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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

PRIMEIRA COLETÂNEA DE CASOS PRÁTICOS

Caso n.º 1
Considerando as seguintes situações, qualifique e classifique o contrato em referência
em cada uma das alíneas e as prestações debitórias que constituem o objeto das
obrigações principais que dele emergem para cada uma das partes contratuais:

a) A 11 de Outubro, C vende a N o seu automóvel por 12.000€. Suponha sucessivamente


que:
1) Convencionam que o preço será pago cinco dias depois e que o carro será
entregue na mesma altura.
2) O carro é entregue de imediato. Convencionam que o preço será pago em 10
prestações de 1.200 € cada.

O contrato em causa é um contrato de compra e venda. Se é um contrato, é porque é um


negócio jurídico bilateral/sinalagmático – há duas partes que emitiram declarações negociais
no sentido da celebração do contrato. o contrato bilateral sinalagmático gera obrigações para
ambas as partes, obrigações essas que estão interligadas pelo nexo do sinalagma.

Este contrato é:
 Um contrato nominado (tem um nomen iuris atribuído pela lei);
 Um contrato legalmente típico (o legislador constituiu um regime que previu para
esta espécie negocial);
 Um contrato consensual (artigo 219.º CC) – não se exigem requisitos de forma, apesar
de serem exigidos requisitos de publicidade (registo);
 Um contrato oneroso (gera sacríficos patrimoniais para as ambas as partes – em regra
os contratos bilaterais são onerosos, mas nem sempre assim é);
 Um contrato real quod effectum – gera um efeito real, neste caso a transmissão do
direito de propriedade sobre o automóvel (artigo 874.º + 879.º CC). O contrato de
compra e venda produz efeitos reais (artigo 879.º, alínea a) do CC) e efeitos
obrigacionais. O momento em que se produz o efeito real é o momento da celebração
do contrato (artigo 408.º, n.º 1 do CC).
 Não é um contrato real quod constitutionem (quanto à constituição) – um contrato
real quanto à constituição é aquele em que não basta o mero acordo das partes para
que o contrato se convencione. Ao acordo das partes acresce um ato material,
nomeadamente a entrega da coisa. A entrega da coisa é um elemento constitutivo do
próprio contrato. Não é necessária a entrega da coisa para a conclusão do contrato. O
oposto ao contrato real quanto à constituição é contrato consensual (o contrato
consensual tem dois significados: não formal OU não real quanto à constituição),
forma-se por mero acordo das partes.

As partes são C e N – ambos são devedores porque estamos num contrato sinalagmático.
Temos, então, um comprador (N) e um vendedor (C). Obrigações principais das partes:
 A obrigação principal que nasce para o vendedor é a obrigação de entregar a coisa
vendida – quanto ao objeto, a prestação debitória é uma prestação de coisa; trata-se
de uma obrigação instantânea (cumpre-se num só momento temporal).
 A obrigação principal que nasce para o comprador é pagar o preço devido – quanto
ao objeto, a prestação debitória é uma prestação de coisa. Quando o pagamento se faz
de uma só vez trata-se de uma prestação debitória instantânea. Quando o pagamento
do preço é repartido em prestações chamamos a essa prestação de prestação debitória
fracionada – não é duradoura porque o tempo não conforma a extensão da obrigação.

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Caso de não pagamento das prestações: exceção de não cumprimento VS. perda de
benefício do prazo (artigo 781.º do CC – esta é a regra geral que se aplica a prestações
fracionadas; + artigo 934.º do CC – esta norma é uma norma especial que protege
mais o comprador do que o artigo 781.º). Se o comprador falhar no pagamento do
preço, se tiver havido entrega da coisa e transmissão da propriedade, em princípio o
vendedor não pode mais resolver o contrato por falta do pagamento do preço (artigo
886.º do CC). Perante o não cumprimento do comprador, o vendedor só vai poder
exigir de imediato o cumprimento de todas as prestações.

Estas obrigações estão ligadas pelo nexo jurídico do sinalagma. A razão de ser de uma das
obrigações constitui a razão de ser da outra. Temos como manifestação do sinalagma, por
exemplo, a exceção de não cumprimento (artigo 428.º do CC).

b) D obriga-se a proporcionar a G, professor, o gozo de uma fração autónoma


propriedade do primeiro, situada em Vila Real, durante três anos – período em que o
segundo se encontra colocado numa escola da região. Gonçalo obriga-se a pagar 400 €
por mês.

O contrato em questão é um contrato de arrendamento. O arrendamento é uma espécie de


locação – locação que respeita a um bem imóvel. Este bem imóvel é um prédio urbano –
assim, podemos dizer que se trata de um arrendamento urbano para habitação. Este contrato
é:
 Um contrato nominado;
 Um contrato legalmente típico;
 Um contrato oneroso – este contrato gera sacrifícios patrimoniais para ambas as
partes: o arrendatário tem de proceder ao pagamento da renda, o senhorio tem de
aceitar que outra pessoa use aquela fração autónoma abdicando ele de
comportamentos incompatíveis (ex.: ir ele viver para aquela fração económica). A
locação é sempre onerosa;
 Um contrato formal – a regra é de que não há exigências de forma (artigo 219.º), no
entanto, o artigo 1069.º do CC prevê que o contrato de arrendamento urbano deve ser
celebrado por escrito;
 Um contrato bilateral – gera obrigações para ambas as partes que estão ligadas pelo
nexo do sinalagma;
 Não é um contrato real quod effectum – não gera efeitos reais;
 Não é um contrato real quod constitutionem – não é um contrato real quanto à
constituição porque ele forma-se por mero acordo das partes. Este contrato, para se
perfeccionar, não exige a entrega da coisa locada.

As partes neste contrato são o locador/senhorio (D) e o locatário/arrendatário/inquilino (G).


As obrigações principais que recaem sobre as partes são:
 Obrigação principal do senhorio: assegurar o gozo da coisa locada (artigo 1031.º do
CC). Quanto ao objeto, a prestação debitória é:
 Alínea a) do artigo 1031.º do CC – prestação de coisa; prestação instantânea.
 Alínea b) do artigo 1031.º do CC – prestação de facto negativo de non facere
e de pati; prestação duradoura continuada.
 Obrigação principal do locatário (artigo 1038.º do CC): pagar a renda. Quanto ao
objeto, a obrigação de pagar a renda é uma prestação de coisa duradoura reiterada
periódica (o pagamento da renda faz-se apenas uma vez por mês, todos os meses – o
pagamento da renda faz-se com um período de periodicidade).
*nota: nas obrigações duradouras reiteradas não há perda do benefício do prazo –
aproximam-se das obrigações fracionadas, mas não se confundem com elas.

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c) A e L celebram um contrato pelo qual a primeira se obriga a realizar atividades de


secretariado, no escritório do segundo e sob a autoridade do mesmo. Este compromete-
se a pagar àquela 500 € por mês.

O contrato em questão é um contrato de trabalho – tem de haver a obrigação de uma das


partes de desenvolver uma atividade sob a autoridade e a direção da entidade empregadora,
mediante retribuição (artigo 1152.º CC). Este contrato é:
 Um contrato nominado;
 Um contrato legalmente típico – o regime do contrato de trabalho está previsto em
legislação especial (artigo 1153.º do CC), nomeadamente no CT;
 Um contrato oneroso – importa sacrifícios patrimoniais para ambas as partes
(empregador – pagamento da retribuição/salário; trabalhador – prestação do seu
trabalho);
 Um contrato bilateral – gera obrigações para ambas as partes que estão ligadas pelo
nexo do sinalagma;
 Um contrato formal – em regra não é um contrato formal, mas há situações/exceções
em que o é;
 Não se trata de um contrato real quanto aos efeitos nem de um contrato real quanto à
constituição – é um contrato consensual.

As partes no contrato de trabalho são o trabalhador e empregador/entidade empregadora. As


obrigações principais são:
 Obrigação principal do trabalhador – prestação do seu trabalho. A obrigação que tem
por objeto uma prestação de facto positivo material e é uma prestação duradoura
continuada.
 Obrigação principal do empregador – pagar a retribuição. A obrigação tem por objeto
uma prestação de coisa duradoura reiterada periódica.

d) E obriga-se a vender a R um terreno, de que o primeiro é proprietário em Vila do


Conde. A segunda obriga-se a comprá-lo. Convencionam que a escritura pública de
compra e venda será celebrada 3 meses depois.

O contrato em questão é um contrato de promessa de compra e venda. O contrato de promessa


é um contrato preliminar do contrato de compra e venda. Este contrato é:
 Um contrato nominado;
 Um contrato tipificado na lei (artigo 410.º do CC);
 Um contrato bilateral – gera obrigações para ambas as partes, obrigações essas que
estão ligadas pelo nexo do sinalagma, pois E obriga-se a vender e R obriga-se a
comprar;
 Um contrato formal – ao contrato de promessa aplica-se um princípio de equiparação
(aplica-se o regime do contrato prometido/definitivo), é o que resulta do artigo 410.º
do CC, mas há dois desvios: quanto à forma do contrato de promessa, não se aplica a
forma do contrato prometido; o contrato de promessa, em regra, não está sujeito a
forma, mas neste caso aplicam-se os nºs 2 e 3 do artigo 410.º do CC.
 Não é um contrato real quanto à constituição nem um contrato real quanto aos efeitos.
Em regra, o contrato de promessa não produz efeitos reais. Todavia, por vezes, o
contrato de promessa pode ter efeitos reais, mas isso é excecional (artigo 413.º CC).

As partes deste contrato são o promitente vendedor (E) e o promitente comprador (R).

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Obrigações principais que recaem sobre estas partes:


 Obrigação principal do promitente vendedor – obriga-se a emitir a declaração
negocial de venda.
 Obrigação principal do promitente comprador – obriga-se a emitir a declaração
negocial de compra no futuro.
Quanto ao objeto: estas obrigações têm por objeto prestações de facto positivo
jurídico; são prestações instantâneas.

e) No dia 1 de Setembro, F entrega ao vizinho S, a sua gata, para que este a guarde
durante a sua quinzena de férias, e lha devolva quando ela regressar.

O contrato em questão é um contrato de depósito, regulado nos artigos 1185.º e ss do CC (é


uma das subespécies do contrato de prestação de serviços – artigo 1155.º do CC). Este
contrato é um contrato:
 Nominado;
 Tipificado legalmente;
 Gratuito (artigo 1186.º do CC, que manda aplicar o artigo 1158.º do CC);
 Unilateral – só gera obrigações para uma das partes (o depositário), mas pode vir a
ser bilateral imperfeito;
 Contrato real quanto à constituição – a entrega da coisa depositada é o momento da
constituição do negócio. Assim sendo, entrega da gata pelo depositante é o momento
constitutivo do contrato.
 Contrato consensual.

As partes deste contrato são a depositante (F) e o depositário (S).

Obrigações principais do depositário:


 Obrigação de guardar a coisa (prestação de facto positiva material) – obrigação
duradoura continuada;
 Obrigação de restituir a coisa no final (prestação de coisa) – obrigação instantânea.

O depositante não tem nenhuma obrigação porque o depósito é gratuito. Isto, em regra, pois
temos as exceções do artigo 1199.º do CC – estando em causa essas exceções este contrato
passará a ser um contrato bilateral imperfeito.

f) A 1 de Maio, Z empresta a O 15.000 €, pelo prazo de 3 anos, à taxa de 5%. Os juros


devem ser pagos anualmente.

O contrato em questão é um contrato de mútuo. Este contrato é:


 Legalmente típico (artigos 1142.º e ss do CC);
 Nominado;
 É um contrato unilateral porque não há obrigações para ambas as partes, só gera
obrigações para o mutuário (a obrigação de restituir a quantia mutuada e pagar os
juros remuneratórios). Para o mutuante não nasce nenhuma obrigação, a entrega da
coisa mutuada é um elemento constitutivo do próprio contrato e não uma obrigação
(isto porque estamos num contrato real quanto à constituição);
 É um contrato consensual, em regra, mas dependendo da quantia mutuada pode
transformar-se num contrato formal (artigo 1443.º do CC) – neste caso temos um
contrato formal;
 Contrato oneroso – há sacrifícios patrimoniais para ambas as partes: para o mutuário,
o sacrifício é pagar os juros (juros remuneratórios) e, para o mutuante, o sacrifício é

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a perda da disponibilidade da quantia mutuada. Em regra os contratos onerosos são


contratos bilaterais, mas este é um dos exemplos de contratos unilaterais onerosos;
 Negócio real quanto à constituição – a entrega da coisa depositada é o momento da
constituição do negócio.

As partes são o mutuante (aquele empresta o dinheiro) – Z – e o mutuário – O.

Obrigações do mutuário (prestação debitória):


 Obrigação de restituir a quantia mutuada: prestação de coisa; prestação instantânea
(em regra a quantia mutuada é restituída no final do contrato).
 Obrigação de pagar os juros remuneratórios (juros que remuneram a quantia
mutuada): prestação de coisa; prestação duradoura (o tempo conforma a dimensão,
extensão da prestação – os juros pagam-se anualmente; se se falhar um ano, não se
cobram os juros dos outros anos) de execução reiterada periódica (uma vez por ano).

Caso n.º 2
A celebra com B um contrato pelo qual o primeiro se obriga a dar preferência ao
segundo na venda de 100 ações da Sociedade X. Estipulam uma cláusula penal no valor
de 10.500 €. Decorridos 4 meses e meio, C apresenta a A uma proposta muito vantajosa
para a compra das referidas 100 ações. A informa-o, de imediato, do contrato com B. C,
pretendendo concluir com a maior brevidade o negócio, persuade A a não comunicar a
B a intenção de venda de ações e os termos do projetado negócio. Compromete-se ainda
a pagar os 10.500 € no caso de B vir a acionar a cláusula penal acordada. B pretende
obter de C uma indemnização pelos danos que sofreu. Terá razão?

Problemática da eficácia externa das obrigações:


A e B celebraram um pacto de preferência, que está previsto nos artigos 414.º e ss do CC. O
pacto de preferência é um negócio jurídico pelo qual uma parte (o obrigado à preferência) se
obriga a, caso decida celebrar um determinado negócio, a dar preferência a uma outra pessoa
(à outra parte) tanto por tanto (em igualdade de circunstâncias). Isto quer dizer que uma parte
fica obrigada a dar preferência e a outra parte é titular de um direito de preferência. O obrigado
à preferência é A, o titular do direito de preferência é B. Este pacto de preferência tem eficácia
meramente obrigacional – todavia, nos termos do artigo 421.º, o pacto de preferência pode
dotar-se de eficácia real. A posição do obrigado à preferência é uma posição complexa – o
obrigado à preferência, caso decida vender as 100 ações, tem de comunicar ao titular do
direito à preferência (tem de fazer a notificação para preferência). A notificação para
preferência tem de revestir certas características: só há notificação se já houver um negócio
delineado com um terceiro. Havendo um negócio acertado com um terceiro, o obrigado à
preferência tem de fazer a notificação à preferência, que pressupõe que o obrigado à
preferência tem de notificar a sua intenção de vender e o projeto do negócio. Neste caso,
quando C faz a proposta apetecível, estando A disposto a vender – A deveria ter notificado a
preferência a B, mas não o fez porque foi persuadido por B – incumpriu/violou a sua
obrigação de dar preferência, cuja consequência é a responsabilidade contratual/obrigacional
(artigo 483.º do CC) porque o pacto de preferência tem eficácia meramente real. Assim sendo,
A deve indemnizar a contraparte dos prejuízos por ela sofridos. As partes convencionaram
uma cláusula penal (artigo 810.º do CC), portanto, A responde à luz da cláusula penal.

Saber se C pode indemnizar B pelos danos que este sofreu levanta a problemática da eficácia
externa das obrigações. A eficácia externa das obrigações não respeita a saber se o terceiro
é obrigado a cumprir (a obrigação de cumprir recai apenas para o devedor), respeita, ao invés,
a saber se um terceiro, quando o seu comportamento colabora/coopera no incumprimento do
direito de crédito, pode ser responsabilizado.

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Perante este problema, temos diversas respostas da doutrina portuguesa:


 Parte da doutrina aceita a eficácia externa das obrigações – aceita que um terceiro
venha a ser responsabilizado pelo seu comportamento que dificulte ou impossibilite
o cumprimento da obrigação. Neste caso, significa aceitar que C vai responder pelo
seu ato que conduziu à celebração de um contrato incompatível com o cumprimento
da obrigação. Neste caso, o comportamento do terceiro traduziu um ataque ao direito
de crédito do devedor – o terceiro coopera com o devedor na produção do ato lesivo
do crédito. Então, esta parte da doutrina convoca o disposto no artigo 483.º do CC. À
luz deste entendimento, o artigo 483.º pode aplicar-se quando haja a violação de
qualquer direito, incluindo os direitos de crédito. Para esta parte da doutrina este
artigo não abrange apenas os direitos absolutos, abrange também a violação dos
direitos de crédito, portanto, para esta parte da doutrina esta é a solução que resulta
diretamente do artigo 483.º CC. Importa sublinhar que a doutrina que defende a
eficácia externa das obrigações exige, para responsabilizar terceiros, a verificação
cumulativa dos 5 pressupostos/requisitos previstos no artigo 483.º do CC:
 Ato;
 Ilicitude (traduz-se na violação do direito de crédito);
 Culpa (negligência ou dolo – culpa que respeita à violação dos direitos de
crédito, o que nos leva a dizer que os direitos de crédito não gozam da
publicidade natural de que gozam os direitos de personalidade ou direitos das
coisas). Nem sempre os direitos de crédito são cognoscíveis por terceiro e
essa circunstância tem de ser tida em conta na aferição da culpa.
 Dano;
 Nexo causal.
Segundo este entendimento, a aplicação rigorosa destes pressupostos não leva a uma
responsabilização excessiva do terceiro. Aliás, este entendimento oferece a proteção
adequada aos interesses em jogo, num tempo em que a riqueza se faz muito de valores
mobiliários e de direitos de crédito. Este entendimento é defendido por vários autores,
sobretudo da Escola de Lisboa: Dr. Menezes Cordeiro, Dr. Galvão Teles, Dra. Rita
Amaral Cabral.
 A doutrina maioritária entre nós defende um entendimento diverso – doutrina
defendida pelos autores da Escola de Coimbra e da Escola do Porto: rejeitam a
eficácia externa das obrigações, entendem que não há eficácia externa das obrigações
em regra. Sustentam o seu entendimento com os seguintes argumentos:
1. Convocam um argumento de ordem sistemática, recordando que a violação dos
direitos de crédito merece a aplicação do regime previsto nos artigos 798.º e ss
do CC. Assim sendo, a aplicação deste regime especial afasta a aplicação do
regime geral do artigo 483.º do CC. Ao artigo 483.º do CC serão reconduzíveis
as violações dos diretos absolutos, nomeadamente os de personalidade e os reais.
2. Quando a lei confere oponibilidade a terceiros a posições jurídicas fá-lo
expressamente/diretamente – é o caso do disposto no artigo 495.º, n.º 3 do CC.
Também podem ser apontados os artigos 413.º e 421.º do CC – podem ser
apresentados como casos de eficácia externa das obrigações, no entanto, podem
até ser perspetivados de forma diversa. Ou seja, pode até afirmar-se que a
oponibilidade erga omnes nesses dois casos não é uma característica associada
aos direitos de crédito per se, mas é uma característica dos direitos reais, que
nascem nas esferas jurídicas dos titulares do direito de crédito: são direitos reais
de aquisição.
3. Argumento de natureza teleológica – a solução para esta problemática deve evitar
uma responsabilização excessiva que conduz a uma paralisação do tráfego
jurídico-negocial.

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Por todas estas razões, esta parte da doutrina diz que não há eficácia externa das
obrigações. No entanto, o terceiro pode ser responsabilizado em certos casos:
convoca-se para o efeito a norma do artigo 334.º do CC – quando o terceiro atue em
abuso do direito, nos termos do artigo 334.º, ele pode ser chamado a responder ao
abrigo do artigo 483.º do CC. A maioria da doutrina que defende este entendimento
não considera procedente a objeção de que o que está a ser exercido abusivamente
não é um direito, mas sim uma liberdade primária de contratar – a maioria da doutrina
aplica o artigo 334.º também ao exercício abusivo da liberdade de contratar. Há, no
entanto, uma voz dissonante, que é a do professor Carneiro da Frada, que entende que
o artigo 334.º do CC não pode aplicar-se diretamente ao exercício abusivo da
faculdade primária de contratar – há, segundo o autor, nesse caso, uma lacuna para
preenchimento da qual se convoca o artigo 334.º por aplicação analógica.

Qualquer que seja o entendimento que seja adotado neste caso, o terceiro pode ser
responsabilizado. Portanto, poderá A e também C ser responsabilizados pelos danos sofridos
por B. Havendo uma cláusula penal, o montante indemnizatório corresponderá ao montante
da clausula penal. A obrigação é plural, vincula A e C, seguindo o regime da solidariedade se
se considerar o aplicável o disposto no artigo 497.º. Todavia, a regra de Direito Civil é a da
conjunção (artigo 513.º do CC).

Caso n.º 3
A joga no Clube X. O seu contrato abrange as próximas duas épocas. É o principal
marcador da equipa, tendo decidido muitos jogos com remates certeiros. Num dia de
folga, enquanto dá um passeio pelo centro da cidade onde o clube se situa, é atropelado
por B que circulava em excesso de velocidade.

a) A sociedade titular do referido clube pretende responsabilizar o autor do


atropelamento pelos danos que para ela resultaram da morte de A, já que se viu
obrigada a encontrar no mercado um avançado que o substituísse nas várias
competições disputadas pelo clube. Quid iuris?

A sociedade tinha em face ao jogador um contrato de tralhado – poder de direção e de


subordinação. O direito da sociedade titular do clube é titular de um direito de crédito sobre
o jogador. Sendo o jogador atropelado, há um ato que é um ataque ao substrato do crédito, há
um ataque à pessoa do devedor, que não pode mais cumprir o contrato. Há um terceiro que
pratica um ato que consubstancia um ataque à pessoa do devedor. Esta problemática é a
problemática da eficácia externa das obrigações – pode um terceiro responder pelo direito de
crédito da sociedade?
 Parte da doutrina diz que há eficácia externa das obrigações – entende que se pode
aplicar o regime do artigo 483.º no caso de violação dos direitos de crédito.
 A doutrina maioritária rejeita a eficácia externa das obrigações – entende que o artigo
483.º não se aplica à violação dos direitos de crédito; rejeita a eficácia externa das
obrigações e admite que o terceiro só pode ser responsabilizado se houver o
mecanismo do abuso de direito (artigo 334.º).

Perante estes dois caminhos, quid iuris?


1. Segundo a doutrina que aceita a eficácia externa das obrigações, aplica-se o artigo
483.º do CC. Todavia, neste caso, os pressupostos não estão verificados – falta o
elemento da culpa porque este requisito é aferido em relação ao direito de crédito (ele
não tem culpa na violação do direito de crédito). Não vai haver responsabilização do
terceiro, pois não há culpa na violação do direito de crédito da sociedade.

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2. Segundo a doutrina que rejeita a eficácia externa das obrigações, aplica-se o regime
do abuso de direito (artigo 334.º), havendo responsabilidade civil extracontratual
perante os lesados pelo ato ilícito (artigo 483.º). Porém, B não exerce nenhum direito,
faculdade ou liberdade de forma abusiva – B pratica um ato ilícito, não há abuso de
direito. Assim, não há responsabilização do terceiro.

Quer se siga uma parte da doutrina ou a outra, o resultado é o mesmo: o terceiro não vai ser
responsabilizado.

b) E C, filho de A, poderá demandar B pela perda de 350 € mensais que o pai lhe
prestava em cumprimento da obrigação de alimentos que sobre ele impendia em
conformidade com a decisão judicial relativa à regulação do exercício das
responsabilidades parentais?

Temos uma decisão judicial que manda a A pagar 350€ mensais a C, seu filho. Temos também
um ataque à pessoa do devedor, ao substrato do direito de crédito. Esta questão invoca a
problemática da eficácia externa das obrigações. Para este caso específico, o legislador
consagrou uma resposta no artigo 495.º, n.º 3 do CC – em caso de morte aqueles a quem o
lesado presta alimentos pode exigir uma indemnização. Este artigo permite C exigir a B uma
indemnização pela perda da prestação alimentar. Esta prestação é inequívoca da eficácia
externa das obrigações. C pode exigir uma indemnização a B.

Esta norma, para aqueles que defendem a eficácia externa das obrigações, é uma manifestação
da eficácia externa das obrigações. Para a doutrina que recusa a eficácia externa das
obrigações, esta norma é uma norma excecional, daí a sua importância.

Caso n.º 4
No dia 1 de Janeiro de 2015, A compra o automóvel de B, por 24.000 €, com estipulação
de uma cláusula de reserva de propriedade até integral pagamento do preço. O carro é
entregue de imediato ao comprador, acordando-se que o preço seria pago em 12
prestações mensais de 2.000 € cada. No mesmo dia, A celebra com C um contrato de
arrendamento de uma fração autónoma, por um período de um ano, para onde se muda
de imediato. É estipulado o pagamento de uma renda mensal de 1.000 €. Devido a
dificuldades económicas, A não paga a 7.ª e a 8.ª prestações do preço do automóvel, nem
a renda do mês de julho.
a) Quais as diferenças do regime aplicável ao incumprimento de cada um dos contratos?
Contrato de compra e venda:
 Contrato legalmente típico – o legislador atribui-lhe um nomen iuris a regula-o nos
artigos 874.º e ss do CC;
 Contrato oneroso – importa sacrifícios patrimoniais para ambas as partes;
 Contrato bilateral – gera obrigações para ambas as partes, obrigações essas ligadas
pelo nexo do sinalagma. Desde logo, as obrigações principais: obrigação de pagar o
preço (devedor) e obrigação de entregar a coisa vendida (credor).
 Não é um contrato real quanto à constituição/quod constitutionem – o contrato
perfeciona-se pelo mero acordo das partes.
 Contrato real quanto aos efeitos/quod effectum – artigo 879.º, al. a) do CC.
 Contrato consensual – se for um imóvel ele será formal; estar sujeito a registo isso
não é uma questão de forma, é apenas uma questão de publicidade.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Obrigações principais:
 Entregar a coisa vendida – prestação de coisa instantânea;
 Pagar o preço – prestação de coisa (a obrigação que tem por objeto o dinheiro como
meio de pagamento é uma obrigação pecuniária) instantânea que foi fracionada. O
tempo só se repercute no modo de pagamento, não influi no pagamento em si.

Perante uma situação destas (não pagamento das 7ª e 8ª prestações), que regras vamos aplicar?
 Perda do benefício do prazo (artigo 781.º do CC – regra geral): o credor pode exigir
já o cumprimento de todas as prestações; as prestações futuras vencem-se. O devedor
deixa de ter a faculdade de poder esperar pelo decurso do tempo para cumprir.
1. “Importa o vencimento de todas” – há autores que entendem que esse vencimento
é automático; mas há outros autores que sublinham que este vencimento não é
automático, defendem que essas as prestações se tornam exigíveis (o credor pode
exigir – é uma faculdade, ele “pode”).
2. Esta norma aplica-se a prestações instantâneas que foram fracionadas (a
obrigação não está dependente do tempo que passa), não se aplica a prestações
duradouras.
Artigo 934.º do CC (regra especial) – esta norma tem duas partes: questão da
resolução (referida infra) e perda do benefício do prazo. A regra especial quanto à
perda do benefício do prazo tem requisitos que têm de se verificar cumulativamente:
1. Tem de ser uma compra e venda;
2. Compra e venda a prestações;
3. Tem de ter sido feita a entrega da coisa.
No caso em concreto estão verificados todos os requisitos. Então, neste caso não há
perda de benefício do prazo se faltar o pagamento de uma só prestação que não exceda
a oitava parte do preço. Então haverá perda do benefício do prazo quando está em
falta só uma prestação que não exceda a oitava parte do preço ou quando estão em
falta duas ou mais prestações qualquer que seja o seu montante.

Esta norma do artigo 934.º protege mais o comprador do que o artigo 781.º. Como neste caso
não foram pagas duas prestações, então haverá perda do benefício do prazo (aplica-se o artigo
934.º) – o credor pode exigir as prestações futuras. Não se aplica a regra geral do artigo 781.º
porque se aplica a regra especial do artigo 934.º do CC.

sem embargo de convenção em contrário – a doutrina tem entendido que é uma norma
imperativa porque é uma norma que protege o comprador. Pode haver convenção em
contrário se ela proteger mais ainda o comprador.

Assim sendo, o vendedor pode exigir as prestações que venceram e as que faltam, como pode
exigir as prestações seguintes. Todavia, ele pode também querer resolver o contrato (artigo
934.º). Temos de ter em atenção o artigo 886.º do CC (norma supletiva) – se neste caso não
houvesse cláusula de reserva de propriedade o vendedor não poderia resolver o contrato por
falta do pagamento do prazo. Só porque as partes convencionaram uma cláusula da reserva
de propriedade (artigo 409.º), que impede a transferência do direito real por mero efeito do
contrato, é que vai haver possibilidade de resolução do contrato por falta do pagamento do
preço – o vendedor mantém o direito de resolver o contrato por falta do pagamento do preço.
Assim, ele pode resolver o contrato, mas em que casos?
 O facto de não ter havido o pagamento das prestações no momento devido, isso
significa que o devedor incorreu em mora. Em regra não basta a mera mora, é preciso
converter a mora em incumprimento definitivo para que haja resolução. A resolução
(artigo 801.º) pressupõe um incumprimento definitivo, não basta, em regra, a mera
mora para resolver o contrato. Como é que se converte a mora em incumprimento

9
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

definitivo? Através da interpelação cominatória/admonitória – a cominação e a


admonição são avisos com ameaça: declaração do credor dirigida ao devedor em
mora pela qual o credor concede ao devedor em mora um prazo adicional para ele
cumprir, prazo esse que tem de ser razoável, sob a cominação/admonição/ameaça de
que se não cumprir neste prazo adicional que lhe é concedido, a obrigação se tem por
definitivamente incumprida.
 Regra do artigo 934.º do CC – a resolução, para poder ser exercida, não basta que
esteja em falta uma só prestação que não exceda uma oitava parte do preço. Isso
significa que tem de estar em falta uma prestação que não exceda uma oitava parte
do preço ou têm que estar em falta duas ou mais prestações. No nosso caso estavam
em falta duas prestações. Portanto, convertida a mora em incumprimento definitivo,
o vendedor pode resolver o contrato. Aplicamos o artigo 934.º do CC porque é uma
compra e venda a prestações, porque houve cláusula de reserva de propriedade e
porque houve entrega imediata da coisa. Havendo resolução do contrato, a eficácia é
retroativa (artigo 434.º), pelo que as prestações realizadas vão ter de ser restituídas,
pelo que o comprador tem de restituir a parte do preço que já recebeu (as prestações
que já foram pagas).

Contrato de arrendamento:
 Contrato legalmente típico;
 Contrato oneroso;
 Não é um contrato real quanto à constituição nem um contrato real quanto aos efeitos;
 Contrato bilateral – gera obrigações para ambas as partes, que estão ligadas pelo nexo
do sinalagma.

Obrigações principais:
 Obrigação de pagar a renda – prestação de coisa; obrigação pecuniária (isto porque
tem por objeto o dinheiro como meio de pagamento); prestação duradoura reiterada
periódica.
 Obrigação da entrega da coisa locada – prestação instantânea.
 Obrigação de assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que a coisa se destina –
a obrigação tem por objeto uma prestação de facto com componentes principais
negativas (seja de non facere, seja de pati), mas também pode ter componentes
principais positivas (de facere); prestação duradoura continuada.

O que é que o senhorio pode fazer perante o incumprimento? O senhorio pode, nos termos do
artigo 1041.º do CC, exigir a renda em atraso, acrescida de uma indemnização (= a 20% do
que for devido). Podem ser exigidas as rendas seguintes? Há perda do benefício do prazo?
Não, pois esta não é uma dívida instantânea que foi fracionada, esta é uma dívida duradoura
reiterada periódica, o que quer dizer que as rendas futuras estão conexionadas com o tempo
que ainda vai decorrer e não podem ser antecipadas. O senhorio só pode exigir a renda em
falta, mais a indemnização prevista no artigo 1041.º do CC.

Se o senhorio optar pela resolução do contrato, a resolução tem efeitos para o futuro (artigo
434.º, n.º 2 do CC). Por que é uma relação duradoura, os efeitos da resolução não são
retroativos – uma vez resolvido o contrato, ele extingue-se para o futuro.

Em síntese:
 Nas prestações instantâneas fracionadas pode haver perda do benefício do prazo; nas
prestações duradouras não há perda do benefício do prazo;
 Nas prestações instantâneas fracionadas a resolução tem efeitos retroativos; nas
prestações duradouras a resolução tem efeitos apenas para o futuro.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

b) Suponha agora que A vende o automóvel a C, acordando que o automóvel devia ser
entregue a este último no início de março - altura em que o A receberia o seu novo
veículo - e que o preço deveria ser pago no início do mês de julho. Considerando que A
descobre, em finais de fevereiro, que a situação económica de C se deteriorou
consideravelmente em virtude de um endividamento excessivo, pode aquele recusar-se
a entregar-lhe o automóvel? (hipótese independente).

Contrato de compra e venda onde não há entrega e o pagamento imediato e a situação


económica de C deteriora-se. Exceção de não cumprimento (artigo 428.º do CC) – a exceção
de não cumprimento é um instrumento previsto para os contratos bilaterais, mas para que ela
funcione o artigo 428.º exige que o cumprimento das obrigações seja simultâneo. Acontece
que neste caso as obrigações não são cumpridas em simultâneo. O artigo 429.º alarga a
exceção de não cumprimento aos contratos bilaterais em que não há simultaneidade do
cumprimento, permitindo que aquele que tem de cumprir primeiro possa recusar-se a cumprir
se se verificar posteriormente à celebração do contrato alguma das circunstâncias que
importam a perda do benefício do prazo.

Nesta hipótese o cumprimento das duas obrigações principais ligadas pelo nexo do sinalagma
(obrigação de entregar a coisa vendida e obrigação de pagar o preço) devem ser cumpridas
em momento diferente. O carro deve ser entregue no início de março, o preço dever ser pago
no início de junho. Portanto, a possibilidade de recorrer à exceção de não cumprimento
depende dos requisitos previstos no artigo 429.º do CC. Ora, coloca-se a questão da
interpretação que deve ser dada a este artigo. Nos termos do artigo 429.º, aquele que tem de
cumprir primeiro pode recusar-se a cumprir se se verificar posteriormente à celebração do
contrato alguma das circunstâncias que importam a perda do benefício do prazo. As
circunstâncias que importam a perda do benefício do prazo estão previstas no artigo 780.º do
CC e são três:
1. Se o devedor se tornar insolvente, mesmo que a insolvência não tenha sido declarada;
2. Se houver uma diminuição das garantias de crédito por causa imputável ao devedor;
3. Se o devedor não prestar as garantias prometidas por causa que lhe é imputável.

São estas situações que permitem que se possa recorrer à exceção do não cumprimento. A
este propósito, a doutrina diverge:
 A maioria da doutrina faz uma interpretação desta norma de uma forma próxima ao
elemento literal: se não se verificar uma destas 3 causas, não há lugar à exceção de
não cumprimento nos casos do artigo 429.º.
 O Dr. Ribeiro de Faria, apesar de reconhecer que esta solução que decorre mais
diretamente da letra da lei, entende que essa pura interpretação dada ao artigo faz com
que o artigo perca o seu conteúdo útil porque sendo os prazos das obrigações distintos
e havendo a perda do benefício do prazo para aquele que tem que cumprir em segundo
lugar, a discrepância temporal desaparece – as obrigações passam a ter de ser
cumpridas ao mesmo tempo. Ora, se passam a ter de ser cumpridas ao mesmo tempo,
a exceção de não cumprimento pode ser usada ao abrigo do artigo 428.º. Portanto, o
Dr. Ribeiro de Faria entende que para que esta norma possa ter algum conteúdo útil
deve abranger-se aqui também a hipótese de deterioramento patrimonial que faça
perigar o cumprimento da outra prestação (ex.: receio de insolvência).

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Caso n.º 5
A dirige-se com a sua filha, B, ao estabelecimento comercial de C para encomendar um
smoking para vestir no casamento do seu filho, D, que se realizaria daí a um mês.
Enquanto A consultava os mostruários da loja, B escorrega e cai numa esfregona que
F, empregada de limpeza de C, tinha descuidadamente deixado para trás aquando da
limpeza, fraturando uma perna. Em consequência do acidente, B sofre várias
escoriações no braço esquerdo e parte a perna direita. Os tratamentos prolongam-se
durante algumas semanas e o seu custo ascende a várias 1.500 euros. Quem responde, e
com que fundamento, face a B?

B pode peticionar uma indemnização pelos danos sofridos e pode fundar essa pretensão na
responsabilidade extra obrigacional e na responsabilidade obrigacional.

Começando pela responsabilidade extra obrigacional: ao abrigo da responsabilidade extra


obrigacional, pode ser responsabilizada a empregada da limpeza (F) e o seu patrão (C)
solidariamente, nos termos seguintes:
 F responde ao abrigo do artigo 483.º do CC – trata-se de uma responsabilidade
subjetiva que pressupõe a reunião dos seguintes pressupostos: facto/ato voluntário do
agente; ilicitude; culpa; danos; nexo causal entre os danos e o ato. Neste caso, o ato
da empregada é um ato omissivo, é uma omissão (artigo 486.º do CC) – a omissão só
gera o dever de indemnizar se houver um dever jurídico de adotar o ato que foi
omitido. Resultava para F o dever de não deixar a esfregona no meio do
estabelecimento aberto ao público – podemos fundar esse dever pelo contrato de
trabalho ou podemos convocar aqui a chamada teoria dos deveres de segurança no
tráfego ou teoria dos deveres de prevenção do perigo. Segundo esta teoria, aquele que
cria ou mantém uma fonte de perigo no tráfego jurídico tem o dever de adotar os atos
necessários para que o perigo não se converta em dano. Seja invocando o contrato de
trabalho ou esta teoria, há um dever de indemnizar. Portanto, seja por via do artigo
483.º ou do artigo 486.º, F responde.
 Também responderá C na qualidade de comitente, ao abrigo do artigo 500.º do CC.
Para tal, é preciso que se verifiquem os seguintes três requisitos:
1. Tem de existir uma comissão (uma comissão é uma atividade desenvolvida pelo
comissário por conta e sob a direção do comitente);
2. Os danos têm de ser praticados no exercício das funções acometidas à comissão;
3. Sobre a comissária deve recair uma obrigação de indemnizar (artigo 483.º do CC).

Verificados estes requisitos, responde F ao abrigo do artigo 483.º conjugado com o 486.º e C
ao abrigo do artigo 500.º do CC, solidariamente (é o que resulta do n.º 3 do artigo 500.º e do
artigo 497.º).

Ao lado da via extra obrigacional, pode trilhar-se/optar-se pela via obrigacional. A via
obrigacional pressupõe que se convoque aqui a figura da relação obrigacional complexa. À
luz desta figura, ao lado de outras espécies de deveres, nascem deveres laterais ou acessórios
de conduta que emergem do princípio da boa-fé. No nosso caso, estão em causa deveres de
proteção. Pela violação dos deveres de proteção responderá C, na medida em que ele responde
pelos atos dos auxiliares que ele utilize para cumprir a obrigação (artigo 800.º do CC). A
proteção concedida pela afirmação destes deveres abrange não só as partes, mas também
alguns terceiros – os terceiros que se encontram especialmente conexionados com as partes
ou com a prestação debitória a ponto de o credor esperar para eles a mesma proteção que é
oferecida ao credor. Estes deveres existem mesmo na fase pré-contratual, é o que resulta do
artigo 227.º do CC – estes deveres laterais existem independentemente dos deveres principais.

12
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Portanto, obrigacionalmente, responderá apenas C, na medida em que responde pelos atos


dos seus auxiliares (artigo 800.º).

Há cúmulo de responsabilidade? Quando podemos aplicar teoricamente os dois regimes,


coloca-se o problema de concurso de responsabilidades. Para este problema são apresentadas
várias respostas na doutrina e na jurisprudência:
 Uma parte da doutrina e da jurisprudência defende que há cúmulo de
responsabilidades – podem ser aferidas uma de 3 soluções para quem defende isto:
1. Teoria da dupla ação – à luz desta teoria, em ações autónomas podem ser
formulados pedidos indemnizatórios independentes. Crítica: não faz sentido que
haja duas ações para reparar/indemnizar os mesmos danos.
2. Teoria da ação híbrida – à luz desta teoria, só é proposta uma ação, podendo o
lesado recorrer a regras da responsabilidade obrigacional e a regras da
responsabilidade extra obrigacional para fundamentar o seu pedido, conforme o
regime se adeque à sua pretensão. Crítica: os regimes foram pensados
unitariamente, não fará sentido que o lesado escolha normas de um e de outro.
3. Teoria da opção – à luz desta teoria, cabe ao lesado escolher ou fundar o seu
pedido na responsabilidade obrigacional ou fundar o seu pedido na
responsabilidade obrigacional (o lesado escolhe unitariamente o regime).
 Há autores que entendem que não há cúmulo de regimes – não havendo cúmulo de
regimes, isso ocorre porque o regime da responsabilidade obrigacional consome o
regime da responsabilidade extra obrigacional. Conceptualmente, quando ambos os
regimes podem aplicar-se, deve ser aplicado o regime da responsabilidade
obrigacional. É a função mais conforme conceptualmente porque há fenómeno de
consumação e é a função que materialmente mais protege o lesado.

Caso n.º 6
A 1 de Julho de 2009, F vende o seu automóvel a G. Acordam o preço de 24.000 € a ser
pago de uma só vez. Convencionam que a entrega do automóvel se fará daí a 5 dias,
altura em que terminarão as obras de conservação da garagem de G.

I - Considere sucessivamente que:


a) Na data acordada, F não entrega o automóvel, mas exige o pagamento dos 24.000 €.
Quid iuris?

G pode recusar-se a pagar o preço enquanto não lhe for entregue o carro – aplica-se aqui o
artigo 428.º do CC porque estamos perante um contrato bilateral e as obrigações em causa
são as obrigações principais que estão ligadas pelo nexo do sinalagma (obrigação de pagar o
preço e obrigação de entregar a coisa vendida). Acresce que não há prazos diferentes para
cumprir – o carro deve ser entregue passado 5 dias, conforme foi convencionado pelas partes,
e o preço deve ser pago no momento da entrega da coisa vendida por aplicação da norma
supletiva do artigo 885.º do CC.

G pode, então, não pagar o preço e pode seguir uma de duas vias:
1. Por um lado, pode exigir o cumprimento coativamente, recorrendo à ação creditória
(artigo 817.º) – pode exigir judicialmente a condenação de F na entrega do carro
através de uma ação declarativa condenatória e pode depois, munido do título
executivo, propor uma ação executiva. Pode peticionar também uma indemnização
por danos moratórios (artigo 804.º do CC).
2. Em alternativa, ele pode optar pela via resolutória indemnizatória (manifestação da
bilateralidade) – como estamos perante um contrato bilateral, nos termos do artigo
801.º, n.º 2, o comprador pode resolver o contrato perante o incumprimento da

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

obrigação principal por parte do vendedor. Para o efeito, o incumprimento tem de ser
um incumprimento definitivo, não basta a mera mora. Assim, haverá que converter a
mora em incumprimento definitivo através da interpelação cominatória ou
admonitória.

Neste caso, não se aplica o obstáculo previsto no artigo 886.º. Optando pela resolução, o
comprador tem ainda direito a ser indemnizado nos termos do artigo 801.º, n.º 2 – a resolução
é cumulável com a indemnização.

b) F, apesar de entregar o veículo a G, não lhe entrega o livrete do automóvel. G recusa-


se a pagar os 24.000 €. Terá razão?

A obrigação de entregar o livrete é uma obrigação acessória – o cumprimento da obrigação


principal sem a entrega do livrete não satisfaz o interesse do credor. O automóvel serve
primacialmente para o credor se deslocar – o credor não pode deslocar-se na via pública sem
o livrete. Por isso, a obrigação de entregar o livrete pode ser qualificada como dever
secundário acessório da prestação principal – sem o seu cumprimento, o cumprimento do
dever principal de prestação não satisfaz o credor. Estes deveres secundários acessórios da
obrigação principal ainda são cobertos pelo sinalagma, o que quer dizer que pode lançar-se
mão dos mecanismos tradutores do sinalagma funcional/tradutores do nexo de
correspetividade entre as obrigações, nomeadamente:
a) O comprador pode não pagar o preço enquanto não lhe for entregue o livrete,
lançando mão da exceção de não cumprimento (artigo 428.º do CC).
b) O comprador pode exigir judicialmente a entrega do livrete, acrescida de uma
indemnização por danos causados pelo atraso na entrega do livrete (mora) –
indemnização pelos danos moratórios (artigo 804.º do CC).
c) Pode haver resolução do contrato neste caso (manifestação do sinalagma funcional)
por falta de entrega do livrete desde que haja conversão da mora em incumprimento
definitivo – com a resolução é cumulável uma indemnização (artigo 801.º, n.º 2 do
CC). Esta conversão faz-se, em regra, através da interpelação cominatória ou
admonitória. Se se resolvesse o contrato, as consequências seriam as seguintes:
i. A resolução tem efeitos extintivos com eficácia retroativa, o que significa que
as obrigações que tivessem sido cumpridas vão ter de ser restituídas (vai ter
de entregar o carro, p.e.).

c) O indicador do nível de óleo no visor frontal daquele veículo funcionava de modo


inverso ao do da generalidade dos automóveis daquele modelo e daquela marca, em
virtude de um erro na montagem de uma série de automóveis. F não informa G desta
especificidade. Por isso, G não se apercebe da falta de óleo e o motor acaba por gripar.
Quid iuris?

A obrigação principal foi cumprida, mas está aqui em causa uma outra obrigação: dever
lateral acessório de conduta, mais especificamente um dever de informação. O comprador
pode exigir uma indemnização porque temos um cumprimento defeituoso.

