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Produção cultural é diferente de reprodução cultural

é diferente de reprodução social é diferente de reprodução


Paul Willis • • . • • • • • . . . • . • • . • . . • • • . . • . • . • • • • . • . • . • • . . . . . • • • . • • • 3

Polftica educacional e Estado. O que se espera do Estado


enquanto investimento na educação
Carlos Roberto Jamil Cury • • • . . . • • • • . • . • . • . . • • • . . • • . • • . . . • . . . • • • • 19

Prendas e antiprendas. Educando a mulher gaúcha


Guacira Lopes Louro • • • • • • • • • • . • • . . . • . • • . . • • . • • • • • • • • . • . . . • • • • • 25

uÉ impossível entender a escola sem uma teoria


da divisão sexual do trabalho ... "

Entrevista com Michael W. Apple • . • • • . . • . . . • . . • • • • • • • • . • • . • • • . • • • • • 57

A evolução das idéias pedagógicas no Brasil republicano


Paulo Ghiraldelli ir.. • • • • • • . . • • • . • • . • • • . • • • • . • . • • • . • • . . . • . • • • • • • 69

Fatores biográficos infIuenciantes na criatividade


da mulher brasileira
Solange Wechsler e Maria C.R.F. Guerreiro • • • . • • • • • • • . • • • • • • • • • • • . • • • • 81

Documento conclusivo do 11 Encontro de Revistas de Educação


• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 87

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Caxias do Sul

Capa: Desenho de Santiago

V. lI, n2 2, julho/dezembro de 1986 Assinaturas e números avulsos: Pedidos de assi­


naturas e números avulsos devem ser enviados ao
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da Faculdade de Educação da Universidade Federal em nome de Educação e Realidade:
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Preços para 1987:
Secretária: Jacy Busato Assinatura - Cz$ 80,00
Número avulso - Cz$ 50,00
Projeto Gráfico: Abnel de Sousa Lima Filho
(Central de Produções - FACED/UFRGS) ISSN 0100-3143
mbora bastante conhecido nos Padrões culturais e atividades e ati­

E
círculos anglo-saxônicos de So­ tudes são desenvolvidos em conjun­
ciologia dn Educação, Paul Wil­ ção precisa com exigências reais e são
lis é praticamente desconhecido produzidos e reproduzidos em cada
no Brasil. Ligado ao importante Centre for geração por suas próprias boas ra­
Contemporary Cultural Studies, da Universi­ zões. Padrões de desenvolvimento de
dade de Binninghan, Inglaterra, Pilul Willis força de trabalho para um tipo espe­
tornou-se bastante conhecido a partir dn pu­ cífico de aplicação à indústria deve
blicação do livro Learning to Labour - How em cada geração ser obtido, desen­
Working Class Kids Get Working Class Jobs volvido e trabalhado através de luta e
(Farnborough, Saxon House, 1977). Nesse contestação. Se certas características
livro Willis descreve e discute os resultados desta reprodução contínua e deste ar­
de uma etnografia realizadn com rapazes de ranjo sempre renovadamente bata­
clnsse trabalhadora, alunos de uma escola lhado mostram um grau de continui­
secundária inglesa, na S/Ul passagem para o dade visível ao longo do tempo, isto
mundo do trabalho. A etnografia é então não nos deve levar a construir leis e
analisada, usando o conceito tie Produção dinâmicas férreas de socialização a
Cultural, elaborado por Willis, em contrapo­ partir desta mera sucessão de coisas.
sição aos de Reprodução Cultural e Social. Learning to labuor (p . 183)
No artigo que agora publicamos, Willis dis­
cute esse e outros conceitos. Introdução e esboço dos temas principais
Teoricamente, Willis filia-se à linha dos
estudos culturais, de origem britânica e re­ Learning to labour tem sido tomado ou
presentadn por autores como Richard Hog­ como um mero livro empírico ou como um
gart, E.P. Thompson e Raymond Williams. exemplo de um enfoque Neo-Marxista da
Os teóricos filiados a essa corrente procuram educação a explicar a estabilidade e a exten­
desenvolver a análise do papel da esfera são das sociedades capitalistas através cie
cultural, a partir de um ponto-de-vista mar­ uma noção geral de Reprodução. Ambas as
xista (ver: Johnson. R, What is Cultural Stu­ visões são, em aspectos importantes, equivo­
dies Anyway? CCCS, 1983, e também: cadas. Este artigo é uma tentativa de recu­
CCCS. Da Ideologia, Rio, Zahar, 1980). perar o projeto intelectual do livro - o reco­
Este artigo foi traduzido de INTER­ nhecimento de formas de Produção Cultural
CHANGE, 12(2/3), 1981: 48-67. Agradece­ - e de traçar sua contribuição específica para
mos a gentileza dos editores desse periódico, a teoria educacional, talvez mais adequada­
que prontamente nos concederam a permis­ mente agora, através de uma revisão crítica
são para publicá-lo no Brasil. Traduzido por de noções supostamente similares de Repro­
Tomaz Tadeu da Silva. dução.1

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Um dos prohlemas com a noção geral de campo de uma auto-construção colctiva
"Reprodução" é a maneira pela qual coisas criativa nas classes suhordinadas, alguns dos
completamente diferentes são reunidas: des­ quais processos eu designo pela minha catc­
de a reprodução diária da força de trahalho, goria Produção Cultural. Agora, pode muito
passando pela reprodução hiológica e a pro­ bem ser o caso - na verdade, é a tese central
dução de pessoas dotadas de gênero, até a do meu artigo - de que seja impossível ar­
substituição da força de trabalho através das gumentar em favor de uma extensão isomé­
gerações; freqüentemente, de forma incom­ trica de uma relação sem implicar algo da
preensível, através da mediação aparente natureza dos grupos cujas 'presenças matc­
dessas coisas, desde a reprodução simples do riais constituem a relação. Esta é a razão pela
circuito do capital até a reprodução das rela­ qual o conceito de Reproduçiio Social está
ções sociais que são uma condição para a realmente num nível muito alto de ahstração
acumulação capitalista continuada. e especifica concretamente muito pouco.
Obviamente, a muito ampliada categoria Mas a omissão desta qualifica,,'ão vastamente
de Reprodução designa prohlemas muito im­ importante em teorias "totais" fáceis de Re­
portantes na compreensão da totalidade so­ produçdo Social torna-as, realmente, por
cial e é por isto que ela é solicitada a dar falta, uma teoria frágil e defeituosa da sim­
tanta coisa de que é incapaz. Mas a mistura ples formação passiva de ambas as classes
indiscriminada de muitas problemáticas e mas especialmente dos grupos dominados - a
seus objetos próprios sob a categoria Repro­ classe trabalhadora. Uma relação social é re­
dução serve para confundir sua natureza constituída, parece, porque ambos os grupos
particular e permite que todas sejam conde­ permanecem os mesmos através do tempo e
nadas através da crítica de qualquer uma das gerações. Aí é que entram teorias alta­
delas. No mínimo, eu espero argumentar que mente emasculadas de formação ideológica,
distinções devem ser feitas entre Produção de transmissão não dialética e de dominação
Cultural. Reprodução Cultural e Reprodução bem sucedida, ligadas a noções muito abs­
Social e que isto nos permitirá fazer distin­ tratamente concebidas de "estrutura", para
ções qualitativas reais entre uma série de po­ dar conta disto.
sições derivadas de Althusser, Bowles c Introduzindo a base das outras catego­
Gintis, Bourdieu, Bernstein e finalmente, é rias que eu estarei usando neste artigo, eu
claro, Willis. quero argumentar que, a fim de constituir
Antes de mais nada, entretanto, a fim de uma relação social reproduzida como relação
especificar ma.is exatamente porque estas di­ dinâmica e contestada. nós devemos reco­
ferentes categorias são necessárias, pode ser nhecer explicitamente as lógicas algo inde­
útil distinguir firmemente entre duas pro­ pendentes do que estou chamando Produção
blemáticas básicas que cobrem de fato (em­ Cultural. os diferentes significados que elas
bora, como veremos, em níveis bastante di­ jogam através das relações sociais, e os pro­
ferentes de abstração) muitos dos mesmos cessos ideológicos e limitantes que produzem
itens mas que devem ser consideradas sepa­ a Reprodução Cultural a partir da Produção
radamente. Refiro-me à diferença entre o e que se ligam, portanto, com Reprodução
que podemos chamar a reprodução biológica Social.
e intergeracional de pessoas dotádas de gê­ Embora eu vá ampliar isto mais tarde
nero, na família - vamos chamar a isto sim­ (com, eu espero, a maior precisão advinda de
plesmente Reprodução - e Reprodução So­ uma crítica de outras teorias de Reprodu­
cial. Eu uso Reprodução Social para designar ção), o argumento aqui é sugerir que para
a substituição daquela relação entre as clas­ uma noção propriamente dialética de Repro­
ses (isto é, não as classes em si) que é neces­ dução Social. nosso ponto de partida deve
sária para a continuação do modo capitalista estar no milieu cultural, nas práticas e produ­
de produção. ção materiais, nas vidas em seu contexto
Infelizmente, a proximidade das pro­ histórico, no desdobramento cotidiano da
blemáticas sugere uma homologia danosa na existência e da consciência prática. Nós de­
segunda. A substituição física de corpos - vemos investigar a forma das produções
nós podemos dizer dos mesmos ou de corpos culturais coletivas vividas que ocorrem no
similares - em Reprodução torna-se a subs­ terreno determinado e contraditório do que é
tituição de classes inteiras em Re-Produção herdado e do que é presentemente sofrido
Social como a explicação para a forma como através de imposição, mas em uma forma que
uma relação entre classes é substituída. Há é, não obstante, criativa e ativa. Tais produ­
implicada uma transmissão simples, não so­ ções culturais são experienciadas como novas
mente da relação, mas também da natureza por cada geração, grupo ou pessoa. Isto é,
detalhada das próprias classes. Mas, natural­ então, de forma geral, o que eu quero cha­
mente, essas coisas, são, de fato, coisas muito mar de Produção Cultural. Reprodução
diferentes, e a elisão não leva em conta o Cultural designa como, a partir daqui, atra­
continente inteiro de história, contestação vés de processo's culturais e ideológicos
c luta c, de forma importante para mim, o complexos, nós podemos perceher certas

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�aracterísticas essenciais como sendo contí­ lho. Numa inversão amedrontante do mito de
nuas com, e como tendendo a reproduzir, Medusa, os teóriços da Reprodução vol­
formas limitantes (racismo, sexismo, manua­ tam-se para a Produção Cultural e a trans­
Iismo, o privado, a autoridade) que as ante­ formam, não a si mesmos, em pedra. Repro­
cedem mas que são agora tão subjetivamente dução Social deveria nos direcionar para os
alojadas que fornecem base suficiente para elementos limitados, básicos, verdadeira­
atitudes e decisões reais para permitirem a mente abert9s, prosaicos, ordinários, da
manutenção da produção capitalista. conjunção entre Produção Cultural e a ma­
Para os nossos propósitos aqui, eu quero nutenção mínima da relação social capitalista
enfatizar a distinção clara entre Produção - não a uma teoria grandiosa de geração so­
Cultural e Reprodução Social. A última é cial que é sempre muito mais que isto. E se
meramente uma porção dos resultados da Produção Cultural, na escola, por exemplo,
primeira e não especifica, de forma inversa, a aponta para algumas,das formas nas quais
natureza da primeira que, em certos ele­ Reprodução Social é finalmente alcançada,
mentos essenciais, permanece livre, larga em sob a rubrica Reprodução Social nós deve­
amplitude e escopo, bastante não imaginada mos incluir também vários outros processos
nos sonhos da Reprodução Social. Reprodu­ locais: a condição de trabalho assalariado em
ção Social direciona-nos somente para ca­ si mesma, o processo de trabalho, o estado e
racterísticas gerais da relação e não para as seu órgãos, a polícia, os meios de comunica­
características internas de uma classe ou para ção e as instituições de lazer.
uma especificidade exata de "condições" - e Tendo assim separado a noção de Pro­
para todos os perigos do funcionalismo que dução Cultural da de Reprodução Social,
se originam daí. Uma gama de possibilidades pode ser útil distinguir a primeira do que eu
dentro de Produção e Reprodução Cultural, chamei anteriormente simplesmente Repro­
com especificações bastante diferentes de dução - a reprodução biológica e intergera­
grupos socias, suas qualidades e sua nature­ cional de pessoas dotadas de gênero, na fa­
za, pode realizar esta relação social geral mília. Produção Cultural depende do gênero,
abstrata, embora algumas, claramente, não está embutida em, mas não é a mesma coisa
possam. que Reprodução. Isto é assim, principal­
É absurdo, em minha opinião, pensar mente porque a última está propriamente lo­
que algo chamado capital possa coerente­ calizada na famma - go'(ernada por relações
mente projetar sua lista de condições sociais e distinções e focalizada nos processos cole­
rígidas - estas e não outras; com menor ra­ tivos de relações fisicamente adultas nos
zão ainda pode ele imprimi-Ias numa classe grupos de amigos.
supostamente maleável. Isto não equivale a Como Reprodução Cultural contribui
dizer que o modo capitalista de produção não para o que eu defini como Reprodução So­
ponha certos limites para a Produção Cultu­ cial - o campo principal de análise aqui - é
ralou que suas formas históricas de ajusta­ principalmente uma questão de relações de
mento com processos culturais reais não for­ classe, embora Produção Cultural pudesse
neçam presentemente influências formativas igualmente muito bem relacionar-se a Re­
poderosas. Ademais, processos ideológicos, produção como, digamos, uma "condição"
indubitavelmente, ajudam a produzir Repro­ de recrutamento na, e manutenção da famí­
dução Cultural a partir de Produção Cultu­ lia. Embora nossas três categorias aqui
ra l e certas caracteósticas elementares da
, - Produção Cultural, Reprodução Social e
lógica do processo capitalista de trabalho Reprodução - certament� partilhem muitas
deixam sua marca material, elas mesmas, so­ coisas, nós não resolvemos os problemas ao
bre significados e experiências vividos. Mas juntar as três coisas ou ao selecionar de tal
isto equivale a dizer que tudo isto não per­ mistura somente aquilo que serve ao nosso
tence à ordem de uma especificação ou de­ propósito: ora para tratar da força de traba­
terminação direta. O capital não pode real­ lho, ora de pessoas dotadas de gênero, ora
mente "saber" quais são as condições cultu­ ainda como qualquer um desses aceita o tra­
rais e sociais fundamentais de sua domina­ balho assalariado ou a família patriarcal. O
ção, em parte porque elas estão sempre mu­ que muitas categorias de Produção Cultural
dando - com o auxílio de categorias, signifi­ e Reprodução fornecem não é a geração adi­
caGos e substâncias fornecidos, freqüente­ cional de categorias formalistas (embora
mente, através da luta, de baixo. O capital possam correr este risco) mas uma indicação
sempre aceitará novos arranjos que o permi­ (devidamente moldada pela etnografia e, no
tam funcionar, e podemos muito bem dizer primeiro caso, gerada a partir dela) de pro­
que agora, por exemplo, as escolas junto com cessos criativos, coletivos em locais particu­
outros locais estão de forma "cega" e "pro­ lares e em estágios humanos particulares.
fana" forjando novos arranjos que outra ge­ Estes processos envolvem ação humana e
ração de teóricos da reprodução tomarão atividade coletiva, incluindo talvez como sua
como sendo as rígidas condições para o fun­ atividade mais específica não um posiciona­
ci<;mamento do processo capitalista de traba- mento passivo em tipos discretos de Repro-

