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DIREITOS FUNDAMENTAIS

INTRODUÇÃO: DA "RESERVA DA LEI" À "RESERVA DA


CONSTITUIÇÃO"

CAPÍTULO I - A LEI NO QUADRO POLÍTICO-JURÍDICO PRÉ-


MODERNO

1. A REPRESENTAÇÃO TOMISTA DA LEI

Ao definir a lei como "aquela ordenação da razão dirigida ao bem comum,


promulgada por quem tem a seu cargo o cuidado da comunidade", S. Tomás de
Aquino sintetiza os quatro elementos presentes em qualquer lei, porquanto, se tais
elementos são mais visíveis nas leis humanas, eles são comuns a todas as leis, pois que
as lei humanas inserem-se unitariamente na lei natural e esta na lei divina ou eterna,
numa ordem onto-teleológica, formando um sistema ético-normativamente
hierarquizado. Vejamos esses quatro elementos:
a) ordenação da razão - a lei procede da razão, a razão está fundada no ser e este é
reflexo da razão divina. A lei humana comunga, assim, de uma essência
materialmente racional, embora seja prescrita pela vontade do soberano, dada a
dependência da lei humana relativamente à lei natural. Sendo a lei natural
constitutivamente imanente à lei humana, a lei humana contraditória com a lei
natural já não é lei, mas corrupção da lei. A lei humana (positiva) é, no entanto, um
complemento indispensável da lei natural e desta deriva como conclusão de
princípios (exemplo de S. Tomás: o preceito "não deves matar" deriva por
conclusão do princípio da lei natural "ninguém deve fazer o mal"). A lei humana
derivada por conclusão dos princípios da lei natural, cognoscível pela razão
especulativa (teorética), recebe da lex naturae e, em último termo, da razão divina
(lex aeterna) a sua validade, e é com fundamento nessa validade que a determinação
legal, a mensura mensurata, ganha força e vigor. S. Tomás de Aquino assume

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assim a unidade ontológico-metafísica da lei, anteriormente defendida por Platão


(não obstante a sua distinção entre physis - lei natural - e nomos - lei positiva -,
Aristóteles (não obstante a sua distinção entre dikaion physicon - justo natural e
dikaion nomikon - justo legal), Cícero ( não obstante a sua distinção entre lex
naturalis e lex civilis) e Santo Agostinho (não obstante a aparente dicotomia entre
lex aeterna e lex temporalis).
b) dirigida ao bem comum - a lei positiva afirma-se ainda intencionalmente racional
no seu conteúdo normativo porque "dirigida ao bem comum". O segundo elemento
do conceito tomista de lei tem, na verdade, a ver com um critério político-
prudencial - o critério prático do bem comum. Em Tomás de Aquino todas as
acções humanas tem por fim último a felicidade e a santidade do homem. Como,
no entanto, o homem é parte da comunidade, só uma comunidade ordenada à
felicidade comum, ou seja, dirigida ao bem comum, possibilita aquele fim.
c) promulgação - a lei só se torna obrigatória se conhecida dos homens (se
promulgada). Mas enquanto a lex aeterna e a lex naturalis se dão a conhecer a cada
um pelo dictamen da razão e a lei divina positiva é promulgada pela revelação, a lei
humana sempre necessita de ser promulgada com alguma solenidade, conforme
os usos.
d) o legislador - como se a lei dirige ao bem comum, o legislador é todo o povo ou um
seu representante. Mais tarde, S. Tomás admite vários tipos de legislador (e de leis
humanas), segundo as formas de Estado e de Governo. Exclui, porém, a tirania,
onde não há leis, pois os comandos do tirano nem emanam, da razão nem se
ordenam ao bem comum.

2. OS ELEMENTOS DA NORMATIVIDADE: RACIONALIDADE E BEM


COMUM

Não obstante ser a razão divina a origem da lei, a filosofia da lei atrás exposta não
sustenta uma normatividade abstracta, sistemática e legalmente determinada. Se o
direito (natural) é o pressuposto e fundamento (constitutivo) da validade das leis, não
significa isto a dispensa da determinação e explicitação na comunidade concreta do
sentimento normativo-material histórica e socialmente adquado.
Se, com fundamento na sua pressuposta racionalidade, a lei humana se funda numa
teleologia onto-axiológica que a transcende, ela é em si mesma a conveniente

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determinação histórica do justo racional. Tal com refere Castanheira Neves, a lei
positiva será constituída por uma razão material e prudencial; razão material, porque
assumindo na sua intencionalidade e orientando-se no seu critério por aquela teleologia
que lhe vai pressuposta e no sentido da qual se há-de determinar; razão prudencial,
porque é chamada a pronunciar, ainda que em termos prescritivos, sobre a validade
prática, sobre o justo ou o injusto de comportamentos e situações humano-sociais
postulados como objectos de uma intenção prático-judicativa.
È a essa razão material e prudencial que se dirigem os elementos formais da
generalidade, os quais mais não são do que tópicos instrumentais de uma normatividade
material referenciada ao nem comum: "como a lei humana se ordena ao bem comum,
deve atender mais ao comum que ao particular, e segundo as pessoas, os negócios e
os tempos", pois importa que as leis humanas sejam proporcionadas ao bem comum; e,
sendo "nula a utilidade da lei se não abarcar mais do que um caso singular", o juízo
prudencial pode legitimar a dispensa e o privilégio - excepção da lei, aquela,
prerrogativa legal, este, quando ditados pelo bem comum e pela equidade. S. Tomás de
Aquino subscreve, assim, uma noção de igualdade em sentido material.

3. A INSERÇÃO DA LEI NO SISTEMA POLÍTICO

A questão que se pretende agora suscitar é a de saber se o entendimento da lei que


vimos expresso em Tomás de Aquino tem correspondência no sistema político
institucionalizada naquela época. Em geral, a resposta à questão é afirmativa.
O sistema político pré-moderno (vulgarmente conhecido por Ancien Régime) é um
sistema de "constituição social e judiciária" em relação ao sistema de "constituição
política e administrativa" do moderno Estado constitucional e de legalidade. É um
sistema que apresenta como nota mais saliente a grande descentralização político-
social sustentada numa polícia judicativa de normatividade de base essencialmente
consuetudinária. Uma sociedade institucionalizada em corpos político-sociais
autónomos, em que cada corpo gera o seu próprio ordenamento jurídico, pressupõe uma
ordem social onde os poderes se legitimam numa axiologioa pré e auto-constituída na
tradição comunitária histórico-social. "A noção de comunidade alimenta-se da
subordinação a direito imanente que assinala a cada uma daquelas variadas figuras
um seu próprio estatuto, um catálogo de privilégios e obrigações" (Castanheira
Neves). Num sistema político-social com estas características, o que se solicita e

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unicamente se espera do poder político e das autoridades públicas em geral é a garantia


dessa ordem pela determinação-concretização do seu direito. A criação do direito não
visa, assim, a enunciação constitutiva do direito pela lei, mas a concreta explicitação
de um direito que já o é. Isto explica que, num sistema de "constituição social", a
instituição fulcral da manifestação do direito seja o juiz e não o legislador, porquanto o
direito deve a sua normatividade constitutiva à vivência consuetudinária e explicita-
se na doutrina e na jurisprudência como u direito de juristas. Estamos, no dizer de
Castanheira Neves, "perante um sistema político-jurídico, que, sendo
institucionalmente iurisdictio, é normativamente jurisprudência": a normatividade não
se firma na regra, na lei, mas na decisão ou no conjunto de decisões do que aplicam
(dizem) o direito. Aqui, como em todo o sistema axiológico, direito e lei não se
confundem.
Neste sistema de "constituição social e judiciária", o legislador, como o jurista,
procuram a solução de direito - o que é justo - no conteúdo da consciência social, nos
princípios da lex naturalis e na interpretatio (tradições e doutrina). Não é, assim, lícito
ao poder editar quaisquer leis. Se, por exemplo, é emitida uma lei contrária à estrutura
fundamental da ordem jurídica, os juristas e, concretamente, os juizes podem recusar
obediência a tal lei, por ser tida como contrária ao teor do direito.
Se atentarmos que a lei (positiva) é definida em Tomás de Aquino como a "lei possível
segundo a natureza e os costumes pátrios, conveniente ao lugar, ao tempo e ao que se
disciplinam", logo nos apercebemos que tal entendimento da lei se reporta a "um
sistema que tem o seu fulcro normativo e constitutivo na decisão judicativo-
prudencial e por isso essa decisão é o regulador ou o perspectivador do que é
juridicamente possível, e inclusivamente, da própria possibilidade jurídica de actos de
legislação".
O pensamento jurídico medieval não conheceu as distinções entre direito público e
privado, entre contrato e lei, entre direito e jurisprudência. O contrato era a instituição
jurídica universal e utilizava-se inclusive para fundamentar e transmitir direitos e
obrigações respeitantes ao exercício da autoridade. "Direitos" que eram aí
essencialmente os direitos adquiridos fundados em convenções, prescrições ou
concessões e protegidos pelos tribunais. Só com a emancipação do Estado, como uma
unidade de autoridade, se tornou necessária uma distinção entre direito de
coordenação e direito de subordinação, entre contrato e lei, entre jurisprudência e
criação de direito. Só com o surgir da unidade autónoma de poder do Estado moderno

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se pode falar de um especial titular de direito caracterizado pela sua autoridade. É a


partir do moderno conceito de Estado que o pensamento liberal vai contestar este
pensamento, acusando-o de ser fonte de arbitrariedade: os conceitos de materialidade e
prudencialidade vão cair no liberalismo, dado que esta última corrente vai converter
todo o direito em lei, sendo essa lei o produto da vontade geral. È que neste sistema
pré-liberal (em que viveu S. Tomás de Aquino), o direito existe antes da lei (conceito
axiológico) e fora da lei; em último termo, pode afirmar-se que o direito já o é antes de
ser lei.

CAPÍTULO II - A LEI NO SISTEMA POLÍTICO-JURÍDICO MODERNO

Se, no sistema pré-moderno, o direito era tido por superior à lei e a esta transcendia - o
que implicava não ser o poder político o titular constitutivo do direito -, o pensamento
moderno vai converter a lei no constituens do direito e o poder político vai definir-se
como criador do direito num sistema político constituído juridicamente como Estado
de legislação.
Abrangendo, porém, esta fase da teoria da lei o período do século XVI ao século XVIII,
comporta concepções de lei que, irmanadas na recusa de uma ordem teológico-
metafísica naturalmente transcendente, concebem, no entanto, os fundamentos da nova
ordem jurídica de modo diverso. Se a autonomia individual é agora o pressuposto e a
razão do jusnaturalismo, os fundamentos imediatos da racionalidade normativa vão
sofrer uma complexa evolução cujas fases mais marcantes aparecem associadas a quatro
pensadores e das quais se pretende, agora, dar conta.

1. O SENTIDO MODERNO DA LEI

1.1. A lei em THOMAS HOBBES -


Este autor propõe-se tratar a lei como o fulcro do poder estatal, inserindo-se na tradição
dos grandes filósofos do Estado da Antiguidade. Diferentemente de Platão, Aristóteles e
Cícero, que teriam procedido utópica e irrealisticamente, reclama-se Hobbes de uma
atitude jurídico-pragmática, ou seja, restrita à realidade, pois, na medida em que o
direito expressa imediatamente na ordem dos factos, não assenta numa ordem ideal,
mas numa ordem de facto, porquanto visa impor, antes de mais, uma ordem real

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entre os homens. Para este autor, a lei deve ser vista como uma forma do poder político
manter a paz e a segurança; há, assim, um corte radical com a noção de busca
metafísica (S. Tomás de Aquino).
O ponto de partida deste autor (que vive, justamente, no período em que tem início a
contestação aos regimes absolutistas) é o jusnaturalismo; ou seja, da autonomia
individual ilimitada, como dado inicial desprendido de qualquer preocupação
teleológico-metafísica, faz Hobbes o seu ponto de partida. A esse estado de liberdade
absoluta, de direitos individuais ilimitados, em que cada um tem direito a tudo,
inclusive à vida dos outros, chama o autor estado de natureza. Isto significa guerra de
todos contra todos no exercício do direito, o qual, por definição, é poder ilimitado: o
estado de natureza é o verdadeiro estado de direito. Por imperativo da razão, o homem
sente necessidade de acatar regras tendentes à salvaguarda da paz e da segurança.
Tais regras derivam imediatamente da razão ordenada à paz civil, e, em razão disso,
renunciará o homem ao seu "direito a tudo". Destas regras gerais da razão retira Hobbes
as leis naturais limitativas do direito. As leis naturais, como exigências da razão em
ordem à paz, são, assim, em Hobbes, contrapostas ao direito: a lei (law) é obrigação,
vinculação; o direito (right) é liberdade, poder. Em ordem à paz e à segurança, a lei
natural exige que o homem renuncie ao seu direito natural. Deste modo, a lei converte-
se em negação do direito: onde há direito não há lei; onde há lei, faltam o direito e a
liberdade.
As regras ditadas pela razão são, no entanto, insuficientes para garantir a paz e a
segurança entre os homens. É que o conteúdo de tais regras é indefinido e de
interpretação diversa, consoante as distintas concepções acerca da equidade e da justiça.
A garantia da paz e da segurança vai, por isso, necessitar de determinações precisas
que são as actually Laws, mandatos do soberano, que constituem o civil Law. O poder
do Estado, assim, como o poder soberano de ditar leis, assenta, em Hobbes, em bases
contratualistas consubstanciadas ao contrato de sujeição. Diferentemente, porém, das
teorias contratualistas medievais, em que o monarca era parte do pactum subjectionis,
em Hobbes o soberano é o destinatário do contrato. Cada cidadão renuncia ao direito
de determinar-se por si mesmo e cede-o ao soberano, sob condição de que todos os
outros cidadãos cedam também esse direito e o coloquem nas mãos do soberano. Em
virtude deste contrato colectivo, os cidadãos renunciam aos seus direitos liberdades e
conferem o poder de soberania a um "terceiro" - o soberano. Nasce, deste modo, o

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Leviathan (principal obra política de Hobbes, na qual o autor exprime o seu pensamento
político definitivo), o Deus mortal.
Os indivíduos integram-se na sociedade política e submetem-se ao poder do soberano
por meio de um pacto realizado exclusivamente entre eles pelo qual "renunciam a favor
do amo a todo o direito e a toda a liberdade capazes de prejudicar a paz. Eles ficam
obrigados; o amo a quem eles se deram, não. Hobbes escapa deste modo ao que
constituía a grande debilidade do dualismo medieval anterior: um gérmen de conflito
inevitável entre os direitos da colectividade erigida em pessoa, em povo, e o soberano,
órgão da personalidade do Estado. Longe de debilitar o poder, Hobbes reforça-o
ilimitadamente".
De entre os poderes de soberania, que foram transferidos para o soberano pelo contrato
político de sujeição, destaca-se o de legislar. Pelas leis (civil laws) exerce o soberano
um poder supremo e ilimitado: a ele compete ditar as leis, modificá-las e aplicá-las. Se
as regras da lei natural limitavam já os direitos do indivíduo, as leis civis acentuam essa
limitação. O âmbito da liberdade individual é, deste modo, delimitado pelas imposições
legais, constituindo um espaço não sujeito à "justiça legal"; mas, onde esta se
estabelece, é irrecusável, porquanto é o único instrumento de salvaguarda da paz.
Por definição, toda a lei ditada pelo Leviathan é justa e obriga, independentemente do
seu conteúdo ou estrutura. É certo que Hobbes fala numa vinculação do soberano às leis
naturais, mas tal vinculação só respeita à relação do soberano com Deus, pois, no que
respeita aos homens, o dever de obediência às prescrições do soberano é absoluta. Por
outro lado, Hobbes vê nas civil laws uma expressão-determinação da lei natural -
realidades com um conteúdo substancial firmado pelo pensamento ocidental europeu
com propensão a uma validade universal. Atendendo a esse património comum dos
povos civilizados, fala Hobbes em leis boas e más, daí não retirando todavia
consequências quanto à obrigatoriedade das leis, nem quanto à sua justiça. A distinção
entre leis boas e más estabelece-se sobre a conformidade ou não com a tradição
jusnaturalista, mas tal só constitui parâmetro de avaliação interna para o Leviathan e
seus conselheiros. É que a "justiça" da lei é pragmatizada à manutenção da paz no
Estado, que só a vontade eficaz do Leviathan pode assegurar. Assim, entende Hobbes,
que são legítimas todas as possíveis formas de expressão dessa vontade: mandatos a
todos os súbditos, ou restritos aos de uma província, classe ou grupo, ou
particularizados a um ou vários súbditos. É questão de pura conveniência e
oportunidade, que apenas ao soberano diz respeito, o dirigir-se a todos os súbditos

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através de uma lei geral ou só a alguns através de leis individuais; e se o soberano pode
ditar uma lei particular e privar um determinado súbdito de mais liberdade que outro,
também pode excepcionar a aplicação das leis através de privilégios. Admite, no
entanto, Hobbes que o comando do soberano seja normalmente uma lei geral. São,
contudo, razões técnicas que a tal aconselham: como o Leviathan não pode decidir só
por si todos os casos particulares, necessita de funcionários (juizes) que garantam,
seguindo as suas directivas, a paz e a segurança em todo o caso concreto. A lei geral
estabelece essas directivas. Sendo, no entanto, a lei um instrumento em ordem à paz e à
a segurança, a generalidade é preterida se, por um juízo de oportunidade política do
Leviathan, tais "valores" aconselham os mandatos individuais. A salvaguarda da paz e
da segurança jurídicas são, deste modo, as causas da lei; causas meramente formais,
conquanto na auctoritas se racionalizam.
O critério racional-finalístico da "justiça material" que em S. Tomás de Aquino
aconselhava à estrutura geral da lei como a melhor forma de assegurar a universalidade
material da lei, é substituído em Hobbes pelo critério racional-finalístico da
salvaguarda da paz e da segurança. Como, porém, para Hobbes o essencial para
assegurar a paz não é a "causa justa" da lei, mas a sua efectividade, ou seja, o poder
sancionador que lhe é ínsito, a lei não encontra critérios de normatividade fora da
auctoritas e, assim, a ratio da lei é a própria vontade soberana. A lei tem, agora, no
poder político o seu constituens, embora, diferentemente de Locke, ou de Rousseau,
Hobbes não assimile a lei ao direito, antes entenda este como espaço da autonomia
individual livre da legalidade.
Resta dizer que assim se compreende a razão pela qual Hobbes é um tenaz defensor da
monarquia absoluta, podendo, no limite, afirmar-se que a sua visão político-
tecnocrática da lei apresenta algumas semelhanças com o que se passa actualmente, ao
menos naquilo que hoje se traduz pela busca de uma justificação política da lei. è neste
sentido que parece haver um certo retorno ao conceito de lei em Hobbes.

1.2. A lei em JOHN LOCKE


Com John Locke começa verdadeiramente o entendimento moderno de lei, pois, se com
Hobbes se acentuou o momento voluntarístico-técnico-racionalista da lei, o carácter
garantista da lei, próprio da normatividade jurídica moderna, provém de Locke em
nítida contraposição a Hobbes.

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Aceitando também a génese contratualista do poder político na transposição do estado


de natureza para o estado civil (isto é, admitindo também - como Hobbes - o
jusnaturalismo como ponto de partida), diferencia-se, de imediato, daquele autor pelo
sentido diferente que nele tem o estado de natureza: ao contrário de Hobbes - no qual o
estado natureza, significando o uso ilimitado do poder, se assimilava ao estado de
direito -, para Locke, a liberdade só é possível sob uma lei natural derivada da razão
que, não se contrapondo ao direito nem à liberdade, os determina. A liberdade é, pois,
mesmo no estado de natureza, uma liberdade legal, na qual existem já limites e regras
subordinados a princípios racionais. Como, porém, o egoísmo e a ignorância perturbam
a percepção das leis naturais e levam à sua violação e como no estado de natureza não
há juizes que ditem sentenças vinculativas, nem um poder que as faça executar, cai-se
num "estado de guerra" como resultado não do uso, mas do abuso da liberdade, perante
o qual a defesa dos direitos de cada um, ainda que legítima, se vê impotente frente à
força superior do agressor. No estado de natureza lockeano, a legítima defesa é a única
forma de salvaguarda do direito. É que no estado de natureza nenhum homem tem
poder sobre outro. Quando alguém viola a lei natural considera-se ofensor, pois que,
não respeitando as regras da razão, torna-se perigoso para todos. Neste caso, qualquer
um tem o direito de castigar o agressor. A legítima defesa converte-se, no entanto, em
impotência quando as forças do agressor são superiores às do ofendido.
O meio de salvação do domínio da força e que permite a conservação e o gozo pacífico
da liberdade - da property (corresponde em Locke àquilo que hoje se designa por
direitos fundamentais) - não é em Locke o monarca absoluto hobbesiano, mas a lei.
Para Hobbes, como vimos, a salvaguarda da paz submete os homens às leis dum
soberano absoluto; Locke, pelo contrário, coloca as leis acima de toda a dominação
pessoal, adquirindo a lei, desse modo, um papel central.
Tal decorre da concepção do contrato político lockeano. Pelo contrato político de
sociedade, proposto por Locke, não transferem os indivíduos todos os seus direitos para
um terceiro que não é parte no contrato, como era o entendimento de Hobbes, mas tem-
se em vista unicamente estabelecer um poder político de representação dos cidadãos a
quem compete o poder legislativo. Conforme a quem se confira no contrato social o
poder legislativo, assim se configura uma determinada forma de Estado. Locke optava
decididamente pela via parlamentar, ou seja, a legislação deve competir a uma
assembleia representativa mutável. A defesa do parlamentarismo assentava em razões
de filosofia político-prática: os parlamentares só estabelecerão aquelas leis a que eles

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mesmos se queiram submeter e, fundando-se o poder legislativo na vontade popular, as


suas leis valem como acordos dos cidadãos, pelo que só serão estabelecidas aquelas leis
a que os próprios cidadãos se queiram submeter. Por isso, esse poder legislativo, longe
de escravizar os homens, é o único que pode proteger a property, assegurando dessa
forma o bem comum. Mediante a submissão de todos à lei, resultante da vontade de
todos, evitam-se os conflitos e inseguranças do estado de natureza e assegura-se o gozo
pacífico dos direitos naturais em sociedade.
Assim como no estado de natureza a lei natural garantiria a liberdade natural, no estado
civil é a lei positiva que determina e garante o âmbito da liberdade civil. Mas se as leis
civis limitam a liberdade natural, enquanto delimitam o seu âmbito de protecção, isso
não significa contrapor a lei à liberdade e ao direito, à maneira de Hobbes, pois se neste
o dualismo originário entre lei e direito se resolvia unilateralmente a favor daquela, em,
Locke a liberdade nasce com a lei. A lei civil (positiva) configura e garante o âmbito de
liberdade natural, que os indivíduos a si mesmos determinam, para poderem em paz
gozar as liberdades (property). Por isso, qualquer lei que afecte a liberdade ou a
propriedade necessita, para além do consentimento claramente expresso daqueles que
celebraram o contrato social, de se estruturar no geral, ou seja, de afectar a todos por
igual.
Um dos pontos mais elucidativos do sentido da lei em Locke é o que diz respeito à
posição do legislativo na estrutura do poder estadual. Sendo o poder legislativo o
poder supremo do Estado, tem-no Locke por perigoso para os direitos e liberdades se
ele mesmo puder executar as leis por si emanadas. É uma ideia de moderação e de senso
prático que aconselha Locke a limitação de poderes, através da distribuição de funções
por órgãos diferentes e, como diríamos hoje, funcionalmente adequados. Locke explica-
o do modo seguinte: se o legislador não puder executar as leis que emana, estando a elas
submetido, porá especial cuidado para que as leis que estabelece sejam justas. Depois,
uma coisa é estabelecer as leis, tarefa a que é adequado um corpo representativo, outra
coisa diferente é a sua execução continuada e constante, tarefa para a qual tal órgão não
estaria adequado. Ao lado da representação popular, continua a manifestar-se um
poder de Estado a quem compete a tarefa continuada da execução das leis na ordem
estadual interna e a conduta da política exterior. O poder de Estado não actua, assim,
somente como poder executivo, mas revela-se como poder federativo no
relacionamento internacional do Estado, área que, por sua natureza, é pouca apta a
uma disciplina legal (mais susceptível de comandos). Aparece, deste modo, um

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dualismo entre poder de Estado (executivo e federativo) e representação popular.


Dualismo que se acentua na prerrogativa do poder de Estado, prerrogativa esta que se
funda num poder presumido do Executivo de operar livremente onde a lei não
prescreva ou quando a sua rigidez conduza a uma falta de equidade na aplicação
concreta. Embora o poder legislativo possa delimitar por meio de leis esse poder de
prerrogativa para evitar abusos, não o pode suprimir. Por outro lado, se o Soberano
ultrapassa as limitações aos seus poderes de prerrogativa impostos por lei, surge um
conflito insolúvel entre o Soberano e o poder legislativo, que, no dizer de Locke, não há
juiz na terra que possa resolver. É visível assim em Locke a cisão do Estado em
soberania e povo. O poder de prerrogativa do Executivo deriva do facto das leis não se
adaptarem igualmente a todos os casos e, por razões de equidade, se imporem
frequentemente excepções a uma regra. No entanto, quer a prerrogativa quer a lei tem
por limite e por fim a defesa e a garantia da liberdade e da propriedade e orientam-se
ao bem comum. Isto significa que a diferença entre lei e prerrogativa se vai ater a
elementos formais: à prerrogativa corresponde toda a criação jurídica governamental
de curto prazo e de aplicação restrita; as leis são regras duradoiras e gerais. A lei é
garantia de segurança jurídica porque determina previamente o direito civilmente
protegido. Por isso, Locke recusa tantos os conceitos imprecisos como as disposições
obscuras que não conferem segurança jurídica aos particulares, mas é forçado a admitir
que as leis nem sempre realizam o bem comum, pois, como regras legais rígidas
predeterminadas, podem não se adaptar às circunstâncias concretas. Daí que atribua ao
poder governamental o poder de prerrogativa, ou seja, o poder de criação jurídica
específica, ou excepcional, que suavize a aplicação rígida da lei. Pelo contrário, as
disposições onerosas para os cidadãos tem de ser predeterminadas e gerais, pois só
assim cumprem a sua função estabilizadora e protectora da property.
A estrutura geral da lei aparece, pois, em Locke como garantia dos direitos individuais
consubstanciados na property. Com isto se articula, de resto, a divisão dos poderes: o
legislativo estabelece leis gerais e o executivo aplica-as, excluindo-se, deste modo, o
domínio absoluto do monarca, possibilitador da opressão.
O conceito hobbesiano de lei vai dirigido à salvaguarda da paz e segurança jurídicas.
Estas eram, contudo, dimensões formais completamente indeterminadas quanto ao seu
conteúdo e quanto à sua estrutura, pois que na eficácia do poder se sustentavam. Em
Locke a segurança e a paz jurídicas assentam num direito seguro e predeterminado

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revelado nas leis, as quais, pela proveniência e estrutura, garantem as liberdades


individuais.

1.3. A lei em JEAN-JACQUES ROUSSEAU


Este autor comunga do ponto de partida racional-individualista presente em Hobbes e
em Locke: no estado de natureza há indivíduos isolados que são livres e iguais; a
liberdade individual é ínsita à natureza dos homens. A transposição do estado de
natureza para o Estado civil é também, como esses autores, entendida em termos
contratualistas. Um particular modo de entender o contrato social e os conceitos da
vontade geral e do legislador vincula, porém, a lei, em Rousseau, a um conceito
normatológico que marca decisivamente o entendimento moderno-iluminista da lei.
Ao acordarem unanimemente um contrato social, procuram os homens "encontrar uma
forma de associação que defenda e proteja com força comum a pessoa e os bens de
cada membro e de tal modo que cada um unido a todos só obedeça a si mesmo e
permaneça livre como antes". Dito de outro modo, o homem entrega-se (deposita-se a
uma associação como forma de garantir os seus direitos: dando-se cada um a todos
não se dá a ninguém.
Este acordo exige uma aliénation totale de cada membro à comunidade, ou seja, uma
entrega total e incondicional da pessoa com os seus direitos e vontade. Longe, porém,
de significar isto uma perda dos direitos que eram próprios ao homem no estado de
natureza, tal alienação é a única forma de os garantir, pois a força de cada um no
estado de natureza é substituída por uma força comum, garante dos direitos de todos
e de cada um. Esta força comum, designada por soberania, não se funda, à maneira de
Hobbes, num contrato de sujeição que institui uma pessoa em soberano absoluto, nem
tem unicamente por escopo a determinação de um poder legislativo, como em Locke,
mas funda-se num pacto que, instituindo um poder da comunidade, deixa nas mãos da
totalidade e de cada um dos cidadãos tal poder, pois, "dando-se cada um a todos não se
dá a ninguém e, se cada indivíduo entrega à comunidade a "sua pessoa e todo o seu
poder", não os perde, dado que recebe como parte indivisível do todo o equivalente de
tudo o que entregou com o garante de uma força acrescida para conservar tudo o que
tem. Assim, como a natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os
outros, o pacto dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos, e é esse poder,
dirigido pela vontade geral, que se dá o nome de soberania.

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O indivíduo é, assim, parte activa e passiva, com direitos e obrigações recíprocos, de


um corpo moral e colectivo que ganha personalidade pública e a que se dá o nome de
República, designado por Estado quando passivo e por soberano quando activo. A
passagem do estado de natureza ao estado civil, ao fazer do homem partícipe dum corpo
moral e colectivo, produz nele uma mutação de vida e de natureza que o transfigura: o
instinto, a força física e a conquista são substituídos pela justiça, moralidade, dever,
razão e direito. A vontade (força) individual, expressão da liberdade natural do estado
de natureza, é substituída pela volonté générale, expressão da liberdade do estado civil.
Se a liberdade natural tinha como limite e suporte a força do indivíduo isolado, a
liberdade civil tem como limite e suporte a "vontade geral", pelo que o homem
somente no estado civil adquire a liberdade moral que o torna senhor de si mesmo.
A chave da compreensão do pensamento rousseauniano passa por esta transmutação do
factual para o normativo que lhe permite desde logo perspectivar a volonté générale
como volição de uma entidade moral e colectiva, distinta quer da volonté particuliére
quer da volonté de tous. República e vontade geral são em Rousseau conceitos
normativos derivados do direito e da razão e não resultantes de factos parciais ou
totais. É que o contrato social implica para Rousseau uma mudança do factual para o
normativo, o que lhe permite distinguir a agregação da República e a volonté de tous da
volonté générale. Ganha assim sentido a afirmação de que "la volonté générale est
toujours droite".
O que se disse sobre o carácter normativo da "vontade geral" vale também para o
conceito de lei, pois este mais não é que a expressão da vontade geral. Nem toda a
vontade manifestada em comum é "vontade geral", ou seja, lei, mas só aquelas
disposições que são justas e promotoras do bem comum são, por si mesmas, leis. Em
Rousseau, com efeito, a lei precede o justo e não o inverso, pois que a justiça está nas
próprias leis, conquanto seria contra a natureza da vontade geral o fundar-se em
critérios exteriores às leis, o que significaria admitir que a vontade geral pudesse
prejudicar-se a si mesma ao prescindir do bem comum, ou seja, da justa relação entre o
indivíduo e o Estado. O conceito de lei de Rousseau é a cláusula do bem comum,
expressão da vontade geral do Povo-República.
A inserção do bem comum e da justiça na essência mesma da lei, expressão da vontade
geral, levava Rousseau à figura do Législateur, entidade distinta do legislador político.
Tem , na verdade, Rousseau de fazer fé numa entidade extraordinária, projectista das
leis, a que chama Législateur, e que estaria para além da constituição e da soberania.

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Intérprete do sentido autêntico da vontade geral, expressão de sabedoria e espírito,


estaria para o legislador político como a volonté générale para a volonté de tous. À
priori, a lei realiza a correcta delimitação ou inserção da liberdade e do interesse
comum. A lei contém em si mesma a racionalidade e a justiça.
A lei como vontade geral, consubstancia-se na generalidade, pois é enquanto
prescrição geral que realiza o bem comum, pois seja, que é a medida da liberdade e
da igualdade dos cidadãos. Posto que, segundo o contrato político, ninguém pode
dominar sobre outro, sendo a lei a expressão de uma vontade comum, ou seja, uma
disposição "de todos sobre todos", a generalidade garante a liberdade dos cidadãos,
ao mesmo tempo que é a expressão do princípio material do bem comum. Não é,
porém, o conteúdo da lei que a define, como não é qualquer exigência de conteúdo que
lhe confere fundamento normativo, mas apenas a sua forma, o modus geral e
abstracto da sua forma. Não existindo critérios materiais nem garantias de processo
que limitem as leis, é a generalidade, por si, o único critério capaz de reconhecer a
"vontade geral", isto é, a lei. Quer isto dizer que a generalidade ou a universalidade
define essencialmente a lei. conferindo-lhe simultaneamente validade. A estrutura
geral da lei é para Rousseau a garantia do conteúdo justo da lei, dado que o sentido
último da generalidade é constituir-se essencialmente como vontade geral, ou seja,
como fundamento constitutivo da lei e critério de validade.