Neste caso o vendedor não informou do modo de funcionamento do indicador e deveria ter
informado. O princípio da boa-fé (boa-fé em sentido objetivo) impõe às partes um conjunto
de deveres – são deveres cuja existência, conteúdo e dimensão varia em função do caso
concreto. Estes deveres que emergem do princípio da boa-fé servem o interesse do credor
para além do interesse na prestação (não se esgota no interesse da prestação). O
incumprimento destes deveres faz nascer uma obrigação de indemnização pelos danos

14
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

causalmente conexionados com o incumprimento desse dever. O fundamento para a


obrigação de indemnizar encontra-se no artigo 798.º do CC.

Pode ser exigido judicialmente o cumprimento? Não. Na maioria das vezes não se pode exigir
o seu cumprimento coativo porque o nascimento destes deveres muitas vezes só se torna
patente com o seu incumprimento.

Trata-se de situações de cumprimento defeituoso (incumprimento de um dever de


informação) – 3ª categoria de incumprimento. Incumprimento quanto aos efeitos:
1. Mora;
2. Incumprimento definitivo;
3. Cumprimento defeituoso.

Incumprimento do dever de informação  obrigação de indemnizar os danos (é um dever


secundário com prestação autónoma cumulativo/complementar em relação à obrigação
principal).

d) Na noite anterior à data acordada para a entrega do automóvel, F usa-o para se


deslocar a uma festa de aniversário de um amigo. No regresso a casa, conduzindo em
excesso de velocidade e com um nível de álcool muito elevado no sangue, não consegue
travar atempadamente num sinal vermelho, indo embater num outro veículo. Em
virtude deste acidente, o automóvel fica totalmente destruído. Quid iuris?

Obrigação principal que se tornou impossível por causa imputável ao devedor. Neste caso
verifica-se uma impossibilidade culposa de cumprir a obrigação principal de entregar a coisa
vendida. No âmbito obrigacional vigora uma presunção de culpa (artigo 799.º do CC).
Consequência deste impossibilidade culposa (artigo 801.º, n.º 1 do CC):
 Constitui-se uma obrigação de indemnizar – gera-se um dever de indemnizar pelos
danos gerados por esse incumprimento. Esta indemnização é uma indemnização pelo
interesse contratual positivo (ou indemnização pelo interesse do cumprimento) – esta
indemnização coloca o credor na situação em que ele estaria se não se tivesse
verificado o incumprimento; coloca o credor na posição em que ele estaria se se
tivesse verificado o cumprimento pontual.

Esta obrigação de indemnizar é um dever secundário com prestação autónoma substitutiva da


obrigação principal – o carro não pode ser entregue, portanto a indemnização visa substituir
a prestação que se tornou impossível.

Caso n.º 7
A vende a B, com entrega imediata, uma máquina corta-relva, tendo-se acordado que o
preço deveria ser pago, passados dois meses sobre essa data. A 2 de agosto, B revende a
máquina a C.

a) Quais são os meios de defesa ao dispor de A, no caso de B não pagar o preço na data
acordada?
A pode exigir o cumprimento – se o cumprimento não for feito voluntariamente ele pode
acionar a máquina do Estado, recorrendo à ação creditória de cumprimento (artigo 817.º do
CC). A ação creditória abrange duas componentes:
1. O credor pode exigir judicialmente o cumprimento, acrescido de uma indemnização
pelos danos moratórios (artigo 804.º do CC) – ação declarativa condenatória. A
obrigação de indemnização por danos moratórios nas obrigações pecuniárias*

15
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

(obrigação de pagar o preço) é a obrigação de pagar juros moratórios (artigo 806.º do


CC).
2. O credor pode executar o património do devedor para obter o montante em dívida –
ação executiva. Por este incumprimento respondem todos os bens do devedor – a
garantia geral do credor é o património do devedor (artigo 601.º do CC) – se o
património for insuficiente, A pode não receber a totalidade do preço.

*obrigações pecuniárias são diferentes de obrigações de prestação de facto ou de coisa – nas


primeiras incorre-se na obrigação de pagar juros moratórios (o credor não precisa de
demonstrar os danos); nas segundas incorre-se em obrigação de indemnização por danos
moratórios (cabe ao credor demonstrar os danos que teve em concreto).

Imaginemos que A pretende apenas que lhe seja entregue o corta-relva (e não a
indemnização), pode A resolver o contrato? Foi transmitida a propriedade da coisa por mero
acordo das partes, pela celebração do contrato (artigo 408.º, n.º 1 do CC – transferência do
efeito real por mero efeito do contrato). O proprietário da coisa é B por mero efeito do
contrato, portanto, como B é proprietário da coisa ele podia vender a C. Como foi também
feita a entrega da coisa, o vendedor não pode resolver o contrato por falta de pagamento do
preço (artigo 886.º do CC).

Requisitos do artigo 886.º do CC:


 Transmissão do direito real;
 Entrega da coisa.

b) Suponha que no contrato entre A e B havia sido aposta uma cláusula de reserva de
propriedade até pagamento integral do preço. Quid iuris?

A cláusula de propriedade é admitida no artigo 409.º do CC. Clausulou-se uma cláusula de


reserva de propriedade até pagamento integral do preço: o direito real não se transfere por
mero efeito do contrato – A continua a ser proprietário do corta-relvas; B só será proprietário
quando houver pagamento integral do preço, pois enquanto não houver não há transferência
do direito real. Assim, num caso destes, para além da via enunciada na alínea a), o vendedor
já pode resolver o contrato. Neste caso, o vendedor pode resolver o contrato por falta do
pagamento do preço porque não se aplica o limite do artigo 866.º do CC, pois convencionou-
se a cláusula de reserva de propriedade. Todavia, ele não pode resolver o contrato pela mora,
vai ter de converter a mora em incumprimento definitivo, nomeadamente através da
interpelação cominatória (declaração do credor ao devedor em mora através da qual lhe
concede um prazo adicional e razoável para cumprir, sob pena de se não o fizer nesse prazo
se tem a obrigação por definitivamente incumprida). A resolução tem efeitos restitutórios, o
que quer dizer que A vai poder exigir a entrega/restituição do corta-relva a C, mesmo que C
esteja de boa-fé (desconheça sem culpa a cláusula de reserva de propriedade).

O artigo 409.º, n.º 2 diz Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só
a cláusula constante do registo é oponível a terceiros – aqui nem temos um imóvel nem um
móvel sujeito a registo, temos um bem móvel não sujeito a registo, portanto, a cláusula
convencionada entre as partes é oponível a terceiros.

A venda entre B e C é nula por ser uma venda de bens alheios (artigo 292.º do CC). Assim,
C tem de entregar, portanto, o corta-relvas a A. Como a venda que B fez é nula, A vai poder
exigir a B aquilo que lhe pagou – efeitos restitutórios. Nos termos do artigo 801.º, n.º 2 do
CC, Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do
direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação,

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

exigir a restituição dela por inteiro – com a resolução é cumulável a indemnização. Pode
ainda C exigir a B aquilo que foi pago pelo corta-relvas – este terceiro fica fortemente
desprotegido.

c) Suponha que C desconhecia a cláusula, e que B era um revendedor daquele tipo de


máquinas.

Aplica-se o artigo 1301.º do CC porque C está de boa-fé e porque comprou a coisa a um


comerciante que negoceie em coisa do mesmo ou semelhante género. Assim, A, que exige de
C o corta-relva que C comprou de boa-fé a B, comerciante que negoceia em coisa do mesmo
ou semelhante género de corta-relva, é obrigado a restituir o preço que C tiver dado pelo
corta-relva. Ou seja, A, ao exigir o corta-relva a C, tem de lhe entregar aquilo que C pagou
por ele. Depois, A é titular de um direito de regresso face a B, aquele que deu causa
culposamente ao prejuízo.

Caso n.º 8
Em setembro de 2014, A celebra com C um contrato-promessa de compra e venda, pelo
qual se comprometem respetivamente a vender e a comprar um edifício de que o
primeiro é titular e se situa nos arredores da cidade de Guimarães. O contrato é
celebrado através de documento assinado por ambos. No mesmo, as partes
convencionam que a compra e venda deverá ser celebrada decorrido um ano sobre a
data da celebração do contrato-promessa. Ademais acordam que o preço será de
200.000 €. Numa outra cláusula do contrato-promessa estipulam o afastamento da
execução específica. C entrega a A, aquando da celebração do contrato-promessa,
50.000 € e passa a habitar o edifício. Em junho de 2014, A havia obtido um empréstimo
do Banco X, constituindo como garantia do crédito deste uma hipoteca sobre o referido
edifício. Entretanto, verifica-se um acentuado aumento do valor dos edifícios situados
na zona, em virtude de diversos melhoramentos nas vias rodoviárias adjacentes e num
aumento das ofertas de lazer na área circundante. Em setembro de 2015, o imóvel de
que Alberto é proprietário vale 280.000€.

Pergunta-se:
a) O Banco X vem invocar a nulidade do contrato-promessa. Pode fazê-lo? Que interesse
terá nessa invocação?

Estamos perante um contrato-promessa de compra e venda:


 Contrato-promessa de compra e venda bilateral porque gera para ambas as partes a
obrigação de emitirem as declarações negociais respetivas que formarão o contrato
definitivo/prometido;
 Contrato-promessa de compra e venda sinalizado (artigo 441.º do CC) – presunção
de que toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente devedor tem
caráter de sinal (esta presunção é ilidível/afastável);
 Contrato-promessa de compra e venda com tradição da coisa: o promitente devedor
entregou ao promitente comprador a coisa que vai ser objeto do contrato definitivo –
há tradição da coisa;
 Contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional – como não estão
observados os requisitos do artigo 413.º do CC, este contrato é um contrato com
eficácia meramente obrigacional;
 Contrato de promessa de compra e venda é subsumível ao artigo 410.º, n.º 3 do CC
porque é um contrato-promessa de compra e venda de um edifício. Há um princípio
de equiparação no n.º 1 que consente duas exceções e uma delas é relativa à forma.
A aplicação do n.º 3 do artigo 410.º no que diz respeito à forma pressupõe a aplicação

17
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

do n.º 2 do artigo 410.º CC – as exigências do n.º 3 adicionam-se às exigências do n.º


2.
Qual é a forma exigida neste caso? É exigida escritura pública pelo n.º 2 do
artigo 410.º CC – como é exigido este documento, no caso escritura pública, para a
celebração do contrato definitivo (artigo 875.º do CC), o contrato-promessa tem de
constar de documento assinado por ambas as partes porque o contrato-promessa é
bilateral. Neste caso foi respeitada esta exigência, mas não basta este documento. Ou
seja, para além disso, o n.º 3 exige o reconhecimento presencial das assinaturas e
certificação da existência de licença de construção ou utilização – estas formalidades
do n.º 3 não foram verificadas. Não estando observadas estas formalidades no n.º 3
do artigo 410.º, o contrato-promessa é nulo (nulidade atípica). Pode o banco invocar
essa nulidade?
Nos termos do artigo 410.º, n.º 3, última parte, o promitente alienante é A –
A só pode invocar a omissão destes requisitos do 410.º, n.º 3 quando a omissão tenha
sido culposamente causada pela contraparte (C – promitente adquirente). Isto resulta
claro e inequívoco da lei. Porém, devido a esta parte final, surgiu uma querela
doutrinal, no sentido de se saber se esta nulidade que deriva da omissão das
formalidades do 410.º, n.º 3 pode ser invocada por terceiro interessado e se pode ser
declarada oficiosamente pelo tribunal. Houve esta querela que dividiu a doutrina:
 Alguns autores respondiam afirmativamente de que podia ser declarado por
terceiro interessado e declarada oficiosamente pelo tribunal – argumento:
estes autores defendem que esse é o regime geral (artigo 286.º); ou seja, para
além da limitação à legitimidade de invocação da nulidade pelo promitente
alienante aplica-se o regime geral (os autores entendem que se o legislador
quisesse uma solução diferente deveria fazê-lo expressamente). Como
defensor deste entendimento temos o prof. Antunes Varela.
 Entendimento encabeçado pelo professor Calvão da Silva – esta parte da
doutrina veio destacar a razão de ser desta norma. Esta norma visa proteger o
promitente adquirente/comprador que, em regra, é um leigo/consumidor que
recorre ao contrato-promessa no âmbito de um procedimento conducente à
aquisição de casa para habitação própria. Este prof. veio destacar que esta
norma é uma norma pública de proteção – esta norma serve interesses
superiores que respeitam à proteção do promitente mais frágil e, portanto,
para que a finalidade prosseguida pelo legislador seja cabalmente cumprida é
necessário concluir que os terceiros, ainda que interessados, não podem
invocar esta nulidade e que ela não pode ser declarada oficiosamente pelo
tribunal. Ou seja, a proteção do promitente adquirente só é alcançada se ele
for a única pessoa com legitimidade para invocar esta nulidade. Com exceção
da parte final do 410.º, n.º3.

O STJ, perante os acórdãos contraditórios sobre a matéria, proferiu dois assentos que
hoje valem como acórdãos de uniformização de jurisprudência:
1. Assento de 28 de junho de 1994 – o STJ decidiu que esta nulidade não pode ser
invocada por terceiros interessados.
2. Assento de 1 de fevereiro de 1995 – o STJ decidiu que esta nulidade não é de
conhecimento oficioso pelo tribunal.
Através destes dois assentos, o STJ veio aderir à tese defendida pelo professor Calvão
da Silva. Assim sendo, o banco não podia invocar a nulidade (era terceiro interessado,
que não pode invocar a nulidade segundo esta tese defendida). O banco é terceiro
interessado porque é titular de uma hipoteca que incide sobre a fração autónoma que
A prometeu vender a C. Ora, estando nós perante um contrato-promessa sinalizado e
com tradição da coisa, em caso de incumprimento pelo promitente alienante, o

18
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

promitente adquirente pode recorrer à via resolutória indemnizatória peticionando


uma das duas indemnizações previstas no artigo 442.º, n.º 2 (ou indemnização sobre
o dobro do sinal ou a indemnização sobre o aumento do valor da coisa), estando esta
indemnização garantida por um direito de retenção nos termos do artigo 755.º, n.º 1,
al. f) do CC. Este direito de retenção do promitente adquirente (C) prevalece sobre a
hipoteca de que o banco X é titular, ainda que a hipoteca tenha sido constituída
anteriormente, como acontece neste caso (artigo 759.º, n.º 2 do CC). Significa isto,
portanto, que em caso de venda judicial para pagamento aos credores, o promitente
adquirente C é pago prioritariamente em relação ao banco (por isso é que o banco
queria que o contrato-promessa fosse declarado nulo, mas não pode).

b) Quid iuris se A, em setembro de 2015, se recusar a celebrar a escritura de compra e


venda? Refira-se à posição jurídica de C, articulando-a com a posição creditória do
Banco X.

Aqui vamos considerar que o contrato-promessa é válido porque estão reunidas as


formalidades do artigo 410.º, n.º 3 do CC, ou, sendo nulo por omissão das formalidades 410.º,
n.º 3 do CC, o promitente adquirente não invoca a sua nulidade. Se o A, no momento em que
deveria cumprir, se recusa a cumprir, entra em mora. Porém, se a recusa for terminante, a
doutrina portuguesa entende que esta recusa equivale a incumprimento definitivo – no
entanto, não temos dados para saber isto, o que nos leva a concluir que A estará em mora.

Perante a mora de A, C pode recorrer a duas vias:


1. Via resolutória e indemnizatória – estando A em mora, surge desde logo a problemática de
saber se num contrato-promessa sinalizado basta a mera mora para resolver o contrato e a
doutrina divide-se a este propósito:
 Uma parte da doutrina (professores Antunes Varela, Ribeiro de Faria e Almeida
Costa) vem entender que o disposto no artigo 442.º, n.º 3, 2ª parte permite que num
contrato-promessa sinalizado o contraente fiel possa resolver o contrato perante a
mera mora da contraparte. Estes autores criticam a solução, mas entendem que é a
solução que foi acolhida pela lei. Estes autores fundam o seu raciocínio na seguinte
argumentação:
i. O contra direito, previsto no artigo 442.º, n.º 3, parte final, de o promitente
faltoso se oferecer para cumprir quando lhe é exigida a indemnização pelo
aumento do valor da coisa só se encontra previsto para a situação de não haver
ainda incumprimento definitivo (salvo disposto no artigo 808.º).
ii. Se é assim, é porque esta indemnização pode ser exigida perante a mera mora.
Ora, se basta a mera mora para exigir a indemnização mais gravosa
(indemnização pelo aumento do valor da coisa) então também bastará a mera
mora para exigir a indemnização menos gravosa (indemnização por dobro do
sinal) por um argumento de maioria de razão.
iii. Se é assim para o cumprimento do promitente alienante, também assim deverá
ser para o incumprimento do promitente adquirente, atento o espírito
igualitário que subjaz ao mecanismo do sinal. Quer dizer, perante o
incumprimento do promitente adquirente e face à mera mora dele, o
promitente alienante pode fazer seu o sinal. Concluem pois estes autores que
no âmbito do contrato-promessa sinalizado basta a mera mora para resolver o
contrato e acionar o mecanismo do sinal.
 A outra parte da doutrina, encabeçada pelo prof. Calvão da Silva e pelo prof. Galvão
Teles, entende que a resolução do contrato-promessa sinalizado segue a regra geral.
É, portanto, necessário converter a mora em incumprimento definitivo,

19
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

nomeadamente através da interpelação cominatória. Eles justificam este


entendimento com os seguintes argumentos:
i. O pedido de uma indemnização nos termos do artigo 442.º, n.º 2 pressupõe a
resolução do contrato-promessa e a resolução do contrato-promessa
pressupõe o incumprimento definitivo.
ii. Trazem à colação o elemento literal da norma (que se reporta a deixar de
cumprir a obrigação, ao não cumprimento, etc.), que aponta para um
incumprimento definitivo.
iii. Trazem também à colação o elemento histórico – fundado no preâmbulo do
diploma que alterou a norma do artigo 442.º, n.º 3 e dele resulta, segundo
estes autores, que não basta a mera mora para resolver o contrato.
iv. Estes créditos indemnizatórios são garantidos pelo direito de retenção (artigo
755.º, n.º 1, al. f)). O direito de retenção só faz sentido jurídico quando o
retentor (titular do direito de retenção) tem o dever de restituir a coisa retida
– ele só tem este dever de entregar a coisa em caso de incumprimento
definitivo.
v. Se é assim, não faz sentido que uma das partes se possa oferecer para cumprir
o contrato que já foi resolvido, na medida em que a resolução destrói
retroativamente o contrato. Estes autores vêm dizer que têm de interpretar
convenientemente esta norma porque ela tem uma contradição interna
insanável. Portanto, estes autores vêm dizer que temos de fazer uma
interpretação ab-rogante da norma.
 O prof. Menezes Leitão tem uma posição intermédia e entende que basta a mera mora
para exigir a indemnização pelo aumento do valor da coisa, mas as outras só podem
ser exigidas perante o incumprimento definitivo. Este prof. fica a meio do
entendimento do prof. Antunes Varela.
Portanto, quer se siga a primeira tese (perante a mera mora), quer se siga a segunda
tese (convertendo a mora em incumprimento definitivo), o promitente adquirente
pode exigir uma indemnização ou pelo dobro do sinal (100 mil euros = 50 mil x 2)
ou uma indemnização pelo aumento do valor da coisa (280 mil - 20 mil + 50 mil =
130 mil euros). Em qualquer um destes casos, o crédito indemnizatório está garantido
por um direito de retenção previsto no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do CC e este direito de
retenção prevalece sob a hipoteca constituída em favor do banco (artigo 759.º, n.º 2).

2. Via da execução específica – via que o promitente adquirente quer seguir porque já está a
habitar o imóvel e quer comprar a casa. Esta via está aberta, está à disposição do promitente
adquirente, que pode recorrer à execução especifica neste caso apesar de o contrato-promessa
ser sinalizado (veja-se o artigo 830.º, n.º 2) e apesar da cláusula pela qual as partes afastaram
execução específica. Estamos perante um contrato-promessa subsumível ao artigo 410.º, n.º
3, pelo que, nos termos do artigo 830.º, n.º 3, a execução específica não pode ser afastada
pelas partes. Portanto, o sinal não vale aqui como convenção em contrário da execução
específica e a cláusula pela qual as partes afastam a execução específica é nula por violação
de uma norma imperativa (artigo 830.º, n.º 3) – retiramos esta conclusão do artigo 294.º do
CC. O promitente adquirente pode pois propor uma ação de execução específica pela qual o
tribunal, substituindo-se ao promitente faltoso na emissão da declaração negocial de venda
dará por celebrado o contrato definitivo. A esta possibilidade não se opõe o facto de a lei
exigir para o contrato definitivo escritura pública – aliás, foi isso que o STJ decidiu no assento
de 30 de janeiro de 1985. Procedendo à ação de execução específica, C adquirirá a fração
autónoma onerada com a hipoteca do banco X se entretanto a mesma não tiver sido cancelada.
Assim, nos termos do artigo 830.º, n.º 4, C, recorrendo à execução específica, deveria cumular
com o pedido principal um outro pedido: o pedido de condenação de A (promitente alienante)

20
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

no pagamento da quantia devida ao banco correspondente à fração autónoma para que com
esse dinheiro C possa expurgar a hipoteca, pagando ao banco.

Caso n.º 9
A promete vender e B promete comprar um prédio rústico no Alentejo, em setembro de
2014. O preço acordado foi de 100.000 euros. B entrega a A 20.000 euros e passa de
imediato a cultivar o terreno. Marcam a celebração da escritura pública de venda para
daí a um ano. Três meses antes da data acordada, é inaugurada uma nova auto-estrada
para o Algarve que passa na proximidade do referido terreno. Este valoriza-se,
passando a valer o dobro do valor que tinha aquando da celebração do contrato-
promessa. Então, aquando da data fixada para a realização da escritura pública, A não
comparece no cartório notarial.

a) Suponha que o contrato havia sido só assinado por A, quid iuris?

Estamos perante um contrato-promessa:


1. É um contrato-promessa bilateral – ambos se obrigam a celebrar no futuro o contrato
definitivo deste prédio rústico (uma compra e venda).
2. É um contrato-promessa de compra e venda sinalizado por aplicação da presunção do
artigo 441.º do CC: No contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem
carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-
vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.
3. É um contrato-promessa com tradição da coisa (B começa a cultivar o terreno).
4. Este contrato-promessa não é um contrato subsumível ao artigo 410.º, n.º 3 do CC
(contratos relativos à transferência real sobre edifício ou fração autónoma dele em
construção ou construído).

O contrato é reduzido a escrito num documento assinado só por A. Quanto à forma exigida
para o contrato-promessa vigora o princípio da liberdade de forma (artigo 219.º do CC), mas
depois há desvios.
1. Quanto à forma não se aplica o princípio da equiparação, apesar esse ser o princípio
geral quanto ao contrato-promessa.
2. A forma para o contrato-promessa de compra e venda de prédio rústico está prevista
no artigo 875.º. Ou seja, em princípio vale o princípio da liberdade de forma (artigo
219.º), a menos que haja uma exigência especial (artigo 410.º, n.º 2).
3. Quanto ao contrato definitivo é exigido por lei um documento, qualquer que seja a
subespécie do documento (autêntico ou particular), o contrato-promessa tem de ser
celebrado por escrito assinado pela parte ou pelas partes que se vinculam. O artigo
875.º, quanto à forma do contrato definitivo, diz o seguinte Sem prejuízo do disposto
em lei especial, o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for
celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado – tinha de
haver um documento escrito e assinado por ambas as partes porque neste caso o
contrato-promessa é um contrato-promessa bilateral (ambas as partes se vinculam a
celebrar o contrato definitivo). Porém, o documento foi apenas assinado por A.
Desrespeitou-se a forma prevista no artigo 410.º, n.º 2 do CC.

Consequências de o documento ter sido assinado apenas por A:


 Não se respeitou a forma exigida por lei – o contrato-promessa é nulo (220.º do CC).
Trata-se de uma nulidade típica.
 Relativamente a nulidade do contrato-promessa, há consenso na doutrina e na
jurisprudência, sendo a posição maioritária, defendendo que o negócio pode ser
aproveitado e pode valer como contrato-promessa unilateral – a questão é a de saber

21
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

se esse aproveitamento se faz por via da redução ou da conversão. A partir de um


assento de 1977 (26 de abril), o STJ veio decidir no sentido de que estávamos perante
uma nulidade, o negócio era nulo, a nulidade era uma nulidade necessária, mas não
se pronunciava no sentido de ser uma nulidade total ou parcial. Até que foi proferido
o assento de 29 novembro de 1989 sobre esta, matéria que não foi esclarecedor (o
contrato-promessa bilateral de compra e venda de imóvel exarado em documento
assinado apenas por um dos contraentes é nulo, mas pode considerar-se valido como
contrato-promessa unilateral, desde que essa tivesse sido da vontade das partes).
Pode ser aproveitado o negócio, pode valer como promessa unilateral – o STJ diz que
esse aproveitamento pode ser feito se essa tivesse sido a vontade das partes. O texto
do assento é contraditório. Aqui, tal como o assento foi formulado, parece atender à
vontade real e não foi assim que as figuras da conversão e da redução foram
construídas. Há parte da doutrina que diz que o aproveitamento se faz pela redução
(artigo 292.º) e outra parte da doutrina diz que o aproveitamento se faz pela conversão
(artigo 293.º). Esta questão que divide a doutrina tem um impacto prático muito
significativo. Dependendo da tese que se adote, o ónus da prova é distribuído
diversamente quando há aproveitamento do negócio:
 Se se defender a aplicação da redução isso significa que se entende que a
invalidade é meramente parcial. Sendo meramente parcial, à luz da tese da
redução, o negócio vale automaticamente ope legis como negócio sem a parte
viciada. Assim, será a parte interessada em que o negócio seja considerado
totalmente inválido que tem o ónus da prova. É essa parte que vai ter de provar
que sem a parte viciada o negócio não teria sido celebrado. A prática ensina-
nos que em regra é o promitente vendedor que quer demonstrar a invalidade
total. Portanto, a tese da redução não o favorece porque é ele que tem o ónus
da prova.
 Para quem defende a tese da conversão, a invalidade é total (artigo 293.º) –
afeta todo o negócio, o negócio é totalmente nulo, mas pode converter-se num
negócio diferente se se demonstrarem os requisitos do artigo 293.º do CC. O
ónus da prova de demonstração desses requisitos recai sobre quem estiver
interessado na conversão – recai sobre aquele que quer que o negócio valha
como promessa unilateral. Em regra, na prática, é o promitente adquirente
que está interessado nessa conversão.

A doutrina dividiu-se face ao assento:


 Parte da doutrina que defende a conversão:
1. Para esses autores uma promessa unilateral é um negócio diferente de uma
promessa bilateral, ou seja, a transformação de uma promessa bilateral em
promessa unilateral tem que ocorrer através da conversão porque é um negócio
diferente. Para eles o contrato-promessa bilateral é formado por duas promessas
unilaterais. Se partirmos de um contrato-promessa bilateral damos origem a um
contrato de promessa unilateral necessariamente por força da conversão – não
basta a cisão da parte viciada. Portanto, não aceitam desde logo que se possa
operar a cisão da promessa bilateral, dando origem a uma promessa unilateral.
2. Bilateralidade da promessa: vêm destacar que o contrato-promessa é bilateral e
se é bilateral a obrigação assumida por uma das partes encontra a sua causa na
obrigação assumida pela outra parte. Ou seja, um promete vender porque o outro
promete comprar; um promete comprar porque o outro promete vender.
Consequentemente, é reflexo do sinalagma genético que a nulidade de uma das
obrigações se repercuta na outra – se uma é invalida, isso acarreta a invalidade da
outra, quebra-se o sinalagma. Portanto, para estes autores a invalidade é total e
aplica-se a conversão.

22
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

 Parte da doutrina que defende a redução:


1. Quem defende a redução vem dizer que a invalidade é parcial e que afeta só a
declaração negocial a que falta a forma e não afeta a outra declaração negocial.
2. Eles entendem que este negócio é objetiva e subjetivamente cindível – sem a parte
viciada, é uma promessa unilateral. Perante a vontade das partes em abstrato, o
contrato pode ser cindível e ele valerá como promessa unilateral.
3. Nem sequer é decisiva a afirmação do caráter bilateral da promessa porque a
bilateralidade do contrato-promessa é instrumental da bilateralidade do contrato
definido
4. Interesses em jogo: estes autores que defendem a tese da redução vêm destacar
os interesses em jogo e vêm destacar que a tese da redução vem defender o
promitente-comprador, que em regra é a parte mais fraca.

Perante estes caminhos, sabemos que este negócio pode ser considerado:
 Totalmente nulo:
 Se se optar pela tese da conversão e o negócio não for convertido;
 Ou se, tendo-se optado pela tese da redução, a parte com o ónus da prova tiver
provado que as partes não teriam celebrado o contrato sem a parte viciada.
Se o contrato for considerado totalmente nulo, as consequências são as seguintes:
1. O negócio nulo não produz efeitos;
2. A nulidade opera retroativamente;
3. Nos termos do artigo 289.º do CC, as prestações realizadas têm de ser
restituídas.
Sendo nulo, as partes não se encontram vinculadas e A vai ter de restituir o sinal in
singelo (por si) e B tem de restituir o terreno porque já tinha havido tradição da coisa.
 Mas o negócio pode valer como promessa unilateral – se valer como tal, quid iuis?
O contrato pode valer como promessa unilateral se se optar pela redução e a parte
interessada na invalidade total não se tiver satisfeito o ónus probatório. Ou se se optar
pela tese da conversão e a parte interessada na conversão tiver sido bem sucedida. A
não compareceu no cartório na data acordada – é uma promessa unilateral que vincula
A. Consequências: A entrou em incumprimento, mais especificamente em mora.
Perante a mora de A, B pode, das duas uma:
1. Via resolutória indemnizatória: quando o sinal é instituído há uma forma de
calcular a indemnização. Quem incumpre é quem recebeu o sinal. Portanto,
B terá direito a uma indemnização pelo dobro do sinal ou uma indemnização
pelo aumento do valor da mesma (artigo 442.º, n.º 2) – qualquer uma destas
indemnizações é protegida pelo direito de retenção previsto no artigo 755.º,
n.º 1, al. f do CC. Pode haver imediatamente resolução do contrato e
exigências destas indemnizações? Portanto, perante a mera mora de A, B
pode resolver o contrato imediatamente e exigir uma indemnização? Parte da
doutrina diz que sim porque é um contrato-promessa sinalizado; outra parte
da doutrina, que faz a interpretação ab-rogante do artigo 442.º, n.º 3 defende
que é necessário converter a mora em incumprimento definitivo, que ocorrerá
em princípio através da interpelação cominatória/admonitória.
2. Via da execução específica: perante a mora de A, vamos averiguar se B pode
recorrer à execução específica. Neste caso, B não o pode fazer pois estamos
perante um contrato-promessa sinalizado e o sinal, nos termos do artigo 830.º,
n.º 2, constitui presunção de afastamento da execução específica. E não se
trata de um contrato-promessa que seja subsumível aos artigos 410.º, n.º 3 e
830.º, n.º 3 do CC.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

b) Suponha, agora, que o contrato foi assinado por ambas as partes e que B não entregou
qualquer quantia A. Poderia B, de imediato, exigir a A uma indemnização calculada ao
abrigo da parte final do n.º 2 do art.º 442.º, sendo esse crédito tutelado por uma
garantia? Responda, analisando a posição jurídica de B.

Não pode resolver o contrato de imediato, é necessária, sem qualquer querela doutrinal, a
conversão da mora em incumprimento definitivo, nomeadamente através da interpelação
cominatória. A querela discutida noutros momentos respeita apenas à promessa sinalizada e
esta promessa não é sinalizada, por isso também não se pode exigir uma indemnização ao
abrigo do 442.º nem é reconhecido o direito de retenção do artigo 755.º, n.º 1, al. f) do CC.

Ao invés, B pode recorrer à execução específica nos termos do artigo 830.º do CC – nesta
hipótese já não há sinal que o impeça.

B tem de converter a mora em incumprimento definitivo para poder resolver o negócio.


Resolvendo o negócio, tem direito a uma indemnização calculada nos termos gerais do artigo
566.º do CC e, portanto, vai corresponder às consequências desvantajosas que causalmente
se liguem ao incumprimento do contrato-promessa – B vai ter que provar os danos que sofreu
(tem o ónus da prova).

Caso n.º 10
A, por contrato com B, concede-lhe o direito de preferência na venda de um imóvel seu,
sito em Gaia. Pretendendo vender esse bem, A informa B que está interessado em aliená-
lo por 100.000 €, a serem pagos a pronto. Este último diz-lhe que esse preço é, nesse
momento, demasiado elevado para as suas possibilidades, ficando assim A descansado
para, decorrido um ano, celebrar um contrato-promessa de compra e venda desse
prédio com C, e lho vender, no mês a seguir, por 100.000 €.

Pergunta-se:

a) O que pode B fazer?

Foi aqui celebrado um pacto de preferência. A não se obriga a vender a B, ele obriga-se a dar
preferência a B caso decida vender o imóvel. Este negócio dá origem a um direito de
preferência de que B é titular. Este direito de preferência é um direito de preferência
convencional. Este pacto de preferência tem eficácia meramente obrigacional (para ter
eficácia real é necessário que se verifiquem os requisitos do artigo 421.º e no enunciado não
nos é dito que estão verificados estes requisitos). Assim, é um direito de preferência
convencional que nasce de um pacto de preferência com eficácia meramente obrigacional.

O artigo 415.º é uma norma que manda aplicar o artigo 410.º à forma do pacto de preferência
– este pacto de preferência teria de ter sido celebrado por documento assinado pela parte que
se vincula, isto é, o A. A notificação para a preferência não está sujeita a forma (pode ser feita
oralmente ou por escrito). Para termos uma notificação para preferência tem de haver um
projeto de venda definido com terceiro e, portanto, tem de haver um terceiro interessado na
celebração do negócio e só neste caso é que haverá usar para notificação para preferência. A
tem de comunicar a B o seguinte (artigo 416.º, n.º 1):
1. O projeto de venda do imóvel;
2. As cláusulas do contrato que esteve a negociar com o terceiro – quais cláusulas?
Todas as cláusulas que forem relevantes para a decisão de preferir ou não preferir
(decisão de contratar ou não contratar);

24
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

3. Há um entendimento largamente aceite que é o que se tem de indicar o local, a origem


e a hora da celebração do negócio e a identidade do terceiro.

A não comunicou isso tudo a B – a comunicação feita não é uma notificação para preferência,
é, ao invés, um convite a contratar. Mesmo que esta notificação fosse uma notificação para
preferência, ele não podia depois vender passado um ano, a menos que tivesse informado.
Mesmo que houvesse notificação da preferência válida, se houvesse alteração de de algum
dos elementos, teria que ser feita novamente a notificação. Há então incumprimento deste
dever de notificar a preferência. As consequências deste incumprimento são:
 Não pode recorrer à ação de preferência porque não é um direito de preferência legal
nem convencional com eficácia real.
 Neste sentido, pode pedir uma indemnização pelos danos sofridos.

Coloca-se a questão de saber se tinha de fazer a notificação de preferência antes do contrato-


promessa celebrado com C ou só relativamente ao contrato definitivo. Tem sido entendimento
da doutrina que, num caso destes, a notificação para preferência só tem de ser feita para o
contrato definitivo. O único desvio a esta conclusão é o de haver um contrato-promessa com
eficácia real.

Em suma, não houve notificação, portanto houve incumprimento. Consequências do


incumprimento:
1. Não se pode recorrer à ação de preferência porque o pacto de preferência é meramente
obrigacional;
2. Pode exigir-se uma indemnização pelos danos sofridos.

b) A solução seria a mesma se B fosse inquilino há cinco anos desse prédio?

Se ele fosse inquilino há 5 anos existira um direito de preferência legal (artigo 1091.º, n.º 1,
al. a) do CC – prevê-se a favor do inquilino um direito de preferência). Isto quer dizer que
não havendo notificação para preferência nos temos exigidos e havendo alienação a terceiro,
o inquilino pode recorrer à ação de preferência (artigo 1410.º do CC), sem prejuízo do direito
à indemnização pelos danos sofridos. Neste caso isto acontece porque se trata de uma
preferência legal. E a mesma resposta valeria se se trata-se de uma preferência convencional
com eficácia real.

Efeitos da ação de preferência: tudo se vai passar como se o negócio tivesse sido celebrado
pelo preferente – o terceiro vai ser substituído pelo preferente. A ação de preferência opera
uma sub-rogação (sub-rogação de pessoas). A ação de preferência, procedendo, vai operar a
substituição do terceiro pelo preferente – dá-se uma sub-rogação pessoal. O negócio com
terceiro mantém-se, só que o terceiro é substituído pelo preferente. A ação de preferência é
uma ação declarativa constitutiva – opera uma mudança na ordem jurídica.

A ação de preferência tem de ser proposta contra quem? Há uma querela aqui. Não há dúvidas
de que a ação de preferência tem de ser proposta contra o terceiro (por causa do efeito que
ela produz, o terceiro tem de ser demandado). A questão que se coloca é a de saber se para
além do terceiro adquirente também tem de ser demandado o obrigado à preferência:
 Há uma parte da doutrina que afirma que sim – esta parte da doutrina diz que existe
aqui um litisconsórcio necessário passivo; o obrigado à preferência também tem de
ser demandado sob pena de haver uma ilegitimidade processual. Argumentos:
1. Vem destacar que a relação material controvertida abrange 3 sujeitos: o obrigado
à preferência, o preferente e o terceiro adquirente – por isso, todos têm que estar
em juízo a discutir a questão sub judice.

25
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

2. Quem deu azo ao litígio foi o obrigado à preferência porque foi ele que incumpriu.
Portanto, ele deve estar em juízo até para poder ser condenado no pagamento das
custas judiciais.
3. Para evitar uma eventual contradição de julgados – para evitar que haja decisões
sobre o mesmo ponto da mesma relação jurídica que sejam contraditórios entre
si.

NOTAS SOBRE A MATÉRIA DO PACTO DE PREFERÊNCIA:

1. Imaginemos que temos um pacto de preferência entre A com B em que A dá preferência a


B na alienação de um Código Civil. A dirige-se a C, estando C interessado a pagar 10€ pelo
Código Civil. A notifica B do projeto de venda com C e B exerce o seu direito de preferência.
Neste caso celebrou-se o contrato de compra e venda, B é proprietária do Código Civil. Esta
notificação de preferência, tendo sido feita, contém todos os elementos da proposta
contratual, bastando que a preferente aceite para que se forme o mútuo consenso. Houve aqui
uma notificação da preferência – a notificação tem todos os elementos e o B diz que exerce o
seu direito de preferência e que compra naquelas condições. Neste momento, o A não pode
vender a C porque houve um encontro de vontades, celebrou-se o contrato de compra e venda,
o B já é dona do CC. Se A for vender a C temos uma venda de um bem alheio. Acresce que
a compra e venda do CC não está sujeita a forma.

2. Imaginemos agora que o pacto de preferência entre A e B era relativo a um prédio rústico
de A. A vai comunicar a B que já tem um interessado, C, dando todas os elementos
necessários da comunicação de preferência. O B diz que exerce o seu direito de preferência
e que compra naquelas condições. Tendo B preferido e aceite a preferência, B não é logo
proprietária do terreno porque falta a forma – um terreno não se vende por mero acordo verbal
ou reduzir o acordo a escrito, tem de estar revestida a forma do artigo 875.º do CC. Porém,
este documento reduzido a escrito vale como contrato-promessa de compra e venda porque
já contemos as declarações formativas de um contrato-promessa – isto significa que B propor
uma ação de execução de específica se não houver nenhum obstáculo porque já houve
celebração do contrato-promessa. Se este contrato-promessa for celebrado oralmente, não
temos a celebração de um contrato-promessa.

3. Se se tratar de um pacto de preferência sobre uma fração autónoma estamos no âmbito do


artigo 410.º, n.º 3 do CC, mas para aplicarmos este artigo temos de ter previstos os requisitos
do artigo 410.º, n.º 2 do CC. Se esta comunicação é feita oralmente, não podemos dar como
assente o contrato válido. Se for feito por escrito, neste caso preencheríamos o disposto no
artigo 410.º, n.º 2, mas não preenchíamos o 410.º, n.º 3, o que quer dizer que tínhamos um
contrato-promessa nulo.

O promitente alienante só pode invocar a invalidade se ela tiver derivado de culpa da outra
parte e excluída essa situação só há uma pessoa que pode invocar esta nulidade atípica, que é
o promitente adquirente – por que esta nulidade não pode ser invocada por tribunal, não pode
ser invocada pelo terceiro. Neste caso, só B é que poderia invocar a nulidade – se não invocar
a nulidade pode propor uma execução específica.

26
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Caso n.º 12
Aproximando-se a data da celebração do casamento de F, o seu pai (G) decide oferecer-
lhe uma quantia em dinheiro que o ajude no início da vida de casado. Assim, G, dono
de um stand de automóveis, tendo convencionado a venda, por 25.000 €, de um
automóvel de uma determinada marca e modelo a B, acorda com este que o direito ao
preço caberá ao seu filho, F.

a) Três semanas depois da celebração do negócio, F exige a B a entrega dos 25.000 €. B


não efetua o pagamento e recusa o automóvel que G lhe pretende entregar por
apresentar um grave defeito no sistema elétrico que impede a sua utilização. Quid iuris?

Estamos perante um contrato a favor de terceiro. Aliás, isto é um contrato de compra e venda
que no caso é um contrato a favor de terceiro. O contrato a favor de terceiro está previsto nos
artigos 443.º e ss do CC – a noção do 443.º está incompleta porque tem de se considerar o
disposto no artigo 444.º, n.º 1 do CC. O contrato a favor de terceiro é uma convenção/acordo
pela qual uma das partes (o promitente) se obriga perante a outra parte (o promissário) a
realizar uma prestação a terceiro, terceiro que adquire, por força do contrato,
independentemente da sua aceitação, o direito a essa prestação. Foi o que as partes acordaram
aqui – acordaram que o direito caberá a F.

O terceiro beneficiário é F, o filho. O promitente é B (ele promete entregar o preço). O


promissário é G (dono do stand). Portanto, temos um contrato de compra e venda celebrado
entre G (vendedor) e B (comprador), que é um contrato a favor de terceiro, neste caso, F. B
compromete-se perante G a entregar o preço do automóvel a F. Temos um contrato em favor
de terceiro e o beneficiário é F; B é aquele que promete realizar a prestação de terceiro
(promitente); G é aquele a quem a promessa é feita (promissário).

Vamos ter de identificar 3 espécies de relação:


1. Relação de cobertura/provisão – é a relação entre o promissário e o promitente.
Chama-se relação de cobertura porque é a relação de onde o promitente retira aquilo
que alimenta/cobre a prestação que vai fazer a terceiro.
2. Relação de valuta/atribuição – relação que se estabelece entre o promissário e o
terceiro beneficiário. É nesta relação que vamos encontrar a razão de ser da atribuição
a terceiro – esta relação pode ser:
a) Causa donandi – pode o promissário fazer uma doação a terceiro (é o que se
passa neste caso – temos uma causa donandi, pois G quer doar os 25.000 €
ao F);
b) Causa solvendi – porque se quer pagar/solver uma dívida a terceiro;
c) Causa credendi – pode querer constituir um crédito de terceiro sobre o
promissário.
3. Relação de execução – relação entre o promitente e o terceiro beneficiário.

O problema é que o carro tem um defeito muito grande e B não quer pagar o preço. É um
contrato de compra e venda, que é um contrato bilateral, ou seja, gera obrigações para ambas
as partes, que estão ligadas pelo nexo do sinalagma:
1. Obrigação de entregar a coisa vendida;
2. Obrigação de pagar o preço.

A única especificidade aqui é que o crédito ao preço é de terceiro. Isto significa que há
instrumentos que estão conexionados pelo sinalagma e que podem ser utilizados. Se as partes
não acordam o momento da entrega da coisa e do preço, aplica-se a regra supletiva prevista
no artigo 875.º do CC – o preço deve ser pago no momento da entrega do carro – como as

27
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

obrigações são sinalagmáticas e têm de ser cumpridas ao mesmo tempo, ele pode invocar a
exceção de não cumprimento (artigo 428.º do CC) contra G. Portanto, quando G lhe entrega
o carro, B deve pagar o preço a F. O problema é que o carro entregue tem um defeito muito
grave. Por isso, B pode invocar a exceção de não cumprimento em relação a G (artigo 428.º
do CC). A questão que se coloca é a de saber se B pode invocar a exceção de não cumprimento
em relação a F. Ora, mas pode invocar-se a exceção de não cumprimento no caso de defeito
grave no carro? A nossa doutrina maioritária aceita que sim, desde que o defeito seja grave.

Onde há dúvidas é em saber se B pode invocar a exceção de não cumprimento em relação a


F. Segundo o artigo 449.º do CC, são oponíveis ao terceiro por parte do promitente todos os
meios de defesa derivados do contrato a favor de terceiro – o contrato a favor de terceiro
corresponde à relação de cobertura. São os meios de defesa que têm fonte na relação de
cobertura, portanto, a exceção de não cumprimento deriva do contrato a favor de terceiro.
Assim sendo, a exceção de não cumprimento pode ser oposta a terceiro (F) – B está a lançar
mão da exceção de não cumprimento (artigo 428.º) que é oponível a terceiro por força do
artigo 449.º porque é um meio que resulta do contrato a favor de terceiro.

b) Devendo G a B metade do preço relativo à venda de um terreno por 80.000 €, pode B


declarar a compensação com o crédito ao preço da venda do automóvel?

G deve a B metade do preço de um terreno (40.000 €) – pergunta-se se G pode invocar a


compensação. O que é a compensação? A compensação é um modo de extinguir as obrigações
diferente do cumprimento, isto é, ao invés de se cumprir a obrigação, invoca-se a
compensação e liberta-se a dívida. Os requisitos da compensação estão previstos no artigo
847.º e ss do CC e neste caso estão preenchidos.

Há créditos recíprocos aqui entre G e B – pode B invocar a compensação sobre o crédito,


estando verificados os pressupostos do artigo 847.º do CC? Não porque a compensação opera
numa outra relação do promitente e do promissário. O promitente só pode opor a terceiro
aqueles meios de defesa que derivam do contrato (artigo 449.º do CC). O promitente não pode
invocar outros meios de defesa que derivem de outra relações, mesmo que sejam relações
entre o promitente e o promissário. Portanto, B não pode invocar a compensação para não
pagar os 25.000€ a F, esse meio de defesa não pode ser oposto a terceiro (F).

c) Se o casamento não se chegar a celebrar, pode B recusar-se a entregar os 25.000 € a


F?

