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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Eduardo Rodrigues Evangelista

O NEOCONSTITUCIONALISMO COMO FUNDAMENTO JURÍDICO DO ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SEUS REFLEXOS SOBRE O PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE

Mestrado em Direito

SÃO PAULO
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP

Eduardo Rodrigues Evangelista

O NEOCONSTITUCIONALISMO COMO FUNDAMENTO JURÍDICO DO ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SEUS REFLEXOS SOBRE O PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE

Mestrado em Direito

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Direito, área de
concentração Direito do Estado, sob a
orientação do Professor Doutor Clóvis Beznos.

SÃO PAULO
2014
Banca Examinadora

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha família:

Aos meus pais, Joacy e Edileuza, por todo o amor, dedicação e pelas lições constantes de que
a harmonia e a união familiar são bens inestimáveis e devem ser perseguidos incessantemente.

Aos meus irmãos, Tiago e Joara, e cunhados, Gabriela e Kildere, pessoas excelentes, com
quem sei que posso contar sempre e cuja alegria e o companheirismo tornam a vida muito
mais segura e feliz.

Aos meus sobrinhos, nossas crianças, simplesmente por nos fazerem perceber o verdadeiro
sentido da vida: Kildere Filho, que chegou há pouco mais de um ano e abalou todas as
estruturas, nos presenteando com uma convivência indescritível, de pura felicidade; e Maria
Luiza, a princesa Malu, que ainda nem chegou e já desperta um sentimento tão grande quanto
inexplicável, capaz de emocionar a cada vez que imagino como será o seu rostinho.

À Ana Lúcia, pessoa mais linda que já conheci e com quem espero ter a graça de viver ao
lado pelo resto da vida.
AGRADECIMENTOS

Agradeço enormemente ao meu orientador, Professor Doutor Clóvis Beznos, pelo apoio,
paciência, disponibilidade e generosidade no acompanhamento da elaboração deste trabalho,
e, sobretudo, pelo exemplo de dedicação, não só pelo Direito, mas à ciência e à arte de
lecionar, a qual exerce com maestria.

À Professora Mestre Fernanda Barreto Miranda Daólio, pessoa que primeiro acreditou na
minha capacidade profissional e acadêmica em São Paulo, pelo inestimável incentivo, pelas
valiosas orientações sobre os caminhos a serem seguidos para a realização desta empreitada,
pelo exemplo de profissional dedicada e inteligente, bem como pela maneira respeitosa e
gentil com que sempre me tratou.

Agradeço aos colegas da Advocacia Waltenberg: David, Cristiana, André, Gerusa, Ana
Amélia, Humberto, Rafael, Patrícia, Elen, Angel, Mirian, Helenita, Ana Clara, Marcos e
Vinícius, por todo o apoio, incentivo, paciência e, principalmente, pela harmônica e grata
convivência diária, que mescla de forma inspiradora o profissionalismo e o bem-estar.

Aos colegas Waldemar Fernandes e Flávio Chaib, em Teresina, e Humberto Negrão, Bruno
Galvão, Marcos De Santis, Rafael Janiques e Jorge Henrique de Oliveira Souza, em São
Paulo, os quais, muito além de excelentes parceiros profissionais ou acadêmicos, dividiram
comigo ótimos momentos e outros não tão bons ao longo dessa jornada, sempre com
conselhos e lições de vida valiosos, mostrando-se, enfim, grandes amigos.

Agradecimentos sinceros também a todos os amigos que fiz durante a trajetória acadêmica até
aqui, em especial à Flávia Cammarosano, pela amizade, sensibilidade e solidariedade em
momentos delicados durante a elaboração deste trabalho.

Agradeço, por fim, à minha família, pelo apoio, compreensão, incentivo e por sempre
acreditarem.
RESUMO

O presente trabalho se propõe, precipuamente, a investigar a repercussão sobre a incidência


do princípio da legalidade do neoconstitucionalismo, enquanto sistema jurídico instituído para
embasar o Estado Democrático de Direito. Desta maneira, no primeiro capítulo, procurou-se
demonstrar as noções básicas da formação do Estado, ressaltando o seu caráter instrumental,
sua finalidade voltada para a consecução do bem comum e sua fundamentação jurídica no
constitucionalismo. No segundo capítulo, empreendeu-se à caracterização da legalidade em
face do Estado Liberal e do Estado Social. No terceiro capítulo, demonstrou-se a evolução
para o Estado Democrático de Direito, como sistema político, e que contou com a
fundamentação jurídica do neoconstitucionalismo, acentuando os impactos deste para a nova
concepção e aplicação da legalidade.

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito, Neoconstitucionalismo, Legalidade e


Princípios Jurídicos.
ABSTRACT

The present paper aims, primarily, at investigating the repercussion on the incidence of the
principle of legality of neo-constitutionalism as a legal system established in order to support
the Democratic Rule of Law. Thus, in the first chapter, there is an attempt to demonstrate the
basics of the formation of the State, with emphasis on its instrumental character, its purpose
towards the achievement of the common good and its legal foundation in constitutionalism. In
the second chapter, the characterization of the legality in the face of the liberal state and the
welfare state was undertaken. In the third chapter, the authors demonstrated the evolution of
the Democratic Rule of Law as a political system, which counted on the legal basis of neo-
constitutionalism, highlighting the impact thereof for the new design and implementation of
the legality.

Keywords: Democratic Rule of Law, Neo-constitutionalism, Legality and Legal Principles.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 09

1 ESTADO, CONSTITUCIONALISMO E LEGALIDADE .............................................. 12


1.1 Estado enquanto realidade instrumental ................................................................... 12
1.2 A legalidade no Estado de Polícia ............................................................................ 16
1.3 A legalidade no Estado de Direito ............................................................................ 20
1.3.1 Constitucionalismo como pressuposto do Estado de Direito ........................... 22
1.3.2 Elementos do Estado de Direito ....................................................................... 26
1.3.2.1 Constituição como norma inaugural do Estado de Direito ....................... 26
1.3.2.2 A lei como fonte primordial do Direito .................................................... 29
1.3.2.3 Separação das funções estatais .................................................................. 33
1.3.2.4 A salvaguarda dos direitos fundamentais ................................................. 36

2 A EVOLUÇÃO DA LEGALIDADE NO ESTADO DE DIREITO ................................ 39


2.1 A legalidade no Estado Liberal ................................................................................. 39
2.1.1 A concepção clássica da legalidade .................................................................. 39
2.1.2 A dissidência revolucionária ............................................................................. 41
2.1.3 O conteúdo da legalidade no Estado Liberal ..................................................... 43
2.2 A legalidade no Estado Social .................................................................................. 44
2.2.1 As novas finalidades do Estado e a proeminência do Poder Executivo ............ 44
2.2.2 O formalismo positivista no Estado Social ....................................................... 49
2.2.3 O conteúdo da legalidade no Estado Social ...................................................... 53

3 A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................ 54


3.1 A transição entre o Estado Social e o Estado Democrático de Direito: crise da
55
legalidade e advento do neoconstitucionalismo ..............................................................
3.2 O neoconstitucionalismo como suporte jurídico do Estado Democrático de Direito
60
.........................................................................................................................................
3.3 Os reflexos do neoconstitucionalismo para a aplicação do princípio da legalidade
65
..........................................................................................................................................
3.3.1 A legalidade e o primado da Constituição ........................................................ 65
3.3.2 A legalidade e a natureza axiológica das normas constitucionais ..................... 68
3.3.3 A legalidade e a teoria dos princípios ............................................................... 70
3.3.3.1 A evolução do conceito de princípio jurídico ............................................ 70
3.3.3.2 A ponderação como método de aplicação do Direito ................................ 73
3.3.3.3 A ponderação e o exercício das funções estatais ....................................... 78
3.4 O conteúdo da legalidade no Estado Democrático de Direito .................................. 82

CONCLUSÕES ................................................................................................................... 86

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 91

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe, precipuamente, a investigar a repercussão sobre a


incidência do princípio da legalidade1 do neoconstitucionalismo, enquanto sistema jurídico
instituído para embasar o Estado Democrático de Direito. A evolução da sociedade e com ela
a modificação do papel do Estado nos diferentes momentos históricos desde a concepção da
legalidade demandaram a reformulação do seu conceito e aplicação originais, de forma que
pudesse melhor se adequar ao cotidiano das relações entre a Administração Pública e os
administrados.
A pluralidade e complexidade atuais da sociedade, decorrentes do surgimento de novos
grupos e respectivos interesses, as transformações sociais, morais e políticas, bem como os
avanços tecnológicos, todos estes aspectos em constante evolução, exigem a concomitante
adequação do direito e de seus instrumentos de ação.
Como um dos principais dentre estes instrumentos, a legalidade já não pode ser
restringida à aplicação subsuntiva e mecânica da norma jurídica em sentido formal,
especialmente depois dos prejuízos experimentados ao longo do século XX, sobretudo se
contabilizadas as atrocidades cometidas durante as grandes guerras mundiais, sob a
justificativa do estrito cumprimento da lei, tal como preconizado pelo positivismo à época
vigente.
Com efeito, o Estado Social evidenciou as deficiências do sistema jurídico
predominante, em que se buscaram a dignidade e igualdade entre os cidadãos, preteridas
durante o liberalismo, porém, ironicamente, não se estabeleceram as ferramentas necessárias à
realização da justiça, haja vista que, do ponto de vista político, a intervenção estatal em todos
os setores da do corpo social se mostrou ineficiente e, pelo viés jurídico, a intensa produção
normativa acabou por gerar um quadro caótico, em que leis desprovidas de conteúdo
axiológico, porém, legitimadas pelo formalismo extremo preconizado pelo positivismo
vigorante à época, foram aplicadas de maneira acrítica e sem controle. Sem embargo,
evidenciou-se a incapacidade do poder legislativo de prever e solucionar todos os conflitos
existentes na sociedade moderna.
Em reação a essas circunstâncias, surgiu o Estado Democrático de Direito, calcado
numa noção ampliada de democracia, na subsidiariedade da atuação estatal e no reencontro
                                                            
1
O presente trabalho é voltado para a temática do Direito Administrativo. No que respeita ao princípio da
legalidade, portanto, sempre que referido, estará se referindo às relações entre Administração Pública e
administrados. Faz a observação apenas para justificar a opção pelo uso da expressão “legalidade”, em vez de
“legalidade administrativa”.
10 

entre o direito e os valores da justiça, da ética e da moral, movimento este fundamentado


juridicamente na constitucionalização do direito, marcada pela juridicização dos valores
inerentes a todos os grupos integrantes do corpo social e sua incorporação aos textos
constitucionais de diversos países do mundo, ao qual se deu o nome de
neoconstitucionalismo.
Como consequência, o exercício das funções estatais passou a estar vinculado à
diretamente ao texto constitucional, a própria concepção de direito restou alterada, ao adquirir
uma densidade normativa mais fluida, apta a permitir que os aplicadores, administradores ou
juízes, complementem o seu conteúdo e, desta maneira, exerçam com maior dinamismo a
função de regular a sociedade e suas vicissitudes. Além disso, a positivação dos valores deu
lugar a uma nova concepção de princípio jurídico, atribuindo-lhe o caráter de norma jurídica
autônoma, caracterizada por exigir a realização de um valor na maior medida possível, nisso
se diferenciando das regras, que exigem a aplicação do que nelas está previamente
determinado.
Neste contexto, destacou-se a ponderação como o mais adequado método hermenêutico
para a aplicação do direito, vez que permite, por meio do exame de proporcionalidade,
alcançar a exata medida da incidência de cada um dos valores eventualmente em conflito,
fazendo preponderar, para cada caso concreto, o princípio que melhor represente as
finalidades constitucionais e do próprio Estado.
Essa nova maneira de enxergar a aplicação das leis por certo influencia de forma
determinante a atuação da Administração Pública, podendo-se falar em uma nova concepção
do princípio da legalidade, à luz das transformações do Estado, da constitucionalização do
direito e do novo papel assumido pelo aplicador da lei. O presente estudo intenta identificar os
contornos desta nova legalidade.
Desta maneira, no primeiro capítulo, procurou-se demonstrar as noções básicas da
formação do Estado, ressaltando o seu caráter instrumental, sua finalidade voltada para a
consecução do bem comum e sua fundamentação jurídica no constitucionalismo, cujos pilares
fundamentais também formam realçados.
No segundo capítulo, empreendeu-se à caracterização da legalidade em face do Estado
Liberal e do Estado Social, procurando-se demonstrar os aspectos ideológicos e circunstâncias
fáticas que fundamentaram, em cada momento histórico, a opção dos representantes das
assembleias constituintes pela lei como veículo juridicamente adequado para representar a
legitimidade soberana do povo.
11 

No terceiro capítulo, demonstraram-se os aspectos que levaram à evolução para o


Estado Democrático de Direito, como sistema político, e o advento do neoconstitucionalismo
como suporte à nova ordem jurídica que ali se estabelecia. Nesse contexto, foram realçadas as
características e consequências do neoconstitucionalismo como uma nova forma de assimilar
e aplicar o Direito, acentuando-se ainda os respectivos impactos para a nova concepção e
aplicação da legalidade, inclusive no que respeita ao Direito brasileiro.
Ao final, espera-se demonstrar que o neoconstitucionalismo é uma realidade e como
modelo jurídico-constitucional parece o sistema mais adequado para dar suporte ao Estado
Democrático de Direito, vez que propõe a elevação dos valores democráticos ao nível
constitucional, dessa forma possibilitando a efetividade da participação popular e,
consequentemente, do controle da atuação estatal em sua busca pela realização da justiça por
meio do Direito.
12 

1 ESTADO, CONSTITUCIONALISMO E LEGALIDADE

1.1 Estado enquanto realidade instrumental

O Estado pode ser conceituado como “ordem jurídica soberana que tem por fim o bem
comum de um povo situado em determinado território”1. Esta concepção atende aos
desideratos do presente trabalho, tendo em vista que, a despeito de sua simplicidade,
contempla os quatro elementos do Estado, dos quais dois serão fundamentais para o
desenvolvimento da ideia central pretendida. São eles o Estado como ordem jurídica e a
finalidade de atingir o bem comum.
A princípio, no entanto, cumpre destacar que o Estado surgiu da necessidade humana de
viver em comunidade. Com efeito, não restam dúvidas de que ao homem é mais proveitoso o
convívio em sociedade, como forma de tornar mais eficiente a defesa da integridade física e
dos bens de cada indivíduo. Isto é fato, independentemente da concepção adotada quanto ao
fundamento desta associação, se inerente à própria natureza humana (teoria naturalista) ou se
decorrente simplesmente de ato de escolha (teoria contratualista).
A propósito, vale discorrer, ainda que de forma sintética, sobre tais correntes. A
concepção naturalista sustenta que a propensão à vida em sociedade é uma característica
natural do homem, inerente mesmo à sua própria natureza, independentemente de suas
necessidades materiais. Conforme explica Dalmo de Abreu Dallari “assim, pois, não seriam as
necessidades materiais o motivo da vida em sociedade, havendo, independente dela, uma
disposição natural dos homens para a vida associativa.”2
Por outro lado, a teoria contratualista ressalta que a natureza humana levaria ao caos,
pois cada indivíduo, “temeroso de que outro venha a tomar-lhe os bens ou causar-lhe algum
mal, pois todos são capazes disto, [...] toma a iniciativa de agredir antes de ser agredido.”3 No
intuito de evitar a situação de desordem, os homens, num ato puramente racional, firmam o
contrato social, em que cada um cede uma parte de sua liberdade, em nome da estabilidade e
segurança para todos.
Dallari, sem adotar posicionamento firme a favor de qualquer das correntes, informa
haver uma predominância nos dias atuais pela aceitação da teoria naturalista, contudo, sem
excluir a importância do contratualismo, sob o fundamento de que, embora a associação seja

                                                            
1
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, 20. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 119.
2
Ibidem, p. 10.
3
Ibidem, p. 13.
13 

inerente à natureza humana, é inegável o papel da manifestação da vontade para que seja
viabilizada a convivência em sociedade.4
Com efeito, a teoria contratualista, sobretudo defendida por Jean Jacques Russeau, teve
importante papel na formação do Estado Moderno, primeiramente como impulso para o
surgimento das monarquias absolutas. Nesse sentido, anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Os tempos modernos trouxeram a perda do prestígio de que a Igreja


desfrutava na Idade Média e, em consequência, geraram a concentração do
poder nas mãos do príncipe. É dessa época o surgimento das monarquias
absolutas como única solução para conduzir à unidade do Estado perdida no
período feudal.5

A autora aludiu à necessidade dos cidadãos de obter segurança, por meio de um


soberano que os guiasse e os protegesse contra o caos existente após o período feudal. Nesse
sentido, concederam fidelidade e lealdade ao príncipe, em troca de uma parcela de sua
liberdade, que depois se revelou demasiado elevada.6
Mais tarde, também inspirada nos ideais contratualistas, assentados na premissa
fundamental de que todos os homens são livres e iguais, a Revolução Francesa de 1789 pôs
fim ao Estado Absolutista, inaugurando o Estado de Direito. Isto significou a mudança radical
do paradigma da titularidade do poder soberano que, antes pertencente ao monarca, passou a
ser do povo, ou seja, de cada cidadão e de todos. Entretanto, persistiu a ideia de manutenção
da entidade estatal, pois, como explica Bandeira de Mello, diante da impossibilidade material
de que todos os homens governassem concomitantemente “era preciso que cada homem
cedesse uma parte de sua liberdade, a fim de poder existir um Poder comandante para a boa
organização da vida social.”7
Sem prejuízo da abordagem um pouco mais profunda das referidas doutrinas iluministas
no decorrer do trabalho, a conclusão relevante para o momento é a de que o Estado surge
como representante desta associação, como instrumento para que seja levado a cabo o

                                                            
4
Ibidem, p. 18-19.
5
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na constituição de 1988. 3. ed. São
Paulo: Editora Atlas, 2012, p. 5.
6
“Russeau pregava que os homens, vivendo em um estado de natureza e diante da existência da lei do mais
forte, abdicavam, tacitamente, da ilimitada liberdade que tinham para viver em sociedade, sob a direção de um
poder que iria distribuir justiça, garantir a paz e punir os excessos de violência.” (GUERRA, Sérgio. Crise e
refundação do princípio da legalidade: a supremacia formal e axiológica da constituição federal de 1988. Revista
Interesse Público. Rio de Janeiro, n. 49, p. 89-112, 2008, p. 93).
7
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 30. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 48.
14 

propósito de criar um ambiente seguro para a convivência entre os homens. Sobre o tema, são
elucidativas as palavras de Dallari:

É então que ocorre a alienação total de cada associado, com todos os seus
direitos a favor de toda a comunidade. Neste instante, o ato de associação
produz um corpo moral e coletivo, que é o Estado, enquanto mero executor
de decisões, sendo o soberano quando exercita um poder de decisão. O
soberano, portanto, continua a ser o conjunto das pessoas associadas, mesmo
depois de criado o Estado, sendo a soberania inalienável e indivisível.8

Enquanto realidade abstrata, o Estado nasceu com a finalidade precípua e inolvidável de


garantir o bem comum, e assim, tornar viável a vida em comunidade, contribuindo para a
harmonia entre os interesses estritamente particulares e os interesses da coletividade.
A ideia de bem comum, portanto, leva à noção de interesse público,9 que, segundo
afirma Bandeira de Mello, consiste na “dimensão pública dos direitos individuais, ou seja, dos
interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da sociedade (entificada juridicamente no
Estado)”.10 Esclarece o próprio autor:

Pois bem, é este último interesse o que denominamos de interesse do todo ou


interesse público. Não é, portanto, de forma alguma, um interesse
constituído autonomamente, dissociado do interesse das partes e, pois,
passível de ser tomado como categoria jurídica que possa ser erigida
irrelatamente aos interesses individuais, pois, em fim de contas, ela nada
mais é que uma faceta dos interesses dos indivíduos: aquela que se manifesta
enquanto estes – inevitavelmente membros de um corpo social –
comparecem em tal qualidade. Então, dito interesse, o público – e esta já é
uma primeira conclusão –, só se justifica na medida em que se constitui em
veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e
das que o integrarão no futuro. Logo, é destes que, em última instância,
promanam os interesses chamados públicos.
Donde, o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante
do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando
considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato
de o serem.11

                                                            
8
DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 17.
9
O “Estado só atua para a realização do bem comum ou, em outras palavras, só age para o cumprimento do
interesse público” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Função administrativa I. Revista Trimestral de Direito
Público. São Paulo, n. 41, p. 174-206, 2003a, p. 182). No mesmo sentido, cite-se Juan Carlos Cassagne: “(...)
configura por certo outro requisito essencial do ato administrativo que se relaciona, como bem se há dito, com o
aspecto representado no fim de interesse público ou bem comum, que por ele mesmo persegue”, (Apud
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Interesse público: verdades e sofismas. In: DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella e RIBEIRO, Carlos Vinícius Aires. (Coord.). Supremacia do interesse público e outros temas
relevantes no direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 74).
10
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso... Op. cit., p. 60.
11
Ibidem, p. 61-62.
15 

Diante da inolvidável finalidade de garantir o interesse público, fica enfatizado o caráter


instrumental do Estado. Daí se afirmar que exerce função, que nas palavras de Santi Romano,
significa o “poder que se exerce, não por interesse próprio, ou exclusivamente próprio, mas
sim, por interesse de outrem”.12
Função pública, portanto, consiste na “atividade exercida no cumprimento do dever de
alcançar o interesse público, mediante o uso de poderes instrumentalmente necessários
conferidos pela ordem jurídica”.13 Logo, ao Estado incumbe agir no cumprimento de
finalidades em prol do alheio, dos cidadãos enquanto coletividade, mas para isso, utilizando-
se de certas prerrogativas necessárias à consecução deste dever.
Nesse sentido, aliás, convém salientar a célebre lição de Bandeira de Mello ao
preconizar que, diante do caráter de “assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no
interesse de todos”, as “prerrogativas da Administração não devem ser vistas ou denominadas
como ‘poderes’ ou como ‘poderes-deveres’”, mas na verdade, “se qualificam e melhor se
designam como ‘deveres-poderes’”.14
Por fim, acentue-se que a definição de Estado apresentada alhures também resolve
possível indagação quanto à eleição dos meios para a fixação destas finalidades e respectivos
poderes-deveres que o Estado deve exercitar e garantir. A resposta: a instituição de uma
ordem jurídica. O ordenamento jurídico determina quais as finalidades a serem perseguidas
pelo Estado e quais os instrumentos de que dispõe para garantir o cumprimento destes
objetivos. Trata-se de parte determinante do conceito.
As colocações até o momento expostas permitem fixar algumas premissas: o Estado
surgiu da necessidade do homem de viver em comunidade e assim maximizar suas chances de
uma vida mais digna. Nesse sentido, não se constitui de uma realidade em si, mas de
instrumento para o alcance do interesse público, cuja definição decorre da noção de bem
comum. Por isso, exerce função e sua atuação exprime muito mais um dever do que
propriamente um poder. Por fim, as finalidades a serem alcançadas pelo Estado, bem como os
deveres-poderes de que dispõe para cumpri-las são definidos pelo ordenamento jurídico, ao
qual todos estão vinculados, inclusive os órgãos estatais encarregados do cumprimento das
funções.
No entanto, essa relação do Estado com o ordenamento jurídico varia em razão do
contexto político e social vigente. Como afirma Odete Medauar:
                                                            
12
ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
1977, p. 145.
13
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso... Op. cit., p. 29.
14
Ibidem, p. 72-73.
16 

[...] da concepção de Estado decorrem consequências no contexto das


instituições públicas, sobretudo governamental e administrativa. Se a
disciplina jurídica da Administração pública centraliza-se no direito
administrativo e se a Administração integra a organização estatal, evidente
que o modo de ser e de atuar do Estado e seus valores repercutem na
configuração dos conceitos e institutos desse ramo do direito.15

Em outras palavras, os modelos de Estado são definidos, em dado momento histórico,


com base na relação existente entre o governo central e o ordenamento jurídico, tanto no que
se refere às restrições materiais impostas para a autuação do governo, como no que diz
respeito aos instrumentos de que dispõe para atuar. Isso é perceptível ao longo da história e
requer uma análise detida para a exata compreensão do tema central do presente trabalho, isto
é, as várias facetas legalidade no Estado de Direito.

