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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO

NEOCONSTITUCIONALISMO PROCESSUAL E
A EFICÁCIA SUGESTIVA DA LEI

LEONARDO CARNEIRO LIMA

Resenha crítica sobre o artigo de Daniel


Sarmento “O Neoconstitucionalismo no
Brasil: riscos e possibilidades” apresentada
para a avaliação da disciplina de
Fundamentos de Direito Processual da
graduação em direito pela Universidade
Federal Fluminense ministrada pelo prof.
Rogério Pacheco Alves.

PETRÓPOLIS

2022
INTRODUÇÃO.

Em primeiro plano, faz-se necessário delimitar as razões que fizeram o presente


artigo ser objeto desta resenha. Neste sentido, abordar o(s) fenômeno(s) do(s)
neoconstitucionalismo(s) é tratar de um tema fundamental para se compreender o
presente e o futuro das tendências comportamentais na jurisdição brasileira.

Tópico em constante diálogo com a filosofia do direito, os


neoconstitucionalismos, apresentados por Daniel Sarmento, permeiam toda a prática
judiciária brasileira contemporânea; materializam-se no ordenamento jurídico, como no
Código de Processo Civil Brasileiro de 2015; e influenciam os vieses cognitivos
circunscritos no funcionamento da jurisdição.

Dessa forma, a partir do artigo de Daniel Sarmento, “O Neoconstitucionalismo no


Brasil: Riscos e Possibilidades”, a presente resenha irá apresentar o panorama do texto;
seguido pela crítica, que irá orbitar em torno de dois escopos centrais, a saber: (i)
Princípios sobre regras; e (ii) Subsunção sob ponderação, como os desdobramentos do
fenômeno neoconstitucional. Por fim, nas considerações finais, este trabalho buscará
argumentar em favor da ideia de que os neoliberalismos que aqui aportaram, somados à
lógica neoliberal prevalecente, deram origem ao atual estado de neoliberalismo
processual.

PANORAMA.

Segundo Daniel Sarmento, pode-se afirmar que estamos diante de um fenômeno


de reaproximação do direito com conceitos de natureza moral. Em síntese, privilegiam-
se os princípios de ampla relatividade semântica, revestidos de conteúdos questionáveis
por sua maleabilidade, junto a ponderação, em detrimento de regras e da subsunção.

Conforme leciona o autor, trata-se de um novo paradigma na teoria e prática dos


tribunais. Não obstante, assinala que essa nova epistemologia teria por essência a força
normativa dos princípios jurídicos; a rejeição ao formalismo; a defesa pela reaproximação
entre o direito e a moral; e a judicialização da política e das relações sociais, seguidos por
um deslocamento de poder da esfera do Legislativo para o Judiciário. Essas seriam,
portanto, características comuns que permeiam o(s) neoconstitucionalismo(s) existentes,
já que coexistem diversas visões sobre esse mesmo conceito.
Para a melhor compreensão do fenômeno convém destacar que até a 2ª Guerra
Mundial as Constituições, via de regra, possuíam amplas possibilidades de sentidos,
devendo sempre ser comportada por uma lei ordinária para possuir eficácia normativa.
Consentaneamente, na Europa, após a guerra, a tese de que uma Constituição possui força
normativa, por si só, reverbera, de modo a dar origem ao fenômeno de
Constitucionalização da ordem jurídica através da interpretação de suas normas pelo
poder judiciário – que, vale lembrar, possuíam via de regra, caráter amplo e abstrato.
Assim, segundo Sarmento:

“Como boa parcela das normas mais relevantes destas constituições


caracteriza-se pela abertura e indeterminação semânticas - são, em
grande parte, princípios e não regras - a sua aplicação direta pelo
Poder Judiciário importou na adoção de novas técnicas e estilos
hermenêuticos, ao lado da tradicional subsunção. A necessidade de
resolver tensões entre princípios constitucionais colidentes -
frequente em constituições compromissórias, marcadas pela riqueza
e pelo pluralismo axiológico - deu espaço ao desenvolvimento da
técnica da ponderação, e tornou frequente o recurso ao princípio da
proporcionalidade na esfera judicial. E a busca de legitimidade para
estas decisões, no marco de sociedades plurais e complexas,
impulsionou o desenvolvimento de diversas teorias da argumentação
jurídica, que incorporaram ao Direito elementos que o positivismo
clássico costumava desprezar, como considerações de natureza moral,
ou relacionadas ao campo empírico subjacente às normas. Neste
contexto, cresceu muito a importância política do Poder Judiciário”.
(SARMENTO, Daniel, 2009, p.3)

Neste cenário, a ideia tradicional de separação de poderes é reinterpretada


desmembrando-se a rigidez das disposições sobre a atuação do poder judiciário,
contemplando uma maior discricionariedade aos magistrados, como uma ideia mais de
interdependência do que propriamente de separação de poderes. Isto é, terreno fértil para
o ativismo judicial em defesa de “valores constitucionais” – quais? E como? Dependerá
do magistrado.