O casamento é a razão de ser da doação, mas a doação está na relação de valuta. Pode o
promitente invocar um meio de defesa derivado da relação de valuta? Não, não pode invocar
um meio de defesa que resulta da relação de valuta, apenas pode invocar os meios de defesa
decorrentes da relação de cobertura (o promitente não pode invocar outros meios de defesa
que derivem de outra relações – artigo 449.º do CC). Portanto, B tem de entregar a F os
25.000€.

Neste caso, é o pai que vai ter de exigir os 25.000€ ao filho – não se celebrando o casamento,
a doação perde eficácia, podendo o pai exigir o direito aos 25.000€ ao filho.

d) Considere que o carro é entregue a B nas condições estipuladas, mas que ele não paga
o preço. O contrato pode ser – e, se, por quem – resolvido?

Nesta resposta há duas posições jurídicas que podem conflituar: a posição do promissário e a
posição do terceiro. O promitente incumpriu, assim, B entra em mora. O que é que se pode

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

fazer perante este incumprimento? Pode resolver-se o negócio? O terceiro não pode nunca
resolver o contrato, pois ele não é parte contratual. Portanto, mesmo que se possa resolver
este contrato, a resolução nunca cabe ao terceiro, mesmo sendo ele interessado. Quem poderá
resolver o contrato será o promissário.

Não pode resolver-se o negócio perante a mera mora – só se estivéssemos perante a exceção
do contrato-promessa sinalizado, mas não é o caso. Assim sendo, tem de se converter a mora
em incumprimento definitivo através da interpelação cominatória. Quem faz a interpelação
cominatória é o terceiro, ou seja, é o terceiro que tem de conceder um novo prazo sob a
ameaça de que se não for cumprido nesse caso o devedor fica em incumprimento definitivo.
Portanto, se o terceiro fizer a notificação para preferência e o devedor não cumprir, o devedor
fica em incumprimento definitivo. Pode o promissário resolver? Temos de ver se o terceiro
já aderiu à promessa nos termos do artigo 447.º, n.º 3 do CC:
 Porque quando o terceiro adere consolida-se o direito, a promessa contida no contrato
a favor de terceiro torna-se irrevogável – o direito que o terceiro adquiriu consolida-
se. Isto quer dizer que se o terceiro ainda não aderiu o promissário pode resolver o
negócio perante o incumprimento definitivo porque ele pode revogar a promessa.
 Se o terceiro já tiver aderido, o direito de terceiro consolidou-se, o que quer dizer que
a promessa não é revogável, o que quer dizer portanto que para o promissário resolver,
ele carece do consentimento do terceiro – só pode resolver se o terceiro o autorizar.

Neste caso o promissário podia resolver o contrato porque B não pagou o preço? O carro foi
entregue nas devidas condições. Nos termos do artigo 886.º, feita a entrega da coisa, havendo
a transferência do direito de propriedade da coisa, não pode haver resolução do contrato por
falta de pagamento do preço. Neste caso não pode haver resolução por parte do promissário
por este motivo. O artigo 886.º é uma norma supletiva.

Caso n.º 11
A compra a B um móvel, por 10.000 euros, reservando-se o direito de nomear um
terceiro que ocupe a sua posição contratual e acordando-se que o preço só seria pago
decorrido um mês da venda. Com efeito, o móvel destina-se a C, com quem B tem graves
desavenças pessoais. Passados três dias da celebração do contrato, A, por escrito,
comunica, sem mais, a B a nomeação de C. Decorrido um mês da venda, B exige a A o
pagamento do preço. Este recusa-se a pagar, alegando que o comprador passou a ser C.

a) Quid iuris?

Temos aqui um contrato de compra e venda de um imóvel em que foi inserida uma cláusula
para pessoa a nomear. O contrato de pessoa a nomear distingue-se de um contrato a favor de
terceiro:
1. Contrato a favor de terceiro – o terceiro adquire um direito, mas não é parte
contratual.
2. Contrato para pessoa a nomear – o que as partes acordaram é que uma delas, o
comprador, podia nomear um terceiro e no caso de a nomeação ser válida e eficaz, o
terceiro neste caso sub-roga-se na posição da parte contratante – ele passa a ser parte
contratual. Se não houver uma normação válida e eficaz, a parte contratual neste caso
é A (a parte contratual permanece a ser a mesma).

29
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Para que a nomeação seja válida e eficaz têm de estar preenchidos vários
pressupostos/requisitos (artigo 453.º e 454.º):
1. A nomeação deve ser feita mediante declaração por escrito ao outro contraente,
dentro do prazo convencionado ou, na falta de convenção, dentro dos cinco dias
posteriores à celebração do contrato (artigo 453.º, n.º 1):
 Ser feito dentro do prazo: na falta de convenção em sentido diverso, e que não
existiu neste caso, o prazo para a nomeação é de 5 dias contados a partir da
celebração do contrato. Este requisito está preenchido.
 A nomeação tem de ser feita por escrito – este requisito está preenchido.
2. A declaração de nomeação deve ser acompanhada, sob pena de ineficácia, do
instrumento de ratificação do contrato ou de procuração anterior à celebração deste
(n.º 2 do artigo 453.º).
 A normação de terceiro foi acompanhada de procuração anterior ao ato ou de
ratificação? O enunciado não nos fornece dados suficientes.

Assim sendo, a nomeação não respeitou todos os requisitos do artigo 453.º, nomeadamente
não respeitou os requisitos do n.º 2. As consequências disto estão previstas no artigo 455.º,
n.º 2: Não sendo feita a declaração de nomeação nos termos legais, o contrato produz os
seus efeitos relativamente ao contraente originário, desde que não haja estipulação em
contrário – o negócio continua a produzir efeitos relativamente ao contraente originário. A
continua a se comprador, o que quer dizer que quando B lhe exige o preço passado um mês e
ele não cumpre, ele entra em incumprimento (em mora), com a consequência de que começam
a vencer-se os juros moratórios (isto porque a obrigação é pecuniária – artigo 806.º do CC).

Se a nomeação tivesse sido deita de forma valida e eficaz, C seria o comprador (ver artigo
255.º, n.º 1).

b) Na eventualidade de C pretender adquirir o imóvel de B por intermédio de A, mas


sem que este clausule no contrato a celebrar com o vendedor o direito de nomear um
terceiro, que contrato deveriam A e C celebrar e quais os seus efeitos?

O C quer adquirir um imóvel, não quer aparecer e vai ser A que vai atuar, mas não se quer
seguir o contrato com a cláusula de pessoa a nomear. Assim, A e C podem celebrar um
mandato sem representação – A está a comprar para C; A não vai comprar em nome de C,
pois se o fizesse ele era um procurador, mas aqui não há outorga de poderes representativos.
Ou seja, se A atua em nome próprio mas por conta de C o contrato indicado é o mandato sem
representação (artigo 1180.º do CC).

O contrato de mandato é uma das espécies de contrato de prestação de serviços (artigo 1155.º
do CC). O que caracteriza o mandato é o seguinte: Mandato é o contrato pelo qual uma das
partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (artigo 1157.º do
CC). É o que acontece neste caso: A celebra um contrato com C pelo qual A se obriga perante
C a praticar um ato jurídico (a compra e venda do dito imóvel) e a celebração deste contrato
faz-se por conta do mandante (celebração com intenção de que os efeitos do negócio se
venham a produzir na esfera jurídica do mandante), neste caso C.

O mandato pode ser mandato com representação ou mandato sem representação:


 Mandato com representação (artigo 1178.º do CC) – o mandatário para além de atuar
por conta, vai atuar em nome do mandante, por isso é que os efeitos jurídicos se
produzem logo na esfera jurídica do mandante. Celebração de um contrato pelo
mandatário em nome do mandante para o qual lhe são atribuídos poderes
representativos.

30
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

 Mandato sem representação – o mandatário atua por conta do mandante mas atua em
nome próprio (artigo 1180.º do CC). Neste caso o negócio é celebrado por A, ainda
que por conta de C, mas é celebrado por A – os efeitos jurídicos produzem-se na
esfera jurídica de A; é preciso que as obrigações adquiridas por A se repercutam na
esfera jurídica de C (artigos 1181.º e 1182.º do CC). Portanto, ou C paga o preço ou
C dá a A o dinheiro para pagar o preço – tem de haver uma transferência dos direitos
e obrigações da esfera jurídica do mandatário para a esfera jurídica do mandante.

Caso n.º 13
Ao início da manhã do dia 2 de Novembro, data de aniversário da sua namorada, A
desloca-se ao estabelecimento de B, florista, onde adquire um ramo de flores por 20
euros. Nessa altura, é acordado que B procederia, durante aquela manhã, à entrega do
ramo na casa de C, cuja morada foi indicada por A. Dada a ausência de qualquer reação,
A, ao início da tarde, pergunta a C se o ramo tinha sido do seu agrado. Apercebe-se,
então, que B não o havia entregado. C dirige-se ao estabelecimento de B, exigindo-lhe a
entrega do ramo. B recusa. Quid iuris?

A florista pode recusar-se a entregar o ramo de flores a C porque C não é aqui um terceiro.
Não temos aqui um contrato a favor de terceiro porque não se atribuiu o direito a C. O único
que pode exigir o ramo de flores a B é A. C só poderia exigir a entrega do ramo a B se
estivéssemos perante um contrato a favor de terceiro.

Caso n.º 14
A, numa manhã de Inverno, quando se dirigia de automóvel para o emprego, não se
apercebendo de um lençol de água que se estendia numa zona desnivelada da estrada,
perde a direção do seu veículo que cai por uma ravina. A é projetada para o exterior,
sofrendo várias e profundas lesões. É, por isso, imediatamente conduzida a um serviço
de urgência hospitalar, Em virtude do despiste, o veículo de A sofreu alguns danos. B,
que se dedica às atividades de reparação de veículos automóveis e de pronto-socorro,
toma a iniciativa de, com o seu pessoal, rebocar o veículo para a sua oficina onde o teve
durante vários meses. Contudo, quando o pessoal de B retirava o veículo da ravina,
rebentou um elo da corrente do guindaste do pronto-socorro, tendo o veículo caído do
alto até ao fundo da ravina. Deste novo acidente resultou a maior parte dos danos
sofridos pelo veículo. O pronto-socorro utilizado era um veículo com largos anos de
serviço cujo cabo de reboque era submetido a esforços diários. Desde a data do acidente
até cerca de nove meses depois desse acontecimento, foram furtados, vários acessórios.
Perante a recusa de A em pagar qualquer valor pelos serviços de B, este recoloca o
veículo no local do acidente. A interpõe, então, uma ação contra B a pedir-lhe uma
indemnização pelos danos sofridos no carro em consequência do rebentamento do cabo
e do desaparecimento dos acessórios. B contesta e em reconvenção pede que A seja
condenada a pagar-lhe os serviços prestados.
(Adaptado do Acórdão de 22 de Abril de 1986, publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 121,
página 59 e ss, anotado por Baptista Machado)
A podia invocar o regime da responsabilidade civil extracontratual (artigo 483.º do CC) por
lesão. Os requisitos da responsabilidade civil extracontratual são os seguintes:
1. Ato (facto voluntário do agente);
2. Ato ilícito – neste caso está em causa a modalidade de ilicitude da violação de um
direito absoluto (direito de propriedade sobre o automóvel);
3. Ato culposo – haverá aqui culpa? Para fundar um pedido ressarcitório o problema
está aqui no plano da culpa.
4. Dano – há aqui danos patrimoniais;
5. Nexo de causalidade entre o facto e o dano.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

B pode dizer que atuou em gestão de negócios. Os requisitos da gestão de negócios são os
seguintes (artigo 464.º do CC):
1. Assunção de direção de negócio alheio – entende-se aqui negócio como sinónimo
de assunto/problema; não se usa aqui a noção técnica do negócio, mas sim a noção
ampla de negócio (atos materiais).
2. Atuação no interesse e por conta do dono do negócio (dominus) – atuar por
interesse e por conta não são expressões sinónimas. Atuar no interesse do dono do
negócio significa atuar/adotar um comportamento para satisfazer uma necessidade
que objetivamente o sujeito tem (estando o carro na ravina, há necessidade de retirar
o carro). Atuar por conta do dono do negócio significa atuar com intenção de
transferir para a esfera jurídica do dono as vantagens e as desvantagens da atuação.
Neste caso, a atuação de B foi por interesse e por conta de A. Pode haver aqui gestão
mista: haver também interesse de B na gestão.
3. Falta de autorização. Neste caso falta autorização – A sofreu o acidente e não
prestou consentimento para nada.

Estão verificados todos os requisitos – B atua, portanto, ao abrigo da gestão de negócios.

Quais são os direitos do gestor de negócios? Ele quer ser reembolsado. De que é que depende
o direito a ser reembolsado pelo dono?

Note-se que estamos no âmbito das relações entre o gestor e o dono. É essencial saber se o
dono do negócio aprova a gestão. A aprovação da gestão é um juízo genérico/global emitido
pelo dono em sentido favorável à atuação do gestor. A aprovação como juízo genérico
abrange os atos que o gestor praticou. Os efeitos da aprovação produzem-se no âmbito da
relação entre o dono e o gestor. Esses efeitos estão previstos no artigo 469.º do CC: A
aprovação da gestão implica a renúncia ao direito de indemnização pelos danos devidos a
culpa do gestor e vale como reconhecimento dos direitos que a este são conferidos no n.º I
do artigo anterior. Direitos previstos no artigo 468.º:
1. Obrigação de reembolsar o gestor das despesas que ele fundadamente tenha
considerado indispensáveis, com juros legais a contar do momento em que foram
feitas;
2. Obrigação de indemnização do prejuízo que haja sofrido.

Se o dono (A) aprovar a gestão, ela renunciava ao direito a ser indemnizada e reconhecia ao
gestor os direitos do artigo 468.º, nomeadamente o direito a ele ser reembolsado pelas
despesas que fundadamente considerou indispensáveis. Não houve aprovação. A a provação
não está sujeita a forma – pode ser expressa, tácita.

Não havendo aprovação, é decisivo fazer se a gestão se fez em conformidade com o interesse
e vontade real ou presumível do dono. Vamos verificar se a gestão foi regular – o gestor tem
interesse em provar a regularidade da gestão, pois se ele o conseguir fazer os direitos que lhe
são reconhecidos são os seguintes:
1. Direito a ser indemnização (468.º, n.º 1);
2. Direito a ser reembolsado pelas despesas (artigo 468.º, n.º 1);
3. Direito a remuneração (artigo 470.º do CC).

Se não se provar a gestão vamos aplicar o artigo 468.º, n.º 2 do CC – consequências: o dono
do negócio responde apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa, com ressalva
do disposto no artigo seguinte. Se a gestão não for regular e não haver aprovação, o dono só
responde nos termos do enriquecimento sem causa.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Decisivo no processo era saber se tinha havido culpa do gestor. Tudo estava em saber quem
é que tinha de provar a culpa. Quando o juiz tem dúvidas, ele não pode recorrer ao chamado
non liquet. Então, quem é que tem de provar a culpa do gestor? Em regra, quem tem de provar
a culpa é quem invoca um direito (quem invoca um efeito decorrente da culpa do gestor tem
de provar essa culpa (artigo 342.º, n.º 1)). Em princípio, quem deveria provar a culpa era o
dono do negócio por força dos artigos 342.º, n.º 1 e 487.º.
 É aqui que entra a anotação do professor Batista Machado: ele entendeu que neste
caso esta solução não servia precisamente porque o gestor era profissional nesta área.
Ele veio dizer que a atividade gestória importa certos riscos e que o profissional da
área tem o dever de ter cuidados especiais antes de iniciar a gestão e quando está a
executar a gestão. O professor Batista Machado vem dizer ainda que a relação gestória
gera um conjunto de deveres laterais ou acessórios de conduta (dever de proteção). O
último argumento de Batista Machado é que o gestor, num caso destes, não pode
receber um tratamento melhor do que aquele que receberia se o contrato de prestação
de serviços tivesse sido celebrado – se tivesse sido celebrado um contrato de prestação
de serviços, existiria uma presunção de culpa (artigo 799.º).

Por tudo isto, Batista Machado entende que aqui se devia aplicar a presunção de culpa do
artigo 799.º do CC – aplicando-se esta presunção de culpa, as consequências são as seguintes:
a gestão é irregular e, consequentemente, o dono do negócio só tem de restituir nos termos
do enriquecimento sem causa (artigo 468.º, n.º 2); por sua vez, o gestor tem direito a ser
indemnizado.

Caso n.º 15
A e B são arquitetos e, para pouparem custos, arrendaram um atelier onde trabalham,
o que lhes permite ter um razoável conhecimento dos assuntos que cada um deles está a
tratar. Na Páscoa, B sofreu um acidente de viação que o deixou em coma por um período
de 1 mês. A, sabendo que B tinha um conjunto de projetos de grande importância em
mãos que precisava de acabar, decide prosseguir esses trabalhos. Para o efeito, realiza
diversas de despesas em material que lhe pareceram essenciais, à luz dos seus
conhecimentos sobre aquela matéria, para a tarefa a desempenhar. Ainda, adquire para
B uma peça de escultura que este há muito cobiçava e que A encontrou num antiquário
por bom preço. Tendo B recuperado a saúde, discorda completamente da atuação de A
quanto aos projetos e às despesas realizadas que considera desnecessárias. Contudo, fica
satisfeito com a compra da escultura que pretende haver para si. Quid iuris?

Temos aqui uma gestão de negócios:


 Assunção de direção de negócio alheio: A assumiu a direção de negócio alheio; A
realiza despesas, trabalho e celebra um contrato com terceiro;
 A atua por conta e no interesse de B;
 A não estava autorizado.

Os requisitos estão verificados. Depois temos de ver se a gestão foi aprovada (neste caso, a
gestão não foi aprovada) e se a gestão é regular ou não (a gestão é regular quando se atua no
interesse e de acordo com a vontade real ou presumível – neste caso, a atuação de A satisfaz
uma necessidade). A vontade real que nos é descrita no enunciado é contrária, mas não
sabemos o que A sabia. O gestor não conhece a vontade real quando atua. Se ele conseguir
provar que, de acordo com os dados que tinha, a atuação é conforme à vontade presumível,
ele conseguia provar a regularidade da gestão. Se houver uma desconformidade entre a
vontade e o interesse, o gestor deve seguir a vontade, a menos que a vontade traduza a prática
de um crime.

33
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Se ele conseguir provar a regularidade da gestão, A tem direito a ser reembolsado das
despesas que ele (o gestor) fundadamente ele tenha considerado indispensáveis, tem direito a
ser indemnizado se tiver tido algum dano e, como é profissional nesta área, ainda pode ser
reembolsado (artigos 486.º, n.º 1 e 470.º). Se não se provar a regularidade da gestão, aplica-
se o artigo 468.º, n.º 2, o que significa que B vai ter de restituir nos termos do enriquecimento
sem causa. Isto nas relações entre o gestor e o dono.

Temos agora o problema da estátua. A comprou-a para B. Como gestor, ele pode ter atuado
em nome próprio, ainda que por conta do dono do negócio, ou em nome do dono – quando
há um negócio celebrado por terceiro temos de averiguar/distinguir se a gestão é ou não
representativa (artigo 471.º). Se o gestor atuou em nome próprio a gestão é não representativa;
se o gestor atuou em nome do dono a gestão é representativa.
1. Gestão é não representativa (artigo 471.º, 1ª parte: Sem prejuízo do que preceituam
os artigos anteriores quanto às relações entre o gestor e o dono do negócio, é
aplicável aos negócios jurídicos celebrados por aquele em nome deste o disposto no
artigo 268.º) – se A tiver atuado em nome próprio, trata-se de uma gestão não
representativa e nesse caso aplicam-se as regras do mandato sem representação
(artigos 1180.º e ss). Então o gestor tem o dever de transferir para o dono os benefícios
do negócio e o dono tem de assumir os encargos do negócio.
2. Gestão for representativa – se o gestor, para além de ter atuado por conta, tiver
atuado em nome do dono, ele não tem poderes de representação e aplicam-se as regras
do artigo 268.º do CC, que diz respeito à representação sem poderes. Quando há
representação sem poderes, o representado/dono do negócio pode ratificar. A
ratificação só respeita aos atos jurídicos celebrados pelo gestor em nome do dominus.
Pode haver aprovação sem ratificação e vice-versa? Sim. A ratificação que respeita
atos jurídicos celebrados pelo gestor em nome do dominus produz efeitos nas relações
entre o dono e o terceiro – o dono do negócio chama a si o negócio que o gestor
celebrou em seu nome.

Caso n.º 16
A herdou da sua tia C um terreno no Minho. Pouco tempo depois, foi abordado pela
empresa X que pretendia colocar nesse terreno um painel publicitário, visível da auto-
estrada. O preço pago pela instalação de painéis publicitários foi de 1.000 € devido à
habilidade negocial de A, uma vez que o preço de mercado das instalações de painéis
nessa área é de 900 €. Decorrido um ano, veio depois a verificar-se que a parte do terreno
em que foram instalados os painéis, devido ao desaparecimento dos marcos de
delimitação, não pertencia a A, mas antes a B, que não lhe pretendia dar qualquer uso.
Quid iuris?

Temos aqui uma situação de enriquecimento sem causa.

Os requisitos do enriquecimento sem causa são os seguintes (artigos 473.º e 474.º do CC):
1. Tem de haver um enriquecimento – o enriquecimento pode traduzir-se de várias
formas: diminuição do património (poupança de despesas), aumento do património.
O enriquecimento, neste caso, traduziu-se na ingerência em bens alheios – o
património dele aumenta 1000€.
2. Empobrecimento (“à custa de outrem”) – aqui haveria empobrecimento? O terreno
ficou impecável, ele nem sequer queria fazer ele o negócio. Estamos num caso de
ingerência em bens alheios – aplica-se neste caso de ingerência em bens alheios a
teoria do conteúdo da destinação ou da afetação dos bens jurídicos. Esta teoria diz-
nos que todas as vantagens que os bens jurídicos proporcionam estão destinadas ao

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

titular do direito real sobre a coisa. Ora, se o património pode estar intacto, então
como é que podemos dizer que este requisito está verificado? Porque se aplica aqui a
teoria do conteúdo da destinação ou da afetação dos bens jurídicos, que diz nos que
todas as vantagens que os bens jurídicos proporcionam estão destinados ao titular do
direito. Portanto, mesmo estando o património intacto, há empobrecimento.
3. Falta de causa justificativa – chama-se à colação a teoria da destinação ou afetação
dos bens jurídicos. A causa para estas vantagens seria uma vantagem do proprietário.
Estão verificados os pressupostos do artigo 473.º, n.º 1
4. Natureza subsidiária (artigo 474.º) – que não exista um outro mecanismo jurídico que
dê resposta à questão (artigo 474.º do CC). Os outros mecanismos em que poderíamos
pensar eram a gestão de negócio alheio julgado próprio (artigo 472.º, n.º 1) e a
responsabilidade civil (mas não se pode aplicar aqui porque não há danos nem há
culpa).

Verificados os requisitos do enriquecimento sem causa, nasce a obrigação de restituição. O


problema que nos surge aqui é saber qual é o valor a restituir – a este propósito há várias
teorias:
1. Teoria tradicional – teoria do duplo limite representado pelo enriquecimento
patrimonial e o empobrecimento patrimonial. Neste caso, o valor do enriquecimento
patrimonial são os 1000€. Segundo esta teoria, o empobrecimento também é medido
em termos patrimoniais, portanto, o empobrecimento patrimonial do vizinho não
existe porque o património está intacto. A obrigação de restituição neste caso é igual
ao menor dos dois valores, que neste caso é 0. Esta tese foi criticada: segundo esta
teoria podia haver expropriação de bens alheios.
2. Teoria do duplo limite corrigido – os limites são: o enriquecimento é patrimonial,
mas o empobrecimento é um empobrecimento real. Empobrecimento real equivale a
dizer que corresponde ao valor de mercado que aquela operação patrimonial tem. Pôr
painéis publicitários naquele sítio vale 900€, portanto, o valor de mercado é de 900€.
Assim, a obrigação de restituir é igual ao menor dos dois valores, ou seja, é igual a
900€.
 O professor Antunes Varela critica esta teoria porque permite que haja
expropriação de bens alheios desde que se pague o valor de mercado.
Portanto, ele diz que o montante a restituir deve ser igual ao enriquecimento
patrimonial, a menos que consiga provar que uma parte desse valor fica a
dever-se a qualidades dele. À luz da teoria do professor Antunes Varela, neste
caso, têm de ser restituídos 1000€, a menos que A consiga demonstrar que
parte do valor se deve a especiais qualidades dele. Significa que ele vai
restituir 1000 com possibilidade de diminuição para 900.
3. Tese do triplo limite do Dr. Menezes Cordeiro – o enriquecimento patrimonial é
igual a 1000€; o empobrecimento vai ter de ser medido de duas formas: patrimonial
e real. O empobrecimento patrimonial é igual a 0; o empobrecimento real é igual a
900€. A primeira operação é identificar o maior dos dois valores de empobrecimento
(neste caso é o valor real). Depois temos de comparar o valor do maior dos dois
empobrecimentos com o valor do enriquecimento e o valor a restituir é igual ao menor
desses valores. Quer dizer que no caso a teoria do triplo limite conduz a que o valor
a restituir seja 900€.
*nota: em sede de exame temos de expor estas teorias.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Caso n.º 17
A, ao passear por uma rua cidade do Porto, vê um indivíduo a apontar uma seringa a
um jovem que o olhava de uma forma temerosa. Sem mais, Alberto desfere um violento
murro no indivíduo com a seringa. Sabe depois que se trata de um finalista de Medicina
a praxar um caloiro. Quid iuris?

Esta pergunta tem que ver com um eventual pedido indemnizatório por parte do finalista de
Medicina, e ele pode ser indemnizado se estiverem verificados todos os pressupostos do
artigo 483.º do CC, que é a regra geral da responsabilidade civil extracontratual.

Requisitos da responsabilidade civil extracontratual:


1. Ato;
2. Ilicitude;
3. Culpa;
4. Dano;
5. Nexo causal entre o ato e o dano.

Há um ato voluntário de A. Em princípio o ato de A serIa ilícito por violação de um direito


absoluto do finalista de Medicina (direito à integridade física). Resta saber se se verifica uma
causa de exclusão da ilicitude. A causa de exclusão da ilicitude que poderia convocar-se é a
legítima defesa (artigo 337.º do CC). Pode haver legítima defesa de terceiro.

Requisitos da legítima defesa:


1. É uma reação a uma agressão, agressão essa que tem de ser atual ou ilícita;
2. A legítima defesa é uma forma de autopromoção dos direitos – tem de haver
necessidade de atuação/reação porque não se pode recorrer em tempo útil a uma
autoridade pública;
3. Adequação ou proporcionalidade da agressão;
4. Ameaça contra a pessoa ou contra o património próprio ou de terceiro.

Não estão verificados todos os requisitos porque falta a agressão. Faltam os pressupostos da
legítima defesa, o que quer dizer que o ato não é praticado em legítima defesa. Portanto, o
ato é ilícito e há um erro quanto aos pressupostos da legítima defesa (artigo 338.º do CC).
Se ele atuar pensando erradamente que os pressupostos da legítima defesa estão verificados,
ele atuou em erro e o ato é ilícito. Porém, esse ato pode ou não ser culposo. Se houver culpa,
o agente responde pelos danos; se não houver culpa ele não responde pelo ato ilícito. Para
sabermos se houve culpa ou não teríamos de usar o critério do bom pai de família – saber se
um bom pai de família, naquele caso, teria caído ou não em erro.

Caso n.º 18
A conduz o seu automóvel numa rua do Porto. De repente, surge-lhe na frente do carro
em corrida, B, inimputável. Para não o atropelar, A tem que proceder a uma guinada
súbita, indo embater na carrinha de C que estava estacionada. A carrinha sofre danos
no valor de 1.000 euros e o carro de A no valor de 1.250 euros. Quid iuris?

A choca com a carrinha de C, causando-lhe danos para não atropelar B. Há danos que surgem
em duas esferas jurídicas distintas:
1. Danos causados na esfera jurídica de C. C pretende ser indemnizado – ele vai
procurar dirigir uma pretensão indemnizatória contra o A. Para que ele tenha sucesso
na sua pretensão indemnizatória é preciso que se verifiquem os requisitos da

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

responsabilidade civil por factos ilícitos e culposos, previstos no artigo 483.º do CC.
Nos termos deste artigo, têm de estar verificados 5 requisitos para que C tenha sucesso
na sua pretensão indemnizatória: facto voluntário, ilícito, culpa, dano e nexo de
causalidade.
i. Facto voluntário: não é um facto necessariamente querido pelo agente (neste
caso, A); temos de estar perante um facto que seja pensável como controlável
pela vontade e que nessa medida pode ser imputado objetivamente; conduta
humana pensável como controlável pela vontade. Este primeiro requisito está
verificado.
ii. Ilicitude: nos termos do artigo 483.º, n.º 1 do CC, a ilicitude pode revestir 2
modalidades básicas, que são a violação de direitos subjetivos/absolutos e
a violação de normas de proteção. A viola uma coisa alheia e por isso temos
a violação de um direito de propriedade de outrem (direito absoluto) – a
violação de um direito de propriedade de outrem é um ato ilícito que pode dar
aso a responsabilidade civil por factos ilícitos, mas a verdade é que temos
aqui um ato típico, porém, nem todos são contrários à ordem jurídica, nem
todos são antijurídicos. Temos de saber se concorre aqui qualquer causa de
justificação da ilicitude: a atuação de A pode reconduzir-se à figura do estado
de necessidade, que está prevista no artigo 339.º do CC. O estado de
necessidade é a situação de constrangimento em que alguém sacrifica coisa
alheia com o fim de afastar um perigo atual de um prejuízo manifestamente
superior. Para haver estado de necessidade têm de estar verificados diversos
requisitos:
a. Tem de existir um perigo atual para o agente ou para terceiros – este
requisito está verificado para terceiro (B, que se atravessa);
b. Tem de haver superioridade dos danos que de outra forma adviriam
para as pessoas ou património do agente ou de terceiro em relação aos
danos que se causam. No fundo a ideia é que os danos que se
pretendem evitar têm que se superiores do que aqueles que se causam.
Este requisito está verificado.
c. A circunscrição do sacrifício a bens meramente patrimoniais – o
artigo 339.º, n.º 1 diz que É lícita a acção daquele que destruir ou
danificar coisa alheia com o fim de remover o perigo actual de um
dano manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro.
Assim, parece de admitir-se que só haverá estado de necessidade
quando se sacrifiquem bens patrimoniais – a doutrina diverge sobre
este requisito (como Almeida Costa, que admite o sacrifício de bens
pessoais para tutela de outros bens pessoais de valor superior ou
mesmo de bens patrimoniais de valor considerável – ex.: para
preservar uma coleção de selos muito valiosa ele considera ser lícito
causar ferimentos muito leves a um terceiro). Este problema doutrinal
não se colocaria porque se trata de um bem patrimonial – este
requisito verifica-se.
A atua em estado de necessidade e por conseguinte a sua conduta é lícita. C fica sem
ressarcimento e não vê os seus danos reparados então? Como não se verificam os
requsitios do artigo 483.º do CC, não teria sucesso na sua pretensão indemnizatória.
Aqui, ao contrário do que acontece na legítima defesa, não há uma agressão prévia
do lesado, C é um terceiro alheio à situação e os seus interesses foram legitimamente
sacrificados mas em proveito de outrem – portanto, a lei admite no n.º 2 do artigo
339.º a indemnização dos danos causados. Isto não parece algo paradoxal (o Direito
considera então aquela conduta lícita, mas impõe a obrigação de indemnizar)?
Este é um dos exemplos raros de responsabilidade por factos lícitos. Esta situação não

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

tem nada contraditório. O Direito considera esta atuação lícita porque há um interesse
que deve prevalecer, mas uma prevalência absoluta deste interesse também seria
injusta – o Direito considera este ato lícito mas impõe a obrigação de indemnizar
porque no fundo pretende-se nestes casos raros compensar o sacrifício de um
interesse menos valorado na composição de um conflito teleológico porque uma
prevalência absoluta do interesse oposto seria injusta. No fundo, temos aqui um
conflito de interesses e o Direito diz qual deles é que deve prevalecer – portanto,
qualquer atuação que seja dirigida a fazê-lo prevalecer deve ser considerada lícita.
Mas o outro interesse que é menos valorado não deve ser totalmente desconsiderado
porque isso seria injusto – o Direito prevê a obrigação de indemnizar para compensar
o sacrifício deste interesse menos valorado. Isto posto, temos de saber sobre quem
cabe a obrigação de indemnizar. O artigo 339.º, n.º 2 responde a esta questão: O autor
da destruição ou do dano é, todavia, obrigado a indemnizar o lesado pelo prejuízo
sofrido, se o perigo for provocado por sua culpa exclusiva; em qualquer outro caso,
o tribunal pode fixar uma indemnização equitativa e condenar nela não só o agente,
como aqueles que tiraram proveito do acto ou contribuíram para o estado de
necessidade – neste caso o perigo não foi causado por culpa exclusiva do autor do
dano (A). Em todos os outros casos em que não há culpa exclusiva do autor da lesão,
a nossa lei entrega ao prudente do julgador/juiz mediante a justa ponderação de todos
os interesses em jogo a tarefa de decidir não só sobre o montante da indemnização,
mas sobre a própria atribuição dela e a determinação das pessoas responsáveis. Nesta
hipótese, pelo prejuízo causado na carrinha de C, seria de responsabilizar A e B. A
letra da lei parece apontar que o agente tem de ser sempre responsabilizado – na
opinião do prof. Ribeiro de Faria, os dizeres do 339.º, n.º 2, parte final do CC são
passíveis de uma interpretação alternativa e não necessariamente cumulativa (sentido
de ora responsabilizar o agente, ora responsabilizá-lo a ele e ao beneficiário, ora no
sentido de responsabilizar apenas o beneficiário – neste sentido se orientam também
Vaz Serra e Antunes Varela). Se seguirmos a posição destes autores, seria de
responsabilizar apenas B porque atuou em estado de necessidade e porque também
foi ele que tirou proveito da atuação de A.
2. Danos causados na esfera jurídica (carro) de A – A pode responsabilizar B nos
termos do artigo 483.º do CC. B é inimputável, não é capaz de culpa, não é dotado da
capacidade de querer e entender, não é dotado de capacidade intelectual e volitiva.
No fundo, não é capaz de valorar os seus atos. Como é inimputável, falta um dos
pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, que é a culpa. Esta
possibilidade da responsabilização de B está vedada. Isto não significa que A não fica
sem reparação dos seus danos. O estado de necessidade pressupõe o sacrifício de bens
alheios e o que temos aqui é A sacrificar um bem próprio para salvar B – não é esta
figura que vai facultar a A a possibilidade legal de indemnização pelos danos que
sofreu. Também não é o instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos e
culposos porque falta um dos seus pressupostos, que é a culpa. Então, A pode
responsabilizar os obrigados à vigilância de B. Tínhamos de averiguar se havia
obrigado à vigilância de B. Portanto, uma via possível era a do artigo 491.º do CC,
que regula a responsabilidade pelos incapazes naturais, estabelecendo uma presunção
de culpa das pessoas a quem por lei ou negócio jurídico incumbe a sua vigilância.
Acontece que estas pessoas podem conseguir ilidir esta presunção de culpa: pode não
existir uma pessoa obrigada à vigilância; mesmo que exista alguém obrigado à
vigilância de B, essa pessoa pode ilidir essa presunção do artigo 491.º se demonstrar
que cumpriu o seu dever de vigilância ou mostrando que os danos se teriam verificado
ainda que ele tivesse cumprido o seu dever (relevância negativa da causa virtual).
Havia a possibilidade de estas pessoas conseguirem afastar a sua responsabilidade e
nesse caso temos de contar com o disposto no artigo 489.º do CC: a lei prevê a

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

possibilidade de, por motivos de equidade, se obter uma indemnização pela pessoa
inimputável. Assim, reunidos certos requisitos, a pessoa inimputável pode ser
obrigada a indemnizar mas a indemnização deve ser sempre calculada de forma a não
privar o inimputável dos meios necessários à sua existência.
 Existe ainda outra via legal de indemnização dos danos, a gestão de negócios
(artigo 464.º do CC). Nos termos do artigo 468.º do CC, Se a gestão tiver sido
exercida em conformidade com o interesse e a vontade, real ou presumível,
do dono do negócio, é este obrigado a reembolsar o gestor das despesas que
ele fundadamente tenha considerado indispensáveis, com juros legais a
contar do momento em que foram feitas, e a indemnizá-lo do prejuízo que
haja sofrido. Por esta via conseguiria A uma indemnização de B pelos danos
que sofreu no seu carro.

Caso n.º 19
Em consequência do vento forte que se fez sentir durante o fim-de-semana, uma árvore
do jardim de A cai sobre o muro exterior da propriedade do mesmo. Na segunda-feira,
e dada a necessidade de profundas reparações, A abre uma vala de 1,5 m de
profundidade no passeio adjacente, iniciando as obras de recuperação. A intervenção
revelou-se mais demorada do que o esperado, pelo que A não consegue terminar a obra
no dia de segunda-feira, limitando-se a indicar o buraco com um pau, onde ondulava
um pano branco, pequeno e pouco visível. Às 11 horas da noite, B, que se deslocava por
aquela rua, tropeça no buraco aberto por A que não vira em virtude da intensa
escuridão. B é transportado para o hospital mais próximo com uma perna partida. Dada
a natureza da fratura, tem de ser operado. Fica hospitalizado durante uma semana e
impossibilitado de trabalhar durante dois meses, deixando de auferir o salário relativo
a esse período (1.500 €). Gasta 500 € em fármacos. Sente intensas dores durante as
primeiras três semanas.

a) Quid iuris? É um caso de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos e


culposos.

Casum sentit dominus + The loss lies where it falls – o acaso sofre o dominus; por via de
regra, cada um suporta os danos que sofre na sua esfera jurídica sem os poder repercutir na
esfera jurídica de terceiros e só assim não será se existir um fundamento que permita imputar
os danos sofridos a outrem, fundamento esse que deve ser encontrado de forma
metodologicamente correta. Portanto, a obrigação de indemnizar constitui um desvio a esta
velha máxima e por isso carece de ser fundamentada devidamente.

Estamos no campo da responsabilidade civil extracontratual. Inexistindo uma causa


fundamentadora de responsabilidade objetiva de que possamos lançar mão, vamos analisar
se estão verificados os pressupostos de que depende a afirmação da responsabilidade civil por
atos ilícitos e culposos, previstos no artigo 483.º do CC.
 Facto voluntário: conduta humana pensável como controlável pela vontade e nessa
medida pode ser imputada objetivamente. Neste caso temos um facto voluntário do
agente. O facto voluntário pode revestir duas formas: pode ser uma ação ou uma
omissão. Neste caso temos uma omissão.
 Ilicitude: temos duas modalidades básicas de ilicitude, que são a violação de direito
subjetivos (absolutos) de outrem e a violação de normas legais destinadas à proteção
de interesses alheios. Para além destas modalidades básicas de ilicitude, o CC contém
ainda alguns casos especiais de ilicitude que não se enquadrariam na previsão
genérica do artigo 483.º do CC: ofensas ao crédito e ao bom nome (artigo 484.º),
conselhos, informações e recomendações (artigo 485.º) e omissões (artigo 486.º).

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

 Entre estes casos especiais da ilicitude está a omissão quando havia o dever
de praticar o ato omitido, prevista no artigo 486.º do CC. Não existe um dever
geral de evitar a ocorrência de danos para outrem – isso tornaria a vida em
sociedade insuportável porque haveria muitas ingerências na esfera alheia,
isto significa portanto que a responsabilidade por omissão pelos danos
sofridos por outrem só tem lugar quando sob o indivíduo recaia um dever
jurídico de praticar o ato que segura ou muito provavelmente impediria a
consumação do dano. Nos termos do artigo 486.º do CC, esse dever pode ser
criado por negócio jurídico ou pode ser imposto por lei – além disso, segundo
a doutrina dos deveres de segurança no tráfego, aquele que cria ou mantém
no tráfego uma fonte de perigo é obrigado a tomar as medidas necessárias
para afastar esse perigo. A, que cria uma fonte de perigo para terceiros, se não
pode remover a fonte de perigo, tem de adotar todas as providências para
evitar que aquele perigo se concretize num dano para terceiro. A poderia então
colocar barreiras de proteção devidamente sinalizadas com dispositivos de luz
portáteis. Temos aqui uma omissão ilícita – há aqui a omissão de um dever
de prevenção, de segurança no tráfego. Também este requisito da ilicitude
está verificado.
 Juízo de culpa: para que haja culpa é necessário desde logo que o agente seja
imputável (ter capacidade de querer e entender) e é necessário que o ato em si seja
passível de um juízo de censura ou reprovação. A apreciação da culpa faz-se em
abstrato, de acordo com o critério plasmado no artigo 487.º, n.º 2 do CC – critério do
bom pai de família colocado naquela situação concreta. Partindo do pressuposto de
que A é imputável, a sua conduta é reprovável dado que pela sua capacidade e em
face das circunstâncias concretas ele podia e devia ter agido de outro modo. Um bom
pai de família medianamente diligente saberia que a fraca sinalização do buraco
durante a noite poderia dar azo a quedas de peões e, na impossibilidade de remover
totalmente o perigo fechando a vala, tomaria todas as providências para evitar a
ocorrência de danos. Aqui teríamos uma atuação negligente (uma das modalidades de
culpa) – se é negligência consciente ou inconsciente isso depende de saber se o agente
representou ou não como possível o resultado ilícito. Incumbe provar a culpa ao
lesado, nos termos do artigo 487.º, n.º 1 do CC – este artigo limita-se a reiterar o que
já decorre das regras gerais (artigo 342.º do CC). A parte final do artigo 487.º, n.º 1
ressalva os casos de culpa presumida, portanto, tínhamos agora de averiguar se há
alguma presunção legal de culpa que possa ser trazida à colação. Neste caso, pode ser
aplicada a presunção de culpa prevista no artigo 492.º, n.º 3 do CC – a nossa
jurisprudência tem encarado a abertura de valas como sendo uma atividade perigosa,
portanto tem aplicado a presunção de culpa prevista no artigo 492.º, n.º 3 do CC. Nos
termos deste preceito, A só poderia ilidir a presunção de culpa provando que
empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir
os danos. Neste caso, dificilmente A conseguiria afastar a presunção de culpa. Este
requisito estaria também verificado.
 Dano: é toda a perda causada em bens jurídicos legalmente tutelados de caráter
patrimonial ou não. Neste caso, temos danos não patrimoniais e danos patrimoniais.
Os danos não patrimoniais são as intensas dores que B sofreu durante as primeiras 3
semanas a seguir à sua operação – o nosso ordenamento jurídico admite
genericamente a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais com fundamento no
artigo 496.º, n.º 4 do CC. Estes danos não patrimoniais são compensáveis (o termo
mais correto é compensação e não indemnização) e têm de ser danos dignos de
proteção legal. Quanto aos danos patrimoniais, estão em causa as despesas com
fármacos e os salários que deixou de auferir – estes danos são danos patrimoniais
suscetíveis de avaliação pecuniária, mas são danos de espécie diferente: as despesas

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

com fármacos são danos emergentes e os salários que deixaram de se auferir são
lucros cessantes. Nos termos do artigo 564.º, n.º 1 do CC, ambos estes danos de
espécies diferentes são reparáveis. No que respeita à forma da indemnização, a nossa
lei privilegia a reconstituição natural sempre que seja suficiente, possível e adequada
(artigo 566.º, n.º 1 do CC), mas nos casos em que a reconstituição natural não seja
possível, suficiente ou adequada, manda a lei que se proceda a uma indemnização por
equivalente calculando-se o quantum indemnizatório nos termos da teoria da
diferença (artigo 566.º, n.º 2 do CC). Se por acaso B tivesse ficado com uma
incapacidade parcial permanente ele poderia pedir ao juiz que decretasse uma
indemnização sob a forma de renda (artigo 567.º do CC) – tem de haver um
requerimento, o tribunal não decreta esta providencia ex officio.
 Nexo de causalidade entre o facto (que aqui é uma omissão) e o dano sofrido por B:
nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito e culposo são incluídos na
responsabilidade do agente. Só são incluídos na responsabilidade do agente aqueles
danos que foram causados pelo seu facto. A aferição do nexo causal faz-se de acordo
com a teoria da causalidade adequada, nos termos do artigo 563.º do CC, que tem
sido acolhida nossa doutrina e jurisprudência. Segundo esta teoria, não basta que o
facto seja condição necessária do dano (conditio sine qua non), é necessário ainda
que ele seja adequado a produzir o dano. Neste caso temos de fazer aqui duas
apreciações:
1. Saber se o facto foi condição necessária do dano (se retirarmos este facto do
enquadramento causal o resultado danoso ter-se-ia verificado? Se retirarmos esta
omissão ilícita e culposa, o dano ter-se-ia verificado? Não, portanto podemos
afirmar que o facto foi condição necessária do dano);
2. Este facto é causa adequada a conduzir este dano? Em condições normais é
adequado a produzir este tipo de danos? Sim.

Concluindo, uma vez que estão verificados todos os requisitos do artigo 483.º do CC, A seria
obrigado a indemnizar B pelos danos por ele sofridos em consequência da queda no buraco.
A seria obrigado a indemnizar B nos termos da responsabilidade civil extracontratual por
factos ilícitos e culposos.

b) Considere agora que B é conduzido ao hospital em estado de inconsciência. Os


médicos realizam vários exames tendentes a averiguar a extensão da lesão sofrida. Feito
o diagnóstico, entendem que é necessário proceder urgentemente a uma transfusão de
sangue. Com o intuito de salvar B, que até então não havia recuperado a consciência,
atuam sem mais demora. B pretende acionar os médicos, já que as transfusões de sangue
contrariam a sua convicção religiosa. Quid iuris?