1.2 A legalidade no Estado de Polícia

Na primeira fase do Estado Moderno, vigorou o Estado de Polícia, no qual predominou


a forma de governo das monarquias absolutas. A característica principal desse arranjo estatal
consistiu na ausência de limites ao poder exercido pelos monarcas, levando Maria Sylvia
Zanella Di Pietro a afirmar, com base na observação de Adolfo Merkl, que: “O Estado de
Polícia foi um período da história em que o direito público ficou na penumbra, pois se
esgotava em ‘um único preceito jurídico, que estabelece um direito ilimitado para
administrar’”.16
Com efeito, com base nesse preceito jurídico exclusivo se caracterizavam as relações
entre a Administração Pública e os particulares17. Nesse contexto, é interessante notar que,
segundo Agustín Gordillo, provavelmente sequer existia ainda a concepção de que se
tratavam de relações entre sujeitos diferentes, motivo pelo qual não se reconheciam direitos
dos indivíduos frente ao soberano, sendo o particular “um objeto do poder estatal, não um
sujeito que se relaciona com ele”.18

                                                            
15
MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003,
p. 77 e 78.
16
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 6.
17
É válida alusão à observação de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, no sentido de que já nessa época existia
Administração Pública, pois “onde existe Estado, existem também órgãos incumbidos do exercício de funções
administrativas”. (Ibidem, p. 5).
18
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Tomo I. Parte General. 7. ed., Belo Horizonte:
Del Rey, 2003, p. II-1.
17 

O Estado de Polícia se traduzia em duas ideias fundamentais: a de soberania e a de


polícia.19 A soberania, baseada na doutrina de Jean Bodin, fundamentava “a unificação do
poder dentro de certo território, com a submissão de todas as pessoas à mesma ordem jurídica
e o não reconhecimento de outras ordens – as vigentes em outros territórios – como
aplicáveis”. Demais disso, a soberania também servia para justificar o absolutismo, isto é, o
poder conferido ao monarca.20 Dessa maneira, passou a identificar, a partir de então, as
normas relativas ao exercício do poder político.21
A polícia, por sua vez, como informa Vinícius Ribeiro:

é a preocupação de desenvolvimento, de elevação de nível, de brilho, de


grandeza. Há para os homens do século XVIII uma preocupação enorme de
civilização. O príncipe vai utilizar a sua ausência de limites não para o seu
engrandecimento pessoal, mas com a intenção de se tornar possesso da ideia
de progresso do seu país; torna-se o primeiro funcionário; ele é o único
portador dessa ideia de racionalidade; é capaz de definir a organização
racional do Estado e realizar uma nação culta.22

Eduardo Garcia de Enterría também alude à razão do príncipe para justificar o poder a
ele concedido, bem como as características da ordem jurídica nascida no Estado de Polícia.
Conforme explica, o pensamento corrente à época atribuía ao monarca a missão de “afastar o
Direito Positivo das propriedades e das instâncias privilegiadas”, pois “<<o bem público>>
podia em cada momento exigir e impor uma modificação jurídica”.23 Aduz o autor:

Afastar o Direito comum, justificar as exorbitâncias, as derrogações às Leis


estabelecidas, tudo sobre a base de uma superioridade substantiva do Rei,
como comissionado de Deus para o governo humano, tal é o conteúdo deste
novo Direito. Não se descrevem propriamente relações jurídicas, dada a
posição de superioridade do Príncipe e suposta a regra princeps solutus est,
que o exime do império das Leis.24

Para levar a cabo essas finalidades, ao soberano eram reconhecidos poderes ilimitados,
tanto em relação aos fins que podia perseguir, quanto no que diz respeito aos meios que podia
empregar para atingir tais desideratos.25 Não havia normas jurídicas oponíveis ao governante.
Como bem elucida Carlos Ari Sundfeld: “O poder soberano não encontra limitação, quer
                                                            
19
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 6.
20
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 5. ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 34.
21
Ibidem, p. 34.
22
Apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 6.
23
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lengua de los derechos: la formación del derecho público europeo
trás la revolución francesa. 3. ed., Madrid: Civitas Ediciones, 2009, p. 97.
24
Ibidem, p. 98.
25
GORDILLO, Agustín. Tratado... Op. cit., p. II-2.
18 

interna, quer externa. Será, por isso, insuscetível de qualquer controle. Parecia, ao espírito da
época, que quem detinha o poder – de impor normas, de julgar, de administrar – não poderia
ser pessoalmente sujeito a ele: ninguém pode estar obrigado a obedecer a si próprio.”26
Exceção para as relações consideradas privadas de que a Administração era parte.
Desenvolvida em especial pela doutrina alemã como forma de abrandar o poder absoluto do
monarca, a teoria do fisco preconizava que o patrimônio público não pertencia ao príncipe,
nem ao Estado, mas ao fisco, que, por ter personalidade de direito privado, “submetia-se ao
direito privado e, em consequência, aos tribunais”.27 No mesmo sentido, versa Garcia de
Enterría:

As únicas relações jurídicas que tratam como tais são as relativas ao Direito
Privado; o Príncipe, se absolvido das Leis positivas, está abstrictus ao
Direito natural, por meio do qual entram as duas grandes instituições civis d
propriedade e do contrato; um ius eminens pode romper no caso concreto os
vínculos derivados dessas instituições, mas obrigará o Rey a uma
indenização. A doutrina do Fisco, as primeiras regulações da desapropriação
e dos contratos públicos, se desenvolveram para explicar este peculiar
âmbito relacional.28

Nesse cenário, em que as decisões de poder não são limitadas por normas ou pelos
tribunais, mas dependem unicamente da prudência e juízo moral do monarca, ganhou
relevância a educação do soberano, a formação de sua consciência, dando ensejo ao que foi
denominado de despotismo ilustrado29. Di Pietro se refere ao período como o “império do
arbítrio”, embora não com um sentido pejorativo em si considerado. Explica a autora que:

A Administração Pública, em especial na fase inicial, não estava vinculada a


qualquer tipo de norma que limitasse a sua atividade, senão àquela que
proviesse do monarca. Era o império do arbítrio, não no sentido de injusto,
mas no sentido de ausência de limitações legais.30

Luís S. Cabral de Moncada, fazendo alusão à ausência de limitações legais ao poder


estatal, observa que a própria lei ainda era carente de uma noção definitiva. Segundo o autor:
“A multiplicidade de termos usados para referir a norma jurídica correspondia à ausência de
uma força jurídica específica que se lhe pudesse imputar, pois que toda ela decorria da

                                                            
26
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 34.
27
Ibidem, p. 6.
28
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lengua... Op. cit., p. 99.
29
Ibidem, p. 99.
30
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 7.
19 

vontade do Rei.”31 Nesse sentido, é possível afirmar que o Estado absolutista foi marcado pela
ausência da ideia de que: “A política encarada como a atividade do Príncipe deve estar sujeita
a um enquadramento legislativo votado por uma assembleia representativa e de acordo com
um procedimento legitimatório específico.”32
Após as considerações acima expostas, é possível trazer as noções apresentadas no item
anterior, para afirmar que o Estado de Polícia de fato serviu como instrumento para a busca do
bem comum, à época entendido como o desejo de progresso. Para isso, contava com uma
ordem jurídica, ainda que pouco evoluída, caracterizada, sobretudo, pela ausência de
limitações à atuação dos soberanos, cujas características foram assim sintetizadas por Carlos
Ari Sundfeld:

a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendo incumbido de


fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida apenas aos súditos. O Poder
Público pairava sobre a ordem jurídica.
b) O soberano, e, portanto, o Estado, era indemandável pelo indivíduo, não
podendo este questionar, ante um tribunal, a validade ou não dos atos
daquele. Parece ilógico que o estado julgasse a si mesmo ou que, sendo
soberano, fosse submetido a algum controle externo.
c) O Estado era irresponsável juridicamente: le roi ne peut mal faire, the
king can do no wrong. Destarte, impossível seria exigir ressarcimento por
algum dano causado por autoridade pública.
d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de polícia. Daí
referirem-se os autores, para identificar o Estado da época, ao Estado-
Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer obrigações ou restrições
às atividades dos particulares. Em consequência, inexistiam direitos
individuais contra o Estado (o indivíduo não podia exigir do Estado o
respeito às normas regulando o exercício do poder público), mas apenas
direitos dos indivíduos nas suas relações recíprocas (o indivíduo podia exigir
do outro indivíduo a observância das normas reguladoras de suas relações
recíprocas).
e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do
soberano, a quem cabia editar as leis, julgar os conflitos e administrar os
negócios públicos. Os funcionários só exerciam poder por delegação do
soberano, que jamais o alienava.33

Nesse contexto, o que de fato se sobressaiu foram os desmandos dos príncipes. Com
efeito, motivados por interesses pessoais e a possibilidade de sempre criar novos interesses e
novos fins conforme seu próprio alvedrio34, somados à insubmissão ao controle judicial, os
governantes historicamente sempre cometeram desmedidos abusos contra os direitos

                                                            
31
CABRAL DE MONCADA, Luís S. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 32, nota de rodapé 2.
32
Ibidem, p. 31.
33
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 34-35.
34
MAYER, Otto. Derecho administrativo alemán. Trad. De Horacio H. Heredia y Ernesto Krotoschin. Bueno
Aires: Depalma, 1949.
20 

subjetivos dos cidadãos, podendo-se citar, como exemplo, “a criação de tributos e figuras
criminais ex post facto”.35
Além disso, foram nefastas as consequências da má-gestão praticada durante várias
décadas pelos monarcas absolutos, traduzidas em déficits econômicos e sociais. Nesse
período, “o Estado era visto em crescente contraposição ao indivíduo – essa a razão pela qual
os direitos fundamentais eram considerados direitos de defesa do indivíduo frente à força
estatal. Essa a razão de falar-se na existência de uma dicotomia entre Estado e sociedade.”36
Em razão disso, a figura do administrador adquiriu o status de verdadeiro vilão a atentar
contra a liberdade do povo, fazendo daí surgir complexo sistema de proteção,37 que se iniciou
com a revolução francesa de 1789 e transformou de forma radical as relações entre o Estado e
os cidadãos.

1.3 A legalidade no Estado de Direito

Diante dos desmandos e injustiças protagonizados pelas monarquias absolutistas


reinantes na Europa Ocidental no final do século XVIII, engendrou-se uma fórmula de
organização estatal, cuja finalidade precípua era proteger os cidadãos dos abusos de poder
cometidos por seus governantes.
Grandes transformações no cenário político e social ocidental do final do século XVIII
conduziram ao desencadeamento de revoluções armadas, bem como à confluência de teorias
político-filosóficas de inestimável valor, que juntas levaram à ruptura do Estado de Polícia ou
Antigo Regime e à inauguração da segunda fase do Estado Moderno, o Estado de Direito.
Nesse sentido, ao traçar o contraponto fundamental entre o Estado de Polícia e o Estado
de Direito, Adolfo Merkel afirma que “o Estado de Polícia se apresenta como aquele Estado
cuja administração se acha legalmente incondicionada, enquanto o Estado de Direito oferece
uma administração condicionada legalmente”.38
A ideia básica – a grande virada – contida na instauração do novo regime consistiu “na
submissão do próprio Estado ao direito que cria, e na exigência de que a atividade estatal que
                                                            
35
FONTE, Felipe de Melo. Para além da legalidade: a constitucionalização do direito administrativo através do
princípio da juridicidade: algumas propostas. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, n. 13, p. 249-267,
jan./mar. 2009, p. 250.
36
MOTTA, Fabrício. O paradigma da legalidade e o direito administrativo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella e RIBEIRO, Carlos Vinícius Aires. (Coord.). Supremacia do interesse público e outros temas
relevantes no direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 200.
37
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2001,
p. 83.
38
MERKEL, Adolfo. Teoria General del Derecho Administrativo. México: Nacional, 1980, p. 93.
21 

restrinja os direitos dos particulares esteja fundada em previsão legal”.39 Na mesma esteira,
mencione-se a lição de Afonso Rodrigues Queiró, que descreve o modelo como aquele no
qual “o Estado se comporta em relação ao particular na forma do direito, quer dizer, ligado
pelas normas jurídicas, qualquer que seja a sua fonte”.40
Como destaca Felipe de Melo Fonte, o final do século XVIII serviu de campo fértil para
a promoção das almejadas mudanças, pois se tratou de “momento privilegiado no plano das
ideias políticas: nele ocorre o feliz encontro de diferentes doutrinas a respeito do arranjo
político-social e das relações entre cidadão e Estado, as quais ganham espaço na arena pública
e finalmente são implementadas após a derrocada do ancien régime”.41
Com efeito, por trás da ideia de submissão do Estado ao ordenamento jurídico, estavam
os valores iluministas, consubstanciados nas noções de que: (i) todos os homens são livres e
iguais; (ii) o povo é a verdadeiro titular do poder soberano; e (iii) o Estado é um mero
instrumento a serviço dos cidadãos.
Odete Medauar, referindo-se ao que denominou didaticamente de “Estado do século
XIX”, caracterizou o Estado Liberal, em contraponto ao Estado absoluto, como soberano.
Afirma a autora:

dele partem e nele se depositam com exclusividade todas as faculdades e


prerrogativas de domínio, exercidas, não mais por vontade do monarca, mas
em nome do povo ou da nação. Existe assim, unidade e centralização de
poder, ao mesmo tempo em que o comando político se despersonifica; o
poder pessoal é substituído pelo poder estatal.42

Se no Estado de Polícia a busca pelo bem comum consistia em se atingir a grandeza do


próprio Estado, no Estado de Direito os direitos humanos fundamentais – diferentes em cada
fase do Estado de Direito43 – assumem o papel de finalidade primordial da ordem jurídica, a
ser garantida pelo Estado.

                                                            
39
FONTE, Felipe de Melo. Op. cit., p. 250. Não obstante, o autor observa: “É bem verdade que a edição de leis
de cunho abstrato e geral, válidas para todos os habitantes de determinado espaço territorial, é bastante anterior à
Revolução Francesa e já esteve presente mesmo nas antigas codificações.” (Ibidem, ibidem).
40
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo. Revista de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro, v. 6, p. 41-78, out./dez. 1946.
41
FONTE, Felipe de Melo. Op. cit., p. 249.
42
MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 79.
43
Nesse sentido, é válido acrescentar a evolução dos direitos fundamentais proposta por Paulo Bonavides: “Os
direitos de primeira, segunda e terceira gerações abriram caminho ao advento de uma nova concepção de
universalidade dos direitos humanos fundamentais [...] A nova universalidade dos direitos fundamentais os
coloca assim, desde o princípio, num grau mais alto de juridicidade, concretude, positividade e eficiência. É
universalidade que não exclui os direitos da liberdade, mas primeiro os fortalece com as expectativas e os
pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e da fraternidade”
(BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 573).
22 

Diante disso, pode-se afirmar que o regime jurídico das relações entre Estado e cidadãos
sofreu o influxo de várias correntes de pensamento ao longo da história do Estado de Direito.
Por meio da sua incorporação aos textos normativos editados a partir de então, essas ideias
doutrinárias serviram de base comum para o delineamento das ordens jurídicas que se
seguiram nas três fases do Estado de Direito, tornando-se verdadeiras “pedras de toque desse
novo modo de conceber as relações entre os indivíduos e o Estado – cuja falta faria
desmoronar todo o edifício”.44 São elas:

a) A supremacia da Constituição.

b) A separação dos poderes estatais.

c) A superioridade da lei.

d) A garantia dos direitos fundamentais.

A análise desses aspectos merece abordagem específica, a fim de que se possa


compreender melhor como cada um influenciou na formação do Direito Administrativo
contemporâneo e, por conseguinte, na conformação da legalidade em cada uma das fases do
Estado de Direito.
Para que seja possível a análise proposta, se faz necessário previamente empreender à
caracterização do constitucionalismo, que consiste em verdadeiro pressuposto do Estado de
Direito, sobretudo se considerado que dele decorrem os elementos acima elencados.

1.3.1 Constitucionalismo como pressuposto do Estado de Direito

O constitucionalismo foi a primeira grande consequência das reações ao poder ilimitado


de que dispunham os governantes no Estado absolutista. Surgiu como uma “técnica específica
de limitação do poder”,45 cujo desenvolvimento se deu a partir das Revoluções: Americana,
que resultou na declaração da independência dos Estados Unidos da América e,
posteriormente, na edição da Constituição norte-americana, em 1787; e Francesa, que pôs fim

                                                            
44
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 39.
45
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed., Coimbra: Almedina,
1999, p. 51.
23 

ao absolutismo monárquico na França, em 1789, e desaguou na edição da Constituição


francesa de 1791.46
Sérgio Guerra também cita as duas grandes revoluções como marcos históricos dos
quais decorreu o nascimento do constitucionalismo. Segundo o autor, “o modelo republicano
estadunidense, considerado o ‘berço do constitucionalismo’, (...) veio para conformar um
delicado balanço entre os direitos do governo e os direitos fundamentais”.47 Já a revolução
francesa “materializou a filosofia política insculpida, notadamente, por John Locke e
Montesquieu, que buscava a preservação da liberdade individual e a segurança do
território”.48
Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o constitucionalismo encontra “na
Constituição um instrumento de garantia da liberdade do homem, na medida em que impõe
limites às prerrogativas dos governantes”.49
Ricardo Marcondes Martins sintetiza de forma bastante elucidativa o “modelo
revolucionário”:

[...] o poder estatal deve ser disciplinado por um conjunto de normas fixadas
por um texto escrito, produzido em determinado momento histórico por um
órgão designado para tanto – o texto foi chamado de Constituição e o órgão
de poder constituinte. Esse texto possui duas características essenciais, que o
distinguem de todos os demais textos normativos: só pode ser alterado por
um procedimento específico, diverso do procedimento previsto para a
elaboração das leis (Constituição rígida), e as normas dele extraídas são
consideradas superiores a todas as demais normas (supremacia da
Constituição). Essas normas, chamadas de constitucionais, são identificadas
não pela matéria, mas pela forma: constam, expressa ou implicitamente,
desse texto (Constituição formal). A Constituição consubstancia um e
apenas um texto escrito (Constituição escrita e codificada), elaborado num
momento histórico certo, determinado, pontual (Constituição dogmática),
ainda que acrescido de emendas ou adendos posteriores. Não se atribuiu total
liberdade ao constituinte: o modelo do constitucionalismo pressupõe a
positivação dos direitos fundamentais e o estabelecimento da separação dos
Poderes.50

Como se pode observar, do constitucionalismo decorrem todos os elementos necessários


à fundação do Estado de Direito. Com efeito, já foram referidas no item anterior as

                                                            
46
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da constituição federal. São Paulo:
Malheiros, 2011, 28.
47
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 90.
48
Ibidem, ibidem.
49
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 8.
50
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação... Op. cit., p. 28-29.
24 

denominadas pedras de toque do modelo estatal caracterizado pela submissão do Estado ao


ordenamento jurídico.
Nesse sentido, é válida a afirmação de Felipe de Melo Fonte, segundo a qual “a
invenção do constitucionalismo daria ao modelo [Estado de Direito fundado na soberania
popular e na separação dos poderes] o toque final: a limitação do Estado por uma norma
jurídica que o precede, editada pelo povo em assembléia – titular do poder constituinte
originário – e intangível às maiorias ocasionais”.51 Uma única observação ao pensamento do
autor: não nos parece que o constitucionalismo seja para o Estado de Direito o “toque final”.
Ao contrário, conforme acima já afirmado, o constitucionalismo é, na verdade, um
pressuposto do Estado de Direito e não um incremento.
Aqui se faz necessário traçar um corte metodológico: é certo que o constitucionalismo
se originou na França e nos Estados Unidos. Contudo, o seu desenvolvimento se deu de forma
diferente nos dois países.52 Desta maneira, embora se admita a contribuição do
constitucionalismo norte-americano, convém esclarecer, como, ademais, é assente na
doutrina,53 que foi o constitucionalismo francês – com base nas conquistas resultantes da
Revolução Francesa de 1789 – o precursor do Estado de Direito e, com ele, o Direito
Administrativo tal como atualmente reconhecido em boa parte dos ordenamentos jurídicos do
mundo ocidental, inclusive no brasileiro. Logo, é com base no desenvolvimento do sistema
francês que se seguirá com a análise.
Pois bem, voltando à análise do constitucionalismo como pressuposto do Estado de
Direito, cumpre destacar que a principal ideia propulsora da Revolução Francesa consistiu na
transferência da titularidade do poder soberano do monarca para o povo. Nesse sentido,
confira-se a síntese de Fabrício Motta:

A Revolução Francesa liga-se ao Direito Administrativo, substancialmente,


por meio do estabelecimento de dois grandes marcos: o primeiro, filosófico e
político, refere-se à consagração da liberdade como valor principal tutelado
pela sociedade, a ser protegido sob qualquer custo ou pretexto; o segundo
marco, jurídico, impõe a submissão do poder à lei dos homens, e não mais às
                                                            
51
FONTE, Felipe de Melo. Op. cit., p. 250.
52
Ricardo Marcondes Martins traça os aspectos distintivos dos dois ordenamentos jurídicos, explicando, em
síntese, que na França se adotou o sistema da Civil Law e da radical separação dos poderes estatais; por sua vez,
nos Estados Unidos foi adotada a Common Law, aproximando-se assim do modelo inglês, embora não
totalmente, tendo em conta a submissão ao constitucionalismo. Além disso, instituiu-se um sistema de separação
de poderes menos rígido, vez que se permitiu ao judiciário controlar os atos das demais esferas de poder.
(MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação... Op. cit., p. 31).
53
Por todos, Ricardo Marcondes Martins: “Pode-se afirmar que a Revolução Francesa foi uma reação ao
Absolutismo Monárquico, e o direito administrativo, uma consequência história da Revolução Francesa.”
(MARTINS, Ricardo Marcondes. Função administrativa II. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo,
n. 42, p. 220-250, 2003b, p. 223).
25 

leis divinas ou consuetudinárias. A junção desses dois marcos determinou o


entendimento de que a fonte de todo o poder reside essencialmente na nação,
e a nação não reconhece nenhum interesse acima do seu e não aceita
nenhuma lei ou autoridade que não a sua. A mudança, com relação ao
Antigo Regime, é intensa e tentadora: sai de cena o governo pessoal e
arbitrário, fundado em um pretenso poder divino, para ceder lugar a um
54
governo fundado nas leis, em sua legitimidade e em suas competências.

Conforme assinala Garcia de Enterría, o que a Revolução Francesa pretendeu foi


desmistificar o exercício do poder soberano. Deixar para traz a concepção divinal, mítica,
representada pela figura do Rei. Segundo o autor: “Poderia dizer-se que a Revolução
<<desencanta>> o poder, o reduz a um mecanismo humano, comum, ordinário, racional, o faz
descender à cidade.”55
Nessa premissa se fundaram os ideais encartados na Declaração de Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789, dos quais se destacam o artigo 1º, onde restou consignado que “os
homens nascem livres e iguais”,56 e o artigo 3º: “O princípio de toda a soberania reside,
essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que
dela não emane expressamente.”57
A partir daí se concebeu a ideia de que somente os próprios cidadãos, enquanto livres,
poderiam erigir um poder que os restringisse a liberdade, isto é, somente a comunidade
poderia dispor sobre si mesma:

É o princípio básico sobre o poder que a Revolução aporta, que toma,


evidentemente, das teses pactistas, em especial de suas formulações de
Locke e Russeau. É o suporte da rebelião do terceiro Estado, de sua
autodenominação como Assembleia Nacional e Assembleia Constituinte, da
proclamação de suas grandes decisões fundamentais.58

Com efeito, tomada a premissa de que o poder soberano pertencia ao povo e por ele
deveria ser exercido (Cf. artigo 3º, da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de
1789), também era preocupação dos revolucionários a forma como esse exercício se faria.59
A solução encontrada foi justamente a opção pelo constitucionalismo. Caberia à
assembleia constituinte, portanto, produzir o documento necessário para fundar a nova ordem
                                                            
54
MOTTA, Fabrício. Op. cit., p. 199.
55
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lengua... Op. cit., p. 102.
56
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Universidade de São Paulo. Biblioteca Virtual de
Direitos Humanos. Disp. em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-
%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-
de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acesso em 13 mar.2013.
57
Ibidem.
58
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lengua... Op. cit., p. 103.
59
Ibidem, ibidem.
26 

jurídica, a fim de consignar os direitos fundamentais, organizar as instituições e, sobretudo,


limitar o exercício do poder soberano, que deveria ser exercido pelo próprio povo, porém, por
meio de representantes, o que ocorreu, de fato, com a edição da Constituição Francesa de
1791.60
Esses aspectos serão objeto de análise em seguida. Para a conclusão do presente
raciocínio, porém, é importante notar o encadeamento das ideias: primeiro o povo se
autoproclama o titular do poder soberano, por meio da Declaração de Direitos. Em seguida,
diante da questão acerca de como deveria exercer esse poder, faz a opção pelo
constitucionalismo, instaura a assembleia constituinte e, por meio dela, funda a nova ordem
jurídica com a promulgação da Constituição. Logo, não restam dúvidas de que o
constitucionalismo é, na verdade, um pressuposto para o Estado de Direito.
Traçadas as linhas gerais do constitucionalismo, pode-se partir para a abordagem dos
principais aspectos do modelo e suas consequências para a consolidação do Estado de Direito
até os dias atuais, especialmente no que diz respeito à conformação da legalidade em cada
contexto político, social e jurídico representado pelas três fases distintas do Estado de Direito.

1.3.2 Elementos do Estado de Direito

1.3.2.1 Constituição como norma inaugural do Estado de Direito

A Constituição é a primeira decorrência lógica do constitucionalismo e representa o


instrumento de criação do Estado de Direito. Nesse sentido, faz-se presente a observação de
Carlos Ari Sundfeld, de que:

A Constituição opera papel importantíssimo na sujeição do Estado à ordem


jurídica, eis que, como norma jurídica anterior a ele, supera a dificuldade de
submetê-lo às normas que por si próprio crie. A Constituição não é feita pelo
Estado. Ao contrário, o Estado é fruto da Constituição. O Estado, em
consequência, é pessoa jurídica criada e regida pelo direito constitucional,
que o precede. Por isso, todo seu funcionamento haverá de atender às
disposições constitucionais.61

Em sentido material, a Constituição consiste no “conjunto de normas fixadas num


documento escrito, disciplinadoras da organização jurídica do Estado e do poder deste,

                                                            
60
Ibidem, p. 104 et seq. O autor assevera ainda que a Constituição Francesa de 1791, em seu artigo 2º, se
autodenominou representativa e elegeu como representantes o “cuerpo legislativo y el Rey” (p. 106).
61
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 41.
27 

dotadas de rigidez, ou seja, modificáveis por um processo mais complexo do que as leis em
geral”.62
Nessa esteira, pode-se afirmar que a Constituição funda o ordenamento jurídico e as
normas nela presentes definem o modelo de Estado vigente em determinado país, num dado
momento histórico.63 O Estado de Direito, portanto, assume a feição que lhe é atribuída pela
Constituição.
Essa conclusão tem relevância para se contrapor a opiniões doutrinárias que identificam
a submissão dos governantes à lei em sentido estrito como o elemento que define o Estado de
Direito, como é o caso de Bandeira de Mello, para quem o princípio da legalidade é
“específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade
própria”.64 Por sua vez, Felipe de Melo Fonte65 se refere ao surgimento do constitucionalismo
e do Estado de Direito como duas realidades distintas, mas que ocorreram em momentos
coincidentes da história, unindo-se para influenciar na formação do Direito Administrativo.
No mesmo sentido, Silvia Faber Torres afirma:

O apego à lei demonstrado nas constituições resultantes dos movimentos


revolucionários da burguesia – que transferiu para si os privilégios do clero e
da nobreza – é tão grande que fez surgir um novo tipo de Estado, o Estado de
Direito, que deve agir sobre o fundamento do Direito e pela forma do
Direito. Nele a lei tende a dominar todo o ordenamento jurídico e chega a
reduzir a tarefa dos juristas à sua exegese.66

De fato, as constituições resultantes das revoluções burguesas elegeram a lei como o


instrumento de contenção do poder por excelência, como se verá de forma mais aprofundada
adiante, porém tal fato não implica dizer que o Estado de Direito é decorrência pura e simples
da submissão do Estado à lei. Se assim o fosse, então as novas teorias que admitem o
exercício das funções estatais com fundamento direto na Constituição e outras fontes do
Direito – que não as leis em sentido estrito – estariam propugnando a extinção do Estado de
Direito, o que não é admitido pelos próprios autores citados.
Conforme já mencionado, o Estado de Direito se erige com a promulgação ou outorga
da Constituição. O texto constitucional cria e delimita a ordem jurídica à qual o Estado está
submetido e impõe os mecanismos para tanto. Da mesma forma, se define a relação do Estado
                                                            
62
MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003a, p. 180.
63
Ibidem, p. 181.
64
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso... Op. cit., p. 103.
65
FONTE, Felipe de Melo. Op. cit., p. 250.
66
TORRES, Silvia Faber. A flexibilização do princípio da legalidade no estado de direito. Rio de Janeiro:
Renovar, 2012, p. 23.
28 

com o ordenamento jurídico, podendo-se eleger a lei como instrumento de regência dessa
relação de forma exclusiva, prioritária ou compartilhada. Logo, não se deve apontar a
submissão à lei como elemento determinante, definidor, do Estado de Direito, mas, sim, a
própria Constituição.67
Ademais, a Constituição serve como fonte de validade de todas as normas do
ordenamento jurídico que cria. Essa noção, inspirada na obra de Hans Kelsen,68 implica que
as normas constitucionais são, pois, dotadas de supremacia.69 Nesta esteira, Carlos Ari
Sundfeld explica:

O ordenamento jurídico (conjunto de normas jurídicas) pode ser visto


graficamente como uma pirâmide. No topo dela encontra-se a Constituição,
pairando sobre todas as demais normas. A Constituição define quem pode
fazer leis (quem tem competência legislativa), como deve fazê-las (qual o
processo a ser seguido) e quais os limites da lei (p. ex.: os direitos
individuais que não podem ser prejudicados pela lei). Por isso se diz que a
lei tira seu fundamento de validade da Constituição. (...) Olhando no sentido
inverso, verificamos que a Constituição é o fundamento de validade de todas
as normas do ordenamento jurídico. Nisso consiste a supremacia da
Constituição.70, 71

Em razão da supremacia todas as demais normas do ordenamento jurídico devem total


adequação ao conteúdo da Constituição.72 Esta é uma característica presente em todas as fases
do Estado de Direito, não obstante as primeiras constituições, mais liberais, tenham sido
inócuas no que se refere a delimitar a liberdade dos legisladores, atribuindo justamente à lei a
função de traçar os contornos da atuação do Estado frente aos cidadãos, como se verá.