Não obstante, segundo Sarmento:

“Quem defende que tudo ou quase tudo está decidido pela


Constituição, e que o legislador é um mero executor das medidas já
impostas pelo constituinte, nega, por consequência, a autonomia
política ao povo para, em cada momento de sua história, realizar as
suas próprias escolhas. O excesso de constitucionalização do direito
reveste-se, portanto, de um viés antidemocrático [...] E a questão
torna-se ainda mais delicada diante da constatação de que, pela
abertura semântica dos direitos fundamentais e dos princípios – a
principal matéria-prima da constitucionalização do direito – o seu
principal agente acaba sendo o poder judiciário, ao dar a última
palavra sobre a interpretação daquelas cláusulas. Daí porque, o debate
sobre a constitucionalização do direito se imbrica inexoravelmente
com as discussões a propósito da judicialização da política e do
decisionismo, referidas acima.” (SARMENTO, Daniel, 2009, p.18).

Assim, destaca-se que o viés judicialista do neoconstitucionalismo é


intrinsicamente antidemocrático ao conferir aos magistrados uma espécie de “poder
constituinte permanente” calcada sobre a centralidade da interpretação dos juízes a partir
de axiomas principiológicos sobre a Constituição de 1988 que recepcionou em seu texto
legal incontáveis princípios abertos como “mínimo existencial” e a “dignidade da pessoa
humana”; fora os inúmeros usos e abusos da simetria em matéria de ativismo judicial.

DIATRIBE À LÓGICA DA EFICIÊNCIA E AO ATIVISMO JUDICIAL.

Como se todo caso pudesse ser um hard case Dworkiniano, no


neoconstitucionalismo, a ponderação é privilegiada em detrimento da subsunção, de arte
que os princípios se sobressaem sobre as regras. O brocardo latino habemus legem,
inclusive, é escanteado pelo seu conteúdo – antes fosse pela inadequação linguística das
ultrapassadas citações em latim. Em síntese, a Lei se torna mera sugestão. (i) Os
princípios tomam seu protagonismo, isto é, há uma defesa pela reaproximação do Direito
com conceitos de natureza moral.

Não se quer dizer aqui que sistemas jurídicos nunca foram influenciados pela
moral, ou que a própria moral não tenha sido influenciada pelo Direito. Neste sentido, há
que se atentar para aquilo que subscreve H.L.A Hart: “Na ausência de um preceito
constitucional ou legal expresso, o mero fato de uma norma violar os padrões da moral
não implicava que ela deixasse de ser uma regra jurídica; e, inversamente, o mero fato de
uma norma ser moralmente desejável não poderia implicar que fosse uma regra jurídica”
(HART, H.L.A, 2010, p.59).

Assim, rejeitado pelo neoconstitucionalismo, o “positivismo jurídico” – como


nomeado comumente, mesmo que a custo de generalizações inconsistentes –, que é aqui
defendido, se filia ao que Hart leciona como “the simple contention that is in no sense a
necessary truth that laws reproduce or satisfy certain demans of morality, though in fact
they have often done so” (HART, H.L.A, 1994, p. 185-186 apud MORBACH, Gilberto,
2021, p 154). Desse modo, satisfazer quaisquer sistemas morais que tenham influenciado,
ou influenciam, um sistema jurídico e sua jurisdição, não é, nem nunca foi, um critério
de validade.

E mais, o que garante que o próprio judiciário é o melhor garantidor dos direitos
fundamentais para estabelecer uma jurisdição criativa? No Brasil, invadindo
prerrogativas que pertencem ao congresso nacional, ministros chegam a considerar a si
mesmos como seres iluminados!

E assim, no atual cenário neoconstitucional de direito brasileiro, cotidianamente


garantias processuais fundamentais são violentadas, em todos os espectros políticos-
ideológicos. Desde a relativização da presunção da inocência e do devido processo legal
em um caso clarividente de lawfare na prisão de um ex-presidente; ao “inquérito do fim
do mundo”, intitulado pelo Ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello, onde a
imparcialidade é novamente violada, em um caso em que quem julga é a própria vítima.

Assim, pode-se afirmar que o ativismo judicial, que encontra terreno fértil no
neoconstitucionalismo, é a materialização da insegurança jurídica e da pós-democracia
juristocrata, elitista e refratária da soberania popular.

