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MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
LÉA ÉMILE MACIEL JORGE DE SOUZA
SÃO PAULO
2013
LÉA ÉMILE MACIEL JORGE DE SOUZA
Prof. Dr.______________________________________________________
Instituição:___________________ Assinatura_______________________
Prof. Dr.______________________________________________________
Instituição:___________________ Assinatura_______________________
Para Bruno, dedico este
trabalho com todo o meu
amor.
AGRADECIMENTOS
This study aims to analyze the changes that the so-called contemporary
constitutionalism operated in the form of performance of constitutional justice. The
concentrated constitutional jurisdiction inspired in Kelsen ideas, was designed on the
basis of a single unique function: the exercise of judicial review in a monopolized form.
The fact is that this constitutional jurisdiction was designed for a state that is based on a
Constitution devoid of axiological load and it would just be the foundation of the legal
validity. Today, most States have Constitutions that guarantee fundamental rights and
guarantees and incorporate values through the principles, so the task of defending the
Constitution of the Constitutional Court can not just be a task of negative legislator,
when arise new regulations that directly offend the Constitution. The new configuration
of Constitutional Law, in the context of contemporary constitutionalism, asks for a
Constitutional Court to assist in the implementation of the Constitution in all its
materiality. Thus, the figure of the Constitutional Court can not be identified with an
autonomous agency with respect to the other powers that has one only duty: do the
judicial review in a monopolized way. The need to guarantee the implementation of the
Constitution in all its materiality made the Constitutional Court play another function
beyond the judicial review (called structuring function), were aggregated other
functions, such as interpretive and enunciation of constitutional laws; arbitration;
legislation; governance; and "communitarian". However, such functions shall be
performed within certain limits so that the Constitutional Court does not infringe the
functional conformation imposed by the Constitution and in that way become possible a
shared exercise of the constitutional implementation between all the organs of the State.
1 INTRODUÇÃO 10
2 DO SURGIMENTO E DO DESENVOLVIMENTO DO
CONSTITUCIONALISMO 15
3 O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO 45
6 CONCLUSÕES 165
REFERÊNCIAS
10
1 INTRODUÇÃO
pretensão de completude (eventuais lacunas deveriam ser resolvidas pela aplicação dos
costumes, pela analogia e pelos princípios gerais); d) pureza científica (que pretendia
desvincular o Direito da influência de outras ciências); e) racionalidade da lei e neutralidade
do intérprete.
Após a Segunda Guerra Mundial, porém, com a constatação de que o apego à
legalidade exacerbada permitiu o cometimento das atrocidades nazistas e fascistas, percebeu-
se que o Direito deveria se reaproximar da moral e que a lei deveria apresentar um conteúdo
valorativo válido para se legitimar como Direito. Esses valores compartilhados socialmente
estavam imbuídos nas Constituições dos Estados que deixaram de ser consideradas apenas um
documento simbólico, uma carta de intenções.
A superação histórica do jusnaturalismo, a decadência política do positivismo, o
surgimento de um pensamento pós-positivista – que, apesar de não dotado de uniformidade
dogmática, propôs uma nova forma de pensar o Direito, reaproximando-o da necessidade de
adequação a valores éticos – fez emergir uma nova forma de pensar o Direito Constitucional,
denominada de Constitucionalismo Contemporâneo ou neoconstitucionalismo1.
1
Necessário esclarecer que neste estudo adotamos a terminologia “Constitucionalismo Contemporâneo” em detrimento de
“Neoconstitucionalismo”, tendo em vista a deturpação que este último termo sofreu na doutrina brasileira nos últimos anos.
Lenio Luiz Streck exemplifica como o termo “Neoconstitucionalismo” pode dar ensejo a uma utilização deletéria dos
avanços obtidos pelo Direito Constitucional nas últimas décadas:
“Já de início devemos atentar para a seguinte questão: o termo ‘neoconstitucionalismo’ pode ter-nos levado a equívocos. Em
linhas gerais, é possível afirmar que, na trilha desse neoconstitucionalismo, percorremos um caminho que nos leva à
jurisprudência da valoração e suas derivações axiologistas, temperadas por elementos provenientes da ponderação alexyana.
Desse modo, esse belo epíteto – cunhado por um grupo de constitucionalistas espanhóis -, embora tenha representado um
importante passo para a afirmação da força normativa da Constituição na Europa continental, no Brasil, acabou por
incentivar/institucionalizar uma recepção acrítica da jurisprudência dos Valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy
(que cunhou o procedimento da ponderação como instrumento pretensamente nacionalizador da decisão judicial) e do
ativismo judicial norte-americano, problema que será abordado mais adiante, ainda nesta introdução.
[...]
Destarte, passadas duas décadas da Constituição de 1988, e levando em conta as especificidades do direito brasileiro, é
necessário reconhecer que as características desse ‘neoconstitucionalismo’ acabaram por provocar condições patológicas que,
em nosso contexto atual, acabam para contribuir para a corrupção do próprio conceito de Constituição. Ora, sob a bandeira
‘neoconstitucionalista’ defendem-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela
ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a
partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, como: neoprocessualismo e
neopositivismo. Tudo porque, ao fim e ao cabo, acreditou-se ser a jurisdição responsável pela incorporação dos ‘verdadeiros
valores’ que definem o direito justo (vide, neste sentido, as posturas decorrentes do instrumentalismo processual).
[...]
Portanto, é possível dizer que, nos termos em que o neoconstitucionalismo vem sendo utilizado, ele representa uma clara
contradição, isto é, ele expressa um movimento teórico para lidar com um direito ‘novo’ (poder-se-ia dizer, um direito ‘pós-
Auschwitz’ ou ‘pós-bélico’, como quer Mario Losano), fica sem sentido depositar todas as esperanças de realização desse
direito na loteria do protagonismo judicial (mormente levando em conta a prevalência, no campo jurídico, do paradigma
epistemológico da filosofia da consciência).
Assim, reconheço que não faz mais sentido continuar a fazer uso da expressão ‘neoconstitucionalismo’ para mencionar
aquilo que esta obra pretende apontar: a construção de um direito democraticamente produzido, sob o signo de uma
Constituição normativa e da integridade da jurisdição.
Assim, para efeitos dessas reflexões e a partir de agora, passarei a nominar Constitucionalismo Contemporâneo (com iniciais
maiúsculas) o movimento que desaguou nas Constituições do segundo pós-guerra e que ainda está presente em nosso
contexto atual, para evitar os mal-entendidos que permeiam o termo neoconstitucionalismo.
Também é importante consignar que a ideia de um neoconstitucionalismo pode dar margem ao equívoco de que esse
movimento leva à superação de um outro constitucionalismo (fruto do limiar da modernidade). Na verdade, o
12
Constitucionalismo Contemporâneo conduz simplesmente a um processo de continuidade com novas conquistas, que passam
a integrar a estrutura do Estado Constitucional no período posterior à Segunda Guerra mundial”. (STRECK, 2011, p.36-37)
13
2
Conforme será exposto, em seguida, há quem apresente o constitucionalismo, não como uma teoria ou ideologia, mas
técnica, movimento, sistema normativo ou um conjunto de instituições e princípios etc.
3
Para Karl Loewenstein, a Constituição deve conter os seguintes elementos fundamentais: “1. La diferenciación de las
diversas tareas estatales y su asignación a diferentes órganos estatales o detentadores de poder para evitar la concentración
del poder en las manos de un único y autocrático detentador del poder. 2. Un mecanismo planeado que establezca la
cooperación de los diversos detentadores del poder. Los dispositivos y las instituciones en forma de frenos y contrapesos –
los checks and balances, familiares a la teoría constitucional americana y francesa –, significan simultáneamente una
distribución y, por tanto, una limitación del ejercicio del poder político. 3. Un mecanismo, planeado igualmente con
anterioridad, para evitar los bloqueos respectivos entre los diferentes detentadores del poder autónomos, con la finalidad de
evitar que uno de ellos, caso de no producirse la cooperación exigida por la constitución, resuelva el impasse por sus propios
medios, esto es, sometiendo el proceso del poder a una dirección autocrática. Cuando, finalmente, bajo el impacto de la
ideología democrática de la soberanía popular del pueblo, el constitucionalismo alcanzó el punto en el cual el árbitro supremo
en los conflictos entre electorado soberano, la idea originaria del constitucionalismo liberal quedó completa en la idea de
constitucionalismo democrático. 4. Un método, también establecido de antemano, para la adaptación pacífica del
ordenamiento fundamental a las cambiantes condiciones sociales y políticas – el método racional de la reforma constitucional
– para evitar el recurso a la ilegalidad, a fuerza o a la revolución. 5. Finalmente, la ley fundamental debería contener un
reconocimiento expreso de ciertas esferas de autodeterminación individual – los derechos individuales y libertades
fundamentales –, y su protección frente a la intervención de uno o todos los detentadores del poder. Que este punto fuese
reconocido en una primera época del desarrollo del constitucionalismo es un signo de su específico telos liberal. Junto al
principio de la distribución y, por lo tanto, limitación del poder, estas esferas absolutamente inaccesibles al poder político se
han convertido en el núcleo de la constitución material” (LOEWENSTEIN, 1979, p.153-154). Tradução livre: “1. A
diferenciação das várias tarefas estatais e sua atribuição a diferentes órgãos do Estado ou detentores de poder para evitar a
concentração do poder nas mãos de um único titular, autocrático do poder. 2. Um mecanismo planejado que estabeleça a
cooperação dos vários detentores do poder. Os dispositivos e instituições na forma de freios e contrapesos – os checks and
balances, familiares à teoria constitucional americana e francesa – significam, simultaneamente, uma distribuição e, portanto,
uma limitação do exercício do poder político. 3. Um mecanismo, planejado igualmente com antecedência, para evitar os
bloqueios respectivos entre os diferentes e autônomos detentores do poder, a fim de evitar que um deles, caso não produza a
cooperação exigida pela Constituição, resolva o impasse por seus próprios meios, isto é, submetendo o processo de poder a
uma direção autocrática. Quando, finalmente, sob o impacto da ideologia democrática da soberania popular do povo, o
constitucionalismo atingiu o ponto em que o árbitro supremo em disputas entre eleitorado soberano, a ideia original do
constitucionalismo liberal estava completa com a ideia de constitucionalismo democrático. 4. Um método, também é
estabelecido com antecedência, para a adaptação pacífica do ordenamento fundamental às mudanças das condições sociais e
políticas – o método racional de reforma constitucional – para evitar o recurso à ilegalidade, à força ou a revolução. 5.
Finalmente, a lei fundamental deveria conter um reconhecimento expresso de certas esferas de autodeterminação individual –
os direitos individuais e liberdades fundamentais – e sua proteção contra a intervenção de um ou de todos os detentores do
poder. Que este ponto fosse reconhecido em uma primeira etapa do desenvolvimento do constitucionalismo é um sinal
específico de seu telos liberal. Juntamente com o princípio da distribuição e, portanto, limitação do poder, estas esferas
completamente inacessíveis ao poder político tornaram-se o núcleo da constituição material.”
16
4
Jorge Miranda, por outro lado, designa de constituição em sentido institucional (2000, p. 13-14).
17
5
Examinados nos itens seguintes deste capítulo.
6
Especialmente, a ideia do ordenamento escalonado de Hans Kelsen e o surgimento do controle de constitucionalidade nos
Estados Unidos.
7
Além de conceituar Constituição em sentido formal e material, Jorge Miranda apresenta também o sentido instrumental,
como “o documento onde se inserem ou depositam normas constitucionais”. (MIRANDA, 2000, p.12)
18
8
São exemplos dos vários conceitos de Constituição:
a) “Orden jurídico del proceso de integración estatal” (Rudolf Smend apud HESSE, 1983, p.6). Tradução livre: “Ordenação
jurídica do processo de integração estatal”.
b) “Proceso de elaboración consciente, organizada y planificada” (Hermann Heller apud HESSE, 1983, p.6). Tradução livre:
“Processo de elaboração consciente, organizado e planificado”.
c) “Limitación y racionalización del poder y como garantía de un libre proceso de la vida política” (Horst Ehmke apud
HESSE, 1983, p.7). Tradução livre: “Limitação e racionalização do poder e como garantia de um processo livre de vida
política”.
d) “La Constitución es el modo de ser que adopta una comunidad política en el acto de crearse y también en e lacto de
reformarse.” (DROMI, 1997, p.107) Tradução livre: “A Constituição é o modo de ser adotado por uma comunidade política
no ato de sua criação e também de sua formação”.
e) “Constituição é o organismo vivo delimitador da organização estrutural do Estado, da forma de governo, da garantia das
liberdades públicas, do modo de aquisição e exercício do poder. Traduz-se por um conjunto de normas jurídicas que estatuem
direitos, prerrogativas, garantias, competências, deveres e encargos, consistindo na lei fundamental da sociedade.” (BULOS,
2011, p.100)
f) “A Constituição é então a auto-organização de um povo (de uma nação, na acepção revolucionária da palavra), o acto pelo
qual um povo se obriga e obriga os seus representantes, o acto mais elevado de exercício da soberania (nacional ou popular,
consoante a concepção que se perfilhe).” (MIRANDA, 2000, p.18)
g) “A constituição do estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um
sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de
aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento dos seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do
homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos
do Estado.” (SILVA, 2005, p.37-38)
h) “Estatuto jurídico do político” (Castanheira Neves apud CANOTILHO, 2003, p.1435)
i) “Juridicamente, porém, Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém
normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de
governar, distribuição de competências, diretos, garantias e deveres do cidadãos. Além disso, é a Constituição que
individualiza os órgãos competentes para a edição de normas jurídicas, legislativas ou administrativas.” (MORAES, 2010,
p.6)
j) Gomes Canotilho (2003, p.51) traz dois conceitos de Constituição: “Por constituição moderna entende-se a ordenação
sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos
e se fixam os limites do poder político.” “Por constituição em sentido histórico entender-se-á o conjunto de regras (escritas
ou consuetudinárias) e de estruturas institucionais conformadoras de uma dada ordem jurídico-política num determinado
sistema político-social.”
l) “A Constituição é um ponto firme, uma base coerente e racional para os titulares do poder político, que visam, mediante
ela, dar estabilidade e continuidade à sua concepção da vida associada.” (VERGOTTINI, 1998, p.258)
m) “Regras jurídicas que determinam os órgãos supremos do Estado, fixam o modo de sua criação, suas relações mútuas, seu
domínio de ação, enfim, o lugar fundamental de cada um em relação ao poder estatal” (Georg Jellinek apud TEIXEIRA,
2011, p.65)
n) “Conjunto de regras relativas ao governo e à vida da comunidade estatal, considerada do ponto de vista da existência
desta” (Maurice Hauriou apud TEIXEIRA, 2011, p.65)
o) “Conjunto de regras que regem, por um lado, a organização e as relações dos grandes poderes públicos, e que fixam, por
outro lado, em proveito dos particulares e das coletividades, as limitações gerais à ação do Estado” Joseph Barthélemy e
Paul Duez apud TEIXEIRA, 2011, p.65)
p) “Sistema de leis e costumes que definem a composição e os poderes dos órgãos do Estado e regulam as relações destes
entre si e para com os cidadãos” (Owen Hood Phillips apud TEIXEIRA, 2011, p.66)
9
Não obstante o reconhecimento da relevância do tema, por questões metodológicas, não será possível analisar detidamente
todos os sentidos que foram, e ainda são, atribuídos à Constituição. Neste estudo, apenas desenvolvemos melhor o sentido
jurídico, abrangendo o sentido formal e material de Constituição. Cumpre, portanto, apenas, mencionar a existência de
Constituição em sentido sociológico, político, jurídico e culturalista; Constituição em sentido formal e material e, para alguns
autores (MIRANDA, 2000, p. 34), há também um sentido instrumental etc. Lâmmego Bulos (2011, p.104-112) traz uma
infinidade de sentidos atribuídos à Constituição: jusnaturalista, positivista, marxista, institucionalista, culturalista,
estruturalista, biomédica, compromissória, suave, em branco, plástica, empresarial, oral, instrumental, estatuto do poder,
ordem material e aberta da comunidade, dirigente, instrumento de realização da atividade estatal, subconstitucional,
documento regulador do sistema político, processo público, meio de resolução de conflitos, garantia do status econômico e
social.
19
10
Por não caber um maior aprofundamento do tema neste estudo, cumpre apenas informar algumas das classificações
existentes de Constituição: quanto à origem, à forma, à extensão, ao conteúdo, ao modo de elaboração, à alterabilidade, à
estabilidade, à sistemática, à dogmática, à função, à origem de sua decretação, ao conteúdo ideológico (liberais ou negativas e
sociais ou dirigentes); constituições garantia, balanço e dirigentes; constituições expansivas, etc.
20
Konrad Hesse (1983, p.13) também constata que, no Estado contemporâneo, não é
mais possível isolar o Estado da sociedade, na medida em que um depende do outro para se
manter. Não é mais possível uma vida social sem um ente responsável, organizador e
planificador, pois as demandas da sociedade para com o Estado são cada vez mais frequentes.
Por outro lado, um Estado democrático não se constitui senão por meio da cooperação
social. Daí porque o autor entende mais adequada a utilização do termo comunidade para
representar essa colaboração entre o estatal e o não estatal dentro do território do Estado,
ficando o termo “Estado” para ser utilizado quando se quiser referir apenas à atividade e
atuação dos Poderes constituídos por meio da formação da unidade política.
Conforme vimos, para Hesse (1983, p.14), a unidade política e, portanto, o Estado e a
realização de suas tarefas, dependem da cooperação humana. Porém, essa atuação precisa ser
organizada, planificada e consciente. Para que a formação da unidade política, que é um
fenômeno permanente, não corra o risco de se desintegrar em meio às lutas pelo poder, é
necessário uma ordenação. É preciso que os Poderes do Estado sejam dotados de uma
organização, de regras de procedimento, para cumprirem suas tarefas e obterem êxito na
manutenção de uma cooperação criadora de unidade, eliminando-se os abusos de poder.
Somente a instituição de uma ordem jurídica permitiria essa cooperação processualmente
ordenada.
Observe-se, porém, que essa ordem jurídica não é um fato preexistente, não se trata de
uma prévia ordem de valores, mas sim, de uma ordem construída, que deve ser criada,
conservada e desenvolvida por meio da ação humana. Essa ordem necessita ser instituída de
forma vinculante pelos Poderes estatais e deve ser concretizada para assegurar a sua
observância.
Trata-se da institucionalização de um Direito histórico e que, para condicionar a
conduta humana, necessita ser aceita por meio de um acordo básico sobre o cumprimento dos
conteúdos da ordem jurídica. Em decorrência desse raciocínio, Konrad Hesse define a
Constituição como “a ordem jurídica fundamental da comunidade”:
11
Tradução livre: “A Constituição é a ordem jurídica fundamental da Comunidade. A Constituição estabelece os
princípios orientadores em conformidade com os quais se deve construir a unidade política e assumir as tarefas
do Estado. Contém os procedimentos para a resolução de conflitos no seio da Comunidade. Regula a
organização e o processo de formação da unidade política e de atuação estatal. Cria as condições e determina os
princípios da ordem jurídica em seu conjunto. Em tudo isso é a Constituição ‘o plano estrutural básico destinado
a certos princípios de sentido para conformação jurídica de uma comunidade’.”
12
Tradução livre: “Se a Constituição quer tornar possível a resolução das múltiplas situações críticas historicamente
cambiantes seu conteúdo deverá permanecer necessariamente ‘aberto ao tempo’.”
13
Tendo em vista a existência e o desenvolvimento de diversas formas de Estado ao longo da história, a palavra Estado não
foi utilizada apenas no sentido de Estado moderno, como hoje é conhecido, mas sim, no sentido de uma sociedade política
organizada e detentora de alguns elementos e caraterísticas identificadores. Para MIRANDA (2011, p.3 e 5), são elementos
condicionantes da existência de um Estado a presença de um povo, território e poder politico, sendo as caraterísticas mais
comumente encontradas a complexidade de organização e atuação, a institucionalização da coercibilidade e da
autonomização do poder político.
14
Paulo Bonavides explica que Constituição do ponto de vista material é “aquele conjunto de normas pertinentes à
22
Luís Roberto Barroso (2011, p.26-27) explica que o uso da palavra constitucionalismo
é relativamente recente no vocabulário jurídico, datando de, aproximadamente 200 anos, visto
que, normalmente, está associado aos processos revolucionários ocorridos na França e nos
Estados Unidos.
Lammêgo Bulos (2011, p.65-64), por sua vez, esclarece que o termo
constitucionalismo possui dois sentidos, um amplo e um estrito, sendo este último o mais
comum.
Em sentido amplo, a ideia de constitucionalismo estaria associada ao fato de que todo
Estado, em qualquer época da sociedade, sempre possuiu uma Constituição, na medida em
que sempre existiu uma norma básica para conferir poderes e limites ao soberano. Já em
sentido estrito, a concepção de constitucionalismo estaria relacionada a um movimento
constitucionalista que teve caráter jurídico, social, político e ideológico e que passou a
consistir em uma
Técnica jurídica de tutela das liberdades, surgida nos fins do século XVIII, que
possibilitou aos cidadãos exercerem, com base em constituições escritas, os seus
direitos e garantias fundamentais, sem que o Estado lhes pudesse oprimir pelo uso
da força e do arbítrio. (BULOS, 2011, p.64)
organização do poder, à distribuição de competências, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa
humana, tanto individuais como sociais” e, ainda, adverte que “não há Estado sem Constituição, Estado que não seja
constitucional, visto que toda a sociedade politicamente organizada contém uma estrutura mínima, por rudimentar que seja.
Foi essa a lição de Lassale, há mais de cem anos, quando advertiu, com a rudeza de sua convicções socialistas e a fereza de
seu método sociológico, buscando sempre desvendar a essência das Constituições, que uma Constituição em sentido real ou
material todos os países, em todos os tempos, a possuíram” (BONAVIDES, 2004, p.80-81).
15
Tradução livre: “No entanto, a existência de uma constituição escrita não se identifica com o constitucionalismo.
Organizações políticas anteriores viveram sob um governo constitucional, sem sentirem a necessidade de articular os limites
ao exercício do poder político; essas limitações estavam tão profundamente enraizadas nas crenças da comunidade e nos
costumes nacionais, que foram respeitadas pelos governantes e governados.”
23
O que o autor afirma quando diz que existem vários constitucionalismos é que as
características de cada um desses movimentos constitucionais irá depender do momento
histórico-evolutivo em que se manifestou o fenômeno.
Por outro lado, por mais que se identifique a existência de um constitucionalismo
hebreu ou de um constitucionalismo francês, por exemplo, a essência do que representa o
fenômeno do constitucionalismo estará presente em todos esses momentos histórico-
constitucionais, impregnado do temperamento de cada contexto histórico pertinente.
Podemos afirmar, portanto, que o constitucionalismo não é um fenômeno estanque,
mas um processo, já que o seu conteúdo se modifica constantemente, na medida da evolução
do pensamento político e jurídico da sociedade. Assim, não há melhor forma de estudar o
constitucionalismo senão sob a perspectiva histórico-descritiva. A partir dessa ideia, Nicola
Matteucci afirma que
16
Podemos apresentar as seguintes enunciações encontradas na doutrina acerca do termo constitucionalismo:
a) “É oportuno insistir que o mais antigo, o mais persistente e duradouro dos caracteres essenciais do verdadeiro
Constitucionalismo continua sendo o mesmo do início, a limitação do Governo a mercê do direito.” (Charles Howard
Mcllwain apud MATTEUCCI, 1998, p. 253)
b) “Sinteticamente, então, pode-se conceituar o fenômeno do constitucionalismo como uma técnica de limitação do governo,
igual a tantas outras existentes, tais como o Estado de Direito e rule of law, com a finalidade de assegurar aos cidadãos o
exercício de seus direitos, em face de pretensos governos arbitrários, mas que se diferencia das demais técnicas, na medida
em que insere em sua alçada de controle, igualmente, a figura da lei (enquanto produto do legislativo).” (AVELINO, 2007,
p.23)
c) “Fica absolutamente nítida, pois, apresentação do constitucionalismo como movimento que, embora de grande alcance
jurídico, apresenta feições sociológicas inegáveis. O aspecto jurídico revela-se pela pregação de um sistema dotado de um
corpo normativo máximo, que se encontra acima dos próprios governantes – a Constituição. O aspecto sociológico está na
movimentação social que confere a base de sustentação dessa limitação do poder, impedindo que os governantes passem a
fazer valer seus próprios interesses e regras na condução do Estado. O aspecto ideológico está no tom garantístico (como
decorrência da limitação do “poder”) pregado pelo constitucionalismo.”(TAVARES, 2011, p.25)
d) “Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law,
Rechtsstaat).” (BARROSO, 2011, p. 27)
e) “Nesse diapasão, conceituamos o constitucionalismo como o processo dialético de natureza ética, política e jurídica, que se
desenrola no curso da história a partir de premissas emancipatórias, cuja finalidade é a criação e a manutenção de uma
constituição, a qual deverá figurar como instrumento de contenção do exercício do poder pelo próprio poder, e como fonte
garantidora da fruição e do exercício dos direitos fundamentais em sua plenitude.” (KHAMIS, 2008, p.77)
f) “O constitucionalismo é uma técnica jurídica de tutela das liberdades, porquanto engloba um conjunto de normas,
instituições e princípios constitucionais positivos, depositados em constituições escritas, a exemplo do direito à vida, à
igualdade, à dignidade, ao devido processo legal e tantos outros vetores relacionados à mecânica dos direitos humanos
fundamentais.” (BULOS, 2011, p.66)
g) “Ora, é justamente a este patrimônio jurídico-político comum à generalidade dos países civilizados, a este conjunto de
princípios e instituições constitucionais, que compõem a bem dizer, a estrutura mestra, a essência, o cerne da organização
política e jurídica dos Estados da atualidade, que se denomina o ‘constitucionalismo moderno’, de cujo conceito ficam, desde
logo afastadas aquelas formas, instituições, princípios e práticas repudiados pela consciência jurídica moderna, superados
25
(2003, p.51) apresenta uma definição que se aplica aos seus variados sentidos, ao afirmar que
“Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado
indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social
de uma comunidade.” O autor ainda acrescenta que o constitucionalismo moderno
“representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos” e que “o
conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor”. O
constitucionalismo seria, portanto, uma teoria normativa voltada para dois temas
fundamentais: ordenação, fundamentação e limitação do poder político e ao reconhecimento e
garantia dos direitos e liberdades do indivíduo. (CANOTILHO, 2003, p. 54-55)
Nesse sentido, o constitucionalismo pode ser encarado como “um processo17 dialético
que se desenrola no curso da história” (KHAMIS, 2008, p.77), pressupõe a existência de uma
finalidade18 e deve atender à sua carga valorativa19, por meio de certas técnicas.20
pela evolução histórica e que apenas esporadicamente, como por exceção, podem aparecer e subsistir, por período mais ou
menos dilatado, no panorama político-jurídico da nossa época.” (TEIXEIRA, 2011, p.409-410)
h) “Esse conceito polêmico (de Constituição) é que alimenta o movimento político e jurídico, chamado constitucionalismo.
