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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e

integridade e coerência do direito no código de processo


civil brasileiro

A ESTRANHA COEXISTÊNCIA ENTRE PROTAGONISMO JUDICIAL E


INTEGRIDADE E COERÊNCIA DO DIREITO NO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL BRASILEIRO
The strange coexistence of judicial leadership and integrity and coherence of law in the
Brazilian Civil Procedure Code
Doutrinas Essenciais - Novo Processo Civil | vol. 1/2018 | |
Revista de Processo | vol. 268/2017 | p. 23 - 46 | Jun / 2017
DTR\2017\1335

Felipe Rodrigues Xavier


Mestrando em Direito na Unesp – Universidade Estadual Paulista. Editor da Revista de
Estudos Jurídicos (REJ) do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unesp. Advogado.
felipe.rodrigues.xavier14@gmail.com

Área do Direito: Processual; Fundamentos do Direito


Resumo: O artigo pretende a análise e confrontação de dois paradigmas bastante
diversos (se não opostos) coexistentes no NCPC: protagonismo (ou discricionariedade)
judicial e os conceitos de integridade e coerência no direito. Assim, se de um lado se
aposta na uniformização vinculante da jurisprudência através de uma combinação entre
maior poder discricionário concedido às Cortes Superiores e institutos de inspiração na
common law, por outro, integridade e coerência do direito, exigências político-jurídicas,
surgem no mesmo diploma legislativo com objetivo completamente outro: a construção
de uma jurisprudência vinculada somente à Constituição, e não às decisões e
discricionariedades dessas Cortes, apta a reconhecer direitos e princípios e a concretizar
o Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil brasileiro - Protagonismo judicial


(discricionariedade) - Integridade e coerência do direito.
Abstract: The article aims the analysis and confrontation of two very different paradigms
(if not opposite) coexisting in NCPC: judicial leadership (or discretion) and the concepts
of integrity and coherence in law. So on, if on one side it is binding commitment to
standardization of jurisprudence through a combination of greater discretion granted to
the High Courts and institutes inspired in the common law, on the other, integrity and
coherence of law, political and legal requirements, arise in the same piece of legislation
aiming another completely diverse goal: the construction of a jurisprudence bound only
to the Constitution, and not to the decisions and discretions of these Courts, able to
recognize rights and principles and to realize the Democratic State of Law.

Keywords: New Brazilian Civil Procedure Code - Judicial leadership (discretion) -


Integrity and coherence of law.
Revista de Processo • RePro 268/23-46 • Jun./2017
Sumário:

1Introdução - 2Common law, Direito jurisprudencial e a aposta na discricionariedade -


3O novo CPC: jurisprudência vinculante e o Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas - 4Integridade e coerência do direito: Dworkin e o NCPC - 5Conclusão -
6Referências

1 Introdução

Neste presente artigo, como faz antever o título, procuraremos analisar dois paradigmas
bastante estranhos entre si, conflitantes, para não dizer completamente opostos um ao
outro, e que também estranhamente habitam o mesmo corpus legislativo do NCPC:
trata-se do protagonismo judicial, paradigma assentado na discricionariedade dos juízes,
e o paradigma da integridade e coerência do direito, curiosamente sistematizada para
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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e
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combatê-lo.

Quanto ao primeiro, estudaremos a jurisprudência vinculante e o Incidente de Resolução


de Demandas Repetitivas, frutos legítimos do NCPC. Circunscreve-se, portanto, o tema
do protagonismo judicial aos institutos novíssimos aptos a viger a partir de 2016, não
sendo possível, por questão de espaço e mesmo recorte temático (as novidades
relevantes do NCPC), o tratamento de outros institutos já presentes em nosso
ordenamento jurídico e que estão na mesma área de problematização do protagonismo
(ou discricionariedade) judicial, tais como a repercussão geral e as súmulas vinculantes.
Por sua vez, para o paradigma da integridade e coerência do direito ter uma correta
análise quanto a sua importância e alcance, outra não poderia ser a fonte de pesquisa
primordial que não a obra de Ronald Dworkin, justamente o jurista ao qual se deve
inspiração para o instituto exatamente como ele se encontra no NCPC.

À primeira parte deve-se um breve comentário crítico acerca do imaginário jurídico


nacional prevalecente de que a commonlização do direito brasileiro é a melhor saída
para a resolução de vários problemas de que nosso sistema judicial padece, tais como a
insegurança jurídica, a chamada justiça lotérica, e a multiplicação de processos. Esta
primeira parte ambienta o NCPC ao fim de uma cadeia legislativa de cerca de duas
décadas que vem apostando em institutos anglo-saxônicos de direito e na
discricionariedade dos juízes, mormente dos tribunais superiores, como panaceia para
nossas complexas problemáticas judiciais.

A segunda parte é reservada aos institutos próprios do NCPC, ou seja, a jurisprudência


vinculante e o IRDR, dentro do âmbito delineado pela seção inicial.

Por fim, a integridade e coerência do direito serão buscadas em sua matriz, a doutrina
de Ronald Dworkin, e analisadas, tal como se apresentam positivamente no NCPC, sob
uma dupla luz: a importância desse paradigma para um imaginário jurídico e uma
legislação completamente adversos a esse tipo de construção teórico-jurídica e as
possibilidades de seu alcance e efetivação no contexto dessa sua estranha coexistência
com toda a carga de protagonismo (discricionariedade) que o próprio NCPC dispõe.
2 Common law, Direito jurisprudencial e a aposta na discricionariedade

O senso comum teórico dos juristas (Warat), jogado às mais diversas doutrinas
estrangeiras pela incapacidade de absorção e efetivação dos novos paradigmáticos que a
1
Constituição Federal de 1988 representa , parece hoje acreditar que a chamada
commonlização de nosso direito é a solução dos principais problemas de nosso sistema
judicial, mormente a insegurança jurídica (que também pode receber o prosaico nome
de justiça lotérica) e a multiplicação de processos. Assim, muitas reformas legislativas
importadoras de institutos da common law são justificadas como se a origem por si só
de tais institutos fosse uma espécie de lastro seguro quanto à aptidão para solução de
2
nossos problemas judiciais. Mais que tudo, de respeitabilidade .

A doutrina tem papel preponderante nessa difusão do common law pelo imaginário
jurídico nacional.

“Ocorre que, no Brasil, grande parcela da doutrina entende que é possível resolver o
problema de insegurança jurídica – que é, frise-se, um problema essencialmente
qualitativo na prestação jurisdicional – mediante a criação de instrumentos de vinculação
decisória, o que faz parecer que essa doutrina ignora que, em um Estado Constitucional,
a própria Constituição e a legislação que lhe é conforme vinculam efetivamente a
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atuação do Judiciário antes de tudo”.