Insegurança jurídica, pois, nem na racionalização de uma metodologia científica


sobre (ii) ponderação, arguida por Robert Alexy, a “lógica da ponderação” encontra rigor
teórico suficiente. Diferentes juízes, com a mesma metodologia de ponderação em um
mesmo caso concreto chegam constantemente a diferentes conclusões. É o que assinala
Juan Antonio García Amado em seu texto “Sobre ponderaciones. Debatiendo com
Manuel Atienza”: “Entre tribunales o magistrados de um mismo tribunal suele darse la
misma situación: unos y otros ponderan siguiendo esos passos – sistematizados por
Alexy, a saber: teste de idoneidade, de necessidade e de proporcionalidade em sentido
estrito – y llegan a resultados contrapuestos” (AMADO, Juan Antonio García, 2018, p.
61).

Para além, a importância de se estudar esse fenômeno se acentua ainda mais com
o Código de Processo Civil de 2015, que comporta em seu conteúdo verdadeira
materialização de diversos desses paradigmas tendentes à importação de institutos da
common law somados à racionalidade neoliberal. De arte que, hoje, se pode dizer que o
direito processual está nesta mesma fase (neoliberal) visto o protagonismo da autonomia
privada e dos negócios jurídicos processuais como objetos de negociação.
Assim, desde uma conciliação, até uma delação premiada, o próprio processo pode
ser objeto do negócio (vide art. 190 CPC); apostando-se na imagem do Juiz gerencialista,
ao invés dele como “representante do Estado”. O Juiz passa a ter que cumprir metas como
quem trabalha com comissões, consubstanciando um modelo concorrencial que encontra
esteio no neoliberalismo se tornando uma racionalidade comportamental para além de um
modelo econômico-político-social.

Atingir metas. Ser eficaz. Como Chaplin em tempos modernos! Ou as traças em


Dom Casmurro...

“Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados,


a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a
origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei
os próprios vermes dos livros para que me dissessem o que havia
nos textos roídos por eles.
– Meu Senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não
sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem
escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que
roemos; nós roemos
Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem
passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto
silêncio sobre os textos roídos, fosse ainda um modo de roer o
roído.”
(Machado de Assis, Dom Casmurro)

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Repisa-se, não é dizer que não haja imbricações entre direito e moral desde
sua concepção normativa às práticas jurisdicionais cotidianas. É tão somente defender
aquilo que pondera H.L.A Hart em “Essays on jurisprudence and philosophy”: “É
possível endossar a separação entre direito e a moral, dar valor aos estudos analíticos do
sentido de conceitos jurídicos e, ainda assim, acreditar que seja errado conceber a lei
como sendo essencialmente um comando” (HART, H.L.A. 2010, p.62).

Neste sentido, o neoliberalismo processual, braço do(s) fenômeno(s)


neoconstitucionalista(s), apresentado no texto de Daniel Sarmento, que rejeita as teorias
analíticas do direito, representa um passo atrás sobre aquilo que se pretendia ser um
Estado Democrático de Direito no Brasil. Pois encontra sua razão de ser nas mesmas
lógicas neoliberais, a saber: a lógica gerencialista da eficiência e do cumprimento de
metas; o direito em face do valor de troca1; e o processo como objeto de negócio – vide
o plea bargaing norte-americano.

Afinal, e o texto legal? A segurança jurídica? Coerência? Harmonia


jurisprudencial entre os tribunais superiores? Tudo isso torna-se distante no cenário
neoconstitucionalista. Golpes de Estado? Seres iluminados? Lawfare? Tudo isso encontra
esteio teórico no neoconstitucionalismo. Jurisdição criativa? Livre convencimento
motivado? Simetria? Razoabilidade? Analogia? Tudo isso pode ser “ponderado” como
um hard case, só depende de quem decide. E quem decide? E quem decide quem decide?

O “pós-positivismo” no Brasil é regressão, sem precedentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, Juan A. García. “Sobre ponderaciones. Debatiendo com Manuel Atienza”.


In: AMADO, Juan. A. García y ATIENZA, Manuel R., “Un debate sobre la ponderacion.”
Tribunal Constitucional Plurinacional de Bolivia. Academia Plurinacional de Estudios
Constitucionales. 2018.

HART, H.L.A. “Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia”. Rio de Janeiro: Elsevier,
2010.

MORBACH, Gilberto. “Entre positivismo e interpretativismo, a terceira via de


Waldron”. 2 ed. Ver. E atual. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2021.

SARMENTO, Daniel. “O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades.”


Editora Fórum. Belo Horizonte. 2009.

1
Sobre isto, ver bibliografia complementar: PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e
marxismo. 1. Ed. – São Paulo: Boitempo, 2017.

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