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Sebenta de

Direito das Obrigações


Aulas Teóricas da Turma 2
Prof. Dr. Manuel A. Carneiro da Frada

Faculdade de Direito da Universidade do Porto


Nota introdutória:

Esta sebenta respeita às aulas teóricas da turma 2 de Direito das Obrigações do ano letivo de
2019/2020, lecionadas pelo docente Manuel A. Carneiro da Frada. A sebenta foi realizada com os
apontamentos dos vogais do Departamento de Pedagogia Ricardo Silva e Sofia Torres.

A sua elaboração foi realizada com o objetivo de auxiliar os estudantes para o exame de
Direito das Obrigações. Relevamos ainda que, a leitura desta sebenta não substitui a leitura da
bibliografia obrigatória ou recomendada, sendo apenas um instrumento de auxílio ao estudo.

Caso sejam detetados alguns erros, agradecemos que estes sejam comunicados através do e-
mail da CC3: cc3fdup1920@gmail.com de modo a que o documento seja aperfeiçoado.

Bom estudo!

A Comissão de Curso do 3º ano de Direito


Direito das Obrigações – Aulas Teóricas do 1º semestre
Aula do dia 17 de setembro

Capítulo I – Introdução
1. Direito das Obrigações e obrigação
Direito das obrigações (segundo Antunes Varela): Conjunto das normas jurídicas
reguladoras das relações de crédito, sendo que as relações de crédito consistem em
relações jurídicas em que ao direito subjetivo atribuído a um dos sujeitos corresponde um
dever de prestar especificamente imposto a dada pessoa. É o dever de prestar a que uma
pessoa fica adstrita, no interesse de outra, que distingue a relação obrigacional de outros
tipos próximos de relações.
Artigo 397º CC: noção de obrigação – “Obrigação é o vínculo jurídico por virtude
do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação.”
Para o professor, é estranho que o legislador defina legalmente o que se entende por
obrigação, na medida em que as definições no âmbito jurídico podem ser perigosas, por
serem incompletas, muitas vezes. Apesar de a noção de obrigação possuir um conteúdo
legalmente estabelecido, ela é polissémica. O termo “obrigação” não corresponde apenas
ao disposto no artigo 397º, abarcando uma multiplicidade de sentidos. “Vínculo” é uma
noção técnica, formal, mas muitas vezes quando falamos em obrigação estamos a referir-
nos à situação subjetiva daqueles sobre quem impende o vínculo ou a um título de crédito
– outros significados que a palavra “obrigação” pode ter.
O Direito das Obrigações não pode ser totalmente definido a partir do artigo 397º,
como se mostra pela existência de relações obrigacionais complexas, mas não deixa de
estar no artigo 397º uma noção piloto, central.
O que é uma prestação? É adotar uma conduta, desenvolver uma atividade, sendo
que essa atividade não é específica, mas sim variável. Ex: vendedor que vende um
automóvel está adstrito a entregá-lo ao comprador; empreiteiro está adstrito a realizar a
obra e o dono da obra tem direito a que o empreiteiro realize a obra, é o credor. O preço
é uma quantia devida – o credor dessa conduta (pagamento) é agora o empreiteiro. Num
contrato de empreitada e de compra e venda há duas obrigações sinalagmáticas – são
contratos onerosos, sinalagmáticos.
O interesse do credor só é conseguido através da mediação do devedor – o bem
atribuído ao credor só lhe é efetivamente atribuído se o devedor colaborar.
Tem havido grande discussão sobre o que é realmente a obrigação, porque não se
percebia que uma pessoa tivesse direito a uma conduta de outrem, mas o facto é que
dizermos que a prestação é devida não significa que se coloque o devedor numa situação
de escravatura (ele é livre, mas tem de cumprir o que a ordem jurídica impõe, até porque
se o devedor está nessa posição de devedor é porque quis, foi sua vontade vincular-se).
O Direito das Obrigações é importante no que respeita aos serviços, há muitos
contratos mediante os quais se asseguram necessidades das pessoas, ex: contrato de
prestação de serviços. A compromete-se a dar explicações a B – traduz-se num vínculo

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jurídico, sendo que o explicador deve a explicação, e o explicando tem direito à
explicação, por isso o explicando é credor (tem esperança do cumprimento, “crê”).
No fundo, o Direito das Obrigações é o Direito modelo da colaboração e interação
entre as pessoas. Regula as estruturas intersubjetivas de colaboração. Obrigação é uma
noção estrutural, retrata abstratamente muitas relações da vida – é uma relação.
Potencialmente, toda a nossa vida social se reconduz a esta noção de obrigação.

Aula do dia 23 de setembro

2. Obrigações e conceitos afins


As obrigações são situações jurídicas que se individualizam no panorama das
situações jurídicas existentes no Direito Civil. Todas as posições jurídicas dos sujeitos
são múltiplas – cada sujeito tem uma posição jurídica (A é dono do apartamento X; B é
herdeiro dos bens de Y; C é casado com X).
As posições jurídicas dos sujeitos são suscetíveis de serem catalogadas, correspondem
a tipos. Nós vamos estudar a obrigação, que é uma das posições jurídicas possíveis.
As posições jurídicas podem ser ativas ou passivas:

 Posições jurídicas básicas ativas: direitos subjetivos (comuns e potestativos);


liberdade genérica de agir (ao contrário do que acontece no direito subjetivo, não
há um bem que é especificamente atribuído a uma pessoa, ex: liberdade de
contratar ou de testar – todos a temos); expectativas; interesses legalmente
protegidos; exceções (ex: prescrição) e ónus (figura mista, problemática).
 Posições jurídicas básicas passivas: dever genérico de respeito / obrigação
passiva universal; estado de sujeição (o direito potestativo é uma situação ativa e
do lado passivo temos um estado de sujeição) e obrigação (vínculo à realização
de uma prestação).
A obrigação é passiva (desvantagem), o crédito é ativo (vantagem) – se de um lado
temos uma obrigação, do outro lado temos um direito de crédito, que protege o interesse
do credor. O lado passivo do vínculo é a obrigação, o lado ativo é um direito de crédito.

3. Obrigações autónomas e obrigações não autónomas


No Direito das Sucessões e no Direito da Família temos obrigações, mas são
obrigações institucionalizadas, não são autónomas. No Direito das Obrigações,
estudamos apenas as obrigações autónomas. Onde não houver institucionalização,
intervém o Direito das Obrigações, funcionando, por isso, como um Direito subsidiário.

 Obrigação autónoma: Obrigação que nasce entre pessoas que não se encontram
previamente vinculadas entre si, nasce entre pessoas entre as quais não há uma
relação jurídica preexistente ou há uma relação preexistente alheia à obrigação.
Tem existência própria, não pressupõe a existência de uma relação jurídica
prévia. Ex: A atropela B, B exige indemnização – a obrigação de indemnizar
nasce com o dano, não com uma relação prévia.

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 Obrigação não autónoma: Obrigação que nasce no contexto de relações
jurídicas prévias, ex: 1578º CC.

4. Relação obrigacional complexa


As relações humanas não se traduzem isoladamente naquele vínculo, ex: firma de
auditoria e banco cujas contas devem ser auditadas – há obrigações, é preciso, desde logo,
que o banco entregue os elementos, caso contrário não há auditoria (não há só um vínculo,
há uma pluralidade deles). Por exemplo, na compra de um frigorífico não há apenas a
entrega do frigorífico e o pagamento do preço – é preciso estabelecer a hora de entrega,
é preciso verificar que o frigorífico não sofreu estragos no transporte, etc.
A existência de relações obrigacionais complexas mostra que o Direito das
Obrigações não pode ser totalmente definido a partir do artigo 397º CC.
Esta matéria será alvo de maior desenvolvimento no ponto 12.

5. Função da obrigação
É através da estrutura a que chamamos obrigação que se possibilita o cumprimento
de prestações. As obrigações permitem o trâmite dos bens, é assim que esse trânsito
jurídico dos bens é assegurado. Podemos dizer que é um Direito de mobilidade dos bens,
que permite a sua aquisição, o acesso a esses bens. Ex: através de um contrato de
arrendamento adquiro um bem – a possibilidade de habitar no Porto.
Também é função do Direito das Obrigações corrigir repartições patrimoniais
injustas. A tutela é feita através de mecanismos obrigacionais – responsabilidade civil.
No enriquecimento sem causa temos alguém que tem um enriquecimento injusto à custa
de outros. Se A entrega a B 50 euros pensando que lhos deve, há que reverter este
enriquecimento injustificado – há a obrigação de restituir (473º e ss. CC). O artigo 397º
CC não contempla o mecanismo da responsabilidade do devedor – limita-se a
caraterizar a obrigação como um vínculo entre duas pessoas, não refere a tutela, sendo
essa a grande crítica feita.

6. As obrigações e os direitos reais


Os direitos reais de gozo e de garantia são estáticos, não existem para mudar nada. É
verdade que existem os direitos reais de aquisição, mas eles são subordinados à
necessidade de garantir o gozo, asseguram ao sujeito o domínio de coisas (através do
Direito das Obrigações às vezes também se assegura o domínio das coisas). O Direito das
Obrigações, pelo contrário, é dinâmico.
As obrigações são por natureza efémeras – logo que a necessidade fique satisfeita, a
obrigação extingue-se, ex: empreiteiro que faz a obra, explicador que dá as explicações
(com o cumprimento, desaparecem). Nos Direitos Reais a lógica é diferente, têm a
tendência da perpetuidade – são espaços de autonomia que são garantidos. O direito real

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não nos põe em relação com os outros – só acessoriamente é que a relação é chamada à
coação. A lógica da relação jurídica não funciona para os Direitos Reais, porque a relação
jurídica prende-se com uma relação humana, e nos Direitos Reais não há verdadeiramente
uma relação humana – a relação do sujeito é com a coisa.

7. Caraterísticas gerais do Direito das Obrigações


O Direito das Obrigações é Direito Privado, está integrado no Direito Civil, por isso
os sujeitos estão numa posição de liberdade (se não é proibido, é permitido) e igualdade.
Não há nenhuma supra ou infra ordenação de relações à cabeça – no Direito das
Obrigações, todos são iguais. Pelo contrário, no Direito Administrativo e no Direito
Público em geral temos o princípio da sujeição e da competência / legalidade, havendo
relações supra e infra ordenadas. As entidades administrativas estão sujeitas a critérios de
legalidade, não podem agir com liberdade.
Estamos dentro de um ramo do Direito que é fortemente fundado no Direito
Romano, sendo ainda visíveis traços do Direito Romano – já se distinguia entre Direitos
Reais e Direito das Obrigações.
Há parcelas que foram integradas no Direito das Obrigações que podemos discutir se
realmente pertencem a este ramo, nomeadamente os seguintes institutos:
 Responsabilidade civil: Visa tirar o dano a alguém, é um instituto geral do
Direito, pertence à Teoria Geral do Direito Civil.
 Enriquecimento sem causa: Também existe no Direito Administrativo, ex: AP
tem de restituir aquilo que injustamente cobrou; alguém que fabrica um
medicamento patenteado tem de restituir aquilo que fez com que o titular da
patente não ganhasse.
Por que razão estão no Direito das Obrigações? Pertencendo estes institutos
genericamente à camada normativa das sanções para assegurar a efetividade dos
comandos da ordem jurídica, o facto é que operam através de obrigações,
respetivamente através das obrigações de indemnizar e de restituir – vínculo obrigacional.
O Direito das Obrigações absorve realidades que na verdade não são puramente
obrigacionais na sua estrutura, ex: hipoteca e penhor, que são garantias reais das
obrigações. Porquê que as garantias reais das obrigações são incluídas na nossa
disciplina? São direitos reais de garantia, mas sendo direitos reais estão funcionalizados
ao interesse do credor. É o fim destes direitos que os aproximam da nossa disciplina – há
uma razão teleológica para eles serem tratados nas obrigações.

Aula do dia 24 de setembro

8. Inserção sistemática das obrigações nos quadros do Direito Civil.


Crítica à classificação germânica e sua refutação.
O Direito Civil é o Direito Comum, da pessoa comum, sendo que abrange tudo
aquilo que não está regulado especificamente, tendo natureza subsidiária. Por exemplo,
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uma relação de trabalho é uma relação obrigacional que está regulada especificamente no
Código do Trabalho.
O Direito Civil tem das dogmáticas mais apuradas, a conceptologia é rigorosa. Há
sempre a pretensão de encontrar a tese correta, porque duas opiniões diferentes não
podem ser simultaneamente verdadeiras. Segundo um autor, quando há esta divergência,
é preciso prosseguir a discussão, para se chegar à resposta correta. Hart dizia que isso não
é possível, porque está além do nosso alcance – não temos meios suficientes para chegar
à resposta correta. Canaris diz que não sendo possível chegar à melhor solução, pelo
menos o juiz, quando no diálogo processual há divergência, deve escolher uma das
opiniões, que deverá ser aquela que é a mais próxima da correta.
O Direito Civil assenta em normas positivadas, mas também assenta num lastro
cultural muito consistente – as normas têm uma força especial, recolhem uma tradição
do saber jurídico provada por séculos de gerações, e é aí que radica a sua legitimidade.
Assim, a legitimidade do Direito Civil não radica numa legitimidade democrática, é um
Direito menos político que outros.
No Direito das Obrigações há uma técnica universalizada – nós entendemo-nos
com pessoas de todo o mundo no que toca a matéria de Direito das Obrigações. Já o
Direito das Sucessões com certeza varia conforme a cultura. Há então uma possibilidade
de diálogo intercultural acrescido no que diz respeito ao Direito das Obrigações.
Há uma quadripartição dos ramos de Direito Civil, é a chamada quadripartição
germânica, mas a divisão acaba por não ser muito coerente, na medida em que o critério
utilizado para distinguir os Direitos Reais dos Direitos das Obrigações não é o mesmo
critério que utilizamos para distinguir o Direito da Família do Direito das Sucessões.
Neste último caso o critério é a instituição, ao passo que no primeiro o critério é estrutural
(direitos absolutos vs direitos relativos / direitos sobre coisas vs direitos sobre prestações).
A classificação germânica não tem nada a ver com a Parte Geral. Não encontramos
uma parte geral, por exemplo, no Código Civil italiano. A Parte Geral tem que ver com o
Direito das Obrigações – há matérias que são gerais e que não estão na Parte Geral,
mas sim na parte do Direito das Obrigações (ex: responsabilidade civil e enriquecimento
sem causa), assim como há matérias que estão na Parte Geral que não são
verdadeiramente gerais, sendo Direito das Obrigações (ex: regra da incapacidade de
menores só se aplica verdadeiramente ao exercício de direitos obrigacionais; a lógica da
proposta e da aceitação está pensada para as relações obrigacionais).

9. As obrigações e as reservas postas à figura da relação jurídica


Há que fazer uma referência à relação jurídica: as obrigações são, sem dúvida, uma
relação jurídica, mas o professor entende que a relação jurídica não se pode aplicar a
todo o Direito Civil. Aquilo que define estruturalmente o direito real não é nenhuma
relação interpessoal, por isso não podemos dizer que todo o Direito Civil é relação. Só
será verdade no sentido em que o Direito visa regular a vida das pessoas. Em si mesmo,
o direito de propriedade não implica a relação com outras pessoas – poderá haver relação
entre pessoas para dirimir um conflito em relação a determinar quem tem o direito de

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propriedade, ou poderá haver relação entre pessoas quando alguém lese o direito de
propriedade de outrem. O conceito de relação jurídica, para funcionar, tem de ser alargado
a uma extensão demasiado exagerada. Então a relação jurídica é uma categoria abstrata
que não se aplica a todo o Direito Civil, mas na nossa disciplina é muito importante,
porque a obrigação é uma relação.

Aula do dia 30 de setembro

10. Natureza jurídica da obrigação


Qual é a “essência” da obrigação? A obrigação consiste no direito a exigir de uma
pessoa uma conduta ou prestação. Há um direito – o direito do credor a exigir um
comportamento do devedor, o direito à prestação. Há autores, no entanto, que definem a
obrigação como o “poder do credor sobre a pessoa do devedor” e, outros ainda,
entendem-na como o “poder do credor sobre os bens ou património do devedor”.
Analisemos então as teorias que tentam explicar a natureza jurídica da obrigação.

10.1. Teorias Pessoalistas


A doutrina pessoalista, encabeçada por Savigny, defende que o núcleo da
obrigação é o poder que o credor tem sobre o devedor. A obrigação consistiria no domínio
sobre uma pessoa, mas não sobre o seu todo (caso contrário estaríamos perante
escravatura), mas sim sobre uma conduta da mesma, que se submete à nossa vontade. O
que está em causa não é um poder absoluto sobre o devedor, mas sim um poder sobre
uma conduta exigida pelo credor. Estamos perante uma relação obrigacional desigual:
liberdade alargada do credor e liberdade restringida do devedor. À medida que a liberdade
do credor aumenta, a liberdade do devedor é restringida.
Savigny dizia que o direito subjetivo era um direito da vontade, mas por vezes as
pessoas não têm vontade (ex: pessoa em coma, recém-nascido). O credor por si só não
pode satisfazer o seu interesse através da mera vontade – precisa da colaboração do
devedor. O direito de crédito como direito subjetivo não é concebível como direito da
vontade, mas o que Savigny pretendia dizer com isso é que esse direito assegura ao credor
a possibilidade de satisfação dos seus interesses.
Críticas:
 Esta doutrina levaria ao domínio de uma pessoa sobre outra, à escravidão do
devedor. A verdade é que Savigny explica que o domínio seria sobre uma
conduta específica do devedor e não sobre a sua pessoa, pelo que esta crítica
não tem fundamento. No entanto, não se pode compelir verdadeiramente o
devedor a ter uma conduta que só ele pode ter, pelo que não há um verdadeiro
domínio do credor sobre o ato do devedor. Não obstante, o credor fica protegido,
porque recai sobre o devedor uma obrigação de indemnização – a ordem jurídica
tem meios de tutela à disposição do credor (artigo 827º e ss. CC).
 Esta teoria não dá resposta à sanção. No entanto, para Savigny, a
responsabilidade por incumprimento (sanção) não integra o conceito de
obrigação, não pertence à essência da obrigação.

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10.2. Teorias Realistas
Para estas teorias, o que importa é saber o que o credor pode fazer perante um devedor
que não cumpre. Aquilo que manifesta a juridicidade da relação obrigacional é a ação
creditória, sendo que os únicos mecanismos de tutela são os patrimoniais.
Quando o devedor não realiza a prestação, ataca-se o seu património para satisfazer o
interesse do credor. Assim, para esta doutrina, a obrigação tem por base um poder do
credor sobre o património do devedor.
O dever do devedor seria um dever hipotético e não jurídico. Jurídico seria apenas o
poder de agressão do credor sobre o património do devedor, em caso de incumprimento
da obrigação. O devedor não estaria realmente constrangido, o seu património é que
estaria sujeito a responder em caso de incumprimento.
Estas teses veem a obrigação como um dever livre, ou seja, apesar da existência do
vínculo jurídico que faz impender sobre o devedor o dever de cumprir a prestação a que
se vinculou, se ele não o quiser fazer, não o faz, e por isso o direito do credor é hipotético.
É por este motivo que num momento posterior ao incumprimento o credor pode acionar
os mecanismos da responsabilidade contratual.
Temos então um direito hipotético do credor e um dever livre do devedor, sendo
que esta última expressão acaba por ser contraditória. Se é um dever, não pode ser livre
– a pessoa está vinculada à conduta, se cumpre ou não cumpre é outro problema.
Confunde-se o direito do credor com uma mera expectativa, mas o Código Civil
prevê o dever de prestar, pelo que não se trata de um dever livre. Por exemplo, a previsão
do artigo 829ºA só existe porque o dever de prestar não é livre, assim como a ação de
cumprimento só existe porque o dever não é livre.
O direito de crédito seria um direito sobre bens indeterminados do património do
devedor. O núcleo da obrigação, que é o poder de agressão do património do devedor, só
é trazido à superfície pelo incumprimento do devedor.
Críticas:

 O próprio regime jurídico positivado reconhece a obrigação como o direito


a um comportamento (artigo 397º CC). O credor pode exigir a prestação através
de uma ação de cumprimento, através da qual o credor obtém a condenação do
devedor ao cumprimento, proferida pelo tribunal. Desta forma, deve entender-se
o dever de prestar como um verdadeiro dever jurídico.
 Não há necessidade patrimonial para a constituição da obrigação. Um
indivíduo que não tenha bens pode ser parte de relações obrigacionais. Quando
uma obrigação se constitui, mas o cumprimento é impossível por razões externas
ao devedor, a obrigação extingue-se, mesmo que o devedor tenha muito
património (790º CC).
 A maioria das obrigações nasce e extingue-se sem incumprimento, pelo que só
excecionalmente é necessário ativar o património do devedor. Assim, este
conceito de obrigação não abrangeria a maioria das obrigações.
 Há prioridade da reconstituição natural sobre a indemnização (566º nº1 CC).

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 Esta teoria confunde a essência da obrigação (direito à prestação e dever de
prestar) com a sua sanção (mecanismos em caso de incumprimento). Pretende-
se que as obrigações sejam respeitadas e não que se possa escolher entre
cumprimento e sanção.
Referência à teoria das relações entre patrimónios: segundo esta teoria, a
obrigação pode ser reduzida a uma relação entre patrimónios, ou seja, a obrigação
não vincularia diretamente o credor e o devedor, mas sim os seus patrimónios. O sujeito
das obrigações não seria a pessoa, seria o património – o credor e o devedor seriam meros
representantes jurídicos dos seus bens. Na constituição da obrigação, o devedor alienaria
bens do seu património, mas essa alienação só seria eficaz havendo incumprimento. Esta
teoria não pode ser aceite, já que a obrigação depende de dois sujeitos.

10.3. Teoria Dualista


Vê a obrigação como um conjunto formado pelo débito e pela responsabilidade
(Schuld und Haftung). A obrigação seria, simultaneamente, débito (direito à prestação e
dever de prestar) e responsabilidade (possibilidade de atacar o património do devedor em
caso de incumprimento). Haveria necessidade de distinguir estes dois vínculos pelo facto
de existirem hipóteses de débito sem responsabilidade e de responsabilidade sem débito.
As obrigações naturais constituem o exemplo típico da relação de débito sem
relação de responsabilidade, já que o credor não tem direito à ação creditória. Crítica: a
teoria dualista exclui as obrigações naturais, em que não há exigibilidade judicial, mas a
obrigação natural é uma verdadeira obrigação, apesar de não ter agregada a si nenhuma
sanção (a dívida existe, mas não é exigível).
Pode-se constituir uma hipoteca para garantir uma obrigação futura – temos
responsabilidade, mas ainda não há dívida constituída. Crítica: quando se constitui uma
hipoteca para garantir crédito futuro, esta fica sujeita à condição legal do surgimento do
crédito futuro, por isso não é verdade que haja responsabilidade sem crédito. A garantia
pode ser constituída primeiro, mas está condicionada pelo crédito. A hipoteca ou o penhor
estão constituídos, simplesmente têm eficácia suspensa.
No caso da solidariedade passiva, cada devedor responde pelo cumprimento
integral da obrigação, conquanto deva apenas uma quota parte da prestação, então temos
uma situação em que a responsabilidade de cada um dos devedores ultrapassa o montante
do seu débito. Crítica: cada um dos devedores responde perante o credor comum pelo
cumprimento integral da prestação precisamente por estarem em causa devedores
solidários – são devedores da prestação total e não apenas da sua quota.
Débito e responsabilidade distinguem-se também a nível teleológico: o dever de
prestar do débito irá satisfazer o interesse do credor; na responsabilidade pode o credor,
através do património do devedor, satisfazer o seu interesse inicial. Para além disso,
suscitam a aplicação de regras próprias e autónomas, isto é, convocam a aplicação de
regimes jurídicos distintos.
Críticas: Esta doutrina apresenta uma imagem defeituosa do direito à prestação: o
credor recebe a prestação porque tem um direito que o garante, recebe a prestação a título
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de algo que lhe é devido – há uma causa, que é o vínculo, que não inclui a sanção. A
sanção é característica do Direito enquanto ordem jurídica, não identifica a obrigação em
si. Esta doutrina tem os mesmos problemas da teoria realista, já que partilha das mesmas
características no que respeita à responsabilidade.

10.4. Teoria Mista-Monista


A teoria mista-monista tenta resolver os problemas da Schuld und Haftung.
Segundo esta tese, na obrigação estamos perante direitos a várias atuações, direitos
potestativos, sujeições, encargos, etc. Olha-se para a obrigação como um “organismo”
constituído por vários elementos. Fala-se em organismo vivo no sentido de expressar a
complexidade interna do vínculo obrigacional, salientando-se que não se trata apenas de
um dualismo entre débito e responsabilidade, mas de muitos outros elementos que se vão
modificando durante a vida da obrigação. A obrigação é uma realidade dinâmica, vai
sendo modificada. É um processo, algo que se vai desenrolar no tempo.
Antunes Varela diz que o cerne da obrigação é o direito a um comportamento pessoal
do devedor, mas sem a garantia da obrigação, através da ação creditória, o direito de
crédito seria uma mera expetativa jurídica do credor ao cumprimento. Aqui a sanção é
meramente encarada como elemento subsidiário da relação, não como elemento principal,
permitindo afastar a obrigação do elemento real ou patrimonial.
O direito à prestação e a ação creditória constituem momentos distintos, mas não
deixam de constituir os vários poderes de que goza o credor para a tutela do seu direito.
Para Antunes Varela, o poder de exigir a prestação e a ação creditória são peças
integrantes do mesmo sistema. Os vários poderes e deveres em causa são elementos do
mesmo processo, são parcelas da mesma unidade que se prolonga no tempo, visto que a
obrigação se trata de uma relação complexa.
Críticas: Esta teoria não responde à necessidade de encontrar um critério unificador
da obrigação. Do ponto de vista estrutural e concetual, não se dá uma noção precisa da
obrigação e mistura-se o conceito da obrigação com a sua sanção.

10.5. Posição adotada: Teoria (Pessoalista) Clássica


A teoria que melhor exprime a natureza da obrigação é, dentro das doutrinas
pessoalistas, a teoria clássica – a obrigação é o vínculo entre pessoas pelo qual uma
pessoa fica adstrita, para com outra, à realização de uma prestação (397º CC).
Esta teoria parte da noção de Savigny, mas ultrapassa os seus problemas, evitando
explicar os direitos de uma pessoa sobre condutas de outra sem que haja um domínio da
pessoa e evitando referir o direito de crédito, apresentando a definição pelo lado do dever.
Rejeita-se o direito ao património do devedor como elemento da obrigação e
apresenta-se o vínculo obrigacional como unitário. O que diz respeito à responsabilidade
está fora da obrigação, até porque são mecanismos que muitas vezes nem são invocados.

