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Beatriz P.

| 2019/20

OMISSÃO PENALMENTE RELEVANTE

1) No crime, a conduta pode manifestar-se de modo positivo (ação) ou negativo


(omissão). Ação e omissão são estruturalmente/ naturalisticamente diferentes:
na ação, viola-se uma norma jurídica, fazendo o que a lei proíbe; na omissão,
viola-se uma norma jurídica, não fazendo aquilo que a lei comanda.

2) Estamos perante um caso ambivalente? Critério das omissões por ações.


Roxin resolve os casos mais difíceis colocando-os na categoria da omissão através de
ação → por razões de natureza normativa, o princípio da subsidiariedade é invertido,
punindo-se uma ação como omissão; desenvolve a ideia de que há determinados crimes
cuja estrutura comportamental é uma estrutura de violação de dever, sendo indiferente
que sejam levados a cabo por ação ou omissão (por razões teleológicas), devendo ser
tratados pelo direito como omissões, ainda que, ontologicamente, sejam ações.

Grupos de casos:
• Comparticipação ativa em delito omissivo (ex.: A aconselha B a deixar de prestar o
auxílio necessário, nos termos do 200º CP)*

• Omissio libera in causa (ex.: nadador salvador embriaga-se até à inconsciência para
tornar impossível socorrer alguém)*

• Tentativa interrompida de cumprimento de uma imposição legal (ex.: pai de uma


criança que está em risco de se afogar vai buscar um bote para tentar salvá-la, mas,
ao chegar, interrompe os seus esforços, tendo podido continuá-los)**
RANFT: Quando há um terceiro disposto a ajudar e o agente impede-o, temos
uma omissão por fazer? Se o agente interfere numa cadeia causal
exclusivamente alheia que evitaria o resultado (ex.: impedir B de utilizar o seu
próprio barco, que é o único disponível1, para salvar A), o comportamento será
uma ação. Se o barco for da própria pessoa que impede a sua utilização, temos
uma omissão.

ROXIN: Nos casos em que um terceiro está disposto a auxiliar, a propriedade do


instrumento salvador deve ser irrelevante. Seja o barco de quem for (do terceiro
que quer ajudar ou do agente que não quer), haverá sempre aqui um crime
comissivo.

• Interrupção técnica de um tratamento (ex.: médico ou um terceiro desligam a


máquina de respiração assistida a que está ligado um moribundo)***

* Nestes casos, há sem dúvida omissão. O agente não diminui um perigo que,
independentemente dele, afetava o bem jurídico, não obstante o seu comportamento
se traduzir numa “introdução positiva de energia”.

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Nota: Se aquele instrumento não for o único disponível (ex.: existirem vários barcos), o comportamento
de quem impede a utilização de um deles é omissivo, uma vez que apenas tem o efeito de negar o auxílio,
não impedindo em absoluto que a vida do náufrago seja salva.

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** Se o processo salvador ainda não atingiu a esfera da vítima, então o comportamento


deve ser tratado como uma omissão, porque não há motivos político-criminais para
punir diferentemente quem interrompe um processo causal salvador, contra o dever, e
quem decide desde o início não intervir na situação. Se já tiver atingido a esfera da
vítima, a um ponto em que esta já se poderia valer por si própria, o comportamento
deve ser considerado como comissivo.

*** Apesar de o processo salvador já ter atingido a esfera da vítima, a continuação do


tratamento não era capaz de diminuir o perigo que atingia o moribundo.
Se fosse um não-médico a fazê-lo, não haveria dever de tratamento, pelo que teríamos
de considerar ser uma ação2.

3) Tipos de omissão
Omissões puras/ próprias – O nada fazer já está previsto e é punido como tal
pelo crime. Não tenho de fundamentar a equiparação à ação, porque o legislador
já incriminou a omissão (caso mais comum: art. 200º, 284º, 190º/1). O próprio
tipo de crime prevê e pune a omissão.

Omissões impuras/ impróprias – Omissão que tem relevância penal, porque


nela identificamos algo que a torna comparável à ação (art. 10º/1 e 2 – cláusula
geral de equiparação). Quando conseguirmos equiparar omissão e ação, isso
significa que consigo imputar qualquer crime ativo a título omissivo (ex.: punir
crimes de homicídio como omissão)

- Começamos sempre por ver se existe uma omissão impura (1) – ver se é
possível equiparar a uma ação típica (partindo do princípio de que não estamos
perante um caso em que a lei tem outra intenção).
- Onde falhe a omissão imprópria, a seguir, veremos a omissão pura (2).