No entanto, a insegurança jurídica não é um problema de civil law, não é algo intrínseco
ao nosso sistema, e sim de todo o direito. Isso a doutrina faustora da commonlização
esquece. A qualidade de um sistema jurídico dependerá do grau de vinculação que os
legisladores e o Judiciário mantenham para com a Constituição, inclusive sua função
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transformadora no Estado Democrático de Direito , e a conformação e aplicação das leis
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integridade e coerência do direito no código de processo
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segundo esse Texto Maior. É uma questão constitucional, portanto, e, quanto mais ela se
mantiver intrínseca à Constituição, menos espaço para a discricionariedade dos juízes e
mais forte (íntegra e coerente) será a jurisprudência desse ordenamento jurídico.

A insegurança jurídica, ou o risco de decisões diversas, contrastantes ou mesmo opostas


em casos semelhantes num mesmo direito, sob a mesma Constituição, é problema não
só do civil law, mas de todos os sistemas jurídicos elaborados pelo homem. Vide o juiz
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Hércules de Ronald Dworkin, metáfora para a problemática da insegurança jurídica e
discricionariedade judicial no common law. Vide, ainda, a fábula de Aulo Gélio sobre os
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juízes da Roma tardia .

Dessa crença na commonlização do direito brasileiro como melhor meio, mais fácil e
eficaz, para a diminuição do número de processos em andamento, bem como para
minoramente do risco de decisões diferentes para casos semelhantes, nasce a maioria
de nossas reformas processuais mais importantes das últimas duas décadas. Elas
apostam, assim, no que poderia ser chamado de direito jurisprudencial: as Cortes
Superiores, dotadas de enorme poder discricionário, ditam normas com força de lei a
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serem seguidas pela Administração Pública e por todo o demais Judiciário . É o que se
chama de efeito vinculante da jurisprudência, sendo esse o aspecto mais sentido desse
imaginário jurídico nacional adepto das transformações processuais com bases na
common law. A jurisprudência adquire foros e força de lei, o que vai lentamente
deixando de ser estranho em países como o nosso, de civil law. O NCPC é o último elo
dessa cadeia.

Ao lado do chamado direito jurisprudencial, os principais cânones dessas reformas


processuais, nas quais o NCPC se inclui, são originários da instrumentalidade do
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processo: instrumentalidade das formas, flexibilização processual e atitivismo judicial .

É Cândido Rangel Dinamarco o grande inaugurador e sistematizador dos cânones da


instrumentalidade do processo no Brasil. Três são os eixos principais de sua doutrina,
expostos em sua obra A instrumentalidade do processo, sua tese de cátedra.

Em primeiro lugar, a Teoria Geral do Processo é transferida da categoria Ação para a


categoria Jurisdição. Isso, é claro, publiciza o processo e agora a principal tarefa dela é
assegurar o devido processo legal, contraditório e ampla defesa a todos os participantes
do processo. Em segundo lugar, a jurisdição é vista como disciplina do poder estatal,
como instrumento deste para a consecução de seus objetivos e, consequentemente,
como requisito para que tais objetivos através da jurisdição sejam alcançados, recebe
esse poder estatal a qualidade de imperium:

“(...) isso quer dizer que não só as pessoas sob o poder de dado Estado se consideram
em estado de sujeição, sendo-lhes impossível afastar a eficácia das decisões estatais,
como ainda lhes é, em princípio, trancada qualquer oportunidade de “quebrar o vínculo
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da submissão”.

Por fim, o processo, sendo assim instrumento a serviço da jurisdição (que é poder
estatal), é meio, e não fim. A consequência dessa concepção teleológica do processo é a
de que ele se movimenta em três grandes eixos-escopos: o Social, o Político e o Jurídico.

“Falar em instrumentalidade do processo, pois, não é falar somente nas suas ligações
com a lei material. O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade e dos indivíduos
que a compõe: e, estando o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre
pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à
sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada
por três ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o
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Estado persegue: sociais, políticos e jurídicos.”

Pois bem, a instrumentalidade do processo apresenta problemáticas importantes:

“1.) a jurisdição como categoria central da teoria geral do processo concentra na figura
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do juiz todas as atenções. Essa concentração de atenções, paradoxalmente, ao invés de


limitá-lo em sua atividade, amplia demasiadamente seus poderes (...) 2.) Esse tipo de
teoria separa radicalmente Estado e indivíduo e reitera uma relação de sujeição desta
para com aquele; 3.) como há riscos democráticos para a figuração do processo nos
postulados da instrumentalidade, posto que sob argumento de que a jurisdição deve
preocupar-se com o atendimento dos escopos políticos e sociais, legitima-se qualquer
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tipo de provimento de caráter discricionário-ativista-decisionista”.

A bem de se ver também que em nenhuma oportunidade, quando se atinge o terceiro


momento da teoria instrumentalista, aquele dos escopos do processo, incluem-se os
direitos fundamentais e a Constituição ou fala-se sobre eles, o que no Estado
Democrático de Direito deveria ser salutar.

Esse breve aprofundamento nas teses principais da teoria instrumentalista justifica-se


por serem eles os cânones principiológicos a construir nossas reformas processuais,
inclusive o NCPC. No mais, são essas as teses defendidas e levadas pela doutrina (em
sua maioria) à legislação reformista processual, isto é, claro, junto daquele ideal de
commonlização de nosso direito como principal forma de solucionar nossos problemas
judiciais.

Protagonismo (discricionariedade) judicial e direito jurisprudencial (ou commonlização do


direito): são esses os paradigmas, as vigas-mestras, a formar o nosso pós-moderno
processo.

Sua fusão, legitimamente brasileira como a jabuticaba, ou seja, só dá aqui, é explícita


nos dois institutos constantes do NCPC a ser estudados na seção seguinte.
3 O novo CPC: jurisprudência vinculante e o Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas

3.1 Jurisprudência vinculante

Em suas últimas reformas processuais, o direito brasileiro vem cada vez mais apostando
na vinculação da jurisprudência de suas cortes superiores (Supremo Tribunal Federal e
Superior Tribunal de Justiça), de modo a objetivar teses de determinado caso concreto
para todos os demais que se afigurem semelhantes, sem se atentar para a diferenciação
fática que possa haver entre os casos, isso porque, como no caso do Incidente de
Resolução de Demandas Repetitivas a seguir, demanda-se a separação entre questões
de fato e questões de direito, em que as primeiras são descartadas.

Não seria demasiado dizer, portanto, que o Judiciário passa a assumir um poder
importante: passa a legislar abstratamente a partir de uma decisão concreta de lide.

O perigo maior que se afigura é o completo engessamento do sistema decisório nacional,


até porque, além da disformidade de se objetivar teses a partir de um único caso, e não
de reiteradas decisões (lição clássica do termo “jurisprudência”), minguam-se as
possibilidades de recursos, visto que o próprio sistema judicial-decisório, justamente
para dar força à sua decisão-paradigma, impede a subida deles para os tribunais
superiores com institutos como a súmula impeditiva de recursos, o regime de
julgamentos repetitivos ou o novel Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas do
NCPC.

Nesse diapasão de poucas possibilidades de revisionamento da mesma questão jurídica


por parte do STF ou do STJ, pois não haverá recurso, locus lógico para tanto, e visto que
o NCPC amplia a vinculação jurisprudencial já presente nos arts. 543-B e 543-C do atual
código, a modificação de entendimento jurisprudencial viria somente por meio de lei.
Isso demonstra a especialidade de nosso sistema decisório, não havendo notícia de
sistema parecido em qualquer outro país ao menos formalmente democrático e
constitucional.

