Você está na página 1de 38

Sebenta de Direito das

Obrigações
Aulas Práticas
Turma 1

Prof. Dr. Miguel Pestana de Vasconcelos

Faculdade de Direito da Universidade do Porto


Nota introdutória:

Esta sebenta respeita às aulas práticas de Direito das Obrigações do ano letivo de 2019/2020,
lecionadas pelo docente Miguel Pestana de Vasconcelos. A sebenta foi realizada com base nos
apontamentos das vogais do Departamento de Pedagogia Inês Vale de Amorim e Joana Moreira.

A sua elaboração foi realizada com o objetivo de auxiliar os estudantes para o exame de
Direito das Obrigações. Relevamos ainda que, a leitura desta sebenta não substitui a leitura da
bibliografia obrigatória ou recomendada, sendo apenas um instrumento de auxílio ao estudo.

Caso sejam detetados alguns erros, agradecemos que estes sejam comunicados através do e-
mail da CC3: cc3fdup1920@gmail.com de modo, a que o documento seja aperfeiçoado

Bom estudo!

A Comissão de Curso do 3º ano de Direito


Direito das Obrigações 2019/2020

Direito das Obrigações

Aulas práticas – 2º Semestre

10 de fevereiro de 2020
Aula lecionada pela Dra. Rute Pedro

Caso nº1

A é subgerente do Banco B em Bragança. Grande parte dos clientes do banco


são emigrantes que aí depositam as suas poupanças, estando habituados a ver A no
exercício das suas funções e a serem aconselhados por este. A partir de uma dada
altura, A começou a aceitar os depósitos em numerário que os clientes lhe
entregavam em mão, dando-lhes a 2ª via do impresso do depósito assinado por si,
mas sem ter dado entrada nos registos do Banco. A situação prolongou-se durante
certo tempo, até que A desaparece e vários clientes dessa agência bancária são
informados pelo banco que nada têm na sua conta. Esses clientes apenas têm na sua
posse as segundas vias dos talões de depósito assinados por A. A posição do Banco é
a de que nada tem de restituir. Quid iuris?
Podemos responsabilizar o banco?
Para tal, temos de provar a existência de uma comissão, que se caracteriza pelo facto
de alguém desenvolver uma atividade por conta e sob direção de outrem:
o Por conta – imputação dos resultados na esfera jurídica do comitente;
o Sob direção – comitente tem poder de dar ordens ao comissário. Bastam
orientações gerais; comissário não tem de ser escolhido pelo comissário.
A existência de comissão é apenas um dos pressupostos da responsabilidade do
comitente (neste caso, B); para além da mesma, os danos têm de se produzir no exercício
de funções, não bastando que o dano se produza por ocasião das mesmas – tem de haver
um nexo entre o dano e as funções.
Por fim, e verificados os requisitos anteriores, o comitente só responde nos termos
do artigo 500º se sobre o comissário impender obrigação de indemnizar, ou seja, se houver
responsabilidade do comissário ao abrigo do artigo 483º.
Verificam-se os requisitos do 483º?

• Ato = facto voluntário: neste caso há um ato positivo por força da vontade
humana, dado que A desvia o dinheiro voluntariamente.
• Ilicitude: neste caso está em causa a ilicitude por violação de um direito absoluto,
mas também pode ocorrer por violação de uma norma de proteção ou por abuso
de direito. Há um contrato de depósito bancário, que não tem como efeito a

1
Direito das Obrigações 2019/2020

transmissão dos direitos reais. O dinheiro continua a ser dos clientes, logo o ato
de A comporta uma violação do direito de propriedade dos clientes sobre o
dinheiro.
• Culpa: Nos termos do artigo 487º/2, CC, a culpa apura-se em abstrato, ou seja,
em comparação com as diligências que um bom pai de família teria adotado nas
circunstâncias em apreço. Nesta situação, um bom subgerente nunca teria tido esta
atitude; quanto à modalidade da culpa, temos aqui uma atuação dolosa (dolo
direto)
• Dano: houve danos patrimoniais emergentes (a perda do dinheiro depositado) e
lucros cessantes (juros gerados pelo tempo)
• Nexo de causalidade entre o ato e o facto: verifica-se, pela aplicação da teoria da
causalidade adequada
Reunidos estes requisitos, cumulativamente, verifica-se que o comissário – A – tem
uma responsabilidade subjetiva por factos ilícitos; pode aplicar-se o artigo 500º e o
comitente tem uma responsabilidade objetiva. Ambos respondem solidariamente, sendo
exigível a indemnização a qualquer uma das partes, havendo depois direito de regresso
na medida das respetivas culpas.
Se o banco não tiver culpa nenhuma, terá direito de regresso total. Porém, o banco
pode também ter culpa - in eligendi ou in vigilando-, respondendo também por factos
ilícitos e não tendo direito de regresso total.
Também poderá haver responsabilidade contratual, apenas imputável ao banco que
responde pelos atos dos seus auxiliares (800º).
Tendo isto em conta, que regime se aplica? Há várias teses, nomeadamente a da
consunção.
Não se aplica o enriquecimento sem causa pois este é um instituto subsidiário.
Resposta da Dra. Rute Pedro - A responsabilidade do banco deve ser equacionada como
responsabilidade do comitente, nos termos do artigo 500º. Para o efeito, é necessário que
se verifiquem cumulativamente os seguintes 3 requisitos, que se extraem do 500º/1 e 2:
1. Tem de existir uma relação de comissão. A comissão existe quando alguém
(comissário) atua por conta e sob a direção de outrem (comitente). A atividade em causa
pode ser intelectual, material, temporária, duradoura, etc.. O comissário pode ou não ter
sido escolhido pelo comitente, o que se exige é que atue por conta deste, ou seja, no
interesse e para benefício do comitente; por outro lado, o comitente tem de ter um poder
que lhe permita dar ordens ao comissário e vigiar a sua atuação (poder de direção e
fiscalização). Neste caso, estes requisitos estão preenchidos, atuando A, subgerente, por
conta e sob direção do banco.
2. É necessário que o facto danoso seja praticado no exercício das funções, não
bastando que seja praticado por ocasião do desempenho das mesmas. Não basta uma mera
relação espacial ou temporal, o facto danoso tem de ser proporcionado pelas funções
desempenhadas – tem de haver nexo causal. Neste caso, os atos praticados pelo

2
Direito das Obrigações 2019/2020

subgerente cabiam no âmbito das suas funções. Note-se que o facto de A ter atuado contra
as indicações de B e dolosamente não exime o banco da responsabilidade.
3. Tem de se verificar a responsabilidade do comissário. Exige-se que sobre o
comissário recaia a obrigação de indemnizar. É o que acontece neste caso, já que se
verificam os pressupostos cumulativos do artigo 483º. Há um facto voluntário de A, que
desvia o dinheiro, e que é ilícito uma vez que viola o direito absoluto de propriedade sobre
o dinheiro dos clientes. Além disso, o subgerente atua dolosamente, com dolo direto –
tem intenção de produzir os danos. Produzem-se danos, desde logo patrimoniais,
nomeadamente danos emergentes (a perda do dinheiro entregue em depósito) e lucros
cessantes (perda dos juros remuneratórios a que se teria direito por força do contrato de
depósito). Não se exclui a possibilidade de danos não patrimoniais que mereçam tutela
ao abrigo do artigo 496º. Não há dúvidas que também se verifica o nexo causal entre o
ato de desvio de dinheiro e os danos acabados de referir. Verificados estes requisitos, que
devem ser todos provados pelo lesado (342º + 487º), conclui-se que há responsabilidade
extracontratual por factos ilícitos da parte de A.
Assim, o banco responderá objetivamente ao abrigo do artigo 500º e o subgerente A
responderá por factos ilícitos ao abrigo do artigo 483º. A responsabilidade de ambos é
solidária (500º/3 + 497º + 494º). Se o banco não tivesse culpa e tivesse de pagar a
indemnização, teria direito de regresso total. Mas tem de se equacionar a possibilidade do
banco ter atuado culposamente, por culpa in eligendi (na eventual escolha de A como
subgerente) ou por culpa in vigilando (por não ter tomado as devidas diligências de
fiscalização). Havendo culpa do banco, este responderia por força do 483º, solidariamente
com o comissário, que responde, também no âmbito do 483º. O direito de regresso entre
os responsáveis determinar-se-á em função das respetivas culpas e das consequências das
mesmas (artigo 497º).
Não podemos esquecer que a responsabilidade do banco poderia fundar-se ao abrigo
da responsabilidade contratual, nos termos dos artigos 798ºss, por atos praticados pelo
seu auxiliar (800º). Esta via apresenta a vantagem da aplicação da presunção de culpa do
artigo 799º, não tendo o lesado que provar a culpa do banco.

Caso nº 2
B, pretendendo clarear a cor do seu cabelo, dirige-se ao cabeleireiro X. Eduarda,
proprietária do estabelecimento, determina que seja C, empregada recém-
contratada e com pouca experiência em atividades de cabeleireiro, a encarregar-se
de tal tarefa. Em virtude de uma tardia remoção da substância aplicada no cabelo,
por esquecimento de C, B sofre lesões no couro cabeludo que lhe provocam a queda
de cabelo. Consulta um médico dermatologista que lhe prescreve a aplicação de uma
série de fármacos. Os custos de todo o tratamento, que se prolongou durante dois
meses, ascendem a 600 euros. Durante esse período, B, angustiada e muito abatida,
não sai de casa. Deixa de trabalhar, perdendo duas avenças. No primeiro mês padece
de dores intensas.

3
Direito das Obrigações 2019/2020

B pretende ser ressarcida de todos os danos sofridos. Quem pode ser


responsabilizado por eles? A que título?
Há responsabilidade de Eduarda, diretamente, ao abrigo do artigo 483º. Os requisitos
verificam-se: omissão de Eduarda, que não tomou as diligências necessárias. Sendo um
ato omissivo, só gera responsabilidade civil nos termos do artigo 486º. (remeter para
483º). Havia um dever de atuar por força do contrato que foi celebrado entre a cliente e
Eduarda, sendo o ato ilícito precisamente por força dessa violação do dever de atuar –
caso especial de ilicitude do artigo 486º. Há culpa sob forma de negligência – Eduarda
omitiu a diligência que lhe era exigida (bom pai de família (=bom operador daquele
ramo), naquelas circunstâncias, não teria escolhido aquela funcionária, ter-lhe-ia dado
instruções, e tê-la-ia vigiado). Há danos patrimoniais e não patrimoniais. Dentro dos
primeiros, há tanto lucros cessantes como danos emergentes. Os não patrimoniais serão
compensáveis nos termos do 496º.
Questão do dano estético – durante muito tempo, não foi tutelado como dano não
patrimonial; este tipo de dano apenas era compensado se tivesse reflexos patrimoniais.
Atualmente, é tutelado. A perda de cabelo tem repercussões anatómicas, funcionais e
estéticas.
Além disto, a cliente teve dores intensas – pretio doloris. Paga-se o preço da dor –
compensação, não é uma indemnização porque não se pode eliminar a dor. O nexo causal
não levanta problemas, à luz da teoria da causalidade adequada. Reunidos todos estes
pressupostos, a proprietária do cabeleireiro responde. Quem tem de provar estes
pressupostos é o lesado (ver artigos do caso anterior).
A presunção de culpa do 491º não é de excluir (o produto é um bem móvel que devia
ser vigiado). E também pode haver responsabilidade contratual – 797ºss + 800º, com a
vantagem da presunção de culpa do 799º - teria de ser afastada por E.

Suponha, agora, que o serviço foi prestado devidamente. C aproveita um


momento de distração de B para lhe subtrair a carteira. Quid iuris?
A empregada responde indubitavelmente nos termos do artigo 483º - há ato ilícito
(violação do direito de propriedade) e culposo (dolo direto); há danos patrimoniais
(emergentes) e nexo causal. E a proprietária? Não se pode aplicar a responsabilidade do
comitente do artigo 500º, porque o ato não foi praticado no exercício das funções, apesar
de haver comissão e da comissária responder nos termos do artigo 483º. O facto danoso
e a comissão apenas estão ligados por um nexo espácio-temporal.

Caso nº 3

A, sempre que se ausenta de casa por mais de um dia, entrega o seu cão, um
pitbull, a um tratador, X, para que este cuide dele. Assim, tendo de se deslocar a
Hamburgo, para aí assistir, durante uma semana, a uma série de conferências, A
deixa o seu cão ao cuidado de X. o tratador leva o dito cão a passear para um jardim

4
Direito das Obrigações 2019/2020

da cidade. No percurso efetuado, cruzam-se com B que se encontra a realizar o seu


jogging diário. Nesse momento, o cão atira-se a B, mordendo-o. Em consequência do
ataque, B sofre ferimentos nos braços e nas pernas, sendo submetido a vários
tratamentos médicos.
a) Quid iuris?
b) E se o ataque se ficasse a dever à atitude de C que por ali passava e tinha
açulado o cão?
c) E se o próprio B, por brincadeira, tivesse atirado pedras ao cão, e o animal,
enfurecido, o tivesse mordido?
B é o lesado, que sofreu ferimentos vários. Quem responde é o obrigado à vigilância
– X, tratador, tem dever de vigiar o animal, por força do contrato que celebrou com o
dono do cão. Responde ao abrigo do artigo 483º, com presunção de culpa do 493º/2.
Os pressupostos do 483º verificam-se, visto que temos:
- Um ato omissivo
-Ilicitude (violação do direito de vigiar, 486º)
-Culpa (presume-se – 493º/2)
-Danos não patrimoniais, e patrimoniais reflexos
-Nexo causal
Verificam-se todos. X responde, a menos que ilida a presunção de culpa ou que haja
relevância negativa da causa virtual, afastando-se a responsabilidade do culpado da causa
real - 483º/1. O proprietário também pode responder ao abrigo da responsabilidade pelo
risco - artigo 502º. Quais os requisitos? Primeiro, tem de se fazer a identificação do
detentor do animal (neste caso, o dono, que utiliza o animal no seu interesse), depois os
danos têm de caber nos perigos especiais, próprio da espécie. Esta responsabilidade do
proprietário é objetiva (independente de culpa), já a do vigilante é subjetiva. Respondem
ambos perante o lesado, nos termos da responsabilidade solidária (499º + 497º).