                                                            
67
Sérgio Guerra faz alusão à lei como um dos principais aspectos do constitucionalismo ( GUERRA, Sérgio. Op.
cit., p. 92). Estamos em crer que também Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Da constitucionalização... Op. cit., p.
174) e Ricardo Marcondes Martins (Da regulação... Op. cit., p. 27 et seq) e Eduardo Garcia de Enterría (La
Lengua... Op. cit., p. 102 et seq), embora não se refiram explicitamente à questão, concordam com o argumento
defendido, no sentido de que o Estado de Direito se caracteriza pela submissão da atuação estatal ao direito,
inaugurado pela Constituição, e não exatamente pela submissão à lei.
68
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 215 et seq.
69
MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003a, p. 180.
70
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 40.
71
Ricardo Marcondes Martins fornece importante notícia histórica sobre a primeira definição de supremacia da
constituição de que se tem conhecimento. Trata-se de texto publicado por Alexandre Hamilton no Independent
Journal o Federalist, em 14.6.1788. Nele a Constituição foi definida como “uma Lei Fundamental, superior a
todas as leis e atos administrativos, de forma que num conflito entre uma norma constitucional e uma norma
infraconstitucional sempre deverá prevalecer a norma constitucional”. O autor esclarece ainda que o voto do Juiz
John Marshall, da Suprema Corte norte-americana, no caso da “Marbury versus Madison” adotou a teoria
elaborada por Hamilton e obteve a consagração histórica. (MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação... Op.
cit., p. 32-33).
72
MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003a, p. 180.
29 

1.3.2.2 A lei como fonte primordial do direito

Outro traço que marcou decisivamente o Estado de Direito73 foi a eleição – pela
Constituição – da lei como o instrumento primordial de limitação do exercício das
prerrogativas estatais. Nesse sentido, destaca-se a lição de Luís S. Cabral de Moncada: “A
influência determinante, não única, do constitucionalismo revolucionário colocou no centro
da teoria do direito público o conceito de lei como expressão da vontade geral”.74
Foi a partir dessa opção feita pelas assembleias constituintes e retratada nas
Constituições que a lei ganhou status elevado, ocupando a posição central no Estado de
Direito. Isto é o que se denominou legicentrismo.75 Lembra Garcia de Enterría que já na
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi lançada a ideia essencial de
legalização do exercício do poder, que inspirou todo o Direito Público posterior.76 Segundo o
autor:

Não bastava trasladar a titularidade do poder do monarca ao povo, poder que


este há de exercer por meio de seus representantes e seus agentes, como
temos visto. A grande, a formidável novidade é que esse poder o povo vá a
exercê-lo precisamente por meio da Lei. A relação entre o poder que os
cidadãos criam pelo pacto social e estes mesmos cidadãos, que tem de
suportar o exercício desse poder, deve realizar-se precisamente por meio da
Lei, que é a expressão da vontade geral, segundo o dogma russeauniano, que
o artigo 6 da Declaração, como visto, guarda.77

Mas a eleição da lei para representar o império do Direito contra o Estado não foi
aleatória. O primado da lei tem forte cunho ideológico. Como adverte Fabrício Motta, a
legalidade “ganha relevo no momento de combate às antigas e pessoalistas práticas do
absolutismo, trazendo em seu âmago o desejo de garantia, a certeza jurídica e o controle do
poder do soberano.”78 Para garantir esses objetivos, nada mais adequado e necessário que a lei

                                                            
73
Sem embargo do argumento exposto no item anterior, de que a submissão à lei não é o que define o Estado de
Direito. Este é definido pela submissão à nova ordem jurídica, fundada pela Constituição que, por sua vez, define
a relação entre exercício das prerrogativas estatais e a lei. No Estado de Direito originário da Revolução
Francesa – no que foi seguido praticamente por todos os ordenamentos jurídicos ocidentais – a lei foi eleita
como o instrumento capital de limitação dos deveres-poderes estatais.
74
CABRAL DE MONCADA, Luís S. Op. cit., p. 654.
75
Com efeito, a lei era vista não como um instrumento técnico apto a garantir os direitos e liberdades inerentes à
natureza humana, mas como um valor em si mesma, valor este que fez possível a existência dos direitos e
liberdades: a ausência da lei, editada por um legislador firme e legitimado pela vontade geral, acarretaria a volta
ao passado de privilégios que se tenta esquecer. (MOTTA, Fabrício. Op. cit., p. 206).
76
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lengua... Op. cit., p. 109.
77
Ibidem, ibidem.
78
MOTTA, Fabrício. Op. cit., p. 203.
30 

fosse produto da vontade dos cidadãos que, de resto, eram os verdadeiros titulares do poder
soberano:

Ao relembrar que o direito público todo foi erguido sob as sólidas bases do
princípio da legalidade, García de Enterría anota que o princípio da
legalidade surge como a técnica precisa por meio da qual se consagra a ideia
de que somente a comunidade pode impor mandamentos aos homens,
mediante a lei feita por ela, pode castigar, proibir, levantar impostos e aplicá-
los em proveito geral, pode habilitar a ação dos agentes, juízes ou
funcionários que atuam em seu nome.79

A fim de obter melhor compreensão sobre o conceito de vontade geral, pode-se valer da
lição de Luís S. Cabral de Moncada, com base nos ensinamentos de Russeau:

A vontade geral é, como não podia deixar de ser, um conceito normativo que
não se confunde com a vontade individual [...] nem com a vontade de todos
[...]; não é uma vontade psicológica, nem empírica, na medida em que o seu
conteúdo é o constante do contrato social e nessa medida não pode deixar de
ser a melhor vontade possível do ponto de vista da sociedade em geral pela
mesma razão de que a vontade individual é também a melhor possível do
ponto de vista do seu detentor.80

Por seu turno, Carlos Ari Sundfeld ressalta a desmistificação da lei. Se antes era
considerada sagrada e imutável, no período medieval, e resultado da vontade divina,
expressada pelo monarca, no período absolutista, no Estado de Direito a lei ganha “caráter
humano”, passando a ser a expressão da vontade geral: “A lei, destinada a reger a vida dos
homens, deve ser feita por eles.”81 Nessa esteira, são elucidativas as colocações de Sérgio
Guerra:

O Governo – eis a premissa básica e fundamental daquela doutrina – deveria


ser não o Governo dos homens, mas o Governo das leis. Lei esta que, na
visão de Locke, seria o grande instrumento e meio para se alcançar a
formação da sociedade e o desfrute da propriedade em paz e segurança. (...)
a norma seria válida não por ser justa, mas, apenas, por haver sido posta por
uma autoridade dotada de competência normativa.
Desse modo, sustentava-se naquele importante momento histórico para a
humanidade que todas as carências deveriam ser supridas pelo contido na lei,
que a liberdade consistia no direito de fazer tudo aquilo que as leis
permitiam.82

                                                            
79
Ibidem, ibidem.
80
MONCADA, Luís S. Cabral de. Lei... Op. cit., p. 116.
81
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 45.
82
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 93.
31 

A legalidade surgida no Estado de Direito, por conseguinte, estava fortemente associada


à noção de democracia, isto é, incorporação da soberania pelo povo83, o que permite inferir os
seguintes postulados que a precedem:

(i) Supremacia da legitimidade democrática sobre a legitimidade monárquica


e, por esta via, da instituição parlamentar relativamente ao executivo,
conduzindo à prevalência do poder legislativo relativamente aos demais
poderes do Estado;
(ii) Absolutização do valor lei, enquanto expressão da vontade do
parlamento e da legitimidade democrática dotada de uma omnipotência
decisória relativamente a todas as demais fontes do Direito, surgindo mesmo
o entendimento de que só o legislativo poderia criar Direito, e conduzindo a
uma exacerbação radical do positivismo;
(iii) Subordinação integral da Administração Pública à vontade do poder
legislativo manifestada através de lei, verificando-se encontrar-se aquela
destituída de qualquer poder autônomo de normação e impossibilitada de
contrariar os limites resultantes da lei ou até, segundo uma formulação mais
exigente, proibida de agir sempre que não existisse uma norma legal
especificamente habilitadora da atividade.84

Demais disso, para cumprir as finalidades que determinaram o seu surgimento, a lei
deveria ser dotada de generalidade e abstração. Sobre a generalidade, dispõe Marcelo
Caetano: “A generalidade da lei implica a formulação de seus preceitos em abstrato e não para
certas pessoas, num caso concreto. Todos quantos se encontrarem ou vierem a encontrar-se
nas circunstâncias que estiverem pressupostas no preceito ficarão obrigados a observar o
comando normativo”.85 Por sua vez, a abstração “significava o estabelecimento de limites às
decisões posteriores a respeito de questões individuais”.86
É com base nos fundamentos e características apresentados alhures que se determinam
os novos contornos das relações entre os indivíduos e a lei. Com efeito, além de representar
para o cidadão a obediência a si próprio, enquanto partícipe da comunidade, a lei também
garante, de um lado, a segurança jurídica, traduzida na prévia definição da intervenção estatal

                                                            
83
Garcia de Enterría sintetiza bem esse pensamento: “a Lei é a decisão do povo inteiro, decidindo sobre o povo
inteiro, por meio de normas gerais e comuns (La Lengua... Op. cit., p. 116).
84
OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade.
Coimbra: Almedida, 2007, p. 53-54.
85
CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do direito administrativo. Coimbra: Almedina, 2003, p. 79,
apud GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 90, nota de rodapé n. 6.
86
MOTTA, Fabrício. Op. cit., p. 207. O autor ainda cita a elucidativa lição de Carré de Malberg, ao se referir às
decisões emitidas em abstrato: “por uma parte estão a salvo de qualquer surpresa, pois conhecem previamente as
disposições que poderão, ocorrido determinado caso, ser aplicadas pelos administradores ou o direito que, em
cada caso, será enunciado pelos juízes. Por outra parte, o que garante a segurança dos cidadãos é que a lei, em
razão de seu caráter abstrato e impessoal, será ditada pela autoridade legislativa com um espírito relativamente
desinteressado e, por isso, mais equitativo que as decisões individuais influenciadas pelo interesse do momento
ou em consideração a pessoas determinadas.” (CARRÉ DE MALBERG, R. Teoria general del estado. 2. ed.,
México: Fondo de Cultura Económca, 2001, p. 278).
32 

em sua esfera de liberdade, e, de outro, a igualdade, assentada na ideia de que todos os que se
encontrassem na mesma situação receberiam tratamento idêntico.87
Referindo-se à lei, arremata Sérvulo Correia: “através daquele instrumento de técnica
jurídica, acautelar-se-ia simultaneamente a certeza e previsibilidade, a racionalidade e a
justiça das limitações indispensáveis na esfera da liberdade e da propriedade de cada um.”88
No Estado de Polícia, diferentemente, o cidadão estava exposto à vontade muitas vezes
cambiável do príncipe, inserto numa relação genérica de submissão.89 Nesse sentido acena
Garcia de Enterría:

A relação política do cidadão com o poder deixará de ser uma relação de


sujeição ou subordinação pessoal, como a do escravo ao seu dominus, ou
como a do filho pequeno à autoridade de seu pai; será, de agora em diante,
uma relação jurídica específica de simples obediência à Lei. Relação
específica porque a Lei não pode formular de novo um princípio geral e
abstrato de submissão, senão quando se referir necessariamente a um
conteúdo determinado, a uma ação que, ainda que enunciada em termos
gerais e abstratos, tem de se referir a uma matéria concreta, a qual se
apresenta como uma exceção singular à situação geral de liberdade em que a
sociedade civil se constitui e na qual o cidadão está instalado.90

Nessa ordem de ideias, como expressão da vontade geral, “a lei era concebida como
sendo insuspeita em qualquer situação, e, portanto, intocável”.91 Desta maneira, estaria apta a
desenvolver seu papel de superioridade, impondo-se contra os atos praticados no exercício das
demais atividades estatais, isto é, condicionando as atividades de administrar e julgar, o que,
para Carlos Ari Sundfeld, consiste no sentido da superioridade da lei.92 Esclarece o autor:

O administrador e o juiz, ao exercerem suas atividades (...) apenas aplicam a


lei, apenas realizam concretamente a vontade geral, sem que suas vontades
particulares interfiram no processo. A atividade pública deixa, assim, de ser
vista como propriedade de quem a exerce, passando a significar apenas o
exercício de um dever-poder, indissoluvelmente ligado a finalidade estranha
ao agente. Ademais, ninguém exercerá atividade pública que não emane de
lei.93

                                                            
87
SERVULO CORREIA, José Manuel. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos.
Coimbra: Almedina, 1987, p. 18.
88
Ibidem, p. 24.
89
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lengua... Op. cit., p. 110.
90
Ibidem, p. 110-111.
91
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 93.
92
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 45.
93
Ibidem, p. 84-85.
33 

Os aspectos demonstrados até aqui contribuíram para a definição da lei desde o


momento de sua concepção, no início do Estado Liberal de Direito, e perduram até os dias
atuais, influenciando de forma ainda significativa o cotidiano da Administração Pública.
Quer-se com isto dizer que, não obstantes as várias nuances assumidas nas diferentes fases do
Estado de Direito e o surgimento de novas questões práticas a ensejar uma suposta
reconfiguração de sua utilização como instrumento de regência das relações entre o Estado e
os cidadãos, a essência da lei permanece a mesma e deve ser levada em conta na análise da
atual conformação da legalidade.

1.3.2.3 Separação das funções estatais

Estabelecido o povo como titular do poder soberano, fundada a ordem jurídica por meio
da Constituição e eleita a lei como instrumento jurídico primordial para a proteção dos
indivíduos contra as interferências abusivas do Poder Público, restava engendrar um sistema
capaz de garantir de forma eficiente o exercício das funções estatais.
Sem prejuízo das noções já apresentadas no início do presente trabalho,94 vale recordar
que após a transferência da titularidade do poder soberano ao povo, evidencia-se a natureza
instrumental do Estado, concebido em face da impossibilidade material de que os homens
exerçam as atividades estatais por si próprios. Logo, o Estado assumiu a incumbência de agir
como representante dos cidadãos em busca do bem comum. Daí porque se diz que exerce
função, traduzida na “atividade dotada de prerrogativas necessárias ao cumprimento do dever
de atender interesse alheio”.95 Desse raciocínio, salta a ideia de que o Estado incorpora as
prerrogativas necessárias à realização do interesse público e, nesse sentido, exerce poder:
“Enquanto dotado da capacidade de impor comportamentos, o Estado é dotado de poder, ou
seja, da possibilidade de impor pela força um comportamento a outrem.”96
É bem verdade que a noção de função não comporta o uso irrestrito das prerrogativas
conferidas ao gestor público: “Esse poder existe tão-somente na medida necessária para o
atendimento dos interesses dos particulares enquanto partícipes de uma sociedade, é apenas
um instrumento para o cumprimento do dever”.97 Contudo, a história mostra que parecem
inevitáveis os abusos.

                                                            
94
Item “1.1 Estado enquanto realidade instrumental: exercício de função na busca pelo bem comum”.
95
MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003a, p. 182.
96
Ibidem, ibidem.
97
Ibidem, ibidem.
34 

Justamente para conter o exercício desmedido do poder pelo Estado, Charles-Louis de


Secondat, o Barão de Montesquieu, delineou a teoria da separação dos poderes estatais. Tendo
por base as noções de Estado de Direito e função pública, o célebre filósofo propôs a
distribuição dos poderes estatais sob um critério material,98 criando assim o modelo que
inegavelmente influenciou a maioria dos sistemas jurídico-constitucionais do mundo
contemporâneo. Seu pensamento foi bem sintetizado por Bandeira de Mello, nos seguintes
termos:

Afirmava Montesquieu, como dantes se anotou, que todo aquele que detém
Poder tende a abusar dele e que o Poder vai até onde encontra limites.
Aceitas tais premissas, realmente só haveria uma resposta para o desafio de
tentar controlar o Poder. Deveras, se o Poder vai até onde encontra limites,
se o Poder é que se impõe, o único que pode deter o Poder é o próprio Poder.
Logo, cumpre fracioná-lo, para que suas parcelas se contenham
reciprocamente. Daí a conclusão: cumpre que aquele que faz as leis não as
execute nem julgue; cumpre que aquele que julga não faça as leis nem as
execute; cumpre que aquele que executa nem faça as leis, nem julgue. E
assim se firma a ideia de tripartição do exercício do Poder.99

Assim, a teoria da separação dos poderes estabeleceu-se, ao lado da lei, como grande
instrumento para a defesa da liberdade, pois, como assevera Paulo Otero “se numa mesma
pessoa ou corpo de magistratura se reúne o poder legislativo e o poder executivo a liberdade
estará perdida, o mesmo sucedendo se o poder de julgar não está separado do poder
legislativo e do poder executivo”.100, 101
Carlos Ari Sundfeld sintetiza o conteúdo da separação dos poderes da seguinte forma:
cada Poder, representado por um órgão, exerce uma espécie de função. Desta maneira, ao
Legislativo cabe exercer a função legislativa, mediante a edição de normas gerais e abstratas,
cuja finalidade é regular os demais atos estatais, bem como o comportamento dos cidadãos.
Ao Executivo, cabe a função administrativa, realizada por meio da aplicação das leis
elaboradas pelo Legislativo. Por fim, ao Judiciário compete o exercício da função
                                                            
98
Ricardo Marcondes Martins explica que Montesquieu “tripartiu as atividades do Estado, fazer as leis, executá-
las e julgá-las e atribuiu-as a órgãos diferentes”. (Ibidem, 2003a, p. 183).
99
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso... Op. cit., p. 49.
100
OTERO, Paulo. Legalidade... Op. cit., p. 48.
101
Sem embargo, vale mencionar a observação de Paulo Otero sobre o pensamento de Montesquieu, asseverando
ser obscuro ao afirmar que Legislativo e Executivo se completam na tarefa de produzir e aplicar as leis: “Nem a
lei é a expressão de uma vontade geral sem a intervenção do executivo, antes ela resulta da conjugação entre a
vontade do corpo legislativo que a aprova e da vontade do monarca que não usa o veto, nem o poder executivo
se limita a exercer uma simples função subordinada de aplicação de critérios decisórios a cuja definição é
totalmente alheio. Em vez disso, a legalidade aparece como síntese da racionalidade proveniente da vontade do
legislativo e da vontade do monarca, expressando um equilíbrio entre os dois poderes [...] a legalidade
administrativa surge como resultado de um conjunto de regras a que o executivo livremente deu a sua
concordância e a que aceitou submeter-se” (OTERO, Paulo. Op. cit., p. 52).
35 

jurisdicional, consistente no dever de julgar os conflitos entre os indivíduos ou entre os


indivíduos e o Estado.102
Com base nesse conteúdo, o sistema pensado por Montesquieu serviu aos ideais do
Estado de Direito:

O Estado Liberal, que se poderia também chamar de ‘Estado Legal’, foi


constituído para realizar o sentido que o Iluminismo conferia à lei; desta
maneira, o princípio da separação de poderes era chamado com o intuito
principal de garantir o primado da lei, seu império ou soberania e,
simultaneamente, o monismo do Poder Legislativo.103

Também no sentido de que a teoria da separação dos poderes se alinhava perfeitamente


aos desideratos do Estado de Direito que emergia, versa Bandeira de Mello:

A razão mesma do Estado de Direito é a defesa do indivíduo contra o Poder


Público. E a fórmula, por excelência asseguradora deste desiderato reside na
tripartição do exercício do Poder, graças a quê os cidadãos se garantem ante
os riscos de demasias do Executivo negando-se-lhe qualquer força jurídica
para estabelecer as regras que inovem inauguralmente na ordem jurídica,
sobreposse quando impliquem limitações à liberdade e à propriedade das
pessoas. Com efeito, foi exatamente para deter o poder do monarca, cujo
sucessor é o Poder Executivo, que se concebeu este mecanismo preconizado
por Montesquieu e difundido em quase todo o mundo civilizado.104

Os méritos da teoria da separação dos poderes consistiram em: (i) atribuir legitimidade à
lei, que passaria a ser produzida pelo Parlamento, por sua vez o representante do povo; (ii)
reduzir ao mínimo possível a atuação administrativa do Estado, submetendo-a à lei; e (iii)
conferir ao cidadão a prerrogativa de demandar o Estado em juízo, para a defesa de seus
interesses, em caso de descumprimento da lei. Todos esses aspectos simplesmente não
existiam no Estado de Polícia e representaram grandes avanços para a humanidade, por
ocasião da instituição do Estado de Direito.
Uma observação é necessária. Conforme destaca Ricardo Marcondes Martins, é
pertinente a crítica elaborada por Francis-Paul Bênoit sobre a teoria da separação dos poderes
de Montesquieu: “trata-se de uma teoria filosófica, com intuitos políticos, que não descreve
um direito positivo e, assim, não é científica, não consiste na análise de uma realidade”.105

                                                            
102
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 42.
103
MOTTA, Fabrício. Op. cit., p. 211.
104
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Lei e regulamento: a chamada “reserva de lei”. São Paulo:
Instituto de Direito Administrativo Paulista – IDAP.
105
MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003a, p. 184. Para conferir a obra crítica de Bênoit:
BÊNOIT, Francis-Paul. Le droit administratif français. Paris: Dalloz, 1968, p. 32-39).
36 

De fato, se considerado apenas o viés científico, há que se concordar com a crítica.


Contudo, é cediço que a essência da teoria preconizada por Montesquieu contribuiu de forma
inestimável para a formação e consolidação do Estado de Direito e dos ordenamentos
jurídicos que se seguiram em quase todo o mundo.106 Em última análise, é sobre suas bases
que se permiti, atualmente, o estudo científico dos ordenamentos jurídicos vigentes.
Ademais, como se vem sustentando ao longo desse trabalho, o Estado de Direito é um
produto do constitucionalismo. Funda-se juntamente com a promulgação ou outorga da
Constituição e tem a feição que lhe é por ela atribuído. Desta maneira, não há dúvidas de que
o Estado de Direito francês e todos os ordenamentos que nele se inspiraram objetos da
presente análise acolheram por meio de suas constituições a teoria da separação dos poderes e
dela se serviram firmemente para alcançar os propósitos a que se prestaram.

1.3.2.4 A salvaguarda dos direitos fundamentais

Por fim, a última contribuição do constitucionalismo para a formação do Estado de


Direito consiste na incorporação dos direitos fundamentais ao texto constitucional. Todo o
esforço para se instituir o Estado de Direito, aliás, tem por finalidade última a salvaguarda dos
direitos dos cidadãos.
Não à toa, o texto da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi
incorporado à Constituição Francesa de 1791, em seu preâmbulo. Nele, especialmente no seu
próprio preâmbulo e nos artigos 1º e 2º, resta clara a ideia de proteção dos direitos
fundamentais como finalidade do Estado de Direito:

Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, tendo


em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do
homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos
Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis
e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em
todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus
direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder
Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade
de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que
as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e
incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à
felicidade geral.
Em razão disto, a Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e
sob a égide do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão:

                                                            
106
Ricardo Marcondes Martins concorda com a crítica de Bênoit, mas também registra o valor histórico e a
contribuição prática da teoria de Montesquieu (Op. cit., Função... 2003a, p. 184).
37 

Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções


sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos
naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a
propriedade a segurança e a resistência à opressão.107

Residia nessa iniciativa a intenção de inserir os direitos fundamentais dentre os próprios


fins do Estado de Direito – na verdade, o fim último; e mais, colocá-los em patamar acima do
Estado, de forma que não pudessem ser alterados pelo poder público, nem mesmo por via
legislativa.108
Ao contrário, a lei assumiria o papel de assegurar os direitos fundamentais. Garcia de
Enterría após concluir que somente à lei os homens devem a justiça e a liberdade, chega a
afirmar que o novo conceito de lei surgido no Estado de Direito consiste em uma verdadeira
revelação divina.109 O autor afirma ainda que “a Lei não tem outro objeto, justamente, que
proteger e fazer efetiva a liberdade, articulando a liberdade de todos e assegurando sua
simples coexistência”.110
A partir daí se chegou à concepção de direito público subjetivo. Com efeito, ainda no
Estado de Polícia, já havia a noção de direito individual subjetivo, em virtude do qual o
cidadão que tivesse sua esfera privada invadida por outro particular, tinha o direito subjetivo
de recorrer aos tribunais para reavê-la. A constitucionalização dos direitos fundamentais,
somada às ideias de submissão do Estado à superioridade da lei e ao controle judicial, fez
possível que o indivíduo se insurgisse judicialmente contra o próprio Estado, cada vez que
este, em desrespeito à lei, ocasionasse lesão a direito daquele.111
Bandeira de Mello, ao associar as noções de interesse público e direito público
subjetivo, identifica que esse último pode assumir várias facetas. Segundo o autor, sempre que
o Estado descumpra normas consagradoras de interesses propriamente públicos, e assim
acarrete ônus, gravames ou simplesmente a privação de vantagens ou proveitos, suportados
individualmente ou por uma generalidade de indivíduos em situação assemelhada, haverá o
direito público subjetivo para a defesa de tais interesses.112

                                                            
107
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Universidade de São Paulo. Biblioteca Virtual de
Direitos Humanos. Disp. em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-
%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-
de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acesso em 13 mar.2013.
108
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 47-48.
109
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lengua... Op. cit., p. 118.
110
Ibidem, p. 121.
111
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos... Op. cit., p. 48.
112
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso... Op. cit., p. 63.
38 

É interessante notar como o ciclo de formação do Estado de Direito se fecha com a


fixação dos direitos fundamentais na Constituição: uma vez fundada a nova ordem jurídica,
em que os cidadãos, em conjunto, se reconhecem titulares do poder soberano, livres e
detentores de direitos que nem o Estado pode desrespeitar, mas, ao contrário, deve garantir;
erige-se a Constituição, dotada de supremacia e rigidez, que, a um só tempo, fixa os direitos
fundamentais a serem perseguidos, e determina o modelo jurídico-institucional para assegurá-
los, baseado: (i) na submissão do Estado à lei, eleita como a fonte legítima e superior do
direito, vez que emanada pelo povo por meio de seus representantes; e (ii) na separação dos
poderes, consubstanciada na ideia de que a elaboração e a aplicação das leis não serão
maculadas pelos órgãos estatais no exercício das prerrogativas de que se revestem para atuar.
Dessas conclusões se pode extrair um conteúdo básico da legalidade administrativa
forjada no Estado de Direito. Para tanto, sirvam-se as lições de Felipe de Melo Fonte:

A um só tempo [a lei] atende aos dois valores centrais dos sistemas jurídicos:
justiça e segurança jurídica. A lei veicula justiça, pois permite que os
cidadãos sejam tratados como iguais, estipulando obrigações gerais e
abstratas, válidas para todos os que estejam na mesma situação. Além disso,
o arbítrio só poderá ser contido se o Estado se vincular às normas de conduta
que produz. A separação de poderes impôs ao Estado-administração que se
subordinasse à vontade popular, encarnada na figura do Parlamento, o que
deu origem ao princípio da legalidade administrativa. Esse, portanto, é o
conteúdo básico do princípio (...).113

Cumpre, assim, analisar como essa concepção e esse conteúdo se modificaram ao longo
do Estado de Direito.