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integridade e coerência do direito no código de processo
civil brasileiro

No Brasil, inverte-se então a lógica: não mais a jurisprudência que atualizará a lei, mas
a lei que atualizará a jurisprudência. Mais uma jabuticaba.

Corre-se enorme e visível risco, portanto, de engessamento completo da jurisprudência.


Isso se deve, é claro, à aposta equivocada, a nosso ver, dessa simbiose já aqui
denunciada de direito jurisprudencial (ou sua vulgata) e poder discricionário desmedido
às cortes superiores; de modo que jurisprudência, a partir de um único caso,
objetiva-se, abstraindo-se da realidade fática do caso concreto, para tornar-se também
norma, também lei a ser seguida.

Esquece-se de que leading case e as teses jurídicas por ele levantadas não nascem já
vinculantes. O caso não é leading case de nascença, de per se. É a tradição jurídica que
consolida o caso e suas teses para a justificação de outros que se afigurem, e somente a
partir de repetitiva e demorada utilização temporal é que eles passam a receber tal
qualificação, ou seja, vinculantes. São os juízes de primeiro e segundo grau que vão
fomentando a jurisprudência, mas, no que se desenha na atual quadra histórica do
processo civil brasileiro, eles perderão essa capacidade de criar jurisprudência. Ela virá
de cima. O sistema de precedentes da common law é completamente diverso, então,
daquilo que se pretende implementar em nosso ordenamento jurídico. Ele é histórico,
verdadeiramente jurisprudencial, pois sedimentado em repetidas decisões. Nosso
sistema decisório desenha-se a-histórico, abstrato e engessante, além de ser criado por
meio de lei, e não da tradição histórica precedente.

“Esse é o ponto nodal que criticamos da atribuição desmedida de efeito vinculante para
os Tribunais Superiores. Na prática, trata-se de decisão que tem por mote principal
facilitar a administração Judiciária mediante a redução quantitativa do número de
processos, ou seja, quer resolver problema de gestão. Trata-se de visão em que a
questão da segurança jurídica é pensada sob o ponto de vista do Judiciário e a crença de
que os mecanismos vinculantes forjados para funcionar verticalmente assegurariam a
concretização da segurança jurídica (...) Na realidade, a falta de segurança jurídica em
nossa jurisprudência está relacionada à discricionariedade que levamos às últimas
consequências, fazendo o julgador acreditar que poderia inclusive se afastar da
legalidade vigente, uma vez que em seu imaginário a lei estaria à disposição do
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intérprete que poderia deixar de aplicá-la por razões de conveniência e oportunidade.”

Ressalte-se que a instrumentalidade do processo e sua irmã gêmea, a celeridade


processual, não podem ser confundidas com resolução em massa abstrata, única e,
porque não, também metafísicas, já que prescindem do substrato fático, dos processos.
A celeridade e a efetividade processuais não são devidas pelo Estado para com o
Judiciário nem pelos juízes das cortes superiores para com os demais juízes, e, sim, são
devidas pelo Estado, como guardião da Constituição, para com seus cidadãos que
buscam através do processo a efetivação de seus direitos nela garantidos.
3.2 Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas

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O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas , ao contrário de outro instituto
constante da redação original do NCPC e que não fora aprovado, sofrendo veto da Chefe
do Executivo motivado por parecer da AGU (contando com o apoio da OAB e do
Ministério Público), contempla doze artigos (arts. 976 a 987).

Os pontos mais importantes quanto a esse instituto em sua disposição legal referem-se:
ao cabimento do doravante chamado IRDR quando houver, simultaneamente,
recebimento de processos repetitivos cuja lide verse sobre idêntica questão de direito,
excluindo-se, assim, as questões de fato levantadas pelo caso, e risco à segurança
jurídica, ou o risco de julgamentos diferentes para as mesmas causas de direito (art.
976); o prazo do incidente é de um ano, prazo esse em que terá preferência de
julgamento, sendo as únicas exceções os processos que envolvam réu preso e pedidos
de habeas corpus (art. 979); utilizando-se a técnica de pinçamento, os demais processos
permanecem suspensos durante esse período de um ano, ao fim do qual cessa sua
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suspensão, a não ser por decisão fundamentada do relator em sentido contrário.

As teses jurídicas aplicadas ao processo pinçado, ou processo-paradigma da questão de


direito controvertida geradora de processos repetitivos em massa, serão aplicadas:

“Art. 985, I – a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica
questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive
àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região;

II – aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar
no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986”.

Claramente, o objetivo do IRDR é conferir um julgamento célere e coletivo a processos


de massa que contenham questão controvertida unicamente de direito, aplicando-se as
teses jurídicas utilizadas no julgamento do processo-paradigma a todos os demais
processos que ficam suspensos enquanto aguardam a decisão daquele. Busca-se com
esse incidente processual o atingimento da segurança jurídica, da celeridade e da
economia processuais.

A inspiração declarada desse incidente é o Musterverfahren do direito alemão, ou


procedimento-modelo, cuja decisão será tomada como modelo (muster), paradigma,
para a resolução de outros processos de massa cujas partes estejam em situação
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idêntica .

É de se ressaltar que Musterverfahren está previsto em lei reguladora de investimentos


no mercado de capitais e serve apenas a essa natureza de controvérsia jurídica. Além do
mais, o fato de ser uma lei temporária, apta a viger até 2020, indica ter sido ela
instrumentalizada para a resolução de questões igualmente temporárias. A pequena
amplitude do Musterverfahren em tempo e em espaço não é mencionada na Exposição
de Motivos do NCPC.

As diferenças da matriz alemã em relação ao instituto previsto no NCPC são muitas e


importantes. Em primeiro lugar, o modelo alemão não contempla instauração ex officio,
o que é mais um indício de que a reforma processual brasileira em andamento é
realmente mais voltada para o Judiciário e seus problemas do que para as partes que
necessitam do provimento judicial. Se a instauração do incidente coubesse apenas às
partes, como no caso alemão inspirador, então são elas que estão em primeiro plano
quanto a esse instituto, pois a elas é que cabe o juízo de adequação e conveniência para
o acionamento do instituto. Não é o que está previsto no NCPC.

O Musterverfahren, ao contrário do previsto em nossa reforma processual, não faz


distinções entre questões de fato e de direito, e as assume todas como competentes
para suscitar o instituto. Mas como, no Estado Democrático de Direito, separar
cirurgicamente questão de fato das questões de direito e eleger somente as últimas
como aptas para ingressar no IRDR? Trata-se, mais uma vez, e além de outro indício de
reforma processual voltada para o Judiciário (melhor dizendo: cúpula do Judiciário), da
abstratização da realidade, outrora matéria circunspecta à legislação (por sua
necessidade de ser geral) em confronto com a materialidade da Jurisprudência,
justamente por esta lidar cotidianamente com os fatos concretos, com as lides
concretas. Mas, hoje, os papéis se igualam, por passar a jurisprudência das cortes
superiores a ter também o papel normativo criador e, assim, a partir de um único
julgamento, legislar abstratamente.