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dução (istO' é, classe O'U gênero), mas cO'mbi­ prO'cesso humanístico. A relação socüil real
nações profanas e inversões de recursO's tO'­ de dominação é efetivada sob a rubrica de
madO's a partir dessas cO'isas; nãO' O' acolhi­ uma relaçãO' sO'cial ideal. IstO' oferece um
mento impO'tente de cO'ntradições, mas tra­ terrel}O' fértil para O' interesse ReprodutivO'.
balhO' ativO' sO'bre elas. E, naturalmente, Althusser (no celebra­
Produção Cultural não deve ser reduzi­ dO' ensaio de 1972, Ideologia e Aparelhos
da, numa direçãO', a Reprodução Social, nem, Ideológicos de Estado) quem desenvolve esse
nO'utra direçãO', a Reprodução, embO'ra O'S argumento na sua fO'rma mais clara e sO'fisti­
termO's de Reprodução Cultural mdubitavel­ cada. Seus argumentO's são pO'r demais co­
mente O'riginem-se em parte a partir de rela­ ,nhecidO's para esbO'çá-los em detalhe. Basi­
ções de família/patriarcais de pessoas dO'ta­ camente, ele reclama para a educação o papel
das de gênerO', tantO' cO'mo eles se O'riginam privilegiado na ReproduçãO'. A educação
das relações imediatas de classe e das rela­ fO'rnece as habilidades necessárias para a
ções mental/manual da escO'la. O fO'rmalismo prO'duçãO', as ideologias hierarquizadas ne­
estéril de mapear PatriarcadO's e CapitalismO's cessárias para a divisão sO'cial do trabalho,
separadO's e os seus pontos de intersecçãO' e O' milieu necessáriO' para a real formação
deve dar lugar a um senso dinâmicO' de comO' das subjetividades através das celebradas
ambos são tO'mados na prática criativa da "relações imaginárias dos indivíduos com
produção e da reprO'dução da vida sO'cial e suas condições reais de existência".
material em locais determinados, e como istO'
- e nãO' seus própriO's formalismos, ajuda a Ora, cO'mo uma afirmação limitada a um
reproduzir ambos. certO' nível de abstraçãO', isto servirá de fO'r­
Eu esperO' que alguns desses pontO's tor­ ma magnífica para alguns propósitos e é um
nem-se mais claros em relação a uma revisãO' avançO' muito grande em relaçãO' às posições
crítica das principais teorias de Repwdução liberais. Ela indica que, a despeitO' das cO'n­
no setor da educação. fusas ambições em contráriO' na esfera edu­
cacional, uma relaçãO' social está continua­
mente sendO' efetivada para O' prO'pósito de
continuação da fO'rmação da capital. Mas, de
Teorias de Reprodução certa fO'rma, isto é tautológicO' - nós sabemos
a partir da evidência ante nO'ssos olhos que o
Naturalmente, o local principal focaliza­ capitalismO' continua e que a maioria das
do pelas teO'rias de ReprO'duçãO" (> a escO'la. crianças vai à escO'la. LogO', as escO'las estão
De muitas formas, a nO'tável inspiraçãO' em implicadas na formação da relação social que
que se baseia todO' O' cO'nfuso conglomerado é uma cO'ndiçãO' para o funciO'namento do ca­
de perspectivas é que existem cO'ndições ge­ pitalismo. Para uma explicaçãO' que evite este
rais extra-produtivas para manutençãO' do formalismO' e racionalismO', nós necessitamos
capital. As fábricas trabalham não com tra­ uma noção da formaçãO' real das classes - em
balho abstrato maS cO'm cO'rpos quentes, con­ relaçãO' umas às O'utras, certamente, mas na
cretos, sexuados, de idade, gênero e raça qual, não O'bstante, cada uma tem sua própria
determinados (dormidos, alimentadO's, com existência material profana e, se assim O'
humO'res determinadO's). Os domínios que prefere, ontologia. Nós precisamos levar em
prO'duzem essas características cO'ncretas ne­ consideraçãO' o que eu estou chamando de
cessárias são mais O'U menO's separados da Produção Cultural e Reprodução Cultural. O
Produção, mas devem, se somO's Marxistas, que dá a Althusser sua plausível integridade
ser "questionados" pO'r sua cO'nexãO'. CO'mo é, na verdade, uma teoria implícita O'u alta­
fO'rnecem eles as cO'ndições para O' capital e mente simplista dessas cO'isas. A explicação
dentro' de quais limites? A perspectiva da implícita do que está "efetuandO''' a relaçãO'
ReproduçãO', com seus empréstimos dO' dO'­ do "lado" da -classe trabalhadO'ra descreve a
mínio patriarcal, agudiza essas questões aO' classe trabalhadora como tO'talmente domi­
cO'lO'car uma questãO' quase atemporal, ahis­ nada e, de fato, tO'talmente "interpelada"
tórica, cO'mO' se as gerações fossem inter­ pelo capital. Ela é formada por Althusser,
rompidas: CO'mO' a nova geração é colocada numa palavra, sem uma palavra sO'bre sua
em relaçãO' aO' capital? Claramente a educa­ própria Produção Cultural. Naturalmente
çãO' toma-se o IO'cal importante para isto, isto fornece uma contradição enorme para
nem que fosse sO'mente pO'rque este é O' IO'cal sua própria teO'ria uma vez que a glorificada
onde as crianças estãO'. TO'rna-se um IO'cal "autonO'mia" da estrutura educacional, quan­
privilegiadO' também pO'rque, como a sO'ciO'­ do chega à cO'ncretude das partes queformam
logia convencional da educação recO'nhece, a relação reduz os agentes humanO's a porta­
há claras desigualdades de classe nos resulta­ dO'res de relações estruturais. A autO'nomia
dos educaciO'nais mesmo, O'U talvez especial­ relativa da esfera educacional é O'btida tãO'
mente, onde (como na "esperança liberal" sO'mente cO'ncedendO' autonO'mia abstrata a
esboçada, por BO'wles e Gintis) a escola pro­ uma relaçãO' social e nenhuma autonO'mia aos
mete O' O'postO' - a saber, igualdade e .auto- agentes constitutivos nO's quais, e através dos

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luais, somente, a relação pode ser formada. prostrada, com suas experiências materiais,
�sta é a ilusão do "relativo" na formulação. formas culturais e sua autonomia mais pro­
Pode ser sugerido que o que está no fundas recrutadas e baseadas nas categorias
:entro do problema aqui é a presunção es­ diretamente manipulativas do capital. Nós
ruturalista da economia concebida como nos perguntamos de onde os indivíduos, as
:endo constituída de lugares "vazios" pré­ classes ou grupos virão até mesmo para ou­
·dados que são então simplesmente "preen­ vir, sem falar de entender, a bela convocação
:hidos" por agentes aparelhados com as para uma prática pedagógica socialista com a
;ubjetividades e as ideologias adequadas. qual Bowles e Giritis concluem seu livro.
:"onge de ser o resultado da contestação e Eles certamente não podem vir do mundo da
uta a respeito de significado e definição - "correspondência": as duas metades da aná­
lma de cujas fontes, do "lado" da clásse tra­ lise não se encaixam.
Jalhadora, é o que eu estou chamando Pro­ Naturalmente o trabalho de Bowles e
iução Cultural - a estrutura é um dado hi­ Gintis é imensamente importante e altamente
?ostasiado num mundo um tanto quanto a­ impressionante em seu escopo empírico,
·social. Os fornecidos contornos absolutos amplitude e seriedade e é concreto numa
jos "lugares" são para serem preenchidos forma em que a contribuição de Althusser
por agentes que não partilham princípio co­ não é. Ele também originou-se a partir do
letivo algum próprio de variação ou conti­ .ativismo ao qual ajudou a dar um foco, e
nuidade. Nós temos uma teoria da formação forneceu o referencial mais básico, materia­
social!cultural da classe trabalhadora que age lista, possibilitando muito do trabalho crítico
através da passividade e através da estrutura que se seguiu.
portadora de seus agentes. Sem noção algu­ Não obstante as críticas são bem conhe­
ma da estrutura como sendo um meio con­ cidas. Elas apontam para a acusação geral da
testado tanto como o resultado de um pro­ falta de qualquer noção de (para usar os
cesso social, a Reprodução torna-se um gol­ meus termos) de Produção Cultural e Re­
pe de mão mecanizado num, oh, vaudeville produção Cultural na classe dominada.
teórico tão sério! Uma estrutura pré-dada e A noção de "correspondência" omite a
pré-ocupada de produção e de relações de possibilidade de resistência. Ao fazer isto, ela
classe é simplesmente substituída - agora vo­ ignora a constituição das identidades operá­
cê a vê, agora não, agora você a vê. Ação rias, à parte de sua expressão ideal na imagi­
humana, luta, mudança - aquelas coisas que nação burguesa. Em outras palavras, não le­
ao menos parcialmente, podemos dizer, aju­ va em conta alguma o efeito independente da
dam a produzir a "estrutura", para começo classe trabalhadora na continuação fmal da
de conversa - são banidas na pré-especifica­ relação social resultante. "Correspondência"
ção para sempre dada de "lugares vazios". omite consciência e cultura como momentos
Certamente Althusser nos leva em dirC\ião ao constitutivos do processo social e trata a
importante equilíbrio da famosa formulação ação humana, aparentemente, como a conse­
"mas eles não a fazem (a história) da forma qüência de "estruturas" um tanto quanto
exata que lhes agrada, eles não a fazem sob inumanas e separadas. Desta forma a análise
circunstâncias escolhidas por eles mesmos, é incapaz de compreender os enormes e,
mas sob circunstâncias encontradas, dadas presentemente evidentes, "desajustes" entre
e transmitidas diretamente do passado" a economia e a educação e acha desnecessá­
(Marx, 18 Brumário). Mas onde está a cláu­ rio comprometer a si mesma com uma análise
sula principal do argumento? Onde está "Os real do que acontece nas escolas, na varieda­
homens fazem sua própria história"? Esta de de formas nas quais mensagens educacio­
omissão significa tomar as cinzas, não o fo­ nais são decodificadas em grupos particula­
go, da hiStória. res de estudantes.
De uma perspectiva "estruturalista" di­
ferente, Bowles e Gintis (1976) operam a A análise pode convenientemente adotar
partir de um paradigma similar das relações muito do trabalho estatístico convencional e
sociais como uma condição necessária para a da apologética burguesa nesta área porque a
acumulação de capital. Aqui nós somos con­ análise está, em um certo sentido, confir­
frontados não com a operação ideológica dos mando o que os poderosos acreditanl: que
AlE, mas com o princípio estrutural da eles são poderosos; que eles identificam
"correspondência". Até mesmo a retórica da corretamente quais são as necessidades so­
autonomia da esfera educacional é abando­ ciais e que eles podem efetivamente contro­
nada. Sua Majestade a Economia reina de lá-Ias. Contra isto devem ser colocados os
forma suprema - e em suas próprias vestes! fatos óbvios de que segmentos do grupo do­
A formação de hábitos do processo educa­ minante discordam de qualquer forma a res­
cional é a mesma da "formação de hábitos" peito de objetivos industrialmente instru­
adequados à produção - uma relação prepara mentais ou de objetivos humanísticos de de­
diretamente para a seguinte. A certificação senvolvimento para a sociedade e que a
acrescenta legitimação a esta socialização "autonomia", o "profissionalismo", a base
para a desigualdade. Nós temos uma classe universitária e a intelligentsia, no "interesse

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educacional", podem fornecer simplesmente do capital simbólico. A educação mistifica
as bases alternativas para uma avaliação que a si própria, assim como a outros, ao ocultar
não espelhem simplesmente as práticas sua própria base nas, e sua reprodução das,
opressivas atuais. Além disto, as "necessida­ relações de poder na sociedade. Sua Majes­
des" do capital serão provavelmente contra­ tade a Economia está disposta a permanecer
ditórias, de qualquer forma - com, no pre­ bastante à parte desde que a educação faça o
sente, alguma sobrequalificação, alguma des­ seu serviço.
qualificação e alguma socialização para o Temos elementos mais satisfatórios aqui
desemprego, mesmo entre as mesmas coortes para uma noção propriamente autônoma de
de estudantes. como a certificação e a legitimação podem
Eu argumentaria que Produção Cultural funcionar. A insistente dúvida no referencial
entre grupos dominados de vários tipos asse­ de Bowles e Gintis de que a classe média se
gura que, nas escolas, uma incu\cação direta sai melhor nos exames porque eles são real­
de exigências sociais sobre os estudantes - mente mais inteligentes, é substituída por
mesmo que elas sejam consistentemente de­ uma teoria social genuína de como a produ­
finidas - é de qualquer forma, impossível. O ção e a constituição culturais burguesas estão
que é muitas vezes somente uma hahituação implicadas na forma que toma a relação so­
mfnima ao trabalho é, na realidade, efetivada cial com o proletariado. Recebemos tam­
pela combinação de muitos processos em bém uma explicação pÍausível e detalhada de
muitos locais - não sendo menos importantes como certas inversões e mistificações ideoló­
a família e a própria experiência da produ­ gicas cruciais são efetivadas, sem o recurso a
ção. Especificamente, a escola é tão somente uma teoria da consciência falsa e da estupi­
um local numa cadeia de outros locais impli­ dez bovina da classe dominada.
cados em muitos outros tipos de lutas de Re­ A teoria educacional repousa, natural­
produção, não sendo menos importante a mente, sobre as fundações do sistema mais
formação de gênero e de geração. Devemos amplo de Bourdieu. O grupo poderoso (a­
ser cautelosos em concluir que a escola é o parentemente em qualquer sociedade) exerce
local central para a preparação daqueles cor­ seu poder para impor significados através de
pos concretos, mornos e dotados de gênero uma "arbitrariedade cultural" obtida por
que realmente entram na produção - menos "violência simbólica" de forma tal a ocultar a
ainda em interpretar esta transição realizada relação de poder da estratificação de classe
como a lógica principal de classe do que se que é sua base. Isto constitui uma dupla vio­
passa nas escolas. lência, tanto a imposição de um padrão cul­
A análise de Bourdieu e Passeron (1977) tural sobre outro sem uma justificação epis­
marca um avanço sério sobre esta perspecti­ têmica, quanto o mascaramento de sua ver­
va. Somos introduzidos ao nível cultural - ao dadeira natureza dividida de estrutura de
menos para a classe dominante - o qual classe. Este aspecto dual de produção cultu­
realmente se mostra ser diferehte em forma e ral e de classe é uma das bases importantes
ter alguma autonomia da esfera econômica. para a produção do "habitus", "o princípio
De fato, o que nós podemos pensar como gerativo instalado, durável, de improvisações
sendo finalmente uma autonomia espúria é reguladas" (Bourdieu, 1977) que fornece as
instalado como sendo a característica central "disposições" em direção a ações que final­
do sistema educacional. Um campo coerente mente "reproduzem" as estruturas originais
de regras e conjuntos de relações que se pro­ e as relações de poder que são a base Cd vio­
clamam a si mesmos como separados e obje­ lência simbólica original.
tivos, dignifica, e torna "oficial", uma cul­ Mas é na consideração desta teoria geral
tura que é, na verdade, a propriedade das que podemos ver algumas das falhas que li­
classes dominantes. Quanto mais alto alguém mitam o valor da teoria educacional regional.
sobe no sistema educacional, mais esta cul­ Estranhamente, nós vemos um fantasma do
tura é "pré-suposta". É requerida para o su­ problema que está por detrás das análises de
cesso. Esta mesma cultura é ainda proclama­ Althusser e de Bowles e Gintis - por causa
da como a cultura,legítima e objetiva. Estu­ da separação quase total concedida à cultura
dantes das classes trabalhadoras são "conti­ e o papel de cúmplice da educação na sua
dos" não porque eles são classe trabalhadora manutenção, a economia aparece (embora
mas porque eles não têm as habilidades "ob­ fora do palco) como o universo básico fixo
jetivas" e a linguagem necessária para o su­ ao qual a cultura é adicionada. E a economia
cesso. O capital real tornou-se capital cultu­ faz sua aparição não como um modo especí­
ral; falta de capital (a possessão tão somente fico de produção pleno de contradições, mas
de força de trabalho) torna-se falta decilpital �omo um conjunto abstrato de relações de
cultural. Onde as relações de produção mos­ poder que, parece, aplicam-se igualmente
tram exclusão social, desigualdade e heredi­ a qualquer tipo de sociedade. O poder é to­
tariedade de capital real, a educação garante mado c�um dado ao qual a cultura é en­
a equivalência aparente, a independência e tão muito persuasivamente, adicionada a fim
a igualdade, (independente do nascimento), de demonstrar sua reprodução. Mas aquela

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EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 3 - 18, juVdez. 1986
produção original de poder é mítica e, fi­ capital real assim como capital simbólico que
nalmente, uma suposição que permite a pare­ pode ser aproveitada por todos. Mas isto não
de de espelhos da cultura erigir-se e refletir a impede que os dominados resistam ao capital
teoria da Reprodução. Temos uma estrutura cultural. Naturalmente existe uma explicação
afIrmada de poder, pré-fornecida, que é en­ parcial, talvez, no fato de o capital cultural
tão reproduzida culturalmente. O que é feito legitimar a si mesmo através da certificação
daformação daquela estrutura de poder, va­ assim como no direito dos segmentos educa­
mos dizer assim, "para começar"? O que cionais da burguesia em administrar para o
será do sujeito nesta teoria da Reprodução benefício de todos uma justificação tecno­
quando a questão do poder tiver sido resol­ crática - mas isto não é compatível com a
vida. antes que comecemos? definição fortemente literária/artística/hu­
Eu argumento que é somente numa no­ manística de cultura em Bourdieu. Estamos
ção material de Produção Cultural e Repro­ ainda em falta de alguma explicação do por­
duçã(J Cultural entre os "poderosos", ope­ quê os "destituídos de poder" aceitam, na
rando através das contradições de Produção sua maior parte, seus destinos de desigualda­
Cultural e Reprodução Cultural dos "desti­ de. Grosseiramente, embora possa ser uma
tuídos de poder" que nós podemos chegar à das condições, a aceitação dos dominados de
noção de relações sociais de poder estrutura­ sua inferioridade cultural não poderia nunca
das e duráveis. Apesar de toda a riqueza do constituir uma base adequada para sua sub­
sistema de Bourdieu, uma vez mais, a ação missão geral à exploração. Talvez nenhum
humana, a luta e a variedade foram banidas grupo revolucionário de massa tenha julgado
da história. O capital, mesmo para os pode­ a si mesmo culturalmente superior ao grupo
rosos, torna-se uma posse inerte - uma de­ dominante - especialmente em termos do
terminada quantidade de poder formal, di­ grupo dominado. O que isto significaria?
nheiro e riqueza simbólica - ao invés de uma Mas como os "destituídos de poder" enten­
relação social global contestada, realizada dem e aceitam sua posição? Qual é seu papel
através de um modo de produção global. na Reprodução?
A essência da teoria educacional de Infelizmente, o domínio do cultural de
Bourdieu diz respeito, naturalmente, à cul­ Bourdieu não funciona da mesma forma ex­
tura burguesa, e há, como eu disse, avanços planatória para os dominados. Eles se tor­
reais aqui. Mas mesmo aqui, no seu ponto nam, de fato, os despossuídos. Aparente­
mais forte o sistema sofre de uma falta de mente "cultura" realmente significa cultura
qualquer noção de Produção Cultural no Burguesa. Os dominados não têm nenhuma
meu sentido. O problema da variedade e das cultura. Sua "cultura", aparentemente, é so­
resistências entre as crianças burguesas não mente o meio de transmissão reversa de suas
pode ser tratado sob o peso massivo da vio­ chances "objetivas" na vida. Eles se desqua­
lência simbólica homogênea e da arbitrarie­ lificam a si mesmos porque eles nunca tive­
dade cultural. Nem são os estágios de "acul­ ram uma chance. O ,que é feito da autonomia
turação", seus motivos característicos e as aqui? Não constitui nenhum ob�táculo à au­
contradições internas e subjetivas tratadas na tonomia da produção cultural burguesa - no
noção geral de "habitus". Apesar de todos os seU próprio nível - que o burguês tivesse to­
avanços importantes aqui em relação a uma da a chance na vida! Sua Majestade a Eco­
noção simples de ideologia nós ficamos fi­ nomia entrou aqui outra vez com uma vin­
nalmente com um modelo tradicional de so­ gança, e a cultura do oprimido é a mesma
cialização - a burguesia transmite, de forma coisa que sua localização estrutural na soci­
bastante não problemática, sua cultura à sua dade. Porque nem a produção e transmissão
prole. cultural dominante nem as subordinadas fo­
Estas difIculdades e inadequações tor­ ram enn.ízadas num modo de produção, luta
nam-se muito mais claras quando olhamos de classe, e contestação, e uma vez que não
para o esquema de Bourdieu, não em busca existe nenhum .Ítem de s�so comum à mão
da transmissão e reprodução dominantes, mas em volta dos quais possam exprimir-se a si
em busca da transmissão e reprodução subor­ mesmos através da estética como cultura
dinadas. Os argumentos sobre a legitimação para a classe dominada, então os dominados
cultural da cultura dominante talvez se­ não têm nenhuma consciência e cultura rela­
jam sufIcientemente claros. Mas mesmo que tivamente independentes. Eles somente reco­
os dominados aceitem que eles não têm ne­ nhecem suas chances. Pode ser teatro para a
nhum direito ao privilégio cultural, este não é burguesia, mas é como apostar numa corrida
um argumento completo para sua aceitação fraudulenta de cavalo para o proletariado
da exploração e do desprivilegiamento so­ - e, além disso, eles são os cavalos! A vida
ciais. Por que deveriam eles aceitar a domi­ econômica tem de representar todas as partes
nação do capital real? Poder-se-ia dizer, na cultura proletária. Com esta lacuna de
também, que eles não têm nenhum capital uma produção cultural relativamente inde­
real, ou que existe uma ideologia disponível a pendente e especifIcamente cultural em rela­
respeito da possibilidade livre para acumular ção à vida material e ao trabalho para o pro-