B pretende acionar os médicos. Teríamos de averiguar a responsabilidade dos médicos, saber


se poderiam ou não ser responsabilizados. Temos que analisar a responsabilidade civil
extracontratual dos médicos. Poderíamos pôr em causa a responsabilidade civil contratual.

Temos de verificar se estavam preenchidos os requisitos do artigo 483.º do CC:


1. Facto voluntário: temos um facto voluntário dos médicos que se consubstancia na
administração artificial de sangue.
2. Ilicitude: neste caso B alegaria que tinha havido a violação de um direito absoluto
(integridade física). Há autores que dizem que é violado o direito à integridade física,
mas há outros autores que entendem que é violado o direito à autodeterminação.
Teríamos de averiguar se neste caso concorre alguma causa justificativa capaz de
afastar a ilicitude do ato – temos o instituto do consentimento do lesado (artigo 340.º
do CC), que constitui uma causa de exclusão da ilicitude. O consentimento deve ser

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

prestado em regra em momento anterior ao facto lesivo, mas o n.º 3 do artigo 340.º
prevê, no entanto, uma presunção de consentimento – a transfusão de sangue deu-se
no interesse do lesado, mas suscita a dificuldade de saber se a ação dos médicos se
deu de acordo com a sua vontade presumida (depende do caso concreto). Tratando-
se de uma transfusão de sangue indispensável ao tratamento de B e estando B em
estado de inconsciência, presume-se o seu consentimento dado que, de acordo com o
critério objetivo, tudo levaria a crer que o tutelar do interesse lesado perante a situação
concreta teria permitido o ato lesivo.

Concluindo, a atuação dos médicos é lícita e B não teria por isso sucesso na sua pretensão
indemnizatória contra os médicos.

E se os médicos conhecessem as convicções religiosas de B? Nesse caso, a sua atuação seria


ilícita.

c) Suponha, agora, que apesar de aparentar ter apenas algumas escoriações, B sofrera
graves lesões cerebrais que só seriam detetadas por via de um exame de TAC que,
segundo leges artis da ciência médica, deve ser realizado em casos da espécie do que
acaba de ser descrito. B acaba por falecer no hospital, em virtude de os médicos que o
assistiram não terem efetuado o referido exame, apesar de saberem que o paciente havia
batido com a cabeça aquando da queda. A mulher de B, C e o filho de ambos, D, ficam
devastados com este trágico desfecho. Quid iuris?
Vamos analisar a responsabilidade civil extracontratual dos médicos. Caso haja
responsabilidade civil dos médicos, temos de saber se A responde pelo dano da morte de B –
temos de dedicar especial atenção ao pressuposto do nexo da causalidade entre o facto e o
dano.

Quanto à responsabilidade civil extracontratual dos médicos, temos de ver se eles respondem
ao abrigo do artigo 483.º do CC – têm de estar verificados 5 requisitos:
1. Facto voluntário – conduta humana pensável como controlável pela vontade e nessa
medida pode ser imputada objetivamente. Neste caso temos um facto voluntário do
agente. O facto voluntário pode revestir duas formas: pode ser uma ação ou uma
omissão. Neste caso temos uma omissão – o facto voluntário é a não realização do
exame do TAC (é um facto omissivo controlável pela vontade humana). Este
pressuposto está verificado.
2. Ilicitude – o artigo 483.º, n.º 1 do CC prevê duas modalidades básicas de ilicitude:
violação de direitos de outrem (direitos absolutos) ou a violação de normas de
proteção. As leges artis são as regras a seguir pelo corpo medico no exercício da
medicina. As leges artis podem ser consideradas normas de proteção, mas para que
tenhamos a violação de uma norma de proteção na aceção do artigo 483.º, n.º 1 do
CC basta que à violação dos interesses do particular corresponde a violação de uma
norma legal, é ainda preciso que a tutela dos interesses particulares figure de facto
entre os fins da norma violada, ou seja, é preciso que aquela norma tenha como
finalidade tutelar interesses particulares. Às vezes temos normas que tutelam
interesses coletivos e reflexamente tutelam interesses particulares, mas não são essas
as normas que o artigo 483.º, n.º 1 tem em vista – tem de ser uma norma de proteção
que vise tutelar interesses particulares. As leges artis tutelam a proteção de interesses
particulares – porventura, tutelarão também um interesse coletivo na saúde pública,
mas tutela também interesses particulares dos pacientes. Mas não basta isto, é preciso
ainda que o dano se tenha registo dentro do círculo de interesses que a norma visa
tutelar.

42
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

 Exemplo: há uma norma que impõe que os armazéns à noite sejam iluminados
– essa norma é infringida; um assaltante que tentava roubar o armazém,
porque o armazém não está iluminado magoa-se, terá ele que ser
indemnizado? Não, esta norma tutela os interesses de quem la trabalha e não
os interesses de possíveis assaltantes. O dano que se registou não se encontra
dentro do âmbito dos interesses que a norma visa tutelar.
O dano neste caso encontra-se dentro do âmbito de interesses que a norma visa tutelar,
portanto, podemos afirmar a ilicitude neste caso.
3. Culpa – para que haja culpa o agente tem de ser imputável e o ato em si tem de ser
passível de um juízo de censura. O critério de aferição da culpa está plasmado no
artigo 487.º, n.º 2 do CC – é o bom pai de família em face das circunstâncias de cada
caso, é o bom operador daquele concreto setor colocado em face daquelas concretas
circunstâncias. O médico medianamente diligente e zeloso neste caso, colocado
naquelas circunstâncias, ele teria realizado o exame – naquelas circunstâncias o
medito devia ter agido de outra forma. Quanto ao grau de culpa, estaríamos perante
uma conduta negligente. Este pressuposto também está verificado.
4. Dano – temos desde logo o dano da perda da vida de B. Este dano é ressarcível – diz-
nos o artigo 496.º, n.º 1 do CC que deve atender-se aos danos não patrimoniais que
pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. A morte acarreta a cessação da
personalidade jurídica e consequentemente a extinção do seu principal atributo, que
é a capacidade jurídica – por causa disto surge uma questão que tem sido muito
controvertida e que tem suscitado viva controvérsia na nossa doutrina: questão de
saber se o direito à compensação nasce direta e originariamente na esfera jurídica das
pessoas indicadas no n.º 2 e 3 do artigo 496.º do CC ou se é adquirida pelo decuius
sendo depois objeto de transmissão por via sucessória/hereditária. A doutrina diverge,
mas o professor Miguel Pestana de Vasconcelos adere à 2 ª via. Mesmo entre os que
aceitam que o direito à compensação nasce na esfera do decuius, ainda surgem
divergências quanto à definição dos respetivos beneficiários da transmissão do
direito: é que para uns serão as pessoas indicadas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 496.º e para
outros autores serão os sucessíveis legais (artigos 2133.º e 2157.º do CC). Durante
muito tempo esta questão era meramente académica, mas a partir de 2010 esta questão
adquiriu relevo pratico – o artigo 496.º foi alterado em 2010, introduzindo-se o n.º 3
que faz menção ao unido de facto que não é herdeiro legal nos termos do direto
sucessório mas consta no elenco de pessoas do artigo 496.º.
 Há outros danos que pela sua gravidade merecem tutela jurídica. Pode
acontecer que a morte do decuius não seja instantânea e quando isso acontece
podem existir danos intercalares, que são os danos que a vítima sofreu entre
o momento da lesão e o momento da morte. Estes danos podem ser muito
relevantes – estamos a falar muitas vezes de dores físicas atrozes, de uma
grande sofrimento psicológico, etc. Estes danos, pela sua gravidade, são
dignos de proteção e devem ser tidos em conta.
 Para além destes, não podemos ignorar os danos que a morte de um ente
querido causa aos familiares diretamente. A perda de alguém que nos é
querido causa-nos danos diretamente – portanto, não podemos confundir o
dano pela perda da vida que são sofridos pelo próprio e temos os danos que a
morte dessa pessoa causa àqueles que lhe são queridos, neste caso na mulher
e no filho. E no caso de a morte não ter sido instantânea, assistir ao sofrimento
de uma pessoa que nos é querida também é merecedor de tutela jurídica.
 Além, disso, também não podemos descartar C e B sofrerem danos
patrimoniais – artigo 495.º, n.º 3 do CC. Quanto aos alimentos, ver os artigos
2003.º e ss do CC.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

5. Nexo de causalidade entre o facto e o dano – temos de ver se em concreto a não


realização do exame de TAC é conditio sine qua non da morte de B e para isso importa
a resposta que se dê à seguinte questão: se o exame tivesse sido realizado, o dano ter-
se-ia produzido? Ora, muito provavelmente não e portanto podemos dizer que em
concreto a não realização do exame TAC foi conditio sine qua non da morte de B.
mas isto não é suficiente, pois a doutrina entende que o artigo 563.º do CC consagra
a teoria da causalidade adequada e portanto não basta que em concreto que o facto
seja condição necessária do dano, tem de ser causa adequada a produzir aquele dano
em abstrato. Neste caso parece que a omissão dos médicos é idónea a produzir aquele
dano.

Portanto, em suma, os médicos responderão ao abrigo do artigo 483.º do CC.

Porém, falta analisar a responsabilidade de A perante esta factualidade, será que ele ainda
responde pelo dano da perda da vida de B ou se a conduta dos médicos não terá porventura
interrompido o nexo causal entre o facto de A e a morte de B? vamos ter de dedicar especial
atenção ao nexo de causalidade – temos de ver se não houve aqui a quebra do nexo de
causalidade. A apreciação do nexo de causalidade faz-se à luz do artigo 563.º do CC. Embora
este artigo se encontre redigido em termos latos, a verdade é que a nossa doutrina e
jurisprudência tem entendido que será de aplicar a teoria da causalidade adequada.
Segundo esta teoria não basta que o facto tenha sido em concreto condição necessária do dano
– não basta em termos naturalísticos e segundo um critério logico o facto tenha sido condição
necessária do dano, é preciso algo mais. É preciso que em abstrato o facto seja também idóneo
a produzir o dano segundo o normal curso das coisas. Portanto, podemos dizer que a teoria
da causalidade adequada pressupõe dois juízos:
1. Juízo em concreto de condicionalidade segundo um critério lógico: temos de saber se
a atuação de A foi em concreto a causa do dano – se retirássemos aquele facto do
encadeamento causal, o dano ter-se-ia produzido? Se a resposta for negativa então
aquele facto foi condição necessária do dano porque se o removêssemos o dano
deixaria de se verificar. Se retirássemos o facto de A ele não teria caído no buraco,
não precisava de tratamento médico e não morreria. Em concreto o facto de A foi
condição necessária da morte de B, mas nem todas as condições necessárias à
produção de um determinado facto danoso podem ser consideradas adequadas. Mas
isto não chega, temos de saber se o facto é abstratamente idóneo a causar o dano.
2. Juízo em abstrato de adequação segundo um critério normativo fundado na axiologia
própria do direito. Como é que sabemos que o facto é abstratamente idóneo a causar
o dano? Nem todas as condições necessárias à produção de um fano podem ser
consideraras adequadas. Temos duas formulações:
1. Formulação positiva (Larenz) – uma causa é adequada a produzir um
determinado resultado toda a condição apropriada para a produção dele segundo
um critério de normalidade e não apenas por força de circunstâncias
especialmente particulares excecionais e estranhas ao regular curso das coisas.
2. Formulação negativa (Enneccerus e Lehmann) – uma condição só deixa de ser
causa adequada de um resultado se atendendo à sua natureza geral ela se mostrar
de todo indiferente para a produção dele e por isso mesmo só ocorreu por
circunstâncias excecionais ou extraordinárias.

A formulação mais ampla e menos restritiva é a formulação negativa, que vai permitir
afirmar o nexo de causalidade com muito mais frequência. Logo, vai permitir
responsabilizar o agente com muito mais frequência. Entende uma parte da doutrina,
na qual se insere o Dr. Ribeiro de Faria, que a formulação negativa deve ser adotada
no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos e a formulação

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

positiva, mais restritiva, para a responsabilidade objetiva (pelo risco ou por factos
lícitos).

Na prática, a formulação por que se opte pode ter repercussões:


 Se optarmos pela formulação positiva, parece que A não responderia porque
a sua omissão não levaria em condições normais a este dano – é que num
curso normal de acontecimentos os médicos teriam observado as leges artis
da ciência médica e as lesões cerebrais seriam imediatamente detetadas.
Portanto, segundo um normal curso das coisas este dano não se teria
produzido.
 Já de acordo com a formulação negativa, que é mais ampla, não parece ter
havido lugar à interrupção do nexo causal, o facto omissivo de A potencia o
risco de complicações e potencia também o risco de morte por negligência
médica – não pode ser considerado de todo indiferente para a morte de B.
Portanto, se acompanharmos a doutrina que entende que se deve aplicar a
formulação negativa no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por
factos ilícitos e culposos parece que não haver a interrupção do nexo de
causalidade e ainda se poderia responsabilizar A por este dano. Não é
indiferente a formulação por que se opte – consoante a formulação adotada
podemos ter resultados diferentes e este é um caso em que podemos ver isso.

É importante ainda salientar que a teoria da causalidade adequada não exige que a
causalidade seja imediata. Para que se possa afirmar o nexo caudal basta a causalidade
mediata, isto é, que o ato dê lugar a uma condição posterior que provoque
imediatamente o dano salvo se esta segunda condição não estiver em relação de
adequação com o facto que deu lugar à primeira – tem de haver sempre entre os
elementos intermédios da cadeia causal uma relação de adequação.

Podemos, por fim, concluir que o facto de A determinar o internamento de B num hospital
aumenta a probabilidade de tratamento médico defeituoso. E pode-se afirmar que entre os
elementos intermédios da cadeia há uma adequação causal e portanto nessa medida A
responderia ainda por este dano da perda de vida de B.

Em conclusão, temos aqui vários responsáveis, que respondem solidariamente, nos termos do
artigo 497.º do CC. Neste caso, A e os médicos respondem solidariamente, mas parece que a
culpa dos médicos que são os causadores imediatos do dano é maior e isso terá naturalmente
repercussões ao nível das relações internas entre os vários responsáveis.

Caso n.º 20
A, criança de 6 anos, filho de B e C, contra as instruções dos pais vai jogar futebol
com os amigos no campo em frente a sua casa. Durante o jogo, um remate com mais
força de A vai embater, partindo, o vidro da montra de uma loja de sapatos.
Como já eram 19h00, o dono da loja só conseguiu reparar o vidro (que tem o
valor de 1.000 €) com fita autocolante. Durante a noite, a loja vem a ser assaltada, sendo
causados prejuízos no seu recheio no valor de 1.500 €. Quid iuris?
Primeiro parágrafo:
Situamo-nos no campo da responsabilidade civil extracontratual. Trata-se de um potencial
caso de responsabilidade civil por atos ilícitos e culposos – para tal têm de estar verificados
5 requisitos do artigo 483.º do CC. no que toca à responsabilidade de A temos de verificar o
seguinte:
1. Facto voluntário – A ao rematar a bola pratica um ato voluntário (uma ação);

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

2. Ilicitude – o facto voluntário é ilícito porque temos a violação de um direito absoluto,


que é o direito de propriedade do dono da loja;
3. Culpa – este pressuposto suscita dúvidas. Presume-se que A não é imputável – esta
presunção de inimputabilidade (artigo 488.º, n.º 2 do CC) é uma presunção ilidível.
Imputável é aquele que tem a capacidade de valorar a sua conduta e de se determinar
de acordo com essa valoração, isto é, capacidade de querer e entender o ato e a lei no
n.º 2 do artigo 488.º presume a falta de imputabilidade nos menores de 7 anos. Tendo
o autor da lesão 6 anos, a lei presume a sua inimputabilidade. Mas como se trata de
uma presunção relativa, não fica excluída a possibilidade da exclusão da sua
inimputabilidade. Portanto, se o dono da loja quisesse responsabilizar A, teria de
provar imputabilidade de A – tinha de provar que A tinha o discernimento de entender
e querer. Caso não lograsse fazer esta prova, A não poderia ser responsabilizado pelo
prejuízo suportado pelo dono da loja. Nesta situação, seria em pp do interesse do dono
da loja demandar também, ou em vez de A, os pais de A ao abrigo do artigo 491.º do
CC, que regula a responsabilidade pelos danos causados pelos incapazes naturais,
estabelecendo uma presunção de culpa relativa das pessoas obrigadas à sua vigilância
por lei ou negócio jurídico. Neste caso, sobre os pais de A impende um dever de
vigilância de fonte legal, do conteúdo das responsabilidades parentais (artigo 1878.º
do CC). quando haja qualquer lesão cometida pelo incapaz, a lei presume que ela
provém de culpa in vigilando, isto é, que houve falta da vigilância adequada de quem
a tal estava obrigado. Isto significa na prática que se o dono da loja quiser acionar os
pais com fundamento no artigo 491.º, na violação do dever de vigilância, os pais
responderão exceto se conseguirem ilidir a presunção que sobre eles recai,
demonstrando que ou cumpriram o dever de vigilância ou provam que os danos se
teriam produzido ainda que eles o tivessem cumprido (relevância negativa da causa
virtual).
 É importante saber que o modo como dever ser exercida a vigilância não é
sempre o mesmo, varia de acordo com as caraterísticas do vigilante – é
preciso fazer uma apreciação casuística. A liberdade que se pode dar a uma
criança de 6 anos não será a mesma que se dá a um adolescente de 17 anos.
 Quando em causa esteja uma criança de tenra idade, os nossos tribunais têm
sido bastante exigentes quanto à obrigação de vigilância dos pais. Há quem
fale por isso até de um processo de objetivação da responsabilidade dos pais
justificada por razões de justiça e equidade, porque de facto os tribunais têm
sido tão exigentes na aferição da responsabilidade dos pais que esta
responsabilidade quase se aproxima de uma responsabilidade objetiva
independente de culpa (na prática quase que se converte numa
responsabilidade objetiva porque é muito difícil aos pais provar que
cumpriram o seu dever de vigilância).
Portanto, tendo em conta isto, dificilmente os pais de A poderiam provar que
cumpriram os deveres de vigilância. No entanto, supondo-se que não é possível obter
reparação dos pais seja porque conseguiram demonstrar que cumpriram o seu dever,
seja porque carecem de bens à custa dos quais a responsabilidade possa ser efetivada
– neste caso não é possível obter reparação dos pais e pode ganhar relevo o disposto
no artigo 489.º do CC, a que o tribunal pode lançar mão, que admite a
responsabilidade da pessoa inimputável mediante a verificação de alguns
pressupostos:
1. Facto ilícitos;
2. Facto que tenha causado danos a alguém:
3. O facto tenha sido praticado em termos de ser considerado culposo se nas mesmas
condições tivesse sido praticado por pessoa imputável;
4. Nexo de causalidade;

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

5. É necessário que a reparação não possa ser obtida pelos obrigados à vigilância;
6. É necessário que a obrigação de indemnizar não prive o inimputável dos meios
necessários à sua subsistência.
4. Dano – este facto produz danos porque o remate parte o vidro da montra.
5. Nexo de causalidade entre o facto e o dano – o remate da criança foi não só condição
necessária como causa adequada daquele dano.

Segundo parágrafo:
No dano causado, cabe não só a destruição do vidro da loja, que é um dano patrimonial direto
(o efeito imediato do facto ilícito no património do lesado), mas também o prejuízo ulterior
resultante do roubo que tem lugar durante a noite, que seria um dano indireto (uma consequência
mediata ou remota do dano direto).

Coloca-se a questão, a propósito dos danos indiretos, de saber se este dano ainda é indemnizável
– o dano indireto suscita dificuldades ao nível da aferição do nexo causal. Dentro do dano
provocado por este facto cabem estes dois danos, será que o indireto ainda é ressarcível? Ou terá
havido aqui uma quebra do nexo causal? Já sabemos que para que os danos poderem ser
indemnizados tem de haver um nexo causal entre o facto e do dano.

A teoria da causalidade pressupõe dois juízos:


1. Critério concreto de condicionalidade segundo um critério lógico;
2. Critério abstrato de adequação segundo um critério normativo fundado na axiologia
própria do direito.

O remate de A é em concreto causa, em termos de conditio sine qua non, do roubo do recheio da
loja? Ou seja, se removermos o remate que partiu o vidro, o dano que resultou do roubo da loja
deixa de se produzir? Podemos, neste primeiro juízo, afirmar que sim. Parece que este facto de A
teria sido conditio sine qua non deste prejuízo ulterior que resulta do roubo do recheio da loja. Se
removêssemos o facto de A, o dano indireto não se teria produzido.

Importa agora analisar se o facto de A é abstratamente idónea a produzir aquele resultado danoso.
Aqui existem duas formulações relevantes:
 Formulação positiva: (Larenz) – uma causa é adequada a produzir um determinado
resultado toda a condição apropriada para a produção dele segundo um critério de
normalidade e não apenas por força de circunstâncias especialmente particulares
excecionais e estranhas ao regular curso das coisas.
 Formulação negativa: (Enneccerus e Lehmann) – uma condição só deixa de ser causa
adequada de um resultado se atendendo à sua natureza geral ela se mostrar de todo
indiferente para a produção dele e por isso mesmo só ocorreu por circunstâncias
excecionais ou extraordinárias.

A formulação mais ampla e menos restritiva é a formulação negativa, que vai permitir afirmar o
nexo de causalidade com muito mais frequência. Logo, vai permitir responsabilizar o agente com
muito mais frequência. Entende uma parte da doutrina, na qual se insere o Dr. Ribeiro de Faria,
que a formulação negativa deve ser adotada no âmbito da responsabilidade civil extracontratual
por factos ilícitos e a formulação positiva, mais restritiva, para a responsabilidade objetiva (pelo
risco ou por factos lícitos).

Se acompanharmos a posição do professor de Ribeiro de Faria, de acordo com a formulação


negativa da teoria da causalidade adequada, uma causa deixa de ser apropriada a produzir um
dano quando se mostre de todo indiferente para a sua produção, que só se verificou por
circunstâncias extraordinárias ou excecionais. Posto isto, segundo esta formulação negativa, que
é mais ampla, o remate não é de todo indiferente para a produção deste resultado. O ato dos
assaltantes da loja poderá ser imputado a A visto que é um efeito adequado do facto deste que foi

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

gerador da responsabilidade. Significa isto que os pais de A ainda seriam obrigados a indemnizar
o dano causado pelo prejuízo causado pelo recheio do roubo da loja.

Nota: os pais de A, quando são responsabilizados nos termos do artigo 491.º, eles não respondem
pelo facto de outrem, eles respondem por um facto próprio, que é a falta de vigilância adequada.
A lei presume-se que se tivesse havido a vigilância adequada não teria verifico aquele dano.

Caso n.º 21
A, dono de um imóvel sito no Porto, contrata com B, empreiteiro, o arranjo e pintura
da fachada do edifício. Para o efeito, B monta um andaime em frente do mesmo para
permitir a realização dos trabalhos. Numa noite de vento cai um cilindro de ferro, mal
seguro, que fazia parte do andaime num automóvel que estava estacionado no outro
lado da rua, provocando uma lesão craniana a C que se encontrava lá dentro. Chamada
a ambulância, C é recolhido, mas acaba por morrer dos ferimentos pouco depois de
chegar ao Hospital, por falta da assistência atempada. De facto, a ambulância só aí
chegou passadas duas horas devido a um engarrafamento de trânsito onde tinha ficado
retida. Quid iuris?

Estamos perante um possível caso de responsabilidade civil extracontratual. A obrigação


de indemnizar é uma exceção, “casum sentit dominus” – a regra é que cada um suporta os
danos ocorrido na sua esfera jurídica sem os poder transferir para a esfera de outrem. A
obrigação de indemnizar constitui um desvio a esta máxima e, por isso, carece de ser
devidamente fundamentado. A imputação do dano numa esfera jurídica diferente daquela em
que ele se manifesta só se verifica se estiverem preenchidos determinados pressupostos.
Vamos ver no fundo se temos aqui um fundamento para imputar os danos a outrem. Vamos
averiguar se C tem um título válido de imputação dos danos a outrem – a pessoa a responsabilizar,
se houver alguém a responsabilizar, seria B.

Vamos verificar se estão reunidos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos
(artigo 483.º, n.º 1):
1. Facto voluntario do agente: conduta humana pensável com controlável pela vontade
e nessa medida pode ser imputada objetivamente. Pode revestir duas modalidades: i)
ação ou ii) omissão. Aqui temos um facto voluntário omissivo.

2. Ilicitude: é preciso que o facto voluntário do agente seja ilícito. A omissão só será
considerada ilícita quando havia o dever de praticar o ato omissivo (artigo 486.º). A
obrigação de agir pode resultar de duas fontes: fonte legal ou fonte
negocial/convencional. Alguns casos estão especialmente previstos no CC:
 Artigo 491.º– dever de vigilância;
 Artigo 492.º – danos causados por edifícios e outras obras;
 Artigo 493.º – danos causados por cosias, animais ou atividades.

Estes preceitos estabelecem deveres de agir. Aqui interessa-nos considerar o disposto no


artigo 492.º. Este artigo releva particularmente e prevê a responsabilidade pelos danos
causados pela ruína total ou parcial de edifícios ou obras devido a vício de construção ou
defeito de conservação. Temos de ver se a nossa situação é subsumível a este artigo e,
para isso, interessa saber o que está abrangido pela noção de “outras obras”. Temos de
ver se o andaime cabe aqui na noção de outras obras (ler o CC anotado de Antunes Varela
que esclarece o sentido e alcance destas expressões). Para estes autores, é necessário que
a obra esteja unida ao prédio ou ao solo e não se trate de coisa móvel. O andaime poderá
caber nesta noção de “outras obras” desde que esteja unido ao prédio. Quando se diz que
a ruína pode ser total ou parcial, isso faz com que estejam incluídas as partes integrantes

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

que caindo causem prejuízos, como o cilindro de ferro que faz parte do andaime. Por isso,
o andaime cabe na noção de “outras obras”, assim como o cilindro de ferro que cai. Por
isso, a situação descrita no enunciado é passível de ser subsumível a este artigo. Sobre B,
o proprietário do andaime, impedia o dever de montar corretamente o andaime de modo
a não causar danos a terceiros – havia um dever de vigilância a observar na montagem do
andaime, deveres esses que radicam sobre o empreiteiro B.

Sobre quem recai o ónus da prova da omissão dos deveres a observar na construção
e na manutenção dos edifícios ou das obras? Parte da doutrina, seguida por Antunes
Varela, e seguida inicialmente pela nossa jurisprudência, defendia que a presunção
de culpa do artigo 492.º depende da prova de que existiu um vício de construção ou
um defeito de conservação no edifício ou obra que ruiu, prova essa que, segundo as
regras gerais, compete fazer ao lesado. Contudo, Menezes Leitão, que discorda desta
posição (o professor Pestana de Vasconcelos adota esta posição de Menezes Leitão),
vem dizer que, salvo os casos de factos excecionais, a ruína de uma obra é um facto
que inicia só por si o incumprimento de deveres relativo à sua construção e
conservação e, por isso, não se justifica que recaia sobre o lesado o ónus suplementar
de demonstrar a forma como ocorreu esse incumprimento. Ao exigir-se essa prova,
colocava-se em causa a proteção que se tentou conceder com a consagração de uma
presunção legal de culpa. Ou seja, no fundo, retirar-se-ia grande parte da utilidade
deste regime. Por isso, entende que o artigo 492.º consagra uma dupla presunção:
presunção de ilicitude e presunção de culpa – a lei presume que a obra rui por vício
de construção ou defeito de conservação e presume que houve culpa do agente nesse
vício ou defeito.

Temos então aqui uma omissão ilícita – se acompanharmos a posição de Menezes


Leitão, o lesado não teria de fazer prova do incumprimento dos deveres de vigilância
porque o artigo 492.º consagra não só uma presunção de culpa, mas também uma
presunção de ilicitude.

3. Culpa: é necessário que o autor da lesão tenha agido com culpa – é necessário que
seja imputável e que tenha agido com culpa, que a sua conduta seja passível de um
juízo de censura ou reprovação. Agir com culpa significa atuar de forma a que a
conduta do agente mereça reprovação – o agente, face às circunstâncias concretas,
podia e devia ter agido de outro modo. O critério da apreciação da culpa está previsto
no artigo 487.º, n.º 2 – critério do bom pai de família (bom operador de determinado
ramo, setor, atividade). Teríamos agora de ver como um bom empreiteiro
medianamente diligente e cuidadoso teria agido, teria assegurado que o cilindro
estava bem montado e, por isso, estava seguro. Supondo que o B é imputável,
suscetível de um juízo de censura, parece ter agido em termos que justificam uma
censura. Um bom empreiteiro ter-se-ia assegurado que o cilindro de ferro estava bem
seguro.

A culpa pode assumir duas modalidades: dolo ou negligência. Neste caso teríamos
uma conduta negligente. Quando a atuação do agente seja apenas negligente, isso
pode relevar para efeitos do artigo 494.º – o juiz pode entender que, por motivos de
equidade, se justifica fixar uma indemnização em montante inferior ao que
corresponderia os danos causados. Por isso, a análise do grau da culpa é importante,
tem implicações práticas. Já se a atuação tiver sido dolosa, o juiz não pode fixar a
indemnização num montante inferior ao dano.

Por via de regra, incumbe provar a culpa ao lesado, salvo se houver uma presunção
de culpa (artigo 487.º, n.º 1 – este artigo reitera o que já decorre do artigo 342.º).

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Neste caso encontraríamos a aplicação da presunção de culpa do artigo 492.º, o que


significa que, por forma a afastar a presunção de culpa, B teria ou de demostrar que
não foi por culpa sua que o cilindro caiu (o que dificilmente conseguia fazer) ou
demonstrar que os danos se continuariam a verificar mesmo que tivesse adotado a
diligência devida. Parece que B não conseguiria afastar a presunção de culpa.

4. Dano: a omissão ilícita e culposa de B provoca danos na pessoa de C que se


encontrava dentro do carro, (danos não patrimoniais) provocando uma lesão craniana
e em virtude dessa lesão vem perder a vida. Nos termos do artigo 496.º, são
compensados os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do
direito. Por isso, o dano da perda da vida é compensado, bem como outros danos que
o lesado tenha sofrido entre o momento da lesão e o momento da morte. Teríamos de
equacionar os danos que esta perda eventualmente poderá causar na esfera jurídica
daqueles que fossem próximos do C:
 Danos não patrimoniais: o sofrimento que advém da perda de um ente
querido.
 O artigo 495º prevê a indemnização da perda de alimentos – podia acontecer
que o C estivesse a prestar alimentos e essa pessoa tinha direito a uma
indemnização por essa perda da prestação de alimentos.
 Para além destes danos, geram-se também danos patrimoniais no carro
(artigo 552.º e artigo 556.º).
Sempre que possível, a indemnização deve ter lugar por via da reconstituição natural,
ou seja, traduzir-se-ia na reparação do veículo que ficou danificado – a nossa lei
privilegia a reconstituição natural. Sempre que a reconstituição natural não seja
possível, não cubra integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o
devedor, a indemnização faz-se por via da indemnização por equivalente. Caso C
saísse ileso do acidente, a privação do uso do veículo também é um dano e, por isso,
a reconstituição natural podia não se mostrar suficiente para tornar o lesado indemne
e por isso daria lugar a uma indemnização por equivalente. O dano da privação do
uso do veículo consiste nas despesas que uma pessoa tem de fazer no aluguer de um
transporte, por exemplo.

5. Nexo de causalidade: nos termos do artigo 563.º do CC, o agente só reponde pelos
danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão – é preciso
provar o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e o dano. A doutrina e a
jurisprudência têm entendido que se deve aplicar a teoria da casualidade adequada.
Aqui é fácil estabelecer um nexo de causalidade entre o facto de B e o dano sofrido
por C – a não diligência na montagem do andaime foi não só causalidade em concreto,
tendo gerado o dano de C em termos de conditio sine qua non, como também foi
causalidade em abstrato, isto é, foi um facto adequado à produção daquele dano. Se
o B tivesse adotado a diligência devida na montagem do andaime, o cilindro
provavelmente não teria caído e não teria sido causado aquele dano.

Poder-se-á considerar a perda da vida de C causado pelo facto de B? C veio a morrer


porque não foi assistido em tempo útil. Parece que a perda da vida de C foi causada
pelo facto de B porque o risco de não haver assistência médica atempada é um risco
que se insere ainda num quadro de riscos que o B criou com a sua omissão. O facto
do B só mediatamente causar a morte de C não é um obstáculo à afirmação do nexo
causal – a teoria da causalidade não pressupõe uma causalidade imediatamente, basta
uma causalidade mediata, ou seja, basta que o ato dê lugar a uma condição posterior
que provoca mediatamente o dano, salvo se esta segunda condição não estiver em
condição adequada que deu lugar à primeira. O que tem de haver é entre os elementos

50
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

intermédios do desencadeamento causal uma relação causal. A teoria da causalidade


adequada pressupõe dois juízos: juízo em concreto e juízo em abstrato. Se B tivesse
tomado todas as diligências exigidas na construção do andaime, a morte de C
produzir-se-ia? Não se teria produzido porque o cilindro não teria caído e C não
necessitaria de assistência médica. Portanto, o faco de B foi em concreto condição
necessária à produção do dano morte. Se removêssemos o facto de B do processo
causal, aquele dano não se teria verificado e, portanto, se assim é, podemos afirmar
que o facto de B é conditio sine qua non da morte de C.

O facto de B é idóneo a produzir a morte de C? De acordo com a formulação


negativa da teoria da causalidade adequada, a causa só deixa de ser adequada à
produção de determinado resultado quando se torna totalmente indiferente à produção
do resultado, tendo este resultado ocorrido apenas devido a circunstâncias
extraordinárias. O facto de B não é de todo indiferente porque tornou necessário o
transporte através de ambulância e esta pode sempre não chegar a tempo útil. A
demora na assistência médica não está fora de toda a probabilidade, não é algo
absolutamente extraordinário – não tendo a morte de C decorrido de nenhuma
intervenção ou comportamento anormal de terceiros nem de nenhum outro eventual
imprevisível, ela continua inserida dentro do quadro de riscos que o B criou com a
sua omissão ilícita e culposa.

Analisados os vários pressupostos dos quais depende a afirmação da responsabilidade por factos
ilícitos e culposos, estão todos verificados neste caso, e por isso há obrigação de
indemnização por parte de B (artigos 483.º e ss).

COLETÂNEA DE CASOS PRÁTICOS DO 2.º SEMESTRE

Caso n.º 1
A é subgerente do Banco B em Bragança. Grande parte dos clientes do banco são emigrantes
que aí depositam as suas poupanças, estando habituados a ver A no exercício das suas
funções e a serem aconselhados por este. A partir de uma dada altura, A começou a aceitar
os depósitos em numerário que os clientes lhe entregavam em mão, dando-lhes a 2.ª via do
impresso do depósito assinado por si, mas sem ter dado entrada nos registos do Banco. A
situação prolongou-se durante certo tempo, até que António desaparece e vários clientes
dessa agência bancária são informados pelo banco que nada têm na sua conta. Esses clientes
apenas têm na sua posse as segundas vias dos talões de depósito assinados por António. A
posição do Banco B é a de que nada tem de restituir. Quid iuris?
Temos aqui um caso de responsabilidade civil. A questão que se coloca é se é possível
responsabilizar o banco pelos atos do subgerente. Os clientes no fundo querem saber se podem
responsabilizar o banco pelos atos do subgerente que lhes causaram danos.
Há dois tipos possíveis de imputação dos danos ao banco:
1. Via da responsabilidade contratual (artigos 798.º e ss) – entre o banco e os clientes foi
celebrado um contrato; o banco responde nos termos do artigo 800.º do CC. Esta via
apresenta uma vantagem significativa para os lesados porque há uma presunção de culpa
do devedor – fica assim o cliente desonerado de fazer esta prova.
2. Via da responsabilidade extracontratual – temos de equacionar a responsabilidade do
comitente. No fundo, vamos ver se o banco pode responder objetivamente enquanto
comitente pelos atos praticados pelo subgerente A. Qual é que é o fundamento desta
responsabilidade objetiva do banco? Qual é que é a nota mais característica da situação
do comitente? A nota mais característica da situação do comitente é a sua posição de
garante da indemnização perante terceiro lesado e não tanto a oneração do seu património

51
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

com um encargo definitivo – se o comitente não tiver culpa, ele goza de um direito de
regresso contra o comissário para se ressarcir de tudo o que haja pago (artigo 500.º, n.º 3
do CC). Esta posição especial do comitente perante terceiros assenta sobretudo sobre
uma dupla consideração:
i. Quando um individuo se serve de outra pessoa para sobre a sua direção realizar
determinada tarefa implicitamente como se ele próprio agisse, daí que o
comitente atue como garante da indemnização;
ii. É muito mais justo que os efeitos da frequente insuficiência económica do
património do comissário recaia sobre o comitente do que sobre o lesado.

São estas as razões normalmente apontadas para esta responsabilidade objetiva.


Requisitos cumulativos que têm de estar verificados para que o banco responda objetivamente
pelos danos causados pelo comissário – artigo 500.º do CC:
1. Tem de existir um vínculo entre o comitente e o comissário – tem de existir uma
comissão (atividade ou serviço realizado por conta e sob a direção de outrem; pode ter
caráter gratuito ou oneroso, pode ser uma atividade manual ou intelectual), ou seja, que
alguém tenha encarregado outrem de uma comissão. A comissão pressupõe uma relação
de dependência ou de subordinação entre o comitente e o comissário, relação essa que
autorize o comitente a dar ordem ao comissário e a fiscalizar a sua atividade – poder de
direção e de fiscalização. Já a liberdade de escolha do comissário pelo comitente não
parece ser essencial, a doutrina maioritária tem entendido que a liberdade de escolha não
é requisito – não se exige que o comissário tenha sido escolhido pelo comitente. No caso
em concreto, este requisito verifica-se. O subgerente atua por conta e sob a direção do
banco.
2. Prática de um facto ilícito no exercício da função – a responsabilidade do comitente só
existe se o facto danoso for praticado pelo comissário no exercício da comissão que lhe
foi confiada, ainda que contra as instruções do comitente (artigo 500.º, n.º 2). Ou seja,
com esta fórmula restritiva o legislador quis afastar da responsabilidade do comitente os
atos que apenas têm uma relação de nexo temporal ou espacial com a comissão. É
necessário que os factos que tenham sido praticados pelo comissário no exercício/encargo
que lhe foi cometido, não basta que tenham sido praticados por ocasião do desempenho
pelas funções, tem de ser sido praticados por causa da função. No caso em concreto, este
requisito verifica-se porque os atos de A cabiam no âmbito das suas funções. A
circunstância de A ter atuado dolosamente e contra a instruções do comitente não o exime
de responsabilidade (artigo 500.º, n.º 2 do CC).
3. Sobre o comissário tem de recair a obrigação de indemnizar (artigo 500.º, n.º 1,
última parte) – a doutrina diverge sobre se a responsabilidade objetiva do comitente:
coloca-se a questão de saber se essa responsabilidade exige ou não uma culpa do
comissário ou se basta qualquer imputação ao comissário, ainda que a título de
responsabilidade pelo risco ou por factos lícitos. Neste caso a querela doutrinal acaba por
não ter relevância na medida em que A atua com dolo. Estão verificados os requisitos do
artigo 483.º do CC:
 Facto voluntário: conduta humana pensável como controlável pela vontade e
nessa medida pode ser imputada objetivamente – A prática uma ação (desvio do
dinheiro);
 Facto ilícito: este ato é ilícito porque viola uma norma legal de proteção – a norma
legal (artigo 217.º do CP) que prevê e pune o crime de burla. O dano verificado
regista-se no círculo de interesses que a norma visa tutelar.
 Facto culposo: este facto é culposo e estamos na modalidade do dolo (dolo direto
neste caso). O subgerente, A, representa ou prefigura no seu espírito determinado

52
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

efeito e quer esse efeito como fim da sua atuação apesar de conhecer a ilicitude
dele.
 Danos: danos patrimoniais, nomeadamente danos emergentes (perda do dinheiro)
e lucros cessantes (a perda dos juros remuneratórios a que os clientes teriam
direito); danos não patrimoniais que pela sua gravidade são merecedores da tutela
do Direito (artigo 496.º do CC)
 Nexo de causalidade entre o facto de A e os danos: o desvio do dinheiro foi
condição necessária e causa adequada do prejuízo sofrido pelos clientes.
Portanto, sobre A recai a obrigação de indemnizar. Portanto, também este terceiro
requsitios da responsabilidade objetiva está preenchido.
Portanto, sobre A recaía a obrigação de indemnizar. Ou seja, A responde ao abrigo do artigo 483.º
por factos ilícitos e o banco responde objetivamente com fundamento no artigo 500.º do CC –
temos duas pessoas responsáveis, portanto, a responsabilidade é solidária (artigo 497.º ex vi artigo
499.º do CC). A responsabilidade de A e do banco é perante o lesado solidária, podendo o lesado
exigir a totalidade da indemnização a qualquer um (artigo 497.º, n.º 1 ex vi artigo 499.º do CC
que manda aplicar à responsabilidade pelo risco o regime da responsabilidade por factos ilícitos).
Seria importante averiguar se havia culpa por parte do banco. Se o banco tiver agido sem culpa e
caso tenha sido ele a satisfazer a indemnização, ele pode exigir a A restituição de tudo aquilo
quanto pagou – direito de regresso total (artigo 500.º, n.º 3, 1ª parte do CC). Contudo, pode dar-
se o caso de o banco ter agido com culpa (culpa na escolha do funcionário, uma culpa in eligendo;
ou culpa na sua vigilância, uma culpa in vigilando) e neste caso a coisa muda de figura: se houver
culpa do banco, o encargo da indemnização deve ser repartido entre o banco e A na proporção
das respetivas culpas (artigo 497.º, n.º 2 ex vi artigo 500.º, n.º 3, parte final). É importante notar
que neste último caso já não haverá responsabilidade objetiva do banco mas responsabilidade por
factos ilícitos baseada numa conduta culposa do comitente.
Há dois tipos de imputação possível dos danos ao banco, portanto, tínhamos de tecer algumas
questões quanto ao concurso de responsabilidades. Deparamo-nos aqui com o problema da
responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual – temos uma situação que
preenche os requisitos dos dois regimes. Como é que se resolve este problema? Há duas grandes
orientações que se dividem:
1. Tese do cúmulo: cabem aqui três grandes perspetivas:
1. Tese da ação híbrida: o lesado pode socorrer-se numa única ação de normas da
responsabilidade contratual e da norma da responsabilidade extracontratual
consoante o que lhe for mais favorável;
2. Tese da opção: o lesado pode optar entre os procedimentos fundados apenas
numa ou noutra dessas responsabilidades;
3. Tese das ações autónomas: admite-se em ações autónomas ao lado da
responsabilidade contratual, a responsabilidade extracontratual.
2. Tese do não cúmulo/tese da consunção: consiste na aplicação do regime da
responsabilidade contratual em virtude de um princípio de consunção. O regime da
responsabilidade contratual consome o da responsabilidade extracontratual.

Caso n.º 2
B, pretendendo clarear a cor do seu cabelo, dirige-se ao cabeleireiro X. Eduarda,
proprietária do estabelecimento, determina que seja C, empregada recém-contratada e com
pouca experiência em atividades de cabeleireiro, a encarregar-se de tal tarefa. Em virtude
de uma tardia remoção da substância aplicada no cabelo, por esquecimento de C, B sofre
lesões no couro cabeludo que lhe provocam a queda de cabelo. Consulta um médico
dermatologista que lhe prescreve a aplicação de uma série de fármacos. Os custos de todo o

53
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

tratamento, que se prolongou durante dois meses, ascendem a 600 euros. Durante esse
período, B, angustiada e muito abatida, não sai de casa. Deixa de trabalhar, perdendo duas
avenças. No primeiro mês padece dores intensas.

a) B pretende ser ressarcida de todos os danos sofridos. Quem pode ser responsabilizado
por eles? A que título?
Temos um caso de responsabilidade civil. É certo que neste caso há uma relação de comissão
entre Eduarda e C – C atua por conta e sob a direção de Eduarda, que tem poderes de direção e
de fiscalização sobre C. Contudo, aqui Eduarda parece ter agido com culpa porque não haverá
responsabilidade objetiva nos termos do artigo 500.º, mas responsabilidade por factos ilícitos nos
termos do artigo 483.º do CC.
Vamos ver se estão verificados os requsitios cumulativos do artigo 483.º da responsabilidade
por factos ilícitos:
 Facto voluntário: estamos perante uma omissão da diligência devida;
 Facto ilícito: as omissões só são ilícitas quando havia a obrigação de agir. A obrigação
de agir tem fonte negocial, decorre do contrato de prestação de serviços que foi celebrado
entre Eduarda e B;
 Culpa: existe culpa; o bom pai de família/o bom operador daquele ramo naquelas
circunstâncias não teria escolhido aquela funcionária ou, escolhendo, ter-lhe-ia dado
formação, orientações ou instruções para a realização daquela tarefa e tê-la-ia fiscalizado
na realização da mesma. Há culpa in eligendo, culpa in vigilando e culpa in instruendo
por parte de E;
 Danos: temos danos patrimoniais e danos não patrimoniais. Dentro dos danos
patrimoniais identificamos danos emergentes (600€ de custo dos tratamentos) e lucros
cessantes (a perda de duas avenças) – ambos são indemnizáveis nos termos do artigo
564.º, n.º 1 do CC. Dentro dos danos não patrimoniais temos o sofrimento físico e também
o sofrimento psicológico – a este respeito fala-se na pretium doloris (o preço da dor), ou
seja, não é possível apagar a dor sentida, mas é possível compensá-la, compensação que
vai atenuar o mal sofrido, proporcionado ao lesado satisfações que de outro modo não
poderia obter. Se é certo que não é possível apagar o sofrimento experienciado, a verdade
é que é possível de alguma forma atenuar de alguma forma o mal causado. Temos também
aqui um dano estético que se traduz no prejuízo associado às deformidades que resistem
aos processos de tratamento e recuperação da vítima – o dano estético também é
atendível/compensável.
 Nexo de causalidade entre o facto e os danos, segundo uma teoria de causalidade
adequada
A quem cabe provar a verificação dos vários requisitos do artigo 483.º do CC? Ao lesado, nos
termos gerais do artigo 342.º do CC, embora que no que concerne à prova da culpa não seria de
excluir a aplicação da presunção de culpa do artigo 493.º, n.º 1. O produto clareador do cabelo
pode ser eventualmente considerado uma coisa imóvel que carece de vigilância e se assim
considerarmos aplicar-se-á esta presunção de culpa, que facilita a vida ao lesado, que não terá de
provar este requisito da responsabilidade civil.
Temos aqui a celebração de um contrato de prestação de serviços. Portanto, também poderá
responder a título de responsabilidade contratual por atos dos seus auxiliares (artigo 800.º do CC)
– aqui com inerente vantagem para a lesada da presunção de culpa do devedor.
Temos, então, um problema de concurso de responsabilidades, que é resolvido nos termos das
teorias do cúmulo ou do não cúmulo, consoante a posição defendida.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

b) Suponha, agora, que o serviço foi prestado devidamente. C aproveita, um momento de


distração de B, para lhe subtrair a carteira. Quid iuris?
Vamos começar por analisar a responsabilidade civil extracontratual de C (artigo 483.º do CC:
1. Facto voluntário imputável a C: C subtraiu a carteira de B. Temos uma ação que consiste
na subtração da carteira, subtração essa que é ilícita.
2. Ilicitude: temos a violação de um direito subjetivo/absoluto de B – direito de propriedade
sobre a carteira. A ação ilícita porque consubstancia a violação de um direito absoluto de
B. Também há a violação de uma norma de proteção – há uma norma penal que prevê e
pune esta conduta.
3. Culpa: temos a culpa na modalidade de dolo direto.
4. Dano: danos patrimoniais emergentes.
5. Nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e os danos.

