoma, uma finalidade de prevenção geral, ou seja, se a ser
aplicada também se dirige à comunidade, à prevenção da prática de factos ilícitos.
O art.40º atribui esta finalidade (proteção de bens jurídicos), sendo a mesma reiterada no
art.91º/2 CP – para certos factos, nomeadamente quando estejam em causa crimes contra as
pessoas com pena superior a 5 anos, há necessidade de salvaguardar a paz social naqueles casos
em que o condenado deixa de ser perigoso, ou seja, há casos em que o inimputável pratica um
facto tão grave, e, sendo possível a sua liberdade quando cesse a sua perigosidade, pode dar-se o
caso de ser “libertado” em muito pouco tempo. Para acautelar a possibilidade de “revolta social”,
tratando-se de um facto dessa natureza, o condenado deve, no mínimo, estar internado durante 3
anos: há um período mínimo de internamento para garantir a pacificação social e a finalidade de
prevenção geral. Consequentemente, a medida de segurança também prossegue uma finalidade
autónoma de prevenção geral e isso pode implicar a manutenção do internamento mesmo quando
tenha cessado a sua perigosidade.

A inexigibilidade
1. NOÇÃO:
Estão em causa situações de pressão exterior e envolvimento de tal ordem pressionante e
difícil que, aquela pessoa que normalmente não praticaria factos daquela natureza, acaba por
ceder à pressão e pratica um facto ilícito penal. Consequentemente, a eventual exclusão da
culpa prende-se com o facto de não ser exigível um comportamento conforme ao direito, na
medida em que não deve ser censurada. A questão de fundo é a de que, em certas situações, o

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agente vê se confrontado ou envolvido num quadro de um contexto de tal ordem pressionante
que a sua capacidade para resistir à prática de um crime é questionável.

2. FUNDAMENTO:
Não é algo que diz respeito ao próprio agente, mas ao que lhe é exterior: algo que é exógeno
e leva ao afastamento da culpa. Na inexigibilidade estamos, em regra, não a falar de
particularidades do próprio agente, mas de circunstâncias que lhe são externas – a falta de
exigibilidade de um comportamento conforme ao direito é justificada pela situação ambiente.
Pode acontecer que essa situação ambiente, embora não iniba a capacidade para atuar
conforme ao direito, diminui sensivelmente essa capacidade – não se fala de uma
inexigibilidade, mas numa menor exigibilidade, que pode levar a uma atenuação da
responsabilidade penal.
▪ Exemplo: art.133º CP (homicídio privilegiado) – o caso em que um filho vê o pai a passar
por uma tormenta muito grande, em virtude de uma doença terminal, e mata-o para acabar
com o seu sofrimento – trata-se de um crime por compaixão. Nestes casos, a pena aplicada
é uma pena baixa (até 5 anos), porque estão em causas situações de desespero e compaixão,
que diminuem a culpa.

3. EVOLUÇÃO DOUTRINAL:
❖ Escola normativista:
Este conceito da inexigibilidade emergiu, sobretudo, com a escola normativista: foi a conceção
normativa de culpa que, ao considerar a culpa como censurabilidade do facto dirigida ao agente
por ter atuado ilicitamente, enquanto podia ter atuado de outra maneira, veio acentuar que
aquela censura só deve efetivar-se quando ao agente, na concreta situação, fosse exigível um
comportamento adequado ao direito.
Esta escola dizia que, se as circunstâncias são de tal modo pressionantes que arrastem
irresistivelmente o agente para a sua prática, roubando-lhe toda a possibilidade de se comportar
diferentemente, não o podemos censurar. Assim, a inexigibilidade constituiria uma causa geral
de exclusão de culpa.
→ Críticas: esta forma de ver as coisas é questionável porque torna o pensamento muito
permeável às circunstâncias do agente e à capacidade de resistência do agente – iria
sempre conduzir à exclusão de culpa e consequente absolvição sempre que a acusação
não conseguisse provar que, no momento do facto e perante a concreta pressão
(porventura dotado de uma fraca capacidade de resistência), este podia ter-lhe resistido
e ter-se comportado de acordo com a norma. Seria uma desculpa para casos
incompreensíveis para a generalidade das pessoas.

❖ Inexigibilidade e exclusão de culpa:


O fundamento da inexigibilidade assenta num duplo critério: 1) a situação exterior seja tal que
permita afirmar que a generalidade dos homens “honestos” ou “normalmente fiéis ao direito”
teria provavelmente atuado da mesma maneira; e ainda que 2) as qualidades pessoais
juridicamente relevantes manifestadas no facto não sejam, apesar disso, juridicamente
censuráveis.
Figueiredo Dias rejeita esta ideia de que a exigibilidade seria como que uma causa de exclusão
geral da culpa. Não há nenhuma causa geral de exclusão da culpa fundada na inexigibilidade, o
que há são 2 causas especiais ligadas à inexigibilidade que se fundam em circunstâncias
exteriores e o facto não evidencia uma personalidade desvaliosa:

A. ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE OU SUBJETIVO – art.35º/1 CP


É uma espécie daquela teoria diferenciada do estado de necessidade (tem 2 vias: objetiva e
subjetiva). Implica, tal como o estado de necessidade justificante, uma colisão de bens
jurídicos, no entanto, impõe diferentes exigências de hierarquia dos bens em conflito: Página 1

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1. No direito de necessidade (art.34ºCP), a justificação assenta na manifesta superioridade
do interesse a salvaguardar, através do facto típico, em relação ao interesse a sacrificar.
2. Contudo, há casos em que, numa situação de necessidade, o agente realiza um facto
típico para proteger interesses que não são claramente superiores e é nesses casos que
está pensado o estado de necessidade desculpante – atua em situações de necessidade
em que o agente, quando se depara com uma situação de perigo, pratica um facto típico
e ilícito, que atenta contra interesses de 3ºs que são superiores ou de valor igual. Neste
sentido, não pode conferir-se justificação a este facto, quanto muito o agente poderá não
ser censurado, sendo excluída a culpa, desde e apenas se não fosse concretamente
exigível o comportamento inverso (art.35º/1CP).
▪ Exemplo: num naufrago, só há uma tábua e 2 pessoas que precisam dela para não
se afogarem. Uma dessas pessoas empurra a outra para se salvar a si mesma.

❖ PRESSUPOSTOS – por semelhança ao direito de necessidade (art.34º)


1. Trata-se de um perigo atual
2. O perigo não seja removível de outro modo – é necessário que se escolha o meio
adequado menos oneroso para os direitos do terceiro não implicado
3. Tem de ser um bem específico – só pode ocorrer quando se trata de preservar
determinados bens jurídicos individuais elementares (um dos elencados no art.35º -
vida, integridade física, a honra ou a liberdade) do agente ou de terceiros.
• Nota: a lei admite a proteção de interesses de terceiros, mas o facto de o permitir
é questionável – a é difícil entender como é que uma ameaça sobre terceiros seja
de tal modo pressionante para o agente ou suscetível de provocar sobre o agente
uma pressão igual ou análoga à que teria lugar se os bens jurídicos em perigo
fossem do agente. Deste modo, o que pode ser compreensível para um interesse
próprio, pode não ser compreensível para proteção de interesses de terceiros –
assim, restringe a culpa aos casos em que o perigo ameace um parente ou outra
pessoa próxima do agente. Na falta desta restrição, tudo dependerá das
circunstâncias do caso.
4. No caso concreto, segundo as circunstâncias do caso, não seja razoável exigir um
comportamento diferente 2
• Nota: aqui apura-se um critério pessoal-objetivo: a exigência tem de coincidir com
a normal resistência do comum dos cidadãos, no sentido de não se exigir que o
agente seja uma espécie de um mártir ou “herói moral”, ou seja, um perigo que só
pessoas fora do normal seriam capazes de vencer, mas também não pode ser o
critério das pessoas que se amedrontam com tudo – um mínimo de força de
resistência, normativamente determinado, é sempre necessário.
5. A prática do facto ilícito não evidencia traços da personalidade que são eles mesmo
censuráveis

❖ NOTAS – situações específicas:


1. A desculpa deve em definitivo ser negada sempre que a lei exija do agente que suporte
o perigo: estão em causa aquelas hipóteses em que recai sobre o agente um particular
dever de suportar perigos acrescidos ou especiais, por gozar de um estatuto jurídico
especial, em virtude do exercício de determinadas profissões ou posições sociais (p.e.,
bombeiros, policiais, soldados).
2. Nos casos em que o perigo foi voluntariamente causado pelo próprio agente: se o
perigo é intencionalmente causado pelo próprio agente para que possa mais tarde
reivindicar-se de uma desculpa por estado de necessidade, esta deve em definitivamente

2
É nesta exigência que se contém a verdadeira cláusula de inexigibilidade.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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ser negada. Quando não seja intencional, tudo depende do resultado a que conduza a
apreciação em concreto da inexigibilidade.
3. Nos casos em que o bem salvaguardado é sensivelmente inferior ao bem lesado: se há
uma desproporcionalidade crassa dos interesses em jogo a desculpa deve ser recusada.

B. O EXCESSO DE LEGITIMA DEFESA DESCULPANTE


Verifica-se excesso de legítima defesa sempre que o agente, numa situação de legítima defesa,
se serve de um meio mais lesivo para o agressor do que aquele que seria necessário (art.33º/1),
ou seja, ultrapassa a medida de necessidade do meio – estamos perante um excesso de meios.
Na maioria dos casos, aquele que se excede nos meios, poderá não ser censurado em virtude
da tensão e estado de exaltação que o leva a exagerar nos meios – é normal que uma agressão
ilícita e atual provoque na vítima um estado que o conduza a uma reação excessiva. E, nesse
sentido, admite-se a possibilidade, havendo excesso de meios, haver diminuição da culpa e
atenuação especial da pena, nos termos do art.33º/1/2ª parte. O que está em causa é a
perturbação provocada que vai condicionar a sua reação, na medida em que a atitude e as
qualidades pessoais do agente manifestadas no facto se revelem menos censuráveis.
No entanto, não basta que o excesso de meios tenha sido fruto desse estado de espírito, sendo
necessário que se faça um juízo autónomo de inexigibilidade: é necessário avaliar se esse
estado de espírito pode considerar-se compreensível, ou seja, se uma pessoa comum, colocada
naquela situação, também provavelmente ficaria aterrorizada, acabando por agir de forma
desmesurada.

A punibilidade
1. Evolução dogmática
Há circunstâncias que podem obstar à punição do agente, ou seja, um conjunto de
pressupostos que decidem da punibilidade do facto – as chamadas condições objetivas de
punibilidade.
Desempenhou um papel fundamental para a discussão da categoria da punibilidade a
doutrina roxiniana da “responsabilidade”, segundo a qual, a categoria da responsabilidade
englobaria, além da culpa, a necessidade, preventiva e geral, de punição. Chama ainda à
atenção para conceitos de dignidade penal e carência de tutela penal.