1.4. A lei em KANT


Deve-se, na verdade, a Rousseau a acentuação da generalidade como critério a se da lei.
As correntes filosóficas posteriores interrogar-se-ão, no entanto, sobre a verdadeira
natureza da generalidade, agora convertida na própria essência da lei. Das várias
respostas-interpretações do pensamento de Rousseau, ganhou sentido histórico-cultural
a resposta racional voluntarista enunciada por Kant. Em Kant, com efeito, culmina
aquela concepção moderno-iluminista da lei, enquanto somente aí se consuma a
superação do "natural" pelo "racional", do "jusnaturalismo" pelo "jusracionalismo", ou
seja, no dizer de Castanheira Neves, o direito ganha autonomia enquanto "vontade",
pois a "natureza racional" é substituída pela "vontade racional".
Do mesmo modo que Rousseau, Kant entende a passagem do estado de natureza ao
estado civil mediante um contrato pelo qual o povo se institui a si mesmo em Estado e
constitui uma "vontade geral", uma "vontade colectiva do povo" a que pertence o poder

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legislativo. Também como em Rousseau as leis, expressão da vontade geral,


garantem, só por si, a justiça.
Se, porém, Rousseau ao problema da validade última da lei respondia com uma figura
mítica e incaracterizável - o Législateur -, Kant responde a esse mesmo problema com
os princípios apriorísticos da razão pura. Faz Kant da ética o seu ponto de partida. Se
para a ética, isto é, para a fundamentação de comportamentos pela interna motivação
moral, é a razão pura, como princípio prático formal, o motivo supremo e imediato de
uma vontade universalizada - "age de tal modo que a máxima da tua vontade possa ser
sempre considerada como um princípio de legislação universal" -, também para o
direito, ou seja, para as regras de comportamentos em vista à realização conjunta da
liberdade (dos arbítrios), a razão surge como "o único fundamento de toda a
legislação positiva possível", pois só a razão pode fornecer o princípio da
universalidade normativa superador do arbítrio. Chega-se, assim, a "uma lei geral da
liberdade" ditada pela razão: - "age exteriormente de tal modo que o livre uso do teu
arbítrio possa estar de acordo com a liberdade de cada um segundo uma lei geral".
Este acordo universal, produto da "vontade racional" independente de todas as
condições empíricas, assume e caracteriza essencialmente o direito do "estado civil": as
leis (positivas) só serão válidas e justas se as suas prescrições assimilarem a
universalidade normativa ("segundo uma lei geral") como valor a se. A forma de lei
ou a ideia da universalidade é a própria lei, porque a universalidade é a ideia pura e
racional da lei, expressão da "vontade racional". A "vontade geral" é, na verdade, em
Kant a "vontade racional" e é geral porque é racional.
Aquele critério estrutural da generalidade da lei, que em Rousseau se transpunha para a
figura antropológico-normativa do Législateur, é, em Kant, sustentado na "legislação-
universal", expressão da "vontade racional", entendida como a vontade que em
todos e em cada um assume a razão. Neste sentido, só a vontade legislativa que se
universaliza normativamente é lei, porquanto as leis são as formas de expressão da
universalidade racional, isto é, normas de volição racional.
O pensamento jurídico moderno-iluminista, pelo seu voluntarismo racionalista,
conduziu a um sentido da lei que necessariamente a teria de identificar pura e
simplesmente com o direito. O direito não existe em si, mas constitui-se numa vontade
que é razão, sendo esta "vontade racional" a lei - "a lei é a volitivo-racional norma
jurídica constitutiva do direito que, por isso mesmo, com este se identifica: a lei é o
direito".

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2. O SISTEMA POLÍTICO MODERNO-ILUMINISTA

O percurso das ideias, que sinteticamente acompanhamos, bastará para sedimentar a


compreensão do sistema político que, como causa e efeito, lhe veio a corresponder - o
Estado-de-Direito-de-legalidade.
O jusracionalismo moderno implicou a ruptura com uma ordem natural
ontologicamente pressuposta e sustentada numa normatividade pré-existente. Mediante
o "contrato social" entre seres livres e iguais, institui-se, ex novo, uma ordem nova
baseada num novo conceito de poder e num novo entendimento do direito. O poder
deixa de sustentar-se no quadro e nos limites de uma tradicional, histórica e social
legitimidade, pois autonomiza-se como "vontade" soberana, sem reconhecer qualquer
outro poder anterior ou superior a ela. O direito afirma-se, por sua vez, na lei como
"vontade" soberana e não já na "interpretação" judicativo-prudencial. Vai, assim,
instaurar-se um tipo de Estado em que o poder político não visa a tutela de uma ordem
de direito pressuposta, nem mesmo se reconhece limitado pelo direito, antes é, em si
mesmo, o direito que é a lei. É que, se não há direito que não seja autonomamente
constituído por uma vontade instituída contratualmente (a "vontade geral" - "racional"),
que se assume como o poder soberano, não há direito fora da lei, pois só a lei, na sua
generalidade que é a sua essência e critério de validade, exprime racional e universal
autonomia daquela vontade instituinte.
Garantida a identificação da lei ao direito, o "Estado-de-direito" é o Estado do
domínio da lei e o poder soberano é o poder legislativo, pois que de entre os órgãos do
Estado será soberano aquele que detiver a função legislativa. Como bem refere
Castanheira Neves, "dada a função constituinte da lei, chamada como era a definir
originariamente o status jurídico da comunidade, decerto que no poder legislativo se
havia de manifestar a "vontade geral", não sendo ele mais do que a própria expressão
dessa mesma vontade soberana". Com reforça Rogério Soares, " legislador continua a
ser o verdadeiro representante da nação ou, por outra maneira, um condensado da nação.
Não é um poder; é o poder".

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Depois, sendo um "Estado de legislação" ou "de leis", ele é um Estado de legislação


parlamentar, pois é na Assembleia representativa que os homens livres e independentes,
representantes eleitos do povo, exprimem a "vontade geral". O Parlamento é, assim,
não só o titular do poder legislativo, como a função legislativa lhe compete em
exclusivo. Isto, que decorre já do poder constitutivamente soberano da lei e da sua
identificação ao direito, melhor se compreende através do entendimento estrutural da
lei, por um lado, e da separação dos poderes (legislativo e executivo), por outro lado,
caracterizações também próprias do sistema político moderno.
As leis são normas gerais pela sua racional universalidade e abstracção. Importa
salientar agora que a intenção política moderna propõe-se a garantir a property, que em
Locke era a causa do "governo civil" O entendimento da lei como lei-norma tinha em
vista a garantia de uma prescrição normativa prévia independente: a lei não se dirige
a uma pessoa particular ou a um caso concreto, assim como não é o resultado normativo
de um processo individual ou de um caso concreto. A lei é a norma a priori que
garante a liberdade na igualdade. Daí que a lei seja a norma própria a aplicar a factos e
não a resultante de factos.. Ora, aqui A lei como norma de uma normatividade geral e
abstracta era, pois, condição do domínio apenas da lei e não dos homens. Ora, aqui
entronca o princípio da distinção e separação de poderes e o princípio da legalidade
na decorrência precisa do Estado-de-Direito-de-legalidade. É o próprio conceito e
sentido da lei que radicalmente separa as funções de execução da lei pela
administração e de aplicação a casos particulares pelos tribunais daquela função de
constituição normativa geral e abstracta, ou seja, da criação do direito-lei, a qual só
pode competir ao órgão que represente a "vontade geral". A racionalização do direito
significa aqui uma forma de assegurar o triunfo do direito (lei) sobre o arbítrio já que,
mediante uma concepção funcional de poderes, se procedia à limitação dos poderes do
Estado. Assim se faz com que dos três poderes do Estado um, o de legislar, se
transforme na expressão autêntica da vida colectiva. Pretende-se, concretamente, uma
conjugação entre órgãos no âmbito de uma divisão de poderes que consagre a
supremacia do órgão legislativo e a subordinação total do executivo, afirmando,
assim, o princípio da legalidade como uma decorrência do "império da lei".
O sistema constitui-se, pois, com base na essencialidade do parlamento, como fonte
"monista" de legitimidade (o Parlamento tomou o lugar do soberano iluminado;
agora é, compreensivelmente, o centro do Estado, como bem afirma Rogério Soares), e
na entidade da lei, como norma primária universal: somente por precedência duma lei

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aprovada no Parlamento podem surgir poderes para os demais órgãos públicos ou


obrigações impostas ao cidadão. A lei está na origem de tudo, tanto de decisões em si
mesmo operativas, como de todo um sistema posterior de decisões públicas que tem na
lei uma premissa constitucionalmente exigida. Deste modo, a lei não se identifica tanto
pela sua referência a uma matéria ou conteúdo - até porque não existem espaços ou
zonas materiais livres da lei -, quanto pela sua qualidade técnico-formal, isto é, como
instrumento que formaliza as determinações primeiras necessariamente
parlamentares, reservadas "in toto" à supremacia do Parlamento.
As consequências desta concepção da lei traduzem-se, de imediato, numa correlativa
compreensão de temas como a reserva da lei, o princípio da legalidade, os
regulamentos independentes, etc.
Assim, dada a posição pressupostamente universal do âmbito ocupado pela norma
parlamentar, os sistemas vinculados a esta concepção vêem com fundada descofiança a
técnica da "reserva da lei", evitando-se mesmo a utilização da expressão. A lei
transcende qualquer referência a um possível conteúdo e, portanto, desconhece toda a
ideia de "reserva". Na realidade, a existir uma "reserva de lei", esta só poderia ser uma
"reserva total".
De igual modo, o "princípio da legalidade" possui, neste contexto, um significado
específico extremamente exigente quanto ao alcance ou eficácia da lei no âmbito
público. Diferentemente dos particulares, que são livres de fazer tudo o que a lei lhes
não proíbe (ideia de vinculação negativa), os poderes públicos (Tribunais, Governo,
Administração) encontram-se em situação de "vinculação positiva", ou seja, toda a
acção pública deve apoiar-se e justificar-se numa lei anterior que a permita ou
habilite (é a consequência que doutrinalmente se retira do chamado princípio do
primado da lei).
Consequentemente, o Executivo perde toda a zona de "legitimidade" que possa ser
considerada como naturalmente subtraída ao "império da lei". Desaparece, assim, a
possibilidade de ditar regulamentos independentes, concebendo-se o regulamento
como norma estritamente dependente, habilitada num irrecusável pressuposto legal.
A trajectória desta concepção político-jurídica - a corrente monista -, implicou uma
ruptura estrutural com o modelo de Estado e de Direito anteriores. O ideário do Estado-
de-Direito-de-legalidade necessariamente se havia de reflectir no sistema político-
estadual. Essa adequação vai ser tentada pelo Constitucionalismo, o qual, em si mesmo,
visa traduzir orgânico-institucionalmente aquele sentido moderno-iluminista do Estado

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e do Direito: sujeição de todo o poder estadual à soberana "vontade geral" que, em si


mesma, se constitui em comunidade de direito, ou seja, sujeita às suas leis. De entre
os doutrinadores da corrente "monista e parlamentar", destaca-se o labor de Carré de
Malberg que manteve, quase isoladamente, a concepção escrupulosamente purista da
lei. também Kelsen, Merkl e toda a Escola de Viena, exprimiram juridicamente a ideia
kantiana da lei - a lei como premissa maior do silogismo jurídico -, concebida como
escalão maior de toda a determinação pública subsequente.

CAPÍTULO III - A LEI NO SISTEMA DUALISTA GERMÂNICO DO


SÉCULO XIX

1. A DOUTRINA DUALISTA

1.1.A importância histórica e histórico-dogmática


Esta concepção monista - verdadeiro estado de legislação que via na lei a única fonte
do poder e no Parlamento o órgão supremo e exclusivo da produção legislativa e ao
qual se subordinava o poder executivo -, teve o seu expoente máximo em França.
Profundamente influenciada pelo movimento liberal, a corrente monista consagra o
Estado-de-Direito-de-legalidade, no qual à lei se recomenda a defesa da liberdade e da
propriedade.
Todavia, ao seu lado, uma outra corrente foi com ela mantendo uma permanente réplica
durante a segunda metade do século XIX e parte do Século XX: a corrente dualista
germânica, na qual o poder se dualizou em áreas de direito (legalidade) e de tradição
(legitimidade). A sobrevivência do monarca e a sua inserção no Estado de Direito
obrigaram a uma poderosa teorização - a teoria dualista germânica oitocentista - que,
pela sua força conceitual, ultrapassou horizontal e verticalmente o espaço de sustentação
dogmática em que se fundava, vindo a estar na origem do direito público moderno.
Enquanto que em França, o sistema monista remonta à própria Revolução, isto é,
representa, antes de tudo, uma ruptura com o antigo regime, conferindo-se o poder
exclusivo ao Parlamento de fazer leis (às quais o poder executivo se tinha de
subordinar) numa lógica garantística da liberdade e da propriedade, na Alemanha o
ambiente cultural era bastante diferente. A existência de diversos principados reclamava

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uma lógica legitimista dessas várias Casas Reais, não obstante a crescente influência da
Revolução Francesa, designadamente ao nível das constituições desses principados
(exemplos: as Constituições de Weimar de 1816, da Baviera e de Baden de 1818 e de
Wurttemberg de 1819).

1.2. O princípio monárquico


O princípio monárquico foi o recorte mais característico e fundamental das
constituições alemãs da Época Constitucional. ele constitui-se no elemento estrutural e
decisivo do movimento constitucional alemão do século XIX e impregnou
genericamente o constitucionalismo continental. Como princípio-garantia institucional
e simultaneamente como linha rectora de caracterização constitucional dos Estados
Alemães, o princípio monárquico encontrou a sua expressão no artigo 57º da Acta
Final de Viena de 15 de Maio de 1820: "Dado que na Confederação Germânica, com
excepção das cidades livres, existem príncipes soberanos, a totalidade do poder estatal
deve, em conformidade com o princípio fundamental aqui expresso, ficar incindido no
Chefe do Estado, podendo o soberano ser limitado por uma constituição estamental
somente na medida em que para o exercício de determinados direitos necessite da
cooperação dos estamentos".
Esta fórmula significou politicamente uma reacção oficial contra as ânsias de soberania
popular nascentes, que, nas duas décadas anteriores, se haviam revelado especialmente
no sul da Alemanha. A fórmula deveu-se a Metternich e reflectiu o compromisso entre
as correntes radicais de soberania popular e as correntes absolutistas e legitimistas,
ambas presentes na Conferência Ministerial de Viena. A estas, como refere Georg
Jellinek, dizia-se que na "política prática o princípio monárquico deveria ser ponto
assente, e com ele a revolução poderia ser definitivamente vencida"; àquelas sugeria-se
o abandono das relações absolutistas e a ideia de que a representação de todo o povo
no Parlamento era já imparável.
Abstraindo desta inequívoca leitura política, o conteúdo do princípio monárquico não
era claro. O artigo 57º da Acta Final de Viena determinava apenas uma directriz, não
concretizando o modo de cooperação entre o Monarca e a Representação popular, nem a
estruturação interna do Estado. Faltava, além disso, uma doutrina jurídico-estatal a que
se pudesse recorrer. Só por meados do século XIX se chegou a um tratamento e a um
aprofundamento científicos do Estado de Direito das novas constituições. A discussão
político-constitucuional abriu com a obra de Julius Stahl. Este autor funda o princípio

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monárquico - em contraposição ao princípio parlamentar inglês - no facto de "o poder


do Príncipe com os seus direitos próprios estar acima da Representação Popular,
permanecendo de facto como centro da constituição, como poder positivo do Estado,
como condutor do desenvolvimento". A posição de Stahl é de salientar pela aceitação
e tratamento teórico que confere à cláusula de presunção de competência a favor do
Monarca. Através desta cláusula introduz Stahl a sustentação teórica que confere
elasticidade ao sistema constitucional das monarquias limitadas: a favor do Monarca
joga uma presunção de competência residual, em virtude da qual lhe cabem todas
aquelas matérias que não tenham sido expressamente atribuídas pela constituição a
outros órgãos.
Subjacente e condicionante da teorização constitucional permanecia a questão fulcral da
soberania. As representações do Estado de Polícia haviam identificado a soberania com
a pessoa do monarca, ultrapassando as concepções contratualistas e teocráticas. A era
constitucional não recuperou as concepções teocráticas, pois aceitou como ponto de
partida a posição a posição soberana do monarca própria do absolutismo esclarecido.
Estava ultrapassada especialmente a representação da graça divina do Monarca, a qual
não tinha significado para a teoria oitocentista do direito público Para Stahl o princípio
monárquico é um princípio histórico, "um princípio de legitimidade", que, como o
Estado, não carece de fundamentação.
A tese da concentração de todo o poder estadual no Monarca era, porém, contraditada
pelos direitos de cooperação que as constituições da era constitucional asseguravam à
Representação popular, como era o caso do direito de co-exercício do poder legislativo.
Em termos político-jurídicos, porém, sobressaía o que a era constitucional afirmava de
inovador: o Rei não podia exercer sozinho o poder legislativo, pois não podia emanar
nenhuma lei sem o assentimento dos estamentos. A soberania do Monarca, tem, pois,
de colocar-se num outro especial e qualitativo momento. Esse momento de elevação do
Monarca acima do Parlamento revela-se na presunção de competência, ou seja, todas
as competências que segundo a Constituição não estão expressamente cometidas ao
Parlamento ou a outros órgãos competem unicamente ao Monarca. Em caso de dúvida,
vale a regra da competência do Monarca. Assim, o princípio monárquico conseguia
coexistir com a Representação popular e converter-se mesmo em regra geral do
sistema constitucional. E é precisamente por isso que a presunção de competência a
favor do Monarca, tornada regra de interpretação e de integração de lacunas, é vista

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com razão como o "cerne jurídico" do princípio monárquico. As lacunas constitucionais


são colmatadas com a ajuda deste princípio de interpretação-integração.

1.3. A soberania do Estado e o dualismo do poder estatal


O problema da soberania, porém, longe de se resolver pelo entendimento do princípio
monárquico como presunção de competência a favor do Monarca, como pretendia
Stahl, complicava-se, de facto, pela aceitação de dois órgãos de poder estatal: Monarca
(Coroa) e Dieta (Povo).
Deve-se, no entanto, a Jellinek o desenvolvimento sistemático da teoria da
personalidade do Estado (a quem Albrecht já havia reconhecido o carácter de pessoa
jurídica), que permitiu referir a soberania ao Estado e o poder estatal aos órgãos do
Estado. A soberania é uma qualidade do poder estatal, mas soberano é o próprio
Estado, sendo que os esforços de dotar a soberania de um conteúdo positivo tem a ver
com o poder estatal e não com a soberania, pois o conceito de soberania é de natureza
puramente formal. Sendo a soberania em si mesma indivisível, como o Estado,
manifesta-se, no entanto, através de órgãos estatais, pois que sem estes o Estado não
existiria juridicamente. Assim, diz Jellinek, o Estado "apenas pode existir por meio dos
seus órgãos; se se prescinde dos órgãos então não fica algo do Estado como suporte
dos seus órgãos, mas só resta um nada jurídico". É este o ponto de partida
normatológico para uma minuciosa teoria tipológico-orgânica do Estado constitucional.
O Monarca e o Parlamento são órgãos do poder estatal pelos quais se manifesta
juridicamente a soberania do Estado. Ambos são órgãos imediatos, pois a sua posição
orgânica deriva directamente da Constituição. No entanto, eles não se interceptam na
representação da soberania. Tal só se torna compreensível a partir daqueloutra distinção
(de Jellinek) entre órgãos primários (independentes) e órgãos secundários
(dependentes).
Os órgãos secundários estão para o órgão primário numa relação de dependência
orgânica, dado que o órgão secundário representa imediatamente o órgão primário.
O órgão secundário é, por assim dizer, o exteriorizador da vontade do órgão primário,
isto é, a vontade do órgão secundário é de considerar como vontade do órgão primário.
No tipo de órgão secundário incluem-se todos os géneros de representação jurídico-
estatal. É um órgão deste tipo que representa o Povo: o Parlamento é, na monarquia
constitucional, um órgão secundário, que representa o Povo, esse sim, órgão
primário. Povo e Parlamento são uma unidade jurídica, sendo que o Parlamento,

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embora órgão imediato, é um órgão secundário, pois é dependente do Povo. Pelo


contrário, o Monarca é sempre órgão primário, logo independente ou autónomo, e a sua
vontade possui uma eficácia imediatamente vinculante para o Estado. Assim, o
Monarca, como órgão autónomo (primário), não depende de ninguém e a sua vontade
vincula directamente o Estado; o Parlamento, como órgão não autónomo (secundário),
depende do Povo, órgão independente (primário). Monarca e Povo são, pois, órgãos
primários, mas enquanto o Monarca manifesta, por si, a vontade do Estado, o Povo é
representado constitucionalmente pelo Parlamento.
A relação do Monarca com o Parlamento configura-se, então, do seguinte modo: o
Parlamento é um órgão dependente (secundário), mas, como órgão imediato, exerce
competências decorrentes directamente da Constituição; no exercício dessas
competências, o Parlamento limita o Monarca, órgão independente, pois que o
Parlamento depende directamente do Povo, também ele órgão primário e independente.
O Monarca é um órgão primário e, neste sentido, superior ao Parlamento, mas não
pode ordenar-lhe nada e o Parlamento não responde perante ele. Os juizes, por seu lado,
são considerados órgãos secundários do Monarca, sendo entendidos como uma
representação do poder monárquico.
Como órgão autónomo (primário), o Monarca é, perante os órgãos não autónomos, o
órgão supremo do Estado. O Monarca não é, porém, superior ao Parlamento, pois ele
não pode ordenar algo ao Parlamento, nem o Parlamento é responsável perante ele. Se
isto significava que o Monarca é o órgão do Estado e o Parlamento órgão do Povo,
significava também que o Povo não está representado na monarquia constitucional
pelo Monarca, mas unicamente pelo Parlamento. Como nota Malberg, aqui radica a
oposição Estado/Nação, típica da Monarquia constitucional alemão, teorizada ao
pormenor por Jellinek.

1.4. O dualismo sob o prisma do movimento liberal


Assim se mostra o rasgo dualista próprio da monarquia constitucional: no Monarca e no
Parlamento radicam dois poderes estaduais independentes um do outro e não um
complexo de órgãos reconciliados perante um órgão primário. O material político
inflamável, que permanecia subjacente a este antagonismo pela existência de dois
portadores de poder do Estado, haveria de ser atenuado a longo curso por duas ordens
de razões. Por um lado, através de delimitações competenciais, e com recurso teórico à
regra da presunção de competência do Monarca, conseguiram as constituições manter o

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equilíbrio. Por outro lado, esse equilíbrio satisfazia a ideologia liberal dominante ("o
Estado de Direito, antes de tomar posições criativas no processo político, foi garantia
do ordenamento social existente"). Na verdade, o ponto central no qual conjugavam e
culminavam todas as ânsias e ideais políticos do movimento constitucional era o ideal
jurídico-natural da autonomia individual. Nele radicavam a soberania popular, a ideia
do Estado-Nação, o ideal da liberdade e igualdade e a exigência estrutural de limitação
do poder estatal. Estas representações da autonomia individual marcaram
decisivamente o quadro constitucional liberal e não contradiziam, antes pugnavam por
uma separação profunda entre Estado e Sociedade.
A sociedade liberal não era entendida como comunidade, mas como uma soma de
indivíduos, ou seja, como o somatório das vontades individuais. Ora, se a sociedade é
esse somatório, em última análise, é o próprio homem individual que procura
determinar a sua posição perante o Estado, que a ele se opõe como poder exterior,
impondo a razão da sociedade à ética do Príncipe. O critério e o impulso desta nova
orientação provinham, nomeadamente, da ideia da razão do iluminismo colocada
agora ao serviço da posição defensiva da sociedade contra o absolutismo. Em
primeiro plano, era a liberdade individual e a propriedade que se pretendia
salvaguardar da interferência do poder. Estas exigências dirigiam-se contra o Estado: a
liberdade era entendida como libertação do Estado, como dispensa da tutela estatal. A
função do Estado deveria restringir-se à garantia e permanência da ordem jurídica,
segundo o ideal jurídico kanteano que se propunha garantir a cada indivíduo a
liberdade como homem, a igualdade como súbdito e a independência como cidadão.
As forças que impulsionavam o movimento liberal constitucional não aspiravam, com
efeito, a fundamentar um Estado que representasse uma "forma de integração da
sociedade". Era a um Estado-aparelho, e não a um Estado-comunidade, que se
dirigia a Constituição. O ideal burguês não exigia a limitação do poder estadual e a
participação na soberania estatal para dirigir o Estado em cooperação com o Monarca,
mas para assegurar e garantir o âmbito da liberdade individual. O Estado aparecia
estritamente controlado, como mero servidor da sociedade, submetendo-se a um sistema
acabado de normas jurídicas, ou simplesmente identificado com esse sistema de normas,
não sendo mais então que norma e processo. Isso, de resto, estava de acordo com
"aquela contenção de finalidades que corresponde ao ideário liberal".
Garante desse posicionamento do Estado era a participação da Representação popular
no poder estatal. Antes da época constitucional, todo o poder soberano estava no

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Monarca. As exigências constitucionais não visaram, porém, dissolver totalmente o


Monarca e o seu Governo e substituir a chefia do Estado por um governo representativo.
O objectivo era simplesmente uma limitação do poder do Monarca, mas que não
ameaçava a sua posição.
Enquanto faltou um tratamento teorético da expressão e da decisão da Representação
popular, permaneceu intocável, fora das reservas expressas do Parlamento, o poder
soberano do Príncipe mediante a presunção da competência monárquica. Este
complexo âmbito do poder do Monarca, não limitado pelo Parlamento, formava a
esfera de prerrogativa da Coroa. A ele pertencia, especificamente, o largo campo da
acção do Executivo. Contra as medidas do Executivo, protegia-se o campo da liberdade
burguesa através da exigência da intervenção da Representação popular no poder
legislativo e no poder orçamental. Estas eram porém, as áreas de fricção entre
Monarca e o Parlamento, entre o Soberano e o Povo, entre o Estado e a Sociedade.
O debate acerca do conceito de lei vai nascer precisamente da separação entre Estado e
Sociedade decorrente do sentimento liberal e que as estruturas constitucionais do século
XIX racionalizavam através de delimitações competenciais. Tal debate vai ser
impulsionado pelo conflito constitucional prussiano. O dualismo, que tal conflito
patenteou, tornou visível o delicado equilíbrio das Constituições monárquicas e forçou
o tratamento teorético-científico do sistema constitucional de competências, que teve
em Laband a teorização mais intensiva e duradoira.

1.5. A doutrina do duplo sentido da lei em LABAND


A tentativa mais conseguida de construir um conceito material de lei é, sem dúvida, a
que intentou a dogmática alemão do direito público através da distinção entre lei em
sentido formal e lei em sentido material. A doutrina foi formulada pela primeira vez
por Paul Laband no seu Direito do Orçamento e elaborada sistematicamente no seu
Direito Público do Império Alemão. Acolhida e reelaborada pela maior parte do
juspublicistas alemães, com destaque para Georg Jellinek, em Lei e Regulamento,
converteu-se em doutrina dominante da juspublicística oitocentista.
Como todas as grandes construções jurídicas, a doutrina do duplo sentido da lei teve a
sua origem num problema constitucional prático de interpretação, no caso, a
Constituição Prussiana de 1850, a qual, fruto do movimento revolucionário de 1848,
tinha um cariz liberal e parlamentar, mas que a evolução constitucional comprimia pelo

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fortalecimento do poder do Monarca, particularmente a partir da formação do Reich em


1871.
Vimos já que, com base nas constituições do primeiro quartel do século XIX, Stahl
havia estabelecido a presunção de competência a favor do Monarca, de facto, na
Baviera, em Baden, e em Weimar, as Constituições estabeleciam que era necessário a
colaboração do estamentos "para toda a lei relativa à liberdade das pessoas e à
propriedade dos cidadãos", ao que se acrescentava a declaração de que "o Rei é o Chefe
do Estado, unifica em si todos os direitos do poder do Estado e exerce-os confirme os
preceitos estabelecidos na Constituição, que ele outorga". Havia portanto, a
salvaguarda da posição cimeira do Monarca, e a colaboração dos estamentos na
legislação só era precisa naquelas matérias expressamente submetidas à reserva de lei,
ou seja, relativas à liberdade e à propriedade dos cidadãos; no demais, o Monarca
detinha um poder normativo livre. O dualismo de princípios políticos, monárquico e
democrático, que no plano orgânico contrapunha o Monarca ao Parlamento, no plano
funcional implicava uma cisão do poder normativo, pois o escalão superior do
ordenamento estava ocupado por leis e por regulamento, cada um, com o seu objecto
próprio e com uma absoluta independência mútua.
Na Constituição Prussiana de 1850, as prescrições relativas ao poder legislativo são
outras. Segundo o seu artigo 62º, "o poder legislativo é exercido conjuntamente pelo
Rei e pelas duas Câmara. O acordo do rei e das suas duas Câmaras é indispensável
para toda a lei". Não há, além disso, nenhum preceito que declara que o Monarca é o
titular de todo o poder do Estado, de modo que falta o apoio constitucional para aceitar
sem mais, o princípio monárquico e concluir, a partir deste, que se consagra também
aqui uma estrutura dualista como aquele que consagravam as Constituições ligadas ao
esquema da Acta de Viena. Com isto ficava aberta a possibilidade de que a lei tivesse
outro conteúdo diferente da reserva da lei ("propriedade-liberdade"), que se estendesse
a matérias alheias a esta, extensão que a Constituição reconhecia para questões
determinadas e, em concreto, para o Orçamento que deveria aprovar-se por via
legislativa. Era, pois, preciso determinar-se em que medida o Executivo, o Monarca,
ficava sujeito ao poder legislativo.
A questão apresentou-se com extraordinária acuidade em torno do Orçamento de 1862,
convertido em fulcro duma luta política em que, verdadeiramente, o que estava em
causa era o poder do Monarca e do Parlamento no sistema constitucional. esta disputa
constitucional, resolvida a favor do Monarca, é um momento chave da história política

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da Prússia, mas é também um capítulo essencial da história da ciência do direito


público na Europa (com ela se sedimenta uma corrente militarista, presidida por
Bismark e que veio a revelar-se determinante no futuro da Europa, designadamente no
que diz respeito ao eclodir da Primeira Guerra Mundial entre 1914/1918), pois deu azo a
que, pela primeira vez, se procedesse a uma elaboração de técnica constitucional a
partir da Constituição vigente, e com recurso a conceitos puramente jurídicos e não
com inovação de princípios políticos. A origem do conflito encontra-se na intenção de
reforma do exército empreendida pelo Rei Guilherme I. o exército alemão era, então, o
de menor envergadura de entre o das grandes potências europeias, pois tinha
permanecido inalterado no último meio século. A pretensão de modernizá-lo de acordo
com um esquema de exército profissional incluía, entre outras coisas, a fixação do
serviço militar em três anos, o que acarretava custos orçamentais acrescidos. Se a
reforma do exército chegou a converter-se num problema de máxima importância, não
foi pela questão em si mesma - a fixação do tempo de serviço militar em dois ou três
anos -, mas porque implicava a posição constitucional do exército e a titularidade do
poder sobre ele. Para o Rei e para os sectores mais conservadores, o exército devia
manter-se à margem dos órgãos constitucionais, como suporte do Estado e sujeito única
e exclusivamente ao comando do Rei. Para a maioria parlamentar liberal, o problema da
duração do serviço militar era, antes de mais, uma oportunidade de afirmar o poder do
Parlamento, pois a reforma do exército significava gastos que deveriam ser aprovados
no Orçamento do Estado, o qual a Constituição submetia à lei. Desde o início da crise,
em 18459, a questão resolveu-se com medidas provisórias que permitiam avançar na
reforma militar, mas deixavam sem resolver a questão de fundo. Não foi possível
apresentar, com perspectivas de êxito, um Orçamento que consagrasse formalmente o
projecto de reforma. Em 1862, o Rei dissolveu as Câmaras, mas a situação permaneceu,
já que os liberais obtiveram uma maioria ainda mais ampla. Bismark, nomeado chefe do
Governo, apresentou o Orçamento que contemplava a reforma militar, o qual foi
recusado em Setembro de 1862. Para Bismark e para a Coroa, contudo, tal não
significava que o Governo ficasse reduzido à impotência. A Prússia encontrava-se
perante uma "lacuna constitucional", pois uma hipótese deste género não estava
expressamente prevista na Constituição. Se as Câmaras não aprovavam o Orçamento,
o Governo tinha o direito de governar sem ele, ou seja, a Coroa estava sujeita ao voto
da Representação popular em questões orçamentais desde que chegasse a um acordo
com ela, mas, se tal não ocorria, podia decidir por si mesma, pois que, como haveria

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de dizer Laband, tal matéria não era "matéria de lei".