Dúvidas não há de que neste caso C responde por factos ilícitos ao abrigo do artigo 483.º do CC.

E Eduarda responderia neste caso? A responder, Eduarda responderia nos termos do artigo 500.º
do CC, mas a verdade é que há um dos requisitos deste tipo de responsabilidade que não se
verifica. Para haver responsabilidade do comitente têm de estar verificados 3 requisitos:
1. Tem de existir um vínculo entre o comitente e o comissário – C atua por conta e sob a
direção de Eduarda. Este requisito está verificado.
2. Prática de um facto ilícito no exercício da função – este requisito não está verificado. O
facto danoso não foi praticado no exercício da função que lhe foi cometida. É preciso que
o ato seja praticado no desempenho da função e por causa dela e não apenas no
desempenho dela. O ato praticado por C apenas apresenta um nexo espácio-temporal com
a comissão e é preciso que o exercício da comissão potencie a prática do facto, tem de
haver um nexo instrumental, não basta que haja apenas um nexo espacial ou temporal, é
necessário que o ato seja praticado por causa do desempenho das funções e não por mera
ocasião do desempenho das funções.
3. Sobre o comissário tem de recair a obrigação de indemnizar. Este requisito também está
verificado.

Eduarda não responderia nesta hipótese como comitente.

Caso n.º 3
A, sempre que se ausenta de casa por mais de um dia, entrega o seu cão, um pitbull, a um
tratador, X, para que este cuide dele. Assim, tendo de se deslocar a Hamburgo, para aí
assistir, durante uma semana, a uma série de conferências, A deixa o seu cão ao cuidado de
X. O tratador leva o dito cão a passear para um jardim da cidade. No percurso efetuado,
cruzam-se com B que se encontra a realizar o seu jogging diário. Nesse momento, o cão
atira-se a B, mordendo-o. Em consequência do ataque, B sofre ferimentos nos braços e nas
pernas, sendo submetido a vários tratamentos médicos.

a) Quid iuris?
Estamos perante um caso de responsabilidade civil extracontratual relativa a danos causados por
animais. Em casos que envolvam danos causados por animais, há que considerar duas disposições:
1. Artigo 493.º, n.º 1 do CC – responsabilidade por culpa presumida e que se aplica a pessoas
que assumiram o encargo da vigilância de amimais.
2. Artigo 505.º do CC – regime de verdadeira responsabilidade objetiva fundada no risco
que é aplicada aos que utilizam os animais no seu próprio interesse. Este regime é
aplicável aos detentores do animal, àqueles que utilizam o animal no seu próprio
interesse.

55
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

A mais das vezes, a pessoa com o dever de vigiar será o seu detentor, mas pode não ser assim,
como é o caso da factualidade deste caso prático. Assim sendo, podemos vir a ter mais do que
uma pessoa responsável.

Como temos aqui dois potenciais responsáveis, vamos considerar a responsabilidade de cada um.
 Relativamente a X: pode ser assacada a responsabilidade a X? Se sim, com que
fundamento? Vamos ver se a X pode ser imputada a responsabilidade civil extracontratual
nos termos do artigo 483.º do CC:
1. Facto voluntário: omissão do dever de vigilância.
2. Ilicitude: a omissão só é considerada ilícita quando havia do dever de praticar o ato
omissivo (artigo 486.º) e a obrigação de agir pode decorrer da lei ou de negócio
jurídico – a obrigação de agir tem aqui fonte convencional porque foi celebrado um
contrato de prestação de serviços entre A e X.
3. Culpa: haverá culpa se se equacionar que X podia e devia ter agido de outro modo.
Neste caso, o lesado tem a vida facilitada porque se aplica aqui a presunção de culpa
do artigo 493.º, n.º 1. Neste caso é X é que
a. Ou tem de provar que não teve culpa;
b. Ou demonstrar que os danos se teriam produzido mesmo que não houvesse
culpa sua (relevância negativa da causa virtual).
4. Dano: danos não patrimoniais (ferimentos nos braços e nas pernas) e danos
patrimoniais reflexos (custo dos tratamentos médicos).
5. Nexo de causalidade entre o facto e o dano: há aqui um nexo de causalidade entre a
omissão ilícita e culposa da violação do dever de vigilância do animal e os danos por
B. Se tivesse X vigiado o cão provavelmente não se teriam verificado os danos que
se verificaram.
Estando verificados todos estes requisitos, X responde pelos danos de B, a menos que
consiga fazer prova para ilidir a presunção de culpa que sobre ele recai.

 Relativamente a A: o artigo 502.º do CC estabelece para os danos causados por animais


um princípio de responsabilidade objetiva a cargo de quem utiliza os animais no seu
próprio interesse, que é o chamado detentor. É quanto à pessoa do detentor que tem inteiro
cabimento a ideia de risco – quem utiliza em seu proveito os animais que, como sendo
irracionais, são quase sempre uma fonte de perigo, devem suportar a fonte de riscos que
acarreta a sua utilização. O fundamento subjacente a este regime será este. Nisto reside
um velho princípio de justiça: ubi commoda ibi incomoda (quem retira as vantagens deve
também suportar as consequências nefastas da criação de fontes de perigo especiais para
terceiros). É preciso ver, em primeiro lugar, quem é o detentor do animal – normalmente
o detentor é o proprietário do animal, mas nem sempre assim é, pode ser um locatário,
usufrutuário, etc. Neste caso, A é o dono do animal e é quem utiliza o animal no seu
próprio interesse e, portanto, é o seu detentor. A responsabilidade nos termos do artigo
502.º tanto se aplica a animais domésticos como aos restantes animais (ex.: abelhas,
animais ferozes). O artigo 502.º diz ainda que é essencial que o dano proceda do perigo
especial que envolve a utilização do animal e não de qualquer outro facto estranho a essa
perigosidade específica. No fundo, temos de olhar para o dano e poder dizer que ele é
materialização de um risco específico do animal. É pelo perigo específico resultante da
utilização do animal que se define o círculo dos danos indemnizáveis. Neste caso, este
requisito está verificado porque o dano procede de risco próprio da utilização daquele
animal.

Concluindo, X responde com base no artigo 483.º por factos ilícitos e A responde objetivamente
enquanto detentor do animal pelo risco que advém da sua utilização com fundamento no artigo
502.º do CC. Temos uma pluralidade de responsáveis – perante o lesado eles respondem
solidariamente (artigo 497.º, n.º 1 ex vi artigo 499.º do CC). Nas relações internas a repartição das

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

responsabilidades far-se-á considerando a contribuição para os danos do perigo especial do animal


e da culpa do vigilante (artigo 497.º, n.º 2 do CC).

b) E se o ataque se ficasse a dever à atitude de C que por ali passava e tinha açulado o cão?
Agora a causa próxima do dano é um facto de terceiro, C, um transeunte que la passava. A resposta
manter-se-á em grande parte a mesma:
 A responsabilidade objetiva de A persiste. Mesmo quando a causa próxima do dano seja
um caso fortuito ou uma causa de força maior ou um facto de terceiro, a responsabilidade
do detentor do animal persiste desde que os danos verificados correspondam ainda ao
perigo próprio da utilização desse animal. No fundo, os danos que advêm da reação do
animal a atos de provocação do animal podem ser consideradas como consumação de um
perigo especial da utilização do animal? Podem. É normal que um cão reaja a provocações
e é normal que morda em consequência dessa provocação. Não se pode considerar que
deixe aqui o dano de materializar de um risco especial do animal. A responsabilidade de
A apenas se afasta se o dano foi praticado pelo animal quando podia ser praticado por
qualquer outra coisa sem nenhuma ligação específica ao perigo do animal – exemplo: um
cão é atirado contra uma pessoa como um instrumento de arremesso; o dano é provocado
pelo cão como poderia ter sido provocado por qualquer coisa – não há aqui uma ligação
específica com o perigo do animal. Em todos os outros casos há responsabilidade do
detentor do animal.
 Relativamente a X, a responsabilidade ao abrigo do artigo 483.º, conjugado com o artigo
493.º, n.º 1, mantém-se a menos que ele consiga demonstrar que naquelas circunstâncias
adotou todas as providências exigidas e que o dano se ficou a dever ao ato de provocação
de C. Se calhar, neste caso, acaba por ser mais fácil ilidir a presunção de culpa por X.
Porém, a sua responsabilidade manter-se-ia, a menos que conseguisse mostrar que atuou
sem culpa.
 À responsabilidade de A e de X acresce a responsabilidade civil por factos ilícitos de C
– requisitos do artigo 483.º:
1. Facto voluntário – o assolar do cão (ação);
2. Ilicitude – a ação é ilícita porque conduz à violação de um direito absoluto da
integridade física de B;
3. Culpa – há culpa de C porque o bom pai de família naquela situação concreta não
teria agido daquela forma. A atuação de C mereça a reprovação do Direito;
4. Dano;
5. Nexo de causalidade entre o facto e o dano: se C não tivesse provocado o cão, ele não
teria mordido B.

Estando preenchidos estes requisitos, C responde nos termos do artigo 483.º do CC. Perante o
lesado temos 3 pessoas responsáveis – respondem solidariamente. Nas relações internas, a
repartição da responsabilidade far-se-á de acordo com a contribuição para o dano da especial
perigosidade do animal, da culpa do vigilante e de C.

c) E se o próprio B, por brincadeira, tivesse atirado pedras ao cão, e o animal, enfurecido, o


tivesse mordido?
Temos aqui culpa do lesado, nos termos do artigo 570.º do CC. Para a produção do dano concorre
agora uma ação culposa do próprio lesado e isto tem repercussões na solução do problema:
 Responsabilidade de X (que neste caso seria uma culpa presumida): aplica-se o artigo
570.º, n.º 2 do CC. A responsabilidade de X, fundando-se na presunção de culpa do artigo
493.º, n.º 1 do CC, é excluída por força do artigo 570.º, n.º 2 do CC. Portanto, X neste
caso não seria obrigado a indemnizar.
 Responsabilidade de A: a culpa do lesado não afasta a responsabilidade pelo risco de A,
mas poderá ter algum relevo prático. O artigo 570.º, n.º 1 não se aplica diretamente, mas
têm-se entendido que se aplica por analogia. Os danos resultantes da reação do cão a atos
de provocação não deixam de corresponder à concretização de um perigo especial da

57
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

utilização do animal, contudo, havendo culpa do lesado, aprece ser de aplicar, ainda que
por analogia, o disposto no artigo 570.º, n.º 1 do CC – há um concurso de culpa e do risco.
Caberá ao tribunal se mantém, se reduz ou se exclui a indemnização e no juízo que faca
o tribunal deverá ponderar o peso da contribuição da perigosidade do animal e da culpa
do lesado para o facto danoso.

Caso n.º 4
No dia 3 de Outubro de 2000, por volta das 13h30, ocorreu um embate na Estrada Municipal
que liga Lama a Oliveira, em Barcelos, no qual intervieram o veículo ciclomotor de
matrícula 11-22-ZZ, propriedade de B e conduzido pelo seu filho (a quem o primeiro
empresta o veículo regularmente para deslocações ao fim do dia e ao fim-de-semana), A, e
o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula 44-55-TT, conduzido pelo respetivo
proprietário, C, dono de uma empresa de mobiliário. O ciclomotor circulava pela referida
Estrada Municipal no sentido Oliveira - Lama. Por seu lado, o veículo ligeiro de
mercadorias circulava em sentido contrário. No local do embate, a estrada tem 5,70 m, duas
faixas de rodagem, uma para cada sentido de trânsito, com piso em paralelo, seco e com
aderência. A estrada apresenta uma ligeira curva.

No que concerne às circunstâncias em que o acidente se produziu, apenas se prova que:


- Ambos os veículos circulavam a velocidade não superior a 50 kms/hora;
- Os condutores de ambos os veículos travaram, deixando o veículo ligeiro de mercadorias
marcado no pavimento um rasto de travagem com a extensão de 11,50 metros.
- A e o ciclomotor foram cair na berma do lado direito da Estrada Municipal, atento o
sentido Oliveira - Lama.
(Adaptação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Setembro de 2006, in: www.dgsi.pt).
Pergunta-se:
1. Recai sobre A alguma presunção de culpa?

Temos aqui um caso de colisão de dois veículos. Estamos aqui mais uma vez no campo da
responsabilidade civil extracontratual, estamos perante uma hipótese de danos causados por
veículos. Neste domínio vigora o princípio de responsabilidade objetiva fundada no risco, nos
termos do artigo 503.º, n.º 1 –responde quem tiver a direção efetiva dele e quem estiver a utilizar
no seu interesse, ainda que por intermédio de comissário. Mas não deixa de haver
responsabilidade por culpa do condutor do veículo, a qual se rege de acordo com as regras gerais
previstas no artigo 483.º e ss. A questão que se coloca é saber se neste caso recai alguma presunção
de culpa sobre A, que é quem conduz o ciclomotor.

Podemos começar por considerar a aplicabilidade da presunção de culpa contida no n.º 2 do artigo
493.º. Durante muito tempo foi sustentada a doutrina de que a circulação de veículos terrestres é
uma atividade perigosa pela sua natureza, o que permita recair sobre o condutor do veículo a
presunção do artigo 493.º, n.º 2 caso se verificasse um acidente. Isto foi muito debatido até que o
STJ veio pôr termo à discussão, proferindo o assento 1/80 de 21 de novembro de 1979 – neste
assento foi fixada a doutrina que o disposto do artigo 493.º, n.º 2 não tem aplicação em matéria
de acidentes de circulação terrestre. O STJ veio, no fundo, aderir à doutrina que já era sustentada
por Antunes Varela no sentido de que esta presunção não seria aplicável à circulação de veículos
por o legislador ter admitido nesse domínio, para a proteção do lesado, a responsabilidade pelo
risco, que é o um regime excecional. Não é que a atividade não seja perigosa, e, pelo facto de o
legislador reconhecer essa perigosidade, ele veio consagrar um regime de responsabilidade pelo
risco e com isto veio afastar a presunção de culpa.

Mas este assento mereceu muitas críticas, nomeadamente a de Joaquim de Sousa Ribeiro: o facto
de se poder aplicar um regime de responsabilidade objetiva não torna desnecessária a aplicação
de uma presunção de culpa, é que sendo certo que a responsabilidade pelo risco é mais intensa

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

porque prescinde da culpa, a verdade é que ela é menos extensa porque está limitada
quantitativamente (tem limites máximos previsto no artigo 508.º). No entanto, foi a doutrina
fixada no assento do STJ que tem valor assente.

Nota: o professor Menezes Leitão defende uma interpretação restritiva da doutrina firmada no
assento proferido pelo STJ, de modo a considerar uma atividade perigosa para efeitos da aplicação
do artigo 493.º, n.º 2 certos tipos de condução (exemplos: provas desportivas de condução,
condução de empilhadoras, transporte de materiais explosíveis ou inflamáveis, condução sobre o
efeito de álcool).

Concluindo, esta presunção de culpa do artigo 493.º, n.º 2, seguindo o entendimento que ficou
assente na decisão do STJ, não é de aplicar.

Haverá outra presunção de culpa cuja aplicação pudesse ser equacionada? Poderíamos colocar
em causa se se poderia aplicar a presunção prevista na primeira parte do artigo 503.º, n.º 3, que
recai sobre condutor por conta de outrem. Esta presunção não pode ser aplicada neste caso porque
esta presunção aplica-se ao comissário, a sua aplicação depende da demonstração da existência
de uma relação de comissão nos termos do artigo 500.º. Não se presume como comissário
qualquer condutor que não seja proprietário do veículo – isto resulta do acórdão uniformizador
de jurisprudência de 30 de abril de 1996 (o dono do veículo só é responsável solidariamente pelos
danos causados pelo respetivo condutor quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma
relação de comissão nos termos do artigo 500.º, n.º 1 entre o dono do veículo e condutor do
mesmo). Esta presunção de culpa apenas se aplica ao comissário – neste caso, A não é comissário
de B, A não conduz o veículo por conta do pai, ele é apenas comodatário; ele conduz o carro que
o pai emprestou, mas não por conta do pai. Há uma relação de comodato, mas não há uma relação
de comissão e, por isso, não se aplica esta presunção de culpa.

Resposta: logo, não há nenhuma presunção de culpa que recaia sobre A, neste caso.

Razões que explicam que o legislador tenha consagrado aqui uma presunção de culpa sobre o
comissário:
 Uma das razões que é apresentada para explicar esta opção legislativa é que os condutores
por conta de outrem são, por via de regra, condutores profissionais/experientes, de quem
se pode exigir uma perícia especial. Precisamente por serem condutores profissionais,
terão mais facilidade em ilidir esta presunção de culpa com que a lei os onera. No entanto,
este argumento falha na prática porque nem todos os comissários são condutores
profissionais. Este argumento só teria sentido se todos os comissários fossem condutores
profissionais.
 Alegadamente, existira na condução por conta de outrem um risco sério de afrouxamento
na vigilância do veículo que a lei não deve subestimar – o condutor por conta de outrem
nem sempre vai ter o cuidado devido em arranjar as deficiências do veículo, uma vez que
o carro não é seu, porque pode haver outros que trabalham com o mesmo carro e porque
pode não querer perder dias de trabalho, etc.
 Existe na condução por conta de outrem um risco de fadiga do comissário proveniente
das horas extraordinárias de serviço.
 A previsão desta presunção de culpa aliada à responsabilidade solidária que recai sobre o
comitente detentor do veículo estimula a celebração de seguros de responsabilidade civil
que cobram todo o montante de indemnização a que possam estar sujeitos o comissário e
o comitente.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

2. A resposta seria a mesma se o veículo de mercadorias de C fosse conduzido pelo seu


empregado, D, que procedia ao transporte de uma mobília a casa de um cliente? Quid iuris
quanto aos danos derivados do acidente?

Aqui já será de aplicar a presunção de culpa do artigo 503.º, n.º 3 porque poderá existir uma
relação de comissão. Entre C e D terá sido celebrado um contrato – relação de subordinação que
autoriza C a dar ordens a D e a fiscalizar a sua atuação. D é um comissário de C, o que faz com
que sobre ele recaia a presunção de culpa do artigo 503.º, n.º 3, 1ª parte. A dada altura na doutrina
e na jurisprudência levantou-se a questão de saber se a presunção de culpa consagrada neste artigo
vigorava apenas nas relações entre o comitente e o comissário ou se se estenderia também às
relações entre o condutor e o lesado titular do direito à indemnização.

Quanto a isto, o STJ proferiu o assento 1/83 de 14 de abril de 1983, que firmou a seguinte
doutrina: a 1º parte deste artigo estabelece uma presunção de culpa de condutor de veículo por
conta de outrem nos danos que causar aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular do
direito de indemnização. Na prática, isto significa que o lesado pode, com base nesta presunção,
demandar o comissário com fundamento na sua culpa presumida.

Temos, neste caso, uma situação de colisão de veículos, que se encontra regulada no artigo 506.º.
O n.º 1 deste artigo diz-nos que se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação
aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a
responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver
contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa
de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar. A
contrario, retira-se daqui que se houver culpa de um dos condutores, deve ser ele a responder
exclusivamente pelos danos causados.

Uma dúvida que surgiu na doutrina diz respeito ao problema de saber se a presunção de culpa
deste artigo era igualmente aplicável na hipótese de colisão de veículos. No fundo, a questão é
esta: ocorrendo da colisão de veículos em que um é conduzido por um comissário (condutor por
conta de outrem) e o outro veículo é conduzido por um condutor por conta própria e não se
provando a culpa de nenhum dos condutores deve aplicar-se o critério de contribuição causal do
risco dos veículos para os danos (artigo 506.º, n.º 1) ou deve presumir-se culpado o condutor por
conta de outrem ao abrigo do artigo 503.º, n.º 3? Se nós entendermos que é aplicável a presunção
de culpa do artigo 503.º, n.º 3 isto significa que deixa de se aplicar o artigo 506.º e vai-se presumir
culpado o condutor por conta de outrem fazendo responder pelos danos que resultem da colisão.
A posição que veio obter vencimento e constituir jurisprudência uniformizada pelo STJ foi a de
que a responsabilidade por conta presumida do comissário estabelecida no artigo 503.º, n.º 3, 1ª
parte é aplicável no caso de colisão de veículos prevista no artigo 506.º, n.º 1 do CC – assento
3/94 de 26 de janeiro de 94.

Críticas a este entendimento:


1. Fazer presumir a culpa de um dos condutores numa colisão de veículos corresponde na
prática a atribuir a responsabilidade integral pela colisão e excluir da zona de riscos a
cargo de quem conduz o veículo no interesse próprio a colisão com o veículo conduzido
por conta de outrem – o efeito prático é este.
2. Além disso, este entendimento pode conduzir a soluções flagrantemente injustas –
exemplo: perante um choque entre dois veículos, um conduzido por um comissário no
exercício das suas funções e outro conduzido por um comissário em abuso das suas
funções, presume-se a culpa do primeiro para isentar a responsabilidade do segundo, isto
porque a presunção de culpa do artigo 503.º, n.º 3 só recai sobre o condutor por conta de
outrem no exercício das suas funções.

Tendo isto presente, voltemos à hipótese. Aplicando-se a doutrina fixada no assento, tende
ocorrido uma colisão de veículos em que um dos veículos é conduzido por conta de outrem, já

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

não se vai aplicar a solução do artigo 506.º do CC, presumindo-se a culpa de D (comissário de C
que estava a conduzir) na verificação do acidente nos termos do artigo 503.º, n.º 3, 1ª parte. Isto
porque D, além de ser comissário, estava a conduzir o veículo à luz das suas funções porque
estava a transportar um mobília a casa de um cliente. D, a responder, responde por factos ilícitos
nos termos do artigo 483.º do CC. Admitindo que estão verificados os 5 requisitos cumulativos,
D responderá por todos os danço derivados do acidente. Que danos são esses? Danos
presumivelmente na pessoa de A; danos no ciclomotor. Isto porque D dificilmente conseguiria
ilidir a presunção de culpa.

E C? C pode ser chamado a responder com um duplo fundamento:


1. C pode ser chamado a responder como comitente e nessa qualidade garante-se a obrigação
de indemnizar a cargo do comissário nos termos do n.º 1 do artigo 500.º do CC. Estão
verificados os três requisitos de aplicação do artigo 500.º: relação de comissão; o facto
danoso foi produzido no exercício das funções; sobre D recai a obrigação de indemnizar.
2. C pode ainda ser chamado a responder como o detentor do veículo e criados do risco
inerente à sua utilização nos termos do artigo 503.º, n.º 1 do CC.

É importante ainda salientar o Assento 7/94 de 2 de março, que fixou que a responsabilidade por
culpa presumida do comissário nos termos do artigo 503.º, n.º 3 do CC não tem os limites fixados
no n.º 1 do artigo 508.º. Portanto, por força deste assento, a responsabilidade de D não está sujeita
aos limites máximos do artigo 508.º porque estes limites valem para a responsabilidade pelo risco
e D responde por culpa presumida. Visto que a responsabilidade do comitente cobre toda a
obrigação de indemnizar a cargo do comissário, a responsabilidade de C também não estará sujeita
a esses limites – é uma responsabilidade não quantitativamente limitada. C enquanto comitente
responde nos mesmíssimos termos que o comissário.

No fundo, em suma, perante os lesados (A e B) C e D responderão solidariamente, tendo C, se


pagar, direito de regresso contra D nos termos do artigo 500.º, n.º 3 do CC.

3.
a) Quid iuris, voltando à hipótese inicial, supondo que:
- do acidente resultam danos em ambos os veículos: 1.500 € no ciclomotor e 750 € no veículo
de mercadorias;
- o motociclo contribuiu em 1/3 para o acidente e veículo de mercadorias em 2/3.

Continuamos a ter uma situação de colisão de veículos, mas, voltando à situação inicial, não há
culpa provada nem culpa presumida de nenhum dos condutores. Temos de determinar quem são
as pessoas responsáveis pelo risco de cada um dos veículos. Não há responsabilidade por factos
ilícitos, há apenas e tão só responsabilidade pelo risco e temos de ver o risco que cada um dos
veículos representa. Nos termos do artigo 503.º, n.º 3, temos de ver quem é que é o detentor do
ciclomotor e quem é o detentor do condutor do veículo de mercadorias.

A designação que se dá á pessoa que responde pelo risco nos termos do artigo 503.º, n.º 1 é o
detentor do veículo. No fundo, vamos ter de ver quem é o detentor do ciclomotor e o detentor do
veículo ligeiro de mercadorias. A lei identifica a pessoa do responsável pelo risco através de duas
notas essenciais que se extraem do artigo 503.º, n.º 1:
1. Interesse próprio na utilização do veículo;
2. Direção efetiva do veículo.

No fundo, a lei identifica a pessoa responsável pelo risco do veículo através destas duas notas
essenciais.

Por direção efetiva do veículo entende-se que é um poder de facto – ter a direção efetiva do
veículo não significa estar a conduzir o veículo. Ter a direção efetiva significa ter um poder de
facto/rela sobre o veículo – tem a direção efetiva do veículo aquele que de facto usufrui as

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

vantagens dele e a quem por essa razão incumbe especialmente controlar o seu funcionamento.
Esta fórmula aparentemente estranha destina-se a abranger todos aqueles casos em que, com ou
sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objetiva por se tratar das pessoas a
quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as
providências para que o veículo não cause danos a terceiros – zelar pelo funcionamento seguro
do veículo. Ter direção efetiva não é necessariamente ter a titularidade jurídica do veículo, embora
situação mais frequente seja o proprietário ter a direção efetiva do veículo, mas pode não ser assim
– pode ser detentor do veículo um usufrutuário, um comodatário ou um locatário ou ainda quem
tenha furtado o veículo ou o utiliza frequentemente. Pela conjugação destes dois elementos pode
acontecer que outras pessoas tenham esta qualidade de detentor do veículo.

O interesse da utilização do veículo no interesse próprio tanto pode ser um interesse material
ou económico, como poder ser um interesse espiritual ou moral. Não precisa de ser um interesse
digno de proteção legal, pode ser um interesse reprovável. O decisivo é que seja um interesse
próprio, ainda que porventura não exclusivo. Este segundo requisito visa afastar a
responsabilidade objetiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo não no próprio
interesse mas por conta de outrem e nas ordens de outrem.

Em suma, daqui se extrai que a titularidade do direito sobre o veículo não é um elemento decisivo.
O detentor do veículo será a maior parte das vezes o seu proprietário, mas nem sempre assim
acontece.

Isto posto, voltemos à hipótese:


 Quanto ao veículo ligeiro de mercadorias, será o seu detentor o C.
 Quanto ao ciclomotor, estamos perante uma situação em que a não coincidência entre o
domínio jurídico e o domínio de facto sobre o veículo suscitam maiores dificuldades e
nós aqui temos uma dessas situações, temos um comodato – o proprietário do ciclomotor
é B, mas que o empresta com frequência ao filho, que é o comodatário. O detentor do
ciclomotor neste caso é uma questão difícil de resolver porque na doutrina há
entendimentos diversos. A responsabilidade objetiva recai apenas sobre o comodatário,
apenas sobre o comodante ou sobre ambos?
 O professor Vaz Serra entende que a responsabilidade objetiva recai apenas sobre
o comodatário por entender que só relativamente a ele é que se verificam estes
requisitos.
 Já o professor Antunes Varela entende que respondem solidariamente comodante
e o comodatário, embora admita que em função da extensão do comodato, pode
considerar que o comodante venha a perder a direção efetiva do veículo.
 O professor Almeida Costa defende que se deve fazer uma apreciação casuística
– há que olhar para o caso concreto e ver, por referência às circunstâncias do caso
concreto quem é que reúne estes dois requisitos.

Tratando-se de um comodato regular de curta duração, os tribunais tenderiam a achar que a


responsabilidade recairia sobre ambos. Mas a questão não é pacífica.

Vamos aplicar o regime do artigo 506.º da colisão de veículos. Estando nós perante uma colisão
de veículos sem culpa de nenhum dos condutores aplica-se o regime do artigo 506.º, n.º 1 do CC.
Neste caso, a lei manda somar todos os danos resultantes da colisão e repartir a responsabilidade
na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos.
 A primeira operação a efetuar é a identificação dos danos e somá-los – aqui temos danos
no valor de 2 250€ (1500 +750).
 A segunda operação consiste em determinar a contribuição de cada um dos veículos para
os danos – nesta operação, o juiz normalmente atenderá aos seguintes fatores: o peso, a
dimensão e a velocidade a que circulavam os veículos – o enunciado dá-nos a resposta a
esta questão.

62
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

 A terceira operação envolve a aplicação das proporções das contribuições ao valor total
dos danos. Assim, C, enquanto detentor do veículo ligeiro de mercadorias, suportará 2/3
de 2 250€, o que corresponde a 1 500€; ao passo que B e A suportarão 1/3 de 2 250€, o
que perfaz 750€. Neste caso, vai-se subtrair 750€ a 1 500€ –faz-se uma operação de
compensação de créditos e tudo se salda em ao C pagar ao B e A 750€.

b) Considerando a situação fáctica da alínea anterior, suponha, agora, que A transportava


um iPad que ficou totalmente destruído. O iPad valia 500 €. Quid iuris?

A questão que agora se coloca é saber se se aplica o artigo 506.º aos danos às coisas transportadas.
A questão coloca-se porque o artigo 506.º refere-se apenas aos danos relativos aos veículos. No
entanto, tem sido defendido entre nós uma interpretação extensiva do regime do artigo 506.º, n.º
1 no sentido de abranger também quaisquer outros danos resultantes da colisão. O elemento
gramatical, se fizermos uma interpretação literal, diz-nos que o dano do iPad não está abrangido
nos termos do artigo 506.º porque este artigo se refere apenas aos danos abrangidos pelos veículos,
mas a verdade é que a doutrina tem entendido que se deve fazer uma interpretação extensiva no
sentido em que se devem abranger todos os outros danos que resultem da colisão de veículos,
designadamente os danos causados pessoais caudados aos responsáveis aos riscos dos veículos,
às pessoas ou coisas deles transportadas e ainda a terceiros ou ao património deste – neste sentido
vai o professor Almeida Costa. Neste sentido, seria de incluir no somatório dos danos os 500€.

c) Suponha, por fim, que A transportava no motociclo uma amiga, M, a quem estava a “dar
boleia”. Em consequência da colisão, M sofreu vários ferimentos e o seu computador
portátil ficou inutilizado. Quid iuris?

Esta questão diz respeito aos beneficiários da responsabilidade pelo risco – a lei vem esclarecer
no artigo 504.º que esta também aproveita a terceiros como as pessoas transportadas, abrangendo
assim tanto os que se encontravam dentro do veículo como fora dele. No caso de transporte temos
de fazer uma distinção:
 Transporte onerosos – aqui a responsabilidade abrange os danos que atinjam a própria
pessoa e as coisas por ela transportada (artigo 504.º, n.º 2).
 Transporte gratuito – aqui a responsabilidade apenas abrange os danos pessoais da
pessoa transportada (artigo 504.º, n.º 3).

Temos de fazer a seguinte distinção:


 Danos causados na pessoa de M – M é transportada gratuitamente, pelos danos causados
responde tanto o A e B como o C. Perante a lesada a responsabilidade é solidária (artigo
507.º, n.º 1). Nas relações internas, para a repartição da responsabilidade somar-se-iam
estes danos aos danos relativos aos veículos e a responsabilidade seria repartida tendo por
base as proporções que cada veículo contribui para os danos.
 Danos causados no computador de M – neste caso, A não responde pelos danos causados
no computador de M. Responde apenas C, porque perante este M é uma terceira e não
uma transportada gratuitamente. Assim sendo, pode M reclamar a C a inteira
indemnização do dano do computador ou apenas a indemnização corresponde à
proporção em que o risco do veículo de C contribui para o dano? Há doutrina, na qual
se inclui o professor Dário Martins de Almeida e o professor Rui de Alarcão, que sustenta
a reparação integral do dano. Mas o professor Pestana de Vasconcelos entende que é mais
razoável a solução da responsabilidade parcial de C proporcionada ao risco do veículo
(Vaz Serra e Almeida Costa também defendem esta posição) – temos de articular no
fundo o artigo 506.º e o artigo 504.º. Tendo o risco do veículo de C contribuído 2/3 para
os danos, se o computador valesse 900 euros, p.e, M só poderia exigir de C 600€, tendo
ela de suportar os restantes 300€.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Caso n.º 5
A celebra com B um contrato de aluguer, pelo qual se obriga a proporcionar a B o gozo de
um automóvel enquanto este fica vinculado ao pagamento de alugueres mensais num
período de quatro anos. B utiliza o referido automóvel durante um ano, quando uma falha
de travões associada a óleo na estrada levou a uma derrapagem que fez B atropelar C que
circulava no passeio. Quem é o responsável? A que título?
Estamos perante um atropelamento de um peão, C. podemos começar por averiguar se ao
condutor, B, pode ser imputada responsabilidade por factos ilícitos nos termos do artigo 483.º, n.º
1 do CC – para tal é necessário que estejam preenchidos os 5 requisitos cumulativos aí previstos
(facto voluntário, culpa, ilicitude, dano, nexo de causalidade entre o facto e o dano). Neste caso,
não parece que B tenha atuado com culpa. Da factualidade descrita no enunciado não parece
resultar que B tenha praticado um facto ilícito culposo.
Há aplicação de alguma das presunções de culpa previstas na lei? Neste caso, temos um contrato
de aluguer celebrado entre A e B, sendo B o locatário.
 Não se aplica a presunção de culpa contida no artigo 493.º, n.º 2 do CC – a condução de
veículos é uma atividade perigosa, o que fazia com que a doutrina se inclinasse para esta
presunção. No entanto, por força da doutrina fixada no assento do STJ n.º 1/80, a
presunção de culpa prevista no n.º 2 do artigo 493.º não é aplicável a acidentes de
veículos de circulação terrestre. O STJ veio aderir à tese propugnada por Antunes Varela,
que entendia que a condução de veículos é uma atividade especialmente perigosa e por
isso o legislador consagrou o regime da responsabilidade pelo risco e que por isso não se
aplica esta presunção de culpa. Se aderirmos à doutrina afirmada neste assento, esta
presunção não tem aplicação.
 Podemos ainda equacionar a presunção do artigo 503.º, n.º 3, 1ª parte do CC. Esta
presunção de culpa recai, em abstrato, sobre ao condutor por conta de outrem no exercício
das suas funções (comissário). Neste caso não temos uma comissão. B neste caso é
locatário e não comissário. Por isso, esta presunção não tem aplicação. Nota: o
comissário que não esteja no exercício das suas funções responde pelo risco (artigo 503.º,
n.º 3, última parte).
O condutor não parece ter tudo culpa e não está onerado por nenhuma presunção de culpa e por
isso não responde ao abrigo do artigo 483.º, n.º 1 do CC, mas isto não significa que o lesado não
vê os seus danos reparados. Temos de analisar se existe alguma disposição de responsabilidade
pelo risco que possa ser convocada. Tratando-se de uma hipótese de danos causados por veículo
de circulação terrestre há que considerar o disposto no artigo 503.º, n.º 1, que consagra um
princípio de responsabilidade objetiva fundada no risco. Temos de identificar a pessoa
responsável pelo risco deste automóvel. Quem é que responde pelo risco que este veículo
representa? Temos aqui duas pessoas que potencialmente podem responder pelo risco: A e B.
Como é que se identifica a pessoa responsável pelo risco? É o detentor, é a pessoa relativamente
ao qual nós possamos afirmar estarem reunidos dois requisitos:
1. Direção efetiva;
2. Utilização no próprio interesse. temos agora de ver quem é que tem a direção efetiva do
veículo e quem é que o utiliza no próprio interesse.
O que é que leva o legislador a consagrar aqui uma responsabilidade pelo risco? A
responsabilidade, por via de regra, é uma responsabilidade por culpa, isso mesmo se retira do n.º
2 do artigo 483.º do CC. A regra é a responsabilidade pela culpa, só excecionalmente é que o CC
abre uma brecha no princípio da culpa. A responsabilidade pelo risco é excecional entre nós. O
que levou o legislador a consagrar uma hipótese de responsabilidade pelo risco neste domínio foi
a constatação da frequente verificação de acidentes de circulação terrestre, aliada ao facto de que

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

muitas vezes a vítima não é capaz de provar a culpa. O legislador atribui a responsabilidade por
danos correspondentes por riscos próprios do veículo ao detentor do veículo porque o detentor é
aquele que melhor sabe o estado do veículo e a ele compete-lhe zelar pelo bom funcionamento
do veículo. No plano dos princípios, o que está aqui em causa é a seguinte máxima ubi commoda
ibi incommoda – quem tira o proveito, deve arcar também correlativamente com os prejuízos. No
fundo, quem, precisamente por reunir as notas da direção efetiva e da utilização interessada,
introduz na vida social esta fonte de perigo é o detentor do veículo e é por isso que a lei considera
que deve ser ele a arcar com as consequências nefastas da utilização do veículo.
O detentor deste veículo neste caso é difícil de determinar, pois a doutrina diverge:
 Antunes Varela defende que os requisitos da direção efetiva e da utilização no interesse
próprio se verificam em relação a ele e ao locador – entende que os dois requisitos que a
lei impõe se verificam em relação ao locatário e ao locados porque a responsabilidade
objetiva atinge ambos.
 Vaz Serra entende que numa situação destas a responsabilidade impende apenas sobre o
locatário e não em pp sobre o locador.
 Almeida Costa diz que a solução do problema depende no fundo de saber quem cria o
risco e se aproveita dele e por isso é sempre importante fazer uma apreciação casuística
– há que atender ao que resulte da análise das circunstâncias do caso concreto.
 O professor pestana de Vasconcelos orienta-se pelo seguinte: ambos são detentores do
veículo. O requisito do interesse próprio da utilização não suscita dúvidas porque
conseguimos realçar aqui um interesse do locatário, que é a utilização do veículo, mas
também conseguimos identificar um interesse próprio do locador, que é um interesse
económico. O locador continua a ter a direção efetiva porque por força do contrato ele
utiliza o veículo e parece que o locador não perde aqui uma direção efetiva porque,
enquanto locador, ele está obrigado a fazer as reparações – é sobre ele que impende esse
dever. Estas duas notas verificar-se-iam relativamente a estas duas pessoas, o que faz com
que elas respondam objetivamente nos termos do artigo 503.º, n.º 1.
Tanto A como B responderiam solidariamente pelos danos provenientes dos riscos próprios do
veículo nos termos do artigo 503.º, n.º 1 do CC. o que é que cabe dentro desta fórmula legal
“riscos próprios do veículo”? no fundo, são os riscos próprios do veículo que vão delimitar/definir
os danos indemnizáveis porque só são indemnizáveis aqueles danos que se possam considerar
serem no fundo uma concretização dos riscos específicos do veículo. Temos de tentar perceber
que riscos são esses e o que é que cabe dentro desta fórmula legal. Dentro desta fórmula que a lei
utiliza caberá a trilogia de riscos elaborada por Rui de Alarcão:
1. Riscos inerentes ao veículo enquanto máquina (exemplos: rebentamento de um pneu; falta
repentina de travões; estilhaçar de um vidro; explosão do motor);
2. Riscos relacionados com o meio de circulação (exemplo: mancha de óleo na estrada;
lençol de água; gelo; nevoeiro; atravessar inopinado de um animal);
3. Riscos relacionados com o fator pessoal/humano da condução (exemplo: doença súbita
do condutor).
Neste caso o que causa o acidente foi uma falha de travões associada a uma mancha de óleo –
riscos reconduzidos ao primeiro e ao segundo grupo de riscos. Temos aqui riscos próprios do
veículo – os danos que resultam deste acidente podem considerar-se competentes à materialização
de um risco próprio do veículo, logo esses danos serão indemnizáveis.
Quanto aos beneficiários da responsabilidade pelo risco (artigo 504.º do CC) – C é beneficiário
pela responsabilidade pelo risco enquanto terceiro que é nos termos do n.º 1 do artigo 504.º.
Do enunciado não é possível extrair informação que nos permita afirmar a existência de uma
causa de exclusão da responsabilidade pelo risco previstas no artigo 505.º.

65
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Concluindo, perante C, A e B respondem solidariamente (artigo 507.º, n.º 1). Temos duas pessoas
responsáveis, logo, perante o lesado, elas respondem solidariamente. O n.º 2 do artigo 507.º
refere-se às relações internas entre os responsáveis – nas relações internas entre A e B, não
havendo culpa de nenhum dos dois, a obrigação de indemnizar reparte-se de acordo com o
interesse de cada um na utilização do veículo, ou seja, de acordo com as vantagens que cada um
reitera do veículo. Em caso de dúvida, deve considerar-se igual o interesse de cada um dos
responsáveis na utilização do veículo – isto não resulta do artigo, mas entende-se que resulta de
uma aplicação analógica do artigo 506.º, n.º 2.
Costuma-se perguntar sempre: quem é o responsável? a que tipo? Os responsáveis neste caso são
A e B, que respondem solidariamente O tipo de imputação dos danos é o risco – a responsabilidade
objetiva, independentemente de culpa.

Caso n.º 6
A, camionista de B, entra numa bomba de gasolina para atestar o depósito e também para
verificar a pressão dos pneus. C, dono da estação de serviço, designa D, empregado recém-
contratado e com escassa preparação, para verificar a pressão dos pneus do camião. D, ao
desempenhar a sua tarefa, acaba por manusear mal a máquina, enche de mais um dos pneus
que rebenta, indo atingir E, transeunte que estava no passeio. Este sofreu um traumatismo
craniano. Quem reponde e com que fundamento perante E?
Situamo-nos no campo da responsabilidade civil extracontratual, mais concretamente numa
hipótese de danos causados por veículos de circulação terrestre e ganha por isso relevância o
regime da responsabilidade civil previsto nos artigos 503.º e ss do CC. O veículo aqui em causa
está parado, isto obsta à aplicação do regime do artigo 503.º e ss do CC? O facto de o veículo
estar parado não impede a aplicação do regime da responsabilidade objetiva, pois este regime vale
tanto para veículos em circulação como para veículos estacionados.

Temos aqui vários potenciais responsáveis:


 Responsabilidade de A: A trabalha por conta e sob direção de B (relação de comissão).
A é comissário de B, portanto, a responder, A responde nos termos do artigo 503.º, n.º 3,
1ª parte, que estabelece uma presunção de culpa que recai sobre o comissário no exercício
das suas funções. Parece que se aplica aqui esta presunção de culpa. Esta presunção vale
apenas nas relações internas entre o condutor por conta de outrem e o comitente ou vale
também nas relações externas face ao lesado? Pode o lesado demandar diretamente o
condutor por conta de outrem com fundamento na sua culpa presumida? O assento do
STJ n.º 1/83 diz que esta presunção de culpa vale nas relações externas entre o lesante e
o titular do direito à indemnização, o que significa que E pode demandar diretamente o
comissário com fundamento na sua culpa presumida. Em princípio o comissário
conseguiria provar que o acidente não proveio de culpa sua, afastando assim esta
presunção.

No entanto, vamos equacionar os dois cenários:


1. O comissário não consegue afastar a presunção de culpa que sobre ele recai. Se
o comissário não conseguisse ilidir a presunção de culpa, ele responderia com base
no artigo 483.º conjugado com o artigo 503.º, n.º 3, 1ª parte. Ou seja, responderia a
título de culpa. Tendo o facto danoso sido praticado no exercício das funções de A
enquanto comissário, estariam reunidas as condições cumulativas para que B
responda também como comitente nos termos do artigo 500.º. Assim, perante o
lesado, E, A é B responderiam solidariamente e de forma ilimitada (não são aplicáveis
os limites máximos de responsabilidade do artigo 508.º) – é isto que decorre do
assento do STJ n.º 7/94, onde afirma a doutrina de que os limites máximos de
responsabilidade do artigo 508.º não se aplicam ao comissário. Este não é o cenário
mais provável.

66
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

2. O comissário consegue afastar a presunção de culpa.


Tendo em conta que o acidente não se ficou a dever da culpa de A, ele conseguiria
facilmente demonstrar que o acidente não procedeu de culpa sua, assim excluindo a
presunção de culpa devido ao mau manuseamento da máquina. Se ele consegue ilidir
a presunção de culpa, ele deixa de responder porque não estão reunidos os requisitos
para a sua eventual responsabilidade por factos ilícitos e culposos nos termos do
artigo 483.º do CC. Neste caso temos, portanto, de equacionar a responsabilidade
pelo risco do comitente, B.