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Jetariado, não constitui nenhuma surpresa - mais marcada nos níveis educacionais "bai­
que o sistema de Bourdieu não tenha nada a xos" (mais inclinados aos desenvolvimentos
dizer sobre uma política radical de educação. em direção ao "código integrado") e nos ní­
Ele apresenta, finalmente, um mundo Webe­ veis industriais mais baixos" (tradicional­
riano sem saída, fechado e sombrio. Não há mente, e ainda, marcados por "fronteiras" e
nenhuma base teórica para uma política de "estruturação" fortes): em uma palavra, para
mudança, para a produção de uma consciên­ a classe trabalhadora nos seus escalões mais
cia radical ou alternativa. Esta teoria de Rc­ baixos - o local crucial para as teorias da
produção nem explica a si mesma, nem sus­ correspondência.
tenta uma práxis. Ora, Bernstein não desenvolve isto, mas
Estou sugerindo de forma geral que en­ claramente, se certos aspectos da educação
quanto Bourdieu oferece um conjunto muito são disfuncionais para o sistema de produção
importante de argumentos a respeito da cul­ (isto é, niío produzem eles mesmos a relação
tura dominante, sua independência relativa. social necessária ao capitalismo) mas, mesmo
modo de transmissão, constituição da nature­ assim, a "transição da escola para o traba­
za de uma classe, e de como tudo isto ajuda a lho" é obtida (e, em todas as teorias, obtida,
constituir a natureza de uma relação social na maior parte, de forma não problemática
necessária ao capital, não nos dá nenhuma no caso desse grupo), então existem outros
ajuda real para entender o que podem ser processos ocorrendo, (parcialmente, ao me­
processos similares na cultura dos domina­ nos, no local da escola) que produzem tais
dos. resultados. Um tanto obliquamente, mas não
Pode ser útil enfatizar dentro de nossa obstante em uma forma muito clara, vemos
noção geral prévia de Reprodução Social (a aqui o escopo para uma análise de formas
qual, lembremos, incluía muitos tipos de ou­ informais da escola, para processos contra­
tros processos e de processos não cultural­ ditórios de Produção Cultural e Reprodução
mente específicos) uma distinção entre Pro­ Cultural que me interessam, enquanto que
dução Cultural e Reprodução Cultural domi­ em nossas teorias anteriores simplesmente
nantes e Produção Cultural e Reprodução não havia espaço para tais preocupações.
Cultural subordinadas. Enquanto a evidência Bernstein introduziu a possibilidade da esco­
e o argumento de Bourdieu são, de longe, o la não funcionar sem problemas como qual­
melhor que temos para entender a Produção quer variedade de um AlE mas como un
Cultural e a Reprodução Cultural dominan­ campo de contradições de processos mais am­
tes e seu papel na Reprodução Social, nós plos, com culturas e diferenças que não fazem
ainda ficamos com pouco de precioso no que parte de seus propósitos oficiais. De fato, a
diz respeito ao estado e à forma reais do do­ escola pode funcionar, para alguns grupos
minado e de sua Produção Cultural e Repro­ sociais, não através de suas homologias com
dução Cultural e este papel na forma confli­ outras partes do sistema social, mas através
tiva e dialética das relações sociais necessá­ de suas diferenças. Em algumas formas ela
rias ao capitaL pode funcionar, com respeito a Reprodução
Social, não através de suas próprias catego­
Para o momento (e deixando de lado rias e intenções, girando no eixo de sua pró­
o resto de seus trabalhos), existe algumas su­ pria integridade, mas profana e excentrica­
gestões claras sobre isto na� formulações de mente como o único local parcialmente de­
Bernstein em torno de códigos educacionais terminante de outros tantos processos de
e sua relação com a produção. Em seu ensaio Produção Cultural e Reprodução Cultural. A
"Aspectos das relações entre Educação e escola pode estar implicada de diferentes
Produção" (1977), onde, na verdade, ele lida formas tanto na Produção Cultural e Repro­
somente com aspectos de correspondência dução Cultural dominantes quanto nas su­
mais que com de legitimação (para não falar bordinadas. Isto sugere que algumas ideolo­
do que eu chamo Produção Cultural), apesar gias e interesses dominantes podem ser
do formalismo e das descrições esquemáticas transmitidos não diretamente mas através de
do "código tipo coleção" e do "código inte­ dialéticas, mediações e lutas sociais e cultu­
grado", se nos apresenta, pela primeira vez, a rais. Os poderosos nem sempre impõem sig­
possibilidade de rupturas radicais entre a nificados sem que aqueles significados te­
educação e o sistema de produção. O código nham sido considerados pelos dominados -
educacional (com sua tendência para a com­ ou, pelo menos, por um segmento importante
binação de "classificação" e "estruturação" deles, o que fornece temas de oposição como
fracas e tendendo portanto para o "código um recurso cultural para o resto. Esta res­
integrado") alimenta um sistema industrial posta dominada assume significados outros
que tende para (especialmente, poderíamos que não aqueles codificados na transmissão
dizer agora, sob o Thatcherismo e o Reaga­ dominante. Ademais, vemos que esta imposi­
nismo) "classificação" e "estruturação" for­ ção mesma deve, por sua vez, levar em conta
tes - isto é, para o "código tipo coleção". respostas alternativas ou de oposição. Mes­
Esta disfunção é - contrário ao que podería­ mo se estivermos interessados apenas no que
mos esperar da "teoria da correspondência" é intencionado pelos poderosos, podemos di-

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zer que o que é intencionado pela resposta ao constituídas), A inclusão desses elementos
que é intencionado muda o que é intenciona­ constitui imperativos metodológicos mínimos
do. para uma explicação adequada da formação
Apesar da promessa da contribuição de de classe social e inclui o contato primário
Bernstein, ela mostra muitas das mesmas com as pessoas e os agentes sociais exigidos·
fraquezas e unilateralidades das outras teo­ para validar, não meramente especular sobre,
rias consideradas. A economia, e seus lugares a teoria social. Isto não significa proclamar
implicitamente vazios, permanecem silen­ uma visão ou insight especiais. De fato,
ciosamente aguardando a bênção de proces­ muitas dessas coisas - precisamente como
sos educacionais quaisquer. Eles - os lugares pontos de partida mais que como conceitos
"vazios", desenvolvidos no caso de Berns­ logicamente produzidos e analisados - for­
tein, através de sua versão de um formalismo maram talvez recursos -
inconscientes e não
-

abstratamente multiplicador - não são eles intencionados, fornecendo soluções e cone-


mesmos o produto da luta de classes consti­ xões "acidentais", assim como muitas lacu­
tuídas, ativas. Bernstein nos apresenta ape­ nas e inconsistências que outras perspectivas
nas a simplicidade pristina de uma forma de podem iluminar de acordo com sua própria
dominação - nomeadamente, classe - sem configuração de interesses. Estamos lidando,
nenhuma menção das dominações patriarcal antes, com os recursos de outro conjunto de
e racial e de como aspectos de suas formas conceitos e enfoques enquanto seu potencial
ideológicas podem interseccionar com classe. intersecta outra problemática. Talvez esteja­
Além disto, todos os teóricos lidam ba­ mos lidando, em última análise, com a im­
sicamente com poder mais que com um modo portância de um método etnográfico "sujo" e
de produção relacionado a interesses mate­ com a descrição "densa" que ele pode pro­
riais, experiências e cultura. O poder é um duzir. Em muitas formas, o ponto forte de
tanto idealisticamente visto como em si Learning to Labour consiste simplesmente
mesmo mau - como sinônimo de dominação. em não ter partido e continuado com uma
Sem uma noção integralmente interior de noção integrada de uma coisa coerente cha­
lutas através do poder e sem noções de um mada "educação" como entidade discreta e
poder contra-hegemônico e dos recursos dos com sua relação com outras entidades dis­
trabalhadores como constituindo "seu lado" cretas tal como produção. Não como um
da luta de classes, nós ficamos com noções salto teórico, mas como uma provisão meto­
sub-teóricas ou forçadas de ideologias mecâ­ dológica de Iinha-de-base, o próprio ecletis­
nicas impondo-se a si mesmas no lugar do mo de uma noção geral de "cultura" espa­
que eu venho defendendo - noções mais di­ lhou-se automaticamente para cobrir muitos
nâmicas de Produção Cultural e Reprodução campos (principalmente, educação e produ­
Cultural. O pessimismo, em formas diferen­ ção) e muitas atividades como os terrenos de
tes, reina supremo. práticas materiais e simbólicas.
Contudo, embora em um certo sentido
"acidental" ou pertencendo antes a uma
"Learning to Labour" "formação geológica" mais ampla de conhe­
e Resposta aos Críticos cimento que à prática intencionada, deveria
ser agora possível traçar o que é especifica­
Eu gostaria de sugerir que meu livro, mente oferecido por uma rota de "estudos
Learning to Labour, pode ser visto como culturais" (ou ao menos, minha própria ver­
acrescentando e dando corpo à possibilida­ são etnográfica dela) à problemática do que é
de esquematicamente localizada por Berns­ conhecido como teorias de reprodução e lo­
tein. Isto, em parte, porque ele não aspira a calizar seus pontos fortes em relação a ou­
constituir uma teoria geral de educação, me­ tros enfoques. Mais pessoalmente, esta é uma
nos ainda de Reprodução Social. O livro é tentativa de substanciar meus protestos pré­
basicamente sobre a natureza e o contexto da vios de que eu não deveria: (a) ser marcado
cultura - Produção Cultural e Reprodução com a mesma pecha dos teóricos da Repro­
Cultural subordinadas - e apenas parcial­ dução quando eu conheço a natureza da pe­
mente, sobre teorias de Reprodução Social. cha tão bem, e (b) ser visto, de forma con­
De certa forma, sua apresentação e método trária, como um "mero" pesquisador empíri­
etnográficos inoculam-no contra as reduções co. Outra vez, para começar com algumas
e as elisões que eu indiquei anteriormente. definições de termos, aqui eu coloco "cultu­
Ele toma como pontos de partida aquilo que ra" como um sistema relativamente coerente
ou está ausente ou é apenas acenado nas teo­ de práticas materiais e de sistemas simbólicos
rias anteriores: resistência; a produção cul­ entrelaçados tendo, de acordo com a região,
tural vivida da classe trabalhadora e a cultura suas próprias práticas e seus próprios objeti­
como trabalho nas e sobre, formado pelas, e vos que constituem o miliell ordinário da vida
ajudando a formar, contradições no modo de social através do qual, entre outras coisas, os
produção (relações sociais de produção como agentes sociais chegam a uma consciência vi­
formadas pela luta multi-facetada das classes vida, coletiva, mediada de sua condição de

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existência e sua relação com outras classes. precisamente, uma versão dela) age através
Esta é, em parte, a base para ações sistemáti­ da Reprodução Cultural, que age através da
cas que constituem a base necessária para a Produção Cultural. Esta rota de "cima para
manutenção da acumulação de capital e de baixo" é somente uma de muitas rotas so­
aspectos estruturais profundamente fixados cialmente reprodutivas através da totalidade,
da ordem social. e aqui, como alhures, conclui logicamente
Traços característicos deste milieu in­ com a reprodução socialmente contestada
cluem: "consciência coletiva vivida" como das condições para a acumulação de capital -
formas concretas de resistência; respostas não inicia com este ponto, eliminando por­
coletivas relativamente racionais às possibili­ tanto o espaço para uma análise dinâmica.
dades e dilemas existentes; culturas materiais Podemos dizer provisoriamente que
e formas materiais de produção de formas a Produção Cultural designa, ao menos em
culturais; a imanência de significados cultu­ parte, o uso criativo de discursos, significa­
rais coletivos e inconscientes que, não obs­ dos, materiais, práticas e processos de grupo
tante, ajudam a dirigir" a ação e que consti­ para explorar, compreender e criativamente
tuem a subjetividade; penetrações coletivas ocupar posições particulares em conjuntos de
de ideologias reguladoras e de tecnologias possibilidades materiais, gerais. Para os gru­
inclusivas de controle e dominação; discursos pos oprimidos, isto provavelmente incluirá
contraditórios e complexamente articulados e formas oposicionais e penetrações culturais
práticas e formas simbólicas herdadas; domi­ em campos ou regiões concretas particulares.
nação e reprodução social (isto é, Produção Como uma nota à parte, podemos observar
do que nós chamamos estrutura), parcial­ que o desvelamento dessas formas secretas,
mente, na dinâmica da auto-formação do reprimidas, informais, meio traídoras, tor­
dominado; e efeitos ideológicos complexos na-se i província especial de um método
que regnlam a epistemologia de significados "vivo", qualitativo, etnográfico, comensurá­
tanto como i/1puts quanto como outputs de vel - tais processos não deixam seu Registro
formas culturais. Público num Escritório Burguês de contabi­
Começando desta tentativa limitada de lidade.
defrnição (com a qual teremos que nos con­ Reprodução Cultural designa a maneira
tentar para nossos propósitos aqui), eu quero na qual este conjunto de processos, tanto em
considerar as implicações e a distinção deste suas operações internas (sua própria tran­
enfoque para as teorias de Reprodução, fazer siência e informalidade) e através de efeitos
um ou dois comentários sobre algumas críti­ ideológicos complexos que em cada época
cas persistentes, conquanto simpáticas do ajudam a estruturar os elementos em direção
projeto de Learning to Labour e concluir ao que é possível ser pensado (assim como
com uma consideração das diferentes impli­ regular, suprimir ou fragmentar - freqüen­
cações práticas de minha posição e de posi­ temente através de processos institucionais -
ções da Reprodução. a produção concreta a partir desses elemen­
Para começar, em relação a teorias de tos), opera finalmente e efetivamente para
Reprodução, esta noção de cultura ajuda a dar nova vida e reforçar crenças sociais e
sublinhar a importância de considerar a ideológicas gerais. Estas crenças são então
constituição de classes (em relação uma à tornadas ainda disponíveis a outros campos
outra, naturalmel)te) antes de precipitar-se de Produção Cultural (isto é, ideologia não ir­
numa explicação esquemática de como uma radiada abstratamente de cima para baixo).
relação social abstra1.a fornece condições Produção Cultural é mais ampla que Repro­
pré-fixadas para a acumulação ce capital. Ela dução Cultural e contém muita coisa à qual
dá a alguns materiais um conteúdo real de Reprodução Cultural é relativamente indi­
"independência relativa" na Produção Cultu­ ferente. A última, entretanto, ajuda a produ­
ral e na Reprodução Cultural subordinadas zir um padrão global de atitudes sociais e
tànto para ocupar o vácuo deixado por a supressão de penetrações culturais como
Bourdieu, quanto para dar algum conteúdo uma base para a decisão e a ação que são
ao espúrio "relativo" da "autonomia relati­ exatamente comensuráveis com o funciona­
va" de Althusser. mento do modo capitalista de produção. É
Em minha visão, a essência da questão é somente este último efeito que deve ser de­
que Learning to Labour começa não com signado de Reprodução Social. Reprodução
Reprodução Social mas com Produção Cul­ Cultural, por sua vez, deve ser vista, como
tural. O problema com as teorias de Repro­ muito mais ampla, mas menos inclusiva, que
dução de vários tipos que nós examinanos é Reprodução Social. Reprodução Social pode
que ao articular a análise da Reprodução So­ também designar processos bastante dife­
cial ou mesmo da Reprodução em geral, elas rentes e outros campos - não menos, por
misturaram noções de, ou inferiram noçOt::s exemplo, o estado, os aparelhos de estado, a
altamente mecanicistas de, Produção Cultuo polícia, a família, e os meios de comunicação.
ral e Reprodução Cultural. Mas em Learning A marca distintiva de Learning to La­
to Labour, a Reprodução Social (ou mais bour, portanto, não está no seu fornecimento