                                                            
113
FONTE, Felipe de Melo. Op. cit., p. 256.
39 

2 A EVOLUÇÃO DA LEGALIDADE NO ESTADO DE DIREITO

2.1 A legalidade no Estado Liberal

2.1.1 A concepção clássica da legalidade

No Estado Liberal surgiu a concepção clássica da legalidade. Por influência da


insatisfação geral dos cidadãos, abertura econômica e a consequente ascensão da burguesia, o
período foi marcado pelo surgimento da visão do homem como o centro das preocupações1:

O antropocentrismo é a verdadeira essência da modernidade. O contrato


social e a democracia parlamentar são a consequência desta atitude. O
indivíduo é a única fonte das certezas, devendo rejeitar a autoridade da
tradição e todas as opiniões consagradas e a evidência é a única fonte de
conhecimento e o único ponto de apoio para a sua reconstrução.2

A liberdade do homem passa a se contrapor à autoridade do monarca absoluto


imperante no Estado de Polícia e, como lema principal das revoluções burguesas, foi elevada
à condição de valor supremo, motivo pelo qual somente podia ser tolhida mediante lei,
entendida esta como a “autodisposição da comunidade sobre si mesma através de seus
representantes legítimos”.3
Os indivíduos, antes súditos e agora elevados à condição de cidadãos, passaram a ter
respeitadas as suas “liberdades e garantias de liberdades e direitos”, surgindo daí os novos
valores do Estado, enquanto ente instrumental: garantia da liberdade, da convivência pacífica,
da segurança, da propriedade.4
É a consagração da liberdade, aliás, que determina a denominação do Estado Liberal.
Para garanti-la, foi montado, sob a regência do constitucionalismo, o sistema de proteção
baseado na garantia dos direitos fundamentais, separação dos poderes e, no centro de tudo

                                                            
1
“A subjetividade moderna analisa-se assim no reconhecimento da capacidade individual para refletir acerca da
legitimidade do mundo que a rodeia, só prestando o seu aval àquilo que resista tal juízo crítico. A modernidade
tem um conteúdo normativo e o estado de direito não lhe podia ficar imune. A subjetividade tem por conteúdo a
liberdade vista não já como uma categoria abstrata de pensamento, mas numa perspectiva, sobretudo, ética,
como um veículo de reforma e legitimação das instituições políticas reais [...] É por isso que o pensamento
iluminista subentende sempre uma teoria da ética, subjetiva porque com origem individual, mas objetiva porque
fundada num princípio objetivamente válido e comprovável, resistente ao juízo crítico. É a partir daí que se
chega à construção do Estado de Direito.” (MONCADA, Luís S. Cabral de. Lei... Op. cit., p. 37).
2
MONCADA, Luís S. Cabral de. Ensaios sobre a lei. Coimbra: Almedina, 2002, p. 50 apud MOTTA, Fabrício.
Op. cit., p. 300, nota de rodapé 11.
3
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 9.
4
MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 80.
40 

isso, a lei. Em função do centralismo e da superioridade da lei, associou-se à legalidade a


essência do Estado Liberal de Direito:

A liberdade e a igualdade constituíam a lei para os revolucionários franceses.


Formavam o princípio basilar do Estado de Direito, sendo a regra a ser
observada por todos. Somente por meio da lei se poderia realizar a justiça
conforme a razão jusnatural, ter certeza jurídica e controle do poder. A lei
era a expressão jurídica dessa hegemonia da burguesia liberal, que, em
consequência, era reconhecida com “superioridade” frente a todos os demais
atos jurídicos e também frente ao documento constitucional. Dessa forma, a
lei, ao ocupar a posição mais alta, não tinha sobre si nenhuma regra jurídica
que servisse para estabelecer limites, para pôr ordem. A lei podia tudo,
porque estava materialmente vinculada a um contexto político-social e ideal
definido e homogêneo.5

A dicotomia existente entre Estado e sociedade deu o toque da conformação da atuação


estatal no período liberal. Os direitos dos cidadãos deveriam ser respeitados pelo Estado, de
forma que as atividades deste eram reduzidas ao mínimo necessário para que os indivíduos
pudessem se desenvolver:6 “Pregava-se que cabia ao Estado, além das atividades voltadas à
segurança (interna e externa), distribuição de justiça e tributação, oferecer um livre espaço de
atuação para o desenvolvimento do indivíduo, inclusive no domínio econômico.”7
Assim é que, no campo econômico, por exemplo, competia ao Estado a tarefa de impor
barreiras alfandegárias, com vistas à proteção dos mercados internos, mas, por outro lado, não
eram possíveis as ingerências típicas do absolutismo, como a regulação de preços e padrões
de mercadorias, o disciplinamento de aprendizes e o controle das inovações e da concorrência
com o objetivo de “assegurar balança comercial positiva e gerar riquezas taxáveis”.8
Houve a “absolutização do princípio da livre iniciativa”, que tinha viés positivo,
concernente à liberdade de empreender, e viés negativo, relativo à remoção de obstáculos ao
exercício das atividades econômicas pelos particulares, com a “abstenção dos Poderes
Públicos, no tocante a intervenções limitativas”.9
Em relação à tutela dos direitos fundamentais, portanto, o papel do Estado era
essencialmente negativo ou abstencionista, porque sua missão era simplesmente a de proteger
a propriedade e a liberdade.10 Por isso se afirma que “O Estado oferecia uma moldura
puramente formal, dentro da qual a sociedade vivia seu próprio dinamismo espontâneo, pela
                                                            
5
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 94.
6
Cf. MOTTA, Fabrício. Op. cit., 201.
7
Ibidem, ibidem.
8
Cf. MEDAUAR, Odete. Op. cit., p 81.
9
Ibidem, ibidem.
10
Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização... Op. cit., p. 177.
41 

própria concorrência indefinida das liberdades de seus membros”, o que resultou numa
“proeminência absoluta do Poder Legislativo.”11
Nesse sentido, vale mencionar a lição de Marcelo de Sousa Rabelo:

O princípio da legalidade administrativa começou a ser delineado como um


limite externo à Administração Pública demarcador da fronteira entre a
esfera de direitos individuais que não pode atingir e sua própria esfera de
ação (“Gesetzmassikeit der Verwaltung im Weiten Sinn”), dele decorrendo
logicamente a exclusiva impugnabilidade contenciosa dos atos
administrativos lesivos aos direitos fundamentais.12

No bojo das relações entre Estado e cidadãos, a lei se destacava como limite negativo à
atuação estatal, significando que a Administração poderia praticar tudo o que não fosse
proibido pela lei.13 “A marca, portanto, do período Liberal, era a postura estatal absenteísta e
legalitária, sendo um mero gestor de manutenção da ordem, do direito de propriedade e do fiel
cumprimento dos contratos.”14
Vale ressaltar, no entanto, que o abstencionismo não era absoluto, porquanto “sofria
derrogações, explicadas como casos excepcionais para atender fatos de emergência ou como
atuações subsidiárias para corrigir deficiências transitórias”.15

2.1.2 A dissidência revolucionária

A legalidade surgida no Estado Liberal francês, entretanto, não condicionava toda e


qualquer atividade da Administração. Com efeito, a obediência à lei deveria ocorrer apenas
para os casos em que fosse necessária a intervenção estatal sobre direitos fundamentais dos
cidadãos.16 Essa concepção era muito conveniente, como visto, para garantir que o Estado não
interferiria na ordem econômica, aspecto especialmente sensível na lógica burguesa:

                                                            
11
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 94.
12
SOUSA, Marcelo Rebelo de. Princípio da legalidade administrativa na constituição portuguesa de 1976.
Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 80, p. 5-15, out./dez. 1986, p. 14-15.
13
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização... Op. cit., p. 178.
14
GUERRA, Sérgio. Op. cit, p. 94-95.
15
MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 81. A autora cita exemplos de exceções nesse sentido nos campos econômico
e social: “concessão de terrenos a companhias ferroviárias ou a própria construção, direção e controle de
ferrovias; fixação de barreiras alfandegárias para proteger determinados setores econômicos da competição
internacional; financiamento público de determinadas empresas industriais consideradas de especial interesse ao
país; apoio aberto ou oculto (financeiro, diplomático, militar) a empreendimentos coloniais. [...] No campo social
cita-se, como exceção à ausência estatal, o ensino público, pois o que levasse ao aprimoramento do homem não
poderia ser estranho ao Estado (...). Encontram-se também os institutos de proteção social, consideradas
instituições públicas de beneficência, destinadas à ajuda aos carentes (...)”.
16
CABRAL DE MONCADA, Luís S. Op. cit., p. 70 et seq.
42 

As atividades estatais de competências do Poder Executivo contemplavam


apenas alguns serviços públicos, haja vista que o pleno exercício das
atividades econômicas competia à iniciativa privada. [...] A ação vinculada
que se apresentou no modelo liberal foi idealizada para que a norma a ser
cumprida pelo Poder Executivo determinasse, com exatidão, a conduta da
Administração Pública diante de certa situação fática. A norma indicaria o
único e possível comportamento que o administrador deveria adotar diante
do caso concreto, não permitindo espaços discricionários e conceitos abertos
para um julgamento subjetivo.17

Em todas as demais atividades, a Administração dispunha de uma esfera de atuação


livre da vinculação à lei e livre do controle judicial.18 Nesse sentido, arremata Di Pietro:

o princípio da legalidade era entendido no sentido da vinculação negativa,


significando que a Administração pode fazer tudo o que a lei não proíbe: a
lei define apenas as esferas jurídicas dos cidadãos como limite ao arbítrio do
poder; a essa esfera limitava-se o controle judicial; tudo o mais estava
abrangido pela ideia de discricionariedade entendida como poder político
(herança do período do Estado de Polícia), livre, portanto, de controle
judicial; a discricionariedade era muito mais ampla do que hoje, porque
havia uma parte da atividade administrativa que ficava fora do alcance do
Poder Judiciário.19

Nesse contexto, e somadas, ainda, as exceções impostas ao abstencionismo estatal,


conforme mencionado no item anterior, a discricionariedade administrativa era amplíssima e
manifestava-se como um poder político do monarca.20 Esse traço, claramente um resquício do
absolutismo monárquico, consiste em elemento fundamental para a compreensão do Estado
Liberal e do desenvolvimento do papel assumido pela Administração Pública posteriormente.
Referindo-se ao que chamou de “dissidência revolucionária”, explica Sérgio Guerra:

Os revolucionários seguiram, claramente, uma interpretação dissidente da


ortodoxia doutrinal de Locke e Montesquieu. Com efeito, essa interpretação,
somada a circunstâncias posteriores, permitiu e determinou o fortalecimento
de uma administração pública como não se havia conhecido, nem mesmo no
antigo regime, formando o próprio direito administrativo. Afirmava-se a
ideia de uma liberdade do Poder Executivo diante dos demais poderes –
notadamente, do Poder Judiciário. A razão determinante estava no fato de
que os revolucionários tinham receios dos antigos Parlamentos judiciais,
21
ligados aos privilégios do estamento que representavam.

                                                            
17
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 95.
18
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 14.
19
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização... Op. cit., p. 178.
20
CABRAL DE MONCADA, Luís S. Op. cit., 56 et seq.
21
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 94-95.
43 

Como consequência, erigiu-se na França um poder executivo forte e independente, que


terminou por originar, já na era Napoleônica, o Conselho de Estado francês, órgão dotado de
autonomia jurídica e jurisdição própria, cujo desenvolvimento resultou em uma das condições
para a fase seguinte da evolução da legalidade, a dizer, o Estado Social.22

2.1.3 O conteúdo da legalidade no Estado Liberal

O Estado Liberal representou significativos avanços no contexto do desenvolvimento


das sociedades modernas, sobretudo no que diz respeito às relações estabelecidas entre os
cidadãos e a Administração Pública. É valiosa a síntese de Odete Medauar:

Na avaliação genérica do Estado do século XIX a doutrina encontra vários


benefícios, entre os quais: valorização da liberdade do indivíduo que se
erigiu em medida da construção das instituições; desenvolvimento
econômico, técnico e científico acentuados; em muitos casos levou à
evolução pacífica para a democracia; impôs a ideia do poder legal em lugar
do poder pessoal; valores de reconhecimento e proteção da pessoa humana,
com exigência de liberdade e igualdade, separam-se da origem e se tornaram
valores conexos a toda uma civilização.23

Acompanhando essa evolução, surgiu e se consolidou a legalidade, cujo perfil, em sua


acepção clássica, pode-se traçar da seguinte forma: em primeiro lugar, representou a mudança
de paradigma no que respeita às relações entre o Estado e o ordenamento jurídico. Nesse
sentido, serviu de marco filosófico e político que caracterizou a submissão do Estado à lei,
pondo fim ao arbítrio da vontade pessoal do soberano.24
Além disso, a legalidade consagrou a lei como principal fonte normativa dos regimes
constitucionais, em virtude de representar a vontade geral, e por isso dotada de um valor em si
mesma, independentemente de seu conteúdo material.25, 26
Por meio do caráter abstrato e
genérico da lei, pretendeu garantir a liberdade dos homens.27
Na teoria original da separação dos poderes de Montesquieu, representou a vinculação
positiva da Administração, no sentido de que toda a atuação do poder público deveria estar
autorizada previamente em lei; no Estado Liberal francês, cingiu-se à limitação da atuação da
                                                            
22
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 98.
23
MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 82.
24
MOTTA, Fabrício. Op. cit., p. 209.
25
Ibidem, ibidem.
26
Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que o conteúdo material da lei no Estado Liberal baseava-se na ideia de
direito natural, decorrente da natureza humana e descoberto pela razão. Desta forma, conclui que o poder é
limitado por outro superior. (Da constitucionalização... Op. cit., p. 177).
27
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização... Op. cit., p. 177.
44 

Administração exclusivamente para conter seus avanços contra os direitos de liberdade e


propriedade dos cidadãos.28
Nesse passo, apesar de ter possibilitado uma posição de proeminência do Poder
Legislativo sobre o Poder Executivo no que tange à tutela dos direitos fundamentais dos
cidadãos, permitiu grande margem de atuação ao Poder Executivo para todas as demais
questões afetas ao cotidiano da Administração Pública – dentre elas destacando-se a
discricionariedade como poder político –, provocando o seu fortalecimento e abrindo caminho
para a nova conformação da legalidade no Estado Social.

2.2 A legalidade no Estado Social

2.2.1 As novas finalidades do Estado e a proeminência do Poder Executivo

A evolução da sociedade após a instauração do Estado Liberal trouxe novos desafios.


Com efeito, o momento de transição entre o Estado Liberal e o Estado Social é marcado por
uma constatação: a ausência de interferência estatal na esfera privada dos indivíduos, é dizer,
o exercício livre pelos cidadãos de seus respectivos direitos fundamentais, não garante, por si
só, a igualdade, a justiça e o bem estar. A liberdade, em si, não bastava. Na observação de
Bandeira de Mello:

Até um certo ponto da História havia a nítida e correta impressão de que os


homens eram esmagados pelos detentores do Poder político. A partir de um
certo instante começou-se a perceber que eram vergados, sacrificados ou
espoliados não apenas pelos detentores do Poder político, mas também pelos
que o manejavam: os detentores do Poder econômico.29

E foi justamente isso que o Estado Liberal propiciou: o efetivo fortalecimento da


burguesia, cujo enriquecimento ocorreu por meio da exploração das classes menos
favorecidas, o que a alçou à condição cada vez maior de influenciar o poder político. São
muitas as críticas ao Estado Liberal, cuja síntese assim se apresenta:

As críticas mais amenas apontam, nos aspectos gerais, por exemplo, a


contradição de um Estado com força coercitiva absoluta, mas que não dirige
o mercado e a sociedade civil, nem tem a função de dirigi-la; é a expressão
máxima da potência, pois detém o monopólio da força e coação e, ao mesmo

                                                            
28
Ibidem, p. 178.
29
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso... Op. cit., p. 50.
45 

tempo, é a expressão máxima da impotência em relação à sociedade, pois


não decide os conteúdos dos conflitos (...). Apreciações mais exasperadas
lhe atribuem a origem de tragédias duras e sanguíneas e da exploração do
trabalho humano (também de mulheres e crianças) no período da Revolução
Industrial; a criação de estruturas de dominação de uma classe sobre toda a
coletividade; uso de pele de cordeiro, isto é, a pregação de valores de
liberdade, garantia de direitos, do Estado submetido ao direito, para ocultar o
lobo, isto é, a verdadeira intenção de domínio.30

A manipulação do poder político pelos detentores do poder econômico fez criar um


círculo vicioso que redundou no descontentamento popular.31 Isto preparou o terreno para as
reações ao liberalismo, dando lugar ao surgimento de movimentos políticos com a finalidade
de combater as desigualdades e garantir a ordem. Como lembra Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, foi nesse contexto que surgiram os Estados totalitários, como “a Alemanha nazista, a
Itália fascista e o bloco comunista”, os quais, no entanto, “partem para o extremo oposto,
negando os direitos individuais e encontrando em formas autoritárias a solução para superar
as desigualdades sociais”.32
Em paralelo, houve também os Estados que optaram por uma fórmula menos drástica,
adotando “soluções intermediárias que, embora reconhecendo e garantindo os direitos
individuais, atribuíram ao Estado missão mais ativa para superar as desigualdades surgidas
nos âmbitos social e econômico.”33
Some-se a isso a complexidade das relações sociais, muito maior do que supunha o
ideário iluminista, em função do “desenvolvimento científico, técnico, industrial, o aumento
populacional, a especialização, a divisão do trabalho, o crescente entrelaçamento e a
transformação mais rápida das condições de vida”, que conduziram à “pluralização e
democratização do Estado”, aumentando e alterando assim as suas tarefas.34
A confluência desses fatores levou à mudança de postura do Estado, que deixou o
abstencionismo preconizado no período liberal, e passou a contribuir positivamente na busca
pela garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. Nascia ali o Estado Social, em que o
homem deixa de ser visto como o fim único do direito, cedendo espaço para a supremacia dos
interesses públicos sobre os individuais.35 Nesta esteira, leciona Di Pietro:

                                                            
30
MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 83.
31
Explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “A abstenção do Estado acabou por gerar consequências funestas no
âmbito econômico e social; as grandes empresas vão transformando-se em grandes monopólios e aniquilando as
de pequeno porte; surge uma nova classe social – o proletariado – em condições de miséria, doença, ignorância,
que tende a acentuar-se com o não intervencionismo estatal (Discricionariedade... Op. cit., p. 15).
32
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 15.
33
Ibidem, p. 16.
34
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 99.
35
Silvia Faber Torres caracteriza o Estado Social da seguinte forma: “Como ‘projeto moral’ de que era portador,
46 

Não mais se pressupõe a igualdade entre os homens; atribui-se ao Estado a


missão de buscar essa igualdade; para atingir essa finalidade, o Estado deve
intervir na ordem econômica e social para ajudar os menos favorecidos; a
preocupação maior desloca-se da liberdade para a igualdade.36

Com efeito, o Estado Social tinha como propósito a missão de corrigir as falhas do
Estado Liberal. Odete Medauar aponta como “ponto teórico nuclear”, como “chave” para a
compreensão do período, a natureza de “correção”, o intuito de corrigir os prejuízos
ocasionados na vigência do modelo anterior. Nas palavras da autora:

Deve-se partir do aspecto por ele ressaltado, que é a valorização do


indivíduo pelo reconhecimento e garantia de seus direitos na esfera privada e
pública; tais direitos tiveram interpretação historicamente reduzida aos
aspectos da vida, propriedade e iniciativa privada; esse dado, visto, de regra,
como um dos benefícios do século XIX, possibilitou a luta pela extensão e
garantia de outros direitos, além daqueles: direito políticos (...), direitos
sociais (...) e direitos econômicos (...). Tais direitos passam a ser encarados
não somente como direitos-liberdade, mas como direitos-exigência. A
correção de rota significa a tendência, na teoria e prática do Estado dessa
época (mesmo que tarde a se manifestar), ao reconhecimento e garantia de
direitos amplos aos indivíduos considerados em si próprios e em grupos.37

A autora também registra citação doutrinária que realça a importância do Estado Social
como forma de organização política de grande valor histórico para a humanidade, vez que “é
o primeiro sistema político de grandes dimensões que tentou conjugar democracia (no sentido
mais geral de abertura potencial do governo a grande número de pessoas) com liberdade
individual.”38
A mudança de paradigma em relação à postura do Estado possibilitou que,
“paulatinamente, sem nenhuma posição doutrinária preestabelecida, o Estado, cada vez mais,
abarcasse maior número de atribuições, intervindo mais assiduamente na vida econômica e

                                                                                                                                                                                          
o Estado Social de praticamente todo o Séc. XX legitimava-se pela ‘cura da existência’ (Daseinvorsorge), que
consistia nas prestações de bem-estar que garantissem ao homem as possibilidades de existência que não poderia
assegurar-se por si mesmo, ‘tarefa que ultrapassa tanto as noções clássicas de serviço público como da política
social sensu stricto.’ Tal ‘exigência ética’ teve por consequência a retomada da gestão direta da ordem social e
econômica pelo Estado para proceder à correção das disfuncionalidades da sociedade industrial competitiva (...).
(TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 39).
36
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. Cit., p. 16.
37
MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 87.
38
BALDASSARE, Antonio. Lo Stato sociale: una formula in evoluzione. In: BALDASSARE; CERVANTI
(Org.) Critica dello Stato sociale. Roma-Bari: Laterza, 1982, p. 40 apud Medauar, Odete. Op. cit., p. 89.
47 

social para compor os conflitos de interesses de grupos e de indivíduos”,39 o que gerou uma
evidente proeminência do Poder Executivo.
Nesse sentido, foi necessária uma adaptação da separação das funções estatais, a fim de
fornecer novo instrumental ao Poder Executivo para responder às crescentes necessidades
normativas, assegurando-se, ao mesmo tempo, as possibilidades de controle desse
instrumental por parte do Legislativo.40
Como destaca Sérgio Guerra, contribuiu determinantemente para esse cenário a
conquista do “sufrágio universal”, por meio do qual as massas se fizeram “ouvir”,
pressionando assim o Estado a assumir postura menos neutra diante do quadro de
desigualdades sociais estabelecidas.41
No Estado Social, portanto, “Deslocou-se a primazia do Legislativo para o Executivo,
afetando a relação entre os dois poderes, na modelagem da concepção clássica da legalidade
administrativa”.42 Com efeito, “o Executivo tornou-se nas sociedades contemporâneas o
centro de impulsos políticos, o único capaz de conceber e colocar em andamento uma
estratégia coerente”.43
Paulo Otero ressalta que a posição privilegiada assumida pelo Executivo no Estado
Social decorre, sobretudo, dos seguintes fatores:

(i) A crescente complexificação das matérias e a impossibilidade de o


parlamentar dar resposta pronta e conveniente a todas as exigências de um
moderno Estado de bem-estar conduziram a uma progressiva assunção de
poderes normativos por parte do executivo, incluindo a permanente feitura
de atos com força de lei cuja prática pelo executivo a Constituição
configurava como tendo uma natureza excepcional, podendo-se falar num
primeiro momento, em tentativa de fraude à Constituição, e, hoje, atendendo
à reiterada prática e à ausência de qualquer sancionamento judicial, será
possível defender-se a formação de um costume constitucional contra
constituitionem;
(ii) O déficit de informação do parlamento, isto em termos comparativos
com o governo, sendo tanto mais grave quanto cada questão envolve hoje
crescente tecnicidade e uma pluralidade de interesses contraditórios, reforça
a capitis diminutio parlamentar, fazendo-o surgir como um órgão destituído
de elementos que habilitem uma intervenção decisória conveniente e
oportuna, além de revelar a sua própria dependência institucional de quem
lhe forneça essa informação;
(iii) A progressiva transformação das eleições parlamentares num processo
plebiscitário ao executivo cessante e de escolha de um primeiro-ministro
                                                            
39
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 100.
40
MOTTA, Fabrício. Op. cit., p. 212.
41
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 100.
42
MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 146.
43
CHEVALIER, Jacques. CHEVALIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Prefácio e tradução de Marçal
Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 215.
48 

que, por esta via, ganha um protagonismo próprio e confere ao poder


executivo uma legitimidade democrática quase idêntica a um presidente da
república eleito por sufrágio direto, fazem obnubiliar a tradicional
concentração de legitimidade democrática na instituição parlamentar;
(iv) A introdução de alterações legais ao funcionamento do sistema eleitoral,
procurando evitar uma excessiva dispersão político-partidária no parlamento
e, deste modo, possibilitando a formação de uma maioria política susceptível
de sustentar um executivo durante toda a legislatura, inverte o ascendente
político parlamentar sobre o governo.44