Esse visa estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer dizer, governos moderados, limitados em seus poderes,
submetidos a Constituições escritas.” (FERREIRA FILHO, 2009, p.7)
i) “O termo constitucionalismo apresenta vários significados. Embora se enquadre numa perspectiva jurídica, tem alcance
sociológico. Em termos jurídicos, reporta-se a um sistema normativo, enfeixado na Constituição, e que se encontra acima dos
detentores do poder; sociologicamente, representa um movimento social que dá sustentação à limitação do poder,
inviabilizando que os governantes possam fazer prevalecer seus interesses e regras na condução do Estado”(CARVALHO,
2006, p.211)
j) “Constitucionalismo é o movimento político, jurídico e social, pautado pelo objetivo de criar um pensamento hegemônico
segundo o qual todo Estado deve estar organizado com base em um documento fundante, chamado Constituição, cujo
propósito essencial seria o de organizar o poder político, buscando garantir os direitos fundamentais e o caráter democrático
de suas deliberações”. (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2012, p.26)
17
É um processo já que se desenvolve e se reinventa ao logo da evolução social.
18
Finalidade garantística que se manifesta na criação e manutenção de um documento escrito que assegure os valores
vigentes.
19
Valores éticos, políticos, filosóficos que variam de acordo com o momento histórico.
20
Estado de Direito, portanto, rule of law.
26
O povo hebreu instituiu uma forma de governo que passou a ser designada por
teocracia21, já que os súditos acreditavam viver sob a autoridade de uma figura divina. Os
detentores do poder na terra seriam apenas representantes desse poder divino.
Diz-se que o primeiro povo a praticar o constitucionalismo foram os hebreus, pois o
detentor do poder político não possuía poderes absolutos e arbitrários, mas encontrava-se
limitado pelas leis do Senhor que submeteria governantes e governados. (LOEWENSTEIN,
1979, p.154)
Assim, os limites do poder político, ou secular, se encontravam na lei moral, nas
escrituras sagradas. Tanto os governantes quanto os governados deveriam se submeter ao que
estava previsto na sagrada escritura.
Verificamos, pois, na sociedade hebraica o germe da ideia de limitação do exercício
do poder pelo próprio poder, ainda que numa perspectiva teológico-estatal.
Ademais, é também na civilização hebraica que se verifica a primeira forma de
contestação da ruptura com a legitimidade constitucional decorrente das ações praticadas
pelos titulares do poder. Nesse sentido, encontram-se os profetas que contestavam a atuação
ilegítima das autoridades, com base na Constituição moral da sociedade.
Por essas razões é possível apontar a sociedade hebraica como a primeira
manifestação histórica do constitucionalismo, sendo as escrituras sagradas consideradas não
só a lei moral imperativa, mas também o paradigma para valorar e limitar a atuação do poder
político.
21
Karl Loewenstein aponta que essa ideologia de dominação foi comum nos impérios orientais da Antiguidade, no mundo
islâmico, no budismo, no xintoísmo. Um exemplo dessa forma de governo na Europa se deu na Genebra de Calvino.
(LOEWENSTEIN, 1979, p.154)
28
governantes e governados e no qual o poder político estava igualmente distribuído entre todos
os cidadãos ativos22.
A sociedade grega manifestava grande apreço ao exercício compartilhado do poder
político e à existência de uma ordem estatal regulada democrática e constitucionalmente, bem
como à defesa da igualdade e de uma justiça igualitária.
O poder político não era, de forma alguma, concentrado ou arbitrário, mas estava
distribuído e limitado racionalmente. As funções estatais gregas eram entregues a diversos
detentores de cargos23. Meirelles Teixeira aponta que
22
Quando analisamos a democracia grega com os olhos de hoje, podemos afirmar que se trata mais de uma oligarquia do que
de uma democracia, já que a ostentação da qualidade de cidadão dependia de uma série de critérios que excluía da
participação política a grande massa de mulheres, estrangeiros e escravos. Não obstante, esse fato não ostenta grande
importância, dado o grande impacto influenciador que a democracia grega teve sobre as outras civilizações e dado o
momento histórico em que se consolidou.
23
Karl Loewenstein aponta que foram estabelecidas diversas formas de controle para evitar o exercício do poder arbitrário
pelos ocupantes dos cargos públicos como a nomeação dos detentores de cargo por sorteio; o exercício do cargo era rotativo
e estabelecido por período curto de tempo; era vedada a reeleição; não se exigia qualificação especial para o exercício do
cargo, salvo para certas categorias técnicas, o que propiciava o acesso de todos aos cargos públicos. (LOEWENSTEIN, 1979,
p.155-156)
29
Por mais que os pensamentos transcritos pelo autor sejam de teólogos da época, esses
princípios éticos de submissão da vontade do rei à vontade de Deus, ou seja, esses preceitos
31
24
O Corpus Iuris Civilis foi uma compilação de textos da época romana, elaborada no século IV por determinação de
Justiniano, que pretendeu consolidar diversos documentos jurídicos romanos em um único corpus. Na realidade, esses textos
não possuíam relação entre si e consistiam em escritos esparsos que ora retratavam o julgamento de casos, ora escritos
doutrinários, ora escritos de lei. Os descobridores de tais textos os consideram superiores ao Direito então predominante.
Iniciou-se a partir daí um estudo aprofundado e sistematizado de tal documento, com a finalidade de encontrar harmonia e
coerência entre esses textos, o que se deu, principalmente, na Itália e na França. Por outro lado, na Inglaterra estabeleceu-se
um Direito autônomo, baseado na prática cotidiana considerada por todos adequada, configurando-se uma centralização
judiciária e uma homogeneidade da classe forense. Por tais motivos, após alguns anos de estudo do Corpus Iuris Civilis na
Europa continental, a tentativa de iniciar tais estudos também na Inglaterra não teve muita repercussão. Ademais, acrescente-
se que tal nação já era um Estado unitário sob o governo de um rei (a Itália e a Alemanha eram descentralizadas, dividida em
comunas e pequenos reinos) e muitos reis rejeitaram o estudo do Direito romano. Henrique III, inclusive, proibiu o estudo
das leges.
25
O sistema jurídico inglês manteve-se baseado no julgamento dos casos concretos, aplicando regras baseadas nos costumes
e nas decisões dos reis ou dos juízes, que iam sendo catalogadas nos Statute Books. Nessa época, ainda não havia
obrigatoriedade em seguir os precedentes, porém, já existia uma preocupação com os julgamentos contraditórios e com a
necessidade de decidir casos similares de maneira semelhante.
32
26
Glosadores bolonheses foram estudiosos da Universidade de Bolonha, na Itália, que se debruçaram sobre o estudo e a
tentativa de sistematização do Corpus Iuris Civilis e consideravam esse Direito superior ao então vigente, baseado nos
costumes.
27
Antes mesmo do surgimento das declarações de direitos da Era Moderna, este documento já havia sido uma tentativa de
instituição, pelos súditos, de certas garantias contra o poder monárquico. Podemos exemplificar algumas das suas cláusulas: a
possibilidade de julgamento por seus pares; a garantia de que nenhum homem seria privado de seus bens ou sujeito à prisão
sem ser submetido a um julgamento; a estipulação de penas e punições proporcionais ao delito; a garantia de concessão de
justiça; a liberdade e inviolabilidade dos bens da igreja, etc.
33
28
Karl Loewenstein (1979, p.158) afirma que a prioridade na elaboração de uma Constituição pode ser conferida à Suécia
que, em 1634, estabeleceu os princípios de governo em caso de impossibilidade ou ausência no estrangeiro do rei, por meio
da Regeringsfom.
29
Santi Romano parece ser um entusiasta da inexistência de uma Constituição escrita, afirmando: “O caráter consuetudinário
do direito público inglês e a multiplicidade dos seus documentos escritos beneficia a sua estabilidade, opondo aos inovadores
e aos revolucionários uma resistência longa e continuada de trincheiras; o direito constitucional escrito, pelo contrário,
apresenta-se como um fácil e próximo alvo aos seus adversários, quase que um convite e um concurso perpétuo a quem
souber escrever melhor.” (ROMANO, 1977, p.45)
30
Evidentemente, o avanço na consolidação dos direitos e liberdades públicas àquela época, não são
comparáveis ao atual momento evolutivo das proteção dos direitos fundamentais. Porém, proporcionaram
grandes conquistas naquela quadra histórica, já que representaram o início da busca pela implementação dos
direitos e liberdades.
34
(Magna Charta de 1215, Petition of Rights de 1628, Habeas Corpus Act de 1679, Bill of
Rights de 1689, Act of Settlement, de 1701), a consolidação de algumas estruturas
constitucionais, hoje, consideradas fundamentais. Isso se deu não só com referência à
Constituição (histórica) inglesa, mas acabou por influenciar o constitucionalismo francês e
norte-americano. Algumas dessas estruturas permanecem, até hoje, como parte das
Constituições ocidentais modernas.
São frutos desse modelo historicista a garantia da liberdade pessoal de todos os
ingleses e a segurança da pessoa e dos seus bens, o que gerou a necessidade de se criar um
modelo no qual houvesse um julgamento justo e regulado pela lei (due process of law). Essa
lei deveria ser a lei do país (law of the land) a ser aplicada e interpretada de forma evolutiva
pelos juízes, ou seja, dever-se-ia aplicar o Direito comum de todos os ingleses (common law).
Para instituir um governo moderado, principalmente, a partir da Revolução Gloriosa (1688-
1689), ganha estatuto constitucional a representação e a soberania do parlamento, o que
proporcionou a possibilidade de representação social no governo e o compartilhamento de
poder entre o monarca e o parlamento. Ademais, a ideia de soberania do parlamento trouxe
diretamente associada à ideia de que esse poder deveria ser exercido por meio das leis (the
rule of law).
É importante observar que esse constitucionalismo de modelo historicista e a ideia de
soberania do parlamento acabou por impedir que se estabelecesse na Inglaterra uma
Constituição escrita, rígida, e, por conseguinte, um controle de constitucionalidade das
normas. No caso inglês, as leis constitucionais se misturavam com as leis ordinárias gerais, o
que sempre permitiu ao parlamento a possibilidade de modificá-las simplesmente em razão de
sua autoridade soberana. Nesse contexto, pois, o parlamento poderia criar as leis que melhor
lhe aprouvesse, independentemente de estarem ou não em conformidade com o common law,
sem que houvesse nenhum outro órgão que pudesse analisar tais leis e declará-las
inconstitucionais, erigindo-se à categoria de um órgão de caráter absolutista.
Santi Romano (1977, p. 51-52) apresenta cinco institutos que derivaram do
constitucionalismo inglês e que se difundiram por outros Estados: a) o instituto da monarquia
constitucional (naqueles estados que não optaram pela forma republicana de governo); b) o
parlamento bicameral; c) o instituto da representação política por duas câmaras cujos
31
“É evidente, com efeito, a tendência dos ingleses bem como dos romanos ao ‘historicismo’, que se contrapõe à tendência
dos franceses e dos modernos povos latinos ao ‘racionalismo’. Assim, a Inglaterra, não obstante tenha tido um Locke,
considerado o pai espiritual das modernas revoluções (da inglesa do século XVII, da Americana, da francesa), encontra-se
sempre sobre a própria estrada secular, não interrompendo ou, quando muito, restaurando sem grandes modificações, a sua
maravilhosa tranquilidade legislativa. As constituições dos outros Estados têm tido caracteres mais ou menos
revolucionários.” (ROMANO, 1977, p.44)
35
32
No caso da Inglaterra não houve a adoção de uma única Constituição escrita em sentido formal, mas sim, de diversos
documentos dotados de conteúdo constitucional.
36
Podemos afirmar que o artigo 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789 exprime a essência dos movimentos constitucionais modernos ao afirmar que
“qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a
separação dos Poderes não tem Constituição” (BRASIL, 1789).
33
Esse documento visava regulamentar a igreja francesa, extinguindo os direitos feudais e os privilégios dos
eclesiásticos, transformando os sacerdotes paroquiais em espécies de funcionários públicos.
34
Muito embora em sua fase gestacional a Revolução Francesa não tivesse pretendido romper completamente com o regime
monárquico, mas sim, implementar um sistema de monarquia constitucional, não foi esse modelo que se desenvolveu em um
momento posterior, quando a monarquia foi extinta e instituída uma república.
35
O constitucionalismo inglês, como já afirmado, decorreu de um movimento evolucionista e que não rompeu
completamente com as estruturas medievais estamentais, tratou-se mais de uma “adaptação político-social ou ajustamento
prudencial da história”. (CANOTILHO, 2003, p.57)
38
La nation existe avant tout, elle est l’origine de tout. Sa volonté est toujours légale,
elle est la loi elle-même. Avant elle et au-dessus d’elle il n’y a que le droit naturel.
Si nous voulons nous former une idée juste de la suite des lois positives qui ne
peuvent émaner que de sa volonté, nous voyons en première ligne les lois
constitutionnelles, qui se divisent en deux parties : les unes règlent l’organisation
et les fonctions du corps législatif; les autres déterminent l’organisation et les
fonctions des différents corps actifs. Ces lois sont dites fondamentales, non pas en
ce sens qu’elles puissent devenir indépendantes de la volonté nationale, mais parce
que les corps qui existent et agissent par elles ne peuvent point y toucher. Dans
chaque partie la constitution n’est pas l’ouvrage du pouvoir constitué, mais du
pouvoir constituant. Aucune sorte de pouvoir délégué ne peut rien changer aux
conditions de sa délégation. C’est ainsi et non autrement que les lois
constitutionnelles sont fondamentales. Les premières, celles qui établissent la
législature, sont fondées par la volonté nationale avant toute constitution; elles en
forment le premier degré. Les secondes doivent être établies de même par une
volonté représentative spéciale. Ainsi toutes les parties du gouvernement se
répondent et dépendent en dernière analyse de la nation. 37 (SIEYÈS, 2002, p.53)
Apesar de todo o esforço dos teóricos franceses para caracterizarem o seu movimento
constitucional com base exclusivamente nas ideias dos filósofos racionalistas, concordamos
com Santi Romano (1977, p.49-50). Segundo ele, a elaboração da Constituição norte-
36
Podemos afirmar que o Poder Constituinte já havia se manifestado antes mesmo da teorização elaborada por Sieyès,
quando, durante uma das reuniões do Congresso da Confederação, também chamada de Convenção da Filadélfia, em maio de
1787, delegados das ex-colônias britânicas acabaram se reunindo em assembleia que culminou com a elaboração da
Constituição norte-americana.
37
Tradução livre: “A nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade sempre legal, é a própria lei. Antes dela
e acima dela só existe o direito natural. Se quisermos formar uma ideia exata da série das leis positivas que só podem emanar
de sua vontade, veremos, em primeira linha, as leis constitucionais que se dividem em duas partes: umas regulam a
organização e as funções do corpo legislativo; as outras determinam a organização e as funções dos diferentes corpos ativos.
Essas leis são chamadas de fundamentais, não no sentido de que possam tornar-se independentes da vontade nacional, mas
porque os corpos que existem e agem por elas não podem tocá-las. Em cada parte, a Constituição não é obra do poder
constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar nada nas condições de sua
delegação. É neste sentido que as leis constitucionais são fundamentais. As primeiras, as que estabelecem a legislatura, são
fundadas pela vontade nacional antes de qualquer constituição; formam seu primeiro grau. As segundas devem ser
estabelecidas por uma vontade representativa especial. Desse modo, todas as partes do governo dependem em última
instância da nação.”
39
A Revolução passaria ainda por fases diversas, marcadas pelo radicalismo das
facções políticas, no plano interno, e pela hostilidade das monarquias europeias,
que estiveram em guerra com a França entre 1792 e 1800. A instabilidade política
e institucional levou à execução do rei, acusado de traição e à instauração da
República, dando início ao período conhecido como o do governo da Convenção
(1792-1795). Após a derrocada do Terror e de Robespiere, sobreveio o período
historicamente conhecido como o do Diretório (1795-1799), no qual se procurou,
sem sucesso, edificar um republicanismo moderado. A fragilidade política desse
governo colegiado e o sucesso militar nas campanhas externas deram ensejo à
ascensão do exército e de seus generais. Coube a um deles, Napoleão Bonaparte,
deflagrar, em novembro de 1799, o golpe de estado conhecido como 18 Brumário,
marco inicial de uma fase decisiva da história francesa e europeia – a era
napoleônica –, na qual ele exerceu o poder como cônsul, ditador e imperador,
sucessivamente, até que a sorte viesse a faltar-lhe no campo de batalha, em 1814,
levando à sua abdicação. (BARROSO, 2011, p.49)
38
Instauração de uma monarquia constitucional parlamentar; a fase da Convenção; a fase do Diretório; e o início da era
napoleônica.
40
historicista adotado naquele país) e nos Estados Unidos (adoção de uma única Constituição
que vigora até hoje com pouquíssimas emendas).
A segunda Constituição escrita francesa data de 1793 (ano I da proclamação da
República), porém a crise política institucionalizada e as guerras externas impediram que a
Constituição tivesse vigência 39 . Em 1795, após Robespiere ser levado à guilhotina, a
Convenção instituiu uma nova Constituição (Constituição do ano III) com a previsão da
criação de um governo colegiado, o Diretório. A perpetuação da crise política e econômica
abriu passagem para que, quatro anos depois, a população, insatisfeita, apoiasse a ascensão de
Napoleão Bonaparte. Então, foi elaborada a Constituição de 1799 (Constituição do ano VIII)
que instituiu o governo sob a forma de consulado, a porta de entrada para reintroduzir uma
monarquia absoluta sob o comando de Napoleão.
Após as sucessivas derrotas nas guerras, em 1812 e 1813, Napoleão é levado a
renunciar e se exila na ilha de Elba, em 1814. No ano seguinte, foge do exílio e retorna ao
poder por um curtíssimo período, pois a derrota na batalha de Waterloo sela o seu exílio
definitivo na ilha de Santa Helena.
Ocorre, então na França, a restauração monárquica e, em 1814 é elaborada uma nova
Constituição que, em 1830 será reformada. Em 1848, inicia-se a Segunda República que, em
1852 se converte em Segundo Império. Após a derrota da França na guerra franco-prussiana,
sobrevém a Constituição de 1875 que institui a Terceira República e perdura até a ocupação
da França pelos alemães na Segunda Guerra Mundial, em 1940. Após o fim da Segunda
Guerra, instituiu-se a Quarta República e, em 1946, foi adotada uma nova Constituição que
não gozou de grande prestígio. Por fim, em 1958, com o início da Quinta República, uma
nova Constituição foi aprovada e vigora até hoje com algumas poucas emendas.
Esse cenário histórico demonstra que o constitucionalismo francês foi marcado por
uma intensa instabilidade política, o que impediu, desde o começo uma consolidação jurídica
por meio da adoção de uma Constituição perene. Ademais, na França, ao contrário dos
Estados Unidos, a Constituição surgiu como um documento sem força normativa; o que
prevalecia eram os atos do parlamento. Até a Segunda Guerra Mundial, foi essa concepção de
39
Eric Hobsbawm (2012, p.121-122) apresenta a Constituição de 1793 com características marcadamente democráticas,
afirmando: “Uma nova Constituição um tanto radicalizada, e até então retardada pela Gironda, foi proclamada. De acordo
com este nobre documento, todavia acadêmico, dava-se ao povo o sufrágio universal, o direito de insurreição, trabalho ou
subsistência, e – o mais significativo – a declaração oficial de que a felicidade de todos era o objetivo do governo e de que os
direitos do povo deveriam ser não somente acessíveis, mas também operantes. Foi a primeira Constituição genuinamente
democrática proclamada por um Estado moderno. Mais concretamente, os jacobinos aboliram sem indenização todos os
direitos feudais remanescentes, aumentaram as oportunidades para o pequeno comprador adquirir as terras confiscadas dos
emigrantes e – alguns meses mais tarde – aboliram a escravidão nas colônias francesas, a fim de estimular os negros de São
Domingos a lutar pela República contra os ingleses.”
41
40
Estamos nos referindo ao Townshend Acts e ao Tea Act.
41
Como por exemplo, o Stamp Act.
42
O Stamp Act gerou um forte descontentamento entre os colonos e uma desobediência em massa, fundada no fato de que
não havia participação da colônia no parlamento inglês, datando dessa época o surgimento de um dos slogans da revolução:
no taxation without representation. (BARROSO, 2011, p. 37)
43
Implementação de sanções inglesas contra Massachusetts, em razão da Tea Party ocorrida em Boston (quando os colonos
atiraram na baía de Boston chá indiano que estava sendo importado a preços inferiores) e a transferência para o Canadá das
terras ao norte de Ohio.
42
44
Neste Congresso deliberou-se a necessidade de constituição de um exército organizado (sob o comando de George
Washington); da adoção de constituições escritas pelas ex-colônias e designou-se uma comissão para elaborar a declaração
de independência (cujo principal redator foi Thomas Jefferson). (BARROSO, 2011, p.38)
45
Em 04 de julho de 1776, foi assinada pelos membros do Segundo Congresso a Declaração da Independência, cujo principal
redator foi Thomas Jefferson e teve início um processo de elaboração de Constituições próprias para os Estados recém
emancipados do colonialismo inglês.
43
46
Gomes Canotilho (2003, p.58) explica que o constitucionalismo norte-americano se fundou na ideia de “povo” e não de
“Nação” como ocorreu no caso francês. O fato é que os norte-americanos estavam tentando se livrar de um parlamento
omnipotente e não tinha a intenção de transferir essa omnipotência para a figura da nação que tinha intrínseca também a ideia
de participação do governo. Os norte-americanos queriam que o poder constituinte permanecesse com o povo e a
Constituição representaria um momento de decisão do povo.
47
Santi Romano, ao traçar um panorama sobre o surgimento do constitucionalismo, deixa bem claro que a grande origem de
tudo se deu a partir do movimento constitucional inglês, porém ressalta que foram os constitucionalismos francês e norte-
americano responsáveis, não só por difundir os princípios e instituições incorporados do constitucionalismo inglês, mas
44
Constituição americana foi muito influenciada pelas ideias contratualistas de Locke e pela
ideia da existência de um Direito natural superior até mesmo às leis do parlamento.
Como a Constituição representava uma lei superior, ou seja, uma lei que deveria
pautar a atuação dos governantes e a elaboração das outras leis, acabou se convertendo em
verdadeiro paradigma de atuação. A partir disto, decorreu o raciocínio de que seria nula
qualquer lei que infringisse as normas Constitucionais, o que possibilitou o surgimento do
controle de constitucionalidade (judicial review) feito pelos juízes, que foram alçados à
categoria de defensores da Constituição e dos direitos e liberdades 48. Ou seja, desde o início,
já havia no constitucionalismo norte-americano a defesa da força normativa e da supremacia
da Constituição que eram asseguradas pelo controle de constitucionalidade.
também por estruturar a base do moderno Direito Público mediante as seguintes inovações: “a) Alguns princípios que se
encontraram no direito inglês tiveram aceitação e desenvolvimento diversos. Por exemplo, aqueles relativos aos direitos
individuais e à divisão de poderes: os direitos individuais não mais foram reconhecidos como simples limitações dos direitos
do soberano e foram atribuídos não apenas aos cidadãos, mas a todos os homens; a divisão dos poderes assumiu uma
importância mais precisa e os caracteres a ele conferidos por Montesquieu. b) Outro princípio importantíssimo que,
formulado nas cartas americanas e francesas, influiu muito sobre o direito público atual é o da ‘soberania nacional’ [...],
princípio este que, certamente não é equivalente ao da soberania do Estado, mas que tem o mérito de haver encaminhado a
este último, subtraindo a soberania, como poder pessoal, seja ao príncipe, seja aos indivíduos, tornando-a um atributo da
‘nação’ inteira, que depois encontrou-se no Estado. c) Finalmente, o direito americano e o francês, e esta tem sido talvez a
sua mais importante influência, têm contribuído para modificar na sua íntima estrutura a própria sociedade, o que era
preliminarmente necessário para que novas instituições políticas pudessem ser instauradas. Dessa maneira dividiram os
agrupamentos humanos em categorias e classes colocadas em posições jurídicas mais ou menos diversas e sobre esta base
proclamaram o princípio da igualdade, que representa a fórmula final e mais sintética daquela profunda transformação.”
(ROMANO, 1977, p.53-54)
48
No Capítulo 4, exporemos de forma mais detalhada o surgimento do controle de constitucionalidade no constitucionalismo
norte-americano.
45
3 O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO49
49
Convém esclarecer que o debate em torno do Constitucionalismo Contemporâneo ou Neoconstitucionalismo é um
fenômeno que se restringe, em linhas gerais, à Europa e à América Latina. Nos Estados Unidos não houve uma sucessão de
movimentos ou momentos constitucionais. Lá não houve uma ruptura com os paradigmas constitucionais que já estavam
institucionalizados desde os séculos XVIII e XIX. A Constituição norte-americana ainda é a mesma promulgada em 1787 e
sofreu apenas 27 emendas nesses mais de 200 anos de vigência. No sistema norte-americano, o debate constitucional
moderno gira basicamente em torno da amplitude das competências da federação, dos métodos de interpretação
constitucional, do ativismo ou autocontenção da Suprema Corte etc. O debate iniciado na Europa acerca da incompatibilidade
da Teoria do Direito de cunho positivista com o novo constitucionalismo não fez parte das preocupações da doutrina norte-
americana. Como será verificado ao longo do capítulo, várias das marcas características do Constitucionalismo
Contemporâneo já estavam institucionalizadas no ideário dos Estados Unidos desde a época dos Founding Fathers.
50
Lammêgo Bulos entende de forma diversa afirmando que não há nada de novo nas ideias apresentadas por aqueles que se
denominam neoconstitucionalistas e que as supostas características do Neoconstitucionalismo seriam nada mais do que parte
da evolução do Constitucionalismo Contemporâneo, assim, Neoconstitucionalismo seria o Constitucionalismo
Contemporâneo com outro nome e aduz: “não se trata de um movimento e muito menos de uma escola; não agrega, de modo
sistematizado, um corpo coerente de postulados, nem de propostas científicas que venha a acrescer algo, verdadeiramente
novo, àquilo que a humanidade já sabia; trabalha com teses, ideias e descobertas que vêm de priscas eras, mas que
encontraram o seu apogeu na contemporaneidade; seus defensores são chamados de ‘neoconstitucionalistas’, adoram
propagar concepções velhas como se fossem ‘novas’, tomando como suporte constatações do pensamento jusfilosóficos dos
dias correntes.” (BULOS, 2011, p.80-81)
46
51
Essa divisão mais simplificada é adotada com base em Luís Roberto Barroso (2011, p.265-267). Já Jorge Miranda (2011,
p.25-46) aponta três formas diversas de evolução das formas de Estado: a) sob uma perspectiva de natureza cultural, ele
divide em períodos correspondentes ao Estado do Renascimento (séculos XV e XVI); ao Estado da Ilustração (séculos XVII
e XVIII) e ao Estado do Romantismo (século XIX); b) sob uma perspectiva mais política e jurídico-positiva, ele divide em
Estado estamental ou da monarquia limitada pelas ordens; Estado absoluto e Estado constitucional, representativo ou de
Direito (sendo que esse último apresenta grandes variações e complexidade a partir do século XX, o que não permite uma
classificação mais uniforme, em razão da existência de contradição no que toca às opções e valores dos Estados nesse
século); c) sob uma perspectiva mais complexa, que liga Direito, política e economia, ele divide em Estado de poder
soberano dentro do sistema europeu de Estados; Estado comercial relativamente fechado e com sociedade e economia
capitalista burguesa; Estado liberal e constitucional; e Estado nacional que, simultaneamente, abrange todas estas tendências,
mas com uma tendência democrática.