2. Punibilidade e dignidade penal do facto


A ideia político-criminal ou o seu conteúdo é a da dignidade penal: desde modo se fecha a
construção da doutrina geral do crime, considerando que este se traduz sempre num
comportamento ilícito-típico, culposo e digno de pena.
Neste sentido, a ideia de dignidade penal estende-se a todas as categorias do crime: só pode
ser crime o comportamento que se revele digno de punição. Isto significa que a dignidade penal
é o princípio regulativo de todas as categorias (ilícito-típico, culpa jurídico-penal e da
punibilidade).
No entanto, a dignidade penal não se esgota nas categorias do tipo de ilícito e do tipo de culpa:
em regra, um facto típico, ilícito e culposo, será punível (ou digno de pena). Mas pode suceder
excecionalmente que não o seja, se nele não se verificarem também os pressupostos da
punibilidade – pressupostos ligados às exigências de prevenção, geral e especial.
▪ Exemplo: art.135ºCP – o grau de ilicitude e de culpa do incitamento ou auxílio ao
suicídio torna-se punível ou não consoante se tenha verificado ou não o suicídio consumado
ou tentado. Ou seja, apesar do incitamento ou auxílio, se o bem jurídico acabou por ser
preservado (porque o suicídio não é tentado ou consumado), do facto efetivamente
cometido não se desprendem exigências preventivas para que se torne necessário a
punição.

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Crimes negligentes
1. Introdução
O facto negligente é uma das formas básicas de aparecimento do crime, ao mesmo nível do
facto doloso.
Para que possamos dizer que alguém cometeu um crime doloso terá o agente que ter
preenchido com a sua conduta o tipo de ilícito doloso (que se traduz no conhecimento e
vontade de prática do facto) e com o tipo de culpa doloso (que se traduz, por sua vez, na atitude
interna do agente contrária ou indiferente ao direito e às suas normas).
A regra no direito penal é a da punição dos crimes dos factos dolosos e só nos casos
expressamente previstos se punem factos negligentes. Exemplo: homicídio doloso (art.131º CP)
e homicídio por negligência (art.137º CP) e a ofensa à integridade física (arts.143º e 148º CP)
Estes são 2 exemplos em que o código penal punes as condutas quer sejam cometidas sobre a
forma dolosa, quer sejam cometidas sob a forma de negligência, mas nem sempre é assim: há
crimes que só são puníveis sob a forma dolosa.
2. Relação entre o dolo e a negligência
A ideia de que entre um crime doloso e um crime negligente intercede apenas uma diferença
de grau ou de gravidade do facto era aceite no momento da evolução da doutrina da
negligência em que se entendia que dolo e negligência eram apenas diferentes formas de culpa
relativamente a um tipo de ilícito comum.
No entanto, não é assim desde que se tornou claro que o facto negligente tem um tipo de
ilícito e um tipo de culpa próprios, distintos do tipo de ilícito e do tipo de culpa que se verificam
nos factos dolosos. Portanto, o facto negligente não deve ser visto como uma forma atenuada
ou menos grave de aparecimento do respetivo facto doloso. O facto negligente deve ser
entendido como um outro facto, diferente do facto doloso e não como uma forma menos grave
de produção do ilícito.

3. Definição legal da negligência


O código penal dá-nos uma definição legal de negligência no art.15º CP – concebe a
negligência no seu proémio de modo unitário: traduz-se no atuar em violação do cuidado a que
o agente está obrigado e é capaz3.
A negligência pode assumir duas formas:
1. Negligencia consciente – art.15º/a)
2. Negligência inconsciente – art.15º/b)
Tem se discutido a este propósito da negligência consciente e inconsciente qual será mais
grave: o agente que comete um crime negligente sem sequer representar a possibilidade de
realização de um facto ou o comportamento de um agente que representa a possibilidade de
realização de um facto, mas não se conforma com essa realização? Existem diferentes posições.
Contudo, não é importante discutir o que é mais grave porque, no fundo, a gravidade do
comportamento depende das características do caso concreto e vai influenciar a medida da
pena a aplicar de acordo com as exigências de prevenção geral e especial que se verificarem no
caso concreto.
Nota: não obstante, existe outra forma qualificada de negligência – a negligência grosseira
esta tem de ser distinguida como mais grave, podendo esta apresentar-se com consciente ou
inconsciente.

3
O proémio unitário do art.15º faz uma distinção entre o tipo de ilícito negligente e o tipo de culpa
negligente: “proceder com cuidado a que está obrigado” (tipo de ilícito) “cuidado de que era capaz”
(tipo de culpa).
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4. Estrutura dogmática do facto negligente
Tem um (A) tipo de ilícito e um (B) tipo de culpa específicos, diferentes do facto doloso:

A. TIPO DE ILÍCITO NEGLIGENTE


No comportamento negligente o agente não tem vontade de praticar aquele ato nem de
produzir aqueles resultados.
A característica mais saliente do tipo de ilícito negligente reside na diferente relação que nele
intercede entre a ação e o resultado: nos crimes negligentes, ao contrário dos dolosos, a
vontade do agente não se dirige ao resultado ou à realização integral do tipo. E, por outro lado,
não podemos bastar-nos com a mera causação de um resultado para punir o agente nos crimes
negligentes, isto é, a punibilidade do facto negligente pressupõe sempre a consumação do
facto, a tentativa de um facto negligente nunca é punível, seja delitos de mera atividade ou
mesmo de resultado.

1. O TIPO DE ILICITO NEGLIGENTE COMO VIOLAÇÃO DE UM DEVER DE CUIDADO


❖ Quando é que está preenchido o tipo de ilícito negligente?
Para que alguém preencha com a sua conduta o tipo de ilícito negligente têm de estar
presentes três elementos:
1. A violação por parte do agente de um dever objetivo de cuidado que sobre ele impende
(desvalor de ação)
2. Essa violação tem de ter conduzido à produção de um resultado típico (desvalor de
resultado)
3. É necessário que esse resultado fosse previsível e evitável pelo homem médio pertencente
à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente.
→ OU SEJA, o tipo de ilícito negligente traduz-se na violação pelo agente de um dever de
cuidado, sendo que essa violação traduz o desvalor de ação próprio do facto negligente,
desvalor ao qual acrescentará um desvalor de resultado, traduzido, em regra, na
previsibilidade do evento típico.

❖ Violação do dever de cuidado e imputação objetiva:


Há quem entenda que não há verdadeiramente uma autonomia do elemento violação do
dever de cuidado e que o tipo de ilícito negligente, no fundo, vai ao encontro dos critérios da
imputação objetiva, da potenciação de um risco não permitido, comum aos delitos dolos e de
negligentes de resultado.
Figueiredo Dias não concorda: é certo que a maioria esmagadora dos crimes negligentes
corresponde a crimes de resultado, mas surgem também crimes de mera atividade (p.e.,
condução de um veículo em estado de embriaguez – art.292ºCP). Se a questão geral da
imputação objetiva nem se suscita nos crimes de mera atividade, nem faz sentido que se
confunda o problema da tipicidade dos crimes negligentes com a mesma. A violação do dever
objetivo de cuidado é o cerne do tipo de ilícito negligente.

❖ Critérios concretizadores do cuidado devido:


Dois problemas colocam-se quanto à violação do dever objetivo de cuidado:
1. Quais são os critérios que devemos usar para determinar e definir o dever de cuidado
num caso concreto – critério geral ou generalizador ou critério individual ou
individualizador? A doutrina não é unânime.
2. Quais as fontes do dever de cuidado?

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1. Critérios concretizadores
Quando definimos o que é o dever de cuidado devemos ter em conta as capacidades do
homem médio (critério geral) ou devemos também ter em consideração as capacidades pessoais
daquele agente em concreto (critério individual)?
▪ Exemplo1: A é um cirurgião genial, com capacidades claramente acima da média, mas no
decorrer de uma cirurgia, um doente vem a morrer porque utilizou uma técnica “banal”, em
vez de uma técnica altamente sofisticada que domina, só porque está com pressa ou outro
motivo qualquer. Para aferir o dever de cuidado daquele cirurgião temos em conta as
capacidades de um cirurgião médio ou vamos ter em conta que aquele cirurgião, naquele caso
concreto tinha capacidades acima da média?
▪ Exemplo2: imaginemos um condutor que, incapaz de resolver uma situação complexa de
trânsito, provoca um acidente e vem a morrer um passageiro de outro automóvel. No entanto,
esta não era uma situação tão complexa e a generalidade doa condutores teria conseguido
evitá-lo. Teremos em conta a capacidade do condutor médio ou que naquela circunstância,
aquele condutor teria capacidades abaixo da média?

→ Importância prática – o critério que escolhermos permitirá condenar ou absolver o agente.


A doutrina diverge:
• Critério generalizador: a doutrina dominante considera que o dever objetivo de
cuidado deve ser estabelecido de acordo com um critério generalizador (critério
objetivo). Entende-se que as capacidades do agente superiores ou inferiores à média só
devem ser consideradas num outro momento: no segundo momento, ao nível do tipo
da culpa e não ao nível do tipo de ilícito. Assim:
o se as capacidades do agente se situarem abaixo da média nem por isso a
conduta do agente deixará de integrar o tipo de ilícito negligente.
o Se tiver capacidades acima da média estas não serão tidas em conta para o
preenchimento do tipo de ilícito negligente e este agente não preencherá o tipo
de ilícito negligente desde que cumpra aquele cuidado que lhe é objetivamente
devido.
o Para os defensores desta posição as capacidades abaixo e acima da média
devem ser tidas em conta apenas ao nível da culpa, assim se cumprindo
também o princípio da igualdade: exige-se o mesmo a todos os cidadãos.
• Critério individualizador: nos últimos anos, outros têm vindo a defender o critério
individual (a posição contrária), alegando que a concessão objetivista em certas
ocasiões tem um alcance demasiado amplo e noutras fica aquém do desejável:
o Tem um alcance demasiado amplo quando exige deveres de cuidado que
excedem as suas capacidades, até porque o direito só pode exigir aos cidadãos
aquilo que eles podem prestar.
o Fica aquém do desejado quando permite que aquele que tem capacidades
acima da média seja obrigado apenas ao cumprimento do cuidado que é o
cuidado médio quando tinha capacidade para fazer mais.
• Posição do curso: Figueiredo Dias tem seguido neste ponto a posição de Roxin:
o As capacidades inferiores à média não podem relevar no sentido de excluir o
tipo de ilícito negligente, poderão apenas relevar ao nível do tipo da culpa. Não
afastam a ilicitude, a norma de ilicitude dirige-se igualmente a todas as pessoas
independentemente da sua capacidade para entenderem o seu significado. Mas
outra coisa depois é saber se com a sua conduta também preencheu o tipo de
culpa, por isso se diz que eventualmente as capacidades inferiores à média têm
relevância relativamente à culpa. Consequentemente, nestes casos deve seguir-
se um critério puramente objetivo (generalizador): o critério do cidadão médio.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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o Quanto às capacidades acima da média, devem ser tidas em consideração para
integrar o tipo de ilícito negligente. Se usando as suas especiais capacidades
poderia ter evitado aquele resultado, não estamos a pedir um esforço acrescido,
é meramente “exigido” que aplique os seus conhecimentos especiais no caso
concreto. Além de que, no tema de imputação objetiva, para o juízo de prognose
póstuma, o observador tem de entrar em consideração com os conhecimentos
especiais do agente. Neste caso devemos seguir um critério individual.