Nos mesmos contornos da dogmática tradicional, assume-se uma dogmática


jurisprudencial:

“No plano da dogmática jurídica, os fenômenos sociais que chegam ao Judiciário passam
a ser analisados como meras abstrações jurídicas, e as pessoas, protagonistas do
processo, são transformadas em autor e réu, reclamante e reclamado, e, não raras
vezes, em ‘suplicante’ e ‘suplicado’, expressões estas que, convenhamos, deveriam
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envergonhar (sobremodo) a todos nós. Mutatis mutandis, isso significa dizer que os
conflitos sociais não entram nos fóruns e nos tribunais graças às barreiras criadas pelo
discurso (censor) produzido pela dogmática jurídica dominante. Pode-se afirmar, desse
16
modo, que ocorre uma espécie de ‘coisificação’ (objetificação) das relações jurídicas”.

Outra importante diferenciação é que no Musterverfahren, por não haver instauração do


ex officio, cabe à parte suscitadora do incidente limitar seu alcance, tanto fático quanto
jurídico. O NCPC apenas dispõe que as teses jurídicas do julgamento do
processo-paradigma serão estendidas a todos os processos presentes e futuros que,
tramitantes na área de jurisdição do tribunal, travem a mesma controvérsia unicamente
jurídica (e não fática).

O IRDR ainda afronta os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla


defesa em três momentos: no NCPC não há mecanismos para que as partes aleguem a
desnecessidade de suspensão de seu processo específico, já que juridicamente diverso
daquele pinçado para paradigma, tampouco há qualquer possibilidade para que as partes
comprovem o descabimento das teses jurídicas consagradas no julgamento do
processo-paradigma ao seu processo em concreto. Ou seja, não há espaço para a
diferenciação dos processos. Todos são julgados como se fossem iguais. Julgamento
abstrato, único e coletivo. No mais, como as teses jurídicas são também estendidas aos
casos futuros, as partes destes também têm suas garantias ao devido processo legal,
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contraditório e ampla defesa violados, pois não tiveram como participar do julgamento
da própria lide.

Assim:

“De acordo com o NCPC, qualquer causa repetitiva, desde que pendente no tribunal,
poderá dar ensejo à instauração do IRDR. Não se exige uma análise cuidadosa acerca da
existência de homogeneidade entre as questões envolvidas no processo pendente no
tribunal e nos demais processos repetitivos. Logo, chegando ao tribunal a primeira causa
repetitiva, qualquer legitimado pode, de imediato, requerer a instauração do incidente
processual, mesmo que essa demanda não seja a que melhor representa a controvérsia.
Pior: a ideia de julgamento abstrato do IRDR permite aplicar a tese jurídica às causas
futuras, referentes a litigantes que não tiveram qualquer possibilidade de participação e
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influência no julgamento coletivo”.

Em suma, o Musterverfahren não guarda nenhuma semelhança com o IRDR,


principalmente tendo-se em conta que sua aplicação é estreita, destinada que é somente
ao mercado imobiliário, e, pelo próprio fato de ser temporário, nunca teve quaisquer
ambições de ser a panaceia para muitos dos principais problemas judiciais do país
tedesco, como é o que ocorre com o disforme IRDR em terras tupiniquins.

Sua função parece ter sido uma espécie de lastro legislativo seguro (por ser europeu)
para uma construção legislativa tipicamente brasileira em que se conjugam a
discricionariedade das cortes superiores e o legislar delas, a partir de um único
julgamento de um único caso concreto, abstratamente e de maneira geral através do
direito jurisprudencial, uma vulgata da tradição da common law, ou uma vinculação
forçada, a-histórica e um engessamento da jurisprudência nacional. Ou seja, a
instrumentalidade e a celeridade nos casos de processos de massa, com uma falsa
sensação de segurança jurídica, pois descartados os fatos ensejadores da lide, atingidas
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com o mínimo de dispêndio de tempo e energia (e conhecimento) possíveis.
4 Integridade e coerência do direito: Dworkin e o NCPC

4.1 A DOUTRINA de Ronald Dworkin

4.1.1 Questão preliminar: argumentos de política e argumentos de princípio

Estando esta quarta e última seção do artigo dividida em duas partes, quais sejam, a
primeira consagrada à doutrina de Ronald Dworkin e a segunda à integridade e
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coerência do direito como dispostas no NCPC, de modo que a primeira faz-se requisito
para entendimento, análise e crítica da segunda, pois inspiração dela, nestes parágrafos
introdutórios discorrer-se-á sobre uma diferenciação importante existente no
pensamento de Dworkin, verdadeira condição para a compreensão dos objetivos a serem
buscados pelos conceitos de integridade e coerência tanto em sua doutrina como no
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NCPC: trata-se dos argumentos de política e argumentos de princípio .

Os argumentos de política justificam uma decisão política e, na seara judicial, as


decisões que se utilizam de tais argumentos protegem ou fomentam algum objetivo
coletivo da comunidade (sociedade) como um todo, ainda que alguns direitos individuais
ou direitos coletivos constitucionalmente previstos tenham de ser sacrificados para
tanto.

Argumentos de política são, por exemplo, os defendidos pela Administração Pública ao


realocar recursos em momentos de grave necessidade (guerras, calamidades públicas
etc.) ou pelo Judiciário, quando este proíbe a divulgação de segredos militares. Nesse
último caso, o direito à livre expressão garantido pela Constituição é afastado, tendo em
vista a proteção da sociedade nacional vista como um todo, ou seja, o entendimento de
que ela está indiscutivelmente mais segura se as outras potências não lhe conhecem os
segredos bélicos.

A preponderância nesse tipo de argumento é claramente colocada no interesse coletivo


da sociedade como um todo, na maioria (e não no interesse coletivo de grupos,
associações etc., até porque esses podem ser afastados em favor daqueles),
21
tratando-se, assim de argumentação típica das correntes utilitaristas , e que defende,
no fundo, que a sociedade como um todo, seguindo as concepções de quantidade, será
idealmente melhor.

Já os argumentos de princípio também justificam uma decisão política, mas a


jurisprudência que se desenvolve a partir desses argumentos respeita ou garante um
direito constitucionalmente previsto de um indivíduo ou de um grupo,
independentemente se a sociedade como um todo (ou a maioria) ganha com isso.

Argumentos de princípio são os utilizados em qualquer legislação que vise a promover a


inclusão social de minorias étnicas, religiosas, sexuais etc. Os utilizados para
implementação de saúde e educação (e outros direitos de segunda ou terceira
dimensões) para camadas mais profundas da população, também. Exemplo bastante
palpável no Judiciário são as indenizações por violação cometida pelo Estado. Aqui, o
indivíduo possui um direito constitucionalmente garantido e o argumento de princípio o
faz valer, ainda que o erário público, portanto, a própria sociedade como um todo, saia
perdendo.

