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Licenciatura em Direito – 1.

º Ciclo - Introdução ao Direito I


Exame de 2.ª Época - Ano lectivo 2019/20 - 11.VII.2020 – 10h:00m
Docentes: Doutor Fernando Pinto Bronze
Dr. Flávio Serrano Roques
Mestre Dora Lopes Fonseca
Mestre Rui Oliveira
Grupo I (5 valores)
Atente nas seguintes proposições normativas:
a) “A presente lei define as bases gerais em que assenta o sistema de segurança social, adiante designado
por sistema, bem como as iniciativas particulares de fins análogos” - Artigo 31.º da Lei n.º 4/2007, de 16
de Janeiro que define as bases gerais do sistema de Segurança Social.

b) “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular
e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” – Artigo 1.º da Constituição da
República Portuguesa.

c) “A validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a
lei exigir” – Artigo 219.º do Código Civil.

d) “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto,
ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou
juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.” – Artigo 180.º, n. º1
do Código Penal.

Mostre, justificadamente, a que linha da estrutura da ordem jurídica correspondem


as proposições transcritas supra.

Grupo II (7 valores)
Distinga e relacione, com referência a exemplos – sempre que pertinentes – a função
prescritiva e a função organizatória da Ordem Jurídica.

Grupo III (8 valores)


Pedrito e Vanessa residem na Moraria, reputado bairro de Lisboa. Pedrito gosta muito de
estudar, é apreciador de silêncio, é um verdadeiro intelectual, já Vanessa nutre um sentimento
indiscutível pelas festas dos santos populares, nomeadamente pelo Santo António, até
porque procura noivo há vários anos, sem sucesso.
Com as novas “regras” impostas devido à COVIS 19, os festejos populares do Santo António
foram proibidos, e Vanessa ficou com o seu coração partido.
Entretanto, no passado dia 13 de Junho, dia em que costumava “sair à rua” nas marchas
populares, Vanessa resolveu comemorar, em casa, ouvindo ininterruptamente as músicas que
iriam sair nas marchas, fê-lo pela noite dentro.
Pedrito até é um rapaz paciente e deveras pacífico, mas o certo é que não conseguiu dormir
durante dois dias e duas noites, e entende que tem o direito a descansar na sua residência.
Por sua vez, Vanessa alega que, já que não pode festejar o Santo António nas ruas, pode
ouvir música na sua casa, até às horas que bem entender e ao som que mais lhe agradar.
Ambos entendem estar a exercer um direito, legitimamente!
De acordo com o que estudou acerca do positivismo jurídico, respectivos factores de
superação e coordenadas caracterizadoras, elabore uma reflexão atinente à solução
jurídica que melhor poria fim ao conflito supra exposto.
FIM
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TÓPICOS DE CORRECÇÃO
I

 Enquadramento do assunto nos grandes núcleos temáticos estudados: na


circunstância, este tópico está integrado no problema do direito e na
determinação do seu sentido geral, onde foi estudada a ordem jurídica como
factum da experiência imediata do direito, tendo, nomeadamente sido
considerada na sua estrutura;
 Resumo da estrutura da ordem jurídica talqualmente foi estudada: a ordem
jurídica, formalmente considerada, apresenta uma estrutura triangular de
geometria variável; na base, a linha das relações entre sujeitos particulares
(ordo partium ad partes), com os valores da liberdade (autonomia) e da
igualdade (paridade) numa intenção à justiça comutativa, e no âmbito da
qual emerge todo o direito privado; em sentido ascendente, a linha das
relações entre os cidadãos e a sociedade (ordo partium ad totum), com os
valores da liberdade e da responsabilidade comunitária e a intenção à justiça
geral ou protectiva, integrando o domínio do direito público
(constitucional, criminal, fiscal, etc.); em sentido descendente, a linha das
relações entre a sociedade e os cidadãos-destinatários (ordo totius ad partes),
com os valores da liberdade e da solidariedade e a intenção à justiça
distributiva e à justiça correctiva, reportando também ao domínio do direito
público (administrativo, social, ambiente, económico, etc.);
 Alínea a): situar o critério normativo-legal em causa no âmbito do direito
público, mais especificamente no ramo do direito da segurança social; este
critério legal integra a linha descendente da estrutura da ordem jurídica, uma
vez que o mencionado ramo tem por objecto relações entre a sociedade e
os cidadãos-destinatários (ordo totius ad partes), com os valores da liberdade e
da solidariedade e a intenção à justiça distributiva e à justiça correctiva;
 Alínea b): situar o critério normativo legal em causa no âmbito do direito
público, mais especificamente no ramo do direito constitucional; este
critério legal integra a linha ascendente da estrutura da ordem jurídica, dado
que o direito constitucional reporta, essencialmente, às relações entre os
cidadãos e a sociedade (ordo partium ad totum), com os valores da liberdade e
da responsabilidade comunitária numa intenção à justiça geral ou
protectiva;
 Alínea c): situar o critério normativo-legal em causa no domínio do direito
privado, mais concretamente no ramo do direito civil comum; este critério
legal integra a linha de base da estrutura da ordem jurídica, pois o direito
civil comum - como, aliás, todo o direito privado – tem por objecto as
relações entre sujeitos particulares (ordo partium ad partes), com os valores da