2. Fontes concretizadoras do dever de cuidado


Quando lemos os vários tipos legais de crime da parte especial do Código Penal não
encontramos nenhuma referência ao que é o dever de cuidado. Encontramos apenas algumas
referências: “quem matar outra pessoa por negligência”, “quem ofender a integridade física de
uma pessoa por negligencia”, etc. Como não encontramos no CP o que nos permite saber o que
é o dever de cuidado, é importante perguntar quais são as fontes do dever de cuidado:
A. Fontes normativas: conjunto de normas jurídicas que regulam um determinado
comportamento, que todos nós ou a maioria de nós deve seguir e nos permitem determinar
qual é o dever de cuidado no caso concreto.
▪ Exemplo1: normas do código da estrada – constituem fontes do dever de cuidado e
impendem sobre todos aqueles que exercem a condução, ou seja, são o conjunto de normas
jurídicas que nos ajudam a saber qual é o dever de cuidado no exercício da condução;
▪ Exemplo2: nos vários domínios de atividade há um conjunto de legislação que regula o
exercício dessa atividade que pretende manter a atuação no âmbito dessa atividade dentro
do risco permitido.

B. Legais artis/ regras da boa prática no âmbito de diversas profissões: na medicina, na


engenharia, na arquitetura, no desporto, etc., existe um conjunto de normas que não são
regras jurídicas, ou seja, não estão em leis nem regulamentos, mas que por vezes são
também escritas e que provêm do próprio corpo de profissionais da área: guidelines,
protocolos de atuação, estatutos jurídicos, etc. São normas não jurídicas, mas escritas.

C. Costumes profissionais: conjunto de normas, regras e técnicas que são seguidas pelos
diversos profissionais, nas mais diversas circunstâncias e que nem sequer estão escritas, mas
são costumes profissionais comuns ao profissional prudente. A partir dessas regras também
vamos saber qual o dever de cuidado.

D. Critério da figura padrão: na falta de fontes jurídicas ou não jurídicas, escritas ou não
escritas, impõe-se o recurso direto ao cuidado imposto pelo concreto comportamento
socialmente adequado no tráfico – figura-padrão cabida ao caso.

❖ Função indiciária
Tem se considerado que a violação das normas de cuidado constitui apenas um indício da
contrariedade ao cuidado objetivamente devido, mas não pode em caso algum fundamentá-la
definitivamente.
Quando há a violação de uma destas fontes do dever de cuidado, não significa
necessariamente que se preencha o tipo de ilícito negligente, ou seja, não significa
necessariamente que o agente viole o dever de cuidado que sobre ele impende. Pode acontecer
que apesar de o agente ter violado a regra de cuidado, mas não haver preenchimento do tipo
de ilícito negligente porque não se verificou o perigo típico do comportamento pressuposto
pela norma:
▪ Exemplo: um cidadão passa o semáforo vermelho, temos a violação de uma norma do código da
estrada. Entretanto, é apanhado por um lençol de água mais à frente, perde o controlo do carro e
atinge uma pessoa que estava no passeio. Aqui houve violação de uma norma de cuidado, mas não

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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houve no caso concreto uma violação de um dever de cuidado de modo em que se possa imputar
o resultado à conduta do agente. Há violação da regra, mas não há verdadeiramente violação do
dever de cuidado, não há preenchimento do tipo de ilícito negligente – atinge a pessoa não por ter
desrespeitado o sinal vermelho, mas porque foi apanhado por um lençol de água.

MAS, pode acontecer o contrário, ou seja, casos em que o agente cumpre a regra, mas ainda
assim viola o dever de cuidado. Há casos em que, apesar de se cumprirem as regras, a situação
concreta exigiria cuidados especiais e por isso se entende que o agente viola o dever de cuidado:
▪ Exemplo1: demolição na via pública com explosivos em que estão a seguir-se as regras da
intensidade dessas explosões. No entanto, como existem edifícios antigos na rua, esses limites de
intensidade podem não ser suficiente para acautelar o perigo que deles advém, pelo que os
engenheiros devem atender a esta circunstância e ter um cuidado acrescido. A inobservância deste
cuidado acrescido poderá fundamentar a violação do dever de cuidado
▪ Exemplo2: um dentista é alertado para o facto de que o paciente sofrer de uma doença particular,
mas, enquanto dentista, o protocolo diz que ele não tem de fazer exames complementares de
diagnóstico porque a sua intervenção é apenas ao nível da cavidade bucal. No entanto, dá-lhe uma
anestesia e o doente vem a morrer em virtude desta.

→ Nota: estes são casos excecionais. Por regra, quando o agente viola a regra de cuidado,
entende-se que há violação do dever de culpa; quando o agente cumpre a regra do dever
de cuidado, entende-se que não há violação do dever objetivo de cuidado. Mas em rigor, a
violação das regras, ou seja, das fontes do dever de cuidado constitui apenas um indício da
violação do dever e, pelo contrário, o cumprimento das regras não garante que o agente
não esteja a violar o dever de cuidado.

❖ Princípio da confiança
Convoca-se a propósito do dever de cuidado o princípio da confiança.
Este é tido pela generalidade da doutrina como um princípio de delimitação negativa do dever
objetivo de cuidado. Isto significa que muitas vezes na vida em sociedade a ocorrência de
resultados danosos não deriva apenas de uma conduta individualmente considerada, mas da
conduta de diversas pessoas que entram em contato num determinado momento.
▪ Exemplo: atropelamento que provoca a morte ou ofensa à integridade física no âmbito do exercício
da condução, o resultado pode não depende apenas da conduta de um agente em concreto.
Quando a produção de um resultado por negligência se verifica através da intervenção de uma
pluralidade de agentes tem-se convocado o princípio da confiança para determinar no caso
concreto de quem é a responsabilidade pelo resultado ocorrido.

→ Noção: o princípio da confiança significa que quem se comporta no tráfego de acordo com a
norma de cuidado deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros, salvo se tiver
uma razão concretamente fundada para pensar ou dever pensar de outro modo. Ou seja, se
eu estou a conduzir de acordo com as regras do código da estrada, posso confiar que os
outros fazem o mesmo, salvo se tiver uma razão concretamente fundada para pensar de
outro modo.

→ Evolução dogmática: este princípio foi afirmado na década de 50 pela jurisprudência alemã
a propósito dos acidentes de viação. Nesta época generalizou-se na Europa a utilização do
automóvel e inicialmente dizia-se que o automóvel era um objeto perigoso, por isso, cada
um dos condutores deve conduzir a uma velocidade tal que deva conseguir parar quando
qualquer perigo surgir e, se daí vier algum dano, o condutor do automóvel deve ser sempre
responsabilizado por esse dano porque é ele que está a beneficiar da utilização do
automóvel. Isto ia ao encontro da responsabilidade pelo risco (direito civil), mas esta
responsabilidade pelo risco, objetiva, é inaceitável no direito penal.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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Com esta generalização do automóvel, começaram a verificar-se muitos casos de homicídio
e de ofensas à integridade física no decurso de acidentes de viação e os tribunais começaram
a ficar incomodados com estes crimes negligentes. As questões que mais chegavam aos
tribunais eram relacionadas com violações do direito de prioridade – exemplo: A circula
numa via com prioridade e B que se aproxima vindo da esquerda não para. Há um acidente
e vem a morrer o condutor B. Por regra, os tribunais condenavam por homicídio por
negligência o condutor que seguia com prioridade. A questão que se começou a colocar foi
a seguinte: A que segue na estrada com prioridade, a cumprir todas as regras, pode ou não
confiar que aqueles que como B seguem na estrada secundária cumprem as regras de
prioridade? Pode confiar que os outros cumprem as regras? E a grande novidade que surgiu
da jurisprudência alemã foi dizer que sim – o condutor que segue numa via com prioridade
pode confiar que os outros cumprem as regras. Se não cumprirem, a responsabilidade vai ser
deles, porque quem cumpriu pode invocar o princípio da confiança – está a cumprir as
regras, por isso pode confiar que os outros condutores também o fazem. Por isso se diz que
o princípio da confiança é o princípio delimitador do dever objetivo de cuidado, quem atua
ao seu abrigo não está a violar o dever de cuidado.
→ Fundamento do princípio: traduz-se numa ideia da autorresponsabilidade de terceiros – se
cada um de nós é um ser responsável pelo próprio comportamento e cada um de nós é
destinatário de um conjunto de deveres de cuidado impostos pela ordem jurídica, então,
cada um de nós pode confiar que outros cumprem os deveres de cuidado que
concretamente se lhe dirigem. Contudo, isto não vale relativamente a crianças e agentes
inimputáveis ou pessoas que sofrem de anomalia psíquica, nem vale também quando a
função do agente em causa é precisamente a de controlar a atividade dos outros (exemplo:
médico que dá tutoria a um médico interno não pode alegar o princípio da confiança numa
atuação do interno para responsabilizar este último).

B. TIPO DE CULPA NEGLIGENTE


Ao nível do tipo de culpa negligente temos de saber se naquelas circunstâncias concretas
aquele agente estaria em condições de conhecer aquele resultado e de o evitar, ou seja, se nas
circunstâncias concretas o resultado era pessoalmente cognoscível e pessoalmente evitável.
O tipo de culpa negligente reside na atitude descuidada ou leviana revelada pelo agente e
que fundamenta o seu facto. Por outras palavras, reside nas qualidades desvaliosas da pessoa
que se exprimem nesse facto.

→ Capacidades pessoais
Quando falamos do tipo de culpa negligente estamos a perguntar se aquele agente concreto,
segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, estava ou não em condições de
cumprir o dever de cuidado objetivo que integra o tipo de ilícito negligente.

→ Critério subjetivo: neste sentido, não vamos perguntar quais são as capacidades e
conhecimentos do homem médio (critério objetivo), vamos perguntar quais são os
conhecimentos e quais são as capacidades do homem da mesma espécie e com as capacidades
e qualidades daquele agente concreto – seguimos um critério essencialmente subjetivo.
Trata-se da conclusão de que, de acordo com a experiência, outra pessoa, agindo nas mesmas
condições e sob pressupostos semelhantes aqueles que presidiram à conduta do agente, teria
previsto a possibilidade de realização do ilícito típico e se tê-la-ia evitado.

→ A distinção “prática” entre critério objetivo e critério subjetivo:


o Critério objetivo: perguntar em abstrato o que teria feito o Homem médio – tipo de
ilícito negligente

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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o Critério subjetivo: perguntar se sob aqueles pressupostos, naquelas circunstâncias e
com aqueles conhecimentos outra pessoa teria previsto e evitado o resultado – tipo de
culpa negligente

5. Negligência na assunção ou na aceitação


Segundo a doutrina dominante a responsabilidade por negligência pode derivar da
negligência da aceitação ou assunção.
Esta acontece quando o agente assume tarefas ou responsabilidades para as quais não está
preparado, porque lhe faltam as condições pessoais, os conhecimentos ou o treino necessário
ao correto desempenho dessas atividades.
Nestes casos a negligência pode ser afirmada reportando-a ao momento em que o agente
aceitou ou assumiu a tarefa, sabendo, no entanto, ou sendo-lhe pelo menos cognoscível que
lhe faltavam as capacidades para tal – nestes casos a simples assunção ou aceitação da
atividade para a qual não está preparado é já uma contradição ao dever de cuidado referido ao
tipo legal de crime que vier a ser preenchido. Aqui, o tipo objetivo de ilícito é influenciado por
elementos subjetivos.
▪ Exemplo: um automobilista que mata um peão na passadeira por ver mal. Apesar de já ter sido
advertido pelo seu oftalmologista de que não deveria conduzir sem fazer uma intervenção
cirúrgica aos olhos. Esta pessoa sabia de antemão que não possuía as condições necessárias ao
exercício da condução, mas conduz. Podemos chegar à conclusão de que no momento em que
atropela o peão não se consegue afirmar a culpa negligente, mas podemos condenar aquele
sujeito por negligência na aceitação/assunção.