Esse tipo de argumento calca-se exclusivamente nos direitos constitucionais que os


indivíduos ou grupos tenham ou não de acordo unicamente com a Constituição e o
Estado Democrático de Direito vigentes. A preponderância não é da sociedade como um
todo, do indivíduo isoladamente considerado ou de grupos (por maiores que sejam),
mas, sim, dos direitos e garantias que estes possuam segundo a ordem político-jurídica
em que vivem.

Portanto, os argumentos de princípio, ao se desvencilharem de pragmatismos e


discricionariedades e tendo somente a Constituição e os direitos nelas insculpidos como
objetivo e matriz, são os argumentos que devem ser os mais legítimos para juízes e
juristas no Estado Democrático de Direito, os argumentos de Direito por excelência.
4.1.2 Integridade e coerência

Ingressando no coração do tema, então, qual seria a diferença entre integridade e


coerência? Indicam, sendo sinônimas, o dever das instituições públicas de seguir à risca
as decisões anteriores?
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Não necessariamente. A responsabilidade política que tais instituições têm para com os
indivíduos, responsabilidade esta exigência da atual democracia, impede a confusão
entre equidade e padronização.

“Será a integridade apenas coerência (decidir casos semelhantes da mesma maneira)


sob um nome mais grandioso? Isso depende do que entendemos por coerência ou casos
semelhantes. Se uma instituição política só é coerente quando repete suas próprias
decisões anteriores o mais fiel ou precisamente possível então a integridade não é
coerência; é, ao mesmo tempo, mais e menos. A integridade exige que as normas
públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a
expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma
instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha
das decisões anteriores, em busca de fidelidade aos princípios concebidos como mais
22
fundamentais a esse sistema como um todo”.

Portanto, não sendo expressões sinônimas, há uma diferença de grau.

A coerência pode ser definida como uma virtude política que as instituições públicas
Administração, Judiciário e Legislativo possuem quando repetem suas próprias decisões
23
anteriores o mais fiel ou precisamente possível .

Por sua vez, a integridade é também virtude política e, em grau superior à coerência, é
exigência jurídico-política da democracia e do Estado Democrático de Direito ao impor às
instituições públicas que as normas da sociedade a qual representam sejam “abstratas”,
no Legislativo, ou “concretas”, no Judiciário e na Administração Pública, sejam criadas
“de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta
24
proporção” , ainda que seus cidadãos estejam “divididos quanto à natureza exata dos
25
princípios de justiça e equidade corretos.” .
4.1.3 Integridade na legislação e na jurisprudência

Sendo a integridade do direito exigência política das instituições públicas, de modo que
elas criem normas conforme um quadro único e coerente de princípios, no que concerne
à Legislação geral e abstrata ela “demanda aos legisladores que tornem o conjunto de
26
leis moralmente (e constitucionalmente) justificáveis” .

No contexto brasileiro, a situação é dramática. Não seria preciso ir muito a fundo em


nossa legislação ordinária para reconhecermos a total falta de integridade de nosso
ordenamento jurídico. As desproporções nas penas criminais. As leis beneficiadoras das
27
classes médias e altas . O próprio NCPC que aqui tratamos, visto ser o tema deste
artigo a incongruência entre conceitos e institutos completamente díspares.

Por fim, todo o imbróglio das discussões na Câmara dos Deputados quanto ao
28 29
financiamento privado de campanha e quanto à redução da maioridade penal . O
direito transformou-se em seu oposto de um dia para o outro. Mais falta de integridade e
coerência no direito é difícil de imaginar.

“A integridade diz respeito a princípios: o governo deve ter uma só voz ao se manifestar
sobre a natureza desses direitos, sem negá-los, portanto, a nenhuma pessoa em
30
momento algum.” .

Ao substituir-se a expressão “governo” da citação acima por Judiciário (na verdade a


expressão está como sinônimo para “instituição pública”), tem-se a exata definição
dworkiana para a integridade do direito na jurisprudência. A integridade compreendida
como virtude e responsabilidade política devidas pelos juízes, como membros do Estado,
aos indivíduos. Assim, a estratégia jurídico-política baseada nos direitos e garantias que
os cidadãos tenham ou não segundo a Constituição, estratégia esta que contemple um
conjunto único e coerente de princípios (ainda que inevitavelmente surjam discordâncias
quanto a quais princípios e à justeza deles), e não qualquer outra de cunho utilitarista,
econômico ou que aposte maciçamente na discricionariedade dos juízes-ministros das
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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e
integridade e coerência do direito no código de processo
civil brasileiro

Cortes Superiores para a uniformização das causas e processos, passa a ser uma
exigência conjunta da democracia, da força normativa da Constituição e do próprio
Estado Democrático de Direito que, para efetivar-se na seara judicial, terá de valer-se
dos argumentos de princípio acima expostos.

A integridade do direito é construção teórica para a superação tanto do juiz-boca-da-lei,


o juiz típico do positivismo exegético, quanto para o seu oposto, o juiz voluntarista
31
(ativista) que vai buscar em sua própria consciência o julgamento justo . Ambos fazem
soçobrar o edifício constitucional, o método é que difere: um confunde texto com direito
e outro confunde direito com consciência. O primeiro tipo de juiz (e de direito), porém, é
malhado constante e devidamente por seu anacronismo, enquanto que o segundo é
incentivado pela doutrina e pela jurisprudência como forma de libertação daquele. As
mais diversas tendências críticas antipositivistas, por sua vez, não fazem mais do que
criticar o juiz-boca-da-lei e o positivismo exegético, mas pouco fazem, por conveniência
ou confusão, em relação ao positivismo normativista. Não superam Hans Kelsen, o pai
do positivismo normativista, ao não compreender que ele próprio já superara o
exegetismo ao diferenciar o texto da norma e, assim, confundem-no com o positivismo
tout court.

E, assim, fecha-se o ciclo dedicado à exposição da obra de Ronald Dworkin no referente


à integridade e coerência do direito. Em seguida, a sua realidade no NCPC.
4.2 Integridade e coerência no NCPC

O tema da integridade e coerência encontra-se concentrado no NCPC em apenas um


artigo, o 926, enquanto que os dois seguintes apresentam interesse periférico. Os três
compõe o capítulo I (“Disposições Gerais”) do título primeiro (“Da Ordem dos Processos
e dos Processos de Competência Originária dos Tribunais”), este, por sua vez, do livro
terceiro (“Dos Processos nos Tribunais e dos Meios de Impugnação das Decisões
Judiciais”).