52
Especialmente na França, e em outros países europeus fortemente influenciados pela tradição francesa. Já na Inglaterra e
nos Estados Unidos, o Direito passa a ser objeto de elaboração do Poder legislativo, mas também continua a ser um produto
do common law.
47
53
Constituição dos Estados Unidos que, desde o início, foi considerada um parâmetro de validade das normas legais. Ver
Capítulo 1, tópico 1.6.2.
48
Nessa época, o Estado constitucional passa a ser também democrático e a possuir uma
abertura radicada no princípio da dignidade humana. A dignidade humana tem uma expansão
ilimitada, sendo sempre passível de modificação ao longo da história, dessa forma, a
Constituição começou a ser encarada como um documento aberto às influências de uma
sociedade plural e democrática.
É relevante notarmos que o próprio conceito de democracia apresenta uma perspectiva
formal – que está ligada à ideia de governo da maioria e de respeito aos direitos individuais –
e uma material, que significa mais que o governo da maioria, pois está associada à ideia de
inclusão participativa dos grupos minoritários e de menor expressão política. Para dar forma a
uma democracia em sentido material, o Estado precisa, além de respeitar os direitos
individuais, promover direitos fundamentais de conteúdo social necessários à constituição de
uma sociedade minimamente igualitária, na qual as pessoas vivam dignamente e efetivamente
livres.54 Nesse sentido,
54
Para Luís Roberto Barroso “O constitucionalismo democrático, ao final da primeira década do século XXI, ainda debate
com as complexidades da conciliação entre soberania popular e direitos fundamentais. Entre governo da maioria e vida digna
e em liberdade para todos, em um ambiente de justiça, pluralismo e diversidade. Este continua a ser, ainda, um bom projeto
para o milênio.” (BARROSO, 2011, p.64)
55
Podemos apontar como características principais da Teoria Clássica do Direito, fruto do pensamento positivista do século
XIX: a) a defesa de um caráter científico da ciência jurídica; b) o emprego da lógica exclusivamente formal, fazendo com que
a interpretação jurídica se restringisse ao método de subsunção dos fatos à norma; c) pretensão de completude da lei, razão
pela qual eventuais lacunas deveriam ser resolvidas pela aplicação dos costumes, pela analogia e pelos princípios gerais; d)
pureza científica do estudo jurídico, pregando a necessidade de desvincular o Direito da influência de outras ciências; e)
racionalidade da lei e neutralidade do intérprete
49
mais como temas estranhos à ciência jurídica e de natureza quase metafísica, mas sim, como
disciplinas integrantes do estudo jurídico56.
A superação histórica do jusnaturalismo, a decadência política do positivismo, o
surgimento de um pensamento pós-positivistas – que, apesar de não ter uniformidade
dogmática, propõe uma nova forma de pensar o Direito, reaproximando-o da necessidade de
adequá-lo a valores éticos – associado à influência da Teoria Crítica do Direito57, constituíram
o pano de fundo filosófico ideal para se desenvolver essa nova forma de pensar o Direito
Constitucional.
Esse novo constitucionalismo é impulsionado por vários fatores. Entre os mais
significativos estão a derrocada do legiscentrismo baseado na supremacia do parlamento, a
pós-modernidade, a superação do positivismo clássico e a centralidade dos direitos
fundamentais, a diferenciação qualitativa entre princípios e regras. O Constitucionalismo
Contemporâneo emerge como um novo paradigma que revisa as teorias da norma, da
interpretação e das fontes, superando o positivismo e integrando, de forma útil e inovadora,
uma série de transformações teóricas e práticas no campo da ciência jurídica58.
É importante notarmos que o Constitucionalismo Contemporâneo, na medida em que
incorpora valores morais, não pode ser considerado uma teoria universal do Direito, pois
pressupõe a existência de um Estado democrático e Constituições rígidas que contenham um
rol vinculativo e irretroativo de direitos fundamentais. Assim, ao contrário do positivismo –
56
Essa mudança de paradigma se dá, principalmente, em decorrência da influência da Teoria Crítica do Direito, segundo a
qual o Direito não é puro, nem autossuficiente e nem completo, ao contrário, deve buscar interação com outras ciências e
deve tirar inspiração da realidade (sociologia do Direito) e das bases legitimatórias que possibilitam um estudo crítico
(Filosofia do Direito).
57
Em meados do século XX, ganha força a Teoria Crítica do Direito que questiona as premissas do pensamento clássico
(cientificidade, objetividade, neutralidade, estatalidade, completude etc.) e tem por base a ideia de que o Direito não está
imune a ser contaminado pelas opiniões e preconceitos do intérprete, dada a interação necessária entre sujeito e objeto do
conhecimento. A Teoria Crítica dá ênfase ao caráter ideológico do Direito e o trata como “o acessório normativo da
hegemonia de classe” (BARROSO, 2011, p.253). Para a Teoria Crítica, o Direito não é puro, nem autossuficiente e nem
completo, ao contrário, deve buscar interação com outras ciências e deve tirar inspiração da realidade (sociologia do Direito)
e das bases legitimatórias que possibilitam um estudo crítico (Filosofia do Direito). Para a Teoria Crítica seria possível,
inclusive, afirmar que o Direito não se encontra apenas na lei e que poderia existir independentemente de positivação. Essa
Teoria Crítica do Direito teve expressão em diversos países, nas décadas de 70 e 80: na França com a Critique du Droit; nos
Estados Unidos, com a Critical Legal Studies – ambas de forte influência marxista – e na Alemanha com a Escola de
Frankfurt, que foi responsável por questionar a separação entre Direito e ética e por elaborar duas categorias críticas – a
ideologia e a práxis – e por idealizar a existência de duas razões – instrumental e crítica. No Brasil, essa teoria ganhou a
simpatia da esquerda oposicionista, porém foi abafada pela forte pressão do regime militar então vigente. Mesmo tendo
ficado restrita a algumas escolas, essa teoria contribuiu significativamente para fazer surgir uma geração “menos dogmática,
mais permeável a outros conhecimentos teóricos e sem os mesmos compromissos com o status quo.” (BARROSO, 2011, p.
256). É relevante, ainda, apontar que Marilena Chauí (apud BARROSO, 2011, p.254) explica em que consiste a razão crítica
afirmando que “Os filósofos da Teoria Crítica consideraram que existem, na verdade, duas modalidades de razão: a razão
instrumental ou razão técnico-científica, que está a serviço da exploração e da dominação, da opressão e da violência, e a
razão crítica ou filosófica, que reflete sobre as contradições e os conflitos sociais e políticos e se apresenta como uma força
libertadora”.
58
Écio Oto Duarte (2010, p.64 e seguintes) também registra uma série de propriedades e teses atribuíveis ao paradigma
neoconstitucionalista: a) pragmatismo; b) ecletismo (sincretismo) metodológico; c) judicialismo ético-jurídico; d)
interpretativismo moral-constitucional; d) pós-positivismo; e) juízo de ponderação; f) especificidade interpretativa; g)
ampliação do conteúdo da Grundnorm; e h) conceito não positivista de Direito.
50
que se afirma não somente como a nova Teoria do Direito, mas também como a
nova Filosofia do Direito e uma proposta em desenvolvimento de uma futura
Teoria do Estado, o que representa em última análise, um novo contrato social,
advindo da prática jurídica e mais precisamente do sucesso que a ordem
51
59
Segundo Luís Roberto Barroso, a ideia de razão prática está ligada à obra de Kant e representa “um uso da razão voltado
para o estabelecimento de padrões racionais para a ação humana” (BARROSO, 2011, p.271). A razão prática, portanto,
estaria contraposta à razão teórica, visto que, enquanto esta se limita ao conhecimento objetivo, descritivo, do Direito, aquela
dá possibilidade de fundamentação racional de princípios de moralidade e justiça. Assim, o “pós-positivismo, ao reabilitar o
uso prático da razão na metodologia jurídica, propõe justamente a possibilidade de se definir racionalmente a norma do caso
concreto através de artifícios racionais construtivos, que não se limitam à mera atividade de conhecer os textos normativos”.
(BARROSO, 2011, p.271)
52
60
Luís Roberto Barroso aponta que, mesmo não tendo sido expressamente previsto na Lei Fundamental de Bonn a existência
de direitos sociais, eles são admitidos com base na cláusula do Estado Social, aliada à eficácia irradiante dos direitos
fundamentais e à teoria dos deveres de proteção. (BARROSO, 2011, p.57-58)
54
passou a ser observado sob a ótica constitucional e adequado aos princípios e objetivos da
Constituição. Eduardo Ribeiro Moreira aponta que essa constitucionalização do Direito se dá
sob três perspectivas diferentes:
Diz-se que o jusnaturalismo tem sua origem na Grécia antiga, onde Platão já se referia
à existência de uma justiça inata, universal e necessária. Essa ideia estoicista de uma lei
universal racional e imanente foi divulgada na Roma antiga por Cícero que, segundo Guido
Fassò (1998, p.656), afirmou haver “uma lei ‘verdadeira’, conforme à razão, imutável e
eterna, que não muda com os países e com os tempos e que o homem não pode violar sem
61
Convém esclarecer que para a finalidade deste estudo adotamos a posição de que o Constitucionalismo Contemporâneo é
um fenômeno mais abrangente do que o pós-positivismo jurídico, tanto é que este foi tratado apenas como o marco filosófico
daquele. O fato é que o pós-positivismo tem um enfoque mais voltado para questões estritamente jurídicas e para a aplicação
do Direito. No pós-positivismo há espaço para o desenvolvimento de questões filosófico-jurídicas envolvendo a interação
entre o Direito e a moral. O Constitucionalismo Contemporâneo, por sua vez, é mais abrangente e, além de envolver a
interação entre Direito e moral, acrescenta a interação política no âmbito do jurídico. Isso permite que o Constitucionalismo
Contemporâneo seja visto, conforme defende Eduardo Ribeiro Moreira (2006, p.63-76) não só como uma Teoria do Direito e
da filosofia jurídica – o pós-positivismo é passível de ser enquadrado também como Teoria do Direito e da filosofia jurídica –
mas também como uma Teoria do Estado, pois a Constituição, no marco do Constitucionalismo Contemporâneo, tem uma
força expansiva, irradiante e conformadora tão intensa que irá abranger as reflexões não só em torno da aplicação do Direito,
mas também em torno de sua criação. Assim, não só o intérprete e aplicador, mas também o legislador e o administrador
estarão vinculados aos preceitos constitucionais e toda a elaboração normativa e cada eleição de política pública deverá estar
voltada à observância e concretização constitucional em toda a sua materialidade. O Constitucionalismo Contemporâneo,
portanto, pode promover uma reorganização do Estado Constitucional com base em seus paradigmas e mediante o
comprometimento com desenvolvimento democrático.
55
renegar a própria natureza humana”. Essa ideia de que existe em todas as sociedades um
conjunto de valores, princípios e pretensões humanas que não decorrem de nenhuma norma
imposta pelo Estado acompanha o conceito de Direito desde a Antiguidade clássica e
permaneceu viva durante a Idade Média, especialmente por meio da obra de Tomás de
Aquino62.
O jusnaturalismo traz em si o pensamento segundo o qual existiria um Direito natural,
composto por normas superiores às estatais e que seriam legitimadas pela ideia de justiça e
ética. Esses valores superiores limitariam essa normatividade estatal. Luís Roberto Barroso
(2011, p.258) aponta que “A despeito das múltiplas variantes, o Direito natural apresenta-se,
fundamentalmente, em duas versões: a) de uma lei estabelecida pela vontade de Deus; b) a de
uma lei ditada pela razão.” Já para Guido Fassò seriam três as versões pela qual se apresenta o
jusnaturalismo:
62
Guido Fassò retrata que “O Jusnaturalismo de Santo Tomás é de grande importância histórica, porque constitui, conquanto
nem sempre perfeita e univocamente entendido, a base do Jusnaturalismo católico. Tornando tradicional, ele foi e é ainda,
embora não tenha sido nunca declarado pela Igreja matéria de fé, o centro da doutrina moral e jurídico-política católica.
Contudo, dentro da teologia da tardia Idade Média, ele foi asperamente impugnado pelas correntes voluntaristas, que tiveram
seu maior expoente em Guilherme de Occam (século XIV). Para estas correntes, o Direito Natural é, sem dúvida, ditado pela
razão, mas a razão não é senão o meio que notifica ao homem a vontade de Deus, que pode, por conseguinte, modificar o
Direito Natural a seu arbítrio. Uma tese que foi reassumida e desenvolvida, no início, pela Reforma Protestante. Do
Jusnaturalismo de Santo Tomás tem sido muitas vezes invocado o princípio (que na realidade fora enunciado por Santo
Agostinho e que Santo Tomás aceitou com fortes limitações e reservas) de que uma lei positiva, diversa do Direito Natural e,
por isso, injusta, não é uma verdadeira lei e não obriga. Tal princípio, muito além das intenções de Santo Tomás, foi muitas
vezes alegado para contestar a validade das leis do Estado, quando este se opunha à Igreja; e há juristas e políticos católicos
que ainda hoje o invocam.”(FASSÒ, 1998, p.657)
63
Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensina ser o Iluminismo uma Teoria que “concebe o homem como indivíduo, ou seja,
como um ser individualizado, com vida e direitos próprios, que não se confunde com a coletividade, nem se funde nesta. Este
indivíduo é eminentemente racional, determina sua vontade por uma razão que não aceita senão o que lhe pode ser
demonstrado. Razão, portanto, que rejeita o preconceito, isto é, tudo aquilo que não pode ser explicado objetivamente. Tal
indivíduo racional vive num mundo governado em última instância por uma natureza boa e providente. Desta natureza
resultam leis (naturais) que conduzem à melhor das situações possíveis, desde que não embaraçadas. Visam à felicidade que
56
Deus e passou a se ligar à concepção de que esses valores superiores seriam determinados
pela racionalidade humana. Hugo Grócio64 foi quem primeiro desenvolveu a tese de que o
Direito ditado pela razão seria independente da vontade de Deus e, inclusive, da sua própria
existência, afirmação essa que foi acolhida entusiasticamente pelos iluministas, defensores de
uma cultura laica e antiteleológica. (FASSÒ, 1998, p.657) O Iluminismo, ligado ao
antropocentrismo e ao individualismo, pregava a necessária separação entre os campos da fé e
da ciência, pois somente por meio da razão o homem poderia alcançar o verdadeiro
conhecimento.
A crença na existência de direitos naturais e em princípios de justiça universalmente
válidos, juntamente com as ideias iluministas, serviu de base filosófica para a eclosão da
Revolução Francesa e para a independência norte-americana, o que impulsionou o surgimento
do Estado Liberal e de Direito. A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) estão impregnadas de ideias
jusnaturalista, pois afirmam explicitamente a existência de direitos inalienáveis e inerentes a
todos os homens.
Assim, o Direito natural esteve, juntamente com o Iluminismo e o contratualismo, na
base do constitucionalismo moderno que marcou a transição dos governos absolutistas para os
Estados liberais, mediante a institucionalização da organização e limitação do poder político e
da previsão de direitos e garantias individuais (direitos inerentes a todos os homens pelo
simples fato de o serem).
A consolidação do Estado Liberal e de Direito e do constitucionalismo moderno se
deu por meio da adoção de documentos escritos de cunho constitucional e não constitucional
que visavam à clareza, a unidade e a simplificação dos postulados jurídicos. No plano
constitucional, foram adotadas Constituições escritas e, no plano não constitucional, deu-se
início à era das codificações, cujo maior expoente foi o Código Civil francês de 1804 (Código
Napoleônico).
O que os iluministas pretendiam com as codificações era justamente consolidar em
documentos escritos, de forma orgânica e sistematizada, o Direito natural. Pretendia-se a
completa identificação entre o Direito e a lei. Nesse sentido, Guido Fassò observa que a
realidade jurídica da era moderna
é o objetivo do homem. Objetivo a ser realizado na Terra e não no Céu como era o caso da salvação eterna, meta proposta
para o homem pelo Cristianismo.” (FERREIRA FILHO, 2009, p. 6)
64
Hugo Grócio é também o precursor nos estudos de Direito Internacional, pois defendeu que o Direito natural seria o
fundamento de um Direito a ser reconhecido como válido por todos os povos. (FASSÒ, 1998, p.657)
57
65
Código Austríaco de 1811.
66
Alguns autores apontam que, após a Segunda Guerra mundial, o Direito natural exsurge como “dique e limite ao poder do
Estado” (FASSÒ, 1998, p.659). Essa nova doutrina do Direito natural ressurge modificada, pois o pensamento jusnaturalista
passa a admitir que os direitos naturais não eram imutáveis, mas sim imanentes ao momento histórico vivido pela sociedade
(FASSÒ, 1998, p.660).
58
Hans Kelsen, ao tentar elaborar uma teoria pura do Direito, pode ser apontado como
um dos principais defensores do formalismo como único requisito de validade da norma
jurídica, ao prescrever que
Como Kelsen tentava estabelecer uma teoria “pura” do Direito ele propôs um sistema
jurídico formado exclusivamente por regras jurídicas (enunciados normativos com um
pressuposto e uma consequência), desprezando os princípios, e vinculando o conhecimento
jurídico ao Direito positivo, separando, assim, todos os aspectos sociológicos, psicológicos e
influências advindas da ética e da moral.
Com a vinculação da validade da norma à sua forma, o positivismo pretendia resolver
o problema da identificação do critério de justiça válido, pois na doutrina jusnaturalista
predominava uma total abstração do que configuraria tal critério.
O positivismo jurídico caracterizava-se, pois, por uma total separação entre Direito,
moral e política e, ainda, por considerar que todo o Direito estava contido na lei, assim,
somente o Estado era considerado como sua fonte produtora. O Direito era considerado ainda
um sistema pleno, que se autorregulava e que propunha as próprias soluções para lacunas e
antinomias. Seu traço marcadamente distintivo de outras ciências sociais era o seu caráter
imperativo, com a possibilidade de aplicação de sanção pelo seu descumprimento.
Ao longo do tempo, porém, percebeu-se a impossibilidade de se transportar
integralmente os métodos das ciências naturais para o Direito, pois uma postura meramente
descritiva da realidade não se coadunava com a sua pretensão inerente de atuar sobre a
realidade, conformando-a e transformando-a. O Direito é uma ciência vocacionada a
estabelecer normas prescritivas, ou seja, que direcionam a atuação dos indivíduos. Ademais, a
pretensão de objetividade do aplicador do das normas jurídicas é impossível de ser executada,
na medida em que a atividade cognoscitiva sempre será influenciada pelos juízos de valor.
60
3.2.3 O pós-positivismo67
Eventual ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos
de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade
esvaziada de qualquer elemento normativo. Faz-se mister encontrar, portanto, um
caminho entre o abandono da normatividade em favor do domínio das relações
fáticas, de um lado, e a normatividade despida de qualquer elemento da realidade,
de outro. (HESSE, 1991, p.14)
67
Lammêgo Bulos apresenta as origens do neopositivismo na sociedade moderna como um fenômeno da filosofia e que
espalhou influência por todos os demais ramos da ciência, afirmando: “Neopositivismo surgiu em Viena, na segunda década
do século XX, como resultado das discussões de elevado nível intelectual dos integrantes do Círculo de Viena (Hans Hahn,
Philipp Franck, Otto Neurath, Moritz Schlick, Rudolf Carnap, David Hume, Gottlob Frege, Ernst Mach) fortemente
influenciados pelo pensamento de Ludwig Wittgenstein. Os neopositivistas esmiuçaram a semiótica (teoria geral dos signos
linguísticos, que abrange todos e qualquer esquema de comunicação, desde os mais primitivos e singelos aos mais avançados
e complexos) e passaram a se preocupar essencialmente com o estudo da linguagem, que era considerada por eles
instrumento essencial ao saber científico. No campo do Direito, especialmente do Direito Constitucional, a grande
contribuição dos neopositivistas foi transmitir a ideia de que não existe linguagem pura, daí a existência de imprecisões,
ambiguidades e contradições encontradas nos textos jurídicos” (BULOS, 2011, p.73).
62
uma influência constante de tais disciplinas no Direito. A filosofia política e a filosofia moral
passam a estar fortemente conectadas à teoria do Direito. Esse novo paradigma filosófico,
portanto, sem olvidar o Direito positivo, preocupa-se com os problemas da indeterminação do
Direito e com a reaproximação entre Direito, ética, moral e política.
Esse reencontro da Filosofia do Direito com a ciência jurídica e a introdução dos
valores morais no discurso jurídico tornam-se possíveis por meio da materialização dos
princípios, cujo abrigo natural é a Constituição, seja de forma implícita ou explícita. Quando
os juízos éticos e morais se tornam paradigmas de legitimidade do Direito e estão contidos
nos instrumentos constitucionais, as Constituições se convertem em centro do ordenamento
jurídico, pautando a legitimidade e a validade do restante das normas. O reconhecimento da
normatividade e superioridade desses princípios traz por consequência lógica a normatividade
e a superioridade da Constituição, tudo isso corroborado pela rigidez constitucional e pela
instituição de cláusulas pétreas.
Lenio Luiz Streck conclui sobre as características do pós-positivismo que servem de
paradigmas ao Constitucionalismo Contemporâneo
68
Segundo Luís Roberto Barroso, a ideia de razão prática está ligada à obra de Kant e representa “um uso da razão voltado
para o estabelecimento de padrões racionais para a ação humana” (BARROSO, 2011, p.271). A razão prática, portanto,
estaria contraposta à razão teórica, visto que, enquanto esta se limita ao conhecimento objetivo, descritivo, do Direito, aquela
a possibilidade de fundamentação racional de princípios de moralidade e justiça. Assim, o “pós-positivismo, ao reabilitar o
uso prático da razão na metodologia jurídica, propõe justamente a possibilidade de se definir racionalmente a norma do caso
63
concreto através de artifícios racionais construtivos, que não se limitam à mera atividade de conhecer os textos normativos”.
(BARROSO, 2011, p.271)
69
Como mencionamos, os comentários acerca desses marcos teóricos do pós-positivismo, que estão intrinsecamente ligados
ao Constitucionalismo Contemporâneo, não têm a pretensão de analisar a matéria de forma exaustiva, mas apenas trazer a
essência do que representam tais marcos para a teoria pós-positivista e o Constitucionalismo Contemporâneo, visto que uma
abordagem completa e exaustiva seria trabalho para outras várias dissertações.
70
Ronald Dworkin aborda o assunto dos princípios jurídicos nos livros Taking Rights Seriously (1978) e Law’s Empire
(1986).
71
Giorgio Del Vecchio em Sui principi generali del diritto e Norberto Bobbio em Principi generali di diritto.
64
de normatividade dos princípios, quando o jurista alemão assinala que poderiam assumir o
caráter de ideias jurídicas norteadoras a serem concretizados pela lei e pela jurisprudência e,
por isso, seriam desprovidos da normatividade, sendo princípios “abertos”; ou que poderiam
ser efetivamente uma regra jurídica de aplicação imediata e se apresentariam como
“princípios normativos” (LARENZ apud BONAVIDES, 2004, p.272).
O passo seguinte na evolução do pensamento dos princípios como normas foi dado por
Vezio Crisafulli que os apresentou com uma dupla eficácia – imediata e mediata – que não se
exaure na sua aplicabilidade, prolongando-se para uma eficácia interpretativa. Afirmou ainda
que os princípios, explícitos ou implícitos, constituem norma e os conceituou da seguinte
forma
Mas foi somente com base na obra de Ronald Dworkin que ganhou relevância a
discussão doutrinária que estabelecia uma diferença qualitativa entre regras e princípios, além
de ter sido reconhecida a normatividade dos valores e princípios, ainda quando não expressos
ou escritos. Os princípios, como categorias normativas, não condicionam comportamentos,
mas sim atitudes e as apresentam como fundamentais; têm uma dimensão de peso ou de
importância e não têm aplicabilidade ao modo do “tudo ou nada”. Nas palavras do autor,
Os princípios, por outro lado, não se tornam inválidos se não se aplicam a determinada
situação, pois a sua aplicação está condicionada a uma análise de peso ou valor relativamente
ao caso concreto
Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso
ou importância. Quando os princípios se entrecruzam (por exemplo, a política de
proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de
65
contrato), aquele que vai resolver o conflito tem que levar em conta a força
relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o
julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais
importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante,
essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que
faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é. (DWORKIN,
2011, p.42)
o ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas
que ordenam que algo seja realizado na maior medida dentro das possibilidades
jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de
otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e
pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das
possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das
possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.
Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma
regra vale, então, deve-se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem
menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e
juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é
uma distinção qualitativa e não uma distinção de grau. Toda norma é uma regra ou
um princípio. (ALEXY, 2008, p.90-91)
indeterminada, razão pela qual necessitam de concretização pela via interpretativa. Ademais,
Guastini afirma que a palavra “princípio” é normalmente utilizada para se referir a normas de
caráter programático e a normas cuja posição na hierarquia das fontes do Direito é bastante
elevada e, ainda, a normas que desempenham uma função importante e fundamental no
sistema jurídico. O mesmo autor afirma também que a expressão “princípio” é usada para se
referir a normas dirigidas aos órgão de aplicação e cuja função é escolher os dispositivos ou
normas aplicáveis aos diversos casos. Em todas essas concepções mencionadas pelo autor é
possível extrair o traço da normatividade como uma característica dos princípios.
O surgimento dessa nova categoria normativa, que proporcionou a agregação da moral
ao Direito, gerou a necessidade do surgimento de uma nova forma de interpretação
constitucional. No caso dos princípios, há a necessidade de aplicação da técnica da
ponderação para decidir qual princípio será aplicável ao caso concreto.