6. O problema da negligência grosseira


O código penal distingue entre negligência consciente e inconsciente e há, ainda, uma forma
qualificada da negligência: negligência grosseira.
Há casos em que o código diz que se a negligência for grosseira a punição é mais grave
(exemplo: homicídio por negligência – art.137º/2) e há casos em que a lei só pune o
comportamento por negligência se esta for grosseira (exemplo: intervenções e tratamentos
médico-cirúrgicos arbitrários – art.156º/3).
No entanto, não há consenso na doutrina sobre o que é a negligência grosseira. Diz-se apenas
que para que alguém possa ser punido por negligência grosseira tem de haver uma
intensificação dos tipos de ilícito e de culpa negligente: consiste num grau essencialmente
aumentado ou agravado de negligência:
• Ao nível do tipo de ilícito é indispensável que se esteja perante um comportamento
particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da
conduta adotada.
• É preciso também que se verifique um grau particularmente agravado ao nível do tipo
de culpa negligente: é preciso que se comprove que o agente revelou no facto uma
atitude particularmente censurável, de leviandade ou descuido perante as normas
jurídico-penais, plasmando nesse facto qualidades particularmente censuráveis de
irresponsabilidade.

Comparticipação em crimes dolosos de ação e autoria criminosa

Introdução: Muitas vezes na realização de um crime há uma pluralidade de pessoas, então


designadas de comparticipantes: A mata B, C esconde B e D encobre tudo. Quem é que é o autor
do homicídio?

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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Exemplo: A paga a B para Matar C. B pega no dinheiro e vai de férias para o Brasil. Quem é o
culpado? O “contratado” (entre aspas porque o objeto é nulo) não teve intenção de o fazer e
comunicou à polícia. Quid Iuris? A é condenado por tentativa de homicídio?
I. Delimitação entre autoria e participação
Esta matéria muito relevante na prática, havendo no código a distinção entre autor (art.26º
CP) e cúmplice (art.27/1º CP). A moldura penal aplicada a cada um deles é diferente, daí a
importância da distinção [a cumplicidade é uma circunstância modificativa atenuante –
art.27º/2].
• Autor: constitui a figura central do “acontecimento criminoso”
• Cúmplice: constitui uma figura lateral ou secundária na realização ilícita típica, ou seja,
não realizam o tipo de ilícito, mas participam de um tipo de ilícito realizado por outrem

1. AUTORIA (art.26º CP) – conceção geral, modelos e conceções básicas


Dentro da modalidade da autoria podemos ter vários tipos de autores, atendendo que autor
de um crime é aquele que executa o facto. O que é que isto significa?
A. TEORIA FORMAL-OBJETIVA: o autor é aquele que executa, total ou parcialmente, a
conduta que realiza o tipo (de ilícito).
a. Críticas: este conceito é meramente formal e não é suficiente explicito quanto à
definição dos critérios prático-normativos da autoria, sendo preciso procurar o
que que significa “executar o facto”. Esta teoria é rejeitada.
b. Exemplo: alguém convencido que atrás de um arbusto está um javali, dispara e mata uma
pessoa. Há um elemento da factualidade do tipo que não está representado. B disparou,
mas quem o convenceu a fazer foi A. A também executou a ação e, por isso, a teoria formal
não chega, ou seja, não basta preencher o tipo legal).

B. TEORIA SUBJETIVA: o autor é quem realiza o facto com vontade do autor, ou seja, quem
vê o facto como seu.
a. Críticas: é uma teoria que não dá um critério seguro porque faz depender a autoria
criminosa do sentimento do agente – exemplo: A mata B a mando de C. Como não
vê o facto como seu, não é condenado. Esta teoria é rejeitada.

C. TEORIA MATERIAL-OBJETIVA: visa tratar unitariamente todos os comparticipantes no


mesmo facto ilícito típico, tratando-os como autores. Assim, o autor é aquele que de
qualquer forma executa o facto, isto é, quem contribuiu causalmente para a realização
típica, seja qual for a sua importância ou significado.
a. Críticas:
i. Não se compagina com a nossa lei atual: a cumplicidade não constitui uma
forma de autoria, mas é, na intenção legislativa, coisa diversa, o que se
manifesta no facto de constar de preceito diferente (art.26ºCP). Esta teoria
é rejeitada.
ii. O critério da causalidade necessária chegará a ser impraticável em certos
casos – a maior parte das vezes os comparticipantes não poderão saber se o
seu contributo causal para o facto é ou não “necessário”. Exemplo: um
farmacêutico vende ilegalmente um abortivo que ela usa com êxito, tendo, assim,
abortado. Nem o farmacêutico nem a compradora chegarão a saber se o abortivo
poderia ter sido conseguido noutra farmácia ou por outra via. Assim, fica sem se
compreender porque deve o farmacêutico ser considerado autor ou mero cúmplice
consoante fosse ou não possível encontrar outro farmacêutico disposto a vender o
abortivo.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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D. TEORIA DO “DOMÍNIO DO FACTO”: é a teoria dominante (seguida pela doutrina
português, incluindo o Figueiredo Dias, doutrina alemã, espanhola, etc.). Segundo esta, é
autor quem vê o facto como seu e quem tem o seu domínio, de tal modo que dele
depende decisivamente o se e o como da realização típica. Esta teoria combina elementos
objetivos com elementos subjetivos. O domínio do facto pode ocorrer de 3 formas, nos
termos do art.26ºCP:
a. Autoria imediata: o agente domina o facto na medida em que é ele próprio quem
procede à realização típica, ou seja, quem leva a cabo o comportamento com o
seu próprio corpo.
b. Autoria mediata: domina o facto e a realização típica mesmo sem nela fisicamente
participar – o agente domina a vontade do executante através de coação, de erro
ou de um aparelho organizado de poder.
c. Coautoria: domina o facto através de uma divisão de tarefas com outros agentes,
desde que durante a realização, possua uma função relevante para a realização
típica. É composta por 2 elementos:
• Decisão conjunta (elemento subjetivo)
• Execução conjunta (elemento objetivo)
d. Instigação

→ Instigação:
A instigação é uma verdadeira forma de autoria? Há dúvidas trazidas pelo ordenamento
jurídico alemão, para o qual a instigação não é uma verdadeira forma de autoria, mas sim de
participação.
Instigação é criar numa pessoa a decisão dessa cometer o crime; instigador é aquele que
dolosamente determinar outra pessoa à prática de um ilícito típico e o instigado é quem
comete o crime.
Distingue-se da autoria mediata, apesar de ter a mesma estrutura (influência em cometer o
crime), na medida em que na autoria mediata nunca há dolo porque não há representação do
facto ou porque está a ser coagido (a ser punido, só o será a título de negligência). Pelo contrário,
na instigação, ambos representam o crime, ambos são autores.
Nota: só há instigação se a pessoa da iniciar a execução do facto como se depreende do art.26º
CP. Exige-se o início da execução do crime para haver instigação porque só aí há perigo para o
bem jurídico e fundamento para se punir à luz do direito penal.
▪ Exemplo: Se eu receber o dinheiro e for de férias para o Brasil sem cometer o crime, não
posso ser punido pelo crime. Não pode o juiz criar lei onde ela não existe. Há juízes que
procuram enquadrar isto na autoria mediata incorrendo numa violação do princípio da
legalidade.

2. CUMPLICIDADE – art.27º CP
A cumplicidade está prevista no art.27º CP. A cumplicidade é sempre dolosa, nunca poderá
ser negligente.
▪ Exemplo: A pede a B o seu telemóvel e B empresta. A usa o telemóvel para gravar um vídeo
ilegal. B é cúmplice? Não! O cúmplice não representou que estava a auxiliar na realização de
um facto criminoso, requisito essencial para haver cumplicidade.
A cumplicidade consiste no auxílio ao autor na execução do crime. Esse auxílio pode ser
moral ou material, ou seja, tanto pode ser tanto um conselho, como dar um número de
telefone, dar a arma do crime.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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→ Princípio da acessoriedade: a atuação do cúmplice é acessória e dependente
relativamente ao facto do autor ou “facto principal”. Portanto, sem facto principal não há
cúmplice.
▪ Exemplo: A pede a B uma arma emprestada para matar C e B empresta. A arrepende-se e não
mata. B não é cúmplice, não pode ser punido.
O auxílio só é punido se ele se materializar num facto criminoso. Da mesma forma que não
há cumplicidade depois da consumação do crime.
▪ Nota: remeter do art.27º para o 73ºCP – atenuação da pena do cúmplice

→ EM SUMA, comparticipação = pluralidade de agentes na realização criminosa. As figuras


comparticipativas serão:
• O cúmplice (não há cúmplice sem autor)
• O instigador (não há instigador sem instigado)
• O autor mediato (não há autor mediato sem instrumento)
• O coautor (não é coautoria sem outro autor a realizar o facto) – casos em que há mais
que uma pessoa na realização do crime.

II. Referência ao regime dos arts.28º e 29º CP


• Art.29ºCP: havendo vários comparticipantes, os mesmos são punidos de acordo com os
termos da sua culpa de forma individual, ou seja, são punidos de acordo com o seu grau de
censurabilidade.
▪ Exemplo: A e B decidem matar a mãe de A para receber uma herança – a circunstância de A ser
filha implica um maior grau de censurabilidade.

• Art.28ºCP:
▪ Exemplo: o senhor vai com o seu filho trabalhar e quando regressam a casa diz ao filho de 12
anos “já és um homem, levas tu o carro para casa”. O filho leva o carro e é mandado parar numa
operação STOP. Conduzir sem carta é crime, o pai pode ser punido por crime de condução
sem habilitação legal?
▪ Temos uma situação de comparticipação em que um preenche a qualidade exigida pelo
crime específico, mas o outro (pai) não preenche a qualidade exigida. O art.28º CP diz-
nos que basta um deles ter a qualidade para que todos sejam punidos, ou seja, a
qualidade de um comunica-se ao outro e no caso concreto o pai pode ser punido.
• Art.28º/2: diz respeito aos crimes específicos e próprios.
▪ Exemplo: um funcionário e um não funcionário executam em conjunto um crime de
peculato (furto cometido por funcionários e como tal a pena é agravada). O funcionário
é punido por peculato. E o não funcionário comparticipante? Vai ser punido por furto
ou peculato? Se a qualidade for comunicada, será punido por peculato, caso contrário
por furto. Diz-nos o nº2 do art.28º CP que quem decide é o juiz.
• EM SUMA: os arts.28º e 29º são sobretudo relevantes no quadro dos crimes específicos, na
medida em que nestes crimes se exige uma especial qualidade: ou para se ser autor ou
porque agrava a pena. Como tratar as situações em que apenas um agente tem a
qualidade?
o Se a qualidade disser respeito à culpa, não há comunicabilidade da qualidade –
art.29º CP.
o Se a qualidade disser respeito à ilicitude do facto, o art.28º/1 CP permite a
comunicabilidade, permitindo-se que a pessoa sem a qualidade seja punida pelo
crime da pessoa que a tem.
o O art.28º/2 CP diz respeito aos crimes específicos impróprios, ou seja, àqueles em
que o agente que não tem a qualidade sempre seria punido pelo crime comum, neste
caso por que crime seria punido? Pelo crime específico ou pelo comum? Segundo o
artigo é o juiz que decide.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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Os crimes de omissão
I. INTRODUÇÃO
1. Caracterização do crime de omissão
O tipo tanto pode ser realizado através de prática de uma ação proibida, como através da
omissão de um comportamento juridicamente exigido.
Exemplo1: uma mãe deixa um filho morrer à fome porque deixa de o amamentar. Essa mãe
deve ser punida pelo homicídio do bebé? Isto é, pode cometer-se um crime por mera inação, sem
desencadear qualquer processo causal, apenas por não intervir?
A construção da omissão não se reporta à inatividade da mãe, mas é função da ação
juridicamente esperada e devida, no caso, a alimentação do filho.
O crime de omissão reside na violação de uma imposição legal de atuar, pelo que só pode ser
cometido por uma pessoa sobre a qual recaia um dever jurídico de levar a cabo uma ação
imposta e esperada.