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Assim, na sua estrutura e pureza, reduzindo aos elementos analíticos mais simples,
a designação de obrigação do artigo 397º parece estar correta.

Aula do dia 1 de outubro

11. Objeto das relações de crédito. Principais modalidades da prestação.


O objeto dos direitos de crédito é a prestação, que consiste num comportamento que
pode ser positivo ou negativo – a prestação é o meio que satisfaz o interesse do credor,
que lhe proporciona a vantagem a que ele tem direito. Há vários tipos de prestações.

11.1. Prestação de facto vs prestação de coisa


A prestação de facto esgota-se no comportamento, ao passo que a prestação da coisa
passa pela entrega da coisa, sendo possível nestas últimas distinguir entre o objeto
imediato (que é o comportamento, a atividade devida) e o objeto mediato (que é a coisa).
As prestações de facto podem ser prestações de facto positivo (prestações de facere)
ou prestações de facto negativo (prestações de non facere e de pati).

 Prestações de facere: Comportamento positivo, ex: dar explicações, realizar uma


auditoria, fazer uma obra;
 Prestações de non facere: Comportamento negativo, o devedor obriga-se a não
adotar uma conduta (abstenção, omissão), ex: cláusula de não concorrência (uma
empresa compromete-se a não abrir representações num determinado país para
não fazer concorrência a outra empresa), non disclosure agreement (alguém se
obriga a não revelar informação confidencial);
 Prestações de pati: Obrigações de tolerar, de suportar – alguém se obriga a
suportar um determinado sacrifício, a tolerar que o credor pratique atos a que de
outra forma não teria direito.
Imaginemos que A, dono de um posto de combustível, prometeu que os futuros
adquirentes do posto manterão o direito de exclusivo concedido à fornecedora dos
produtos petrolíferos. Ou que B, casado, se obriga a vender um determinado prédio a C,
prometendo que a sua mulher ia consentir na venda. Temos alguém a vincular uma outra
pessoa a uma obrigação.
A prestação de facto de terceiro é lícita, só que não vincula o terceiro a quem ela
se refere – 406º nº2 CC. Na verdade, são promessas de facto próprio, cujo conteúdo se
carateriza por o devedor se vincular a conseguir a prestação de facto pelo terceiro. Não
vincula o terceiro, vincula o próprio a fazer com que o terceiro cumpra. Há consequências
ao nível da responsabilidade para o devedor que prometeu e não conseguiu cumprir:
 Devedor obriga-se a fazer todos os possíveis para que o terceiro cumpra, mas se
ele não cumprir apesar disso, o devedor não tem qualquer responsabilidade – é a
chamada obrigação de meios (obrigação de best efforts);
 Devedor responsabiliza-se se o terceiro não quiser praticar o facto, mas não se
responsabiliza se o terceiro, sem culpa sua, não puder praticar o facto –

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corresponde grosso modo às obrigações de resultado (as obrigações estipuladas
no Código Civil são sobretudo de resultado);
 Devedor responsabiliza-se se o terceiro não quiser ou não puder praticar o facto –
obrigação de garantia (responde-se mesmo sem culpa).

Quanto às prestações de coisa, são três as modalidades:

 Dar (dare): a transferência ou constituição do direito real depende do ato de


entrega da coisa, que pode ser móvel ou imóvel, ex: contrato de mútuo
 Entregar: o ato de entrega da coisa visa apenas transferir a posse ou detenção da
coisa, não tendo qualquer efeito sobre a transferência do direito real, ex: artigo
1031º (a regra em Portugal é que as prestações são de entregar, porque a
transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato);
 Restituir: o credor, através da prestação, recupera a posse ou detenção da coisa
ou o domínio sobre coisa equivalente, do mesmo género e quantidade.
Coloca-se o problema da prestação de coisa futura. Coisa futura é uma coisa que
ainda não existe (ex: A adquire a B a produção de vinha do ano 2020) ou é uma coisa que
já existe, mas ainda não está na titularidade do disponente, que conta ter a coisa no futuro.
Como conjugar o artigo 892º com o artigo 893º do CC? A venda de bens alheios, à
partida, é nula, mas não é nula quando as partes sabem e negoceiam aquele bem partindo
do pressuposto de que ele não pertence ao vendedor, mas irá pertencer. Ambas as partes
celebram o contrato com a consciência de que o bem ainda não pertence ao alienante, mas
na perspetiva de que venha a pertencer.

Qual a consequência de fazer uma venda de coisa futura? Artigo 893º re. artigo 880º
CC. Em regra, a prestação de coisa futura cria uma obrigação de meios. Ou seja, se
contra a expectativa e os esforços do alienante, a coisa não vem a pertencer à sua esfera
de titularidade, a obrigação extingue-se e o devedor fica desonerado da contraprestação.
O artigo 880º nº2 diz que mesmo que o alienante não consiga adquirir a coisa para a
transmitir, o devedor obriga-se a pagar a contraprestação – este artigo não
responsabiliza o devedor, mas sim o credor. Porquê que alguém se sujeitaria a um contrato
destes? São contratos de risco, negoceiam a esperança – pode correr bem ou mal para o
devedor, é um risco. Nos swaps negoceia-se o risco, tem a ver com a subida e descida das
taxas de juro. Outro exemplo é o contrato de compra e venda de uma produção de laranjas
do ano seguinte. Quando se negoceia o risco, o preço é mais baixo, por isso é que vale a
pena para quem deve o preço. E afinal de contas, o credor sabe que vai receber aquele
valor, enquanto o devedor nem sabe se vai ter a produção que comprou ou não.

11.2. Prestações fungíveis vs prestações infungíveis


Prestações fungíveis: Podem ser realizadas por pessoa que não o devedor, sem
prejuízo do interesse do credor. As prestações de coisa são fungíveis, pois não interessa
quem entrega a coisa.

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Prestações infungíveis: Não é possível que se substitua o devedor por um terceiro
no cumprimento, ex: se Picasso se compromete a pintar uma obra, não poderá ser o seu
vizinho a pintá-la. Por vezes a infungibilidade não deriva da natureza das coisas, mas sim
de uma convenção das partes – infungibilidade convencional.
Fungibilidade relativa: Não tem de ser aquele devedor específico a prestar, mas há
um número limitado de pessoas que o pode substituir, ex: cirurgião está doente e não pode
operar, só outro cirurgião o pode substituir.
Consequências da distinção:
 Ao nível da impossibilidade: A impossibilidade subjetiva só extingue a prestação
se ela for infungível. Se for fungível, o devedor deve substituir-se por outrem.
 Ao nível da ação executiva: Na prestação de facto fungível, o credor pode exigir,
no processo de execução, que o facto seja prestado por outrem à custa do devedor.
A sanção pecuniária compulsória é exclusiva das prestações de facto infungíveis.

11.3. Prestações instantâneas vs prestações duradouras


Prestações instantâneas: O cumprimento é realizado integralmente de uma só vez.
Trata-se de um ato único que satisfaz o interesse do credor. Pode tratar-se de uma
prestação instantânea mesmo que não haja cumprimento no exato momento em que o
contrato é celebrado, assim como pode ser uma prestação instantânea um cumprimento
fracionado, sendo exemplo um pagamento em prestações. No pagamento em prestações,
não deixa de haver um cumprimento integral num só momento, que é o momento do
pagamento da última prestação. De acordo com o artigo 781º CC, a falta de realização de
uma das prestações representa um incumprimento, faz com que o vencimento das
prestações se dê integralmente.
Prestações duradouras: Prolongam-se no tempo e o tempo gera efeitos jurídicos,
não modela apenas o cumprimento, faz surgir uma obrigação. Ex: obrigações do senhorio
e do arrendatário, do depositário, do depositante bancário a prazo, do segurador, do sócio,
da entidade patronal e do trabalhador, do fornecedor da água ou gás e do respetivo
consumidor. O locador que disponibiliza um apartamento ao locatário num dia, tem de
continuar a fazê-lo nos dias seguintes, assim como o locatário que pagou a renda num
mês, tem de continuar a fazê-lo nos meses seguintes (o cumprimento não extingue a
obrigação definitivamente).

 Prestações de execução continuada: Aquelas cujo cumprimento se prolonga


ininterruptamente no tempo. Ex: Prestações do locador, do fornecedor de água
ou gás, do depositário, do comodante e, de modo geral, as prestações de facto
negativas (que só em raros casos não têm natureza continuada).
 Prestações reiteradas, periódicas ou com trato sucessivo: Aquelas que se
renovam em prestações singulares sucessivas, via de regra ao fim de períodos
consecutivos. Ex: prestações do locatário (pagamento de renda ou aluguer), do
devedor da renda perpétua ou vitalícia, da empresa fornecedora de cerveja a certo
estabelecimento, do consumidor de água, gás ou eletricidade, etc.

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Não se devem confundir as obrigações duradouras com as obrigações fracionadas.
Nas obrigações duradouras, a prestação devida depende do fator tempo, que tem
influência decisiva na fixação do seu objeto. Nas prestações fracionadas, o tempo não
influi na determinação do seu objeto, apenas se relacionando com o modo da sua execução
– o seu cumprimento protela-se no tempo, através de sucessivas prestações instantâneas,
mas o objeto da prestação está previamente fixado, sem dependência da duração da
relação contratual (preço pago a prestações; fornecimento de certa quantidade de
mercadorias ou de géneros a efetuar em várias partidas).
Impactos da diferença entre prestações fracionadas e periódicas ao nível do regime:
 Resolução do contrato: Nas prestações duradouras, a resolução não abrange as
prestações já efetuadas, opera apenas quanto às prestações futuras ou quanto à
duração futura da prestação em curso, por causa da ligação entre a prestação
duradoura e o tempo, que faz com que cada prestação tenha uma certa
independência face às prestações futuras. Nas prestações fracionadas, a resolução
do contrato implica a obrigação de devolver as prestações já efetuadas – eficácia
retroativa, pois o tempo não faz parte da essência da prestação.
 Perda de benefício do prazo (artigo 781º CC): Nas prestações fracionadas, a falta
de cumprimento de uma das frações provoca o vencimento antecipado das
restantes – o devedor perde o benefício do prazo, tem de imediatamente pagar
tudo, pois o credor perde a confiança nele. Nas prestações periódicas não funciona
assim, porque o que está em causa nestas prestações não é o prazo, é o tempo no
qual a relação se materializa.
No artigo 934º CC há uma exceção que se aplica só à compra e venda a prestações
(foi pensado para proteção do consumidor) – estabelece requisitos mais exigentes para a
resolução e para a perda de benefício do prazo.
O credor ou escolhe a resolução ou escolhe a perda de benefício do prazo, em caso de
faltar uma prestação.

11.4. Prestações de resultado vs prestações de meios


Prestações de resultado: Há uma transferência do domínio físico da coisa, a
prestação visa um interesse do credor que se traduz no resultado que o devedor se obriga
a proporcionar.
Prestações de meios: A prestação do devedor é pura e simples atividade, ex: médico
que se compromete a dar os meios adequados para tratar o doente; no contrato de trabalho,
ao contrário do contrato de prestações de serviços, o trabalhador não se obriga a um
resultado, mas sim à disponibilidade da sua força de trabalho – trata-se de uma pura
atividade, independentemente do resultado.

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Aula do dia 7 de outubro

12. Complexidade da relação obrigacional. Deveres principais e


secundários de prestação. Deveres acessórios de conduta.
A relação obrigacional é complexa, apresenta várias realidades. De facto, numa
relação obrigacional, não temos apenas o direito à prestação e o dever de prestar: o credor
tem o poder de interpelar o devedor para que cumpra; pode recusar prestações
inadequadas; tem o poder de acionar o mecanismo de responsabilidade civil ou a
realização coativa da prestação; tem o poder de transmitir o crédito (cessão de créditos, o
poder de transmitir também está inserido no crédito), tal como o devedor pode transmitir
a sua dívida; o devedor tem o poder de escolha numa prestação de coisas genéricas (ex:
A compra a B 1 kg de maçãs, é B que escolhe as maçãs).
Apesar de a noção de obrigação ser simples, estão-lhe inerentes poderes e
faculdades. A obrigação pode dar azo a uma relação jurídica complexa, por isso se fala
em relação obrigacional complexa: relação da vida que gira em torno da obrigação. A
obrigação cria uma relação entre pessoas que muitas vezes vai para além da obrigação.
Pode haver transferências do crédito ou da dívida, desde que haja o acordo da
contraparte. Mas também se transferem direitos potestativos, por isso a assunção do
crédito ou a assunção da dívida não resolve o problema. Entra aqui a ideia de cessão da
posição contratual (artigos 424º e ss. CC) e esta figura só se explica se partirmos da ideia
de complexidade da relação obrigacional.
Numa compra e venda de um computador, em torno da obrigação gera-se uma relação
que transcende os primeiros deveres, como é exemplo o dever de embalar o computador
(obrigação secundária) ou o dever de assistência técnica. Para além destes deveres de
prestar secundários, há deveres de conduta que também precisam de ser observados, que
decorrem da boa fé, ex: informar sobre os cuidados a ter com o computador.
A obrigação é internamente complexa e externamente complexa. É complexa a
nível interno porque se deixa decompor em elementos mais simples – encontramos na
obrigação diversos poderes e faculdades. É complexa a nível externo pelo facto de,
normalmente, a obrigação surgir associada a várias posições jurídicas.
Como se distinguem os deveres de prestar dos deveres de conduta?
Nos deveres de prestar temos direitos subjetivos, por isso há um bem jurídico que é
atribuído a outrem. A prestação destina-se ao credor, porque o bem é do credor. Estes
deveres definem o tipo de relação.
Nos deveres de conduta é um comportamento que está em causa, não há
propriamente um direito, há um modo de conduta, que é pautado pelos parâmetros da
boa-fé (ex: ter cuidado para que o bem não seja danificado, dever de informação, dizer os
cuidados a ter com a coisa). Estes deveres de conduta não atribuem nada ao credor,
dizendo apenas como a relação obrigacional se deve processar. Não são específicos de
nenhuma relação obrigacional, podendo surgir em qualquer uma. A sua finalidade é
assegurar o correto processamento da obrigação. Decorrem imediatamente do princípio
da boa fé, não carecendo de ser estipulados nem ordenados especificamente por lei para

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se aplicarem. Exemplo: A compra bilhetes de entrada no zoo para si e para o seu filho,
mas há um animal que está solto, que magoa a criança – poderá haver lugar a uma
indemnização, porque não se verificou o dever de cuidado. Não pode o zoo alegar a
anulabilidade ou nulidade do contrato (ex: dolo de A, por ter falsificado a sua idade para
ter o bilhete mais barato) para se livrar do dever de cuidado, porque esse dever permanece
independentemente da validade do negócio, dado que vai além das obrigações – é algo
que faz parte da vida. Assim, a invalidade do contrato abrange apenas os deveres
principais de prestar.

Os deveres de conduta existem mesmo na relação pré-contratual – culpa in


contrahendo. Antes de surgir o contrato, há uma relação de negociação – ainda não há
dever de prestar (nem se sabe se vai haver, porque pode não se celebrar o contrato), mas
já aí há deveres de conduta decorrentes da boa-fé (artigo 227º CC). Se há deveres de
conduta, há consequências jurídicas e regimes jurídicos aplicáveis.
Vamos supor que se trata de um contrato de fornecimento e que o contrato é
celebrado – há deveres de prestar, pois A tem de fornecer e B tem de pagar o preço
periodicamente. Se A fornece no dia 1 de cada mês e se a B, num determinado mês, não
convém que seja no dia 1, B deve informar A que nesse mês não pode ser no dia 1, por
ele não ter camiões disponíveis. Ou seja, no período de execução do contrato não se
apagam os deveres de conduta, eles continuam a existir.
Os deveres de conduta existem inclusive depois de concluído o contrato. Culpa
post pactum finitum: exemplo de um designer que, numa empresa própria, usa os modelos
que desenhou para um costureiro com quem antes tinha uma relação. No fundo, nestes
casos, há uma situação de violação da boa-fé depois de concluído o contrato, extintos os
deveres de prestar. Também aqui há uma relação obrigacional sem deveres de prestar,
porque os deveres de conduta de acordo com a boa-fé mantêm-se mesmo depois de
concluído o contrato.
Há também, em certos casos, deveres de prestar no termo do contrato, ou seja,
mesmo no fim da relação pode haver deveres de prestar – nos contratos de comodato,
mútuo, depósito e arrendamento há o dever de restituir a coisa no fim da relação.
Os deveres de conduta decorrem do artigo 762º nº2 (boa fé). Enquanto o dever de
prestar tem de ter uma fonte idónea, nomeadamente uma convenção, isso não acontece
com os deveres de conduta.
Os deveres de conduta podem ser independentes do dever de prestar. Ex: há um
acidente durante uma visita de fiscais à obra, e em virtude disso vem-se dizer que o
contrato de empreitada era nulo. Os deveres de proteção radicam numa relação social,
não são necessariamente afetados pela destruição do dever de prestar. Eles permanecem
independentemente de haver dever de prestar.
No período pré-contratual há deveres de proteção, apesar de ainda não haver dever de
prestar. Segundo alguns autores, isto não é necessário, porque o artigo 483º poderia
resolver isto, mas não é bem assim – os deveres de proteção convocam um regime
diferente do da responsabilidade contratual dos artigos 483º e ss. do CC. Na
responsabilidade contratual, que tutela a propriedade e outros direitos absolutos, tem de

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ser o lesado a mostrar que o outro sujeito contra o qual pede indemnização teve culpa
(artigo 487º CC). Às vezes não é claro se a pessoa em questão teve ou não teve culpa,
então na dúvida não há indemnização. Os deveres de proteção, que se destinam a permitir
o correto desenvolvimento da relação obrigacional, são deveres que, se não forem
observados, levam à presunção da culpa, ou seja, há uma inversão do ónus da prova
da culpa, podendo aplicar-se analogicamente o artigo 799º CC (cabe ao devedor
demonstrar que não foi culpa sua). Este regime dos deveres de proteção é mais correto,
tendo em conta a finalidade que se pretende alcançar, que é o correto desenvolvimento da
relação obrigacional. O dever de proteção protege a relação pré-contratual.
 Exemplo: Pessoa escorrega num supermercado e parte a perna. A boa fé implica
que o dono do supermercado garanta a segurança – tem de ser ele a fazer prova
de que fez limpezas e de que teve os cuidados devidos, caso contrário tem de
indemnizar a pessoa que escorregou. Se não admitíssemos os deveres de proteção,
teria de ser a pessoa que escorregou a provar que há culpa do dono do
supermercado, e provavelmente não conseguiria indemnização, por ser difícil
provar isso. O contrato até podia vir a ser nulo (por a pessoa ter trocado códigos
de barras, p. ex.), mas isso não vai prejudicar a existência do dever de proteção –
ele permanece.
Os deveres acessórios de conduta irradiam para terceiros que têm com a obrigação
uma relação especial de proximidade, o que contraria a característica da relatividade
das obrigações. Por exemplo, num arrendamento entre A e B, todos aqueles para além de
B que habitem o imóvel estão abrangidos pelos deveres de proteção e são também
responsáveis pela proteção da coisa.
No cumprimento defeituoso, a prestação é cumprida, mas a relação não decorre
como devia ter decorrido. Ex: A entregou o café que trespassou, mas demorou muito
tempo a conduzir o processo na Câmara Municipal, a passar os contratos de luz e gás, etc.
São incumprimentos em sentido amplo – verifica-se o dever de prestar, mas não se
adotaram comportamentos que deviam ter sido adotados. Se não admitirmos que a relação
obrigacional é complexa, ou seja, que vai para além do dever de prestar, não conseguimos
a solução adequada para estes litígios.

13. Princípios do Direito das Obrigações


13.1. Princípio da autonomia privada
Este princípio é essencial não só para criar uma relação obrigacional, como também
para a modificar ou extinguir, como demonstra o artigo 406º CC.
É uma expressão da dignidade da pessoa humana, a pessoa humana é livre e essa
liberdade expressa-se através da autonomia privada. No Direito das Obrigações,
manifesta-se sobretudo através da liberdade contratual, prevista no artigo 405º CC, que
abrange a celebração de contratos, a não celebração de contratos e a fixação do conteúdo
do contrato, podendo a pessoa escolher um modelo contratual previamente regulado pelo
legislador, criar um modelo novo ou mesmo misturar modelos. Onde não houver

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disposições na lei, princípios ou valores jurídicos que limitem a liberdade, a regra é a
liberdade - tudo aquilo que não é proibido, é permitido.
Isto vale nos contratos, mas nos negócios unilaterais vigora o princípio da
tipicidade (artigo 457º CC). A razão pela qual o legislador é tao restritivo nos negócios
unilaterais tem a ver com o facto de entender que deve proteger o sujeito de si próprio,
pois pode a sua total autonomia levar a circunstâncias adversas para si próprio.
Há situações em que há obrigação de contratar, mas é residual. Há também
comportamentos sociais típicos que levam à celebração de contratos, muitas vezes a
pessoa que faz uma viagem de metro nem se lembra que está a celebrar um contrato – há
autonomia privada mesmo que a pessoa não tenha consciência atual da celebração do
contrato. Estas situações não são incompatíveis com a existência de autonomia privada.

13.2. Princípio da justiça contratual


Será que há uma oposição entre o princípio da justiça dos contratos e o princípio da
autonomia privada? O que se decide de forma autónoma pode não ser justo. Pode haver
conflito entre o pacta sunt servanda e aquilo que é a justiça da situação, por exemplo nos
casos em que há alteração superveniente das circunstâncias.
A ordem jurídica policia a formação do contrato, procura garantir que não há falta
nem vícios da vontade, e supostamente depois disso deve abster-se. Mas há um mínimo
de justiça que tem de ser acautelado, não se pode desinteressar completamente do
conteúdo, ou seja, a ordem jurídica, perante desproporções gritantes, deve poder
intervir. Ex: não é legítimo entregar a corda a um suicida, mesmo que ele implore – esse
contrato não é aceitável.

13.3. Princípio da responsabilidade patrimonial


O credor, em caso de incumprimento, tem meios coativos para a satisfação da sua
posição, nomeadamente executar o património do devedor. Artigo 817º CC – ação de
cumprimento, é uma intimação ao devedor para que cumpra.
A responsabilidade patrimonial não é ilimitada. À partida, todo o património do
devedor responde, mas há exceções. Ex: pelas dívidas do de cujus só responde o
património dele, não o dos herdeiros.
Há meios de conservação da garantia patrimonial – o património tem de ser
acautelado, visto que é a garantia de vários credores, e isso faz-se nomeadamente através
do instituto da impugnação pauliana. Os atos gratuitos, com prejuízo da garantia
patrimonial do credor, são impugnáveis. Quanto a atos onerosos, também estes podem
ser impugnados, mas há um requisito: serem feitos de má fé.
Como cada credor tem acautelado ao seu crédito uma ação creditória, cada um deles
pode procurar a satisfação do seu direito, mesmo que o património do devedor não chegue
para tudo. Há igualdade dos credores, eles não precisam de pedir autorização ao outro
para a satisfação do seu interesse – é cada um por si.

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A declaração de insolvência consiste numa liquidação universal do património do
devedor, dividindo-se o seu património por todos. Nesse processo de insolvência pode
não haver património para todos os devedores. Imaginemos que A tem 1000 euros, mas
deve 700 euros a B e outros 700 euros a C – o seu património não chega, por isso tem de
se ver a quanto correspondem os 700 euros de cada um dos credores havendo apenas 1000
euros. Pode acontecer que haja preferência sobre um credor – se A for credor
hipotecário, ele tem preferência sobre os demais credores.

Aula do dia 8 de outubro

13.4. Princípio da tutela da confiança


Para se compreender este princípio, é relevante referir a boa-fé e o abuso de direito.
Princípio da boa fé
Temos no artigo 762º nº2 CC uma cláusula geral que usa um conceito indeterminado.
A boa fé é um conceito indeterminado, permite uma certa osmose entre o sistema das
normas rígidas e todo o ambiente cultural que se vive na sociedade. Saber o que é a boa
fé implica pensarmos naquilo que é civilizado, naquilo que é exigível. A boa fé representa
uma porta de entrada do sistema jurídico para com a realidade envolvente. Tem uma carga
valorativa: ao exigirmos condutas segundo a boa fé, estamos a recusar comportamentos
que só formalmente se adequam à finalidade do Direito. Os conceitos indeterminados
fazem um apelo à realização da intencionalidade profunda do Direito. A norma é apenas
um instrumento de realização do Direito, a boa fé permite que a ordem jurídica se adeque
para encontrar a justiça.
Podemos entender a boa fé num sentido subjetivo ou subjetivo. Se a entendermos
como um estado do sujeito, referimo-nos ao sentido subjetivo. Se pensarmos nela como
regra de conduta, referimo-nos ao sentido objetivo.
Boa fé em sentido subjetivo: Ou se entende que o estado do sujeito é um estado
meramente psicológico (ignorância de um determinado facto, representação de uma
determinada realidade) ou se entende que não basta a representação do sujeito, sendo
preciso que essa representação seja justificada, compreensível, razoável. Será que basta
que ignore que está a violar o direito de outrem ou é preciso que essa ignorância seja
justificável? A orientação geral da doutrina portuguesa vai no sentido de preferir uma
conceção ética da boa fé subjetiva – sob pena de beneficiarmos quem não merece ser
beneficiado, as ignorâncias têm de ser justificáveis, não deve haver negligência ou falta
de cuidado. No entanto, há situações em que a boa fé pode ser entendida numa conceção
psicológica. No caso do artigo 243º CC, temos a boa fé num sentido psicológico, pois
não é preciso que o sujeito tenha um desconhecimento justificado, basta desconhecer a
simulação – não faz sentido proteger os simuladores, porque foram eles próprios que
procuraram defraudar as expectativas de terceiros. Ou seja, o preceito do artigo 243º não
precisa de ser completado. Já no que toca ao artigo 291º, vemos que o terceiro de boa fé
é aquele que desconhece sem culpa – não basta o desconhecimento.