A proeminência do Poder Executivo se revela em vários campos. Nesse sentido,


observa Odete Medauar que, do ponto de vista político, ocorre o que se considerou uma
desverticalização, em face do surgimento de novas vozes, representadas, por exemplo, pelo
aumento da participação de “grupos e associações na tomada de decisões”. Porém, segundo a
autora, essa dispersão de poderes “deve ser vista de modo relativizado”, vez que “o poder
estatal ainda tem a última palavra, mormente nos países em que o desenvolvimento político da
população não é pleno”, e, além disso, a centralidade do poder do Estado se manifesta ainda
com bastante força nos momentos de crise ou emergências.45
No que diz respeito ao âmbito econômico, o Estado Social representa a abertura
comercial, a redução das barreiras alfandegárias e a remoção de obstáculos à livre circulação
de mercadorias. Ao mesmo tempo, “passou a vigorar a política estatal de permanente direção
do sistema econômico”, inclusive com a participação direta na economia por meio do
exercício de atividades empresariais e da distribuição de bens econômicos e sociais, dando
lugar às denominações “Estado empresário” e “Estado distribuidor”.46
Por fim, complementa Odete Medauar que, dos pontos de vista axiológico e social, “o
valores da personalidade individual, como a liberdade, segurança e igualdade jurídica,
completam-se com a garantia de condições essenciais de vida e com a correção de
desigualdades econômico-sociais”, passando o Estado a atuar de forma ampliada em busca do
atendimento das necessidades da população, exprimindo a ideia de substituição da
providência religiosa pela providência estatal.47

                                                            
44
OTERO, Paulo. Op. cit., p. 107.
45
Cf. MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 87 e 88.
46
Ibidem, p. 88.
47
Ibidem, p. 89.
49 

2.2.2 O formalismo positivista no Estado Social

O desenvolvimento do Estado Social ocasionou o fortalecimento do Poder Executivo e


a adoção por parte deste de uma postura cada vez mais proativa. A incorporação de inúmeras
atribuições inexistentes no Estado Liberal fez também aumentar a preocupação com a
contenção do exercício da função administrativa. Esta circunstância histórica pôs em
evidência os defeitos do formalismo positivista consagrado como modelo jurídico no Estado
Liberal.
Com efeito, o formalismo jurídico surgiu paralelamente ao legicentrismo, à separação
dos poderes e à garantia aos direitos fundamentais, como se viu, noções chave no Estado de
Direito.48 No contexto histórico em que foi desenvolvido, isto é, em meio à vigência do
Estado Liberal, havia a preocupação legítima e urgente de “limitação do poder do Estado,
pelo direito, como garantia aos indivíduos contra o arbítrio”.49 E, como se viu, o instrumento
primordial eleito para o cumprimento dessa finalidade foi a lei:

O apego à lei demonstrado nas constituições resultantes dos movimentos


revolucionários da burguesia - que transferiu para si os privilégios do clero e
da nobreza - é tão grande que fez surgir um novo tipo de Estado, o Estado de
Direito, que deve agir sobre o fundamento do Direito e pela forma do
Direito. Nele a lei tende a dominar todo o ordenamento jurídico e chega a
reduzir a tarefa dos juristas à sua exegese.50

Nesse contexto em que, para realizar o Direito, era necessária a edição de leis cujo
conteúdo precípuo tinha a finalidade apenas de restringir negativamente a atuação estatal, é
dizer, em que os comandos legislativos eram bastante simples, cingidos a delimitar, por
exclusão, a esfera de atuação do Poder Executivo, era relativamente fácil submeter o Estado à
legalidade.
Entretanto, o foco exclusivamente nesse desiderato permitiu o desenvolvimento
distorcido da ideia de submissão do Estado à lei. Como assinala Fabrício Motta, “Se o Estado
estava submetido à lei, estava submetido ao direito. Essa concepção, no campo filosófico,
reflete a predominância do positivismo na época. Com efeito, os positivistas entendiam o

                                                            
48
Como destaca Silvia Faber Torres: “O princípio da legalidade, aqui, atende, à perfeição, à clássica divisão
entre os três poderes do Estado: cabe ao legislativo democraticamente composto a edição das leis, ao executivo
a, execução mecânica destas mesmas leis e ao judiciário garantir que elas sejam respeitadas.” (TORRES, Silvia
Faber. Op. cit., p. 24).
49
Cf. MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 102.
50
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 23.
50 

direito como posto exclusivamente pelo poder soberano do Estado, mediante normas gerais e
abstratas, materializadas na ‘lei’”. Nesta esteira, Felipe de Melo Fonte explica:

O racionalismo livrou os juristas da tradição vigente, difundindo a crença de


que o direito deveria ser cunhado pelo uso da razão. O princípio da
separação de poderes consolidou o poder de criar normas nas mãos das
assembleias representativas do povo, e a lei era e expressão da vontade geral.
Estes dois elementos somados levaram à rejeição do direito baseado em
glosas romanísticas e no costume. O projeto científico dos juristas de então
era editar códigos capazes de unificar as regras do direito, guiados pela razão
51
pura.

Como fruto do racionalismo jurídico contemporâneo ao legicentrismo, o positivismo


incorporou como postulados a completude do ordenamento jurídico e a neutralidade do
intérprete, “que não opera atividade crítica ao aplicar o direito, mas realiza a simples
subsunção”, sendo, desta maneira, a mera “boca da lei”.52
No campo das relações privadas, o modelo positivista atendeu de forma adequada aos
anseios do Estado Liberal. Com efeito, diante da pouca complexidade social e o cadenciado
avanço tecnológico, foi possível ao legislador fornecer ao intérprete soluções satisfatórias
para parte expressiva das relações jurídicas que se formavam no período, do que decorreu a
crença no “dogma da completude do código”. No que diz respeito às relações entre o Estado e
os cidadãos, entretanto, o formalismo positivista não teve qualquer destaque, sobretudo em
razão da relação de vinculação negativa mantida entre a Administração Pública liberal e a lei
quanto ao respeito aos direitos fundamentais.53 As leis eram pouco substanciosas em matéria
de regulação da atividade administrativa, mas, de certa forma, cumpriam o papel de afastar a
Administração Pública da esfera privada de direitos.
No Estado Social, no entanto, o formalismo positivista mostrou-se insuficiente para
garantir a realização do Direito. Com efeito, em decorrência da crescente necessidade de
atuação proativa do Estado nessa fase, adveio a preocupação de que o exercício das novas
competências fosse regido integralmente pelas leis, como forma de se controlar a atuação
estatal e garantir a sua submissão à legalidade.
                                                            
51
FONTE, Felipe de Melo. Op. cit., p. 252.
52
Ibidem, p. 253. O autor menciona como principal referencial teórico do positivismo Hans Kelsen e resume a
teoria da seguinte forma: “Por seu turno, o positivismo (de modo geral) foi o projeto de criação de uma teoria do
direito asséptica, isto é, livre de qualquer conotação moral ou ética. Inspirado no método científico de Augusto
Comte (positivismo científico), Hans Kelsen escreveu sua teoria pura do direito, onde procurou criar uma teoria
do direito que desse conta do fenômeno jurídico em todas as suas manifestações culturais, dando origem ao
chamado positivismo da norma, a qual deveria ser editada de acordo com uma norma fundamental de caráter
hipotético, que fundamenta o sistema jurídico com um todo, e do qual se deduz a validade das normas inferiores.
Considerações extrajurídicas ficavam de fora da ciência do direito.” (Ibidem, p. 252).
53
Ibidem, ibidem.
51 

Segundo Silvia Faber Torres, diante dessas circunstâncias, verificou-se rapidamente a


“incapacidade de o legislador apreender por inteiro a riqueza da vida, que sempre produzirá
casos que não se ajustam à previsão legal por mais rígida e casuística que fosse”.54 Como
consequência, a autora aponta, de um lado, a “progressiva construção jurisprudencial” na
esfera administrativa55 e, de outro, o desenvolvimento da discricionariedade administrativa:

No que se refere à realização das atividades administrativas e ao atendimento


do interesse público constatou-se sem delonga a impossibilidade de a lei
estabelecer prévia e exaustivamente todos os atos necessários ao seu
atendimento, o que demandou do legislador a concessão de certa liberdade
ao Executivo para tomada de decisões substanciais diante da apreciação das
circunstâncias particulares dos casos concretos, cabendo a ele, nessas
hipóteses, determinar o conteúdo dos preceitos legais. A lei passou então a
ser mais genérica e menos determinada, individualizando-a e precisando-a
definitivamente a decisão administrativa do caso particular.56

Em consonância com o formalismo positivista, a discricionariedade administrativa


passou a ser atividade jurídica, isto é, delimitada pela lei, o que não ocorria no Estado Liberal,
em que se caracterizava unicamente como um poder político. Nas palavras de Di Pietro:

o anterior princípio de que a Administração pode fazer tudo o que não esta
proibido foi substituído por aquele segundo o qual ela só pode fazer o que a
lei permite. A lei não é mais uma barreira externa, fora da qual a
Administração pode agir livremente; toda a atuação administrativa passou a
desenvolver-se dentro de um círculo definido pela lei. Fora desse círculo,
nada é possível fazer.57

Diante da já mencionada impossibilidade da lei dispor prévia e exaustivamente sobre


todos os comportamentos necessários ao cumprimento das inúmeras atividades estatais no
Estado Social, a lei assumiu um caráter ainda mais genérico e menos determinado, o que
levou à “concessão de certa liberdade ao Executivo para tomada de decisões substanciais
diante da apreciação das circunstâncias particulares dos casos concretos, cabendo a ele, nessas
hipóteses, determinar o conteúdo dos preceitos legais”.58

                                                            
54
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 24.
55
Nas palavras da autora: “A incompletude das disposições legais, a desvelar a impraticabilidade do dogma da
aplicação mecânica e subsuntiva da lei, impunha uma progressiva construção jurisprudencial, criadora mesmo de
novos institutos jurídicos como, entre outros, a teoria da imprevisão, a vedação do enriquecimento sem causa,
responsabilidade civil do Estado, desvio de finalidade, etc” (TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 24). Sobre a
relação entre o desenvolvimento do conselho de Estado Francês e a origem do Direito Administrativo, confira-se
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso... Op. cit., p. 38 et seq.
56
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 24.
57
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. Cit., p. 25.
58
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 24.
52 

Esse cenário evoluiu para a necessidade de intensificação do exercício da função


normativa pelo Poder Executivo. Como ressalta Di Pietro, em vista de sua grandeza, o Estado
– agora prestador de serviços, empresário e investidor – já não poderia depender dos
comandos legislativos para exercer todas as atribuições que lhe competiam.59 Nas palavras da
autora:

Como consequência, passou-se a conferir atribuição normativa ao Poder


Executivo, que veio a exercer essa competência por meio de decretos-leis,
leis delegadas, regulamentos autônomos. O legislador, em inúmeros casos,
passou a adotar a técnica de editar fórmulas gerais, standards, para serem
completados pelo Executivo; este deixou de ser apenas um executor de
normas postas pelo Legislativo.60

Assim é que, tanto no âmbito das ações concretas, como no exercício de competências
normativas, deveria o Poder Executivo observar positivamente os limites estabelecidos em lei,
cabendo ao intérprete a aplicação crua dos preceitos legais, como forma de garantir a justiça e
a segurança jurídica.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro sintetiza de forma bastante didática as transformações
pelas quais passou a legalidade neste período histórico, ao afirmar que a influência do
positivismo jurídico submeteu toda a atividade estatal à lei, substituindo-se a vinculação
negativa pela vinculação positiva aos comandos legislativos, o que acarretou o fortalecimento
da discricionariedade administrativa e a intensificação da competência normativa do Poder
Executivo.61
Ainda segundo a autora, em função desse processo, caracterizado também pelo
“afastamento do direito natural e a valorização do direito positivo”, a lei “perdeu seu conteúdo
material, significando isto que a lei é obedecida porque contém uma norma,
independentemente do seu conteúdo de justiça; daí a afirmação de que o Estado de Direito
transformou-se em Estado Legal”, o que trouxe consequências também para o controle
judicial da atividade administrativa que, cingido aos aspectos formais, não tinha qualquer
preocupação com princípios e valores.62
O formalismo positivista gozou de relevante prestígio até meados do século XX.
Entretanto, por força das falhas observadas no modelo estatal social, com destaque para os
acontecimentos da segunda guerra mundial, que provocaram uma crise em torno da aplicação

                                                            
59
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 18.
60
Ibidem, ibidem.
61
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da Constitucionalização... Op. Cit., p. 178.
62
Ibidem, p. 178 e 179.
53 

avalorativa da lei, levando à substituição do legicentrismo pelo constitucionalismo, o


positivismo formalista passou a ser questionado como teoria para a aplicação do direito.

2.2.3 O conteúdo da legalidade no Estado Social

No Estado Social observa-se a mudança do papel do Estado nas relações com os


cidadãos. Como destaca Di Pietro, demanda-se uma atuação proativa, “pela necessidade
amplamente reconhecida e proclamada de intervenção no domínio social e econômico para
assegurar a igualdade entre os cidadãos”, em função do que “Desloca-se a preocupação do
princípio da liberdade para o princípio da igualdade”.63
A postura proativa do Estado demanda um maior controle sobre suas ações. Ganha
relevo o formalismo positivista, sob a influência do qual toda a atividade administrativa
passou a submeter-se à lei. A vinculação negativa do Estado Liberal transforma-se em
vinculação positiva, aplicável mediante a simples subsunção. Disso resulta a afirmação de que
a Administração só pode fazer o que a lei permite.
A discricionariedade deixa de ser poder meramente político e torna-se poder jurídico.
Ao Poder Executivo é atribuída função normativa, ante a insuficiência da atuação legislativa,
em razão da complexidade das matérias ou da quantidade de normas necessárias para
disciplinar toda a atuação administrativa do Estado.
Por fim, o direito natural deixa de estar na base do direito positivo. Com isso, a
obediência à lei independe do conteúdo material de justiça nela veiculado. Aplica-se porque é
norma. Como consequência, o controle judicial sobre os atos estatais também assume viés
puramente formal.

                                                            
63
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização... Op. Cit., p. 178.
54 

3 A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Estado Democrático de Direito representa a terceira fase do Estado de Direito, com


início em meados do século XX e vigente até os dias atuais. Logo, é necessário ter em mente
que são válidas aqui todas as considerações feitas nos capítulos antecedentes, em relação às
bases ideológicas que sustentaram a formação do Estado de Direito, a saber:

a) A origem ligada ao constitucionalismo e a consequente fundação por meio da


promulgação ou outorga de uma Constituição.

b) A lei como manifestação da vontade geral dos cidadãos e o seu valor democrático
daí decorrente.

c) A separação dos poderes como forma de organizar equilibradamente o exercício


das funções estatais.

d) A salvaguarda dos direitos fundamentais.

A observação se justifica pela conveniência metodológica de deixar claro que os


elementos acima apontados constituem a essência do Estado de Direito, como organização
política e jurídica em que o exercício das funções estatais deve ser orientado à busca do bem
comum e deve necessariamente se submeter à ordem jurídica estabelecida pela Constituição.
Com isto se que afirmar que um Estado, para ser “de Direito”, tem a feição que lhe é atribuída
pela respectiva Constituição, e que esta não pode prescindir dos elementos essenciais
constituintes do Estado de Direito.
O ponto aqui é ressaltar que os elementos do Estado de Direito supramencionados,
embora sempre presentes, podem sofrer variações em seu conteúdo, a depender das opções
feitas pela assembleia constituinte. O conteúdo e a forma do Estado são definidos pela
Constituição. Ela determina o que é o bem comum e quais as formas para garanti-lo.
Com base nisso, entende-se que a posição privilegiada da lei no ordenamento jurídico,
correspondente ao conteúdo original da legalidade e que vigorou entre o Estado Liberal e o
Estado Social (vinculação negativa e positiva, respectivamente), foi, na verdade, uma opção
das Constituições de então, influenciadas pelos contextos político-sociais e as ideologias
predominantes nos respectivos momentos históricos. Contudo, o advento do Estado
55 

Democrático de Direito demanda um novo alinhamento quanto ao conteúdo da legalidade,


conforme o contexto político-social atual.

3.1 A transição entre o Estado Social e o Estado Democrático de Direito: crise da


legalidade e advento do neoconstitucionalismo

A consolidação do Estado Social, sobretudo na segunda metade do século XX, trouxe à


tona a deficiência do modelo. A expansão das atribuições públicas, com a ampliação da
intervenção nos domínios social e econômico, implica no correspondente “crescimento das
despesas sociais e o encolhimento das receitas, o que leva ao aumento das contribuições
obrigatórias da população ativa, de regra em número pequeno em relação aos beneficiários da
proteção social do Estado”.1
Esse quadro indicou sinais de inchaço e saturação do Estado e deu lugar a discussões
como os “limites do sistema de proteção”, a questão associada à “manutenção da ordem para
garantir a segurança física nas grandes cidades” e a “ingovernabilidade do Estado
contemporâneo”, apontados por Odete Medauar dentre os grandes problemas do Estado
Social.2
Silvia Faber Torres sintetiza de forma bastante didática as causas que levaram à
ascensão e ao declínio do Estado Social enquanto modelo de organização política:

Como "projeto moral" de que era portador, o Estado Social de praticamente


todo o Séc. XX legitimava-se pela "cura da existência" (Daseinvorsorge),
que consistia nas prestações de bem-estar que garantissem ao homem as
possibilidades de existência que não poderia assegurar-se por si mesmo,
"tarefa que ultrapassa tanto as noções clássicas de serviço público como da
política social sensu stricto." Tal "exigência ética" teve por consequência a
retomada da gestão direta da ordem social e econômica pelo Estado para
proceder à correção das disfuncionalidades da sociedade industrial
competitiva, o que, todavia, gerou o inevitável crescimento da máquina
estatal e com ele o desfalque nas finanças públicas, a desmistificação da
inesgotabilidade dos recursos do Estado, o inchaço da burocrática máquina
administrativa, etc.3

                                                            
1
MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 90.
2
Ibidem, p. 91. O trabalho da autora reúne diversas menções doutrinárias acerca das vantagens e desvantagens
do Estado Social. Entre os pontos positivos destaca-se: “(...) a longevidade do Estado social estaria fora de
discussão, pois seria forma histórica de organização política muito mais sólida que a liberal e a comunista e a
única capaz de conjugar-se com a democracia política: ante o absolutismo do indivíduo, própria de uma, e o
absolutismo da coletividade, própria da outra, o Estado social faz valer o relativismo de uma combinação
histórica dos direitos de uma e da outra.” (Op. cit., p. 92).
3
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 39-40.
56 

Paralelamente, como anota Odete Medauar4, o fenômeno da globalização, consistente


na “transnacionalização acelerada dos mercados, dos capitais, das relações econômicas, do
consumo, sem limites territoriais”, acarretou “fortes repercussões no âmbito político, social e
em vários outros” dos Estados, que tiveram de se adaptar à nova lógica da economia
mundial.5
Como consequência direta da globalização adveio o neoliberalismo, acompanhado pelo
movimento das privatizações e caracterizado por um “conjunto de idéias em favor da
economia de mercado”, resultando em diretrizes como o fortalecimento dos mercados
privados, a desregulamentação da economia, a privatização das empresas estatais, a redução
do déficit público e o corte das despesas sociais, dentre outras, o que implicou evidentemente
na “redução do espaço do Estado na sociedade, com a transferência, total ou parcial, de
atividades ao setor privado e com a menor ascendência do Estado em vários âmbitos da
sociedade”6. Ganha lugar a subsidiariedade da atuação estatal. Sobre o Estado subsidiário,
discorre Silvia Faber Torres:

Resultado da transformação do Estado de bem estar social, hoje em refluxo,


o Estado subsidiário firma-se gradualmente como modelo dominante de
organização política neste século que se inicia, estabelecendo, por meio do
princípio da subsidiariedade, que o justifica, um equilíbrio entre as
ideologias interventiva e supressora do poder público na ordem econômica e
social, e ensejando a devolução à sociedade das atividades que lhe são
inerentes. Ao Estado se atribui, por meio de sua aplicabilidade, uma missão
subsidiária, vale dizer, de ajuda, cujo propósito primordial é de encorajar,
estimular, coordenar e, em último caso, substituir a ação dos indivíduos e
dos grupos sociais.7

Na comparação entre o “Estado do bem-estar” e o “Estado dos primórdios do século


XXI”, assinala Odete Medauar:

a) Estado do bem-estar – Estado de grandes dimensões; intervém no


domínio econômico de modo forte, inclusive pela criação de empresas
públicas, pelo controle de preços, por subsídios; é um Estado paternalista,
com políticas sociais ativas; os recursos públicos realizam distribuição de
renda; b) Estado do início do século XXI – Estado restrito a funções
específicas; atua no domínio econômico de modo mais suave em relação ao
modelo anterior, por meio da regulação; ocorrem as privatizações e estímulo
à iniciativa privada; busca eficiência na gestão dos recursos públicos, busca

                                                            
4
Cf. MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 94.
5
Para uma visão mais ampla das consequências da globalização para os mercados internacionais e seus reflexos
no âmbito político e social, consulte-se a própria Odete Medauar (Op. cit., p. 94 et seq).
6
Cf. MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 96-97.
7
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 46.
57 

reduzir despesas com o social e incentiva o desenvolvimento do terceiro


setor.8

No campo jurídico, a vinculação positiva do exercício das funções estatais à lei típica do
Estado Social implicou num processo de inflação legislativa, como consequência do esforço
do legislador em tentar atender à demanda por normas que legitimassem a atuação
administrativa.9
A essa circunstância, some-se ainda o incremento da discricionariedade administrativa,
baseado no entendimento segundo o qual as leis não são capazes de estabelecer, adequada e
exaustivamente, a totalidade dos atos que o administrador deverá praticar no exercício de suas
atribuições. Com efeito, “Em virtude de tal constatação, impôs-se ao legislador que, na
impossibilidade de prever todas as situações que exigiriam a atuação do Poder Público,
conferisse certa margem de liberdade à Administração Pública na determinação do conteúdo
dos preceitos legais”,10 inclusive por meio da edição de normas infralegais.
A conjunção dessas razões levou à desvalorização da lei. “A idéia oitocentista de uma
sociedade livre, movendo-se dentro de uma moldura legal e codificada, em textos claros,
concisos e tendencialmente estáveis, transformou-se pela inundação de leis e regulamentos
instáveis – o mundo das incertezas jurídicas (...)”.11 Neste contexto, Manoel Gonçalves
Ferreira Filho destaca que, a despeito das novas atribuições do Estado Social, não houve a
criação de novos instrumentos de atuação, em função do que restou à lei cumprir esse papel, e
conclui:

a lei, com essa multiplicação, perde a sua majestade: em lugar de poucas


leis, passa-se a ter muitas; em lugar de leis que traduzam a Justiça e
disciplinem o fundamental, temos normas com o nome de leis, criadas ao
sabor das maiorias e modificadas aos sabor das maiorias; normas que se
alteram de instante a instante, sem permanência na realidade e na
consciência dos cidadãos. A proliferação da lei vem também marchar clara e
insofismavelmente para a desvalorização da lei.12

Contribuiu também de forma negativa e determinante para a reflexão sobre a legalidade


a conclusão de que o distanciamento entre o conteúdo das normas jurídicas e os valores
éticos, decorrente do formalismo positivista, não atendia suficientemente aos desideratos da

                                                            
8
Ibidem, p. 97-98.
9
Cf. FONTE, Felipe de Melo. Op. cit., p. 258.
10
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 106.
11
Ibidem, p. 105.
12
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O princípio da legalidade. Revista da Procuradoria Geral do
Estado de São Paulo, v. 10, p. 9-20, 1997, p. 11.
58 

instituição do Estado como sistema jurídico, tendo em vista que permitia a perpetuação de
injustiças sob a cobertura da legalidade. Nesse sentido, confira-se a lição de Sérgio Guerra:

O normativismo lógico, ao tratar dos problemas jurídicos como problemas


meramente de catalogação normativa, simplificando, dessa forma, o
pensamento acerca dos fenômenos concretos, criou “um realismo fora da
realidade” e consagrou um determinado tipo de comportamento mental
(tendo como modelo o formalismo das certezas matemáticas, ditas puristas,
das ciências da natureza), que ‘conduz à total separação do intérprete da
realidade, fazendo-o tornar-se insensível aos êxitos práticos do próprio
operar’.13

Com isso, “perde-se a mística em torno do ato parlamentar, consubstanciada na velha


crença de que a lei era veículo da razão, tal como pensado por Rousseau e Montesquieu”.14
Ao contrário, percebeu-se que a lei já não carregava consigo a vontade popular e o
formalismo, muito longe de possibilitar a efetiva realização da justiça, serviu para propósitos
absolutamente escusos. Daí se afirmar que “O positivismo pretendeu, à luz de um legalismo
acrítico, ser uma teoria do Direito fundada em juízos de valor, e que resultou em uma
ideologia movida por juízos de fato servindo de disfarce para autoritarismos de matizes
variados”.15
Com efeito, a gota d’agua para o desencadeamento da busca por um sistema político e
jurídico capaz de propiciar a efetividade da justiça foram as barbáries cometidas pelos
regimes totalitários que vigeram no século XX, em especial na Alemanha. Os mandatários do
nazismo alegaram em suas defesas o estrito cumprimento da lei,16 expondo a suscetibilidade
dos textos legais à influência dos detentores do poder político e seus interesses pessoais, bem
como a total dissociação entre as leis e os valores de justiça, sobretudo aqueles ligados aos
direitos fundamentais dos cidadãos. Essa realidade mostrou-se bastante comum também, em
maior ou menor medida, no cotidiano da Administração Pública de diversos países com
organização política e jurídica semelhante.
Nesse contexto, vale ressaltar a observação de José Afonso da Silva, ao denotar a
intenção do Estado Social de promover a igualdade e a justiça material, no que, no entanto,
fracassou, em boa medida porque fundada no formalismo jurídico:

                                                            
13
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 104.
14
FONTE, Felipe de Melo. Op. cit., p. 258.
15
GUERRA, Sérgio. Op. cit., p. 102.
16
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003b, p. 223.
59 

a igualdade no estado de Direito, na concepção clássica, se funda em


elemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis. Não
tem base material que se realize na vida concreta. A tentativa de corrigir
isso, no entanto, não foi capaz de assegurar a justiça social nem a autêntica
participação democrática do povo no processo político, de onde a concepção
mais recente do Estado Democrático de Direito, como Estado de
legitimidade justa (ou Estado de justiça material), fundante de uma
sociedade democrática qual seja a que instaura um processo de efetiva
incorporação de todo o povo nos mecanismos de controle das decisões, e de
sua real participação nos rendimentos da produção.17

O Estado Democrático de Direito, portanto, nasceu do esforço para promover a


“retomada das relações entre o direito e a ética”,18 com base na efetiva participação popular, a
qual representou, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, um novo elemento do conteúdo do
Estado Social, a influenciar “no processo político, nas decisões de Governo, no controle da
Administração Pública”.19
Nesse sentido, aliás, Odete Medauar pontua a distinção substancial entre a noção de
democracia estabelecida no Estado do século XIX e aquela alcançada no Estado do final do
século XX e início do século XXI. Cita a autora: “[no Ancien Régime] a democracia era
considerada somente sob o aspecto de modo de designação do poder: desde que na origem da
autoridade aparecesse a manifestação do povo, pela eleição, realizava-se a democracia; mas
democracia significa também modo de exercício do poder”.20
Naturalmente, a nova perspectiva política e social inaugurada com o Estado
Democrático de Direito repercutiu no âmbito jurídico e, consequentemente, sobre o princípio
da legalidade, como forma de assegurar a realização da justiça:

protesta-se pelo retorno do Estado Legal ao Estado de Direito; quer-se


novamente vincular a lei aos ideais de justiça; pretende-se submeter o Estado
ao Direito, não à lei em sentido puramente formal. Daí falar-se em Estado
Democrático de Direito, que abrange os dois aspectos: o da participação
popular (Estado Democrático) e o da justiça material (Estado de Direito).21