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liberdade (autonomia) e da igualdade (paridade) numa intenção à justiça
comutativa;
 Alínea d): situar o critério normativo-legal em causa no âmbito do direito
público, mais especificamente no ramo do direito penal; este critério legal
integra a linha ascendente da estrutura da ordem jurídica, dado que o direito
criminal tem por objecto relações entre os cidadãos e a sociedade (ordo
partium ad totum), com os valores da liberdade e da responsabilidade
comunitária numa intenção à justiça geral ou protectiva.

II

 Enquadramento da questão nos grandes núcleos temáticos estudados: na


circunstância, este tópico está integrado no problema do direito e na
determinação do seu sentido geral, onde considerámos a ordem jurídica
como factum da experiência imediata do direito, tendo, nomeadamente, sido
aí estudadas as respectivas funções;
 Identificação das funções da ordem jurídica: a ordem jurídica, formalmente
considerada, cumpre duas funções, uma função primária ou prescritiva e
uma função secundária ou organizatória;
 Caracterização da função primária ou prescritiva da ordem jurídica: nesta
função o direito surge como princípio de acção e como critério de sanção e visa-
nos directamente enquanto membros da comunidade; como princípio de acção
a ordem jurídica define prescritivamente os nossos direitos subjectivos e as
nossas responsabilidades e valora judicativamente os nossos
comportamentos como lícitos ou ilícitos, ou seja, a ordem jurídica define
aqui padrões de comportamento que pretende sejam levados à prática e
ajuíza juridicamente das nossas acções/omissões concretas; mas a ordem
jurídica não se limita a prescrever critérios de comportamento, de fruição
do mundo, antes concorre igualmente para que esses critérios se realizem
em termos práticos, sendo, por isso, também critério de sanção; a sanção é todo
o meio (consonante com as exigências da igualdade, da correlatividade, da
proporcionalidade, da necessidade, da adequação normativa e, em certas hipóteses, da
culpa) que a ordem jurídica mobiliza para tornar eficazes as suas prescrições;
 Caracterização da função secundária ou organizatória da ordem jurídica:
nesta função a ordem jurídica volta-se para si própria a fim de subsistir
enquanto ordem, procurando evitar o caos interno; por integrar uma
multiplicidade de elementos (não há apenas uma norma ou um tribunal, há
incontáveis normas jurídico-legais e um número alargadíssimo de tribunais,
v.g.), podem surgir antinomias, contradições, incompatibilidades,
desconformidades entre os incontáveis elementos que compõem a ordem
jurídica (podem, por exemplo, surgir conflitos de competência quando dois
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tribunais se consideram incompetentes para julgar uma causa ou quando,
pelo contrário, dois ou mais tribunais se considerem competentes para
julgar a mesma causa; podem também surgir contradições entre normas, ou
entre normas e princípios, etc.); a ordem jurídica cumpre esta função em
três momentos, o momento de unidade sistemática - onde a ordem jurídica visa
assegurar a coerência interna entre os vários elementos que a compõem,
sendo aqui possível apontar como exemplos as regras doutrinárias de
resolução do conflitos aparentes ou de normas em direito penal, as normas
relativas à sucessão de leis no tempo ou as normas e princípios relativos às
situações jurídicas plurilocalizadas (direito internacional privado) - o
momento de desenvolvimento constitutivo - quando o direito consegue - por que
tem de o fazer - responder inovadoramente a problemas que não encontram
resposta suficiente na normatividade pré-objectivada (casos ornitorrinco) -
e o momento de realização orgânico- processual - para poder actuar em termos
práticos, a ordem cria órgãos por mediação dos quais actua e procura fazer
cumprir os seus objectivos práticos; a ordem jurídica define a competência
desses órgãos e o modo como devem exercer essa competência, tornando-
se aqui evidente a importância do processo enquanto modo de controlar o
exercício do poder;
 As duas funções distinguem-se na medida em que o âmbito da função
primária é externo, isto é, a ordem dirige-se-nos directamente enquanto
membros da comunidade, enquanto na função secundária é interno, pois a
ordem volta-se para si própria para pode subsistir como ordem. Ali o
objectivo imediato é impedir o caos comunitário, aqui evitar o caos interno
orgânico. As duas funções relacionam-se: o adequado cumprimento da
função primária depende grandemente do eficaz desempenho da ordem na
sua função secundária.