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Boa fé em sentido objetivo: Boa fé como regra de conduta, como padrão de aferição
de situações jurídicas. Exemplos: artigos 227º, 762º, 239º (integração de lacunas), 437º
(alteração de circunstâncias), 334º (abuso de direito) e 272º (pendência da condição).
A boa fé protege expectativas, tem um papel na tutela da confiança. Quem está
de boa-fé vê-se com efeitos favoráveis atribuídos à sua posição jurídica, e se não fosse a
boa fé esses efeitos positivos não se produziriam. Vejam-se os artigos 898º e 899º CC.
Mas a boa fé não se limita a proteger a confiança. Expressa padrões objetivos de
conduta do sujeito que não estão dependentes das representações dos sujeitos. Ex: deve o
vendedor explicar como funciona uma máquina – não se está aqui a proteger a confiança,
mas sim a adotar um comportamento exigível de acordo com os parâmetros da boa-fé. A
boa fé tem esta dupla face: por um lado, protege expectativas; por outro lado, exige um
comportamento correto, independentemente da relação dos sujeitos.

Abuso de direito
O abuso de direito é uma cláusula geral, estando previsto no artigo 334º CC. O direito
é exercido de uma forma que a ordem jurídica condena. Este instituto nasceu em
França, quando uma pessoa, na titularidade do seu direito de propriedade, construiu uma
chaminé falsa na sua casa. Parece não haver problema, mas aquilo foi feito com o intuito
de tirar luz natural à casa do vizinho, então temos abuso de direito. Modalidades:
1) Venire contra factum proprium
Consiste numa contradição de comportamentos. Ex: senhorio que convence o
inquilino a instalar uma indústria doméstica e depois aciona o inquilino por o ter feito,
quando foi o próprio senhorio que o convenceu. O problema não está nas mudanças de
comportamento, isso não parece ilícito, o problema é que se podem frustrar expectativas
de sujeitos que acreditam na continuidade de um comportamento, é violada a confiança.
Para haver venire contra factum proprium é preciso que a mudança de comportamento
lese a confiança de outrem. O inquilino acredita na continuidade do comportamento,
justificadamente, e depois o senhorio tem um comportamento contraditório com o seu
comportamento anterior.
No que toca à rutura das negociações, ela, em si, é um ato perfeitamente lícito,
porque não há obrigação de contratar, por isso não há culpa in contrahendo, não há
violação da boa fé. Mas o que é certo é que não se deixa de justificar uma responsabilidade
por uma expectativa gorada – é uma responsabilidade por atos lícitos. Na rutura das
negociações temos uma verdadeira situação de venire contra factum proprium.
Violação de prescrições de forma: a forma, em princípio, é para ser observada. Há
no Direito português casos em que não se pode alegar vícios de forma? Ex: dono de um
café exige de volta o café que trespassou, em virtude da nulidade do contrato, por falta de
forma, sendo que sabia que era necessária escritura pública. Cria-se na outra parte a
expectativa de que está tudo bem e mais tarde há problemas. Nestas situações, segundo o
professor, é pensável a existência de inalegabilidades formais, mas apesar disso o venire
poderá ajudar a corrigir consequências irreparáveis e indesejáveis. Aqui, o venire não
significa necessariamente que o sujeito tenha tido um propósito inicial (reserva mental).

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O artigo 286º não manda o tribunal declarar a nulidade, diz que o pode fazer, então perante
a situação tem de ver se é oportuno declarar a nulidade ou não. Segundo o professor, o
vício de forma pode ser, nalguns casos, invocado, e a contraparte pode ser protegida
através de indemnização – há uma tutela para quem confiou, mas é uma tutela que não
opera através da paralisação do direito de invocar a nulidade, mas sim através do
mecanismo indemnizatório.

2) Supressio ou neutralização
Dá-se a supressão do direito em virtude de ele não ser exercido por muito tempo,
levando a contraparte a crer que já não vai ser exercido. Ex: sócio de uma sociedade
que é gerente mas não há nada que diga que ele é gerente, e ele todos os meses tira uma
pequena quantia da caixa, à vista de todos, por exercer essas funções, e passado um grande
lapso de tempo um dos sócios vem dizer que há que repor todas as quantias levantadas,
porque esse senhor era um gerente de facto, mas não era formalmente um gerente, visto
que não tinha havido uma deliberação nesses termos, mas o que acontece é que isto era
pacífico. Não parece justo que passado tanto tempo se venha exigir a restituição dessas
quantias – não é que não tenham esse direito, mas durante muito tempo isso aconteceu
sem que ninguém se opusesse, por isso reagir ofende a legítima expectativa do indivíduo
que, tendo feito tudo às claras, seria agora prejudicado. Outro exemplo: fornecedor decide
suspender o fornecimento em virtude de queixas da contraparte por defeitos, a contraparte
não disse nada e passados dois anos reclama prejuízo de mora – se a contraparte queria
que o fornecimento continuasse, porque precisava das mercadorias, precisava tê-lo dito
num prazo de tempo razoável.
Diferença em relação ao venire: No venire há uma conduta que induz confiança e
depois há uma contradição, ao passo que na supressio há silêncio, uma omissão, e muito
mais tarde uma manifestação – toda a gente sabia, mas ninguém fez nada, ninguém se
manifestou, e mais tarde vieram reclamar. Na supressio temos um lapso de tempo
excessivo entre o surgimento de um direito e o seu exercício.
Qual o problema da supressio? Pode acontecer que se encurtem prazos de
caducidade. Quem estiver dentro do prazo, à partida pode atuar, por isso dentro do prazo
de caducidade não se devem criar expectativas. Mas se os prazos são muito longos, é
concebível, a título de exceção, que se invoque o abuso de direito. Ex: empresa que dá
uma gratificação aos trabalhadores, que não consta dos seus salários para efeitos de
Segurança Social – não é obrigatório, por isso pode ser negado a qualquer momento, mas
podemos vislumbrar situações em que negar a concessão à boca da concessão desse
benefício pode prejudicar uma expectativa legítima, até porque era habitual.

3) Tu quoque (tu próprio)


Não se trata de proteger a confiança, trata-se sim de introduzir alguma moralidade
e senso na relação jurídica, ex: alguém que incumpre vem exigir o cumprimento pontual
da contraparte OU senhorio não faz reparações na casa e quando o inquilino desocupa o
locado por não o poder ocupar, o senhorio intenta uma ação de despejo com fundamento
na desocupação do locado.

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4) Exercício desproporcionado dos direitos
Há uma desproporção entre o proveito que vai causar a um indivíduo e o
prejuízo que vai causar a outrem. Ex: sócio de um banco, que detinha uma pequena
quantidade de ações, não foi convocado para uma deliberação, porque se entendia que a
sua posição não ia alterar em nada a deliberação – parece desproporcionado admitir ao
sócio não convocado a possibilidade de anular todo o processo, com grandes prejuízos
para muitas pessoas. Reconhece-se a existência da sua posição jurídica – ele devia ter
sido convocado, e por não ter sido tem direito à anulação da deliberação, mas há limites:
o que está certo para a normalidade das situações, pode não estar numa ou outra situação.
Há casos em que a desproporção não pode ser invocada, ex: senhor que não aceita
a colocação de um aerogerador num terreno seu que não tem nada – o prejuízo do
proprietário do terreno seria pouco ou nulo e o investidor teria um enorme proveito, mas
o direito de propriedade prevalece (é um direito absoluto, o proprietário faz o que
entender), independentemente da desproporção.
Nos direitos de natureza obrigacional, o exercício desproporcionado de posições
jurídicas pode consubstanciar abuso de direito, mas nos direitos absolutos parece que não.

Será que o abuso de direito é um instituto? Alguns autores dizem que não, visto
que temos uma figura fragmentada. Não podemos falar numa unidade, e a unidade é um
pressuposto para existir um instituto. No abuso de direito temos preocupações de justiça
material, de equilíbrio de posições e uma tutela da confiança.

Aula do dia 14 de outubro


O princípio da tutela da confiança é um vetor importante, mas não o mais
importante – é um vetor de correção. O critério principal não é o das expectativas, mas
a confiança precisa de ser tutelada.
Temos no Direito Civil muitas manifestações de proteção de confiança: boa fé
subjetiva (proteção de terceiro de boa fé na simulação, casamento putativo com efeitos
normais do casamento quando os cônjuges estão de boa fé – proteção da aparência) e
cláusulas gerais como o abuso de direito, que permitem, fora dessa especificidade, uma
proteção da confiança, mas atenção: o abuso de direito é subsidiário, é o último recurso,
servindo apenas para sindicar posições jurídicas que existam. Quando há normas
específicas, temos de aplicar as normas específicas.

Requisitos para que haja a possibilidade de proteger a confiança:


Requer uma situação de confiança – quem não tem confiança, não vê as suas
expectativas goradas.
Essa confiança tem de ser uma confiança justificada – se bastasse a confiança,
estaríamos no fundo a premiar as pessoas mais descuidadas e displicentes em detrimento
das mais conscienciosas. Ainda neste ponto, devemos poder acreditar na palavra dos
21
outros, por isso se alguém nos dá a sua “palavra de honra” devemos entender que se trata
de uma confiança justificada.
É necessário que haja um investimento – se a pessoa não desenvolveu uma atividade,
sendo que nada foi feito para que houvesse confiança na realização daquela atividade, dá-
se uma frustração de expectativas que não é necessário proteger (não se pode proteger
uma mera desilusão).
É necessária uma imputação da confiança à contraparte – é preciso que aquele
contra quem vai funcionar a tutela da confiança tenha criado e defraudado a confiança.
Se temos uma pessoa que cria a confiança, mas não foi essa pessoa que a defraudou, mas
sim um terceiro, então a pessoa que criou a confiança não responde.
Por fim, é preciso ver se é possível uma solução justa sem proteger a confiança.
Ou seja, temos de perceber se a proteção da confiança é ou não uma exigência da justiça.
Se se entender que é necessário proteger a confiança para que haja uma solução justa,
temos de ver se há uma norma específica que a proteja. Se não houver, atenderemos à
cláusula geral do artigo 334º CC.

14. Caraterísticas da obrigação


Notas iniciais:
A impossibilidade originária da obrigação pode ter que ver com o objeto
(impossibilidades objetivas, ex: casa que arde num incêndio) ou com a pessoa
(impossibilidades subjetivas, ex: médico que fica com alzheimer não pode cumprir a
obrigação de operar alguém). O regime é diferente: para as impossibilidades objetivas, a
consequência é a nulidade, ao passo que nas impossibilidades subjetivas substitui-se o
devedor por outra pessoa.
A obrigação tem de ser determinável – pode não estar estabelecido o seu fim, mas
tem de ser possível determiná-lo. Aplica-se subsidiariamente o critério da equidade,
balançando-se os interesses de ambas as partes.

14.1. Questão da patrimonialidade da obrigação


Grande parte das relações obrigacionais tem conteúdo patrimonial, deixa-se avaliar
do ponto de vista económico, mas não é necessariamente assim. Há obrigações que não
são avaliáveis em dinheiro. Quando se fala sobre o caráter patrimonial do Direito das
Obrigações, talvez devamos dizer que se trata apenas de uma caraterística tendencial,
genérica – não é necessário que a obrigação seja avaliável em dinheiro. O artigo 398º CC
diz precisamente que o interesse do credor não tem de ser económico. O que importa é
que a prestação corresponda ao interesse do credor, seja ele económico ou não.
Exemplos de prestações que não têm conteúdo patrimonial: pessoa que se
compromete a publicar num jornal uma notícia de retificação; pessoa que se compromete
a restituir uma jóia; pessoa que se compromete a não ter cães ou gatos no apartamento

22
que arrendou; pessoa que se compromete a declamar um poema; pessoa que se
compromete a ajudar outrem.
Parece que a coercibilidade do vínculo fica afetada, mas na verdade há tutela mesmo
que não esteja subjacente um valor pecuniário, ex: sanção pecuniária compulsória,
cláusula penal, execução específica, resolução do contrato, compensação por dano moral
(artigo 496º CC). Ou seja, a patrimonialidade não é requisito da juridicidade. Além
disso, os mecanismos de autotutela também valem para as obrigações não patrimoniais.
Importa distinguir as situações em que há obrigações não avaliáveis em dinheiro das
situações em que não temos uma verdadeira obrigação. Há vinculações que impendem
sobre as pessoas, mas não têm caráter jurídico, pertencem a outra ordem normativa:

 Nas relações de cortesia ou de trato social não há vontade de sujeição ao


Direito, por isso o não cumprimento não é sancionado juridicamente. Ex: A
compromete-se para com B a guardar a bagagem de B enquanto ela vai à casa de
banho – isto é uma relação de trato social, não é um contrato de depósito.
Podemos discutir se há responsabilidade, mas não há uma obrigação. Podem
gerar efeitos jurídicos, não porque há um dever de prestar, mas porque há deveres
de cuidado, de proteção. A relação de trato social, não criando deveres de prestar,
pode implicar deveres de cuidado, que se não forem cumpridos poderão dar lugar
a uma indemnização. Uma obrigação dá lugar a uma ação de cumprimento (artigo
817º CC) e estas situações não permitem que haja uma ação de cumprimento,
mas há deveres de cuidado que têm de ser respeitados. É uma vinculação que não
é judicialmente exigível, é uma vinculação voluntária – não há assunção de uma
obrigação em sentido técnico.

 Num acordo de cavalheiros, a matéria é jurídica, mas as partes pretendem


subtrair-se à intervenção do Direito. Se o acordo de cavalheiros fosse respeitado,
não havia problema, mas eles são violados, então têm relevância ou não? Sendo
uma matéria jurídica, a ordem jurídica não pode deixar de ter uma palavra a dizer.
A ordem jurídica não consente que uma matéria jurídica não seja suscetível de
realização, de tutela (veja-se o artigo 809º CC). Por vezes, há razões que
justificam que certos meios de tutela sejam afastados, mas a ordem jurídica tem
uma palavra a dizer. Não pode haver manipulações arbitrárias da tutela.

14.2. Imediação versus Mediação


Nos Direitos reais há uma afetação direta e imediata da coisa ao seu titular. O titular
do direito real pode satisfazer o seu interesse autonomamente. A obrigação tem como
caraterística a mediação. O credor só pode satisfazer o seu interesse mediante
colaboração do devedor – este tem de cumprir a obrigação para que o interesse do credor
fique satisfeito. O credor só pode aceder à coisa por intermédio do devedor, não dispõe
direta e imediatamente da coisa como acontece nos direitos reais.
Menezes Cordeiro refere que nem sempre a mediação é necessária, porque o credor
pode ver o seu interesse satisfeito por via da execução específica, então a mediação não

23
é característica necessária das obrigações. Porém, a execução específica implica, também,
a intervenção / mediação de terceiro, neste caso, o tribunal.

14.3. Questão da autonomia


No Direito da Família e das Sucessões temos obrigações, mas não são obrigações
autónomas – estão funcionalizadas, institucionalizadas. Em Direito das Obrigações,
interessam-nos as obrigações autónomas, que são aquelas que não estão dependentes das
relações estabelecidas anteriormente, mas a autonomia não é uma caraterística
necessária das obrigações – tanto podem ser autónomas como não autónomas.

Aula do dia 15 de outubro

14.4. Relatividade das obrigações


Tem-se debatido muito sobre a relatividade ou não relatividade das obrigações. Na
doutrina portuguesa, vigora o entendimento de que as obrigações são relativas – o credor
só pode exigir do devedor o cumprimento, não pode exigir de mais ninguém; o devedor
só está adstrito para com o credor à realização da prestação, não está adstrito para com
mais pessoas. Isto não é incompatível com a existência de credores e devedores plurais –
o que importa é que são sempre pessoas determinadas. Já nos Direitos reais, temos direitos
absolutos, isto é, direitos que se impõem a todas as pessoas (efeitos erga omnes).
 Num conflito entre o direito real de uma pessoa e o direito de crédito de
outra, prevalece o direito real – o titular do direito real pode opor o seu direito a
qualquer pessoa. Mesmo que o direito real tenha sido constituído posteriormente
ao direito de crédito, prevalece o direito real.
 Num conflito entre direitos reais, prevalece o primeiro direito real constituído
 Num conflito entre direitos de crédito, não prevalece o primeiramente
constituído – é o devedor que vai escolher qual obrigação cumprir, ficando um
dos credores prejudicados. Ex: A diz que compra o bem de B por 100€, mas C
diz que lhe dá 200€ por esse bem – não é ilícito que B escolha contratar com C,
é concorrência.
A estrutura da relação obrigacional é relativa, as pessoas estão em relação. O
credor só pode invocar o seu crédito perante o devedor, não perante um terceiro, à partida.
As obrigações não são oponíveis a terceiro e também não geram responsabilidade de
terceiro. Esta é a regra, que se extrai de um conjunto de regras, não havendo uma norma
a determinar isto especificamente.
Menezes Cordeiro defende a não relatividade das obrigações, ou seja, defende que elas
têm eficácia externa, o que significa que a obrigação pode ser imposta a terceiros e eles
podem ser responsabilizados pelo incumprimento.
Primeiro há que perceber se o vínculo é apenas entre credor e devedor ou se abrange
outras pessoas (perspetiva estrutural). Depois, trata-se de saber se a obrigação pode ser
invocada perante terceiros. Por último, é preciso saber se um terceiro, se interferir no
crédito, pode ser responsável pelo não cumprimento da obrigação.

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Imaginemos que A tem de entregar um quadro a B, quadro esse que C destrói. C viola
um direito de propriedade alheio e é responsável (artigo 483º nº1 CC). Só que o direito
de propriedade é um direito absoluto e nós estamos a tratar de direitos de crédito. C, ao
destruir o quadro, também vai interferir na obrigação de A para com B, então C pode ser
também responsável perante o credor cujo interesse fica por satisfazer?
Segundo os autores que defendem a eficácia externa das obrigações, o crédito é
oponível a terceiros – o crédito é suscetível de ser violado por terceiros, então C tem de
indemnizar o credor.
A tese clássica diz que à partida a obrigação é relativa e, por conseguinte, só pode
ser violada pelo devedor, logo, os interesses do credor não são alvo de proteção perante
terceiros em termos de responsabilidade – só o devedor é que pode responder. O credor
pode obter uma tutela não por ser credor, mas por haver alguma circunstância que o
justifique – tem de haver uma circunstância qualificativa da posição de C que faz com
que o ordenamento jurídico não possa admitir o prejuízo causado por terceiro, ex: C não
gosta de B e destrói o quadro de propósito para o prejudicar (há malícia na conduta de C).
Imaginemos que A é canalizador e que se compromete para com B a fazer uma
reparação. C telefona a pedir uma reparação à mesma hora e A opta por contratar com C.
Não é justo que C seja suscetível de ser responsabilizado perante B pelo facto de saber
que o seu crédito foi satisfeito à custa da insatisfação do crédito de outro credor.
Por que é que a doutrina clássica aposta na relatividade? Porque ao dizer que o
crédito é relativo, está em prol da liberdade, da autonomia. Neste caso, há um respeito
da autonomia de C, porque ele não agiu com malícia. Além disso, A tem o direito de
escolher a quem presta o trabalho – ele deve poder agir na vida económica sem
constrangimentos, deve poder escolher a quem quer prestar o serviço.
Doutrina do terceiro cúmplice: O cúmplice do devedor na frustração do interesse
do credor é responsável perante o credor. É uma doutrina que aparenta ser muito boa, mas
depara-se com grandes dificuldades. Podemos considerar C cúmplice do canalizador A?
Parece que não. Se A e C tivessem o propósito comum de prejudicar B, já era diferente.
Em suma, as obrigações são relativas, por isso são vínculos entre credor e devedor,
ou seja, o credor exige do devedor a prestação e em caso de incumprimento é o devedor
que responde. O terceiro só responderá em circunstâncias especiais. É o que defende a
teoria clássica.
A responsabilidade de terceiros requer fatores especiais. O terceiro é suscetível
de ser responsabilizado se houver atos emulativos (atos em que a única pretensão é lesar),
se houver atos de concorrência desleal ou se houver abuso de direito. O crédito é
relativo, por isso é tutelado através destes institutos que tenham esse efeito indireto – no
fundo, um efeito mediato destes institutos é a tutela do crédito.
Imaginemos que A tinha uma obrigação de exclusivo com B, mas C oferece
condições melhores a A, então A contrata com C. Será que C poderá ser responsável? À
partida não, em função da relatividade das obrigações, mas C ter-se-á comprometido a
pagar a A todos os custos que A teria por incumprir o contrato com C. Então C tinha
excedido os limites da concorrência leal. A concorrência leal consiste em fazer uma

25
oferta, não em corroer a eficácia vinculativa de um contrato. Só ao devedor é que cabe
medir as consequências do seu incumprimento, o terceiro não pode interferir diretamente.
Há uma tutela mediata do crédito, porque é uma tutela feita através dos pressupostos da
concorrência desleal.
A crítica que é feita à doutrina clássica prende-se com a ideia de que ao não permitir
a responsabilidade de terceiros em termos gerais não permite a tutela do crédito em todas
situações. Então esta crítica pode ser alvo de resposta: na doutrina clássica temos tutela
na mesma, simplesmente usamos outros instrumentos jurídicos. Não temos uma tutela
imediata do crédito, mas temos uma tutela mediata.

Notas:
A igualdade dos credores demonstra a relatividade das obrigações – não há sequela,
não há prevalência (604º).
Há casos em que o crédito pode ser oponível a terceiros: 413º e 421º CC (atribui-se
eficácia real). Precisamente por haver estas estipulações específicas da eficácia externa
das obrigações, depreende-se que a regra não será essa, mas sim a relatividade.
Sub-rogação, artigo 606º CC: Suponhamos que A é devedor de B em 1000 e que é
credor de C em 1000. O Direito permite a sub-rogação do credor ao devedor, i.e., B
substitui-se a A para ver satisfeito o seu interesse. É uma forma de conservar a garantia
patrimonial. Alguns dizem que o crédito de B é oponível a C (terceiro), pelo que isto
prova a eficácia externa da obrigação, mas não é assim, porque aquilo que B faz é exercer
o direito de crédito de A contra C, não está a exercer o seu próprio direito contra C.
Obrigação de alimentos, artigo 495º nº3 CC: É uma regra específica em que há um
crédito de alimentos que deve ser satisfeito por terceiro, mas só em situações muito
específicas (lesão corporal ou morte do lesado).

Aula do dia 21 de outubro


15. Direitos pessoais de gozo
São direitos de crédito que proporcionam ao credor o gozo de uma coisa, e por isso
aproximam-se muito dos direitos reais. Os exemplos mais comuns de contratos mediante
os quais alguém proporciona a outrem o gozo de uma coisa são a locação, o comodato,
o depósito e a parceria pecuária (posição do parceiro pensador).
Na medida em que podem ser oponíveis a terceiros, serão verdadeiramente direitos
de crédito? Tradicionalmente são considerados direitos de crédito. O legislador escolheu
como relevante a obrigação, por isso considera-os direitos de crédito, já que o gozo da
coisa é conseguido através da relação que o credor estabelece com o devedor, o gozo
da coisa é intermediado pelo credor e pelo devedor, que é o titular do direito real.
O que une todas estas situações é o facto de dizerem respeito a direitos que conferem
ao credor a possibilidade de aproveitamento de uma coisa. A expressão “direitos pessoais
de gozo” significa que são direitos que assentam num vínculo pessoal e que conferem

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o gozo de uma coisa. São direitos de crédito especiais, conferem um direito, mas
assentam num vínculo pessoal, por isso não são direitos reais.
Ao contrário do que se poderia pensar, estes direitos não constituem um numerus
clausus. Isso é próprio dos direitos reais. Há situações além das previstas na lei pensáveis
para a existência de um direito pessoal de gozo (atípico). O direito de caçar num prédio
alheio, por exemplo, é um direito pessoal de gozo.
Esta qualificação tem muita relevância, pois da qualificação decorre um regime.
Aplica-se a estes direitos o regime dos direitos de crédito, com exceções:
 Artigo 407º CC: Havendo conflito entre dois direitos pessoais de gozo,
prevalece o primeiramente constituído (manifestação do princípio da
prevalência). Ao abrigo deste artigo, prevalece o direito mais antigo, sem
prejuízo das regras próprias em juízo. Imagine-se que A aluga um automóvel a B
e aluga depois o mesmo automóvel a C – há um conflito entre direitos pessoais
de gozo. Prevalece o direito mais antigo (direito de B), dando ideia que aqui
vigora o princípio da prevalência, característico dos direitos reais.

 Os titulares de um direito pessoal de gozo podem recorrer à ação possessória


para o reivindicarem perante terceiro sem precisarem do auxílio do titular do
direito real, ex: o arrendatário pode obter tutela possessória e para tal só tem de
apresentar o contrato de arrendamento, que é a prova da constituição do crédito.
Ver os artigos 1037º nº2, 1125º nº2, 1133º nº2 e 1188º nº2 CC.

 Artigo 1057º CC (esta exceção é exclusiva da locação) – o direito do locatário


goza da caraterística da sequela (inerência), podendo ser invocado e oposto
contra terceiro que tenha adquirido o bem na pendência da locação. Isto significa
que o contrato de locação segue o bem mesmo que ele tenha sido alienado a
terceiro. Ex: A é arrendatário de B e B quer vender a C – a venda não prejudica
a locação, o locatário pode opor o seu direito a quem quer que venha ocupar a
posição de senhorio.
Estas exceções são uma demonstração de que o legislador conferiu aos direitos
pessoais de gozo um regime que nalguns aspetos os aproxima de direitos reais:
conferiu-lhes o princípio da prevalência, a possibilidade de ação possessória e a inerência
do direito do locatário.
Quando estão em causa direitos reais, se A vende a B e a C, a segunda venda é nula,
porque A não tem legitimidade para a fazer, vende bens alheios. No caso de direitos
pessoais de gozo, se A arrenda a B e a C, o segundo arrendamento é válido, não é nulo,
mas prevalece o primeiramente constituído e C pode exigir uma indemnização.
Nos direitos pessoais de gozo só há a possibilidade da ação possessória, enquanto
nos direitos reais, além da ação possessória (se o titular estiver na posse da coisa) é
também possível a ação de reivindicação – num direito pessoal de gozo, tenho a posse,
mas não tenho o direito, ao passo que no direito real eu tenho o direito sobre a coisa. Nos
direitos pessoais de gozo há uma tutela da posse, não há uma tutela do direito, que existiria

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se estivesse em causa um direito real. Se o titular do direito pessoal de gozo tem tutela
possessória, também tem tutela indemnizatória.
Na servidão legal de passagem, o que está em causa é uma relação entre prédios, por
isso está em causa um direito real de gozo. Se um vizinho me deixa passar pelo seu prédio,
eu tenho um direito pessoal de gozo, não se constitui um direito real de gozo, pois o
vínculo é pessoal. Temos de ver se o direito que proporciona o gozo da coisa é de natureza
pessoal ou real.