É neste contexto que surgem as noções de Estado de Direito formal e Estado de Direito
material, a primeira relacionada “ao modo de realização da ação do Estado e concretamente

                                                            
17
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p.
120.
18
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 33.
19
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. Cit., p. 26.
20
Cf. MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 100. O trecho citado pela autora é de Jean Rivero (RIVERO, Jean. A
propos des métamorphoses de l’Administration d’aujorrd’hui: democratie et Administration. Pages de
doctrine, vol. I, p 253-254).
21
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. Cit., p. 26.
60 

ao vínculo de seus atos à Constituição e à lei”; e a segunda relativa “ao conteúdo da relação
Estado-indivíduo, sob a inspiração de critérios materiais de justiça, com base numa idéia de
direito, expressão de valores jurídico-políticos vigentes numa época”; de modo que “os
componentes formais são mecanismos para concretizar os valores jurídico-políticos que
inspiram o Estado”. 22

3.2 O neoconstitucionalismo como suporte jurídico do Estado Democrático de Direito

A fim de embasar a nova orientação política, para que se fizesse possível garantir a
participação popular e a efetiva justiça material, ocorreram, porque imprescindíveis, as
necessárias adaptações no campo jurídico, o que, no caso, se concretizou no plano
constitucional:

A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a 2ª Grande Guerra


e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o lugar da
Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições
contemporâneas. A aproximação das ideias de constitucionalismo e de
democracia produziu uma nova forma de organização política, que atende
por nomes diversos: Estado democrático de direito, Estado constitucional de
direito, Estado constitucional democrático (...).23

Com efeito, a fundamentação jurídica do Estado Democrático de Direito correspondeu


ao resultado do processo de constitucionalização do Direito, cujo traço marcante consistiu na
ascensão da Constituição à posição primordial do ordenamento jurídico – em substituição à
antes privilegiada posição da lei –, acompanhada da pródiga inclusão de normas garantidoras
dos direitos fundamentais e do consequente surgimento de uma nova forma de interpretação e
aplicação do direito constitucional, baseada na normatividade dos princípios, sua distinção em
relação às regras e a sua aplicação mediante ponderação, doutrina essa a qual se denominou
pós-positivismo24 ou neoconstitucionalismo.25
O processo de constitucionalização do Direito teve início com a promulgação da Lei
Fundamental da República Federal da Alemanha, promulgada em 8 de maio de 1949, quando,

                                                            
22
Cf. MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 103. O texto citado pela autora é de Garcia Pelayo (GARCIA PELAYO,
Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. 3. ed. Madrid: Alianza, 1987, p. 103).
23
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do
Direito Constitucional no Brasil. Revista Eletrônica de Direito do Estado – REDE. Salvador, n. 9,
mar/abr/mai. 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em 10 fev.2013, p. 3.
24
Ibidem, p. 10.
25
MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São Paulo:
Malheiros, 2010 p. 29.
61 

no artigo 30, § 3°, preceitua que "o poder legislativo está vinculado à ordem constitucional; os
poderes executivo e judicial obedecem à lei e ao direito". Por meio desta disposição, quis o
constituinte alemão impor a “obediência não só à lei, em sentido formal, mas a todos os
valores e princípios que estão na base do ordenamento jurídico e que imprimem conteúdo
material à lei”.26
Maria Sylvia Zanella Di Pietro observa ainda que disposições semelhantes foram
trazidas pela Constituição Espanhola de 1978, cujo artigo 103.1 dispõe que a Administração
Pública serve com objetividade aos interesses gerais e atua com submissão plena à lei e ao
Direito; bem como pela Constituição Portuguesa de 1976, em dois dispositivos: o artigo 266,
item 2: "os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e a lei e devem
atuar com Justiça e imparcialidade no exercício das suas funções"; e, na parte referente aos
direitos e deveres fundamentais, o artigo 16: "Os direitos fundamentais consagrados na
Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de
direito internacional"; e “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos
fundamentais devem ser interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal
dos Direitos do Homem".27
Em linha com a tendência neoconstitucional, a Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 1º, afirma expressamente que a República Federativa do Brasil constitui-se em um
Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos a soberania, a cidadania, a
dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo
político.28
Como se observa das normas constitucionais acima mencionadas e em muitas outras
editadas depois, a realização da segurança – fim último do Estado enquanto ente político –
depende intrinsecamente da realização da justiça e, logo, do Direito, o qual, por sua vez, deve
traduzir em seu conteúdo a garantia de concretização dos direitos fundamentais e cuja
interpretação deve necessariamente apontar para a consecução das finalidades primordiais do
Estado. E estes elementos – os direitos fundamentais e todas as demais finalidades do Estado
– estão definidos na Constituição e não mais nas leis.
                                                            
26
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização... Op. cit., p. 181.
27
Ibidem, ibidem.
28
Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 28. A autora lembra ainda que a
Constituição Federal de 1988 adota praticamente os mesmos princípios da Constituição alemã de 1949. Noutra
passagem, elenca uma série de dispositivos constitucionais consagradores da participação popular na
Administração Pública, a exemplo do direito à informação (art. 5º, XXXIII), mandado de injunção (art. 5º,
LXXI), habeas data (art. 5º, LXXII), ação popular (art. 5º, LXXIII), realização facultativa de audiências públicas
pelas Comissões do Congresso Nacional (art. 58), direito de o cidadão denunciar irregularidades ou ilegalidades
perante o Tribunal de Contas (art. 74, § 2º), dentre outros (Op. cit., p. 35).
62 

Aqui se faz necessário retomar as ideias apresentadas no início deste capítulo: é


importante enfatizar que as finalidades, a organização política e a estruturação do
ordenamento jurídico de um Estado são definidos pela Constituição, em muitos casos, a
começar pelo preâmbulo.29 Trata-se de uma opção do legislador constituinte.
No período liberal a eleição da lei como o mecanismo primordial de aplicação do
Direito foi motivada pela ideologia revolucionária individualista vigorante naquele momento
histórico, em que se fez necessário entregar ao povo – representado pelo parlamento – a
possibilidade de decidir sobre o próprio destino, por meio da eleição de suas prioridades, à
época, a liberdade e a propriedade. Do ponto de vista político, era necessário apenas que o
Estado não interferisse nos direitos fundamentais individuais, o que se refletiu, no campo
jurídico, na correspondente vinculação negativa da atuação administrativa à lei.
A situação caótica gerada pelos abusos de poder econômico e político no sistema liberal
demandou que as atribuições estatais se expandissem. O Estado Social, por opção
constitucional, passou a atuar proativamente na perseguição de suas finalidades, agora
ampliadas. Em tese, o povo ainda detinha o poder de eleição de suas prioridades, por meio do
legislativo. Assim, o estrito cumprimento da lei, traduzido na vinculação positiva, garantiria a
satisfação das finalidades estatais, com vistas sempre à realização da justiça. O formalismo
positivista deu suporte a esse mecanismo de concretização do Direito.
Na prática, o inchaço do aparato estatal sofreu com problemas de ineficiência. Do ponto
de vista jurídico, a atuação legislativa se mostrou insuficiente para prever e orientar todas as
condutas da Administração Pública, do que decorreu o aumento desarrazoado e ineficaz do
número de leis e, ao mesmo tempo, o fortalecimento da discricionariedade administrativa e do
poder normativo do Executivo. Além disso, houve a constatação de que a simples submissão
aos comandos normativos não era suficiente para garantir a justiça, vez que o conteúdo das
leis nem sempre era reflexo dos valores caros aos cidadãos, vez que estavam sujeitos à
influência dos detentores do poder político e econômico. Ao contrário, mesmo a ausência de
conteúdo axiológico era legitimada pela aplicação acrítica da lei preconizada pelo formalismo
positivista. Todas essas circunstâncias levaram à desvalorização da lei e deram ensejo ao que
se denominou crise da legalidade.

                                                            
29
Maria Sylvia Zanella Di Pietro discorre sobre a importância e a natureza normativa do preâmbulo nas
Constituições, sobretudo as atuais. A autora se vale das lições, dentre outros, de Héctor Jorge Escola para realçar
a importância do preâmbulo como meio para a definição dos fins de interesse público que Estado deve alcançar e
cita: “é uma máxima admitida no curso ordinário da justiça que o preâmbulo de um estatuto revela a intenção do
legislador, faz conhecer os males que quis remediar e o fim que quis alcançar”. (DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 30).
63 

O combate à realidade resultante do fracasso do Estado Social como modelo político e


do formalismo positivista como modelo jurídico motivou a alteração dos paradigmas
constitucionais. Com efeito, era necessário driblar os problemas institucionais associados ao
desgaste da máquina estatal e ainda conformar os distintos interesses conviventes num
“Estado pluralista, próprio de uma sociedade aberta, em que se manifestam uma infinidade de
relações e interesses conflitantes”,30 contexto no qual a noção de democracia ganha contornos
substancialmente mais complexos:

O Estado Democrático de Direito baseia-se essencialmente no diálogo e na


discussão permanente. Prevalece, hoje, mais que uma democracia
representativa, fulcrada na regra da maioria, uma democracia deliberativa,
em que as decisões públicas devem ser justificadas por meio de argumentos
convincentes discutidos no bojo de um procedimento deliberativo, voltado
assim aos cidadãos livres como a seus representantes.31

Ademais, era impossível prever todos os comportamentos a serem praticados pela


Administração Pública, em sua tarefa de garantir a concretização dos direitos fundamentais e
do bem estar coletivo, ao mesmo tempo sem interferir indevidamente nessas mesmas
garantias. Esse caráter dualista foi enfatizado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao explicar
que, de um lado, requer-se o respeito aos direitos fundamentais e, de outro, deve-se observar a
vertente social, na qual o Estado “tem que intervir na órbita privada para diminuir as
profundas desigualdades sociais decorrentes da proteção excessiva às liberdades
individuais”.32
Por fim, era necessário compatibilizar a racionalidade argumentativa e a efetiva
realização da justiça, pois, como já destacado, a aplicação da lei sob critérios puramente
formais “pode, muito além de veicular a injustiça, ser fundamento para a barbárie”,33
frustrando assim as finalidades para as quais foi instituído todo o sistema jurídico e o próprio
Estado.
A convergência para a solução de todos esses aspectos foi a instituição do Estado
Democrático de Direito que representou, no campo político, a consagração do princípio da
subsidiariedade e, no plano jurídico, fez despontar o neoconstitucionalismo.

                                                            
30
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 37.
31
Ibidem, p. 43.
32
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 33.
33
BINENBOJM, Gustavo. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade no direito brasileiro. In:
ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e
seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Renovar, 2008.
64 

Como já se realçou, o neoconstitucionalismo se caracterizou pela edição de


constituições cujos conteúdos consagram uma infinidade de valores positivados e sua
respectiva posição de predominância no ordenamento jurídico, em substituição à antes
privilegiada posição da lei. Essas denominadas “bases valorativas” passam a orientar a
atuação do Poder Público, que já não está adstrita “somente à lei votada pelo Legislativo, mas
também aos preceitos fundamentais que norteiam todo o ordenamento jurídico”.34
Entretanto, essa mudança de rumos nos sistemas jurídico-constitucionais, consistente na
ideia mestra do neoconstitucionalismo, aos olhos dos críticos, traz distorções ao princípio da
separação dos poderes e enfraquece “duramente a democracia”, haja vista acarretar “a integral
submissão da política ao Direito”, possibilitando “ao juiz exercer o papel de legislador”, na
medida em que pode transferir para a Administração e o Judiciário as decisões sobre questões
importantes, antes de competência exclusiva do Legislativo.35
O autor rebate a crítica indicando que o entrelaçamento entre política e Direito
promovido pelo neoconstitucionalismo é necessário à consecução das finalidades do Estado,
sobretudo porque a história demonstra que um legislativo absolutamente livre – ou movido
por interesses individuais ou de determinados grupos – implica em graves riscos aos direitos
fundamentais. Em face disso, defende a discricionariedade legislativa:

Desde o final do nazismo, a humanidade esforça-se para eliminar a


separação entre a política e o direito. O fortalecimento do
constitucionalismo ocorreu justamente por causa desse desiderato: o
legislador, outrora livre, hoje é submisso a uma Constituição; o programa
constitucional, outrora uma mera recomendação, hoje é juridicamente
impositivo. Um mínimo de atenção à história da humanidade e à natureza
humana torna insustentável clamar por uma política liberta do Direito. Não
existe liberdade do legislador, existe discricionariedade do legislador.
Afirma-se, assim, sem nenhum constrangimento: nada, absolutamente nada
da política está imune ao Direito.36

Com essas colocações, e com base nas lições de Robert Alexy, segundo quem o
legislador está vinculado aos direitos fundamentais, o que, por si só, demonstra a sua
limitação pelo ordenamento constitucional vigente,37 Ricardo Marcondes Martins afirma que

                                                            
34
MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 147.
35
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op. cit., p. 30. O autor cita a obra de Susanna Pozzolo,
“Neoconstitucionalismo y especificidade de la interpretación constitucional”, na qual a autora “sintetiza de modo
claro e didático todos os argumentos contrários” ao neoconstitucionalismo, sendo o principal deles a mencionada
incompatibilidade entre a proeminência da constituição e a democracia.
36
Ibidem, ibidem.
37
ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado constitucional democrático. Revista de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, v. 217, jul./set. 1999, p. 55-66.
65 

a “própria democracia não é um valor absoluto” e “só existe no espaço constitucionalmente


admitido”, daí porque “Sempre que a Constituição admitir duas ou mais soluções no plano
abstrato, compete ao legislador escolher qual a solução deve ser fixada no plano abstrato”,
com isto concluindo pela compatibilidade entre a vinculação legislativa aos direitos
fundamentais e a democracia.38
Em consonância com o entendimento acima exposto, conclui-se que o
neoconstitucionalismo é uma realidade e como modelo jurídico-constitucional parece o
sistema mais adequado para dar suporte ao Estado Democrático de Direito, vez que propõe a
elevação dos valores democráticos ao nível constitucional,39 dessa forma possibilitando a
efetividade da participação popular e, consequentemente, do controle da atuação estatal em
sua busca pela realização da justiça por meio do Direito, inclusive no que se refere exercício
da função legislativa. Além disso, parece inconteste que se trata do modelo jurídico-
constitucional adotado – melhor dizendo, escolhido – pelas constituições atuais, inclusive a
Constituição Federal de 1988.

3.3 Os reflexos do neoconstitucionalismo para a aplicação do princípio da legalidade

3.3.1 A legalidade e o primado da Constituição

Com a instituição do neoconstitucionalismo, deslocou-se da lei para a Constituição o


papel de reproduzir os valores inerentes à realização da justiça. Com efeito, após os prejuízos
decorrentes dos abusos cometidos pelos estados totalitários no século XX, a confiança dos
cidadãos nos parlamentos ficou prejudicada,40 o que, somado à própria evolução da sociedade,
cada vez mais pluralista, terminou pondo fim ao monismo legislativo, no qual a lei, “desde as
revoluções burguesas até a consagração definitiva do constitucionalismo como ordem
jurídica-vinculante, era o centro do ordenamento jurídico e o grande instrumento de limitação
do poder estatal”.41
Gustavo Zagrebelsky afirma que é uma característica da sociedade atual a diversificação
dos grupos e extratos sociais. Explica o autor que a necessidade de conceder tratamentos
normativos diferentes a cada grupo durante o Estado Social e a própria heterogeneidade dos
                                                            
38
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op. cit., p. 30-31.
39
SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre
particulares. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 38. O autor destaca que “a ideia mestra [da constitucionalização do
Direito] é a irradiação dos efeitos das normas (ou valores) constitucionais aos outros ramos do direito”
40
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003b, p. 223.
41
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 107.
66 

conteúdos a serem regrados ocasionou uma “crise de generalidade da lei”, bem como a
ampliação desmesurada da produção legislativa, levando a um quadro de desordem e
consequente desvalorização dos textos legais:

As leis pactuadas, para conseguir o acordo político e social a que aspiram,


são contraditórias, caóticas, obscuras e, sobretudo, expressam a ideia de que
– para conseguir o acordo – tudo é suscetível de transação entre as partes,
42
inclusive os mais altos valores, os direitos mais intangíveis.

Em reação a esse quadro, onde vigora um direito “mecanizado e tecnificado”, elaborado


por um “legislador motorizado”, surgem as constituições contemporâneas, que carregam
consigo um “direito mais alto, dotado de força obrigatória, inclusive para o legislador” com o
objetivo de condicionar e conter as contradições na produção legislativa “geradas pela
heterogeneidade e ocasionalidade das pressões sociais que se exercem sobre ela”.43 E essa
nova postura dos textos constitucionais, ainda segundo Zagrebelsky, somente pode ter êxito se
tomado como premissa o “restabelecimento de uma noção de direito mais profunda que
aquela a que o positivismo legislativo a reduziu”, consistente no que denominou de princípio
da constitucionalidade.44
Sob as bases desse princípio, também chamado de princípio do primado da
Constituição, o exercício das funções estatais passou a ser vinculado diretamente à
Constituição, o que, no âmbito da Administração Pública, contribuiu determinantemente para
a alteração da noção clássica segundo a qual o exercício da função administrativa era
legalmente dirigido e vinculado à Constituição apenas indiretamente.45 O exercício da função
administrativa já não é mais simplesmente “cumprir as leis, editar atos individuais e concretos
que cumpram as leis, gerais e abstratas”,46 isto é, a lição tantas vezes repetida de Seabra
Fagundes, “administrar é aplicar a lei de ofício”, 47 já não é tão precisa para defini-la, como
foi durante o Estado Social, sob a influência do positivismo. Trata-se claramente da adoção de
uma nova concepção da legalidade, como assevera Silvia Faber Torres:

Uma tal vinculação, que alguns chamam de princípio da juridicidade,


consistindo em uma "legalidade mais exigente", faz esmaecer a concepção
                                                            
42
ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Ley, Derechos, Justicia. Madrid: Editorial Trotta, 2003, p.
37-38.
43
Ibidem, p. 39.
44
Ibidem, p. 39-40.
45
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 111.
46
MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003b, p. 223.
47
SEABRA FAGUNDES, Miguel. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. 5. ed., Rio de
Janeiro: Forense, 1979, p. 4.
67 

positivista-legalista a que estava adstrita a legalidade administrativa


tradicional para ressaltar de importância a observância às normas e
princípios constitucionais.48

É importante que se diga que esse é o resultado da interpretação do artigo 30, § 3º, da
Lei Fundamental da Alemanha de 1949, segundo o qual "o poder legislativo está vinculado à
ordem constitucional; os poderes executivo e judicial obedecem à lei e ao direito". Silvia
Faber Torres lembra que a expressão “lei e direito” foi bastante discutida, em especial na
doutrina alemã, porém, conclui categoricamente que “é intuitivo até que a diferenciação tem
um conteúdo marcadamente axiológico e de superação de um legalismo estritamente
formalista, conferindo primazia à ordem constitucional em sua totalidade”.49
Diferentemente, no direito brasileiro não há, em sede constitucional, a imposição
expressa ou qualquer menção à vinculação direta entre o exercício das atividades estatais e a
Constituição ou o Direito, porém, é cediço que a sistemática constitucional consagrou essa
vertente, como explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

A Constituição não repete a norma da Lei Fundamental da República Federal


da Alemanha no sentido de que os Poderes Executivo e o Judiciário
obedecem à lei e ao Direito. Mas não há dúvida de que adotou, de um lado, a
ideia de proeminência dos direitos fundamentais (não só pela sua ampliação,
mas também pela própria inserção, logo no Título I, dos princípios
fundamentais do Estado Democrático de Direito, dentre eles o da dignidade
da pessoa humana), e, de outro, a nova fórmula do princípio da legalidade,
em sentido amplo, para abranger todos os valores e princípios consagrados
de forma implícita ou explícita na Constituição.50

Noutra obra doutrinária, a autora remete a questão à interpretação do texto


constitucional, aduzindo que no art. 5º, II, da Constituição Federal de 1988, a utilização do
vocábulo “lei” abrange os aspectos formal, no sentido de que “emana do legislador”, e
material, vez que “lhe cabe o papel de realizar os valores consagrados pela Constituição sob a
forma de princípios fundamentais (enunciados no Título I da Constituição)”.51

                                                            
48
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 114.
49
Ibidem, p. 113.
50
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização... Op. cit., p. 182.
51
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade... Op. cit., p. 29. A autora ainda cita a importante
opinião de José Afonso da Silva (SILVA, José Afonso. Op. cit., p. 422) no mesmo sentido: “está consagrado no
art. 5º, II, da Constituição que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. O
texto não há de ser compreendido isoladamente, mas dentro do sistema constitucional vigente, mormente em
função de regras de distribuição de competência entre os órgãos do poder, de onde decorre que o princípio da
legalidade ali consubstanciado, se funda na previsão de competência geral do Poder Legislativo para legislar
sobre matérias genericamente indicadas, de sorte que a ideia matriz está em que só o Poder Legislativo pode
criar regras que contenham, originariamente, novidade modificativa da ordem jurídico-formal, o que faz
68 

Sem embargo, vale salientar que em consonância com o entendimento acima, o art. 2º,
da Lei nº 9.784/1999, dispõe, no caput: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros,
aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”; e,
no parágrafo único, inciso I: “Nos processos administrativos serão observados, entre outros,
os critérios de atuação conforme a lei e o Direito”.
Com estas considerações, parece fora de dúvida que, mesmo na ausência de disposição
constitucional nesse sentido, o direito brasileiro adotou o princípio do primado da
Constituição, de forma a consagrar, por conseguinte, a concepção ampliada de legalidade em
nosso ordenamento, segundo a qual a Administração Pública deve obediência não apenas à lei
em sentido estrito, mas a todos os demais princípios e valores estabelecidos no texto
constitucional.

3.3.2 A legalidade e a natureza axiológica das normas constitucionais

No Estado Democrático de Direito, explica Felipe de Melo Fonte, o “reconhecimento do


pluralismo político enquanto importante valor nas democracias” e a “retomada da
preocupação com a ética e a moral no interior do direito positivo” resultaram “na adoção de
constituições compromissórias, fartas em normas principiológicas contraditórias.”52 Nas
palavras de Silvia Faber Torres:

o Estado Democrático de Direito é eminentemente orientado a valores e, por


conseguinte, tendencialmente principialista. É um Estado pluralista, próprio
de uma sociedade aberta, em que se manifestam uma infinidade de
complexas relações e interesses conflitantes. Ou, ainda, um Estado
intrinsecamente inseguro, por que se volta à regulação e controle do
desconhecido. E como parece inevitável, decorrem destas características
precípuas alguns efeitos singulares para a legalidade, em especial a
progressiva indeterminação do direito e o deslocamento da lei para a
Constituição das garantias de liberdade, justiça e segurança, inserindo-se elas
em um jogo de ponderação com outros princípios, caracterizadas que são,
cada uma, como um "princípio entre princípios", suscetíveis, complemente-
se, a um constante sopesamento com as demais normas constitucionais.53

                                                                                                                                                                                          
coincidir a competência da fonte legislativa com o conteúdo inovativo de suas instituições, com a consequência
de distingui-lo da competência regulamentar” (Ibidem, ibidem).
52
FONTE, Felipe Melo. Op. cit., p. 256.
53
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 37.
69 

Nesse mesmo sentido Gustavo Zagrebelsky se refere à “ductibilidade constitucional”,


termo do qual se utilizou para se referir à necessidade de incorporação pelos textos
constitucionais atuais de valores e princípios, aos quais não se pode atribuir caráter absoluto,
de forma que possam ser compatíveis com os demais igualmente consagrados, sendo esta a
única maneira de garantir a unidade e a integração dos sistemas constitucionais e ao mesmo
tempo manter a compatibilidade com a sua base material pluralista.54
Naturalmente, esses sistemas constitucionais “tendencialmente principialistas”55
influenciaram de forma decisiva para uma nova concepção da legalidade:

Num tal cenário de interesses e contra-interesses sobre o sentido


disciplinador de certa matéria apenas se consegue alguma estabilidade se o
texto das leis inclui referências literais habilitadoras de uma argumentação
justificativa da satisfação das diversas pretensões formuladas e em conflito.
Surgem no texto da lei, deste modo, ambiguidades terminológicas
intencionais, obscuridades propositadas e lacunas conscientes. Remete-se
para as teorias da argumentação a defesa daquela que será a solução mais
conforme à lei, sacrificando-se a certeza e a uniformidade na concretização
aplicativa do direito ao caso concreto em nome do consenso político e social:
o procedimento decisório absorve e subverte a razão de ser da lei.56

Com base nessas ideias, o autor buscou contrapor-se ao que Gustavo Zagrebelsky
denominou de “inércia mental” representada pela fórmula positivista por meio da qual se
concentrava a produção jurídica unicamente na instância legislativa, a partir do que se
pressupunha a redução do direito ao disposto na lei,57 com base numa aplicação meramente
subsuntiva dos preceitos nela estabelecidos de forma rígida, estática, supostamente completa
(completude do ordenamento), sob o fundamento de que somente assim se estaria garantindo
a segurança e a estabilidade na realização do Direito e da justiça.
O advento do neoconstitucionalismo significou, ao contrário, a busca por um método de
concretização do Direito baseado na instituição de normas fluidas, aplicáveis a cada caso
concreto da forma que melhor satisfaça a composição dos vários interesses envolvidos:

A disciplina legislativa exaustiva, pretensamente aplicada por meio de um


processo lógico-subsuntivo, cede espaço a um modelo aberto de
normatização, "imprevisível na sua concretização aplicativa". O direito deixa
de ser orientado para o passado, que é o tempo da certeza jurídica, e passa a
ser orientado para o futuro, que é o tempo da incerteza e do aleatório. A
produção normatiya é permeada de indeterminação em suas disposições e de
                                                            
54
Cf. ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit., p. 14.
55
A expressão “tendencialmente principialista” é de Paulo Otero (OTERO, Paulo. Op. cit., p. 166).
56
OTERO, Paulo. Op. cit., p. 161.
57
Cf. ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit., 33.
70 

insegurança quanto ao próprio objeto regulado, a exemplo da biogenética, da


vida econômica, do meio ambiente e da nova sociabilidade, muitas vezes
regulados nas "condições atuais do conhecimento".58

A partir daí erigiu-se e ganhou destaque a Teoria dos Princípios, universalmente


reconhecida,59 como doutrina de maior influência e melhor adaptação às novas finalidades
estatais nascidas no contexto do Estado Democrático de Direito. A influência desta teoria
sobre a nova concepção da legalidade será objeto do item seguinte.