Nas últimas duas décadas do século XX, tendo em vista a tentativa dos jusfilósofos de
excluírem a discricionariedade judicial positivista do campo da justificação jurídica, surgem
teorias da argumentação jurídica, de matiz contemporâneo (pós-positivista), que têm por base
72
Afonso Garcia Figueroa aponta que “há muitas teorias da argumentação. Alguns de seus cultivadores (formalistas)
afirmaram que as decisões jurídicas são frios silogismos; os realistas replicaram que a argumentação jurídica nada tem a ver
com lógica, mas sim com a ideologia, as emoções, os palpites; outros resgataram da Antiguidade clássica a retórica e os
tópicos para conceber a argumentação jurídica como uma simples técnica de persuasão ou de invenção a partir de lugares-
comuns; de acordo com as correntes críticas, o Direito apresenta uma cobertura ideológica a serviço das classes dominantes,
o que justificaria práticas corretivas da parte dos juízes na forma de ativismo judicial (uso alternativo do Direito dos anos
sessenta e setenta) ou de uma interpretação do Direito que aperfeiçoe suas possibilidades morais de acordo com a
Constituição (o garantismo dos anos oitenta e noventa). Também há quem tenha visto no Direito e na sua aplicação uma
vontade divina (jusnaturalismo) ou alguma forma de ordem moral objetiva (Dworkin), sem esquecer que há não muito tempo
inclusive o próprio Habermas se pronunciou sobre estas questões em sua pessoal incursão jusfilosófica Facticidad y validez.”
(FIGUEROA, 2012, p.16)
67
73
Eduardo Ribeiro Moreira defende que a argumentação jurídica deve ser vista como o principal elemento do
neoconstitucionalismo, pois irá fornecer respostas não só para os casos difíceis, mas também para os casos trágicos. O autor
aponta que os casos trágicos seriam aqueles nos quais o conflito suplanta a colisão entre princípios e contrapõe Direito e
justiça. Seriam aqueles casos que para serem solucionados dependem do sacrifício de valores fundamentais do ponto de vista
jurídico ou moral. (MOREIRA, 2012, p.147-149)
74
Luís Roberto Barroso diferencia razão teórica de razão prática afirmando: “a razão teórica busca a verdade, o
conhecimento, e tem por conduta típica a contemplação. A razão prática busca a produção do bom e do justo, e realiza-se
pela ação. Através de um uso teórico da razão, o sujeito do conhecimento examina a realidade e busca descrevê-la com
objetividade. No campo da teoria do Direito, esse uso da razão caracteriza aquelas concepções que se dispõem a dizer o que o
Direito é, sem julgá-lo. É o caso, em especial, da teoria pura do direito, de Kelsen. Um uso prático da razão, por seu turno, é
voltado para o estabelecimento de padrões de comportamento, caracterizados como justos. É através de um uso prático da
razão que são construídos princípios de justiça a partir dos quais é possível julgar os preceitos de um ordenamento jurídico
concreto. A razão prática é o direcionamento da vontade à consecução daqueles valores éticos.” (BARROSO, 2011, p.363)
75
Segundo Lenio Luiz Streck, “neste ponto, reside uma profunda diferença entre as apostas teóricas de Robert Alexy
daquelas realizadas pela teoria integrativa dworkiniana. Com efeito, enquanto Alexy acredita que um procedimento,
previamente criado, pode levar a uma justificação racional da decisão (colisão de princípios), Dworkin reconhece
expressamente a impossibilidade de se oferecer um método/procedimento prévio, que sempre poderá ser repetido, para
solucionar os casos jurídicos”. (STRECK, 2011, p.232)
68
critérios clássicos para a solução de conflitos entre regras (critérios hierárquico, cronológico
ou da especialidade). Já nos casos difíceis, caberia ao intérprete hierarquizar e decidir qual
seria o princípio aplicável a partir de alguns critérios.
Para Alexy, a argumentação jurídica seria parte especial da teoria da argumentação e,
portanto, também obedeceria às regras do discurso racional e às específicas do discurso
jurídico. Luís Roberto Barroso enumera tais regras
76
A maioria dos doutrinadores brasileiros, bem como o Supremo Tribunal Federal, trata os princípios da razoabilidade e a
proporcionalidade como sinônimos.
69
77
Esses mesmos elementos podem ser encontrados nos testes de constitucionalidade dos atos do poder público feitos pelos
juízes nos Estados Unidos. A depender da matéria em questão, será aplicado um deles. Os testes são identificados como
sendo de: a) mera racionalidade (para que o ato governamental seja aprovado, basta que aquele que alega a
inconstitucionalidade não consiga demonstrar a ilegitimidade do fim ou que há inadequação do meio utilizado); b) aferição
severa (para que o ato governamental não seja invalidado, o poder público deverá demonstrar que o fim a que se está visando
é imperioso e que o meio utilizado era necessário); c) nível intermediário (o poder público deverá demonstrar que o fim
público invocado é importante – que significa mais do que apenas legítimo e menos do que imperioso – e que o meio
escolhido possui uma relação substantiva com o fim – um meio termo entre ser meramente racional e ser indispensável).
(BARROSO, 2011, p.282-283)
70
O autor especifica que, para Habermas, não se deve ponderar valores, nem abstrata,
nem concretamente, e a proporcionalidade só será legítima se aplicada como um sinônimo de
equidade, uma necessidade de coerência e integridade para qualquer decisão. Neste sentido, a
resposta “correta” não seria encontrada por meio de um juízo de ponderação, mas sim, através
de uma “reconstrução principiológica do caso, da coerência e da integridade do direito”
(STRECK, 2011, p.240):
Como venho deixando claro, a partir da segunda edição desta obra e em outros
textos, a alusão à proporcionalidade somente tem sentido como aplicação
equânime do direito e para afastar aquilo que Dworkin chama de “leis de
conveniência”. O sentido do que seja “proporcional” ou “desproporcional” deve
ser dado pela reconstrução da história institucional do direito, nos estreitos
caminhos da integridade e da coerência. (STRECK, 2011, p.182 nota 13).
Por isso, para a hermenêutica (filosófica), o princípio da proporcionalidade não
tem – e não pode ter – o mesmo significado que tem para a teoria da argumentação
jurídica. Para a hermenêutica, o princípio da proporcionalidade é como uma
metáfora, isto é, um modo de explicar que cada interpretação – que nunca pode ser
solipsista – deve obedecer a uma reconstrução integrativa do direito, para evitar
interpretações discricionárias/arbitrárias sustentadas em uma espécie de “grau zero
de sentido”, ou que, sob o manto do caso concreto, tenham a estabelecer sentidos
para aquém ou para além da Constituição (veja-se que o próprio Habermas admite
o uso da proporcionalidade, se esta ocorrer nos espaços semânticos estabelecidos
nos discursos de fundamentação, que tem em uma Constituição democrática o seu
corolário). (STRECK, 2011, p.240)
Luís Roberto Barroso (2011, p.366-368), por sua vez, ao propor critérios que devem
orientar a argumentação jurídica, afirma ser recomendável: 1) a existência de uma
fundamentação, ou seja, a argumentação jurídica deve apresentar fundamentos normativos
que lhe dê sustentação, como as normas jurídicas e a dogmática jurídica, livrando-se de
quaisquer espécies de voluntarismos; 2) o respeito à integridade do sistema, ou seja, deve-se
71
O giro linguístico pode ser apontado como o fenômeno marcante e decisivo para a
origem da nova hermenêutica frente ao momento pós-positivista. A ideia central do giro
linguístico é a aceitação de que a linguagem deixa de ser objeto da reflexão filosófica e passa
a ser fundamento de todo o pensar, pois é na linguagem que tudo se expressa. A linguagem
não é um instrumento disponível para conhecer objetos, mas é a própria forma pela qual se
possibilita o conhecimento. De modo que,
o direito é linguagem, e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma
linguagem. O que quer que seja e como quer que seja, o que quer que ele se
proponha e como quer que nos toque, o direito é-o numa linguagem e como
linguagem – propõe-se sê-lo numa linguagem. (CASTANHEIRA NEVES apud
ABBOUD, 2012, p. 56)
Ocorre que normatividade, essencial à norma, não é produzida por esse mesmo
texto, isso porque a norma e realidade não devem ser justapostos sem nenhuma
relação tal como a doutrina “neokantiana” – que distingue ser de dever ser –
preconiza. O encontro destas dar-se-ia apenas mediante a subsunção do tipo legal
(Sachverhalt) a um primeiro enunciado de caráter normativo. Na realidade,
convém ressaltar que o texto da norma não é a própria norma jurídica, não é
elemento conceitual da norma jurídica, mas configura o dado de entrada (input)
mais importante ao lado do caso a ser decidido juridicamente no processo de
concretização da norma. (ABBOUD, 2012, p.62)
Para Müller, o texto da lei é apenas um dos elementos da norma jurídica, outro
elemento estruturante dela seria o problema concreto que pretende ver resolvido. Deste modo,
para o autor, a norma jurídica seria sempre criada no caso concreto, decorrente do próprio
processo de concretização e teria por característica a temporalidade.
Foi com base nas contribuições de Heidegger que o intérprete deixou de ser
considerado um ser que contempla o mundo de fora e passou a ser visto como um “ser-no-
mundo” que interage e se relaciona com as coisas ao interpretá-las. Esse “ser-no-mundo” não
é imparcial, pois está a todo o momento influenciando e sendo influenciado pelas coisas que
interpreta.
Nesse mesmo sentido, Gadamer afirma que toda interpretação é influenciada pelos
preconceitos e valores que o intérprete possui. Porém, mesmo imbuído de suas pré-
compreensões78, o intérprete deve estar aberto para permitir que o texto lhe diga algo e não
78
Importante notar que Lenio Luiz Streck defende que essa “pré-compreensão (Vorverständnis) não é sinônimo de ‘visão de
mundo’, ‘ideologia’, ‘subjetividade’ etc., como equivocadamente apregoam alguns jusfilósofos contemporâneos, ao
pretenderem agregar uma ‘pitada hermenêutica’ às suas posturas ainda reféns do esquema sujeito-objeto. A pré-compreensão
constitui aquilo que Schnädelbach chama de ‘razão hermenêutica’. Trata-se de um existencial, sobre o qual não temos o
domínio (e isso especialmente os adeptos das teorias argumentativas não conseguem entender). Sendo mais específico: essa
dimensão pré-compreensiva, forjada no mundo prático (facticidade), não é um elemento formal, traduzível por regras de
argumentação, por exemplo, como se fosse um caminho para algo. Essa dimensão ocorre em uma totalidade de nossa
73
Cada época tem de entender um texto transmitido de uma maneira peculiar, pois o
texto forma parte do todo da tradição, na qual cada época tem um interesse
pautado na coisa e onde também ela procura compreender a si mesma. O
verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta ao seu intérprete, não
depende do aspecto puramente ocasional que representam o autor e seu público
originário. Ou pelo menos não se esgota nisso. Pois esse sentido está sempre
determinado também pela situação histórica do intérprete, e, por consequência, por
todo o processo objetivo histórico. (GADAMER, 1999, p.443)
realidade, a partir da conjunção de múltiplos aspectos existenciais, que fazem parte da nossa experiência (facticidade, modo-
de-ser-no-mundo) e são, portanto, elementos a que temos acesso mediante o esforço fenomenológico de explicitação.”
(STRECK, 2011, p.230-231)
79
Tradução livre: “O intérprete não pode captar o conteúdo da norma a partir de um ponto quase arquimédico fora da
existência histórica, cujo enquadramento moldou seus hábitos mentais, condicionando o seu conhecimento e pré-conceitos. O
intérprete compreende o conteúdo da norma a partir de uma pré-compreensão que é o que vai permitir contemplar a norma a
partir de certas expectativas, ter uma noção do todo e traçar um primeiro esboço que ainda demandará comprovação,
correção e revisão através de uma análise mais aprofundada, até que, como resultado da progressiva aproximação da "coisa"
por parte dos esboços em cada caso revisados, a unidade de significado restar claramente definida.”
74
80
Alguns autores fazem questão de diferenciar a expressão “direitos humanos” da expressão “direitos fundamentais”. Gomes
Canotilho é um deles e especifica que é possível diferenciá-los de acordo com suas origens e significados, pois, enquanto os
“direitos do homem” são os válidos para todos os povos e em todos os tempos, os “direitos fundamentais” são os direitos do
homem jurídico - institucionalmente garantidos e limitados em certo espaço e tempo. Daí porque é possível extrair que os
direitos do homem derivam da própria natureza humana e, por isso, possuem um caráter inviolável, atemporal e universal, já
os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta (CANOTILHO, 2003,
p.393). Adotamos neste trabalho essa diferenciação proposta pelo autor.
81
A Magna Charta de 1215 foi o primeiro instrumento escrito que tentou atribuir direitos e garantias aos barões frente ao rei,
porém, não pode ser classificada como uma efetiva declaração de direitos, já que não era exigível e dependia da
implementação espontânea do monarca, além do que falta-lhe a característica da universalidade, visto que não era aplicável a
todos os homens do reino. Novas tentativas de instituir direitos aos súditos surgiram por meio dos seguintes instrumentos:
Petition of Rights de 1628, Habeas Corpus Act de 1679, Bill of Rights de 1689, Act of Settlement, de 1701.
82
Virginia, Bill of Rights (1776) e Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).
75
Por tais motivos, somente em razão do desenvolvimento das ideias iluministas que
institucionalizaram a noção de indivíduo e do fortalecimento dos Estados nacionais foi
possível o surgimento de declarações de direitos que tentavam implementar a proteção de
direitos fundamentais em favor dos indivíduos.
Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p.49) esclarece que os documentos escritos do século
XVIII, não obstante tenham representado uma certa evolução na luta pela implementação das
liberdades genéricas dos indivíduos, somente podem ser considerados efetivos representantes
da defesa dos direitos e liberdades em uma versão bem primitiva, quando comparados às
declarações de direitos surgidas no século XX. Isso, porque, esses direitos e liberdades não
vinculavam o Parlamento e, portanto, careciam de supremacia e estabilidade.
Mesmo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, comumente apontada
como um marco para o reconhecimento dos direitos fundamentais, enquanto tal, era
considerada apenas um documento de força política, simbólica, sem nenhuma obrigação do
legislador para com o seu efetivo cumprimento83. O fato de os indivíduos não contarem com
um Poder Judiciário ou qualquer espécie de aparato estatal autônomo suficiente para fazer
cumprir o disposto em tais declarações de direitos ocasionava a ausência de coercibilidade
para o cumprimento das declarações por parte do Estado e a impossibilidade de efetiva
fruição dos direitos pelos indivíduos.
Acreditamos, portanto, que o marco efetivo do reconhecimento dos direitos
fundamentais tenha sido, primeiro, a Declaração da Virgínia de 1776, que positivou os
83
Lembremos que, somente em 1971, o Conselho Constitucional Francês reconheceu o valor jurídico a essa declaração,
afirmando que tanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão quanto o preâmbulo da Constituição de 1946,
incorporavam-se à Constituição de 1958, em razão de expressa menção no preâmbulo desta última.
76
84
Lammêgo Bulos (2011, p.517) aponta que a Constituição Brasileira de 1824 foi a primeira a estabelecer expressamente os
direitos homem. Em seguida, foram positivados na Carta belga de 1831.
85
Importante observarmos que a justiciabilização dos direitos fundamentais ainda é assunto não pacificado no que se refere
aos direitos econômicos, sociais e culturais.
86
Outra faceta da abertura dos direitos fundamentais está relacionada ao seu grau de implementação. Acabou prevalecendo
nos documentos internacionais – Pacto dos Direitos Civis e Políticos e Pacto dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais da
ONU – por questões de ajustamento político, que a implementação dos direitos e garantias individuais e políticos seria
77
taxativa.87 Eles estarão sempre abertos à modificação, evolução e adequação à realidade social
vigente, o que evita o fenômeno da petrificação dos direitos fundamentais.
3.2.3.4.1 A dignidade da pessoa humana como base da teoria dos direitos fundamentais
a) uma pessoa deve agir como se a máxima da sua conduta pudesse transformar-se
em uma lei universal; b) cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si
mesmo, e não como um meio para a realização de metas coletivas ou de outras
metas individuais. As coisas têm preço; as pessoas têm dignidade. Do ponto de
vista moral, ser é muito mais do que ter. (BARROSO, 2011, p272)
integral, ou seja, a sua justiciabilidade seria imediata. Por outro lado, quanto aos diretos e garantias sociais, econômicos e
culturais, a sua implementação se daria de forma progressiva, na medida das possibilidades econômicas do Estado.
87
A Constituição brasileira, em seu art. 5º, §2º, expressa que os direitos fundamentais nela consagrados não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados.
88
Declaração do Direitos Humanos (1948), Constituição alemã (1949), Constituição Italiana (1947), Constituição portuguesa
(1976), Constituição espanhola (1978), Constituição brasileira (1988).
78
subsistência física e indispensável ao desfrute dos direitos em geral. Aquém daquele patamar,
ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade.” (BARROSO, 2011, p.275)
Dentre os direitos a serem reconhecidos como o mínimo existencial de qualquer
pessoa, merecedora de respeito a sua dignidade, estão a percepção de uma renda mínima (que
assegure a manutenção das necessidades básicas, tais como, alimentação, moradia e
vestuário); educação fundamental; saúde básica e acesso à justiça89.
No âmbito do Direito Civil, o princípio da dignidade da pessoa humana possui como
conteúdo também os direitos da personalidade, aí incluídos os direitos à integridade física
(direito à vida, direito à disposição do próprio corpo, direito ao cadáver) e os direitos à
integridade moral (direito à honra, à imagem, à privacidade, direitos autorais, etc.).
89
O acesso à justiça é uma garantia instrumental para proteger e implementar outros direitos básicos inerentes à dignidade
humana.
79
90
Nesse mesmo sentido, Giuseppe Vergottini: “a doutrina da Constituição material demonstra que o princípio normativo que
origina e justifica um ordenamento, isto é, a Constituição por excelência, consiste na força normativa da vontade política,
com aplicação realista do princípio de efetividade (princípio que, se bem que com perspectiva diversa, é também usado, em
última instância, pela própria doutrina normativista, ao procurar encontrar, voltando atrás, uma justificação última para as
normas gradualmente dispostas em um sistema). A Constituição material tem, portanto, condições de se apresentar como a
real fonte de validade do sistema (e, consequentemente, também da Constituição formal), de lhe garantir a unidade como
fundamento de avaliação interpretativa das normas existentes e de preencher suas lacunas, de permitir identificar os limites
da continuidade e mudanças do Estado, sendo ela o parâmetro de referência. São, portanto, os princípios constitucionais
fundamentais, a que aludimos, que revestem essencial importância na compreensão de uma Constituição. É a estes que
havemos de fazer referência” (VERGOTTINI, 1998, p.260).
80
É importante observar que, por mais que a Constituição se configure como a ordem
jurídica fundamental da comunidade, ela deve permanecer incompleta, deixando abertas
algumas questões para serem adaptadas, na medida em que ocorrerem mudanças na realidade
político-social, pois “afigura-se igualmente indispensável que a Constituição mostre-se em
condições de adaptar-se a uma eventual mudança dessas condicionantes” (HESSE, 1991,
p.21).
Além de prever normas de organização, Hesse defende que, para preservar a força
normativa – intimamente associada ao regular cumprimento da Constituição, em razão de sua
adequação à realidade – somente alguns poucos princípios devem estar no texto – o que
facilita a sua rápida adaptação – pois a constitucionalização de interesses momentâneos leva à
necessidade de reformas e à desvalorização da força normativa.
91
Tradução livre: “Esta força normativa está condicionada, por um lado, pela possibilidade de realização dos conteúdos da
Constituição. Quanto maior a conexão de seus preceitos com as circunstâncias da situação histórica, procurando preservar e
desenvolver o que já está esboçado na posição individual do presente, maior será a possibilidade de que estes preceitos
implementem sua força normativa. Quando a Constituição ignora o estado de desenvolvimento espiritual, social, político ou
econômico de seu tempo, vê-se privada do imprescindível germem de força vital, resultando incapaz de conseguir que se
realize o estado por ela disposto em contraposição ao estado de desenvolvimento. Sua força vital e operativa se baseia em sua
capacidade de se conectar com as foças espontâneas e as tendências vivas da época, de sua capacidade para desenvolver e
coordenar estas forças, para ser, em razão do seu objeto, a ordem global específica das relações vitais concretas.
Além disso, a força normativa da Constituição está condicionada pela vontade constante dos envolvidos no processo
constitucional de realizar o conteúdo da Constituição. Dado que a Constituição como toda ordem jurídica precisa de uma
atualização por meio da atividade humana, sua força normadora depende da disposição para considerar como vinculantes
seus conteúdos e da resolução de realizar seus conteúdos mesmo frente a resistências; isso tanto mais quanto a atualização da
Constituição não pode ser apoiada e garantida na mesma medida que a atualização de outro direito pelos poderes estatais, os
quais não são constituídos senão através dessa atualização.”
81
92
É importante observarmos que a ideia de supremacia das normas constitucionais surgiu em momentos distintos na Europa
continental e nos Estados Unidos. MATTEUCCI (1998, p.255) afirma que “O princípio da primazia da lei, a afirmação de
que todo poder político tem de ser legalmente limitado, é a maior contribuição da Idade Média para a história do
Constitucionalismo. Contudo, na Idade Média, ele foi um simples princípio, muitas vezes pouco eficaz, porque faltava um
instituto legítimo que controlasse, baseando-se no direito, o exercício do poder político e garantisse aos cidadãos o respeito à
lei por parte dos órgãos do Governo. A descoberta e aplicação concreta desses meios é própria, pelo contrário, do
Constitucionalismo moderno; deve-se particularmente aos ingleses, em um século de transição como foi o século XVII,
quando as Cortes judiciárias proclamaram a superioridade das leis fundamentais sobre as do Parlamento, e aos americanos,
em fins do século XVIII, quando iniciaram a codificação do direito constitucional e instituíram aquela moderna forma de
Governo democrático, sob o qual ainda vivem.” Ou seja, no sistema constitucional norte-americano, já imbuído das ideias de
necessidade de controle dos atos do parlamento (e fortemente influenciado pela ideia de norma fundamental do sistema
inglês), não houve dificuldade em se defender a superioridade das normas constitucionais, que deveriam servir de limites à
própria atuação do órgão legislativo. Já na Europa continental, a ideia de supremacia constitucional é bem recente, data da
segunda metade do século XX.
93
Tradução livre: “Nenhum ato legislativo, portanto, contrário à Constituição, pode ser válido. Negar isso, seria afirmar que
o delegado é maior do que o delegante, que o servo está acima do seu mestre; que os representantes do povo são superiores
ao próprio povo; que os homens que agem por força dos poderes concedidos podem fazer não só o que o seu poder não
autoriza, mas o que eles proíbem.”
83
94
Tradução livre: “Por uma Constituição limitada, eu entendo aquela que contém certas exceções específicas à autoridade
legislativa; como, por exemplo, a de que não se deve aprovar projetos de lei para confisco de bens, nem leis ex post facto, e
assim por diante. Este tipo de limitação apenas pode ser preservado, na prática, por meio dos tribunais, que possuem o dever
de declarar todos os atos contrários ao manifesto de conteúdo da Constituição inválidos. Sem isso, todas as reservas de
direitos ou de privilégios particulares equivaleriam a nada.”
95
Esse fenômeno se deu, principalmente, no período do Welfare State.
84
96
O tema da Justiça Constitucional será desenvolvido no Capítulo 4.
97
A hermenêutica de uma forma geral, não só a constitucional, sofre profundas mudanças ao longo do século XX,
especialmente na segunda metade, sob a influência de todos os fatores enumerados e, ainda, em razão da influência da Teoria
Crítica do Direito e da filosofia da linguagem.
85
Assim, texto legal e norma jurídica diferem, pois só será norma jurídica aquilo que
resultar da aplicação diante de um caso concreto. O problema é, então considerado, um dos
elementos estruturantes da norma jurídica.
98
Tradução livre: “é o de encontrar o resultado constitucionalmente ‘correto’ através de um procedimento racional e
controlável, o de fundamentar esse procedimento de modo igualmente racional e controlável, criando, assim, a certeza e
previsibilidade jurídica, e não, a possibilidade da simples decisão pela decisão.”
86
a fin de poder dirigir la conducta humana en cada una de las situaciones, la norma
en mayor o menor medida fragmentaria necesita “concretización”. La cual sólo
será posible cuando se tomen en consideración en dicho proceso, junto al contexto
normativo, las singularidades de las relaciones vitales concretas sobre las que la
norma constitucional no puede prescindir de estas singularidades, so pena de
fracasar ante los problemas planteados por las situaciones que la Constitución esta
llamada a resolver.99 (HESSE, 1983, p.29)
99
Tradução livre: “a fim de dirigir o comportamento humano em cada uma das situações, a norma em maior ou menor
medida fragmentária necessita de ‘concretização’. A qual só será possível quando se leva em consideração neste processo,
juntamente com o contexto normativo, as singularidades das relações vitais concretas em que a norma constitucional não
pode prescindir dessas singularidades, sob pena de fracassar ante os problemas levantados pelas situações que a Constituição
está chamada a resolver.”
100
“El intérprete no puede captar el contenido de la norma desde un punto cuasi arquimédico situado fuera de la existencia
histórica en la que se encuentra, cuya plasmación ha conformado sus hábitos mentales, condicionado sus conocimientos y sus
pre-juicios. El intérprete comprende el contenido de la norma a partir de una pre-comprensión que es la que va a permitir
contemplar la norma desde ciertas expectativas, hacerse una idea del conjunto y perfilar un primer proyecto necesitado aún
de comprobación, corrección y revisión a través de un análisis más profundo, hasta que, como resultado de la progresiva
aproximación a la “cosa” por parte de los proyectos en cada caso revisados, la unidad de sentido queda claramente fijada.”
(HESSE, 1983, p.44). Tradução livre: “O intérprete não pode captar o conteúdo da norma a partir de um ponto quase
arquimédico fora da existência histórica, cujo enquadramento moldou seus hábitos mentais, condicionando o seu
conhecimento e pré-conceitos. O intérprete compreende o conteúdo da norma a partir de uma pré-compreensão que é o que
vai permitir contemplar a norma a partir de certas expectativas, ter uma noção do todo e traçar um primeiro esboço que ainda
demandará comprovação, correção e revisão através de uma análise mais aprofundada, até que, como resultado da
progressiva aproximação da ‘coisa’ por parte dos esboços em cada caso revisados, a unidade de significado resta claramente
definida.”
87
101
Tradução livre: “Aos princípios de interpretação constitucional corresponde a missão de orientar e dirigir o processo de
articulação, coordenação e valoração dos pontos de vista ou considerações que devem levar à solução do problema.”
102
Também chamado por alguns autores de princípio da harmonização.