 Responsabilidade de B: B, enquanto comitente, só responde se sobre A (comissário)


recair a obrigação de indemnizar, porém, isso não significa que ele não possa responder
enquanto detentor do veículo nos termos do artigo 503.º, n.º 1 (responsabilidade objetiva,
independentemente de culpa). Temos de ver se A é detentor do camião e, para tal, são
necessários dois requisitos:
1. Direção efetiva do veículo;
2. Utilização no seu próprio interesse.
Parece que ele tem a direção efetiva do veículo e tem interesse na sua utilização. Portanto,
estão reunidos os requisitos para que ele responda objetivamente pelos danos que
advenham da utilização daquele veículo. Estes danos podem ser concretizados como
riscos próprios/típicos do veículo? A explosão de um pneu cabe dentro dos riscos
próprios de um veículo? Sim, designadamente dentro dos riscos inerentes ao veículo
enquanto máquina. E seria beneficiário da responsabilidade pelo risco, que é um
transeunte que estava no passeio, um terceiro (artigo 504.º do CC). Por fim, temos de
equacionar se temos uma causa de exclusão da responsabilidade pelo risco, que estão
previstas no artigo 505.º do CC.
Aqui o acidente é imputável a um facto terceiro, portanto, pode a responsabilidade pelo
risco aqui excluída? Há uma divergência doutrinal quanto a esta questão:
 A doutrina mais tradicional estende o sentido exoneratório do artigo 505.º a todas
as situações em que o acidente se fique a dever a culpa de terceiro;
 Há, por outro lado, quem sustente que a culpa leve de terceiro não quebra o nexo
entre o risco específico do veículo e o dano e portanto não seria suficiente para
excluir a responsabilidade pelo risco do detentor (nesta posição inserem-se Vaz
Serra, Ribeiro de Faria, Calvão Teles e também o professor Pestana de
Vasconcelos). Só a negligência grosseira ou a culpa grave de terceiro é que teriam
esse efeito. Nota: distinção entre culpa leve e negligência grosseira:
 A culpa será leve quando são omitidos os deveres que uma pessoa
normalmente diligente/cuidadosa teria observado.
 A culpa/negligência será grave quando a omissão corresponder àquela
em que só uma pessoa excecionalmente descuidada teria incorrido.
Corresponde àquela conduta do agente que se configure como altamente
reprovável.
Para aqueles que acolhem este entendimento de que só a culpa grosseria excluí a
responsabilidade do detentor pelo risco, é muito relevante a qualificação dos
graus da culpa. A determinação do grau da culpa quanto a este entendimento
releva porque diferentes graus de culpa podem levar a diferentes resultados.

 Responsabilidade de D e C: a sua responsabilidade vai ser analisada ao abrigo do artigo


483.º, n.º 1 do CC (temos de verificar se estão reunidos os cinco requisitos cumulativos).
Podemo-nos questionar se ao D pode ser assacada culpa. O padrão de apreciação da culpa
está previsto no artigo 497.º, n.º 2, que é critério do bom pai de família colocado naquelas
circunstâncias. Tendo em conta este padrão, pode ser assacada culpa a D porque, sabendo
ele não estar preparado para executar aquela tarefa, ele devia ter pedido instruções ou, no
limite, devia ter-se abstido de desempenhar aquela tarefa. Logo, D responde pelos danos

67
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

causados a título de responsabilidade por factos ilícitos (artigo 483.º, n.º 1 do CC). D é
comissário de C, atua por conta e sob a direção de C – o facto danoso foi praticado no
exercício das suas funções de comissário e portanto C também será responsável enquanto
comitente nos termos do artigo 500.º. Portanto é, C e D respondem solidariamente (artigo
500.º, n.º 3). No entanto, C pode ainda responder a outro título: pode responder por factos
ilícitos. Importaria analisar se C não responderia pro factos ilícitos e culposo porque
nomeou C para realizar a tarefa que comporta riscos sem lhe dar a adequada formação e
sem o vigiar – temos culpa in eligendo, in vigilando e in instruendo. Assim, C pode ser
chamado a responder nos termos do artigo 483.º, n.º 1 do CC. Poder-se-ia ainda
equacionar-se a aplicação da presunção de culpa do artigo 493.º, n.º 2, uma vez que
poderíamos estar aqui perante uma atividade perigosa pelos meios empregues.

Relativamente à possibilidade de exclusão de culpa de B devido a imputação dos factos a


terceiros, nos termos do artigo 505.º do CC. Tendo em conta a divergência doutrinal, e adotando
a posição do professor Pestana de Vasconcelos, só uma atitude com culpa grosseira é que excluiria
a responsabilidade do detentor do veículo. É então importante perceber se a atuação de C e D
como culpa leve ou grosseira:
 D parece ter atuado com culpa leve e, por isso, não excluiria a responsabilidade do B.
 Já quanto a C também parece poder admitir-se que este atuou com culpa leve e, por isso,
não se afasta a responsabilidade do detentor do veículo.

Posto isto, B, C e D responderiam solidariamente face a E com base no artigo 507.º no CC, embora
a títulos diferentes. Depois tínhamos de analisar nas relações internas se havia direito de regresso
e a que termos.

Caso n.º 7
A, B e C, que se dedicam a comprar café para revenda, compram a D meia tonelada de café
moído por € 90.000.
a) A quem pode D exigir o pagamento dos € 90.000?
Temos vários critérios de classificação das obrigações e um dos critérios é o número de sujeitos
que participam na relação obrigacional. Se atendermos a este critério as obrigações podem ser de
duas espécies:
1. Singulares: quando abrange dois sujeitos (o credor e o devedor);
2. Plurais: quando abrange mais que dois sujeitos (pluralidade de credores e/ou pluralidade
de devedores).
No que concerne à obrigação de pagar o preço, quanto ao sujeito estamos perante uma obrigação
plural do lado passivo, o preço é devido por A, B e C – o preço é devido por uma pluralidade de
devedores. Sempre que há uma pluralidade de devores coloca-se o problema se saber como se
processa a continuação de cada devedor para a realização da prestação a que estão vinculados. A
resposta a esta questão varia consoante a modalidade de obrigações em causa.
As obrigações plurais podem ser:
 Conjuntas. O termo que a doutrina normalmente emprega ocmo sinonimo de obrigações
conjuntas é “obrigações parciárias”;
 Solidárias.
Portanto, vamos ter de averiguar se estamos diante de uma obrigação conjunta ou de uma
obrigação solidária porque em função disso o regime é diferente. No Direito Civil o regime regra
é o da conjunção, cujo fundamento legal é o artigo 513.º do CC – no silêncio da lei e na ausência
de convenção das partes o regime aplicável é o da conjunção. No entanto, há certos casos em que
a lei manda aplicar o regime da solidariedade passiva, mais concretamente na responsabilidade
civil em caso de pluralidade de responsáveis (artigo 497.º e artigo 507.º). Isto porque o regime da

68
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

solidariedade passiva caracteriza-se por uma maior eficácia do direito do credor porque pode
exigir de qualquer um dos devedores solidários a totalidade da prestação, não podendo o devedor
que seja interpelado interpelar o benefício da divisão.
No âmbito das relações comerciais, o regime regra é o da solidariedade passiva (artigo 100.º do
Código Comercial). O legislador, no âmbito das relações comerciais, impôs a solidariedade
passiva como regime regra porque este regime assegura/amenta a segurança do credor e acaba
também por beneficiar os próprios devedores porque assim eles vão conseguir obter mais
facilmente crédito.
O ato de compra de revenda é um ato comercial. A compra de revenda consubstancia um ato
comercial sujeito às regras do Direito Comercial e portanto a divida de A, B e C perante D é
solidária por força do artigo 100.º do Código Comercial. Sendo a obrigação solidária do lado
passivo, o credor vai poder exigir a totalidade da prestação de qualquer dos devedores (primeira
nota típica da solidariedade passiva). A segunda nota típica da solidariedade passiva é que a
prestação efetuada por um dos devedores todos libera perante o credor comum (artigo 512.º).
Portanto, são duas as notas típicas da solidariedade passiva:
1. Dever de prestação integral que recai sobre qualquer dos condevedores solidários;
2. O efeito extintivo recíproco da satisfação dada por qualquer um deles ao direito do credor.
Aplicando isto ao nosso caso, devendo A, B e C 90 000€ a D e sendo solidária a obrigação, D
pode exigir de A, como de B ou de C a entrega de toda a soma devida e não apenas um terço dela
como aconteceria se a obrigação fosse conjunta. A prestação espontânea ou coativamente efetuada
por qualquer dos devedores libera os outros dois face a D.
No plano das relações internas o devedor que satisfizer o direito do credor, alem da parte que lhe
competia pelo débito comum vai gozar de um direito de regresso contra cada um dos
condevedores pela quota respetiva, presumindo-se iguais as quotas nos termos do artigo 516.º do
CC. Há casos em que isto não acontece, pois na responsabilidade civil as quotas podem não ser
iguais.

b) A resposta seria a mesma se D tivesse renunciado à solidariedade face a A?


Neste caso a resposta seria diferente. Ao renunciar à solidariedade face a A, o credor compromete-
se a exigir dele apenas a sua quota parte do débito comum. Nada resultando do enunciado em
sentido contrário, aplicamos o artigo 516º. do CC que prevê que nas relações entre si os
condevedores participam em partes iguais da dívida. Assim, D apenas pode exigir de A 30 000€.
A renúncia à solidariedade apenas tem impacto face a A, face ao devedor a favor de quem é
efetuada a renuncia. Perante os restantes devedores solidários, B e C, o credor conserva o direito
de exigir a prestação por inteiro (artigo 527.º do CC). Se algum deles extinguir a divida, terá
direito de regresso contra A e contra o outro podendo exigir a cada um 30 000€.
Porque haveria o credor renunciar à solidariedade face a um dos condevedores? Isto pode ser
um mecanismo de limitação da responsabilidade e do risco de um dos condevedores, neste caso
A.

c) E D tivesse remitido a dívida de C?


A remissão é aquilo que se designa por “perdão de dívida” e enquadramo-la nos artigos 863.º e
ss do CC – é mais uma causa de extinção das obrigações. No fundo, tendo o credor o direito de
exigir a prestação do devedor pode, com o acordo do devedor, renunciar a esse direito, determinar
a extinção da dívida sem que ocorra a realização da prestação – tem de haver o acordo do devedor.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

A remissão é um contrato entre o credor e o devedor pelo qual o credor prescinde de receber do
devedor a prestação devida.
Neste caso, a remissão foi pactuada apenas com um dos devedores – D remite a dívida de C. a
remissão foi concedida a C, fazendo com que ele fique liberado perante D. Quid iuris perante os
outros devedores? Temos de distinguir entre duas hipóteses:
1. D remite a dívida de C, nada acrescentando à declaração de remissão – aplica-se o artigo
864.º, n.º 1 do CC, que diz que A remissão concedida a um devedor solidário libera os
outros somente na parte do devedor exonerado. Os outros condevedores ficam
desonerados na parte relativa ao devedor exonerado. Isto significa que a dívida que era
de 90 000€ é reduzida para 60 000€ e em princípio o credor podia exigir a totalidade dos
60 000€ a qualquer um dos devedores. E se qualquer um deles pagasse os 60 mil teria o
direito de regresso contra o outro, mas já não contra C (extingue-se a quota de C nas
relações internas). D renunciou à solidariedade quanto a A, portanto, D só poderá exigir
a A 30 000€. D só poderá exigir os 60 000€ a B, que, se pagar, vai depois ter direito de
regresso contra A.
2. D remite a dívida de C acrescentando que se reserva o seu direito por inteiro contra os
outros devedores – aplica-se o artigo 864.º, n.º 2 do CC neste caso, que diz Se o credor,
neste caso, reservar o seu direito, por inteiro, contra os outros devedores, conservam
estes, por inteiro também, o direito de regresso contra o devedor exonerado. Portanto,
D, tendo feito esta ressalva, ele vai poder demandar A ou B por toda a prestação, ou seja,
pelos 90 000€. C não responderá perante D, que remitiu a sua obrigação, mas poderá ser
demandado em direito de regresso quer por A quer por B como se a remissão não
existisse. Como D renunciou à solidariedade face a A, dele apenas pode exigir a quota
parte no débito comum, mas vai poder exigir de B a totalidade da prestação e se B pagar
tem depois direito de regresso face a A e a C.

d) Suponha agora que D exigia a B o pagamento dos € 90.000. B, tendo falta de liquidez,
cumpre, entregando a D um automóvel avaliado em € 120.000. D aceita. Em seguida, B exige
€ 40.000 a A e € 40.000 a C. Quid iuris? E se o automóvel valesse € 75.000?
Primeira pergunta:
Temos aqui uma dação em cumprimento, que é mais uma forma de extinção das obrigações. B,
interpelado para cumprir, realiza com o acordo de D uma prestação diferente da que é devida,
entregando um automóvel ao invés de entregar os 90 000€. Esta figura está prevista nos artigos
837.º e ss e consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida com o fim de,
mediante o acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação.
Se formos ao artigo 523.º vamos ver que a satisfação do direito do credor pode ter lugar por dação
em cumprimento. Portanto, com a dação em cumprimento a obrigação extingue-se em relação a
todos os devedores. Como é que se vao processar as coisas nas relações internas? B entrega um
automóvel avaliado em 120 000€ e ele vai querer exigir dos seus condevedores solidários em
direito de regresso em vez dos 30 000€ vai querer 40 000€ de cada um. A questão é saber se isto
é lícito. Isto não é lícito porque ele estaria no fundo por ato unilateral a agravar a situação dos
outros condevedores solidários. Não é lícito ao autor da dação exigir aos seus condevedores que
não tenham dado o seu acordo ao ato uma quota de valor superior à que lhes competia.

70
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Segunda pergunta:
Admitindo que mesmo assim o credor aceita e a dívida se extingue por dação em pagamento,
pode B exigir de cada um dos condevedores os 30 000€ ou apenas 1/3 de 75 000€? A doutrina
diverge:
 O professor Antunes Varela defende que os condevedores poderão exigir que a sua quota
seja recalculada com base na prestação efetuada se esta for de valor inferior à prestação
devida (que é o nosso caso). Para evitar o quê? Que o autor da dação em cumprimento
se locuplete (enriqueça) injustamente à custa dos demais condevedores solidários. Se
adotarmos este entendimento, B vai poder exigir 25 000€ dos outros devedores em termos
de direito de regresso (1/3 do valor da prestação efetuada).
 Ribeiro de Faria entende que será necessário atender à intenção do credor, ou seja, vamos
ter de tentar perceber o que é que o credor quis ao admitir uma prestação de valor inferior
à que era devida. Caso se conclua que o credor pretendeu beneficiar apenas B, então as
quotas de A e de C mantêm-se em 30 000€. Pelo contrário, se o credor pretendeu
beneficiar todos os titulares passivos da obrigação, B apenas poderá, em direito de
regresso, exigir a cada um dos restantes condevedores 25 000€. O professor Ribeiro de
Faria tem uma posição mais moderada.
O que não pode nunca acontecer é que o devedor é aquilo que vimos na pergunta anterior – não
se pode nunca por ato unilateral agravar a situação dos outros devedores.
e) Suponha que D morre, sucedendo-lhe A, seu irmão e único parente sobrevivo? Nesta
hipótese, quid iuris se C se tornasse insolvente?
Neste caso, haverá confusão, que é uma forma de extinção das obrigações prevista nos artigos
868.º e ss do CC e ocorre quando se reúnem na mesma pessoa as qualidades de credor e devedor
da mesma obrigação. Ora, A era devedor de D e porque sucede a D no crédito, passa a ser também
credor. Ninguém pode ser credor e devedor de si mesmo. Portanto, congregam-se na mesma
pessoa, por virtude de um fenómeno de transmissão operado de um dos lados da relação, a
titularidade ativa e passiva de uma obrigação. Portanto, a dívida de A extingue-se por confusão.
Se formos ver os artigos da confusão, o artigo 869.º diz que A reunião na mesma pessoa das
qualidades de devedor solidário e credor exonera os demais obrigados, mas só na parte da dívida
relativa a esse devedor – portanto, nos termos do n.º 1 deste artigo a confusão não exonera os
demais obrigados na totalidade da divida mas apenas na parte relativa ao devedor diretamente
atingido pela confusão. Assim sendo, os dois condevedores restantes continuam devedores
solidários mas agora perante A, que sucedeu a D, mas deduzindo à prestação integral a quota
correspondente ao antigo devedor – a prestação passa a ser de 60 000€.
O que é que acontece se C se tornar insolvente? Aplica-se o artigo 526.º do CC por interpretação
extensiva. A dívida de A extinguiu-se por confusão, C tornou-se insolvente, portanto, vai poder
exigir de B 45 000€ (30 000€ que B já tinha de pagar em direito de regresso + 15 000€, que é
metade da parte de C, que ficou insolvente entretanto). Portanto, tornando-se C insolvente, a sua
quota vai ser repartida entre os devedores solidários, incluindo A, apesar da extinção da sua
obrigação por confusão. Mantém-se a solidariedade pelo risco de insolvência. Procede-se aqui
uma interpretação extensiva do artigo 526.º do CC.

f) Suponha que C é titular de um contra-crédito face a D, no valor de € 90.000. Tendo D


exigido o cumprimento a B, pode este recusar-se a pagar invocando esse contra-crédito e
declarando extinta a obrigação por compensação?
A compensação é uma forma de extinção das obrigações prevista nos artigos 847.º e ss do CC e
é no fundo um meio de o devedor se livrar da obrigação por extinção simultânea do crédito

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

equivalente de que disponha sobre o seu credor. Para que possa haver compensação têm de estar
verificados os requsitios do artigo 847.º. A compensação torna-se efetiva mediante a declaração
de uma das partes à outra. A questão que se coloca é a de saber se pode B opor a compensação ao
credor. O titular do contra crédito é C e só ele pode declarar a compensação.

A reposta a esta questão é negativa, o titular do contra crédito é o C, logo, a compensação é um


meio pessoal de defesa de C. Dizem-se meios pessoais de defesa que os factos que, afastando
temporária ou definitivamente a pretensão do credor, se referem a apenas um dos condevedores,
só por este podendo ser invocados. Sendo a compensação um meio de defesa pessoal de C, não
pode ser invocada pelo B. A compensação só pode operar mediante declaração de C, mas uma
vez invocada a compensação, ela aproveita a todos os devedores em face do credor, liberando-os
a todos da obrigação, sem prejuízo de depois haver direito de regresso nas relações internas.

Caso n.º 8
A conduzia o seu veículo numa rua do Porto. Atrás dele seguia um camião conduzido por
B. Em determinada altura do percurso, o camião teve uma quebra dos travões e embateu
na traseira do veículo de A que tinha afrouxado de velocidade. Não foram apuradas culpas
de qualquer dos condutores. Durante a reparação do veículo, A teve de se deslocar de táxi
para o emprego. Em virtude do acidente, provou-se que o autor sofreu incómodos. A pede
a condenação de B no pagamento 1.600 €, em que 1.100 € são a título de danos patrimoniais
e 500 € a título de danos não patrimoniais.
a) Quid iuris?
Estamos no campo da responsabilidade civil extracontratual, depara-se-nos aqui a situação de
danos causados por veículos de circulação terrestre, pois temos um acidente de veículos. Neste
caso não foram apuradas culpas de qualquer dos condutores. Nenhum dos condutores se encontra
onerado com uma presunção de culpa. Ou seja, não parece existir aqui responsabilidade civil por
factos ilícitos. então, encontramo-nos no âmbito da responsabilidade pelo risco. No domínio da
responsabilidade de veículos vigora um próprio de responsabilidade objetiva (artigo 503.º do CC).
Quem é responsável pelo risco destes dois veículos? Quando é que podemos considerar que uma
pessoa é responsável pelo risco de um veículo? Quando estão verificadas em relação a si duas
notas: direção efetiva do veículo, utilização no próprio interesse, ainda que por intermédio do
comissário. As pessoas responsáveis pelo risco destes veículos são A e B, enquanto seus
detentores, respetivamente. A quebra dos travões é um risco próprio do veículo – insere-se no
grupo de riscos inerentes ao veículo enquanto máquina.
Estamos perante uma colisão de veículos. Da colisão de veículos se ocupa o artigo 506.º do CC.
Diz-nos o n.º 1 do artigo 506.º o seguinte: Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em
relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a
responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver
contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa
de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar. Este n.º 1
tem duas partes. Temos de averiguar se ambos os veículos contribuíram para os danos. Neste caso
parece que os danos foram causados somente pelo camião. Aplica-se a segunda parte do n.º 1 do
artigo 506.º neste caso, portanto, só B enquanto pessoa responsável pelo risco do camião é que
vai ficar obrigado a indemnizar respondendo pelos danos resultantes da colisão.
A pede a condenação de B. Terá A sucesso na sua pretensão? Ou será que só terá sucesso em
parte? Procede inteiramente o pedido de A? Quanto aos danos patrimoniais, ele deve ser
ressarcido pelos danos que sofreu, que estão avaliados em 1 100€. Quanto aos danos não
patrimoniais temos de ir ao artigo 496.º – admite-se aqui de forma genérica a compensabilidade

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

dos danos patrimoniais que pela sua gravidade reclamem tutela jurídica (não são todos os danos
não patrimoniais). Isto posto, estamos a falar de meros incómodos – os simples incómodos são
atendíveis? Não, portanto não parece que haja lugar à compensação dos danos não patrimoniais
porque nos termos do artigo 496.º, n.º 1 apenas são compensáveis os aos danos não patrimoniais
que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito e os meros incómodos não parecem
enquadrar-se aqui.

b) A solução seria a mesma se o camião fosse conduzido por C, empregado de B?


Teríamos aqui uma relação de comissão entre C e B. C seria comissário de B e enquanto condutor
por conta de outrem no exercício das suas funções, sobre C recai a presunção de culpa contida na
primeira parte do n.º 3 do artigo 503.º do CC. C Como está onerado com a presunção de culpa,
temos de tentar perceber se ele está em condições de afastar a presunção de culpa. O acidente foi
provocado por uma quebra dos travões, portanto, em princípio o comissário conseguirá ilidir a
presunção de culpa a menos que a falha dos travões lhe seja imputável.

Se ele não conseguisse ilidir a presunção de culpa ele responderia com fundamento no artigo 483.º
do CC (responsabilidade por factos ilícitos) – se ele responder nestes termos, B responderia nos
termos do artigo 500.º (requisitos cumulativos: relação de omissão, o dano foi praticado no
exercício das funções do comissario, tem de recair sobre o comissário responsabilidade por factos
ilícitos) enquanto comitente.

Se ele ilide a presunção de culpa, que é o mais provável, a resposta manter-se-á a mesma da alínea
anterior. É responsável B enquanto condutor do veículo, estando obrigado a indemnizar A pelos
danos patrimoniais.

Assim sendo, a resposta seria a mesma neste caso.

c) Qual seria a solução se A tivesse virado bruscamente para a direita sem assinalar com o
pisca e se B circulasse em excesso de velocidade, tendo sido causados danos em ambos os
veículos? (hipótese independente das anteriores).
Ao contrário do que se passava na hipótese original, temos agora culpa de ambos os condutores.
Continua a existir uma situação de colisão de veículos, mas agora não se aplica o disposto no
artigo 506.º, uma vez que ambos os condutores têm culpa. Então, estamos no âmbito da
responsabilidade por factos ilícitos (artigo 483.º do CC). Teríamos de averiguar, por referência à
conduta de cada um dos condutores, se estavam verificados os requsitios cumulativos do artigo
483.º do CC. Admitindo que se verificam estes requsitios quanto à conduta de cada um dos
condutores, então A e B incorrem ambos na obrigação de indemnizar. Isto significa que A e B
são simultaneamente lesantes e lesados – uma vez que há culpa do lesado, aplica-se o artigo 570.º
do CC.

Para determinar quanto é que deve cada um dos lesantes ao outro a título de indemnização importa
analisar a gravidade das culpas de cada um e as consequências que delas resultarem (artigo 570.º,
n.º 1). Isto é um trabalho do juiz.

A e B são reciprocamente credores e devedores um do outro – temos um crédito e um contra


crédito, portanto, pode haver lugar, portanto, à compensação nos termos do artigo 847.º e ss do
CC. A compensação é uma forma/causa de extinção das obrigações – quando pensamos na
extinção das obrigações pensamos no cumprimento automaticamente, mas a verdade é que há
várias formas de extinção das obrigações.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Caso n.º 9
Eduarda e Francisca são devedores solidários de € 50.000 face a Gonçalo. Gonçalo interpela
E no dia 1 de março de 2014, para que ela cumpra a obrigação. De imediato, ela entrega-lhe
€ 50.000 em dinheiro e parte de férias para o Brasil, sem informar Francisca do pagamento
efetuado. No dia 1 de abril de 2014, Francisca, preocupada, envia a Gonçalo um cheque de
€ 50.000, que este desconta. Quando Francisca exige a E € 25.000, a última diz-lhe que já
pagou.
a) Quid iuris?
Temos uma obrigação plural – pluralidade passiva porque temos vários devedores. Estamo-nos a
reportar à obrigação de pagar os 50 mil euros e esta obrigação é plural do lado passivo porque há
duas devedoras. Sabemos também que as devedoras são solidárias – temos aqui um caso de
solidariedade passiva.
Características da solidariedade passiva: o credor pode exigir a prestação integral a qualquer um
dos devedores solidários e pagando um deles a obrigação extingue-se em relação a todos (efeito
extintivo comum). O cumprimento por um a todos libera. Nas relações internas o que tiver
cumprido adquire um direito de regresso contra os demais pelas quotas respetivas.
As obrigações podem, quanto ao tempo do seu vencimento, ser classificadas em obrigações puras
e obrigações a prazo:
 Obrigações puras: são aquelas que por falta de estipulação ou disposição em contrário
se vencem logo que o credor, mediante interpelação, exija o seu cumprimento ou o
devedor pretenda realizar a prestação devida.
 Obrigações a prazo: são aquelas cujo cumprimento não pode ser exigido ou imposto à
outra parte antes de decorrido certo período ou chegada de certa data. O prazo assinala a
data antes da qual o credor não pode exigir a prestação se o devedor ainda não a tiver
efetuado ou não pode ser forçado a recebê-la.
A regra geral é a de as obrigações não terem prazo, serem, portanto, puras. Nas obrigações puras
o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o
devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela – isto é o que decorre do artigo 777.º, n.º 1 do CC.
Neste caso estamos perante uma obrigação pura, o que significa que Gonçalo, credor, pode
interpelar qualquer um dos devedores ou devedoras a todo o tempo (exigir o cumprimento). Neste
caso Gonçalo optou por interpelar Eduarda – quando interpelado, o devedor deve cumprir a
obrigação pura, sob pena de incorrer em mora se não o fizer (artigo 805.º, n.º 1 do CC).
No nosso caso, Eduarda cumpriu. Com o cumprimento dá-se o efeito extintivo da obrigação face
aos demais devedores em conformidade com o disposto nos artigos 512.º, n.º 1 e 523.º do CC.
Eduarda não informou a sua covendedora solidária. Quando Francisca envia um cheque a
Gonçalo, a obrigação ainda existia? Não, já se encontrava extinta. Ela envia um cheque a
Gonçalo para cumprimento de uma obrigação que já não existe – há aqui um enriquecimento
sem causa de Gonçalo à custa de Francisca. Assim, a Francisca pode exigir a repetição do
indevidamente prestado (artigo 476.º, n.º 1 do CC).
Tínhamos ainda de equacionar o seguinte: pode dar-se o caso que Gonçalo entretanto fique
insolvente e que não consiga restituir. Nesse caso, a Francisca pode sofrer um dano. Quid iuris
neste caso? Ela pode ver o seu dano ressarcido? Se sim, de quem e com que fundamento? Houve
a violação de um dever de informação que emerge do princípio da boa-fé – as duas condevedoras
solidárias estão unidas entre si numa relação interna da qual emergem deveres de boa-fé que
impunham à Eduarda que informasse a Francisca do cumprimento da obrigação. Em tese, em
abstrato, quer a Eduarda (convedevedora solidária), quer Gonçalo (credor) procederam mal,

74
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

desrespeitaram deveres acessórios de conduta decorrentes do princípio da boa-fé da execução


contratual (artigo 762.º, n.º 2 do CC). Parece que a Francisca poderá exigir de Eduarda e de
Gonçalo a reparação dos danos que tenha sofrido em consequência do facto de não ter sido
informada do cumprimento. Ambos tinham aqui um dever de aviso/informação – ambos deveriam
ter comunicado à Francisca que a obrigação já tinha sido satisfeita. Assim, Francisca pode exigir
de Eduarda de Gonçalo a reparação dos danos quer tenha sofrido em consequência do facto de
não ter sido informada do cumprimento. Claro que se entretanto Gonçalo tiver ficado insolvente
de nada vale pedir a reparação dos danos.

b) Suponha que Gonçalo tinha demandado Eduarda e esta não cumprira. Podia Gonçalo
exigir a Francisca o pagamento do capital e dos juros de mora?
Tratando-se aqui de uma obrigação pura, a obrigação vence-se com a interpelação do devedor,
incorrendo o devedor se não cumprir em mora nos termos do artigo 804.º do CC. Uma das
consequências da mora do devedor consiste na obrigação de indemnizar os danos que o atraso no
cumprimento cause ao credor (artigo 804.º, n.º 1 do CC). Portanto, estamos aqui perante uma
situação de mora – Eduarda foi interpelada para cumprir e não o fez e portanto ficou em mora e
a consequência dessa mora é a obrigação de indemnizar. Nas obrigações pecuniárias, que são
aquelas que tendo por objeto uma prestação em dinheiro visam proporcionar ao credor o valor
que as respetivas espécies possuam como tais, a indemnização corresponde aos juros moratórios
– não precisa o credor de provar que teve prejuízos e que sofreu danos (artigo 806.º do CC).

Isto posto, temos de saber se Gonçalo, tendo já demandado Eduarda, pode ou não exigir a
Francisca o pagamento dos 50 mil euros. Aqui há que distinguir 2 hipóteses:
1. Se Gonçalo tiver interpelado Eduarda judicialmente fica impedido de interpelar a
Francisca (artigo 519.º, n.º 1);
2. Se, porém, Gonçalo tiver interpelado a Eduarda extrajudicialmente, não fica impedido de
interpelar posteriormente Francisca, quer judicial ou extrajudicialmente, para conseguir
o que não conseguiu obter na primeira interpelação.

Admitindo que Gonçalo ainda pode interpelar Francisca, resta saber o que é que pode exigir dela.
Pode exigir apenas o pagamento do capital ou se pode exigir o pagamento do capital + os juros
de mora. Não encontramos na lei uma resposta expressa a esta questão mas têm-se entendido
quase unanimemente que se deve a aplicar a solução do artigo 520.º por interpretação extensiva.
Portanto, do artigo 520.º do CC decore que a indemnização devida pelos danos que a
impossibilidade da prestação cause ao credor, deve caber apenas ao devedor que deu causa à
impossibilidade do cumprimento, isto em homenagem ao princípio de que acontecimentos
relativos a cada um dos devedores não devem beneficiar ou prejudicar os demais. Portanto, parece
que, por interpretação extensiva do artigo 520.º, Gonçalo apenas poderá exigir de Eduarda o
pagamento dos juros provenientes da mora – não se aplica aqui diretamente o artigo 520.º do CC,
mas aqui temos uma situação de incumprimento (mora) e só um dos devedores é que deu causa a
esta situação, portanto, tem a doutrina entendido que a hipótese de mora merece tratamento
análogo e portanto parece que se fizermos uma interpretação extensiva deste artigo o credor só
poderia exigir de Eduarda e não de Francisca os juros de mora.

75
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Caso n.º 10
No dia 1 de março, A dirigiu-se ao stand de automóveis de B, onde adquiriu um Toyota
Yaris. As partes acordaram que B prepararia o automóvel e faria a entrega, no dia 10 do
mesmo mês, no domicílio de A. Porém, no dia 5 de março, e sem que se possa atribuir culpa
a B, deflagra um incêndio no stand que destrói todos os automóveis que aí se encontravam.

a) Quid iuris, se B já tivesse escolhido o automóvel de A, já o estivesse a preparar -


integrando os acessórios adicionais devidos - e, inclusivamente, já tivesse comunicado esse
facto ao comprador?
Temos uma obrigação com prestação não determinada e, dentro destas, uma obrigação genérica
(artigos 539.º e ss). Nas obrigações genéricas a prestação está determinada apenas por referência
a uma certa quantidade peso ou medida dentro de um género mas não está ainda concretamente
definido quais os espécimes que serão utilizados para o cumprimento da obrigação. Temos aqui
uma obrigação genérica porque B está obrigado a entregar um veículo Toyota Yaris, portanto, há
uma referência à marca e à quantidade, mas não está ainda concretamente definido qual o concreto
veículo que o devedor utilizará para cumprir a obrigação. Quando se constitui a obrigação não
está definido qual o concreto automóvel que servirá para o cumprimento da obrigação. O facto de
a obrigação ser genérica pressupõe que haja uma processo de individualização dos espécimes
dentro do género – é aquilo que designamos por escolha e nos termos do artigo 539.º a regra é de
que a escolha compete ao devedor. A indeterminação inicial da obrigação genérica coloca o
problema de saber qual o momento em que tem lugar a transmissão da propriedade, o que releva
para efeitos de risco, uma vez que a regra é a de que o risco corre por conta do proprietário (res
perit dominos – artigo 796.º, n.º 1). A transmissão da propriedade não pode ocorrer no momento
da celebração do contrato, conforme resulta genericamente do artigo 408.º, n.º 1 relativamente às
coisas determinadas porque um direito real só pode ter por objeto coisas corpóreas e determinadas,
portanto, a transmissão da propriedade nas obrigações genéricas não opera por mera celebração
do contrato conforme resulta genericamente do artigo 408.º para as obrigações determinadas.

Então, qual é que é aqui a grande questão? Sempre que lidamos com obrigações genéricas a
transmissão da propriedade e do risco a está associada dá-se com a concentração. Quando é que
ocorre a concentração? Quando é que a obrigação passa de genérica para específica? A regra
geral é que a concentração se dá com o cumprimento da obrigação.

Quanto a saber quando é que se dá a concentração são avançadas 3 teorias:


1. Teoria da escolha, segundo a qual a concentração se dá quando o devedor separa dentro
o género as coisas que utiliza para cumprir;
2. Teoria do envio, segundo a qual a concentração da obrigação de genérica em específica
não se dá com a simples separação, exige-se o envio das coisas com que pretende o
devedor cumprir a obrigação;
3. Teoria da entrega – é aquela que nos diz que a concentração só se dá com a entrega da
coisa ao credor no momento do cumprimento e só nesse momento é que se dá a
transmissão da propriedade e a transferência do risco.

A nossa lei consagrou relativamente à concentração a teoria da entrega, ou seja, a concentração


dá-se apenas com o cumprimento da obrigação – essa solução resulta do artigo 540.º do CC, que
tem como epígrafe “Não perecimento do género”. Ao referir que o devedor não fica exonerado
enquanto o género não perecer/se extinguir, a lei está no fundo a consagrar a irrelevância geral da
escolha ou do envio para efeitos de concentração da obrigação. Portanto, a concentração da
obrigação pro via de regra dá-se apenas com o cumprimento.

Isto posto, quando é que ocorreria o cumprimento da obrigação neste caso? No dia 10 no
domicílio de A – o cumprimento da obrigação ocorreria com a entrega no domicílio de A no dia
10 de marco, dia em que se daria a concentração da obrigação genérica e consequentemente a
transmissão da propriedade e a transferência do risco.

76
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Quando o incêndio ocorre dia 5 de marco a obrigação ainda não se tinha concentrado. O artigo
540.º diz que “enquanto a prestação for possível com coisas do género estipulado, não fica o
devedor exonerado pelo facto de perecerem aquelas com que se dispunha a cumprir”, ou seja,
enquanto houver coisas dentro do género fixado, mesmo que as coisas perecíveis sejam aquelas
com que o devedor pensava cumprir a obrigação, ele continua adstrito ao vínculo obrigacional.

Portanto, temos de ver aqui se o género se extinguiu ou não porque das duas uma:
1. Ou o género se extinguiu e ele fica exonerado da obrigação;
2. Ou o género não se extinguiu e ele continua obrigado ao vínculo obrigacional. O género
do carro não se extinguiu, existem mais Toyota Yaris, o que significa que B continua
adstrito ao vínculo obrigacional – em termos práticos, ele tem de cumprir e se não o fizer
incorre em mora. Portanto, ele tem de, em termos práticos, adquirir um veículo novo para
depois entregar a A. No entanto, este incêndio não foi culpa de B – isto significa que a
boa-fé impõe que ao devedor seja concedido um período de tempo razoável para poder
cumprir a obrigação, período esse que neste caso corresponderá ao tempo necessário para
adquirir um novo automóvel daquela marca com aquelas características.

Nota: quanto à obrigação genérica, o mais importante numa obrigação genérica é saber quando é
que se dá a concentração.

b) Qual seria a solução se - mantendo todos os demais elementos da alínea anterior - A


tivesse adquirido um Toyota Yaris azul daqueles que B tinha em stock?
Continuamos a estar perante uma obrigação genérica, embora agora de género limitado. Face à
aliena anterior foram introduzidas mais umas notas – carro azul em stock. Houve aqui uma
delimitação do género. Quando o incêndio deflagrou a concentração da obrigação ainda não se
deu, portanto, ainda não se deu a transmissão da propriedade e do risco. Neste caso, o género
extingue-se porque estava limitado, diferentemente do que acontecia na hipótese anterior, agora
temos o perecimento do género. Extinguindo-se todo o género dentro do qual a prestação estava
compreendida, o devedor fica exonerado. Temos aqui uma impossibilidade objetiva do
cumprimento por causa não imputável ao devedor, o que nos termos do artigo 790.º determina a
extinção da obrigação.

Tratando-se de um contrato bilateral, tem aplicação o disposto no artigo 795.º, nos termos do qual
fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a
sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa. Isto significa, em termos
práticos, que B ficou desonerado da obrigação, que se extinguiu por impossibilidade objetiva de
cumprimento por causa não imputável ao devedor, se A já tiver pago terá direito a restituir a
prestação, se não pagou nada, não tem direito a nada.

c) A resposta seria diversa, se A tivesse adquirido o Toyota Yaris cinzento que se encontrava
em exposição no stand?
Sim, pois teríamos uma obrigação específica porque se trata de uma coisa determinada. Uma
obrigação é específica quando o seu objeto mediato é individual ou concretamente fixado.
Portanto, a obrigação que recai sobre B tem agora por objeto uma coisa determinada.
Nas obrigações específicas a transmissão da propriedade dá-se por mero efeito da celebração do
contrato (artigo 408.º, n.º 1 do CC). Temos aqui um contrato de compra e venda, que é um contrato
real quanto à sua eficácia e temos uma obrigação específica, portanto, a transmissão da
propriedade dá-se por mero efeito da celebração do contrato. Com a transmissão da propriedade
transfere-se o risco (artigo 796.º, n.º 1). No momento da celebração do contrato, como temos uma
obrigação específica, A adquire a propriedade sobre o veículo e com a transmissão da propriedade
transfere-se o risco, logo, neste momento B fica desonerado da obrigação da entrega da coisa por
impossibilidade do cumprimento da obrigação (artigo 790.º) por causa do incêndio. É por conta

77
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

de A que corre o risco do perecimento da coisa devido ao incêndio. Assim, A neste caso não vai
gozar do direito conferido pelo artigo 795.º, n.º 1:
 Ele vai ter de entregar o preço devido, se ainda o não tiver feito;
 Se entregar o preço, B pode retê-lo. Isto porque o risco do perecimento da coisa corre por
sua conta.

d)
1) Suponha que não se tinha verificado qualquer incêndio e que as partes contratuais
acordavam que o Toyota Yaris deveria ser entregue no 10 de março na estação de comboios
de Campanhã. Quid iuris, se o comboio em que o automóvel era transportado sofresse um
descarrilamento e todas as mercadorias que nele se encontravam ficassem totalmente
destruídas?
Tratando-se de coisa que deva ser enviada para lugar diferente do cumprimento, a concentração
dá-se, neste caso, quando o automóvel foi entregue ao transportador (artigo 797.º do CC ex vi do
artigo 541.º do CC).
Estamos perante uma coisa que deve ser enviada para local diferente do cumprimento e nesse
caso a entrega envolve uma determinação ou especificação séria e eficaz da coisa dentro do género
em que a prestação se integra, uma vez que o devedor já não tem a possibilidade de a substituir
por outra cosia. A concentração dá-se naquele momento e com a concentração dá-se a transmissão
do direito de propriedade e a transferência do risco. O que significa que no momento em que o
descarrilamento ocorre o veículo já pertencia a A, o risco já corria por sua conta – o risco do
perecimento da coisa durante o transporte corre por conta de A. Portanto, A não vai poder exigir
a restituição do preço ou terá de pagá-lo caso ainda não o tenha feito.
2) Suponha agora que se tinha acordado que o cumprimento se realizaria no domicílio de
A. B opta por enviar o Toyota Yaris por comboio. Quid iuris se o comboio descarrilasse?
Temos mais uma vez um descarrilamento, mas a resposta vai ser diferente. Aqui já não estamos
no âmbito de aplicação do artigo 795.º do CC. O artigo 795.º diz respeito às dívidas de envio ou
de remessa em que o devedor no fundo não se compromete a transportar a coisa para o local do
cumprimento mas apenas no local do cumprimento colocar a coisa num meio de transporte
destinado a outro local.

Nesta hipótese B encontra-se vinculado a enviar a coisa até ao local do cumprimento, até ao
domicílio de A. Portanto, a concentração da obrigação só operaria com o cumprimento que apenas
ocorreria com a entrega no domicilio de A. Ora, tendo a coisa perecido antes da concentração, o
prejuízo corre por conta do devedor (B) e aqui das duas uma:
1. Se o género não se tiver extinguido, ele continuará vinculado. Neste caso não parece que
o género se terá extinguido, portanto, ele continua adstrito ao vínculo obrigacional.
2. Se se tivesse extinguido o género, então ele ficaria exonerado mas não teria direito a
exigir o preço e se já o tiver recebido terá de o restituir.

Caso n.º 11
A, criador de cavalos, é proprietário de 50 animais. A vende a B um dos seus dois cavalos
lusitanos, o cavalo X ou o cavalo Y, combinando-se que a entrega do animal se faria no
primeiro dia da Feira do Cavalo a realizar em Santarém. Quando C, empregado de A,
transporta os cavalos para a referida feira, despista-se, numa curva fechada, devido à
velocidade excessiva em que conduzia. Deste acidente resulta a morte do cavalo Y. Quando
B sabe o que ocorrera, recusa-se a aceitar o cavalo X e a pagar o preço.

a) Quid iuris?
Temos aqui uma obrigação alternativa (artigo 543.º e ss). As obrigações alternativas são aquelas
que compreendem duas ou mais prestações mas em que o devedor se libera mediante a escolha

78
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

que vier a ser designada, ou seja, o vínculo abrange vairas prestações mas o cumprimento fixa-se
apenas numa delas. No nosso caso é o A que está adstrito a uma de duas prestações consoante a
escolha que vier a ser efetuada – tanto pode ser entregue o cavalo X como o cavalo Y.

O momento decisivo na vida da decisão alternativa é o da escolha. A escolha é o ato de opção ou


seleção por meio do qual se opera em regra a concentração da obrigação numa das prestações em
alternativa a que o devedor está adstrito. Neste momento dá-se, então, a transferência do direito
real e do risco. Por isso é determinante saber a quem cabe o poder de escolha – pode caber quer
ao credor quer ao devedor, como pode ainda ser atribuído a um terceiro. A atribuição do poder de
escolha vai-se refletir depois nos efeitos da impossibilidade de uma ou alguma das prestações em
alternativa. Na falta de estipulação ou disposição legal em contrário, a escolha cabe ao devedor
(artigo 543.º, n.º 2). Portanto, não tendo nós no enunciado informação em contrário, a escolha
cabe a A – cabe a A escolher qual dos cavalos entregará a B.

Acontece que durante o transporte um dos cavalos morre, portanto, ganha aqui relevo o regime
da impossibilidade. Temos aqui uma impossibilidade superveniente porque a impossibilidade
dá-se em momento posterior à constituição da obrigação. É importante averiguar se a
impossibilidade provém ou não de causa imputável às partes e, neste caso, a impossibilidade
imputável ao devedor ), uma vez que o despiste aqui ficou a dever-se ao excesso de velocidade
em que conduzia o C, que é empregado de A. Se formos ao artigo 800.º do CC, veremos que o
devedor responde pelos atos dos seus auxiliares/pelos atos das pessoas que utiliza para o
cumprimento da obrigação. Neste sentido, aplica-se o artigo 546.º do CC. Sendo a impossibilidade
imputável ao devedor, distinguem-se aqui duas hipóteses, consoante o poder de escolha caiba ao
devedor ou ao credor. No entanto, que já vimos que, em princípio, uma vez que não temo nenhuma
informação em contrário, cabe ao devedor e por isso aplica-se a 1º parte deste artigo. Nos casos
em que a impossibilidade é imputável ao devedor e a escolha lhe caiba a ele, a obrigação reduz-
se às prestações possíveis, concentrando-se numa delas quando uma só seja a prestação possível.
Portanto, o A terá que entregar o cavalo X.

Não se concede ao devedor, como uma espécie de sanção à sua culpa, a faculdade de escolher a
prestação que se tornou impossível e entregando ao credor o respetivo valor. Por outro lado, esta
solução não representa nenhuma violência para o credor porque antes da impossibilidade este já
estava sujeito a que o devedor escolhesse qualquer uma das prestações. Posto isto, o B não tem
razão em recusar aceitar o cavalo X e recusar a pagar o preço. A escolha pertencia ao A antes da
impossibilidade da prestação e, por isso, tanto poderia entregar o cavalo X como o cavalo Y.