2. A omissão levanta alguns problemas:


• Dificuldades de índole dogmática: o crime é uma ação típica, culposa e ilícita. Podemos
integrar a omissão neste conceito de ação e, consequentemente, de crime? A escola clássica
dizia que a ação era a modificação no mundo exterior por força de vontade própria; a finalista
sustentava que a ação era desencadear um processo causal; já a doutrina neoclássica fala de
ação como negação ou afirmação de valores – só aqui podemos integrar no conceito de
omissão. Figueiredo Dias prescinde do conceito de ação e fala logo da finalização típica –
basta que o tipo preveja a omissão, logo pode matar-se alguém por ação ou omissão.
• Casos de ambivalência ou de duplo significado/relevância da conduta: quando é que
determinado comportamento é ativo ou omissivo?
o Exemplo: o médico interrompe o ventilador da máquina de respiração assistida a
alguém que precisa dele, apressando-lhe, assim, a morte. O seu comportamento
analisa-se numa ação (o desentubar o paciente) ou numa omissão (o deixar de
prestar os cuidados de saúde a que estava obrigado, privando-o de oxigénio)?
o Figueiredo Dias sustenta que o critério decisivo deve ser um critério de ilicitude
típica – o da forma de criação do perigo para bens jurídicos tutelados pela norma:
ao agente deve ser imputada uma ação sempre que ele criou (ou aumentou) o perigo
que vem a concretizar-se no resultado; uma omissão sempre que ele não diminuiu
aquele perigo.
o No exemplo: a conduta do médico é omissiva, conta o comportamento de deixar de
dar o suporte de manutenção de vida porque o perigo já atingia o moribundo.

II. TEORIA GERAL DO DELITO OMISSIVO

1. O tipo de ilícito: TIPO INCRIMINADOR

1.1. Tipo de ilícito SUBJETIVO doloso (e negligente) – o erro sobre a posição do garante
A doutrina é unânime quanto à distinção do dolo e negligência enquanto formas do tipo
ilícito subjetivo: também na omissão pode haver crimes dolosos e crimes negligentes.
No entanto, no que toca ao dolo existem várias divergências. A doutrina dominante
defende que o dolo do tipo válido para a ação também vale para a omissão: é necessário que
o omitente conheça, através da sua consciência intelectual, a situação típica e omita a ação
imposta com vontade de que se preencha o tipo objetivo. Neste quadro há dificuldades a
superar, nomeadamente em relação ao conhecimento e representação da posição de
garante.

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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→ Conhecimento e representação da posição de garante
A. Erro sobre a factualidade típica: [isto vale para o âmbito do tipo justificador]
A posição de garante prevista no art.10º faz parte da factualidade típica do crime em causa: para
dizer que aquela pessoa praticou um crime por omissão, o tipo do art.31º que se refere a quem
matou outra pessoa é relacionado com o art.10º, isto é, é como se fosse um crime específico: só o
comete quem estava numa posição do garante, logo faz parte da factualidade típica.
Um erro sobre os pressupostos materiais do dever de garante não permite que o agente se
oriente o suficiente e corretamente para o problema da ilicitude, sendo que esse erro exclui o
dolo, nos termos do art.16º/1CP.
▪ Exemplo: um pai que não procede ao salvamento do seu filho (criança) em risco de afogar-se
porque supõe erroneamente que não se trata do seu filho, mas de um estranho. Há um erro
sobre os factos que levam a uma posição de garante.
B. Erro sobre a ilicitude – art.17ºCP
Se o agente representa corretamente a totalidade daqueles pressupostos materiais, mas não
toma consciência do dever que sobre ele recai, tal falta de consciência constitui um erro sobre
a ilicitude que deixa subsistir o dolo, mas pode excluir a culpa.
▪ Exemplo: o pai deixa o seu filho, que como tal reconhece, morrer afogado porque supõe que
não é ele que o tem de salvar, mas sim o nadador salvador. Ele sabia tudo o que precisava
para saber que era o seu filho, mas não sabia que o seu dever era salvá-lo.

1.2. TIPO DE ILÍCITO OBJETIVO


A. Elementos estruturantes: o tipo de ilícito de omissão tem os mesmos elementos
estruturantes (autor, conduta e bem jurídico) que o tipo de ilícito de ação.

B. A imputação objetiva – teoria da conexão do risco:


O problema da imputação do resultado à conduta só poderá ser resolvido no sei da teoria da
conexão do risco: o risco já está criado, o que se pede é que intervenha através de uma ação
adequada para afastar o perigo e obstar à verificação do resultado.
No caso da mãe (exemplo1), a mãe não cria o perigo, a fome é inerente à natureza humana,
mas pede-se que faça tudo o que é preciso para que o bebé não morra pelo risco natural da
sua insuficiência para sobreviver. Falamos, então, de uma causalidade hipotética: tem de estar
claro que há uma possibilidade de praticar uma ação que seja adequada para afastar o perigo
para o bem jurídico. Se houver essa possibilidade, há um dever de atuar.

C. A distinção entre crimes puros e impuros


A omissão pode ser de 2 tipos:
• Omissão pura ou própria – os delitos próprios são aqueles cujo tipo de ilícito se esgota na
não realização da ação imposta pela lei. Neste sentido, pune-se o simples não fazer,
independentemente de qualquer resultado que daí advenha.
Numa ideia de solidariedade mínima, há algumas condutas que são impostas pelo legislador
que cria um tipo legal de crime para punir quem não adotar determinado comportamento
– a omissão está contemplada no tipo. Exemplos de crimes puros ou próprios:
▪ Omissão de auxílio – art.200ºCP. Exemplo: vamos na autoestrada e de repente
deparamos com um acidente cujas vítimas precisam de ajuda. Se seguirmos o nosso caminho
sem prestar essa ajuda, basta tal comportamento para que seja considerada uma omissão
criminosa – pune-se a simples ausência dos mínimos de solidariedade para com os outros,
não sendo relevante saber se alguém acabou ou não por sofrer danos (resultado). [este é o
exemplo mais pragmático]
▪ Recusa de médico – art.284ºCP: pune-se a falta de disponibilidade do médico para
ajudar quem precisa.
▪ Omissão de denúncia – art.245º: está obrigado a denunciar a situação.

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• Omissão impura ou imprópria – em muitos casos a lei entende que deve responder pela
ocorrência de determinado resultado ilícito, não só quem o provoca por ação, como quem
o deixa acontecer por omissão. Isto é assim por força do princípio de equiparação da
omissão à ação nos crimes de resultado, legalmente previsto no art.10ºCP.4

→ Regras da equiparação:
❖ Conceito de “crime de resultado”: quando se fala em crimes de resultado geralmente é no
sentido de ser um evento que é distinto, espaço e temporalmente, da ação que o provoca.
Ou seja, para a perfeição do facto/crime, é preciso que ocorra o evento que ele prevê – se
a pessoa praticar a ação adequada para matar alguém, mas a morte não ocorre, o crime
não está consumado, logo é punido apenas por tentativa.
Contudo, quando o art.10º fala de crime de resultado, não é neste sentido que se fala de
resultado: a ideia que adota é a de que são crimes que, de alguma maneira, perturbam a
situação de tranquilidade do bem jurídico – é um conceito mais amplo: resultado não quer
dizer crime material, nem crime de dano no sentido que tem de haver densidade do bem;
quer dizer crimes que, para a sua consumação, exige a perda de tranquilidade do bem.

❖ Possibilidade fáctica de ação: para que exista uma omissão típica é necessária a
possibilidade do omitente de levar a cabo a ação esperada ou devida. Falta tal possibilidade
quando:
o Falta ao omitente a capacidade corpórea (ou física) de ação: se é preciso socorrer
rapidamente uma criança que caiu a um lago não é típica a omissão do seu pai
paralítico que não a salvou.
o A impossibilidade física deve ser equiparada à incapacidade técnica, de falta de
conhecimentos ou de meios de auxílio: se um eletricista, sem telemóvel se depara
com alguém severamente ferido, não comete uma omissão típica se não realizar
uma intervenção cirúrgica indispensável ou não chamar o 112.

❖ Crimes “refratários” à omissão: parte final do artigo – são refratários porque não podem
ser cometidos por omissão – ou por impossibilidade jurídica (a lei só quer punir tais
condutas quando ativas) ou por impossibilidade fáctica (exemplo: crime de bigamia –
ninguém se pode casar por omissão).

❖ É necessário que o desvalor da omissão seja equivalente ao desvalor da ação: ou seja, se,
no caso, o facto de não atuar e deixar ocorrer o resultado é, em si mesmo, tão relevante
do ponto de vista da ilicitude penal, como seria a ação.
Figueiredo Dias diz que só se deve equiparar a omissão à ação se o resultado tiver sido
produzido, por omissão, sob a forma tipicamente exigida pelo delito de ação. Ou seja, no
nosso caso, perguntar se dar um tiro no bebé e matá-lo tem o mesmo desvalor ou parecido
com deixá-lo a morrer à fome? Sim, podendo até ser considerado pior! Trata-se do
equivalente desvalor jurídico-penal.

❖ Nota: caso típico de omissão impura – em muitos casos, quando alguém pratica um crime
por omissão impura (p.e., homicídio negligente), também comete o crime de omissão pura:
nesses casos, por um lado, o agente tem 2 deveres – o dever de auxiliar (dever geral que
emerge da situação de perigo comum) e um dever especial (que pessoalmente o obriga a
evitar o resultado). Temos de dizer que os crimes de omissão impura vão esgotar o tipo do
facto ilícito em concreto – o homicídio absorve o desvalor da omissão pura.

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O critério fundamental de distinção entre crimes de omissão pura e crimes de omissão impura passa
pela circunstância decisiva de os impuros não se encontrarem descritos em tipo legal de crime,
tornando-se, por isso, indispensável o recurso à clausula de equiparação contida no art.10ºCP.
RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019
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→ Dever de garante e as suas fontes
❖ Posição de garante: o dever de evitar o resultado existe para toda a gente que pode
praticar a ação adequada? Não. Em concreto, é preciso que o agente esteja, em relação ao
resultado típico, na posição de garante – só está obrigado quem se encontre numas
circunstâncias tal que pessoalmente o obriguem a evitar esse resultado (art.10º/2).
▪ Exemplo: na aula, ouvimos um bebé a chorar. Temos de ir todos dar de comer ao bebe? Não,
não estamos obrigados a acudir a todos os pedidos feitos no mundo – tem de haver um
dever pessoal. Não se trata de um dever moral ou social, mas de um dever jurídico
(paternidade, p.e.). Além de que só pode ter o dever quem poder atuar.