A distinção entre lei em sentido material e lei em sentido formal forneceu a base para
resolver o problema da competência do poder legislativo na Constituição prussiana. No
entender de Laband, quando a Constituição, no artigo 62º, estabelece que "o poder
legislativo exerce-se conjuntamente pelo Rei e pelas Câmaras. O acordo do Rei e das
Câmaras é indispensável para toda a lei", não se limita, no segundo período do texto, a
descrever o procedimento legislativo, mas estabelece uma reserva de lei: a palavra lei é
utilizada, na segunda frase do preceito, em sentido material, significando que, para ditar
uma regra de direito, uma lei em sentido material, é necessária a via legislativa, isto é,
uma lei em sentido formal. A palavra lei do, fim do citado texto é empregue num
sentido material, pois que, de contrário, os dois parágrafos do texto não fariam mais do
que repetir a mesma coisa, carecendo de sentido a repetição. O conceito formal de lei
deduz-se do facto de o texto exigir em primeiro lugar, para a formação da lei, o
concurso das Câmaras e do Rei. Mas, para que não fique desprovido de sentido o
segundo período, tem de admitir-se que este tem por fim impor a condição do
assentimento prévio das duas Câmaras para disposições de determinada natureza. Dito
de outra forma: a palavra lei entende-se aqui em sentido material, ou seja, como a
regra de direito. A colaboração das duas Câmaras só é exigida para matérias sujeitas à
lei (em sentido material). Pelo contrário, nos actos de vontade estatal não legislativos -
como as dotações, autorizações, planos orçamentais - tinham de publicar-se em forma
de lei (em sentido formal).
Aqui se coloca Laband com o seu duplo conceito de lei. Sob o conceito de lei material
apenas caem as matérias que versam sobre a liberdade e a propriedade, numa palavra, o
estatuto jurídico dos cidadãos (aquilo que hoje se designa por direitos fundamentais).
Pelo contrário, o conceito de lei formal abrange todos os actos de vontade do Estado
para os quais é exigido o consentimento da Representação popular, mesmo que eles não
contenham nenhuma disposição. Ora, o Orçamento é algo que não se dirige
directamente aos cidadãos (segundo Laband); ainda que o Parlamento não aprove o
Orçamento, tal não deve obstar que, ainda assim, o Monarca não o possa levar por
diante. Lei em sentido material e lei em sentido formal relacionam-se pois
reciprocamente não como género e espécie, como um conceito mais amplo e um
conceito mais restrito àquele subordinado, mas como dois conceitos inteiramente
distintos, sendo cada um deles determinado através de características diferentes um

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através do conteúdo, o outro através da forma da vontade. Assim nasceu o direito


público moderno.

1.6. A posição de GEORG JELLINEK


Este autor prosseguiu a teoria de Laband, encaminhando os seus esforços no sentido de
aperfeiçoar e racionalizar o esquema conceitual. O conceito duplo da lei é por ele aceite
e tido como um grande progresso não só do conhecimento jurídico-estatal positivo, mas
também do conhecimento global científico-estadual.
A ordem jurídica não tem um fim em si mesma, mas serve os fins das pessoas, seja dos
indivíduos seja o Estado. Como, porém, o direito define como a "esfera dos limites
sociais" e de limitação da actividade livres das pessoas, só estaremos perante uma regra
de direito (Rechtssatz) quando a lei realiza esse objectivo. Uma lei só pode ser
designada por Rechtssatz se o seu conteúdo prossegue essa finalidade do direito. Assim,
"se uma lei tem por objectivo delimitar reciprocamente as esferas da actuação livre de
personalidades, se se dirige à determinação do círculo de limites sociais, então contém
disposições de uma regra de direito (Rechtssatz), sendo portanto, também uma lei em
sentido material; se, porém, tem uma qualquer outro fim, então, não é uma lei material,
mas uma lei formal, que, quanto ao seu conteúdo, se caracteriza como disposição de
um acto de administração ou como decisão jurídica".

1.7. A repartição de poderes e a reserva de lei


a distinção dos aspectos material e formal da lei é também a primeira construção
dogmática do conceito de função estatal e a primeira elaboração jurídco-dogmática do
problema da separação de poderes. Actos com uma mesma forma e dimanados de um
mesmo órgão podem ter conteúdos diferentes: os actos do legislativo, as leis, agrupam-
se em um só categoria pela sua forma e pelo órgão de quem procedem, mas são
materialmente distintos, pois, nuns casos, contêm "regras jurídicas", são legislação em
sentido material, e, noutros casos, são "regras de administração". Por sua vez, actos da
mesma natureza material podem adoptar formas distintas: as "regras jurídicas" podem
adoptar a forma de regulamento e os regulamentos em sentido material podem revestir
a forma de leis.
Se se procuram as causas e os motivos profundos para a doutrina dualista da lei,
esbarra-se com a mesma origem histórica moderna-iluminista que, desde os finais do
século XVIII, se vinha revelando no movimento constitucional. O conceito dualista da

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lei é a tradução do princípio da separação de poderes numa estrutura constitucional dual


que expressamente se manteve na monarquia constitucional alemã. A fundamentação
jurídico-filosófica assenta aqui no ideal da autonomia jusnaturalista. O indivíduo
autónomo é elevado a ponto central da ordem jurídica e, para segurança da sua
autonomia de princípio, todas as regras que aí intervenham necessitam do assentimento
da Representação popular. Como o Estado não é entendido como "forma de integração
da sociedade", mas como uma entidade a esta contraposta, permanece como inimigo. A
liberdade individual é ameaçada por um poder exterior à sociedade, e, por isso, exige-se
o controlo desse poder. Compreende-se assim que somente aquelas disposições do
Estado que atinjam os particulares contem para a esfera jurídica. Quaisquer outras
regras permanecem fora do âmbito do direito. Através desta separação do campo de
acção da sociedade e da acção estadual era criada a condição prévia para a
diferenciação de prescrições jurídicas e prescrições administrativas. Proposições
jurídicas apenas podem existir no âmbito externo ao Estado. Apenas aí o particular é
atingido como cidadão "independente do Estado".
O entendimento de que há um âmbito de direito intrinsecamente inerente ao homem,
independente do Estado e independente dos portadores de poder estatal, estava já
presente na distinção de Rousseau entre volonté générale e volonté de tous e entre
Législateur e Législateurs; também na property de John Liocke a dimensão do direito
que a lei se propunha garantir contra o exercício do poder do Estado. A característica da
generalidade da lei era aí a garantia de que o direito não ficava na disponibilidade dos
portadores de poder.
A procura de um conteúdo material de lei, para além do seu ponto de partida histórico-
hermenéutico, respondia também a essa necessidade de dotar o direito de um
fundamento de validade intrínseca independente da vontade. Daí que se vá ter de
saber o que é o direito para saber o que é matéria de lei (regra de direito). Uma vez
definido o que é direito, ganha a lei o carácter de instrumento de garantia desse
direito, mediante a exigência de que aquilo que é uma regra de direito tenha a forma de
lei, ou seja, necessite da intervenção da Representação popular.
No Estado constitucional, o Estado-de-Direito ia directamente dirigido à defesa da
autonomia individual versus Estado, e a lei, instrumento desse Estado-de-Direito,
garantia o espaço de autonomia individual (e de sociedade) frente ao Estado. É aqui
válida a afirmação de que as posições jurídicas subjectivas dos indivíduos, o que hoje

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designamos por direitos fundamentais, se realizavam e protegiam através da lei e


constituíam, por isso mesmo, a reserva da lei.

2. O SISTEMA POLÍTICO DUALISTA

A teoria dualista da lei apresenta-se como uma explicação do sistema baseado em


estruturas dominada pelo princípio monárquico. Daí que, ao analisarmos a teoria, é o
próprio sistema instituído que transparece.
A Coroa, autónoma na sua legitimidade, preexiste, como princípio activo, a qualquer
habilitação legal, sendo-lhe, por consequência, possível reivindicar um âmbito próprio
e primário de competências derivadas não da lei, mas da sua imediação soberana de
função de governo. A Dieta ou Parlamento, em coerência com um sistema estruturado
sobre a concordância de vontades como técnica de limitação do poder, enxerta-se no
esquema como um posterior, isto é, como um "limite", ou "fronteira", imposto à
vontade da Coroa naquelas matérias tidas de alta transcendência para os cidadãos,
que, por isso, são chamados a dar o seu assentimento pela Representação popular. A
liberdade e a propriedade constituem - na tradição germânica oitocentista que funda as
suas raízes em Locke - esse âmbito material que se deseja parlamentarmente ocupado e
garantido.
Com isto, o "princípio monárquico", ao operar como apoio ou pressuposto primeiro
da acção do Governo, afasta o "princípio parlamentar" da sua qualidade de
fundamento ou de a priori de toda a actividade estadual. Em consequência, a lei já não é
um prius ou pressuposto de toda a determinação pública, mas norma principalis ratione
materiae, identificável pela referência a certos conteúdos (liberdade, propriedade ou
aqueles que um sistema concreto valorize como matéria de lei) considerados pela
Constituição como reservados à acção mediadora da sociedade. Dentro desse âmbito, a
incidência da lei pode ser, inclusive, mais intensa que no sistema monista; fora dele,
porém, a acção do Executivo adquire autonomia. É dentro destas coordenadas lógico-
institucionais que ganham sentido próprio certas expressões.
a) Adquire pleno sentido a técnica da reserva da lei como determinação de um
específico âmbito material. A reserva da lei pretendia defender o âmbito de
competência do Parlamento perante intromissões do as Executivo. No seu sentido
dogmático-tradicional, a "reserva da lei" só tem verdadeiramente sentido em
estruturas constitucionais que aceitem a existência de espaços de poder estatal

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livres da lei, ou seja, que, de algum modo, aceitem o dualismo ao nível da


estruturação política dos órgãos estaduais (isto é, que admitam dois órgãos de
produção normativa).
b) O princípio da legalidade começou por ser entendido como vinculação negativa do
Executivo à lei - basta para que aquele possa operar que uma norma legal não o
impeça expressamente -, para, depois, exigir uma vinculação positiva, que é o
contributo preciso da "reserva da lei". Isto necessita de uma clarificação. Seguimos
aqui a explicitação das duas componentes do princípio da legalidade referidas por
Otto Mayer: a reserva da lei e a primazia da lei. Dentro do âmbito da reserva da
lei vale (rege) a tese da limitação causal do poder monárquico. Aí, o Executivo tem
que fundamentar na lei a sua legitimidade (competência) para actuar. Aí, só
através de autorizações legais pode o Executivo ditar regulamentos, sendo só
admissíveis regulamentos secundum legem e intra legem. Por isso, dentro do
âmbito da reserva da lei, a lei não é só limite, mas é causa do actuar da
Administração. Fica assim excluído, nessa esfera, um poder autónomo de criar
regulamentos. Fora do âmbito da reserva legal, o Executivo não necessita da
colaboração parlamentar nem de uma autorização (habilitação) legal para ditar
regulamentos. A lei não é aí causa, pressuposto, da actividade do Executivo mas
unicamente limite. Fora do âmbito da reserva legal, o poder do executivo é, em
princípio, ilimitado. É este o sentido do "princípio monárquico" que levava Jellinek
a afirmar que "as constituições germânicas dividem o campo da legislação em duas
partes: uma, na qual a vontade do Monarca se subordina à adesão das Câmaras, e
outra em que o Monarca conserva o poder de, por si só, legislar. Assim, se o
princípio da reserva da lei significava uma limitação total do poder regulamentar
autónomo nas matérias reservadas à lei, por si mesmo significa total liberdade da
Administração na esfera exterior à reserva. Esta consequência é, porém, atenuada
pela primazia da lei, a outra componente do princípio da legalidade apontada por
Otto Mayer. Segundo este autor, "a vontade do Estado manifestada em forma de lei
tem preferência jurídica sobre qualquer outra forma de manifestação de vontade
estatal; a lei só pode ser suprimida por outra lei, mas, por sua parte, anula ou
deixa absolutamente sem efeito tudo o que a contradiga. A isto - diz o autor -
chamamos primazia da lei". Assim, toda a faculdade do Executivo de criar
regulamentos se detém perante as barreiras que lhe opõem as leis vigentes. Não
pode, pois, o poder autónomo de emitir regulamentos ser exercido contra legem. O

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princípio da primazia da lei faz ressaltar os efeitos antinómicos do sistema dual em


análise: por um lado, ao Monarca assiste uma presunção de competência normativa
residual - tudo o que não lhe é proibido (constitucionalmente) é-lhe permitido -; ao
Parlamento, por outro lado, assiste a presunção decisória na "criação do direito",
pela qual, de algum modo, estende a interpreta a materialidade reservada ao Direito
(Lei). Como o Parlamento é um órgão independente do Monarca, a sua vontade
(decisão) não pode ser por este contraditada, pelo que a Administração é obrigada
a respeitar as leis existentes, mas, na medida em que a matéria legislada se não
reconheça dentro do âmbito reservado à lei, pode o Monarca ditar regulamentos
autónomos (independentes), praeter legem, ou seja, sem habilitação legal
específica, ainda que não contrários a à lei (contra legem). A lei é aqui
verdadeiramente limite à actuação da Administração.
c) Em correlação com o anteriormente dito, tem aqui pleno significado os
regulamentos independentes ou praeter legem: trata-se de regulamentos
produzidos no espaço não ocupado pela lei, por que não existe lei e porque não
situados em "matérias de lei". Os regulamentos independentes não correspondiam,
pois, na tradição germânica oitocentista, a uma "reserva de regulamento"
inacessível à lei. Na Constituição portuguesa, a terminologia é outra, mas a
competência normativa primária cinde-se, ao nível nacional, em normas jurídicas
emanadas pelo órgão de Representação popular e em normas emanadas pelo
Governo.

CAPÍTULO IV - O PROBLEMA DA LEI NA ACTUALIDADE. A


"JUSTIÇA CONSTITUCIONAL"

A formação dos conceitos basilares do Direito Constitucional euroatlântico deu-se em


momentos capitais de evolução política, imbuídos de determinadas ideologias e
condicionados por determinadas estruturas sócio-económicas. Foi neste contexto que
se inseriram, quer a revolução puritana em Inglaterra, o período revolucionário
independentista das colónias inglesas na América do Norte e o constitucionalismo
francês. Duas correntes de pensamento convergiam então na tarefa constituinte: o

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jusnaturalismo de Locke e Rousseau, de carácter racionalista, e o método empirista de


Montesquieu e Blackstone.
Com uma lição posterior aos factos, investindo-se numa função científica de dogmática
jurídica, posiciona-se Laband. A sua intenção foi afirmar o método jurídico no
tratamento do Direito Público, operando com categorias estritamente jurídicas.
Independentemente, porém, desta postura metodológica, é irrecusável o situacionismo
da construção de Laband. Como acertadamente se pode precisar, o famoso método
jurídico de Laband cumpriu, na realidade, uma função política a partir do 1871:
legitimou a estrutura política do Reich, recentemente fundado, tornando-o
juridicamente sustentável.
Como ficou já expresso, todas estas construções correspondiam, de uma forma ou de
outra, a um sentimento liberal burguês de índole garantista da Sociedade versus
Estado. Tanto o jusnaturalismo racionalista de Locke e Rousseau como o logicismo
formal/material de Laband se justificavam no enquadramento procurado do "Estado-
aparelho" numa relação inofensiva com os interesses sociais. As revoluções burguesas
configuravam as instituições políticas de acordo com os cânones formal-garantistas: o
Estado-de-Direito que proclamavam tornou-se na garantia do ordenamento social
existente.
Todo este arsenal jurídico vai, no entanto, ruir fragorosamente, quando uma outra
vertente do pensamento político - o Estado-comunidade - ganha expressão
constitucional na República de Weimar. O esquema dualista vem a ser derrotado já no
século XX, tendo, para tal, contribuído decisivamente dois factores: a 1ª Guerra
Mundial e a Revolução Bolchevique. A evolução histórica e social veio confrontar o
estado dualista com a massificação da sociedade: o Estado já não podia continuar a
ser algo que nada tinha a ver com a sociedade. A situação de total carência em que se
encontravam os povos no final da 1ª Guerra Mundial não se compatibilizava com o
alheamento estadual. O Estado vê-se, assim, forçado a intervir, sem que, contudo, os
limites dessa intervenção estivessem pré-definidos. È neste quadro (e no período que
medeia entre as duas Guerras) que nascem os estados totalitários de tendência
positivista e que também ocorre o crash da Bolsa de Nova York, emblematicamente
identificado com a queda do liberalismo. A Constituição de Weimar de 1919 vai,
assim, inaugurar um novo ciclo de constituições, questionando todo o labor dogmático
da corrente dualista anteriormente teorizada até à exaustão por Laband e Jellinek.

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Aí ganha voz aquela concepção sociológica-substantiva que Lorenz Von Stein havia
já contraposto ao logicismo formalista de Laband. Na verdade, Stein, na sua obra
Actualidade e Futuro da Ciência do Direito e do Estado na Alemanha, enuncia uma
teorética constitucional em grande medida oposta ao logicismo jurídico de Laband. No
seu entendimento, o conteúdo do direito não é direito. Ou seja, tudo o que se ensina
conceitualmente, o que aparece como regra de direito ou como sentença, é produto
daquelas forças que, como sujeitos ou objectos, o criam. Neste sentido, o que nos
aprece como direito não é um conceito científico, mas uma situação económica e
social da humanidade. E exemplifica: o conceito dogmático-orgânico da personalidade
tem que ser eternamente o mesmo; no entanto em toda a personalidade há vida e, na
medida em que existe vida, a personalidade não pode permanecer igual, pelo que vai
necessariamente transformar-se o direito em não direito e este último em direito. Este
processo aplica-se à personalidade do Estado. Aí existe também um processo vital de
desenvolvimento da personalidade, sendo o direito (vigente) a expressão vital desse
processo. Por isso, o direito é uma manifestação do Estado enquanto expressão de
uma dada situação económica e social num processo em que a vontade do Estado se
produz numa relação intensa com a economia e a sociedade. O direito é, assim, uma
expressão objectiva, um acto de vontade, ou seja, a legislação, a lei. Este é o direito
positivo ou vigente: puro conceito jurídico de uma personalidade no acto de regulação
de uma determinada situação económica ou social. Se se pretende, porém, conhecer a
essência do direito positivo, ele tem de ser compreendido como consequência
(produto) de determinadas forças que o produziram.
Também Rudolf Smend caracteriza o Estado e o Direito como "formas espirituais
colectivas", ou seja, como "unidades de sentido de realidade espiritual". O Estado não é
um fenómeno natural que deva ser simplesmente constatado, mas uma realização
cultural que, como realidade da vida do espírito, é fluída, necessitada continuamente
de renovação e desenvolvimento, posta continuamente em dúvida. Deste modo, o
Estado não se constitui como um pressuposto de referência das leis, das sentenças ou de
actos administrativos; pelo contrário, o Estado realiza-se e existe graças a essas
manifestações, que, em si mesmas, são a actualização funcional dum processo de
integração, o qual é o núcleo substancial do ser do Estado.
É significativo que em nenhum dos autores revistos apareça um tratamento autónomo e
desenvolvido quer da função legislativa quer da lei. A lei intui-se aí como uma
manifestação existencial do Estado e, tal como este, é definida numa perspectiva de

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contraposição negativa, sobretudo metodológica, a modelos anteriores. Assim, é já


insustentável a imputação da lei à vontade geral ou à mera revelação de um valor
comum, pois as leis não são mais que prescrições de particulares forças políticas, de
forças políticas parciais e partidárias, que, no quadro do sistema político-estadual,
adquiriram legitimidade para ditar o direito, a partir de uma sociedade dividida em
diferentes forças sociais e políticas actuantes e interventivas, ao nível do poder, e
sustentadas em projectos ideológicos diferenciados. As leis assim prescritas impõem-se
decerto a todos, mas não pode pensar-se imputá-las ao geral ou ao valor comum, já que
são efectivamente "a vontade de uma classe, de um partido, de um grupo de pessoas
que ganharam legitimidade através da luta política". Ainda que porventura de maioria
- e nem sempre o terão de ser -, esses votos e interesses tem oposição também
legitimada nas próprias instâncias legislativas e, por isso, sendo a expressão de uma
vitória num conflito político, a lei invoca e afirma a vontade apenas de uma
autoridade legislativa.
O positivismo legalista e a perplexidade perante o alargamento funcional do Estado pós
Weimar conjugaram-se na "contra-definição" da lei. A lei deixa de ser uma norma
puramente jurídica para adquirir uma imediata função política, pois que em si mesma
passou a ser um específico instrumento de que o poder lança mão para realizar a sua
política. É através das leis que o Estado realiza o seu programa político-social e, assim,
"de princípios normativo-jurídicos para a solução, passaram a ser as leis a própria
solução". O problema da juricidade, da legitimidade da lei, da sua validade, converte-se
num mero pressuposto da organização político-democrática do Estado, mas é
irrelevante em termos jurídicos, pois, não carecendo a lei de exigências normativas que
haja de satisfazer no seu conteúdo ou numa intencional normatividade, ela vale pelo
carácter coercivo-normativo do Estado, ou seja, enquanto vigora numa ordem jurídica
estadual efectiva. A lei é-o simplesmente porque prescrição do poder legislativo, e ,
portanto, é axiológicamente neutral.
Quer o sentido moderno-iluminista da lei - que encontrava o fundamento da sua
validade normativo-jurídica na própria racionalidade que postulava - quer o sentido da
corrente oitocentista germânica . que via na lei o valor comum da sociedade -
pretendiam garantir, através da lei, os valores da liberdade, da igualdade e da
objectividade-segurança. Tal era pensável na medida em que o ambiente cultural
liberal-burguês distanciava as normas dos casos histórico-concretos e não as
comprometia com os fins e tarefas "particulares". Ora, são justamente esses fins

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socialmente concretos, na sua contingência histórica e particular, que a lei,


convertida em instrumento político de realização desses fins, hoje visa, o que postula
uma outra fundamentação para o direito e para a lei.
Esta tendência - que marca claramente o período que medeia a s duas Guerras Mundiais
- vem, todavia, a sofrer uma certa inversão no pós 2ª Guerra. O artigo 20º da
Constituição de Bona refere a necessidade de submissão dos poderes públicos à lei. Já
em 1927, o jusfilósofo Erich Kaufmann reatava a tradição filosófica sobre a lei e o
direito, ao afirmar: "apenas quando não tenham sido lesados certos princípios jurídicos
fundamentais, a lei cria verdadeiramente direito". É que reconhece-se hoje não se
poder aceitar, sem mais, o postulado da equiparação entre a lei, enquanto prescrição
de uma acto político teleológico-concretamente interessado, e o direito, enquanto
intenção de validade normativamente universal, ou, pelo menos, que o indispensável
equilíbrio entre eles não vai garantido a priori. Cabral Moncada, Castanheira Neves
e Baptista Machado representam entre nós essa reflexão jusfilosófica que recusa a
apriorística identificação entre o direito e a lei, pensando-os numa relação de particular
tensão normativa.
Com isto, no entanto, vai implícita a exigência da constituição de um sistema político
que, querendo dar solução positiva a uma intenção normativa de validade, tenha em
conta essa possível não identificação direito-lei, organizando-se institucionalmente de
molde a poder superá-la. As Constituições que adoptam a conhecida fórmula que
vincula os poderes executivo e judicial à lei e ao direito, assumem a não coincidência
entre o direito e a lei. Não menos rico, porém, o princípio geral, afirmado pela
Constituição Portuguesa, do "Estado de Direito Democrático (artigos 2º e 9º),
entendido como Democracia de um Estado de Direito. Para Manuel Vaz, esta fórmula
vai ser entendida como consagrando um Estado de Direito material que, mantendo os
elementos mais importantes do Estado de Direito formal do século XIX, isto é, a rígida
subordinação da Administração à lei e o controlo pelos tribunais administrativos da
legalidade de todos os actos administrativos, acrescenta, porém, a subordinação do
legislador democrático a princípios fundamentais, assim como a fiscalização dessa
subordinação através de instâncias jurisdicionais (os tribunais constitucionais).
Talvez tenha sido Carl Schmitt o autor que, com maior argúcia, curou de defender a
imprescindibilidade dos valores afirmados pelo Estado-de-Direito, e, com vigor
renovado, no Parlamentarismo ou na moderna democracia de massas. A luta pela
democracia do século XIX confundia-se com a luta liberal, pois aí era a ideia da

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Representação popular que se contrapunha ao Princípio monárquico, numa atitude


defensiva da sociedade homogénea em contraposição ao poder. Os conceitos de
democracia, liberalismo, individualismo, racionalismo eram aí expressões da mesma
Ideia da sujeição do Monarca ao Direito e, nesse sentido, eram representações típicas
do Estado-de-Direito. O triunfo da democracia, entretanto, ao por fim à contraposição
orgânico-estadual, pôs igualmente fim à identidade entre democracia e liberalismo.
Tais dimensões continuavam, porém, a ser tidas como incindíveis na democracia de
massas, na esteira ainda de um pensamento rousseauniano, o que, segundo Carl
Schmitt, acarretava a negação do Estado-de-Direito.
Com efeito, a democracia convertida em valor último e único de estruturação e
manifestação do Estado conduz á uniformização e identificação, no sentido da
imposição de uma vontade a todos como vontade de todos. Tal era claro no contrato
social de Rousseau. Esta é a consequência real da democracia: a lei como "vontade
geral" impõe-se a todos como vontade de todos, independentemente de alguns se não
reconhecerem no resultado ou no sentido da disposição geral. E como Rousseau fazia
expressamente corresponder a "vontade geral" à verdadeira liberdade, então o derrotado
não era livre, porquanto a medida da liberdade é a lei. Democracia e liberdade
identificavam-se, em Rousseau, através da exclusiva soberania da lei.
A um mesmo resultado - diz Carl Schmitt - leva a democracia de massas, enquanto
processo de manifestação da vontade de cidadãos agrupados e representados em
interesses, partidos ou ideologias diversificadas ou mesmo opostos. Ainda aqui a
organização democrática tem sempre o mesmo sujeito - o Povo. O antagonismo, a
diversidade de interesses ou de ideias são elementos fácticos com relevo no processo de
discussão pública, mas tornam-se irrelevantes encontrada que seja a vontade do Povo.
O fim último da democracia é, assim, a identidade, pois todas as decisões que são
tomadas valem por si mesmas enquanto decisões de todos. Como todo o Estado está
democraticamente fundado, realiza-se também a identidade Estado/Povo e, em
consequência dessa mesma lógica, estabelece-se uma série de identificações:
identidade de governantes e governados; identidade dos sujeitos e objecto da autoridade
estatal; identidade do povo e sua representação no Parlamento; identidade do Estado e
lei; identidade do quantitativo (maioria ou unanimidade) com o qualitativo (correcção
da lei), acabando numa identidade entre "matéria" e "espírito"
Como nota Schmitt, não se trata aqui de preservar uma real igualdade entre os
cidadãos, mas uma identificação. A igualdade é um valor do liberalismo; a identidade

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é um valor da democracia. Não estará preservada a igualdade se a vontade geral


prescrever a desigualdade; assim como não estará preservada a igualdade pelo facto de a
vontade geral prescrever a igualdade (apenas haveria aqui igualdade dos que já eram
iguais). Os Parlamentos representam agora câmaras em que tem lugar a luta política, o
conflito de vontades em que a maioria deve vencer, sem prejuízo de alguns direitos da
minoria. È uma ideia de limitação do Parlamento (agora sujeito á fiscalização dos
tribunais constitucionais) que tem agora uma função diferente: já não é o órgão de
defesa contra o Monarca e de salvaguarda dos direitos fundamentais, mas antes um
órgão fragmentado de luta política que, no limite, até pode aprovar leis contra os
direitos fundamentais (eis porque as Constituições modernas devem fiscalizar os
Parlamentos). Os direitos fundamentais já não são matérias dos Parlamentos, mas antes
da Constituição (estão assim acima do Parlamento).
A tese de Schmitt é a de que o liberalismo e a democracia são dois valores em
contraposição, mas que a moderna democracia de massa confundiu. O valor liberal
afirma a heteronomia, a limitação, a legitimidade do poder; a democracia afirma a
homogeneidade, a concentração e a legitimação do poder. O controlo e limitação do
poder, a proibição do arbítrio, a defesa da esfera da individualidade e da diferença são
princípios-valor do Estado-de-Direito que pressupõem heteronomia entre poder e
sociedade, entre poder e indivíduo, em suma, entre Estado e Direito. O Estado-de-
Direito oitocentista via na reserva da lei essa contraposição da Sociedade ao Estado,
que era também a contraposição do Direito ao Poder. A conjugação demo-liberal nessa
tarefa de limitação do poder só fazia sentido, porém, por dar-se por excluído que
pudesse encontrar-se no Parlamento uma maioria para uma lei que limitasse a liberdade
dos cidadãos ou que contrariasse grosseiramente os princípios jurídicos (de Direito)
universalmente aceites. Aquela firmação formal da generalidade e da abstracção
significava, precisamente, que as regras formais e abstractas que fossem ditadas por
homens racionais seriam necessariamente direito justo. Partia-se, pois, da
pressuposição, também rousseauniana, de que la volonté générale est toujours droite.
Tudo isto se altera com o surgimento da democracia de massas, entendendo aqui a
expressão como qualificando um Estado politicamente assente no princípio
democrático e socialmente fraccionado em interesses, valores, grupos e partidos
diversos ou antagónicos. Ainda que se reconheça, como instrumento liberal, a
discussão pública, no processo de legitimação da feitura da lei, a absolutização da
democracia acaba por renunciar a qualquer ideia de controlo do poder, a partir do

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momento em que se reconheça à voz popular uma autoridade inquestionável, que, no


fundo, se legitima em razões de competência e processo.
Para que também aqui se possa falar em Estado-de-Direito, há que institucionalizar
momentos e dimensões de heteronomia entre "democracia" e "liberalismo", entre
"legalidade" e "legitimidade". Se a lei, porque convertida em instrumento de poder,
deixou de ser a apriorística garantia dos valores do Estado-de-Direito, não podem estes
prescindir de outras estruturas de garantia, se o Estado se organiza como "democracia
de Estado de Direito". A questão - nas palavras de Rogério Soares - é, portanto, a de
encontrar num Estado, que abandonou há muito a dimensão liberal, uma fórmula que
realize as intenções da garantia da liberdade da pessoa. O princípio da legalidade,
desdobrado nas vertentes da "reserva da lei" e "primazia da lei", era a representação
dogmática dos juspublicistas que, perante a estrutura dual constitucional oitocentista,
viam, na sujeição à forma de lei das matérias de direito, a salvaguarda do Estado-de-
Direito. O modo como a estrutura constitucional portuguesa actual representa a defesa
dos valores de um Estado-de-Direito é o objecto da Parte I deste resumo. Veremos que a
garantia de tais valores se desenvolve a diferentes níveis da estrutura heterónoma do
Estado:
1) A um nível de sindicância da Constituição pelo Direito - "reserva do Direito" -
relativa às disposições jurídicas que não estão na disponibilidades do poder
político.
2) A um nível do controlo da lei pela Constituição - "reserva da Constituição -
relativa às matérias que antes pertenciam aos Parlamentos; este novo
enquadramento, faz com se possa falar numa reserva material da Constituição (e
não apenas orgânica). Em concreto, são os direitos fundamentais, agora integrados
na Constituição e que tem aplicabilidade directa, e cuja defesa contra o Estado está
assim assegurada pelo próprio texto constitucional: ideia de justiça constitucional,
assente no princípio da constitucionalidade.
3) A um nível da opção por um procedimento especial de positivação de certas
matérias legislativas - "reserva de Parlamento" -, o que, também significa, desde
logo, a possibilidade de um outro órgão- o Governo - ter competência legislativa.
4) A um nível de limitação da Administração pelo Legislador - "reserva de função
legislativa" -, na qual se afirma o princípio da legalidade: para haver função
legislativa de órgãos administrativos tem de haver lei anterior.