SE TIVESSE SIDO UM 3º A PROVOCAR O CÃO – o que mudava? Além da


responsabilidade do vigilante e do dono, deve considerar-se a responsabilidade do terceiro
(483º). Essa responsabilidade facilitará o afastamento da presunção de culpa que recai
sobre o tratador. Assim, em princípio, o detentor (porque a sua responsabilidade é
objetiva) e o terceiro respondem solidariamente (499º+497º).
CASO DA CULPA DO LESADO – foi o lesado que estimulou o ataque do cão, o
que releva nos termos do artigo 570º/2- provada a culpa do lesado, afasta-se a
responsabilidade do tratador. Quanto ao detentor, aplica-se o 570º/1. Não há culpa do
proprietário, apenas recai sobre ele o risco.
O Juiz pondera tudo isto, diminuindo, aumentando ou excluindo a indemnização.

5
Direito das Obrigações 2019/2020

17 de fevereiro de 2020

Caso nº 4
No dia 3 de Outubro de 2000, por volta das 13h30, ocorreu um embate na
Estrada Municipal que liga Lama a Oliveira, em Barcelos, no qual intervieram o
veículo ciclomotor de matrícula 11-22-ZZ, propriedade de B e conduzido pelo seu
filho (a quem o primeiro empresta o veículo regularmente para deslocações ao fim
do dia e ao fim-de-semana), A, e o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula 44-
55-TT, conduzido pelo respetivo proprietário, C, dono de uma empresa de
mobiliário. O ciclomotor circulava pela referida Estrada Municipal no sentido
Oliveira - Lama. Por seu lado, o veículo ligeiro de mercadorias circulava em sentido
contrário. No local do embate, a estrada tem 5,70 m, duas faixas de rodagem, uma
para cada sentido de trânsito, com piso em paralelo, seco e com aderência. A estrada
apresenta uma ligeira curva. No que concerne às circunstâncias em que o acidente
se produziu, apenas se prova que:
- Ambos os veículos circulavam a velocidade não superior a 50 kms/hora;
- Os condutores de ambos os veículos travaram, deixando o veículo ligeiro de
mercadorias marcado no pavimento um rasto de travagem com a extensão de 11,50
metros.
- A e o ciclomotor foram cair na berma do lado direito da Estrada Municipal,
atento o sentido Oliveira - Lama.
(Adaptação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Setembro de 2006,
in: www.dgsi.pt).
Pergunta-se:
1. Recai sobre A alguma presunção de culpa?
Temos em causa um acidente de viação, cujo regime está previsto no 503ºCC no que
respeita à responsabilidade pelo risco; no que respeita à responsabilidade por culpa,
aplica-se o regime geral do artigo 483º, com algumas particularidades. Uma delas é que
o regime do risco, embora de forma sistematicamente menos adequada, comporta uma
presunção de culpa – 503º/3. Essa presunção de culpa recai sobre o comissário (Assento
1/83 define o sentido do 503º/3). Tendo isto em conta, recai sobre A alguma presunção
de culpa? Relativamente a B, A é um comodatário, não um comissário. Por isso, a resposta
a esta pergunta é negativa; a presunção de culpa do artigo 503º incide apenas sobre o
comissário, definido nos termos do artigo 500º (sendo exigível a existência de poder de
direção). Esta relação é de mero comodato entre pai e filho.
2. A resposta seria a mesma se o veículo de mercadorias de C fosse conduzido
pelo seu empregado, D, que procedia ao transporte de uma mobília a casa de
um cliente? Quid iuris quanto aos danos derivados do acidente?

6
Direito das Obrigações 2019/2020

Nestas circunstâncias, temos de verificar se há uma comissão entre C e D. Há um


contrato de trabalho, havendo poder de direção da parte da entidade patronal. Além disso,
C estava no exercício das suas funções laborais. Verificam-se os requisitos do artigo
500º, logo C é comissário e recai sobre ele uma presunção de culpa, nos termos do artigo
503º/3. Havendo presunção de culpa, lesante responde ao abrigo do 483º e do 503º/3.
Apenas ao abrigo do 503º, e solidariamente, o comissário também responde pelos danos
causados ao ciclomotor e a A.
3. a) Quid iuris, voltando à hipótese inicial, supondo que:
- do acidente resultam danos em ambos os veículos: 1.500 € no ciclomotor e 750
€ no veículo de mercadorias;
- o motociclo contribuiu em 1/3 para o acidente e veículo de mercadorias em 2/3.
Há um acidente de viação, mais concretamente uma colisão de veículos. Pode haver
responsabilidade por factos ilícitos, e não se verificando haverá lugar a responsabilidade
pelo risco (artigo 506º).
Neste caso, ambos os veículos contribuíram para os danos, pelo que se aplica o
critério do artigo 506º. Como funciona este critério? É necessário fazer-se a soma dos
danos – o valor global é de 2250 €, neste caso. Responsabilidade do motociclo é de 1/3 =
750 euros; a do veículo de mercadorias = 1500 euros.
b) Considerando a situação fáctica da alínea anterior, suponha, agora, que A
transportava um ipad que ficou totalmente destruído. O ipad valia 500 €. Quid
iuris?
O iPad é uma coisa transportada pela pessoa que respondia pelo risco – porque é
comodatário (artigo 503º). A responsabilidade recai quer sobre o comodante como sobre
o comodatário, sendo um comodato de curta duração e havendo por isso direção efetiva
do veículo por parte de ambos (consultar aulas teóricas)
O dano em apreço foi causado num iPad, logo, recorrendo-se à interpretação literal do
artigo 506º, este bem não será indemnizável, pois não é parte do veículo. No entanto,
deve fazer-se uma interpretação extensiva da norma, de modo a abranger-se na
responsabilidade as coisas transportadas pelo veículo. O valor do ipad tem de entrar na
conta global dos danos, sendo que cada lesante responderia segundo o critério do artigo
506º (1/3 – 2/3)

d) Suponha, por fim, que A transportava no motociclo uma amiga, M, a quem


estava a “dar boleia”. Em consequência da colisão, M sofreu vários ferimentos
e o seu computador portátil ficou inutilizado. Quid iuris?
Quem são os beneficiários da responsabilidade pelo risco? – esta abrange os
transportados a título gratuito, mas não abrangerá as coisas por estes transportadas.
Porém, estamos perante uma colisão de veículos, ou seja, cada veículo é responsável pelo
risco (o que é diferente da situação em que um carro bate contra um muro).

7
Direito das Obrigações 2019/2020

Perante B, M é terceiro; perante A, M é pessoa transportada. Tanto A e B respondem


pelo risco, mas em termos diferentes (B por força do 505º e A por força do 504º). Aplica-
se também o artigo 507º - responsabilidade solidária de B e A face a M, na proporção
1/3-2/3.
Este dano junta-se ao dano global.
Quanto ao PC- B responde, sem qualquer margem para dúvidas, pelo risco.
Relativamente a A, a responsabilidade só se pode afirmar nos termos do artigo 504º/3,
que não abrange as coisas transportadas (computador).
B responde na totalidade ou apenas parcialmente? Ou seja, se o computador valesse
1500 euros, B teria de pagar a totalidade desse valor? Temos de articular o 506º com o
504º/3. É preciso estender a valoração da norma relativamente às coisas transportadas. B
só responde em 2/3, que é a contribuição do seu veículo para o acidente. O outro 1/3 teria
de ser cobrido por A, mas a responsabilidade de A não abrange os danos no computador.
Logo, B paga 1000 euros pelo PC, e A não paga nada. No fundo, M só consegue reaver
1000 dos 1500 euros que valem o seu computador.

Caso nº 5
A celebra com B um contrato de aluguer, pelo qual se obriga a proporcionar a
B o gozo de um automóvel enquanto este fica vinculado ao pagamento de alugueres
mensais num período de quatro anos. B utiliza o referido automóvel durante um
ano, quando uma falha de travões associada a óleo na estrada levou a uma
derrapagem que fez B atropelar C que circulava no passeio. Quem é o responsável?
A que título?
Trata-se de um atropelamento. Pode haver responsabilidade por factos ilícitos e, não
havendo, pelo risco.
Há uma locação entre A e B, e não há nenhuma presunção de culpa para este caso.
Logo, não havendo, também, culpa demonstrada, não há responsabilidade por factos
ilícitos.
Porém, temos uma responsabilidade pelo risco. Porquê?
É um caso clássico em que não há culpa, mas em que há um conjunto de riscos que
o funcionamento do veículo comporta. Quem é responsável? Temos de aplicar o critério
do artigo 503º - quem usa o veículo no seu interesse. Em princípio, num contrato de
aluguer, entende-se que a detenção do veículo e o interesse no seu uso pertencem tanto
ao locador como ao locatário. Responderiam os dois.
Falharam os travões – está em causa a mecânica do veículo, estando dentro do risco
do mesmo. O óleo relaciona-se com o funcionamento do veículo, também se incluindo
no risco.

8
Direito das Obrigações 2019/2020

Em que termos é que A e B são responsáveis face ao lesado? – para proteger o lesado,
a responsabilidade pelo risco é sempre solidária. Ter-se-iam de aferir as quotas internas,
de acordo com o interesse na utilização do veículo. Artigo 507º.

Nota prática - Mecânica da resposta

• Na responsabilidade pelo risco, temos, primeiro, de ver quem responde – artigo 503º
• Depois temos de ver quem beneficia da responsabilidade pelo risco
• Temos também de ver quando é que a culpa é excluída. Aplica-se o risco quando não se
possa provar a culpa
• Há ainda o caso específico da colisão de veículos – 506º. Tem de se fazer a soma dos
danos e reparti-los internamente pelos responsáveis
• Quanto as pessoas transportadas? A questão não está prevista, mas estende-se o raciocínio
do 506º a essas pessoas. O mesmo relativamente a coisas transportadas onerosamente.
• Coisas transportadas gratuitamente por pessoas transportadas – detentor do veículo onde
a coisa é transportada não responde; detentor do outro veículo responde na medida da sua
contribuição para o acidente.

Caso nº 6
A, camionista de B, entra numa bomba de gasolina para atestar o depósito e
também para verificar a pressão dos pneus. C, dono da estação de serviço, designa
D, empregado recém-contratado e com escassa preparação, para verificar a pressão
dos pneus do camião. D, ao desempenhar a sua tarefa, acaba por manusear mal a
máquina, enche de mais um dos pneus que rebenta, indo atingir E, transeunte que
estava no passeio. Este sofreu um traumatismo craniano. Quem reponde e com que
fundamento perante E?
Temos aqui dois ou quatro potenciais responsáveis, e, portanto, é necessário analisar
os pressupostos de responsabilidade relativamente a cada um deles.
A é camionista de B, temos aqui uma relação de comissão. B é comitente e A é
comissário. Quando é que o comitente responde? Quando se pode afirmar a
responsabilidade civil por factos ilícitos (artigo 483º) do comissário, ou seja, quando há
culpa. Não se verificam aqui nenhum dos requisitos da culpa, portanto, não é possível
provar a culpa. Contudo, sabemos que existem presunções de culpa. Aplica-se a
presunção do artigo 503º/3? Não há distinção entre o veículo estar em andamento ou
parado. Se esta presunção funcionasse aqui, tínhamos a culpa do comissário
(responsabilidade civil por factos ilícitos), havendo uma responsabilidade pelo risco, no
âmbito do art.500º, do comitente. Há, portanto, responsabilidade solidária face ao lesado.
O comissário poderia afastar a presunção de culpa, sendo que caso isto aconteça já não
há responsabilidade por factos ilícitos nem a responsabilidade pelo risco do comitente.
Todavia, B não deixa de ser dono do veículo. Portanto, o comitente, nos termos do
artigo 503º/1, responde pelo risco, uma vez que tem a direção efetiva do veículo e este é
utilizado no seu interesse (requisitos cumulativos). O comissário aqui não responde pelo