Aula do dia 22 de outubro

Capítulo II – Fontes das obrigações


1. Teoria geral das fontes
A obrigação, para surgir, tem de ter uma fonte idónea. No Direito Romano, havia duas
grandes fontes:
 Contratos: Nascem obrigações por vontade das pessoas;
 Delitos: Se alguém lesa a integridade física de outrem, é obrigado a indemnizar
– obrigações que não decorrem da vontade, mas sim da própria lei
(responsabilidade delitual, remete para a atual responsabilidade civil).
No Direito Justinianeu acrescentaram-se outros dois polos:

 Quase-contrato: Situações em que parece que a vontade do sujeito era relevante,


mas a obrigação não requeria propriamente um contrato, ex: quando alguém
entrega 50 euros a outrem para saldar uma dívida, não há um contrato, mas há
vontade.
 Quase-delito: Situações de dano em que há uma mera negligência, não há dolo,
ex: se um indivíduo deixa um poço por tapar e alguém cai lá dentro, ele foi
negligente e fica obrigado a indemnizar.
Depois foi acrescentada a fonte da lei: sempre que a lei determinasse a formação da
obrigação, formava-se a obrigação. Na lei incluíam-se as espécies que, por não caberem
em nenhuma das outras, se afirmava terem por causa a “vontade do legislador”, ex:
obrigação de alimentar, obrigação de conceder comparticipação ao vizinho no muro ou
parede divisória, etc.
Temos autonomia versus heteronomia: A obrigação que advém de um contrato
resulta da vontade das pessoas, mas a obrigação decorrente de um delito não resulta da
vontade – é algo que se impõe ao sujeito heteronomamente. À partida, as obrigações ou
radicam numa vontade do sujeito ou decorrem de circunstâncias que para a ordem jurídica
as justificam, independentemente da vontade. Se não prejudicarmos os outros, se não
cometermos delitos, temos a nossa esfera de liberdade. Só incorremos em obrigações que
nos são impostas se efetivamente prejudicamos alguém dolosa ou negligentemente. Se
somos livres, é preciso fundar a existência de obrigações, e percebemos que elas surgem
ou porque há um negócio ou porque prejudicamos alguém.

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O sistema de fontes de Direito das Obrigações português é um sistema completo ou
podemos admitir fontes das obrigações para lá daquilo que está previsto na lei? A nossa
lei indica um conjunto de fontes das obrigações, não dizendo se o elenco é taxativo ou
exemplificativo. Não podemos excluir que existam fontes de obrigações além das que
o Código indica.

Principais fontes das obrigações: contratos, negócios jurídicos unilaterais, gestão de


negócios, enriquecimento sem causa e responsabilidade civil.

 No contrato e negócio jurídico unilateral temos autonomia privada, que é mais


ampla no contrato.
 Na responsabilidade temos tipicamente a heteronomia – artigos 483º e 499º CC.
 O enriquecimento sem causa é uma figura híbrida, podemos considerar como
um quase-contrato – artigo 473º nº1 CC.
 A gestão de negócios dá-se quando alguém assume direção de um negócio alheio
sem para tal estar autorizado, ex: pessoa que cuida do animal de estimação do
vizinho que está hospitalizado (464º e ss. CC) – não há contrato, mas há
obrigações, como reembolsar as despesas. São obrigações que surgem de uma
conduta voluntária não contratual, podemos considerar como um quase-contrato.

Em suma, temos os atos lícitos, que são atos humanos contratuais ou traduzidos em
negócios jurídicos unilaterais; os atos ilícitos, a que corresponde a responsabilidade; e
temos, por fim, os factos jurídicos, de que são exemplos o enriquecimento sem causa e a
gestão de negócios – há uma vontade, mas essa vontade não é relevante para efeitos de
desencadear a obrigação (por exemplo, no enriquecimento sem causa o que justifica o
surgimento das obrigações é a deslocação patrimonial existente).

Aula do dia 28 de outubro

2. Contratos
Artigo 405º CC: princípio da liberdade contratual. O contrato está previsto com
grande amplitude. Temos autonomia privada a manifestar-se na liberdade de celebração
e liberdade de modelação dos contratos. Mas esta autonomia privada é temperada com
dois outros princípios:

 Princípio da tutela da confiança: A autonomia privada tem de ser temperada


com as exigências de tutelar a confiança da outra parte.
 Princípio da justiça contratual: O último juízo sobre a justiça do contrato é dos
sujeitos, a ordem jurídica não se impõe paternalisticamente, mas esta abstenção
não é ilimitada – a ordem jurídica não abdica de um mínimo de justiça, não
permite abdicar de certas proteções, estabelece um conjunto de diretrizes tendo
em conta aquilo que considera justo. Contratos absolutamente injustos não
podem ser tolerados. A ordem jurídica não se pode desinteressar totalmente.

O contrato está sujeito a limitações, mas se nada se disser, as partes podem modelar
o seu conteúdo. A grande preocupação da ordem jurídica é com a formação da vontade e
com a sua formulação adequada, deixando a modelação do contrato para as partes.

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A ordem jurídica policia a formação do acordo, não o conteúdo do acordo. A
ordem jurídica procura assegurar que as pessoas estão de forma esclarecida e livre a
celebrar os contratos. Se o contrato vencer o teste da vontade, segue os efeitos que as
partes determinaram, mas é sempre preciso ter em conta os limites gerais impostos pela
lei, ex: artigos 280º nº2 (o negócio jurídico não pode ir contra a ordem pública ou ser
ofensivo dos bons costumes), 282º e 1146º CC.

Hoje discute-se se não deverá haver limites para os contratos duradouros, ex: contrato
de fornecimento de 50 anos – devia haver a possibilidade de denúncia ao fim de um tempo
razoável. O problema do arrendamento está resolvido, pois temos o prazo máximo de 30
anos (artigo 1025º CC).

Artigo 406º CC: princípio pacta sunt servanda – cumprimento pontual dos
contratos. Só se pode modificar ou extinguir o contrato por acordo das partes ou nos casos
em que a lei o permite fazer unilateralmente.

Qual é o fundamento da vinculatividade do contrato?

Entendimento clássico: O fundamento da vinculatividade do contrato está na


natureza ética da pessoa. A pessoa é um ser ético, livre, capaz de se comprometer, e por
isso é que os contratos vinculam. Há um mandamento ético que diz que se a pessoa se
comprometeu, tem de cumprir. Então e os contratos celebrados por pessoas coletivas, que
não têm vontade ética? Aqui talvez o fundamento da vinculatividade do contrato não
possa ser este. Mas estamos a falar de paradigmas, de referentes. Alternativas:

 O contrato é a forma mais eficiente de regular as relações humanas. Aqui, o


Direito acaba por ser instrumento de interesses económicos – reducionismo na
análise económica do Direito dos contratos, que reconduz tudo à eficiência.
 O contrato vincula porque há necessidade de proteger a confiança das
pessoas. Não há sociedades que funcionem sem o mínimo de confiança. É uma
doutrina que tem dificuldades de explicação, porque a razão de ser dos contratos
não é a proteção da confiança – mesmo quando a confiança existe, o que faz com
que a confiança nos contratos mereça ser tutelada? É assim por causa da
capacidade de autovinculação da pessoa, por causa de a pessoa ser livre
(recondução ao entendimento clássico). Mesmo que a confiança fique destruída,
nem por isso o contrato deixa de ser vinculativo, ex: dono da obra é obrigado a
pagar, mesmo que o empreiteiro não confiasse que ele o fizesse.

A partir do momento em que o contrato é celebrado, toda a conduta das partes tem de
se conformar àquilo que estabeleceram, e naquilo que não estabeleceram estão
subordinadas a uma regra de equilíbrio, de proporcionalidade. Batista Machado fala na
cláusula do razoável, pretende transmitir que a partir do momento em que o sujeito
celebra o contrato fica sujeito a critérios que não apenas relacionados com a sua
autonomia. O equilíbrio manifesta-se num conjunto de disposições do Código Civil:

 Artigo 237º: Estabelece uma regra de equilíbrio quando houver dúvidas acerca
do resultado interpretativo. Nos casos duvidosos, nos negócios onerosos deve
preservar-se o sentido que conduzirá ao maior equilíbrio das prestações, já nos
contratos gratuitos deve-se optar pelo sentido menos gravoso para o disponente;

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 Artigo 239º: Integrar a lacuna de acordo com a vontade hipotética das partes, caso
tivessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando
outra seja a solução por eles imposta – não pode haver soluções arbitrárias;
 Artigo 437º: Pode acontecer que, em caso de alteração superveniente das
circunstâncias, a exigência das obrigações assumidas contrarie o princípio da boa
fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato, o que pode levar à sua
resolução – há uma superveniência que atinge o contrato e, de acordo com a
razoabilidade, é um caso em que uma das partes pode resolver o contrato e impor
isso unilateralmente à outra parte;
 Artigo 812º: O juiz pode moderar a cláusula penal no caso de ela ser excessiva.

Artigo 408º CC: Os contratos podem ter eficácia real. Podem produzir efeitos reais
por si só, sem necessidade de um ato ulterior, mas isso só opera em relação aos contratos
sobre coisas determinadas, ex: se vendo um livro a A, há um efeito real sem necessidade
de um ato. Mas se não é uma coisa determinada, é preciso um ato ulterior, ex: A vende a
B 5 ovelhas do seu rebanho – é preciso saber quais são as ovelhas, é preciso individualizar
as ovelhas, pois só existem direitos reais sobre coisas determinadas.

Artigo 409º CC: No caso de não cumprimento do comprador (artigo 886º CC), a
propriedade transferida não volta à esfera do alienante, por isso há interesse na cláusula
de reserva de propriedade, que pode ser feita através de condição suspensiva (o
vendedor transfere a propriedade quando for pago) ou resolutiva (o vendedor transfere a
propriedade, mas o contrato resolve-se se o preço não for pago.

2.1. Classificações dos contratos


Nos contratos consensuais basta a declaração de vontade para que o negócio surta
efeitos. Não releva a forma que a declaração segue, pois vigora o princípio da liberdade
de forma – artigo 219º CC. Nos contratos formais, a declaração negocial carece de
revestir uma forma especial, sob pena de nulidade, ao abrigo do artigo 220º CC.

Os contratos típicos são aqueles regulados na lei como tipo, enquanto os contratos
atípicos surgem fora dos modelos traçados na lei, não sendo alvo de regulamentação legal
específica. Os contratos nominados, que são aqueles que têm um nome próprio, que os
distingue dos demais, podem não ser típicos. A locação, por exemplo, está regulada na
lei e também tem nome próprio, mas há casos em que o nome dos contratos está na lei,
mas não há regime – é o caso da hospedagem, prevista no artigo 755º b) CC. É comum
falar-se em contratos sociais típicos, ao lado dos tipos legais. Estes contratos, conquanto
não tenham disciplina legalmente prevista, são amplamente reconhecidos socialmente e
habitualmente praticados em certos setores, identificando-se facilmente o seu conteúdo.

Os contratos sinalagmáticos geram obrigações para ambas as partes, obrigações


essas que estão unidas por um vínculo de reciprocidade ou interdependência: o sinalagma.
Os contratos não sinalagmáticos são aqueles dos quais resultem obrigações apenas para
uma das partes. Dentro dos contratos sinalagmáticos, distingue-se:

 Sinalagma genérico: Uma das prestações é contraprestação da outra. A


obrigação assumida por uma parte constitui a razão de ser da obrigação assumida
pela outra, uma obrigação surge por causa da outra.

31
 Sinalagma funcional: Há um entrelaçamento das prestações previstas no
contrato (é percetível nas obrigações duradouras). Só se compreende o
cumprimento de uma obrigação em função do cumprimento da outra. As
obrigações têm que ser exercidas em paralelo, porque uma é pressuposto lógico
da outra (ex: contrato de trabalho ou de locação).

O contrato oneroso gera um sacrifício e uma vantagem patrimonial para ambos os


contraentes, havendo esforços económicos simultâneos com vantagens correlativas. Os
contratos gratuitos (liberalidades) geram um sacrifício patrimonial para apenas um
contraente, havendo uma vantagem para o outro. Os contratos sinalagmáticos tendem
a ser onerosos e os contratos não sinalagmáticos tendem a ser gratuitos. Não pode,
porém, haver lugar a mistura das classificações – a sinalagmaticidade atende à
reciprocidade das prestações; a onerosidade tem em conta a intenção do equilíbrio
patrimonial das partes. Há contratos sinalagmáticos gratuitos (ex: doação modal) e
contratos não sinalagmáticos onerosos (ex: mútuo retribuído – artigo 1145º CC).

Os contratos instrumentais (por oposição aos contratos principais) não têm


finalidade específica que os autojustifique, servem outros contratos, como é o caso dos
contratos sobre a forma, ex: todos os contratos que vamos celebrar devem ter a forma
escrita – estabelece-se a forma para os contratos principais a celebrar.

Os contratos preparatórios visam preparar outros contratos. Os contratos


definitivos destinam-se ao estabelecimento definitivo de posições jurídicas das partes.

Contratos sobre contratos: exemplo de contrato sobre o qual há um litígio e as


pessoas fazem uma transação – a transação é um contrato sobre um contrato, se a matéria
transacionada for objeto de um contrato.

Os contratos normativos criam regras aplicáveis para lá do âmbito das partes que o
celebraram, as suas regras aplicar-se-ão como padrão contratável obrigatório para os
contratos individuais que as partes entendem celebrar sob a sua égide, ex: convenções
coletivas de trabalho – exceção à relatividade dos contratos do artigo 406º CC.

Os contratos-tipo constituem o modelo a adotar em contratos ulteriores, são


contratos modelo ou contratos padrão para os contratos daquela natureza que se venham
a celebrar, e só por si não surtem efeitos.

Os contratos-quadro são contratos de enquadramento, visam estipular um âmbito


geral de regulamentação de atividades ulteriores e de outros contratos que venham a ser
celebrados, ex: contrato de abertura de conta disciplina a relação que o sujeito vai
desenvolver com o seu banco – os contratos que se seguem têm por base um contrato-
quadro (que é a abertura de conta) e visam apenas dar operatividade à relação.

Aula do dia 29 de outubro

2.2. Contratos mistos


Resulta do artigo 405º CC que as partes podem, ao abrigo da sua autonomia privada,
reunir no mesmo contrato elementos próprios de vários contratos – são os contratos

32
mistos. As partes, ao invés de realizarem dois ou mais contratos típicos, celebram apenas
um contrato com prestações de natureza diversa.

Comecemos por analisar as várias modalidades existentes de contratos mistos:

 Contratos múltiplos ou combinados: Situações em que se combinam


prestações de vários tipos contratuais típicos. O contrato de hospedagem é na
realidade um contrato misto, porque temos os elementos do contrato de locação,
na forma de contrato de arrendamento e na forma de aluguer (porque também
estão à disposição do hóspede bens móveis), e temos também elementos da
prestação de serviços (lavar roupa, servir pequeno-almoço, etc.). Imagine-se o
caso de uma pessoa que compra um bilhete de cinema, esse bilhete dá-lhe direito
a um conjunto de prestações que estão a cargo da entidade que explora o local –
um lugar sentado na sala (locação), direito a ser mostrado o filme (prestação de
serviços), a possibilidade de comprar pipocas (compra e venda). Se o filme tem
falhas, não se trata de venda defeituosa, mas sim de prestação defeituosa.

 Contratos de tipo duplo: De um lado temos uma prestação própria de um tipo


contratual e do outro lado temos uma prestação própria de outro tipo contratual,
ex: locação com prestação de serviços – condomínio em que o porteiro habita no
prédio (contrato de locação) e em troca desempenha as funções de porteiro
(prestação de serviços).

 Contratos mistos em sentido estrito: Não há uma autonomização possível de


prestações correspondentes a tipos contratuais diferentes, temos um só tipo
contratual utilizado com a finalidade de outro tipo contratual, ex: relação mista,
que é uma venda mista com doação – A quer doar 10 mil euros a B, mas em vez
de lhos doar diretamente, vende-lhe algo que vale 20 mil euros por 10 mil euros.

 Contratos complementares: Pertencem fundamentalmente a um tipo contratual,


mas convencionam-se prestações complementares próprias de outro tipo
contratual, ex: compra e venda de automóvel com prestação de assistência pelo
vendedor nos primeiros dois anos – compra e venda com prestação de serviços (à
prestação principal de entrega do automóvel acresce uma complementar de
prestação de um serviço de garantia).

O grande problema dos contratos mistos é encontrar um regime. Se o regime é


típico, aplicamos o tipo legal, mas as partes podem optar por um regime não tipificado.
Quando as partes não estabeleceram concludentemente e quando a lei também não
determina, o que faz o intérprete-aplicador? Há várias doutrinas, mas nenhuma delas
pode proporcionar por si uma chave que resolva todas as questões.

Doutrina da absorção: O elemento preponderante dita o regime do contrato,


absorvendo todos os outros elementos. Tinha de se identificar a prestação predominante
e o tipo dessa prestação dominante determina o regime do contrato. Faz sentido, mas é
uma doutrina que obriga a ponderação. O problema está em saber se o regime que a lei
associa às prestações típicas que são predominantes são adequadas àquele contrato misto.
No contrato de hospedagem, a obrigação de proporcionar o gozo de um imóvel é a base
de tudo o resto, mas isso não foi impeditivo de que a nossa jurisprudência entendesse que
os contratos de hospedagem podiam ser denunciados ou resolvidos sem a sujeição às

33
regras mais pesadas da denúncia ou resolução do contrato de arrendamento. O intérprete-
aplicador tem de corrigir um pouco a doutrina da absorção.

Doutrina da combinação: O regime do contrato misto baseia-se na combinação dos


elementos em causa e dos seus regimes. O problema é a lógica do conjunto – há uma
unidade de contratos mistos, não podemos ignorar essa unidade e explicar
segmentadamente o regime dos diversos contratos. Exemplo do porteiro: para fazer
extinguir a locação ou a prestação de serviços temos regimes diferentes. A jurisprudência
foi-se afirmando no sentido de dizer que a prestação dominante é a da prestação de
serviços – se o porteiro cumpriu, pode ficar na casa, mas se não cumpriu tem de sair.

Doutrina da analogia: Os contratos mistos constituem lacunas no ordenamento


jurídico e por isso deve recorrer-se à analogia – integrar essa lacuna aplicando
analogicamente os preceitos da lei existentes para os contratos típicos. É uma doutrina
puramente formal, que acaba por não ajudar em nada, porque toda a dificuldade da
analogia está em encontrar casos semelhantes, e sobre isso nada diz esta doutrina. Além
disso, parte de um equívoco: não há nenhum ordenamento jurídico que seja capaz de
prever um regime jurídico completo para cada contrato que as partes venham a celebrar
– o contrato misto corresponde ao exercício da autonomia privada dos sujeitos, e o facto
de essa matéria não estar regulada no ordenamento jurídico não implica que haja uma
lacuna. Esta doutrina faz sentido nos contratos que têm tipo social e que não estão
previstos na lei – aí sim podemos dizer que há uma lacuna.

Não há orientações rígidas, apenas linhas gerais, no sentido de orientar o intérprete.


Há que olhar aos elementos preponderantes, fazer um juízo global, fazer uma ponderação
dos interesses e objetivos. Devemos seguir o princípio da boa fé e procurar uma
composição dos interesses de ambas as partes, apelando ao equilíbrio dos contratos. No
fundo, o regime a aplicar deve ir ao encontro da vontade das partes e deve incorporar as
exigências da boa fé.

2.3. União de contratos


Temos uma pluralidade de contratos. Temos dois ou mais contratos que, sem perda
da sua individualidade, se acham ligados entre si por certo nexo. Na prática não faz
grande diferença celebrar um único contrato com diversos regimes (contratos mistos) ou
celebrar vários contratos (união de contratos) para alcançar o mesmo fim.

Modalidades da união de contratos:

 União de contratos com nexo externo (superficial e ocasional): O vínculo que


liga os contratos é exterior ou acidental e, por conseguinte, os contratos mantêm
a sua individualidade própria, embora estejam conexos. Exemplo: A compra um
relógio e, no mesmo dia, volta à relojoaria para reparar o relógio. São contratos
com individualidade própria, em que as eventuais vicissitudes num dos contratos
não são comunicadas à validade do outro contrato, não o afetam.

 União de contratos com nexo interno (funcional): Os contratos não perdem a


sua individualidade, mas estão unidos por um nexo de interdependência funcional

34
ou substancial que faz com que um interfira no regime do outro, havendo uma
interdependência juridicamente relevante. Podem assumir tipos diferentes:
o Casos em que um dos contratos é condição do outro: A encomenda
refeições no restaurante de B, mas só se B lhe arranjar alojamento na
localidade. Se um dos contratos não se realizar, haverá consequências
relativamente ao contrato que é a condição.
o Casos em que um dos contratos é uma contraprestação do outro: A vende
o seu apartamento a B, se B em troca lhe vender o seu automóvel – nexo de
reciprocidade, um dos contratos é tido como contraprestação do outro.
o Casos em que um dos contratos é motivo do outro: A arrenda um
apartamento na Guarda porque está convencido de que lá vai ser colocado
(contrato de arrendamento e contrato de trabalho), mas a transferência dá-se
para Lisboa – trata-se de um erro sobre os motivos. A união pode não ser
visível, a outra parte pode não saber, mas se for interposta uma condição
suspensiva (arrenda se for colocado) já é visível a união interna de contratos.
o Casos em que um dos contratos é a base negocial do outro: O contrato de
sociedade serve de base negocial aos futuros contratos celebrados pela
sociedade com outros, como os contratos de distribuição e fornecimento.

No contrato misto há a fusão num só negócio de elementos contratuais distintos que,


além de perderem a sua autonomia, fazem simultaneamente parte do conteúdo do
negócio. Na união de contratos, apesar de se notar uma dependência entre os contratos
coligados, os nexos de correspetividade ou de motivação que prendem um dos contratos
ao outro não destroem a sua individualidade. A questão complexa será a de saber,
mediante um contrato com múltiplas prestações, se estamos perante dois ou mais
contratos substancialmente interdependentes (união de contratos) ou se estamos perante
um só contrato (atípico) formado por diversas prestações (contrato misto).

Exemplos particulares de uniões de contratos:

 Subcontratos: Temos um contrato de segundo grau, um contrato está na


dependência de outro. Manifestações:

o Delegação do cumprimento: Empreitada e subempreitada. O empreiteiro


delega num terceiro (que é o subempreiteiro) o cumprimento da prestação de
realização da obra. O devedor originário (empreiteiro) pode recorrer a
auxiliares para cumprir a sua prestação e os atos dos auxiliares podem,
eventualmente, ser geradores de responsabilidade para o devedor originário,
como se por ele tivessem sido praticados (artigo 800º CC). As vicissitudes
do contrato de empreitada refletir-se-ão no contrato de subempreitada. A
subempreitada depende da empreitada. Ver o artigo 1213º do Código Civil.
o Situação de transferência de poderes: Locação e sublocação. O locatário
transfere os seus poderes para um sublocatário, sendo a transferência operada
através de contrato de sublocação. A sublocação só é válida quando
autorizada pelo locador, pois implica que a fruição do bem seja concedida a
um terceiro não pertencente ao contrato originário de locação – isto acontece
para que o locador possa avaliar as qualidades do sublocatário e decidir se
permite a sublocação. Ver os artigos 1060º e ss. do Código Civil.

 Uniões de contratos com regime de hierarquia, ex: agente e subagente.

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 Uniões de contratos com regime de prevalência: Um contrato prevalece sobre
o outro.
 Uniões de contratos com regime paritário: Os contratos unidos ocupam a
mesma posição.

2.4. Contrato-promessa
Representa uma espécie de modelo estrutural do contrato. Encontra-se previsto no
título das obrigações em geral. Os contratos previstos no título II têm a sua finalidade
própria, mas no contrato-promessa não temos uma única função económico-social, o
contrato-promessa é mais um tipo estrutural de contrato do que um contrato com uma
função económico-social determinada, porque pode haver contratos-promessa de todos
os outros contratos.

Artigo 410º CC: Do contrato-promessa resulta uma obrigação de contratar.


Trata-se de uma prestação de facto jurídico específica, porque a atividade que o sujeito
que celebra esse contrato se vincula a realizar é a celebração do contrato (um ato jurídico
determinado). O objeto da promessa é a celebração do contrato. Na verdade, o contrato-
promessa pode ter por objeto não a celebração de um contrato, mas sim um negócio
jurídico unilateral, mas vamos focar-nos no sentido diretamente visado pelo artigo 410º e
ss. CC, que são os contratos-promessa de contratar. O contrato-promessa cria a obrigação
de contratar, ou seja, a obrigação de emitir a declaração negocial que conduza à
celebração do contrato prometido, estando em causa uma prestação de facto positivo por
parte do promitente.

Há muitas motivações para a celebração destes contratos. Destacam-se duas funções


principais, que nem sempre se conjugam.

A primeira consiste em permitir às partes uma vinculação mesmo que não estejam
reunidas as condições de forma ou outras condições que permitam celebrar o
contrato visado, ou seja, permite antecipar os efeitos de contratos que ainda não se
podem realizar, ex: falta uma licença da Câmara Municipal, mas pode haver uma
vinculação antes de ser obtida essa licença; falta financiamento bancário; há
indisponibilidade do bem – pretende-se uma compra e venda de uma propriedade que está
a ser construída, só quando houver uma determinação da fração é que se pode constituir
um direito de propriedade sobre ela, mas pode desde logo haver um contrato-promessa.

A segunda consiste em permitir uma conjugação razoável entre a vinculação das


partes e o arrependimento das partes. O sinal dá a possibilidade de arrependimento.
Temos aqui vinculações menos fortes, há a possibilidade de arrependimento, não
deixando de haver sanções, ex: a perda do sinal.

Importa distinguir o contrato-promessa de figuras afins:

 Proposta contratual: Não dá azo a contrato enquanto não houver aceitação;


 Convite a contratar: Atividade preliminar, não há produção de efeitos jurídicos,
não tem eficácia negocial;
 Minutas: Modelos de contratos, são atividades preparatórias;

36
 Cartas de intenção: Uma pessoa declara que tem uma intenção, por exemplo de
celebrar um contrato ou de conceder crédito. Isso não é ainda um contrato, é uma
declaração unilateral que manifesta a intenção de emitir uma declaração negocial.
 Acordo de negociação: É um negócio jurídico que disciplina a forma como vão
decorrer as negociações, não implicam a obrigação de contratar (acordo-base,
acordo-quadro).
 Promessa pública de contratar: Um indivíduo vincula-se unilateralmente a
celebrar um contrato com quem se encontre em determinada situação ou pratique
determinado facto.
 Obrigações de contratar de origem não negocial (dever legal de contratar):
Obrigação que decorre de um estatuto a que a lei sujeita um conjunto de entidades
que fornecem serviços essenciais, ex: EDP é obrigada a fornecer eletricidade,
mas essa obrigação decorre do estatuto da entidade.