88
esses postulados são um comando, uma ordem mesma, dirigida a todo aquele que
pretende exercer uma atividade interpretativa. Os postulados precedem a própria
interpretação, e se quiser, a própria Constituição. São, pois, parte de uma etapa
anterior à de natureza interpretativa, que tem de ser considerada enquanto
fornecedora de elementos que se aplicam à Constituição, e que significam,
sinteticamente, o seguinte: não poderás interpretar a Constituição devidamente
sem antes atentares para estes elementos. Trata-se de uma condição, repita-se, da
interpretação. Não se terá verdadeira atividade interpretativa se não estiver o
intérprete bem imbuído dessas categorias. Concluindo, o intérprete fica diante de
enunciados cogentes, dos quais a sua atividade (interpretativo-constitucional) não
poderá descurar. (BASTOS, 2002, p.165-166)
103
Esclarecemos que, neste trabalho, optamos por utilizar a expressão Justiça Constitucional em vez da mais popular
jurisdição constitucional para designar apenas o estudo da Justiça que se desenvolve no âmbito do Tribunal Constitucional,
adotando-se, integralmente, as ideias de André Ramos Tavares (2005, p.142-153). Concordamos com o referido autor quando
afirma que a utilização da expressão jurisdição constitucional seria mais adequada para identificar “a parcela da atividade
pela qual se realiza, jurisdicionalmente, vale dizer, consoante um método jurídico processual, a proteção da Constituição em
todas as suas dimensões” (TAVARES, 2005, p.144). Daí porque a terminologia jurisdição constitucional “inculca a ideia de
desenvolvimento processual consoante o rito judicial, visando a atuação constitucional. Nesse sentido, intensamente
utilizado, a jurisdição constitucional refere-se ao estudo de questões mais propriamente processuais. Realiza-se um corte
prévio para admitir, sem maiores preocupações, que a defesa e cumprimento último da Constituição opera-se mediante um
processo de tomada de decisão de caráter jurisdicional. Elimina-se, assim, questões essenciais a uma completa teoria da
Justiça Constitucional, como o estudo da natureza política ou jurídica do processo de decisão que dele deriva, quando
realizada pelo Tribunal Constitucional” (TAVARES, 2005, p.146). Assim, a utilização da expressão jurisdição constitucional
limitaria nosso estudo aos aspectos processuais das atividades desenvolvidas pelos Tribunais Constitucionais, quando, na
realidade, é interessante abordarmos também questões mais amplas quanto ao estudo político ou jurídico da natureza das
funções do Tribunal Constitucional e ainda aspectos de legitimidade democrática, por exemplo. É importante notarmos,
também, que o estudo da Justiça Constitucional se limita a analisar a atuação do Tribunal Constitucional e não tem por foco o
desenvolvimento da jurisdição constitucional perante outros tribunais ou juízos.
90
jurídico indiferente a valores, o que gerou uma desconfiança em relação à adoção de critérios
de validade apenas formal da lei, e para com o Poder Legislativo que, apesar de ser
considerado o órgão composto por representantes do povo, havia dado suporte às atrocidades
cometidas sob o manto da legalidade.
A verificação de que o apego à legalidade exacerbada permitiu a ocorrência de fatos
sangrentos, nazistas e fascistas, fez florescer a ideia de que a lei precisava apresentar um
conteúdo valorativo para se legitimar como Direito. Esses valores compartilhados socialmente
deveriam integrar as Constituições dos Estados que, até aquele momento, eram, em geral,
apenas um documento simbólico, uma carta de intenções.
Essa crise dos critérios de validade formal fez emergir uma nova forma de se encarar o
Direito e, especialmente, o Direito Constitucional, que passa a ser a base de toda a ciência
jurídica. A Constituição se transforma no fundamento e na essência de todo o ordenamento
jurídico, adquire um valor normativo hierarquicamente superior e começa a ser vista como lex
superior, fonte da produção normativa, o que faz dela um parâmetro obrigatório a ser
observado por todos os atos do Estado. Há, portanto, uma constitucionalização do Direito.
Inicia-se aí a necessidade de se verificar a compatibilidade das leis às normas constitucionais,
de conformidade substancial dos atos dos Poderes públicos para com as normas e princípios
hierarquicamente superiores da Constituição.
A supremacia jurídica da Constituição, mesmo sendo o traço mais característico do
Estado Constitucional de Direito, não é algo que pode ser identificado apenas pelo texto
constitucional, mas depende do reconhecimento da rigidez da Constituição. Somente quando
se estabelece um sistema de revisão constitucional reforçado (mais difícil que a tramitação
legislativa ordinária) e um sistema de controle de constitucionalidade da lei e de outros atos
de poder é que será possível afirmar a supremacia das normas constitucionais. Assim,
podemos constatar que a supremacia da Constituição e a Justiça Constitucional são realmente
conceitos intrinsecamente unidos.
Nos Estados Unidos, país precursor na instituição de um mecanismo de controle de
constitucionalidade das normas, apontou-se, desde o início, o Poder Judiciário como o órgão
responsável para realizar essa tarefa. Por outro lado, na Europa, ainda muito influenciada pelo
dogma da supremacia do parlamento, instaurou-se um longo debate sobre quem deveria ser o
guardião da Constituição, ou seja, qual entidade teria por função proteger a Constituição
contra eventuais violações, aplicando-a, realizando-a e cumprindo-a104.
104
A par da existência de uma instância especializada, é importante notar que cidadão também dever ser entendido como
guardião da Constituição. André Ramos Tavares (2005, p.74-74) aponta diversos dispositivos constitucionais de alguns
91
O debate polarizou-se, basicamente, entre Hans Kelsen e Carl Schmitt 105 . Kelsen
(2007, 151-153) defendia a atribuição dessa função ao Tribunal Constitucional, que não seria
um órgão do Poder Judiciário, mas do Legislativo, com uma tarefa de legislador negativo e
cuja legitimidade democrática estaria na indicação política de seus membros, não obstante o
autor tenha reconhecido que a atividade a ser desenvolvida por esse órgão teria nítida
semelhança com a atividade judicial. Para Schmitt (1983, p. 248-250), a guarda da
Constituição deveria ser feita por um terceiro neutro com função “mediadora, tutelar e
reguladora”. Ele identificou que essas características estariam presentes no Presidente do
Reich, pois a sua independência, imparcialidade e neutralidade residiria na sua eleição direta
pelo povo alemão, para um mandato de 7 anos, nas travas que existem à revogação desse
mandato e na sua independência com relação às maiorias parlamentares.
Podemos afirmar que a existência de uma Justiça Constitucional e de um Tribunal
Constitucional106 foram uma criação decorrente do constitucionalismo norte-americano e que,
posteriormente, foi reelaborada e adaptada à realidade europeia por Hans Kelsen, na segunda
década do século XX. A ideia central da Justiça Constitucional está fundada na superioridade
das normas constitucionais sobre as demais leis do ordenamento. A Constituição se
transforma em parâmetro de validade de todo o ordenamento, do que decorre a necessidade de
conformar as demais leis às prescrições constitucionais (ENTERRIA, 2001, p.123).
Gomes Canotilho (2003, p.892) define a Justiça Constitucional como o “complexo de
atividades jurídicas desenvolvidas por um ou vários órgãos jurisdicionais, destinadas a
fiscalizar a observância e o cumprimento das normas e princípios constitucionais vigentes.”
Estados que preveem a posição do cidadão enquanto membro obrigado a proteger a Constituição. O autor afirma que
“qualquer um é partícipe na vida constitucional de seu Estado, e, nessa medida, pode transformar-se em curador da
Constituição” (TAVARES, 2005, p.71). Nesse sentido, quando a vontade de Constituição (HESSE, 1983, 78) estiver presente
na sociedade todos irão lutar de forma ativa para ver a Constituição cumprida e serão considerados seus curadores.
105
André Ramos Tavares aponta, ainda, uma constante tendência em boa parte da doutrina constitucional em indicar o
parlamento como o curador da Constituição; a interpretação constitucional seria feita por meio das leis editadas pelo
legislativo, em razão da representatividade democrática de tal órgão. Porém, o autor alega que tal modelo é inadequado, pois
ninguém pode ser juiz em causa própria. Ademais, configuraria um bis in idem atribuir tal tarefa ao legislador, visto que o
legislativo, quando edita leis já tem a obrigação de dar cumprimento à Constituição e, caso verifique a inconstitucionalidade
de uma determinada norma, poderá revogá-la por meio da edição de uma norma nova e constitucional. (TAVARES, 2005,
p.84-85)
106
Tribunal Constitucional para os fins desta pesquisa é o órgão que exerce certas funções, todas com foco na proteção e
concretização da Constituição e na necessidade de proteger a supremacia constitucional. Para que um tribunal se configure
constitucional não será necessário deter o exercício monopolizado da jurisdição constitucional, nem exercer com
exclusividade a função de controle da constitucionalidade, nem que seu modo de atuação se dê apenas por processo
autônomo. Ou seja, concordamos com André Ramos Tavares (2005, p. 153-159) que há Tribunal Constitucional ainda que
outros juízes e tribunais exerçam as funções de garantia e concretização da Constituição, ainda que sejam atribuídas outras
funções a esse tribunal, tais quais as funções de um tribunal supremo e ainda que os processos que se desenvolvam perante o
Tribunal Constitucional não sejam exclusivamente autônomos – muito embora, neste último caso, ainda que não seja
autônomo, as regras processuais que regem a atuação do Tribunal Constitucional sempre serão diversas das que regem o
processo comum, tendo em vista a atuação deste tribunal por meio do processo objetivo.
92
André Ramos Tavares (2005, p.199-200) aponta uma diversidade doutrinária sobre as
competências da Justiça Constitucional. Enumera que para Friesenhahn, ela deveria apreciar
os conflitos constitucionais, o controle das normas e o recurso de amparo; sendo que Enterria
acrescenta, ainda, a necessidade de controle prévio de constitucionalidade. Para Valdés, seria
necessário assegurar o caráter normativo da Constituição, garantir o respeito aos direitos
fundamentais e dar solução aos conflitos entre os órgãos do Estado. Favoreu defenderia como
ramos de competência o controle da constitucionalidade dos atos do Poder Público, a proteção
dos direitos fundamentais, o controle das regras da democracia representativa e participativa,
o controle dos demais Poderes públicos e seu funcionamento, o equilíbrio da federação.
Para Gomes Canotilho (2003, p. 895) as competências da Justiça Constitucional
seriam muito heterogêneas e abrangeriam a solução de litígios de competência entre os órgãos
supremos do Estado e aqueles decorrentes de limitação territorial, ou seja, relativos à
federação; o controle de constitucionalidade; a proteção dos direitos fundamentais; o controle
de regularidade da formação dos órgãos do Estado e dos seus titulares através do contencioso
eleitoral; e a averiguação e apuração dos crimes de responsabilidade.
Partindo-se dessa descrição inicial a respeito da essência da Justiça Constitucional,
julgamos necessário traçar um panorama sobre suas origens, desenvolvimento e competências
fundamentais para melhor entendermos o instituto.
93
el common law es el que habilita una técnica especifica a favor de esa supremacía
constitucional, la técnica de la judicial review, que proviene del common law
inglés, de su posición precisamente central como “Derecho común”, desde la cual
el Derecho común puede exigir cuentas a los statutes, a las leyes, como normas
puramente singulares o excepcionales que son, que penetran en un Derecho común
ya constituido. Esta técnica de predominio del common law sobre las leyes o
estatutos es lo que todavía hoy en el sistema inglés, que no conoce la técnica de la
constitucionalidad de las leyes, por motivos que inmediatamente vamos a ver, se
siegue llamando the control of the common law over statutes, es decir, el principio
interpretativo básico por virtud del cual el Derecho común sitúa dentro del sistema
que el representa, y normalmente con criterios restrictivos, todas las normas
singulares dictadas por el legislativo, puesto que el common law en su esencia no
es un derecho legislado, como bien sabido.107 (ENTERRIA, 2011, p.124)
107
Tradução livre: “o common law possibilita uma técnica específica em favor dessa supremacia constitucional, a técnica da
judicial review, que provem do common law inglês, e de sua posição central como ‘Direito comum’, em razão da qual o
Direito comum pode exigir respeito por parte dos statutes, das leis, como normas puramente singulares e excepcionais que
são, que penetram em um Direito comum já estabelecido. Essa técnica de predomínio do common law sobre as leis ou
estatutos é o que, todavia, hoje, no sistema inglês, que não conhece a técnica da constitucionalidade das leis, por motivos que
imediatamente serão vistos, segue sendo chamado de the control of the common law over statutes, isto é, o princípio
interpretativo fundamental em virtude do qual o Direito comum situa dentro do sistema que ele representa, e normalmente
com critérios restritivos, todas as normas singulares ditadas pelo legislativo, posto que o common law, em sua essência, não é
um direito legislado, como sabido.”
94
judicial review foi nitidamente inspirada no julgamento da House of Lords108 do Dr. Bonham
case, no qual Edward Coke asseverou, embora sem acolhimento, a controlabilidade dos atos
do parlamento inglês.
Mesmo contando com influentes defensores, dentre eles Madison 109 e Hamilton, o
judicial review não foi acolhido pela constituinte e nem no processo posterior de ratificação
da Constituição (LEAL, 2006, p.20-21). São conhecidas as palavras de Hamilton segundo o
qual
Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isto seria
como sustentar que o procurador é maior que o mandante, que os representantes do
povo são superiores a esse mesmo povo, que aqueles que agem em virtude de
poderes concedidos podem fazer não só o que eles autorizam mas também aquilo
que proíbem. O corpo legislativo não é juiz constitucional de suas atribuições.
Torna-se mais razoável admitir os tribunais como elementos colocados entre o
povo e o corpo legislativo, a fim de manterem este dentro dos limites do seu poder.
Portanto, a verificar-se uma inconciliável divergência entre a Constituição e uma
lei deliberada pelo órgão legislativo, entre uma lei superior e uma lei inferior, tem
de prevalecer a Constituição. (HAMILTON apud MIRANDA, 2000, p. 18)
108
Interessante observar que, na Inglaterra, a Câmara dos Lordes (House of Lords), órgão integrante do Legislativo, exercia
função jurisdicional ao analisar em última instância os recursos contra as decisões da Corte de Apelação (Court of Appeal) e
exercia a função de corte de primeira instância para o julgamento de seus pares. As funções judiciais da Câmara dos Lords
foram sendo suprimidas, desde 2005, até que, em 2009, foi criada a Suprema Corte do Reino Unido que assumiu as funções
de corte de última instância do reino. Assim, curiosamente, durante quase toda a história do judiciário inglês, um órgão
integrante do parlamento exercia funções jurisdicionais e dava a última palavra acerca do que seria a lei em determinados
casos, o que favorecia o mecanismo de correção das decisões judiciais por meio da edição de lei pelo parlamento.
109
Importante notar que a concepção de controle de constitucionalidade defendida por Madison era bem diferente da
proposta por Hamilton. Enquanto este último pretendia um controle feito pelo Poder Judiciário, o primeiro sustentava a
“instituição de um conselho de revisão das leis, composto por membros dos Executivo e do Judiciário, que teria poder de
veto em relação aos atos editados pelo Congresso americano antes que entrassem em vigor” (LEAL, 2006, p.20).
95
If it be said that the legislative body are themselves the constitutional judges of
their own powers, and that the construction they put upon them is conclusive upon
other departments, it may be answered, that this cannot be the natural presumption,
where it is not to be collected from any particular provisions in the Constitution. It
is not otherwise to be supposed, that the Constitution could intend to enable the
representatives of the people to substitute their will to that of their constituents. Its
far more rational to suppose, that the courts were designed to be an intermediate
body between the people and the legislature, in order, among other things, to keep
the latter within the limits assigned to their authority. The interpretation of the
laws is the proper and peculiar province of the courts. A constitution is, in fact,
and must be regarded by the judge, as a fundamental law. It therefore belongs to
110
“The complete independence of the courts of justice is peculiarly essential in a limited Constitution. By a limited
Constitution, I understand one which contain specified exceptions to the legislative authority; such for instance, as that it
shall pass no bills of attainder, no ex post facto laws, and like. Limitations of this kind can be preserved in practice no other
way than through the medium of courts of justice, whose duty it must be to declare all acts contrary to the manifest tenor of
the Constitution void. Without this, all the reservations of particular rights or privileges would amount to nothing.”
(HAMILTON, 1787, p. 211). Tradução livre: “A independência completa dos tribunais é particularmente essencial em uma
Constituição limitada. Por uma Constituição limitada, eu entendo aquela que contém certas exceções específicas à autoridade
legislativa; como, por exemplo, a de que não se deve aprovar projetos de lei para confisco de bens, nem leis ex post facto, e
assim por diante. Este tipo de limitação apenas pode ser preservado, na prática, por meio dos tribunais, que possuem o dever
de declarar todos os atos contrários ao manifesto de conteúdo da Constituição inválidos. Sem isso, todas as reservas de
direitos ou de privilégios particulares equivaleriam a nada.”
111
“This simple view of the matters suggests several important consequences. It proves incontestably, that the judiciary is
beyond comparison the weakest of the three departments of power (1); that it can never attack with success either of the other
two; and that all passible care is requisite to enable it to defend itself against their attacks. It equally proves, that though
individual oppression may now and then proceed from the courts of justice, the general liberty of the people can never be
endangered from that quarter; I mean so long as the judiciary remains truly distinct from both the legislature and the
Executive. For I agree, that ‘there is no liberty, if the power of judging be not separated from the legislative and the executive
powers.’(2) And it proves, in the last place, that as liberty can have nothing to fear from the judiciary alone, but would have
every thing to fear from its union with either of the other departments; that as all the effects of such a union must ensue from
a dependence of the former on the latter, notwithstanding a nominal and apparent separation; that as, form the natural
feebleness of the judiciary, it is in continual jeopardy of being overpowered, awed, or influenced by its co-ordinate branches;
and that as nothing can contribute so much to its firmness and independence as permanency in office, this quality may
therefore be justly regarded as an indispensable ingredient in its constitution, and, is a great measure, as citadel of public
justice and the public security.” (HAMILTON, 1787, p.210-211). Tradução livre: “Essa visão simples da questão sugere
várias consequências importantes. É a prova incontestável que o Judiciário é, sem comparação, o mais fraco dos três
departamentos de poder (1); que ele nunca poderá atacar com sucesso qualquer um dos outros dois; e que todo o cuidado
possível é requisito para habilitá-lo a defender-se contra os ataque dos outros. Isso prova igualmente, que apesar de a
opressão do indivíduo poder, agora e depois, provir dos tribunais, a liberdade geral do povo nunca poderá ser posta em perigo
por aquela parte; quer dizer, desde que o judiciário permaneça verdadeiramente distinto tanto da legislatura quanto do
Executivo. Eu concordo, que ‘não há liberdade, se o poder de julgar não estiver separado dos poderes legislativo e
executivo.’ (2) E isso prova, em último lugar, que enquanto a liberdade não teria nada a temer do judiciário sozinho, ela teria
tudo a temer da união do judiciário com qualquer um dos outros órgãos; que os efeitos dessa união podem gerar uma
dependência do primeiro com relação aos últimos, não obstante uma separação apenas nominal e aparente; é assim que se
forma a fraqueza natural judiciário, que está em perigo constante de ser dominado, intimidado, ou influenciado pelos outros
ramos de poder em coordenação; e como nada pode contribuir o suficiente para sua firmeza e independência quanto a
permanência no cargo, esta qualidade pode portanto, ser considerado como um ingrediente indispensável na sua constituição,
e é uma grande medida a ser adotada como fortalecimento da justiça pública e da segurança pública.”
96
them to ascertain its meaning, as well as the meaning of any particular act
proceeding from the legislative body. If there should happen to be an
irreconcilable variance between two, that which has the superior obligation and
validity ought, of course, to be preferred; or, in other words, the Constitution ought
to be preferred to the statute, the intention of the people to the intention of their
agents.112 (HAMILTON, 1787, p.211)
Nor does this conclusion by any means suppose a superiority of the judicial to the
legislative power. It only supposes that the power of the people is superior to both;
and that where the will of legislature, declared in the statutes, stands in opposition
to that of the people, declared in the Constitution, the judges ought to be governed
by the latter rather then the former. They ought to regulate their decisions by the
fundamental laws, rather them by those which are not fundamental. 113
(HAMILTON, 1787, p.211)
112
Tradução livre: “Se for dito que o corpo legislativo são os juízes constitucionais de seus próprios poderes, e que a
construção que eles puserem sobre si é conclusiva também sobre outros departamentos, pode ser respondido, que esta não
pode ser uma presunção natural, e que não pode ser deduzida de nenhuma disposição específica da Constituição. Não é
possível se supor, que a Constituição poderia intencionar permitir que os representantes do povo substituíssem a vontade de
seus constituintes pela sua própria. É muito mais racional supor que os tribunais foram designadas para serem um corpo
intermediário entre o povo e o legislativo, a fim de, entre outras coisas, manter o último dentro dos limites atribuídos à sua
autoridade. A interpretação das leis é competência própria e peculiar dos tribunais. A Constituição é, e de fato, deve ser
considerada pelo juiz, como a lei fundamental. Portanto, pertence a eles determinar o seu significado, bem como o
significado de qualquer ato particular emanado do corpo legislativo. Se acontecer uma variação irreconciliável entre os dois,
aquele que tiver uma superior obrigatoriedade e validade deve, evidentemente, ser preferido, ou, em outras palavras, a
Constituição deve ser preferida ao estatuto, a intenção do povo à intenção de seus agentes.”
113
Tradução livre: “Esta conclusão de forma alguma supõe uma superioridade do poder judiciário sobre o legislativo. Ela só
supõe que o poder do povo é superior a ambos; e que onde a vontade do legislativo, declarada nos estatutos, está em oposição
à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem ser regidos por esta em vez da anterior. Eles devem regular suas
decisões pela lei fundamental, em vez de por aquelas que não são fundamentais.”
114
Essa ideia vigora até hoje entre alguns constitucionalistas norte-americanos que defendem a doutrina da deference. A
respeito do tema ver PERRY, Michael J. Direitos humanos constitucionalmente institucionalizados e a Suprema Corte
Americana: da deferência thayeriana. Tradutora: Marina Bevilacqua; Revisor técnico: Felippe Monteiro. Revista
Brasileira de Estudos Constitucionais _ RBEC, Belo Horizonte, ano 1, n. 2, p. 113-126, abr./jun. 2007. Disponível em:
<http://www.bidforum.com.br/bid/ PDI0006.aspx?pdiCntd=41678>. Acesso em: 8 mai 2012.
97
115
Nesse caso a Suprema Corte declarou inconstitucional, por ferir o artigo III da Constituição dos Estados Unidos que trata
das competências da Suprema Corte, uma lei editada pelo Congresso que atribuía à Corte competência para processar e julgar
originariamente writs of mandamus em outras situações que não as expressamente admitidas no texto constitucional. (LEAL,
2006, p.25).
116
Garcia de Enterria assinala que a invalidade de leis estaduais em decorrência de sua incompatibilidade com a Constituição
suscitava menos dúvidas e, inclusive antes do julgamento de Marbury v. Madison, já havia sentenças anteriores admitindo a
anulação da lei estadual. (ENTERRIA, 2001, p.127)
117
Tradução livre: “quando uma lei está em conflito com a Constituição a alternativa é muito simples: ou se aplica a lei, caso
em que não se aplica a Constituição, ou se aplica a Constituição, o que obriga a não aplicar a lei; ao se optar por esta segunda
solução, naturalmente, que se julga the very essence of judicial duty, sobre a base do que Hamilton, em The Federalist, havia
chamado, e que vai acabar se estabelecendo como um princípio fundamental do Direito público norte-americano, a obrigação
mais forte, a vinculação mais forte do juiz à Constituição (higher, superior obligation).”
98
118
A literalidade do mencionado dispositivo prevê (destaque em itálico das palavras “cases” e “controversies” nossos): “The
judicial Power shall extend to all Cases, in Law and Equity, arising under this Constitution, the Laws of the United States,
and Treaties made, or which shall be made, under their Authority;—to all Cases affecting Ambassadors, other public
ministers and Consuls;—to all Cases of admiralty and maritime Jurisdiction;—to Controversies to which the United States
shall be a Party;—to Controversies between two or more States;—between a State and Citizens of another State;—between
Citizens of different States;—between Citizens of the same State claiming Lands under Grants of different States, and
between a State, or the Citizens thereof, and foreign States, Citizens or Subjects.” (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA,
1787) Tradução livre: “A competência do Poder Judiciário se estenderá a todos os Casos de aplicação da Lei e da Equidade
ocorridos sob a presente Constituição, as leis dos Estados Unidos, e os tratados concluídos ou que se concluírem sob sua
autoridade;—a todos os Casos que afetem os embaixadores, outros ministros e cônsules;—a todos os Casos do almirantado e
de jurisdição marítima;—às Controvérsias em que os Estados Unidos sejam parte;—às Controvérsias entre dois ou mais
Estados;—entre um Estado e Cidadãos de outro Estado;— entre Cidadãos de diferentes Estados;—entre Cidadãos do mesmo
Estado reivindicando terras em virtude de concessões feitas por outros Estados, e entre um Estado, ou os seus Cidadãos, e
Estados, Cidadãos, ou Súditos estrangeiros.
99
No caso Baker v. Carr, a Suprema Corte procurou fornecer elementos para uma
identificação mais precisa de uma political question. Contudo, sua tentativa foi, ao
que parece, infrutífera. Afirmou a Corte estar diante de uma questão política
quando: a) for textualmente demonstrável a atribuição da questão a algum órgão
de natureza política; b) houver a carência de parâmetros judicialmente aplicáveis
para resolver o caso; c) houver a impossibilidade de decidir a questão sem uma
determinação política inicial claramente de âmbito não judicial; d) identifica-se a
impossibilidade de um tribunal promover uma solução independente sem
expressar falta de respeito aos demais órgãos estatais; e) ocorrer uma incomum
necessidade de aderir inquestionavelmente a uma decisão política já tomada; f)
identificar-se a potencialidade de confusão ou embaraço em relação a múltiplos
pronunciamentos de vários órgãos estatais sobre a questão. (LEAL, 2006, p.31)
119
Em razão da organização judiciária norte-americana a necessidade de observar precedentes pode ser apenas persuasiva –
quando o juízo ou tribunal não está estritamente vinculado a julgar de forma idêntica, mas é aconselhável que se faça para a
manutenção da harmonia do sistema – ou mandatória – quando o juízo ou tribunal é obrigado a seguir o precedente de outro
tribunal. No modelo norte-americano, a decisão de cada um dos juízes acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade
de determinada norma é vinculante para os demais juízes hierarquicamente inferiores e de mesma jurisdição. Ou seja,
decidido um determinado caso específico mediante a aplicação ou negativa de aplicação de determinada norma por
inconstitucionalidade, essa decisão dever ser adotada em todos os casos seguintes que versem sobre o mesmo tema. No caso,
a corte chamada a decidir em último grau sobre a aplicação de uma norma a um caso concreto é a Suprema Corte dos Estados
Unidos. Decidindo a Suprema Corte pela não aplicação de uma norma por inconstitucionalidade a um determinado caso,
todos os juízes de instâncias inferiores estarão vinculados à ratio decidendi dessa decisão e deverão acolher futuras ações nas
quais se requeira a não aplicação da mesma lei ou de lei com o mesmo conteúdo, salvo se possuírem boas razões para não
fazê-lo, quando, então, deverá ser praticado o overruling (revogação do precedente) pelas Cortes que estiveram autorizadas a
fazê-lo. Boas razões, neste caso, não são simplesmente razões que o julgador considere adequadas, de acordo com a sua
convicção pessoal ou com sua visão jurídica do caso, mas sim, para o direito norte-americano, são aquelas fortes razões que
levam o magistrado a desacreditar por completo na decisão que foi dada anteriormente. São fortes razões que indicam a
necessidade de mudança do precedente, pois ocorreram mudanças na sociedade que tornaram o precedente ultrapassado, ou
tendo em vista a total inadequação do precedente à realidade social. Enfim, são boas razões aquelas que vão além do
entendimento pessoal do magistrado e se justificam na própria repercussão da decisão anterior no meio social. A respeito do
tema ver MARSHALL, Geoffrey. What is binding in a precedent? In: MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. (eds.).