Quanto à recusa da prestação, o B incorre em mora do credor, nos termos dos artigos 813.º e ss,
ficando sujeito às consequências lá previstas. Além disso, o preço deve, na falta de disposição em
contrário, ser pago no momento da entrega da coisa (artigo 885.º), o que não sucedeu. Ou seja, o
B incorre em mora do devedor, mas além da mora do credor incorre também em mora enquanto
devedor (artigo 804.º e ss).

b)
1) E se tivesse sido acordado que a escolha do cavalo caberia a B?
Continuamos a ter aqui uma impossibilidade imputável ao devedor, mas a diferença é que a
escolha pertence ao credor (B). Significa que B podia, à luz do contrato celebrado, optar por
qualquer um dos cavalos. Quando assim seja, não seria justo que a impossibilidade limitasse o
poder de escolha do credor, impedindo-o, designadamente, de escolher a prestação que o devedor
culposa ou dolosamente tornou inviável. O legislador é sensível a esta consideração e, por isso, o
artigo 546.º, 2ª parte confere ao credor várias alternativas, isto é, coloca à sua disposição várias
soluções:
 Poderá exigir uma das prestações possíveis – poderá exigir, deste modo, a entrega do
cavalo X;
 Pode exigir uma indemnização pelos danos supervenientes por não poder ser efetuada a
prestação que se tornou impossível – pode acontecer que o cavalo Y tivesse até um valor

79
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

superior ao X. Pode também acontecer que o B já tivesse encontrado um comprador para


o cavalo Y. Por isso, nestas situações, pode fazer sentido ao credor pedir uma
indemnização calculada segundo o interesse contratual positivo, segundo aquilo que o
credor teria ganho se o contrato tivesse sido integralmente cumprido, abrangendo assim
o lucro cessante. Se o B fosse optar por esta via, ele continuaria obrigado à sua
contraprestação, continuaria vinculado à obrigação de pagar o preço.
 Poderá resolver o contrato nos termos gerais com a possibilidade de pedir uma
indemnização – B poderia resolver o contrato e pedir uma indemnização pelos danos
sofridos. Resolvendo o contrato, B ficaria desvinculado da obrigação de pagar o preço.
A indemnização continuaria a ser calculada pelo interesse contratual positivo, mas aqui
tínhamos de descontar o valor que B não realizaria.

2) E, nessa hipótese, quid iuris se a morte do cavalo ocorresse por abatimento tornado
imprescindível devido a várias fraturas sofridas pelo animal causadas pelo descuido de B
quando testava as capacidades daquele?
Nesta situação o direito de escolha continua a ser do credor, à semelhança do que se passava na
hipótese anterior, mas a impossibilidade provém agora de culpa sua e não do devedor. Foi a sua
falta de cuidado a testar o cavalo que levou às fraturas que o animal sofreu e que fizeram com que
o animal tivesse de ser abatido. Temos de aplicar o regime do artigo 547.º. faz-se a distinção entre
o poder de escolha a cargo do credor e o poder de escolha a cargo do devedor.

Neste caso, o artigo 547.º considera a obrigação cumprida no fundo como se o credor tivesse
escolhido a prestação que se tornou impossível. Esta solução que no fundo não afeta os interesses
do devedor constitui uma sanção que se impõe ao credor. Ela não afeta os interesses do devedor
porque não era o devedor que ia escolher qual das prestações é que ia ser prestada – ele estava
sujeito à escolha do credor das prestações em alternativa.

c) Suponha que se tinha acordado que A entregaria o cavalo X, embora se reservasse o


direito de ele prestar o cavalo Y, em vez daquele. Quid iuris se o primeiro animal fosse morto
pelo condutor de um veículo automóvel que se pôs em fuga?
Já não temos aqui uma obrigação alternativa, pois esta obrigação tem apenas por objeto uma única
prestação. A tem de entregar o cavalo X mas reservou-se a faculdade de entregar o cavalo Y,
temos portanto uma obrigação com faculdade alternativa a parte debitoris. Estas obrigações são
aquelas que têm por objeto uma única obrigação mas em que o devedor tem a faculdade de se
desonerar mediante a realização de uma outra. Os autores alemães falam a este propósito num
poder de substituição da prestação conferido ao devedor. O devedor tem a faculdade de se
desonerar mediante a realização de uma outra prestação sem a necessidade de acordo posterior
do credor. O credor nestas obrigações não poderia exigir a prestação alternativa (não pode exigir
o cavalo Y), mas terá de aceitá-la se o devedor optar por ela, sob pena de, se não o fizer, incorrer
em mora.

Nas obrigações com faculdade alternativa como a prestação devida é só uma, não há lugar a
escolha – aquela é a única prestação que o credor tem o direito de exigir e podendo fazê-lo logo
que a obrigação se vença. Nascendo a obrigação de um contrato que importa a transferência de
um direito real sobre coisa determinada, o direito transfere-se com a mera celebração do contrato
(artigo 408.º, n.º 1) – o direito transfere-se imediatamente para o património do adquirente por
mero efeito do contrato. A partir desse momento passa o risco de perecimento da coisa para o
adquirente (artigo 796.º, n.º 1).

Portanto, B adquire a propriedade sobre o cavalo no momento de celebração do contrato porque


se trata de um contrato que importa a transferência de um direito real sobre coisa determinada.
Nesses casos, a transmissão da propriedade opera por mero efeito da celebração do contrato e
passa a partir daí o risco do perecimento do cavalo a correr por sua conta (artigo 796.º, n.º 1). Ou
seja, com a impossibilidade superveniente da prestação devida por causa não imputável ao
devedor, dá-se a extinção da obrigação (artigo 790.º do CC). Como o domínio da coisa já pertencia

80
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

a B e o risco do perecimento da coisa já corria por sua conta, ele vai ter de pagar o preço se ainda
não o tiver feito.

Isto acontece porque as obrigações com faculdade alternativa têm por objeto uma única prestação,
simplesmente o devedor reserva-se o direito se assim quiser de realizar uma outra prestação sem
necessidade do acordo posterior do credor, tendo este de a aceitar.

Caso n.º 12
A empresta € 100.000 a B pelo prazo de 2 anos. Os juros fixados foram de a 5% ao ano, com
vencimento anual. Para garantir o pagamento, B constitui uma hipoteca sobre um prédio
urbano seu.

Pergunta-se:
a) Poderia A, decorrido um ano, não pagando B os 5.000 € de juros, juntá-los ao capital?
Está aqui em causa uma obrigação de juros. O regime geral da obrigação de juros está previsto
nos artigos 559.º e ss do CC, sendo depois complementado por um conjunto muito amplo de
regimes específicos aplicáveis às instituições de crédito e às sociedades financeiras enquanto
creditantes.

Na definição do professor Antunes Varela, os juros são os frutos civis constituídos por coisas
fungíveis que representam o rendimento de uma obrigação de capital. Eles correspondem à
contrapartida pela disponibilidade de capital em determinado período de tempo. O montante dos
juros varia em função de 3 fatores:
i. O tempo disponível;
ii. A taxa de remuneração fixada por lei ou estabelecida pelas partes;
iii. Existência de uma obrigação de capital.

Ao ato de juntar os juros ao capital dá-se o nome de capitalização ou anatocismo, ou seja, o


vencimento de juros pelos juros, ou seja juros de juros. O que acontece aqui é que vencendo-se a
obrigação de juros ela extingue-se e a quantia de juros é junta ao capital com o seu correspondente
aumento desse valor e sobre este novo montante passam a incidir juros. Aplicando isso ao nosso
caso, no segundo ano de contrato os juros de 5% passariam a incidir já não sobre os 10 mil euros
mas sobre 105 mil euros.

A nossa lei não admite o anatocismo – há uma proibição geral do anatocismo (artigo 560.º, n.º
1). A lei vê com muita desconfiança o anatocismo. Esta proibição geral deve-se ao facto de o
legislador entende que pode ser difícil para o devedor calcular a extensão futura da sua dívida.
No fundo, a capitalização de juros podem levar a um aumento significativo da dívida sem que o
devedor disso se aperceba, e é por isso que o legislador não vê isso com bons olhos e proíbe o
anatocismo de forma geral. No entanto, existem exceções a esta proibição. Admite-se o
anatocismo desde que haja convenção posterior ao vencimento destes juros ou a notificação
judicial a que se refere o artigo 560.º, n.º 1. A convenção tem de ser posterior ao vencimento dos
juros e não anterior (no momento da celebração do contrato) porque, havendo convenção anterior
ao vencimento dos juros, o credor poderia convelir o devedor a aceitar a capitalização de juros
como condição de acesso ao crédito.

Só se admite nestes termos a capitalização dos juros e, em todo o caso (n.º 2 do artigo 560.º), só
podem ser capitalizados os juros correspondentes ao período mínimo de um ano porque quanto
mais curtos são os períodos relativamente aos quais se capitalizam os juros mais onerosa é a
situação para o devedor. O legislador tem a preocupação de impor um período minino pelo qual
podem ser capitalizados os juros para que isso prejudique menos o devedor.

No domínio bancário as regras são diferentes.

81
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Ou seja, A apenas podia, decorrido um ano, não pagando B os 5.000 € de juros, juntá-los ao
capital se A conseguisse respeitar ou não os requisitos do artigo 560.º, isto é, se consegue ou não
respeitar esses requisitos por uma de duas vias:
1. Por convenção posterior;
2. Por notificação judicial.

b) Suponha que o imóvel arde decorrido um ano de empréstimo, porque B se esqueceu de


um aquecedor a gás aceso.
b1) O que poderia A fazer?
Temos aqui um crédito garantido por uma hipoteca. A hipoteca (artigo 686.º) é um direito real
de garantia que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor se certas coisas imóveis, ou
equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que
não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

A garantia geral das obrigações é o património do devedor. Na prática, tendo um credor ter
registado a seu favor uma hipoteca, se houver uma venda executiva daquele bem, o credor que
tenha uma hipoteca sobre aquele bem via poder ver o seu crédito satisfeito coma venda daquele
bem com preferência aos demais credores daquele devedor – vai ter uma preferência na satisfação
do seu crédito.

Neste caso, temos um incêndio e o facto de o imóvel ter ardido faz com que o seu valor diminua
significativamente, o que faz com que diminua (ou se extinga mesmo) o valor da garantia. A
hipoteca é uma garantia especial das obrigações. Esta diminuição da garantia é imputável ao
devedor porque o imóvel ardeu porque ele deixou um aquecedor a gás aceso. Logo, tem aplicação
o disposto no artigo 780.º, que tem como epígrafe “perda do benefício do prazo”, as alternativas
de que dispõe o credor são as seguintes:
1. Exigir a substituição ou o reforço da garantia;
2. Exigir o imediato cumprimento da obrigação.

Ou seja, o credor pode exigir de B a restituição do capital mutuado. O que não poderá A fazer é
exigir os juros que ainda não se tenham constituído.

b2) E se o incêndio tivesse sido fortuito?


Neste caso isso significa que ele já não foi causado pelo devedor. A diminuição da garantia não é
imputável ao devedor, logo, não se aplica o artigo 780.º, pois este só se aplica quando diminuição
das garantias do crédito forem imputáveis ao devedor. Aplica-se então o disposto no artigo 701.º
que diz Quando, por causa não imputável ao credor, a coisa hipotecada perecer ou a hipoteca
se tornar insuficiente para segurança da obrigação, tem o credor o direito de exigir que o devedor
a substitua ou reforce; e, não o fazendo este nos termos declarados na lei de processo, pode
aquele exigir o imediato cumprimento da obrigação ou, tratando-se de obrigação futura, registar
hipoteca sobre outros bens do devedor. O credor tem a faculdade de exigir ao devedor a
substituição ou o reforço da garantia e, na eventualidade de este não o fazer, o credor pode exigir
o imediato cumprimento da obrigação da restituição do capital.

Quais são as alternativas de que dispõe o credor?


 O credor tem a faculdade exigir a repetição ou substituição da hipoteca;
 E, caso o devedor não cumpra, o credor pode exigir o cumprimento imediato da
obrigação.

A grande diferença face à hipótese anterior, não sendo a diminuição da garantia imputável ao
devedor, é que o credor só pode avançar com o vencimento antecipado da obrigação depois de ter
tenteado primeiro exigir ao devedor a substituição ou reforço da hipoteca. O credor não é livre de
optar por uma alternativa ou outra. Seria bastante gravoso permitir ao credor exigir logo o
cumprimento imediato da obrigação quando a culpa não é imputável ao devedor.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

b3) E se a hipoteca tivesse sido constituída por C, pai de B, a pedido deste, tendo a casa
ardido por descuido dele (C).
Mais uma vez, não há culpa do devedor no incêndio e por isso não se vai aplicar o regime do
artigo 780.º, aplica-se o regime do artigo 701.º. O credor pode exigir que o devedor substitua ou
reforce a hipoteca e caso o devedor não o faça o credor pode exigir o imediato cumprimento da
obrigação. O n.º 2 deste artigo diz que os direitos que o n.º 1 confere ao credor não ficam
prejudicados pelo facto de a hipoteca ter sido constituída por terceiro a menos que o devedor seja
estranho à sua constituição. Na hipótese em que o devedor seja estranho à constituição da garantia,
o credor não poderá exigir ao devedor nem em princípio ao terceiro a substituição ou o reforço da
hipoteca. Contudo, se a diminuição da garantia se ficar a dever de culpa de terceiro, o credor tem
o direito de exigir deste a que reforce ou subsitua a hipoteca e se ele não o fizer dele poderá depois
ser exigido o cumprimento imediato da obrigação.

Isto posto, temos agora de averiguar se o devedor é ou não estranho à constituição da garantia.
Com base no enunciado podemos concluir que não é estranho à constituição da garantia porque a
hipoteca foi constituição pelo pai do devedor a seu pedido. A hipoteca foi constituída pelo pai do
B a seu pedido, ou seja, o devedor não foi estranho à constituição da garantia logo tem aplicação
a primeira parte do n.º 2 do artigo 701.º – A vai poder exercer os direitos do n.º 1 do artigo 701.º
contra B – pode exigir de B e só de B (não de C) o reforço ou a substituição da obrigação caso o
B não substitua ou reforce a hipoteca A pode exigir o cumprimento imediato da obrigação.

c) Tendo a hipoteca sido constituída por C, pai de B, poderia A executá-la se B caísse numa
situação de insolvência decorrido um ano de empréstimo?
O artigo 780.º, relativo à perda do benefício do prazo, fala-nos em dois núcleos de situações em
que há uma perda do benefício do prazo por parte do devedor:
1. Situação de o devedor se tornar insolvente (a insolvência não tem de ter sido declarada
judicialmente, basta ser uma insolvência de facto) – se o devedor se tornar insolvência,
ainda que a insolvência não haja sido judicialmente declarada, ele perde o benefício do
prazo, podendo o credor exigir o cumprimento da obrigação.
2. Diminuição das garantias imputável ao devedor ou de não terem sido prestadas as
garantias prometidas.

O credor quer verdadeiramente saber se ele pode executar a garantia logo decorrido um ano de
empréstimo. A questão que se coloca é a de saber se a perda do benefício do prazo se estende ao
terceiro que lhe constituiu a garantia, neste caso, ao C. O credor sabe que o devedor numa situação
de insolvência perde o benefício do prazo e ele pode exigir o cumprimento, mas o que lhe interessa
verdadeiramente saber é saber se pode excetuar a garantia que foi constituída por um terceiro. A
resposta a esta questão está prevista no artigo 782.º, ou seja, a perda do benefício do prazo pelo
devedor não afeta terceiros que tenham garantido o cumprimento da obrigação. A garantia só
pode ser posta a funcionar depois de atingido o momento em que a obrigação normalmente se
venceria, logo, isto significa, na prática, que o credor só poderia pôr a funcionar a garantia no
final dos 2 anos. Isto significa no fundo que A poderia exigir de B o imediato cumprimento da
dívida, mas caso este não cumprisse A tinha de aguardar pelo termos do prazo contratualmente
fixado de 2 anos para poder executar a hipoteca constituída por C.

d) Suponha agora que o mútuo era celebrado em março de 2014, que o valor mutuado era
de 50.000 €, que a dívida era garantida através de uma hipoteca constituída sobre um
terreno de B, sendo estipulados juros anuais 9%. Quid iuris?
Temos aqui juros convencionais porque estes decorrem do acordo das partes. Quanto à sua
função, eles classificam-se como juros remuneratórios – são no fundo a contrapartida da cedência
de um determinado capital. As partes são livres de fixar a taxa de juro que bem entenderem ou
há aqui alguns limites à liberdade de estipulação das partes? A lei estabelece alguns limites à
liberdade de estipulação das partes neste âmbito na medida em que qualifica no artigo 1146.º, n.º

83
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

1 do CC, que depois é estendido a todas as obrigações de juros do artigo 559.º-A (norma inserida
sistematicamente no âmbito do contrato de mútuo mas que por força do artigo 559.º-A o seu
regime é estendido a todas as obrigações de juros), como usurários quais quer juros anuais que
excedam os juros legais em 3% ou 5% consoante exista ou não garantia real, sendo apenas
permitida a cobrança de juros superiores quando se trate de uma cláusula penal moratória, caso
em que esses limites são elevados para 7% e 9%, respetivamente (artigo 1146.º, n.º 2).
A taxa de juro legal está atualmente fixada em 4% e foi fixada assim pela Portaria n.º 291/2003,
de 8 de abril. O artigo 1146.º, n.º 1 diz-nos que são juros usurários os que excedam os juros legais
em 3% ou 5% conforme exista ou não garantia legal, o que significa que se existir garantia real
então a taxa máxima pode ser fixada pelas partes em 3%+ «4% = 7%, mas se não exigir garantia
real é 4% + 5% = 9% – isto para os juros remuneratórios. Isto não pode ser assim porque o limite
máximo que as partes podiam fixar eram os 4% acrescidos de 3%. Neste caso existe uma garantia
real, pelo que os juros anuais não poderiam exceder 7% (artigo 1146.º, n.º 1). As partes não
podiam ter estipulado estes juros anuais a 9%, ao fazê-lo estão a violar uma norma legal
imperativa, o que gera a nulidade da estipulação. O n.º 3 do artigo 1146.º que Se a taxa de juros
estipulada ou o montante da indemnização exceder o máximo fixado nos números precedentes,
considera-se reduzido a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes – este
número manda reduzir a taxa de juro estipulada ao limite máximo permitido por lei, ainda que
outra tivesse sido apontada pelos contraentes. Há uma revogação do artigo 292.º pelo artigo
1146.º, n.º 3. Temos aqui no fundo uma redução automática do contrato: o contrato e a obrigação
mantêm-se, mas a taxa de juro é reduzida para 7%.

 É importante notar que a resposta seria diferente se não tivesse sido constituída garantia
real.
Se o credor for um banco, há um regime específico para os juros moratórios, quanto ao juros
remuneratórios nada se prevê na lei, o que leva à doutrina e à jurisprudência maioritária a entender
que não há limites. O professor Pestana de Vasconcelos discorda, para ele os bancos também
estão sujeitos a estes limites.

Caso n.º 13
No dia 1 de Julho de 2014, a empresa Y, norte-americana, vende à empresa X, portuguesa,
15.000 computadores. É acordado o preço de 750.000 dólares a ser pago, no dia 1 de
fevereiro de 2015, em Lisboa. Pode a empresa X, na data de vencimento compensar o crédito
da empresa Y com um contra-crédito que tem sobre a última, já vencido, no valor de 700.000
€?
Tanto a empresa Y como a empresa X são credoras uma da outra. Poderá haver aqui
compensação? A compensação é uma forma de extinção das obrigações além do cumprimento e
a lei admite nos artigos 847.º e ss a compensação como forma de extinção das obrigações. Este
mecanismo da compensação funciona do seguinte modo: um sujeito que seja ao mesmo tempo
credor e devedor de um outro pode, em vez de se realizarem cumprimentos cruzados, recorrer à
compensação para extinguir a sua obrigação total ou parcialmente assim como a do outro. No
fundo, a compensação é um meio que o devedor tem de se livrar da sua obrigação por extinção
simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o seu credor.
Quanto às modalidades da compensação, podemos ter:
 Compensação legal;
 Compensação convencional.

84
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Aqui vamos falar da compensação legal (artigo 847.º e ss). A compensação cumpre 2 importantes
funções:
1. Produz a extinção das obrigações, dispensando a realização efetiva da prestação devida,
funcionando assim como uma forma de facilitação e simplificação de pagamentos.
2. Permite ao seu declarante (àquele que a declara) extinguir a sua obrigação mesmo que
não tenha qualquer possibilidade de receber o seu próprio crédito por insolvência do seu
devedor e nessa medida funciona como garantia dos créditos.
A questão que aqui se coloca é a de saber se a empresa X, a empresa portuguesa, pode compensar
o crédito da empresa Y, o crédito principal (nome que a professora deu a este crédito para os
distinguir). Para isto têm de estar verificados certos requisitos:
 Reciprocidade de créditos – para que possa livrar-se da sua dívida por compensação é
essencial que o devedor seja credor do seu credor (artigo 847.º). O artigo 851.º trata
desenvolvidamente deste requisito nos dois sentidos em que a reciprocidade interessa à
compensação. Por um lado, a compensação apenas abrange a dívida do declarante
(daquele que declara a compensação) e não a de terceiro, afastando-se assim do âmbito
da compensação as dívidas de terceiro ao declaratário. No fundo, isto quer dizer que não
pode uma pessoa extinguir a divida de terceiro por compensação. Por outro lado, o
devedor só pode livrar-se da obrigação utilizando créditos seus contra o seu credor e não
pode utilizar créditos de terceiro para este efeito. Este requisito encontra-se aqui
preenchido – a empresa X pode compensar o crédito da empresa Y com um contra-crédito
seu. Y é credora do seu credor e está a servir-se de um crédito de que dispõe sobre a
empresa Y para extinguir a sua dívida perante a mesma. Portanto, este primeiro requisito
está verificado.
 Validade, exigibilidade e exequibilidade do contra-crédito do compensante – para que o
devedor se possa livrar da obrigação por compensação é preciso que ele possa impor
naquele momento ao credor a realização coativa do crédito que se arroga contra este. No
fundo, é preciso que no momento em que pretende invocar a compensação possa impor
ao seu credor a realização coativa do crédito de que se arroga contra ele. A alínea a) do
n.º 1 do artigo 847.º vem concretizar este ideia explicitando os corolários que dela
decorrem. No fundo, a alínea a) vem-nos dizer o que é que se entende por este requisito
e diz-nos que o crédito do compensante tem de ser exigível judicialmente e não estar
sujeito a nenhuma exceção perentória ou dilatória de direito material. Uma obrigação é
judicialmente exigível quando ela não sendo voluntariamente cumprida dá lugar à ação
de cumprimento e à execução do património do devedor (artigo 817.º do CC). Este
requisito está verificado – o contra-crédito de X sobre Y já se encontra vencido; não há
informação no enunciado quanto à verificação de qualquer facto que com base no direito
substantivo conduza à improcedência definitiva da pretensão do compensante (exemplo:
se o crédito já tivesse prescrito e fosse invocada) ou impeça o tribunal de julgar desde
logo a pretensão como procedente (exemplo: a exceção de não cumprimento do contrato).
Damos este requisito como verificado.
 Existência e validade do crédito principal – crédito que o compensante pretende extinguir
por ter nele a posição de devedor (crédito principal). para que se proceda à compensação
é necessário que exita e seja válida a dívida do compensante. Mais uma vez, nada no
enunciado nos permite determinar a inexistência ou invalidade da dívida da empresa X,
pelo que daremos também este requisito como verificado.
 Fungibilidade do objeto das obrigações – na alínea b) do n.º 1 do artigo 847.º exige-se
para que haja obrigação que as obrigações tenham por objeto coisas fungíveis da mesma
espécie e qualidade. Este requisito da homogeneidade das prestações compensadas
compreende-se facilmente porque no fundo ele deriva da ideia de que o credor não pode
ser forçado contra a sua vontade a receber coisa diferente da que lhe era devida, ainda

85
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

que tenha valor equivalente ou mesmo superior, a menos que haja a sua aquiescência. Só
quando as prestações debitórias sejam homogéneas é que a muta extinção dos débitos de
compensação deixará as partes na mesma situação se as obrigações tivessem sido
pontualmente cumpridas. Este requisito da homogeneidade das obrigações não pressupõe
que as prestações em divida tenham de ser de igual montante nem que tenham de ser
cumpridas no mesmo lugar (artigo 847.º, n.º 2 e artigo 852.º).
O requisito que aqui suscita maiores dificuldades é este último porque ambas as obrigações são
obrigações pecuniárias, porém, a obrigação de X é uma obrigação pecuniária em moeda
estrangeira, ou seja, é uma obrigação pecuniária valutária. No fundo, dizem-se valutárias as
obrigações cujo cumprimento se estipula que seja feito em moeda estrangeira, ou seja, em moeda
com curso legal apenas no estrangeiro. Temos aqui uma obrigação valutária porque se fixou que
o preço devido dos 15 mil computadores seria pago em dólares americanos. Portanto, para
podermos responder à questão do enunciado temos de averiguar se o devedor pode cumprir em
moeda nacional. Pelo que precisamos de saber qual o tipo de obrigação valutária concretamente
em causa. As obrigações valutárias podem ser de 3 tipos:
i. Obrigações próprias/puras – o devedor tem obrigatoriamente de cumprir em moeda
estrangeira;
ii. Obrigações impróprias/impuras – o devedor tem de cumprir em moeda nacional, sendo a
moeda estrangeira simplesmente uma moeda de cálculo do montante devido e não uma
moeda de pagamento;
iii. Obrigações mistas – nas obrigações valutárias mistas o credor só pode exigir o pagamento
na moeda estrangeira mas o devedor pode, se quiser, exonerar-se pagando em moenda
nacional segundo o cambio do dia e do lugar do cumprimento. No fundo, temos aqui um
exemplo de uma obrigação com faculdade alternativa a parte debitórias – o devedor está
obrigação a cumprir em moeda estrangeira mas pode cumprir, se quiser, em moeda
nacional, tem este poder de substituição da prestação debitória. Já o credor só lhe pode
exigir o cumprimento em moeda estrangeira.
Se formos ao artigo 558.º do CC temos uma regra supletiva que nos diz que As regras da cessão
de créditos são extensivas, na parte aplicável, à cessão de quaisquer outros direitos não
exceptuados por lei, bem como à transferência legal ou judicial de créditos – a nossa lei, a título
supletivo, define que as obrigações valutárias são supletivamente de tipo misto. Nada tendo as
partes acordado a este respeito, a obrigação será em princípio uma obrigação valutária mista por
força da regra supletiva do artigo 558.º do CC. Assim, conclui-se daqui que a empresa X podia
cumprir em moeda nacional, a menos que alguma coisa em sentido diverso tivesse sido estipulado
pelas partes. Portanto, o devedor tem a faculdade de se exonerar da obrigação pagando em moeda
nacional segundo o cambio do dia e do lugar do cumprimento, compensando o crédito da empresa
Y com o contra-crédito que dispunha sobre ela. Tínhamos de calcular a quantos dólares
equivaliam, segundo o cambio do dia e do lugar do cumprimento, os 700 000€ e caso este valor
correspondesse a mais do que 750 000 dólares, a empresa X não só conseguiria extinguir a sua
divida por compensação como ainda ficaria credora da empresa Y no valor da diferença entre as
duas dívidas.
No fundo, a chave para a resolução deste caso era saber se no contrato se convencionou alguma
coisa em sentido diverso do que está disposto no artigo 588.º do CC porque se nada tiverem
convencionado a este respeito aplica-se a regra supletiva do artigo 588.º, que nos diz que as
obrigações valutárias são mistas.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Caso n.º 14
A, com dez anos de idade, é credor de B em 300 euros. Este dirige-se a casa dos pais de A
para fazer o pagamento. Encontrando A na porta do prédio, entrega-lhe logo essa quantia.
Poderá o pai, C, e em que circunstâncias, anular a prestação?
Este caso diz respeito aos requisitos do cumprimento, que são:
 Capacidade do devedor;
 Capacidade do credor;
 Legitimidade do devedor para dispor sobre o objeto da prestação.
Destes 3 requisitos, aquele que está em causa é a capacidade do credor. O credor deve ter em
princípio capacidade para receber a prestação (artigo 764.º, n.º 2) – referimo-nos à capacidade de
exercício, isto é, a capacidade para atuar juridicamente exercendo direitos ou cumprindo
obrigações por ato próprio ou exclusivo ou mediante um representante voluntário (o chamado
procurador). Porque é que a lei coloca esta exigência? O que é que o credor incapaz poderia
eventualmente fazer, tendo em conta a sua eventual falta de discernimento, e que o legislador
procura evitar? O credor incapaz, atenta a sua falta de discernimento, poderia destruir o objeto
da prestação ou não tirar qualquer proveito do cumprimento. É com isto que o legislador está
preocupado e é por isso que impõe este requisito.
Este requisito não está preenchido porque A é menor. Nos termos dos artigos 122.º e 123.º, os
menores carecem de capacidade de exercício de direitos, assim sendo, tendo A 10 anos, este não
teria capacidade de exercício. Há exceções, nos termos do artigo 127.º do CC, a esta incapacidade
do menor. Não temos nenhuma informação no enunciado que nos permita supor que estamos na
alçada do artigo 127.º do CC.
Como é que a incapacidade é suprida? É suprida através do instituto da representação. Os meios
de suprimento da incapacidade dos menores através do instituto da representação são, em primeira
linha, as responsabilidades parentais que cabem em geral aos pais (artigo 1877.º e artigo 1878.º)
e, subsidiariamente, a tutela (artigo 124.º do CC).
O artigo 764.º, n.º 2 não se fica por dizer que o credor deve ter capacidade para receber a prestação,
diz ainda quais são as consequências. A consequência será a seguinte: se a prestação for realizada
a credor incapaz ela pode ser anulável. O representante legal do credor incapaz pode solicitar a
anulação da prestação realizada e a realização de nova prestação pelo devedor, de acordo com o
brocardo “quem paga mal, paga duas vezes”. Esta regra, no entanto, admite duas exceções, ambas
previstas na 2ª parte do n.º 2 do artigo 764.º:
i. A prestação realizada ao incapaz chegar ao poder do seu representante – considera-se
eficaz o cumprimento;
ii. O património do incapaz ter enriquecido com a prestação – considera-se eficaz o
cumprimento na medida do enriquecimento.
Isto é assim porque não há na verdade nestes casos motivo para a anulação total do cumprimento.
A realização de nova prestação nestas circunstâncias equivaleria no fundo a um enriquecimento
injusto do incapaz à custa do devedor. Percebemos facilmente estas duas exceções à regra geral
se soubermos qual é a ratio legis por detrás da regra geral – o legislador quis proteger o credor
que, sendo incapaz e eventualmente imaturo com falta de discernimento poderia não tirar proveito
da prestação. Ora, se a prestação chegar ao poder do seu representante ou o seu património ter
enriquecido com a prestação, as razões que justificam a anulação da prestação e a realização de
nova prestação não têm sentido. Teríamos de ver se a criança entregou o dinheiro ao pai ou se
porventura o guardou.
Caso A, após receber a prestação pecuniária que lhe era devida, tenha entregado o dinheiro ao seu
pai, representante legal, ou caso tenha guardado o dinheiro, o cumprimento é valido, podendo B

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

opor-se fundadamente à anulação da prestação – pode opor-se ao pedido de anulação da prestação


e ao novo pedido de realização da prestação.

Caso n.º 15
No dia 1 de maio, A vende o seu automóvel a B. Contudo, as partes acordam que a entrega
só se fará daí a 15 dias para que A não fique sem carro, enquanto o stand não lhe entrega o
seu carro novo.

a) Quid iuris se o carro, no dia 8 de maio, arder por causa fortuita?


Estamos perante um caso de não cumprimento da obrigação, mas a verdade é que sob a designação
genérica de não cumprimento cabem situações muito distintas que importa distinguir e classificar
porque o RJ vai variar em função da classificação que se faça. Portanto, o primeiro passo será
sempre classificar a situação de não cumprimento.

Quanto à causa, o incumprimento pode ser imputável ou não imputável ao devedor. Esta distinção
tem uma importância capital. Dentro da secção do não cumprimento, a primeira subsecção diz
respeito à impossibilidade do imputável em mora não imputáveis ao devedor e à falta de
cumprimento e mora imputáveis ao devedor. Neste caso, temos um incumprimento não imputável
ao devedor. O não cumprimento procede de uma circunstância fortuita, fica a dever-se ao
incendio.

Quanto aos efeitos, podemos distinguir entre não cumprimento definitivo, mora e cumprimento
defeituoso. Nós temos aqui uma situação de não cumprimento definitivo porque a prestação já
não é realizável. O não cumprimento definitivo neste caso provém de uma impossibilidade da
prestação. Esta impossibilidade é superveniente – ocorre em momento prótiro à constituição da
obrigação. Esta impossibilidade é objetiva porque respeita ao objeto da prestação debitória. A
impossibilidade diz respeito a todos porque ninguém pode efetuar a prestação. É uma
impossibilidade total porque a impassibilidade estende-se a toda a prestação. É uma
impossibilidade absoluta e não meramente relativa no sentido de que se tornou efetivamente
irrealizável a prestação, não apenas mais difícil.

Nota: quando falamos em impossibilidade absoluta ou relativa, a relativa traduz-se numa


onerosidade, numa excessiva onerosidade de realização da prestação – a impossibilidade relativa
não gera a extinção da obrigação, mas pode dar lugar à aplicação de outros institutos, como a
alteração superveniente dar circunstâncias.

A principal consequência associada a uma impossibilidade com estas características é a extinção


da obrigação (artigo 790.º) com a consequência exoneração do devedor. Portanto, aqui a
obrigação extingue-se e A deixa de estar vinculado à obrigação de entrega da coisa – A fica
desonerado do dever de prestar.

A questão que aqui se coloca diz respeito a saber qual o destino da contraprestação. A fica
desonerado, a obrigação extingue-se, mas e B? será ele obrigado a pagar o preço do automóvel?
Ou, se já o tiver feito, poderá exigir a sua restituição? Fazendo aqui a prestação, cuja realização
se tornou impossível, parte de um contrato bilateral sinalagmático e não sendo a impossibilidade
imputável ao credor vai-se aplicar o artigo 795.º, n.º 1, ficando o credor desobrigado da
contraprestação. Se já a tiver realizado terá direito à sua restituição embora nos termos mitigados
do enriquecimento sem causa, atendendo á falta de culpa do devedor. Esta é a consequência do
mecanismo do sinalagma do próprio contrato bilateral. Mas isto que vimos é o regime regra nos
contratos bilaterais, regra essa que sofre desvios que tem de suportar designadamente as correções
que lhe são impostas pelo regime que vigora entre nós quanto às eficácia real dos contratos.

Aqui, além de temos um contrato bilateral sinalagmático, temos também um contrato real quanto
à sua eficácia e por isso vamos ter também de atender no disposto do artigo 796.º do CC, que

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

contém as regras do risco do perecimento ou destruição da coisa. Incidindo o CCV sobre coisa
determinada, neste caso o automóvel de A, o domínio sobre a coisa transfere-se para B no próprio
momento da celebração do contrato (artigo 408.º, n.º 1 do CC).

A primeira regra que neste âmbito importa reter é a de que nos contratos que importem a
transferência sobre o domínio sobre a coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre
ela, o perecimento ou a deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta
do adquirente (artigo 796.º, n.º 1). Este regime compreende-se facilmente: após a alienação da
coisa, e mesmo que não corra logo a entrega da coisa, a posição do devedor altera-se, ele passa a
ser um mero depositário da coisa, não retirando em princípio qualquer benefício da guarda da
coisa e por isso não se justificaria que ele suportasse o risco da perda ou deterioração da coisa.
Faz-se correr o risco por conta do adquirente porque após a transmissão do direito real sobre a
coisa a posição do devedor altera-se, ele conserva a coisa em seu poder e passa a ser um mero
depositário da coisa que em princípio não retirará qualquer benefício da guarda da coisa, pelo que
não teria de suportar o risco da deterioração da coisa.

Mas este regime está sujeito a algumas adaptações nos n.ºs 2 e 3. Diz-nos o n.º 2 do artigo 796.º,
que aqui ganha particular relevância, que Se, porém, a coisa tiver continuado em poder do
alienante em consequência de termo constituído a seu favor, o risco só se transfere com o
vencimento do termo ou a entrega da coisa, sem prejuízo do disposto no artigo 807.º – isto
significa que se tiver sido constituído termo a favor do alienante o risco só se transfere com o
vencimento do termo ou a entrega da coisa. A doutrina, quanto a este regime, diz que se a coisa
se mantém na posse do devedor, no seu interesse, é justo que seja ele a correr o risco. Nestes
casos, ele não se pode considerar como um mero depositário da coisa, ele antes se encontra a
utilizar em proveito próprio, o que significa que suporte riscos. Esta disposição ganha relevo
particular aqui. A vendeu o automóvel a B, mas obrigou-se a entregá-lo só passados 15 dias após
a celebração do contrato para que não ficasse provado do carro, ou seja, temos aqui nesta situação
que a coisa só continuou no poder de A em virtude de termo constituído a seu favor, pelo que nos
termos do artigo 796.º, n.º 2, aquando do incêndio ainda não se tinha operado a transferência do
risco, logo, o prejuízo decorrente do perecimento da coisa corre por conta de A, apesar de já não
ser o proprietário. B goza aqui dos direitos conferidos pelo artigo 795.º, n.º 1: não tem de pagar o
preço e se já o tiver feito pode exigir a sua restituição.

Assim sendo, a regra do artigo 796.º se a coisa só se tiver mantido na posse do alienante em
virtude de termo constituído a seu favor, nesses casos ele já não se pode considerar um mero
depositário.

b) A resposta seria a mesma se A ficasse apenas com o carro durante aquele período de
tempo, por forma a que as obras na garagem de B finalizassem, para este aí poder guardar
o carro?
A resposta não seria a mesma. O termo teria sido constituído neste caso a favor do comprador, B,
e já não a favor do alienante. Portanto, A agora é um mero depositário da coisa. Aplica-se a regra
geral do n.º 1 do artigo 796.º do CC, segundo a qual o risco do perecimento da coisa corre por
conta do adquirente. Apesar do carro ainda lhe não ter sido entregue, o risco corre por conta de
B, uma vez que o termo foi constituído a seu favor e assim B não goza dos direitos conferidos
pelo artigo 795.º, n.º 1, vai ter pelo contrário de entregar pelo preço devido se ainda o não tiver
pagado ou podendo o vendedor retê-lo se ele já tiver sido entregue.

c) Qual seria a solução, se A tivesse vendido o automóvel a B com reserva de propriedade


até ao pagamento integral do preço, lhe tivesse feito a entrega imediata do automóvel e este
ardesse, na mesma data, por facto fortuito?
Poer via de regra, nos termos do artigo 408.º, a constituição ou transferência de direitos reais
sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei
– estamos perante uma compra e venda com reserva de propriedade que a lei prevê e regula no
artigo 409.º do CC. As partes estabeleceram uma reserva de propriedade e, portanto, a propriedade

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

mantém-se na esfera de A até o pagamento integral do preço. A clausula de reserva de propriedade


constitui um importante mecanismo de tutela do vendedor que entrega logo a coisa e concede um
prazo ao comprador para pagar o preço, muitas vezes em prestações. A cláusula de reserva de
propriedade é um mecanismo importante de tutela porque ao ligar a transmissão da propriedade
ao momento do efetivo momento do pagamento do preço o vendedor cira para si um instrumento
de garantia que assenta na propriedade e se o devedor não cumprir, o vendedor pode recuperar a
coisa, uma vez que a propriedade nunca sai da sua esfera. Se assim não fosse, quer por força do
artigo 876.º, quer por o comprador ter entretanto revendido a coisa, o vendedor, se não tivesse
sido constituída a seu favor uma outra garantia especial seria um simples credor comum do preço,
situação que é particularmente gravosa em caso de insolvência. Ao recorrer à reserva de
propriedade, o vendedor vê sempre os danos resultantes do incumprimento da outra parte
minorados, mesmo quando a coisa tenha já sofrido alguma desvalorização pelo uso que lhe for
entretanto dado.

É um instrumento de garantia que assenta na propriedade, na manutenção da propriedade na sua


esfera. A questão que aqui se coloca é: vendida a coisa com reserva de propriedade e feita a sua
entrega ao comprador, que a passa a usar, por conta de quem corre o risco da perda ou deterioração
da coisa? Esta solução não encontra uma solução direta na nossa lei. O artigo 796.º não contempla,
pelo menos não expressamente, esta venda com reserva de propriedade e com entrega da cosia.
No fundo estamos perante uma lacuna legal que deve ser preenchida nos termos gerais da
integração de lacunas previstos no artigo 11.º do CC. O primeiro modo de integração de lacunas
é o recurso à analogia. O professor Pestana de Vasconcelos defende que esta lacuna legal deve
ser integrada com recurso à aplicação analógica da solução que para a questão do risco se prevê
no domínio da locação financeira – este seria o caso análogo previsto na lei. A locação financeira
é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo
temporário de uma coisa móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta e que o
locatário poderá comprar decorrido o período acordado por um preço nele determinado ou
determinado pela simples apreciação dos critérios legais (artigo 1.º do DL n.º 149/95, de 24 de
junho – Regime Jurídico da Locação Financeira). O professor Pestana de Vasconcelos sustenta
esta aplicação analógica porque a compra e venda com reserva de propriedade é aquilo que ele
designa por negócio de crédito e garantia em que a garantia assenta na titularidade de um direito
de propriedade que não é de imediato transmitido (permanece na esfera do alienante) e portanto
esta venda enquadra-se numa categoria negocial caracterizada por estes dois elementos. O
professor Pestana de Vasconcelos diz que a locação financeira é o negócio de crédito e garantia
em que esta assenta na propriedade mais pormenorizadamente regulada entre nós. O legislador
estabeleceu, no domínio da locação financeira, no artigo 15.º do DL acima referido, que Salvo
estipulação em contrário, o risco de perda ou deterioração do bem corre por conta do locatário.
O que levou o legislador optar por esta solução de correr o risco por conta do locatário é porque
é ele que está a gozar a coisa, enquanto o locador financeiro só mantém o seu direito na sua esfera
como garantia. A venda com reserva de propriedade e entrega da coisa não pode, no entender do
professor Pestana de Vasconcelos, contemplar uma solução diferente quanto ao risco, sob pena
de uma contradição valorativa inaceitável.

Se acompanharmos esta posição, o risco do perecimento do automóvel corre por conta de B, uma
vez que é quem goza a coisa, quem tira proveito dela. A só mantém a propriedade na sua esfera
como garantia. O professor Pestana de Vasconcelos ainda diz que embora o artigo 796.º não
preveja e regula esta situação, as valorações a ele subjacentes sempre nos conduziriam ao mesmo
resultado (p. 479 a 476 – Manual de Direito das Garantias, 3ª Edição).

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Caso n.º 16
A acorda com B, mecânico, a reparação do motor do seu automóvel, tendo-se, desde logo,
fixado o preço (€ 400) e a duração do conserto (toda a manhã do dia 20 de maio). Na noite
anterior à data acordada, o automóvel de A fica com o motor gripado por este se ter
esquecido de mudar o óleo. No dia 20 de maio, B espera até 60 minutos após a hora fixada,
e depois trata dos outros automóveis. Estas reparações rendem-lhe € 250.

a) Terá A que pagar o preço da reparação?


Caso de impossibilidade definitiva de realização da prestação não imputável ao devedor. É uma
impossibilidade imputável ao credor.

Temos de qualificar juridicamente a situação – entre A e B foi celebrado um contrato de prestação


de serviços, mais especificamente um contrato de empreitada, pelo qual o mecânico B se obriga
perante A a realizar a reparação do motor do seu automóvel mediante um preço. Temos aqui um
contrato bilateral sinalagmático pelo qual emergem obrigações para ambas as partes interligadas
entre si por um nexo de correspetividade/do sinalagma.