2
Ver explicação na pág. 7.

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4) Quando equiparar?
FIGUEIREDO DIAS
Antes de eu descobrir o critério de equiparação da omissão à ação, tenho
primeiro de perceber se a omissão é relevante.
(1) Primeiro, tem de haver uma possibilidade de agir (ex.: se eu não
salvei a pessoa B de se afogar, porque estava sequestrado, não tinha
possibilidade jurídica (nem física) de agir).

(2) Tenho de ver se há uma norma no CP à qual posso subsumir o


comportamento e tenho de perceber se posso imputar
objetivamente a omissão ao resultado punido – ver se consigo
estabelecer um nexo causal penal entre aquela omissão e aquele
resultado. O critério de identificação da ação típica é o critério da
forma de criação do perigo – há ação quando o agente cria ou
aumenta o perigo que vem a concretizar-se no resultado; há omissão
quando o agente não diminui o perigo que, independentemente de
si, afeta o bem jurídico. Se tivesse agido, teria evitado que o bem
jurídico tivesse sido violado ou o tivesse sido tão gravemente.

(3) Tem de haver um dever de evitar o resultado, ao qual se chama dever


de garante ou posição de garante. Só onde houver dever de garante
é que vou poder ter uma omissão imprópria. Se não tenho como
exigir o cumprimento de um dever, não posso imputar a
responsabilidade pela lesão do bem jurídico.
Como identificamos se há esse dever?

Nota:
Tradicionalmente (Feuerbach), dizia-se que a posição de garante tinha de derivar da lei ou de um
contrato. Stübel veio acrescentar a estas duas fontes a da situação de ingerência. Segundo a
teoria formal do dever de garantia, eram estas as três fontes da posição de garante.
Hoje considera-se essa doutrina redutora, face aos valores atuais e experiências de solidarismo na
comunidade de vida.
Desde logo, o dever legal nunca é muito explícito sobre até onde deve ser desenvolvido, porque
normalmente é um dever de proteção e controlo e não especificamente o dever de evitar um
resultado. Por outro lado, a fonte contratual coloca problemas quando estamos na fase pré ou
pós-contratual. Esta orientação tradicional abria espaço a impunidades e teve de ser completada
pela doutrina.

Era necessário construir uma teoria material dos fundamentos das posições de garante que
alargasse a verificação de um dever de garantia a outras situações que não têm na sua base um
dever jurídico em sentido formal. A questão de haver dever jurídico não dependeria das fontes
formais dos deveres jurídicos, mas de uma outra relação material entre o agente e as pessoas de
cuja proteção se trate.

Esse desenvolvimento deu-se em dois sentidos:


➔ Circunstâncias em que o agente detém fontes de perigo ou é ele próprio fonte de perigo.
➔ Circunstâncias em que a proteção jurídica está associada às relações de proximidade
entre o agente e a vítima.

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Então, como identificamos se há posição de garante? FIGUEIREDO DIAS


lista todas as situações em que pode haver uma posição de garante:
1) Deveres de assistência e proteção
1.1) Relações de proteção familiar e análogas
- Na relação pais-filhos, enquanto estes estiverem sob o âmbito
de proteção daqueles.
- Na relação filhos-pais. Na relação filhos-pais, só quando haja
uma particular proximidade e dependência.
- Nas outras relações familiares em que se evidencie
proximidade e dependência.
- Na relação entre cônjuges ou análogas, por força da
comunidade vida.
- Na relação entre namorados ou noivos, já é discutível que haja
esse dever.

1.2) Aceitação de funções de guarda e assistência


- Não interessa aqui o vínculo contratual, mas sim a assunção
fáctica de uma função de proteção materialmente baseada
numa relação de confiança: tem de haver uma tutela imediata
daquele bem jurídico e tem de se gerar uma relação de
confiança mútua.
- Inclui relações de autoridade e funcionários.

1.3) Comunidade de vida e de perigos


- Apenas autonomiza a situação da comunidade de perigos. O
caráter arriscado do empreendimento coletivo cria em cada um
dos participantes um dever de garantia face a todos os outros,
desde que: a) as relações sejam efetivas e estreitas; b) que a
comunidade de perigos exista realmente; c) que o perigo já
pese sobre a vítima potencial.

2) Deveres de vigilância e segurança face a fontes de perigo


2.1) Ingerência
- O resultado típico tem de ser objetivamente imputável ao
incumprimento do dever de garante.
- O facto anterior perigoso deve ter sido ilícito3.