Interpreting precedents: a comparative study. Surrey: Ashgate, 2010 e SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente
judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2006.
100
A tentativa da Suprema Corte não obteve êxito, pois acabou suscitando mais dúvidas
sobre a presença dos supostos critérios no julgamento, do que respostas a respeito do que deve
ser entendido por questões políticas.
instituto permaneceu sem nenhuma atuação até a derrocada de Napoleão e que este Sénat
conservateur apenas vem desempenhar o seu papel de guardar a Constituição quando declara,
já após a derrota de Napoleão, por decreto, que ele e sua família estavam destituídos do trono
por terem ofendido a Constituição e os direitos do povo.
O Senado, portanto, não exerceu suas atribuições, permitindo uma série de práticas
abusivas e inconstitucionais por parte de Napoleão Bonaparte, na qualidade de imperador.
Assim, a ideia de criar uma instância controladora da constitucionalidade dos atos do governo
foi abandonada, na França, em razão do receio de se criar uma instância que controlasse o
próprio governo.
norma, pois na Europa não vigorava nenhum instituto semelhante ao stare decisis que
proporcionava uniformizar as decisões nos Estados Unidos.
Somente em 1919, e por iniciativa de Hans Kelsen, a doutrina americana do controle
de constitucionalidade foi desenvolvida na Europa, pois o jurista conseguiu apresentar
soluções teóricas para as objeções político-jurídicas que impediam acolher o controle de
constitucionalidade. Para tal fim, o sistema kelseniano introduziu uma mudança significativa
em relação ao sistema americano: concentrar a função da guarda da Constituição em um único
órgão, o Tribunal Constitucional, que não seria propriamente um tribunal do Poder Judiciário
(pois não teria por função aplicar uma lei a casos concretos), mas se limitaria a controlar a
compatibilidade entre duas normas: a Constituição e a lei.
Ao contrário do modelo de controle norte-americano, no qual todos os juízes estão
autorizados a garantir a Constituição, esse outro modelo se apresenta como uma jurisdição
concentrada em um único órgão competente, separado da jurisdição ordinária. A criação de
um órgão específico para analisar a constitucionalidade das normas evitaria decisões
conflitantes a respeito da constitucionalidade por parte de vários juízos, proporcionando
segurança jurídica. Instituiu-se, assim, o modelo de jurisdição concentrada.
O Tribunal Constitucional seria chamado a pronunciar-se exclusivamente sobre
questões jurídico-constitucionais, com total abstração dos motivos e interesses políticos
subjacentes à lei atacada e dos conflitos de interesses relacionados aos casos concretos de
aplicação dessas leis. Ou seja, o controle de constitucionalidade se esgota no Tribunal
Constitucional, que é o órgão responsável para confrontar a norma legal e a constitucional,
ambas abstratas, verificando eventual contradição lógica.
A possibilidade de provocar esse controle, segundo Kelsen (2007, p.174-177)., teria
por modelo ideal uma actio popularis, ou seja, deveria ser conferida a todos os cidadãos.
Porém observa que essa medida não seria recomendável, pois traria o risco de promover
diversas ações temerárias e um intolerável congestionamento das funções. Por esses motivos,
o autor recomenda que a possibilidade de acionar o Tribunal Constitucional seja feita: 1) pelas
autoridades públicas que, devendo aplicar uma norma, tivessem dúvidas quanto a sua
regularidade; 2) pelas partes, em processo judiciário ou administrativo, quando houver
emanado um ato de autoridade pública – sentença ou ato administrativo – dando execução a
uma norma irregular; 3) pelos governos de Estados federados contra os atos da União e pelo
governo federal contra atos dos Estados; 4) por meio de um defensor da Constituição – um
órgão junto ao Tribunal Constitucional que se encarregaria de provocar o controle ex officio,
quando estimasse ser algum ato irregular; 5) por uma minoria parlamentar qualificada, visto
103
que a jurisdição constitucional tem por função proteger as minorias; e 6) pela introdução ex
officio pelo próprio Tribunal Constitucional. Kelsen defende um participação plural no
processo perante o Tribunal Constitucional, pois advoga a participação da autoridade da qual
emanou a norma jurídica para defender sua regularidade, bem como de particulares
interessados no litígio que deu ensejo à instauração do processo concentrado ou de
particulares que tenham direito de levar a causa ao Tribunal.
Hans Kelsen, ao elaborar o seu modelo de controle jurisdicional de
constitucionalidade, defendeu que os Tribunais Constitucionais deveriam basear sua atuação
apenas em uma operação lógico-jurídica de compatibilidade entre uma norma superior e uma
inferior e demonstrou ser veementemente favorável ao distanciamento do Tribunal
Constitucional de uma atuação política. Para ele era “tão difícil quanto desejável afastar
qualquer influência política da jurisprudência da jurisdição constitucional” (KELSEN, 2007,
p.154).
A opção de Hans Kelsen por esse modelo tinha justificativa no momento jurídico-
histórico de tensão política, entre os juízes e o Poder Legislativo da Europa dos anos 20, que
teve seu ápice na República de Weimar e na tensão teórica entre o positivismo e o Direito
livre120. Assim, o Tribunal Constitucional representava duas coisas: uma tentativa de conciliar
a garantia da constituição e da liberdade política do parlamento frente aos juízes e, ao mesmo
tempo, uma tentativa de recuperar a ideia de aplicação racional e controlável do Direito
(ABELLÁN, 2003, p.166).
Nos termos de Kelsen (2007, p.151), todos os juízes continuariam submetidos à
necessidade de aplicar leis, porém, o Tribunal Constitucional poderia eliminar do sistema
jurídico, com eficácia ex nunc, aquelas leis incompatíveis com a Constituição. Kelsen superou
o dogma da soberania do parlamento ao afirmar que todos os Poderes deveriam estar
subordinados à Constituição, pois supremo deveria ser apenas o ordenamento constitucional.
Segundo Garcia de Enterria (2011, p.132), o Tribunal Constitucional de Kelsen foi
construído como um órgão Legislativo, porém, não com uma função de legislação positiva –
que engloba a possibilidade de editar e modificar as leis – mas com função de legislador
negativo, que poderia ab-rogar as normas incompatíveis com a Constituição. A sua
caracterização como legislador – não obstante ser legislador negativo – é que daria força erga
omnes às suas decisões. Nas palavras de Kelsen,
120
Essa escola pretendia liberar, em certa medida, os juízes da necessidade de observância da lei no julgamento dos casos.
104
Claro, a anulação de um ato legislativo por um órgão que não é órgão legislativo
mesmo, constitui uma intromissão no “poder legislativo”, como se costuma dizer.
Mas o caráter problemático dessa argumentação logo salta aos olhos, ao se
considerar que o órgão a que é confiada a anulação das leis inconstitucionais não
exerce uma função verdadeiramente jurisdicional, mesmo se, com a independência
de seus membros, é organizado em forma de tribunal. Tanto que se possa
distingui-las, a diferença entre função jurisdicional e a função legislativa consiste
antes de mais nada em que esta cria normas gerais, enquanto aquela cria
unicamente normas individuais. Ora, anular uma lei é estabelecer uma norma
geral, porque anulação de uma lei tem o mesmo caráter de generalidade que sua
elaboração, nada mais sendo, por assim dizer, que a elaboração com sinal negativo
e portanto ela própria uma função legislativa. E um tribunal que tenha o poder de
anular as leis é, por conseguinte, um órgão do poder legislativo. Portanto, poder-
se-ia interpretar a anulação das leis por um tribunal tanto como uma repartição do
poder legislativo entre dois órgãos, quanto como uma intromissão no poder
legislativo. (KELSEN, 2007, p.151-152)
e que a indicação dos mesmos poderia ser feita pelo chefe de Estado, pelas escolas de Direito
ou pelo próprio Tribunal, seguida de uma escolha por deliberação parlamentar. Esses
integrantes deveriam ser selecionados dentre juristas de carreira e estariam impedidos de
exercer a jurisdição constitucional membros do governo e parlamentares.
A atribuição da tarefa de defesa da Constituição a um Tribunal Constitucional teve por
crítico Carl Schmitt (1983, p. 89-90). que afirmava que o controle de constitucionalidade dos
atos passa pela resolução de dúvidas do sentido da norma constitucional – uma determinação
de conteúdo legal de cunho exclusivamente legislativo –, o que não poderia ser realizado no
âmbito da jurisdição, uma vez que a atividade jurisdicional é uma tarefa de subsunção
processual e concreta dos fatos à norma legal. Para o autor, a atribuição da tarefa de guarda da
Constituição a um tribunal ocasionaria não uma “judicialización de la Política, sino una
politiquización de la Justicia”121 (SCHMITT, 1893, p.57).
Carl Schmitt defendeu ainda que instituir um Tribunal Constitucional fere o princípio
democrático e ocasiona a existência de uma segunda câmara legislativa formada por
funcionários profissionais, uma instância política suprema com atribuições para formular
preceitos constitucionais. Isso seria o mesmo que trasladar as funções legislativas a uma
“aristocracia de la toga” 122 (SCHMITT, 1983, p.245). O autor defende que a guarda da
Constituição deve ser feita por um terceiro neutro com função “mediadora, tutelar e
reguladora”. Ele identificou que essas características estariam presentes no Presidente do
Reich, pois a sua independência, imparcialidade e neutralidade residiria na sua eleição direta
pelo povo alemão, na existência de um mandato de 7 anos, nas travas que existem à
revogação desse mandato e na sua independência em relação às maiorias parlamentares
(SCHIMITT, 1983, p. 248-250).
O modelo de Tribunal Constitucional kelseniano prevaleceu e foi transportado para a
Constituição austríaca de 1920. Seu modelo de jurisdição concentrada também foi adotado
por outros países europeus após a Primeira Guerra Mundial.
É relevante lembrarmos também que Kelsen sempre defendeu um controle de
constitucionalidade que não comprometesse a liberdade política do parlamento e que se
mostrasse cercado de razão e lógica. Para atingir tal objetivo, estipulou dois requisitos:
instituir um juízo abstrato de normas, que excluísse toda a ponderação de valores e interesses
subjacentes à lei e aos fatos objeto de sua aplicação, para evitar a subjetividade; e, em
segundo lugar, a adoção de uma Constituição concebida como uma regra procedimental e de
121
Tradução livre: “não uma judicialização da Política, mas uma politiquização da Justiça.”
122
Tradução livre: “aristocracia da toga”
106
Portanto não é com o próprio parlamento que podemos contar para efetuar a
subordinação à Constituição. É um órgão diferente dele, independente dele e, por
conseguinte, também de qualquer outra autoridade estatal, que deve ser
encarregado da anulação de seus atos institucionais – isto é, uma jurisdição ou um
tribunal constitucional. (KELSEN, 2001, p.150)
123
Roger Stiefelmann Leal traz alguns exemplos das peculiaridades que o controle de constitucionalidade de inspiração
kelseniana pode adquirir em cada Estado específico, lembrando que em alguns países o parâmetro do controle de
constitucionalidade das leis é limitado ao texto constitucional, enquanto que em outros locais pode-se estender a outros
diplomas normativos – tal como ocorre naqueles que adotam a figura do bloco de constitucionalidade. Lembra também que
há tribunais Constitucionais que apreciam apenas a constitucionalidade de leis, enquanto outros podem analisar também
decisões judiciais e atos administrativos. (LEAL, 2006, p.58-59)
107
124
Em face da autonomia da jurisdição constitucional com relação à jurisdição ordinária, os países que adotarem esse modelo
de controle de constitucionalidade passam a conviver com uma dualidade ou até pluralidade de jurisdições, na medida em
que se poderá identificar uma jurisdição constitucional, uma jurisdição ordinária e, muitas vezes, uma jurisdição
administrativa.
125
Dada a relevância do tema, hoje, é impensável a existência de um modelo de Justiça Constitucional na qual não seja
deferido a todos os tribunais, juízos, órgãos administrativos, cidadãos, etc a possibilidade de exercer um certo controle de
constitucionalidade, ainda que em sede de interpretação constitucional. Fato que não descaracteriza a existência de um
Tribunal Constitucional. A questão é que, modernamente, a compreensão constitucional é prévia à sua aplicação, logo
qualquer pessoa que esteja aplicando, ou concretizando comandos constitucionais, por meio da aplicação de uma lei, estará
também interpretando referida lei segundo os comandos constitucionais e, portanto, exercendo algum controle de
constitucionalidade, ainda que com resultado negativo (TAVARES, 2005, p.155-156). Como lembra Häberle “todos estão
inseridos no processo de interpretação constitucional, até mesmo aqueles que não são por ela diretamente afetados. Quanto
mais ampla for, do ponto de vista objetivo e metodológico, a interpretação constitucional, mais amplo há de ser o círculo dos
que delas devam participar. É que se cuida de Constituição como um processo público (Verfassung als öffentlichen
Prozess).” (HÄBERLE, 1997, p.32)
108
cenário político do Estado tenham adeptos entre seus integrantes, sem, porém, qualquer
vinculação estrita de representação ou subordinação” (LEAL, 2006, p.69).
É possível afirmarmos que esse modelo de jurisdição constitucional idealizado por
Hans Kelsen não existe mais, se é que algum dia foi implantado em algum lugar. Foi um
modelo pensado para um Estado que tem por base uma Constituição desprovida de carga
axiológica e que seria apenas o fundamento de validade do ordenamento jurídico. Hoje, a
grande parte dos Estados possui Constituições que asseguram direitos e garantias
fundamentais e incorporam valores por meio dos princípios, não podendo a tarefa de defesa
da Constituição do Tribunal Constitucional ser meramente a de um legislador negativo
quando surgirem normas que ofendam diretamente a Constituição. A nova configuração do
Direito Constitucional pede um Tribunal Constitucional que auxilie na concretização da
constituição em toda a sua materialidade.
Desse modo, concordamos com André Ramos Tavares (2005, p.159) quando afirma
que o que deve identificar um órgão como Tribunal Constitucional não são essas
características originariamente pensadas segundo o modelo kelseniano, mas sim, o exercício
de funções marcadas pela ideia de proteção da supremacia da Constituição, mediante sua
defesa e cumprimento.
No marco do Constitucionalismo Contemporâneo, a Justiça Constitucional e as
funções do Tribunal Constitucional deixaram de se identificar exclusivamente com o
exercício monopolístico do controle de constitucionalidade. O foco principal está na
concretização da Constituição em toda a sua materialidade. Diante desta constatação é
necessário estudarmos essas novas funções atribuídas à Justiça Constitucional e, por
conseguinte, ao Tribunal Constitucional, no marco do Constitucionalismo Contemporâneo.
André Ramos Tavares (2005, p.173-174) aponta que o dogma da tripartição dos
Poderes em sua concepção original não é mais aceito. A multifuncionalidade do Estado
contemporâneo demanda a reordenação e a redistribuição das funções estatais. O autor afirma,
ainda, que os estreitos limites da clássica divisão de Poderes pensada por Montesquieu não
126
As funções a serem analisadas são apenas estruturais ou próprias do Tribunal Constitucional, ou seja, aquelas que
pertencem por natureza a este órgão e acabam por caracterizá-lo como tal. O estudo das funções impróprias – aquelas que são
atribuídas ao Tribunal Constitucional por força de previsão normativa, mas que não têm relação intrínseca com a posição de
garante da Constituição – não são de interesse para o nosso trabalho, já que são variáveis de um para outro ordenamento
jurídico e não podem fazer parte integrante de uma teoria da Justiça Constitucional.
109
127
André Ramos Tavares reconhece que não há uma unidade doutrinária em torno da aceitação da existência de categorias
funcionais da Justiça Constitucional e aponta três razões básicas para isso: “(i) O tema da Justiça Constitucional é
relativamente recente na História do Direito, impossibilitando um adequado desenvolvimento de parcela de suas categorias
fundamentais. Inicialmente se fixou atenção na ‘legitimidade’ da Justiça Constitucional. (ii) Há uma diversidade e
inadequação de funções atribuídas empiricamente a alguns tribunais constitucionais. (iii) Houve forte concentração
doutrinária no estudo do tema do controle de constitucionalidade das leis, função que inaugura a atividade do Tribunal
Constitucional na história.” (TAVARES, 2005, p193)
110
que não existe uma função legislativa, mas sim funções legislativas exercidas por vários
órgãos, sendo que, cada um deles, ainda que esteja exercendo materialmente a mesma função,
estará fazendo com base em um motivo-finalidade diverso. Enquanto o legislador edita atos
normativos para regular a vida em sociedade, o Tribunal Constitucional edita atos decisórios
de cunho normativo com a exclusiva finalidade de defender a Constituição. Com relação ao
Poder Judiciário, por exemplo, o autor aponta que este executa o Direito e a Constituição com
a finalidade de solucionar conflitos sociais concretos. Já o Tribunal Constitucional executa a
Constituição para defendê-la.
128
A função interpretativa normalmente é exercida como uma função instrumental e está presente sempre que o Tribunal
exerce todas as suas outras funções. Porém, importante mencionar que, no Brasil, essa função já foi exercida de forma
autônoma, por meio da representação para interpretar a lei ou ato normativo federal ou estadual, prevista no art. 119, I, l da
Constituição de 1969.
129
André Ramos Tavares afirma que a atividade interpretativa é normativa por excelência, embora não se deva confundir
com atividade legislativa em sentido estrito (TAVARES, 2005, p.223); mais do que aplicar a Constituição os Tribunais
Constitucionais acabam por completá-la (TAVARES, 2005, p.226).
111
legislador, mas a Justiça Constitucional possui uma exceção a essa regra que se opera por
meio da “enunciação constitucional”. (TAVARES, 2005, p.218-219)
André Ramos Tavares explica que, segundo o esquema de verificação do
130
escalonamento hierárquico proposto por Merkel , a decisão interpretativa do Tribunal
Constitucional sobre determinada norma da Constituição ou a elaboração de uma súmula
vinculante131 será equiparada a uma norma constitucional, segundo o critério da capacidade
ou força de derrogação. 132 Assim, as decisões do “Tribunal Constitucional ocupariam o
mesmo escalão das normas constitucionais em sentido estrito (Constituição originária), já que
poderiam ‘derrogar’ as leis e estas não poderiam derrogar as primeiras.” (TAVARES, 2005,
p.220)
Por outro lado, levando-se em conta o critério do fundamento de validade, tendo em
vista que o fundamento das decisões do Poder Legislativo e do Tribunal Constitucional seria a
Constituição, “ambas estariam, pelo menos, em idêntico posicionamento geral.” (TAVARES,
2005, p.220)
Quando o Tribunal interpreta uma lei ordinária, esta servirá apenas como uma diretriz
para o legislador. Desse modo, se o Tribunal considera determinada lei constitucional, nada
impede que o legislador a revogue por outra posterior. Porém
130
A teoria desenvolvida por Merkel apresenta duas possibilidades de escalonamento hierárquico “sendo uma delas baseada
no (i) fundamento de validade e a outra na (ii) capacidade ou força de derrogação.” (TAVARES, 2005, p.219)
131
“A súmula vinculante, por estar inserida no contexto interpretativo, impede a atuação contrária do Parlamento, por meio
de lei formal. Tem-se, como se nota, uma progressiva (e ilimitada) retração do âmbito de atividade do Parlamento, o que é
resultado do processo histórico de assunção do Estado Constitucional.” (TAVARES, 2005, p.232)
132
Victor Ferreres Comella afirma a possibilidade de atuação do legislativo contra uma decisão que declara a
inconstitucionalidade de determinada norma por meio da resposta legislativa. O autor defende que a reformabilidade da
Constituição é um meio de resposta da comunidade política a uma determinada interpretação judicial. Porém essa reforma
pode trazer os inconvenientes de elevar o nível da lei que foi invalidada pelo juiz, ou remeter ao legislador ordinário a
concreção de determinado direito abstrato que provocou a controvérsia, desconstitucionalizando o seu conteúdo. Porém, há
um segundo tipo de resposta que não contém esses inconvenientes, que seria a “resposta legislativa”, consistente na edição de
uma nova lei com o mesmo conteúdo da que foi declarada inconstitucional pelo tribunal, com a finalidade de provocar uma
segunda rodada de debates e de provocar uma mudança na linha jurisprudencial do tribunal. Obviamente, para se admitir essa
repetição de uma lei extirpada do ordenamento deverá ter transcorrido um prazo razoável desde a decisão do tribunal, é ideal,
inclusive, que tenha havido a eleição de um novo parlamento. Nesse sentido, é importante que o sistema jurídico possa
promover a evolução da jurisprudência constitucional. Alguns sistemas não privilegiam essa mudança na jurisprudência, tais
como: a) Os sistemas não federais, posto que nesses sistemas é necessário que o mesmo parlamento que aprovou a lei
invalidada aprove outra de conteúdo similar ou idêntico. Já nos sistemas federais, basta que a nova lei sobrevenha de outro
ente federativo; b) Os sistemas que apenas trazem o controle de constitucionalidade abstrato impossibilitam a mudança de
jurisprudência, pois o tribunal constitucional extirpa a lei considerada inconstitucional do sistema. Já onde ocorre o controle
difuso, o juiz não destrói a lei inconstitucional, apenas deixa de aplicá-la a um caso concreto e assenta um precedente que
deve ser seguido em casos similares. Se, no futuro, o juiz modifica o precedente, a lei recupera a sua aplicabilidade. Assim, o
autor afirma que a resposta legislativa é necessária para possibilitar a modificação da jurisprudência de forma favorável ao
legislador. (COMELLA, 2003, p.340-342)
112
133
No que tange à mutação constitucional, Gomes Canotilho esclarece que há necessidade de aceitação dessa teoria com
reticências, afinal “uma coisa é admitirem-se alterações no âmbito ou esfera da norma que ainda se podem considerar
susceptíveis de serem abrangidas pelo programa normativo (Normprogramm), e, outra coisa, é legitimarem-se alterações
constitucionais que se traduzem na existência de uma realidade constitucional inconstitucional, ou seja, alterações
manifestamente incomportáveis pelo programa da norma constitucional. Uma constituição pode ser flexível sem deixar de ser
firme. A necessidade de uma permanente adequação dialética entre o programa normativo e a esfera normativa justificará a
aceitação de transições constitucionais que, embora traduzindo a mudança de sentido de algumas normas provocado pelo
impacto da evolução da realidade constitucional, não contrariam os princípios estruturais (políticos e jurídicos) da
constituição. O reconhecimento destas mutações constitucionais silenciosas (‘stille Verfassungswandlungen’) é ainda um
acto legítimo de interpretação constitucional. Por outras palavras que colhemos em K. Stern: a mutação constitucional deve
considerar-se admissível quando se reconduz a um problema normativo-endogenético, mas já não quando ela é resultado de
uma evolução normativamente exogenética.” (CANOTILHO, 2033, p.1229)
114
134
No quarto capítulo verificaremos que essa análise de questões políticas encontra limites na separação entre juízo de
constitucionalidade e juízo de decisão política, sendo que, não é dado ao Tribunal Constitucional adentrar no âmbito deste
último.
115
Constituição. Essa técnica também evidencia a distinção que a Justiça Constitucional deve
promover entre enunciado normativo (texto escrito da norma) e norma jurídica (resultado da
interpretação desse texto).
No desempenho da função estruturante, o Tribunal Constitucional pode exercer
também o papel de corte de superposição, ou seja, responsável por adequar as decisões
judiciais inferiores ao sistema jurídico.
Podemos considerar as decisões judiciais como um elemento normativo do sistema,
daí porque seria atribuição também do Tribunal Constitucional reformar para extirpar do
ordenamento as decisões incongruentes. Essa atividade, porém, para não inviabilizar a
atuação do Tribunal, deveria vir acompanhada do instituto do writ of certiorari (existente nos
Estados Unidos) que permite ao Tribunal decidir quais processos aceitará para revisar a
depender da conveniência e relevância social da matéria envolvida.
Atualmente, podemos afirmar que a função estruturante passou a incluir em seu rol de
finalidades a preservação dos direitos fundamentais que passaram a integrar a grande maioria
das Constituições modernas. Por isso, a função estruturante deixou de se referir apenas ao
controle de constitucionalidade das leis e à resolução de conflitos de atribuição e passou a ser
qualificada pela finalidade de tutelar os direitos fundamentais.
Essa função será exercida não só quando o Tribunal estiver na posição de um terceiro
no conflito, ou seja, tratar-se de decidir a competência entre dois órgãos como o Legislativo e
o Executivo, mas também quando o Tribunal tiver que solucionar conflitos nos quais ele
mesmo esteja envolvido. Assim, ainda que o conflito de competência ocorra entre o Tribunal
Constitucional e os Poderes Judiciário, Executivo ou Legislativo será ele o órgão responsável
por fixar a competência de cada uma dessas funções do Estado.
André Ramos Tavares traz como inerente à Justiça Constitucional a função legislativa
“atividade da qual resulta a composição inaugural de comandos com efeito de caráter geral” e
que foi por muito tempo exclusiva do legislador (TAVARES, 2005, p.322). Essa função,
porém, deve ser desempenhada dentro de certos limites, para não haver invasão das
competências do Legislativo. É importante termos em mente que a função legislativa não é
exclusiva do órgão Legislativo, mas certas atividades serão exclusivamente atribuições sua.
Assim, a atividade legislativa desenvolvida pelo Tribunal Constitucional deverá estar
adstrita aos limites de suas atribuições para evitar ingressar no âmbito daquela que integra as
atribuições exclusivas do órgão Legislativo. Assim, as decisões legislativas do Tribunal
Constitucional devem decorrer expressamente da divisão constitucional de competências e
dependem de norma constitucional prevendo o exercício dessa função. O Tribunal
Constitucional poderá desempenhar essa função em duas situações
André Ramos Tavares amplia o leque de opções e considera que será exercida
atividade legislativa quando o Tribunal atuar no desempenho das seguintes funções “(i)
competência para elaborar leis; (ii) controle preventivo das leis; (iii) controle das omissões
legislativas inconstitucionais; (iv) decisões aditivas, redutoras e substitutivas; (v) elaboração
de seu regimento interno.” (TAVARES, 2005, p.327)
A possibilidade de elaboração de leis pelo Tribunal Constitucional é considerada
atividade legislativa em sentido estrito e só poderá ocorrer quando a Constituição, ao
estabelecer a competência legislativa de cada um dos órgãos de Estado, contemplar também o
Tribunal Constitucional.