3.3.3 A legalidade e teoria dos princípios

3.3.3.1 A evolução do conceito de princípio jurídico

O conceito de princípio jurídico evoluiu para se adaptar ao neoconstitucionalismo.


Como decorrência do primado da Constituição, que impôs a observância direta dos preceitos
estabelecidos no texto constitucional, bem como com a inclusão de conteúdo marcadamente
axiológico nas cartas políticas, contemplando valores e interesses dos diversos grupos sociais,
por vezes, contraditórios entre si, fez-se necessário restabelecer os paradigmas de positivação
e aplicação das normas constitucionais. Sobre a evolução da concepção de princípio vale
citar:

Na primeira fase aproximava-se do significado comum da palavra:


princípios eram os fundamentos de uma dada disciplina jurídica, seus
aspectos mais importantes. Na segunda fase adquire significado técnico:
princípios deixam de ser todo assunto importante e geral, e passam a ser
determinados enunciados do direito positivo, dotados de extraordinária
importância para o entendimento de todo o sistema, diante da alta carga
valorativa a eles atribuída. Têm conteúdo normativo, pois fazem parte do
sistema jurídico, são diretrizes ou vetores de interpretação de todas as
normas jurídicas extraídas do sistema, mas não são normas jurídicas
autônomas, não têm a estrutura própria das normas jurídicas. Vigora na
Teoria Geral do Direito a terceira fase do conceito de princípios jurídicos:
estes têm estrutura lógica de normas jurídicas.60

                                                            
58
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 36.
59
MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003b, p. 225.
60
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p.
27-28.
71 

A proposição de uma nova classificação das normas jurídicas,61 inicialmente por Ronald
Dworkin,62 sendo em seguida consolidada com Robert Alexy,63 consistiu, basicamente, na
adição dos princípios, ao lado das regras, ao conceito de norma jurídica autônoma, desta
forma “retomando a relação entre direito e moral afastada pelo positivismo jurídico com o
asseverar que o direito estaria também ligado a ideais morais, que fundamentariam
vinculativamente as decisões jurídicas.”64
Para sintetizar essa teoria, deve-se frisar, primeiramente, que “Princípios consistem na
positivação de um valor. (...) Enquanto valor possui caráter axiológico (âmbito do bom).
Quando positivado, o valor é introduzido no ordenamento por intermédio de um princípio
(âmbito do dever-ser)”65. Na assertiva de Humberto Ávila:

Os valores constituem o aspecto axiológico das normas, na medida em que


indicam que algo é bom e, por isso, digno de ser buscado ou preservado.
Nessa perspectiva, a liberdade é um valor, e, por isso, deve ser buscada ou
preservada. Os princípios constituem o aspecto deontológico dos valores,
pois, além de demonstrarem que algo vale a pena ser buscado, determinam
que este estado de coisas deve ser promovido.66

Princípios jurídicos, portanto, “têm estrutura lógica de normas jurídicas”67 e, assim,


juntamente com as regras, “são passíveis de aplicação direta no mundo fenomênico,
consistindo ambos em expressões irredutíveis de manifestação do deôntico”, isto é, se
apresentam conforme o esquema lógico “se a hipótese, deve ser a consequência”.68 Princípios
e regras tratam-se, assim, de distintas espécies de normas jurídicas, cujas diferenças ficam por
conta da “provisoriedade”, no caso dos primeiros, de seu dever-ser, “que lhe confere um

                                                            
61
Vale ressaltar a lição de Genaro Carrió, lembrada por Ricardo Marcondes Martins, no sentido de que “as
classificações não são verdadeiras ou falsas, mas úteis ou inúteis” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso...
Op. cit., p. 14).
62
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 36-46.
63
ALEXY, Robert. Teoria dos Direito Fundamentais. 2. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 85-170.
64
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 100.
65
MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op. cit., p. 18.
66
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12. ed. São
Paulo: Malheiros, 2011, p. 156.
67
Ricardo Marcondes Martins conceitua norma como sendo a “padronização, por meio de abstração, da
ocorrência de determinado fenômeno.” E prossegue: “A norma sempre obedece a um esquema lógico, em que o
consequente é condicionado a um antecedente – “H → C” (se a hipótese, então a consequência). Se a ligação
obedece ao princípio da causalidade, decorre de uma imposição da natureza, é chamada norma natural; se
obedece ao princípio da imputação, decorre de uma imposição humana, é chamada de norma de comportamento.
A norma jurídica é uma norma de comportamento, mas, ao contrário das normas morais e religiosas, ela autoriza
a obtenção da tutela jurisdicional. É, na feliz síntese de Godofredo Telles Jr., um imperativo autorizante.”
(MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op. cit., p. 13).
68
Ibidem, p. 15. O autor explica que a expressão “expressões irredutíveis de manifestação do deôntico” é de
Paulo de Barros Carvalho (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos jurídicos da
incidência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 17).
72 

caráter prima facie.”69 Com efeito, na medida em que consistem em valores positivados, os
princípios têm como característica fundamental a relatividade, ou seja, o seu conteúdo está
sempre em estado de tensão em relação aos demais princípios reconhecidos pelo ordenamento
jurídico, pelo que sua importância e realização variam de acordo com as circunstâncias em
cada contexto a que se refere. Sobre a distinção entre essas duas espécies de normas jurídicas,
Ricardo Marcondes Martins observa:

Há diferença qualitativa tanto no modo de positivação – os princípios


exigem que seja atingido um fim, mas não fixam o comportamento a ser
adotado para que o fim seja atingido, ao contrário das regras que fixam o
comportamento a ser adotado –, como no modo de aplicação – ao menos
num primeiro momento, a aplicação dos princípios dá-se pela ponderação, a
aplicação das regras dá-se pela subsunção.70

O tema relativo à distinção entre princípios e regras, no que respeita ao modo de


aplicação, será retomado no item adiante. No que concerne à distinção relativa ao modo de
positivação, cumpre ressaltar que se refere precipuamente à natureza fluida, maleável com
que se apresentam os princípios.
Para Robert Alexy, princípios são “mandamentos de otimização”, os quais, enquanto
normas jurídicas, determinam que os valores neles estabelecidos sejam realizados na maior
medida possível, podendo ser satisfeitos em graus variados, a depender não apenas das
possibilidades fáticas existentes, mas também, das possibilidades jurídicas, estas determinadas
pelos princípios e regras colidentes.71 Diferentemente, ainda segundo o autor, as regras
manifestam-se em “determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível”,
significando isto que são válidas ou não são válidas, porém, se o são, “deve-se fazer
exatamente aquilo que ela exige”.72
Nessa distinção com as regras, em relação ao modo de positivação, repousa um dos
aspectos da concepção de princípios jurídicos erigida pelo neoconstitucionalismo, cujo cerne
consiste na ideia de que “não existe princípio absoluto. Todo princípio é relativo, é suscetível
de ponderação e, dependendo das circunstâncias, pode ser afastado por um princípio
oposto.”73.
Nesse sentido, convém enfatizar: os princípios constitucionais se constituem na base do
sistema jurídico, a fonte precípua de normatividade, cuja concretização ocorre em vários
                                                            
69
Cf. TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 100.
70
MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op. cit., p. 16.
71
Cf. ALEXY, Robert. Teoria... Op. cit., p. 90.
72
Ibidem, p. 91.
73
MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op. cit., p. 36.
73 

níveis (constituinte, legislador, administrador, juiz, particular), primeiramente por meio da


subsunção, vez que são normas jurídicas autônomas, estruturadas pela sequência lógica “se a
hipótese, deve ser a consequência”; e, nos casos de colisão, também por meio da ponderação,
vez que são “mandamentos de otimização”, que determinam que algo seja realizado na maior
medida possível, de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas aplicáveis a cada caso
concreto.
Nesse sentido, afirma Ricardo Marcondes Martins, buscando aprimorar a teoria
inaugurada com as ideias de Ronald Dworkin e Robert Alexy, que os princípios são “normas
de estrutura com dupla estrutura”. Explica o autor:

Estes [os princípios] são, em geral, normas de estrutura, pois disciplinam a


edição de outras normas jurídicas. Sempre que uma regra é elaborada, seja
abstrata ou concreta, geral ou individual, incide o princípio jurídico impondo
ao editor o dever de efetuar uma ponderação entre os princípios relacionados
ao caso, de apurar o peso de cada um deles e de considerar o princípio
incidente, na medida do peso apurado, no conteúdo da norma editada. O fato
descrito na hipótese normativa do princípio é a edição de uma norma
jurídica. A hipótese é, assim, fechada; a incidência dá-se por ocasião da
edição. Os princípios incidem também quando as circunstâncias lhes
atribuem determinado peso, impondo a edição de uma regra que concretize o
valor neles positivados. Nesses casos, o fato descrito na hipótese do
princípio não é a edição de uma regra, mas um acontecimento que dê ao
princípio determinado peso; trata-se, assim, de uma hipótese aberta; a
incidência não se dá pela elaboração de uma norma jurídica, mas exige a
edição desta.74

Dessa noção, aliás, exsurge o outro aspecto crucial para entender a relação entre a
evolução do conceito de princípio jurídico e a legalidade, a qual diz respeito ao modo de
aplicação de regras e princípios como espécies de normas jurídicas. Esse tema será objeto de
análise do tópico seguinte.

3.3.3.2 A ponderação como método de aplicação do Direito

Princípios e regras distinguem-se também no que diz respeito ao modo de aplicação.


Neste particular, segundo Ronald Dworkin, as regras estão suscetíveis ao esquema do “tudo
ou nada”, ou seja, “Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e nesse

                                                            
74
Ibidem, p. 20.
74 

caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não válida, e neste caso em nada contribui
para a decisão.”75
A aplicação das regras, portanto, se baseia precipuamente no método da subsunção, que
corresponde à necessária verificação da perfeita adequação entre os fatos ocorridos no mundo
fenomênico e a hipótese prevista na norma. Em outras palavras, para que uma regra seja
aplicada, “o jurista precisa identificar no mundo real a ocorrência dos fatos descritos na
hipótese normativa”.76
Doutrina Robert Alexy77 que normalmente não há meio termo na aplicação da regra. Por
isso, diz-se que é válida ou não. Em sendo válida, uma vez ocorridos os fatos descritos na
hipótese, deverá ser aplicada. Ao contrário, se for inválida, não deverá ser aplicada. O
comando normativo que ela encerra é, quase sempre, definitivo. “Quase sempre” porque a
definitividade da regra pode ser flexibilizada pela existência de uma exceção no sistema
jurídico, inserida por outra regra. Disso decorre uma conclusão importante: em caso de
conflito de regras, em não se verificando uma exceção no ordenamento jurídico, uma delas
necessariamente deve ser considerada inválida para que a outra seja aplicada. A “decisão é
uma decisão de validade.”78
Essa noção encaixa-se perfeitamente no esquema “se o fato, deve ser a consequência”,
ideia central da subsunção, a qual corresponde ao princípio da imputação que, por sua vez,
nada mais é que a incorporação do princípio da causalidade, proveniente da física clássica, ao
universo do Direito.79 A própria concepção do Direito e sua aplicação basearam-se durante
anos na existência de apenas um tipo de normas jurídicas, as regras, e sua aplicação por meio
da subsunção, com especial destaque para a doutrina positivista de Hans Kelsen, consagrado
como o jurista de maior influência de seu tempo.80 Com base nesse modelo jurídico, como se
viu, a legalidade se consolidou no Estado Liberal e no Estado Social.
Contudo, a partir da identificação dos princípios como “mandamentos de otimização”,
os quais determinam que os valores neles consignados devem ser realizados na maior medida
possível, a depender do contexto fático e jurídico em que se encontram, evidenciando-se
                                                            
75
DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 39.
76
MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op. cit., p. 32.
77
ALEXY, Robert. Teoria…Op. cit., p. 92.
78
Ibidem, p. 93.
79
MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op, cit., p. 34. Com essas considerações, o autor lembra que Hans
Kelsen (KELSEN, Hans. Causalidade e imputação. In: O que é Justiça? Trad. Luis Carlos Borges. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 323-348) esforçou-se para distinguir os princípios da imputação e da
causalidade, no que, opina, não obteve êxito, vez que, sem embargo da diferença substancial entre ser e dever-
ser, “parece evidente que o princípio da imputação, nos termos descritos por Kelsen – se o fato, então deve-ser a
consequência –, segue o juízo da causalidade – se o fato, é a consequência.”
80
A obra prima de Hans Kelsen, “Teoria Pura do Direito”, foi lançada em 1934.
75 

assim o seu caráter prima facie e sua relatividade em razão dos demais princípios coexistentes
no ordenamento jurídico, notou-se que a simples observância do esquema “se a hipótese, deve
ser a consequência”, isto é, a subsunção, era insuficiente para concretizá-los plenamente,
motivo pelo qual se fez necessário conceber uma nova forma de aplicação dessa espécie de
norma jurídica autônoma.
A partir daí, Robert Alexy, ao extrair da própria natureza dos princípios a “inexistência
de relação absoluta de precedência” e “sua referência a ações e situações que não são
quantificáveis”, enuncia a “lei de colisão”: “As condições sob as quais um princípio tem
precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a
consequência jurídica do princípio que tem precedência”.81
Dela decorre que eventual colisão entre princípios não determina que um dos princípios
colidentes deverá ser invalidado, nem que deverá ser instituída uma exceção. Ocorrerá apenas,
consideradas as circunstâncias fáticas, a precedência de um dos princípios em relação ao
outro, em função da atribuição ao primeiro de um peso maior, especificamente naquele
determinado caso concreto em exame, não significando isso que, diante de condições
diferentes em um novo caso de colidência entre os mesmos princípios, não possa se inverter a
ordem de prevalência entre ambos.82 A isso Robert Alexy chamou de “relação de precedência
condicionada”,83 cujo desdobramento natural se traduz no seguinte:

é necessário indagar o que se quer dizer quando se fala em “pesos”. O


conceito de relação condicionada de prevalência oferece uma resposta
simples. Em um caso concreto, o princípio P1 tem peso maior que o
princípio P2 se houver razões suficientes para que P1 prevaleça sobre P2 sob
certas condições C, presentes no caso concreto.84

Esse exercício de atribuição de diferentes pesos aos princípios em colisão é regido pela
“lei de ponderação”: “Quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um
princípio, tanto maior tem que ser a satisfação do outro”.85 Assim, a ponderação vem se somar
à subsunção como método de aplicação das normas jurídicas, consistindo no modo de
aplicação por excelência dos princípios e representando um novo paradigma para a aplicação
do próprio Direito:

                                                            
81
ALEXY, Robert. Teoria… Op. cit., p. 99.
82
Ibidem, p. 93-94.
83
Ibidem, p. 96.
84
Ibidem, p. 97.
85
Ibidem, p. 167.
76 

Nesse sentido, são duas, em conformidade com a teoria mais profícua, as


estruturas fundamentais de aplicação do direito: a subsunção e a ponderação.
A primeira aplica-se no cumprimento das regras jurídicas, e, a segunda,
emprega-se na concretização dos princípios jurídicos que entrem em conflito
com outros princípios, atentando-se sempre para as circunstâncias do caso
concreto. Na colisão de princípios há uma “relação de prevalência
condicionada”, segundo a qual a preferência que o princípio mais importante
tiver sobre o menos importante só será definida de acordo com as
circunstâncias do caso em questão, por meio da instituição de uma regra de
prevalência carente, ela própria, de fundamentação. A tarefa da ponderação é
justamente determinar corretamente essa relação de prevalência em
observância à “lei de ponderação” (...).86

Nessa medida, esclareça-se que a ponderação consiste em um “postulado normativo


aplicativo”,87 compreendendo-se, de um lado, “como um princípio de legitimação, dado sua
conotação argumentativa em direção à justificativa racional de direitos e princípios” e, de
outro, “como norma estruturante da aplicação de princípios e regras, o que o situa num plano
distinto daquele das normas cuja aplicação estrutura”.88
Mas, por ser um “postulado normativo aplicativo inespecífico”, para ser levada a cabo, a
ponderação deve ter a sua aplicação estruturada a partir da inserção de critérios,89 que, no caso
da ponderação entre princípios, são os mais comuns os postulados da razoabilidade90 e da
proporcionalidade,91 bem como o direcionamento mediante utilização dos princípios
constitucionais fundamentais. Não obstante, a ponderação é alvo de críticas como método de
aplicação do Direito, ante o fato de “não indicar como deve ser feito o sopesamento dos

                                                            
86
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 104-105.
87
Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria... Op. cit., p. 145-156. O autor explica que “A compreensão do Direito
pressupõe também a implementação de algumas condições. Essas condições são definidas como postulados
normativos aplicativos, na medida em que se aplicam para solucionar questões que surgem com a aplicação do
Direito...” (Op. cit., p. 145).
88
Cf. TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 91.
89
Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria... Op. cit., p. 155. Sobre a classificação dos postulados aplicativos normativos
proposta pelo autor, vide ÁVILA, Humberto. Teoria... Op. cit., p. 154 et seq.
90
Sobre a razoabilidade, Humberto Ávila aponta, em síntese, que, dentre várias acepções, três se destacam:
“Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as
individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer
indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de enquadrar na norma
geral. Segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com
o mundo ao qual elas fazer referência, seja clamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer
ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim a que ela pretende tingir.
Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas”
(ÁVILA, Humberto. Teoria... Op. cit., p. 164).
91
Em relação à proporcionalidade, sintetiza o autor: “O postulado da proporcionalidade exige que o Poder
Legislativo e o Poder Executivo escolham, para a realização de seus fins, meios adequados, necessários e
proporcionais. Um meio é adequado se promove o fim. Um meio é necessário se, dentre todos aqueles meios
igualmente adequados para promover o fim, for o menos restritivo em relação aos direitos fundamentais. E um
meio é proporcional, em sentido estrito, se as vantagens que promove superam as desvantagens que provoca. A
aplicação da proporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim, de tal sorte que, adotando-se o
meio, promove-se o fim” (ÁVILA, Humberto. Teoria... Op. cit., p. 171).
77 

elementos em colisão e quais os critérios para hierarquizar um princípio frente a outro no caso
concreto”, o que “pode levar ao subjetivismo do aplicador da lei e, por conseguinte, a um
verdadeiro decisionismo.”92
Entretanto, lembra Silvia Faber Torres que, ante a constatação de que a ponderação é
uma realidade inevitável no Direito, esforços doutrinários e jurisprudenciais têm sido feitos no
sentido de conferir maior racionalidade e objetividade ao processo ponderativo, destacando-se
dentre esses esforços a “teoria das três etapas”, atribuída ao Tribunal Federal da República
Alemã93 e descrita por Humberto Ávila da seguinte maneira:

A primeira delas é a da preparação da ponderação


(Abwagunsvorbereitung). Nessa fase devem ser analisados todos os
elementos e argumentos, o mais exaustivamente possível. (...) A segunda
etapa é a da realização da ponderação (Abwagung), em que se vai
fundamentar a relação estabelecida entre os elementos objeto de
sopesamento. No caso da ponderação de princípios, essa deve indicar a
relação de primazia entre um e outro. A terceira etapa é a da reconstrução da
ponderação (Rekonstruktion der Abwagung), mediante a formulação de
regras de relação, inclusive de primazia entre os elementos objeto do
sopesamento, com a pretensão de validade para além do caso.94

Enfim, a ponderação se apresenta como um “método de solucionar colisão de normas de


alcance previamente indefinido”, enunciado como processo normativo que, por meio de uma
argumentação jurídica, tem por objetivo decidir “quais dos princípios ou interesses
incompatíveis devem prevalecer no caso concreto, a partir do balanceamento desses
elementos em colisão”.95 Embora não elimine completamente a possibilidade de certo
subjetivismo do aplicador da norma, “procura, ao menos, impor a maior racionalidade e
objetividade possíveis à decisão ponderada”.96
O fato é que, sem dúvidas, a ponderação vem somar-se à subsunção como método
fundamental de aplicação do Direito e, nesse sentido, “constitui um modo de decisão

                                                            
92
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 104.
93
Ibidem, p. 105.
94
ÁVILA, Humberto. Teoria... Op. cit., p. 156.
95
TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 104.
96
Ibidem, p. 107. A autora registra a opinião de José Joaquim Gomes Canotilho (CANOTILHO, J. J. Gomes.
Jurisdicción Constitucional y Nuevas Inquietudes Discursivas. Del Major Método a la Mejor Teoria. In:
Fundamentos nº 04 – La Rebelión de las Leyes. Junta General del Principado des Asturias, 2006, p. 432), que
considera um retrocesso jurídico-metódico a tentativa de neutralização da “abertura principal da ordem jurídico-
constitucional” em nome da segurança jurídica, legitimidade e aceitabilidade racional, “o problema não está no
‘modelo de princípios’ nem na ponderação metódica de princípios. O risco de ‘oportunismo casuístico’ espreita,
sim, quando a justiça constitucional se torna refém das contingências do caso concreto e das escolhas aleatórias
dos operadores do direito” (TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 105).
78 

onipresente”, ou seja, “instrumento necessário em todos os âmbitos jurídicos”, 97 chegando-se


mesmo a afirmar, em referência ao Estado Moderno, na existência de um Estado de
Ponderação.98

3.3.3.3 A ponderação e o exercício das funções estatais

Decorre do primado da Constituição que o exercício das funções estatais consiste na


aplicação direta ou indireta das normas constitucionais. Nesse sentido, Ricardo Marcondes
Martins, ao apontar esta como uma característica fundamental das funções estatais, destaca a
existência de três espécies de normas no âmbito da Constituição: regras constitucionais de
comportamento, regras constitucionais de estrutura e princípios constitucionais.99
Ocorre que, como já se destacou alhures, princípios são “normas de estrutura com dupla
estrutura”, ou seja, a sua incidência “ou decorre da edição de uma norma jurídica ou causa
essa edição”, do que decorre que o cumprimento de um princípio jurídico está sempre
associado à edição de uma norma jurídica”.100 Assim, “toda regra jurídica é a concretização
de um princípio jurídico. Ela é posta visando concretizar um valor que, por sua vez, está
positivado num princípio expresso ou implícito”.101 Logo, o cumprimento de uma regra
constitucional, seja de comportamento ou de estrutura, corresponderá também ao
cumprimento de um princípio constitucional concretizador daquela regra. E, como se viu,
princípios, quando em colisão com outros princípios, são aplicáveis mediante ponderação. Daí
se afirmar que o dever de ponderação alcança o exercício das três funções estatais.
Aqui se impõe fazer alusão à importante conclusão de Ricardo Marcondes Martins, em
especial para a configuração da legalidade, como se verá adiante: com base nas noções
apresentadas, é possível apreender facilmente a estrutura deontológica das regras (se a
hipótese, deve ser a consequência) e, assim, igualmente simples conceber, num primeiro
momento, que estas estão sujeitas a um cumprimento pleno ou a um não cumprimento, a
depender de sua validade.