9
Direito das Obrigações 2019/2020

risco, a não ser que esteja a usar o veículo fora do exercício das suas funções. Responde
o comitente como detentor do veículo, é um risco decorrente dessa qualidade (≠ do artigo
500º, em que o comitente só responde se o comissário responder por factos ilícitos, está
numa posição de garante).
É possível afastar aqui a responsabilidade pelo risco? A responsabilidade pelo risco
automóvel é afastada nos casos do artigo 505º. A explosão do pneu não é um facto de
força maior estranho ao funcionamento do veículo. O que causou o rebentamento do
pneu? Um ato de terceiro. Um ato de terceiro afasta sempre a responsabilidade pelo risco?
Há uma divergência doutrinal:
(1) Basta que a causa tenha sido de um ato de terceiro ou do lesado para se afastar
a responsabilidade pelo risco (mais idêntica à letra da lei);
(2) O facto de o terceiro ter agido com culpa leve não corta o nexo entre o risco e
o dano. Se o terceiro tiver atuado com negligência (culpa leve) e não culpa
grosseira, não se afasta a responsabilidade pelo risco.
É necessário analisar a responsabilidade de C e D. Entre C e D há uma relação de
comissão. C tem culpa, in instruendo e in eligendo. Aplica-se o critério do bom pai de
família face às circunstâncias do caso concreto, do bom operador de determinado ramo
(artigo 487/º2). D tinha formação? Não, logo a exigência aqui é mais diminuta. Ele tem
culpa ou não? A culpa pode ser vista de dois pontos: do comissário, que não sabia encher
pneus e podia dizer que não sabia, e do comitente que também tem culpa ao contratar
alguém sem experiência, bem como pelo facto de não lhe ter dado instrução. Afirmando-
se a responsabilidade deles, respondiam solidariamente ao abrigo do artigo 497º
(responsabilidade solidária no caso de culpa). Havendo responsabilidade pelo risco, quem
respondia face ao lesado? Respondiam solidariamente ao abrigo do artigo 507º. Seria
possível que a culpa em concreto, de qualquer um deles, quer do dono da estação, quer
do funcionário, fosse afastada por facto imputável a terceiro? Estamos face a culpa grave
ou culpa leve? Temos de atender aos critérios de decisão. Qual o critério da culpa leve?
Bom operador de determinado ramo, bom pai de família nas circunstâncias do caso
concreto. O bom operador de determinado ramo não manda o funcionário sem formação
desempenhar aquela tarefa. Ele agiu com culpa leve, não há dúvidas. Diferente de culpa
leve é a culpa grave ou negligência grosseira, é um ato quase inadmissível. Não se trata
aqui de culpa grave, porque o dono não colocou um cego a desempenhar a tarefa nem fez
de propósito sabendo que a máquina estava meia avariada. A culpa grosseira trata-se de
um ato especialmente grave, está no limite. Como não é culpa grave, só resta
responsabilidade pelo risco; depois é necessário, nas relações internas, ver o direito de
regresso.

2 de março de 2020

Caso nº7
A, B e C, que se dedicam a comprar café para revenda, compram a D meia
tonelada de café moído por € 90.000.

10
Direito das Obrigações 2019/2020

a) A quem pode D exigir o pagamento dos € 90.000?

Quanto ao sujeito, estamos perante uma obrigação plural. É necessário averiguar se


é uma obrigação conjunta ou solidária. A compra para revenda é um ato comercial, a
dívida que daí resulta é comercial, logo é uma obrigação solidária. É esta a regra nas
relações comerciais, em virtude do disposto no art.100º do Código Comercial. Sendo a
obrigação solidária, cada um dos codevedores responde pela totalidade da dívida e, sendo
esta realizada por um dos codevedores, ficam os outros liberados da mesma (artigo
512º). Assim, D pode exigir os 90.000€ a qualquer um dos codevedores (A, B, C), ou se
assim entender, demandar qualquer um deles por qualquer montante da dívida.
b) A resposta seria a mesma se D tivesse renunciado à solidariedade face a A?
A renúncia à solidariedade (artigo 527º) só tem impacto face àquele devedor
solidário (A), só lhe podendo ser exigida a sua parte (30.000€), presumindo-se que as
partes são iguais (artigo 516º). O credor apenas se compromete a exigir de determinado
codevedor a sua quota-parte no débito, por isso a renúncia à solidariedade feita pelo
credor relativamente a um codevedor não afeta minimamente a parte dos outros - não
renunciou face aos outros. Apenas se produz um efeito externo, nas relações internas tudo
se mantém. Assim, nada impede o credor de exigir aos restantes a prestação por inteiro,
por isso D poderia exigir a totalidade da dívida aos restantes codevedores. Isto tem uma
vantagem para A, pois o credor só lhe pode exigir a parte dele e não a parte dos outros.
Se um outro pagar integralmente só lhe vai pode ser exigida a sua parte, nas relações
internas. Este tipo de figuras é utilizado nos contratos para limitar o risco dos sujeitos.
c) E se D tivesse remitido a dívida de C?
Uma remissão (artigo 863º) consiste numa forma de extinção das obrigações. É
efetivamente um contrato, não é um negócio jurídico unilateral. É necessário averiguar
os efeitos face a C, sendo que se exigiria sempre o seu acordo. Relativamente à remissão,
é necessário distinguir duas soluções:
- Artigo 864º/1: o credor não reserva por inteiro o direito face aos outros
codevedores e extingue a obrigação, naquele montante, do codevedor C, reduzindo
assim a dívida para 60.000€. Se qualquer um dos outros fosse demandado em 60.000€,
eles não teriam direito de regresso sobre o codevedor exonerado. Extingue-se também
a quota de C nas relações internas. Por isso, o credor D apenas pode exigir 60.000€ a
B, porque face a A apenas pode exigir 30.000€, em virtude da renúncia à
solidariedade.
- Artigo 864º/2: o credor reserva por inteiro o direito face aos outros codevedores,
não havendo aqui extinção parcial da dívida. Ele simplesmente não pode pedir o
cumprimento face a C, mas pode pedir o cumprimento por inteiro/a totalidade da
prestação a qualquer um dos outros codevedores (90.000€) e, se qualquer um dos
outros pagar, e pagar por inteiro, ele mantém o direito de regresso face ao codevedor
exonerado nestes termos. Basicamente, traduz-se na renúncia dele em exigir o
cumprimento àquele sujeito. Nas relações internas tudo se mantém. Assim, nestes
termos, D nada pode exigir face a C. Pode exigir a A apenas 30.000€ e a totalidade a

11
Direito das Obrigações 2019/2020

B. O codevedor que cumpre a totalidade da dívida goza de direito de regresso face


aos restantes, inclusive face ao codevedor cuja dívida foi remitida.
No caso da verdadeira remissão (artigo 864º/1), como já referido, não pode exigir
nada àquele sujeito. No âmbito do direito de regresso, a quota de um deles, se ele for
declarado insolvente, repercute-se sobre todos (mantém-se o aspeto da solidariedade no
risco). A quota dele vai se repartir sobre os outros dois codevedores (sendo a sua quota
30.000€, 15.000€ para cada um), mesmo aquele face a quem se remitiu a dívida.
d) Suponha agora que D exigia a B o pagamento dos € 90.000. B, tendo falta de
liquidez, cumpre, entregando a D um automóvel avaliado em € 120.000. D
aceita. Em seguida, B exige € 40.000 a A e € 40.000 a C. Quid iuris? E se o
automóvel valesse € 75.000?
Nos termos do artigo 523º, o cumprimento de uma obrigação solidária pode ser
feito mediante cumprimento normal da prestação, mas também mediante dação em
pagamento, como é o caso. Esta é uma forma de extinção das obrigações, sendo um ato
unilateral. O devedor cumpre entregando ao credor uma coisa diversa da inicialmente
prevista, considerando-se a obrigação cumprida no caso de haver acordo do credor, como
acontece neste caso. Nas relações internas, o que acontece? Temos de ter em conta que o
automóvel vale cerca de 120.000€, ao passo que a obrigação é apenas de 90.000€. As
quotas passaram a 40.000€, ele pode fazer este recalculo? Ainda que a coisa entregue
valha mais do que a obrigação assumida, o codevedor apenas poderá exigir os restantes
cerca de 30.000€ porque caso contrário conceder-se-ia a um codevedor a possibilidade
de, por ato unilateral, tornar mais gravosa a obrigação para os restantes devedores. No
caso de o automóvel valer 75.000€, mas ainda assim o credor aceitar, a dívida extingue-
se, liberando todos os codevedores. Quanto às quotas, estas passam para 25.000€. É
necessário ter em conta a intenção do credor. Se este pretendeu beneficiar apenas aquele
codevedor, as quotas-partes de A e C mantêm-se em 30.000€. Pelo contrário, se o credor
pretendeu beneficiar todos os titulares passivos da obrigação, os restantes codevedores
têm o direito de exigir a quota-parte que lhes resta tendo em conta o valor da coisa
entregue (é necessário recalcular as quotas sobre os 75.000€).
e) Suponha que D morre, sucedendo-lhe A, seu irmão e único parente sobrevivo?
Nesta hipótese, quid iuris se C se tornasse insolvente?
Temos aqui uma situação de confusão, nos termos do artigo 868º, uma vez que
há a reunião, na mesma pessoa, do credor e devedor (A). A confusão constitui um
mecanismo de extinção das obrigações, sendo que ninguém pode ser credor e devedor
dele próprio. Tudo se passa como se a dívida tivesse sido paga pelo sujeito em relação ao
qual se gerou a confusão, tendo direito de regresso sobre os outros na proporção das
respetivas quotas. A obrigação mantém-se solidária, mas deduz-se na quota-parte
relativamente ao qual a obrigação se extinguiu. Assim, a dívida passa a ser de 60.000€.
Tornando-se C insolvente, a quota do insolvente (30.000€) vai-se repartir. B vê a sua
quota aumentada em 15.000€, mas os outros 15.000€ vão-se repercutir face a A, em
relação ao qual a dívida foi extinta. Apesar da extinção da obrigação, mantém-se a

12
Direito das Obrigações 2019/2020

solidariedade no risco. Ele vai pedir os 30.000€ mais os 15.000€ (total=45.000€)


resultantes da quota de C.

f) Suponha que C é titular de um contra-crédito face a D, no valor de € 90.000.


Tendo D exigido o cumprimento a B, pode este recusar-se a pagar invocando
esse contra-crédito e declarando extinta a obrigação por compensação?
A compensação (artigo 847º) é uma forma de extinção das obrigações,
pressupondo que duas pessoas sejam, simultaneamente, credoras e devedoras. Há um
crédito e um contra crédito. A compensação funciona automaticamente? Na compensação
legal não, mas há um conjunto de casos na compensação convencional que sim. Um
codevedor pode recorrer à compensação? Sim, ele não pode é recorrer a um crédito de
outro. Se o contra crédito for dele, ele pode, mas se for de outro ele não pode exercer o
direito de outro. A compensação trata-se, então, de um meio pessoal de defesa, que só
pode ser usado pelo titular do crédito. Uma vez usada pelo seu titular, a obrigação
extingue-se e libera os restantes codevedores. Neste caso, só C poderia efetuar a
compensação, e não B.

Caso nº8
A conduzia o seu veículo numa rua do Porto. Atrás dele seguia um camião
conduzido por B. Em determinada altura do percurso, o camião teve uma quebra
dos travões e embateu na traseira do veículo de A que tinha afrouxado de velocidade.
Não foram apuradas culpas de qualquer dos condutores. Durante a reparação do
veículo, A teve de se deslocar de táxi para o emprego. Em virtude do acidente,
provou-se que o autor sofreu incómodos. A pede a condenação de B no pagamento
1.600 €, em que 1.100 € são a título de danos patrimoniais e 500 € a título de danos
não patrimoniais.
a) Quid iuris?
Estamos perante um caso de um acidente de veículos. É necessário averiguar se
estamos perante responsabilidade por factos ilícitos ou pelo risco, ou até mesmo ambas.
No caso em concreto, não foram provadas quaisquer culpas, nem se aplica aqui nenhuma
presunção, logo assumimos que estamos no âmbito da responsabilidade pelo risco. Temos
um caso de colisão de veículos, previsto no artigo 506º. Quais são as regras da colisão
de veículos? Temos de averiguar se ambos os veículos contribuíram para os danos ou se
só um deles contribuiu. No caso em apreço, é óbvio que só um é que contribuiu para os
danos, havendo uma quebra nos travões. Há limites na responsabilidade pelo risco, para
proteger o lesado, o que não se aplica ao caso. Este pede a condenação, nos termos do
enunciado. Pode? Quanto aos danos patrimoniais pode, porém, quanto aos danos não
patrimoniais, não, dado que simples incómodos não são tutelados pelo Direito. Assim,
neste caso, não existiam danos não patrimoniais.
Nota: A soma total dos danos faz-se quando ambos contribuíram para os danos.

13
Direito das Obrigações 2019/2020

b) A solução seria a mesma se o camião fosse conduzido por C, empregado de


B?
Há, neste cenário, uma relação de comissão. C é comissário relativamente a B. Há
uma presunção de culpa, no artigo 503º/3, que recai sobre o comissário, mas que pode
ser afastada, pois é relativa. C podia afastar a presunção de culpa, a não ser que fosse sua
função verificar o funcionamento dos travões. Deduz-se que tal não seria sua função e
que a presunção de culpa poderia ser afastada - a falha dos travões é um risco inerente ao
funcionamento do veículo, não é externo, pois trata-se de um aspeto mecânico.
c) Qual seria a solução se A tivesse virado bruscamente para a direita sem
assinalar com o pisca e se B circulasse em excesso de velocidade, tendo sido
causados danos em ambos os veículos? (hipótese independente das anteriores).
Ambos teriam culpa, neste caso, logo estamos no âmbito da responsabilidade por
factos ilícitos (artigo 483º). Verificados todos os pressupostos da responsabilidade por
factos ilícitos, há obrigação de indemnização. Ambos eram lesantes e lesados, por isso
aplica-se o artigo 570º (culpa do lesado). Tínhamos de analisar os danos causados em
ambos os veículos e a contribuição recíproca das culpas, de modo a determinar quanto
cada um tinha de pagar ao outro; no fundo, há que determinar o grau de culpa do lesado
e a sua contribuição para o acidente. Cada um deles é credor de uma indemnização face
ao outro. Temos um crédito e um contra crédito, logo, em último caso, um deles depois
podia compensar o outro.
9 de março de 2020

Caso nº9
E e F são devedores solidários de € 50.000 face a G. G interpela E no dia 1 de
março de 2014, para que ela cumpra a obrigação. De imediato, ela entrega-lhe €
50.00 em dinheiro e parte de férias para o Brasil, sem informar F do pagamento
efectuado. No dia 1 de abril de 2014, F, preocupada, envia a G um cheque de €
50.000, que este desconta. Quando F exige a E € 25.000, a última diz-lhe que já
pagou.
a) Quid iuris?
Nos termos do artigo 476º/1, esta é uma obrigação inexistente. Temos uma obrigação
solidária, em que o credor interpelou um dos codevedores para que ele cumpra, e E, ao
cumprir, extinguiu a obrigação. Porém, não informou F, o outro codevedor, do
pagamento.
F não foi demandado pelo credor, apenas pagou porque achava que a obrigação ainda
existia, tratando-se assim do cumprimento de uma obrigação inexistente e, como tal, ao
abrigo do artigo 476º/1, teria direito a que o outro lhe restituísse o que tinha sido
entregue.
O codevedor que pagou, E, violou um dever de informação que decorre, em termos
genéricos, do artigo 762º/2. Os codevedores solidários têm uma relação interna, sendo
que há estes deveres que dela emergem.

