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UMA LEITURA CONSTITUCIONAL DO PROCESSO CIVIL

Evidenciada a correlação entre a proposta institucional do


Estado e a concepção do ordenamento jurídico, passamos a
identificar as referências constitucionais para a compreensão do
novo modelo de processo.
Em Ronald Dworkin, é possível identificar dois vetores
hermenêutico-constitucionais para balizar nossa interpretação
acerca das normas processuais: coerência e integridade.
A ideia nuclear da coerência, no Estado Democrático de Direito,
se afirma pela concretização da igualdade. Sob essa perspectiva é
possível concluir que há coerência quando, diante de casos
semelhantes, aplicam-se os mesmos princípios e preceitos legais.8
Por isso, muitos dos dispositivos normativos do CPC/2015 se
prestam a padronizar respostas judiciais, sem com isso
desconsiderar a identidade da causa. Dito com linhas mais simples:
a semelhança entre as demandas deve ser comprovada,
assegurando-se, contudo, aos envolvidos, a possibilidade de
arguirem as especificidades de sua demanda para buscarem
respostas adequadas.
A integridade, por sua vez, impõe-se para o Legislativo e para o
Judiciário. Ao primeiro, estabelece o compromisso da edição de leis
moralmente coerentes. Ao segundo, tanto quanto possível, o
exercício de uma atividade judicante, em acordo com a coerência
moral do ordenamento.9
Sob essa perspectiva, pode-se concluir que a integridade
determina sempre um grau de sentido a partir do qual se vai
construir a resposta do caso, como se o juiz estivesse escrevendo,
em sua decisão (para usar a ideia do romance em cadeia de
Dworkin), o próximo capítulo de uma série. É certo que na condição
de autor, quem decide tem certo grau de liberdade para criar, isso,
entretanto, não é feito sem os limites previamente estabelecidos
pelos capítulos anteriores, ou sem a contextualização da história.
Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um
romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os
capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que
é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte,
e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de
modo a criar da melhor maneira possível o romance em
elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a
complexidade de decidir um caso difícil de direito como
integridade.10
A integridade, advirta-se, não contempla todas as etapas
históricas, o que justifica o fato de juízes não estarem ancorados a
paradigmas do século passado ou a ideais incompatíveis com a
democracia.11 É certo que o desenvolvimento da sociedade, por
vezes, provoca rupturas com certas tradições jurídicas e por essa
razão, devemos adotar, como ponto de partida para a
interpretação,
o texto constitucional de 1988, a fim de que seus preceitos,
finalidades e fundamentos sejam assegurados e efetivados no
sistema processual.
Em termos práticos, essa leitura constitucional do processo civil,
feita a partir dos vetores coerência e integridade, permite-nos
compreender, por exemplo, a previsão de ritos específicos para
determinadas situações e ainda uma certa orientação, feita ao
Legislativo e ao Judiciário, para a criação, interpretação e aplicação
das normas processuais.
Com efeito, a noção de “Direito como integridade” supõe que os
cidadãos têm direito a uma extensão coerente e fundada em
princípios, aqui compreendidos como um padrão de
comportamento,
ainda quando o intérprete discorde de seu significado. Afinal, não
vamos ao Judiciário procurando por opiniões pessoais, mas sim
por
respostas institucionais. Essas respostas, ao final, devem
necessariamente considerar os Direitos Fundamentais que hoje
são
elementos da ordem jurídica objetiva, desenvolvendo o texto
constitucional por meio de elementos axiológicos, compartilhados
no
espaço público, para estabelecer as diretrizes hermenêuticas com
as quais o intérprete deve trabalhar. Dito com linhas mais simples:
nosso horizonte hermenêutico, a partir do qual devemos
compreender, interpretar e aplicar o Direito, é construído pelos
Direitos Fundamentais, que consigo trazem todo um histórico
institucional e marcos civilizatórios, para estabelecer uma moldura
que contém as possibilidades de interpretação constitucional que,
aqui, se torna indispensável para a entrega de uma resposta
correta ao jurisdicionado.
No sentido do texto, Ingo Sarlet vai dizer que:
Os Direitos Fundamentais passam a ser considerados, para
além de sua função originária de instrumentos de defesa da
liberdade individual, elementos da ordem jurídica objetiva,
integrando um sistema axiológico que atua como
fundamento material de todo o ordenamento jurídico.
Situando-nos naquilo que pode ser considerado um espaço