Aula do dia 4 de novembro

Modalidades dos contratos-promessa

 Formais ou não formais: Consoante se exija ou não uma forma especial.

 Bilaterais ou unilaterais
o Contrato-promessa bilateral: Nascem obrigações para ambas as partes, ex:
contrato-promessa de compra e venda – alguém promete vender e alguém
promete comprar. Ex: A quer comprar um prédio e B quer vender-lho, mas
não podem celebrar o contrato no imediato porque A aguarda a aprovação de
um empréstimo – para superar a dificuldade, celebram um contrato-promessa
de compra e venda.
o Contrato-promessa unilateral: Nascem obrigações apenas para uma das
partes, só uma das partes fica vinculada, a outra parte pode decidir mais tarde
se quer ou não celebrar o contrato – é a chamada reserva. Ex: A quer vender a
B um móvel, e embora B não tenha a certeza de que o quer comprar, interessa-
lhe vincular A àquele contrato, para evitar a subida do preço, por exemplo.
o Posto isto, percebemos que o contrato-promessa é a convenção pela qual
ambas as partes (promessa bilateral) ou apenas uma delas (promessa
unilateral) se obriga(m) a celebrar determinado contrato (contrato prometido),
dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos.

 Com eficácia real e sem eficácia real: No artigo 413º CC admite-se que as partes
atribuam eficácia real a um contrato-promessa. O contrato-promessa não produz,
por si mesmo, efeitos reais, mas se as partes atribuírem eficácia real ao contrato-
promessa, a posição do sujeito passa a ser suscetível de ser oposta a terceiros.
o A compra e venda, no direito português, além dos efeitos obrigacionais, tem
efeitos reais, dado que a transferência de propriedade se dá por mero efeito do
contrato (408º nº1 CC). Em países como a Alemanha e Brasil isto não se
verifica – a compra e venda tem meramente efeitos obrigacionais (a
transferência dos direitos reais sobre a coisa, se for móvel, dá-se com a entrega
da coisa). Assim, o contrato-promessa de compra e venda só tem efeitos
obrigacionais, por isso desempenha o papel da compra e venda na Alemanha.

37
 Com ou sem execução específica: Ver os artigos 827º e ss. CC, especialmente
o artigo 830º CC. A execução específica consiste na realização coativa da
prestação em espécie. O tribunal substitui-se ao promitente faltoso.

Âmbito possível de celebração de contratos-promessa


À partida, podem ser celebrados contratos-promessa em relação a todos os contratos,
porque em regra é sempre possível recorrer à execução específica, mas há contratos-
promessa que não são suscetíveis de execução específica e, como tal, não podem ser
celebrados, ex: não pode haver contrato-promessa de casamento. Vejamos mais alguns
casos em que não parece admissível a celebração de um contrato-promessa.
Doação: Uma vez que a doação é livre, não parece ser possível a celebração de um
contrato-promessa de doação. É verdade que podia já haver uma definitividade da
vontade, mas o regime jurídico português das doações permite a liberdade atual daquele
que dispõe do bem, a espontaneidade. Ex: 942º CC – se se proíbe a doação de bens
futuros, mesmo que haja vontade do sujeito de doar, isso significa que a ordem jurídica
não aceita como definitiva uma vontade que não se manifesta num contrato de doação. A
doação, pela sua própria natureza, não é suscetível de ser prometida.
Contratos reais quoad constitutionem (comodato, mútuo, parceria pecuária,
depósito): Se, por exemplo, o comodato é um ato gratuito, dá impressão que deve ser
consonante com o regime das doações, então não seria possível um contrato-promessa.
Tem de se ver caso a caso, interpretando teleologicamente os regimes.
Mandato: O interesse proeminente num contrato de mandato é o do mandante, então
não faz sentido vincular o mandante a celebrar um contrato de mandato – não parece ser
de admitir a celebração de um contrato-promessa.

Regime do contrato-promessa (artigo 410º e ss. CC)


Artigo 410º nº1 CC: Prevê o princípio da equiparação, segundo o qual o regime do
contrato-promessa é o do contrato prometido. Assim, aplica-se ao contrato-promessa a
disciplina geral dos contratos, no que toca a capacidade, vícios da vontade, resolução,
etc., assim como todas as normas específicas do contrato prometido (compra e venda,
mandato, arrendamento, etc.). Contudo, há duas exceções ao princípio da equiparação:
não se aplicam as disposições legais do contrato prometido relativas à forma nem as
disposições legais que, pela sua natureza e razão de ser, não possam ser estendidas para
o contrato-promessa.
Artigo 411º CC: Contrato-promessa unilateral. Quando as prestações não têm prazo,
pode o tribunal, a pedido do promitente, estabelecer um tempo dentro do qual a promessa
deve ser cumprida, para o promitente não ficar durante tempo indeterminado vinculado.
Artigo 412º CC: Se a pessoa que celebra um contrato-promessa falece, as obrigações
transferem-se para os seus sucessores, se não estiverem em causa direitos pessoais.

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Também por ato entre vivos se pode transferir a posição resultante de contrato-promessa
– cessão da posição contratual (artigos 424º e ss. e 577º e ss. CC).

Exceção relativa à forma do contrato:


Existem regras especiais quanto à forma – artigo 410º nº2 CC. De acordo com a
liberdade de forma (artigo 219º CC), os contratos-promessa não requerem forma especial,
mas se para o contrato prometido a lei exigir um documento autêntico ou documento
particular (documento em que os autores são os contraentes), o contrato-promessa tem de
observar a forma escrita – documento escrito assinado pela(s) parte(s). Se o contrato
prometido estiver subordinado a qualquer outra formalidade que não a redução a
documento, vale para a promessa a regra geral da liberdade de forma (artigo 219º CC).
Ex: No contrato-promessa de compra e venda de um livro, o contrato prometido não
está sujeito a forma, mas se o contrato prometido fosse a compra e venda de um imóvel
era preciso forma específica (artigo 875º CC), então no contrato-promessa exige-se
documento assinado pelas partes.
Quem está vinculado tem de mostrar a vinculação de forma concludente, através da
assinatura de um documento escrito. Se assim é, é possível celebrar contratos-promessa
através de cartas ou de emails, mesmo que o contrato prometido exija uma forma pesada
para a sua celebração.
O que acontece quando se trata de uma promessa bilateral e apenas uma das partes
assina o documento? Defrontam-se duas teses fundamentais:

 Tese da redução (292º CC): Se o contrato promessa é bilateral e só há uma


assinatura, há uma nulidade parcial, então o contrato-promessa passa a ser
unilateral (a redução é automática). Não se determina a invalidade de todo o
negócio, ele é aproveitado, salvo se se mostrar que o negócio não se teria
realizado sem a parte viciada. A parte que invoca a nulidade total do negócio (e
se opõe à redução) tem o ónus de provar que sem essa parte viciada o contrato
não teria sido celebrado.
 Tese da conversão (293º CC): Se o contrato promessa é bilateral e só há uma
assinatura, o contrato é nulo, mas pode converter-se num contrato-promessa
unilateral se o fim prosseguido pelas partes permitir supor que elas o teriam
querido, se tivessem previsto a invalidade, e se contiver os requisitos essenciais
de forma (a conversão não é automática). Para haver conversão, era essencial que
o contraente interessado provasse que ambas as partes teriam querido o negócio.
Na tentativa de resolver esta divisão, o assento do STJ de 29 de novembro de 1989
veio determinar o seguinte: “o contrato-promessa bilateral […] exarado em documento
assinado apenas por um dos contraentes é nulo, mas pode considerar-se válido como
contrato-promessa unilateral, desde que essa tivesse sido a vontade das partes”. Não
havendo solução clara entre a utilização da conversão ou redução, o acórdão de 25 março
de 1993 vem estabelecer que o anterior assento deve ser interpretado no sentido de
consagrar a nulidade parcial do negócio e, por isso, deve utilizar-se o mecanismo da
redução. Consagra-se a solução da redução do negócio jurídico, mas é necessária a

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prova de que as partes o teriam querido se tivessem previsto a invalidade, e isso é próprio
da conversão. A solução, materialmente, é a da conversão.
Há uma exigência de forma especial para os contratos-promessa respeitantes à
celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre
edifício, ou fração autónoma dele, já construído, em construção ou a construir –
artigo 410º nº3 CC. Requisitos de forma:
 Documento escrito assinado pelas partes, nos termos do artigo 410º nº2 CC;
 Reconhecimento presencial da(s) assinatura(s) do(s) promitente(s), por parte do
notariado;
 Certificação notarial da existência da licença de construção ou de utilização.
Pretende-se combater vinculações cujo cumprimento incida sobre edificações
clandestinas ou não licenciadas, por isso é que já no contrato-promessa tem o notário de
reconhecer que o edifício está em condições de ser utilizado. Há aqui um controlo
administrativo a cargo do notário.
No caso de prédio rústico, não se aplica este artigo, porque mesmo que o prédio
rústico tenha edificações, elas não têm autonomia, ex: se se quer vender uma bomba de
gasolina, aplica-se este artigo, mas normalmente o que se vende é o terreno, e aí já não se
aplica este artigo. É preciso determinar o que se transaciona, e normalmente é o terreno,
por isso ficamos no nº2. A venda de quinhão hereditário não é uma venda de edifícios,
porque tem de haver partilha, por isso aqui também não se aplica o nº3, mas sim o nº2.
Quid iuris se os requisitos do nº3 não se verificarem? O reconhecimento presencial
da assinatura e a certificação da existência de licença são formalidades que não têm
propriamente que ver com a declaração negocial em si, mas não deixam de ser uma
formalidade essencial (formalidade ad substantiam). Como consequência para a
inobservância destas formalidades, o promitente-vendedor só pode invocar a falta dos
requisitos formais se essa falta tiver sido causada culposamente pelo promitente-
comprador. Mas podem terceiros (por exemplo, credores do promitente-vendedor)
invocar a falta destas formalidades? E pode o tribunal fazê-lo oficiosamente? Há na lei
uma omissão a este respeito. Antunes Varela responde afirmativamente a estas questões,
afirmando por isso a aplicação do regime geral da nulidade (artigos 220º e 286º CC). Já
Calvão da Silva diz que está subjacente ao nº3 uma finalidade de proteção do promitente-
comprador, pelo que a omissão dos requisitos formais gerava anulabilidade. Esta última
posição é reiterada pelos assentos 15/94 e 3/95, que vêm dizer, respetivamente, que as
omissões de formalidades do artigo 410º nº3 CC não podem ser invocadas por terceiros e
que essas mesmas omissões não podem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal.
Assim sendo, estamos perante a anulabilidade, mas falamos em anulabilidade mista ou
atípica, na medida em que não se sana com o decurso do tempo.

Aula do dia 5 de novembro


Contrato-promessa com eficácia real
Artigo 413º CC: Em regra, o contrato-promessa produz somente efeitos obrigacionais
(efeitos inter partes), mas há contratos-promessa que, além de efeitos obrigacionais,

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produzem efeitos reais (o que significa sobretudo que são oponíveis a terceiros),
mediante atribuição de eficácia real à promessa, pelas partes.
Se o promitente-vendedor aliena a terceiro o bem que prometeu vender, há um
conflito entre a posição do promitente-comprador e a posição do terceiro que tem o direito
real. De acordo com as regras gerais, prevalece a posição do terceiro – o promitente-
comprador pode apenas requerer indemnização pelo incumprimento contratual, por isso
percebe-se que o contrato-promessa meramente obrigacional é relativamente débil. Se as
partes atribuírem eficácia real à promessa (artigo 413º CC), já não se passa assim, pois a
posição do beneficiário da promessa passa a ser oponível ao terceiro adquirente, prevalece
o direito do promitente-comprador.
Diz o nº1 deste artigo 413º que a atribuição de eficácia real só é possível para os
contratos-promessa que visam a transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens
imóveis ou móveis sujeitos a registo.
Para poder haver eficácia real, é precisa a verificação destes requisitos cumulativos:
 As partes têm de declarar expressamente no contrato-promessa a sua intenção
de lhe atribuírem eficácia real (artigo 413º nº1 CC);
 Os direitos emergentes do contrato-promessa têm de estar inscritos no registo
(artigo 413º nº1 CC) – aqui o registo é constitutivo, é uma condição da eficácia
real da promessa;
 Quanto à forma, o contrato-promessa tem de ser celebrado por escritura pública
ou documento particular autenticado, salvo se o contrato-prometido não exigir
essa forma – nesse caso, basta documento particular com reconhecimento das
assinaturas de quem se vincula (artigo 413º nº2 CC).

Vicissitudes do contrato: cumprimento e incumprimento


Cumprimento: O contrato-promessa cumpre-se através da emissão das declarações
negociais correspondentes, celebrando-se o contrato prometido. Para isso é preciso haver
vontade de ambos os contraentes. Os contratos-promessa podem ser celebrados sem uma
definição de prazo para o cumprimento – estaremos perante uma obrigação pura: qualquer
uma das partes pode a qualquer tempo exigir o cumprimento. Pode, igualmente, não estar
estabelecido o preço no contrato-promessa.
Incumprimento: Há várias situações de incumprimento das obrigações.

 Devedor impossibilita a realização da prestação:


 Mora na realização da prestação: Se o promitente-vendedor está vinculado a
celebrar a compra e venda no dia 1 de novembro, a partir desse dia está em mora.
Tratando-se de simples mora, o credor mantém interesse e por isso faz sentido
recorrer à execução específica do contrato.
 Perda de interesse do credor na prestação (artigo 808º CC): Vamos supor que
temos um contrato-promessa de disponibilização de um quadro para que o credor
o colocasse numa exposição – a mora do devedor na realização da prestação, se
durar até depois da exposição, gera uma situação em que a prestação deixou de

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ter interesse para o credor. O prejuízo é a frustração da totalidade do interesse do
credor, por isso a indemnização deverá ser maior. Aqui não interessa ao credor
uma ação de cumprimento.
 Cumprimento defeituoso: A prestação é cumprida, mas com imperfeições.
 Recusa antecipada do cumprimento: Imagine-se que os promitentes
combinaram que o contrato prometido seria celebrado no mês seguinte, mas hoje
um promitente diz que não vai cumprir – recusa antecipada, tem consequências.
As consequências do incumprimento dos contratos são diferentes consoante o
contrato seja ou não sinalizado. Assim sendo, passemos a analisar a matéria do sinal.

Sinal
O sinal é a quantia que pode ou não acompanhar o contrato-promessa. O sinal
não tem de estar presente sempre do mesmo modo e com a mesma intensidade, tendo uma
multiplicidade de funções:
 Função confirmatória da vontade de produção de efeitos jurídicos: Pode
servir para confirmar a vontade negocial, funcionando como prova de seriedade
do propósito negocial do sujeito e garantia do cumprimento;
 Função coercitiva/compulsória: Pode funcionar como coação ao cumprimento;
 Função penitencial (função de preço do arrependimento): É uma função
liberatória – o sujeito liberta-se do vínculo pagando o sinal. O sujeito
compromete-se, mas também que ter a liberdade de sair do contrato com o mínimo
de consequências, no caso de se arrepender, e a consequência será pagar o sinal.
Um dos aspetos particulares do contrato-promessa tem a ver com o regime do sinal,
que está ligado à tutela do credor perante o incumprimento. O contrato que mais
frequentemente está ligado ao mecanismo de sinal é precisamente o contrato-promessa.
As consequências do incumprimento do contrato-promessa serão diferentes consoante o
contrato seja ou não sinalizado.
O facto de haver sinal num contrato-promessa significa que ambas as partes estão
vinculadas ao mesmo, logo, a existência de sinal demonstra que estamos perante um
contrato-promessa bilateral.
Artigo 441º CC: Este artigo aborda especificamente o sinal no regime do contrato-
promessa de compra e venda. Coloca-se a questão de saber o que a quantia entregue
significa. Será que o promitente-comprador está a antecipar o cumprimento da sua
prestação? A mera qualificação das partes no sentido de que a quantia representa uma
antecipação da obrigação não é suficiente para eliminar o caráter de sinal. Presume-se
que a quantia é sinal, ao contrário do que acontece nos outros contratos – veja-se o artigo
410º CC, em que a quantia é havida como antecipação do cumprimento, embora as partes
possam atribuir-lhe caráter de sinal. A regra é inversa.
Quando se trate de uma promessa sinalizada, aplicar-se-á o disposto no artigo 442º.

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Artigo 442º nº1 CC: Se o indivíduo presta o sinal em dinheiro e se a prestação devida
por ele é em dinheiro, imputa-se na prestação; mas se a prestação devida por ele não for
em dinheiro, não se trata de coisas iguais, por isso tem de se restituir o sinal.
A cláusula sinal é uma cláusula real quanto à constituição, porque não há sinal sem
a entrega da coisa sinalizada.
O sinal é uma liquidação expedita do contrato. Corresponde a uma fixação
antecipada da indemnização por força do incumprimento. De acordo com os artigos 798º
e 799º CC, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação é responsável
pelo prejuízo que causa ao devedor, e presume-se a culpa do devedor, mas o credor tem
de provar os danos, o que pode ser demorado, pelo que o sinal, em contraposição, é
extremamente prático.
Em princípio, o sinal é uma sanção para o incumprimento definitivo, porque só é
devido a partir do incumprimento definitivo – não pode ser perdido ou ser restituído em
dobro perante uma simples mora do sujeito na realização da prestação, pois se assim fosse
o credor tinha direito à prestação e também ao sinal, e em princípio não é assim. Contudo,
é sempre a vontade das partes que decide, pelo que estas podem atribuir ao sinal uma
função de indemnizar a simples mora. Numa situação de mora, o sinal tem uma função
compulsória, dado que coage ao cumprimento, induz ao cumprimento do devedor.
Artigo 442º nº3 CC: O sinal, no caso do contrato-promessa, afasta a execução
específica, como regra. Quando se constitui sinal, isso significa que as partes renunciam
à execução específica e se contentam com a cláusula de sinal.
Artigo 830º nº2 CC: Tanto o sinal como a pena convencional afastam a execução
específica – é uma presunção iuris tantum. A pena convencional é uma cláusula penal –
indemnização do devedor no caso de não cumprir. Distingue-se do sinal pelo caráter
unilateral e também pelo facto de não implicar qualquer entrega para se constituir.

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Aula do dia 11 de novembro
Artigo 442º nº2 2ª parte CC: Vale para todos os sinais. O sinal tem mais
consequências quando está ligado à tradição da coisa. Quando no contrato-promessa há
tradição da coisa para o promitente-comprador, gera-se uma legítima expectativa da
celebração do contrato, porque o promitente-comprador já está na posse e domínio da
coisa, que era o seu derradeiro interesse. Assim, a perda do sinal ou restituição em dobro
pode não ser suficiente.
Havendo tradição da coisa, pode funcionar o sinal ou pode funcionar a
indemnização pelo valor da coisa.
A tradição da coisa pode configurar um direito pessoal de gozo conhecido, como o
comodato ou a locação, sendo possível a tutela possessória de quem recebeu a coisa.
Nota: para simplificar, partiremos do pressuposto de que o promitente faltoso é o
promitente-vendedor, o que não invalida a existência de situações em que o promitente
faltoso é o promitente-comprador.
Exemplo: Duas pessoas celebram um contrato-promessa de uma casa no valor de
50 mil euros. O promitente-comprador constitui um sinal de 10 mil euros. Se o
promitente-vendedor se recusar a cumprir, o promitente-comprador terá direito a receber
20 mil euros (dobro do sinal). Agora suponhamos que estamos num período de
especulação imobiliária, havendo uma acentuada subida dos preços dos imóveis –
passados alguns anos da celebração do contrato-promessa, o imóvel vale 100 mil euros,
em vez dos 50 mil euros, então o promitente-vendedor será tentado a alienar o bem a um
terceiro que lhe dá os 100 mil euros. A alienação a terceiro mostra a fragilidade do
promitente-comprador quando o contrato-promessa tem mera eficácia obrigacional. Esta
precariedade é particularmente sensível se houver tradição da coisa. O mecanismo do
sinal pode não ser suficiente. Se em vez de o sinal de 10 mil euros, o sinal fosse de 40 mil
euros, o promitente-comprador teria direito a receber 80 mil euros, mas normalmente os
sinais não são assim tão grandes. Então o que fez o legislador? Criou, em alternativa ao
sinal, a possibilidade de exigir do promitente-vendedor o valor do direito a constituir
sobre a coisa (direito de propriedade) e, por isso, se hoje o valor é de 100 mil euros, o
promitente-comprador terá direito ao valor dos 100 mil euros, para ficar totalmente
ressarcido do seu prejuízo, que à data do incumprimento é de 100 mil euros e não de 50
mil euros, mas desconta-se desse valor o valor da contraprestação – de acordo com o
contrato-promessa, ele tinha de despender 50 mil euros, então 100 000 – 50 000 = 50 mil
euros. Desta forma não há enriquecimento injusto do promitente-vendedor (que seria
contemplado com uma valorização do imobiliário tendo violado o contrato) nem há
empobrecimento do promitente-adquirente (que tem de satisfazer as suas necessidades no
mercado a preços atuais). Se o promitente-comprador faz funcionar a indemnização pelo
valor da coisa descontado da contraprestação, ele tem de devolver a coisa e tem
direito à restituição do sinal.
O promitente-vendedor não cumpre, o promitente-comprador tem créditos sobre o
promitente-vendedor (valor da coisa) e está na posse da coisa. Esse crédito é pouco
consistente em termos práticos se não for protegido. O promitente-comprador pode
reservar para si o andar enquanto o promitente-vendedor não lhe pagar a indemnização –

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direito de retenção (artigo 755º nº1 f) CC). Isto não é uma exceção de não cumprimento,
porque o promitente-comprador recusa a entrega do andar enquanto não for indemnizado,
mas essa entrega não é uma prestação a que ele se tenha vinculado pelo contrato. Temos
uma indemnização acautelada pelo direito de retenção – o promitente-comprador tem
o direito indemnizatório e pode acautelar esse direito através do direito de retenção.
Vamos imaginar que o banco tem uma hipoteca sobre a casa em questão, em virtude
de um empréstimo pedido pelo promitente-vendedor. Este direito de retenção seria uma
ilusão se não fosse oponível ao banco, porque o banco tem um direito real de garantia,
que pode ser exercido pelo seu titular onde quer que a coisa se encontre (manifestação do
princípio da sequela). O direito de retenção vai prevalecer sobre a hipoteca, o que
permite tutelar a posição do promitente-comprador – a sua posição é oponível aos
credores hipotecários mesmo que a hipoteca tenha sido anteriormente constituída.
Significa isto que o titular do direito de retenção é primariamente ressarcido em relação
aos titulares da hipoteca.
Alguns autores criticaram esta solução, dizendo que este mecanismo acaba por se
voltar contra os promitentes-compradores, porque os bens ficam mais caros, então a
solução adequada seria a contrária – o professor não concorda. Veio-se dizer que o direito
do promitente-comprador só é oponível ao credor hipotecário se o primeiro for um
consumidor final – se o promitente-comprador for comerciante, o seu direito já não é
oponível ao credor hipotecário. A ideia é esta: só devem ser protegidos aqueles que
realmente precisam de ser protegidos, ou seja, aqueles que vão utilizar a casa para
habitação. O professor entende que é uma restrição que também não faz justiça pelo
menos aos pequenos comerciantes. Segundo o professor, a solução primeiramente
encontrada seria a melhor, porque todos ficariam protegidos, incluindo o credor
hipotecário (também ele é tratado com justiça, visto que o seu direito se reporta ao valor
da coisa na altura da hipoteca e não ao aumento desse valor). Se não fosse assim,
beneficiar-se-ia quem tem hipotecas em detrimento dos promitentes-compradores.
Artigo 442º nº3 1ª parte CC: O promitente-comprador pode em alternativa pretender
executar especificamente a promessa, nos termos do artigo 830º CC. É uma
possibilidade abstrata, ou seja, não significa que a execução específica possa operar
sempre – se, entretanto, surgir um direito real incompatível com o direito de crédito, a
execução específica não será possível. Se o promitente-vendedor, entretanto, perdeu a
titularidade da coisa, a sentença não pode considerar transmitida a propriedade,
prejudicando um terceiro. Se não houver alienação da coisa pelo promitente-vendedor, aí
sim o promitente-comprador pode recorrer à execução específica.
Artigo 442º nº3 2ª parte CC: Quando o promitente-comprador optar, em detrimento
da execução específica, pelo aumento do valor da coisa, pode a outra parte obstar a essa
possibilidade, cumprindo a promessa. Trata-se de uma exceção do cumprimento da
promessa, que só pode operar se não se verificar o previsto no artigo 808º CC, isto é, esta
exceção do cumprimento tem como limite a perda do interesse do credor (ex: só
interessa à noiva ter o vestido de noiva pronto até ao dia do casamento) e a
inexigibilidade de manutenção do vínculo em virtude de o credor dar um último prazo
para o cumprimento e a prestação não ser cumprida – o credor converte a mora em

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incumprimento definitivo, através da interpelação admonitória (comunicação para que
o devedor cumpra, sob pena de se considerar a prestação definitivamente incumprida).
Artigo 442º nº4 CC: No caso de se optar pelo mecanismo do sinal ou pelo aumento
do valor da coisa à data do não cumprimento, não haverá lugar, em princípio, a qualquer
outra indemnização pelo incumprimento do contrato. No nosso exemplo, se se optar pelo
mecanismo do sinal, o promitente-comprador, que dá o sinal de 10 mil euros, verá a
restituição desse valor em dobro, em virtude do incumprimento do promitente-devedor,
e depois não poderá alegar que 20 mil euros não chegam para comprar outra casa, dado
que ativou o mecanismo do sinal.