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:te uma outra versão de como processos ge­ de Trabalho, no Reino Unido, por exemplo , é
rais, continuamente, refazem-se a si mesmos improvável que o capital possa realizar este
em situações específicas, com conteúdos valor (muito menos ainda, esperar uma con­
particulares. Sua ênfase está no momento da tribuição para a mais-valia), para 50% des§es
produção num exemplo específico - a Pro­ rapazes, (pelo menos nos anos subseqüentes
dução Cultural com a qual este processo é à sua saída da escola) este valor adicionado
iniciado , mesmo se ele se toma Reprodução à força de tabalho terá ido pelo esgoto. Ca­
Cultural, que se toma Reprodução Social._ A pitais individuais podem ter ' historicamente
contribuição da Reprodução Cultural à confiado no Estado para fazer o que a com­
Reprodução Social é um processo criativo petição impediu que fizessem eles mesmos -
sempre repetido, que em cada vez não leva a duração da jornada de trabalho, treina­
nenhuma garantia a mais que a última, e que, mento técnico, etc. - mas eles ainda esperam
em cIrcunstâncias políticas ou materiais di­ ser capazes de, eventualmente, efetivar
ferentes, pode produzir resultados diferentes. pressões feitas sobre eles através da explora­
Isto absolutamente separa teorias de Repro­ ção de valores maiores de força de trabalho.
dução Cultural de férreas leis de transmis­ As custosas formas de Reprodução Social,
sões - tal como em têorias de socialização que estou indicando aqui, são, sem dúvida,
e tal como, crescentemente, em teorias de parcialmente responsáveis pélas crises na
Reprodução. acumulação, pela crise fiscal do Estado, e
A cadeia de distinções em favor das
pela atual estratégia de transferir muitos
quais estou argumentando também nos pre­ gastos do Estado de volta à família, para a
vine contra um funcionalismo rasteiro. No produção doméstica do valor da força de
primeiro caso, antes que à harmonia funcio­ trabalho aí, e para aumentar a exploração dos
nal os motivos e intenções da Produção trabalhadores empregados, um grau inteiro,
Cultural dizem respeito ao específico de seu em intensidade. Esta forma de Reprodução
próprio nível e da oposição e da penetração, Social contestada portanto, longe de ser fun­

entre os oprimidos. Mais formalmente, en­ cional para o Estado e para a acumulação de
tretanto, no caso perante nós, da cultura capital, é, na verdade, atualmente um de seus
masculina contra-escolar, as coisas são tais problemas. Se o capital pudesse "armazenar"
que a Produção Cultural e a Reprodução ou "congelar" os jovens entre 1 3 e 20 anos,
Cultural ajudam a prover algumas das condi­ ele tentaria, sem dúvida, fazê-lo, ao invés de
ções sociais para a relação capitalista global. permitir a continuação de processos sociais e
Mas é, na verdade, um m�todo altamente ine­ culturais que ele mal compreende, de qual­
ficiente e dificilmente intencional de "obter" quer forma,
esses objetivos mesmo quando considerado De forma relacionada, esta ênfase na
na sua melhor forma abstrata, "pura", bas­ Produção Cultural ajuda a enfrentar a crítica
'
tante à parte do deslocamento social e do de que Learning to Labour trata a educação
desconforto que produzem. O espaço, a es­ como um monolito e de que sugere que as
cola, no qual isto ocorre é [manciado por im­ escolas não fazem diferença alguma e que é,
postos, alguns dos quais provêm do salário portanto, irrelevante. Ora, embora eu esteja
proletário. Este pagamento é supostamente tentando descrever processos somente em
feito para que algo aconteça - embora ma­ parte baseados na escola, e que continuarão,
nifestamente, com freqüência, nada aconte­ dada a estrutura geral de uma sociedade de
ça. Isto pode levar, como estamos tragica­ classe capitalista, a ter resultados aproxima­
mente vendo, a que todas as classes estejam damente similares, eu estou também descre­
desconfiadas e ressentidas com a educação: o vendo processos que têm sua raiz na produ­
que está sendo dado de volta, na defesa pu­ ção, não na reprodução. Na medida em que a
blica que se faz dessas coisas, em troca de to­ escola é um dos campos e insumos materiais
do esse dinheiro? Mais tecnicamente, pode­ disso, as escolas fazem, então, diferença.
mos dizer que a quantidade massiva de esco­ Elas são produtivas tanto quanto reproduti­
larização "adicional" fornecida, principal­ vas, têm efeitos específicos, e não podem ser
mente para que uma boa proporção da classe reduzidas a qualquer outra coisa - e além
não possa fazer nada (isto é, além do ponto em disto, como vimos, elas operam tanto através
que habilidades básicas numéricas e de alfa­ de suas diferenças de outras regiões quanto
betização são adquiridas) é, de fato, um através de suas similaridades. Organizações
"presente" (na medida em que os impostos escolares diferentes podem muito bem ter
não provenham de salário) para a classe tra­ efeitos diferentes - especialmente em seus
balhadora. Naturalmente, o argumento técni­ gra�s de repressão, separação entre Produ­
co diz que tal escolarização "adicional" con­ ção e Reprodução Cultural dominante e su­
tribui para um valor acrescido de força de bordinada e isolamento de formas culturais.
trabalho. Mas uma vez que o conteúdo deste Mas o que nós vemos parcialmente no campo
"valor" é ambíguo (do ponto de vista da va­ da escola" (e certamente parcialmente consti­
lorização), para dizer o mínimo, e uma vez tuído por ela, variavelmente, em diferentes
que pelas cifras mais recentes da Comissão formas) é, não, obstante, uma produção mais

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ampla de ideologia e formas culturais e de chamei Produção Cultural é muito impor­
formas de divisão entre gênero e atividade tante em formas diferentes para os negros de
mental e manual, que são mais básicas e vi­ classe trabalhadora e para as jovens em sua
rulentas que qualquer coisa que a escola po­ reação à escola - em particular, a elaboração
deria esperar, moldar e produzir - a saber, de seu próprio senso cultural de força de tra­
um refazer de cada geração. Devemos, fazer, balho a ser aplicado à produção, não -produ­
portanto, algumas qualificações muito im­ ção ou família conforme o caso. Embora eu
portantes em nossa concordância de que "as não tenha fornecido os dados, o enfoque es­
escolas fazem diferença". A Produção Cultu­ boçado não impede, mas permite tal estudo.
ral com que estamos preocupados é um pro­ O caso dos rapazes conformistas da
cesso em que a escola é apenas um de seus classe trabalhadora no estudo de Hammer­
campos, e esta produção pode não operár town é, sem dúvida, algo mais complexo, e
naqueia forma concebida pelo Estado ou pe­ eles se tornaram - mais como um dispositivo
los educadores. Assim a sua repressão, ou estiIístico que por uma necessidade te6rica -
seu desvio parcial por seja lá que eficácia a algo como uma contraposição para os "rapa­
escola tenha, pode ter conseqüências não in­ zes", na elaboração do livro. Mas, outra vez,
tencionais e pode não ser em favor dos me­ isto não significa invalidar o enfoque. O que
lliores interesses d8 classe como um todo - é claramente necessário é o esboço de um
mesmo onde este é o objetivo principal dos equilíbrio um tanto diferente entre a Produ­
refonnadores educacionais. Nem é a Produ­ ção Cultural dominante e a subordinada e, no
ção Cultural inocente para cada geração interior da última, entre Produção Cultural e
"nova". Ela é não apenas estreitamente rela­ Reprodução Cultural, com um papel algo
cionada com processos de Reprodução Cul­ diferente para a ideologia na mediação dessas
tural mas também formada, lembremos, a coisas.
partir de recursos de classe herdados e de Além disto, o enfoque de Learning to
discursos existentes. Ela não pode inventar a Labour estava focalizado na dominação de
si mesma inteiramente. Essas são formas e classe, mas é igualmente aplicável, mutatis
continuidades que colocam limites precisos mutandis, a outras formas de dominação , gê­
na sua "arbitrariedade" . Além disso, aspec­ nero e raça. Tem -se que escolher um foco
tos desta Produção Cultural que ocorrem no principal. Isto é muito diferente de excluir
campo da escola não são necessariamente preocupações fundamentais de qualquer foco
"educacionais" ou "maturacionais" em qual­ principal particular. Na verdade - um ponto
quer sentido recebido, e a formação real de sumamente etnográfico - todas as formas
pessoas e de sua cultura está ocorrendo principais de dominação estão comprimidas
alhures em formas complexas e difíceis. De­ no espaço vital dos indivíduos e grupos em
ve-se ter tudo em mente antes que vistamos, questão, de forma que os sistemas de opres­
demasiado contentes, nossos uniformes de são e suas formas ideológicas articulam-se
engenheiros sociais. uns com os outros em sistemas aparente­
A ênfase geral em Produção Cultural mente unificados, embora contraditórios.
como o ponto de partida em Learning to La­ Além disto, parte do argumento de Leaming
bour está também desenvolvendo, eu diria, to Labour - e, como vimos na Introdução,
um argumento teórico em geral. Embora o parte do argumento sobre Produção Cultural
livro não tenha focalizado os conformistas, - é que esses sistemas, comprimidos em um
os grupos étnicos, ou as garotas, parece difí­ espaço vital, fornecem recursos em direção à
cil que o enfoque inteiro deva ser acusado de penetração mútua no mundo profano das re­
supor a passividade ou a invisibilidade desses lações vividas. Produção Cultural significa
grupos quando ele se volta tanto, de forma não os contornos das categorias formais es­
analítica, precisamente para qualidades gerais boçados pelos teóricos - "sexo, raça, classe"
de atividade. O argumento em favor da ca­ e suas propagações secas, vegetativas, sepa­
deia que eu esbocei aplica-se a todos os gru­ radas - mas as combinações profanas, vivi­
pos e sua cultura e, através de um exemplo, das, propriamente férteis, freqüentemente
aponta para uma característica geral da na­ incontroláveis desses elementos nos projetos
tureza contestada da Reprodução Cultural e de vida coletiva reais, decisões e mudanças.
Social em todos os grupos e para a importân­ Uma característica disto pode ser que "sub­
cia de saber o que constitui os grupos sociais missão" a uma dominação pode revelar ou
antes de especificar a natureza de sua relação resistir a outra, ou que a colocação domi­
abstrata com o capital. Parece difícil supor nante em um tipo de discurso pode revelar
que eu esqueceria em um caso o que eu me outros tipos de submissão. Este é o conteúdo
esforcei para enfatizar em outro. Longe de real da criação e recriação da vida social e
ser o pretexto para, ruidosamente , criticar material que pode somente então ser reclas­
essas omissões em meu livro, sua publicação sificado por outros teóricos: "sexo, raça e
deveria ter sido a ocasião para instigar mais classe". Eu mostrei uma forma de articula­
estudos . etnográficos detalhados de outros ção, penetração, desenvolvimento e reprodu­
grupos. É claro, por exemplo, que o que eu ção final, no uso por elementos masculinos

14 EDUCAÇÁO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 3 - 18, julldez. 1986


da classe trabalhadora, de categorias patriar­ A distinção entre formas dominantes
cais tanto para resistir e expor a escola e sua e subordinadas de Reprodução Cultural é
ideologia meritocrática quanto para enqua­ importante porque nos permite isolar dife­
drar a forma material e experiencial de sua rentes estratégicas que podem fluir de cada
passagem para o trabalho manual- precisa­ uma. Do ponto de vista dos processos domi­
mente a natureza contingente, histórica e nantes, os interesses dos grupos oprimidos
"suja" de formas masculinas. E contudo sou são claramente no sentido de tomar pelo que
acusado de aceitar acriticamente o patriarca­ são e tentar efetivar, as promessas da meri­
do e a dominação dos homens em questão e tocracia - igualdade para todos. É possível
de não expor seu "sexismo", quando é pre­ argumentar em termos de democracia bur­
cisamente isto que eu analisei em relação à guesa em favor de maiores recursos educa­
escola, à força de trabalho e à divisão entre cionais para estudantes negros, mulheres e
/

trabalho mentalh:nanual. Outra vez, mutatis para !i classe trabalhadora. Se eXISte


mutandis, esta análise, sugere um modelo uma aval@ção da habilidade de leitura, então
para as formas em que outras articulações as autoridã<Ies devem ser continuamente ata­
complexas possam existir em outros campos.. cadas e questionadas por que os estudantes
usando categorias de classe - por exemplo, de escolas da classe trabalhadora recebem
para expor e resistir o patriarcado, talvez, na notas mais baixas em testes de leitura. Se
demanda de mulheres de classe média, por existe uma certificação universitária, então
igual pagamento e status e nas crescentes um vestibular aberto deve ser exigido para
demandas de trabalhadoras por adequada re­ ajudar a compensar a desigualdade de acesso
presentação sindical e igualdade em casa. relativa a gênero e etnia. As demandas re­
Produção Cultural significa precisamente re­ centes em favor de igualdade para as mu­
conhecer os desafios profanos e a produtivi­ lheres, como uma característica central e
dade da re-elaboração e resistência às ideo­ aceita da sociedade, podem ser levadas a suas
logias, discursos recebidos e aos padrões im­ conclusões lógicas e contra as contradições
produtivos de determinação e perspectiva. E de outras medidas políticas. A discriminação
contudo sou acusado de supor acriticamente positiva pode ser perseguida até que tenha­
um patriarcado inerte em minha busca da mos uma distribuição financeira equilibrada.
classe. Em termos um tanto mudados, isto Naturalmente, isto não significa dizer que
significa, outra vez, tomar Produção Cultu­ tais medidas funcionarão n.as formas inten­
ral e Reprodução Cultural na minha análise cionadas - a Produção Cultural subordinada
por seu valor aparente, Reprodução Social. se encarregará disto. Além disso, tais medi­
Isto significa remover a eficácia de Produ­ das não aumentarão a "congruência" entre
ção Cultural como uma noção para explorar educação e indústria. De fato, pode-se dizer
outros campos e opressões assim como para que essa é a essência da estratégia aqui: au­
ignorar o que é realmente específico e desa­ mentar as incongruências e dar um valor
fiador e não reprodutivo na sua própria na­ maior à força de trabalho do que aquele que
tureza.2 o capital pode realizar. Naturalmente existem
resistências poderosas, especialmente du­
rante as crises fiscais do estado (que essas
demandas provavelmente aprofundarão),
Teoria e Prática mas nossa análise ainda permite que um
curso político seja tramado.
Tem se tornado convencional agora se­ Além disso, os aspectos inibidores do
parar análises da educação entre as que lidam capital cultural dentro da Produção Cultural
com Reprodução (teórica) e as que lidam e da Reprodução Cultural dominantes podem
com possibilidades radicais na sala-de-aula ser denunciados e pode-se fazer esforços
(prática). As primeiras são consideradas pes­ para neutralizá-los. Aquilo que Bourdieu
simistas e acusadas de fecharem a possibili­ chama pedagogia "explícita" poderia ser en­
dade da práxis, diz-se dos últimos que lidam corajada para a classe trabalhadora de tal
com a mudança e a possibilidade de libera­ forma que a natureza daquilo que está sendo
ção. Eu quero argumentar que as posições solicitado em testes seja clarificada previa­
que vimos considerando situam-se entre es­ mente, e o poder geral do capital cultural
sas duas preocupações e não inteiramente poderia ser limitado através do fornecimento
dentro da última. de maiores recursos e tempo aos "desprivile­
Os comentários que quero fazer partem giados", através da desmistificação da base
de duas coisas: (a) a distribuição que faço oculta da violência simbólica, do adiamento
entre formas dominantes e subordinadas de da certificação, através de quotas no próprio
Reprodução Cultural; e (b) a insistência no mercado de trabalho "privilegiado", etc. Não
fato de que Learning to Labour começa não estou dizendo que qualquer um desses ou tu­
com a reprodução mas com a produção de do é possível. O ponto consiste simplesmente
cultura, e que isto implica não fechamento, em indicar que tipos de reformas são deduzi­
mas abertura. das a partir de uma compreensão da Produ-