2.2) Dever de fiscalização de fontes de perigo no âmbito de


domínio próprio
- Fundamento: Quem detém uma fonte de perigo deve atuar
no sentido do afastamento dos riscos que dela resultam para o
exterior.
- Limites: Causalidade: se havia um aviso, não há
responsabilidade.

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Não é claro quanto aos atos lícitos.

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2.3) Dever de garante face à atuação de terceiros


Aqui se derroga o princípio da auto-responsabilidade:
- Quando o terceiro não é responsável ou tem a sua
responsabilidade limitada ou diminuída (ex.: menores).
- Quando haja uma relação de supra / infra ordenação e
consequente autoridade / subordinação.

3) Posições de monopólio (situações em que o agente é a única


pessoa capaz de evitar o resultado)
Requisitos:
- Que o agente esteja efetivamente investido, mesmo que
ocasionalmente, numa posição de domínio fáctico absoluto;
- Que o perigo seja agudo e iminente;
- Que o dominus da situação possa levar a cabo a ação esperada
sem ter de incorrer em perigo ou dano para si mesmo.

JAKOBS, dentro da ideia do Direito Penal como orientado para funções de


tutela das expectativas da comunidade, vem dizer que também podem
ser relevantes as abstenções de agir quando haja uma relevância social
das mesmas.
Posso ser responsabilizado quando:
(1) Estou a agir dentro dos limites gerais da minha liberdade na
configuração do mundo exterior4 (ex.: deveres de segurança no
tráfego, ingerência, aceitação de deveres); ou
(2) Tenho um dever institucional de evitar a lesão de um bem jurídico
(dever quase formalizado – ex.: relações pai/filho ou entre cônjuges,
relações contratuais5).

Ex.: O médico que está no seu hospital e vai tratar do seu paciente, vê
que a máquina está desligada e não a volta a ligar → incumpre um dever
institucionalizado, pelo que a omissão é equiparável a uma ação.

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Porque somos livres, podemos organizar uma certa esfera de intervenção e comunicação com os outros,
na medida dessa nossa liberdade. Pelos inconvenientes criados pela nossa configuração do mundo,
somos responsáveis (ex.: se estamos a conduzir e, num sinal vermelho, aceleramos e atropelamos
alguém, a nossa liberdade de circulação acarreta uma responsabilidade).
E se o agente em vez de acelerar não parar? JAKOBS diz que este comportamento omissivo não é
diferenciável do ativo. Ainda estamos na esfera das decorrências de responsabilidade que são assacadas
à nossa liberdade de configuração do mundo. Nestes casos o que conta é que temos uma responsabilidade
geral como limite da nossa liberdade de configuração do mundo.
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A pessoa tem de ter competências sociais específicas para a proteção de certos bens jurídicos,
atribuídas pelo nosso estatuto (exs.: professores, alunos, médicos). Não é um critério tão fechado quanto
o de FD para a identificação de um dever de agir.

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Se o médico estiver num hospital que não é o seu e fizer exatamente a


mesma coisa, uma vez que não tem o dever especial, não haverá
incriminação.

Se ao bem é dirigida uma proteção institucionalizada, para quem não


tenha esse dever, o comportamento, seja ele ativo ou omissivo, será
irrelevante.

MFP → Esta solução de JAKOBS conduz a um resultado injusto.


- Primeiro, a diferença entre estar ou não no seu hospital não parece ser
suficiente para dizer se há ou não dever.
- Segundo, a verificar-se que não há dever para o médico externo ou para
um terceiro, isso apenas será suficiente para dizer que não há omissão
(impura) penalmente relevante. Não se pode comparar aqui o
comportamento ativo e o comportamento omissivo.
- JAKOBS é, neste ponto, excessivo, chegando a contrariar a sua própria
teoria, uma vez que o comportamento ativo de desligar a máquina
deveria ser assacado a uma competência geral pela organização do
mundo, independentemente de haver ou não dever institucionalizado.

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A propósito da questão de saber como qualificar o facto de desligar a máquina,


também se pronunciou ROXIN, que considera tratar-se de uma omissão por fazer.

Há determinados crimes cuja estrutura comportamental é uma estrutura de


violação de dever, sendo indiferente que essa violação ocorra por ação ou omissão.