O que acontece se houver incumprimento e o contrato não for sinalizado? Se


não houver sinal, operam as regras do artigo 798º e ss. CC (responsabilidade contratual).
Se houver mora, o promitente-comprador será indemnizado pelo atraso, e o valor dessa
indemnização, naturalmente, não será o correspondente ao valor da casa (artigo 804º CC).
Se o prejuízo for o do incumprimento definitivo do contrato-promessa (por
impossibilidade de cumprimento, por perda de interesse do credor ou porque não se
cumpriu a interpelação admonitória – artigo 808º CC), há indemnização no valor da
demora e no valor integral do interesse que ficou por satisfazer. Atenção: a interpelação
admonitória não é apenas um poder conferido ao credor, mas também um ónus que a lei
lhe impõe para que transforme a mora em incumprimento definitivo, por isso acaba por
beneficiar, também, o devedor, que só sofrerá as consequências do incumprimento
culposo da obrigação (resolução) se não cumprir até ao último dia do novo prazo.
E é possível haver execução específica? O dano moratório é compatível com a
exigência da prestação, ou seja, é possível termos execução específica e também
indemnização pela demora, mas há casos em que o dano não é meramente moratório,
casos esses em que não faz sentido a execução específica. Pode haver incumprimento
assente no facto de o promitente-vendedor ter alienado o bem – já não pode cumprir, pois
não pode vender um bem que não é seu. É uma impossibilidade culposa do cumprimento
do contrato-promessa (culposa porque é imputável ao promitente-vendedor), que dá lugar
ao disposto no artigo 801º CC – o promitente-comprador tem direito a uma indemnização
que cubra todos os prejuízos e tem direito a resolver o contrato.
Concluindo, só podemos aplicar o artigo 442º CC quando houver sinal. O contrato-
promessa só tem particularidades na medida em que haja sinal.

Execução específica no contrato-promessa – artigo 830º CC


O juiz não emite uma declaração negocial em substituição do sujeito, o que acontece
é que a sentença produz um efeito substitutivo da declaração negocial do promitente
faltoso. Por força da sentença, considera-se o contrato prometido como realizado,
decretando-se diretamente o efeito fundamental do contrato prometido.
Artigo 830º nº1 CC: Pode o promitente fiel recorrer à execução específica, obtendo
sentença que produz os efeitos da declaração negocial do faltoso, quando não se
estabeleça convenção em contrário. Em princípio, há lugar a execução específica para

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todos os contratos-promessa, mas há alguns que pela sua própria natureza não devem
ser alvo de execução específica. Situações em que tal sucede:

 Contratos prometidos do tipo pessoal: têm por objeto uma prestação infungível
(ex: contrato de trabalho, certos contratos de prestação de serviços, contrato de
sociedade, contrato de mandato). Aqui, o juiz não se pode substituir ao devedor
– a infungibilidade das prestações não permite a substituição do devedor;
 Contratos prometidos reais quoad constitutionem: a entrega da coisa (requisito
de conclusão do contrato) tem de ser feita pessoalmente, visto que é um ato de
confiança, sendo insubstituível o devedor, mesmo pelo juiz (ex: contrato de
comodato, mútuo e depósito);
 Violação de contrato-promessa sem eficácia real em que tenha havido a
transmissão do bem a terceiro.
 Situações em que não se pode admitir verdadeiras promessas vinculativas de
contratos, ex: doação, casamento.
Artigo 830º nº2 CC: Presume-se que existe convenção em contrário se houver sinal
ou cláusula penal (artigo 810º e ss. CC). Trata-se de uma presunção iuris tantum, por
isso as partes podem estabelecer que, não obstante o sinal ou cláusula penal, se pretende
que haja a possibilidade de execução específica.
Artigo 830º nº3 1ª parte CC: A possibilidade de afastamento da execução
específica não existe nas promessas a que se refere o artigo 410º nº3 CC – as
promessas respeitantes à celebração de contratos onerosos de constituição ou transmissão
de direito real sobre edifícios ou frações autónomas deles têm sempre aberta a
possibilidade de execução específica, ou seja, não é por haver sinal que se vai retirar a
possibilidade de execução específica, nestes casos. Quando se promete a compra e venda
de um terreno para construção, não está em causa um contrato-promessa de alienação dos
edifícios a construir lá, por isso esta situação não se insere no artigo 830º nº3 CC.
Artigo 830º nº3 2ª parte CC: Para recompor o equilíbrio do contrato, o tribunal poderá
declarar uma modificação do contrato – dá-se a possibilidade ao tribunal de atualizar o
valor, a requerimento do faltoso. O indivíduo estava em falta e vai ter direito à
modificação do contrato (se tivesse cumprido, não teria direito). No fundo, ele vai
beneficiar de uma falta, mas a verdade é que pode haver superveniências não imputáveis
ao promitente faltoso, pelo que esta possibilidade já parece justificável.
Artigo 830º nº4 CC: Vamos imaginar que o promitente-vendedor recorre a um
empréstimo e a garantia do banco é uma hipoteca (direito real de garantia) sobre os
andares. O promitente-comprador não fica totalmente satisfeito com a transferência da
propriedade, porque vai responder por uma dívida que não é dele. Assim, a sentença, além
de declarar transferida a propriedade, pode condenar o promitente-vendedor à entrega das
quantias necessárias para que o promitente-comprador possa pagar ao banco e expurgue
a hipoteca. No fundo, se estivermos perante um contrato-promessa a que se refere o artigo
410º nº3 CC e se o bem estiver hipotecado, o requerente da execução específica pode
também pedir a condenação do promitente faltoso no pagamento da quantia
necessária à expurgação da hipoteca, de modo a ser paga a dívida garantida e extinta a
hipoteca. De outra forma, a hipoteca acompanha o bem na sua transmissão ao promitente-
comprador, visto que é um direito real de garantia.

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Artigo 830º nº5 CC: O promitente faltoso pode invocar a exceção de não
cumprimento, se preenchidos os seus requisitos. Imaginando uma situação em que o
promitente faltoso é o promitente-vendedor, só é justo que se transfira a propriedade
mediante a disponibilidade do preço, isto é, não faria sentido o tribunal, ao substituir a
declaração negocial do promitente-vendedor, declarar transmitida a propriedade sem que
o promitente-comprador pagasse o preço. Assim, para a ação proceder, o requerente tem
de consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal. Este
artigo só se aplica se a parte demandada em execução específica suscitar o problema,
visto não se tratar de um instituto de conhecimento oficioso. A lei não regulou a hipótese
inversa, de a execução específica ser requerida pelo promitente-alienante – integramos a
lacuna tornando esta possibilidade bilateral, ou seja, o juiz deverá condenar o promitente-
adquirente a depositar o preço e só depois decreta a execução específica pretendida, de
forma a garantir que o promitente-vendedor não aliena sem receber o preço. A execução
específica é bilateral, funciona para os dois lados – o promitente-vendedor pode pedir ao
tribunal a condenação do promitente-comprador na entrega da quantia.
Segundo Menezes Cordeiro, a execução específica aplica-se não só aos contratos-
promessa, como a todas as obrigações de contratar, a não ser que lei especial diga o
contrário ou que a natureza da obrigação não permita execução específica. Isto porque o
que se pretende é que os contratos sejam cumpridos – assim, além da reconstituição
natural e da fixação de indemnizações, deve ser admitida a execução específica.

Aula do dia 12 de novembro


Incumprimento por alienação do bem a terceiro num contrato-promessa com
eficácia real
Desde que verificados os requisitos de forma para o contrato-promessa com eficácia
real, o promitente-comprador pode opor o seu direito a qualquer terceiro. Parece muito
vantajoso, mas a verdade é que poucos são os contratos-promessa com eficácia real.
Como é que na prática o beneficiário da promessa real vai opor o seu direito a terceiro?
Entramos no problema da natureza jurídica do direito emergente do contrato-
promessa com eficácia real, havendo várias teorias a este respeito.
Alguns autores, entre os quais Menezes Cordeiro, dizem que o contrato-promessa
com eficácia real dá um direito real de aquisição, ou seja, adquire-se a coisa contra
quem quer que seja que se encontre na titularidade da coisa, por força da sequela.
Consequências práticas: está em causa o exercício de um direito potestativo de
unilateralmente constituir o direito de propriedade e como tal goza dos mecanismos de
tutela típicos dos direitos reais, nomeadamente a ação de reivindicação, mediante a qual
o titular do direito real exerce o seu direito contra quem quer que seja (artigo 1311º
adaptado a esta realidade). O promitente-comprador tem de demonstrar que o seu direito
real de aquisição existe e é valido, então vai ter de fazer a prova da propriedade do
promitente-vendedor, para a partir daí dizer que o seu direito foi validamente constituído
por ser derivado do direito de propriedade do promitente-vendedor (o ónus da prova recai
sobre o promitente-comprador – artigo 342º CC). A verdade é que aquele que alienou ao
promitente-vendedor podia ter roubado a coisa, pelo que teríamos vícios que se

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repercutem até à atualidade. Para fazer esta prova terá de se chegar ao facto constitutivo
originário, que tipicamente é a usucapião, que confere o direito de propriedade. Assim, é
muito complicado provar a propriedade.
A outra tese prende-se com a não relatividade das obrigações excecional – eficácia
externa que nalguns casos a ordem jurídica estabelece. É uma tese do mero direito de
crédito, mas com eficácia externa. O promitente-comprador só tem de provar o seu direito
de crédito e a sua oponibilidade a terceiros nos termos do artigo 413º CC. O professor
Carneiro da Frada concorda com esta posição.
É possível fazer o registo provisório da aquisição (registo antes de haver aquisição),
que pode permitir efeitos parecidos com o contrato-promessa com eficácia real, mas não
é o sucedâneo perfeito.
Tudo isto pressupõe que haja um contrato-promessa válido. Assim, a primeira coisa
a analisar é a validade do contrato-promessa, nos requisitos de substância e de forma.

Aula do dia 18 de novembro

2.5. Pacto de preferência


Artigo 414º CC: Noção que nos permite distinguir o pacto preferência do contrato-
promessa. No pacto de preferência não há obrigação de contratar – a vinculação, no
pacto de preferência, consiste em dar preferência a outrem, caso se decida vender
determinada coisa. Ou seja, em igualdade de circunstâncias (ex: tanto o titular do direito
de preferência como o terceiro oferecem o mesmo preço), o obrigado tem de contratar
com o titular do direito de preferência. Esta obrigação de dar preferência só incide sobre
uma das partes. O titular do direito de preferência não tem obrigação, antes goza de total
liberdade para aceitar ou não a celebração do contrato em que possa preferir.
A lei fala fundamentalmente de preferências na venda, por isso parece que o
paradigma das situações de preferência é o da venda, mas ao abrigo da autonomia privada
é possível estabelecer obrigações de preferência relativamente a outros contratos, como
o contrato de arrendamento, fornecimento, sociedade, etc. É esta a orientação do artigo
423º CC. Há contratos que pela sua própria natureza não podem ser objeto de pacto de
preferência, como a doação, porque na doação reina a ideia de liberalidade. Assim, o
negócio alvo da preferência deve ser oneroso.
Precisamente porque o pacto de preferência não obriga a contratar, não se
estabelecem regras gerais como se estabelecem para o contrato-promessa. Aqui não
temos formulada nenhuma regra de equiparação geral, pelo que temos de recorrer ao
regime do contrato alvo de preferência – se o contrato for inválido, a preferência que
incida sobre esse contrato também o será, ex: a venda de pais a filhos é anulável, então a
preferência também é. A lei não apresenta um preceito com um âmbito de extensão que
permita entender na totalidade os requisitos para o pacto de preferência. Aplicam-se ao
pacto de preferência os requisitos gerais de validade relativos ao negócio jurídico.
Artigo 415º CC: Quanto à forma há uma regulação. Aplicamos o disposto no artigo
410º nº2 CC. Ex: preferência na alienação de um terreno – uma vez que para este contrato

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se exige documento, a forma desta preferência é a forma escrita, com assinatura do
obrigado a preferir. Fora destes casos em que o contrato objeto da preferência tem forma
específica, vigora o princípio da liberdade de forma (artigo 219º CC).

Classificações
Preferências convencionais versus preferências legais: As preferências
convencionais têm origem numa convenção, num contrato. As preferências legais são
aquelas que decorrem da lei – existem muito no direito da vizinhança (no caso de
alienação de prédio encravado, há direito de preferência do prédio contíguo) e no direito
do arrendamento (os arrendatários têm preferência na alienação do local arrendado).
Preferências obrigacionais versus preferências reais: Na preferência obrigacional,
a violação da preferência representa a violação de um direito de crédito – não dá ao titular
do direito de preferência qualquer pretensão contra um terceiro que tenha adquirido a
coisa com preterição da preferência. Se A não oferece a preferência a B e vende a um
terceiro, na preferência obrigacional há um conflito entre direito de preferência
obrigacional e direito real de terceiro, prevalecendo a posição do terceiro. O titular do
direito de preferência será tutelado, mas será uma tutela típica da violação de direitos de
crédito (indemnização). Nas preferências reais (preferências com eficácia real), o titular
do direito de preferência pode opor o seu direito a terceiros, então, independentemente da
indemnização, ele pode exercer o seu direito de preferência e substituir-se ao terceiro.
As preferências convencionais, em princípio, são obrigacionais, mas as partes
podem atribuir eficácia real à preferência, nos termos do artigo 421º CC, à semelhança
do que acontece no contrato-promessa (artigo 413º CC). Adquirindo eficácia real, o pacto
de preferência passa a produzir efeitos em relação a terceiros, podendo-lhes ser oponível.
Normalmente, as preferências legais têm eficácia real, porque se é a própria lei a
estabelecer a preferência, haverá interesse em que o sujeito a possa exercer.

Funcionamento do pacto de preferência


Artigo 416º nº1 CC: Refere-se à necessidade de comunicação do projeto de venda ao
titular do direito de preferência. Vamos imaginar que A quer vender uma coisa que é
objeto de preferência de B – para cumprir a sua obrigação de preferência, tem de dar a
conhecer ao titular do direito de preferência as condições do projeto de venda, para
que o titular decida se quer ou não fazer sua a coisa naquelas condições. Não bastará dizer
que se pretende, por hipótese, vender uma joia, tendo de se estabelecer os elementos
essenciais do contrato (tem de se comunicar todo o projeto de venda, as cláusulas
essenciais). Será preciso comunicar a identidade do terceiro ao titular do direito de
preferência? Parece que o legislador devia ter previsto que também a identidade do
terceiro deve ser comunicada, ex: arrendatário pode querer ou não querer exercer o seu
direito de preferência em função daquele que possa vir a ser o seu senhorio. Segundo o
professor, é possível pensar em algumas circunstâncias em que se pode prescindir desta
necessidade, por isso o legislador não terá agido mal, mas o facto é que ordinariamente

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essa comunicação é necessária. Se a comunicação não for completa, há um
incumprimento da obrigação de preferência, que pode ter consequências indemnizatórias.
A forma para a comunicação da preferência não está prevista em sede geral.
Normalmente, utilizam-se meios seguros, como cartas registadas. A forma escrita é
importante para efeitos probatórios, porque conhecemos a falibilidade das testemunhas.
O obrigado à preferência terá interesse em recorrer a um meio seguro que lhe permita
provar o cumprimento da sua obrigação de preferência.
Artigo 416º nº2 CC: Se a comunicação é feita, o titular do direito de preferência tem
de decidir se quer ou não exercer o seu direito, sendo estabelecido um prazo supletivo de
8 dias para se pronunciar, sob pena de caducidade do seu direito. Para tal, pressupõe-se
que a comunicação foi bem feita, ou seja, se A anuncia a intenção de vender uma jóia,
mas não diz o preço ou não diz as condições de pagamento, temos uma comunicação
insuficiente, por isso o direito do titular da preferência não caduca – só caduca se a
comunicação não for bem feita e/ou se a decisão não for tomada dentro do prazo.
O titular pode renunciar à preferência (ex: diz que não quer comprar por aquele
preço), e ao fazê-lo perde o direito de preferência. Num caso assim, o obrigado cumpriu
a obrigação e pode vender a peça a qualquer terceiro, mas respeitando as condições
oferecidas ao preferente. Se vier a ser celebrado um contrato com terceiro em termos mais
vantajosos para o adquirente do que os oferecidos ao titular da preferência, o direito deste
manter-se-á em relação ao contrato efetivamente celebrado.
O titular pode, também, exercer o seu direito de preferência:

 Se o contrato não tiver forma especial (como é o caso da compra e venda de uma
joia), na comunicação há uma proposta, então, a partir do momento em que o
titular exerce o seu direito de preferência, aceita, e forma-se o contrato.
 Se o contrato tiver forma especial, quando a comunicação obedeça à forma
prescrita para o contrato a celebrar, e incluindo todas as cláusulas da convenção,
serve de proposta contratual que, sendo aceite, dará automaticamente lugar à
celebração do contrato.
 No caso de o contrato exigir uma forma especial para a sua celebração e a
comunicação não revestir a forma exigida para o contrato a que se reporta a
preferência, não chega o titular dizer que exerce a preferência naqueles termos
para que o contrato se celebre, ex: compra e venda de um terreno implica forma
especial. Nestes casos, a partir do momento em que o titular do direito de
preferência exerce a preferência, temos a formação de um contrato-promessa –
da proposta e aceitação nasce uma obrigação de contratar, que é uma vinculação
emergente de um direito de preferência. Assim sendo, é possível exercer a ação
de execução específica – artigo 830º CC (é um preceito que pode alargar-se a
outras situações da obrigação de contratar, mesmo de base legal).
Artigo 417º nº1 CC: Coloca-se a questão de saber se o direito de preferência pode ser
exercido apenas em relação à coisa singular ou se terá de ser exercido em relação a todas
as coisas vendidas. Nos termos deste artigo, o direito pode ser exercido em relação à
coisa singular, pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído. Num caso de
alienação de prédios por parte de uma seguradora no concelho do Porto, a Câmara

51
Municipal do Porto tinha direito de preferência sobre alguns deles e pôde exercer a
preferência apenas em relação aos quais tem o direito de preferência. No entanto, se a
separação causar um prejuízo apreciável, pode o obrigado à preferência exigir que a
preferência abranja, também, as restantes coisas que pretende alienar.
Artigo 418º CC: Imagine-se que A pretende vender um terreno que é objeto de direito
de preferência de B – o terceiro interessado na aquisição do terreno pode, acessoriamente,
dizer que presta um serviço de consultoria profissional a A. Será que se mantém a
preferência? Se a prestação do terceiro fosse uma prestação essencial, não havia sequer
obrigação de comunicar ao titular do direito de preferência, porque o contrato era
substancialmente diferente. Mas aqui estamos a falar de prestações acessórias, que não
desvirtuam o perfil do contrato objeto de preferência e que o titular do direito de
preferência pode não estar em condições de oferecer. Ele não pode fazer aquilo que o
terceiro se ofereceu a fazer (por não ter conhecimentos técnicos naquela área), mas pode
pagar uma quantia, por isso a preferência não se extingue. Na hipótese de a prestação
oferecida não ser avaliável em dinheiro (ex: declamar poesia), a preferência extingue-se,
a não ser que se presuma que a venda seria efetuada mesmo sem a prestação estipulada
ou que a prestação foi convencionada precisamente para excluir a preferência (se o
terceiro não souber declamar, é possível presumir que se pretendia afastar a preferência,
por isso ela não se extingue).
Artigo 419º CC: Nos termos do nº1, se o direito for encabeçado por vários titulares,
só todos eles podem exercer o direito. Vejamos agora uma situação típica do nº2: há vários
arrendatários de um prédio, o dono do prédio pretende alienar o prédio no seu conjunto,
os arrendatários têm direito de preferência – os vários inquilinos querem preferir, então
haverá lugar a um leilão entre eles. Quem vencer o leilão tem direito a haver para si o
prédio que é vendido e reverte o excesso do resultado do leilão para o alienante. Quando
é que temos só um direito de preferência com vários titulares ou vários direitos de
preferência? Depende de poderem ou não exercer a sua posição individualmente.
Artigo 420º CC: O legislador estabeleceu o caráter intuitu personae da
preferência, seguindo uma regra diferente da que vimos no contrato-promessa. Neste, os
direitos e obrigações, em princípio, transmitem-se (só não se transmitem os direitos e
obrigações pessoais). No artigo 420º CC estabelece-se a regra contrária – considera-se
que o direito de preferência é pessoal, por isso, em princípio, não será transmissível. Isto
vale para as preferências convencionais, porque não há obrigação de estabelecer
preferência e ela é estabelecida, então, à partida, a razão de ser disso será pessoal (é com
aquela pessoa e não com o seu filho, por exemplo, que se pretende que haja pacto de
preferência). E aplica-se às preferências obrigacionais, porque nas preferências reais
pretende-se conservar a situação real em si, que é independente das pessoas.

Violação da preferência
Partindo do princípio de que a comunicação foi bem feita e que o titular do direito de
preferência exerce o seu direito de preferência, não havendo exigência de forma,
considera-se o contrato celebrado. Se houver exigência de forma, tem de se celebrar o
contrato prometido, o que pode não vir a acontecer. Pode também acontecer que o

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obrigado à preferência nem sequer comunique ao titular do direito de preferência e celebre
o contrato com terceiro. Estamos, assim, perante situações de violação da preferência.
Há autores que afirmam que do direito de preferência decorre apenas a obrigação de
não contratar com terceiro caso o titular do direito de preferência pretenda contratar, mas
a maioria da doutrina diz que é uma obrigação positiva – obriga o sujeito a contratar com
o titular da preferência, caso este o queira. A obrigação decorrente do exercício da
preferência não é a de não contratar com terceiro, é sim uma obrigação de conteúdo
positivo de contratar com quem exerce o direito de preferência.
O sujeito está vinculado a cumprir, mas pode não cumprir e alienar a um terceiro. Se
o pacto de preferência tiver eficácia meramente obrigacional, o direito real prevalece,
mas o obrigado à preferência tem de indemnizar, dado que é responsável pelos danos
provenientes do desrespeito do direito de preferência – artigo 798º CC. Para que seja
possível opor a preferência ao terceiro, é necessário que ela seja dotada de eficácia real.
Não é exigível que o terceiro tenha conhecimento do direito de preferência
convencional, por isso nada obsta a que ele se apresente para contratar. Além disso, não
terá de indemnizar o titular do direito de preferência se as suas expectativas ficarem
frustradas, pois a relatividade das obrigações assim o determina.
Artigo 421º CC: Nas preferências que não são meramente convencionais, ao titular
do direito de preferência abre-se a possibilidade uma ação de preferência. Essa
possibilidade também está aberta aos titulares de preferências convencionais, se a elas for
atribuída eficácia real. Através da ação de preferência, prevista no artigo 1410º CC, o
direito de preferência prevalecerá sobre o contrato já realizado.
A ação de preferência permite ao titular do direito de preferência substituir-se ao
adquirente no contrato realizado, com efeitos retroativos – tudo se passa como se o
contrato tivesse sido celebrado ab initio entre o obrigado à preferência e o preferente.
Não é obrigatório o recurso à ação de preferência, mas há um prazo para recorrer a
este meio de tutela (artigo 1410º CC), por uma questão de certeza e segurança jurídicas.

Aula do dia 19 de novembro


Analisemos, agora, o que acontece em caso de simulação.
Pode acontecer que o indivíduo não queira que o titular do direito de preferência
exerça a preferência (ex: vizinho, comproprietário), pelo que vai simular um preço muito
elevado, para afastar a preferência. Nestes casos, temos simulações que visam enganar
o titular do direito de preferência. Ex: preço real é de 10 mil euros, mas o preço
declarado é de 20 mil euros, para que o titular do direito de preferência não queira
comprar. A partir do momento em que o titular do direito de preferência se apercebe da
simulação, pode invocar a simulação, dizendo que quer preferir por 10 mil euros – o
titular vai exercer o seu direito pelo preço real, ele está protegido quanto a simulações
que se destinam a enganá-lo e afastá-lo da preferência. Ele até pode ter renunciado ao seu
direito de preferência quando pensava que o preço era 20 mil euros, mas verificando que
o preço real era 10 mil euros, pode invocar a simulação.

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Mas, às vezes, as simulações visam enganar o fisco e não o titular do direito de
preferência. Ex: o preço real é de 20 mil euros, mas o preço declarado é 10 mil euros,
para que o imposto incida apenas sobre 10 mil euros. Coloca-se a questão de saber por
que preço deve o titular poder preferir – preço real ou preço declarado? Vejamos o artigo
243º nº1 CC – a simulação não pode ser oposta pelos simuladores a terceiros de boa fé.
Ora, se o titular do direito de preferência vier exercer o seu direito por 10 mil euros, que
é o que está na escritura, não pode ser obrigado a preferir pelo preço real, porque isso
implicaria invocar a simulação perante terceiro de boa fé. Mas se o preço real foi de 20
mil euros, então como é que o titular pode aproveitar-se de simulação alheia para poder
preferir por preço inferior? A doutrina diverge e os tribunais também não têm uma
orientação clara. Diz-se que o titular do direito de preferência deve poder preferir,
mas apenas pelo preço real, porque com o artigo 243º nº1 CC não se pretende que o
terceiro à simulação enriqueça à custa dos simuladores. Portanto, invocar a
inoponibilidade da simulação nestes casos representaria abuso de direito. Este é o
pensamento mais consistente, que deve ser acolhido, segundo o professor.
Antunes Varela diz que o titular pode preferir pelo preço declarado, porque a
simulação deve ser profundamente reprimida. Apresenta, ainda, outro argumento, de
ordem prática: se não fosse assim, estariam abertas as portas a fáceis maquinações entre
o obrigado à preferência e o terceiro no sentido de obter um proveito que de outra forma
não obteriam, inventando simulações onde elas não existiam. Ex: não há qualquer
simulação, eles combinam dizer que o preço é 30 mil euros em vez dos 10 mil euros que
pretendem, por isso vão obrigar o titular do direito de preferência a especular, e depois
podem repartir os ganhos da venda, por exemplo (através de uma simulação fictícia,
obtêm um benefício à custa do titular do direito de preferência).

Natureza jurídica do direito de preferência


Exercida a preferência, o titular e o obrigado não podem recusar o cumprimento do
contrato. A obrigação de preferência tem conteúdo positivo, ou seja, caso o titular do
direito de preferência exerça esse direito, é necessário que o obrigado à preferência
contrate com ele. Não se trata de uma obrigação de conteúdo negativo, segundo a qual a
vinculação consistiria em não contratar com terceiros no caso de o titular do direito de
preferência exercer esse direito (é mais exigente do que isso).
Não são suficientes explicações que dizem que temos no direito de preferência um
direito potestativo – é verdade, porque a vontade do titular do direito de preferência
produz efeitos jurídicos, mas isso não é suficientemente explicador da preferência.
Também não é suficiente dizer que temos obrigação de contratar sujeita a dupla
condição (um querer contratar e o outro também querer contratar), visto que isso é a
essência de qualquer contrato.
Temos aqui uma realidade autónoma: uma obrigação própria, com teleologia
própria e de conteúdo positivo.