14
Direito das Obrigações 2019/2020

b) Suponha que G tinha demandado E e esta não cumprira. Podia G exigir a F


o pagamento do capital e dos juros de mora?
Qualquer um dos codevedores é obrigado a cumprir a obrigação. Pode, no entanto,
dar-se o caso de a obrigação se ter tornado impossível por facto imputável a um só dos
codevedores e, daí, decorrerem danos (art.520º). Pode, também, dar-se o caso de um dos
codevedores incorrer em mora, e nesse caso a indemnização faz-se pelos juros da mora.
Os outros codevedores respondem só pela prestação em si, sendo que, pela mora,
responde apenas aquele codevedor que foi demandado e não cumpriu. Se todos tivessem
sido demandados e não tivessem cumprido, todos pagariam pelos juros, mas não foi o
que aconteceu. É necessário fazer uma interpretação extensiva do artigo 520º.

Caso nº10

No dia 1 de março, A dirigiu-se ao stand de automóveis de B, onde adquiriu um


Toyota Yaris. As partes acordaram que B prepararia o automóvel e faria a entrega,
no dia 10 do mesmo mês, no domicílio de A. Porém, no dia 5 de março, e sem que se
possa atribuir culpa a B, deflagra um incêndio no stand que destrói todos os
automóveis que aí se encontravam.
a) Quid iuris, se B já tivesse escolhido o automóvel de A, já o estivesse a preparar
- integrando os acessórios adicionais devidos - e, inclusivamente, já tivesse
comunicado esse facto ao comprador?
Trata-se de uma obrigação genérica, sendo que o objeto é determinável de acordo
com o género e quantidade. Nas obrigações genéricas a escolha é feita, em princípio, pelo
devedor. Neste caso, havia um acordo. Após a concentração, a obrigação passa de
genérica a específica. Temos de ver em que lugar e em que momento se dá a concentração,
ocorrendo, consequentemente, a transmissão da propriedade e do risco.
O automóvel iria ser entregue no dia 10, no domicílio de A, sendo que não se
concentrou, uma vez que houve o incêndio. Há, portanto, um incumprimento não culposo.
O risco está no devedor que, nos termos do artigo 540º, tinha de entregar algo do mesmo
género e, caso não o fizesse, estava em mora e respondia pelo atraso. O tempo razoável
seria o necessário para encomendar e adquirir um automóvel novo, tendo de se ter em
conta o caso concreto.
b) Qual seria a solução se - mantendo todos os demais elementos da alínea
anterior - A tivesse adquirido um Toyota Yaris azul daqueles que B tinha em
stock?
Neste caso, há duas possibilidades:
- o credor (A) tinha escolhido aquele concreto automóvel azul, e aí houve logo a
concentração na medida em que a obrigação passou de genérica a específica e se
transferiu a propriedade e o risco;
-o credor e o devedor meramente delimitaram o género (Toyota Yaris azul dos que B
tinha em stock) e depois o devedor teria de fazer uma escolha. Aqui temos apenas uma

15
Direito das Obrigações 2019/2020

escolha interna, a escolha unicamente realizada pelo devedor não tem o efeito externo de
concentrar a obrigação, sendo que apenas quando se der a concentração é que a obrigação
passa de genérica a específica. Se assim fosse, então, em princípio, teríamos uma solução
igual à da alínea anterior, mas não temos. Falamos aqui de um Toyota Yaris azul daqueles
que B tinha em stock, há uma delimitação do género, sendo que este foi reduzido. Ou
tinha havido uma escolha dentro daquele género de um bem específico por parte do credor
(concentração), ou não tinha havido, havendo um género limitado. Neste último caso, a
concentração continua a dar-se na mesma, no tempo e local do cumprimento. Assim, só
se tinha transmitido a propriedade e o risco naquela data e com a entrega.
Como todo o stock de B ardeu, o género extinguiu-se, pereceu. Consequentemente,
há uma extinção da obrigação por facto imputável ao devedor e depois, nos termos do
art.795º, extingue-se também o direito à contraprestação, o direito ao preço.
c) A resposta seria diversa, se A tivesse adquirido o Toyota Yaris cinzento que
se encontrava em exposição no stand?
Aqui, a obrigação nunca foi genérica, sendo que ele comprou aquele carro concreto.
Assim, a obrigação é específica, transmitindo-se a propriedade e o risco – artigos 408º e
796º.
d) 1) Suponha que não se tinha verificado qualquer incêndio e que as partes
contratuais acordavam que o Toyota Yaris deveria ser entregue no 10 de março
na estação de comboios de Campanhã. Quid iuris, se o comboio em que o
automóvel era transportado sofresse um descarrilamento e todas as
mercadorias que nele se encontravam ficassem totalmente destruídas?
A entrega tem de ser feita na estação de Campanhã- sendo uma venda FOB, o risco
é do devedor até à entrega ao transportador, transmitindo-se depois para o comprador. Ao
acontecer algo durante o transporte, quem corre o risco é o comprador, dado que a
concentração já se deu.
2) Suponha agora que se tinha acordado que o cumprimento se realizaria
no domicílio de A. B opta por enviar o Toyota Yaris por comboio. Quid iuris se
o comboio descarrilasse?
O risco e propriedade eram de B. B não tem culpa de o comboio ter descarrilado. A
obrigação genérica mantém-se, tendo de cumprir a obrigação com outro automóvel.

23 de março e 30 de março de 2020

Caso nº 11
A, criador de cavalos, é proprietário de 50 animais. A vende a B um dos seus
dois cavalos lusitanos, o cavalo X ou o cavalo Y, combinando-se que a entrega do
animal se faria no primeiro dia da Feira do Cavalo a realizar em Santarém. Quando
C, empregado de A, transporta os cavalos para a referida feira, despista-se, numa
curva fechada, devido à velocidade excessiva em que conduzia. Deste acidente
resulta a morte do cavalo Y. Quando B sabe o que ocorrera, recusa-se a aceitar o
cavalo X e a pagar o preço.

16
Direito das Obrigações 2019/2020

a) Quid iuris?

Temos aqui uma obrigação alternativa, uma vez que ela incide sobre mais do uma
prestação. Tanto é possível entregar o Cavalo X como o Cavalo Y. Apesar de ter como
objeto duas prestações, reforce-se que esta é uma obrigação alternativa e que as ditas
prestações não são para ser realizadas em conjunto (não são conjuntivas). Apenas se
realiza uma das prestações, consoante a que venha a ser escolhida.
O que temos de definir em primeiro lugar é a quem cabe o poder de escolher a
prestação. Nos termos gerais do artigo 543º, se as partes nada tiverem dito, a escolha
cabe ao devedor. Depois, o regime que temos é o da impossibilidade da prestação. Uma
coisa é a impossibilidade originária, que aqui não se verifica; outra coisa é a
impossibilidade superveniente, que decorre, neste caso, do facto de o cavalo ter acabado
por morrer por ato que é imputável ao devedor, uma vez que C é empregado de A e que
os atos por si praticados se projetam na esfera do último. Tendo havido impossibilidade
de uma das prestações por facto imputável ao devedor e sendo ele, também, a realizar a
escolha, ele simplesmente terá de realizar a outra prestação, o que significa que terá de
entregar o Cavalo X. Isto nos termos do artigo 546º.
Repare-se que, cabendo a escolha ao devedor, ele tanto poderia entregar o Cavalo
X como o Cavalo Y, não podendo o credor exigir-lhe um dos cavalos em concreto. Assim,
a impossibilidade da realização da outra prestação conduz a este resultado, em que o
devedor pode simplesmente cumprir através da outra prestação possível (entregar o
Cavalo X).
b) 1) E se tivesse sido acordado que a escolha do cavalo caberia a B?
Aquilo que varia nesta hipótese é a escolha do cavalo. Se a escolha do cavalo cabia
a B, ele podia ter escolhido ou o Cavalo X ou o Cavalo Y, podia ter escolhido qualquer
um destes cavalos. O que pode B fazer?

• pode simplesmente exigir a prestação possível. Há uma impossibilidade da


prestação por facto que é imputável ao devedor, e nessa medida B pode exigir a
prestação possível - tendo perecido o Cavalo Y, B pode simplesmente exigir o
Cavalo X.
• pode exigir uma indemnização pelo perecimento do Cavalo Y. Repare-se que B
podia sempre ter exigido a entrega do Cavalo Y. Porque é que ele poderá exigir
uma indemnização? Depende dos interesses em concreto, mas note-se que os
cavalos podiam não valer o mesmo e que B podia até já ter arranjado um comprador
para o Cavalo Y e um consequente lucro. Nessa medida, se ele pedir uma
indemnização, esta será calculada segundo o chamado interesse contratual positivo,
ou seja, por aquilo que o credor teria ganho se a obrigação tivesse sido
integralmente cumprida (engloba-se aqui, evidentemente, o lucro cessante, que na
hipótese colocada seria o lucro decorrente da revenda que B acabou por não fazer).
Portanto, B podia ter mantido a sua contraprestação e ter pedido uma indemnização
pelo interesse contratual positivo, devido à impossibilidade da entrega do Cavalo
Y.

17
Direito das Obrigações 2019/2020

• Uma terceira alternativa que a lei confere a B, nos termos do artigo 546º/1, in fine,
é resolver o contrato e pedir também uma indemnização. Se B resolvesse o contrato,
ficaria desvinculado da sua contraprestação, e depois teria direito a uma
indemnização, também aqui calculada pelo interesse contratual positivo. No entanto
teria de se retirar daqui o valor da prestação que B não realizou. Dever de prestar é
substituído pelo dever de indemnizar.
2) E, nessa hipótese, quid iuris se a morte do cavalo ocorresse por abatimento
tornado imprescindível devido a várias fracturas sofridas pelo animal causadas
pelo descuido de B quando testava as capacidades daquele?
Neste caso, temos a escolha por parte do credor, e temos também a impossibilidade
da prestação por facto imputável ao credor. Nestas circunstâncias, o credor teria sempre
podido escolher a entrega daquele animal, e, portanto, considera-se realizada a obrigação;
não pode exigir a entrega do outro cavalo, vai ter de pagar o preço, e no, que diz respeito
ao devedor, considera-se que a obrigação está cumprida.

c) Suponha que se tinha acordado que A entregaria o cavalo X, embora se


reservasse o direito de ele prestar o cavalo Y, em vez daquele. Quid iuris se o
primeiro animal fosse morto pelo condutor de um veículo automóvel que se pôs
em fuga?
Neste último caso temos uma situação diferente, visto que não temos mais do que
uma prestação. Só temos uma prestação, que é a entrega daquele animal. Simplesmente,
neste caso, o devedor reserva-se o poder de substituir a prestação – é um poder, atribuído
ao devedor, de substituição da prestação, sendo certo que a obrigação tem só um objeto.
Estamos, portanto, perante uma obrigação com prestação alternativa.
Temos que o primeiro animal foi morto. Será que o devedor pode substituir aqui a
prestação? Não pode. Estamos face a um contrato de compra e venda, que tem por objeto
uma coisa específica, ou seja, uma coisa certa e determinada. Isto significa que a
propriedade sobre aquele cavalo foi transmitida aquando a celebração do contrato, nos
termos do artigo 408º, e com isto transmitiu-se o risco do perecimento do animal.
Consequentemente, quem corria o risco do perecimento do animal já era o credor, e assim
tem de pagar o preço. Não chegou a haver substituição da prestação. Tudo se passa
normalmente como se a prestação tivesse sido substituída. Há aqui uma coisa certa e
determinada, aplica-se o regime geral do 796º e há a obrigação de pagar a retribuição, a
contraprestação. A obrigação do devedor extingue-se por impossibilidade.