❖ Fontes do dever de garante – quando é que há esse dever jurídico ou quando é que
estamos na posição de garante?

1. TEORIA FORMAL CLÁSSICA


Para a teoria clássica a preocupação foi a de arranjar fontes certas desse dever, que não
exigissem grandes interpretações, de modo a levar a cabo a certeza e a segurança do
direito. Neste sentido, as 3 fontes do dever de garante seriam:
• Lei (no caso do bebé há normas no CC, p.e., art.1874º)
• Contrato (p.e., babysitter)
• Ingerência (se alguém cria o perigo, fica obrigado a removê-lo – exemplo: se
alguém disser a um caloiro para ele se atirar ao mondego, mas ele não souber nadar
e começa a afogar-se, fica obrigado a socorrê-lo)
→ Críticas:
o Com esta teoria deixam-se vários casos de fora por força do seu formalismo:
▪ Quanto ao contrato – exemplo: no caso de uma babysitter que vai a tribunal
sendo acusada de ofensa à integridade física do bebé, porque deixou que o bebé
se ferisse gravemente por estar distraída com a televisão. O seu advogado vem
provar que o contrato celebrado não era válido por vício de forma. Neste caso,
não é justo que uma mera assinatura possa fazer diferença. O direito penal
quando exige o contrato como fonte do dever jurídico, procura atualizá-lo
penalmente: não se trata dos requisitos formais do Direito civil, a questão da
fonte do dever garante assenta nas relações fácticas que abrangem as partes
(p.e., os pais confiaram na babysitter). Logo, o facto de haver um vicio de forma
não afeta em nada o dever de garante para o direito penal.
▪ Quanto à ingerência: um dever jurídico formal não existe pura e
simplesmente nestes casos; além de que é preciso saber quais os requisitos
que deve assumir o facto perigoso para que ele possa desencadear a
responsabilidade do agente a título de omissão.

2. TEORIA DAS FUNÇÕES


Esta teoria voltou-se para uma conceção material: a verdadeira fonte dos deveres e
posições de garantia reside numa relação qualificada de solidariedade, ou seja, resulta por
força das exigências de solidariedade do Homem para com os outros dentro da
comunidade. Entendeu-se que tem o dever de garante quem tem uma função de proteção
de um bem jurídico carecido de amparo ou tutela ou o dever pode nascer na esfera jurídica
de quem tem a função de controlar uma fonte de perigo. Assim, separa 2 grandes grupos:

• Função/dever de proteção de um bem jurídico carecido de tutela – para a


existência de um dever de garante é necessária a existência de relações fácticas
entre aquele sobre quem a lei faz recair um certo dever e o bem jurídico lesado

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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pelo resultado, ou seja, o omitente deve ser responsável pelo bem jurídico carente
de proteção. Os deveres de proteção podem provir:
o Relações de proteção familiares ou análogas: abrange a chamada
comunidade de vida – pais/filhos, cônjuges ou situação análoga,
avós/netos, etc.
o Assunção de funções de guarda ou assistência: falamos das relações
fácticas de confiança – no caso do contrato, quando combinam entre si
que uma dá apoio à outra ou quando o carente de proteção confia na
disponibilidade interventora do garante (exemplo: instrutor de natação
que se obriga a dar aulas, com a respetiva função de guarda ou assistência).
o Comunidades de perigo: por força das relações de confiança e
dependência mútuas que no grupo se estabelecem, criando em cada um
dos participantes um dever de garantia face a todos os restantes (exemplo:
há uma expedição de desportos radicais em que vai um grupo, aqui todos têm
o dever de garante em relação às pessoas do grupo).

• Função de vigilância e segurança face a uma fonte de perigos – ao contrário dos


supramencionados, aqui o garante está vinculado ao controlo e vigilância apenas
da fonte de perigos. Há 3 situações de onde nasce o dever de garante:
o Ingerência: quem cria o perigo que pode afetar terceiros, deve garantir de
que dele não venha produzir-se um resultado típico. No entanto, a
causação do perigo, em si mesma, é incapaz de fundar um dever de
garantia, pelo que devemos atender aos requisitos para que ele possa
desencadear a responsabilidade do agente:
▪ O resultado típico tem de considerar-se objetivamente
imputável, segundo as regras gerais, ao incumprimento do dever
de garante.
▪ A criação do perigo tem de ser objetivamente ilícita, embora não
culposa, pelo que não poderia fundar uma posição de garante
sempre que o comportamento prévio se encontrasse justificado.
o Posição de senhorio ou domínio: alguém que, pela sua profissão ou
situação, é a pessoa que domina a fonte de perigo. A comunidade tem de
poder confiar quem exerce um domínio que se encontra acessível a
outras pessoas também domina os riscos que para estas podem resultar
de estados ou situações perigosas.
▪ Exemplo1: uma pessoa vai a passear um cão perigoso, se ele vê que o
cão vai a correr em direção de alguém, ele tem de controlar esse perigo;
exemplo2: donos de veículos motorizados que devem conservá-los em
condições de segurança; exemplo3: pessoa que é responsável por não
deixar entrar ninguém na zona de radiações no hospital).
o Dever de garante face à atuação de terceiros: diz respeito aos casos em
que o terceiro, por motivos vários, ou não é responsável ou tem sua
responsabilidade limitada ou diminuída (crianças ou inimputáveis).
Nestes casos a ordem jurídica impõe o cumprimento de um dever de
vigilância, relativamente ao irresponsável, a quem exerce sobre ele um
poder de domínio ou controlo. Será o caso de:
▪ Pais perante filhos dependentes
▪ Professores de crianças ou adolescentes
▪ Direção e pessoal de estabelecimentos de internamento
destinado a doenças mentais.

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• Situações de monopólio – situações em que alguém é a única pessoa capaz de,
sem esforço, evitar o resultado. Exemplo: alguém, à noite num parque sozinho,
vê que está uma criança a afogar-se. Se a pessoa não faz nada porque pensa que
não lhe diz respeito, isto equivale à ação de matar, podendo a pena ser
especialmente atenuada. No entanto, só as podemos utilizar em ultima ratio:
o Há quem entenda que é estender demais a obrigação de solidariedade.
Então, essa pessoa não tem qualquer dever de intervir quando isso puser
em risco a sua pessoa ou o seu património; quando esse risco ou lesão
for insignificante para si deve assumir o dever de garante.
o Embora outras situações caibam no dever de garante, se houver uma
pessoa em situação de monopólio, mas houver outra fonte de garante,
devemos utilizar a outra com o máximo cuidado (exemplo: se não acudo
a bebe porque estou com pressa para chegar a casa onde está a minha
mãe a ter um ataque cardíaco).
2. Tipo de culpa dos crimes de omissão
Quanto ao tipo de culpa doloso, ele deve ser definido exatamente da mesma forma por que o
é nos crimes de ação: como atitude interna do omitente, documentada no facto, de
contrariedade ou indiferença pelo dever-ser jurídico-penal.

Tentativa
Exemplo: o senhor A quer matar o senhor B, tem o seu plano, sabe como e quando o vai matar.
No caminho para o trabalho, entra numa loja de armas e compra uma. No dia previsto, vai até
perto da casa do senhor B e espera por ele num sítio escondido. Quando chega o senhor B, faz
pontaria e prime o gatilho. No entanto, falhou a pontaria e o senhor B não morreu.
→ Não se trata de um crime consumado que preencha todo o tipo legal de crime. No entanto,
ainda que não se tenha consumado, não significa que não haja crime. O crime tentado também
é crime, sendo relevante para o direito penal.

I. INTRODUÇÃO
1. Noção: prática de atos de execução de um tipo de crime que alguém tenta cometer, mas que
não seja consumado.

2. Caminho do crime – iter criminis – tem 4 fases:


A. Resolução criminosa – mera decisão de realização de um crime (exemplo: A decide
matar B)
B. Atos preparatórios
C. Atos de execução
D. A consumação do perigo/crime

A. Resolução criminosa
A mera decisão de realização de um crime, independentemente de um começo de realização,
não é punível. Não se pode punir alguém por ter pensado que queria matar alguém: o direito
penal visa proteger subsidariamente bens jurídicos, não puros valores morais. A função do
direito penal é a de proteger uma ordenação social e só a violação desta ordenação (isto é, a
conduta externa do agente) pode constituir um ilícito.

B. Atos preparatórios
Nos termos do art.21ºCP, os atos preparatórios não são puníveis, salvo disposição em
contrário. Exemplo: comprar uma arma que vem a servir para matar alguém não faz parte do
ato de matar ou de tentar matar (art.131º e 22º) pelo que não posso ser punida por tal ato.
No entanto, existem exceções:

RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019


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• Há crimes que, na sua materialidade, são atos de preparação para outros crimes, ou
seja, atos materialmente preparatórios, mas formalmente transformados em crimes
autónomos. Exemplo: art.262ºCP – a simples contrafação de moeda não lesa nenhum
bem jurídico, no entanto, pune-se porque a pessoa que contrafaz em moeda coloca-a
em circulação como legítima. Ou seja, é um ato preparatório para o contrabando de
moeda falsa, que é o “verdadeiro” ataque ao ordenamento social.
• A lei prevê certos casos de punição para atos preparatórios, não como crimes
autónomos, mas como atos preparatórios enquanto tais. Neste caso, quando o
legislador fala do tipo legal de crime, também refere os que os atos preparatórios
também são punidos (p.e., arts.271º e 275ºCP). Esta solução assenta em 2
pressupostos:
o Tais atos apontem com alto grau de probabilidade para a realização do tipo de
ilícito
o Verifica-se a necessidade de uma intervenção penal específica
o Exemplo: parte dos crimes sexuais – quando o bem jurídico é tão valioso que
se deve punir antes das ações chegarem ao núcleo essencialmente desvalioso.

C. Atos de execução – a tentativa


Pode acontecer que a perfeição do tipo de ilícito subjetivo (dolo do tipo) corresponde a uma
imperfeita realização do tipo de ilícito objetivo que se previu. Estamos perante a tentativa de
cometimento de um crime que é, em princípio, punível – a tentativa viola já a norma jurídica de
comportamento que está na base do tipo de ilícito consumado.

3. Fundamento da punibilidade da tentativa – porque é que se pune o crime tentado?


A. Teoria subjetiva: defendem que o que se pune é a vontade desvirtuosa ou, pelo menos, a
exteriorização da mesma. O ilícito jurídico-penal considera-se constituído pela violação da
norma e o agente, pelo seu comportamento viola uma norma proibitiva ou impositiva
Críticas:
• Esta perspetiva levaria ao “direito penal do agente” – seria punir alguém só pela sua
vontade. Não se pode punir só pela vontade, ainda que exteriorizada, seria quase
punir o agente pela sua mera personalidade.
• Por esta linha deveria punir-se de forma igual o crime consumado e o crime tentado
porque a vontade é a mesma, não releva o aparecimento ou só o perigo de
aparecimento de uma concreta violação de um bem jurídico.
B. Teoria formal-objetiva: pune-se a pessoa quando tiver praticado, pelo menos, um elemento
equivalente da descrição típica. Por exemplo, não chegou a matar, mas praticou uma ação
que, em princípio seria adequada a matar.
Críticas:
• Não se sabe quais as qualidades que deve revestir um concreto ato singular para que
possa afirmar que preenche um elemento do tipo de ilícito. Exemplo: comprar uma
faca não integra o ato de matar do art.131ºCP.