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PARTE I: TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

CAPÍTULO V - A RESERVA DO DIREITO

1. AS DIMENSÕES DA RESERVA DO DIREITO

1.1. O constitucionalismo e o direito natural -


O facto da Constituição portuguesa basear a República na dignidade da pessoa humana
coloca-nos, de imediato, perante a necessidade de exteriorizar o significado dessa
expressão, a qual é o culminar de um processo de influência jusnaturalista que foi
também o ponto de partida do constitucionalismo.
Não se pode esquecer, com efeito, que as origens do Direito Constitucional se imbuíram
numa corrente jusnaturalista, onde beberam os grandes teóricos do liberalismo. Através
da secularização, promoveu-se o afastamento das bases teológicas e da
fundamentação divina e religiosa das ciências, para firmá-las em bases e motivações
exclusivamente humanas e sociais. No direito natural da Idade Moderna, representado,
entre outros, por HOBBES, LOCKE e ROUSSEAU, surge, em primeiro plano e
progressivamente, a ideia de uma ordenação instituída ou mesmo constituída pelos
homens segundo considerações racionais. Numa perspectiva ética, a mudança imposta
pelo jusnaturalismo racionalista é decisiva: a secularização implica a libertação dos
limites ético-teológicos, os quais não davam já resposta adequada ao homem da
Ilustração. A exigência constitucional, a inserção do homem no Estado, os problemas
levantados pelo capitalismo e indústria não encontravam resposta num jusnaturalismo
escolástico que a seu modo negava a história. Frente ao bonum commune de um

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corporativismo ético, típico da estrutura social da Idade Média, o racionalismo


esgrimiu um individualismo agressivo contra os vínculos, as corporações e os
privilégios estamentais. Com efeito, o desenvolvimento comercial e capitalista, a
consolidação industrial, a difusão das liberdades políticas e a configuração do Estado
liberal não teriam sido possíveis sem a prévia remoção de tais obstáculos.
Frente à estrutura social pré-revolucionária, o jusnaturalismo racionalista oferece uma
outra estrutura baseada na liberdade e na igualdade formal. Em lugar de uma ordenação
fundada em status e classe, surge uma vontade geral uniforme que impessoaliza as
particularidades humanas, convertendo-as em representação da totalidade
(representação rousseauniana). A pessoa humana não se considera já eticamente
obrigada por critérios alheios à sua individualidade natural, mas nessa individualidade
se deve educar, exercitando a liberdade pessoal numa relação entre iguais; a soberania
e a vontade geral são criações imediatas do homem livre e igual dirigidas à totalidade
política de que o indivíduo é titular e sujeito.
Deste modo, prescindia-se der qualquer fundamento de carácter teológico para
justificar a origem e a estrutura das sociedades, em favor da explicação do Estado, do
direito e da lei como factos humanos resultantes da natureza, e superava-se a antiga
concepção do poder pessoal, em favor da ordenação genérica levada a cabo pela lei
entendida como emanação racional da "vontade geral".
Por outro lado, toda a formulação do Rechtsstadt visava, como vimos, a limitação do
poder estatal pela afirmação de valores cuja plena realização só podia ser garantida com
a instauração de uma ordem nova fundada sobre a ideia do primado do homem e da
livre esfera dos seus direitos naturais. É neste sentido que, como diz ROGÉRIO
SOARES, o Estado de Direito liberal é um Estado de Direito material "que ultrapassa
os arranjos técnicos da defesa da liberdade, para exprimir uma fundamental intenção
de independência do homem" ou, como refere BAPTISTA MACHADO, o
Rechtsstadt afirma a autonomia e liberdades individuais não como limites extrínsecos,
acidentais e precários, mas como uma dimensão que é originariamente superior ao
Estado.
Enquanto significou uma nova ordem social que revolucionou os fundamentos do
Antigo regime, o jusnaturalismo racionalista foi essencialmente inovador; enquanto,
porém, afirmou uma ordem natural e verdadeira, esteada num puro racionalismo
horizontal, o jusnaturalismo racionalista converteu-se em legitimação atemporal do
status quo. MAX WEBER foca expressamente estes aspectos ao afirmar que a

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"inovação do direito natural foi a forma pela qual as classes que se rebelavam contra a
ordem existente conferiram legitimidade a um direito que se não apoiava na tradição
ou em normas religiosas positivas"; num segundo momento, todavia, "o direito natural
converteu-se na forma específica de legitimidade do ordenamento jurídico
revolucionariamente criado".
Como em todo o processo revolucionário, à medida em que se vão estabelecendo, as
novas instituições tendem a alhear-se da sua base ideológico-axiológica. Assim, o
carácter negativo-material e instrumental da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789 converteu-se rapidamente em construção jurídico-formal
constitutiva, elevada a ideal atemporal, o que acarretou a formalização da "base
cultural" de que partira, o que, por sua vez, haveria de significar a sua negação.
Desta forma observa-se, no campo das ciências do direito, a progressiva eliminação das
bases jusnaturalistas. As razões político-jurídicas são, no fundo, o temor pela perda da
segurança de posições conquistadas. É que o recurso a um direito suprapositivo
contém sempre uma dupla ameaça: ameaça política, enquanto questiona continuamente
situações e posições, e pode legitimar mudanças que se não desejam; ameaça jurídica,
porque questiona os próprios fundamentos das soluções que a dogmática jurídica tem
por adquiridas. É curioso, de resto, observar a marcha dos interesses, e da sua
fundamentação, que triunfaram com o constitucionalismo: primeiro, invoca as
supremas razões do direito natural, depois, solidificadas as posições, refugia-se num
positivismo jurídico, que é a negação de qualquer ideia de direito suprapositivo. A
esta evolução presidia a tradução política dos interesses reinantes expressa na situação
de uma burguesia que, começando por surgir em oposição ao Estado do anciem régime,
se vê, depois, consolidada a sua hegemonia política, confrontada com as
reivindicações do quarto estado, procurando então utilizar o Estado contra a exigência
democrática e impedir que se passe do estádio da democracia governada para o da
democracia governante.
Ganha, assim, relevo uma concepção de Estado de Direito (de legalidade), que,
pressupondo o reconhecimento dos direitos individuais, considerava como dimensão
determinante ou exclusiva da racionalização do Estado as próprias técnicas de garantia
daqueles direitos, concebidas agora como valores autónomos. A consolidação do Estado
liberal de Direito foi disso exemplo. Apartando-se da perspectiva ética que o
justificou, materializou-se na legalidade vigente, a partir do momento em que esta
garantia uma determinada estrutura social, ou seja, a estrutura da propriedade

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privada e do mercado livre - que se considera definitivo -, organizando-se o Estado


numa dimensão meramente defensiva ou negativa frente á sociedade. A ligação do
sentimento burguês à estrutura política é bem expressa por ROGÉRIO SOARES
quando salienta que o "problema que se põe à organização política do mundo burguês
é o de reivindicar uma sociedade autónoma, isto é, separada do controlo do Estado,
mas ao mesmo tempo, sem se comprometer, ir gradualmente conseguindo que o
Estado se proponha garantir essa autonomia e, para isso, venha mais tarde ou mais
cedo a surgir como mandatário dessa mesma sociedade".

1.2. O direito natural no actual direito constitucional ocidental -


Se a procura de uma dimensão material do conceito do direito e da lei norteou a as
filosofias da antiguidade clássica e medieval, essa dimensão, preliminarmente afastada
por HOBBES, foi preenchida, no iluminismo racionalista, pelos conceitos da "razão
humana", da "natureza das coisas" e da "vontade geral". Das preocupações garantistas
e metafísicas do racionalismo horizontal surgiu, num esforço de purismo metodológico
- a que não era alheio, como vimos, o temor da instabilidade que os fundamentos
jusnaturalistas incutiam ao sentimento burguês -, o positivismo jurídico que,
renunciando a priori ao preenchimento ético-material da norma jurídica, vai fazer
coincidir o Direito com o sistema normativo. A lei é aqui definida a partir de
caracteres de generalidade, a priori válida e incontestada, porque positivada por uma
vontade geral intérprete das categorias lógicas e universais.
Esta concepção da lei era correlativa da concepção do Estado-aparelho, centro único do
poder, apartado das preocupações da sociedade. O direito, a lei, o legislador eram
entendidos como categorias lógicas, pertencentes a um transmundo, considerados
atemporalmente, costas viradas ao processo diacrónico por que passava a Sociedade. A
"intencionalidade" do sistema, a sua "decisiva significação", estava na "estrutura
neutral" do poder perante a "estrutura liberal" da sociedade, colocadas "ao lado uma da
outra".
Esta neutralidade do Estado foi abertamente potenciada pelo positivismo jurídico. De
facto, independentemente das modalidades que possa assumir, o positivismo traduz-se
invariavelmente numa pretensão de construir uma "ciência do direito", entendida
como estudo das regras do direito posto pelos homens, estruturada num sistema de
conceitos abstractos, dominada pela lógica formal, e intencionalmente alheia a
valores. Tais intuitos "formalistas" e "cientistas" ligaram-se àquela concepção de

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Estado-de-Direito-de-legalidade, acarretando a desvinculação do Estado de critérios


materiais, para afirmar um Estado autolimitado pelo seu próprio direito positivo,
unicamente aberto aos conteúdos determinados por qualquer poder constituído, desde
que vertidos em lei.
O direito e a lei convertem-se, agora, em instrumentos de conformação política e
social. A lei, diz MAX WEBER, é, cada vez mais, nas sociedades actuais, um simples
meio técnico da organização burocrática, ou, como diz CARL SCHMITT, a lei é
simplesmente o meio ou o instrumento de um plano, na actual situação de
"legislação motorizada".
O perigo que tal entendimento encerra, quando a "consciência jurídica" se move, ainda,
no quadros do positivismo jurídico, está, infelizmente, historicamente ilustrado. As
experiências históricas foram, com efeito, significativas do novo perigo que representa a
entrega do direito ao político - ou, numa linguagem epistemológico-teorética, o reduzir
o direito à "ciência do direito", em detrimento do problema normativo. Certos autores,
fazem uma aplicação à instauração da ordem fascista em Itália do carácter
"conservador" que o positivismo e o formalismo sempre significam; assim, se, na Itália,
numa primeira fase, o positivismo foi um entrave às investidas do fascismo ascendente,
é indiscutível que, consumada a vitória daquele, o positivismo jurídico lhe prestaria
vassalagem incondicional, contribuindo, no seu domínio específico, para a estabilização
e conservação da ordem fascista. Mas foi, sobretudo, na Alemanha que ganharam relevo
as reflexões sobre as causas do Nicht-Recht legal. GUSTAV RADBRUCH escreveu,
em 1946, que o positivismo jurídico, neutro de valores, "com a sua crença de que a lei
é a lei, desarmou os juristas alemães perante as leis de conteúdo arbitrário e
criminosas". E KARL SCHMIDT dizia, em 1947, que "temos de apreender de novo
que a justiça está antes do direito positivo e que são unicamente as suas categorias
intocáveis à vontade do homem que podem fazer das leis direito - seja o legislador
quem for, um tirano ou o povo. Velar por isso é a nossa função, a função própria dos
juristas. Se o esquecermos, degradamo-nos em auxiliares e servos do poder".
Este retorno à fundamentação ética reganha toda uma tradição metafísica da concepção
do direito, mas, das preocupações da secularização, retém que o direito vigente é uma
criação do homem, ainda quando este se confesse limitado por "princípios de direito":
ou seja, reconhecendo um âmbito do direito em que a positivação jurídica não é
constitutiva do direito, mas declarativa de valores que não domina. Não se trata,
assim, de esquecer o valor da lei positiva e de condenar a autoridade que ela possui, a

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justo título, na comunidade, mas de conhecer os seus limites, isto é, de reduzir o seu
papel a termos mais modestos de que aquele que pretendiam as teses do racionalismo
metafísico, que estão na base do legalismo decisionista - legalismo que, como já
apontamos, tem, de facto, uma metafísica, e mesmo uma mística, tão transcendente
como a do jusnaturalismo mais dogmático. Trata-se simplesmente de recordar que o
Direito excede necessariamente a lei, e isto, mais que uma questão de princípio ("de
ciência"), é um facto da comum experiência da vida jurídica real; esse facto elementar e
incontroverso desmonora, sem mais, a construção positivista e remete,
inapelavelmente, o critério do Direito para princípios supralegais.
Os juristas devem trabalhar "para servir a vida", e não para merecer o predicado
"ciência". "Se os homens que participam numa determinada comunidade histórica
convergem em certos valores, valores convocados a fundamentar e a dar sentido à sua
prática comungada, que importa que esses valores fundamentais não possam
demonstrar-se teorético.cientificamente ?". É que, como refere BAPTISTA
MACHADO, "quem não acede `ideia de que aquela função originária ("natural") do
acto comunicativo está para além de todas as estratégias humanas (não é "disponível"
por estas sem desnaturação), escapa a todas as teorizações da razão e se impõe como
"transcendentalmente originária", não compreenderá o carácter suprapositivo de certos
princípios ético-jurídicos.
Neste sentido, o poder constituinte aceitará determinados princípios superiores, cuja
validade pressupõe fundada a um outro nível que não o da mera legalidade das
normas constitucionais que os recolhem, nem da própria decisão do poder
constituinte. É a esta heterolimitação decorrente do Direito que designamos por
reserva do direito. Colocando-nos perante a Constituição Portuguesa de 1976,
interrogamo-nos se a decisão constituinte consciencializou tais limites, como que se
autolimitando no seu acto constitutivo.

1.3. A reserva do Direito na Constituição Portuguesa -

1.3.1. A dignidade da pessoa humana -


Ao basear a República Portuguesa na dignidade da pessoa humana (artigo 1º), a
Constituição aceita toda uma teorização já elaborada que entende a "dignidade da
pessoa humana" como limite superior ao poder constituinte. " a dignidade do homem
é inviolável. É dever de todo o poder do Estado respeitá-la e protegê-la" (artigo 1º § 1

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da GG). Deste preceito - que, além de ter sido inovador enquanto direito positum,
continua a ser dos mais explícitos dos seus congéneres das Constituições do após-guerra
- retiraram a doutrina e a jurisprudência alemãs a existência e o carácter preceptivo de
uma ordem de valores anterior ao direito positivo. A partir desta ideia se passou a
aceitar uma prevalência axiológica a todo o direito positivo; tratam-se de direitos
inerentes ao homem que, em circunstância alguma, poderão ser questionados.
A doutrina alemã vê neste preceito a aceitação de um princípio de direito natural,
princípio ético do qual radiam os Elementarrechte (direitos elementares). Como
princípio de direito suprapositivo, tem carácter pré-estadual hierarquicamente
superior às normas constitucionais constitutivas. Por esta razão, vincula o poder
constituinte e qualquer norma positiva ordinária ou constitucional.
A jurisprudência constitucional alemã subscreveu em diversas decisões este
entendimento. São especialmente significativas as seguintes passagens do tribunal
Constitucional Bávaro entre 1950 e 1952: "A Constituição reconhece a dignidade da
pessoa humana e o princípio da igualdade, num sentido de justiça, como direito
humano, isto é, como direito anterior ao direito positivo. É convicção do mesmo
constituinte que ele não criou estes direitos, mas que eles são anteriores a ele. Por
isso, reconhece, ao mesmo tempo, os princípios básicos do direito, que são também
elementos essenciais da ideia do Direito, a saber: o respeito e protecção da dignidade
das pessoas e o princípio da igualdade, em sentido de justiça material, limitam a
soberania do poder constituinte e do poder do Estado".
Entre nós, já antes da Constituição de 1976, três autores defendiam a necessidade da
fundamentação valorativa da lei a princípios naturais: CASTANHEIRA NEVES,
CABRAL MONCADA E BAPTISTA MACHADO. No entanto, deve notar-se que
estes autores entendiam que, mesmo a este nível pré-jurídico, essa fundamentação era
tida como positivada e passível de ser entendida como plenamente funcional a nível
histórico. Nesta lógica, o princípio da dignidade da pessoa humana não é uma mera
abstracção, não vale como pura idealidade. Na sua qualidade de princípio jurídico,
vigora, em regra, através das normas positivas e realiza-se mediante o consenso social
que suscita, projectando-se na consciência jurídica geral. Isto é, não se referiam aqueles
autores a estádios valorativos unicamente abstractos e transcendentes, mas antes a
valores que nasciam e se moldavam no decurso da própria evolução social.
Não nos preocupa aqui - porque não é esse o problema da reserva do direito, mas da
sua actualização - o perigo que representa a adesão "a uma ordem de valores mítica,

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abstracta e perfeita, a um direito natural de tal maneira concebido que, a partir da


definição de uma imutável natureza humana, imponha do exterior um sistema de valores
como modelo pronto e acabado". O problema aqui é de limites, ou seja, de um
"absoluto" (intransponível ou fundamento humano comum) imposto à constituição do
direito. A verdadeira questão que aqui se coloca é a questão de limites jurídicos ao
poder constituinte ou, como dizia JORGE MIRANDA, saber se "goza o poder
constituinte de uma irrestrita liberdade de consagrar ou não certas regras". O ponto
que se pretende vincar é que, mesmo perante uma Constituição que interioriza os
"princípios axiológicos fundamentais", não deixam estes princípios de valerem por si, e
não meramente porque vigoram. A sua validade é e permanece suprapositiva,
enquanto pré-condição da própria validade do Direito positivo, ou, por outras
palavras, enquanto pressuposto irredutível e constitutivo do próprio sentido da validade
do Direito positivo.
Significa isto que a positivação não incide sobre a validade dos princípios do Direito,
mas sobre as formas organizativas de dar vigência a tais princípios no contexto da
realidade política e social, ou seja, a postivação contém em si uma razão construtivista
(organizatória), mas não é a razão da razão construtivista, pois essa continua válida para
além da positivação. Isto há-de também significar que os princípios de Direito podem
não estar exaustiva e completamente "organizados", pelo que ao homem se reconhece
um acesso ao Direito para além da sua positivação.

1.3.2. O acesso ao Direito -


Dos precisos termos do inciso constitucional (artigo 20º, nr.1), ressalta que do que aqui
se trata não é unicamente do acesso dos cidadãos à Constituição e à lei, mas do acesso
de todos ao direito. Isto há-de significar o reconhecimento da imediatez humana na
titularidade e no gozo de direitos que emanam directamente do Direito, o que também
significará admitir a eventual insuficiência da "organização" constitucional e legal para
assegurar valores jurídicos directamente derivados da ideia de Direito (princípios de
justiça suprapositivos). Não se trata, pois, somente do "acesso ao conhecimento do
Direito - do Direito objectivo", em ordem a "tornar conhecido o direito". Não se trata,
além disso, somente do "reconhecimento da possibilidade de uma defesa sem lacunas",
pois tal bastar-se-ia com o assegurar a todos o "acesso aos tribunais", mas da aceitação
expressa da possibilidade de "lacunas do direito" ou, mais correntemente, de "lacunas
em razão do direito".

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Ao referir-se as "lacunas em razão do direito", está-se a aludir às lacunas ultra jus


positum ou, ainda, lacunas transcendentes. Isto é, não se trata aqui de lacunas que
sejam colmatadas no quadro da teleologia imanente à lei ou em razão da lei (lacunas
praeter legem) ou lacunas cujo preenchimento tenha lugar no âmbito da teleologia
imanente à Constituição (lacunas praeter constitutionem), mas antes de lacunas que
sejam descobertas e colmatadas pelo recurso a princípios e valorações ético-jurídicas
suprapositivos (ratio juris). É a este terceiro nível (lacunas transcendentes) que deve
referir-se a salvaguarda do acesso ao direito, como dimensão da reserva do direito.
Não se trata já de operar apenas com critérios directamente dedutíveis da teleologia
imanente á lei e à Constituição, mas somos remetidos para critérios de valoração
extralegais, ainda que não extrajurídicos. Assim, só será lícito falar em "lacuna do
direito", quando o direito que se pretende assegurar decorrer directamente de
"princípios jurídicos fundamentais" que não estão assegurados ("organizados") na
Constituição ou na lei, mesmo com o recurso à interpretação e integração das normas.
Neste caso, nem haverá que fazer prova da sua compatibilidade com o direito positivo,
pois tais princípios supralegais são tão co-essenciais ao Direito que as normas
positivas que os contrariassem não podiam constituir direito.
A expressa aceitação da possibilidade da "lacuna do direito", no sentido que vimos, por
parte da Constituição Portuguesa resolve a dúvida atrás suscitada, de saber se também
pode incluir-se na Constituição (não escrita) direito supralegal que não foi positivado
através da sua transformação em direito constitucional positivo. A resposta a esta
questão, perante a Constituição Portuguesa, não pode deixar de ser afirmativa, pois
que, ao assegurar o acesso de todos ao direito, é o próprio Legislador constituinte que
confessa (formaliza) a sua limitada previsão para positivar explicitamente todas as
expressões do Direito, o que não o impede de afirmar que mesmo essas expressões
tenham salvaguarda constitucional.
Exemplo vivo de tal lógica é o que se extrai do artigo 16º, nr.1 CRP (à semelhança do
IX Aditamento de 1791 da Constituição dos EUA), que não se restringe, em matéria de
direitos fundamentais, aos direitos expressamente positivados, mas se abrem a outros
direitos, concluindo que se, indirectamente, a Constituição os prevê é porque adere a
uma ordem de valores (ou ela própria encarna certos valores) que ultrapassam as
disposições dependentes da capacidade ou da vontade do legislador constituinte; é
porque a enumeração constitucional, em vez de restringir, abre para outros direitos - já
existentes ou não - que não ficam à mercê do poder político.

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1.3.3. Os Elementarrechte (direitos elementares) -


Irradiações do princípio ético da dignidade da pessoa humana são os designados pela
doutrina e pela jurisprudência alemãs Elementarrechte, ou seja, os direitos e liberdades
fundamentais do homem naquele seu núcleo irrestringível de direitos directamente
decorrentes da dignidade humana. Trata-se daquela dimensão fundamentante dos
direitos individuais que, sob a veste de direito natural ou sob designação jurídicas mais
elaboradas - "exigência originária de Justiça", "consciência axiológico-jurídica",
"princípiosjurídicos fundamentais", "limites transcendentes do poder constituinte" ou
"princípios axiológicos fundamentais" - representa a indisponibilidade do poder
perante o Direito, ou, na terminologia que adoptamos, a reserva do direito. Nesta
dimensão, os direitos e liberdades fundamentais do homem "gozam de anterioridade
relativamente ao Estado e à Sociedade: pertencem à ordem moral e cultural donde um
e outro tiram a sua justificação e fundamento".
Significativo da sensibilidade constitucional à heteronomia do Direito, expressa nos
Elementarrechte, é o preceito inserido no artigo 19º, nr.6 CRP. Atendendo á gravidade
dos motivos que podem justificar a suspensão do exercício dos "direitos, liberdades e
garantias", ou seja, "casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de
grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade
pública" (artigo 19º, nr.2 CRP), o reconhecer-se, mesmo nesses casos, a prevalência
dos supracitados direitos, só se explica por uma sentida heterolimitação que prevalece
sobre todas as "razões de Estado", ou mesmo que esteja em causa o próprio Estado e
com ele a Constituição. Em último termo, é o reconhecer-se a existência de um núcleo
de direitos do homem indisponível perante a própria decisão constituinte, trata-se,
como refere JORGE MIRANDA, de "direitos, liberdades e garantias" pelos quais
"obtém protecção a dignidade da pessoa humana, que é anterior e superior ao
Estado". Daí, nos seja lícito reconhecer no conjunto dos direitos referido o artigo 19º,
nr.6 CRP, a reserva do direito na área dos direitos e liberdades fundamentais.

1.3.4. O princípio da igualdade como princípio de justiça material -


O princípio da igualdade foi proclamado como valor inerente ao Estado-de-Direito. O
pensamento moderno firma-se na igualdade ontológica do homem, o que, à partida, é o
garante último contra o arbítrio. A transposição dessa igualdade ontológica para as
categorias e conceitos normativos é típica do racionalismo moderno-iluminista em que

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a igualdade e a liberdade são equiparadas à generalidade da lei. A estrutura geral da


lei é, para ROUSSEAU, a garantia do conteúdo justo da lei, porquanto o sentido
último da generalidade é o constituir-se essencialmente como "vontade geral", isto é,
como fundamento constitutivo da lei e critério de validade. Nesta representação, a lei
geral é justa, e é justa porque geral, pois que a justiça material realiza-se na estrutura
formal da generalidade.
A politização da lei desvinculou, contudo, a validade e a justiça da generalidade, do
mesmo modo que desvinculou o conteúdo da lei da sua forma e o Direito da lei. Não é
pelo facto de a lei ser estruturalmente geral que ela é justa; assim como lei não geral não
tem necessariamente que ser injusta. O primordial critério da lei justa ou injusta, assim
como de qualquer acto de poder, tem que buscar-se num princípio de valor e não na
mera forma instrumental que eventualmente garanta esse valor. Nas palavra de
ROGÉRIO SOARES, só assim "como no começo a ideia de Estado-de-Direito volta a
ser uma ideia de Estado-de-Direito material. Só que, agora, libertada da sua
fundamentação racionalista".
Esse princípio de valor é a igualdade material, enquanto exigência fundamental de
proibição do arbítrio e da discriminação e, em último termo, de realização da
intenção de justiça. Limitada por critérios de justiça material, a lei, mesmo quando
representa a resposta concreta a um conflito de interesses, pretende ser a resposta
adequada a essa e a iguais situações, revelando-se deste modo materialmente
universal. A lei não necessitará, então, de previamente se estruturar na generalidade,
mas, para não violar a universalidade material, deverá regular o caso particular de
modo que a disposição possa ser regra, ou seja, generalizada. Esta é, no entanto, uma
exigência material de justiça de toda e qualquer actuação dos poderes públicos, sendo
ainda a dignidade da pessoa humana o fundamento último desta exigência de
"tratamento igual".
Não significa isto que á estrutura da lei se não reconheçam préstimos normativos de
garantia da igualdade. Só que, ainda aí, a generalidade dá meramente uma garantia de
2º grau à universalidade material. A estrutura geral da lei introduz uma componente
esquemático-formal que abstractamente assegura um igual tratamento relativamente a
uma categoria de destinatários. Desta forma, se realiza de modo específico o princípio
formal da "igualdade de todos perante a lei". Mas, se assim é, também a previsão
legal coloca fora desse esquema geral outros géneros ou categorias a que a lei se não
dirige. Ora, e aqui permanece a precedência do princípio da igualdade material, é

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ainda por um princípio normativo da igualdade que hão-de ser previamente


determinadas as "valorações" que permitem proceder justamente a diferenciações. Por
aqui se compreende que uma lei com uma estrutura geral possa ferir o princípio da
igualdade, o que implica que a própria lei geral deva ser controlada.
Significa isto que o princípio da igualdade, enquanto princípio material, é um
parâmetro de Justiça exterior à vontade, mesmo legal, que não permite privilégios ou
ónus que firam o homem, ou seja, que violem a dignidade da pessoa humana. É esse o
sentido do princípio da não discriminação consagrado no artigo 13º, nr.2 CRP: o
respeito e protecção, em sentido de justiça material, limitam todo o poder do Estado.
Ora, como já se acentuou anteriormente, as Constituições democráticas do após II
Guerra Mundial, e com elas a Constituição Portuguesa actual, vincularam-se
claramente a conteúdos axiológicos fundamentais, como é o caso dos princípios da
dignidade da pessoa humana e da igualdade material, e a "explicações-
concretizações" desses valores, como é o caso dos direitos fundamentais, que limitam
todo o e qualquer poder estadual, incluindo o legislador. Assim se compreende que a
garantia de valores fundamentais, entre os quais a justiça e a igualdade, não esteja
hoje, prima facie, confiada á lei, mas á Constituição, e, na medida em que esta se abre a
referentes suprapositivos, a princípios jurídicos fundamentais. É nesse sentido que a
Constituição Portuguesa proclama no artigo 13º, nr.2, como princípio geral, o
princípio da não discriminação onde se contém aquele feixe de princípios que o artigo
266º, nr.2 CRP impõe, especificamente, aos órgãos administrativos: os princípios da
igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.
O princípio da igualdade, no sentido de justiça material, antecede, pois, a
generalidade. O Legislador constituinte, porém, em certa matérias, exige a estrutura
geral da lei, como é o caso do artigo 18º, nr.3 CRP, que prescreve que "as leis
restritivas de direitos, liberdades e garantias tem de revestir carácter geral e
abstracto". O Legislador constituinte entendeu que as restrições aos "direitos, liberdades
e garantias" terão de ser gerais, pois suspeita que as leis não gerais, nesta matéria,
encerram em si um especial perigo de desrespeito pela igualdade material, numa área
em que o tratamento desigual é particularmente insuportável. A estrutura geral da lei
é, assim, um reforço adicional à proibição geral do arbítrio.

2. O CONTROLO DA RESERVA DO DIREITO

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Quem de alguma forma reconheça a vinculação jurídica do poder constituinte a


princípios axiológicos que o transcendem admitirá naturalmente a possibilidade de
normas da Constituição escrita poderem ser inválidas por infracção do direito supra-
legal positivado ou não na Constituição. É esta a questão jurídico-material conhecida
na teoria constitucional pela problemática das normas constitucionais
inconstitucionais, o que pressupõe já uma pré-compreensão que diferencie a
Constituição do texto constitucional, ou, dito de outro modo, que aceite a existência de
uma constituição material ao lado da constituição formal; neste pressuposto, chama-se
constituição em sentido material, como o conjunto dos princípios e dos preceitos
jurídicos que constituem, desde logo, os fundamentos da comunidade política (aquelas
normas que representam componentes essenciais da tentativa jurídico-política de
realizar a tarefa de um Estado); por constituição em sentido formal, entende-se a lei
formal qualificada como constitucional, a partir de um processo especial de formação;
o surgimento da normas constitucionais inconstitucionais não advém de uma hipotética
ausência de materialidade no texto constitucional (admite-se que o legislador
constituinte optou por remeter essas normas de cariz material para legislações
ordinárias), mas sim da eventual constitucionalização de normas violadoras de
normas constitucionais materiais: em conclusão, as normas constitucionais
inconstitucionais são inequivocamente constitucionais do ponto de vista formal e,
justamente por isso, juridicamente válidas; não o serão, todavia, do ponto de vista
material, portanto, juridicamente inválidas, para quem considere haver princípios e
valores, inclusos ou não no texto constitucional, que são anteriores ao direito positivo,
e por isso mesmo, o último decisório da juricidade constitucional; a este respeito,
importa recordar a experiência vivida pela jurisprudência alemã, nos anos que se
seguiram ao final da 2ª Guerra Mundial, onde os tribunais, num curto período de três
anos (1948/1951), evoluíram de uma situação de plena recusa de normas
constitucionais inconstitucionais, passando por momentos intermédios, em que
admitiam a possibilidade de inconstitucionalidade por violação de uma norma
constitucional, até concluírem da possibilidade efectiva da existência de normas
constitucionais inconstitucionais - ou seja, e no caso concreto, das leis que estabeleciam
discriminações contra pessoas identificadas com o nacional-socialismo, estarem,
eventualmente, em colisão com outros princípios gerais da Constituição
consagradores de direitos fundamentais. Não obstante, o tribunal não ter reconhecido
inconstitucionalidade às referidas leis, não deixou, todavia, de admitir a possibilidade

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de certas normas constitucionais em sentido formal não estarem em conformidade


com certos princípios fundamentais elementares que são, afinal, a razão de ser do
Direito. Desta ideia, também se concluiu (contrariamente aos defensores do positivismo
jurídico), que o poder constituinte está vinculado a esse Direito, ou seja, deve observar
os valores éticos e morais da dignidade da pessoa humana, da justiça e da liberdade.
Também em Portugal se levantou a questão, relativamente aos artigos 57º, nr.4
(proibição do lock-out) e 294º (criminalização retroactiva dos agentes da ex
PIDE/DGS); as posições dos nossos constitucionalistas divergem fortemente nesta
matéria; assim, para AFONSO QUEIRÓ e CASTANHEIRA NEVES, as normas
constitucionais inconstitucionais não são só possíveis no plano teórico, como indica o
artigo 294º CRP como exemplo flagrante; GOMES CANOTILHO, numa linha de
perfeita coerência com a sua perspectiva jurídico-material-positiva da Constituição, em
que os princípios jurídicos fundamentais são aqueles que o legislador constituinte
entendeu positivar, não há lugar à existência de normas que enfermam de
inconstitucionalidade; JORGE MIRANDA, reconhece a existência de direito
suprapositivo, ou seja, não vê o legislador constituinte como o último decisória da
juricidade constitucional; nesta medida, parece aproximar-se da ideia de norma
constitucional inconstitucional; todavia, entende não haver inconstitucionalidade, pela
razão simples de não conceber a invocação da Constituição contra normas
constitucionais - quando muito, configura-se uma situação de ilegalidade ou invalidade.
Para MANUEL VAZ, a questão não está em saber se o poder constituinte pode ou não
abrir excepções a princípios gerais por ele consagrados; a questão está em saber se
dada norma constitucional (artigo 294º CRP) viola, porque arbitrária, um princípio
jurídico fundamental organizado e positivado na Constituição (no caso vertente, o
princípio nullum crimen, nulla poena sine lege subjacente ao artigo 29º, nr.1 CRP),
mas cuja validade transcende a própria Constituição. Admita-se - com recurso a um
exemplo extremo, quer todavia se afigura lícito para melhor se explicitar a ideia aqui
defendida - que determinada ordem jurídica não criminaliza o homicídio. Estaria
vedado à ordem jurídica que lhe venha a suceder sancionar penalmente o homicida,
por estrita vinculação aos princípios nullum crimen, nulla poena sine lege ? Numa
perspectiva de absolutização dos princípios, a resposta teria de ser afirmativa. Só que é
tão positivista esta asserção como aquela que entendesse como lícito o homicídio pelo
facto de a Constituição o admitir.