Nota do Professor (1): no caso de impossibilidade da prestação por facto imputável ao devedor,
o que sucede é o seguinte: nesta hipótese, o credor podia exigir uma indemnização pelo interesse
contratual positivo, ou seja, por aquilo que teria ganho se a prestação tivesse sido pontualmente
cumprida. Numa relação obrigacional complexa, os deveres principais de prestação, se se
tornarem impossíveis, podem ser substituídos pelo dever de indemnizar. Repare-se que nesta
relação obrigacional complexa, que se insere num contrato de compra e venda, o devedor não
entrega o animal, entrega antes a indemnização, no entanto a contraparte continua vinculado a

18
Direito das Obrigações 2019/2020

pagar o preço. Alternativamente, para o credor não ficar vinculado à contraprestação, é possível
que resolva o contrato. Mais à frente será explicada a articulação entre a resolução do contrato e
a indemnização pelo interesse contratual positivo)

Nota do Professor (2): no que toca às obrigações alternativas, é sempre necessário qualificá-las,
em primeiro lugar, e distingui-las das obrigações genéricas, sendo certo que nas obrigações
genéricas só há uma prestação e que o seu objeto é determinado quanto a um género e a uma
quantidade. Nas obrigações alternativas, há pelo menos duas prestações. Em alguns casos, podem
ter por objeto coisas genéricas. Depois, o aspeto principal é definir quem tem o poder de escolher
a prestação, e o que sucede na eventualidade de uma das prestações se tornar impossível. Aqui
importa distinguir as impossibilidades originárias das supervenientes; sendo uma impossibilidade
superveniente, temos de ver quem tem o poder de escolher a prestação e a quem se atribui a
impossibilidade. Repare-se que podemos ter casos de obrigações alternativas em que uma das
prestações tem o objeto definido quanto a um género e a uma quantidade e a outra prestação não
(Exemplo: entregar um dos automóveis que o devedor tem no seu stand ou entregar o Cavalo X).
São obrigações alternativas em que uma das prestações tem por objeto uma coisa genérica. Assim,
se fosse o devedor a escolher e escolhesse a prestação que não é genérica, teria de entregar o
cavalo X (retomando o exemplo); se fosse escolhida, pelo credor ou pelo devedor, a prestação
que tem por objeto uma coisa genérica, teria de haver concentração nessa prestação e, depois,
definir o bem a entregar, aplicando-se aqui, subsequentemente, o regime das obrigações
genéricas.

Caso nº 12
A empresta € 100.000 a B pelo prazo de 2 anos. Os juros fixados foram de a 5%
ao ano, com vencimento anual. Para garantir o pagamento, B constitui uma hipoteca
sobre um prédio urbano seu. Pergunta-se:
a) Poderia A, decorrido um ano, não pagando B os 5.000 € de juros, juntá-los
ao capital?
O ato de juntar os juros ao capital chama-se “capitalização de juros”, e corresponde
ao chamado anatocismo. Há uma proibição do anatocismo porque isso implica que o
devedor possa ter dificuldade em calcular desde o início o valor integral a pagar. A
inclusão de juros constituídos e vencidos no capital leva ao aumento desse mesmo capital,
sobre o qual se constituem novos juros. Esta prática pode levar a um grande do valor em
dívida, especialmente se as capitalizações forem realizadas em períodos relativamente
curtos. Isto justifica a proibição, em geral, do anatocismo pela nossa lei civil. Ela só
admite a capitalização de juros nas circunstâncias definidas no artigo 560º. Desde logo,
a convenção não pode ser anterior - é possível convenção, mas esta tem de ser posterior;
os juros têm de dizer respeito a um período de tempo de pelo menos um ano; também
pode haver anatocismo se houver uma notificação judicial do credor ao devedor no
sentido de pagar os juros, caso contrário procederá à sua capitalização.

19
Direito das Obrigações 2019/2020

Há um regime específico para os juros bancários, por isso, no Direito Bancário, é


possível a capitalização mesmo através de convenção anterior e por períodos que
atualmente são muito curtos.
Nota: bibliografia relativa aos juros foi enviada por email dinâmico

b) Suponha que o imóvel arde decorrido um ano de empréstimo, porque B se


esqueceu de um aquecedor a gás aceso.
1) O que poderia A fazer?

Temos aqui um crédito que está garantido por uma hipoteca. O devedor, por causa
que lhe é imputável, levou a que o imóvel ardesse. Consequentemente, há aqui uma
diminuição muito acentuada do valor da garantia, provavelmente uma quase extinção da
garantia, uma vez que o imóvel pouco valerá. É aplicável o artigo 780º, o que significa
que o credor poderia fazer uma de duas coisas:
• exigir a substituição ou o reforço da garantia. Supondo que o imóvel ainda valeria
alguma coisa depois de ter ardido (em vez de valer 6.000€, valeria 2.000€, por
exemplo), o credor podia pedir um reforço, a constituição de uma outra garantia.
Também podia pedir a substituição daquele imóvel por outro de valor idêntico ou
superior, para se repor o valor da garantia;
• alternativamente, podia exigir o cumprimento imediato da obrigação, que neste
caso passa pela restituição do pagamento. Não podia pedir o pagamento dos juros
futuros, visto que ainda não se constituíram.
2) E se o incêndio tivesse sido fortuito?
Se o incêndio tivesse sido fortuito, teríamos na mesma uma diminuição do valor da
garantia, mas já não seria por facto imputável ao devedor. Como tal, não se aplica o
regime do artigo 780º, mas o regime do artigo 701º (que se aplica também ao penhor). O
credor teria, em primeiro lugar, o direito subjetivo de pedir a substituição ou reforço da
garantia e, só no caso de o devedor não reforçar ou não substituir a garantia, em termos
de se repor o valor desta, poderia provocar o vencimento da obrigação de restituição do
capital. Isto diz respeito só à restituição do capital e não dos juros, pois ainda não se
constituíram.
3) E se a hipoteca tivesse sido constituída por C, pai de B, a pedido deste, tendo
a casa ardido por descuido dele (C).
Nesta hipótese, não há culpa do devedor na diminuição do valor da garantia e, como
tal, não podemos estar a aplicar aqui o regime do artigo 780º. Mais uma vez, temos de
recorrer ao regime do artigo 701º. O artigo 701º/2 contempla um caso em que a hipoteca
foi constituída por terceiro, e o regime é o seguinte: temos de verificar se o devedor foi
ou não estranho à constituição da dívida por terceiro. Neste caso, não foi. Na hipótese
inversa, se a hipoteca não tivesse sido constituída a pedido do devedor, então teríamos a
aplicação do art.701º/2, última parte, hipótese em que sempre que houver uma
diminuição da garantia por facto imputável a esse terceiro, é possível exigir o
cumprimento ao terceiro. No entanto, são precisas duas coisas: (1) o devedor tem de ter

20
Direito das Obrigações 2019/2020

sido estranho à constituição da hipoteca e (2) que tenha havido um facto imputável ao
terceiro. No caso em apreço, não se verifica o primeiro requisito, visto que o devedor não
foi estranho à constituição da hipoteca. Foi, aliás, por causa dele que a hipoteca se
constituiu. Assim, nesta circunstância, aplica-se o art.701º/2, 1ª parte, nos termos do
qual, o credor pode exigir ao devedor, em primeiro lugar, a substituição ou o reforço da
garantia, e só se o devedor não o fizer é que ele pode pedir o cumprimento imediato da
obrigação (também ao devedor, e não ao terceiro).
c) Tendo a hipoteca sido constituída por C, pai de B, poderia A executá-la se B
caísse numa situação de insolvência decorrido um ano de empréstimo?
Nos termos do artigo 780º, se B, devedor, tivesse caído numa situação de insolvência
(e falamos aqui numa situação de insolvência de facto), ele perdia o benefício do prazo,
caso o credor quisesse, desde logo, provocar o vencimento da obrigação, que não é
automático.
Essa perda do benefício do prazo estende-se também ao terceiro que constituiu a
garantia real? De acordo com o artigo 782º, não há essa extensão. Ou seja, o credor
poderia exigir imediatamente ao devedor o cumprimento da obrigação, mas,
relativamente à execução da hipoteca, não a poderia executar de forma imediata se o
devedor não pagasse. Ele teria de esperar pelo decurso do prazo e só aí, e mantendo-se o
incumprimento do devedor, é que o credor poderia executar a hipoteca, pois a perda do
benefício do prazo diz respeito ao devedor, mas não se estende a terceiro. Assim, o
terceiro que constitui a hipoteca continua a beneficiar desse prazo, o que significa que a
hipoteca não pode ser executada até decorrido o prazo contratual.

d) Suponha agora que o mútuo era celebrado em março de 2014, que o valor
mutuado era de 50.000 €, que a dívida era garantida através de uma hipoteca
constituída sobre um terreno de B, sendo estipulados juros anuais 9%. Quid
iuris?
O Direito Português tem regras para os juros moratórios e também para os juros
remuneratórios. Neste caso em concreto, estamos face a juros remuneratórios, visto que
eles consistem numa contrapartida da disponibilização do capital. Os seus limites
decorrem do artigo 1146º. As partes podem fixar livremente o valor dos juros,
simplesmente há limites legais para estes. Nos termos deste artigo, sempre que tivermos
a constituição de uma garantia real, os juros não podem exceder 3% a taxa de juro legal.
Como a taxa de juro legal é, neste momento, de 4%, os juros não podem exceder 7%.
Tendo os juros excedido 7%, o contrato não é nulo integralmente, segundo o artigo
1146º/3 - o que se verifica é uma redução automática dos juros ao valor/limite máximo
permitido pela lei. Assim, estes juros serão reduzidos para 7%. O contrato e a obrigação
de juros mantêm-se, só que reduzida ao máximo legal, decorrente do artigo 1146º/4.
Caso nº13
No dia 1 de Julho de 2014, a empresa Y, norte-americana, vende à empresa X,
portuguesa, 15.000 computadores. É acordado o preço de 750.000 dólares a ser pago,

21
Direito das Obrigações 2019/2020

no dia 1 de fevereiro de 2014, em Lisboa. Pode a empresa X, na data de vencimento


compensar o crédito da empresa Y com um contra-crédito que tem sobre a última,
já vencido, no valor de 700.000 €?
A questão que se coloca aqui é se este sujeito pode compensar. Poderá fazê-lo, desde
que se verifiquem um conjunto de requisitos. O primeiro requisito é ter um contra-crédito
sobre o credor, ou seja, ser simultaneamente devedor e credor. O contra-crédito, nos
termos do artigo 847º/1/a, tem de ser já exigível. Neste caso, ele era já exigível, porque
já se tinha vencido. O problema é que aqui o contra-crédito é em euros, e o crédito, isto
é, o valor a satisfazer, é em dólares. Deste modo, estamos face a uma obrigação valutária,
e ele teria que pagar em dólares. Todavia, há uma regra supletiva que permite ao devedor
(a não ser, claro está, que outra coisa tenha sido fixada) cumprir com a moeda local à taxa
de câmbio do dia do cumprimento. Como podia pagar com a moeda local, ele podia
também compensar com valor em termos de moeda local, tendo que se ver quanto é que
valiam 700.000€ em dólares. Se estes, em termos de câmbio do dia, fossem 780.000
dólares, ele compensava os 750.000 dólares e ainda ficava credor de 30.000 dólares.

Caso nº 14

A, com dez anos de idade, é credor de B em 300 euros. Este dirige-se a casa dos
pais de A para fazer o pagamento. Encontrando A na porta do prédio, entrega-lhe
logo essa quantia. Poderá o pai, C, e em que circunstâncias, anular a prestação?
O credor tem de ter capacidade para receber a prestação. Neste caso, A, o credor, é
menor, logo não tem capacidade. A prestação não é feita ao representante legal do
incapaz, mas ao próprio incapaz, logo, em princípio, poderia ser impugnada. Todavia, o
devedor poderia opor-se ao pedido de anulação na medida em que, apesar de a prestação
ter sido recebida pelo menor, este entregou a quantia ao pai. Ou seja, o representante legal
obteve a prestação. Se A não tivesse entregado o dinheiro ao pai, a prestação já poderia
ser impugnada.
20 de abril de 2020

Caso nº 15

No dia 1 de maio, A vende o seu automóvel a B. Contudo, as partes acordam que


a entrega só se fará daí a 15 dias para que A não fique sem carro, enquanto o stand
não lhe entrega o seu carro novo.
a) Quid iuris se o carro, no dia 8 de maio, arder por causa fortuita?
Este caso não é de grande dificuldade, porque é uma simples aplicação da matéria
que vimos anteriormente.
Face a um caso destes, a primeira coisa a fazer é enquadrá-lo dentro do regime da
impossibilidade da realização da prestação, uma vez que é claro que é o que aqui sucede.
Temos de atender a dois elementos: a causa e o efeito.

22
Direito das Obrigações 2019/2020

Podemos, aqui, começar pelo efeito. No que lhe diz respeito, podemos estar face a
uma impossibilidade objetiva, que leva à extinção da obrigação, ou perante uma
impossibilidade subjetiva, que leva à extinção da obrigação sempre que a prestação for
infungível. Também podemos estar face a uma impossibilidade temporária, sendo óbvio
não se tratar do caso.
Na hipótese em apreço, a impossibilidade é objetiva, visto não ser possível entregar
aquele carro, uma vez que este pura e simplesmente já não existe. Nessa medida, aplica-
se aqui o artigo 790º CC. Tratando-se de um contrato bilateral, e havendo
impossibilidade de realização e uma das prestações nele fixadas, temos de ver o que
acontece com a contraprestação. Aplica-se assim o regime do artigo 795º CC, o que
significa que o sujeito, neste caso, o credor, ficaria desobrigado de realizar a
contraprestação. Simplesmente temos também de ter em conta o regime do risco, que
decorre do artigo 796º CC. Esse regime tem uma regra geral e depois tem um conjunto
de exceções.