EDUCAÇÁO& R�ALlDADE, Porto Alegre, 11(2): 3 -18,julldez. 1986 15


ção Cultural e Reprodução Cultural domi­ V que as perspectivas de Produção
nantes e sugerir Que as contradições na ideo­ Cultural acrescentam às teorias de Reprodu­
logia dominame e os fins auto-proclamados ção é o sentido de atividade e prática, espe­
no discurso oficial de fornecimento de esco­ cialmente através de crises e dificuldades e
larização podem ser explorados. Existe ainda o que parecem ser (e são, para os participan­
muito a ser feito em termos de promover a tes) circunstâncias criativamente enfrentadas
"revolução" da igualdade capitalista contra o - seja uma criança reconhecendo que "a es­
privilégio , transmitido. O estado capitalista cola não é para mim" mas "isto não importa;
pode ter que fornecer e manter algumas con­ de qualquer forma", seja o jovem dandn-se
dições para o capital, mas também tem que conta, a despeito da hostilidade e do empo­
fornecer legitimação para o sistema. Apesar brecimento do mundo adulto à sua frente, do
de toda a novidade da teoria de Bourdieu, ela interesse de um novo mundo público, de sair
realJnente designa resíduos reproduzidos de para a rua, amigos, o sexo oposto na primeira
uma ordem feudal. Exjstem realJnente forças fase da vida adulta. Essas coisas podem Stlr,
e alianças sociais a serem organizadas contra em sua forma própria, libertações menores
isto. assim como eventos cotidianos. São os re­
De fato, o ataque sobre a "autonomia" sultados não intencionais dessas estratégias ­
educacional, feito pela direita pode ter reais as formas nas quais soluções "existenciais"
possibilidades de ser encampado pela esquer­ culturais ou nos seus" próprios níveis" e a.q
da porque levanta toda a questão da depen­ resoluções criativas das trajetórias de vida
dência. Se puder ser popularmente demons­ tais como elas são experimentadas agem para
trado que a educação nunca foi independente estabilizar e produzir o sistema como um to­
de classe e de capital, então a crítica poderia do - que conectam aquela libertação ao
ser desviada para o centro do capital cultural, conformismo, também como .eventos coti­
e a noção tecnicista liberal de liberar o má­ dianos. É menos uma questão de trazer a li­
ximo de talento do "reservatório oculto" da bertação de fora que de colocar uma cunha
classe trabalhadora poderia ser dirigida em entre Produção Cultural e Reprodução Cul­
favor do real benefício da classe trabalha­ tural - para preservar a criatividade da arti­
dora. Dependência das relações produtivas e culação dos discursos e seus conteúdos radi­
das forças produtivas, como um afastamento cais se� reproduzir os discursos mesmos,
da dependência da classe herdada, não é uma para avaliar a necessidade e a ez:tensão do
má coisa para a classe' trabalhadora. domínio de formas dominantes a fim de per­
Naturalmente, será objetado que quanti­ seguir esse objetivo. Naturalmente, estamos
dade alguma de "sucesso" aqui libertará a ainda no terreno da formação social capita­
classe trabalhadora. Na melhor das hipóteses lista, e o conhecimento dos grupos oprimidos
poderíamos obter um sistema capitalista não é nunca puro, é sempre ambíguo e possí­
perfeitamente móvel. Correto� Esta estraté­ vel de meio trair-se a si mt:smo. Além disso,
gia advém da perspectiva da Produção Cul­ grupos tais como o dos "rapazes" não parti­
tural e Reprodução Cultural dominantes e lham uma cultura que seja, em qualquer sen­
das contradições aí dentro e das promessas tido, intrinsicamente socialista ,e ela não de­
de igualdade burguesa. É improvável que ve ser romannzada. Há elementos aquí que
funcionem a longo prazo, mas, neste meio conduzem ao facismo, certamente ao racismo
tempo, ela protegerá ou aumentará os re­ e ao sexismo - para não falar de libertação.
cursos estatais que vão para as classes tra­ Essas formas necessitam esforço e trabalho
balhadoras e também reforç'ará fatores e coletivo sobre elas - isto não significa, em
problemas recalcitantes do sistema capitalista nenhum sentido, um argumento em favor da
que ele não pode controlar sozinho . Na me­ espontaneidade. Mas a cultura dos "rapazes"
dida em que sistemas estatais sodalistas tam­ sugere somente um forma de Produção
bém apresentam capital cultural, tal conjunto Cultural subordinada, e todas as formas, em
de demandas poderia talvez ter até uma sua variedade étnica e com sua especificação
maior relevância lá diferente de oposição, precisam ser analisa­
Em termos de perspectiva específica da das e refletidas e estratégias educacionais
classe trabalhadora, de seu próprio desenvol­ precisam ser adotadas que preservem e es­
vimento como uma classe fundamental e de tendam seus momentos de Produção Cultu­
esperança de mudar fundamentalmente a re­ ral e Reprodução Cultural e que determinem
lação social que ela enfrenta, devemos 00&... lWais �ssam ser os laços e as pos�fveis
voltar para a Produção Cultural e a Repro­ �anças.
dução Cultural subordinadas e-para o ponto A ênfase desta estratégia pedagógica
vital de meu artigo: que esta reproduçã� derivada da Produção Cultural e da Repro­
opera através de momentos abertos de pro­ dução Cultural não tem a intenção de au­
dução. Aspectos de libertação já estão lá, e mentar a congruência entre a educação e a
nós não precisamos agir totalmente através produção, mas de aumentar,a cçngruência do
da invenção de soluções utópicas (embora ponto-de-vista subordinado. Nenhuma es­
elas sejam necessárias). tratégia socialista pode evitar de ligar a edu-

16 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 3 - 18, julldez. 1986


cação com a produção, e existem todos os ti­ versão da Reprodução Cultural. Sem isto,
pos de lugares e espaços na rearticulação somente segredos sociais culpados pesam na
atual da educação e produção, sob o impulso balança contra a Reprodução Social e a con­
de "reformas" derivadas, talvez, da perspec­ descendência massiva vinda da teoria e da
tiva da Produção Cultural e Reprodução poHtica que o que houve sempre foi somente
Cultural dominantes, que podem, não obs­ Produção Cultural e Reprodução Cultural
tante, ser reivindicadas pela Produção Cultu­ dominantes.
ral subordinada. Para os professores, há indicações claras
Também não é necessário supor que não aqui, talvez propostas para ensino e currículo
exista recurso algum reivindicável no interior e possíveis textos para discussões e desen­
de processos de Reprodução Cultural subor­ volvimento em sala-de-aula: onde a identi­
dinada. Os pr6prios dominados podem ver dade de gênero parece resolver incertezas e
a ironia da resistência como incorporação problemas a curto prazo mas estabelecer um
e trabalhar a partir desta base, talvez, para aprisionamento a longo prazo; anti-menta­
localizar onde a produção toma-se reprodu­ lismo, que resolve o problema da escola mas
ção. não o do destino da classe a longo prazo; re­
Naturalmente este é um programa muito sistência e violência, que satisfazem a digni­
geral e não detalhado. O que está faltando dade e a raiva a curto prazo mas não a
especificamente e deve ser nossa tarefa posi­ opressão de longo prazo - a forma, o escopo
tiva é alguma noção do princípio cultural e a racionalidade de todas essas coisas. Mas
"contra-hegemônico" que possa ligar formas os professores devem também inspecionar o
de Produção Cultural com sua pr6pria ideo­ que eles carregam de Reprodução Cultural
logia conexa contra formas de opressão - e dominante, que pode estar quebrando o que
assim saber mais exatamente quais são e co­ eles estão tentando consertar: seu pr6prio
mo sustentar e desenvolver, os momentos e estilo e sotaque de classe; a impaciência de
práticas contra-hegemônicos que ocasional­ sua pr6pria 16gica póblica mesma; a confian­
mente apenas aparecem e se vão. É esse ça mesma, talvez, de seu pr6prio plano do
princípio hegemônieo, ou princípios da arti­ que seja bom As dificuldades e as contradi­
..•

culação das diferenças de oposição e formas ções abundam - não em menor grau entre al­
culturais, que é vital desenvolver se a resis­ gumas das implicações de uma busca simultâ­
tência deve ser fmalmente mais que um mo­ nea de estratégias derivadas das perpectivas
mento formal na dominação dialética do ca­ da Produção Cultural e Reprodução Cul­
pital e de outras estruturas. Isto é difIcil de tural dominantes e subordinadas. Além disso,
saber e devem ser as áreas onde a teoria uma tendência marcante da cultura contra­
realmente encontra a prática, na coragem escolar é provavelmente a rejeição dos pro­
para experimentar e cometer erros. Algumas fessores em geral. Mas não há nenhuma ra­
coisas devem ser, entretanto, observadas da zão pela qual os professores devam escapar à
perspectiva da Produção Cultural e Repro­ contradição! Sua sensibilidade a isso e a al­
dução Cultural subordinadas. A ação da guns dos enfoques discutidos deveria, de
Produção Cultural e Reprodução Cultural qualquer forma, sensibilizá-los à variedade
dominantes é, com freqüência, nó sentido de de situações possíveis que eles poderiam en­
quebrar e fragmentar a Produção Cultural frentar e à importância de alianças em certas
subordinada. O grupo dominante reivindica escolas que não apresentem individualmente
para seu pr6prio discurso a proVÚlcia do pú­ as massivas e im6veis culturas fragmentadas.
blico, o longo prazo, o legítimo, o exp1ícito e Mesmo o anti-mentalismo dos grupos de re­
o racionalmente 16gico - podemos dizer, a sistência pode ser ultrapassado onde os cor­
pr6pria história. A Produção Cul�ral su­ tes financeiros ameaçem, por exemplo, as
bordinada é profundamente privada, infor­ aulas práticas, os jogos e os clubes nas quais
mal e articulada no imediato, no prático, no suas pr6prias culturas florescem mais ale­
demonstrado, no narrativo - na 16gica imp1í­ gremente que nas classes mais estritamente
cita que dificilmente sobrevive, mesmo além acadêmicas. É uma questão de ligar princí­
de suas corporiflCações transit6rias, menos pios gerais a uma prática flexível.
ainda para a hist6ria. O princípio contra-he­ Em particular, entretanto, os professo­
gemônico deve, portanto, preocupar-se com res deveriam olhar para as formas pelas quais
a formação e a identidade variada da pr6pria seu pr6prio processo de trabalho e as mu­
classe do que é a comunalidade dos grupos danças que nele ocorrem podem estar impH­
oprimidos antes de se preocupar com a luta citos na Produção Cultural e na Reprodu­
diretamente - mantendo a unidade e o esco­ ção Cultural dominantes ou subordinadas.
po da Produção Cultural que as formas do­ Certamente o desenvolvimento de hierar­
minantes procuram quebrar. Deve também quias e de sistemas gerenciais transforma
trabalhar sobre a noção de Produção Cultu­ a Produção Cultural subordinada em
ral subordinada de formas que ouse o públi­ "problemas sociais", problemas de "contro­
co, ouse a hist6ria, ouse enunciar sua 16gica le" e "patologia". Mesmo essas definições
em oposição à dominação e sua pr6pria sub- são freqüentemente suprimidas nos degraus

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 3 - 18, juVdez. 1986 17


mais altos d a hierarquia de tal forma que fato de que a categoria teórica, Produção Cultu­
"resistência estudantil" e "desordem" so­ ral , que eu acabei de introduzir no primeiro pa­
mente acontecem na divisão educacional dos rágrafo não é uma abstração, formal, seca, mas
constitui-se de atividade e criatividade . Isto sig­
outros: "Pense na publicidade!", "se isto va­ nifica precisamente não especificar antecipada­
za para fora!". Os professores precisam in­ mente vida cultural e material, o que parece " a­
vestigar coletivamente formas diretas, local­ nátema" à teoria.
mente baseadas, de causar curto-circuitos 2. Eu aceito várias das críticas feitas na apreciação
nas hierarquias gerenciais para lidar com as feminista ampla e bem argumentada que Angela
continuidades das formas de Produção McRobbie fez de Leaming to Labour e a discus­
Cultural subordinada da escola, comunidade são com Angela me foi proveitosa. Eu não espe­
e locaI de trabalho li fnn de chegar a uma po­ cifiquei com clareza suficiente a opressão das jo­
vens na cultura contra-escolar masculina. Nem
lítica apropriada de educação que esteja vol­ focalizei sufICientemente a famma ou notei a
tada para o desenvolvimento da classe tra­ possibilidade de que estruturas partilhadas de
balhadora e não para sua regulação. masculinidade (isto é, entre mim e os "rapazes")
Um sentido mais claro da Produção possa ter tornado a pesquisa possível e que tais
Cultural subordinada também poderia per­ estruturas subjacentes à etnografia poderiam ter
tornado a leitura do livro uma experiência
mitir alguma compreensão de como ela se
opressiva para as mulheres.
relaciona com a Produçao Cultural domi­ Por outro lado, eu acho que a crítica escrita de
nante, e de como a hierarquia atual opera nos Angela McRobbie ignora o lado positivo do que
diferentes campos no momento. Isto parece eu estou tentando fazer: por exemplo, seu argu­

acontecer parciaImente, através de uma mento de que as palavras finais de Joey no Apên­
dice - "A única coisa em que eu estou interessa­
aceitação voluntária de alguma coisa da pro­
do é em foder tantas mulheres quanto eu puder,
dução simbólica e material real da Produção se você realmente quer saber" (depois de mostrar
Cultural e também através da mcorpora­ minha "gentil sondagem sobre seU futuro") -
ção menos voluntária de aspectos do senso tenderiam a que a brutalidade da cultura em rela­
comum popular (e com ele, algum "bom ção às mulheres poderia estar correta. Mas isto
significa passar por cima da natureza da troca
senso") num padrão estável de consenti­
r'eal, e das razões peJas quais isto foi incluído. Eu
mento e acordo. Aqueles elementos incor­ não estava gentilmente "sondando" mas, como o
porados no campo "inimigo", valorizados no texto mostra, perguntando a Joey por que ele não
momento em beneffcio do bloco dominante pensava em voltar seus pensamentos para a uni­
de interesse, poderiam ser, por assim dizer,
versidade, em direção ao trabalho mental, e isto
foi logo depois que nós estiyemos explorando a
detonados e os itens explodidos, revaloriza­ masculinidade em sua forma manualista como
dos, através da organização e da'ação basea­ uma forma de resistência de classe . O comentário
das numa compreensão contra-hegemônica está' realmente expressando sua atitude para com
propriamente sincronizada da Reprodução o trabalho mental em relação á masculinidade -
embora, naturalmente, (como é o caso em todo o
Cultural subordinada.
livro), esta expressão é contextua1izada e combi­
Assim os tigres são tanto reais quanto nada com muitas outras, o que torna sua redução
de papel. O fato de que a força através das à simples explicação, problemática.
garras não é tudo no tigre, não faz a ferida Além disto, se falhei em, devidamente, reconhe­
menos profunda. Mas não podemos decom­ cer e condenar o sexismo dos "rapazes", Angela
por o poder, simplesmente desejando e
McRobbie ex�gera a evidência. Isso não diminui,
naturalmente a relevância de seus argumentos
odiando - nem mesmo combatendo a vulne­ básicos - veja Angela McRobbie, "Setting ac­
rável carne. counts with Sub-cultures", Screen Education, n�
Isto toma-se pretensioso. O argumento 34, Primavera 1980, Londres.
é realmente um argumento formal e o princi­
pal deste artigo. Uma noção de Reprodução
Social que opere através da Produção
Cultural é bastante aberta, não fechada e
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
pessimista como outras teorias da Reprodu­
ção são (corretamente) consideradas. Ela tem ALTHUSSER, L. Ide% gy antI ide% gical state
elementos de desafio, transformação, nela apparatuses. In B. Cosin (Ed). Education:
incorporados - não hermeticamente encap­ Structure and society. Penguin, 1972
sulados. O problema não é o de como elabo­ BERNSTEIN, B. Class, codes antI control, VoI. 3.
rar teoria mas o de como alcançar esta possi­ Toward a theory of educational transmis ·
bilidade teórica na prática. E se a teoria dev� sion. 2! Edição. Routledge & Kegan Paul,
prestar atenção à prática, assim também a 1977.
prática deve prestar atenção à teoria. A visão BOURDIEU, P. Outline of a theory of practice.
de libertação em questão deveria talvez ser Cambridge University Press, 1977.
menos extensa, livre, e ideal: mais condicio­ BOURDIEU, P. & PASSERON, J. Reproduction in
nal, histórica, e cercada com ironias poten­ education, society and culture. Sage, 1 977.
ciais. Se nosso objetivo é superar o infindá­ BOWLES, S. & GINTIS, H. SCMoling in capita/ist
vel ricochete entre hberdade e compulsão, America. Basic Books, 1 976.
voluntarismo e estrutura, então a prática de­ MARX. K. The Eighteenth Brumaire of Louis Bo­
ve assumir uma responsabilidade também. napllf!e. In Selected Works-. Lawrence & Wi­
NOTAS shart, 1972.
PAUL W{LLIS trabalha no CENTRE FOR
L Eu entro em "teoria" e "clarificação teórica" CONTEMPORARY CULTURAL STU-
com algum receio. Parte deste receio advém do DIESIBIRMINGHAM UNIVERSITY.
18 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 3 1 8. julldez. 1986
-
este momento solene e grave De quem somos herdeiros

N
em que nós nos sentimos
c i d a dã o s -e d u c a d o r e s e Nós, educadores de todos os cantos
e ducadores-solidários ao do Brasil, não somos absolutamente
mesmo tempo de causas consensuais e originais nesta tarefa de exigir do Esta do
dissensuais, cumpre penSár nossa relação que ele seja, de fato, púhlico, ou, quem
com o Estado. Se a Constituição do s a b e , d u a s v e z e s púb l i c o , i s t o é
Estado Republicano impõe como regra republicano. Somos herdeiros de uma
máxima que "todo poder emana do povo longa tradição de luta ascendente onde:
e em seu nome será exercido", então é
forçoso recuperarmo-nos como fonte de "é possível assinalar a participação
poder do qual a Autoridade do Estado é dos educadores na elaboração da
uma delegação. Por isso, às expectativas p olítica educacional do Estado,
que temos em relação ao Estado no que configurando um movimento de
lhe compete investir em Educação, é baixo para cima e da periferia para o
preciso antes antepor as práticas político­ núcleo. As conferências de educação
educativas existentes no conjunto da (ou de e d u c a d o r es) foram os
Sociedade Civil. mecanismos que propiciaram essa
Estas práticas podem não só redefinir participação" (CUNHA, 1981).
as políticas públicas e seu significado
como também podem alterar seu "modus A g r a tu i d a d e , a l a i c i d a d e , a
faciendi". E, sobretudo, estas práticas obrigatoriedade, via de regra, não vieram
nos levam às raízes do poder constituído: como favor, como concessão ou outorga,
nós, enquanto cidadãos, tornamo-nos embora até possam ser representadas
sujeitos da História. Estas práticas como tal. E não se manterão pela força da
alicerçam-se na consciência cada vez. inércia. Certo estou de que esta IV CBE
mais larga de que a cidadania é também não fará traição a esta tradição de
fruto de combates e conquistas, avanços e coragem republicana e democrática.
recuos. O poder emana do povo, porque Contudo, e o real é contraditório,
ele pode criar poder como meio de se também somos devedores de padrões
chegar a uma Rep ública plu ral e verticalistas, centralistas e clientelísticos
democrática, isto é, como meio de emanados de projetos educacionais
"educar o educador". nascidos na esfera do Estado. Dentro dos