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A admissibilidade de limites jurídicos superiores a qualquer poder só faz sentido se se


reconhecer a existência de valores que se impõem juridicamente e independentemente
da vontade. Daqui se parte para a imposição de limites ao poder constituinte, ou seja,
numa dimensão negativa da reserva do Direito, nega-se ao próprio poder constituinte
uma liberdade irrestrita de consagrar certas regras. A reserva do direito pode ter, no
entanto, uma dimensão positiva. Não é pelo facto de comportamentos "anti-naturais"
carecerem de uma volitiva "tipificação de ilicitude" que eles são juridicamente lícitos:
eles continuam como comportamentos antijurídicos a postularem uma "reparação
jurídica", sob pena de regresso à "vindicta privada" ou à "legítima defesa" do estado de
natureza de que falava LOCKE, a qual o estado civil quis superar. O facto de numa
ordem jurídica vigente tais comportamentos não serem "ilícitos", nem "penalizáveis",
não lhes retira a ilicitude intrínseca, nem faz o infractor imune à pena, pois aí o tipo-
de-ilícito não era constitutivo de ilicitude. Se a ordem jurídica não está "organizada"
em ordem à "repressão" de tais comportamentos, o admitir-se a impotência de toda e
qualquer "ordem jurídica" subsequente para reparar o Direito, seria reconhecer o
volitivo como decisão última do Direito.
Daí, que seja discutível, quanto à juricidade, aquela norma do artigo 294º CRP, que
aceita a criminalização retroactiva de condutas. A dúvida dependerá do juízo que se
faça da gravidade das condutas "retroagidas": se se entende que elas teriam ferido
grosseiramente o Direito, enquanto em si mesmas representam uma ilicitude
reconhecível independentemente de qualquer posição legal - mas atenta a
determinação objectiva da antijuricidade no contexto historico-comunitário e a
imputação ética da culpa no quadro situacionalmente concreto da acção pessoal - a
"criminalização" retroactiva é perfeitamente legítima, porque verdadeiramente não
se trata de uma constitutiva criminalização, mas de "criminalizar" algo que já o era;
se se entende que tais condutas ofereciam dúvidas de ilicitude perante as exigências do
Direito, enquanto tal ilicitude não era clara na ausência de "ilícito penal legal", então a
criminalização retroactiva de tais condutas é ilegítima, por violação do princípio
nullum crimen sine lege, num pano em que ele é verdadeiramente constitutivo da
ilicitude.
A decisão constitucional do Constituinte de 1976, mantida nas diversas Revisões
entretanto operadas, de "criminalizar" condutas antes não criminalizadas estabelece
uma presunção de que tais condutas feriram a "consciência jurídica geral", não lhes
aproveitando, assim, o valor da certeza representado por aquele princípio. Tal

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presunção é, porém, ilidível se se provar que essa decisão foi abusiva, ou seja, foi uma
"imposição" (se não uma vindicta) de uma força que historico-politicamente triunfou,
sendo em si mesmo um factor de arbítrio político, porque a "consciências jurídica
geral" não ilicitava tais condutas.
De tudo aquilo que foi sendo dito nesta análise, entende MANUEL VAZ que, partindo-
se de uma pré-compreensão jurídica que reconhece uma reserva do Direito,
autónomo do direito positivo, é irrecusável a aceitação da possibilidade teórica de
normas formalmente constitucionais, mas materialmente inconstitucionais se
violadoras de princípios jurídicos fundamentais que dão expressão à heteronomia
do Direito.
CAPÍTULO VI - A RESERVA DA CONSTITUIÇÃO

1. DEFINIÇÃO DO ÂMBITO DA RESERVA DA CONSTITUIÇÃO E


DELIMITAÇÃO DA TEMÁTICA EM ANÁLISE

Vimos que à lei era atribuída, na significação oitocentista, a função garantística dos
valores do direito e da individualidade. A lei do "Estado de Direito" representava o
direito perante o Estado. À lei, e só á lei, era confiada a necessária determinação
defensiva do espaço civil da livre afirmação pessoal. A reserva da lei tinha, aí, o
sentido dessa contraposição da sociedade ao Poder, que era também a contraposição do
indivíduo ao poder. A função unívoca da lei na tarefa de limitação do poder fazia
sentido nessa conjugação demo-liberal, que dava por excluído que se pudesse encontrar
no Parlamento uma maioria para uma lei que limitasse a liberdade dos cidadãos, ou que
contrariasse os princípios de direito universalmente válidos. A lei, enquanto expressão
valorativa de uma social homogeneidade estimativa, era necessariamente o direito justo
(recta ratio), pelo que representava aquela unifuncionalidade de garantia material do
direito.
A perda desta unifuncionalidade da lei vimo-la já expressa no surgimento da
Massendemokratie, enquanto processo de manifestação da vontade de cidadãos
agrupados e representados em interesses, partidos e ideologias diversificados, ou
mesmo opostos. A mudança da função da lei implicou o trânsito das leis-garantia para
as leis constitutivas ou conformadoras; de uma legislação jusracionalisticamente
inspirada ou dogmatizada passa-se para uma legislação "social-reformística", "social-
tecnológica" e "social-informática". A confiança depositada na lei e no legislador

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dissipa-se, com efeito, na medida da verificação e consciência da possibilidade


opressora da lei, tornada instrumento de domínio numa sociedade de fracções que
invadem o poder para prosseguirem ideias, interesses ou programas próprios. Não
mais a lei pode ser visualizada como a salvaguarda de um espaço social neutro, porque
axiolgicamente incontestado.
Não se espere, então, da lei a realização unívoca daquela intenção de garantia da
liberdade da pessoa que o liberalismo lhe confiara; na medida, porém, em que continua
válida aquela intenção de salvaguarda dos valores da liberdade, da igualdade e da
objectividade-segurança, permanece a questão de encontrar num Estado, que
abandonou há muito o absoluto liberal, dimensões ou fórmulas intencionalmente
dirigidas à garantia desses valores.
Uma dessas fórmulas vimo-la já desinserida da lei e confiada a uma dimensão que
designámos de reserva do Direito. Admitimos, com efeito, que toda a positivação e
vivência jurídico-política se constrói sob condição de observância de um conjunto de
valores jurídicos fundamentais, que se densifica num imperativo de proibição do
arbítrio. Esta primeira exigência, ou vertente, do Estado de Direito traduz-se, como
vimos, na admissibilidade de princípio da sindicância da Constituição pelo Direito,
mas prolonga-se como valor e limite jurídico autónomo de toda e qualquer actuação
do poder.
Uma outra dimensão da garantia daqueles valores que a lei visava salvaguardar é hoje
confiada à formalização constituinte da comunidade política. A rigidez
constitucional, com efeito, cria um espaço autónomo de conformação jurídica, que,
hierarquizada a juzante, relativamente a outras normas, afirma perante elas uma
heteronomia, isto é, uma reserva de Constituição. Esta reserva de Constituição não se
reduz hoje ao subtrair à lei a estrutura e a orgânica dos órgãos estaduais, mas
expressa-se também numa disposição constitucional de matérias "de fundo". É esta
"reserva material da constituição" que temos em vista, no presente capítulo, ao
pretendermos saber que função desempenha a Constituição na defesa e garantia
daqueles valores que a "reserva da lei" intencionalmente garantia no "Estado de
Direito". Tais valores vimo-los ligados à defesa das posições jurídicas subjectivas dos
indivíduos", que aí se realizavam e protegiam através da lei, e constituíam, por isso
mesmo, a reserva da lei, porquanto só à lei era confiável a liberdade e a segurança dos
cidadãos. Quer isto dizer que nem todas a normas constitucionais "de fundo", "de
conteúdo", nos interessam aqui, mas unicamente aquelas que possam substituir a lei na

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função de garantia da autonomia individual versus poder. Interessa-nos, na verdade,


saber se a Constituição "organiza" um sistema de defesa das liberdades,
consciencializada que está hoje a ameaça que a própria lei - comprometida nos
interesses partidarizados de uma sociedade plural e na definição dos interesses da
máquina estadual - pode representar para esses valores. E, de facto, a Constituição
portuguesa dá um relevo normativo aos preceitos constitucionais que consagram
"direitos, liberdades e garantias" que permite determinar um conteúdo constitucional,
uma "reserva constitucional", perante os poderes constituídos e, especificamente,
perante o legislador. Vai, assim, interessar-nos a dimensão de heteronomia que, na
matéria de "direitos, liberdades e garantias", o poder constituinte consagrou, ao
subtrair à função legislativa o domínio sobre as liberdades.
Na visão oitocentista, entendia-se que a defesa da property se bastava com a
consagração constitucional da ideia segundo a qual a competência para legislar sobre
aquelas matérias estava reservada ao parlamento. Modernamente, entende-se que a
Constituição deve conter uma reserva material: isto é, ela própria deve assegurar os
conteúdos daquelas matérias às quais confere dignidade constitucional, definindo os
valores e o regime especial das respectivas normas. Trata-se, assim, de uma verdadeira
reserva material de Constituição, na justa medida em que consagra valores concretos e
direitos materiais. Tal circunstância, implica que a Constituição estabeleça um regime
específico relativo às normas consagradoras de direito material e, já não, uma mera
declaração enunciativa de direitos na lógica das constituições oitocentistas.
Esta reserva de Constituição difere substancialmente da noção de reserva do Direito,
na medida em que esta última diz respeito a verdadeiros limites, isto é, a direitos
anteriores à constituição e ao próprio Estado. A reserva de Constituição corresponde a
criações da própria Constituição, por isso na disponibilidade do poder constituinte. É
a este nível que vamos encontrar a matéria dos Direitos Fundamentais Alguns desses
preceitos constitucionais encerram verdadeiras dimensões de reserva material de
Constituição: os direitos, liberdades e garantias.

2. A RESERVA DA CONSTITUIÇÃO NOS "DIREITOS, LIBERDADES E


GARANTIAS"

A "regulamentação" constitucional dos "direitos, .liberdades e garantias" assenta numa


decisão constitucional que se desdobra em dois planos: num primeiro plano, situam-se

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aqueles preceitos tendentes a preservar e efectivar o conteúdo constitucional dos


"direitos, liberdades e garantias"; num segundo plano, situam-se os preceitos
constitucionais tendentes a limitar a actividade legal restritiva daquele conteúdo
constitucional.
Naquele primeiro plano, o regime de salvaguarda constitucional dos "direitos,
liberdades e garantias" expressa-se no seguinte:
a) Artigo 18º, nr.1 - os preceitos constitucionais respeitantes aos DLG são
directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas;
b) Artigo 19º - o exercício dos DLG apenas pode ser suspenso (e nem todos) em
casos de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados de acordo e nos
limites do artigo 19º CRP.
c) Artigo 21º - todos tem o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os sues
"direitos, liberdades e garantias".
d) Artigo 272º, nr.3 - a prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a
segurança do Estado, só pode fazer-se com respeito pelos "direitos, liberdades e
garantias", ou seja, estes direitos são um limite para todas as medidas de polícia.
e) Artigo 165º, nr.1, alínea b) - a matéria os DLG é da exclusiva competência
legislativa da Assembleia da República.
f) Artigo 288º, alínea d) - os "direitos, liberdades e garantias" são limites materiais
ao poder de revisão constitucional.
Estes preceitos tem de comum o constituírem "formas" de salvaguarda de um
conteúdo material de direitos, com determinidade constitucional, que converte o
princípio geral da prevalência da Constituição num princípio de eficácia imediata para
o âmbito do direito constitucionalmente definido.

Naquele segundo plano, o regime de salvaguarda constitucional dos "direitos,


liberdades e garantias" define as condições em que o legislador pode restringir aquele
conteúdo constitucional:
a) Artigo 18º, nr.2 - a lei só pode restringir os DLG nos casos expressamente
previstos na Constituição.
b) Artigo 18º, nr.3 - a restrição dos DLG deve limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
c) Artigo 18º, nr.3 - a lei restritiva de DLG não pode ter efeitos retroactivos.

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d) Artigo 18º, nr.3 - as leis restritivas de DLG tem de revestir carácter geral e
abstracto.
e) Artigo 18º, nr.3 - as leis restritivas de DLG não podem diminuir a extensão e o
alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Há, assim, uma reserva constitucional de conteúdo dos "direitos, liberdades e garantias,
expressa nos próprios preceitos constitucionais que os consagram. Este âmbito de
conteúdo, sendo de competência exclusiva do poder constituinte, pode, sob condições,
ser objecto de uma intervenção legislativa dispositiva (restritiva), constitucionalmente
autorizada, pelo que designamos de "reserva relativa da Constituição". O legislador
constituinte determina, porém, que há um "conteúdo essencial" dos preceitos
constitucionais que consagram "direitos, liberdades e garantias" em que cessa toda a
autorização de disponibilidade legislativa. A esse âmbito de conteúdo designámo-lo de
"reserva absoluta da Constituição".
Dito de outro modo, podemos afirmar que nos DLG há um conteúdo essencial que em
caso algum pode ser objecto de intervenção do legislador ordinário; a CRP não autoriza,
por isso, que, nesse último reduto, possam ter lugar leis restritivas (conceito de reserva
absoluta da Constituição). Pode, contudo, haver lugar a restrições no âmbito dos DLG,
nos termos e limites definidos pela CRP, quando esteja em causa, unicamente, o
conteúdo normal (nunca o essencial) desses mesmos DLG (conceito de reserva relativa
da Constituição).

2.1. A "reserva relativa da Constituição" em matéria de direitos, liberdades e


garantias -

2.1.1. A aplicabilidade directa -


O facto de a Constituição ter consignado um regime jurídico-constitucional aos
preceitos respeitantes aos "direitos, liberdades e garantias" é, desde logo, significativo
de uma especial valoração de tais normas, a qual a Constituição quis preservar. De tal
regime deve fluir o recorte e a caracterização das normas em questão, o que também
permitirá distingui-las de normas constitucionais às quais tal regime se não aplique.
Ora, o elemento chave de tal regime é a aplicabilidade directa dos preceitos
constitucionais respeitantes a "direitos, liberdades, e garantias", expressamente
afirmada no artigo 18º, nr.1 da CRP., mas pressuposto em todas a regras que integram

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globalmente o regime. Se um preceito constitucional prescreve que "todos os cidadãos


tem o direito ..." e se diz que esse preceito é directamente aplicável, tal significa a
desnecessidade de qualquer outra instância intervir para "proferir" ou "conferir" o
direito. Se o direito vale e actua por força do preceito constitucional, é porque tal
preceito encerra em si um conteúdo normativo suficiente para valer na ausência de
lei ou mesmo contra a lei. Ou seja, pressupõe-se que o conteúdo dos direitos está
definido nos próprios preceitos constitucionais.
A aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais respeitantes aos "direitos,
liberdades e garantias" implica assim, a presença em tais preceitos de um conteúdo
determinado (definido) ou determinável (definível) de que os cidadãos são os directos
destinatários (titulares). Tais preceitos constituem, por isso, "direitos subjectivos
constitucionais", ou seja, dimensões de autonomia subjectiva constitucionalmente
definida, garantida e tutelada. Tais preceitos gozam, na terminologia significante
adoptada, de determinidade constitucional de conteúdo.
Diferentemente, preceitos constitucionais, aos quais não é atribuída
constitucionalmente a aplicabilidade directa ("direitos sociais, económicos e
culturais", por exemplo) - e se, por um critério de evidência, o preceito não revela uma
determinidade constitucional de conteúdo -, não atribuem, em rigor, "direitos
subjectivos constitucionais", pois que o "direito" não está determinado, nem é
determinável, ao nível constitucional; não pode verdadeiramente falar-se de "reserva
de conteúdo constitucional", quando a norma não sustenta, nem tutela, um direito
subjectivo de conformação constitucional.
A qualidade de direito directamente aplicável, que o artigo 18º, nr.1 da CRP
prescreve aos preceitos constitucionais respeitantes aos "direitos, liberdades e
garantias", se, desde logo, nos indica um recorte de determinidade de conteúdo
constitucional, não significa, todavia, um "singular poder ou pretendsão jurídica
unidimensdional ou unidireccional", antes afirma, as mais das vezes, um feixe de
faculdades ou poderes de tipo diferente, de diverso alcance e apontados em direcções
diferentes. Assim, num mesmo direito fundamental, unitariamente designado e sujeito
ao regime dos "direitos, liberdades e garantias", podem encontrar-se combinados
poderes de exigir a abstenção dos poderes públicos, poderes de exigir prestações
positivas, jurídicas ou materiais, e poderes de produzir efeitos jurídicos na esfera de
outrem.

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Em termos de caracterização geral (de categoria), basta-nos aqui o recorte preceptivo


conferido às normas que consagram "direitos, liberdades e garantias". Tal significa que
essas normas afirmam direitos cujo conteúdo é constitucionalmente determinável e que
não necessitam, por isso, para valerem como direitos, da intervenção legislativa. Deve
entender-se, assim, que o direito existe e se efectiva plenamente pelo recorte
constitucional que lhe é conferido. Nisto consiste o carácter preceptivo da norma
constitucional. Coisa diferente é a exequibilidade imediata do direito do ponto de vista
"subjectivo" do seu titular. Se há direitos (liberdades) que não necessitam do
preenchimento de "pressupostos externos de exequibilidade", para que o titular do
direito os exercite e, portanto, são exequíveis por si mesmos, outros há em que a
determinidade constitucional não basta para que se tornem exequíveis por si mesmos,
necessitando de prestações positivas, jurídicas ou materiais, para que se tornem
exequíveis. Mesmo aqui, porém, o carácter preceptivo de tais normas constitucionais
confere ao titular do direito o "poder de exigir" tais prestações, em ordem ao
exercício do direito que constitucionalmente lhe é definido, não valendo razões
políticas ou económicas de prioridades ou de modelos que obstem ou espacem a sua
concretização. Para MANUEL VAZ, é a propósito destas normas constitucionais que se
pode falar verdadeiramente em inconstitucionalidade "por omissão das medidas
legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais" (artigo 283º,
nr.1 CRP).
Diferentemente se passam as coisas com aqueles preceitos constitucionais a que falhe a
aplicabilidade directa e, portanto, o carácter preceprivo-constitucional. Para que se
determinem como direitos, é necessário que às normas acresça uma actuação
legislativa que defina o seu conteúdo, fazendo opções num quadro de prioridades a que
obrigam a escassez de recursos e o "modelo" económico adoptado a propósito da
intervenção do Estado na vida social, e que, em geral, expressa as alternativas que o
próprio princípio democrático quer significar. Os preceitos constituicionais respectivos
não são, por isso, aplicáveis imediatamente e muito menos constituem preceitos
exequíveis por si mesmos. A exigência de exequibilidade, através de medidas
legislativas, não tem aqui, de resto, o mesmo significado que vimos dever ser
atribuído quando a norma é preceptiva; isto é, não tem o significado de mero
preenchimento de "pressupostos externos de exequibilidade" de um direito
constitucionalmente determinado ou determinável. Se falha á norma constitucional o
carácter preceptivo, então as medidas legislativas são necessárias para tornar

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preceptivas as normas constitucionais e não meramente para as tornar exequíveis. Ou


seja, a lei não tem aí a mera função de tornar exequível a norma constitucional, mas de
determinar o conteúdo, que, unicamente a partir daí, se torna exequível ou postula
medidas (pressupostos externos) de exequibilidade. Não se pode, pois, falar numa
"reserva de conteúdo constitucional", quando o conteúdo não está definido na
constituição e só a intervenção autónoma do legislador ordinário o pode definir,
preenchendo os preceitos constitucionais respectivos e desenvolvendo, assim, a intenção
normativa em termos de produzir direitos certos e determinados.
A determinidade constitucional - capacidade de os preceitos constitucionais
fornecerem todos os elementos e critérios necessários e suficientes para a sua
aplicação como norma constitucional - é o critério da existência de uma "reserva de
conteúdo constitucional". Tal determimidade constitucional, em rigor, depende da
completude (estrutural) do preceito constitucional, e não é necessário, por exemplo,
que a Constituição diga que certos preceitos da parte "orgânica" tem aplicabilidade
directa, para que eles se afirmem como tais, pois que o seu "conteúdo" constitucional
não oferece dúvidas (veja-se o caso paradigmático do artigo 110º, nr.1). Na parte
"material", e, concretamente, na matéria dos direitos fundamentais dos cidadãos, o
legislador constituinte não quis deixar à "evidência" da norma o revelar o seu carácter
de determinidade constitucional, mas impô-lo expressamente para uma categoria de
preceitos, através da fórmula da aplicabilidade directa. Assim, o facto de a
Constituição prescrever a aplicabilidade directa ao catálogo formal dos "direitos,
liberdades e garantias" (Título II), e a outros preceitos de natureza análoga (artigo 17º),
pressupõe, mas, sobretudo, impõe a capacidade de "autonomia constitucional" de tais
preceitos e retira, por isso, aos órgãos constituídos o poder de determinar,
"constituir", o conteúdo desses preceitos, dado que o legislador constituinte entende
que tal conteúdo já releva da Constituição.

NOTA:
As normas constitucionais dividem-se em normas-princípio e normas-preceito (ou
regras, para o Prof. Canotilho); estas últimas tem um carácter completo (por isso, se
dizem preceptivas) e não necessitam de qualquer concretização por parte do
legislador. As normas-preceito dividem-se, ainda, em normas exequíveis por si
mesmas e normas não exequíveis por si mesmo; estas últimas, embora imbuídas de

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determinidade constitucional (isto é, o legislador ordinário não interfere no seu


âmbito dada a completude do preceito), carecem, contudo, de medidas legislativas
para que os respectivos titulares possam exercitar o seu direito (exemplo: o
exercício do direito a votar carece da criação prévia de uma lei que regule o
recenseamento eleitoral). Justamente nos casos em que tais medidas legislativas não
sejam implementas se pode (para Manuel Vaz) falar em inconstitucionalidade por
omissão.

A aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais que dela sejam portadores fica, no
entanto, enfraquecida sempre que o poder constituído não tome essas medidas. Exemplo
vivo, entre nós, de tal circunstância é o que decorre do DLG emergente do artigo 29º,
nr.6 da CRP: direito à ser indemnizado por danos daqueles que sejam injustamente
condenados. O tribunal Constitucional decidiu que, embora reconhecendo a
aplicabilidade directa do preceito em apreço, na ausência de lei regulamentadora de tais
indemnizações, a solução seria declarar a inconstitucionalidade por omissão. Mas é
sabido que tal faculdade, nos termos constitucionais, não está na disponibilidade dos
cidadão que sejam objecto daquela "injustiça". Aqui reside o enfraquecimento deste
DLG. Justamente para evitar estas situações de inaplicabilidade de preceitos
constitucionais elevados ao nível de DLG, certos ordenamentos jurídicos, consagraram
já certos mecanismos de salvaguarda dos DLG. É o caso das conhecidas figuras do
recurso de amparo (em algumas Constituições sul americanas) e da queixa
constitucional (constituição alemã). A (recente) Constituição brasileira de 1988
consagrou, por sua vez, o chamado mandado de injunção, nos termos do qual é
atribuído aos órgãos constituídos, o poder de criar uma norma que viabilize a
exequibilidade de um DLG que não se consiga efectivar por si mesmo. Entre nós, ainda
não foi possível atingir tais patamares, ainda que na recente Revisão de 1997 se
tenham elaborado alguns projectos que visavam a criação de uma espécie de recurso de
amparo. Contudo, não se chegou a um entendimento quanto á formulação de um
possível enunciado, com base no argumento de que o tribunal Constitucional está já
bastante sobrecarregado com os casos emergentes da fiscalização concreta. Todavia,
deu-se um pequeno passo nesse sentido: artigo 20º, nr.5, que preconiza a celeridade
dos procedimentos judiciais em matéria de defesa dos "direitos, liberdades e garantias"
dos cidadãos.

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Não é necessário, pois, existir legislação sobre os "direitos, liberdades e garantias" para
que tais direitos sejam exercitados ou se afirmem como direitos com base directa e
imediata no preceito constitucional e, com base nele, sejam justificáveis. Na falta de
lei, com efeito, o princípio da aplicabilidade directa vale como indicador de
exequibilidade imediata das normas constitucionais, presumindo-se a sua "perfeição",
isto é, a sua auto-suficiência baseada no carácter líquido e certo do seu conteúdo. A
norma constitucional constitui-se em medida e garantia do direito do cidadão, impondo
aos juizes e aios demais operadores jurídicos o dever de aplicarem os preceitos
constitucionais e de os interpretarem nos termos gerais da aplicação de normas
jurídicas. O princípio significa, aqui, fundamentalmente, que os poderes públicos não
podem invocar a falta de regulamentação legal para proibir ou recusar o exercício
desses direitos pelos cidadãos. Nem há aqui problemas de grande especificidade, para
além daqueles que decorrem da interpretação de normas mais ou menos densas: por um
lado, os preceitos constitucionais são de facto imediatamente exequíveis, isto é, os
direitos podem ser exercitados sem necessidade de uma intervenção legislativa prévia,
pelo que o problema se coloca ao nível da interpretação-concretrização da norma
constitucional; por outro lado, a concretização dos preceitos nesta matéria, apesar das
formulações vagas e abertas, cabe, em última instância, ao juiz, como em qualquer
outra norma, já que o juiz, enquanto aplicador directo ou enquanto instância de
controlo, é a entidade adequada para determinar o sentido dos preceitos.
Já alguns problemas surgem quando os preceitos, embora "direitos, liberdades e
garantias", não são exequíveis por si mesmos, pois dependem da intervenção de órgãos
estaduais, nomeadamente do legislador, para organizar o processo e os meios de acção
pública. Tendo em conta, todavia, que os preceitos são directamente aplicáveis, o
conteúdo do direito é no essencial determinável, ao nível constitucional, por via da
interpretação, pelo que a prestação legislativa é unicamente necessária para tornar
exequível tal conteúdo. A mediação legislativa é, pois, vinculada a um conteúdo
constitucional e existirá, sem especiais resistências, dado o carácter primacial das
matérias, o qual impõe uma necessidade fáctico-política de regulamentação. Mas, a não
existir legislação, a aplicabilidade directa de tais preceitos constitucionais implica que o
juiz pode conhecer (incidentalmente) a existência constitucional do direito individual
e o Tribunal Constitucional ser chamado a apreciar e verificar "o não cumprimento
da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar
exequíveis as normas constitucionais". São porventura débeis as garantias

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jurisdicionais em matéria de afirmação constitucional tão categórica, mas,


independentemente da deficiência dosa mecanismos próprios (sobretudo
jurisdicioonais) de garantia, a aplicabilidade constitucional directa do conteúdo dos
"direitos, liberdades e garantias" implica o dever de conhecimento por tidas as
entidades jurídicas.
Quando é um órgão administrativo que se encontra perante a obrigação de aplicação da
lei que, no entanto, considera inconstitucional por violação de um direito fundamental
directamente aplicável, dividem-se os autores quanto á legitimidade e à extensão de
poder a Administração recusar a aplicação da lei. Para GOMES CANOTILHO e
JORGE MIRANDA, a Administração, face à sua sujeição ao princípio da legalidade,
não tem competência para questionar a constitucionalidade das normas. Modernamente,
outros autores, como RUI MEDEIROS, já defendem que os agentes administrativos
devem poder questionar aquela constitucionalidade. OTTO BACHOFF, por exemplo,
defende o princípio segundo o qual o agente administrativo confrontado com a
hipotética inconstitucionalidade de uma norma eventualmente violadora de DLG deverá
remeter o problema para o seu superior hierárquico.
Também os próprios indivíduos podem recorrer contra os poderes públicos. A questão
coloca-se, todavia, em dois planos. Na relação indivíduo-Administração, a
aplicabilidade directa dos "direitos, liberdades e garantias" é reforçada e expressa-se
pelo "direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e
garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à
autoridade pública" (artigo 21º da CRP). num plano de relação indivíduo-Legislação,
se é garantido ao indivíduo um acesso directo à Constituição, por via incidental, ou seja
como defesa (por reacção e nunca por acção) contra a aplicação judicial de normas que
considere inconstitucionais (artigo 204º da CRP), não está consagrado entre nós, como
vimos já, o recurso contencioso directo e autónomo de inconstitucionalidade, ou seja, a
possibilidade de o particular solicitar, por via principal, a inconstitucionalidade da
norma.
Por último, a eficácia directa (externa) dos preceitos constitucionais respeitantes aos
"direitos, liberdades e garantias" impõem-se à relações entre privados. Convém notar
que a origem dos direitos fundamentais reconduz-se à defesa dos indivíduos contra o
Estado (relação vertical); questiona-se, agora, se tais direitos possuem eficácia directa
e imediata nas relações entre indivíduos, relações estas que se situam num plano
horizontal. A questão é naturalmente complexa, na medida em que conflituam entidades

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(privados) que se relacionam numa lógica de igualdade ("entre iguais"). A solução há-
de buscar-se na conciliação entre, por um lado, o princípio da aplicabilidade directa,
e, por outro lado, pelo princípio da autonomia privada e liberdade contratual.

2.1.2. A função da lei nos "direitos, liberdades e garantias" -

Verificada que está a desinserção da lei de uma das funções que na doutrina da "reserva
da lei" lhe estava cometida - a de garantir os direitos de autonomia individual perante o
poder (função esta, hoje confiada à reserva de constituição) -, não se pense, todavia, que
a lei se converteu num facto espúrio na matéria dos "direitos, liberdades e garantias".
Se a lei não é um requisito necessário para a determinação do direito, sendo até
dispensável qualquer mediação do legislador naquelas normas constitucionais
"exequíveis por si mesmas", ela não é excepcional, pois a lei pode revelar-se necessária
para conformar os preceitos constitucionais, e é a forma, quando autorizada
constitucionalmente, de restringir o conteúdo constitucional dos direitos.
Aquela necessidade de conformação legislativa expressa-se na concretização dos
preceitos constitucionais ou na sua regulamentação em ordem à "boa execução" dos
preceitos. Com este sentido, a conformação legislativa exprime uma conformação
extrínseca, ou seja, meramente concretiza ou regulamenta os preceitos constitucionais.
Diferentemente, a lei restritiva não trata de conformar preceitos constitucionais, mas de
os restringir.
A intervenção concretizadora é uma tarefa de interpretação dos limites imanentes do
direito fundamental impressos (expressa ou implicitamente) no preceito constitucional.
Nada acrescenta ou tira ao conteúdo constitucional, mas explicita-o e clarifica o seu
conteúdo. Esta intervenção do legislador, não sendo restritiva, não precisa de ser
expressamente permitida pela Constituição, colocando-se o legislador na função de
intérprete da Constituição. Só que o legislador não pode fazer uma interpretação
autêntica, pois ele não tem autoridade nem domínio sobre a norma, pois esta constitui
um nomos de autoridade constitucional (esta intervenção do legislador não ´+e
materialmente distinta da actuação do juiz que procura, por interpretação, os contornos
da norma constitucional quando tem de a aplicar a um caso concreto).
Para além da concretização dos limites imanentes, a intervenção legislativa pode ter um
sentido de organizar e regular a efectividade do exercício dos "direitos, liberdades e
garantias". Nestes casos, estamos perante leis regulamentadoras que organizam e

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disciplinam a execução dos preceitos constitucionais, sendo que tal regulamentação é


necessária para dar exequibilidade ao preceito constitucional. O seu limite continua,
todavia, a ser o conteúdo do preceito constitucional, pelo que a sua intenção não é
restringir, mas executar o direito constitucionalmente definido, assegurando
praticamente a sua efectividade.
A intervenção legislativa concretizadora ou regulamentadora dos "direitos, liberdades
e garantias" não necessita de ser expressamente autorizada pela Constituição, pois o seu
limite é o conteúdo normal e geral da norma constitucional. Intenção e limite
diferentes tem a actuação legislativa que atinja ou afecte o conteúdo normal
constitucionalmente definido ao direito. A intenção legislativa é agora a de restringir
esse conteúdo. As exigências e cautelas constitucionais são expressas e de vária índole,
e o limite é o conteúdo essencial (ou absoluto) do preceito constitucional.
NOTA:
Em geral, as leis podem revestir uma carácter de conformação ou um carácter de
restrição. No âmbito do seu carácter conformador é ainda possível considerar duas
espécies: o carácter conformador concretizador e o carácter conformador
regulamentador.