Segundo a regra geral, sempre que o contrato incida sobre coisa certa e determinada,
como é o caso (A vende o seu automóvel – não se trata de uma obrigação genérica, mas
sim de uma obrigação específica), aplica-se o artigo 408º CC e depois, também, o artigo
796º CC. Quem é o dono do automóvel aqui é B¸ por isso, em princípio, seria ele quem
correria o risco e que teria de realizar a contraprestação. Todavia, repare-se que, embora
a venda tenha ocorrido no dia 1 de maio, foi fixado um termo para a entrega, que sucederia
dali a quinze dias. Este termo foi fixado para que A, o alienante, não ficasse sem carro
antes de ter um novo – este é um caso comum. Aquilo que foi fixado para a obrigação de
entrega foi um termo a favor do devedor da obrigação de entrega. Assim sendo, o risco
não corre ainda por conta do adquirente (B), que em rigor é até o proprietário do bem,
nos termos do artigo 796º/2, primeira parte. Quem corre o risco é ainda o devedor (A),
apesar de já não ser o proprietário, aplicando-se assim o artigo 795º/1 CC, o que quer
dizer que, nestas circunstâncias específicas, não há direito à contraprestação (repare-se
que a obrigação de entrega está sinalagmaticamente ligada à obrigação de pagar o preço).

b) A resposta seria a mesma se A ficasse apenas com o carro durante aquele


período de tempo, por forma a que as obras na garagem de B finalizassem, para
este aí poder guardar o carro?
A primeira parte da resolução do caso é a mesma da alínea a) – há uma
impossibilidade objetiva de realização da prestação e uma consequente extinção da
obrigação. Resta-nos analisar o destino da contraprestação.
Temos um contrato sobre coisa certa e determinada; transmitindo-se a propriedade
nos termos do artigo 408º CC, o risco, nos termos 796º/1, transmite-se também para o
adquirente. Neste caso não há uma entrega imediata, há também um prazo para a mesma.
Porém, o prazo não é fixado em favor do alienante, que fica, durante este período de
tempo, na mesma posição que ficaria um depositário. Aqui, quem corre o risco já é o
credor (B), por força do artigo 796º/1 (não sendo, desta vez, aplicável o 796º/2) Por isso,

23
Direito das Obrigações 2019/2020

B não está desobrigado da contraprestação e não se aplica o 795º/1. Em suma, ainda que
a obrigação de entrega do automóvel se extinga, B tem de pagar o preço.

c) Qual seria a solução, se A tivesse vendido o automóvel a B com reserva de


propriedade até ao pagamento integral do preço, lhe tivesse feito a entrega
imediata do automóvel e este ardesse, na mesma data, por facto fortuito?
A resolução das alíneas anteriores era uma pura aplicação das regras gerais desta
matéria; esta alínea, pelo contrário, apresenta-nos uma hipótese um pouco mais complexa.
A venda com reserva de propriedade é uma garantia do vendedor – o vendedor recorre
à reserva de propriedade porque isso lhe permite entregar a coisa podendo, em caso de
incumprimento da outra parte, resolver o contrato e exigir a restituição da coisa. Como
sabemos, ao abrigo do artigo 886º, se não se tivesse recorrido a uma cláusula de reserva
de propriedade, aquilo que aconteceria, no caso de entrega da coisa e de falta de
pagamento do preço, é que o alienante não poderia resolver o contrato. Aqui, em suma, o
vendedor reserva-se o direito de resolver o contrato, não deixando de ser proprietário do
carro.
Importa, para a resolução do caso, relembrar os efeitos do contrato de compra e
venda: 1) transmissão da propriedade, sempre que for uma coisa certa e determinada; 2)
obrigação de entregar; 3) obrigação de pagar o preço.
O contrato produziu, então, os seus efeitos – há uma obrigação de entrega da coisa,
que já foi cumprida, e há uma obrigação de pagar o preço, que não foi ainda cumprida,
mas que já se constitui. Aqui o que se passa é que, por força da reserva de propriedade e
nos termos do artigo 409º CC, a transmissão da propriedade só se realizará a prazo, uma
vez cumprida a prestação.

Acontece que esta situação não tem previsão direta no artigo 796º/1 nem no 796º/2.
O artigo 796º/3 contém duas regras. Uma é relativa ao contrato sujeito a condição
resolutiva (o contrato em si); outra incide sobre o contrato sujeito a condição suspensiva.
Se um contrato estiver sujeito a uma condição suspensiva, não produz imediatamente
nenhum dos seus efeitos. Se o contrato estiver sujeito a uma condição resolutiva, o
contrato produz todos os seus efeitos, e nessa medida, mais tarde, não se verificando a
condição, é possível a destruição retroativa e completa desses mesmos efeitos.
Se o contrato fosse celebrado sob condição resolutiva, o risco do perecimento durante
a pendência da condição correria por conta do adquirente se a coisa lhe tivesse sido
entregue. O problema é que o contrato em apreço não foi celebrado sob condição
resolutiva; há um único efeito do contrato que está suspenso, mas os restantes produzem-
se, por isso também não foi celebrado sob condição suspensiva. Daqui decorre que este
caso – a venda com reserva de propriedade, a prestações ou não – não está prevista
diretamente no artigo 796º. Há uma lacuna legal e, como tal, temos de encontrar uma
situação similar – um caso análogo - para a tentar preencher. O professor encontra solução
nos termos da locação financeira e, sendo assim, o risco corre por conta do adquirente
(não por conta do alienante) que, nessa medida, teria sempre de pagar o preço.

24
Direito das Obrigações 2019/2020

Na locação financeira recorre-se à manutenção da coisa na esfera do credor (que


normalmente é um banco) como instrumento de garantia. O professor entende que este
regime se aplica por analogia a prestações com reserva de propriedade.
Nós podemos recorrer a diversos instrumentos para garantir uma prestação, o mais
comum é recorrer a direitos reais de garantia. Na locação financeira nos temos um sujeito
que pretende adquirir um determinado bem. Como tal, dirige-se a um locador financeiro,
normalmente ao banco, que vai adquirir o bem. O bem fica na propriedade do banco
enquanto o sujeito não pagar na íntegra as rendas. Porque é que o banco adquire o bem?
Porque pretende manter o bem na sua esfera jurídica, visto que, se o outro não cumprir o
contrato, o bem funciona como garantia da realização da prestação, ficando o banco com
o bem. O mesmo acontece com a venda com reserva da propriedade – o alienante mantém
a propriedade do bem como garantia face ao não cumprimento do contrato. A função da
reserva de propriedade é idêntica: uma função da garantia. Como tal, deve-se aplicar o
mesmo regime, de forma adaptada, visto que os aspetos decisivos sobre o conflito de
interesses são idênticos. Acontece que este é o regime previsto para a locação financeira,
mas há uma lacuna quanto à reserva de propriedade.
Quem beneficia da utilização do bem é o adquirente, apesar da propriedade se manter
na esfera do locador/alienante como garantia.

Caso nº 16
A acorda com B, mecânico, a reparação do motor do seu automóvel, tendo-se,
desde logo, fixado o preço (€ 400) e a duração do conserto (toda a manhã do dia 20
de maio). Na noite anterior à data acordada, o automóvel de A fica com o motor
gripado por este se ter esquecido de mudar o óleo. No dia 20 de maio, B espera até
60 minutos após a hora fixada, e depois trata dos outros automóveis. Estas
reparações rendem-lhe € 250.
a) Terá A que pagar o preço da reparação?
Em primeiro lugar temos de qualificar a situação. Em rigor, este é um contrato de
prestação de serviços em que o devedor, que neste caso é o mecânico (B), pode realizar a
prestação, mas há aqui uma impossibilidade decorrente de um facto imputável ao próprio
credor (A). É o credor que acaba por gripar o motor, não podendo este ser recuperado. O
mecânico está, portanto, disponível para realizar a prestação, mas não o pode fazer por
facto imputável ao credor. B continuaria, então, a ter direito à contraprestação, nos termos
do artigo 795º/2, o que significa que A teria de lhe pagar o preço acordado (400€).
Todavia, e decorrendo de uma aplicação do enriquecimento sem causa, tendo B obtido
vantagens por não realizar a prestação (neste caso, pôde usar aquele tempo para fazer
outras reparações noutros veículos), essas vantagens (250€) têm de ser descontadas na
contraprestação que ele tem direito a receber. Em suma, A tem de pagar a B uma quantia
no valor de 150 euros.

25
Direito das Obrigações 2019/2020

b) Quid iuris se o motor tivesse ardido sem culpa de A, e B já tivesse adquirido


um conjunto de produtos para aplicar no motor, cujo custo ascendeu a € 120?
É evidente que a prestação não pode ser realizada, mas não se trata de um caso em
que o credor tenha culpa na situação em si, ou seja, no facto de o motor ter ardido e de
não haver já interesse na realização da prestação, e B também não tem culpa.
Onde encaixamos este caso? Os casos que estão diretamente previstos na lei são
aqueles em que a impossibilidade se deve a facto do devedor (artigo 790º), e depois
também há o caso específico, que acabámos de ver, do artigo 795º/2, em que a
impossibilidade se deve ao credor. Porém, hipótese não se enquadra em nenhum destes
casos: o que se verifica aqui é que há uma frustração do fim da prestação. Embora o
devedor, neste caso B (o mecânico), em abstrato pudesse realizar a prestação, não fazia
qualquer sentido nem teria qualquer utilidade colocar as peças num motor que pura e
simplesmente já ardeu.
Qual é o regime da frustração do fim da prestação? É idêntico ao da satisfação do
interesse do credor por outra via – aquilo que se entende, essencialmente, é que, utilizando
a regra das esferas de risco, o risco de se verificar um caso que leva à frustração do fim
da prestação corre por conta do devedor. Com isso, ele deixa de estar vinculado à
contraprestação, mas tem de indemnizar a outra parte com as despesas que ele tenha
incorrido na preparação da realização da prestação (no caso em concreto, essas despesas
correspondem às peças que B adquirira para colocar no motor). Qual é a base legal? Se
estamos perante um contrato de empreitada, aplica-se o regime do artigo 1227º, que
consagra exatamente esta solução; se não estivermos perante um contrato de empreitada,
estamos face a uma lacuna e aplicamos analogicamente esse mesmo regime.
A reparação de um bem ainda é um contrato de empreitada, portanto, no caso em
apreço, aplicamos diretamente o regime do artigo 1227º: não há dever de realizar a
contraprestação, mas há o dever de A pagar ao mecânico os 120€ relativos aos produtos
que este teve de adquirir na perspetiva de depois reparar o veículo.
27 de abril e 4 de maio de 2020

Caso nº 17
A 1 de março de 2014, L vende a M, por € 11.500, os 23 volumes de uma
enciclopédia única muito antiga que havia adquirido, dez anos antes, num
alfarrabista. O primeiro obriga-se a entregar os tomos da referida obra, no domicílio
do segundo, quinze dias depois, momento em que já estariam instaladas as estantes
que este havia encomendado a O. Para proceder à entrega L recorre aos serviços de
N, transportador. Durante a realização do transporte, a carrinha de N, quando
estava parada num semáforo, é atingida pelo automóvel de Paulo que, conduzindo
em excesso de velocidade, não conseguiu travar atempadamente. Deste choque
resultou a destruição de 13 volumes da referida enciclopédia.

26
Direito das Obrigações 2019/2020

a) Poderá M, que já havia procedido ao pagamento da totalidade do preço,


recusar a entrega dos restantes 10 volumes que saíram incólumes do acidente e
exigir a restituição dos € 11.500 pagos?
Para abordarmos um caso prático, devemos começar por qualificar a obrigação. O que
temos aqui? Estamos perante a venda de uma enciclopédia antiga a um determinado
sujeito, sendo que o vendedor (L) se obriga a entregar a referida obra no domicílio do
comprador (M) quinze dias depois, momento em que já estariam instaladas as estantes
que este havia encomendado a O. Para o cumprimento da obrigação, o sujeito recorre a
um terceiro (neste caso, um transportador), que é um auxiliar. O que acontece é que, na
realização do transporte, na data acordada, a carrinha do auxiliar, quando estava parada
num semáforo, é atingida pelo automóvel de Paulo, que conduzia em excesso de
velocidade. Do choque resultou a destruição de 13 volumes da referida enciclopédia.
Acontece que o comprador, M, já tinha pagado a totalidade do preço, e pretende agora
recusar a entrega dos restantes 10 volumes e exigir a restituição dos 11.500 euros pagos.
Há aqui uma impossibilidade de realização da prestação, uma vez que esta implicava
a entrega dos 23 volumes (está em causa um objeto único). Essa impossibilidade de
realização da prestação é-o por facto não imputável ao devedor, visto que ele não tem
culpa do sucedido.
Temos, então, de aferir se se trata de uma impossibilidade temporária ou definitiva.
Podemos facilmente concluir que não é uma impossibilidade temporária porque não é
possível reaver os 13 volumes, visto que simplesmente já não existem. A impossibilidade
pode ainda ser total ou parcial - se for parcial, refere-se só a parte da prestação, não se
referindo à totalidade, logo parte da prestação ainda é possível. Neste caso, é possível a
entrega de 10 volumes da enciclopédia.
O que M pretende é recusar a entrega desses 10 volumes e exigir a restituição do
preço, ou seja, pretende resolver o contrato. Qual o regime? Havendo uma
impossibilidade parcial, o sujeito pode reduzir a sua contraprestação e aceitar a prestação
em falta; numa segunda hipótese, aquilo que sucede é que, se ele não tiver interesse na
realização parcial da prestação, pode resolver o contrato. Uma vez que se trata de uma
biblioteca, neste caso, uma coleção de livros, estes valem mais na totalidade do que cada
um individualmente considerado. Assim, M poderia resolver o contrato, ficando liberado
da realização da sua contraprestação. Neste caso, como já a tinha realizado, teria direito
à sua restituição. E seria assim, se aplicássemos pura e simplesmente o artigo 793º, CC.
Todavia, o artigo 793º tem implícita uma regra relativa ao risco: é fundamental que o
risco corra ainda por conta do alienante. No caso em apreço estamos face a alienação de
uma coisa certa e determinada – os 23 volumes da enciclopédia -, portanto a transmissão
da propriedade, nos termos do artigo 408º, CC, verificou-se aquando a celebração do
contrato, e em princípio ter-se-ia transmitido o risco nesse mesmo momento, por força do
artigo 796º/1, CC. No entanto, o risco não se transmitiu nesse momento, uma vez que o
vendedor, L, não entregou imediatamente a referida obra por termo estabelecido no
interesse do adquirente (que não tinha, ainda, as estantes). Por outras palavras, a
transmissão do risco não coincidiu com a transmissão da propriedade, neste caso, mas