III

 Enquadramento do problema nos grandes núcleos temáticos estudados: na


circunstância, esta questão remete ao problema do direito e à compreensão
e determinação do actualmente fundamental sentido do direito (o seu
sentido específico hoje), onde considerámos o positivismo jurídico como o
imediato referente histórico-crítico desta compreensão;
 Alusão brevíssima aos factores determinantes da emergência do positivismo
jurídico;
 Identificação das coordenadas caracterizadoras do positivismo jurídico: a
coordenada político-institucional, que remete ao Estado de Direito de legalidade
formal com os seus princípios da separação de poderes, da legalidade e da
independência do poder judicial; a coordenada especificamente jurídica, assente na
concepção do direito identificado à lei, aqui entendida como norma geral,
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abstrata, formal e imutável; a coordenada axiológica, com os valores formais da
igualdade perante a lei e da certeza do direito; a coordenada funcional, em
particular a distinção entre pensamento jurídico e direito, por um lado, e a
separação entre o momento político da criação do direito (pelo poder
legislativo) e o momento jurídico do seu conhecimento e aplicação (pelo
poder judicial), por outro lado; a coordenada epistemológico-metodológica,
preconizando um modelo de pensamento assente numa racionalidade
lógico-dedutiva com recurso do silogismo judiciário – método jurídico;
 Identificação dos factores de superação do positivismo jurídico: referência
brevíssima aos factores do contexto histórico-cultural e político social e
alusão detida aos factores especificamente jurídicos, mencionando,
nomeadamente, que o direito passou a distinguir-se da lei; a passagem do
Estado-de-Direito de mera legalidade formal para o Estado-de-Direito
material (Estado de Jurisdição); a alteração do sentido do princípio da
igualdade (da igualdade perante a lei para a igualdade perante o direito); o
reconhecimento da existência de princípios translegais, do carácter lacunoso
do direito constituído e da constituição do direito na sua problemático-
concreta realização judicativo-decisória; a passagem de um juridicismo
puramente formal para uma intenção jurídica material, bem visível em
vários domínios jurídicos, mas muito em particular no âmbito do direito
privado, sendo disso exemplo as “cláusulas gerais”, o “abuso de direito”, o
“enriquecimento sem causa” ou o “novo sentido do princípio da
autonomia privada”;
 Atento o caso prático, centrar atenções no instituto do abuso de direito, que
nos remete à problemática da licitude ou ilicitude do exercício de um direito
subjectivo; para o juridicismo formal, típico do positivismo jurídico, o
exercício de um direito seria legítimo (lícito), sempre que, e isso bastava,
quem o exercesse, fosse dele titular e tivesse capacidade para tal, ou seja,
dito de outro modo, se um individuo fosse titular de um direito e tivesse capacidade
requerida para o exercer poderia, tendencialmente, fazer dele o que quisesse. Nessa visão
das coisas, o que verdadeiramente importava era determinar as condições
formais da titularidade e do exercício de direitos subjectivos, tendo os
titulares liberdade quanto ao modo de os exercer; todavia, a dado passo,
concluiu-se que a legitimidade/licitude ou ilegitimidade/ilicitude do
exercício de um direito teria também de ser, além das condições formais
relativas à titularidade e à capacidade de exercício, determinada em face do
modo concreto de exercício do direito; passou, por isso, a considerar-se que
o titular de um direito subjectivo, com capacidade embora para o exercer, colocar-se-á
numa situação de abuso do direito que titula se, aquando do sue exercício, manifestar
uma “contradição entre o cumprimento da estrutura formal definidora [do]
direito [especificamente e causa] e a violação concreta do fundamento que

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material-normativamente constitui esse mesmo direito” (Castanheira
Neves/Fernando José Bronze);
 Referência à consagração legal do instituto do abuso de direito no artigo
334.º do Código Civil, nos termos do qual é ilegítimo o exercício de um direito,
quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons
costumes ou pelo fim social ou económico desse direito;
 No caso concreto, é certo que Vanessa tem o direito a ouvir música em sua
casa e do género musical que entender, todavia, ao fazê-lo de modo
ininterrupto e pela noite dentro – e independentemente do enquadramento
legal quanto ao ruído - poderia efectivamente estar a ultrapassar os “limites
normativo-jurídicos do direito particular invocado”, incorrendo numa situação de
“abuso de direito” à luz do artigo 334.º do Código Civil, nomeadamente
por saber que ao assim agir estava a impedir o vizinho de exercer o direito
ao repouso. Nesta visão das coisas, o exercício do direito seria ilegítimo,
enquanto na concepção positivista tal exercício seria licito, uma vez que
bastava aí a verificação das condições formais de exercício do direito
(titularidade e capacidade).

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