Em relação ao exercício do controle preventivo de leis, por mais que alguns autores o
considere parte da função de controle de constitucionalidade (função estruturante), André
Ramos Tavares (2005, p. 329) atenta para o fato de que, como se trata de uma atividade pré-
positiva (a lei ainda não existe no mundo jurídico), ainda não haverá ofensa da estrutura do
sistema, razão pela qual o enquadramento como função estruturante não é adequado. Aqui
haverá função legislativa, pois o controle preventivo é uma das fases do processo legislativo,
118
sendo o caso de lembrarmos, inclusive, que a decisão do Tribunal será vinculante para o
Legislativo. Assim, Legislativo e Tribunal Constitucional atuam juntos no processo de
elaboração da lei.
A atuação do Tribunal Constitucional no controle das omissões legislativas
inconstitucionais também é uma atividade legislativa, pois haverá uma produção legislativa
do Tribunal no sentido de provisoriamente e especificamente colmatar lacunas no
ordenamento. Importante observar que a atuação do Tribunal estará adstrita às situações em
que a ausência ou a insuficiência de regulamentação legal desrespeite um comando
constitucional. Ou seja, a Constituição prevê a necessidade de regulamentar uma determinada
matéria, porém, o Poder Legislativo permanece inerte e acaba afrontando o comando
constitucional. Na ausência ou insuficiência de normatização, o Tribunal irá, primeiramente,
exercer a função de controle (estruturante) e, se constatar que a falta de lei ofende a estrutura
constitucional do sistema, efetuará a regulação temporária e específica da situação. É
possível, pois, afirmarmos que essa atividade legislativa é supletiva (depende da ausência de
regulamentação pelo Legislativo), provisória (só vigora enquanto o Legislativo não atuar) e
específica (só é possível naquela situação em que a ausência de legislação ocasionar uma
afronta às normas constitucionais).
Guilherme Braga Penã de Moraes (2011, p. 109) atenta para o fato de que o Tribunal
Constitucional também exerce atividade legislativa em casos de inconstitucionalidade por
ação, ao relativizar a eficácia retroativa das decisões por inconstitucionalidade ou, quando
declara a constitucionalidade da norma e fixa a interpretação adequada, proferindo as
“decisões de calibragem” ou “intermediárias”. Essa decisões atípicas seriam a restrição dos
135
efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade , o afastamento do efeito
repristinatório 136 , a interpretação conforme a Constituição 137 , a declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto 138 , o apelo ao legislador 139 , a declaração de
135
Essa técnica se dá quando o Tribunal julga procedente a ação direta de inconstitucionalidade e declara a norma
inconstitucional com a manipulação dos efeitos dessa declaração no tempo. Aqui, o Tribunal, tendo em vista razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse social, reduz o âmbito de eficácia retroativa do pronunciamento jurisdicional,
mediante a fixação de termo inicial para a produção de todos (limitação temporal total) ou alguns (limitação temporal parcial)
dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, entre a produção da norma jurídica e a publicação da decisão de
procedência, e reconhece a intangibilidade das situações de fato consumadas anteriormente ao marco temporal definido na
decisão.
136
Aqui, o Tribunal declara a inconstitucionalidade de determinada norma, julgando procedente a ação direta de
inconstitucionalidade, porém, não deixa que a norma que havia sido revogada pela lei declarada inconstitucional retome a sua
vigência. Ou seja, a decisão do Tribunal exclui a retomada de vigência da norma revogada em virtude da declaração de
inconstitucionalidade da norma revogadora.
137
Nesse caso, a ação direta de inconstitucionalidade é julgada improcedente e a norma é considerada constitucional, desde
que adotada determinada interpretação. Ou seja, o Tribunal elimina as possibilidades de interpretação incompatíveis com a
Constituição, de maneira que há a redução do conteúdo normativo, sem afetar a expressão literal da norma jurídica submetida
ao controle de constitucionalidade.
138
Neste caso, a ação direta de inconstitucionalidade é julgada parcialmente procedente, sendo o ato normativo declarado
119
140
inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade , a declaração de norma ainda
141
constitucional em trânsito para a inconstitucionalidade , etc.
Também dizemos que há atividade legislativa quando o Tribunal Constitucional – ao
verificar que a Constituição, em determinada matéria, não deixou margem de conformação ao
legislador, determinando a regulamentação em um certo sentido e o legislador editar norma
desrespeitando o comando constitucional (indo além ou aquém deste) – por meio de suas
sentenças adita, reduz ou substitui o conteúdo da norma. É necessário, para haver a atuação do
Tribunal, que a “vontade constitucional” seja clara e que o comando legal tenha desrespeitado
essa intenção constitucional.
Por fim, a função legislativa também se manifesta quando ao Tribunal Constitucional
é dada a atribuição de elaborar o seu regimento interno. Essa possibilidade decorre
diretamente do postulado da separação dos Poderes, pois ao Tribunal Constitucional será
garantido sua auto-organização e não ter que se submeter a processos determinados por outros
órgãos do Estado.
inconstitucional, se aplicável a determinada hipótese fática. Aqui, o tribunal irá eliminar as hipóteses de aplicação
incompatíveis com a Constituição, havendo redução do programa normativo, sem alterar a expressão literal da norma
jurídica.
139
Por meio dessa técnica, o Tribunal julga improcedente a ação direta de inconstitucionalidade e reconhece o estado de
constitucionalidade da norma, porém adverte para a necessidade de sua alteração, complementação ou substituição, antes que
se consolide o estado de inconstitucionalidade.
140
O tribunal Constitucional julga procedente a ação direta de inconstitucionalidade, declarando a norma inconstitucional,
sem, no entanto, declarar a sua nulidade, em razão de não existir outra norma apta a preencher a lacuna que a declaração de
nulidade deixaria no ordenamento. Daí o tribunal reconhece o estado de inconstitucionalidade da norma jurídica, todavia
excepciona a possibilidade de sua aplicação, para exortar os órgãos legislativos a produzirem nova regulamentação sobre a
matéria.
141
Nesse caso, o tribunal julga improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, declarando a constitucionalidade da
norma, porém, ressalva a possibilidade de vir a declarar, no futuro, a invalidade da lei, porque a afirmação da sua
constitucionalidade é fundamentada em circunstância de fato, que se pode modificar ao longo do tempo.
120
que a própria Constituição estabelece de forma vinculante os objetivos e fins almejados pelo
Estado. Pode-se resumir, portanto, que a função de governo estará associada ao cumprimento
dos comandos e objetivos constitucionais para promover os fins especificados pela
Constituição
O fato é que o Tribunal Constitucional ao se caracterizar como um órgão que visa
promover e proteger a supremacia da Constituição também acaba atuando para concretizar os
objetivos e fins estatais constitucionalmente enumerados. Assim, sendo a função de governo
promover os fins do Estado e cumprir seus objetivos, e a atuação do Tribunal Constitucional
também vinculada a atingir os fins do Estado, é consequência que este Tribunal também irá
exercer uma função de governo.
A função governativa da Justiça Constitucional não se desenvolve de forma autônoma,
já que isso seria uma atribuição dos outros órgãos do Estado, mas sempre conjuntamente com
outra de suas funções. André Ramos Tavares (2005, p.352-354) enumera que o Tribunal
exercerá a atividade governativa quando atua em sua função arbitral e promove um governo
participativo com a atuação de cada um dos órgãos no âmbito de sua respectiva competência;
quando preserva as minorias contra as maiorias evitando que estas governem sozinhas; ou
quando atua na função de controle preservando a estrutura do ordenamento
constitucionalmente estipulada. Aqui cabe observarmos que sendo a lei o instrumento de
governo por excelência, fica evidente que a Justiça Constitucional está exercendo função
governativa quando declara determinada lei inválida.
Hoje, a promoção dos direitos fundamentais pode ser encarada como um dos
principais objetivos constitucionalmente estabelecidos, razão pela qual será uma constante na
função governativa a promoção desses direitos. Deste modo, sendo atribuição da Justiça
Constitucional definir, promover e proteger os direitos fundamentais, ela estará exercendo
inegável função de governo. Nas palavras de André Ramos Tavares,
Finalmente, é importante asseverar que essa função governativa não pode ser exercida
de forma discricionária pelo Tribunal Constitucional, mas sim, dependerá de provocação dos
órgãos legitimados a fazê-lo; estará restrita aos programas governativos previstos diretamente
121
pela Constituição e deve, evidentemente, respeitar os âmbitos de atuação próprios dos outros
órgãos do Estado.
André Ramos Tavares atribui, ainda, à Justiça Constitucional uma função inovadora e
que, só recentemente, vem sendo exercida por alguns Tribunais Constitucionais. Essa função
“comunitarista” seria “aquela voltada para a defesa da superioridade do Direito Comunitário
(pró-comunidade) em relação ao Direito estatal (de cada Estado integrante de uma
comunidade maior)” (TAVARES, 2005, p.359)
Tendo em vista o fato de que todas as funções exercidas pela Justiça Constitucional
possuem um fundamento na necessidade de cumprir e garantir a Constituição, para ser
possível implementar a função “comunitarista” é necessário haver previsão constitucional
dessa atuação. Uma vez prevista, ao Tribunal Constitucional será franqueada a possibilidade
de verificar a conformidade de todos os atos normativos e não normativos do Estado às
diretivas superiores do Direito Comunitário. Assim, todo ato Legislativo nacional em
desconformidade com o Direito Comunitário deverá ser excluído do ordenamento.
Essa função se caracteriza, portanto, como um controle de constitucionalidade
indireto, já que “promove-se, em um primeiro momento, a proteção da Constituição,
especialmente de sua supremacia e, particularmente, da norma constitucional que determina o
cumprimento do Direito Comunitário” (TAVARES, 2005, p.262). Somente, em um segundo
momento, e como aplicação da vontade da Constituição, é que vai surgir a proteção do Direito
Comunitário em si.
É relevante notarmos, entretanto, que, principalmente em se tratando de direitos
fundamentais, se a regulamentação comunitária de determinado tema foi inferior à
regulamentação nacional, ou seja, o Direito Comunitário tenha a previsão de menos direitos
fundamentais que o ordenamento interno, prevalecerá a regulamentação interna. Não é
possível retroceder em termos de direitos fundamentais. A regulamentação comunitária
deverá ser considerada um parâmetro protetivo mínimo a ser seguido e obedecido por todos
os Estados-partes da comunidade, sendo deferido a eles estabelecerem uma regulamentação
ainda mais favorável aos seus nacionais.
122
Marina Gascón Abellán apresenta, ainda, dois modelos que descrevem a relação no
ordenamento jurídico entre a lei e a Constituição: o modelo constitucionalista (também
chamado judicialista) e o legalista (também chamado democrático).
O modelo constitucionalista ou judicialista é aquele no qual a Constituição possui um
projeto político muito bem articulado ou fechado e ao legislador corresponde a tarefa de
executar ou aplicar esse projeto. Nesse modelo, a Constituição já estabelece o que deve ser
feito, dá a orientação da atuação política em várias matérias. O nome constitucionalista é
atribuído ao modelo, pois é a própria Constituição que predetermina a solução de todos os
conflitos, de modo que a lei só pode servir para concretizar as abstratas determinações
constitucionais. Também se denomina esse modelo de judicialista, pois serão os juízes que
analisarão quais normas devem figurar no ordenamento jurídico em cada momento,
principalmente, o Juiz Constitucional quando verifica a compatibilidade da lei com a
Constituição. Essa atribuição, porém, é compartilhada com todos os juízes que poderão,
inclusive, aplicar diretamente a Constituição em detrimento da lei, caso seja necessário.
(ABELLÁN, 2003, p.170)
Por outro lado, no modelo democrático ou legalista, a Constituição se limita a
delimitar as regras de competência política. A Constituição só determina “quem manda”,
“como manda” e “até onde pode mandar”, porém “o que se deve mandar” é algo reservado ao
legislador. Esse modelo é denominado democrático, pois se baseia na ideia de que a
Constituição não predetermina a solução de todos os conflitos, mas apenas assinala as regras
básicas e o marco aberto de valores no qual o legislador pode se mover. Dentro desses limites
de conformação constitucional, caberá aos juízos políticos decidirem. Este modelo também é
126
chamado legalista, pois é o poder político quem se encarrega de, a cada momento, fazer
realidade o que na Constituição só aparece como possibilidade, ou seja, é o legislador
democrático quem determina as normas que devem presidir o sistema jurídico histórico-
concreto, de maneira que o juiz ordinário está sujeito ao princípio da legalidade e o juiz
constitucional só deve declarar inconstitucional a lei quando ultrapassar o marco de
possibilidades políticas permitidas pela Constituição142. (ABELLÁN, 2003, p.171)
Assim, um Estado que adotar um sistema constitucional democrático e comprometido
com a dignidade democrática da lei deverá sempre optar pelo modelo democrático ou
legalista. O fato é que a lei, como uma expressão de direitos políticos, possui uma autônoma
razão de ser, e disso deriva a necessidade de uma separação rigorosa entre as questões
políticas e constitucionais, quando se pretende estabelecer os limites à atuação da Justiça
Constitucional.
Concordamos com Marina Gascón Abellán (2003, p.171) quando afirma que a função
do juiz constitucional não é substituir o parlamento, que goza de uma inegável liberdade
política. Ao juiz não incumbe fixar a melhor lei sobre uma perspectiva constitucional, mas
apenas eliminar aquelas que demonstrem ser intoleráveis constitucionalmente. Ao analisar a
constitucionalidade da lei, não pode o juiz valorar os motivos políticos que levaram o
legislador a adotar determinada posição e nem sugerir ou impor opções políticas. O Tribunal
não deve interferir na direção política do país.
A exigência de que a Justiça Constitucional respeite a separação entre juízo de
constitucionalidade e decisão política, por um lado, e juízo de constitucionalidade e de
legalidade, por outro, exige do Tribunal Constitucional um esforço autoinibitório. Afinal, se
incumbe ao Tribunal, no exercício da sua função arbitral, fixar as competências e os limites
da atuação de cada um dos órgãos do Estado, será ele mesmo quem irá fixar, com base na
Constituição, os limites de sua atuação, segundo um juízo de constitucionalidade.
Importante notarmos que a função do Tribunal Constitucional não se identifica mais
apenas com o exercício monopolístico do controle de constitucionalidade. Porém, não só o
controle de constitucionalidade, mas também todas as funções atribuídas à Justiça
Constitucional (interpretativa, estruturante, arbitral, legislativa, governativa e
142
Esse modelo legalista se assemelha mais ao brasileiro, na medida em que o Tribunal constitucional não está autorizado a
emitir juízos de valor acerca do conteúdo das leis emergentes do legislativo, mas tão somente podem fazer um controle do
cumprimento das formalidades necessárias, bem como verificar se a lei não ofende o que está contido no texto constitucional,
porém, as opções políticas ficam inteiramente ao cargo do legislador democrático. No entanto, ainda assim, a Constituição
americana se enquadra mais perfeitamente a esse modelo, em razão de seu conteúdo sintético que se limita a traçar as
competências de cada um dos poderes estatais e a fixar apenas alguns direitos fundamentais. Por outro lado, a brasileira
avança um pouco na competência do legislador ordinário na medida em que traça diversos programas que devem ser
seguidos pela legislação infraconstitucional.
127
“comunitarista”) podem ser exercidas nos limites necessários de separação entre o âmbito
político e o juízo de constitucionalidade. E só se forem exercidas nestes limites é que serão
legítimas.
Mesmo que estejamos nos referindo a função governativa ou legislativa, não se está
invadindo o âmbito pertencente aos juízos de decisão política. Conforme especificamos, ainda
que a função governativa – em razão do nome a ela atribuído – pareça sugerir que o Tribunal
Constitucional irá exercer funções de governo do Estado, significa apenas que a Justiça
Constitucional também tem um papel determinante para promover e realizar os fins do
Estado. É certo que esses objetivos da sociedade estarão encartados nas normas
constitucionais, muitas vezes, por meio das normas programáticas. Essa função de governo,
portanto, não é discricionária ou autônoma, visto que a Constituição vai estabelecer de forma
vinculante os objetivos e fins a serem atingidos pelo Estado. Podemos resumir, portanto, que
a função de governo estará associada ao cumprimento dos comandos e objetivos
constitucionais para promover os fins especificados pela Constituição e será sempre exercida
em conjunto com outras do Tribunal.
Lembremos que, atualmente, a promoção dos direitos fundamentais pode ser encarada
como um dos principais objetivos constitucionais, razão pela qual será uma constante na
função governativa a promoção de tais direitos. Deste modo, ao se apresentar como parte da
função da Justiça constitucional definir, promover e proteger os direitos fundamentais, este
órgão estará exercendo inegável função de governo de forma legítima, ao promover tais
direitos restringindo-se aos programas governativos previstos pela Constituição e respeitando
os âmbitos de atuação dos outros órgãos do Estado.
No caso da função legislativa, desde que desempenhada dentro de certos limites,
também será possível que o Tribunal Constitucional se abstenha de invadir o âmbito do juízo
de decisão política. As decisões legislativas do Tribunal Constitucional devem decorrer
expressamente da divisão constitucional de competências e dependem de norma
constitucional prevendo o exercício dessa função, só assim a função legislativa da Justiça
Constitucional estará dentro de um âmbito de legitimidade.
É no controle das omissões legislativas inconstitucionais que está o ponto mais tênue
da linha divisória entre o juízo de constitucionalidade e de decisão política, pois a única forma
do Tribunal resolver a omissão inconstitucional será colmatando provisoriamente as lacunas
no ordenamento por meio de uma inovação no mundo jurídico. Evidentemente que a atuação
do Tribunal estará adstrita às situações em que a ausência ou a insuficiência de
regulamentação legal acabe por desrespeitar um comando constitucional. Ou seja, a
128
James Bradley Thayer foi um forte crítico à opção da Suprema Corte norte-americana
pela realização do controle de constitucionalidade. Em 1893, o autor escreveu um trabalho,
intitulado “Origem e finalidade da doutrina americana do direito constitucional”,
influenciador de grandes debates até os dias atuais.
Dentre os argumentos apresentados pelo autor contra a realização do controle de
constitucionalidade pelo judiciário está o da deferência143 ou teoria da deference, segundo a
143
Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi (2013, p.336-337) apontam os argumentos aduzidos por Thayer em desfavor do
controle de constitucionalidade feito pelo Judiciário: “Argumento literal: as Constituições estaduais nos EUA não atribuem
aos juízes o poder de controlar a constitucionalidade das leis estaduais. Esse poder é deduzido de maneira implícita.
Argumento histórico: tanto membros da Convenção que criou a Constituição Federal como muitos juízes e doutrinadores dos
EUA negaram que o Judiciário tivesse o poder de anular leis. Crítica ao argumento sistemático de Marshall: a Suprema
Corte dos EUA deduz esse poder do caráter escrito da Constituição Federal. Mas isso não convence, porque muitos países
europeus, como a França e a Suíça, possuem Constituição escrita, sem que os juízes se considerem competentes para anular
normas do Legislativo. Nesses países vale a regra de que as normas constitucionais não podem ser implementadas pelos
tribunais contra a vontade dos legisladores. Argumento da limitada competência do Judiciário: os juízes só podem fiscalizar
a constitucionalidade para resolver um caso concreto e não para anular leis. Esse poder só cabe ao Legislativo, sob pena de
violar a separação de poderes. Argumento da indeterminação constitucional e da abertura interpretativa: a interpretação da
Constituição não pode ser literal e acadêmica. Deve ser política. Como as normas constitucionais são vagas, há várias
possibilidades de interpretação razoável. Não é tarefa do judiciário estabelecer o ‘verdadeiro significado’ da Constituição.
Somente o Legislativo, eleito pelo povo, pode escolher a interpretação mais conveniente, conforme o interesse da Nação,
editando leis que considerar ‘prudentes’ ou ‘razoáveis’. Argumento da deferência: o controle judicial da
inconstitucionalidade é imprescindível. Caso contrário, não haveria garantia de que o Legislador efetivamente se submeta à
Constituição. Mas essa competência do Judiciário conhece fortes limitações. O Judiciário só pode declarar a
inconstitucionalidade se for ‘manifesta’, situada ‘além de qualquer razoável dúvida’, ‘evidente e clara’, ‘muito clara’,
‘inequívoca’, ‘inquestionável’. A doutrina da inconstitucionalidade manifesta é conhecida nos EUA como ‘regra do caso
duvidoso’ (doubtful case rule) ou ‘regra do evidente erro’ (clear mistake rule). Exige que o Judiciário mostre ‘deferência’ ou
‘respeito’ ao Legislativo. Só pode anular uma lei se for evidente que o legislador cometeu um erro ao criar a lei
inconstitucional. Nessa perspectiva, cabe ao judiciário fixar o ‘limite externo’ que a Constituição impõe ao Legislativo. Se
avançassem mais, os magistrados excederiam seus poderes, legislando negativamente, mediante a anulação de leis. Crítica ao
paternalismo judicial: Thayer considera que nos ordenamentos jurídicos que conhecem o controle judicial de
129
constitucionalidade os legisladores não se preocupam muito com questões constitucionais, pensando que se a lei for
inconstitucional o Judiciário fará a devida intervenção. Se o Judiciário limitasse suas intervenções nesse campo, os
legisladores atuariam com maior responsabilidade, preocupando-se mais com ‘questões de justiça e de direitos’, como ocorre
na Inglaterra e em outros países sem o controle judicial da constitucionalidade.”
130
E, como tudo virou princípio, muitos juízes deixam de aplicar as normas jurídicas,
em nome de ilações e mais ilações, transformando conjecturas em certezas,
probabilidades em axiomas, deturpando a grande importância que os princípios,
verdadeiramente, possuem. (BULOS, 2011, p.86)
devem se conformar aos princípios. Se não houver respeito aos princípios constitucionais, o
Poder Judiciário poderá intervir e deixar de aplicar a regra por inconstitucionalidade.
Portanto, não é o juiz constitucional quem “decide” de maneira discricionária se
haverá a aplicação de uma regra ou de um princípio. Não sendo inconstitucional, a regra deve
ser aplicada. Não pode o julgador substituir a aplicação de uma regra por ilações que,
supostamente, seriam de conteúdo principiológico, mas que não passam de argumentos gerais
para o julgador proferir a decisão que bem entender. Ademais, não é o juiz quem “decide” os
princípios que existem no ordenamento, pois tal postura solipsista geraria um inchaço dessa
categoria normativa e o seu uso indiscriminado. Os princípios já estão previstos pela
Constituição.
Poder Judiciário. Isso não significa a primazia desse órgão ou protagonismo, mas apenas um
redimensionamento de suas funções, justamente porque as Constituições contemporâneas
preveem mecanismos a serem implementados pelo Poder Judiciário para a concretização de
alguns direitos.
Porém, o Poder Judiciário não pode ser visto como “solução mágica” para os
problemas decorrentes dos fracassos ou da insuficiência das políticas sociais, sob pena de
correr o risco de criar cidadãos “de segunda classe” que deixam de reivindicar seus direitos
para dependerem do paternalismo judicial. Ademais, não é possível compactuar com a criação
de uma “república de juízes” (STRECK, 2011, p.68). Nesse sentido, importantes as lições de
Lenio Luiz Streck
Anna Pintore observa que até mesmo a promoção, criação e proteção dos direitos
fundamentais deve ter limites. Para ela, os direitos fundamentais não podem ser convertidos
em um instrumento insaciável “devorador de la democracia, del espacio político y, a fin de
cuentas, de la propia autonomía moral de la cual los hacemos derivar”144 (PINTORE, 2009,
p.243). A defesa dos direitos fundamentais, para a autora, não pode levar ao sacrifício dos
próprios traços democráticos dos ordenamentos constitucionais.
144
Tradução livre: “devoradora da democracia, do espaço político e, finalmente, da própria autonomia moral da qual os
fazemos derivar.”
135
Assim, por mais relevantes que os direitos fundamentais, sua proteção e promoção
sejam para a sociedade, o Tribunal Constitucional deveria evitar a cultura dos “direitos
humanos insaciáveis”. O ordenamento constitucional prevê regramentos tão relevantes quanto
a proteção dos direitos fundamentais e que devem ser respeitados e concretizados para
possibilitar a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Anna Pintore (2009, p.248-251) chama a atenção para um problema nas democracias
constitucionais atuais que é conciliar o princípio do Estado de Direito (conteúdo substancial)
com o princípio democrático (conteúdo formal)145. Para a autora, a democracia e os direitos
surgem como dois critérios de legitimação do poder que se contrapõem. É errado imaginar
que ambos são complementares e harmônicos e que é possível promover os dois sem o
sacrifício de nenhum. O fato é que a existência de um direito não se confunde com a
existência da norma que o instituiu, e “la identificación definitoria entre derechos
fundamentales y normas contribuye a generar la ilusión de que estos últimos poseen un
carácter, por así decir, autoejecutivo y de que no precisan de administración (y, por tanto, de
administración democrática)”146. (PINTORE, 2009, p. 254)
Na verdade, um direito, desde que positivado, não gera dúvidas, porém, ainda que
exista uma norma jurídica prevendo-o, o seu conteúdo poderá apresentar várias opções
políticas dentro do marco de direitos compatíveis. Para a autora, o problema se trata de
145
Anna Pintore defende a inadequação da tentativa de fixar um conceito substancial de democracia, especialmente se há
uma tentativa de identificá-lo com Estado de Direito. Para a autora o conceito de democracia deve ser extraído de uma
perspectiva procedimental, questionando-se acerca de “quem” decide e “como” decide. O conteúdo dessas decisões (“o que”
se decide) não deve integrar o conceito de democracia. Para a autora “una cosa son los contenidos, los ámbitos, sobre los que
puede versar la decisión democrática y otra, los presupuestos (también éstos de contenido) que hacen de dicho método
decisional un método, justamente por ello, democrático. O, por decirlo, de otro modo, una cosa son los contenidos del juego
y otra, los presupuestos indispensables para que el juego que se quiere jugar sea justamente ése y no otro. Mi tesis es que, en
la definición, si se quiere ser fiel a la semántica de ‘democracia’ (de los modernos), pueden incluirse los presupuestos, pero
no debe incluirse el contenido.” (PINTORE, 2009, p.248-249). Tradução livre: “uma coisa são os conteúdos, as áreas, sobre
as quais pode versar a decisão democrática e outra, os pressupostos (também estes de conteúdo) que fazem este método de
decisão, justamente por isso, democrático. Ou, de outra forma, uma coisa são os conteúdos do jogo e outras, os pressupostos
indispensáveis para que o jogo que se quer jogar seja justamente esse e não outro. Minha tese é que, na definição, se se quer
ser fiel à semântica de ‘democracia’ (dos modernos), podem ser incluídos os pressupostos, porém não se deve incluir os
conteúdos.”
146
Tradução livre: “a identificação definidora entre os direitos fundamentais e as normas contribui para a ilusão de que estas
últimas têm um caráter, por assim dizer, autoexecutáveis e não necessitam de administração (e, portanto, a gestão
democrática).”
136
147
Tradução livre: “Estabelecer a quem se deve confiar este poder de administração dentro do marco constitucional, e em que
formas: se ao legislador democrático ou ao intérprete, se a uma maioria política, certamente ‘só’ maioria, provavelmente
inepta e porventura arrogante, porém, pelo menos, eleita e politicamente responsável, ou, ao contrário, a uma minoria, que
embora seja filosoficamente ilustrada, não é eleita e nem politicamente responsável. A alternativa, portanto, não está entre
um poder de decisão e uma autoexecução, mas sim, entre um método de administração democrático e outro não
democrático.”