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 19 - 24, julldez. 1986 19


padrões elitistas e excludentes no acesso e exigências democráticas da sociedade
usufruto do poder de Estado, a civil crítica e organizada.
generosidade ou consciência política (de A I CBE, S. Paulo, 1980 ("Política
que o espaço de poder é estratégico para Educacional"): se impõe como palco de
maiores aberturas) de educadores e resistência pela crítica tanto a uma
intelectuais postos no espaço de poder, política educacional autoritária como ao
tornaram-se meios de copptação e próprio Estado autori t ário. M a s se
legitimação de iniciativas reduzidas. impõe também como marco importante
Certo estou, também, da consciência n a c o n s t r u ç ã o de u m a e d u c a ç ã o
cada vez mais ampla de que não iremos compromissada com a s maiorias.
muito longe se fiarmos apenas na A 11 CBE, B. Horizonte, 1982
"disposição pessoal dos intelectuais" ("Educação: perspectivas na democrati­
(COUTINHO, 1980). Só ligados a zação da sociedade"): ao lado do ímpeto
sujeitos coletivos é que o processo de crítico, marcou-se pela busca de novas
democratização superará o forte traço pistas para uma ação educacional
elitista e autoritário do Estado e das democratizadora. Era (como hoje o é)
classes dirigentes: hora de ação, no conjunto da
mobilização social em direção a uma
"O que a conteceu nos Esta dos sociedade mais igualitária.
democráticos foi e x atamente o A III CBE, Niterói, 1984 ("Das
o p osto: suje itos politic am e nte críticas às propostas de ação"). As
relevantes tornaram-se sempre mais eleições estaduais, via voto popular, a
os grupos, as grandes org anizações ... renovada tendência de voto oposicionis­
e sempre me nos os indivíduos" ta, permitem experiências educacionais
(BOBBIO, 1986). mais abertas e democráticas. Momento
de experiência oposicionista no poder
Pesa-nos, pois, e sta d u p l a e estadual, momento de expectativa na
contraditória herança: exigentes quando área federal, momento de ajuizamento
falamos do lugar que cria o poder e das propostas em curso.
moderados quando respondemos do Estas CBEs de modo algum s e
lugar que o exerce. Conscientes, �olocaram n o papel d e reforço dos traços
finalmente, d e que a s diferenças são seletivos, elitistas e autoritários d a
enriquecedoras e de que o unitarismo educação brasileira. Ao contrário, num
homogeneizador filia-se às correntes quadro pluralista e aberto contribuiram
f a s c i s t ó i d e s , e s t a m o s a q ui c o m o eficazmente na crítica à política existente
educadores a fim d e exercermos o duplo e na proposição de ações educacionais
papel implícito na c i d a d a n i a : d e voltadas para as maiorias excluídas, no
parceiros e m que o dissenso penetre e m sentido de tornar realidade princípios
nossas reconhecidas diferenças e de formais de igualdade.
cidadãos ativos capazes do exercício da
crítica aos projetos do Estado, com a
c o n s e qüen t e proposição do que Entre Niterói e Goiânia
q u e r e m o s v e r i n ve st i d o n a á r e a
educacional.
Entre Niterói - a grande expectativa
- e Goiânia - a perda da ingenuidade
A marcha das CBEs . leva a marca de -, muita coisa se passou: a eleição de
exigências Tancredo, sua morte, a posse de Sarney,
os múltiplos e sucessivos projetos de
A realização das 3 CBEs anteriores, reforma agrária, a postergação de uma
seu impacto na vida p o lít i c a e nova lei de greve, as l uta s p e l a
pedagógica, sua prod ução e outras recomposição salarial, a eleição direta
manifestações indicam-nas como fórum dos prefeitos das capitais, a volta do
de um debate horizontàl e como lugar de populismo, o plano cruzado, o plano de

20 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 19 - 24, julldez. 1986


metas e sobretudo o re-desenho de um Não se trata de desconfiar de ninguém!
velho figurino, constante na evolução S abemos, contudo, que o favor, a
política nacional: a conciliação entre as dependência, o clientelismo arcaico ou
elites dominantes como forma de moderno são estruturais na formação
transição conservadora e iiberalizante em brasileira. Sabemos que um projeto de
oposição aos movimentos da sociedade "cidadania regulada" o u excludente
c i v i l c o m o f o r m a de t r a n s i ç ã o sempre compôs com estes padrões de
democrática e popular. administração. Desconfiamos, à base
Este descompasso é fruto também da desta formação estrutural, da
continuidade de uma "Razão de Estado" permanência do passado no presente.
que se tem como auto-suficiente na Sobretudo, na área de investimentos
medida em que financeiros em educação interessa-nos
so bremaneira que: as verbas sejam
"a política dos 'arcana i m p erii' destinadas às escolas públicas e que o
caminhou simultaneamente com as processo de destinação seja claro e
teorias da razão de Estado, isto é , transparente.
com as teorias segundo as quais é República quer dizer transparência
lícito ao Estado o que não é lícito dos atos de Governo de tal modo que
aos cidadãos privados ..." (BOBBIO, permita
1986).
"ao cidadão conhecer os atos de
Manteve-se assim q u e m deté m o p o d e r e assim
controlá-los ..." (BOBBIO, 1986).
"um duplo estado no sentido de que
ao lado de um Estado visível existiria República quer dizer publicidade dos
s e mpre um E s t a d o i n v i s í v e l" atos do Governo, porque
(BOBBIO, 1986).
"a publicidade é por si mesma uma
Por isso, -- conclui Bobbio - forma de controle, um expediente
que permite distinguir o que é lícito
"a democracia tem a demanda fácil e do que não é "(BOBBIO, 1986).
a resposta difícil; :a autocracia, ao
contrário, está em condições de Sem este direito de controlar o poder
tornar a demanda mais difícil e ao qual se delegou as competências de
dispõe de maior facilidade em dar garantir os direitos e os meios da
respostas ..." (BOBBIO, 1986). liberdade, não h á educação nem
republicana e nem democrática. Por
N o eixo de uma transição incompleta, exemplo: interessa-nos, na permanência
nossas demandas na área educacional da lei Calmon, não apenas o percentual já
sofrem este descompasso, cuja superação aprovado, interessa-nos não só sua
está no próprio exercício da prática destinação à educação escolar pública,
democrática como prática de um poder interessa-nos sobretudo o processo, o
de pressão ascendente. Numa palavra: à "modus operandi", a trajetória do
questão "quem controla os controlado­ montante. Vale dizer, qual é o caminho
res" é preciso demandarmo-nos a nós das prioridades estabelecidas? Por onde
mesmos e respondermos: além do Estado esta verba passa e onde ela vai ficando?
e em direção ao Estado, nós, enquanto Não há muito insurgíamos contra o
grupo organizado, também somos centro t e c n i c i s m o e du c a c i o n a l p o r q u e
de poder enfatizava e priorizava as atividades­
Por isso, uma demanda fundamental meio em detrimento das atividades-fim
que fazemos é a transparência do poder. proclamadas.
Queremos que o Estado invista na
t r a n s p a r ê n ci a d e s eu s a t o s . A É preciso, pois, que o processo de
clandestinidade da informação não democratização atinja a própria
coopera com os processos democráticos. administração pública, de tal modo que

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre,lI(2): 19-24,juUdez. 1986 21


nenh u m educador seja acusado de uma nova Lei de Diretrizes e Bases, que
defender a privatização do Estado. incorpore, de modo mais específico, não
Além disto, queremos, através da só as conquistas "tradicionais", mas todo
participação e controle nos meios de um conjunto de medidas consentâneas
poder, um plano educacional nacional com as novas realidades e com a consa­
que supere não só as oscilações da gração em lei de conquistas advindas da
política econômica, como ultrapasse a prática.
d e s c o n t i n u i d a d e m an t i d a p e l a s Assim podemos citar: uma carreira do
oscilações oligárquico-clientelísticas. magistério que saiba ouvir os
Nós, educadores, temos propostas interessados, uma estruturação mais
nascidas de nossa própria prática democrática no interior das instituições
pedagógica e da tradição acima educativas, a escola como espaço de
mencionada. Mas não as queremos conhecimento e socialização do saber,
deslocadas da "periferia para o núcleo" a eleição de dirigentes longe das quarelas e
fim de serem projetos-impacto, projetos imposições do mandonismo. E, não
fátuos como forma de justificar boas podemos nos conformar, num mundo em
idéias sem continuidade e organicidade. que o conhecimento científico é cada vez
Se a continuidade é fundamental para um mais fonte de novos conhecimentos e do
projeto educacional, sua viabilidade só se qual depende boa parte do poder que à
dará no interior da transparência e do maioria da população se reserve e se
controle. destine, por falta de meios ou por
Do Estado, enquanto Executivo, complac ência n o s s a ,um ensino mo­
queremos uma resposta decisiva, no meio noscópico e de qualidade deprimida. E
de uma sociedade que foi pauperizada e será de tal qualidade se, encantados com
empobrecida: educação para quem? Há a identificação pura e simples de que só
tempos sabemos que os que produzem as descentralizar já é democratizar, dermos
riquezas e delas não se beneficiam são os uma adesão ingênua à estadualização do
grandes contingentes majoritários cujo que é federal e à municipalização do que é
acesso à educação esteve encarcerada na estadual. Se podemos e devemos admitir
sua redução a uma mera força-de­ algumas ações municipalizadas h á
trabalho. E isto não basta se faltarem os questões mais profundas na municipali­
m e i o s q u e e f e ti v e m u m a r e s p o s t a zação que transcendem uma reforma
concreta e qualitativamente superior. administrativa e tributária, por mais
Fa l a r d o E s t a d o , e n q u a n t o -imprescindíveis que estas sejam.
Legislativo, é de novo colocar o controle
da Sociedade Civil, através de uma de Estas demandas, e outras assinaladas,
suas mediações fundamentais. Contudo, por exemplo na reunião da ANPED / 86,
é preciso e é hora que este Poder mude no Rio de Janeiro, são passíveis de
seu perfil conservador e corporativo, r e c o n t e x t ua l i z a ção no â m b i t o d o
lançando-se d e pronto e intensivamente Executivo e Legislativo estaduais e
nas grandes questões nacionais. Também munic ipais. À luz de uma nova Carta
para este Poder temos demandas: Magna, também os Estados refarão a
queremos uma Constituição clara e sua. E aí demandamos não só carreiras
límpida que garanta alguns princípios docentes decentes, mas uma estruturação
que já se tornaram constantes nas do poder intra-escolar que assegure a
exigências democráticas: a educação distribuição do poder através de uma
pública como direito de todos à educação administração efetivamente participada.
em todos os níveis e como dever do E a incorporação de todas as propostas
Estado em prover os meios para garanti- efetivamente democráticas, que já se vem
la, não só para a população escolarizável, dando em vários Estados e Municípios. E
mas também para os que não dos municípios, em especial, que os
completaram a sua escolarização na faixa professores não-formalmente habilitados
etária da lei. deixem sua condição de último estrato e
E, após a nova Carta, onde a símbolo da opressão ao magistério e
e d u c a ç ã o 'púb l i c a s e j a m a n t i d a e tenham finalmente, um estatuto digno de
consagrada em todos os níveis, queremos suas funções.
22 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre 1 1(2): 19 - 24, juVdez. 1986
,
A partir de Goiânia ou local) no qual o indivíduo é
considerado em seu papel de cidadão
A partir de Goiânia queremos, deste e não na multiplicidade de seus
centro d o B r as il, q u e este centro papéis específicos" (BOBBIO, 1986).
signifique o alargamento irradiador de
um novo ciclo educacional brasileiro, Será, pois, çomo cidadãos, isto é,
irradiação pelo consenso no dissenso, como grupo consciente e organizado que,
pela unidade na diversidade. ao r etomarmos a fonte de poder,
A partir de Goiânia queremos, mais devemos seriamen te discutir com
uma vez, que os problemas educacionais candidatos a proposta, a coerência e a
sejam tratados de modo adulto, coerente, operacionalização da mesma.
contínuo, responsável e compromissado E, sobretudo, sabemos que não
com os interesses m ajor itários da seremos cidadãos enquanto milhares de
população. Sabemos que, para além das pessoas continuarem a viver no fundo da
lutas comuns e consensuais, temos um opressão a que foram condenadas pelo
espaço de dissenso. É por isso que há autoritarismo das classes dirigentes. É ilO
também partidos. Cumpre-nos cobrar sentido deste novo cidadão, ainda não
d e l e s a e x p l i c i t a ç ã o de n ú c l e o s reconhecido, que queremos deixar claras
programáticos definidos e tematizados. as demandas que almejamos consubstan­
Basta de generalidades que não chegam ciadas, ao final da CBE, numa carta de
lá onde a educaç ão pega no seu Goiânia, coerente com o próprio
específico: a sala de aula, o gabinete de movimento das práticas e aspirações
p e s q u i s a , a b i b lio t e c a e o u t r a s verda deiramente emancipatórias
cotidianeidades esquecidas. existentes n o âmbito da Sociedade Civil.
A partir de Goiânia entramos, Na questão da educação pública não
finalmente, no espaço constituinte, onde se pode deixar tudo por conta da
queremos que os interesses gerais da Constituinte. Aqui é um fórum público
população falem mais forte que a onde estas questões devem ser debatidas
solidariedade de nossas corporações. É como obra coletiva, como obra nossa. Os
por estarmos certos e convictos de que o constituintes, como representantes
ensino público, gratuito, universal e diretos de interesses coletivos, não
obrigatório responde a u m anseio podem se circunstanciar a um "petit
manifesto das populações que o aspiram, comitée". E serão levados a isto se não
por estarmos certos e convictos de que a assumirmos nossa condição de fonte do
educação escolar é um interesse geral e poder. Devemos impor, pelo convenci­
coletivo é que temos que recolocá-los nos mento e pela pressão pedagógica, uma
debates da Constituinte. É preciso, pois, maior sintonia do Estado com o conjunto
que os candidatos, dentro de seus das demandas sociais tão longamente
partidos, expressem compromissos reais reclamadas nas praças das cidades e que
e efetivos, na defesa dos princípios foram e são o sinal das potencialidades
republicanos, democráticos e sociais da do novo que surge.
educação. E se o momento constituinte é Educadores brasileiros, se há uma
o instante em que o poder se descola de luta entre a necessidade que se impõe
sua visibilidade institucional e se desloca rebelde e a vontade que se quer ativa e
para o cidadão como fonte de poder, é transformadora, saibamos que o mundo
preciso fazer valer este poder. pode ser transformado e que as
A democracia moderna, diz Bobbio, circunstâncias podem ser modificadas
nasce pelos que se sabem sujeitos da História e
dela querem participar como tais.
"como método de legitimação e de Educ adores brasileiros aqui
controle das decisões políticas em presentes, façamos d e Goiânia este
s e n tido est r i to ou do 'gover no' momento de partida para um novo rumo
propriamente dito (seja ele nacional nos caminhos dá Educação Brasileira.

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 19 - 24, julldez. 1986 23


* * *
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, L.A. "A Organização do campo educa­


cional: as conferências de Educação", in Re­ * CARLOS ROBERTO JAMILCURY é professor

vista Eduroção e Sociedade, 3(9), S. Paulo, da Universidade Federal de Minas Gerais.


Cortez e Associados, maio 1981.
Este texto foi apresentado no Simpósio de abertura
BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa
da IV Conferência Brasileira de Educação, Goiânia,
das regras da jogo. Paz e Terra, R. Janeiro,
1986. de 2 a 5 de setembro de 1986.

COUTINHO, C.N. A democracia como valor uni­


versal. Ciências Humanas, S. Paulo, 1980.

24 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 19 - 24, julldez. 1986


ste artigo é parte de uma tese no RS na divulgação de teorias e tendências

E
que nasceu da prática. Mais que pedagógicas e que exerceu grande influência
prática pedagógica, prática de no ambiente educacional gaúcho.
vida - vida de mulher. Segundo a orientação teórica que ado­
Das aulas de História da Educação no tamos, o trabalho examinaria esta realidade
Curso de Pedagogia da UFRGS nasceu a institucional específica tanto sob uma pers­
preocupação com o tema: educação feminina. pectiva externa como interna, ou melhor Qi­
Numa atividade em que predominavam e to, visava a escola articulada ao todo social,
predominam as mulheres, discutíamos (mi­ atravessada pelas contradições sociais e tam­
nhas alunas e eu) o papel da escola na forma­ bém síntese de múltiplas determinações so­
ção feminina, e constatávamos a ausência do ciais; ma� também iria observar a escola a
tema na historiografia. partir de dentro, ou seja, pela perspectiva das
Destas discussões emergiu a questão pessoas que lá viveram, identificando as rela­
básica para pesquisa: o que representou para ções de poder aí existentes, seus rituais e
as mulheres a passagem pela escola - um usos próprios, seu "clima", enfim o que ela
treinamento para a submissão ou um instru­ pretendia valorizar e o que efetivamente
mento de libertação? transmitia para alunos e professores.
De uma crônica de Luis Fernando Ve­ Mas antes de nos aproximarmos desta
rusimo veio então a sugestão para o título: escola parece ser necessário fazer algumas
Prendas e Antiprendas. Ali ele dizia que "a colocações sobre a dominação homem/mu­
prenda é", para o gaúcho, "a idealização da lher.
fêmea que não se mete". Em oposição, anti­
prenda seria a mulher "metida", aquela que Esta é uma contradição que aparece em
participa, tem voz própria, decide, trabalha. nossa sociedade mesclada com a contradição
A pesquisa pretendia portanto determinar o de classe, mas que tem ela mesma caracterís­
papel da escola na formação destes dois pó­ ticas específicas e uma história própria.
los femininos. Desde épocas mais antigas foi se estru­
Na necessidade de delimitar um objeto turando a relação de dominação do sexo
de pesquisa, escolhemos uma escola cente­ masculino sobre o feminino, tranforman­
nária do Rio Grande do Sul - o Instituto de do-se ao longo da história, conforme se al­
Educação de Porto Alegre, fundado como teravam os modos de produção social e as
"Escola Normal da Província de São Pedro construções ideológicas.
do Rio Grande", em 1869. Uma instituição Para alguns estudiosos do problema esta
pública, oficial, localizada na capital, fre­ opressão é tão presente em diferentes socie­
qüentada majoritariamente por mulheres das dades e diferentes momentos que eles che­
camadas médias. Uma instituição que foi por gam a levantar a hipótese de sua universali­
muitos anos a única escola de formação de dade; outros no entanto buscam determinar
professores do Estado e que serviu de mo­ suas origens, ainda que reconheçam raízes
delo para organização das demais, pioneira históricas distantes no tempo.