27
Direito das Obrigações 2019/2020

sim com o momento do vencimento da obrigação, porque este prazo para o cumprimento
da obrigação de entrega foi fixado a favor do comprador. Todavia, ele está a cumprir a
prestação na data do vencimento da obrigação. Assim, aquando do acidente, e nos termos
do artigo 796º/2, CC, o comprador é quem corre o risco, que neste caso se traduz no risco
de ter de realizar a contraprestação. Nesta medida, M tem de aceitar os livros que
sobraram, que já lhe pertencem, e manter o pagamento dos 11.500 euros, visto que o risco
do perecimento dos bens corre por sua conta.
Na relação entre o credor e o devedor, no âmbito do contrato de compra e venda, a
situação resolve-se nestes termos, e é tudo o que é pedido na pergunta. Note-se, porém,
que Paulo praticou um facto ilícito e culposo, tendo causado danos ao dono dos livros,
que terá, na posição de proprietário, direito a ser indemnizado ao abrigo da
responsabilidade civil extracontratual.

Qual seria a resposta, se L, livreiro, tivesse vendido os 23 volumes da


enciclopédia Saber Universal editada recentemente pela Editora Livros &
Livros?
Aqui já não estamos face à venda de uma coisa certa e determinada. Trata-se, antes,
de uma obrigação genérica, visto já não estarmos perante um bem único, como acontecia
na hipótese anterior. Assim, temos de aplicar as regras das obrigações genéricas. Como
sabemos, no que lhes diz respeito, o que temos de determinar primeiramente é quando é
que se verifica a concentração. L obrigou-se a entregar a mercadoria, ou seja, os 23
volumes da enciclopédia, no domicílio do comprador (M), portanto a transmissão da
propriedade e do risco verificar-se-iam apenas quando essa entrega fosse efetivada. O que
sucedeu é que, em virtude de um facto não imputável ao alienante, ele não pôde entregar
os livros, pois foram destruídos. Apesar dessa destruição, a obrigação não se extinguiu,
visto tratar-se de uma obrigação genérica. Assim sendo, há aqui um incumprimento
temporário devido a uma impossibilidade da realização da prestação, nos termos do
artigo 792º, CC. A obrigação não se extingue e L tem de a realizar, porém não responde
pelo atraso na entrega dos volumes da enciclopédia.
Em suma: temos uma obrigação genérica; a transmissão da propriedade e do risco
inerente dá-se com a entrega dos livros ao comprador, que ainda não se tinha verificado.
Há uma impossibilidade temporária de realização da entrega por facto não imputável ao
alienante, o que significa que o atraso na prestação não é imputável ao alienante e, nessa
medida, ele não responde pelo mesmo. Porém terá de garantir a entrega de uma nova
enciclopédia a M, comprando uma nova à editora Livros&Livros, se necessário. Se se
voltar a atrasar na entrega, já responde, por mora.
b) Quid iuris se todos os volumes da enciclopédia fossem destruídos no acidente
e este se ficasse a dever a uma condução descuidada de N?
Voltamos à venda de uma coisa certa e determinada, desta feita com uma atuação
culposa por parte de N, que é auxiliar do vendedor (L). Neste caso, presume-se a culpa,
porém, nem seria necessário recorrer à presunção de culpa visto que o sujeito agiu
descuidadamente. A culpa está, portanto, provada. Nessa medida, L responde como se o

28
Direito das Obrigações 2019/2020

ato tivesse sido praticado por ele, nos termos do artigo 800º, CC. Assim sendo, estamos
face a um caso de impossibilidade de realização da prestação por facto imputável ao
alienante, uma vez que os volumes da enciclopédia foram destruídos. Trata-se de um
artigo único, que foi integralmente destruído. Portanto, trata-se de um regime de
impossibilidade definitiva culposa.
O comprador pode exigir uma indemnização pelo interesse contratual positivo,
mantendo a sua contraprestação (aquilo que já pagou) e tendo de provar os danos que
sofreu pela não execução do contrato. Neste caso, coloca-se a questão de saber se a
indemnização seria calculada pelo interesse contratual positivo ou se seria calculada pelo
interesse contratual negativo. Neste âmbito há uma divergência doutrinal – de acordo com
a doutrina tradicional, se o comprador resolvesse o contrato teria direito única e
exclusivamente a uma indemnização calculada pelo interesse contratual negativo; para
uma posição mais recente da doutrina, ainda que não unânime em termos jurisprudenciais,
ele poderia ainda assim pedir uma indemnização pelo interesse contratual positivo, ou
seja, considerando aquilo que M teria ganho se o contrato tivesse sido integralmente
cumprido. Significa isto que se M tivesse podido revender a enciclopédia pelo dobro do
preço, era esse valor a que ele teria direito, abatendo-se o valor da contraprestação.
Alternativamente, nos termos do artigo 801º/2 CC, poderia resolver o contrato e exigir a
restituição da sua prestação.

c) Quid iuris se L entregasse a N a enciclopédia para o transporte somente no


dia 18 de março e a carrinha de N, quando estava parada numa estação de
serviço, fosse assaltada e todos os volumes destruídos?
Esta última hipótese tem a ver com os efeitos da mora. Como já vimos, temos aqui
uma obrigação genérica, que se concentrava com a entrega do bem no estabelecimento
do credor. O que se passou aqui foi que o devedor entrou em mora, e uma das
consequências da mora, nos termos do artigo 807º, é ele passar a correr o risco. Em
termos gerais, sendo a obrigação de cumprimento com entrega na carrinha de N, quem
correria o risco seria já o credor, logo ele teria de pagar a contraprestação. No entanto,
nesta circunstância específica, há uma mora do devedor, logo, nos termos do artigo 807º,
CC, o risco que devia correr por conta do credor passa a correr por conta do devedor.
Há, então, dois cenários possíveis: se, nesta circunstância, a obrigação ainda for uma
obrigação genérica, como é o caso, ele teria de entregar outra mercadoria; se se tratasse
de uma obrigação específica, o risco correria imediatamente por conta do aquirente, mas
por efeito da mora passaria a correr por conta do devedor, e, portanto, ele não teria direito
à contraprestação.

Caso nº 18
A vende a B 10 computadores marca CVB daqueles que têm em armazém. A
obriga-se a entregá-los no estabelecimento de B no dia 1/6. Para o efeito, contrata o

29
Direito das Obrigações 2019/2020

camionista C. Este, em excesso de velocidade, despista o camião, levando a que


pereçam os computadores transportados.
a) Analise a posição de B.

Está em apreço uma obrigação genérica, em que o sujeito se obriga a entregar a


mercadoria – neste caso, os computadores –, em determinada data, no domicílio
profissional (estabelecimento) de B, e que para o efeito contrata um camionista que
funciona como auxiliar independente. Este conduz em excesso de velocidade, o que
provoca um despiste do camião e consequentemente o perecimento dos computadores.
Aquilo que se verifica é que há um incumprimento da prestação, dado que a
mercadoria não é entregue a tempo e horas, e esse incumprimento é culposo porque o
devedor responde pelos atos dos auxiliares como se de atos próprios se tratassem, nos
termos do artigo 800º, CC. Aqui, os computadores ainda nem sequer pertenciam a B,
uma vez que a concentração da obrigação ainda não tinha ocorrido. Nessa medida,
estamos face a um caso de atraso culposo na realização da prestação, sob forma de mora.
Daqui decorrem, portanto, as consequências da mora por parte do devedor,
nomeadamente as de carácter indemnizatório (o devedor tem de indemnizar o credor pelo
atraso na realização da prestação). Como se trata de uma obrigação genérica, aquilo que
A deve fazer é selecionar outros 10 computadores e entregá-los mais tarde a B, realizando
dessa forma a prestação, pagando também a eventual indemnização e, com isto,
extinguindo as suas obrigações.

b) Suponha que C tivesse chegado ao estabelecimento de B na data acordada,


mas este, por esquecimento, não se encontrasse no estabelecimento. No caminho
de volta, C sofre um acidente por, negligentemente, exceder o excesso de
velocidade permitido, com a destruição dos computadores transportados?
Como já vimos, trata-se de uma obrigação genérica, e a concentração dar-se-ia no
dia 1 de junho e no local da entrega da mercadoria, que se convencionou ser o
estabelecimento de B. O que acontece é que B não aceita a prestação, pois não se encontra
no seu estabelecimento na hora acordada para a entrega dos computadores. Estamos,
assim, perante um caso de mora do credor, nos termos do artigo 803º, CC. B não tem
uma causa legítima para não receber a prestação, e daí decorre, em primeiro lugar, a
concentração da obrigação, nos termos do artigo 541º, CC. O devedor tem de trazer as
mercadorias, que já pertencem ao credor, de volta ao seu estabelecimento, mas estas
acabam por ser destruídas num acidente negligentemente provocado por este.
Outro dos efeitos da mora do credor, nos termos do artigo 814º, CC, é a atenuação
da responsabilidade do devedor. Nestas circunstâncias, o devedor responderia, pois foi
ele que tornou impossível a realização da prestação por ato próprio; no entanto, uma vez
que há mora do credor, ele só responde em caso de dolo. Como atuou negligentemente, o
risco corre já por conta do credor, que terá de efetuar o pagamento do preço

30
Direito das Obrigações 2019/2020

c) Suponha ainda que B não entrega os computadores na data acordada. Face


à exigência de A para que proceda à entrega, B não o faz. Pode A, de imediato,
resolver o contrato?
Este é um caso clássico. O devedor está em mora, não entregando a prestação
atempadamente. O que é que o credor pode fazer? Normalmente, o credor vai exigir-lhe
o cumprimento, o que não é necessário para o vencimento da obrigação. Decorrido o
prazo, o devedor incorre em mora e na obrigação de indemnizar. A questão é que o
contrato em si mantém-se, e a prestação ainda é possível. O devedor só incorre em
incumprimento definitivo naqueles casos em que o credor tenha perdido o interesse, o
que não se verifica neste caso, ou se o credor tiver recorrido a uma interpelação
cominatória, nos termos do artigo 808º/2, transformando a mora em incumprimento
definitivo. Se o credor transformar a mora em incumprimento definitivo, efetivamente
pode resolver o contrato, e com os efeitos do artigo 801º, CC.
Em suma, A não pode resolver o contrato com base numa simples mora. Só o pode
fazer em determinadas circunstâncias – se estiver previsto no contrato que a não
realização da prestação naquele tempo significa incumprimento definitivo, se houver
perda de interesse (que o devedor tem de demonstrar, e que não é aplicável ao caso em
apreço) ou se o credor recorrer a uma interpelação cominatória. Esta última hipótese
traduz-se na concessão, por parte do credor, de um prazo razoável ao devedor para que
este cumpra a obrigação. Decorrido esse prazo e não tendo o devedor cumprindo a sua
prestação, deixa de estar em mora e passa a estar em incumprimento definitivo, e nessa
circunstância o credor pode, de facto, resolver o contrato. O artigo 808º está ligado ao
artigo 801º, sendo ambos importantes e necessários para se passar da mora ao
incumprimento definitivo, quando a prestação seja possível.

Caso nº 19
A vende a B 10 computadores RTE daqueles que tinha em stock. Ficou acordado
que os computadores deveriam ser entregues a B no dia 1 de junho. A 30 de maio,
por descuido do vigilante da empresa de A que deixou o portão do armazém aberto,
este é assaltado, sobrando só 7 computadores que os assaltantes não conseguiram
transportar. A pretende entregar estes 7 computadores a B, reduzindo
proporcionalmente o preço. B não aceita.
a) Tem razão? Quais os seus meios de defesa?
Em primeiro lugar, temos aqui uma obrigação genérica, determinada quanto a um
género e a uma quantidade, e delimitada, quanto aos bens que A tinha em stock. Houve
um assalto que levou a que os bens, neste caso, os computadores, ficassem reduzidos a 7
unidades. A questão que se coloca é se B pode recusar a entrega desses 7 computadores
que sobraram e, nessa medida, não realizar a sua contraprestação.