2.2. A "reserva absoluta da Constituição" nos "direitos, liberdades e garantias -

2.2.1. Limites imanentes, colisões de direitos e restrição legal dos "direistos,


liberdades e garantias" -
Para um cabal entendimento do poder e função da lei, quando esta se move na intenção
de restringir um DLG, é imprescindível abordar as figuras doutrinais dos limites
imanentes e da colisão dos direitos. Tratam-se de hipóteses autónomas entre si e
traduzem a lógica constitucional que, a partir da aplicabilidade directa dos preceitos
referentes aos "direitos, liberdades e garantias", consagra uma dimensão
constitucional máxima do direito - reserva relativa da Constituição - até uma
dimensão constitucional mínima (legalmente indisponível) - reserva absoluta da
Constituição.
Na verdade, todo o regime da protecção jurídico-constitucional dos DLG assenta no
carácter preceptivo das normas constitucionais que os consagram. Tal conteúdo é, no
entanto, já uma opção normativo.-jurídica por um âmbito de afirmação do direito que o

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constituinte entende poder garantir a todos, pois ele vai já valorado na relação que, em
geral, mantém com outros valores (direitos e interesses) constitucionais. Não é, assim, o
âmbito "natural" do direito que encontra consagração, mas um âmbito do direito já
integrado e conciliado naquele sistema de valores jurídico-políticos expressos na
Constituição. A consagração constitucional introduz, deste modo, limites ou restrições
ao conteúdo "natural" do direito. Verdadeiramente, aquilo que se designa de limites
imanentes são restrições constitucionais (expressas ou implícitas) ao conteúdo
"natural" do direito, decorrentes da própria configuração constitucional do direito. O
próprio legislador constituinte, ao consagrar determinado DLG, fê-lo já numa lógica de
acomodação e de conciliação com outros valores constitucionais igualmente
protegidos. Vejamos o esclarecedor exemplo que emerge do artigo 45º, nr.1 da CRP:
os cidadãos tem o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares
abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização. O próprio DLG aqui
previsto (direito de reunião e de manifestação) surge já imbuído de uma restrição ao
seu estado mais absoluto (que seria a liberdade absoluta de reunião e de manifestação),
na medida em que o poder constituinte se encarregou já de delimitar aquela liberdade
extrema, restringindo-a a reuniões ou manifestações pacíficas e sem armas. É a
Constituição que fornece a medida e o conteúdo do "direito, liberdade e garantia".
Não se adopta, neste Curso, a técnica que, sob a designação genérica de restrições, trata
num mesmo plano, as hipóteses de limites imanentes, de colisões de direitos e de
restrições legais dos direitos (posição aparentemente defendida por JORGE
MIRANDA). Na verdade, segundo a perspectiva de MANUEL VAZ, não pode ter o
mesmo tratamento lógico-constitucional aquela hipótese em que um direito, que se quer
ver protegido, caia fora do âmbito preceptivo do direito e aquela outra hipótese em que
o direito, de que o cidadão se arrogue, tenha cobertura constitucional preceptiva, mas
esteja em colisão com outro direito ou esteja legalmente excepcionado.
Naquela primeira hipótese, o "direito" não existe enquanto dimensão constitucional
protegida, pelo que não chega a levantar problemas de restrição legal ou de colisão de
direitos. Pense-se, por exemplo, na invocação do direito de reunião previsto no artigo
45º como fundamento para invadir um edifício privado; colocará tal hipótese ao
proprietário, ao agente administrativo, ao juiz, problemas de conciliação entre o direito
de propriedade (artigo 62º) e o direito de reunião ("colisão de direitos"), ou de procura
na lei de uma restrição do direito de reunião, para negar tal dimensão do direito de
reunião ? É indubitável que não. Só que a clareza da resposta depende de uma

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interpretação do artigo 45º da CRP que coloque fora da protecção constitucional do


direito de reunião aquela pretendida dimensão do direito, o que, assim concluído,
dispensa qualquer conciliação entre direitos constitucionalmente protegidos ou a
necessidade de intervenção restritiva da lei, na medida em que é o próprio preceito
constitucional que não protege essas formas de exercício do direito de reunião.
Naquela segunda hipótese, em que a dimensão do direito é constitucionalmente
protegida, está o aplicador do direito obrigado a dar-lhe protecção jurídica. Aqui pode
surgir a possibilidade de tal direito ter de ser conciliado com outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos. É a consideração desses outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos que pode levar à restrição concreta (colisão
de direitos) ou á restrição genérica (restrição legal). O que aparece agora como
específico, relativamente àquela hipótese de limites imanentes, é que os conteúdos ou
expressões dos direitos se encontram constitucionalmente protegidos, ou seja, ambos
caem dentro das normas constitucionais, tendo, portanto, igual estatuto constitucional.
Há que distinguir, dentro desta hipótese, o suscitar o problema na ausência de
disposição legislativa e o suscitá-lo perante lei que "regulamente" o conflito de direitos.
No primeiro caso, estamos perante uma colisão de direitos em sentido próprio e
rigoroso; no segundo, estamos perante uma restrição legal.
Na verdade, a consideração autónoma da colisão de direitos em matéria constitucional
só faz sentido quando num, caso concreto, o aplicador do direito pretende saber ou
decidir da conciliação entre bens jurídicos se ambos se apresentam efectivamente
protegidos constitucionalmente e não podem expressar-se simultaneamente em toda a
extensão do seu preceituado constitucional. A hipótese é autónoma relativamente ao
limite imanente, pois a colisão de direitos é um conflito de direitos real e não
meramente aparente; é autónoma relativamente á restrição legal, pois que cabe decidir,
na ausência de lei, pela aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais.
Vejamos o seguinte e sugestivo exemplo: perante o tribunal, é peticionado por A, contra
B, a indemnização de 300 000$00, quantia correspondente à pintura da parede
fronteiriça do prédio de que A é proprietário, pintura tornada necessária pelo facto de B
aí ter profusamente pintado, a tinta perfurante, o símbolo de determinado partido
político. A fundamenta o seu pedido no artigo 62º da CRP (direito de propriedade
privada); B contesta, invocando o seu direito de livre expressão, direito este consagrado
pelo artigo 37º, nr.1 da CRP. O decidir-se o juiz, sem mais, pela procedência da
acção, só é justificável se ele entender que o direito à liberdade de expressão

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consagrado na Constituição não integra aquele tipo de comportamento de B, ou seja,


terá entendido tal manifestação do direito como limite imanente implícito ao direito de
expressão. O decidir-se, sem mais, pela improcedência da acção, só entendível se o
juiz justificar como limite imanente implícito ao direito de propriedade de A o dever
de suportar na sua propriedade aquela manifestação do direito fundamental de
expressão de B. Em qualquer dos casos, teria o juiz decidido que o conflito de direitos
era meramente aparente, pois a um deles (ou à dimensão invocada de cada um deles),
respectivamente, não reconhecia expressão constitucional. Já solução teria de ser
diferente se, no entendimento do juiz, os dois direitos, com as respectivas expressões
concretas invocadas, encontram protecção constitucional, ou seja, se o juiz entender
que a Constituição não exclui nenhuma das pretensões aduzidas, pelo que se está
perante uma colisão de direitos. Ao juiz cabe, em consequência de tal qualificação,
fazer uma concertação dos direitos. Os princípios aqui aplicáveis são princípios de
harmonização (efectivação harmonizada) dos preceitos conflituantes na situação
concreta e de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito. Ou seja, a
solução não pode passar pelo sacrifício unilateral de um deles em benefício total do
outro, antes exige uma ponderação em que ambos sejam preservados na maior
medida possível e sejam sacrificados na menor medida possível. A realização máxima
de um direito em colisão com outro - decorrente do sacrifício mínimo desse direito que
permita, no entanto, a realização máxima do direito em colisão - dependerá, porém, da
intensidade ou modo como os direitos são afectados no caso concreto, atentos o seu
conteúdo, a sua função específica e o caso da vida concreta onde os direitos
conflituam (no exemplo anterior, se o juiz constatasse que, próximo da parede
fronteiriça do prédio de A existia um local apropriado à afixação de cartazes ou a
pinturas de propaganda política, a sua decisão devia propender para uma maior
sacrifício do direito exercitado por B).
Em qualquer caso, porém, o limite absoluto à compressão de um direito é o conteúdo
essencial do respectivo preceito constitucional. É que não é possível, sob pena de falta
de unidade constitucional, que possam colidir os conteúdos constitucionais essenciais
de dois direitos. O juiz terá sempre de salvaguardar o núcleo ou conteúdo essencial de
qualquer um dos DLG em conflito. A sua actuação, como vimos já, deve subordinar-se
a orientações de concordância prática (princípios de harmonização e
proporcionalidade), dada a igualdade normativa existente entre os preceitos em
conflito. Se não o fizer, então é porque o conflito é ilusório ou aparente, eventualmente

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será um caso de limites imanentes. É que no caso da colisão de direitos, e ao contrário


dos limites imanentes, não há uma intervenção do legislador constituinte no sentido de
restringir o exercício do preceito constitucional (como sucede, por exemplo, no já
referido caso do artigo 45º, nr.1 da CRP, em que o legislador, por antecipação,
pretendeu resolver hipotéticos conflitos).
A hipótese de colisão de direitos é, igualmente, autónoma relativamente à restrição
legal, porque, precisamente, não existe lei restritiva, encontrando-se o aplicador do
direito em diálogo directo com os preceitos constitucionais. A lei restritiva de um
"direito, liberdade e garantia" mais não representa, com efeito, que a solução genérica
e precedente, por via legislativa, de conflitos de direitos ou de um direito e interesses
constitucionalmente protegidos. O legislador pode, na verdade, antecipar-se à
probabilidade dos conflitos e conciliar genericamente os direitos, ou seja, é-lhe
permitido restringir um DLG, para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos. Contudo, onde essa possibilidade de conflitos entre
direitos ou entre direitos e interesses constitucionais não foi constitucionalmente
valorada não há justificação para a restrição legal. O constituinte parece ter tido
mesmo a pretensão de catalogar os "casos" em que tais conflitos poderiam necessitar
de uma intervenção legislativa. Com efeito, o dizer-se no artigo 18º, nr.2 da CRP, que
"a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente
previstos na Constituição ..." parece unicamente "autorizar" a restrição legal naqueles
casos em que o próprio constituinte sentiu (e previu) a necessidade de uma mediação
legislativa para, genericamente, conciliar os direitos constitucionalmente protegidos,
tendo-a, por isso, expressamente admitido. Ganha, deste modo, sentido o princípio da
tipicidade das restrições legais dos "direitos, liberdades e garantias", com a correlativa
proibição de se "acrescentar" outras restrições, para além das "expressamente previstas
na Constituição". Esta é, de resto, uma consequência do carácter de "direito
constitucionalmente reservado" dos "direitos, liberdades e garantias", o que significa
que o legislador necessita sempre de uma "habilitação constitucional" para intervir
nesse âmbito. Neste sentido, as normas constitucionais de "direitos, liberdades e
garantias" são, perante o legislador, "normas de competência negativa".
Esta interpretação do artigo 18º, nr.2 da CRP, que tem por si o teor literal do preceito,
não pode, no entanto, significar que, mesmo na lógica constitucional, se não admita a
possibilidade de conflitos de direitos, a não ser nos "casos expressamente previstos". O
que é lícito retirar do preceito é que só os "nos casos expressamente previstos"

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entendeu o constituinte "autorizar" a emanação de lei restritiva, ou seja, uma


mediação legislativa para, em geral, resolver o conflito entre direitos, o que é, de toda
a maneira diferente de afirmar que só nesses casos podem surgir conflitos. Na falta de
mediação legislativa, porque não autorizada (ou se autorizada, não exercida), os
conflitos entre direitos ou entre estes e valores constitucionais, quando surjam,
resolvem-se caso a caso por interpretação directa dos preceitos constitucionais. Este
modo de entender o carácter excepcional da restrição legal acentua a ideia de que as
colisões de direitos são pensáveis como situações de vida concreta, porventura
irrepetíveis, as quais o aplicador do direito deve resolver directamente por critérios
constitucionais, sendo que a mediação legislativa só se justificaria em conflitos
previsíveis e "padronizáveis" (que o legislador constituinte estava em condições de
prever), em que o legislador se anteciparia à repetibilidade das situações, dando-lhes
uma solução uniforme. As leis restritivas são, assim, autênticas autorizações
constitucionais, concedidas pelo constituinte ao legislador ordinário, para, em certos
momentos, serem salvaguardados determinados direitos ou valores constitucionais,
relativamente aos quais o legislador constituinte admitiu a ocorrência de eventuais
conflitos. Trata-se, no fundo, de uma prevenção do legislador constituinte que se
reconduz à adopção de uma solução genérica para os casos em que tais conflitos
venham a ter lugar. Note-se que, havendo concreta colisão de direitos, já não é a lei
restritiva que resolve esse conflito, antes a sua solução passa pela interpretação dos
preceitos constitucionais em confronto.
A interpretação do artigo 18º, nr.2 da CRP não é, todavia, pacífica na generalidade da
doutrina. Certos autores, como, por exemplo, VIEIRA DE ANDRADE e MOTA
PINTO, propõe um interpretação abrangente e lata do preceito, no sentido de
viabilizar a sua aplicação restritiva a outras situações (dada escassez de casos previstos
na CRP) para além dos "casos expressamente previstos na Constituição". Tal
interpretação seria, segundo aquele autor, fundada no artigo 29º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, que permite ao legislador o estabelecimento de
limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou o respeito dos
valores aí enunciados. Para MANUEL VAZ, tal tese não é sustentável por, justamente,
o preceito em causa (artigo 18º, nr.2 da CRP), de forma inequívoca, limitar a leis
restritivas de "direitos, liberdades e garantias" aos "casos expressamente previstos na
Constituição". A própria CRP não dá azo a tal interpretação, na medida em que não

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existe, sequer, qualquer lacuna no texto constitucional, tendo, inclusive, o legislador


constituinte previsto os casos em que tais conflitos podem ocorrer.

2.2.2. O "conteúdo essencial" dos direitos, liberdades e garantias como reserva


absoluta da Constituição -
O facto de, quer na hipótese de colisão de direitos quer na hipótese de leis restritivas, se
tratar de conciliar valores constitucionais decorrentes de normas (preceitos ou
princípios) constitucionais de conteúdo constitucionalmente determinado (ou
determinável) implicaria, já por si, a adopção dos critérios (princípios) da
indispensabilidade da compressão do direito, da proporcionalidade entre vantagens e
sacrifícios recíprocos e da intocabilidade do conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais. Estes critérios impõem-se, com efeito, como regras de interpretação de
normas de igual valor e vigentes em simultâneo, isso é nítido na hipótese de colisão de
direitos em que a concreta conciliação dos preceitos constitucionais, se permite a
"restrição" necessária e proporcional do exercício dos direitos, não permite a
supressão de nenhum deles. São exigências cumulativas baseadas em princípios de
interpretação que ditam tal regime procedimental. O igual valor e natureza das normas
em conflito no caso concreto não permite a hierarquização, pelo que o critério de
solução há-de reger-se pela concordância prática dos valores em presença.
As exigência materiais que a Constituição expressamente impõe às leis restritivas de
"direitos, liberdades e garantias" são, sintomaticamente, as mesmas que, doutrinalmente,
se fazem ao aplicador do direito que é chamado a resolver uma colisão de direitos. As
duas situações tem de comum o serem operações sobre preceitos constitucionais de
conteúdo determinado ou determinável ao nível constitucional, o que, desde logo,
implica não ser qualquer valor motivo de compressão do direito constitucionalmente
protegido, mas um "outro direito ou interesse constitucionalmente protegido", assim
como implica que tal compressão só é justificável na medida do necessário para
salvaguardar esses outros direitos ou interesses constitucionais. O regime em causa
exprime, com efeito, a ideia de que o poder de restrição legal é um poder sob
autorização constitucional do objecto, do sentido e da extensão da restrição
O objecto da restrição tem de ser constitucionalmente identificado; obriga-se, assim, o
legislador a procurar sempre na Constituição o fundamento concreto para o exercício
da sua competência de restrição de "direitos, liberdades e garantias"; se os preceitos

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que consagram os DLG são, perante o legislador, "normas de competência negativa", há


que fundar a competência legislativa em habilitação expressa da mesma Constituição.
O sentido da restrição está constitucionalmente referido à medida necessária para
"salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos"; há aqui
uma dupla vinculação constitucional imposta á liberdade de conformação do legislador:
por um lado, a restrição só é constitucionalmente autorizada quando necessária para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionais; por outro lado, a medida da
restrição deve limitar-se ao necessário para conciliar a expressão normal dos bens
constitucionais em presença.
A extensão da restrição encontra como limite o núcleo essencial dos direitos,
liberdades e garantias, que não pode, em caso algum, ser violado. A Constituição ao
determinar que as "leis restritivas de direitos, liberdades e garantias mão podem
diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais",
declara algo que já decorreria do princípio da "unidade da ordem constitucional",
vigente em "normalidade constitucional", e que a lei restritiva de direitos,
contrariamente ao que sucede no regime da suspensão do exercício de direitos,
sempre teria de respeitar. Assim, a restrição legal de um "direito, liberdade e
garantia", atingindo a título permanente o direito, atinge-o, por definição, apenas
parcialmente, sendo que do preceito constitucional deve continuar a decorrer um
espaço "valorativamente útil" de atribuição subjectiva que não pode ser ocupado
pela lei. É esse conteúdo essencial - que radica na Constituição e não na lei - que
constitui a reserva absoluta da Constituição em matéria se "direitos, liberdades e
garantias".

2.2.3. Ligação da "reserva da Constituição" à "reserva do Direito" -

Do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais respeitantes a "direitos, liberdades


e garantias" versus leis restritivas, deve distinguir-se o conteúdo mínimo da reserva do
direito, perante situações de excepção ou de necessidade, expressamente tipificadas
como causas de suspensão do exercício dos DLG. Perante causas tipificadas (artigo 19º,
nr.2 CRP), com respeito pelos princípios da necessidade e adequação (artigo 19º,
nr.4 da CRP), pode o exercício de "direitos, liberdades e garantias" ser suspenso
através da declaração do estado de emergência ou do estado de sítio na forma prevista o
artigo 19º, nr.1 da CRP.

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Não se trata, agora, de conciliar ou concertar direitos ou interesses em normalidade


constitucional, mas de preservar "o Estado ou o regime político vigente" contra
perigos ou agressões excepcionais tipificados. Trata-se, em bom rigor, de actos de
preservação da ordem constitucional e não de efectivação da ordem constitucional.
Daí, também, que não estejamos perante uma função legislativa, mas diante de uma
função política tout court.
Não sendo um acto dispositivo em normalidade constitucional, mas um acto de defesa
do próprio Estado constitucional, poderia pensar-se que a declaração do estado de sítio,
se necessária, não deveria conhecer limites, sob pena de um eventual não retorno à
normalidade constitucional ou mesmo à identidade estadual. E, na verdade, a imposição
de limites absolutos à suspensão dos "direitos, liberdades e garantias" tal como
constam do artigo 19º, nr.6 da CRP, não encontra justificação ao nível da constituição
de um Estado, mas ao nível da limitação à constituição de um Estado ou sua
manutenção. É que, atendendo à gravidade dos motivos quer podem justificar a
suspensão do exercício dos DLG, a saber, "casos de agressão efectiva ou iminente por
forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional
democrática ou de calamidade pública" (artigo 19º, nr.2 da CRP), o reconhecer-se,
mesmo nestes casos, que não se possa afectar os direitos à vida, à integridade física, à
identidade pessoal, à capacidade civil, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade
de consciência e de religião (artigo 19º, nr.6 da CRP), só se explica por uma sentida
heterolimitação que prevalece sobre todas as razões de Estado e ainda que esteja em
causa o próprio Estado, e com ele a Constituição. Em último termo, é o
reconhecimento de um núcleo de direitos do homem indisponível perante a própria
decisão constituinte. Assim, os núcleos essenciais deste núcleo de direitos não são
direitos constitucionais, mas direitos humanos ou naturais, ou seja, não se constituem
por reserva da Constituição perante a lei, mas por reserva do Direito (assumida
constitucionalmente) perante qualquer poder.
Nestes termos, pode, na verdade, afirmar-se que, se o conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais respeitantes aos "direitos, liberdades e garantias" constitui a reserva
absoluta da Constituição, inultrapassável pelo poder exercido em normalidade
constitucional, os conteúdos essenciais daquele núcleo de direitos referido no artigo
19º, nr.6 da CRP, estão protegidos contra qualquer razão do poder.

2.2.4. A integração das "liberdades" no sistema de valores jurídico-políticos -

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A integração do indivíduo na comunidade política exige a determinação e adopção de


valores e interesses comuns. A constitucionalização de tais valores reflecte o juízo de
primariedade que os membros da comunidade política atribuem a esses valores. A
escolha liberal-burguesa recaiu, fundamentalmente, na defesa da individualidade, ou
seja, na defesa dos indivíduos (isolados e iguais) - perante o poder. A organização e
limitação do poder em face da autonomia privada era o bem primário a ser conseguido
pela Constituição.
A escolha constitucional assumida na constituição portuguesa de 1976 não reduziu o
Estado a mero garante da autonomia individual, pelo que recusa aquele ideal liberal de
Constituição, pois assume o pluralismo como regime material ao nível da própria
Constituição. Independentemente das diferenças de regime jurídico a que os diferentes
princípios emergentes da CRP estão sujeitos, a opção constitucional reflecte, com
especial vigor, aquela modificação de conteúdo, relativamente ás constituições
liberais, que faz incluir no texto constitucional, ao lado das declarações de direitos (de
liberdades) e das normas organizatórias, os direitos à acção estadual e os princípios
directores da vida social. Este conjunto de normas constitucionais afasta decisivamente
aquele entendimento da Constituição como mero texto legal especial, contendo um
mecanismo racional de organização e limitação do poder, para o tornar, mais do que
isso, num sistema de valores político-jurídicos aceite na comunidade. A questão, está,
pois, em saber como articular tais valores e equilibrar as tensões neles supostas. O
regime jurídico-constitucional prescrito aos "direitos, liberdades e garantias" permite
distinguir as seguintes dimensões de conteúdo de um direito-liberdade:
1) Dimensão do conteúdo natural do direito - corresponde ao máximo de afirmação
pensável do direito em termos absolutos e abstractos (dimensão da liberdade
abstracta ou potencial). Será o conjunto de faculdades potenciais associadas ao
direito, antes de ser configurado por normas jurídicas. Trata-se, naturalmente, de
uma categoria meta-jurídica que não encontra protecção constitucional, mas de
referência imprescindível para conhecer os graus de limitação jurídica imposta ao
direito (é o estado de natureza, à maneira de HOBBES).
2) Dimensão do conteúdo constitucional do direito - também conhecida por
liberdade constitucionalmente protegida. A dimensão "natural" de um direito sofre,
desde logo, pela positivação constitucional, limitações (restrições constitucionais)
decorrentes da concordância com outros direitos ou valores; é já uma liberdade
normatizada na Constituição que esta assegura e protege numa medida

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conciliada com a igualdade. A medida constitucional de liberdade assegurada pela


CRP será a máxima possível, mas sempre limitada pelo facto de se permitir que
todos a possam exercer igualmente (por isso, se diz que é uma liberdade conciliada
pela igualdade). Ao contrário da anterior liberdade absoluta e abstracta, esta
"liberdade constitucional" está juridificada. Umas vezes, é a enunciação normativa
do direito que expressamente exclui do seu âmbito de protecção certas
manifestações do mesmo (caso dos limites imanentes expressos - artigos 45º e 46º
da CRP); outras vezes, é tarefa de interpretação constitucional conhecer os
contornos constitucionais do direito (limites imanentes implícitos).
3) Dimensão do conteúdo legal do direito (da liberdade legal) ou do conteúdo
concreto (da liberdade concreta) - corresponde, naquela, primeira acepção, ao
conteúdo do direito depois de consideradas todas as restrições introduzidas pelo
legislador "para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente
protegidos"; ou, naquela segunda acepção, ao conteúdo do direito a preservar em
face de uma colisão de direitos. Esta noção de liberdade legal é o remanescente de
liberdade que "sobra" depois de ter actuado uma lei restritiva nos termos do artigo
18º, nr.3 da CRP; trata-se, afinal, daquele mínimo essencial que, pese embora a
restrição operada, vai ainda necessariamente sobrevir por aplicação do direito
constitucional (exemplo: por mais restrições que se imponham à iniciativa privada
nunca se poderá impedir o empresário á iniciativa privada); é ainda uma conciliação
da liberdade com a igualdade, não já no plano formal visto na segunda dimensão,
mas tendo em vista a prossecução de outros valores constitucionalmente protegidos
(exemplo: os impostos e o sistema fiscal promovem, em certo sentido, a justiça
social). O conceito de conteúdo concreto tem lugar nos casos de colisões de
direitos.
4) Dimensão do conteúdo essencial (da liberdade mínima) - corresponde a um
núcleo indisponível do direito afirmado em cada preceito constitucional. O conteúdo
essencial dos preceitos constitucionais que consagram "direitos, liberdades e
garantias" representa o mínimo valorativo da dignidade da pessoa humana que se
refrange em cada preceito constitucional atributivo de um direito-liberdade e que o
legislador constituinte, em situações de normalidade constitucional, tem por
indisponível perante qualquer poder. Trata-se, no fundo, de um limite à actuação
do legislador ou, mais conctretamente, à intervenção restritiva do legislador
ordinário. Em caso algum se pode abolir a liberdade essencial do indivíduo (espécie

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de primazia do indivíduo face á sociedade): por maior necessidade que haja para
impor uma lei restritiva tendente a assegurar a igualdade, nunca se poderá abolir a
liberdade pessoal do indivíduo (último reduto).
5) Dimensão da reserva do Direito - corresponde ao conteúdo essencial de um
círculo de direitos elementares do homem que o poder constituinte se impôs,
mesmo perante o perigo da dissolução do seu poder. Como vimos, esta dimensão do
"direito" não se justifica por razões de poder, mas por razões de não-ponder
perante o direito, pelo que verdadeiramente não é uma dimensão da reserva da
Constituição, mas de reserva do Direito. Dito de outro modo, esta quinta dimensão
diz respeito ao artigo 19º, nr.6 da CRP: mesmo nos estados de anormalidade
constitucional (estado de emergência e estado de sítio), certos "direitos, liberdades
e garantias" (os previstos no referido artigo 19º, nr.6 da CRP) permanecem
vigentes, dado que o conteúdo mínimo e essencial desses direitos elementares
possuem anterioridade e prevalência em face do Estado (princípio de primazia do
indivíduo em relação ao Estado).
2.3. A generalidade como requisito constitucional das leis restritivas de "direitos,
liberdades e garantias" -

Na lógica moderno-iluminista da lei, a generalidade é um qualificativo essencial da lei.


Nesta, como noutras aproximações filosóficas, a lei constrói-se num mundo ideal do
normativo, em que o "natural" ou o "racional" impõem à lei a generalidade como
critério de validade. A lei era, assim, pensada como objecto de uma determinação
absoluta ou essencial, posto que se procurava compreendê-la, no contexto geral, da
problemática ético-política, ou seja, como objectivação do bem e do justo numa
comunidade de homens. Tal objectivação do bem e do justo nas leis verdadeiras
pressupunha que estas se determinassem por critérios objectivos, que tinham na
generalidade o sinal de reconhecimento. Se a lei é a "inteligência sem paixões"
(Aristóteles) e a "soberania da lei equivale à soberania de Deus e da razão"
(Aristóteles), a lei só pode dispor de uma maneira geral, não podendo prever os casos
acidentais.
O pensamento moderno, firma-se, com efeito, na igualdade ontológica do homem, o
que, à partida, é o garante último contra o arbítrio. A transposição dessa igualdade
ontológica para as categorias e conceitos normativos foi obra do voluntarismo-
racionalista moderno-iluminista que, intrinsecamente, associou a igualdade e a

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liberdade à generalidade da lei. É que aquela vontade do homem, pela qual este se
manifestava livre e autónomo, impunha-se uma importante exigência de forma - a
exigência do modus racional. O conteúdo, a matéria normativa, impunha-o livremente a
vontade, mas havia de prescrevê-lo sob a forma racional que exigia o "geral" como
critério de correcção (de "justiça") da "volonté générale". A correcção imanente da lei
(da "volonté générale") criteriza-se, assim, em ROUSSEAU, como, depois, em KANT,
na estrutura geral da lei. Nesta representação, a lei geral é justa, e é justa porque é
geral (racional), ou seja, a justiça material realiza-se na estrutura formal da
generalidade. Quer isto dizer que o pensamento jurídico moderno-iluminista, pelo seu
voluntarismo racionalista, conduziu a um sentido da lei que, necessariamente, a teria de
identificar com o direito. È que o direito não existe em si, mas constitui-se numa
vontade que é a razão, sendo esta "vontade racional" - que não podia deixar de ser
"geral" - a lei.
Esta identificação da lei à estrutura formal da generalidade, se foi e é teoricamente
sustentada como único critério de assegurar a justiça e a igualdade, cedo veio a
conflituar com os pressupostos e exigências das estruturas constitucionais mais
concretas. É, assim, de notar, desde logo, que as dogmáticas constitucionais, quer da
tradição dualista quer da tramitação monista, não converteram a generalidade no
elemento essencial da lei. O conceito de lei material da construção dualista germânica
não se entendia, essencialmente, como norma geral e abstracta. Na verdade,
contrariamente à lição filosófica do racionalismo iluminista rousseauniano e ao
racionalismo kantiano, a generalidade não era o elemento decisivo da regra de direito
(Rechtssatz). Assim, na lógica dualista germânica, ainda que a generalidade apareça
como característica natural da lei, não é um elemento essencial, pois o conceito de lei
não exclui a possibilidade de uma lei estabelecer uma disposição aplicável a um único
facto ou destinada a regular uma relação jurídica individual.
Também a corrente do legalismo estatista, assente na lógica do "monismo parlamentar",
se veio a desinserir das categorias normatológicas. Assim, o expressa, CARRÉ DE
MALBERG, para quem a função material da lei é, primeiro, imprimir um valor
superior às prescrições que emana, fazendo-as depender da exclusiva vontade do
corpo legislativo, único que poderá modificá-las ou revogá-las; segundo, a função da lei
é estatuir, quer a título de regra geral quer a título de disposição particular, sobre
todos os objectos que, ao terem sido prescritos pela legislação vigente, não podem ser

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regulados pela via da decisão ou de medidas que constituam uma execução


administrativa da lei.
Deste modo, porém, a generalidade, sem deixar de levar imanente uma intenção de
justiça, acaba por tomar uma significação estritamente técnica e jurídico-científica. É
que a generalidade da lei apenas se dirige à estrutura da norma e, quando arvorada,
autonomamente, em critério de justiça igual, apenas de liga à aplicação da lei, exigindo
tão-só que esta seja aplicada, igualmente, a todos. A igualdade assim conseguida não
pode ser senão aquela que é implícita à generalidade, ou seja, a "igualdade perante a
lei", sendo o seu último sentido o de exigir que se cumpra rigorosamente a legalidade.
A igualdade e a justiça que a generalidade visa não esgota, todavia, a exigência do
princípio da igualdade. Se assim fosse, a exigência do "carácter geral e abstracto" das
leis restritivas dos "direitos, liberdades e garantias" (artigo 18º, nr.3 CRP) e, mais do
que isso, aquele preceito constitucional teria um carácter de redução, normativamente
insustentável (na medida em que quereria significar que só as leis restritivas de
"direitos, liberdades e garantias" necessitariam de ser "gerais e abstractas").
É hoje manifesto que o critério da generalidade não satisfaz as actuais exigências
axiológicas do princípio da igualdade, pois que, ao dirigir-se a uma justiça meramente
formal, pode, perante as igualdade-desigualdades sociais, dar cobertura a comprováveis
injustiças reais. Aqui se acentua, mais uma vez, que á concepção do homem como
sujeito abstracto (o ente racional), pensado segundo um modelo lógico-racional de
reduções mecânico-matemáticas, se sobrepõe uma compreensão do homem como
sujeito historicamente concreto, situado numa circunstância histórica e socialmente
real. Ao homem como sujeito abstracto sucede o homem como pessoa concreta.
A igualdade, como critério de justiça, tem preferência e precedência sobre a
generalidade. Se a lei se propõe afectar uma categoria de casos e destinatários, há-de
compreender situações de vida que ainda se não apresentaram, sendo só mentalmente
antecipados pela previsão da lei. Com isso cria-se uma distância relativamente aos
casos singulares que, no futuro, serão subsumíveis à lei. A estrutura geral da lei visa
introduzir essa componente esquemático-formal que abstractamente assegura um igual
tratamento relativamente a uma categoria de destinatários. Deste modo se realiza,
especificamente, o princípio formal da "igualdade de todos perante a lei". Mas, se
assim é, também a previsão legal coloca fora desse esquema geral outros géneros, ou
categorias, a quem a lei se não dirige. Ora, o princípio da igualdade-generalidade não
funda qualquer critério de justificação para as "valorações" que permitam proceder

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justamente a diferenciações. A forma genérica e abstracta da lei não dá esse tipo de


critério ou garantia, pois do que verdadeiramente trata não é da igualdade justa, mas
apenas da igualdade de aplicação da lei. À generalidade são indiferentes as possíveis
injustiças ou desigualdades materiais que a lei geral não diferencie ou a igualdade
material que a vontade racional ("geral") diferencie. Que possa haver igualdades
(formais) injustas e desigualdades (formais) justas é algo de estranho a um
pensamento que reduz o critério da justiça e da validade ao elemento formal da
generalidade.
Que o princípio da igualdade tem hoje uma exigência axiológica não contemplada
naquele sentido racionalista da lei, expressou-o a jurisprudência constitucional nos
seguintes termos: " O princípio da igualdade não se reduz a uma pura dimensão
formal - a uma mera igualdade perante a lei - traduzida na simples imparcialidade da
aplicação desta, qualquer que seja o seu conteúdo. Assume, bem mais do que isso, uma
dimensão material, que se impõe ao próprio legislador, e exige assim uma verdadeira
igualdade da lei". O primordial critério de lei justa ou injusta, assim como de qualquer
acto de poder tem de buscar-se num princípio de valor. Só assim, "como no começo, a
ideia de Estado de Direito volta a ser uma ideia de Estado de Direito material. Só que,
agora, libertada da sua fundamentação racionalista". Esse princípio de valor é a
igualdade material - princípio da igualdade no seu enunciado normativamente
material - enquanto exigência fundamental de proibição do arbítrio e da
discriminação, e, em último termo, de realização da intenção de justiça.
Limitada por critérios de justiça material, a lei, mesmo quando representa a resposta
concreta a um conflito de interesses, pretende ser a resposta adequada a essa e a
iguais situações, revelando-se deste modo, materialmente, universal. Esta é, no
entanto, uma exigência material de justiça, imposta a toda e qualquer actuação dos
poderes públicos, sendo ainda a dignidade da pessoa humana o fundamento último
desta exigência de "tratamento igual". Mas, por outro lado, a mesma exigência de
"tratamento igual" pode ser compatível com diferenciações materialmente justificadas
que permitam, ou mesmo imponham, no plano legislativo, a assunção dessas ou dessa
diferença. Trata-se das "leis-medida" - preceitos legislativo que, numa intenção
imediatamente interventiva em anómalos casos particulares ou numa situação, se
caracterizam pela sua índole de referência imediata e individualizada, ou se vinculam
a uma certa e concreta situação. A lógica que subjaz às leis-medida é a de converter
uma situação singular numa estatuição genérica e padrão, dadas as exigências

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políticas actuais (se se pretendesse resolver a situação mediante a adopção de um acto


administrativo, teríamos uma "solução a dois tempos", dado que este teria de ser sempre
fundado em lei anterior; é neste sentido que se afirma, frequentemente, ser a lei medida
um verdadeiro instrumento de acção política).
Se este é o sentido axiológico-jurídico do princípio da igualdade, que seguramente a
Constituição portuguesa aceita e prescreve numa dimensão de reserva do direito, num
outro sentido e numa outra dimensão se coloca a exigência da generalidade da lei. Ao
contrário do princípio da igualdade, a generalidade não é uma característica essencial
que se imponha à lei por exigências da actual dogmática filosófico-jurídica ou por
exigências da dogmática constitucional geral. A intenção axiológico-normativa não
impõe hoje a assimilação da igualdade à generalidade, posto que tal intenção normativa
se incrusta hoje uma intenção político-jurídica de índole concretamente material que,
como vimos, se não basta com a igualdade formal de uma legalidade, que, enquanto
tal, não garante nem é suficiente para realizar aquela intenção normativa material. Não
significa isto, porém, a perda da intencionalidade normativa que o Estado de Direito
impunha à soberania do Estado, mesmo quando essa soberania tinha a sua representação
no povo. Pelo contrário, continua operante aquela intenção normativa de Estado de
Direito versus Estado democrático, ou seja, o Direito limita o conceito político de lei.
Tal limitação não passa, contudo, só e essencialmente pela carácter geral da lei, mas
pelo princípio material que antecede essa figura técnico-jurídica auxiliar, ou seja,
pelo princípio axiológico-jurídico da igualdade.
Por agora cumpre acentuar que o elemento formal da generalidade da lei, ainda que
continue como tópico instrumental de salvaguarda do "tratamento igual" ou da "justiça
igual", pode, perante "casos anómalos ou atípicos" de singular diferenciação, ser
dispensada, pois aí perde sentido a exigência de uma estrutura geral de mediação,
quando o caso se revela singular e previsivelmente irrepetível, motivando uma
actuação política imediata com força e forma de lei. A "lei-medida" aparece, assim,
como excepção ao sentido normativo comum e ideal da lei e unicamente se justifica
pela excepcionalidade de uma situação carecida de uma imediata e urgente decisão
político-jurídica que a forma de lei visa satisfazer. Nestes casos, se o Direito não
impõe e a Constituição não exige o carácter geral e abstracto da lei, nem por isso
deixam, como vimos, um e outra de vincular a lei ao respeito pelo princípio da
igualdade.