2.6. Pactos de opção

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Trata-se de uma figura que não está regulada no Código e que é próxima dos pactos
de preferência. Os pactos de opção são contratos mediante os quais uma das partes tem
o direito de, mediante uma declaração unilateral de vontade, fazer surgir um certo
contrato anteriormente combinado com o declaratário. Enquanto no pacto de
preferência o titular do direito de preferência fica investido na posição de preferido num
negócio que o obrigado à preferência venha a combinar com um terceiro, num pacto de
opção ele pode forçar o contrato com o obrigado ao pacto de opção – desde que se
verifique a situação, o titular do direito de opção pode fazer surgir um contrato com o
obrigado à opção. É um contrato optativo – o sujeito ainda não sabe se quer celebrar um
contrato, mas combina que, caso venha a querer, faz surgir esse contrato unilateralmente.
Uma das partes emite uma declaração negocial, tendo a outra o direito potestativo de
concluir ou não o contrato.
Estes pactos podem formar-se autonomamente ou podem ser inseridos como
cláusulas noutros contratos. Exemplo da inserção como cláusula noutro contrato:
normalmente, nos contratos de leasing há uma cláusula segundo a qual o locatário pode
optar pela compra do automóvel.
Outros aspetos:
 Os pactos de opção só são lícitos na medida em que os contratos a respeito dos
quais se estabelece a opção sejam lícitos.
 Se o contrato em que se exerce a opção é formal, a opção também terá de revestir
uma forma mínima compatível com a forma do contrato.
 Os pactos de opção só têm efeitos entre as partes, não vinculam terceiros.

Aula do dia 25 de novembro

2.7. Contrato a favor de terceiro


O contrato a favor de terceiro (artigo 443º e ss. CC) constitui uma exceção à
relatividade dos contratos. Temos aqui prestações a favor de um terceiro estranho
ao negócio, cria-se uma posição jurídica a favor de terceiro. Exemplo clássico de contrato
a favor de terceiro é o do seguro de vida: a seguradora, no caso de morte do segurado,
deverá fazer uma atribuição patrimonial aos beneficiários do seguro de vida.
Podemos ter um contrato-promessa a favor de terceiro, ex: A promete a B vender
um terreno a C. Podemos também ter um pacto de preferência a favor de terceiro, ex:
A compromete-se para com B a dar preferência a C.
Temos uma figura triangular, são três os sujeitos que têm posições jurídicas
afetadas pelo contrato a favor de terceiro, mas contraentes são apenas dois. O terceiro não
beneficia apenas reflexamente de um contrato alheio, ele é titular de um direito de
crédito que pode autonomamente exercer do promitente.
Para termos contrato a favor de terceiro, o terceiro tem de adquirir um direito
próprio, tem de se dar uma modificação na sua esfera jurídica.
Importa agora distinguir o contrato a favor de terceiro de algumas figuras afins:

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 Representação: Quando há representação, o representado é o verdadeiro
contraente, por isso não podemos dizer que se trata de um terceiro. O
representante não assume direitos para si mesmo, mas para o representado.
Assim, através da representação não se visa satisfazer o interesse de alguém
alheio ao contrato.
 Mandato sem representação: O mandatário vai agir no interesse e por conta do
mandante, sendo o mandatário a assumir os direitos e obrigações do contrato que
celebrar – o mandante tem direito a que o mandatário lhe transfira os direitos
decorrentes do contrato que este celebrou. Ex: B compra a A uma casa no
interesse e por conta de C – o direito de C de ver transferida a propriedade para a
sua esfera jurídica deriva do contrato de mandato que celebrou com B e não do
contrato de compra e venda entre A e B, pelo que não podemos considerar este
último contrato um contrato a favor de terceiro.
 Contrato com eficácia de proteção para terceiro: São contratos que não
atribuem direitos a terceiros, mas atribuem-lhes uma certa proteção, ex: contrato
de locação – confere proteção à família do locatário, que beneficia do contrato
celebrado, mas a família não tem direitos face ao locador, já que só o locatário
pode exigir do locador o cumprimento da prestação; assim, não se trata de
contrato a favor de terceiro.
Há três tipos de relações a considerar no contrato a favor de terceiro:

 Relação-base ou fonte é a que se estabelece entre o promitente e o promissário;


 Relação de atribuição é a que existe entre o promitente e o terceiro (o primeiro
faz uma atribuição ao segundo);
 Relação de valuta é a que nos dá a razão de ser do contrato a favor de terceiro
(aquilo que justifica a obtenção da promessa, por parte do promissário), dizendo
respeito apenas ao promissário e ao terceiro.

Traços principais do regime


Artigo 444º CC: Segundo o nº1, o terceiro adquire o direito à prestação
independentemente de aceitação. No exemplo do contrato de seguro de vida, os
beneficiários não precisam de declarar à seguradora que querem aceitar, podem dirigir-se
diretamente à companhia de seguros e exigir a prestação. Segundo o nº2, tanto o terceiro
como o promissário têm direito a exigir do promitente o cumprimento da prestação.
Artigo 445º CC: Pode estipular-se um contrato a favor de terceiro em que a prestação
não se destina a beneficiar uma pessoa determinada, mas sim um conjunto
indeterminado de pessoas. As entidades competentes para a tutela ou representação do
interesse em causa podem exigir do promitente o cumprimento da prestação (além do
promissário e seus herdeiros).
Artigo 447º CC: O terceiro pode rejeitar a promessa, o benefício não pode ser
atribuído à pessoa se ela não o quiser (autonomia privada). O terceiro deve declarar tal ao
promitente e este deve comunicar ao promissário.

56
Artigo 448º CC: Embora o terceiro beneficie da promessa independentemente de
aceitação, só a aceitação é que torna a promessa irrevogável (salvo estipulação em
contrário). A adesão faz-se mediante declaração ao promitente e ao promissário (artigo
447º nº3 CC).
Artigo 449º CC: Ex: poderá A recusar-se ao cumprimento perante C porque o
promissário não pagou os prémios de seguro? A resposta é sim. Se a relação-base tiver
alguma vicissitude, o terceiro sofrerá por causa disso – é justo que assim seja. A relação
de atribuição depende da relação-base. O que não pode o promitente fazer é opor os
meios de defesa da relação de valuta – é uma relação que não diz respeito ao promitente,
pois as razões pelas quais o promissário pretende que o promitente faça uma prestação a
terceiro só dizem respeito ao promissário e ao terceiro. Vimos no artigo 442º nº2 CC que
tanto o terceiro como o promissário podem exigir do promitente o cumprimento da
prestação, mas se eles não estiverem de acordo, em princípio prevalecerá a posição do
terceiro – se assim não fosse, permitir-se-ia ao promitente que opusesse meios de defesa
da relação de valuta, o que não pode acontecer (só pode opor meios de defesa da relação-
base), além de que a finalidade do contrato a favor de terceiro é a atribuição de um
benefício a um terceiro.

2.8. Contrato para pessoa a nomear


Artigo 452º CC: Contrato pelo qual um dos contraentes, no momento da
celebração, se reserva o direito de nomear alguém que adquira a posição emergente
desse mesmo contrato. No momento de celebração do contrato é indeterminada a
identidade do sujeito que virá adquirir os direitos e obrigações provenientes do contrato
com efeitos retroativos (tudo se passa como se o contrato tivesse sido celebrado com esse
terceiro ab initio).
Temos uma relação triangular – os contraentes e um terceiro:

 O promitens é o contraente que promete uma prestação a outrem.


 O stipulans é o contraente que reserva a possibilidade de nomear um terceiro.
 O amicus é aquele que pode ser nomeado.
Esta cláusula pode ser aposta a uma variedade de contratos (muito comum no
Direito Comercial). No entanto, há contratos em que a reserva de nomeação não é
possível, nos termos do artigo 452º nº2 CC (ex: casamento).
A cláusula de pessoa a nomear é, por si só, perfeitamente lícita – não o será quando
seja utilizada com a intenção de fuga ao fisco. Ex: banco quer comprar um imóvel –
havendo contrato para pessoa a nomear, o banco vai adquirir retroativamente a posição
do contraente que celebrou o contrato de compra e venda, tudo se passa como se ab initio
o contrato fosse celebrado pelo banco; desta forma, só se pagava uma vez o IMT, ao passo
que se houvesse mandato sem representação teria de existir um ato de transmissão do
mandatário para o banco.

Figuras próximas

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Representação: Havendo representação, os efeitos reproduzem-se diretamente na
esfera do representado, não há substituição da parte contratual, e sabe-se quem é o
terceiro. No contrato para pessoa a nomear, ele é celebrado em nome próprio, mas com
reserva de nomeação, por isso pode haver substituição da parte contratual (com efeitos
retroativos – artigo 455º nº1 CC) e não sabemos quem é o terceiro.
Contrato a favor de terceiro: Aqui, o terceiro nunca faz parte do contrato, embora
o contrato tenha efeitos na sua esfera, enquanto no contrato para pessoa a nomear o
terceiro vai integrar o contrato, uma vez aceite a nomeação. É perfeitamente possível
haver contrato a favor de terceiro com cláusula para pessoa a nomear.
Mandato sem representação: Aqui, os efeitos são entre os contraentes, depois tem
de haver transferência da propriedade para o mandante. É possível haver mandato sem
representação em que o mandatário se reserva o direito de nomear o mandante. Havendo
mandato sem representação, tem de se transferir a propriedade, mas havendo cláusula de
pessoa a nomear é bem mais simples – o mandante intervém diretamente no negócio, não
há necessidade da posterior transferência de propriedade.
Gestão de negócios: Consiste em alguém espontaneamente gerir negócio alheio, ex:
pessoa que compra ração para alimentar o cão do vizinho, já que o vizinho está
hospitalizado. Alguém atua no interesse e por conta de outrem sem estar autorizado.

Regime do contrato para pessoa a nomear


Artigo 453º CC: A nomeação deve ser feita por escrito, por razões de segurança
jurídica, e dentro do prazo estipulado; se este não existir, aplicar-se-á o prazo supletivo
de cinco dias. O prazo supletivo é bastante curto, já que se pretende a proteção da
contraparte face à incerteza gerada pela cláusula de pessoa a nomear. A declaração de
nomeação tem de ser acompanhada da ratificação do negócio pela pessoa nomeada ou
de uma procuração com poderes para o efeito anterior à celebração do negócio, sob pena
de ineficácia. Para que o terceiro fique nomeado é necessário que aceite a nomeação –
legitimação que opera ou através de procuração prévia ou através de ratificação. A
declaração de nomeação só por si não surte efeitos.
Artigo 454º CC: A ratificação tem de ser feita por escrito ou, se o contrato foi
celebrado com uma forma especial, tem a ratificação de obedecer à forma pela qual o
contrato foi celebrado.
Artigo 455º CC: Sendo a nomeação feita nos termos legais, o nomeado adquire
retroativamente todos os direitos e obrigações emergentes do contrato, tudo se
passando como se o nomeado fosse o contraente originário (nº1). Se existirem
irregularidades na nomeação, o contrato produzirá efeitos em relação ao contraente
originário, ou seja, consolida-se entre os contraentes originários, a não ser que haja
acordo em contrário (nº2).
Artigo 456º CC: Se o contrato for sujeito a registo, a cláusula de pessoa a nomear
também deve ser registada. Quando se der a nomeação, há lugar a uma inscrição
subsequente no registo. É importante que a cláusula seja registada, pois assim a nomeação
de terceiro prevalece sobre qualquer direito constituído sobre a coisa entre a celebração

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do contrato e a nomeação. Não sendo a cláusula registada, parece que devem prevalecer
os direitos adquiridos por terceiro entre o momento da celebração do contrato e o
momento da nomeação.

Teorias sobre a natureza jurídica do contrato para pessoa a nomear


Alguns autores afirmam que o que temos no contrato para pessoa a nomear é a
representação de uma pessoa anónima, mas não podemos aceitar esta teoria, dado que
aquele que contrai o contrato age em nome próprio.
Há, também, teorias que defendem que se trata de uma modalidade especial de
mandato sem representação ou de contrato a favor de terceiro, mas não é isso que se
verifica, como mostram as diferenças que apontámos anteriormente entre estas figuras.
Outros autores, como Antunes Varela e Ribeiro de Faria (seguindo a doutrina
dominante) dizem que temos um contrato sujeito a dupla condição: nomeação e
aceitação. Trata-se de uma condição resolutiva relativamente ao contraente originário
(aquele que nomeia), pois a partir do momento em que nomeia alguém a sua intervenção
termina; e condição suspensiva relativamente ao contraente nomeado, que só fica
vinculado a partir do ato de aceitação.

Aula do dia 26 de novembro

2.9. Relações contratuais de facto


Há relações contratuais de direito e, talvez, relações contratuais de facto, sendo estas
últimas as que consubstanciam contratos que não preenchem os requisitos dos contratos
previstos na lei. Estas relações trazem consigo o perigo de eliminação da
autodeterminação da pessoa, visto que admitem a celebração de um contrato através de
comportamentos fácticos. Para haver contrato, tem de haver duas ou mais declarações de
vontade (vontade de ação, de declaração e de produção de efeitos jurídicos), mas
sobretudo no domínio dos comportamentos sociais típicos (entrar no autocarro,
estacionar num parque pago, etc) falta, muitas vezes, a consciência de que se está a
celebrar um contrato – assim sendo, não se preenchem os requisitos para a formação de
um contrato. Admitir a existência de relações contratuais de facto equivale a admitir que
é possível que haja contratos sem concorrência da vontade das pessoas, o que é bastante
perigoso, tendo em conta que somos seres livres. Posto isto, pergunta-se: além de
contratos de direito, devemos admitir contratos de facto?
Caso do parque de estacionamento de Hamburgo: Um senhor entra num parque
de estacionamento e diz que não quer celebrar contrato, argumentando que aquele parque
é ilegal, dado que o terreno pertence à Câmara de Hamburgo e o dono do parque não tem
direito de fazer aquela exploração. O senhor foi estacionar o seu automóvel num lugar do
parque. À saída, foi-lhe exigido o pagamento do bilhete, mas ele não quis pagar. Ele tinha
ou não de pagar o bilhete? Se sim, a título de quê? De um contrato? Esta questão chegou
ao Supremo Tribunal Federal alemão. À partida, parece que é preciso que a pessoa pague
o bilhete, mas a título de um contrato? Para haver contrato tem de haver vontade, e aqui
não há vontade. Há quem diga que o fundamento dos contratos é a vontade, por norma,

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mas que há contratos em que não é necessária a vontade – conceito funcional de contrato,
que resolveria este problema, pois determina que temos aqui um contrato, embora não
haja vontade, e por isso o preço é devido, ao abrigo de um contrato de facto. Mas é
perigoso adotar esta conceção, porque somos seres livres.
Perante estes problemas, Haupt apresentou a tese das relações contratuais de facto,
segundo a qual é possível haver contratos decorrentes não de declarações de vontade, mas
sim de comportamentos de facto. Segundo este autor, temos vários casos de relações
jurídicas fácticas de tipo contratual:
 Culpa in contrahendo: Quando as pessoas, antes de celebrarem o contrato, se
põem de acordo em encetar comportamentos que levam a contratos, temos um
contrato de facto.
 Obrigações duradouras inválidas: Em certas prestações duradouras, como a
prestação de trabalho, a destruição retroativa dos efeitos do negócio levanta
problemas, uma vez que o trabalho já prestado não pode ser restituído e o
enriquecimento gerado por esse trabalho pode já ter desaparecido. Pode acontecer
que tudo esteja a funcionar bem, até que se averigua a existência de um vício de
forma, que supostamente conduz à nulidade, mas é muito difícil aplicar
retroativamente a obrigação de restituição do artigo 289º CC, pelo que seria aqui
de admitir um contrato de trabalho fáctico.
 Comportamentos sociais típicos: Estamos no domínio da contratação de massas,
havendo comportamentos mecanizados das pessoas, como entrar no metro ou no
autocarro. Não há, nestes casos, uma consciência atual, que é necessária para
haver contrato. Pode não só não haver consciência atual, como até ignorância. O
indivíduo adota um comportamento social típico que é um comportamento que
leva a que se celebre um contrato, mas ele não tem consciência disso. Assim, mais
uma vez, estamos perante relações contratuais fácticas.
O que dizer destas considerações?

 Quanto à culpa in contrahendo: Não é preciso admitir uma relação contratual de


facto para admitir deveres nos relacionamentos humanos. Os deveres de boa-fé
têm fonte legal e não contratual. Há deveres de conduta que emergem de contratos
de cortesia, e nem por isso entendemos que sejam contratos. Ex: alpinistas têm de
se ajudar sem que haja um contrato, tal como o amigo que costuma dar boleia ao
outro deve avisar no caso de em certo dia não o poder fazer – isso deriva do direito
objetivo. A boa fé decorre do direito objetivo, decorre de uma valoração objetiva
do ordenamento, que se aplica a determinadas realidades, independentemente de
elas consubstanciarem ou não contratos.
 Quanto às obrigações duradouras inválidas: Apesar de o artigo 289º CC
consagrar o efeito retroativo da declaração de nulidade, o que é certo é que esse
preceito se aplica a uma enorme variedade de situações, pelo que talvez seja de
admitir a sua adaptação em função da obrigação em causa. No caso do contrato
de trabalho inválido, essa adaptação poderia consistir, nomeadamente, em
eliminar os efeitos retroativos da declaração de nulidade. Fazemos uma restrição
ao âmbito de aplicação do artigo 289º CC, mas isso não está previsto na lei, sendo
preciso justificar a produção de efeitos de um contrato duradouro nulo – parece

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ser de admitir que o problema seria resolvido pela tutela da confiança. Há uma
situação de confiança que tem de ser protegida. Através da proteção da confiança
conseguimos estabelecer limites à obrigação de restituição.
 Quanto aos comportamentos sociais típicos: O artigo 234º CC e o artigo 217º
CC (declaração negocial tácita) dão cobertura legal à ideia de que, nalguns casos,
se prescinde da declaração da aceitação. Nos comportamentos rotineiros não há
uma consciência atual, mas parece de admitir que isso não seja preciso. Prescinde-
se de uma declaração de aceitação, mas nunca se prescinde da vontade, que é
revelada pelo comportamento adotado, pela experiência social.
O caso do parque de estacionamento de Hamburgo é diferente, porque a pessoa disse
desde o início que não queria celebrar contrato, ou seja, não se trata da falta de consciência
atual da celebração de um contrato. Será que por causa disto devemos abrir uma nova
categoria contratual? Uma das vias é a responsabilidade civil, porque há violação de
propriedade alheia. Além disso, há lucro cessante, porque o dono do parque não ganhou
dinheiro com aquela pessoa, e essa pessoa, inclusive, impediu o lucro que se obteria caso
o lugar pudesse ser ocupado por outrem. Contudo, havia muitos lugares vazios, pelo que
não podemos dizer que há lucro cessante. Entra aqui outro instituto: enriquecimento sem
causa – o sujeito está a enriquecer à custa do dono do parque; ele está a usufruir de
utilidades que pertencem à esfera jurídica de outrem. Não há um sinalagma, não há
contrato, mas o senhor tem de pagar na mesma, porque não pode enriquecer
injustificadamente. O mesmo acontece quando um estudante vai ao bar, come um bolo e
diz que não quer pagar, porque é muito caro – não pode fazer isso, porque usufruiu de
uma utilidade que pertence à esfera jurídica de outrem.
Posto isto, podemos concluir que não há relações contratuais de facto.

Aula do dia 2 de dezembro

3. Negócios jurídicos unilaterais


Trata-se de uma fonte das obrigações regulada entre os artigos 457º e 463º CC. Há
uma manifestação de vontade ou mais do que uma manifestação de vontade no mesmo
sentido – alguém se obriga perante outra pessoa à realização de uma prestação,
unilateralmente. Temos o problema de saber em que medida são suscetíveis de constituir
fonte autónoma de obrigações, porque as obrigações são relações jurídicas.
Artigo 457º CC: Norma que aponta para a restritividade dos negócios jurídicos
unilaterais suscetíveis de dar lugar a obrigações. Ao contrário do que verificamos nos
contratos, no campo dos negócios unilaterais há uma grande restritividade. Temos aqui o
princípio da tipicidade ou princípio do contrato (só o contrato é que é fonte genérica
de obrigações). No negócio jurídico unilateral, é a lei que determina quando é que a
promessa dá lugar a um vínculo obrigacional. Não basta o indivíduo querer vincular-se
para ficar vinculado, isto é, não basta que um explicador prometa a um estudante dar-lhe
explicações para ficar vinculado, é preciso que o estudante aceite, pois não podemos
obrigar ninguém a tornar-se credor sem que o queira.

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Uma das razões para a inadmissibilidade de vinculação através de uma promessa
unilateral é a de que quando alguém se vincula unilateralmente sem receber uma
contraprestação, há uma dúvida razoável se isso corresponde uma verdadeira vontade de
vinculação, de subordinação a efeitos jurídicos. Se o beneficiário não tem de fazer
nenhum sacrifício, há uma gratuitidade que está na fronteira do não direito. Tem
dignidade para a justiciabilidade uma promessa sem correspetivo? Exemplo: “dou-te um
carro quando tirares a carta de condução” – é esta promessa justiciável? No direito anglo-
saxónico diz-se que só há promessa vinculativa se houver contraprestação, é ela que dá
solidez à promessa, deve haver um sacrifico da contraparte. É preciso separar as
promessas do mundo social e das relações de cortesia das promessas do mundo do Direito,
que se relacionam com a justiciabilidade.
A outra razão consiste em não se justificar que alguém fique vinculado através de
uma promessa unilateral se ninguém acreditar nela.
Não basta a promessa, não é razoável manter alguém obrigado com base numa
simples declaração de vontade unilateral, nem basta que essa promessa crie expectativas.
As expectativas devem ser razoáveis e consistentes, e devem manifestar-se por meio da
aceitação ou de uma contraprestação. Para além disso, a ordem jurídica exige muitas
vezes uma forma especial para essas declarações – a forma escrita. O Direito procura,
nestes casos, proteger o indivíduo de si mesmo.
Artigo 458º CC: Na promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida temos
alguém que promete pagar uma dívida ou que reconhece que deve algo. Esta promessa
não é a causa da dívida, tem a ver com uma dívida já existente. São falsos negócios
unilaterais como fontes autónomas de obrigações, mas não deixam de ser negócios
unilaterais. Esta promessa não cria a obrigação, mas institui uma presunção de causa que
sustenta aquela dívida, porque o nosso sistema não é abstrato – não se pode impor esse
reconhecimento a alguém sem uma causa válida. A promessa ou reconhecimento tem de
constar de documento escrito (é uma exigência de forma inspirada na prova).
Artigos 459º a 461º CC: Na promessa pública temos uma verdadeira fonte de
obrigações. Exemplo disto é alguém prometer dar uma certa quantia em dinheiro a quem
descobrir o seu cão, que desapareceu. O anúncio mencionado no nº1 do artigo 459º pode
ser feito através dos meios de comunicação social ou da afixação de cartazes, por
exemplo. A promessa mantém-se pelo prazo de validade indicado pelo promitente; se não
for determinado prazo de validade, a promessa mantém-se até ser revogada nos termos
do artigo 461º CC. A revogação, para ser eficaz, tem de obedecer à forma prevista no
artigo 461º nº2 CC. Na medida em que há publicidade, geram-se legítimas expectativas
em relação ao cumprimento da prestação.
Artigo 462º CC: Quando várias pessoas se encontrem na situação prevista no anúncio,
e não havendo estipulação em contrário, a prestação é dividida entre todas, atendendo-se
à parte de cada uma no resultado, ex: várias pessoas colaboraram para encontrar o cão.
Artigo 463º CC: Aborda os concursos públicos, de que são exemplo os concursos de
televisão. O nº1 tem a ver com quem pode ser admitido ou excluído: determina que a
oferta de prestação como prémio de um concurso só é válida quando se fixa um prazo
para a apresentação dos interessados. O nº2 tem a ver com saber quem escolhe o

62
premiado: preferencialmente, serão as pessoas designadas pelo promitente (júri); na falta
de determinação, será o próprio promitente.

4. Gestão de negócios
Iniciamos aqui o estudo das fontes não negociais de obrigações. A figura da gestão
de negócios está regulada entre os artigos 464º e 472º do Código Civil.
Artigo 464º CC: Tendo em conta a noção que nos é dada por este artigo, podemos
imaginar um exemplo: pessoa que, sabendo que o seu vizinho está internado, cuida do
seu cão, sem para tal estar autorizado, ou que repara o seu telhado que em virtude do mau
tempo ficou danificado. Não é um contrato, mas podemos falar num quase-contrato, já
que como é no interesse e por conta de outra pessoa, à partida essa pessoa aceitaria.

Modalidades
Gestão simples e gestão conexa, consoante os interesses das pessoas: a gestão
simples visa apenas o interesse alheio, enquanto na gestão conexa se prossegue
simultaneamente um interesse próprio e um interesse alheio.
Gestão própria e imprópria: A gestão é própria quando o gestor atua no interesse
de outrem, é imprópria se o sujeito atua exclusivamente para proteger um interesse seu.
Sendo a gestão imprópria, não a podemos considerar uma verdadeira gestão de negócios.
Gestão comum e gestão de emergência: A gestão de emergência pode resultar, por
exemplo, do estado de necessidade, ex: arrombar a porta da casa do vizinho para ir buscar
o extintor e apagar o fogo nessa casa.
Gestão de lucro capiendo e gestão de dano evitandum: A primeira modalidade
atribui a outrem um benefício; a segunda modalidade é aquela em que se procura evitar
um dano ou prejuízo.
Gestão representativa e gestão não representativa: Se o gestor atua em nome
próprio, será uma gestão não representativa. Se o gestor atua em nome alheio, será uma
gestão representativa. Se um indivíduo vende a fruta do vizinho para ela não apodrecer,
essa venda pode ser feita em nome próprio ou em nome do vizinho, havendo ineficácia
em relação ao representado enquanto não houver ratificação.
Gestão legítima e gestão ilegítima, consoante estejam ou não verificados no início
da gestão os requisitos da gestão de negócios: se o sujeito assume assuntos alheios pelos
seus próprios interesses, a gestão é ilegítima, portanto os efeitos têm de ser outros, não se
podem dar ao gestor os mesmos direitos que na gestão legítima.
Gestão regular e não regular, consoante o gestor observe ou não os deveres que lhe
cabiam na execução da gestão. Pode acontecer que a gestão no momento inicial seja
legítima e depois se torne irregular – ninguém obriga a iniciar a gestão, mas a partir do
momento que se iniciou, tem de se terminar (o gestor está vinculado a terminar, pelos
deveres de conduta).