Ex.: Alguém que não é nadador salvador, estando no seu barco de recreio, vê ao
longe alguém que se está a afogar. Apesar de não ter o dever de saltar, aproxima o
barco para lhe atirar uma boia. No entanto, ainda ao longe, o agente verifica que o
náufrago é um inimigo seu, voltando a recolher a corda a que está ligada a boia.
Numa situação destas, uma vez que nunca esteve iminente o salvamento, porque a
vítima ainda estava muito longe da boia, pode dizer-se que o não ter nunca atirado
a boia (omissão pura – 200º CP) se equipara ao comportamento do agente de iniciar
o processo salvador e depois desistir → através de um fazer, violou-se apenas um
dever de auxílio; apesar de, naturalisticamente, ter características de fazer, não tem
o significado de um comportamento de homicídio (nem por ação nem por omissão).

MFP: Desta perspetiva que retira da estrutura comportamental típica uma certa
indiferenciação entre ação e omissão em termos naturalísticos, não podemos
extravasar para situações como aquela de desligar a máquina em que o que está
em causa nunca será apenas um crime meramente omissivo. ROXIN extravasa nesse
sentido, considerando que o facto de o médico desligar a máquina constitui uma
omissão por fazer, porque o médico apenas incumpre o dever de estabelecer a
ligação entre o doente e a máquina – indiferencia o comportamento omissivo ao
ativo.

Mas também é verdade que, quando ROXIN se refere ao caso da máquina, está a
pensar em doentes terminais, doentes para os quais a ligação terminal à máquina é
um prolongamento artificial da vida, muitas vezes, sem possibilidade de regressão.
O que ROXIN procura explicar é que, nessas situações, não voltar a ligar a máquina
é apenas não prolongar artificialmente a vida, nunca podendo ter o significado de
um homicídio. Nesse plano, ROXIN também vai poder admitir que, nessas situações
dos doentes terminais, acaba por ser indiferente o não voltar a ligar para prolongar
artificialmente a vida e o desligar a máquina para o mesmo efeito.

MFP: Mesmo que se esteja só a pensar nesses casos, não podemos adotar pura e
simplesmente a perspetiva de que esses comportamentos são irrelevantes como
comportamentos típicos, porque essa irrelevância parte do princípio de que, por
haver um prolongamento artificial da vida, não há nenhum dever especial dos
médicos. Esta perspetiva tem uma fundamentação racional, mas não podemos
aceitar hoje em dia o pressuposto de que há uma fronteira entre uma manutenção
natural da vida e uma manutenção apoiada por medicamentos e máquinas. Aquilo
que se entende por prolongamento artificial da vida é apenas o modo como, nas
sociedades contemporâneas e com a tecnologia que temos, podemos apoiar a vida.
A fronteira é muito incerta.

Resumindo: Sempre que haja um emprego de energia na direção de desligar a


máquina, está-se a interromper um processo salvador, o que tem de ter algum
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significado, enquanto ação.
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MARIA FERNANDA PALMA


Parte da teoria funcionalista das omissões de JAKOBS, mas também da
crítica que a ela dirige para construir a sua tese.

Para que a omissão seja penalmente relevante (MFP):


1. Critério dos limites gerais de liberdade na configuração do mundo
exterior, no sentido de que estou a agir de forma livre, não há
nenhuma restrição física, moral, técnica/ estou a agir socialmente –
estou limitado pela liberdade dos outros. Para além disso, se tivesse
agido não estaria a extravasar a sua esfera de liberdade.

2. Critério da autovinculação implícita (e não já o dever especial


formalizado) – Tem de haver um dever especial resultante de uma
autovinculação do agente que não precisa de resultar da lei ou de um
contrato; pode ser implícita.
No caso do médico que não é daquele hospital, a partir do momento
em que entra como médico, autovincula-se a proteger especialmente
aquele bem jurídico.
Por exemplo, onde não haja uma relação irmão-irmã, mas haja uma
amizade tão forte que mimique a relação irmão-irmã, podemos dizer
que houve uma autoviculação por parte do agente.
No entanto, temos de ver qual foi o contexto em que me autovinculei
e quais as limitações desse contexto. A pessoa pode ter-se
autovinculado a proteger o bem jurídico, mas não perante uma
situação de catástrofe natural, por exemplo.

5) MFP sobre grupos de casos


➔ Circunstâncias em que o agente detém fontes de perigo ou é ele próprio
fonte de perigo.
Nestes casos em que o agente domina perigos ou é um perigo, há deveres
especiais de proteção que decorrem de uma ideia de responsabilidade
associada às vantagens que o agente tem ou mesmo ao facto de, apesar
de não ter vantagens nenhumas, estar a extravasar a sua esfera de
liberdade e invadir a esfera de outrem.
Nestes casos, não há nenhum problema na a equiparação entre ação e
omissão, porque, mesmo que a lei não o explicite, há um princípio geral
de responsabilidade associado à liberdade.