O art. 926 impõe o dever aos tribunais de uniformizar sua jurisprudência e mantê-la
estável, íntegra e coerente. Vê-se que, apesar de ser uma determinação legal, o
significado da expressão uniformização da jurisprudência aqui utilizado é completamente
diverso, por exemplo, da mesma expressão utilizada na Exposição de Motivos do NCPC
justificadora do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR). Porque lá,
como em quaisquer outros documentos que apelem para a vinculação jurisprudencial à
brasileira, ou seja, apostando em conferir uma alta discricionariedade e força de lei à
jurisprudência das Cortes Superiores a partir de lide única, uniformização da
jurisprudência significa exclusivamente o acatamento completo das decisões das Cortes
Superiores por todo o Judiciário, ocasionando, em contrapartida à diminuição da
insegurança jurídica e do número físico de processos, o engessamento da jurisprudência
e o atropelo de conquistas democrático-constitucionais como o devido processo legal, o
contraditório e a ampla defesa. A mesma expressão inserida no art. 926 ao lado de
jurisprudência estável, íntegra e coerente significa, por sua vez, aquela responsabilidade
política dos juízes de julgar não conforme a própria consciência, a simples letra da lei ou
as decisões advindas das instâncias mais altas, mas a partir de um conjunto íntegro e
coerente de princípios e garantias que os cidadãos tenham ou não segundo a ordem
política e constitucional vigente, ou seja, a Constituição Federal.

Ainda, o § 2º do citado artigo constitucionalmente impõe que as súmulas editadas pelos


tribunais (vinculantes ou não), a mais do dever de serem estáveis, íntegras e coerentes,
também “devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua
criação”. Ou seja, nos paradigmas de integridade e coerência do direito, a jurisprudência
não pode tornar-se factumfóbica.

Não é demais lembrar que o próprio Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas


(IRDR) analisado e criticado acima no item 3.2. descarta as questões de fato,
utilizando-se em sua disciplina apenas das questões de direito como requisito para que o
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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e
integridade e coerência do direito no código de processo
civil brasileiro

processo receba a qualidade de processo-paradigma a ser levado adiante para


julgamento em segunda instância, enquanto que os demais ficam suspensos. O IRDR,
assim, torna-se factumfóbico, ao desprezar completamente o substrato fático, o mundo
fático que, assumindo, portanto, a chaga da dogmática jurídica legal, passa a ter as
portas do Judiciário fechadas.
32
No mais, o art. 927 impõe o dever aos juízes e tribunais de observância das decisões
do Supremo Tribunal Federal, suas súmulas vinculantes e enunciados em matéria
constitucional. Esse dever de observação das decisões tomadas em graus superiores na
atual era democrática-constitucional é óbvio, os juízes não podem simplesmente ignorar
a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Na verdade, essa é a responsabilidade dos
juízes que fundamenta e legitima a construção natural da jurisprudência. Segundo o que
viemos construindo nestas páginas, porém, com a jurisprudência vinculante e o IRDR
(apenas um de seus frutos), os juízes terão a obrigação de aplicar fielmente as decisões
advindas das Cortes Superiores sem atentar-se para os fatos da lide em questão e,
quiçá, sem atentar-se mesmo para a lei no caso em que a jurisprudência do STF ou STJ,
ora vinculantes e com força de lei, sejam díspares, conflitantes com ela ou mesmo
contrariem-na (!). Corre-se também o risco, portanto, de uma maquinização das funções
jurisdicionais.
5 Conclusão

O caminho que se percorre com a jurisprudência vinculante à brasileira é sui generis. As


recentes reformas processuais, o NCPC e todo o exposto neste artigo sustentam a
afirmativa no sentido de que a chamada commonlização do direito brasileiro como
solução para nossos principais problemas judiciais nada mais é do que o conferir imenso
poder discricionário às Cortes Superiores e vincular suas decisões, de modo que a
jurisprudência passa a ter foros e força de lei. A inspiração na common law é falaciosa,
mas permanece invocada para angariar adeptos. A verdadeira common law, o
verdadeiro sistema de precedentes judiciais, não guarda nenhuma semelhança com
nossos experimentos tupiniquins.

No mais, o sistema judicial brasileiro passará a ser o único conhecido com a real
possibilidade de que a lei atualize a jurisprudência, e não o contrário!

“Se na Revolução Francesa não há jurisprudência senão lei, caminhamos para um


modelo em que não há lei senão jurisprudência. Jurisprudência esta dos tribunais
superiores e é formada em bases discricionárias. Assim, passados mais de dois séculos,
caminhamos para um retrocesso primitivo no aspecto hermenêutico, de um juiz boca fria
da lei passamos para um juiz boca fria dos tribunais superiores. Se essa troca, em
termos hermenêuticos, muda muito pouco, em termos democráticos, podemos afirmas
que há um retrocesso, porque passa a se privilegiar atos oriundos do próprio Judiciário
33
do que a lei que é o ato representativo da maioria democrática por excelência”.

O que o Judiciário (os juízes) não podem fazer é legislar abstratamente a partir de uma
decisão concreta de lide e é exatamente isso o que ocorre com o Incidente de Resolução
de Demandas Repetitivas, instituto este que concentra de maneira explícita muitas das
características de nossas últimas reformas processuais: vinculação jurisprudencial
forçada (ou seja, por meio de lei), aposta na discricionariedade das Cortes Superiores
(sem esquecer que o poder discricionário dos juízes é o cavalo de Troia dentro do Estado
Democrático de Direito), o conferimento de força de lei à jurisprudência assim formada,
apelo à commonlização como panaceia para nossos problemas judiciais, vagas
inspirações em institutos de common law ou do direito continental europeu (no caso
específico, o Musterverfahren do direito alemão e o Group Litigation Order britânico, este
último em muito menor grau), desprezo total ao substrato fático das lides, cronofobia ao
julgar-se legislando para o futuro, e ainda acrescente-se as afrontas ao devido processo
legal, ao contraditório e à ampla defesa.

A jurisprudência no Brasil não será construída, mas forçada.


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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e
integridade e coerência do direito no código de processo
civil brasileiro

É bem possível o sucesso dessas reformas processuais (o IRDR e demais que apostem
na jurisprudência vinculante) no diminuir a quantidade de processos no Judiciário e,
consequentemente, o risco da insegurança jurídica. Mas a custos muito elevados. Mas a
custos constitucionais. Integridade e coerência do direito, por sua vez, permanecem
distantes, verdadeiras excrescências no NCPC e, todavia, como esperá-los, sendo que a
própria lei que os institui é tudo, menos íntegra e coerente?
6 Referências

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busca por um real sistema acusatório. 2014. 79 f. Trabalho de conclusão de curso
(Bacharel em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Franca, 2014.

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de direitos. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

1 O Estado Democrático de Direito instaurado pela Constituição Federal de 1988


demanda, entre outras coisas, uma postura efetiva do direito, uma postura de
concretização dos objetivos, desideratos e princípios constitucionais, bastante diferente
do direito concebido como organização social no Estado Liberal Clássico ou como
desenvolvimentista no Estado Social (Welfare State). Justamente por essa força do novo
ruptural em relação à antiga ordem constitucional, ao ambiente ora ao menos
formalmente democrático e a essa nova função do direito, passaram a ser ventiladas
maciçamente em nossa doutrina diversas construções teóricas importadas, muitas das
quais foram agasalhadas pelo nosso senso comum teórico como aptas para a solução de
nossos problemas jurídicos, e democrático-constitucionais, de efetivação da Constituição.
Por exemplos máximos, o neoconstitucionalismo (que amiúde é tratado como
pós-positivismo, embora, diga-se de passagem, sejam profundamente dessemelhantes)
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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e
integridade e coerência do direito no código de processo
civil brasileiro

e a teoria da ponderação de Alexy. É realmente difícil encontrar constitucionalista


brasileiro(a) que não argumente pela “força normativa e dirigente da Constituição” (o
que é óbvio) ou pela ponderação para sopesar direitos e garantias fundamentais em
conflito.