C. Teoria material-objetiva: dizem que o fundamento da punibilidade da tentativa é o perigo


próximo de consumação do crime – pune-se porque o agente praticou uma ação que cria
um perigo (próximo) para o bem jurídico.
Críticas:
• Há tentativas que são impossíveis e esta teoria não consegue explicar a punibilidade
da tentativa impossível. Exemplo: A quer matar o senhor B pondo-lhe uma colher de
açúcar no café, porque pensa que o açúcar é prejudicial para o ser humano.
Evidentemente que uma colher de café não vai matar o senhor B. Logo, ainda que
tenha a intenção de matar o senhor B, o açúcar constitui um meio inadequado para

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o matar. O agente praticou uma ação, uma tentativa, que não cria um perigo próximo
para o bem jurídico.

D. Teoria da Impressão (Figueiredo Dias): mesmo que não haja um perigo real para o bem
jurídico, a conduta, de qualquer modo, é uma violação ou um atentado à vigência da
norma, quer a tentativa seja possível ou impossível. Isto é, a tentativa será punível se e
quando for adequada para pôr em causa a confiança da comunidade na vigência daquela
norma, frustrando as suas expectativas de paz e segurança jurídica.

4. Distinção entre tentativa acabada e tentativa inacabada


• Tentativa acabada: aquela em que o agente pratica todos os atos de execução que teriam
levado à produção do resultado, mas este não acontece
• Tentativa inacabada: aquela em que o agente não chega a praticar todos os atos
necessários para a produção do resultado.
• Importância prática da distinção: importa na questão da desistência da tentativa: quanto
à possibilidade e aos requisitos da desistência num caso e noutro; e relativamente à medida
de determinação da pena.

5. Tentativa negligente
Não há tentativa negligente porque se entende que o desvalor da ação negligente separado
do desvalor do resultado não terá dignidade penal – quem tenta alguma coisa é porque decidiu
realizá-la.

II. A TEORIA GERAL DO DELITO TENTADO


1. O tipo de ilícito: o tipo incriminador
1.1. O tipo subjetivo de ilícito (= tipo consumado)
Para a doutrina maioritária portuguesa na tentativa, tal como nos crimes consumados, o dolo
pode assumir qualquer uma das suas formas: intenção, necessária e eventual.

1.2. O tipo objetivo de ilícito – distinção entre atos preparatórios e atos de execução
Os atos preparatórios (art.21ºCP) não são, em regra, puníveis, pelo que importa distingui-los
dos atos de execução, sendo necessário a determinação do momento em que se inicia a
execução.

→ Quando começam os de execução?


O nosso código diz, no art.22º, o que são atos de execução:
• Alínea a) – está em causa a teoria formal-objetiva: constitui ato de execução todo
aquele que preenche um elemento típico.
• Alínea b) – está em causa teoria material-objetiva: atos que são idóneos a produzir
um resultado típico na medida em que criam um perigo próximo do bem jurídico
• Alínea c) – o legislador apela para as regras da experiência comum e diz que já são
atos de execução aqueles que, não sendo em si mesmo adequados ou idóneos a
produzir o resultado, dão início à conduta que, se não houver interrupções, acaba por
constituir uma unidade com a consumação. Para tal, Figueiredo Dias diz que é preciso
uma conexão de perigo típica – típica porque o ato já penetra no âmbito de proteção
do tipo de crime; conexão perigosa porque há um perigo imediato.

1.3. Tentativa impossível ou inidónea – art.23º/3CP


❖ Conceito: consiste na tentativa que não poderia consumar-se porque é impossível segundo
as regras da experiência comum. Tem 2 variantes:

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→ Meios inidóneos: o meio é inapto a provocar aquele resultado. Exemplo do açúcar no
café – o agente tem um plano e uma intenção, mas não tem um meio adequado,
mesmo que ele pense que seja – vê-se segundo a realidade das coisas e não segundo o
que ele pensa.
→ Inexistência do objeto essencial do crime: exemplo – B está a apanhar sol na praia,
deitada com o chapéu na cara. Vem o senhor A e repara que é o senhor B, com quem
tem atritos e dispara. Na autopsia vê-se que a causa de morte do senhor B não foi o
disparo do A, mas um ataque cardíaco. Logo, A pensava que o estava a matar, mas
não estava porque B já estava morto – o objeto essencial do crime de homicídio é uma
pessoa viva.

❖ Fundamento da punibilidade da tentativa impossível – porque é que é punível?


• Há teorias impossíveis de fundamentar a tentativa impossível, nomeadamente as teorias
materiais-objetivas: se a tentativa é punida porque e quando é perigosa, então a
tentativa impossível não seria punida porque não é, à partida, suscetível de pôr realmente
o bem jurídico em perigo – se não havia pessoa viva, o perigo já não estava presente
porque o bem jurídico já não podia ser posto em causa.

• Já as doutrinas subjetivistas, como querem punir a vontade exteriorizada, conseguem


defender a punibilidade de toda a tentativa impossível porque nela se revela um desvalor
de ação análogo ao que se verifica na tentativa idónea e no crime consumado. No
entanto, esta teoria prescinde do facto para punir o agente, abstraindo-se da ideia do
perigo para bens jurídicos, pelo que não a podemos aceitar, seria admitir um direito penal
do agente (onde se pune as suas qualidades).

• Teorias da impressão de perigo (ou da aparência): se houver aparência de que há perigo


para o bem jurídico, isso basta para punir. Não se trata de punir um crime real, mas uma
aparência de crime/perigo, suficiente para abalar a confiança comunitária na vigência da
norma de comportamento. O art.23º/3 CP diz-nos que só não se pune a tentativa
impossível “quando for manifesta” a sua impossibilidade – exemplo1: alguém vai a um
velório e dispara contra o cadáver. É visível que quem dispara não está a cometer um crime
de homicídio; exemplo2 (do açúcar no café): não será punido porque é manifesto que o
crime não pode ser cometido.
Ou seja, segundo esta teoria e este artigo, sempre que a tentativa seja impossível nas 2
vertentes (inidoneidade do meio e inexistência do objeto essencial), mas esse caráter
inidóneo não for manifesto ou aparente, é punível. Exemplo: no caso da praia – toda a
gente pensa que o B só está deitado na praia a apanhar sol, não era manifesto de que era
um cadáver que ali estava – só por existir a aparência de homicídio, já é suficiente para
haver punição. [o fundamento da punibilidade é a aparência]
→ Nota: para avaliar a perigosidade ou aparência deve ser feito um juízo ex ante, um
juízo de prognose póstuma – levado a cabo por um observador colocado no momento
da execução, conhecendo todas as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis do
agente. Isto acontece quer a tentativa seja idónea, quer manifestamente impossível:
o Manifestamente impossível: nem numa perspetiva ex ante há perigo para o
bem jurídico porque é manifesta a inexistência do objeto essencial ou a
inidoneidade do meio, logo, não se compromete a finalidade preventiva da
norma.
o Se a ausência de perigo não for manifesta: o agente deve ser punido com
fundamento no perigo ex ante para o bem jurídico – quando o agente atua
está a atentar contra a vigência da norma, porque, com os dados disponíveis
naquele momento, pensa-se que está a criar perigo para o bem jurídico (só
sabemos que não há perigo posteriormente).

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2. O tipo justificador na tentativa = a ação

3. Culpa – no âmbito da tentativa só pode haver culpa dolosa.

4. Punibilidade – traz-nos uma particularidade:


❖ A DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA DA TENTATIVA
Nos termos do art.24º/1 CP, estamos perante uma causa de exclusão da pena – tendo o
agente este comportamento de desistência, entende-se que, embora tenha praticado atos de
execução com culpa, não deve ser punido. O facto, na sua imagem global, não tem suficiente
necessidade de pena.

→ Art.24º CP:
• Há um elemento essencial subjetivo – a “voluntariedade”: só a desistência voluntária
conduz à isenção da pena do facto tentado. Ou seja, a desistência tem de ser vista como obra
pessoal do agente e nessa base lhe possa ser imputável. Para ser uma desistência relevante
é preciso:
o Impedimento da consumação do facto: não basta que o agente abandone a execução
do facto, o agente tem de voluntariamente impedir a consumação, através de uma
atividade própria, isto é, tem de levar um comportamento ativo que impeça que o
resultado se consuma. Exemplo: A dá 2 tiros ao B para o matar. Entretanto, quando se
apercebe que B ainda não morreu, arrepende-se e leva-o rapidamente para o hospital
para o tratar, em vez de tentar com que efetivamente morra ou deixá-lo para morrer
– temos um caso de arrependimento ativo. Ele não abandona a execução do facto, ele
pratica ativamente uma ação adequada para salvaguardar o bem que colocou em
perigo. Tudo isto tem de ser voluntário, ou seja, por iniciativa do agente e não por
qualquer coação exterior. Notas:
▪ Quando falamos de arrependimento ativo, não é necessário que haja um motivo
nobre ou altruísta por detrás desse arrependimento – basta que espontâneo e
próprio;
▪ A desistência importa no momento concreto da prática do facto – importa
quando o agente desiste, levando-o ao hospital, ainda que esteja a pensar
retomá-lo daqui a uns dias.
▪ Art.24º/2: se o agente se propor a impedir a consumação, mas esta for impedida
por facto independente da sua conduta, o agente não é punível se se tiver
esforçado seriamente por evitar a consumação. Exemplo: A, abandona B, por
A gravemente ferido com intenção de o matar, volta atrás a toda a pressa para
o levar ao hospital ou chama, para esse efeito, o 112º. Quando A chega ao local,
B já tinha sido levada por C para o hospital. Nota: são esforços sérios quando o
agente intenta levar a cabo tudo aquilo que pensa que teria de fazer ou poderia
fazer para evitar a consumação, valendo, assim, a convicção do agente.

• Há um elemento objetivo: não pode haver consumação do facto. Mesmo que o agente
se esforce para evitar a lesão do bem jurídico, se o bem for lesado, não pode beneficiar
desta causa de exclusão de pena.

• Desistência em caso de comparticipação – art.25ºCP: exemplo – 4 pessoas vão assaltar


um banco. A dada altura, B arrepende-se e tenta convencer os restantes de que não devem
continuar com aquela ideia. B sai do plano, mas os outros continuam, consumindo o crime
de assalto. B pode beneficiar da tentativa de desistência, mesmo sendo o crime
consumado? Como se trata de uma exclusão de culpa pessoal, B beneficia da mesma
porque o crime consumiu-se, não pela sua vontade, mas pela dos outros.

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→ Fundamento da impunidade da desistência voluntária – porque é que não se pune?
• Teoria da ponte dourada: a ideia é a de que o agente, ao levar a cabo os atos de execução
passou para o lado ilícito, mas ainda não lesou o bem jurídico. Assim, o legislador penal,
como pretende uma proteção do bem jurídico, entende que, ao estender uma “ponte
dourada” para que o agente volte para o bem ilícito, será mais fácil este decidir por desistir
do projeto criminoso, salvaguardando-se, deste modo, o bem jurídico – se o agente evitar
essa ofensa ao bem jurídico, não será punido.