63
Gestão conforme com a vontade real do dominus, gestão conforme com a
vontade presumível do dominus e gestão desconforme com a vontade do dominus
(real ou presumível): O sujeito, por vezes, sabe qual é a vontade do dono do negócio;
outras vezes pode não saber qual a vontade, mas presume que seria aquela. Não confundir
a vontade e o interesse, que muitas vezes não coincidem.
Gestão aprovada e gestão não aprovada: Na gestão aprovada, o dono do negócio
manifesta a sua concordância com a conduta do gestor; na gestão não aprovada, manifesta
a sua discordância com a conduta do gestor. Não confundir com a modalidade seguinte.
Gestão ratificada e gestão não ratificada: Na gestão ratificada o dominus chama a
si os efeitos do negócio, mesmo que a conduta do gestor não mereça a sua concordância.
A ratificação tem a ver com a apropriação pelo dominus dos efeitos do negócio. O
dominus pode não concordar, mas querer na mesma aproveitar o negócio.

Aula do dia 3 de dezembro


Figuras próximas
Mandato ou prestação de serviços: Apesar de uma proximidade, estas figuras
traduzem contratos, o que não acontece na gestão de negócios.
Enriquecimento sem causa: Destina-se a corrigir deslocações patrimoniais
independentemente do modo como essas deslocações patrimoniais operam. Na gestão de
negócios temos um regime de cooperação não contratual entre pessoas, o facto de se
reembolsar as despesas do gestor tem que ver com compensar o gestor pela sua conduta.
O enriquecimento sem causa é uma figura subsidiária.
Estado de necessidade: Trata-se de provocar dano a outrem para evitar um dano
maior, há uma desproporção grande, que não é exigida na gestão de negócios.

Funções
 Dar um título jurídico de legitimação à cooperação espontânea das pessoas não
contratualizada, à solidariedade humana.
 Função desformalizadora e desburocratizadora, no sentido em que se facilita o
tráfego jurídico, contornam-se formalidades e burocracias.
 Prevenção de danos.
 Função distributiva, no sentido em que muitos ou todos podem ganhar com a
intervenção dos gestores (é uma matéria de interesse coletivo).

Regime
Temos uma relação gestória que se estabelece entre o gestor e o dominus. Não
obstante, tratando-se de atos com eficácia em relação a terceiros, temos de analisar a
relação do gestor com terceiros e do dominus com terceiros. Nem sempre a gestão de
negócios envolve terceiros, mas pode acontecer.

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Artigo 465º CC: Encontramos neste artigo os deveres do gestor. Relativamente à
alínea a), importa referir que estamos a falar da atitude inicial de decidir desencadear uma
gestão e da forma como a gestão de negócios é exercida. Ninguém é obrigado a ser gestor
de negócios, mas a partir do momento em que alguém assume esse papel tem de o levar
a cabo corretamente – há um dever de proteção dos interesses do dominus. Além disso, o
gestor tem de se ater ao interesse e à vontade real ou presumível do dono do negócio; essa
vontade só é relevante se estiver de acordo com a lei, com a ordem pública e com os bons
costumes. Quando há conflito entre interesse e vontade, o gestor não se pode sobrepor ao
dominus e impor-lhe uma conduta que ele por si não teria realizado.
Artigo 466º CC: É um dever de comportamento que está aqui em causa. Há uma
responsabilidade que advém de deveres de proteção, que é diferente da
responsabilidade delitual dos artigos 483º e ss. CC (na primeira, presume-se a culpa do
devedor; na segunda, cabe ao lesado provar a culpa). É preciso saber se a culpa é definida
em abstrato (olhando para as capacidades do homem médio) ou se é uma culpa subjetiva
(de acordo com a diligência de que o sujeito é capaz). Se seguirmos um caminho mais
objetivista, da culpa em abstrato, o dominus terá direito ao ressarcimento dos danos. Por
outro lado, se dissermos que está em causa um fenómeno de cooperação humana em que
temos de desculpar algum descuido do gestor, tendo em conta que fez o melhor que sabia
e tem boas intenções, o dominus não terá direito a esse ressarcimento. Menezes Cordeiro
segue um caminho mais objetivista de proteção do interesse do dominus, mas o professor
entende que é uma culpa aferida em relação às aptidões individuais. A posição adotada
pelo professor (a da culpa subjetiva) acaba por ser mais prejudicial para o dono do
negócio, mas a verdade é que ele tinha o ónus de atuar tendo em vista os seus interesses
e não o fez, o que permitiu que outra pessoa atuasse em seu lugar.
Artigo 467º CC: Quando há pluralidade de gestores, a lei manda aplicar a
solidariedade. Todos respondem por todos, pelo que há a vantagem de todos se
controlarem e vigiarem uns aos outros para que tudo corra bem na gestão – fortalece-se a
posição do dono do negócio. Aplicando-se o regime da solidariedade, qualquer um dos
gestores é responsável pelas obrigações dos demais, o que significa que o dominus pode
exigir a totalidade das obrigações de qualquer um deles.

65
Aula do dia 9 de dezembro
Na aula passada, analisamos os deveres do gestor. Passemos agora a analisar a
posição do dono do negócio.
Artigo 468º CC: Para que exista o dever de reembolsar e indemnizar o gestor, é
preciso que a gestão tenha sido feita em conformidade com o interesse e com a vontade
do dominus (gestão regular). Se houver dissociação, o gestor deve abster-se de atuar. Se
a gestão não tiver sido exercida em conformidade com o interesse e vontade do dominus,
este, nos termos do nº2, responde apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa
– o gestor não tem direito a uma indemnização dos prejuízos e reembolso das despesas,
mas na medida em que tenha atribuído benefício a outrem, há obrigação de restituir nos
termos do enriquecimento sem causa. A gestão de negócios favorece o gestor, no sentido
em que é mais favorável que a responsabilidade, e quando temos gestão irregular
funcionam as regras do enriquecimento sem causa. Se a gestão for regular, não há
nenhuma limitação dos direitos do gestor face ao dominus.
Artigo 469º CC: Se o dominus aprova uma gestão que era irregular, a gestão passa a
ser regular. O facto de o gestor aprovar significa que reconhece os direitos de reembolso
e indemnização do gestor, assim como significa que o dominus renuncia ao direito a
uma indemnização que possa ter contra o gestor, no caso de ter havido um descuido
deste último.
Artigo 470º CC: Em princípio o gestor não tem direito a uma remuneração, porque
há um certo espírito de liberalidade, mas se o gestor for um profissional da área, já terá
direito a indemnização. Ex: se um carro cai numa ravina e uma empresa de reboques o
tira de lá sem para isso estar autorizada, esta terá direito a uma remuneração, além do
reembolso das despesas e indemnização dos prejuízos.

Segue-se a análise da posição dos terceiros afetados pela gestão. Estamos a tratar
gestões jurídicas e não gestões materiais. As gestões materiais não afetam terceiros.
Diferente é o caso em que o gestor celebra negócios com terceiros. Para se perceber a
posição do terceiro, é preciso distinguir a gestão representativa da não representativa.
Na gestão representativa, o gestor atua em representação do dominus, mas como é
uma intervenção não autorizada, não há transmissão de poderes, pelo que os negócios que
o gestor faça em nome do dominus não vinculam o dominus enquanto ele não ratificar –
artigo 268º CC. Havendo representação, o terceiro sabe que estava a contratar com o dono
do negócio e não com o gestor, que é só o representante.
Se o dominus não ratificar, o terceiro não pode exigir do dominus o pagamento do
preço. E pode exigir do gestor o pagamento do preço? Parece que não – não é justo que o
gestor suporte o pagamento do preço quando não era a sua vontade ser parte daquele
negócio. E se o gestor escondesse o facto de ser representante sem poderes? Aí, será
responsável por culpa in contrahendo (artigo 227º CC) por criação de uma confiança
indevida, mas não é responsável pelas vinculações emergentes desse contrato.
Exemplo: O gestor, em representação do dominus, contrata com um terceiro para que
este repare o telhado do dominus, sendo que o custo da empreitada é de 2000 euros. O

66
terceiro compra os materiais de que necessita, que custaram 1000 euros. O dominus não
ratificou o negócio, por isso não é responsável pelo pagamento do preço da obra. O gestor
celebrou o contrato em nome do dominus, por isso também não pode ser responsável pelo
pagamento do preço da obra. Se o gestor disse abertamente que está em representação do
vizinho, mas que não tem poderes, o terceiro sabe os riscos que corre, então não merece
nenhuma tutela particular. Se o gestor não disse que não tinha poderes, é responsável por
ter induzido confiança ao terceiro, mas vai indemnizar em virtude da tutela da confiança.
O terceiro só pode exigir do gestor os 1000 euros que gastou com os materiais que
comprou, não pode exigir dele os 2000 euros, porque ele não estava vinculado ao contrato.
Se o dominus ratifica, passa o dominus a assumir os efeitos do negócio celebrado pelo
gestor. Não se deve confundir a ratificação com a aprovação. A ratificação é o ato
mediante o qual o representado chama a si os efeitos do negócio. A aprovação tem outra
finalidade, visa o reconhecimento ao gestor dos direitos que ele tem em virtude de uma
gestão regular, destina-se apenas a produzir efeitos na relação gestória estrita, entre gestor
e dominus. Pode haver ratificação sem aprovação, assim como o inverso.
Havendo gestão não representativa, o gestor tem o dever de transferir para o
dominus todos os proveitos decorrentes do negócio celebrado com terceiro. Em relação a
obrigações, é o gestor que as suporta, mas o dominus tem de o indemnizar. O terceiro não
pode exigir nada do dominus, porque foi o gestor em nome próprio que assumiu a
obrigação. De acordo com o artigo 471º CC, imaginamos que há nesta situação um
mandato sem representação. O gestor atua em nome próprio, é equiparado ao mandatário.
Artigo 472º CC: Trata-se aqui a gestão de negócio alheio julgado próprio. Nestes
casos, só é aplicável o regime da gestão de negócios se houver aprovação. Se o dono do
negócio não aprovar, são aplicáveis as regras do enriquecimento sem causa e da
responsabilidade civil.
Também se pode dar uma gestão de negócio alheio julgado alheio, o que o CC não
prevê diretamente. É o caso de alguém que extraiu areia de um prédio confinante com o
rio, para a vender, sendo que o sujeito sabia que a areia não era sua, mas sim do
proprietário do prédio – interveio na esfera jurídica alheia para obter um proveito próprio.
O sujeito que era dono do prédio não era comerciante de areia, pelo que não tinha interesse
na areia, e além disso o prédio ficou nas mesmas condições que tinha antes da extração
da areia (porque o rio, quando enchia, repunha a areia), mas o que é certo é que neste
espaço de tempo houve alguém que enriqueceu. Não podemos encontrar um dano
juridicamente relevante, mas temos um enriquecimento. O sujeito tem de restituir aquilo
que lucrou à custa da intervenção na esfera jurídica alheia destinada a retirar utilidades
para a própria esfera. Isto remete-nos para a matéria do enriquecimento sem causa.

Aula do dia 10 de dezembro

5. Enriquecimento sem causa


No enriquecimento sem causa não está em questão remover um dano, como acontece
na responsabilidade civil (daí haver uma indemnização que visa reconstituir a situação
que existiria se não tivesse havido dano), mas sim remover um lucro, remover

67
enriquecimentos injustificados. Este instituto encontra-se previsto nos artigos 473º e ss.
CC, que são o corolário de uma evolução histórica que se iniciou no direito romano, em
que o enriquecimento sem causa tinha caraterísticas mais rígidas do que tem hoje.
Temos no nº1 do artigo 473º CC uma cláusula geral e no nº2 uma enumeração
exemplificativa. Temos uma grande amplitude de previsão do enriquecimento sem causa
no nosso ordenamento jurídico. No direito romano, só se houvesse uma condictio é que
era possível exigir a restituição do enriquecimento sem causa. Estas condições do direito
romano pertenciam a um sistema de tipos – havia um conjunto de hipóteses em que havia
lugar à restituição. Com o tempo, construiu-se uma teoria geral do enriquecimento sem
causa, e hoje temos uma cláusula geral (o legislador não distingue entre as diversas
condictio). Temos, hoje, uma figura com muita amplitude.
No fundo, este instituto visa preservar os patrimónios das pessoas em harmonia
com o que o direito estabelece, evitando que alguém possa enriquecer à custa de outra.
No enriquecimento sem causa há uma deslocação patrimonial que tem de ser
corrigida, a consequência é a restituição. Quando se fala em deslocação patrimonial,
falamos num termo que deve ser entendido muito genericamente: existe sempre que
alguém tem uma vantagem que não lhe pertence, que contraria a ordenação substancial
dos bens aprovada pelo Direito, à custa de outrem. Existem duas modalidades de
deslocação patrimonial: transferência (vantagem patrimonial que se movimenta de um
património para outro) e intervenção numa esfera jurídica alheia, retirando-se
utilidades que lhe pertencem.
Existem três grandes grupos de situações de enriquecimento sem causa:

 Enriquecimento por intervenção


o Temos alguém que intervém na esfera jurídica alheia para dela retirar
utilidades e, muitas vezes, não provocando danos.
o Quando, por exemplo, através da acessão, alguém de boa fé constrói um
edifício num terreno alheio pensando que era seu – se o valor do edifício for
maior do que o valor do solo, ele pode fazer seu o terreno, restituindo o valor
ao anterior dono do terreno.
o Ou o caso de alguém que monta cavalo alheio e ganha a corrida – temos um
prémio conseguido com coisa alheia, que gera uma obrigação de restituir.

 Enriquecimento por prestação


o Alguém faz uma prestação que não tem causa, por isso deve poder reaver o
que prestou, ex: A paga a B uma divida inexistente.

 Enriquecimento por poupança de despesa


o Às vezes o enriquecimento dá-se pela extinção de um direito alheio,
poupando-se despesas. Ex: alguém que consome, de boa fé, os charutos de
outrem extingue o direito de outrem e poupa despesa à custa dessa pessoa.
Há um prejuízo para outrem, mas para ser indemnizável tem de haver culpa.
o Pode haver enriquecimento através da extinção de uma obrigação. Ex:
quando alguém paga uma dívida alheia – A deve a B 50 euros, mas C entrega

68
a B os 50 euros, então A fica enriquecido, porque acabou por não sofrer no
seu património um sacrifício correspondente ao pagamento da dívida.

É de realçar que, para efeitos de enriquecimento sem causa, o dano pode ser
entendido como mero desvio das utilidades que cabiam ao sujeito. Ex: alguém que
vive no Porto tem um carro parado na casa de férias no Algarve e um vizinho usa o carro
– não há dano, todavia há utilidades que são desviadas da esfera jurídica do proprietário.
Só através da teoria do conteúdo da destinação é que conseguimos enquadrar
devidamente estas hipóteses. O dano patrimonial tem a ver com a teoria da diferença
(atribuída a Mommsen), que diz que para efeitos de indemnização temos de comparar a
situação atual do lesado com a situação hipotética em que ele estaria se não tivesse havido
dano. Quando não há diferença, como nos casos de enriquecimento sem causa, o dano
não pode ser entendido como dano patrimonial, mas sim como dano real, apurado ao
abrigo da teoria do conteúdo da destinação.
Caso do padeiro alemão: Um padeiro tinha um ajudante que fazia fornadas de pães
à parte que vendia autonomamente, fora da padaria. O dono da padaria nunca notou,
porque vendeu sempre o seu pão, já que o ajudante fazia o mesmo número de pães, só
que com menos farinha, de forma a sobrar para fazer fornadas à parte. Não podemos dizer
que há responsabilidade civil, porque, afinal de contas, não havia lucro cessante. Mas há
um enriquecimento deste ajudante à custa do seu patrão, não obstante o patrão não poder
invocar prejuízo. Há aqui uma intervenção numa esfera jurídica alheia – o ajudante do
padeiro aproveita-se de utilidades de uma esfera jurídica que não lhe pertence. Assim, é
necessário que se restitua o enriquecimento.

Artigo 473º nº1 CC: Contém uma cláusula geral. O CC regula sobretudo o
enriquecimento por prestação, mas como existe esta cláusula geral incluem-se aqui as
outras modalidades que analisámos.
Artigo 473º nº2 CC: Contempla o enriquecimento por prestação. Há a obrigação de
restituir o que for recebido:

 para saldar uma dívida inexistente (ex: A dá 50 euros a B pensando que tinha
para com ele uma dívida, que na verdade não existia);
 em virtude de uma causa que deixou de existir (ex: alguém paga adiantadamente
um serviço que vai contratar a outrem e o contrato não vem a ser celebrado);
 em vista de um efeito que não se verificou (ex: A dá a B uma quantia para ele
sinalizar um contrato de compra e venda que acaba por não se celebrar).

Artigo 479º CC: Aborda a obrigação de restituir o enriquecimento sem causa. Só


há que restituir até ao valor do enriquecimento. Além disso, temos de considerar um
segundo limite, que é o valor do empobrecimento a cargo do sujeito. Estes valores não
têm porque coincidir. Vejamos: A entrega a B 50 euros para saldar uma dívida inexistente,
mas B vai jantar fora e gasta 20 euros. Se B só tem 30 euros, só é obrigado a restituir 30
euros. Outro exemplo: alguém rouba a A 5 euros, joga no totoloto e tem um prémio –

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como o enriquecimento sem causa não se destina a reparar prejuízos, o enriquecido só
tem de restituir aquilo que roubou, porque o resto foi uma alea que foi ele que constituiu.
Alguns autores dizem que quando há má fé tem de se restituir a totalidade. Outros
autores dizem que se trata de saber em que medida é que há um enriquecimento à custa
de outrem, independentemente de boa ou má fé. Todos concordam que havendo boa fé,
aquilo que é motivo da sua perícia não tem de ser restituído. No exemplo do padeiro,
Antunes Varela entende que há má-fé e, por isso, tem de se restituir tudo; Pereira Coelho
diz que só há que restituir aquilo que objetivamente resulta do empobrecimento alheio.

Aula do dia 16 de dezembro


Continuemos com as considerações sobre a medida da obrigação de restituir: como
o enriquecimento sem causa visa fundamentalmente corrigir deslocações patrimoniais,
compreende-se que aquilo que é relevante não é propriamente a conduta das pessoas, mas
sim a deslocação patrimonial em si mesma. Isto significa que a medida de restituição do
enriquecimento não pode ser superior ao enriquecimento verificado e não pode ser
superior ao empobrecimento – medida que tem dois limites superiores.
Voltando ao caso do sujeito que extrai areia de prédio alheio (e supondo que a pessoa
agiu de boa-fé):
 A areia que A extraiu vale 200 euros e ele vende a areia exatamente por 200
euros. Como o empobrecimento é de 200 euros e o enriquecimento é de 200
euros, há que restituir 200 euros.
 Vamos agora supor que A, que ganhou 200 euros, fez uma viagem, e por isso
agora já só tem 100 euros. Como se trata de restituir deslocações patrimoniais,
tem de restituir o seu enriquecimento atual – ainda que tenha havido um dano real
de 200 euros, ele só tem de restituir 100 euros.
 Se A, por outro, lado, com uma areia que valia 200 euros, consegue ganhar 400
euros, só se pode dizer que enriquece à custa de B na medida em que B está
empobrecido, por isso só tem de restituir 200 euros.
Artigo 480º CC: Vale o enriquecimento atual, exceto em duas circunstâncias: o
sujeito ter sido judicialmente interpelado para cumprir ou o sujeito ter conhecimento, à
partida, da falta de causa do seu enriquecimento.
O que acontece nas hipóteses em que o interventor está de má-fé, mas o dano real é
inferior ao seu enriquecimento? Pereira Coelho diz que não interessa a boa ou má fé. Para
este autor, se ele consegue, com a sua habilidade, vender por 400 euros aquilo que vale
200 euros, ele só tem de restituir 200 euros. Contudo, a maioria dos autores diz que não
pode ser assim, porque no fundo incentivava-se a intervenção na esfera jurídica alheia
para obter um proveito próprio – é uma consequência perversa da ideia de que só há que
restituir o mais baixo dos dois limites. Daí que num caso de má-fé há que restituir tudo,
o que parece fazer sentido.
Para Menezes Cordeiro, tem de se considerar, além do enriquecimento, um
empobrecimento concreto (que corresponderia a um lucro cessante) e um
empobrecimento abstrato. O professor critica esta visão, porque o enriquecimento sem

70
causa serve para remover enriquecimentos, não para remover empobrecimentos – aí
intervirá a responsabilidade civil, que visa recuperar a situação que existiria se não
houvesse dano.

Os artigos 476º, 477º e 478º CC têm que ver com o enriquecimento por prestação
– alguém executa uma prestação que não tem causa justificativa. Vamos analisar alguns
exemplos a propósito de cada artigo.
Artigo 476º CC: Se A entrega a B 50 euros para pagar uma dívida que não existe, B
tem de restituir os 50 euros, mas se ele foi a um restaurante e só tem 30 euros, só tem de
restituir 30 euros. Se estivesse de má fé (sabia que o seu enriquecimento não tinha causa),
responde integralmente pelos 50 euros. Ou seja, aquilo que for prestado indevidamente
pode ser repetido (reavisto, repetição = reaver aquilo que se prestou).
Artigo 477º CC: A convenceu-se de que era devedor de B, mas o verdadeiro devedor
era C. O indivíduo que prestou indevidamente goza do direito de repetição. Isso não
acontecerá se B também achasse que o devedor era A – aí deixa de haver obrigação de
restituir. Parece injusto, mas não é, porque A, que entrega os 50 euros e depois não os
pode reaver, objetivamente, tem um direito contra C, porque C está enriquecido – a dívida
dele está saldada, então A tem uma pretensão de enriquecimento sem causa contra C, que
é o verdadeiro devedor.
Artigo 478º CC: A entrega 50 euros a B, sabendo que não é devedor. Ele sabe que a
dívida de C, mas acha que está obrigado a cumpri-la, porque, por exemplo, é seu fiador.
A pensa que está obrigado para com o devedor a cumprir, há uma situação de erro – a sua
conduta não lhe permite reaver aquilo que prestou, isto é, não há direito de repetição
contra o credor, mas A pode exigir do devedor o dinheiro, dado que este enriqueceu.
Contudo, se o credor se apercebe do erro, tem de restituir.
Podia perfeitamente aplicar-se estes preceitos nos casos de invalidade de negócios
jurídicos, então por que é que não o fazemos? Porque temos a norma específica do artigo
289º CC quanto à invalidade dos negócios, que no fundo é uma regulamentação particular
de um problema que, dogmaticamente, é de enriquecimento sem causa. Então quando
recorremos a estes artigos do enriquecimento sem causa? Quando estamos perante
negócios inexistentes e negócios ineficazes, porque para negócios inválidos temos a
norma específica do artigo 289º CC.

Artigo 475º CC: Se aquele que presta entrega uma quantia para determinada
finalidade que sabe que é impossível obter, não pode vir exigir a restituição. Esta
previsão também se alarga a hipóteses em que o efeito não é impossível, mas é ilegal – o
indivíduo que paga luvas ao funcionário da Câmara para promover obras (corrupção) não
tem direito a restituição, porque o efeito é ilegal. O recetor da quantia não pode ficar com
ela, mas também o autor da corrupção não tem direito a essa quantia. O valor tem de ser
restituído à autarquia e aos seus munícipes na generalidade.

Artigo 474º CC: Relativo à subsidiariedade do enriquecimento sem causa. Não


podemos recorrer a este instituto sempre a que a ordem jurídica facultar ao sujeito uma

71
outra maneira de atender aos seus interesses. Quando há um divórcio, há necessidade de
uma partilha dos bens – são regras que têm prevalência sobre o enriquecimento sem causa,
há que entregar a cada um aquilo que lhe pertence, evitando-se enriquecimentos sem
causa. Apesar de se tratar de um problema de enriquecimento sem causa, temos regras
especiais, por isso não se aplicam os preceitos deste instituto.
Alguns autores dizem que o enriquecimento sem causa tem pouca aplicabilidade,
porque é subsidiário, mas o professor não concorda. No âmbito da partilha conjugal, se
houver um regime de partilha que é insuficiente, podemos entender que estas disposições
do enriquecimento sem causa podem suprimir essas deficiências. Assim, o este instituto
tem mais aplicação do que se pensa, no entender do professor.

Aula do dia 17 de dezembro


Resta-nos abordar, a propósito do enriquecimento sem causa, as atribuições
patrimoniais indiretas, que são hipóteses em que o enriquecimento se dá na esfera de
um terceiro, ou seja, a deslocação patrimonial não se faz diretamente do empobrecido
para o enriquecido. Vamos tentar perceber se é possível haver pretensões de
enriquecimento sem causa contra terceiros que se encontrem enriquecidos.
Artigo 481º CC: A paga 50 euros a B para saldar uma dívida que não existe, B aliena
gratuitamente a C 20 euros – o terceiro que tenha adquirido gratuitamente fica obrigado
perante o empobrecido na medida do seu enriquecimento, ou seja, C vai ter de restituir a
A 20 euros, mas se for a um restaurante e gastar 10 euros, só tem de restituir 10 euros (só
responde pelo seu enriquecimento atual).
Veja-se uma situação diferente: Se B intervém no prédio de A e tira de lá areia que
vende por 250 euros a C, há uma alienação que não é gratuita, por isso o terceiro não tem
de restituir. O artigo 481º CC só funciona se se tratar de uma alienação gratuita. Neste
caso da areia, a ação de reivindicação não vale nada, porque a areia não é suscetível de
ser individualizada, logo, ao juntar-se a areia que C adquiriu à areia que já tinha, ele torna-
se proprietário de toda a areia, incluindo a que era do prédio de A, que deixa de poder ser
separada. Como A não tem um direito real, a pretensão contra C só pode ser de
enriquecimento sem causa, mas como, se ele pagou pela areia? Quando os terceiros
pagam, verdadeiramente não estão enriquecidos.
Caso arrêt Boudier: A era agricultor e comprou sementes a um comerciante, não as
pagando de imediato. A sua terra era arrendada, sendo que o dono era B. Antes de colher
os frutos, o senhorio B resolveu o contrato de arrendamento, então foi B que fez a colheita.
Sendo que o comerciante que tinha vendido as sementes não tinha sido pago, tinha ele
uma pretensão de enriquecimento sem causa contra o dono da terra, que tinha ficado com
as plantas? O professor entende que o risco do crédito deve ficar entre as partes do
contrato, isto é, terceiros não podem ser confrontados com pretensões de enriquecimento
com as quais não contam. Assim, não se devem admitir pretensões de enriquecimento
sem causa contra terceiros com base no incumprimento de contratos.
Se não tiver havido contrato, o regime será diferente. Ex: A, empreiteiro, constrói a
casa de B, e rouba a C os materiais de que precisa para fazer a obra. Há uma deslocação

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patrimonial sem vontade do empobrecido, por isso a doutrina vai admitindo, nestes casos,
uma pretensão de enriquecimento sem causa contra terceiro.

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