148
Tradução livre: “Acreditamos nos direitos, pois acreditamos na autonomia dos indivíduos, e não o contrário”.
137
Sendo Justiça Constitucional o local apropriado para o exercício das práticas contra
majoritárias, é preciso adotar um conceito de democracia que vá além da democracia
deliberativa e que agregue a necessária concretização dos direitos fundamentais e a imposição
de limites às maiorias eventuais. Encontramos, deste modo, o conceito de democracia
constitucional compatível com a atuação do Tribunal Constitucional que, mesmo quando
desfavorecer opções políticas da maioria, estará dentro dos limites de legitimidade se tiver por
objetivo promover direitos fundamentais das minorias prejudicadas.
149
O assunto é desenvolvido por Ronald Dworkin, em El Imperio de la Justicia (1992), p.44 e seguintes.
150
O assunto é desenvolvido por HABERMAS em Facticidad y Validez: sobre el Derecho y el Estado Democrático de
Derecho en Términos de Teoría del Discurso, 2005, p.311 e seguintes.
141
Para Habermas a decisão judicial não pode ser construída com base na premissa da
existência de uma única decisão correta, mas, deve ter por fundamento a possibilidade de
participação de todos os interessados, de maneira igualitária, na construção da decisão. A
função do magistrado, portanto, é promover a argumentação e a discussão (ação
comunicativa) de todos os interessados no processo. Assim, a função primordial da Justiça
Constitucional seria garantir o pleno desenvolvimento dos processos democráticos, pois
O Tribunal Constitucional não deve ser um guardião de uma suposta ordem supra
positiva de valores substanciais. Deve, sim, zelar pela garantia de que a cidadania
disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza dos
problemas e a forma de sua solução. (STRECK, 2011, p.61)
quando se conduz pela ideia de concretizar valores materiais constitucionais e que essa
invasão pelos tribunais do âmbito político desestimula uma atuação dos cidadãos voltada para
fins cívicos e faz com que o juiz seja considerado a fonte de esperança para a solução de todos
os problemas.
André Ramos Tavares (2005, p.533-534) expõe a tese procedimentalista defendida por
John Hart Ely para quem a atuação do Tribunal Constitucional estaria legitimada, mesmo que
atuasse contra as maiorias eventuais, quando conferisse proteção ao direito de participação
política e aos direitos e liberdades instrumentais a esse direito. Por outro lado, no que tange
aos valores fundamentais, a Justiça Constitucional teria de respeitar a vontade da maioria
representada pelas opções concretizadas pelo Legislativo, desde que este órgão atuasse dentro
do círculo democrático.
A adoção de uma postura procedimentalista é bastante adequada a um Estado que se
pretende democrático e que tem por base a autodeterminação dos cidadãos, pois evita a
adoção de uma postura paternalista do Estado (ou da Justiça Constitucional), colocando nas
mãos de cada um dos cidadãos a possibilidade de decidir e conduzir plenamente as suas vidas.
Tal posição privilegia a qualidade de sujeito de direito (e não de objeto) dos indivíduos, o que
é bastante saudável para o pleno desenvolvimento político e democrático do país.
A adoção pelo Tribunal Constitucional da teoria substancialista pode vir a infringir a
necessária separação entre juízo de constitucionalidade e juízo de decisão política, quando,
por meio da interpretação o julgador impuser a sua própria moralidade política. Considerar
legítima uma atuação do Tribunal Constitucional no sentido de anular lei do Poder Legislativo
produzida em conformidade com a Constituição, mas que poderia apresentar opções políticas
“melhores” ou “piores”, por estarem ou não de acordo com os valores morais, supostamente,
acolhidos pela sociedade, é admitir que a Justiça Constitucional está autorizada a fazer juízos
políticos e a substituir a interpretação constitucional do legislador pela sua interpretação
constitucional.
Por outro lado, não podemos entender que, mesmo adotando uma postura
substancialista, seja autorizada a prática de ativismos ou protagonismos judiciais a pretexto de
concretizar direitos. Pois, a verdadeira concretização só irá acontecer de fato na medida em
que estiver fundada na Constituição e não em critérios pessoais de conveniência política ou
moral.
A dimensão hermenêutica do Direito, e especialmente do Direito Constitucional,
sofreu um redimensionamento a partir do Constitucionalismo Contemporâneo com o
surgimento de textos constitucionais que positivam os direitos fundamentais e sociais. Para
143
151
Lenio Luiz Streck, com base nos ensinamentos de Elías Díaz, afirma que o Estado Democrático de Direito representa uma
verdadeira superação das noções anteriores de Estado Liberal e Estado Social, representando um novo modelo que pretende
uma profunda transformação no modo de produção capitalista com a sua substituição progressiva por uma “organização
social de características flexivamente sociais, para dar passagem, por vias pacíficas e de liberdade formal e real, a uma
sociedade onde se possam implantar superiores níveis reais de igualdades e liberdades” (STRECK, 2011, p.59). Assim, o
Estado Democrático de Direito se prestaria a uma transformação da estrutura econômica e social a partir de uma práxis
política e de uma atuação dos poderes públicos voltada a garantir e promover os direitos e liberdades fundamentais.
152
Lembremos que a função governativa jamais será exercida de forma autônoma e não tem relação com efetivamente o ato
de governar, mas apenas com o direcionamento da atuação da Justiça Constitucional para a consecução dos fins do Estado.
144
Konrad Hesse (1983, p. 50), por sua vez, aponta como um dos princípios da
interpretação constitucional a necessidade de observância ao critério da correção funcional, ou
seja, se a constituição regula, de certa forma, a competência dos agentes e das funções
estatais, o órgão de interpretação deve manter-se no marco das funções que lhe são atribuídas
e não deve modificá-las por meio da interpretação. Esse princípio é fundamental nas relações
entre o Tribunal Constitucional e o legislador, pois ao Tribunal só compete, em relação ao
legislador, uma função de controle, sendo vedada qualquer interpretação que restrinja a
liberdade de conformação do legislador além dos limites estabelecidos na Constituição ou,
inclusive, uma conformação feita pelo próprio Tribunal. Assim, os órgãos constitucionais não
devem, por meio da interpretação, modificar a repartição, coordenação e equilíbrio de funções
e de tarefas estabelecidas pela Constituição.
146
Desta forma, não há primazia de um órgão sobre os outros. O que deve haver é a
atuação de cada um dentro dos limites de suas competências constitucionais sempre voltada
para concretizar a Constituição. Na expressão de André Ramos Tavares (2012b, p.67), deve
haver uma “concorrência funcional na concretização da Constituição”, pois
153
Frase proferida por Jutta Limbach na abertura de sua conferência no I Congresso Direitos Humanos - Brasil e
Alemanha Concordâncias e Diferenças, no Centro Universitário UNIFIEO, de 20 a 22 de outubro de 2011, cujos anais não
estão disponíveis ainda.
147
Isso significa que a teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da
teoria democrática. Portanto, é impensável uma interpretação da constituição sem o
cidadão ativo e sem as competências públicas mencionadas. Todo aquele que vive
no contexto regulado por uma norma e que vive com esse contexto é, indireta ou, até
148
Assim, o Tribunal Constitucional deve atuar para cumprir e proteger o seu papel de
defensor da Constituição e é saudável que os cidadãos tenham confiança e credibilidade no
órgão que exerce essa função. Porém, essa confiança e credibilidade não podem ser tamanhas
que retirem a necessária interação da sociedade com o Legislativo. Nesse sentido, a
observação de Peter Häberle
Para Häberle (1997, p. 30), a interpretação da Constituição é uma atividade que diz
respeito a todos, mesmo intérpretes indiretos ou em longo prazo. Trata-se de um processo
aberto que conhece possibilidades e alternativas. A vinculação converte-se em liberdade na
medida em que reconhece uma nova orientação hermenêutica que contraria a lógica da
subsunção. Há a necessidade de integrar a realidade no processo de interpretação, que gera,
como consequência, a ampliação do círculo do intérprete.
As Cortes Constitucionais, portanto, possuem um campo bastante extenso no qual
podem atuar para implementar a defesa das normas constitucionais. No entanto, essa
possibilidade de adequar a interpretação constitucional à realidade social não pode ir além dos
limites do texto constitucional e deve respeitar a atuação e o relevante papel desempenhado
pelo Legislativo em um Estado Constitucional e Democrático de Direito. Sobre o assunto,
Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins concluem que
149
Nesse sentido, acredita-se em um Estado, no qual todos os órgãos devem atuar dentro
dos limites de suas competências constitucionais, respeitando a importância e a relevância dos
demais órgãos, havendo uma “concorrência funcional na concretização da Constituição”
(TAVARES, 2012b, p.67).
Se uma atuação assim gerar uma eventual contraposição entre o entendimento de dois
órgãos, é preciso reconhecer que a norma de fechamento constitucional vigente prevê,
naquele dado momento, que a interpretação do Tribunal Constitucional terá a função de
validar ou invalidar a compreensão dos outros órgãos quanto aos assuntos de natureza
constitucional, desde que o Tribunal não invada o âmbito de atuação político exclusivo dos
demais Poderes. Essa regra de fechamento do sistema é o que se poderia denominar de última
palavra provisória.
Todavia, o assunto não está decidido definitivamente no tempo, dado que nada impede
seu amadurecimento, por meio de novos debates, principalmente com a participação da
sociedade, podendo o Parlamento trazê-lo novamente para a discussão ao editar uma nova
norma. Corroborando tal raciocínio, Conrado Hubner Mendes afirma:
154
Decisões intermediárias, também chamadas de decisões de calibragem, são aquelas proferidas pela Justiça Constitucional
que estão em uma zona intermediária entre decisões que declaram de forma integral a inconstitucionalidade ou a
constitucionalidade da norma. Trata-se de uma técnica decisória criada pela Corte Constitucional italiana utilizada para
calibrar os efeitos de suas decisões no controle de constitucionalidade, de modo que as mesmas fiquem mais adequadas a
solucionar o caso específico. São normalmente utilizadas quando o Tribunal se depara com situações em que a declaração de
constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma não privilegia a manutenção da segurança jurídica, da isonomia ou da
proporcionalidade necessárias ao sistema jurídico. São decisões que acabam implicando, em alguma medida, na interferência
sobre o conteúdo normativo dos dispositivos legais analisados e impõem variações interpretativas das normas, em detrimento
de outras que também se poderiam extrair. O Tribunal Constitucional profere tais decisões, em casos de inconstitucionalidade
por ação, quando atua relativizando a eficácia retroativa das decisões por inconstitucionalidade ou, quando declara a
152
Porém, ainda que uma atuação substantiva da Justiça Constitucional seja necessária,
não é possível aceitar discricionariedades e decisionismos. Por isso, as decisões
intermediárias devem ser utilizadas com cautela, dentro dos limites do exercício do juízo de
constitucionalidade e, nesse largo espaço que o juízo de constitucionalidade comporta, deve
frutificar a argumentação racional que serve de base a uma doutrina da interpretação no
Constitucionalismo Contemporâneo. Reiteramos que não podemos confundir a necessária
intervenção da Justiça Constitucional com a possibilidade de arbitrariedades e decisionismos.
Sempre o limite dessa intervenção estará no texto da Constituição.
constitucionalidade da norma e fixa a interpretação constitucionalmente adequada; ou, ainda, ao restringir os efeitos
temporais da decisão de inconstitucionalidade, ao afastar o efeito repristinatório; ao utilizar a técnica da interpretação
conforme a Constituição, da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, do apelo ao legislador, da
declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, da declaração de norma ainda constitucional em trânsito para
a inconstitucionalidade.
153
155
no se interprete en el sentido (o sentidos) que considera inadecuados.
(ABELLÁN, 2003, p.175)
só permite a escolha entre dois ou mais sentidos possíveis da lei mas nunca uma
revisão do seu conteúdo. A interpretação conforme à constituição tem, assim, seus
limites na “letra e na clara vontade do legislador”, devendo, “respeitar a economia
da lei” e não podendo traduzir-se na “reconstrução” de uma nova norma que não
esteja devidamente explícita no texto. (...) Pelo contrário, a alteração do conteúdo
da lei através da interpretação pode levar a uma usurpação de funções,
transformando os juízes em legisladores activos. Se a interpretação conforme a
constituição quiser continuar a ser interpretação, ela não pode ir além dos sentidos
possíveis resultantes do texto e do fim da lei. Por outras palavras: a interpretação
conforme a constituição deve respeitar o texto da norma interpretanda e os fins
perseguidos através do acto normativo sujeito a controlo. (CANOTILHO, 2003,
p.1311)
Marina Gascón Abellán (2003, p. 175-176) afirma que, mediante a aplicação dessa
técnica, o Tribunal Constitucional mais se aproxima de um tribunal supremo, em razão do
risco de que, sob o pretexto de dar uma interpretação conforme, acabe dando a “melhor”
interpretação da lei, em detrimento de outras igualmente constitucionais. Assim, a autora
afirma que os limites que separam a interpretação conforme da “melhor” interpretação são
imprecisos e, por isso, essa técnica deve ser utilizada sempre junto ao exercício do self-
restraint. Com a escusa da interpretação conforme, o Tribunal pode acabar impondo uma
155
Tradução livre: “rechaça uma demanda de inconstitucionalidade ou, o que é o mesmo, declaram a constitucionalidade do
preceito impugnado na medida em que se interprete no sentido que o Tribunal constitucional considera como adequado à
constituição ou não se interprete no sentido (ou sentidos) que considera inadequados.”
154
outra que claramente não se deduz de seu texto, ultrapassando os limites da interpretação
conforme (quando o Tribunal profere interpretações plausíveis da lei) para realizar uma
alteração judicial do ordenamento invadindo o âmbito que a Constituição reserva ao
legislador. Quando o Tribunal avança este limite, surgem as sentenças manipulativas.
156
Nesse tipo de sentença manipulativa se inclui a declaração de inconstitucionalidade parcial com redução de texto.
157
Nesse tipo de sentença manipulativa se inclui a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto. Neste
caso, a ação direta de inconstitucionalidade é julgada parcialmente procedente, sendo o ato normativo declarado
inconstitucional, se aplicável a determinada hipótese fática. Aqui, o tribunal irá eliminar as hipóteses de aplicação
incompatíveis com a Constituição, reduzindo o programa normativo, sem alterar a expressão literal da norma jurídica
155
Já as aditivas são aquelas nas quais, pela interpretação, ocorre uma extensão das
hipóteses de aplicação da norma para torna-la compatível com a Constituição. As sentenças
aditivas supõem o reconhecimento da inconstitucionalidade por omissão, pois parte do
pressuposto de que o dispositivo legal deixou de abordar algo imposto pela Constituição. Para
solucionar essa omissão, a sentença acrescenta, por via interpretativa, a hipótese que está
faltando. Assim, a sentença aditiva é aquela que estende a aplicação de um preceito legislativo
a uma hipótese não prevista até então, sendo que, sem a referida extensão o preceito
continuaria inconstitucional.
Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi (2013, p.274-275), com base na doutrina italiana,
subdividem as decisões manipulativas aditivas em duas categorias: as de garantia ou de
prestação “tomadas quando a Corte Constitucional acrescenta à norma um dispositivo que diz
respeito ao exercício de um direito fundamental, de cunho negativo (direito de liberdade) ou
social” e as de princípio ou dispositivo genérico proferidas quando a inconstitucionalidade
“pode ser sanada pela criação de vários dispositivos, não cabendo à Corte escolher o mais
adequado. Nesse caso, pronuncia-se a inconstitucionalidade por omissão e se declara a
necessidade de supri-la, deixando a escolha a critério do juiz da causa.”
A justificativa para adotar sentenças manipulativas aditivas é promover o princípio da
igualdade. Marina Gascón Abellán (2003, p.178), porém, observa que a igualdade também
poderia ser privilegiada se o juiz constitucional simplesmente anulasse o preceito. No entanto,
esclarece que, na medida em que opta não por anulá-lo integralmente, mas sim estendê-lo a
determinadas hipóteses não previstas, é porque entende que a ausência total do preceito traz
prejuízos imediatos a todos os beneficiários da norma. Assim, evidencia-se a atuação do
Tribunal na qualidade de legislador positivo, visto que cria uma nova lei para os aplicadores
do Direito que não foi desejada pelo legislador. Para a autora, essa atuação não é aceitável,
posto que subtrai do legislador competências que lhe são próprias e traz uma situação de
insegurança jurídica com consequências não previstas e nem almejadas por essa interpretação
constitucional.
A autora preceitua, porém, que as sentenças manipulativas, por serem mecanismos que
ultrapassam os limites da Justiça Constitucional, só são admissíveis quando produzem normas
constitucionalmente exigidas, ou seja, quando a norma que deriva da sentença obedece à
necessidade de proteger algum bem ou valor constitucional e ainda não exista outra forma de
fazê-lo que não a estabelecida na sentença. Nestes casos, é indiferente que a integração
constitucional seja efetivada pelo juiz constitucional ou pelo legislador. No entanto, não
estando preenchidos os requisitos acima, o Tribunal deveria limitar-se a declarar a
156
Uma das funções do Tribunal Constitucional é a arbitral, segundo a qual a este órgão
competirá dirimir os conflitos de atribuição entre os demais órgãos do Estado, e fixar o limite
das competências constitucionais elencadas a cada um. Em decorrência dessa função arbitral,
caberá à Justiça Constitucional fixar as dimensões e os limites de sua atuação o que, muitas
vezes, acontece sem parâmetros objetivos.
A atuação da Justiça Constitucional quando desenvolve suas funções típicas158 se dá
por meio de processos 159 regidos por normas inseridas em uma categoria diferenciada dos
158
Adotamos neste trabalho o entendimento de que são funções típicas da Justiça Constitucional as funções interpretativa,
estruturante, arbitral, legislativa, governativa e “comunitarista”.
159
O Direito Processual, de forma geral, apenas passou a ser considerado disciplina autônoma em meados do século XIX, por
obra, principalmente, de Oskar Von Bülow. A afirmação do estudo do processo civil e penal se deu já nas primeiras décadas
do século XX. Nessa época, não foi possível o desenvolvimento de uma teoria do processo constitucional, dado que ainda
não havia o reconhecimento da supremacia e normatividade da Constituição. Somente após o reconhecimento do valor
jurídico da Constituição, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, houve um maior desenvolvimento do estudo dos
processos pelos quais se daria a defesa e implementação das disposições constitucionais. Os processualistas da época, porém,
não se dedicaram ao estudo das formas de implementação e concretização constitucional pela via judicial, o que acabou
sendo levado a efeito pelos próprios constitucionalistas e propiciou a unificação do estudo da parte substancial da
Constituição e da parte processual (que trata da defesa e implementação da Constituição), passando as duas a serem tratadas
exclusivamente como parte do Direito Constitucional. Mesmo ainda no século XX, quando os âmbitos substancial e
processual da Constituição eram estudados como parte do mesmo objeto, já foi possível perceber a necessidade de se fazer
uso de processos específicos destinados à defesa dos valores constitucionais. A partir dessa percepção, que teve como
precursor Niceto Alcalá-Zamora y Castillo, começou-se a utilizar a denominação “processo constitucional” para esse tipo de
atuação voltada à implementação direta da materialidade constitucional. O reconhecimento da existência de um processo
constitucional decorreu da conclusão de que se estaria tratando de um método de atuação do Estado, consubstanciado no
157
processos civil e penal, razão pela qual considerou-se adequado denominar àquele por meio
do qual atua a jurisdição constitucional de processo objetivo. Chegou-se ao entendimento de
que para defender valores constitucionais seria necessário exercer uma jurisdição ordinária e
contenciosa e adotar, pela Justiça Constitucional, certos procedimentos específicos que
caracterizariam este processo objetivo.
Esse processo constitucional ou objetivo tem por fim a realização direta (e não
incidental ou secundária) da Constituição e se dá por meio da Justiça Constitucional, quando
atua no exercício de todas as suas funções típicas. Assim, não é qualquer tipo de realização
constitucional operada indiretamente por qualquer magistrado no exercício da função
jurisdicional que se constituirá em objeto do processo constitucional.
Importante observarmos que, mesmo que as características desse processo objetivo
variem, a depender da função exercida pelo Tribunal Constitucional, ele sempre será diverso
do processo comum, em razão da peculiaridade da matéria, das partes envolvidas e do
interesse relativo às disputas intersubjetivas e de índole pessoal que caracterizam a matéria
objeto do processo comum e que não estão presentes no processo objetivo.
Outro fator de distanciamento entre os processos objetivo e comum encontra-se na
finalidade que se busca atingir com o primeiro, qual seja “a certificação, manutenção e
ratificação da supremacia constitucional contra todos os comportamentos normativos ou não
que dela se desviem” (TAVARES, 2005, p.393). Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi (2013,
p.10) afirmam “Temos um verdadeiro processo constitucional quando a atuação processual
objetiva diretamente preservar a supremacia da Constituição”.
Podemos afirmar que o processo é objetivo, pois não se pretende com ele privilegiar
esse ou aquele interesse, mas preservar a ordem constitucional. Há uma preocupação com a
restauração da ordem constitucional, com a prevalência da Constituição e com a sua
imposição sobre todos os comportamentos. O que se pretende é “a proteção da Constituição
objetivamente considerada como interesse exclusivo” (TAVARES, 2011, p.274).
O grande debate em torno do processo objetivo por meio do qual atua a Justiça
Constitucional está ligado à ausência de regulação legal deste procedimento. Normalmente,
não há previsão nos ordenamentos jurídicos de uma legislação que estipule a forma pela qual
encadeamento lógico de atos destinados a obtenção de uma tutela jurisdicional protetiva da supremacia constitucional, dos
direitos fundamentais e, ainda, da distribuição horizontal e vertical do poder político. Passou-se, então, a ser utilizada a
denominação Direito Processual Constitucional para o estudo dos instrumentos processuais garantidores do cumprimento das
normas constitucionais (proteção da materialidade constitucional: supremacia constitucional, direitos fundamentais e
distribuição horizontal e vertical do poder político) e a denominação Direito Constitucional Processual para o estudo
sistemático dos conceitos, categorias e instituições processuais consagrados na Constituição.
158
deverá ser exercida a jurisdição constitucional 160 . Essa ausência de parâmetros objetivos
acaba sendo suprida pelo próprio Tribunal Constitucional à medida que os problemas
processuais vão aparecendo, porém
160
Alguns países da América Latina criaram leis específicas sobre o processo constitucional (Costa Rica, em 1989) e
podemos dizer que as Leis 9.868/99, 9.889/99 e 12.562/11, no Brasil, são também leis gerais sobre o tema. Porém, a
construção de um Código Processual Constitucional nas províncias argentinas de Entre Rios (1990) e Tucumán (1999), e a
criação de um código dessa natureza em âmbito nacional no caso do Peru, em 2004, faz saltar aos olhos a possibilidade de
regulamentação ampla e geral da matéria, como forma de evitar um constante e necessário preenchimento por parte dos
Tribunais Constitucionais da ausência de legislação acerca do tema.
159
161
O que está evidenciado pela constante elaboração de leis gerais ou leis “marco” sobre determinados temas em vez de
Códigos.
160
162
Nesse sentido, veja-se o tempo de tramitação do Código Civil de 2002 e dos projetos de Código de Processo Civil (PL
8.046/10) e Código de Processo Penal (PLS 156/2009), desde a instituição da comissão elaboradora, e que ainda estão em
trâmite no Congresso.
163
Não se pode esquecer que a opção do legislativo pela elaboração de leis gerais em vez de códigos não está apenas
relacionada com a existência na sociedade de uma descrença nos códigos. No caso brasileiro, trata-se também de opção do
corpo político no sentido de evitar toda a tramitação mais dificultosa, formal e plural que exige um código. É evidente que a
elaboração de um código atrai mais atenção da sociedade em geral do que a elaboração de leis esparsas.
161
Artículo I - Alcances
El presente Código regula los procesos constitucionales de habeas corpus, amparo,
habeas data, cumplimiento, inconstitucionalidad, acción popular y los conflictos de
competencia, previstos en los artículos 200 y 202 inciso 3) de la Constitución.
Artículo II - Fines de los Procesos Constitucionales
Son fines esenciales de los procesos constitucionales garantizar la primacía de la
Constitución y la vigencia efectiva de los derechos constitucionales.
164
Em âmbito regional o caso paradigmático foi a construção de um Código Processual Constitucional na província argentina
de Tucumán, em 1999.
165
O Código foi criado pela Lei peruana n. 28.237, de 31 de maio de 2004.
163
166
Tradução livre: “Artigo I - Abrangência. Este Código regula os processos constitucionais de habeas corpus,
amparo, habeas data, cumprimento, inconstitucionalidade, ação popular e os conflitos de competência, previstos
nos artigos 200 e 202 inciso 3) da Constituição. Artigo II - Objetivos dos Processos Constitucionais. São
objetivos essenciais dos processos constitucionais garantir a supremacia da Constituição e da efetiva validade
dos direitos constitucionais. Artigo III - Princípios Processuais. Os processos constitucionais são desenvolvidos
de acordo com os princípios direção judicial do processo, gratuidade da atuação do demandante, economia,
rapidez e socialização processuais. O Juiz e o Tribunal Constitucional têm o dever de impulsionar de ofício os
processos, salvo nos casos expressamente previstos no presente Código. Além disso, o Juiz e o Tribunal
Constitucional devem adaptar a exigência das formalidades previstas neste Código à realização dos fins dos
processos constitucionais. Quando um processo constitucional apresentar uma dúvida razoável acerca de estar
efetivamente concluído, o Juiz e o Tribunal Constitucional devem determinar a sua continuação. A gratuidade
prevista neste artigo não obsta o cumprimento da decisão judicial definitiva que disponha sobre a condenação em
custas e despesas, conforme o previsto por este Código.”
164
solucionam problemas discutidos há tempos pela doutrina. Entre eles, questões relativas à
impossibilidade de questionar a decisão de um processo constitucional por meio de outro
processo constitucional, aos recursos das ações constitucionais e a execução de algumas
sentenças, além de fazer referência às dificuldades diante da banalização dos processos
constitucionais.
A elaboração de um Código de Processo Constitucional desponta, pois, como um
passo necessário para que os processos constitucionais ou constitucionalizados sejam
regulados de forma unitária, sistematizada e harmônica. Em razão das peculiaridades do
processo objetivo, referentes à massificação do debate e à participação da sociedade, somente
a elaboração de um código poderia promover o desenvolvimento adequado, com mais
intensidade e clareza esperadas de tais processos que versam sobre matéria constitucional e
que têm por fim promover e proteger os direitos e garantias constitucionais. Assim,
consideramos relevante a adoção de um paradigma processual específico para proporcionar
controle e limitação adequada da Justiça Constitucional. Lembramos, sempre, que estas
normas processuais não poderão ser instituídas com a finalidade de limitar a defesa e a
concretização da Constituição por parte do Tribunal.
165
6 CONCLUSÕES
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