2 Ao complexo de vira-lata de Nelson Rodrigues, ou ao provincianismo mesmo de nossas


“elites” intelectuais, parece agradar enormemente as novidades com nome inglês: CEO,
compliance etc., de modo que a chamada commonlização do direito brasileiro como
panaceia para nossos principais problemas judiciais aproveita-se em seu impacto inicial
dessa espécie de fetiche por estrangeirismos em inglês, a par da sua fragilíssima
semelhança para com a common law original. Uma commonlização para inglês ver.

3 ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e


a decisão judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 362.

4 DÍAZ, Elías. Estado de derecho y sociedade democrática. Madrid: Edicusa, 1975. p.


131.

5 O juiz Hércules é apresentado em O império do direito (Trad. Jefferson Luiz Camargo.


Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007) como forma de
superação do juiz discricionário nos polêmicos embates travados por Dworkin contra
Herbert Hart quanto ao positivismo jurídico e a separação entre casos fáceis e casos
difíceis, em que para esses últimos seria inevitável recorrer-se ao solipsismo judicial, a
discricionariedade do juiz, defendem os normativistas (Hart por todos, o que incluiria,
sem qualquer, ressalva Hans Kelsen), enquanto que Dworkin responde com o juiz
Hércules, protótipo ideal de magistrado não discricionário e construtor de uma
jurisprudência constitucionalmente íntegra e coerente.

6 “Conta-nos uma pequena fábula romana que Aulo Gélio, então jovem magistrado
imerso em indagações sobre como tornar-se um melhor cidadão e em consequência um
julgador mais prudente (a velha ius prudentia dos romanos), expôs suas angústias a um
filósofo de nome Favorino. Este explicou-lhe que essencialmente existiriam apenas dois
tipos de julgadores: aqueles que preferiam o silêncio quando da audição das partes e
testemunhas, ouvindo-as apenas; e aqueles que, premidos por dúvidas próprias surgidas
nas discussões do momento da causa, interferiam nestes depoimentos, levantando
questões para os envolvidos. O filósofo acrescenta que para este último tipo de julgador
era muito mais provável a acusação de estar atuando, desde antes da decisão, a favor
de uma das partes ou então, através das perguntas por ele aduzidas, de deixar entrever
o conteúdo do futuro decreto decisório. A questão, portanto, repousaria na credibilidade
da decisão do magistrado frente não somente às partes, como também aos cidadãos da
civitas. Repousaria, enfim, na própria imparcialidade do julgador.” XAVIER, Felipe
Rodrigues. O juiz das garantias como gestor de provas: implicações na busca por um
real sistema acusatório. 2014. 79 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharel em
Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho”. Franca, 2014.

7 Exemplo maior dessa commonlização à brasileira, ao mesmo tempo que é seu principal
efeito, são as súmulas vinculantes que detêm poder de lei. Como já justificado na
introdução deste artigo, as súmulas não serão aqui tratadas por questões de espaço e
recorte temático.

8 ABBOUD. Op. cit., p. 363.

9 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo:


Malheiros, 2005. p. 136. Grifo nosso.

10 CINTRA, Antônio Carlos; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.


Teoria geral do processo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 47. Na mesma página,
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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e
integridade e coerência do direito no código de processo
civil brasileiro

os autores consideram os aspectos positivo e negativo da instrumentalidade: o positivo


seria a já mencionada efetividade do processo em todos os seus escopos sociais,
políticos e jurídicos, atingindo-se, assim, uma ordem jurídica justa. Por sua vez, o
aspecto negativo encontraria forma mais definida no princípio da instrumentalidade das
formas, em que os atos formais do processo só mereceriam ser seguidos à risca, sob
pena de invalidação dos atos, quando não significarem entrave para o atingimento
daqueles escopos mencionados no aspecto positivo.

11 ABBOUD. Op. cit., p. 366.

12 ABBOUD. Op. cit., p. 390.

13 Há duas dissertações específicas a respeito desse instituto e a elas remetemos o


leitor: LUSTOSA, Luís Geraldo Soares. Incidente de resolução de causas repetitivas:
perspectivas econômicas implícitas na resolução de demandas repetitivas e de massa no
projeto do novo Código de Processo Civil. 2012. 85 f. Dissertação (Mestrado em Direito).
Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2012. Disponível em:
[www.unicap.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo="840]." Acesso em:
03.06.2015; e CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Mecanismos de resolução de litígios de
massa: um estudo comparativo entre as ações coletivas e o incidente de resolução de
demandas repetitivas. 2014. s.f. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia
Universidade Católica. São Paulo, 2014.

14 Trata-se da Ação de Conversão da Ação Individual em Ação Coletiva que, apesar de


constante da redação final do NCPC, recebeu veto da Presidenta da República ao seguir
parecer da AGU.

15 Transcreve-se, aqui, a parte referente do tema na Exposição de Motivos do NCPC:


“Criaram-se figuras, no novo CPC (LGL\2015\1656), para evitar a dispersão excessiva da
jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho
no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional. Dentre
esses instrumentos, está a complementação e o reforço da eficiência do regime de
julgamento de recursos repetitivos, que agora abrange a possibilidade de suspensão do
procedimento das demais ações, tanto no juízo de primeiro grau, quanto dos demais
recursos extraordinários ou especiais, que estejam tramitando nos tribunais superiores,
aguardando julgamento, desatreladamente dos afetados. Com os mesmos objetivos,
criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido Incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a
mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para
decisão conjunta. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas é admissível
quando identificada, em primeiro grau, controvérsia com potencial de gerar multiplicação
expressiva de demandas e o correlato risco da coexistência de decisões conflitantes. É
instaurado perante o Tribunal local, por iniciativa do juiz, do MP, das partes, da
Defensoria Pública ou pelo próprio Relator. O juízo de admissibilidade e de mérito
caberão ao tribunal pleno ou ao órgão especial, onde houver, e a extensão da eficácia da
decisão acerca da tese jurídica limita-se à área de competência territorial do tribunal,
salvo decisão em contrário do STF ou dos Tribunais superiores, pleiteada pelas partes,
interessados, MP ou Defensoria Pública. Há a possibilidade de intervenção de amici
curiae. O incidente deve ser julgado no prazo de seis meses, tendo preferência sobre os
demais feitos, salvo os que envolvam réu preso ou pedido de habeas corpus. O recurso
especial e o recurso extraordinário, eventualmente interpostos da decisão do incidente,
têm efeito suspensivo e se considera presumida a repercussão geral, de questão
constitucional eventualmente discutida. Enfim, não observada a tese firmada, caberá
reclamação ao tribunal competente. As hipóteses de cabimento dos embargos de
divergência agora se baseiam exclusivamente na existência de teses contrapostas, não
importando o veículo que as tenha levado ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior
Tribunal de Justiça. Assim, são possíveis de confronto teses contidas em recursos e
ações, sejam as decisões de mérito ou relativas ao juízo de admissibilidade. Está-se,
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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e
integridade e coerência do direito no código de processo
civil brasileiro

aqui, diante de poderoso instrumento, agora tornado ainda mais eficiente, cuja
finalidade é a de uniformizar a jurisprudência dos Tribunais superiores, interna corporis.
Sem que a jurisprudência desses Tribunais esteja internamente uniformizada, é posto
abaixo o edifício cuja base é o respeito aos precedentes dos Tribunais superiores”.
Comissão de juristas instituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal n. 379/2009.
Anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Disponível em:
[www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/anteprojeto.pdf]. Acesso em: 04.08.2015.