                                                            
97
Ibidem, p. 92.
98
Ibidem, p. 86.
99
MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003a, p. 188. Os conceitos de “norma de
comportamento” e “norma de estrutura” sobre que se apoia o autor é o enunciado por Norberto Bobbio
(BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 209), ao fazer a
distinção entre as normas jurídicas destinadas a regular o comportamento humano de forma direta, as normas de
comportamento, e as normas de estrutura, voltadas à regulação do comportamento humano apenas de forma
indireta, vez que se prestam a ordenar a produção ou modificação das primeiras.
100
Ibidem, p. 190.
101
Ibidem, 188.
79 

Contudo, explica o autor, é possível a ocorrência de situações em que regras nem


sempre exigirão o seu cumprimento pleno, mesmo diante da inexistência de uma norma de
exceção no sistema e sem que se tenha necessariamente de declará-las inválidas. Isto porque,
conforme já explicado, “toda regra jurídica é a concretização de um princípio jurídico”,
motivo pelo qual “um conflito entre regras é, quase sempre, um conflito entre princípios”, e,
nesse âmbito, “a ponderação entre os princípios colidentes pode determinar que a regra
concretizadora do princípio menos pesado no caso concreto pode ser parcial ou totalmente
afastada pela regra concretizadora do princípio mais pesado ou simplesmente afastada por
este.”102 Obviamente, este processo ponderativo é bastante complexo e resulta de um exame
minucioso de todas as razões em contradição envolvidas, como se poderá verificar de forma
mais clara adiante.
Prosseguindo com o raciocínio que relaciona o dever de ponderação e o exercício das
funções estatais, frise-se que a concretização dos valores da sociedade no âmbito de um
Estado consiste num processo que se inicia com a ponderação efetuada pelo constituinte, ao
eleger, dentre todos os valores possíveis no universo do convívio social, quais devem ser
positivados sob a forma de princípios constitucionais.
A partir daí, como percebeu Ricardo Marcondes Martins,103 o próprio constituinte, em
mais um exercício de ponderação, desta vez entre os princípios constitucionais em estado de
tensão recíproca, edita as regras constitucionais de estrutura, a fim de direcionar a organização
e funcionamento do Estado, e as regras constitucionais de comportamento, as quais impõem
limites materiais ao exercício das funções estatais, em decorrência do princípio formal
segundo o qual “o peso do princípio concretizado pela regra constitucional é acrescido do
peso de um princípio formal, cujo preceito determina que a ponderação efetuada pelo
constituinte deve ter primazia sobre qualquer outra ponderação”, implicando, em termos
práticos, que o legislador, o administrador e o juiz somente em raras exceções poderão
escusar-se da observância das regras constitucionais de comportamento quando da
ponderação que realizarem.
Nesse contexto, cumpre destacar que a perfeita compreensão da ponderação efetuada
pelos representantes das três funções estatais requer o aclaramento da noção de princípio
formal. Para Virgílio Afonso da Silva “são princípios que não são normas de conduta, mas
normas de validade. A característica fundamental desses princípios é, por isso, o fato de que
eles fornecem razões para a obediência a uma norma, independente do conteúdo desta
                                                            
102
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op. cit., p. 19.
103
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003a, p. 188-189.
80 

última.”104 Essa noção é acolhida por Ricardo Marcondes Martins, com a ressalva de que os
princípios formais não são normas de validade, mas normas de estrutura:

os princípios formais atribuem uma carga argumentativa em favor de outros


princípios, os princípios referentes a direitos individuais e os princípios
referentes a bens coletivos. Cada princípio tem em abstrato um determinado
peso, uma determinada importância. Os princípios formais aumentam, no
plano abstrato, o peso, a importância de outros princípios. (,,,) Ao efetuar a
ponderação de princípios no caso concreto, o aplicador do direito – entenda-
se , o legislador, o administrador ou o juiz (...) – deve apurar o peso dos
princípios incidentes e concretizar o princípio mais pesado. Na ponderação,
é fundamental saber se o princípio incidente deve ser considerado
autonomamente, vale dizer, com seu peso abstrato (P1), ou deve ser
considerado juntamente com o peso de um ou mais princípios formais (P1 +
PF1 + PF2 + PFn).105

O autor classifica os princípios formais em “fundamentais” e “especiais”,


diferenciando-os na medida em que os primeiros “garantem o exercício da competência
normativa pelos centros normativos dotados de poder”, ou seja, estabelecem a primazia das
ponderações já efetuadas; e os últimos “também atribuem um peso adicional a outro princípio,
mas, ao contrário dos fundamentais, não possuem a função de garantir a competência dos
centros normativos de poder”.106
Nessa senda, assume capital importância para o presente estudo o princípio formal
fundamental da “competência decisória do legislador democraticamente legitimado” que,
conforme definição de Robert Alexy, “não determina nenhum conteúdo, mas apenas diz quem
deve definir conteúdos”, estabelecendo-se como um “princípio procedimental” e, enquanto
tal, “exige que as decisões relevantes para a sociedade devam ser tomadas pelo legislador
democraticamente legitimado”.107
Com essas noções, pode-se voltar ao raciocínio anterior: visto que a ponderação
efetuada pelo constituinte, como primeira etapa da concretização dos valores da sociedade,
resulta na edição de regras constitucionais de comportamento, regras constitucionais de
estrutura e princípios constitucionais, e que as duas primeiras espécies representam, no limite,
a concretização de princípios, reforça-se a conclusão de que o exercício das funções estatais
consiste na aplicação de princípios constitucionais. Diante disso, tem-se que as etapas

                                                            
104
SILVA, Virgílio Afonso. Op. cit., p. 148.
105
MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso... Op. cit., p. 39.
106
Ibidem, p. 44 e p. 52.
107
Cf. ALEXY, Robert. Teoria… Op. cit., p. 615.
81 

posteriores de concretização dos princípios constitucionais deverão, necessariamente, se


constituir em juízos de ponderação.
Nesse particular,108 o exercício da função legislativa pode ser compreendido como a
atribuição de um meio para se atingir o fim estabelecido pelo princípio constitucional a ser
concretizado, por meio de processo em que se realize a apuração dos demais princípios
constitucionais que com ele se relacionem, seguida da ponderação entre esses princípios e a
mensuração do peso que cada um possui diante das circunstâncias fáticas e diante do próprio
sistema constitucional e, por fim, a instituição dos meios para a concretização dos fins
exigidos pelos princípios, meios esses que reflitam a ponderação efetuada.109 O resultado
desse processo, consiste na edição de regras jurídicas, que compõem as leis. Isso tudo se dá no
plano abstrato, até em função da natureza da função legislativa, que lhe atribui como
característica essencial a abstração.110
Como limite material, o legislador deve observar a existência de eventuais regras
constitucionais de comportamento capazes de restringir a otimização dos princípios a que se
pretende concretizar, em face do princípio formal fundamental que dá primazia à ponderação
efetuada pelo constituinte. Isto é, em caso de colisão entre um princípio que se pretende
concretizar e o princípio que concretiza uma regra constitucional de comportamento
eventualmente colidente, esta última somente poderá ser afastada se o peso apurado do
primeiro for maior que o peso do segundo somado ao peso do aludido princípio formal, diante
das circunstâncias do caso concreto em exame.
Além disso, em sua ponderação, o legislador deve observar os diferentes pesos
atribuídos pelo constituinte aos princípios constitucionais, os quais se manifestam na forma de
positivação dos referidos princípios, da qual se extraem as seguintes diretrizes: “o peso ou a
importância do princípio é inversamente proporcional à sua abertura semântica e quanto mais
desdobramentos de um princípio são fixados no texto, mais importância atribuiu o
constituinte a esse princípio.”111

                                                            
108
Para efeito deste estudo, não se pretende caracterizar de forma exaustiva as funções legislativa, administrativa
e jurisdicional. Para um exame aprofundado do tema, recomenda-se a leitura de MARTINS, Ricardo Marcondes.
Função... Op. cit., 2003a e Função... Op. cit., 2003b. No presente trabalho, buscou-se apenas abordar a
ponderação de princípios no âmbito do exercício das funções estatais.
109
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003a, p. 201.
110
Ibidem, p. 200. O autor observa que a abstração tem que ser bem compreendida no contexto da ponderação
efetuada no exercício função legislativa. Segundo afirma, “o legislador age num plano abstrato, mas também
tem, diante de si, um caso concreto. Ele atua num cenário histórico-social definido.” (MARTINS, Ricardo
Marcondes. Função... Op. cit., 2003a, p. 201).
111
Ibidem, ibidem.
82 

A ponderação efetuada no exercício da função administrativa segue o mesmo raciocínio,


com algumas distinções. Com efeito, ela também consiste na identificação do princípio que se
pretende concretizar, seguida da apuração dos princípios que com ele colidem e o
sopesamento de cada um deles diante das circunstâncias presentes no caso concreto em
exame, para, enfim, fixar os meios necessários à concretização dos fins exigidos pelo
princípio. Além disso, também está materialmente limitada pelas regras constitucionais de
comportamento, bem como tem o dever de observar a prévia atribuição pelo constituinte de
diferentes pesos aos princípios. Há, no entanto, uma diferença fundamental:

o legislador, diante das circunstâncias fáticas em que atua, antecipa o caso


concreto em que atuarão os particulares e/ou a Administração e fixa, em
abstrato, o peso dos princípios; a Administração, vinculada à ponderação
efetuada pelo legislador, diante do caso concreto efetivo, efetua nova
ponderação e apura qual é o efetivo comportamento exigido pelo sistema
jurídico para a concretização do valor constitucional positivado.112

Desta maneira, a ponderação efetuada no exercício da função administrativa representa


etapa subsequente àquela realizada pelo legislador. Nesse sentido, se opera sempre no plano
concreto, diante de caso “real e efetivo”, e está vinculada, a priori, à ponderação legislativa
abstrata, podendo afastá-la somente se das circunstâncias fáticas resultar que o peso do
princípio a ser concretizado é maior que o peso do princípio colidente e do princípio formal
de primazia daquela somados.113
Por fim, a ponderação efetuada no exercício da função jurisdicional segue idêntico
raciocínio, constituindo-se na última etapa da concretização dos valores consignados na
Constituição. Também ocorre no plano concreto, e deve observar as regras constitucionais de
comportamento, os diferentes pesos atribuídos aos princípios pelo constituinte e as
ponderações previamente estabelecidas no exercício das funções legislativa e administrativa,
as quais devem sempre ter primazia em razão dos princípios formais garantidores da
competência normativa.

3.4 O conteúdo da legalidade no Estado Democrático de Direito

No Estado Democrático de Direito a legalidade assume contornos bem diferentes


daqueles decorrentes da concepção clássica com a qual se consolidou nos Estados Liberal e

                                                            
112
Ibidem, p. 229.
113
Nesse sentido é a conclusão de Ricardo Marcondes Martins (Op. cit., Função... 2003b, p. 229).
83 

Social. Por força do neoconstitucionalismo, erigiu-se o primado da Constituição, o qual impõe


ao administrador público a submissão direta às normas constitucionais, em especial os
princípios, agora espécie de norma jurídica autônoma, ao lado das regras.
Outrora vinculado unicamente à lei em sentido estrito, isto é, às regras, aplicáveis
mediante subsunção – positivismo kelseniano –, o exercício da função administrativa agora
deve observância ao ordenamento jurídico como um todo, e às várias facetas do emaranhado
de direitos e interesses nele positivados, reflexos de uma sociedade pluralista e
democraticamente mais participativa.
Diante de um princípio constitucional, caracterizado por ser um mandamento de
otimização, ou seja, comando que determina que um fim deve ser realizado na maior medida
possível, sem indicar os meios para que isso ocorra, o administrador público deve aplicá-lo
utilizando-se de uma técnica que mescla os métodos da subsunção – segundo o esquema
lógico “se o fato, deve ser a consequência” –, e da ponderação, por meio do qual deve
proceder à apuração dos princípios que com ele colidem e efetuar o sopesamento de cada um
deles, diante das circunstâncias presentes no caso concreto em exame, para, enfim, fixar os
meios necessários à concretização dos fins exigidos pelo princípio. Nesse processo, também
devem ser considerados como limites materiais as regras constitucionais de comportamento, e
respectivo princípio formal que lhe dá primazia, bem como a prévia atribuição pelo
constituinte de diferentes pesos aos princípios.
Diante de uma lei, isto é, uma regra, deve o administrador público aplicá-la mediante o
processo de subsunção. Em determinadas situações, no entanto, poderá deixar de atribuir a
essa lei o seu cumprimento pleno, mesmo se inexistente uma cláusula de exceção no
ordenamento, e sem necessariamente ter de declará-la inválida em face da prevalência de
outra lei que a derrogue.114 Basta, para tanto, a efetuação de um juízo de ponderação, por
meio do qual se verifique, diante das circunstâncias fáticas presentes no caso concreto, que o
peso do princípio conducente ao afastamento da regra é maior que o peso do princípio
concretizador da regra a ser afastada somado ao peso do princípio formal que estabelece a
prevalência da ponderação efetuada pelo legislador no plano abstrato.
Neste contexto, vale ressaltar a importância do já mencionado princípio formal da
prevalência da competência decisória do legislador democraticamente legitimado para o
processo ponderativo entre regras, vez que garante, na imensa maioria dos casos, a

                                                            
114
Silvia Faber Torres lembra que o conflito de regras, em geral, se resolve no plano da validade e cita como
exemplos os casos de derrogação de leis gerais em face de leis especiais e de leis anteriores em face de leis
posteriores (TORRES, Silvia Faber. Op. cit., p. 102).
84 

preponderância da ponderação realizada no plano abstrato e genérico pelo legislador enquanto


representante legítimo dos cidadãos, somente podendo ser afastada nos casos inequívocos em
que sua manutenção seja substancial e irremediavelmente prejudicial a direitos mais pesados
naquele determinado caso concreto. Esse traço é ressaltado por Ricardo Marcondes Martins
como fundamental para a compreensão do que denominou como a concepção alemã do
princípio da legalidade.115
Também a indicar um importante referencial para a definição dos contornos da
legalidade neoconstitucional, sobretudo em favor da segurança jurídica nas ponderações entre
regras, cujo resultado aponte para a negação ao cumprimento pleno de uma delas, reitere-se o
dever de que sejam devidamente estruturadas, em processos argumentativos consubstanciados
nos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade – como antes já se asseverou – e, além
disso, sejam suficientemente motivadas. Nesse sentido, recorre-se à observação de Silvia
Faber Torres:

A ponderação no âmbito do direito administrativo atua, em realidade, como


um verdadeiro limite ao poder da Administração, em virtude do rigoroso
dever de motivação racional das decisões administrativas, que, sob os
auspícios do Estado Democrático de Direito, representa um importante
instrumento contra a arbitrariedade no exercício do poder. Configura-se,
então, em realidade, como um método de argumentação e justificação das
decisões da Administração, imprescindível ao convencimento do cidadão
acerca da razoabilidade da decisão.116

Diante dessas considerações, extrai-se que a solução de afastar o cumprimento pleno de


uma lei somente ocorrerá em casos raros, de difícil solução, e, ademais, desde que a matéria
em exame não seja objeto de reserva legal, hipótese em que não se abre a possibilidade de
aplicação do princípio constitucional envolvido senão mediante lei. Esse contorno também é
enumerado por Ricardo Marcondes Martins, segundo quem “Nessas matérias incidem regras
constitucionais de estrutura não passíveis de ponderação, e sim de subsunção”.117

                                                            
115
MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003b, p. 226-227. Segundo o autor: “A ponderação em
abstrato é privativa da função legislativa, a Administração só pode efetuar ponderações em concreto, jamais
ponderações em abstrato; há um princípio formal no sistema, decorrente da Separação dos Poderes e do princípio
da legalidade, que dá à ponderação efetuada pelo legislador uma espécie de primazia. Por força desta última
consequência, ao princípio concretizado pela lei acrescenta-se o peso de um princípio formal cuja diretriz
estabelece que as ponderações do legislador devem ter primazia. Somente se, no caso concreto, o peso do
princípio oposto for maior que o peso do princípio concretizado pela lei somado ao peso do referido princípio
formal é que a ponderação efetuada pelo legislador poderá ser afastada. O grande parâmetro, aqui, é a
razoabilidade: deve existir um certo consenso de que o princípio colidente é mais pesado.”
116
Ibidem, p. 205.
117
Ibidem, p. 229.
85 

Em face de todas essas considerações, pode-se concluir que, embora permita decisões
específicas para cada caso concreto, isto é, não previamente estabelecidas de forma geral e
abstrata pelo legislativo, a aplicação do Direito mediante ponderação, inclusive no que
respeita às regras, dentre elas as leis, não compromete a estabilidade e a segurança jurídica
como pressupostos do Estado de Direito, nem atenta contra os direitos fundamentais e demais
valores decorrentes da vontade popular, os quais continuam garantidos no sistema jurídico-
constitucional por meio do princípio formal da primazia das ponderações efetuadas pelo
legislativo e da reserva legal.
O sistema jurídico-constitucional brasileiro, que institui um Estado Democrático de
Direito, abriga sem dúvidas a aplicação do Direito mediante a combinação da ponderação e da
subsunção e, desta maneira, também acolhe essa nova concepção neoconstitucional da
legalidade, visto que, em primeiro lugar, se apresenta como um sistema pródigo em normas
principiológicas, de natureza marcadamente axiológica e que, nesse sentido, somente podem
ser corretamente aplicadas se compreendidas dentro de um sistema, onde coexistem direitos e
interesses de natureza fluída, em constante situação de tensão recíproca, e que, por isso,
requerem um método de aplicação aberto, como de resto é a ponderação.118
O neoconstitucionalismo é uma realidade e como modelo jurídico-constitucional parece
o sistema mais adequado para dar suporte ao Estado Democrático de Direito, vez que propõe
a elevação dos valores democráticos ao nível constitucional, e, assim, possibilita a efetividade
da participação popular, bem como, consequentemente, do controle da atuação estatal,
inclusive no que se refere exercício da função legislativa, em sua busca pela realização da
justiça por meio do Direito. Além disso, parece inconteste que se trata do modelo jurídico-
constitucional adotado pelas Constituições atuais, inclusive a Constituição Federal de 1988.

                                                            
118
Ricardo Marcondes Martins apresenta três ordens os fundamentos que embasam essa conclusão. Segundo o
autor, O fundamento normativo decorre de uma peculiaridade da Constituição Brasileira (...). Basta uma rápida
leitura do texto constitucional para perceber a adoção irrestrita de uma concepção principiológica do Direito. (...)
A conflituosidade e consequente necessidade de ponderação são ínsitas a essa espécie normativa. Disso se extrai
que o próprio sistema constitucional brasileiro exige uma teoria do Direito voltada para as peculiaridades dos
princípios jurídicos, e a concepção alemã descrita é a que se mostra mais condizente com essa exigência”.
Ademais, conforme o fundamento técnico: “num sistema em que vigora uma série de princípios em constante
colisão, cumprir a lei de ofício é impossível sem a preconizada ponderação. Do ponto de vista técnico, portanto,
as soluções defendidas pela concepção alemã são plenamente aceitas pela doutrina e pela jurisprudência
brasileiras, sem, no entanto, uma fundamentação clara”. Por fim, o autor se refere a um argumento prático,
extrajurídico, porém aceito porque voltado para uma realidade: “se o povo europeu viu-se forçado a desenvolver
concepções teóricas de enfraquecimento do poder parlamentar, por não confiar plenamente em seus Parlamentos,
como negar existência no povo brasileiro de igual ou maior desconfiança em seu Legislativo, legitimadora de
concepções similares?” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Função... Op. cit., 2003b, p. 228).
86 

CONCLUSÕES

1. O Estado de Direito apresenta os seguintes elementos: a) a origem ligada ao


constitucionalismo e a consequente fundação por meio da promulgação ou outorga de uma
Constituição; b) a lei como manifestação da vontade geral dos cidadãos e o seu valor
democrático daí decorrente; c) a separação dos poderes como forma de organizar
equilibradamente o exercício das funções estatais; d) a salvaguarda dos direitos fundamentais.
Embora sempre presentes, podem sofrer variações em seu conteúdo, a depender das opções
feitas pela assembleia constituinte. O conteúdo e a forma do Estado são definidos pela
Constituição. Ela determina o que é o bem comum e quais as formas para garanti-lo.
2. No período liberal a eleição da lei como o mecanismo primordial de aplicação do
Direito foi motivada pela ideologia revolucionária individualista vigorante naquele momento
histórico, em que se fez necessário entregar ao povo – representado pelo parlamento – a
possibilidade de decidir sobre o próprio destino, por meio da eleição de suas prioridades, à
época, a liberdade e a propriedade. Do ponto de vista político, era necessário apenas que o
Estado não interferisse nos direitos fundamentais individuais, o que se refletiu, no campo
jurídico, na correspondente vinculação negativa da atuação administrativa à lei.
3. A situação caótica gerada pelos abusos de poder econômico e político no sistema
liberal demandou que as atribuições estatais se expandissem. O Estado Social, por opção
constitucional, passou a atuar proativamente na perseguição de suas finalidades, agora
ampliadas. Em tese, o povo ainda detinha o poder de eleição de suas prioridades, por meio do
legislativo. Assim, o estrito cumprimento da lei, traduzido na vinculação positiva, garantiria a
satisfação das finalidades estatais, com vistas sempre à realização da justiça. O formalismo
positivista deu suporte a esse mecanismo de concretização do Direito.
4. Na prática, o inchaço do aparato estatal sofreu com problemas de ineficiência. Do
ponto de vista jurídico, a atuação legislativa se mostrou insuficiente para prever e orientar
todas as condutas da Administração Pública, do que decorreu o aumento desarrazoado e
ineficaz do número de leis e, ao mesmo tempo, o fortalecimento da discricionariedade
administrativa e do poder normativo do Executivo. Além disso, houve a constatação de que a
simples submissão aos comandos normativos não era suficiente para garantir a justiça, vez
que o conteúdo das leis nem sempre era reflexo dos valores caros aos cidadãos, vez que
estavam sujeitos à influência dos detentores do poder político e econômico. Ao contrário,
mesmo a ausência de conteúdo axiológico era legitimada pela aplicação acrítica da lei
87 

preconizada pelo formalismo positivista. Todas essas circunstâncias levaram à desvalorização


da lei e deram ensejo ao que se denominou crise da legalidade.
5. O combate à realidade resultante do fracasso do Estado Social como modelo político e
do formalismo positivista como modelo jurídico motivou a alteração dos paradigmas
constitucionais. Com efeito, a mudança de rumos representada pela ascensão do Estado
Democrático de Direito, que teve como pano de fundo, no âmbito político, a reafirmação da
democracia e a reaproximação entre os valores éticos e o Direito, no intuito de se buscar a
efetiva realização da justiça material, no contexto de uma sociedade pluralista, aberta, em que
se manifestam uma infinidade de relações e interesses conflitantes, resultou no processo de
constitucionalização do Direito.
6. Consubstanciou-se, assim, o neoconstitucionalismo e, com ele, a ascensão da
Constituição à posição primordial do ordenamento jurídico – em substituição à antes
preponderante posição da lei –, acompanhada da pródiga inclusão de normas garantidoras dos
direitos fundamentais e do consequente surgimento de uma nova forma de interpretação e
aplicação do direito constitucional, baseada na normatividade dos princípios, sua distinção em
relação às regras e a sua aplicação mediante ponderação, o que obviamente trouxe
substanciais reflexos para a aplicação da legalidade.
7. Com efeito, o exercício da função administrativa já não pode se restringir à simples
aplicação subsuntiva da lei, mas deve observar o conjunto das normas presentes no sistema
jurídico, em especial aquelas emanadas diretamente da Constituição. As normas
constitucionais, por sua vez, apresentam conteúdo marcadamente axiológico e diversificado,
traduzidos na positivação de valores, a qual resulta na edição de princípios jurídicos, como
uma nova espécie de norma jurídica autônoma, que, ao lado das regras, representam os
comandos a serem obedecidos pelo Estado no exercício de suas funções.
8. Princípios e regras distinguem-se, primeiramente, pelo modo de positivação: as regras
consistem em comandos que estabelecem meios para o atingimento dos fins sob os quais se
fundam, isto é, fixam exatamente qual comportamento deve ser adotado, sempre que
verificada a ocorrência no mundo fenomênico dos fatos por ela previstos no plano abstrato.
Princípios são mandamentos de otimização que determinam que um fim deve ser concretizado
na maior medida possível, a depender da verificação, no caso concreto, das circunstâncias
fáticas e jurídicas, estas últimas representadas pelos demais princípios e regras existentes no
ordenamento, eventualmente em posição de tensão com o princípio que se pretende positivar.
Nessa medida, estabelecem os fins, sem indicar os meios.
88 

9. Dessa natureza relativa, fluida dos princípios, também denominada prima facie,
decorre a segunda distinção entre princípios e regras, concernente ao modo de aplicação:
regras se aplicam mediante processo de subsunção, representado pelo esquema lógico “se a
hipótese, dever ser a consequência”, logo, desde que válidas, devem ser aplicadas. Sua
aplicação é, a priori, mais simples, pois, como se viu, os comportamentos dela decorrentes já
estão previamente descritos. Normalmente, em caso de conflitos entre regras, verificada a
inexistência no ordenamento de uma norma de exceção, necessariamente uma delas deve ser
declarada inválida para que a outra possa subsistir.
10. Princípios se aplicam, primeiramente, mediante subsunção, mas, por não
estabelecerem os meios pelos quais os fins que carregam devem ser alcançados, dependem
também da ponderação, consistente no processo de apuração dos princípios em estado de
tensão recíproca, atribuição de diferentes pesos a cada um deles com base nas circunstâncias
fáticas verificadas no caso concreto e, somente a partir daí, determinação do princípio
prevalecente e dos meios que devem ser adotados para concretizá-lo.
11. A evolução dessa teoria consiste no seguinte: regras também podem, eventualmente,
ser aplicadas mediante ponderação e, dessa maneira, é possível a ocorrência de situações em
que regras nem sempre exigirão o seu cumprimento pleno, mesmo diante da inexistência de
uma norma de exceção no sistema e sem que se tenha necessariamente de declará-las
inválidas.
12. Isto porque as regras são resultado da incidência dos princípios, visto que estes têm
natureza de normas de estrutura de dupla estrutura, ou seja, a sua incidência ou decorre da
edição de uma norma jurídica ou causa essa edição, daí decorrendo que toda regra é a
concretização de um princípio. Nesse sentido, um conflito de regras, quase sempre, é também
um conflito entre princípios e, nesse âmbito, a ponderação entre os princípios colidentes pode
determinar que a regra concretizadora do princípio menos pesado no caso concreto pode ser
parcial ou totalmente afastada pela regra concretizadora do princípio mais pesado ou
simplesmente afastada por este.
13. O processo de afastamento da incidência de uma regra, no entanto, é extremamente
complexo e requer um exame minucioso de todas as razões jurídicas envolvidas, inclusive, no
que respeita à observância dos princípios formais presentes no ordenamento jurídico, que
determinam a prevalência das ponderações efetuadas pelo constituinte e pelo legislador, a fim
de garantir a legitimidade das decisões democraticamente tomadas.
14. Fato é que a ponderação assume lugar de destaque na compreensão e aplicação do
Direito na atualidade, tendo em vista consistir na forma mais adequada de conformar os
89 

distintos interesses envolvidos da sociedade contemporânea, essencialmente pluralista e


dinâmica, os quais se refletem em textos constitucionais tendencialmente principialistas e
abertos.
15. Contudo, a ponderação como método de aplicação do Direito enfrenta críticas, pelo
fato de não indicar como deve ser feito o sopesamento dos elementos em colisão e quais os
critérios para hierarquizar um princípio frente a outro no caso concreto, o que pode levar ao
subjetivismo do aplicador da lei e, por conseguinte, a um verdadeiro decisionismo. Contra
isso, e ante a constatação de que a ponderação é uma realidade inevitável, a doutrina e a
jurisprudência têm evoluído para conferir maior racionalidade e objetividade ao processo
ponderativo, destacando-se dentre esses esforços a teoria das três etapas, bem como a
atribuição de critérios estruturantes baseados nos postulados da razoabilidade e da
proporcionalidade, além da incidência dos princípios formais.
16. Todos esses elementos emolduram a nova concepção da legalidade. A atuação do
administrador é submetida não mais somente à lei em sentido estrito, mas ao ordenamento
jurídico como um todo, em especial os princípios constitucionais. Diante de uma lei, deverá
aplicá-la mediante o processo de subsunção.
17. Em determinadas situações, no entanto, poderá afastá-la, mesmo se inexistente uma
cláusula de exceção, sem necessariamente ter de declará-la inválida. Basta, para tanto, a
efetuação de um juízo de ponderação devidamente estruturado e motivado, por meio do qual
se verifique, diante das circunstâncias fáticas presentes no caso concreto, que o peso do
princípio conducente ao afastamento da regra é maior que o peso do princípio concretizador
da regra a ser afastada somado ao peso do princípio formal que estabelece a prevalência da
ponderação efetuada pelo legislador no plano abstrato.
18. Essa solução, no entanto, somente ocorrerá em casos raros, de difícil solução, e desde
que a matéria em exame não seja objeto de reserva legal, hipótese em que não se abre a
possibilidade de aplicação do princípio envolvido senão mediante lei.
19. Disso se conclui que embora permita decisões específicas para cada caso concreto, isto
é, não previamente estabelecidas de forma geral e abstrata pelo legislativo, a aplicação do
Direito mediante ponderação não compromete a estabilidade e a segurança jurídica como
pressupostos do Estado de Direito, nem atenta contra os direitos fundamentais e demais
valores decorrentes da vontade popular, os quais continuam garantidos no sistema jurídico-
constitucional por meio do princípio formal da primazia das ponderações efetuadas pelo
legislativo e da reserva legal.
90 

20. O sistema jurídico-constitucional brasileiro, que institui um Estado Democrático de


Direito, abriga sem dúvidas a aplicação do Direito mediante a combinação da ponderação e da
subsunção e, desta maneira, também acolhe essa nova concepção da legalidade. O
neoconstitucionalismo é uma realidade e como modelo jurídico-constitucional parece o
sistema mais adequado para dar suporte ao Estado Democrático de Direito, vez que propõe a
elevação dos valores democráticos ao nível constitucional, e, assim, possibilita a efetividade
da participação popular, bem como, consequentemente, do controle da atuação estatal,
inclusive no que se refere exercício da função legislativa, em sua busca pela realização da
justiça por meio do Direito. Além disso, parece inconteste que se trata do modelo jurídico-
constitucional adotado pelas Constituições atuais, inclusive a Constituição Federal de 1988.
91 

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