Temos de verificar qual é a causa do incumprimento, determinando se este é ou não


culposo, e de determinar se o incumprimento é temporário ou definitivo, para depois

31
Direito das Obrigações 2019/2020

analisar os seus efeitos. O que sucede aqui é que há A não poderá entregar a totalidade
dos computadores a B, configurando isto um incumprimento definitivo (porque o objeto
eram os computadores existentes em stock), mas parcial (visto que os computadores que
sobraram podem ser entregues). Note-se ainda que há um auxiliar que não cumpriu o seu
dever de vigilância, o que levou ao assalto e à consequente impossibilidade de realização
da entrega daqueles computadores. Assim, para além de ser uma impossibilidade
definitiva parcial, esta é também uma impossibilidade culposa.
Sendo um caso de impossibilidade parcial, aplica-se o regime do artigo 802º, CC.
Efetivamente, o credor pode exigir a entrega do que for possível, reduzindo a sua
contraprestação e tendo direito a uma indemnização pelo incumprimento.
Alternativamente, a resolução do contrato é também um direito que lhe assiste, o que
significa que não aceitaria a prestação parcial, ficando desvinculado da sua
contraprestação e pedindo uma indemnização. O cálculo dessa indemnização será feito
segundo o interesse contratual negativo (segundo a doutrina tradicional) ou segundo o
interesse contratual positivo (de acordo com a doutrina mais recente). Todavia, há um
travão – o do artigo 808º/2, CC – que impede o sujeito de resolver o contrato se o
incumprimento tiver escassa importância. Neste caso, o incumprimento não tem escassa
importância: B comprou 10 computadores, e desses 10 computadores apenas 7 podem ser
entregues. Trata-se então de um caso em que ele poderia resolver o contrato, ficando
desvinculado da sua contraprestação e podendo exigir uma indemnização pelo
incumprimento definitivo da totalidade da obrigação.
Note-se que o credor pode efetivamente exigir só a entrega de parte dos bens e reduzir
a contraprestação, todavia isso é um direito do credor, e não do devedor. Este último não
pode decidir entregar os 7 computadores e conduzir á redução proporcional do preço. É
uma escolha que não lhe compete.

b) A solução seria a mesma, se os computadores tivessem sido destruídos por


um incêndio fortuito, só restando os referidos 7?
Neste caso, continuamos a ter uma obrigação genérica, determinada quanto a um
género e a uma quantidade, e delimitada, quanto aos bens que A tinha em stock. O que
acontece é um perecimento do género, uma vez que este consistia nos computadores que
o vendedor tinha em stock, e este só tem possibilidade de entregar 7 computadores, e não
os 10 acordados. Temos aqui um caso em que não há culpa do devedor, portanto estamos
perante uma impossibilidade de realização da prestação não imputável ao devedor. Esta
é ainda uma impossibilidade parcial.
Sendo a obrigação genérica, a concentração dá-se na altura da entrega. Todavia, é
possível que a concentração, nos termos do artigo 441º, CC, se dê quando se verifica a
extinção de parte dos elementos do género. Os elementos que compõe o género, neste
caso, são aqueles computadores que o vendedor tinha em stock. Não fosse o género
delimitado dessa forma, o vendedor teria de entregar outros computadores e então, se
houvesse atraso, estaríamos única e exclusivamente face a uma situação de mora (pois o
incumprimento seria temporário).

32
Direito das Obrigações 2019/2020

Assim sendo, temos de aplicar o regime da impossibilidade definitiva parcial não


culposa, fixado no artigo 793º, CC. Nestas circunstâncias, aquilo que sucede é que há
uma redução proporcional da contraprestação, e o devedor tem o direito de exonerar-se
cumprindo com a prestação possível, ou seja, entregando os 7 computadores. De todo o
modo, é preciso articular estas regras com as regras do risco. Simplesmente aqui, aquando
o incêndio, os computadores não pertenciam ainda ao adquirente, por isso o risco corria
ainda por conta do alienante. Como ainda não tinha havido transmissão do risco, não se
aplica o artigo 796º, CC, apenas se aplica o artigo 793º, e é isto que justifica a
possibilidade de entrega da prestação parcial com redução proporcional da
contraprestação.
Era possível ainda, agora nos termos do artigo 793º/2, que o credor resolvesse o
contrato. No entanto, para ele resolver o contrato o circunstancialismo é diferente do do
artigo 802º/2 (impossibilidade definitiva parcial culposa). É preciso demonstrar que ele
perdeu o interesse na entrega só dos 7 computadores, teria de demonstrar que só tinha
interesse de 10 computadores, o que estaria relacionado com o fim que o adquirente
estaria a destinar aos mesmos.

Nota prática: em casos de incumprimento, importa qualificar a obrigação – específica ou


genérica. Depois disso, temos de recorrer a dois critérios para definirmos o quadrante no qual
vamos resolver a questão. Esses critérios são a culpa no incumprimento e o facto deste ser
temporário ou definitivo

Incumprimento Incumprimento
temporário e definitivo e
não culposo não culposo

Incumprimento Incumprimento
temporário e definitivo e
culposo - Mora culposo
(804º ss) (801º+803º)

Caso nº 20
A, grossista, obriga-se a fornecer ao supermercado B, 5 toneladas de laranjas,
no valor de € 25.000 para serem vendidas a Festa da Fruta que se irá realizar,
durante o fim-de-semana de 24 e 25 de maio, nesse supermercado. A iniciativa foi
muito publicitada, através da distribuição de panfletos e de spots nas rádios locais.
Como contrapartida, o supermercado B entregaria a A um camião usado no valor
de € 30.000. A, no entanto, não entrega as laranjas nos dois dias de festa, em virtude
de dificuldades no escoamento do produto, oferecendo-se, no entanto, para o fazer
mais tarde. A dita festa realiza-se, apesar de tudo, com outras variedades de fruta.

33
Direito das Obrigações 2019/2020

a) Quid iuris, sabendo que B, na festa, teria podido vender as 5 toneladas de


laranjas por € 50.000 no referido evento, e se não tivesse celebrado esse negócio
teria podido vender o seu camião a C por € 35.000?
Em primeiro lugar, A assume uma obrigação genérica, a ser cumprida numa
determinada data e num determinado local. O contrato em apreço não é de compra e
venda, mas sim um contrato de troca (troca das 5 toneladas de laranjas por um camião).
A atrasa-se, não realizando a prestação no tempo devido. Presume-se a culpa e incorre
em mora.
Acontece que o prazo fixado neste contrato era um prazo essencial, pois o sujeito só
tinha interesse em vender a fruta naqueles dois dias. Portanto, o que o credor teria de fazer
era comunicar, justificando, a perda de interesse objetivamente considerada – a fruta
destinava-se à realização daquela iniciativa, que já acabara. Assim, o devedor estaria em
incumprimento definitivo nos termos do artigo 808º/1, CC. Este artigo remete-nos para
o artigo 801º, CC.
O credor poderia simplesmente entregar o camião e exigir uma indemnização,
necessariamente calculada pelo interesse contratual positivo, de 50 mil euros. Ou seja, há
incumprimento definitivo da obrigação por parte do devedor, aqui A, grossista, mas o
contrato não se extinguiu. Assim, a contraparte continua vinculada à sua prestação e teria
de a realizar. A obrigação de entrega da mercadoria altera o objeto, que passa a ser a
indemnização pela não realização da prestação. Dessa não realização da prestação
decorreu um prejuízo no valor de 50 mil euros, logo a indemnização seria fixada nesse
valor.
Porém, o sujeito pode não querer entregar o camião, e o cenário será diferente. De
acordo com aquela que é a doutrina tradicional, o sujeito, resolvendo o contrato, provoca
a extinção das obrigações dele decorrentes, uma vez que a resolução tem efeitos
retroativos. Provocando-se a extinção, há imediatamente um efeito liberatório no que diz
respeito à realização da contraprestação – ele não tem de entregar o veículo. Tem direito
a uma indemnização, a questão é como é que esta se calcula. Conforme a doutrina
tradicional, a indemnização calcula-se pelo interesse contratual negativo, ou seja, por
aquilo que ele poderia ter obtido se não tivesse celebrado aquele contrato. Isto é, se o
credor não tivesse celebrado o contrato de aquisição de fruta ao devedor, ele poderia ter
vendido o camião por 35 mil euros. Significa isto que ele não entrega o camião, que vale
30 mil euros, e ele deixou de ganhar, sob forma de lucros cessantes, 35 mil euros. A
indemnização seria então fixada num valor de 5 mil euros, uma vez que foi calculada pelo
interesse contratual negativo e tem, então, de se retirar o valor da contraprestação (o valor
do camião).
Há uma diferença substancial entre uma indemnização pelo interesse contratual
positivo e uma indemnização pelo interesse contratual negativo. A perspetiva do Dr.
Batista Machado assenta na perspetiva do sinalagma, e aquilo que teríamos era o seguinte:
B não realizou ainda a prestação, ou seja, ainda não entregou o camião. O contrato de
troca, tal como um de compra e venda, é um contrato bilateral perfeito sinalagmático. Isso
significa que há aqui uma queda da realização de uma prestação, e consequentemente a
queda da realização de uma outra prestação. A impossibilidade de realizar uma das
prestações provoca imediatamente, por força da quebra do vínculo/nexo sinalagmático, a

34
Direito das Obrigações 2019/2020

desvinculação da obrigação de realizar a outra prestação, neste caso de entregar o camião.


Assim, B fica desvinculado de entregar o camião, o contrato mantém-se e ainda assim
tem direito a uma indemnização pelo interesse contratual positivo. Como o camião vale
30 mil euros e ele não o entrega, e como o teria podido revender o camião por 50 mil
euros, B teria direito a uma indemnização de 20 mil euros. Há segunda perspetiva que
não é diferente, em termos de resultado, daquela defendida pelo prof. Batista Machado,
mas que tem um enquadramento dogmático diferente. Havendo incumprimento definitivo
de uma das prestações, se o credor optar pela resolução do contrato, não temos tanto uma
destruição ex tunc do mesmo, mas antes uma reconfiguração da relação contratual. Essa
reconfiguração da relação contratual tem efeitos restitutórios, se a prestação já tiver sido
realizada (neste caso, se o camião já tivesse sido entregue), e tem efeitos liberatórios, caso
a prestação ainda não tenha sido cumprida. Nessa medida, B, que ainda não entregou o
veículo, fica liberado de o fazer, e tem direito a uma indemnização, já que estamos numa
relação liquidatória - ainda se insere no âmbito contratual embora vise a liquidação do
contrato. Essa indemnização será calculada pelo interesse contratual positivo, que aqui é
a diferença entre o valor que ele teria ganho e o valor do próprio camião, que ele mantém.
Também aqui o valor da indemnização seria de 20 mil euros.

Nota prática: na resolução de casos deste tipo, temos sempre de fazer referência à doutrina
tradicional e à do Dr. Batista Machado (ou à conceção desenvolvida pelo Professor). Isto porque,
apesar de, atualmente, a posição mais recente ser dominante em termos doutrinais, não é
necessariamente dominante em termos jurisprudenciais, logo temos de estar a par de ambas as
conceções.

b) Suponha agora que António vendera ao supermercado 5 toneladas de


laranjas que deveria entregar no dia 15 de maio nas instalações deste. António
dirige-se às referidas instalações, na data marcada, para entregar aí a
mercadoria, conforme fora acordado. Como o supermercado estava encerrado
e ninguém se encontrava lá para receber a mercadoria, o grossista teve, então,
que proceder ao transporte de regresso ao seu estabelecimento e de efectuar o
respectivo acondicionamento, no que despendeu um total de € 1.500. Passado
um dia, um temporal atingiu a região onde se situava o armazém onde a fruta
se encontrava, provocando a sua destruição. Quid iuris?
Continuamos a ter uma obrigação genérica. O credor não recebe a prestação, sem que
haja uma causa justificativa, logo estamos face a um caso de mora do credor. O devedor
teve necessariamente de trazer a mercadoria de regresso. Para esse efeito, gastou 1500
euros. Passado um dia, o temporal atingiu a região onde se encontrava o armazém em que
a fruta estava armazenada, provocando a sua destruição. Temos, assim, uma
impossibilidade de realização da prestação por facto não imputável ao devedor, uma vez
que ele, de forma não culposa, não vai poder entregar a fruta.
Quais são as consequências? Em termos de mora do credor, esta despesa adicional
de 1500 euros corre por conta do credor, que terá de pagar esse valor nos termos do artigo
816º. CC. Depois, uma vez que o credor não se encontrava no seu domicílio profissional,

35
Direito das Obrigações 2019/2020

acontece que o risco da impossibilidade de realização da prestação passa a correr por sua
conta, nos termos do artigo 815º/1, CC. Sendo o risco da impossibilidade superveniente
da prestação atribuído ao credor, o devedor não terá de realizar a sua prestação, mas o
credor não fica desvinculado de ter de realizar a sua.
Comparação com o caso 18, alínea b: há aqui uma diferença, pois neste caso tratamos
uma questão de risco e no anterior tratámos a atenuação da responsabilidade. Neste caso,
verificou-se uma impossibilidade de realização da prestação por facto não imputável nem
ao credor, nem ao devedor, logo o que nos cabe é apenas saber quem corre o risco. No
outro caso, em que também houve mora do credor, deu-se uma impossibilidade de
realização da prestação, mas aí foi por facto imputável ao devedor. Simplesmente, como
o devedor atuou com mera negligência e não com dolo, e como o credor estava em mora,
o primeiro viu a sua responsabilidade atenuada. São, portanto, circunstâncias diferentes.
O artigo 815º é uma questão de risco, já o artigo 814º é uma questão de atenuação da
responsabilidade do devedor, havendo uma atuação ilícita e culposa do mesmo.

36

Você também pode gostar