16 STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica
da construção do direito. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2014. p. 378.

17 “Todos aqueles que tiveram alguma pretensão de direito material a ser deduzida no
processo têm direito de invocar o princípio do contraditório em seu favor. (...) Por
contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da
existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade
de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis. (...) Em razão da
incidência da garantia constitucional do contraditório, é defeso ao julgador encurtar,
diminuir (Verkurzt) o direito de o litigante exteriorizar a sua manifestação nos autos do
processo. Em outras palavras, não se pode economizar, minimizar a participação do
litigante no processo.” NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição
Federal: processo civil, penal e administrativo. 10 ed. rev., ampl. e atual. com as novas
súmulas do STF (simples e vinculantes) e com análise sobre a relativização da coisa
julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 210-211.

18 ABBOUD. Op. cit., p. 395-396.

19 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 1997. p. 18.

20 A diferenciação entre esses dois tipos de argumentação, os mais utilizados em nossa


práxis em qualquer ambiente em que se trate do Direito, é mais detalhadamente
exposta no terceiro item da parte primeira da obra Uma questão de princípio. Trad. Luis
Carlos Borges. Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios. Rev. da Trad. Silvana Vieira. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 105-153, embora o tema perpasse toda a doutrina de
Dworkin.

21 “A maior felicidade para o maior número”, máxima de Jeremy Bentham que melhor
representa o utilitarismo.

22 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. Rev. téc.
Gildo Sá Leitão Rios. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 263-264. Grifo no
original.

23 Ibidem, p. 253.

24 Ibidem, p. 267.

25 Esse é o significado da integridade do direito concebida como virtude e exigências


políticas. É: “Quando insistimos em que o Estado e a sociedade como um todo ajam
segundo um conjunto único e coerente de princípios mesmo quando seus cidadãos estão
divididos quanto à natureza exata dos princípios de justiça e equidade corretos”.
DWORKIN. Op. cit. As decisões legislativas e judiciais têm de ser íntegras, pois
vinculadas a um sistema único de princípios, direitos e garantias. Tal sistema no Estado
Democrático de Direito não poderia ser outro que não a Constituição. Sendo assim, o
conceito de integridade do direito supera o de equidade ou expressões semelhantes por
sua materialidade e vinculação ao Pacto Social (realizador e prospectivo) simbolizado na
Constituição Federal.
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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e
integridade e coerência do direito no código de processo
civil brasileiro

26 DWORKIN. Op. cit., p. 266.

27 “O art. 9º da Lei 10.684/03 trouxe evidentes benefícios aos sonegadores de impostos


e de contribuições sociais, ao introduzir a possibilidade de o sonegador ficar isento do
crime em caso de pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia criminal.
Enquanto isso, ao ‘cidadão-comum-não-sonegador’, em caso de crime contra o
patrimônio em que não tenha restado prejuízo à vítima (restituição ou recuperação da
res), há somente o benefício do desconto da pena (art. 16 do Código Penal).” STRECK.
Op. cit., p. 70. A extinção da pretensão punitiva dos crimes tributários com o
parcelamento dos tributos devidos é apenas um dos favores legislativos concedidos às
classes mais abastadas. A lei significa que quem sonega imposto merece um benefício
maior do que aquele que furta. O que é mais importante? Outro exemplo é a cela
especial para os diplomados.

28 Com manobra de Cunha, Câmara aprova doação de empresas para partidos nas
campanhas. O Globo. Rio de Janeiro, 27.05.2015. Disponível em:
[http://oglobo.globo.com/brasil/com-manobra-de-cunha-camara-aprova-doacao-de-empresas-para-par
Acesso em: 07.07.2015.

29 Após manobra, Câmara aprova proposta para reduzir maioridade. G1. São Paulo,
02.07.2015. Disponível em:
[http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/07/apos-rejeitar-pec-camara-aprova-novo-texto-que-reduz-m
Acesso em: 07.07.2015.

30 DWORKIN. Op. cit., p. 259.

31 É possível traçar um paralelo entre a Escola do Direito Livre do início do século


passado com a situação atual da jurisprudência brasileira: “A Escola do Direito Livre, do
início do século XX. Fundada por Hermann Kantorowicz (1906, A luta pela ciência do
direito), essa doutrina defende — atenção! — para a época — a plena liberdade do juiz
no momento de decidir os litígios, podendo, até mesmo, confrontar o que reza a lei. O
juiz não estaria lançando mão apenas do seu poder decisório, mas, mais do que isso, a
sua função de legislador, seu poder legiferante para encontrar aquilo que ele, juiz,
percebe como ‘o justo’. Bingo. E binguíssimo. Dizia-se da Escola do Direito Livre: Escola
do Direito Livre...da Lei! Qual é a diferença do que se vê hoje por aí? Cada um decide
como quer. Cada um busca o seu justo. A questão é: por que livrar o direito da lei e da
Constituição? A Constituição não é boa? Não é ela que estabelece, inclusive, o poder do
Poder Judiciário? Mas não é ela que obriga o judiciário a fundamentar? E não é nela que
está escrito que o legislativo legisla e o judiciário julga, aplicando...a lei feita pelo
legislativo? Aliás, como disse dia desses o ministro Marco Aurélio: A CF (LGL\1988\3)
coloca o Legislativo e o Executivo antes do Judiciário. Bingo! Corretíssimo, ministro!”
STRECK, Lênio Luiz. O Brasil revive a escola do direito livre! E dá-lhe pedalada na lei!
Consultor Jurídico. São Paulo, 25.06.2015. Disponível em:
[www.conjur.com.br/2015-jun-25/senso-incomum-brasil-revive-escola-direito-livre-lhe-pedalada-lei].
Acesso em: 07.07.2015. Os extremos conduzem a resultados parecidos, diz o
conhecimento milenar. Do mesmo modo, nem texto de lei, tampouco consciência
(embora social e crítica) conduzem diretamente a direito.

32 “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:


I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de
constitucionalidade;

II – os enunciados de súmula vinculante;

III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de


demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

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A estranha coexistência entre protagonismo judicial e
integridade e coerência do direito no código de processo
civil brasileiro

IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional


e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”

33 ABBOUD. Op. cit., p. 368.

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