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Ganha deste modo sentido a expressa exigência de uma estrutura geral e abstracta
constitucionalmente imposta às leis restritivas de "direitos, liberdades e garantias"
(artigo 18º, nr.3 CRP). A generalidade é, aqui, por força da Constituição, um
elemento essencial da validade constitucional da lei. Não significa isto uma
apriorística associação da generalidade à igualdade e à justiça - pois que não se dispensa
a lei geral do controlo da igualdade na lei -, antes, significa que à exigência de uma
justiça material (igualdade material) se associa uma exigência de justiça formal
(igualdade formal). A razão mais transparente desta essencial associação constitucional
diz-nos que o Legislador constituinte entendeu que, em matéria de restrições aos
"direitos, liberdades e garantias", as leis não gerais encerram um especial perigo de
desrespeito pela igualdade material, num domínio em que os direitos são
essencialmente "direitos de iguais" em posição de "defesa do Estado". A estrutura
geral da lei é, deste modo, um reforço adicional - irrenunciável em matéria de "direitos,
liberdades e garantias" - à proibição geral do arbítrio.
Acresce, porém, uma outra razão de lógica sistemática do regime constitucional dos
"direitos, liberdades e garantias" já anteriormente abordada a propósito da distinção
entre restrição legal e colisão de direitos. Na lógica constitucional, como então se disse,
não cabe uma medida legislativa para decidir um caso concreto onde conflituem
normas constitucionais respeitantes a "direitos, liberdades e garantias". Dado o carácter
preceptivo de tais normas constitucionais, a intenção legislativa nesse caso era
desnecessária e contrária às finalidades da autorização constitucional das leis
restritivas. Seria desnecessária, porquanto o aplicador do direito tem diante de si
preceitos constitucionais que lhe permitem solucionar o caso (a colisão de direitos);
seria contrária ao sentido da autorização constitucional e a todo o regime jurídico-
constitucional das leis restritivas, porque, na coerência global de tal regime, a lei
restritiva só faz sentido como solução genérica e precedente de conflitos de direitos, ou
de um direito e de um interesse, consignados preceptivamente em normas
constitucionais. O legislador tem unicamente um mandato constitucional para
antecipar-se à probabilidade dos conflitos (que o próprio legislador constituinte
anteviu, tendo, por isso, expressamente consentido na intervenção legislativa) e
conciliar genericamente os normativos preceptivo-constitucionais. Na falta, porém, da
mediação legislativa, porque não autorizada constitucionalmente (ou, se autorizada, não
exercida), os casos de conflito resolvem-se por interpretação directa dos preceitos
constitucionais.

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Assim se acentua a ideia de que as colisões de direitos são pensáveis como situações de
vida, "casos anómalos" porventura irrepetíveis, que não suscitam, todavia, em matéria
de "direitos, liberdades e garantias", a necessidade de uma "lei-medida", pois que o
aplicador do direito pode e deve resolver o caso directamente e por interpretação-
aplicação dos preceitos constitucionais. A intervenção legislativa restritiva só se
justifica quando, por expressa autorização constitucional, o legislador introduz uma
mediação valorativa para a resolução de conflitos previsíveis e padronizáveis,
antecipando-se à repetibilidade das situações e dando-lhes uma solução uniforme
legalmente valorada. O carácter geral e abstracto da lei restritiva é, deste modo, um
correlato da virtualidade hermenéutica que o princípio da aplicabilidade directa
reconhece aos preceitos respeitantes aos "direitos, liberdades e garantias".
Deste modo, a mediação legislativa em matéria de "direitos, liberdades e garantias"
não pode deixar de ser norma, dado que ao intervir no conteúdo constitucionalmente
protegido de um direito "para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos", o que verdadeiramente procura é estabelecer critérios
legais para dirimir conflitos entre normas de conteúdo constitucionalmente
determinável, ou seja, constitucionalmente reservado. O carácter "geral e abstracto"
de tal intervenção legislativa impor-se-ia sempre, ainda que a Constituição o não
dissesse expressamente, pois do carácter preceptivo das normas constitucionais em
causa retirar-se-ia já que a lei não é chamada a resolver um (aquele) conflito (colisão)
de direitos (que o juiz sempre resolveria por aplicação directa das normas
constitucionais), mas a fixar a valoração geral que o legislador tem por mais
adequada para solucionar os previsíveis (e, por isso, objecto de uma autorização
constitucional) conflitos de confluência de conteúdos normativos constitucionais.
A conjugação as exigências da igualdade, no seu enunciado materialmente normativo, e
da generalidade podem exprimir-se do seguinte modo: O desrespeito pelo carácter geral
e abstracto, no caso da lei restritiva de "direitos, liberdades e garantias", liberta o órgão
de fiscalização da constitucionalidade do dever de indagar da legitimidade de
tratamento diferenciado, pois a exigência constitucional da generalidade, nessa
matéria, o faz concluir, sem mais, pela inconstitucionalidade da lei. O facto de a lei
ser geral e abstracta, não o dispensa, porém, de indagar do respeito pelo princípio da
igualdade, dado que a lei geral é ainda sindicável quanto à sua conformidade à
igualdade material.

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Não sendo uma lei restritiva de "direitos, liberdades e garantias", ela não precisa de ser
geral e abstracta, mas é ainda sindicável ao nível do princípio da igualdade, vista esta
no seu enunciado materialmente normativo, sendo esta observância particularmente
exigente no caso das leis-medida; é que a generalidade e abstracção eram uma forma
instrumental de assegurar a justiça, na medida em que se a lei é para todos, então ela
é justa.

3. A RESERVA DA CONSTITUIÇÃO NOS "DIREITOS SOCIAIS". O SENTIDO


DA RESERVA OU DA SUA AUSÊNCIA

3.1. A determinidade constitucional como critério de reserva material da constituição

É da natureza e estrutura da norma constitucional, e não propriamente do regime


jurídico expresso constitucionalmente, que flui a reserva do conteúdo constitucional. O
carácter preceptivo da norma, ou seja, a sua capacidade para directamente atribuir
direitos subjectivos é o sinal de reconhecimento de um conteúdo constitucional
subtraído à acção ordinária dos órgãos constituídos.
Abstraindo das razões que, na matéria dos direitos fundamentais, terão levado o
Legislador constituinte a, nuns casos, afirmar preceptivamente o direito e, noutros
casos, a afirmá-lo programaticamente, é pela completude preceptivo-estrutural da
norma constitucional que passa, em rigor, a exigência de uma reserva de Constituição.
Essa completude preceptivo-estrutural dota a norma de determinidade constitucional,
ou seja, os preceitos constitucionais fornecem, autonomamente, todos os elementos e
critérios necessários e suficientes para a sua aplicação directa como norma
constitucional. A determinidade é, assim, o critério da existência de uma "reserva de
conteúdo constitucional", que faz com que a norma se ofereça à aplicação imediata. A
aplicabilidade directa surge como consequência da determinidade da norma sendo,
esta a condição necessária e suficiente para que opere aquela. A determinidade é o
critério da reserva da constituição; a aplicabilidade directa é a consequência do
carácter constitucionalmente reservado.
O critério que permite preencher o conceito de "direitos, liberdades e garantias" -
enunciados no Título II da I Parte da CRP e direitos de natureza análoga - é o
critério da determinidade constitucional do conteúdo de um direito, de uma liberdade
ou de uma garantia. É, assim, indiferente o lugar da formalização da norma

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constitucional. Os direitos à iniciativa e propriedade privadas, assim como o direito ao


trabalho, não deixam de ser direitos constitucionais pelo facto de formalmente não
constarem do catálogo dos "direitos, liberdades e garantias". Por outro lado, não é o
facto de um preceito constitucional constar de tal catálogo que o converte, por isso, em
direito constitucional. O critério da constitucionalidade do direito não se deverá,
porém, ao indagar se num caso ou noutro estaremos perante um conceito material de
"direito, liberdade e garantia", mas sim à presença ou não de uma estrutura-
expressiva da norma constitucional que lhe confere determinidade constitucional e,
por isso, aplicabilidade directa, ou seja, que os torna "direitos de agir ou de exigir com
eficácia imediata" decorrente da norma constitucional.
Os "direitos, liberdades e garantias" a que a Constituição associa um regime
constitucional específico não podem , pois, constituir-se a partir de categorias
abstractas. Tal direito, tal liberdade e tal garantia tem um regime constitucional
específico porque o Legislador constituinte os assumiu como dimensões
constitucionais e os subtraiu à opção legislativa ordinária. O mesmo regime é
aplicável aos preceitos constitucionais de natureza análoga, ou seja, aos que
consagrarem posições jurídicas de determinidade constitucional, ou, que consagrem
"determinações de conteúdo imperativo" (KLAUS STERN).
Outros direitos, que a Constituição também refere como direitos fundamentais, não
mereceram, todavia, um enunciado estrutural-expressivo que fixasse nos preceitos
constitucionais a dimensão actualizada do direito. Precisamente porque a decisão
constituinte os não dotou de um conteúdo constitucional que permita a sua eficácia
imediata, eles não são "direitos constitucionais".
As razões de tal procedimento díspar encontram-se na decisão constituinte referenciável
ao tipo de Estado instituído (artigos 1º e 2º da CRP), o que permite explicar que os
direitos fundamentais de determinidade constitucional sejam essencialmente direitos
de autonomia pessoal ("de defesa"), defensivos relativamente ao poder, porquanto essa
garantia constitucional da "reserva da individualidade" constitui a primeira e
fundamental opção da Constituição do Estado. Será ainda por essa decisão constituinte
de respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais que o Legislador
constituinte entendeu não poder fixar constitucionalmente a medida de outros direitos;
doutro modo, não respeitaria aquela decisão constituinte de deixar à esfera de auto-
realização pessoal e social a opção "ordinária" entre modelos político-económicos

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portadores dos seus programas de acção. Tais direitos, ainda que enunciados
constitucionalmente como direitos fundamentais, são direitos de realização social.
Assim a distinção útil, para efeitos de regime jurídico-constitucional na matéria dos
direitos fundamentais, demarca um conjunto de preceitos constitucionais que
estabelecem um direito, uma liberdade ou uma garantia com reserva normal de
conteúdo constitucional - atrás designada por "reserva relativa da Constituição" - de
um outro conjunto de preceitos constitucionais que enunciam o direito como
fundamental, mas não preceituam a medida constitucional do direito, antes incumbem
o Estado de promover a sua realização, ou seja, de conferir, expansivamente, a medida
de protecção jurídica desse direito.
Os direitos e deveres económicos, sociais e culturais (habitualmente conhecidos pela
expressão de "direitos sociais") não observam, assim, o critério da determinidade
constitucional, pelo que não tem aplicabilidade directa. São normas que dependem
duma actuação dos poderes constituídos, normas sob reserva de uma condição de
possibilidade. Carecem, por isso, de opções ordinárias, tomadas em face de diferentes
quadros político-económicos e em observância de distintas doutrinas político-
partidárias. Ao contrário dos "direitos, liberdades e garantias" que, tratando-se de
normas que se reconduzem a posições jurídicas subjectivas (e, por isso, não
susceptíveis da gestão de recursos públicos), a sua violação acarreta a reparação do
próprio Estado, os ditos "direitos sociais" já pertencem a uma segunda geração que
presssupõe a intervenção do legislador ordinário.

3.2. O sentido da ausência da determinidade constitucional nos "direitos sociais" -

Ainda que o legislador ordinário possa ser responsabilizado pelo não "prevenir",
"ordenar", "criar" ou "promover" a realização do direito, a medida de apropriação
jurídica do direito só se determina na lei, dado que a própria estrutura da norma é
essencialmente impositiva da acção legislativa e não proibitiva dessa actuação.
É que, contrariamente aos direitos constitucionais - direitos, liberdades e garantias de
reserva constitucional -, a actuação legislativa nos "direitos sociais" não está balizada
por uma dimensão de reserva constitucional de conteúdo. Nos direitos
constitucionais, com efeito, a intervenção legislativa, quando autorizada a dispor do
direito, tendo um sentido regressivo, ou seja, comprime a expressão constitucional do
direito, pelo que não é a lei que define o direito: verdadeiramente o que lhe cabe definir

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é a restrição ao direito constitucional, continuando este, na parte não comprimida


legalmente, a operar por força constitucional. Diferentemente, nos "direitos sociais", a
intervenção da lei tem um sentido expansivo, ou seja, ao legislador cabe definir, ir
definindo, a medida do direito por ele juridicamente assegurada - e, por isso,
legalmente operativa -, em ordem àquele objectivo que é, na estrutura da norma
constitucional (exemplo: "todos tem o direito a um ambiente de vida humana, sadio e
ecologicamente equilibrado"), a própria afirmação constitucional do direito.
O que se há-de distinguir na norma constitucional que consagra um "direito social" é a
sua estrutura bi-direccional: a norma começa por, expressa ou implicitamente,
enunciar um direito de todos (exemplo: "todos tem direito ao trabalho"); a norma
completa-se, depois, pelas prescrições de incumbências ao Estado. Ora, não é por
aquele primeiro enunciado que um "direito social" se diferencia de um direito
constitucional: assim como ninguém pode ser privado do direito de constituir família
(artigo 36º, nr.1 CRP), também ninguém pode ser privado do direito ao trabalho
(artigo 58º, nr.1 CRP). Uma lei que proibisse o acesso ao trabalho a uma categoria de
pessoas seria tão inconstitucional como aquela que proibisse uma categoria de pessoas
de contrair casamento. Nesta dimensão negativa, o direito social enunciado na
Constituição afirma também uma posição subjectiva individual, permanente, universal
e fundamental e, por isso, afirma-se como direito fundamental dos cidadãos. Não é,
todavia, por esta dimensão que os "direitos sociais" ganham especificidade
relativamente aos direitos constitucionais. Essa especificidade funda-se no tipo de
incumbências referidas estruturalmente ao Estado num caso e noutro, as quais fazem
transparecer o carácter regressivo ou expansivo da intervenção do Estado, relativamente
à enunciação constitucional do direito. Se à enunciação do direito nada se acrescenta, é
para "regulamentar" ou para permitir a restrição do enunciado daquele primeiro
enunciado normativo, é porque a Constituição entende que tal enunciado normativo é a
medida normal constitucionalmente assegurada ao direito; se a enunciação do direito
é acompanhada por preceitos-incumbências ao Estado para a realização actualizada
do direito, então é porque aquele enunciado do direito, indo para além da mera
significação negativa, se converte num objectivo a atingir através de medidas de
prestação, jurídica ou material, que o legislador constituinte apontou ao Estado. Mas,
deste modo, o direito - ou a sua dimensão social - sai de uma esfera individual,
subjectiva, preceptivo-constitucionalmente assegurada, e objectiva-se numa estrutura
de prestação. Ou seja, o "direito social", ao converter-se num "direito a prestações",

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deixa de ser uma medida constitucional de titularidade individual autónoma para ser
uma imposição constitucional a um terceiro (o legislador), deixando o indivíduo de ser
o destinatário directo da norma constitucional. A medida do direito sai da autoria
constitucional para a esfera da disponibilidade do legislador, ainda que vinculado por
um mandato constitucional de "acção".
Significa isto que, nos direitos constitucionais, o direito subjectivo é objectivado na
Constituição; nos "direitos sociais", o direito subjectivo é objectivado na
legislação. E se um direito não é objectivado na Constituição, não há reserva de
Constituição, pois não é aí que se encontra a medida da sua a positivação jurídica.
Em conclusão, podemos resumir esta distinção nos seguintes termos: os direitos
constitucionais tem um conteúdo definido pela própria CRP, nos quais a intervenção do
legislador, quando constitucionalmente autorizada, tem apenas carácter regressivo ou
restritivo (exemplo: artigo 62º, nr.2 CRP); nos direitos sociais, em regra, os preceitos
tem uma parte negativa (exemplo: artigo 58º, nr.1 CRP: todos tem o direito ao
trabalho, a aceder ao trabalho, a poder trabalhar) e uma parte positiva no âmbito do qual
comportam um programa normativo (o Estado deve realizar as tarefas que visam
assegurar que todos tenham trabalho). Nos direitos constitucionais falta este carácter
programático, na medida em que a CRP já lhe forneceu uma estrutura completa; as
normas que encerram "direitos sociais" não permitem ao cidadão arrogar-se detentor de
um direito subjectivo directamente sindicável no plano judicial.

3.3. A inconstitucionalidade por omissão e a "reserva da Constituição" -

Terá sido através da figura da inconstitucionalidade por omissão que o Legislador


constituinte quis significar uma vinculatividade das normas constitucionais respeitantes
a "direitos sociais". Só que a própria figura da inconstitucionalidade por omissão - que
não traduz, de resto, um controlo jurídico em sentido estrito -, ao fundar-se no carácter
necessário de "medidas legislativas para tornar exequíveis as normas constitucionais",
não vai, na lição de MANUEL VAZ, dirigida tanto aos "direitos sociais", quanto às
normas preceptivas não exequíveis por si mesmas.
A determinidade constitucional, ou seja, o carácter preceptivo estruturalmente
reconhecido às normas constitucionais, foi adoptado como critério de reserva material
da constituição, isto é, tais normas afirmam direitos cujo conteúdo é
constitucionalmente determinado (ou determinável) e não necessitam, por isso, para

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valerem como direitos constitucionais, da intervenção legislativa. Entende-se, assim,


que o direito existe e vale plenamente pelo recorte constitucional que lhe é conferido,
o que faz com que a norma seja directa e imediatamente aplicável. Coisa diferente é a
exequibilidade imediata do direito do ponto de vista da operacionalidade jurídica pelo
seu titular. Se há direitos constitucionais que não necessitam do preenchimento de
"pressupostos externos de exequibilidade" para que o titular do direito os exercite e,
portanto, se revelem exequíveis por si mesmos, outros há em que a determinidade
constitucional não basta para que se tornem exequíveis por si mesmos, necessitando
de prestações positivas, jurídicas ou materiais, para que o titular os exercite. Mesmo
aqui, porém, o carácter preceptivo de tais normas constitucionais confere ao titular do
direito o "poder de exigir" tais prestações em ordem ao exercício do direito que
constitucionalmente lhe é definido, não valendo razões políticas ou económicas de
prioridades ou de modelos que obstem ou espacem a sua concretização. Ora, é a
propósito destas normas (preceitos) constitucionais que se pode falar verdadeiramente
em inconstitucionalidade "por omissão de medidas legislativas necessárias para
tornar exequíveis as normas constitucionais", nos termos do preceituado no artigo
283º, nr.1 CRP, pois só quando há determinidade constitucional, se impõe a
exequibilidade legislativa de normas constitucionais. Em rigor, com efeito, o "tornar
exequíveis as normas constitucionais" pressupõe a determinidade constitucional
destas e, se se trata de preceito constitucional material, pressupõe a determinidade de
conteúdo constitucional do direito.
Pode, porém, acontecer que essa determinidade constitucional exista mesmo em
preceitos constitucionais inseridos em normas que globalmente se tipificam pelo seu
carácter promocional-programático. Na verdade, não deixa de ter determinidade
constitucional aquele inciso preceptivo que assegura o "ensino básico, universal,
obrigatório e gratuito" (artigo 74º, nr.2, alínea a) da CRP), pelo facto de estar
inserido numa norma que, na sua globalidade, se revela de carácter indeterminado. Tal
preceito consagra, nos termos atrás referidos, um direito constitucional, pois é um
direito fundamental der natureza análoga aos formalizados "direitos, liberdades e
garantias", ou seja, tem um conteúdo determinado constitucionalmente e, por isso,
aplica-se-lhes o regime do artigo 18º da Constituição. Se há necessidade de intervenção
do legislador, ela é, ainda, aqui, para tornar exequível o preceito constitucional e não
para o tornar preceptivo.

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Diferentemente se passam as coisas com aqueles preceitos constitucionais a que falhe o


carácter precptivo-constitucional. Para que se determinem como direitos, é necessário
que à norma acresça uma actuação legislativa que defina o seu conteúdo, fazendo
opções num quadro de prioridades a quer obrigam a escassez de recursos e o "modelo"
económico adoptado a propósito da intervenção do Estado na vida social, e que, em
geral, exprime as alternativas que o próprio princípio democrático - e a opção
fundamental constituinte - quer significar. Os preceitos constitucionais respectivos
não são, por isso, aplicáveis imediatamente e muito menos constituem preceitos
exequíveis por si mesmos. Se falha à norma o carácter preceptivo, então as medidas
legislativas são necessárias para tornar preceptivas as normas constitucionais e não
para as tornar exequíveis. Ou seja, a lei não tem aí a função de tornar exequível o
conteúdo que a norma constitucional por si consagra, mas de determinar um conteúdo
legal que unicamente a partir dessa dimensão se torna exequível ou postula medidas
de exequibilidade. Não se pode, pois, falar em "reserva de conteúdo constitucional",
quando o conteúdo não está definido na Constituição e só a intervenção autónoma do
legislador ordinário o pode definir. Não estando o legislador vinculado a um conteúdo
constitucional que deva tornar exequível, a censurabilidade pela omissão só poderia
incidir sobre o non facere e não sobre a carência de regulamentação que torne
exequível o direito constitucional. Assim, se percebe que a inconstitucionalidade por
omissão, quando aplicada aos "direitos sociais" é, na verdade, o reconhecimento da
carência de determinidade constitucional de tais normas.
O que pode confundir as coisas é o já referido facto de uma mesma norma
constitucional integrar uma "dimensão programática", a par de uma "dimensão
preceptiva". Quando o artigo 64º, nr.2, alínea a) da Constituição diz que "o direito à
protecção da saúde é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e
geral", impõe certamente ao Estado uma obrigação de acção, ou seja, a criação de
serviços de prestação de cuidados de saúde. A "dimensão programática" é esta e só
esta: a obrigação de criação estadual de serviços de saúde. A inconstitucionalidade
por omissão relativamente a esta dimensão só poderia sindicar o non facere, ou seja, a
ausência de uma organização que assegure um grau de prestação estadual de
cuidados de saúde. A afirmação constitucional do direito não se reduz, porém, a essa
"dimensão programática", mas determina (preceitua) o carácter nacional, universal e
geral do serviço de saúde. Ora, o carácter nacional, universal e geral de tais serviços
não é uma "dimensão programática", mas sim uma "dimensão preceptiva", ou seja,

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tem determinidade constitucional. O que isto significa é que o grau de positivação do


direito depende da lei unicamente no que respeita à intensidade de efectividade do
direito. Aí se faz sentir o carácter "positivo" da prestação, onde cabem opções político-
legislativas correspondentes à diversidade e ao pluralismo das concepções de ordenação
social sempre dependentes da utilização e ordenação dos recursos, que são, por sua
natureza escassos. Já no que respeita à extensão a todo o território nacional do grau de
efectivação de tal prestação e à sua aplicação a todos os cidadãos, o direito não
depende de lei, mas da Constituição, sendo que a lei, a ser necessária, seria para
tornar exequível esse direito-constitucional, ou seria, inconstitucional se
desrespeitasse aquele carácter nacional, universal e geral dos cuidados de prestação,
em que se traduz a específica reserva de conteúdo constitucional do direito à saúde. É
nesta dimensão, com efeito, que a norma constitucional se revela directamente
justiciável, porque tal direito tem um conteúdo constitucional determinado, e, em
consequência, somente aqui as medidas legislativas são necessárias para tornar
exequíveis as normas constitucionais.

3.4. O "conteúdo mínimo" dos "direitos sociais" e o princípio da "proibição do


retrocesso social" -

Do ponto de vista de MANUEL VAZ, não há um "conteúdo mínimo" de um "direito


social" que seja um conteúdo de reserva constitucional, porque simplesmente não há
determinidade constitucional da prestação. Os exemplos que são aduzidos por
VIEIRA DE ANDRADE para expressar esse "conteúdo mínimo" não tem a ver com o
conteúdo constitucional do "direito social", mas com garantias constitucionais gerais
ou específicas (exemplos: o princípio da igualdade, carácter geral da prestação, etc.) da
organização legal do direito social. Por outro lado, se com tal conteúdo mínimo se quer
significar a própria "imposição constitucional concreta e permanente" ("imposição
legiferante") ao legislador, a norma constitucional tem certamente um conteúdo, mas
não é um conteúdo de determinidade constitucional da medida do direito, que
estabeleça uma reserva de Constituição. È que é à própria legislação que se pede a
determinação do "direito originário a prestações" ou da "pretensão subjectiva a

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prestações". A inconstitucionalidade por omissão da preceptibilidade legal do direito


será o único remédio "jurídico" para assegurar esse "conteúdo mínimo", mas será ao
mesmo tempo o reconhecimento da carência de uma "reserva de conteúdo
constitucional".
Já o princípio da "proibição do retrocesso social", se convertido em princípio
jurídico-constitucional de sindicabilidade constitucional das leis, significaria a
aceitação, ainda que indirecta, de uma reserva da Constituição dos "direitos sociais".
Na verdade, o princípio da "proibição do retrocesso social", se entendido como
"garantia" dos "direitos sociais" perante a lei - ou seja, como radicação na esfera
jurídica dos particulares do direito subjectivo ao "nível de realização legislativa" do
direito fundamental -, pretenderia fornecer um critério de determinidade constitucional,
isto é, pretenderia dotar o "direito social" de um conteúdo determinado por um
processo de "osmose" constituição-lei, em que esta poderia funcionar como "mediação
constitucionalmente caracterizante do programa normativo-material da Constituição".
Contudo, para MANUEL VAZ, os limites que desta forma se pretendem impor ao
legislador são limites jurídicos de reserva material da Constituição. Não são, desde
logo, limites materiais da constituição formal-instrumental. A afirmar tal ideia está a
própria génese do problema: o nível de realização do direito estabelece-se
legislativamente. A partir daqui o problema teria de se deslocar, forçosamente, para a
esfera da Constituição material, ficando assim dependente de um juízo posterior de
positivação da "consciência jurídica geral". Independentemente, porém, do carácter
político-constitucional a que se viria a encostar o princípio da "proibição do retrocesso
social", a eventual constitucionalização de um conteúdo legal de um direito
fundamental não dependeria daquela "eficácia irradiante" dos preceitos (formais)
relativos aos direitos sociais, encarados como um "bloco constitucional dirigente", mas
da própria vivência comunitária, onde opera e participa o legislador. O que isto
significa é que, embora admitindo-se, em tese político-constitucional, que as medidas
legais concretizadoras dos direitos sociais possam ser elevadas a um direito
constitucional material - ou seja, que embora "dispondo directamente apenas de uma
cobertura normativa legal já entraram a fazer parte do acquis constitucional" -, não se
vê como possa o "nível de realização legislativa" de um "direito social" converter-se,
autonomamente, numa dimensão constitucional material contra a vontade do
legislador. Admitir-se isso, como princípio jurídico-constitcional, é jogar

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continuamente o legislador "contra a Constituição (material)", quando ele é parte dessa


Constituição.
Por outro lado, a autonomia do legislador e a da função legislativa é um princípio de
reserva constitucional. Por decisão constituinte, o legislador tem liberdade constitutiva
e autoreversibilidade ali onde a Constituição não reservou, nem podia reservar, o
conteúdo material. Aí, uma vez ganha a legitimidade política, o legislador tem poder
jurídico-constitucional para conferir a sua autoria à suas decisões. A reserva da
Constituição não é aqui material, mas de competência e processo, abrindo espaço às
dimensões materiais da reserva de parlamento e da reserva da função legislativa.

CAPÍTULO VII - A PROTECÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1. MEIOS DE DEFESA JURISDICIONAIS -

1.1. A garantia de acesso aos tribunais -

A garantia do acesso aos tribunais foi considerado como uma concretização do


princípio estruturante do Estado de Direito. Neste momento, trata-se apenas de
estabelecer o conteúdo desta garantia jurídico-constitucional sob o ponto de vista da
defesa dos direitos fundamentais. Em termos sintéticos, a garantia do acesso aos
tribunais (artigos 20º, nr.1, 202º, nr.2 e 268º, nr.4 da CRP) significa,
fundamentalmente, direito á protecção jurídica através dos tribunais (ver Acórdãos do
TC 447/93, 249/94, 473/94 e 529/94). A indicação do tribunal competente, bem como
da forma e do processo, pertence ao legislador.