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, juUdez. 1 986 25


Evidentemente, as diferenças físicas en­ Uma história da educação feminina
tre os dois sexos existem e são fundamentais,
mas não nos parece que elas sirvam para ca­ Conforme sabemos, o estado gaúcho
racterizar a "fragilidade" feminina (ligada esteve quase sempre envolvido em guerras e
freqüentemente a sua capacidade de gesta­ revoluções e de algum modo se passou aos
ção), e, em conseqüência, a ascendência mas­ homens do povo a idéia de que eles deviam
culina; muito pelo contrário, estas distinções se envolver nestas lutas. Então os homens do
são a manifestação mesma da complementa­ coronel Fulano ou Beltrano, os peões dos
rÍdade dos sexos, de sua mútua necessidade. estancieiros, lutaram e morreram para que
Os dois pólos desta contradição formam seus patrões tivessem mais terras; ou para
uma totalidade dialética, na qual cada um se que se mantivesse ou se derrubasse determi­
constitui a partir do outro. No entanto, di­ nado chefe político; ou ainda, no passado
ferente de outras relações de contradição mais distante, para expandir e conservar em
(como por exemplo, a contradição entre as mãos portuguesas regiões cobiçadas por
classes sociais), a relação homem/mulher não castelhanos.
se explicita necessariamente num choque ou E neste tempo todo as mulheres cuida­
enfrentamento, mas, ao contrário, muito fre­ ram dos filhos e esperaram; mantiveram suas
qüentemente se expressa por uma cumplici­ casas, alimentaram os seus e esperaram; as­
dade entre seus elementos. sumiram responsabilidades e esperaram.
A distinção que existe entre ambos, e Assim, entendemos que as mulheres são
que é ao mesmo tempo um tipo de oposição, fortes na obra de Érico Veríssimo porque
é constitutiva do ser humano, do ser social. elas parecem ter na verdade um grande senso
O ser humano é constituído biologicamente de responsabilidade, já que são elas que per­
como homem e mulher e também social­ manecem na manutenção do cotidiano e
mente se constitui como masculino e femini­ portanto com a preocupação da sobrevivên­
no; ou seja, a masculinidade se constrói por cia física e moral dos seus, enquanto os ho­
oposição e na oposição à feminilidade e vice­ mens estão ausentes. Disso é ilustrativo um
versa, sempre referidas a uma sociedade pequeno trecho d'O Arquipélago:
historicamente determinada.
Assim, esta estreita relação dialética "... uma mulher nesta terra tem de
permite que se entenda que a contradição estar preparada para o pior, os ho­
homem/mulher não se resolve, não se elimi­ mens não têm juízo, vivem nessas fo­
na, e sim que ela se transforma, se modifica lias de guerras. Que é que a gente vai
ao longo da história. O que não exclui do fazer senão ter paciência, esperar,
horizonte a possibilidade de ela se estruturar cuidar da casa, dos filhos... Os ho­
de modo muito mais justo em uma sociedade mens dependem de nós. Como dizia a
futura, diferente desta. Em outras palavras, a velha Bibiana, quem decide a guerra
contradição homem/mulher enquanto oposi­ não são eles, somos nós. Um dia eles
ção e relação entre contrários tem uma base voltam e tudo vai depender do que
natural (biológica), mas a sua manifestação encontrarem. Não se esqueça. Nós
opressiva, ou seja; de dominação de um sexo também estamos em guerra. E nin­
sobre o outro, é histórica e portanto passível guém passa por uma guerra em
de transformação. branca nuvem",1
Assim entendido precisamos admitir que O que importa resgatar aqui, nos parece,
a "condição feminina" não existe em abs­ é que a manutenção do cotidiano é uma ta­
trato, mas é determinada historicamente e as refa difícil e essa dependeu fundamental­
instâncias ideológicas, entre elas a escola, mente das mulheres, no Rio Grande. Quando
vão refletir as posições que a mulher ocupa as coisas se complicam e os homens se pre­
no mundo produtivo, e vão também contri­ param para partir, uma das mulheres vai para
buir para manter, reforçar ou transformar os a cozinha preparar um tacho de pessegada, o
papéis a ela atribuídos socialmente. que talvez simbolize o comportamento de pés
Observar a posição que historicamente a plantados no chão, um realismo que também
escola brasileira assumiu neste embate de é, ao mesmo tempo, um modo de fugir do
interesses opostos é tarefa aparentemente fá­ medo de perder seus homens na luta.
cil. A resposta mais ou menos imediata seria Importa também salientar que estas
que a escola ajudou a consagrar os tradicio­ "folias de guerra" atingiram de muitos mo­
nais papéis femininos - o que é provavel­ dos toda a sociedade e não somente aqueles
mente parte da verdade, mas não toda a ver­ que delas participaram diretamente. Atingi­
dade. Parece ser necessário ir além desta res­ ram as mulheres exigindo-lhes tarefas
posta imediata. ir além da aparência. usualmente masculinas, como cuidar dos sí­
Tendo estas idéias presentes, vamos tios e fazendas ou decidir sozinhas sobre o
observar como se deu a educação feminina destino dos filhos, significaram também co­
no Rio Grande do Sul, antes mesmo do sur­ locar num plano secundário projetos de estu­
gimento da Escola Normal. dos ou desenvolvimentos pessoais.

26 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre , 1 1(2): 25 - 56, julldez. 1986


Assim se o que vamos examinar aqui é a destas ordens atendi�m a órfãs, essa preocu­
educação dessas mulheres, não há dúvida que pação ganha maior realce, pois as moças
houve muito pouco espaço para uma educa­ nestes casos não tinham famílias que pudes­
ção formal, escolarizada. Nestes tempos de sem zelar por sua integridade e reputação.
guerras e revoluções que estenderam-se até Em termos formais e a nível nacional,
mesmo ao período republicano, para a mu­ a instrução feminina aparece na Constituição
lher das classes dominadas não se pensava de 1824, evidentemente revelando as restri­
nem de longe .sobre as necessidades de saber ções da época, ou seja, propondo que as me­
ler, escrever, ou contar. Aliás, nem mesmo ninas freqüentem as escolas de primeiras le­
para as fIlhas dos estancieiros, nos tempos tras, as pedagogias, em classes separadas dos
coloniais ou até do Império, parecia ser in­ meninos e lecionadas por professoras mu­
dispensável uma cultura letrada. lheres (as quais deveriam ser comprovada­
O que se pensava como necessário para mente honestas e dignas).
a educação feminina era, sem dúvida, a des­ De um lado essas determinações repre­
treza nas lides domésticas. sentam não só a oportunidade de estudo para
Saint Hilaire, que visita o Rio Grande as meninas, mas também um espaço profis­
do Sul nas primeiras décadas do século XIX, sional para as mulheres (como professoras),
descreve o abandono da Província em termos o que é um avanço; mas de outro lado, os li­
de escolas (tanto para meninos como meni­ ceus, ginásios e academias ficavam restritos
nas), mas fala que as mulheres gaúchas lhe aos rapazes, e supunha-se que o currículo
pareciam ter "vistas mais largas" e ser "me­ das classes femininas deveria ser diferente
nos acanhadas" do que as das capitanias do (reduzido em alguns aspectos, inclusive) do
interior.2 Talvez ele assim comente exata­ dos meninos do mesmo nível. Note-se ainda
mente porque é recebido algumas vezes pelas que uma das diferenças no currículo era
mulheres dos estancieiros, que lhe dão abrigo quanto à geometria, considerada desnecessá­
nas fazendas (já que seus maridos estão au­ ria para as meninas (bastava que estas sou­
sentes), ainda que pouco falem com ele e não bessem as 4 operações), e justamente geo­
o acompanhem nas refeições. metria servia para distinguir dois níveis de
Por tudo isso, num cenário como este, salário para os professores; então deste mo­
fica curioso destacar que o 12 livro de poe­ do, ainda que por lei os salários devessem ser
sias publicadas no Rio Grande seja escrito idênticos, os que lecionavam geometria
por uma mulher: Delfina Benigna da Cunha (portanto s6 os professores homens) recebe­
(1 834 - "Poesias dedicadas às senhoras rio­ riam maior pagamento.
grandenses"), e que em 1 847 o 12 livro de Já aqui então se pode observar um dos
ficção editado em Porto Alegre seja também principais elementos que determinarão que o
de uma mulher, Ana Eurídice Eufrosina de ensino das primeiras letras passe a ter mais
Barandas. Seriam estas, exemplos de "anti­ mulheres do que homens: os salários, que aí
prendas"? Na verdade, ambas tinham posi­ serão mais baixos. I
ções ao lado do Governo Imperial e contrá­ No Rio Grande do Sul, a falta de escolas
rias aos revolucionários farroupilhas, o que em geral e de modo especial para meninas é
não deixa de significar uma atitude mais muito grande em praticamente todo o perío­
conservadora em relação ao regime. De do imperial. Se os relatórios oficiais recla­
qualquer modo, o que nos interessa salientar mam providências, eles são sempre mais en­
é que embora o Estado tivesse pouco ou mí­ fáticos com relação aos meninos, com uma
nimo cuidado em relação à educação femini­ espécie de tolerância para a ausência de es­
na, já apareciam elementos que se contrapu­ colas femiroinas.
nham à condição dominante. De fato, dentro da ideologia dominante
Como sabemos, no período colonial e na época, fala-se que as mulheres deveriam
mesmo imperial, os estudos mais avançados ser mais educadas do que instruídas. Nesta
deveriam ser feitos fora do Brasil, na Euro­ distinção parecia estar presente a idéia de
pa, onde, segundo o modelo vigente, estava a que instrução seria algo mais adequado aos
civilização. Mas esta educação era restrita homens, ou melhor, algo perigoso para as
aos meninos. Para o Rio Grande, já era um mulheres, porque poderia lhes colocar em
caso de exceção a moça educada na Corte, posição semelhante à deles. O termo educa­
isto é, no Rio de Janeiro, e esta trazia, é cla­ ção parece ser entendido de modo mais am­
ro, um outro tipo de cultura para o sul. plo e englobar uma formação ideol6gica, en­
Com a entrada na Província de ordens quanto que instrução provavelmente se re­
religiosas femininas começou a aparecer uma fere de modo restrito às informações, ou ao
possibilidade maior de educação formal para saber científico e cultural disponível num da­
mulheres - especialmente para as camadas do momento histórico.
dominantes. Nestas instituições religiosas, a Já que o dominar informações confere
preocupação fundamental era a formação poder, é importante que isto seja privilégio
moral das moças, o que se percebe em textos do setor dominante. Na contraposição que se
sobre a época que falam em preservá-las da colocava, educação envolvia a doutrinação
"contaminação dos vícios". Como algumas da mulher sobre seu lugar na sociedade, ou

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre II (2): 25 - 56,juVdez. 1986


, 27
seja, algumas informações lhe eram permiti­ extremamente significativo para o estado foi
das, é claro, mas envolvidas pelas funções e sem dúvida a inauguração da Escola Normal
papéis a ela recomendados. Assim: é muito da Província de S. Pe dro, a 5 de abril de
provável que esta preocupação em "educar e 1869, para formação de professores (homens
não apenas instruir" encobrisse uma intenção e mulheres). A instituição, no entanto, se
de dominação ideol6gica. toma desde seus primeiros anos uma escola
Tal discurso é comum dentro do pensa­ essencialmente feminina.
mento positivista do século XIX, que vê a São freqüentes as referências sobre
mulher como de natureza complementar ao mulheres que ali passaram e que ocuparam
homem, tendo portanto características dife­ [lOsterionnente posições de Ik'erança no es­
rentes das dele e devendo ser educada, mas tado. Também estudos sobre feminismo no
com objetivos específicos. Esta mensagem Rio Gran�Je do Sul a?ontam como elementos
positivista é ainda a dominante no início da de proa mulheres que estudaram na institui­
República, sempre se salientando a função ção. Uma destas mulheres é Ana Aurora do
maternal da mulher. Sua educação deve ser Amaral Lisboa (1860-1951) que cursou a
feita no sentido de que ela será a responsável Escola Normal no século passado e é por
pelos homens de amanhã. A finalidade da muitos considerada a primeira feminista do
educação da mulher não estava portanto nela Rio Grande do Sul. Liberal, abolicionista,
mesma, mas fora dela, na sua extensão, que federalista e republicana (embora contrária
são os seus ftlhos. , ao caráter positivista deste movimento), foi
Na imprensa gaúcha do século XIX, é perseguida politicamente e defendeu-se de
possível encontrar alguns elementos para modo ousado. Manteve pela imprensa forte
acompanhar a orientação predominante so­ polêmica política; demitiu-se do cargo públi­
bre educação feminina. É o caso de um se­ co de professora (em protesto) e criou uma
manário sobre letras de Porto Alegre - "O escola particular em Rio Pardo onde lecionou
Guayba" - que em 1856 publica um artigo por 54 anos. Ali inscreveu os ftlhos de escra­
intitulado "A educação feminina e suas van­ vos libertos pela Lei do Ventre Livre, que
tagens para o Brasil". Como registra Pedro assim estudavam junto com os alunos pa­
Soares, o artigo "é uma defesa moderada gantes. Criou também, mais tarde, um curso
desta educação, para que as mães não trans­ noturno gratuito para adultos - atividade na
mitam preconceitos e superstições aos fi­ qual foi provavelmente pioneira.
Ihos".3 Esse mesmo autor faz um relato de Em entrevista muitos anos depois (1942)
vários peri6dicos gaúchos dedicados à mu­ disse: "o acontecimento principal de minha
lher ou que tratam dela, onde a educação vida e que influi em toda ela foi a resolução
aparece muito unida à formação moral e reli­ que tomei de estudar em Escola Normal"4.
giosa. Pedro Soares que estuda o feminismo no
Além deste tipo de argumentação sobre Rio Grande do Sul cita além desta Ana Au­
educação feminina, apareciam outros de ori­ rora outra agressa da escola que cria um jor­
gem religiosa ou revestidos de um "cientifi­ nal de cunho feminista em Bagé, e mostra
cismo". Assim alguns defendiam que a mu­ também que se estabelecia uma verdadeira
lher tivesse menos instrução por razões mo­ rede de contatos entre as escritoras dos
rais, para que se mantivesse no papel de muitos peri6dicos dedicados à mulher no Rio
conservadora dos valores familiares, isto é, Grande.
impedindo as inovações perturbadoras da or­ Contudo, não devemos por estes exem­
dem que surgiam na sociedade. Outros acre­ plos favorecer a impressão de ter sido esta
ditavam que ela era inferior ao homem men­ Escola Normal uma instituição "avançada"
talmente, fosse por razões biológicas fosse no comportamento social e político. Por sua
por razões históricas, uma vez que não se es­ hist6ria é possível perceber que a instituição
timulava o cérebro e então ele evoluía me­ esteve muito integrada ao governo oficial do
nos. Estado e às orientações dominantes. O que se
Deste modo, como podemos observar, insinua aqui, nestas primeiras referências a
além das escolas de primeiras letras eram algumas alunas de destaque, é que, ainda que
poucas as oportunidades educacionais para as a escola tivesse uma disciplina exigente e
mulheres, tanto no Rio Grande como em to­ coerente com os costumes do período, ou
do o País. seja, com 6bvia separação de rapazes e mo­
Mas a realidade não é simples e univer­ ças, cuidadosa orientação moral e religiosa,
sal. Aqui mesmo no Rio Grande do Sul apa­ menções e distinções aos alunos e alunas
reciam divergências desta posição dominan­ mais dignos, enfim ainda que a escola pas­
te. A Sociedade Partenon Literário (de 1868 sasse a ideologia dominante na sociedade,
a 1886) pode ser um exemplo disso. Ali de­ observamos que algumas de suas "pupilas"
fendiam-se os ideais abolicionistas e republi­ não a incorporavam integralmente, sendo ca­
canos, bem como maiores oportunidades pazes de criticar o regime político e as nor­
para as mulheres, e em suas reuniões e saraus mas sociais.
literários participava o elemento feminino. Nas primeiras décadas do século XX
Além desta instituição, um elemento mudam os argumentos' para justificar as di-