 1.3

intermediário entre uma indesejável tirania ou ditadura dos


valores e uma, por sua vez, impossível indiferença a eles,
importa reconhecer que a dimensão valorativa dos direitos
fundamentais constitui, portanto, noção intimamente
agregada à compreensão de suas funções e importância
num Estado de Direito que efetivamente mereça ostentar
este título.12
É por essa estrada que propomos uma leitura constitucional do
sistema processual, a fim de assegurarmos respostas institucionais
corretas para o cidadão. A tarefa é hercúlea, pois há muito o que
superar nos campos da hermenêutica jurídica, dos institutos
processuais e da legislação, mas não caminharemos sós.

 ATENÇÃO

Os princípios servem para resgatar a faticidade para o


Direito. Por eles é possível considerar a peculiaridade do
caso e entregar respostas adequadas à isonomia
material. Sua compreensão, interpretação e aplicação é
feita a partir da matriz constitucional, que previamente
delimita as variáveis semânticas, não legitimando,
portanto, resultados arbitrários e solipsistas.

 DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL


A doutrina de Ada Pellegrini13 nos ensina que o direito material é:
“O corpo de normas que disciplinam as relações jurídicas
referentes
a bens e utilidades da vida (direito civil, penal, administrativo,
comercial, tributário, trabalhista etc.)”.
Essas normas, conforme a lição de Luiz Rodrigues Wambier,14
tratam das “relações jurídicas travadas no mundo empírico, como
por exemplo, as que tratam da compra e venda de bens, ou
disciplinam o modo como devem viver os vizinhos”.
Sem prejuízo dessas disposições materiais, que hodiernamente
regulamentam as relações travadas entre particulares ou entre
estes
e o Estado-administração, devemos considerar que a violação
dessa esfera objetiva implica, de acordo com a dicção do art. 189
do
diploma civil, o surgimento de uma pretensão, com a qual se
poderá
exigir o cumprimento do direito, verbis: “Violado o direito subjetivo
nasce para seu titular uma pretensão, que se extingue pela
prescrição, (...)”.
Afirma-se então que as normas de direito objetivo são previstas
para regulamentar as relações de direito material, a exemplo do
contrato de locação celebrado entre particulares para disciplinar
questões como o valor do aluguel, o índice utilizado para reajustar
as prestações, o termo inicial e o final do contrato etc.
Ao celebrar o referido contrato, decorrem, para as partes
envolvidas, direitos e deveres na órbita civil, tornando-se seus
contratantes titulares de deveres e direitos subjetivos.
Considerando a natureza dessa espécie de direitos, que por
serem subjetivos reclamam para o seu cumprimento uma
prestação,
resta evidenciada a possibilidade de descumprimento. Assim, pode
o valor do aluguel não ser recolhido, a desocupação pode não
ocorrer na data aprazada no contrato etc.
Violado esse direito subjetivo, vez que a prestação
correspondente não fora observada pelo devedor, nasce então
para
seu titular uma pretensão e a correlata possibilidade de ele exigir o
cumprimento do dever.
Sendo a exigência respeitada pelo devedor, a norma material
ainda se revelará capaz de regulamentar a relação jurídica
material,
prevendo, por exemplo, multa pela mora ou cláusula penal pela
rescisão contratual.
Todavia, a exigência do titular da pretensão para que o devedor
respeite e observe o seu adimplemento poderá ainda assim ser
resistida, cabendo ao seu titular, em razão da vedação à autotutela,
acionar o Estado-juiz para que este possa dirimir o conflito, uma
vez
que a disposição material já não se revela suficiente para regular a
relação jurídica.
Aos princípios, regras e dispositivos que regulamentam a
provocação e o atuar do Estado-juiz para o exercício da função
jurisdicional chamamos de normas processuais.
Em arremate, nos informa a doutrina de Francesco Carnelutti
que, se interesse nada mais é que uma situação favorável à
satisfação de uma necessidade humana, se as necessidades
humanas são ilimitadas, se em contraponto a isto os bens são
finitos
– isto é, a porção exterior do mundo apta a satisfazê-las –,
correlata
à noção de interesse e de bens é a noção de conflito de interesses.
Conclui então o mestre que a regulamentação das diversas
expectativas humanas sobre o mesmo bem está na base da ordem
jurídica.

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