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1.2. Protecção através de um processo justo (due process) -

As doutrinas caracterizadoras do direito a um processo equitativo (artigo 20º, nr.4


CRP) tem quase sempre como ponto de partida a experiência constitucional americana
do due process of law. As origens do due process of law costumam reconduzir-se aos
esquemas garantísticos da Magna Carta, designada mente do seu artigo 39º: "Nenhum
homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora
da lei ou exilado, ou de qualquer modo molestado e nós não procederemos ou
mandaremos proceder contra ele, senão mediante um julgamento regular pelos seus
pares e de harmonia com a lei do país".
Aquele preceito, cuja última ratio parece apontar para uma espécie de "exigência de um
processo justo", parece acompanhar a evolução do princípio da legalidade na
perspectiva anglo-saxónica. Trata-se, no fundo, de consagrar um processo devido e
justo fundado no Direito. Mais tarde, com as Emendas V e XIV da Constituição dos
Estados Unidos da América, o citado processo devido em direito vai significar a
obrigatoriedade da observância de um tipo de processo legalmente previsto antes de
alguém ser privado da vida, da liberdade e da propriedade (ou seja, dos seus direitos
fundamentais). Nestes termos, o processo devido é o processo previsto na lei para a
aplicação de penas privativas da vida, da liberdade e da propriedade. Dito ainda de outro
modo: due process equivale ao processo justo definido por lei para se dizer o direito no
momento jurisdicional de aplicação de sanções criminais particularmente graves.
Esta leitura básica abre a porta para uma outra ideia já atrás acentuada. É ela a do
processo devido como processo justo de criação legal de normas jurídicas,
designadamente de normas restritivas das liberdades dos cidadãos. Por outras palavras
porventura mais expressivas: o due process of law pressupõe que o processo legalmente
previsto para aplicação de penas seja ele próprio um "processo devido" obedecendo aos
trâmites procedimentais formalmente estabelecidos na constituição ou plasmados em
regras regimentais das assembleias legislativas. Procedimentos justos e adequados
moldam a actividade legiferante. Dizer o direito segundo um processo justo pressupõe
que justo seja o procedimento de criação legal dos mesmos processos.
As concepções de processo justo, à luz das doutrinas americanas, reconduzem-se a dois
critérios:
a) a teoria processual, segundo a qual uma pessoa "privada" dos seus direitos
fundamentais da vida, liberdade e propriedade tem direito a exigir que essa

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privação seja feita segundo um processo especificado na lei; o acento tónico é,


assim, colocado na observância ou não do processo criado por lei para aplicação de
medidas privativas da vida, liberdade e propriedade.
b) A teoria substantiva, segundo a qual se diz que uma pessoa tem direito não apenas a
um processo legal (teoria processual), mas sobretudo a um processo legal justo e
adequado quando se trate de legitimar o sacrifício da vida, liberdade e propriedade
dos particulares; o acento tónico, aqui, é colocado numa ideia de materialidade
subjacente ao processo justo.
Entre nós, com a Revisão de 1997, há a aceitação da ideia de processo equitativo,
conforme expressamente estipula o artigo 20º, nr.4 da CRP. O preceito visa assegurar,
desde logo, um direito de defesa contra os actos públicos e privados que sejam
violadores de direitos aos particulares. O Estado tem de garantir um sistema
jurisdicional que efective a protecção desses direitos dos particulares. Promove-se,
assim, um verdadeiro direito a uma prestação estadual (a via judiciária), na medida em
que o próprio Estado aboliu a "justiça privada". O artigo 20º da CRP é, por isso, um
autêntico "direito, liberdade e garantia", fora do catálogo, dado que assegura o acesso
ao direito e aos tribunais.

1.3. O direito à tutela jurisdicional -

Pela própria arquitectura do due process verifica-se que este, hoje, assume duas
vertentes: por um lado, encerra um direito de defesa antes os tribunais e contra actos
dos poderes públicos; por outro lado, abrange um direito de protecção do particular
através dos tribunais do Estado no sentido de este o proteger perante a violação dos
eus direitos por terceiros (dever de protecção do Estado e direito do particular a exigir
essa protecção).
Assim, uma primeira e irrefutável dimensão deste direito à tutela jurisdicional consiste,
justamente, na protecção jurídica individual: o particular tem o direito fundamental de
recorrer aos tribunais para assegurar a defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos (artigo 20º, nr.1 CRP).
Ao lado desta, uma outra dimensão deste direito de acesso aos tribunais é a que se
traduz numa verdadeira garantia institucional, na medida em que exige uma
organização jurisdicional dirigida àquela protecção. Ou seja, é uma obrigação do Estado
a criação dessa garantia jurisdicional de via judiciária, dado que o próprio Estado

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monopolizou (chamou a si) a gestão dos conflitos judiciais. Por isso, o direito de acesso
aos tribunais é um direito fundamental formal que carece de densificação através de
outros direitos fundamentais.

1.4. Dimensões jurídico-constitucionais do direito ao processo equitativo -

O direito de acesso aos tribunais implica o direito ao processo entendendo-se que este
postula um direito a uma decisão final (material e não meramente formal)incidente
sobre o fundo da causa sempre que se hajam cumprido e observado os requisitos
processuais da acção ou recurso. Por outras palavras, no direito de acesso aos tribunais
inclui-se o direito de obter uma decisão fundada no direito, embora dependente da
observância de certos requisitos ou pressupostos processuais legalmente consagrados.
Por isso, a efectivação de um direito ao processo não equivale necessariamente a uma
decisão favorável; basta uma decisão fundada no direito quer seja favorável quer
desfavorável às pretensões deduzidas em juízo.
Compreende-se, pois, que o direito ao processo implique o cumprimento de certos
pressupostos constitucionais materialmente adequados como, por exemplo, a
proibição de requisitos processuais desnecessários, a exigência de fixação legal prévia
dos requisitos e pressupostos processuais dos recursos e das acções e a sanação de
irregularidades processuais.
A protecção jurídica através dos tribunais implica também a garantia de uma protecção
eficaz e temporalmente adequada. Significa isto, por um lado, que ela engloba a
exigência de uma apreciação, pelo juiz, da matéria de facto e de direito, objecto do
litígio ou da pretensão do particular, e a respectiva "resposta" plasmada numa decisão
judicial vinculativa e, por outro lado, ao demandante de uma protecção jurídica deve
ser reconhecida a possibilidade de, em tempo útil (ideia der adequação temporal), obter
uma sentença executória com força de caso julgado. GOMES CANOTILHO refere
ainda, a este propósito que uma protecção judicial em tempo adequado não deve
significar "justiça acelerada": a "aceleração" da protecção jurídica nunca se pode
traduzir em diminuição de garantias processuais e materiais.
A existência de uma protecção jurídica eficaz pressupõe o direito à execução das
sentenças dos tribunais através dos tribunais (ou de outras autoridades públicas),
devendo o Estado fornecer todos os meios jurídicos e materiais necessários e adequados
para dar cumprimento às sentenças do juiz. Esta dimensão da protecção jurídica é

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extensiva, em princípio, à execução de sentenças proferidas contra o próprio Estado


(artigo 205, nrs.2 e 3 da CRP). Realce-se que, no caso de existir uma sentença
vinculativa reconhecedora de um direito, a execução da decisão do tribunal não é apenas
uma dimensão da legalidade democrática (dimensão objectiva), mas também um direito
subjectivo público do particular, ao qual devem ser reconhecidos meios compensatórios,
medidas compulsórias ou "acções de queixa".
Por último, importa referir que a garantia do acesso aos tribunais pressupõe, também,
dimensões de natureza prestacional, na medida em que o Estado deve criar órgãos
judiciários e processos adequados (direitos fundamentais dependentes da organização e
procedimento) e assegurar prestações ("apoio judiciário", "patrocínio judiciário",
dispensa total ou parcial de pagamento de custas e preparos), tendentes a evitar a
denegação da justiça por insuficiência de meios económicos (artigo 20º, nr.2 CRP).
O acesso à justiça é um acesso materialmente informado pelo princípio da igualdade
de oportunidades. É nesta linha de raciocínio que se entende o Acórdão do TC que
considerou inconstitucional certos depósitos em dinheiro com condição prévia de
aceitação de recursos).

1.5. Direito de acesso à justiça administrativa -

NOTA: esta matéria está mais desenvolvida no capítulo seguinte relativo às garantias
dos administrados.

O artigo 268º, nr.4 da CRP garante aos particulares a tutela jurisdicional efectiva dos
seus direitos ou interesses protegidos. Trata-se de uma concretização da garantia de
acesso aos tribunais (artigo 20º CRP), pois é configurada como garantia de protecção
jurisdicional (dirige-se à protecção dos particulares através dos tribunais), e possui, ela
própria, a qualidade ou natureza de direito análogo aos "direitos, liberdades e
garantias" (artigo 17º da CRP). O texto constitucional, na redacção que se segue à
Revisão de 1997, fornece a abertura inequívoca para processos de justiça administrativa
relativamente aos quais a doutrina, o legislador e jurisprudência se mostram reticentes:
acção para a prática de actos administrativos legalmente devidos e adopção de
medidas cautelares adequadas. Para GOMES CANOTILHO, o legislador deve dar

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cumprimento a esta imposição legiferante contida no artigo 268º, nr.4 da CRP. O


facto de se tratar de uma imposição legiferante não significa que o juiz não possa
aplicar directamente este preceito interpretando o direito ordinário em conformidade
com a Constituição. Isso terá desde logo relevância prática na desaplicação por
inconstitucionalidade de normas erguidas como impedimento legal a uma protecção
adequada de direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, bem como, na
formatação judicial constitucionalmente adequada de instrumentos processuais já
existentes (exemplo: providências acautelares não especificadas, aceleração de
processos para, de forma equitativa e expedita, se defenderem "direitos, liberdades e
garantias", nos termos do artigo 20º, nr.4 CRP)
Além da sua natureza de direito análogo aos "direitos, liberdades e garantias", a
garantia de tutela jurisdicional configura-se também como garantia institucional. Isto
aponta para exigência e garantia de uma organização judiciária possibilitadora de
uma protecção jurídica eficaz e temporalmente adequada dos particulares.
A garantia de protecção jurídica individual pressupõe a lesão de direitos subjectivos ou
interesses legalmente protegidos (artigo 268º, nr.4 da CRP). A garantia de
impugnação judicial de actos ou normas administrativas lesivas de direitos e interesses
legalmente protegidos significa protecção contra qualquer actuação da administração
lesiva de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos do particular. Na
categoria "actuação da administração" incluem-se não apenas os actos administrativos
activos ou omissivos, praticados por órgãos, funcionários ou agentes da "administração
central, regional, local, mas também "prescrições técnicas" (problemas de decisão
informáticos, sinais de trânsito). Além disso, cabem no âmbito de protecção da tutela
jurisdicional efectiva o direito à impugnação de normas administrativas, como hoje
estatui o artigo 268º, nr.5 da CRP, ou seja, actos normativos da administração
(regulamentos , estatutos, decretos, resoluções). Mais duvidosa é a questão de saber se
a garantia do recurso contencioso abrange os actos legislativos, mas a doutrina e
jurisprudência inclinam-se a favor da solução afirmativa quando se trata de verdadeiros
actos administrativos sob a forma de lei, lesivos, de modo directo e imediato, de
direitos e interesses legalmente protegidos.
As revisões constitucionais de 1989 e 1997 densificaram melhor o direito de acesso à
justiça administrativa para tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
administrados. O titular deste direito continua a ser o particular enquanto administrado.
Todavia, os preceitos constitucionais garantidores dos acesso à justiça pretendem tornar

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claro que é sempre admitida a protecção jurisdicional administrativa de posições


subjectivas (direitos e interesses), sem se limitar esta protecção à adopção de meios
específicos de impugnação (exemplo: "recurso" contencioso) ou à existência de
determinadas formas de actuação da administração (exemplo: actos administrativos).
Neste sentido se fala hoje do princípio da plenitude da garantia jurisdicional
administrativa: a qualquer ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos e a
qualquer ilegalidade da administração deve corresponder uma forma de garantia
jurisdicional adequada (artigo 268º, nr.4 e seguintes da CRP).

1.6. Direito a processos céleres e prioritários -

Uma das mais importantes inovações introduzidas pela revisão de 1997 consistiu na
criação de procedimentos judiciais céleres e prioritários (artigo 20º, nr.5 CRP) de
modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações de "direitos,
liberdades e garantias". O preceito constitucional em causa constitui, desde logo, uma
imposição constitucional no sentido do legislador ordinário conformar os vários
processos (penal, administrativo, civil) no sentido de assegurar por via preferente e
sumária a protecção de "direitos, liberdades e garantias". A consagração de
procedimentos judiciais céleres e prioritário não significa (para GOMES
CANOTILHO) a introdução de uma acção de recurso de amparo especificamente
dirigida á tutela de "direitos, liberdades e garantias", mas de um direito constitucional
de amparo de direitos a efectivar através das vias judiciais normais. Por outro lado, há
quer ter presente a ideia segundo a qual a justiça tardia pode significar denegação da
justiça. Há quem defenda, tendo em vista a obtenção de uma justiça mais eficaz, que
todas as decisões judiciais deviam ser susceptíveis de recurso (princípio do duplo grau
de jurisdição); contudo, o Tribunal Constitucional tem vindo a recusar que tal ideia
vigore a título de princípio geral (entende o TC que há processos de tal forma simples e
leves que não justificam um novo grau de recurso).

1.7. Direito de suscitar a "questão" da inconstitucionalidade ou de ilegalidade -

Como se acaba de ver, não existe, no sistema jurídico-constitucional português, um


processo de "queixa constitucional" que permita aos cidadãos lesados nos seus direitos
fundamentais apelarem directamente para um tribunal constitucional (em condições a

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102

regular pelas leis de organização, funcionamento e processo). Todavia, os particulares


podem, nos feitos submetidos à apreciação de qualquer tribunal e em que sejam parte,
invocar a inconstitucionalidade de qualquer norma ou a ilegalidade de actos
normativos violadores de leis com valor reforçado, fazendo assim funcionar o sistema
de controlo da constitucionalidade e da ilegalidade numa perspectiva de controlo
subjectivo.

1.8. Acção de responsabilidade -

No que concerne à responsabilidade da Administração, os particulares lesados nos


seus direitos, designadamente nos seus "direitos, liberdades e garantias", por acções ou
omissões de titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades
públicas, praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, podem
demandar o Estado - "responsabilidade do Estado" -, exigindo uma reparação dos
danos emergentes desses actos (artigos 22º e 27º, nr.5 da CRP). No âmbito de
protecção desta norma incluem-se acções de responsabilidade contra a administração
por actos lícitos e ilícitos (acções ou omissões) dos titulares de órgãos, funcionários ou
agentes, sejam eles actos jurídicos (actos administrativos), sejam actos materiais (erro
de diagnóstico de um médico, uso de armas de fogo, buracos nas valas na via pública
sem sinalização).
Além da referida responsabilidade da administração, a norma constitucional está
"aberta" à responsabilidade por facto da função jurisdicional ("responsabilidade do
Estado-juiz"). A Constituição consagra expressamente o dever de indemnização nos
casos de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (artigo 27º, nr.5) e nos casos
de erro judiciário (artigo 29º, nr.6), mas a responsabilidade do Estado-juiz pode e deve
estender-se a outros casos de "culpa grave" de que resultem danos de especial
gravidade para o particular (artigos 225º e 226º do Código do Processo Penal). Não
obstante as reticências da jurisprudência portuguesa, a orientação mais recente de alguns
países vai no sentido de consagrar a responsabilidade dos magistrados quando a sua
actividade dolosa ou gravemente negligente provoca um dano injusto aos particulares.
Entre nós, registe-se o Acórdão de 07/03/89 do STA, no qual se reconhece, pela
primeira vez, a responsabilidade civil do Estado em actos jurisdicionais.
Por fim, resta referir a responsabilidade por factos das leis ("responsabilidade do
Estado-legislador"). Esta responsabilidade cabe também no preceito do artigo 22º da

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CRP, interpretado este em sentido amplo. Embora se costume argumentar a favor da


irresponsabilidade do Estado por factos de leis com a ideia de a disciplina da lei ser
geral e abstracta, para GOMES CANOTILHO, deve ponderar-se o seguinte:
a) algumas das leis "declaradas" ou "julgadas" inconstitucionais podem ter
ocasionado violação de "direitos, liberdades e garantias" ou prejuízos para os
cidadãos;
b) algumas das leis com as características de leis-medida são leis self executing,
podendo ter gerado prejuízos sérios aos cidadãos;
c) algumas leis, gerais e abstractas, podem vir a impor encargos apenas a alguns
particulares, violando quer o princípio da propriedade quer o princípio da
igualdade.
Quer se trate de responsabilidade por actos legislativos ilícitos enquadrável no âmbito
normativo do artigo 22º da CRP, quer de dever de indemnizar por actos legislativos
lícitos impositivos de sacrifícios especais nos cidadãos (de que se poder ver refracção no
artigo 62º, nr.2 da CRP - indemnização por expropriação), além de não estar afastada
no artigo 22º da CRP, a responsabilidade por facto das leis, não é um "luxo" mas
uma exigência do Estado de direito democrático. A possível exigência de um regime
legal da responsabilidade por facto das leis significa não que o legislador possa afastar
os deveres de ressarcibilidade e indemnizabilidade que incumbem ao Estado, mas que
deve concretizar e conformar esse regime através da lei.

1.9. Direito de acção popular -

Através do direito de acção popular consagrado no artigo 52º, nr,3 da CRP, a


Constituição deu guarida a um reforço das acções populares tradicionais e à introdução
de acções populares ou colectivas destinadas à defesa de interesses difusos.
Nas primeiras, "qualquer um do povo", invocando interesse público, pode substituir-se
aos órgãos competentes para reagir contra a usurpação ou lesão de bens ou direitos das
autarquias locais ou contra deliberações ilegais dos órgãos destas.
Nas segundas, qualquer cidadão, individualmente ou associado ("associações de
defesa"), mesmo não invocando o interesse público, pode intentar uma acção de defesa
de um interesse do público em geral ou de categorias ou classes com grande número de
pessoas - interesses difusos -, (saúde pública, ambiente, qualidade de vida, património

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cultural) e dos seus próprios direitos subjectivos (direito ao ambiente, direito à


qualidade de vida, direito à saúde).
Estes dois tipos de acções tendem hoje a confundir-se porque a defesa de interesses
difusos coincide com a defesa de interesses públicos e a defesa de direitos individuais.
A lei reguladora do direito de acção popular (Lei nr. 83/95 de 31 de Agosto) distingue
entre direito procedimental de participação popular (visa garantir aos cidadãos,
associações ou fundações defensoras da saúde pública, ambiente, património cultural,
consumo de bens e serviços, uma série de direitos de participação em procedimentos
administrativos tais como planos de desenvolvimento, planos de urbanismo, planos
directores e de ordenamento do território, etc.) e direito de acção popular (abrange a
acção procedimental administrativa, que pode consistir numa acção judicial
administrativa destinada à defesa dos interesses já referidos ou num recurso
contencioso contra actos administrativos ilegais lesivos dos mesmos interesses, e, a
acção popular civil que, seguindo a lógica do Código do processo Civil, pode revestir
as formas de acção preventiva, condenatória ou inibitória).

2. MEIOS DE DEFESA NÃO JURISDICIONAIS -

2.1. Direito de resistência -

O direito de resistência (artigo 21º da CRP) é a última ratio do cidadão ofendido nos
seus "direitos, liberdades e garantias", por actos do poder público ou por acções de
entidades privadas. O recurso a este direito apenas tem lugar quando esteja esgotada a
via de recurso às autoridades públicas que, nesta matéria, detém o monopólio de
acção.
O artigo 271º, nr.3 da CRP consagra um direito de resistência passivo, ao afirmar que
cessa o dever de obediência para os funcionários e agente do Estado, sempre que lhes
sejam emanadas ordens ou instruções que impliquem a prática de um qualquer crime.

2.2. Direito de petição -

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De um modo geral, entende-se por direito de petição (artigo 52º, nr.1 da CRP) a
faculdade reconhecida a indivíduo ou grupo de indivíduos de se dirigir a quaisquer
autoridades públicas apresentando petições, representações, reclamações ou queixas
destinadas á defesa dos seus direitos, da constituição, das leis ou do interesse geral. Esta
faculdade tanto se faz sentir junto dos órgãos de soberania (artigo 52º, nr.1 CRP) como
do Provedor de Justiça (artigo 23º da CRP).

2.3. Direito à autodeterminação informativa -

O segredo não é compatível com os "direitos, liberdades e garantias" do homem. Ao


segredo acrescenta-se um novo perigo para o cidadão: "a digitalização dos direitos
fundamentais". Contrapondo-se à ideia de arcana praxis, tendo hoje a ganhar contornos
um direito geral à autodeterminação informativa que se traduz, fundamentalmente, na
faculdade de o particular determinar e controlar a utilização dos seus dados pessoais
(artigo 35º da CRP). A Constituição brasileira consagra já mecanismo nos termos do
qual é viabilizada a defesa dos cidadão contra utilizações informáticas abusivas
("Habeas data").

2.4. Direito ao arquivo aberto -

O artigo 268º, nr.1 da CRP estabelece expressamente o direito ao arquivo aberto, ou


seja, o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos. Note-se que a
Constituição não faz depender a liberdade de acesso aos documentos administrativos da
existência de um interesse pessoas. Salvaguardados os casos de documentos
nominativos ou de documentos reservados por motivos de segurança ou de justiça, a
ideia de democracia administrativa aponta não só para um direito de acesso aos
arquivos e registos públicos para defesa de direitos individuais, mas também para um
direito a saber (Acórdão do TC 156/92) o que se passa no âmbito dos esquemas
político-burocráticos, possibilitando ao cidadão o acesso a dossiers, relatórios, actas,
estudos, estatísticas, directivas, instruções, circulares e notas (artigo 61º do Código do
procedimento Administrativo).

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3. PROBLEMAS ESPECÍFICOS NA PROTECÇÃO DOS DIREITOS


ECONÓMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS -

Tudo o que disse até agora tem especial aderência no quer toca aos chamados "direitos,
liberdades e garantias", dada a determinidade constitucional de que as respectivas
normas constitucionais estão eivadas. Os "direitos sociais" são, como vimos já" direitos
a prestações estaduais, embora possam encerrar, negativamente, a lógica subjacente aos
"direitos, liberdades e garantias". Coloca-se também o problema de saber se os direitos
sociais exigem a garantia de um núcleo essencial como condição do mínimo de
existência. Para GOMES CANOTILHO, o Estado deve assegurar um standard
mínimo que assegure a tutela dos "direitos sociais", fundando a sua ideia no facto da
Revisão de 1997 ter (intencionalmente) modificado a epígrafe do artigo 63º da CRP
para Segurança social e solidariedade (antes era apenas Segurança social). Diz este
Autor que os "direitos sociais" realizam-se através de políticas públicas orientadas
segundo o princípio básico e estruturante da solidariedade social. A natureza destas
normas-tarefa apontam para um verdadeiro dever do legislador de dar operacionalidade
prática a estas imposições sob pena de inconstitucionalidade por omissão (artigo 283º
da CRP). Note-se, como vimos já anteriormente, esta posição não é sufragada pela
generalidade da doutrina, designadamente por MANULEL VAZ.
Nos casos mais significativos em que o Tribunal Constitucional foi chamado a
pronunciar-se sobre "direitos sociais" em sede de fiscalização abstracta - Caso do
Serviço Nacional de Saúde (Acórdão 39/84), Caso do Direito à Habitação (Acórdão
151/92) e Caso das Propinas Universitárias (Acórdão 148/94) - considerou sempre que
as normas consagradoras de "direitos sociais" podem e devem servir de parâmetro de
controlo judicial, mas elas ficam dependentes, na sua exacta configuração e
concretização, de uma intervenção legislativa conformadora e concretizadora, só
então adquirindo plena eficácia e exequibilidade.
Para GOMES CANOTILHO esta jurisprudência não é de todo aceitável: as
concretizações legislativas de direitos derivados a prestações indissociáveis da
realização efectiva dos "direitos sociais" assentam, na prática, em critérios de
oportunidade técnico-financeira e política. Na perspectiva deste Autor, o Tribunal
deve, por um lado, controlar se a actuação legislativa socialmente densificadora de
"direitos sociais" se pauta por critérios reais de realização graduação e não meros

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indicadores de iniciativas legislativas e, por outro lado, o Tribunal não pode abster-se
de um controlo jurídico de razoabilidade fundado no princípio da igualdade.

4. PROTECÇÃO INTERNACIONAL -

Não obstante a tradição de algumas dimensões internacionais na protecção dos direitos


fundamentais, o direito internacional clássico considerava o "indivíduo" como
"estranho" ao processo dialéctico-normativo deste direito. Hoje, a introdução dos
standards dos direitos do homem no direito internacional - garantia de defesa de um
determinado standard para todos os homens - obrigou ao desenvolvimento de um
direito internacional individualmente referenciado. (exemplo: a recente criação de um
Tribunal Criminal permanente). A salvaguarda destes direitos está hoje confiada a
convenções regionais, nas quais se destaca a Convenção Europeia dos Direitos do
Homem e para a qual os cidadãos portugueses podem recorrer individualmente (o que,
aliás, sucede com relativa frequência e quase sempre pelo mesmo motivo: a morosidade
dos procedimentos judiciais, hoje objecto de protecção constitucional no artigo 20º,
nr.4 da CRP). Também o direito comunitário revela hoje preocupações neste domínio.
Para MANUEL VAZ, contudo, ainda são as constituições nacionais que melhor
salvaguardam os direitos fundamentais, não só porque é no interior dos próprios
Estado que tem lugar as violações dos direitos fundamentais, mas também porque
não existe uma verdadeira ordem política internacionalmente institucionalizada.

PARTE II - OS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM ESPECIAL

1. DIREITOS E GARANTIAS DOS ADMINISTRADOS -

1.1. Os direitos e garantias dos administrados na Constituição de 1976 -

Na versão originária da Constituição, os direitos e garantias dos administrados


estavam previstos no artigo 269º e resumiam-se ao direito de ser informado pela

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Administração sobre o andamento do procedimentos, ao direito de conhecer as


decisões que afectassem o cidadão e à garantia de recurso contencioso.
A Revisão Constitucional de 1982 veio a consagrar aqueles direitos e garantias no
artigo 268º, alargando o número de direitos e o âmbito daqueles já antes plasmados.
Assim, tornou-se obrigatória a notificação aos interessados dos actos administrativos
de eficácia externa, bem como a sua fundamentação quando afectem direitos ou
interesses legalmente protegidos, foi aditada à garantia de recurso a todo ao acto
definitivo e executório a expressão independentemente da sua forma e a garantia de
áreas de plena jurisdição para além do recurso contencioso de anulação (obter o
reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido).
Com a Revisão Constitucional de 1989, de novo, se introduziram modificações neste
âmbito. Em termos contenciosos, o maior ganho foi por certo a consagração da
plenitude do acesso à justiça administrativa. Foi introduzido o direito de acesso a
arquivos e registos administrativos, substituída a exigência de definitividade e
executoriedade dos actos administrativos para efeitos de recorribilidade pela de lesão de
direitos ou interesses legalmente protegidos. Talvez por tudo isto, a Revisão de 1989
foi das mais relevantes nesta matéria porque aperfeiçoou e acrescentou posições
jurídicas subjectivas no domínio dos direitos e garantias dos administrados.
Por último, a Revisão Constitucional de 1997 retirou a expressão "dos cidadãos" ao
artigo 268º, nr.3 (referentes à notificação e fundamentação), reuniu no actual nr.4 os
anterior nrs.4 e 5 (ou seja, prevê o reconhecimento dos direitos ou interesses
legalmente protegidos, a impugnação de quaisquer actos administrativos lesivos
daqueles direitos ou interesses, bem como a prática dos actos administrativos devidos e
a adopção de medidas cautelares). Foi aditado o nr.5 prevendo a impugnação de
normas administrativas com eficácia externa.
As sucessivas Revisões Constitucionais, com os sucessivos aperfeiçoamentos, foram um
sinal de crescimento democrático e de reconhecimento da necessidade de acautelar os
direitos daqueles que entram em relação com esse poder gigantesco que é a
Administração Pública. Nas sugestivas palavras de VIEIRA DE ANDRADE, o
"sistema de justiça administrativa continua a evoluir no sentido do aperfeiçoamento
das garantias das posições jurídicas substantivas dos cidadãos", acentuando-se
"decisivamente a dimensão subjectivista do contencioso administrativo".
O legislador constituinte, como é já sabido, não estabeleceu um princípio de tipicidade
para os chamados "direitos, liberdades e garantias" (artigo 16º da CRP). Com efeito,

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nos termos do artigo 17º da CRP, o regime daqueles "direitos, liberdades e garantias"
aplica-se, não só aos enunciados no título II, bem como aos demais direitos
fundamentais de natureza análoga. Ora, justamente, os direitos e garantias emergentes
do artigo 268º da CRP, quer para a jurisprudência constitucional quer para a
jurisprudência administrativa, configuram aquela natureza análoga, na medida em que a
estrutura preceptiva da norma em apreço possui determinidade constitucional, ou
seja, o legislador constituinte entendeu que os cidadãos são, desde logo, os seus directos
destinatários.
São as seguintes as posições subjectivas reconhecidas aos administrados no artigo 268º
da CRP:
a) Direito à informação sobre o andamento dos processos em que sejam directamente
interessados, bem como o direito a conhecer as decisões que lhes digam respeito;
b) Direito de acesso aos arquivos e registos administrativos (princípio do arquivo
aberto);
c) O dever de notificar e fundamentar os actos administrativos;
d) A garantia de impugnação de actos administrativos que lesem direitos ou
interesses, independentemente da sua forma;
e) A plenitude de acesso à justiça administrativa, com o direito ao reconhecimento
dos direitos ou interesses legalmente protegidos, a determinação de prática de
actos, a impugnação de normas administrativas e a adopção de medidas
cautelares.

1.2. O Tribunal Constitucional e o controlo da constitucionalidade -

No nosso sistema constitucional, o Tribunal Constitucional tem um papel importante ao


nível dos direitos fundamentais. É através do controlo da constitucionalidade das
normas, nas suas variadas formas, que se efectiva a tutela dos direitos fundamentais
dos cidadãos. A nossa ordem constitucional não contém ainda nenhum mecanismo
específico destinado à protecção dos direitos fundamentais, à semelhança do que
acontece, designadamente, com a queixa constitucional no direito alemão, ou recurso de
amparo no direito espanhol. Contudo, a Revisão Constitucional de 1997 introduziu no
artigo 20º um novo número (nr.5), cuja formulação vaga e ambígua, deixa a ténue
esperança da regulamentação de um mecanismo semelhante àqueles, mas que, contudo,
ainda não aconteceu.

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Os cidadãos não tem, pois, ao seu alcance um mecanismo directo de tutela autónoma
dos seus direitos. Dispõem apenas do mecanismo da fiscalização concreta que, pelas
regras processuais estabelecidas, lhes poderá permitir aceder ao tribunal Constitucional
em busca de amparo. Todavia, tal implica a existência de um processo judicial
concreto em tribunal em que possam - se for relevante para a decisão da questão de
fundo - levantar a questão de inconstitucionalidade e, por via de recurso fazer intervir
o Tribunal Constitucional. na doutrrina portuguesa, vozes autorizadas como VIEIRA
DE ANDRADE, CARDOSO DA COSTA e BARBOSA DE MELO sustentaram que
tal recurso assumiria a natureza de um "recurso de amparo", fundando as respectivas
teses na motivação subjacente a tal recurso: a violação de "direitos, liberdades e
garantias" dos cidadãos. GOMES CANOTILHO manifestou-se contra esta opinião,
sustentando que se tal fosse a intenção do legislador constituinte, então o texto
constitucional haveria de ter consagrado, não um recurso no âmbito de um processo de
fiscalização concreta de normas jurídicas, mas um genuíno processo directo e que
abrangesse, à semelhança de outras ordens jurídicas já aqui citadas, os demais actos
públicos lesivos de direitos do cidadão. JORGE MIRANDA sustenta uma posição
intermédia, defendendo o "carácter misto" do referido recurso. Salienta, em
consequência, a coexistência das funções de defesa de direitos - função subjectiva - e a
defesa da integridade da ordem jurídica.
Porém, o Tribunal Constitucional dispõe de outros mecanismos de fiscalização da
constitucionalidade. Não serão os que, de mais perto, tutelarão as posições subjectivas
individuais, mas atingirão ainda esse objectivo, conquanto de forma indirecta.
Referimo-nos aos processos de fiscalização sucessiva abstracta e por omissão. Como
salienta VIEIRA DE ANDRADE, é "no campo da fiscalização sucessiva abstracta que
se opõem frontalmente a legitimidade da justiça constitucional e a legitimidade da
maioria legislativa", sendo certo que os poderes do Tribunal Constitucional, nesta sede,
são "poderes de destruição maciça".
Assim sendo, ainda que indirectamente, também se poderá estar a proteger os direitos
fundamentais, ao retirar da ordem jurídica, de forma definitiva, normas que possam
constituir ameaça para tais direitos.

NOTA: para um estudo mais profundo deste capítulo relativo aos direitos e garantias
do administrados, consultar o artigo da Dra. Raquel Carvalho, no Livro Juris et de

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Jure - Nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa


- Porto, páginas 785 / 822.

JANEIRO DE 2000
JOSÉ RIJO

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