Quanto à obrigação de reparar o motor, há aqui uma impossibilidade da prestação. Esta


impossibilidade, quanto à causa, não é imputável ao devedor. Quanto aos efeitos, temos uma
impossibilidade definitiva, superveniente, objetiva, total e absoluta. O devedor estava preparado
para realizar a prestação que apenas se tornou impossível por ato censurável do credor, que
culposamente se esqueceu de mudar o óleo que levou a que o motor gripasse. A principal
consequência associada a uma impossibilidade com estas características é a extinção da
obrigação, ficando o devedor exonerado do dever de prestar (artigo 790.º, n.º 1). A prestação cuja
realização se tornou impossível faz parte de um contrato bilateral, portanto, coloca-se a questão
de saber qual o destino da contraprestação. Será A obrigado a pagar o preço? A resposta encontra-
se no artigo 795.º, n.º 2 do CC: se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao
credor, não fica este desobrigado da contraprestação, embora se o devedor tiver algum
benefício com a exoneração, pois nesse caso será o valor do benefício descontado na
contraprestação. Isto significa que A vai ter de pagar o preço fixado para a reparação, mas vai
poder abater o lucro que B teve aproveitando o tempo, que de outro modo gastaria com a
reparação, para tratar de outros veículos (400€ - 250€). Portanto, A apenas terá de pagar 150€.

b) Quid iuris se o motor tivesse ardido sem culpa de A, e B já tivesse adquirido um conjunto
de produtos para aplicar no motor, cujo custo ascendeu a € 120?
A impossibilidade da prestação provem de um facto relativo ao credor, ligado à sua pessoa ou aos
seus bens, mas sem que a ele possa ser assacada culpa na verificação desse facto. Estamos num
caso de frustração do fim da prestação – o fum que o credor visava obter com a prestação não
mais pode ser alcançado porque o motor ardeu.
Este tipo de situações de frustração do fim da prestação suscitam 2 tipos de dificuldades:
i. Como é que enquadramos dogmaticamente as situações de frustração do fim da
prestação? A qualificação deste tipo de situações como casos de frustração do fim da
prestação não é líquida porque o devedor continua em condições de por si realizar a
prestação devida, neste caso, o conserto – o mecânico continua por si em condições de
realizar o conserto.
 A via ensaiada por alguma parte da doutrina alemã para resolver este problema
passou, no fundo, pelo alargamento do conceito de prestação para se incluir não
só o comportamento a que o devedor se acha vinculado, mas também o próprio
interesse do credor nesse comportamento e, portanto, a impossibilidade
abrangeria tanto os casos em que não fosse possível realizar a conduta devida,
como ainda aqueles em que a conduta devida fosse insuscetível de permitir a
satisfação do interesse do credor.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

 Antunes Varela entende que a prestação não engloba o interesse do credor, o


interesse do credor é um elemento estranho à prestação debitória. Contudo, se é
certo que a prestação não compreende o interesse do credor, a verdade é que a
prestação nem sempre se limita ao círculo da realidade dominada pela vontade
do credor. Há em muitos casos circunstâncias exteriores/elemento estranho que
condicionam a atuação do devedor de tal modo que a sua falta gera uma
verdadeira impossibilidade da prestação. A reparação do motor que o mecânico
se obrigou a realizar pressupõe, além de uma atuação profissional, a existência
de um motor. Ora, se o motor entretanto ardeu, a prestação prometida pelo
mecânico tornou-se impossível.
O professor Ribeiro de Faria considera que estes casos de frustração do fim da
prestação trazem em si contida a impossibilidade da prestação. Para Menezes
Leitão, estes casos de frustração do fim da prestação não se reconduzem a
hipóteses de impossibilidade da frustração porque a ação abstrata de prestar ainda
se mantém possível. No entanto, o facto de o credor não vir a retirar qualquer
benefício da ação do devedor torna disfuncional a realização da prestação, que
deve corresponder necessariamente a um interesse do credor nos termos do artigo
398, n.º 2. Para Menezes Leitão, justifica-se a equiparação destas situações à
impossibilidade.
ii. Que tratamento jurídico é que vamos dispensar a este tipo de situações? Seja por via da
qualificação das situações de frustração do fim da prestação como impossibilidade como
faz Antunes Varela e Ribeiro de Faria, seja por via da sua equiparação às hipóteses de
impossibilidade como faz Menezes Leitão, a consequência será a mesma, a extinção da
obrigação com a consequente exoneração do devedor (artigo 790.º, n.º 1 do CC). Temos
de ver se o devedor se mantém ou não obrigado à contraprestação:
 Quanto a isto há quem entenda que não tendo o credor a menor culpa na
verificação da causa que veio frustrar a relação obrigacional, nenhuma razão há
para o considerar vinculado à contraprestação e para não se aplicar o disposto no
artigo 795.º, n.º 1, que estabelece a perda do direito à contraprestação por parte
do devedor desonerado.
 Outros autores, pelo contrário, defendem que apesar de o credor não ter culpa na
frustração do fum da prestação, o facto de a causa dessa frustração se referir mais
a ele do que ao devedor, torna justo que o devedor não perca o direito á
contraprestação. Portanto o risco da frustração do fim da prestação correria por
conta do credor e não por conta do devedor desonerado. Este tipo de situações
não é subsumível a nenhuma das hipóteses do artigo 795.º do CC – o devedor
aprece diante do credor disposto a cumprir, simplesmente a prestação tornou-se
impossível porque o motor ardeu.
 O professor Antunes Varela e a generalidade da doutrina entende que nestes
casos repugnaria ao espírito do artigo 795.º a solução de obrigar o credor a efetuar
a contraprestação, mas também não seria justo que o devedor houvesse que
suportar sem nenhuma compensação as despesas que tenha feito quando a causa
da impossibilidade se registou numa zona de risco que é mais do credor do que
do devedor. Antunes Varela propõe, para resolver estas situações, que se aplique
o disposto no artigo 468.º, n.º 1 do CC, relativo à gestão de negócios – a solução
que no entender deste professor pode e deve extrair-se, por analogia do disposto
no artigo 468.º, n.º 1, é a de reconhecer ao devedor da prestação de serviços que,
sem culpa sua, se tornou impossível, o direito a ser indemnizado quer das
despesas que fez, quer do prejuízo que sofreu.
 Também Batista Machado, Ribeiro de Faria, Menezes Leitão e o professor
Pestana de Vasconcelos defendem que não tem aplicação o artigo 795.º, esta

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

solução é enquadrada no artigo 1227.º, norma enquadrada no regime relativo à


empreitada, com a solução de que o devedor suporta a perda da sua remuneração
mas tem o direito a ser indemnizado pelo trabalho efetuado e despesas realizadas.
Tudo isto se resolve por aplicação do artigo 1227.º do CC: se o contrato em causa
for um contrato de empreitada aplica-se o artigo 1227.º diretamente, se for outro
contrato aplica-se a solução do artigo 1227.º por analogia. Neste caso, estamos
num contrato de empreitada, portanto, aplicamos o artigo 1227.º, com a
consequência que A não terá de pagar o preço da reparação, mas terá direito a ser
reembolsado B das despesas em que tenha incorrido.

Caso n.º 17
A 1 de março de 2014, L vende a M, por € 11.500, os 23 volumes de uma enciclopédia única
muito antiga que havia adquirido, dez anos antes, num alfarrabista. O primeiro obriga-se a
entregar os tomos da referida obra, no domicílio do segundo, quinze dias depois, momento
em que já estariam instaladas as estantes que este havia encomendado a O. Para proceder
à entrega L recorre aos serviços de N, transportador. Durante a realização do transporte, a
carrinha de N, quando estava parada num semáforo, é atingida pelo automóvel de Paulo
que, conduzindo em excesso de velocidade, não conseguiu travar atempadamente. Deste
choque resultou a destruição de 13 volumes da referida enciclopédia.

a) Poderá M, que já havia procedido ao pagamento da totalidade do preço, recusar a entrega


dos restantes 10 volumes que saíram incólumes do acidente e exigir a restituição dos € 11.500
pagos? Qual seria a resposta, se L, livreiro, tivesse vendido os 23 volumes da enciclopédia
Saber Universal editada recentemente pela Editora Livros
& Livros?

Primeira pergunta:
O contrato em causa é um contrato de compra e venda de coisa certa e determinada – uma
enciclopédia única muito antiga. Deste contrato emergem para as partes as seguintes obrigações:
para M emerge a obrigação de pagar o preço (obrigação pecuniária); para L emerge a obrigação
de entrega da enciclopédia vendida (obrigação específica – aquela cujo objeto mediato é
individual ou concretamente fixado).
N é um auxiliar. M pode recursar a entrega dos restantes 10 volumes e pedir a restituição do
preço já pago? Temos aqui uma situação de impossibilidade de realização da prestação.
 Quanto à causa, esta impossibilidade não é imputável ao devedor, mas nos termos do
artigo 799.º, n.º 1, recai sobre o devedor uma presunção legal de culpa do devedor no
incumprimento – cabia a L provar que a impassibilidade da prestação não lhe era
imputável, o que facilmente conseguiria fazer porque o acidente foi provocado por Paulo.
 Quanto ao efeito, estamos diante uma impossibilidade definitiva. É importante notar que
se trata aqui de uma impossibilidade parcial, que atinge apenas uma arte da prestação –
só 13 dos 23 volumes é que são destruídos.
O regime da impossibilidade parcial não imputável ao devedor está previsto no artigo 793.º do
CC. Em caso de impossibilidade parcial não imputável ao devedor, o devedor fica exonerado
mediante a prestação do que for possível. Nos contratos onerosos não seria justo que, diminuindo
a prestação, o credor continuasse vinculado à prestação tal como ela foi estipulada no contrato.
Nesse sentido, o artigo 793.º diz que, no caso de ser cumprida apenas parte da prestação devida
por impossibilidade da restante, se reduza proporcionalmente a contraprestação a que a
contraparte estiver vinculada.
Há situações em que o cumprimento parcial da prestação não tem interesse para o credor porque
à finalidade do contrato só convém a prestação total – é o que acontece no nosso caso. A aquisição

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

desta enciclopédia só interessa a M na medida em que esteja completa. Quando assim seja, é lícito
ao credor nos termos do n.º 2 do artigo 793.º recusar o cumprimento parcial, resolvendo o negócio.
O regime do artigo 793.º, n.º 2 tem de ser conjugado com as regras que regulam risco, que impõem
certos desvios. Tratando-se de contrato de compra e venda de coisa certa e determinada, a
propriedade e o risco transmitiram-se no momento da celebração do contrato (artigo 408.º, n.º 1
e artigo 796.º, n.º 1). O artigo 793.º tem implícita uma regra quanto ao risco – pressupõe que o
risco ainda corre por conta do alienante, mas tratando -se de um CCV de coisa certa e determinada
a propriedade e o risco transmitiram-se por mero efeito do contrato (artigo 408.º, n.º 1 e artigo
796.º, n.º 1). O artigo 796.º, n.º 2 não é aplicável.
Neste caso, M ainda estava a aguardar a instalação das estantes onde iria colocar os volumes da
enciclopédia e disse ao vendedor que a enciclopédia podia ficar consigo até que estante fosse
instalada em sua casa. O termo aqui constituído não foi a favor do alienante, foi no interesse do
adquirente (M). O L é mero depositário da coisa – não seria justo que ele corresse o risco do seu
perecimento. Aplica-se o artigo 796.º, n.º 1, que diz que Nos contratos que importem a
transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre
ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por
conta do adquirente. O risco corria por conta de M neste caso e como o risco corre por sua conta
M não vai ter direito à restituição do preço e não tem qualquer justificação para recusar a prestação
dos 10 volumes que saíram incólumes do acidente. Se ele recusar a prestação incorre em mora do
devedor (artigos 813.º e ss do CC), com todas as consequências que daí advêm.
M, enquanto proprietário da enciclopédia, foi lesado no seu direito de propriedade – há uma
violação ilícita do seu direito de propriedade – portanto, M podia enquanto proprietário da
enciclopédia parcialmente destruída, teria nos termos gerais da responsabilidade civil
extracontratual (artigo 483.º), direito a ser indemnizado por Paulo pela sua conduta que lhe causou
danos.

Segunda pergunta:
Estamos a falar de uma enciclopédia editada recentemente. Neste caso, já não estaríamos perante
uma compra e venda de uma coisa certa e determinada, portanto, sobre L já não recairia uma
obrigação específica, mas sim uma obrigação genérica – o objeto da prestação estaria apenas
determinado pelo seu género e quantidade. Portanto, haveria que aplicar as regras que regulam
esta modalidade de obrigações, os artigos 539.º e ss do CC. Quanto às obrigações genéricas, a
propriedade e o risco transferem-se no momento da concentração da obrigação. A concentração
da obrigação dá-se no momento do cumprimento (artigo 541.º do CC). Neste caso, o cumprimento
dar-se-ia com a entrega dos 23 volumes que compõem a enciclopédia no domicílio de M na data
acordada.
Aquando da destruição dos 13 volumes da enciclopédia, a concentração ainda não se teria dado,
o que significa que o risco do perecimento da coisa correria ainda por conta do vendedor, que
teria de o suportar. Nos termos do artigo 540.º, enquanto houver coisa dentro do género fixado,
não fica o devedor exonerado pelo facto de terem perecido as coisas com que ele se dispunha a
cumprir. Tendo em conta que aqui a enciclopédia foi editada recentemente, não se colocaria em
princípio o problema da extinção do género e, portanto, L continuaria adstrito ao vínculo
obrigacional, deveria cumprir com outra enciclopédia que tivesse em depósito ou então, se não
tivesse nenhuma, deveria adquirir outra à editora.
Teríamos aqui um atraso no cumprimento, o devedor não consegue cumprir na data acordada para
o efeito. Há aqui mora, mas esse atraso no cumprimento não é imputável ao devedor, o que
determinaria a aplicação do regime do artigo 792.º, que diz que se a impossibilidade for
temporária o devedor não responde pela mora no cumprimento. Portanto, em suma, não lhe sendo

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

imputável a causa do incumprimento, L não responderia pelos danos que a mora trouxesse a M,
mas não ficaria exonerado da obrigação, tendo de cumprir com outra enciclopédia (ou lhe dava
uma que tivesse em stock ou então teria de adquirir outra à editora).

b) Quid iuris se todos os volumes da enciclopédia fossem destruídos no acidente e este se


ficasse a dever a uma condução descuidada de N?
Temos aqui um contrato de compra e venda de coisa certa e determinada. Com a destruição de
todos os volumes de uma enciclopédia única, temos uma situação de impossibilidade total e
definitiva. Quanto à causa: nos termos do artigo 799.º, n.º 1, cai sobre o devedor uma presunção
legal de culpa. Aqui a impossibilidade da prestação ficou a dever-se a N – o N é um transportar a
quem L recorrer para o cumprimento da obrigação. Nos termos do artigo 800.º, n.º 1, o devedor é
responsável perante o credor pelos atos das pessoas que utilize para a realização da obrigação
como se os atos de N fossem praticados por L. Tendo o N atuado com culpa, o L não conseguiria
ilidir a presunção de culpa que sobre ele recai e quanto à causa estamos perante uma
impossibilidade imputável ao devedor. Portanto, aplicam-se as regras dos artigos 798.º a 803.º
do CC.

Que direitos é que a lei coloca à disposição do credor numa situação destas?
 O efeito fundamental do incumprimento imputável ao devedor consiste na obrigação de
indemnizar o prejuízo causado ao credor (798.º e 801.º, n.º1), sendo que este prejuízo
abrange todo o interesse contratual positivo, isto é, todo o interesse que resultaria para o
credor do cumprimento total do contrato. Portanto, abrange não só o equivalente da
prestação, como também a reparação dos prejuízos provenientes da inexecução, de modo
a colocar-se o credor na situação em que estaria se a obrigação tivesse sido cumprida/ se
o contrato tivesse sido integral e pontualmente cumprido. Para que haja obrigação de
indemnizar, tem de estar verificados os seguintes requisitos: facto voluntário, culpa,
ilicitude, dano, nexo de causalidade entre o facto e o dano. Os pressupostos são os
mesmos da responsabilidade civil extracontratual.
 Os direitos do credor em virtude da impossibilidade culposa não se esgotam no direito à
indemnização pelos danos por ele sofridos, ele tem ainda o direito de resolver o
contrato. Tornando-se a prestação impossível por causa imputável ao devedor, sendo a
prestação bilateral, o credor pode ainda resolver o contrato (artigo 801.º, n.º 2). A
resolução opera-se por meio de declaração uniliteral receptícia do credor (artigo 436.º)
que se torna irrevogável quando chega ao poder do devedor ou quando é dele conhecida.
Com a resolução do contrato, pode cumular-se uma indemnização – é o que resultado do
artigo 801.º, n.º 2. A questão que aqui surge, e que tem gerado controvérsia na doutrina,
é a questão de saber como se calcula o valor dessa indemnização, calcula-se pelo valor
contratual positivo ou negativo?
 Segundo aquela que é a posição tradicional (Antunes Varela, Almeida Costa,
mota Pinto, Menezes Leitão, Calvão da silva), havendo incumprimento definitivo
imputável ao devedor, o credor pode fazer uma de duas coisas:
i. Pode exigir ao devedor uma indemnização com um interesse contratual
positivo caso em que se mantenha vinculado à realização da
contraprestação;
ii. Pode resolver o contrato, consoante os casos, a resolução terá um efeito
liberatório, se o credor ainda não tiver realizado a contraprestação não
tem mais de o fazer, ou mero efeito restitutório, se o credor já realizou a
contraprestação, ele pode exigir a sua restituição.
Para os adeptos desta doutrina, se o credor optar pela resolução do contrato terá
direito apenas a uma indemnização pelo interesse contratual negativo, isto é, do
prejuízo que teve com o facto de se celebrar o contrato/ do prejuízo que não

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

sofreria se o contato não tivesse sido celebrado. A justificação que é apresentada


para esta posição é a de que não é possível compatibilizar a resolução do negócio
que destrói retroativamente o negócio (433.º e 434.º) com uma indemnização que
visa colocar o credor na situação em que estaria se o contrato tivesse sido
cumprido. O que esta doutrina diz é que não é possível conciliar estas duas ideias.
 De acordo com uma conceção mais recente, defendida por Batista Machado, Vaz
Serra, Ribeiro de Faria, Menezes Cordeiro, Pestana de Vasconcelos, a resolução
do contrato não implica necessariamente que a indemnização pedida nos termos
do artigo 801.º, n.º 2 seja pelo interesse contratual negativo. Para estes autores é
possível resolver um negócio e exigir uma indemnização pelo interesse contratual
positivo – as duas coisas não se excluem. Para esta parte da doutrina, a resolução
tem, além dos efeitos liberatório ou restitutório, também uma função
reintegradora do programa contratual que foi perturbado. O direito de resolução
decorre da rotura do sinalagma e não exclui uma indemnização pelo interesse
contratual positivo. Com a resolução converte-se a relação contratual numa
relação de liquidação, e estes autores dizem que os resultados económicos para o
credor não devem ser diferentes consoante ele decida resolver ou não o contrato.
Para não efetuar a contraprestação ou para reaver ele tem de resolver o contrato.
Resolvido o contrato, ele deve ter ainda a possibilidade exigir uma indemnização
pelo interesse contratual positivo, contudo descontada o valor da contraprestação
que ele ou não realizou ou obteve de volta.

No fundo, a grande diferença esta na forma de cálculo da indemnização que se pode cumular com
o direito de resolução do contrato.

c) Quid iuris se L entregasse a N a enciclopédia para o transporte somente no dia 18 de


março e a carrinha de N, quando estava parada numa estação de serviço, fosse assaltada e
todos os volumes destruídos?
Temos aqui uma obrigação com prazo certo, nos termos do artigo 805.º, n.º 2, al. a), o que significa
que logo que vencida a obrigação e não cumprido o devedor, ele fica constituído em mora. A
mora é um atraso culposo no cumprimento da obrigação. Presume-se a culpa do devedor na falta
do cumprimento (799.º, n.º 1). Decorrido o prazo sem que a obrigação da entrega da coisa vendida
seja cumprida, e sem que exista um motivo legitimo para tal, o L incorre em mora nos termos e
para os efeitos do artigo 804.º e ss.

A mora tem dois efeitos fundamentais:


1. Por um lado, obriga o devedor a reparar os danos que causa ao credor pelo atraso
no cumprimento (artigo 804.º, n.º 1).
2. Por outro lado, lança sobre o devedor o risco da impossibilidade da prestação
(artigo 807.º, n.º 1). Este segundo efeito assume particular relevância.
Pelo facto de estar em mora, o L fica responsável pelo prejuízo que o M tiver da perda ou
deterioração daquilo que tiver de entregar mesmo que esses factos não lhe sejam imputáveis. Só
assim não será se conseguir provar que perda ou destruição da coisa se teria verificado na hipótese
de a prestação ter sido pontualmente cumprida (relevância negativa da causa virtual). Em virtude
da mora do devedor, há uma inversão do risco – o risco aqui já correria por conta do L e, assim,
o L terá de suportar as consequências da perda da enciclopédia vendia, cabendo-lhe indemnizar o
M dos danos que decorrem para ele dessa perda.

96
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

Caso n.º 18
A vende a B 10 computadores marca CVB daqueles que têm em armazém. A obriga-se a
entregá-los no estabelecimento de B no dia 1/6. Para o efeito, contrata o camionista C. Este,
em excesso de velocidade, despista o camião, levando a que pereçam os computadores
transportados.

a) Analise a posição de B.
Temos um contrato de compra e venda: para B emerge a obrigação de pagar o preço e para A
emerge a obrigação de entrega dos computadores. Neste caso, temos uma obrigação genérica a
prazo: o objeto da prestação encontra-se determinado pelo seu género (marca CVB) e pela sua
quantidade (10 computadores) e foi convencionado um prazo para a entrega dos comutadores
(1/6). A concentração da prestação dá-se com o cumprimento (artigo 541.º), que neste caso seria
com a entrega dos comutadores no estabelecimento de B no dia 1 de junho, momento em que se
transmitiriam a propriedade e o risco. Para o cumprimento da obrigação, A serve-se de um
auxiliar, C, a quem confia o transporte da mercadoria. Acontece que, em virtude de condução em
excesso de velocidade, E despista o camião e causa o perecimento dos computadores
transportados numa altura em que a concentração ainda não se tinha dado.

Assim sendo, temos uma situação de incumprimento da prestação uma vez que os
computadores não vão ser entregues na data convencionada para o efeito. Sobre o devedor recai
uma presunção legal de culpa pelo incumprimento (artigo 799.º, n.º1), sendo o devedor
responsável pelos atos dos seus auxiliares como fossem seus os atos (artigo 800.º, n.º 1), e tendo
sido C o responsável pelo despiste, o A não conseguiria afastar a presunção legal e, por isso,
temos um incumprimento imputável ao devedor.

Não entregando culposamente na data acordada, A incorre em mora (artigo 805.º). O atraso
culposo no cumprimento vai constituir no A a obrigação de reparar os danos moratórios que o B
haja eventualmente sofrido (artigo 804.º, n.º 1). A menos que o género se tenha extinguido, e nada
no enunciado nos permite concluir nesse sentido, não fica o devedor exonerado pelo facto de
terem perecido os computadores com que ele se dispunha a cumprir – ele vai continuar vinculado
à entrega de 10 computadores daquela marca.

Em suma, A continua adstrito ao cumprimento da obrigação, deve selecionar outros 10


computadores daquela marca que tem em armazém e entregá-los no domicílio do B logo que
possível. E em virtude da mora, está também obrigado a indemnizar B pelos danos moratórios
que tenha eventualmente sofrido.

b) Suponha que C tivesse chegado ao estabelecimento de B na data acordada, mas este, por
esquecimento, não se encontrasse no estabelecimento. No caminho de volta, C sofre um
acidente por, negligentemente, exceder o excesso de velocidade permitido, com a destruição
dos computadores transportados?
B, uma vez que não está lá para receber a prestação, incorre em mora do credor. Já vimos que
estamos perante uma obrigação genérica e a concentração só se dá com o cumprimento da
obrigação na data acordada, mas nessa data B por esquecimento não está lá para receber a
prestação. Embora a realização da prestação consista num dever do devedor, ela carece em regra
também da colaboração do credor e, neste caso, a prestação só não se realiza por causa imputável
a B e por isso estamos perante um caso de mora do credor (artigo 813.º do CC – O credor
incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos
termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.). O
esquecimento não consubstancia um motivo justificado para não receber a prestação e, por isso,
ele corre em mora.

Os efeitos que a lei associa à mora do credor são vários:


 Concentração da obrigação genérica (artigo 541.º do CC) – a propriedade e o risco
transferem-se porque a obrigação concentra-se;

97
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

 Atenuação da responsabilidade do devedor (artigo 814.º);


 A especial oneração do credor em matéria de risco (artigo 815.º);
 Direito de indemnização do devedor pelos encargos e despesas a mais que a mora do
credor lhe acarrete (artigo 816.º).

O devedor tem de trazer de volta os computadores que, por força da concentração da obrigação,
já pertencem a B. No regresso os computadores acabam por perecer devido a um acidente
negligentemente causado por C. Desde o momento que o credor incorre em mora, o devedor passa
responder apenas quanto à guarda e conservação da coisa pelos danos que provem com dolo. Isto
percebe-se porque ele, no fundo, foi ilegitimamente convertido num depositário forçado da coisa
– o legislador estabelece no artigo 814.º que, a partir do momento da mora do credor, o devedor
responde apenas quanto à guarda e conservação da coisa quanto aos danos que provém do seu
dolo. A lei estabelece um padrão de diligência que é quase nulo (ele só responde por ações dolosas
e não pelas ações negligentes).

Como C apenas atua com negligência, o devedor não responderá. O professor Menezes Leitão diz
que não é aplicável a presunção de culpa do artigo 799.º, n.º 1, cabendo antes ao credor, que está
em mora, demonstrar que o devedor atua intencionalmente na destruição do objeto da prestação.

A mora do credor agrava ainda a posição do credor em matéria de risco pela impossibilidade
superveniente da prestação (artigo 815.º). Ocorrendo a mora do credor, o risco da impossibilidade
da prestação passa a correr sempre por conta do credor, mas para além disso o risco da
impossibilidade da prestação alarga-se na medida em que, por força da atenuação da
responsabilidade do devedor (artigo 814.º), passa a ser considerado como risco da prestação a
correr por conta do credor a situação e a impossibilidade superveniente da prestação resultando a
negligência do devedor, como é o nosso caso. Mesmo perdendo totalmente o seu crédito por
impossibilidade superveniente, B, credor em mora, não vai ficar desonerado da contraprestação,
ele vai ter de pagar o preço embora, caso o credor tenha algum benefício com a extinção da sua
obrigação, possa o valor desse benefício ser descontado na contraprestação (artigo 815.º, n.º 2).

c) Suponha ainda que B não entrega os computadores na data acordada. Face à exigência
de A para que proceda à entrega, B não o faz. Pode A, de imediato, resolver o contrato?
Tendo a obrigação prazo certo, não é necessária interpelação para que haja mora. A mora verifica-
se logo que vencida a obrigação o devedor não cumpra (artigo 805.º, n.º 2, al. a) do CC). Temos
aqui um retardamento da prestação que se presume ser culposo nos termos do artigo 799.º, n.º 1
que estabelece uma presunção de culpa do devedor na falta de cumprimento. Cabe a B demonstrar
que teve um motivo legítimo para não cumprir, sob pena de sarcar com os efeitos da mora do
devedor (artigos 804.º e ss). B não apresenta qualquer justificação para a falta de cumprimento.
Portanto, estamos perante um caso de mora culposa do devedor. O devedor incorre em mora
quando, por causa que lhe seja imputável, não realiza a prestação no tempo devido, continuando
a prestação a ser ainda possível. A questão que aqui se coloca é a de saber se A pode de imediato
resolver o contrato.

Há casos em que tendo a prestação prazo certo, o facto de ela não ser realizada no tempo decido
faz com que o credor perca todo o interesse na prestação (exemplo do vestido de noiva que não é
entregue antes do casamento). Quando assim seja, a mora equivale desde logo ao não
cumprimento definitivo (artigo 808.º, n.º 1, 1ª parte) – o credor pode nesses casos resolver de
imediato o contrato. Nestes casos de obrigações com prazo certo, o retardamento equivale ao
incumprimento definitivo e o credor pode resolver de imediato. Não basta uma perda subjetiva de
interesse na prestação, é necessário que essa perda de interesse transpareça uma perda objetiva
imediata na prestação (artigo 808.º, n.º 2). Mas este caso não parece ser uma perda objetiva
imediata de interesse na prestação.

A simples mora não dá, em princípio, direito à resolução do contrato. O credor pode, sobretudo
nos contratos bilaterais, ter um interesse legítimo em libertar-se do vínculo que recai sobre ele na

98
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

hipótese de o devedor não cumprir em tempo oportuno. Não seria justo nem razoável mantê-lo
indefinitivamente aprisionado/vinculado à sua contraprestação. Portanto, o legislador, sensível a
este compreensível interesse do credor, atribui-lhe no artigo 808.º, n.º 1, 2ª parte o poder de fixar
ao devedor que haja incorrido em mora um prazo para além do qual declarada que considera a
obrigação como não cumprida, convertendo assim mora em incumprimento definitivo, o que lhe
abre a porta aos direitos provenientes do incumprimento definitivo, designadamente ao direito de
resolver o contrato.

Em conclusão, não tendo havido uma perda objetiva de interesse, A não pode, em princípio,
resolver o contrato com base numa simples mora do devedor. Caso pretenda resolver o contrato,
terá de converter a mora em incumprimento definitivo através de uma interpelação
cominatória/admonitória, concedendo ao devedor uma derradeira possibilidade de cumprir dentro
de um prazo razoavelmente fixado para o efeito.

Caso n.º 19
A vende a B 10 computadores RTE daqueles que tinha em stock. Ficou acordado que os
computadores deveriam ser entregues a B no dia 1 de junho. A 30 de maio, por descuido do
vigilante da empresa de A que deixou o portão do armazém aberto, este é assaltado,
sobrando só 7 computadores que os assaltantes não conseguiram transportar. A pretende
entregar estes 7 computadores a B, reduzindo proporcionalmente o preço. B não aceita.

a) Tem razão? Quais os seus meios de defesa.


Em casos destes, devemos perceber o contrato em causa e que obrigações é que emergem às partes
e classificar as obrigações porque isso vai ter implicações ao nível da transmissão da propriedade.
Neste caso, a obrigação que recai sobre A é uma obrigação genérica de género limitado. Depois
temos de classificar o incumprimento. Estamos perante uma situação de incumprimento. Quanto
ao efeito, esta impossibilidade é definitiva e parcial. Quanto à causa, é imputável ao devedor – há
uma presunção de culpa, isto é, o devedor responde pelos atos dos seus auxiliares como se fossem
por si praticados (artigo 800.º) e o vigilante atuou negligentemente.

B tem a obrigação de pagar o preço (obrigação pecuniária) e A tem a obrigação da entrega da


mercadoria, que é uma obrigação genérica de género limitado – o objeto da obrigação encontra-
se determinado apenas quanto ao género e quantidade – e trata-se ainda de uma obrigação a prazo
certo porque os computadores tinham data para serem entregues.

A questão que se coloca é a de saber se B pode licitamente recusar a prestação e não pagar o
preço, pois o que acontece aqui A apenas quer entregar os 7 computadores que sobraram do
assalto. Temos aqui um caso de impossibilidade de realização da prestação:
 Quanto à causa, temos uma impossibilidade imputável ao devedor – sobre o devedor recai
uma presunção de culpa no incumprimento (artigo 799.º, n.º 1). Tendo o assalto ficado a
dever-se a um comportamento negligente do vigilante da empresa e sendo que o devedor
é responsável perante o credor pelos atos dos seus auxiliares como se esses atos fossem
praticados por si (artigo 800.º), A não conseguira ilidir a presunção de culpa com que a
lei o onera. Temos, portanto, uma impossibilidade culposa.
 Quanto ao efeito, temos uma impossibilidade definitiva. A entrega dos 10 comutadores
não é mais possível porque a obrigação assumida por A é uma obrigação genérica
limitada aos comutadores existentes em stock. No armazém, após o assalto, restaram
apenas 7 computadores. É também uma impossibilidade meramente parcial porque atinge
apenas parte da prestação.

Tratando-se de uma impossibilidade definitiva e parcial imputável ao devedor, aplica-se o regime


do artigo 802.º do CC. O regime aplicável à impossibilidade parcial imputável ao devedor
corresponde em larga medida ao regime fixado à impossibilidade parcial não imputável ao
devedor, mas a diferença principal reside no facto de aqui o devedor ficar obrigado a indemnizar
o credor pelo prejuízo causado, o que não acontece quando a impossibilidade parcial não é

99
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

imputável ao devedor. O credor pode, em certos termos, optar pela resolução do negócio ou pelo
cumprimento da parte possível da prestação, reduzindo a sua contraprestação se ainda a não tiver
realizado ou restituir a parte que prestou no caso contrário. A diferença entre as duas variantes de
impossibilidade parcial não se esgota no direito à indemnização, também no que toca à opção da
resolução do contrato temos uma diferença importante:
 Se a impossibilidade parcial não é imputável ao devedor, o credor só vai poder resolver
o contrato quando justificadamente não tiver interesse no cumprimento parcial da
obrigação.
 Sendo a impossibilidade parcial imputável ao devedor, o credor pode sempre resolver o
contrato, mas não lhe será lícito fazê-lo se a parte da prestação abrangida pela
impossibilidade tiver um relevo insignificante para a satisfação do seu interesse (artigo
802.º, n.º 2).

Quando a impossibilidade não é imputável ao devedor, o credor só poderá resolver o contrato


quando justificadamente não tenha interesse no cumprimento parcial. Neste caso, aplica-se o
artigo 802.º do CC: não parece que a impossibilidade parcial tenha escassa importância, portanto,
B poderia resolver o contrato e não ter de realizar a sua contraprestação e ainda pedir uma
indemnização pelos danos que o incumprimento lhe haja causado.

b) A solução seria a mesma, se os computadores tivessem sido destruídos por um incêndio


fortuito, só restando os referidos 7?
Temos ainda uma obrigação genérica de género limitado e temos ainda uma impossibilidade
definitiva e parcial, mas agora a impossibilidade não é imputável ao devedor, os computadores
foram destruídos por um incêndio fortuito.

Nas obrigações genéricas a concentração ocorre, em regra, no momento do cumprimento, ou seja,


neste caso isso seria com a entrega dos computadores a B no dia 1 de junho. Contudo, há casos
em que a concentração se dá antes do cumprimento e o artigo 541.º do CC diz-nos quais são esses
casos. Portanto, nestes casos, quando o género se extinguir a ponto de restar apenas uma das
coisas nele compreendidas, a obrigação concentra-se antes do cumprimento. Convém notar que,
apesar do que a letra da lei sugere, não é preciso que se opere uma destruição do género até ao
ponto de apenas restar uma das coisas nele compreendidas, basta que sobre a quantidade igual ou
inferior à que é devida para termos a concentração da obrigação. Portanto, com o incêndio dá-se
a extinção parcial do género que alimenta a prestação, restando uma quantidade inferior à que é
devida – são devidos 10 e sobram apenas 7 –, pelo que a obrigação se tem por concentrada naquele
momento. Nota: se o género não tivesse sido limitado aos bens em stock o vendedor não ficaria
desonerado pela obrigação por terem perecido as coisas com que ele contava cumprir, ele teria de
adquirir outros computadores do género para os entregar ao comprador e caso a obrigação não
fosse cumprida na data acordada haveria apenas um caso de mora (incumprimento temporário).
Portanto, será para este aspeto que parcialmente relevam as obrigações de género limitado.

Estando em causa uma impossibilidade definitiva parcial não imputável ao devedor, aplicamos o
regime do artigo 793.º do CC – este regime tem de ser conjugado com as regras relativas ao risco
quando esteja em causa um contrato que implique a transferência de um direito real. Aquando do
incêndio ainda não se tinha dado a concentração da obrigação genérica e, portanto, a propriedade
e o risco ainda não se tinham transmitido e o risco do perecimento da coisa corre por conta do
alienante/vendedor, A, portanto, B pode lançar mão do artigo 793.º:
 Exigir o cumprimento parcial com redução proporcional do preço;
 Resolução do negócio se conseguir demonstrar que justificadamente não tem interesse na
prestação parcial.

Nota: quando resolvemos o caso prático 17, alínea a) chegámos à conclusão de que o comprador
não podia reduzir o preço ou querer, porventura, reavê-lo todo, resolvendo o contrato porque o
risco é todo da sua conta a partir da compra. Constatámos então que a aplicação do artigo 793.º

100
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

pressupõe que a transferência do risco ainda não se tinha operado, isto é, que o risco ainda corre
por conta do alienante. Neste caso, aquando da destruição dos computadores pelo incêndio, ainda
não se tinha operado a transmissão da propriedade e do risco – os computadores ainda pertenciam
a A e o risco corria ainda por sua conta e, por isso, tem aplicação o artigo 793.º, que permite o
cumprimento parcial com redução proporcional da contraprestação.

No entanto, do enunciado extraímos que B não está interessado no cumprimento parcial com a
redução proporcional da contraprestação, e por isso ganha relevância o disposto no artigo 793.º,
n.º 2 do CC, podendo assim o credor resolver o contrato. Assim, cabia a B, não tendo interesse
em receber os 7 computadores alegar e provar a perda objetiva de interesse no cumprimento
parcial. Ele tinha de demonstrar que o cumprimento parcial da prestação não tinha interesse para
ele porque à finalidade do contrato só convinha a prestação total. Parece que até conseguisse fazer
essa prova.

Caso n.º 20
A, grossista, obriga-se a fornecer ao supermercado B, 5 toneladas de laranjas, no valor de €
25.000 para serem vendidas a Festa da Fruta que se irá realizar, durante o fim-de-semana
de 24 e 25 de maio, nesse supermercado. A iniciativa foi muito publicitada, através da
distribuição de panfletos e de spots nas rádios locais. Como contrapartida, o supermercado
B entregaria a A um camião usado no valor de € 30.000. A, no entanto, não entrega as
laranjas nos dois dias de festa, em virtude de dificuldades no escoamento do produto,
oferecendo-se, no entanto, para o fazer mais tarde. A dita festa realiza-se, apesar de tudo,
com outras variedades de fruta.

a) Quid iuris, sabendo que B, na festa, teria podido vender as 5 toneladas de laranjas por €
50.000 no referido evento, e se não tivesse celebrado esse negócio teria podido vender o seu
camião a C por € 35.000?
Estamos perante um contrato de permuta/troca, que é o contrato que tem por objeto a transferência
recíproca da propriedade de coisas ou outros direitos entre os contraentes. Não é um contrato
legalmente típico, não está regulado no CC. O grossita assume uma obrigação genérica a prazo –
esta obrigação não é cumprida no tempo devido. Quanto à causa, estamos perante um
incumprimento imputável ao devedor – sobre o devedor recua uma presunção de culpa na falta
do cumprimento (artigo 799.º, n.º 1) e a justificação que A apresenta não parece ser suficiente
para afastar a presunção de culpa. Quanto ao efeito, este incumprimento é definitivo – a obrigação
do grossista era uma obrigação de prazo ou termo essencial, o que significa que o decurso do
prazo arrasta consigo a perda de interesse do credor na prestação. Não há pois um mero
retardamento, estas situações são tratadas ela lei como significando uma forma de não
cumprimento definitivo (artigo 808.º, n.º 1, 1ª parte + n.º 2). Portanto, estamos perante uma
situação em que o não cumprimento no tempo devido acarreta perda de interesse do credor na
prestação e, portanto, a mora equivale desde logo ao não cumprimento definitivo (artigos 798.º e
801.º).

Direitos que a lei confere ao credor nesta situação:


 Um dos efeitos do não cumprimento definitivo o imputável ao devedor consiste na
obrigação de indemnizar os prejuízos causados ao credor (artigos 562.º e ss). Trata-
se aqui de uma indemnização pelo interesse contratual positivo (interesse de
cumprimento), que abrange não só o equivalente à prestação como também a cobertura
pecuniária dos prejuízos restantes provenientes do incumprimento, de modo a colocar-se
o credor na situação económica em que ele estaria se a obrigação tivesse sido
pontualmente cumprida. Têm de estar previstos os 5 requsitios da responsabilidade civil
extracontratual para que se possa indemnizar (artigo 483.º): ato voluntário, ilicitude,
culpa, dano, nexo de causalidade.
 Direito de resolução do contrato – se a obrigação se inserir num contrato bilateral e o
contrato de troca é um contrato bilateral sinalagmático, o incumprimento definitivo dá

101
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

lugar a um direito de resolução do contrato nos termos do artigo 801.º, n.º 2. Se a


obrigação tiver por fonte um contrato bilateral, o credor pode resolver o contrato e a
resolução opera nos termos dos artigos 432.º e ss (remissão entre estes artigos), através
da declaração do credor ao devedor. O artigo 801.º, n.º 2 permite, como resulta
expressamente da sua letra, a acumulação de uma indemnização com o direito de
resolução. O problema que surge aqui é saber se esta indemnização de que fala o artigo
802.º, n.º 1 é feita pelo interesse contratual negativo, como sustenta a doutrina tradicional,
ou se é pelo interesse contatual positivo, como sustenta a doutrina moderna.

Não é indiferente a tese a que se adere neste caso:


 De acordo com a tese tradicionalmente defendida entre nós, se o devedor faltar
culposamente ao cumprimento, o credor ficará com duas vias à sua escolha:
i. Exigir ao devedor uma indemnização por perdas e danos pelo interesse
contratual positivo, mas mantendo-se vinculado à contraprestação. Ou seja,
aplicando isto ao nosso caso prático, caso B opte por trilhar esta via, ele vai-se
manter vinculado à entrega do camião, mas vai poder exigir uma indemnização
pelo interesse contratual positivo, ou seja, no valor de 50 000€, que é o valor que
B obteria se o contrato tivesse sido pontualmente cumprido.
ii. Resolver o contrato – neste caso, temos de distinguir:
 Se B não tiver feito a contraprestação, pode retê-la, ou seja não tem de
entregar o camião;
 Se já tiver realizado a prestação, pode exigir a sua restituição – optando
por esta via, B, em termos de indemnização, ele será indemnizado apenas
pelo interesse contratual negativo/de confiança, ou seja, terá direito
apenas a uma indemnização que visa colocá-lo na situação económica
em que se encontraria se não tivesse celebrado o contrato que agora está
a resolver. A justificação que a doutrina tradicional apresenta para
sustentar esta solução é a seguinte: optando o credor pela resolução do
contrato, não faria sentido que ele pudesse exigir do devedor o
ressarcimento do benefício que normalmente lhe traria a execução do
contrato. No fundo, a doutrina tradicional tem dificuldades em
compatibilizar a indemnização do contrato pelo interesse contratual
negativo com a resolução.
Se B não tivesse celebrado o contrato de troca, ele teria celebrado um negócio
alternativo, que era vender o camião a C, logo, ele teria conseguido obter 35 000€
pela venda o camião, tendo um lucro de 5 000€. B teria, assim, direito a uma
indemnização no valor de 5 000€, isto é, o lucro que deixou de obter pela
vinculação ao contrato resolvido.
 Doutrina moderna: segundo o professor Batista Machado, a opção pela via da resolução
não exclui necessariamente o direito à indemnização pelo interesse contratual positivo.
Aqui importa fazer a seguinte distinção:
 Casos em que já houve realização da contraprestação: se B já tiver realizado a
contraprestação e não tiver interesse em reavê-la, nesse caso ele pode exigir ao
devedor uma indemnização pelo interesse contratual positivo – a chamada grande
indemnização. Nesse caso, ele terá direito a uma indemnização de 50 000€. Se B já
tiver realizado a contraprestação e a quiser de volta, para o efeito ele vai ter de
resolver o contrato, mas continuará a ter direito a uma indemnização pelo interesse
contratual positivo, apenas haverá que descontar o valor da contraprestação que ele
vai obter de volta e, por isso, ele tem direito à chamada pequena indemnização ou
indemnização descontada – continua a ter direito a uma indemnização pelo interesse
contratual positivo, mas como vai obter de volta a contraprestação, temos de
descontar o valor da contraprestação. Então, ele terá direito a 20 000€ (subtrair aos
50 000€ das laranjas o valor do camião, que vale 30 000€).

102
Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

 Casos em que ainda não houve realização da contraprestação: uma vez que se deu a
extinção da obrigação de entregar a fruta e que há um nexo sinalagmático entre essa
obrigação e a obrigação de entregar o camião, esta última também se extinguiu, ou
seja, B não está obrigado a entregar o camião embora possa fazê-lo se quiser, isto
segundo Batista Machado. Ele não vai ter de resolver o contrato para poder reter a
contraprestação, o incumprimento definitivo de uma das obrigações provoca por
força da rutura do sinalagma a desvinculação de B – o professor Vaz Serra discorda,
pois considera que o credor tem sempre se resolver o negócio para reter a
contraprestação. Mas voltando ao entendimento de Batista Machado, neste caso, B
vai ter direito mais uma vez a uma indemnização pelo interesse contratual positivo,
contudo, como ele retém o camião é preciso descontar o seu valor e, portanto, ele só
vai ter direito à pequena indemnização no valor de 20 000€ (50 000€ - 30 000€). Se
B quiser, ainda não o tendo feito, entregar o camisão por não ter interesse a ficar com
ele, ele terá direito a uma indemnização pelo interesse contratual positivo no valor de
50 000 € (grande indemnização).

Nota: no exame temos de fazer alusão às duas doutrinas e aplicá-las, muito embora possamos
aderir àquela que faz mais sentido para nós.

No fundo, quanto à doutrina mais moderna, a lógica que sustenta a sua posição é de que o credor
deve poder optar por uma e outra solução e ambas devem produzir resultados económicos
semelhantes. Ele não deve ficar melhor ou pior por selecionar uma em detrimento de outra. Deve
haver uma escolha e só há uma escolha se ambas representarem um equivalente em termos
económicos.

Quando é que ele terá interesse em realizar a contraprestação e quando é que não terá interesse
em realizar a contraprestação? Ele muitas vezes poderá não querer realizar a contraprestação
quando tiver fundadas dúvidas da solvência do devedor porque se o devedor não puder realizar a
grande indemnização, mais vale ficar com a sua contraprestação e depois não a realizar.

b) Suponha agora que António vendera ao supermercado 5 toneladas de laranjas que


deveria entregar no dia 15 de maio nas instalações deste. António dirige-se às referidas
instalações, na data marcada, para entregar aí a mercadoria, conforme fora acordado.
Como o supermercado estava encerrado e ninguém se encontrava lá para
receber a mercadoria, o grossista teve, então, que proceder ao transporte de regresso ao seu
estabelecimento e de efetuar o respetivo acondicionamento, no que despendeu um total de €
1.500. Passado um dia, um temporal atingiu a região onde se situava o armazém onde a
fruta se encontrava, provocando a sua destruição. Quid iuris?
Temos uma situação de mora do credor nos termos do artigo 813.º. O cumprimento da obrigação
falha por motivo imputável ao credor – a realização da prestação, em regra, vai necessitar da
colaboração do credor. Para termos uma situação de mora do credor têm de estar verificados os
seguintes requisitos:
 Incumprimento por motivo imputável ao credor;
 É necessário que o tenha feito sem motivo justificado.

O esquecimento não constitui uma causa justificativa para a não cooperação/colaboração, e isto
em nenhuma das conceções, portanto, a mora é culposa e nesse caso aplicam-se os artigos 813.º
e ss e os efeitos previstos nos artigos 814.º e ss:
 Atenuação da responsabilidade do devedor, que passa a responder apenas quanto à
guarda e preservação da coisa pelos danos que provenham do seu dolo (artigo 814.º). Não
há nada no enunciado que nos indique nesse sentido. No entanto, supondo que ele colocou
as laranjas num sítio impróprio – nessa hipótese haveria culpa, mas ele não responderia
pelos danos causados porque o devedor a partir da mora do credor só responde pelo seu
dolo e não por mera culpa.

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Direito das Obrigações - Turmas 3 e 4

 Oneração do credor com o risco da impossibilidade superveniente da


contraprestação (artigo 815.º) e, assim, B não fica desonerado da contraprestação ainda
que tenha perdido totalmente o seu crédito por impossibilidade supervivente da
contraprestação. O risco corre por sua conta e portanto ele tem de entregar na mesma o
camião.
 O credor fica obrigado a indemnizar o devedor das maiores despesas que ele fez a
conservação e com a guarda do respetivo objeto (artigo 816.º) – B vai ter de pagar uma
indemnização a A que cubra as despesas adicionais em que A incorreu com o transporte
de regresso ao estabelecimento e com o acondicionamento da mercadoria, no valor total
de 1 500€.

Como temos uma obrigação genérica, a mora do credor tem por consequência, nos termos do
artigo 541.º, a concentração da obrigação.

Nota: comparar esta alínea do caso prático com a alínea b) do caso prático 18, em que tínhamos
uma situação de mora do credor, mas temos uma diferença em que aqui a questão foi uma questão
de risco (artigo 815.º), mas no caso anterior o aplicámos o artigo 814.º (atenuação da
responsabilidade do devedor).

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