❖ PENA DE CRIME PELA TENTATIVA: nos termos do art.23º/1 e 2, só a partir da média


criminalidade é que a tentativa deve ser punida. Por outro lado, mesmo quando se pune a
tentativa, pune-se com a pena correspondente ao crime consumado, mas especialmente
atenuada (art.73ºCP).

O concurso
1. Noção: estamos perante um concurso de crimes quando no mesmo processo penal se decide
sobre vários crimes cometidos pelo mesmo agente (art.30ºCP). Torna-se, então indispensável,
determinar quando é que se está perante um só crime ou perante uma pluralidade de crimes.

I. CRITÉRIOS DE DISTINÇÃO ENTRE A UNIDADE E PLURALIDADE DE CRIMES – como é que se


distingue se é um crime ou vários?
❖ Escola clássica – critério da ação naturalística: o crime consiste na modificação do mundo
exterior causalmente ligada a uma vontade. Se o crime é uma ação naturalística, então serão
tantos crimes como ações causais em sentido naturalístico.
Críticas:
• É difícil contar ações porque o nosso comportamento é contínuo – quantas ações já
pratiquei deste que estou nesta aula? Liguei o pc, mexi no telemóvel, joguei candy crush,
etc.
• Porque é que um critério naturalístico deveria dizer alguma coisa sobre a gravidade do
meu comportamento? É mais grave partir uma caneta porque a atirei uma vez ou parti-la
porque a atirei 2 vezes?
→ Concurso ideal: no Código Alemão há uma norma que diz que quem com uma só ação
preencher vários tipos legais de crime, é menos punido do que aquele que com várias
ações preencher os vários tipos legais de crime – é o chamado concurso ideal. Exemplo1:
1 pai tem 2 filhos bebés e um carro de bebé para cada um deles. Num ato desvairado atira
os 2 ao mar – primeiro atira um e depois outro: são 2 crimes, pune-se os 2. MAS, se o pai
tinha apenas um carrinho de bebé duplo e de uma só vez atirou os 2 bebés que estavam no
carro e os 2 morrem, segundo os defensores do concurso ideal, deve ser menos punido
porque só praticou uma ação. Isto não faz muito sentido, o pai matou os 2 filhos da mesma
maneira, são sempre dois crimes e, como tal, deve ser punido por ambos.
→ Dr. Eduardo Correia fez uma tese sobre o concurso que ainda hoje rege a jurisprudência
portuguesa: para ele a ação nunca seria uma ação causal, mas uma negação de valores. Um
critério naturalístico não pode por si só aumentar ou diminuir o desvalor de uma pessoa.
Por isso, nunca uma ação naturalística terá consequências no direito penal.

❖ Critério da unidade ou pluralidade dos tipos legais violados – teoria normativista (Eduardo
Correia) –: crime é um ou são vários consoante o agente, com a sua ação, preencher um ou
vários tipos legais de crime. Para contar quantos crimes que aquele agente cometeu, tenho
de contar quantos tipos legais de crime foram preenchidos com a sua ação. Exemplo: alguém
que com um tiro parte o vidro de loja e também mata a pessoa que lá estava. São 2 crimes,

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preenchem 2 tipos legais de crime: um crime de dano e outro de homicídio. Pune-se como
um concurso efetivo de crimes.

➢ Punição do concurso de crimes – art.77ºCP


O legislador português decidiu, no art.77ºCP, pela punição do concurso de crimes através de
um sistema de cúmulo jurídico: a soma das penas aplicáveis aos vários crimes não pode
ultrapassar o limite máximo da moldura penal (25 anos) – se essa soma ultrapassar os 25 anos,
só é somado até aos 25 anos, excluindo-se os restantes anos. Para encontrar a pena concreta
temos ainda de ter em conta os factos e a personalidade do agente: se os crimes forem o
crescendo de gravidade, poderá chegar aos 25 anos.

II. CONCURSO DE CRIMES EFETIVO, PURO OU PRÓPRIO


❖ Art.30º/1 CP: o concurso efetivo é o que está previsto no art.30º/1 CP:
• Concurso heterogéneo: temos a possibilidade de concurso efetivo heterogéneo de
crimes – vários crimes imputados ao mesmo autor com diversidade de tipos legais de
crime. Exemplo da loja: atirou e partiu o vidro da loja (art.212ºCP) e,
consequentemente, feriu a empregada que lá estava (art.148º/1CP).
• Concurso homogéneo: também temos a possibilidade de só ser um tipo legal de crime
preenchido, mas várias vezes. É o caso do exemplo do pai e dos bebés – nestes casos,
como estão em causa bens pessoalíssimos, é como se cada tipo legal se esgotasse
numa só pessoa. Quando o agente mata 2 pessoas é como se preenchesse 2 vezes o
mesmo tipo legal de crime, logo são 2 crimes – a pluralidade de vítimas corresponde a
uma pluralidade de sentidos do ilícito.
• Nota: quando o artigo se refere ao “número de vezes”, essa expressão deve
reconduzir-se à pluralidade de resoluções criminosas. Exemplo: o senhor A dá 7
facadas no senhor B. Quantos crimes são? Vai depender do número de resoluções
criminosas (ou projetos criminosos): se o senhor a decidiu dar 4 facadas ao senhor B,
mas depois decide que este afinal merece mais e dá-lhe mais 3. Neste caso há 2
resoluções criminosas: o projeto inicial era dar 4 facadas, mas quando acabou esse
projeto, consumando o seu intento, reconsiderou e achou que era pouco. Dá então
início a outro projeto – o das 4 facadas.
o E se pensou dar um número indefinido de facadas? Só há uma resolução
criminosa, logo só há um único crime doloso de ofensa à integridade física.

❖ Crimes negligentes: seja negligência consciente ou inconsciente, temos de ver quantas


violações do dever objetivo de cuidado ocorreram – se o agente feriu outra pessoa porque
não teve cuidado com a mota e na volta para trás, volta a bater noutra pessoa ou até na
mesma, há 2 violações do dever de cuidado, 2 vezes que foi negligente.

III. CONCURSO DE CRIMES APARENTE, IMPURO OU IMPRÓPRIO


Exemplo1: A mata P, o pai. Quantos crimes comete ou quantos tipos legais de crime estão em
causa? Como matou alguém temos um crime de homicídio (art.131ºCP), mas como esse alguém
era o seu pai, estamos perante um homicídio qualificado (art.132ºCP). A cometeu 2 crimes? Não.
Exemplo2: crime de incendio florestal (fogo posto – art.274º): quem põe fogo, também danifica
as arvores. Comete um crime de dano e um crime de incêndio? Não.

→ Existem casos em que os sentidos singulares de ilicitude se conexionam ou intercessionam


de tal modo que se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido
de desvalor jurídico-social. Neste sentido, há relações entre os tipos legais de crime que se
ligam e fazem com que um deles seja especial em relação ao outro – não faz sentido punir por

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homicídio simples e homicídio qualificado porque no caso concreto, a norma que exprime todo
o desvalor de ilícito que ali está é a do homicídio qualificado. Se a aplicar, não sobra nenhum
desvalor para punir.
Neste caso introduzimos uma nova secção: antes de aplicar as 2 normas, temos de ver se as
relações entre essas normas podem ser tais que a aplicação de uma norma torna desnecessária
a outra, logo temos de aplicar a que esgota o ilícito no caso. Há 2 tipos de relações:
➢ Especialidade: um dos tipos legais (lex specialis) integra todos os elementos de um
outro tipo legal (lex generalis) e só dele se distingue porque contém um qualquer
elemento adicional, seja relativo à ilicitude ou à culpa. Assim, segue uma logica formal:
lei especial derroga lei geral, ou seja, entre homicídio simples (art.131º) e homicídio
qualificado (art.133º), pune-se o qualificado.

➢ Consumpção: a condenação pelo ilícito-típico mais grave exprime o desvalor de todo o


comportamento. Ou seja, os bens jurídicos que presidem 2 tipos legais encontram-se
numa relação de mais para menos no caso concreto – a proteção visada por um dos
tipos fica esgotada porque é consumida pelo outro. Isto é, a norma que pune o mais
também pune o menos, pelo que não faz sentido punir pelas 2, até porque estaríamos
a punir a mesma pessoa 2 vezes pelo mesmo ilícito.
Neste sentido, temos de ver em abstrato se se trata de bens jurídicos da mesma família
e depois em concreto verificar se esse caso cai na zona de interceção ou nas zonas de
não interceção.

IV. O CRIME CONTINUADO – ART.30º/2CP


Se olharmos para os critérios até agora utilizados, na base do crime continuado (art.30º/2)
temos um concurso de crimes, quer no plano objetivo quer no subjetivo. No entanto, em alguns
casos, entendeu-se que a situação em si fazia com que fosse mais adequado tratar essa
pluralidade crimes como se fosse um só crime. Porquê?
• Razões processuais – procurou-se evitar, relativamente a numerosas realizações
típicas, dificuldades práticas, por vezes insuperáveis, como a comprovação judicial de
cada uma das realizações que integra a continuação;
• Estão em causa vários crimes que põe em causa o mesmo bem jurídico ou bens da
mesma família (exemplo: dano e furto).

❖ Requisitos – art.30º/2:
o Prática de vários crimes ou várias resoluções criminosas
o Conexão objetiva: exige-se que entre os bens jurídicos lesados exista uma relação
estreita de afinidade ou proximidade – “o mesmo ou fundamentalmente o mesmo bem
jurídico”.
▪ Devem ser considerados bens jurídicos diferentes sempre que eles assumam
natureza eminentemente pessoal e se verifiquem uma pluralidade de vítimas.
Quando assim seja, ou seja, quando estão em causa bens pessoalíssimos, não há
crime continuado, mesmo que seja praticado de forma homogénea ou haja uma
menor culpa do agente ou se trate de bens jurídicos da mesma família (!!!) –
art.30º/3
o O crime deve ser executado de forma essencialmente homogénea (exemplo: diferentes
crimes sexuais).
o Deve ocorrer num cenário exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente – ou
seja, numa situação que facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez
menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente. Exemplo: quando se
descobriu uma porta falsa que dá acesso a uma casa e se aproveita várias vezes para furtar
objetos lá depositados.

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❖ Pena do crime continuado – art.79º CP:
Exemplo: o funcionário de um banco descobre a password de uma conta. Precisa de pagar uma
divida e tira 20€. Depois volta a precisar de mais dinheiro e tira 40€ e assim sucessivamente.

Isto não deve ser tratado com a pena do cúmulo jurídico porque o que acontece é que há uma
culpa menor: esta circunstância de ele ter descoberto a password tenta-o a repetir várias vezes
o mesmo crime. De cada vez há uma resolução criminosa, mas há culpa diminuída porque é
menos exigível que ele ceda à tentação.
Por isso, ele vai ser punido na moldura penal desse crime (que corresponde à conduta mais
grave que integra a continuação) e os outros crimes que cometeu podem servir para fixar a pena
concreta. Nunca será punido por 3 ou 4 furtos. Trata-se de uma exceção à pena do cúmulo
jurídico.

❖ Distinção entre crime continuado e crime fracionado: é diferente um crime continuado de


um crime de execução fracionada. Neste último só há uma resolução de crime, que vai sendo
realizada pouco a pouco. Exemplo: alguém quer furtar todos os livros de uma biblioteca. Não
os vai furtar todos de uma vez, mas vai fazendo várias viagens para os ir roubando. São
frações de um único crime.

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