➔ Circunstâncias em que a proteção jurídica está associada às relações de


proximidade entre o agente e a vítima.
Estes casos são mais difíceis de resolver. Aqui, o perigo de violarmos o
princípio da legalidade, atribuindo responsabilidade penal por um crime
de resultado quando alguém, numa relação de proximidade, não socorre,
poderá realmente estar-se a pôr em causa a segurança jurídica e a
normalidade das expectativas que qualquer pessoa tem de que não

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haverá uma responsabilidade inesperada, um dever jurídico que decorra


apenas de deveres éticos.

MFP:
- No caso dos vizinhos, em princípio, não haverá nenhum dever, senão
ético, que pessoalmente obrigue o agente, não se justificando a
equiparação da omissão à ação.
- Nas situações de comunidade de vida (pessoas que vivem juntas), só
haveria um dever jurídico de evitar o resultado quando fosse expectável
que tivesse sido assumido pelo agente o compromisso de proteger o bem
jurídico em questão.
- Não haverá de todo uma equiparação nas situações de monopólio
acidental (o agente é o único que dispõe dos meios para evitar a lesão do
bem jurídico, mas não há nenhum dever institucional nem nenhum
compromisso nem é expectável para o agente que esse dever surja em
determinadas circunstâncias). Ex.: agente passeia pela praia; alguém está
a afogar-se e o agente é o único que pode salvar a pessoa. Não há uma
geral expectativa de autovinculação implícita naquela relação social.

➔ Ingerência
A figura da ingerência é quase sempre pacificamente entendida como
uma fonte básica da instituição do agente numa posição de garante.

A ingerência corresponde a um conjunto de situações em que alguém


previamente gerou um perigo para um bem jurídico (ex.: violar regras de
trânsito, criando um perigo para outrem).

O que até aqui estudámos sobre as relações entre liberdade e


responsabilidade revela-nos claramente que a ingerência tem de ser uma
posição de garante, mesmo que a lei não a cite (como acontece no caso
do CP português). Quem, extravasando a sua liberdade, criar um perigo
para um bem jurídico de outrem, por facto ilícito, tem de acarretar a
consequente responsabilidade de proteção desse bem jurídico no sentido
de evitar o resultado.

Mais discutível é o caso da ingerência por facto lícito6. Quando se cria, de


modo lícito, um perigo para um bem jurídico, também podemos ser
instituídos numa posição de responsabilidade para evitar o resultado
típico? MFP: A ingerência por facto lícito deve equiparar-se à ingerência
por facto ilícito. A lógica subjacente é que, apesar de ser por facto lícito,
o agente extravasou os limites da sua liberdade.

Isto não é posto em causa pelo artigo 200º CP. À primeira vista, tendo em
conta a referência à ingerência neste artigo, poderíamos ser levados a
pensar que, no nosso ordenamento, a matéria da ingerência estaria
encerrada apenas no contexto de uma agravação de um crime omissivo
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Damião da Cunha não admite que haja dever de garante quando o perigo derive de facto lícito.

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puro, mas esta norma é subsidiária (só se aplica se não pudermos aplicar
uma norma de um crime de resultado – norma principal).

Esta norma não se interessa pela relação entre o perigo e o próprio


resultado, apenas vai punir quem criou o perigo. Diferentemente, se
deste perigo (criado deste modo) resultar a possibilidade de atribuição
do resultado a este comportamento – consumindo a omissão do dever de
auxílio – teremos antes um crime de homicídio ou de ofensas corporais.

Situações em que o perigo é criado através de um comportamento


justificado (ex.: legítima defesa – art. 32º CP) → Também criou um perigo
lícito. Estará também instituído num dever de proteção e de evitar lesões
para o bem jurídico?
A doutrina dominante considera que não devemos associar aqui a
combinação liberdade-responsabilidade, porque o comportamento, não
obstante não ser imposto, é autorizado pela ordem jurídica. Ser
autorizado significa sê-lo na dimensão de todas as suas consequências. A
pessoa não está a exercer a sua liberdade, está a exercer a sua defesa.
Seria contraditório o agente poder exercer, nos termos do art. 32º CP, a
legítima defesa, mas estar condicionado a evitar o resultado que poderia
atingir para se defender7.

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Resultado que até podia ser atingido imediatamente.

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