28 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, julldez. 1986


ferenças na educação ou no tratamento social das casas para o passeio nas ruas da cidade.
entre homens e mulheres. Agora se empre­ As jovens das camadas médias que pas­
gavam menos explicações genéticas ou bio­ sam a circular pela rua da Praia são em gran­
lógicas, passando-se a usar mais explicações de parte as mesmas que estudam na Escola
psicológicas. Assim, diziam os mais avança­ Complementar (escola normal), pois a insti­
dos que o sexo masculino não era superior ao tuição assumia um papel de destaque no am­
feminino, mas que tinham cada um atributos biente educacional gaúcho.
naturais diferentes. Essas diferenças se refe­ J á em 1914 o secretário do interior,
riam ao temperamento, caráter, tipo de ra­ Protásio Alves, enviava : a Montevidéu um
ciocínio, o que levava a que as mulheres grupo de alunas-mestras recém-formadas
fossem naturalmente dóceis, submissas, sen­ pela escola para tomarem conhecimento de
síveis, cordatas e dependentes, e os homens, métodos de ensino, uma vez que ali se consi­
fortes, agressivos, independentes. Elas, in­ derava adiantada a educação.
tUitivas, pacientes e minuciosas; eles, lógicos, Este tipo de notícia pode ser explorado
erganizadores, criativos, mais capazes de ge­ para ilustrar não só a preocupação desta es­
neralização e sínteseS. Por esta ideologização cola com o avanço pedagógico, mas também
dos papéis também seria conseqüência natu­ o pioneirismo destas alunas mestras ao reali­
ral que ao homem ficassem atribuídas as fun­ zarem viagem de estudos, buscando aprimo­
ções decisivas e públicas da organização so­ ramento profissional. Ora, parece inegável
cial, e à mulher as tarefas menores e mais que uma caravana de moças recém-formadas
interiorizadas. Ainda como corolário destas representava - em 1914 - uma quebra na
imagens, os homens estariam mais destinados posição conservadora que não admitia a pro­
às atividades científicas, e as mulheres às ar­ fissionalização feminina. Provavelmente não
tísticas; isto numa sociedade em que as pri­ é coincidência o fato de que entre estas jo­
meiras são mais valorizadas. vens está Olga Acauan Gayer que seria de­
Então as diferenças, mesmo que se pois destacada diretora do Instituto de Edu­
apoiassem em outros motivos e aparente­ cação e membro ativo dos órgãos educacio­
mente negassem uma superioridade, conti­ nais do Governo gaúcho. Então, ainda que a
nuavam justificando a dominação de um sexo formação fosse rígida quanto a padrões de
sobre o outro. comportamento e certamente muito coerente
Isso se construía a nível superestrutural com os tradicionais papéis femininos, não
e a mudança de argumentação provavel­ podemos deixar de notar que a própria escola
mente tem a ver com modificações que se também oportunizava a possibilidade de ne­
notavam na base da sociedade com referên­ gação destes papéis, abrindo horizontes pro­
cia à participação produtiva feminina. fissionais e colocando as jovens em contato
A mulher participava muito mais da vida com outras realidades.
econômica do País, especialmente nas áreas Por outro lado, os relatos da época
de industrialização (notadamente no seto:" queixam-se da dificuldade em prover as
têxtil), e começava a entrar no setor terciá­ classes do interior do estado com mestres
rio, nos serviços de datilografia, secretaria e formados, porque como estes eram na maio­
nas atividades de comércio. Contudo essa ria mulheres, dificilmente elas iam para o in­
maior participação feminina não nos pode terior (fazendo-o apenas quando dali eram
deixar esquecer o fato de que se concentrava originárias). Por isso, o Estado continuava
nas atividades consideradas mais adequadas à contratando pessoal não qualificado para su­
sua "natureza" ou "vocação", atividades de prir estas classes. Mas ao mesmo tempo em
apoio, auxiliares ou que exigiam menor força que isto acontecia são feitos destaques (como
física. o da já mencionada Ana Aurora do Amaral
De qualquer modo, o aumento de possi­ Lisboa) de moças de que vão viver e lecionar
bilidade de trabalho para as mulheres repre­ longe de sua família.
sentou também uma certa quebra do isola­ Este tipo de comportamento, ainda que
mento familiar em que elas viviam. Então não estimulado, podia ocorrer e efetivamente
sair para trabalhar fora de casa começava ocorria, o que possivelmente indica a presen­
a ser aceito com menos preconceito, ainda ça de uma outra mensagem passada pela es­
que isto ficasse restrito às camadas menos cola. A idéia de servir às populações afasta­
privilegiadas. das e mesmo de adquirir alguma liberdade
Mas para as moças das camadas médias acaba aparecendo como uma alternativa às
começava também a surgir efetivamente uma normalistas.
possibilidade de estudo e opção profissional: E foi assim, nos parece, quc começaram
a escola normal e, conseqüentemente, o ma­ a construir-se as "anti prendas" a que Luis
gistério primário. Fernando Veríssimo se refere.
No ambiente específico que estudamos, A ideologia dominante, que junto com a
Porto Alegre, observam-se nestas primeiras dominação de classes passava a dominação
décadas do século XX mudanças significati­ do sexo masculino sohre o feminino, vinha
vas que atestavam a modernização da capital pela imprensa, pela escola, pela igreja, dis­
e ajudavam a tirar as moças do isolamento solvida nas instituições políticas e sociais.

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, I I (2); 25 - 56, julldez. 1986 29


Os ideais de mulher submissa, obedien­ dade. Não seria realmente fácil convencer
te, recatada, prendada, certamente eram en­ aos professores, gera1mente educados nas
sinados às jovens estudantes. A formação das formas mais tradicionais e que lecionavam
normalistas confundia até certo ponto o pa­ numa escola considerada padrão (o que por­
pel de professora com o de mãe; por isso se tanto lhes conferia status), de se despirem
fa1ava tanto em vocação e era senso comum das formalidade e prerrogativas de "catedrá­
a idéia de que a mulher era mais adequada ao ticos". Pelo contrário, o próprio decreto
magistério primário. A função materna1 era apontava para limites nas relações profes­
transferida dos fIlhos para os alunos e conti­ sor-a1uno. Daí que estas relações deveriam
nuaria a ser por muitos anos exa1tada. provavelmente ser bastante formais; carre­
Mas esta escola provocava ela mesma gadas de respeito e de distância.
(ainda que provavelmente não o desejasse), A leitura de normas disciplinares certa­
contraditoriamente, outros comportamentos: mente não desvenda claramente o ambiente
o desejo de saber mais, a curiosidade, a as­ escolar, mas pode nos dar indicações sobre as
piração profissiona1,. a pre.ocupação com os formas de convivência consideradas mais
problemas sociais, a liderança. Mesmo que adequadas em determinado período.
não fosse o objetivo procurado, a escola Assim, podemos perceber a1gumas pe­
também ajudava a1gumas mulheres a serem quenas modificações nas reformas que pou­
"metidas" . cos anos depois a escola vive (1939 e 1943).
O Instituto de Educação (nome que a insti­
tuição passa a ter a partir de 39), faz sérias
Construindo uma tradição e algo mais ... exigências com relação à conduta das jovens
que buscam a escola para se tomarem pro­
Vamos concentrar nossa atenção na Es­ fessoras. Por isso recusa a matrícula de quem
cola Norma1 de Porto Alegre da década de apresente na caderneta escolar registradas
30 a 1971, e dentro deste ambiente observar "atitudes morais não conformadas às exigên­
as propostas e contradições da educação fe­ cias da missão que pretende abraçar"6 e
minina. Na tentativa de reconstruir este am­ também at,ibui "nota de aplicação" em todas
biente educaciona1 recorremos não só a do­ as disciplinas.
cumentos escritos, revistas, textos e jornais, Já era então notório que o curso normal
como também utilizamos depoimentos de a1- se destinava especia1mente às mulheres e o
gumas mulheres que passaram pela escola, Instituto de Educação já se consolidara como
a1unas e professoras. uma escola fundamenta1mente feminina. Em
Em 1930, a Escola Normal de Porto 1944 concluem o ginásio os três últimos ra­
Alegre já tinha um prestígio bem firmado no pazes, e este nível de ensino passa a ser ex­
estado gaúcho e era objeto de atenções por clusivamente feminino. Como nesta época é
parte dos órgãos oficiais. Recém-reformada assegurada a matrícula das egressas do giná­
(decreto 4277129) crescia eql número de es­ sio do IE no curso normal, ta1 fato (somado à
tudantes e procurava incorporar as idéias tradição do magistério primário feminino)
modernas do escolanovismo. No entanto, ao garante a predominância de mulheres na ins­
invés de examinarmos aqui mais especifica­ tituição.
mente os procedimentos e experiências de O regulamento disciplinar desta época
ensino reveladores daquela tendência peda­ ta1vez pudesse ser sintetizado numa expres­
gógica, vamos observar com mais deta1hes são: "contribuir pela atitude intelectua1, mo­
como se vivia dentro da escola naquele pe­ raI e social, mantida no estabelecimento ou
ríodo. fora dele, para elevar no conceito da socie­
As normas disciplinares apontadas no dade o Instituto de Educação"7.
decreto de 1929 possivelmente poderão nos Estava-se construindo a sólida imagem
dar a1gumas indicações. Ainda mais se consi­ do Instituto de Educação. O apelo de manter
derarmos 'que Emílio Kemp (que projetara elevado seu conceito na comunidade funcio­
a reforma geradora do- decreto) era o diretor naria admiravelmente por anos a fio. Desen­
da escola (1927-35 ), o que faz supor que as volvia-se nas gerações de estudantes e no
regras ali postas fossem empregadas na Es­ corpo de professores o orgulho de estar
cola Normal. dentro daquela escola e exacerbava-se este
Eram normas severas, com restrições e sentimento para exigir uma dedicação e fide­
penalidades que sem dúvida visavam conse­ lidade constantes.
guir unidade de ação dos professores e espe­ A descrição feita por uma personagem
cia1mente obediência plena dos a1unos. de sua entrada ali como professora, em 1944,
Provavelmente estas normas não eram pode exemplificar. Diz ela:
no entanto incomuns para a época, mas coli­
diam em vários aspectos com o ideário da es­ " ... Já desde o tempo em que eu vivia
cola nova, que a instituição pretendia defen­ em Santana p'ra mim seria o máxi­
der e divulgar. mo do clima e do meio educacional o
O ajuste às idéias mais liberais em ma­ Instituto de Educação "Gen. Flores
téria de comportamento se faria com dificul- da Cunha", uma bela casa com colu-

30 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, \ 1(2): 25 - 56,julldez. 1986


nas, colocada em pleno Parque da o significado do surgimento desta escola num
Redenção. ( ... ) Bom, eu entrei por estado muito desorganizado do ponto de
esta casa, entrei por aquelas colunas, vista educacional, e sua construção como um
empolgada, eu tinha chegado ao má­ centro irradiador dos novos estudos e expe­
ximo, eu tinha 24, 25 anos, eu acho, e riências pedag6gicas. Apoiada em condições
eu entrei assim como quem descobre objetivas, como estar localizada na capital,
o mundo. E realmente a imagem que dispor de apoio oficial e congregar profes­
eu tenho destes dois anos - que depois sores de destaque, foi também "trabalhada"
interrompi e voltei mais tarde - a a imagem da instituição, ou seja, através de
imagem que eu tenho é tudo aquilo várias situações foi sendo desenvolvida na
que a gente lê na literatura do que comunidade a valorização do colégio. A es­
deve ser uma escola propriamente cola não s6 estimulava internamente esta
dita . "g (A).
.. valorização (nas aulas, nos hinos, nas soleni­
dades), mas se expandia para fora, partici­
Também é expressivo o que diz uma ex­ pando de todos os principais eventos de
aluna, da década de 50: Porto Alegre, o que permite a uma das
depoentes dizer que o "Instituto era uma es­
" ... A gente tinha consciência de que pécie de sala de visitas do estado".
ser aluna do Instituto englobava al­ As alunas que recebiam estas autorida­
gumas responsabilidades a mais. Em des e visitas possivelmente eram as moças
determinadas manifestações a gente das camadas médias da sociedade gaúcha.
tinha que lle conter porque a gente Para observar o tipo de jovem que ali estu­
era aluna do Instituto, especialmente dava seria interessante ler um exemplar da
se a gente estivesse usando o unifor­ Revista do Globo de 1944 que apresentava
me. Isso era muito usado na esco­ em sua capa uma aluna da escola, abrindo
la . . " (D).
.
uma reportagem cheia de fotos:

Referindo-se às participações da escola "Aparecendo na capa com o unifor­


na semana da Pátria, eventos esportivos, re­ me e o distintivo de seu colégio, Ire­
ligiosos e culturais na comunidade, diz ne, sorridente e feliz, espelha o são
adiante esta aluna: espírito democrático em que está sendo
educada dentro da única escola pú­
" ... E aí eu notava então, sempre, e blica modelo que possuímos para a
nesta parte eu acho até que não sei se formação de professores normais. O
é positivo ou negativo, mas era uma IDlitituto de Educação realmente pro­
coisa que a escola conseguia com a cura fugir às influências reacionárias,
gente: a gente ia para estas solenida­ realizando métodos pedagógicos que
des, para estas comemorações muito oferecem a seus alunos totais oportu­
convicta de que estava em jogo o nidades de estudarem com a necessá­
prestígio e o nome do Instituto e a ria liberdade para a formação de um
gente fazia das tripas coração para caráter puro e edificante. Assim,
manter ( ... ) Claro, sempre tinha uma afastado tanto quanto possível de dog­
ou outra aluna que não observava mas perniciosos, estranhos à principal
isto, mas era tremendamente mal tarefa do ensino, está preparando
vista pelos colegas e a coitada não ti­ uma elite de professores que no futu­
nha outra forma senão entrar nos ei­ ro irá proporcionar às novas gerações
xos, porque a pressão do grupo era de brasileiros uma alfabetização efi­
tão violenta que ou troteava ou saía ciente, de onde resultará progresso
da história ( ... ) Isso ainda hoje eu me para o nosso País" (grifos nossos)9.
interrogo às vezes: que força grande
que era isso aí? Porque na verdade se o tom do comentário da capa é logica­
conseguia a adesão incondicional. .. mente aquele que vê na educação o m6vel
mesmo que a gente achasse meio ri­ fundamental para modificação da sociedade,
dículo certas coisas... Mas o nome do o que era a posição hegemônica no momento
Instituto e o conceito da escola era em todo o País. Uma posição idealista que
algo mais forte que apelava e aquilo entendia que este elemento supra-estrutural
era realmente com a consciência dos tinha forças para alterar profundamente toda
alunos da escola . . " (D).
. a sociedade, inclusive sua base; e otimista,
pois supunha que os novos métodos de ensi­
Esta constatação também aparece em no garantiriam uma educação de melhor
outros depoimentos: a escola conseguia uma qualigade, supostamente para todos.
adesão incomum. Para descobrir a origem E interessante notar que, apesar da dita­
desta força parece que, temos de retomar a dura interna no País, fala-se em democracl3
hist6ria da instituição. E necessário entender talvez agora um pouco mais à vontade, por-

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 25 - 56, julldez. 1986 31


que neste momento - 1 944 - o Brasil já par­ sonância entre as que foram objeto de obser­
ticipava da luta ao lado dos Aliados na II vação. E não podemos deixar de notar que
Guerra. uma imagem positivista do papel da mulher
"As influências reacionárias" indicadas está aí presente: ela é "a argamassa de todo o
pelo texto parecem se referir aos métodos complexo social", ou seja, ela precisa ser
tradicionais de ensino, e mais adiante, ao fa­ educada para bem cumprir este papel de
lar no afastamento dos "dogmas pernicio­ formadora dos futuros cidadãos. Há também
sos", a revista poderia estar aludindo às toques românticos na descrição feminina, o
idéias comunistas, das quais se temia a infil­ que provavelmente foi incorporado pelas jo­
tração nas escolas (um dos alvos do naciona­ vens que reproduzem o artigo.
lismo do Estado Novo). Numa linguagem que revela intimidade
Ia se construindo assim uma tradição, com os princípios escolanovistas, o visitante
Uma imagem da professora "de elite" forma­ chama a atenção para a atividade das alunas
da pelo Instituto de Educação. Junto apare­ que no ginásio apresentaram um programa
cia a crença de que "ensinar da mesma forma onde "mostraram o que quiseram"; fala tam­
em que aprenderam" garantiria a manuten­ bém no interesse da aluna que estuda "por
ção dos ideais dominantes na sociedade, com amor", porque gosta. Coerente com a ten­
a valorização do indivíduo. dência educacional do momento, não supõe
A descrição de uma festividade na es­ pressão ou coação e sim prazer no estudo.
cola em 1 944 ajuda-nos a desvendar um Há ainda uma busca de identificar a escola
pouco mais o "clima" do IE. com o lar, como se pode observar aqui:
Nela a figura feminina da estudante é
muito exaltada, descrita em termos românti­ "... Cenas e trechos de conversa entre
cos, onde se percebe como um "continuum" alunas e mestras, o chá servido pelas
as funções de mãe e professora. Alguns tre­ professoras e doces feitos no INSTI­
chos poderão ilustrar: TUTO, faziam-nos compreender
como é possível dar à escola um cu­
"Passamos ao Auditorium. Dezenas nho de fam ília, trazer a casa à escola
de moças, nesta idade flutuante e e levar a escola ao lar" 11
gloriosa da mulher, em que tudo é
romance, novidade, vida; em que os o comentário finaliza elogiando a dire­
sentidos em superexcitação se exal­ tora do Instituto de Educação e é significa­
tam e querem ver, saber, sentir; (...) tivo o tom dessa descrição:
Nós vimos entusiasmados, com o
mesmo espírito de cordialidade e "... Mais uma vez, porém, parece­
brandura, na mesma atmosfera de nos, a obra é fruto de seus dirigentes. A
serenidade e de alegria, essas dezenas forma fidalga de castelã em seus domí­
de moças, olhos fitos na mestra, em nios, segura do que tem e do que sabe,
atenção intangível, executar as mais com que D. FLORINDA recebia seus
belas e complexas músicas corais". convidados; a brandura sem afetação,
(...) Diante de nós, mais sério que a nobreza inata de maneiras, o desen­
anteriormente, víamos em realidade rolar do programa sem alardes;
o ideal pedagógico atingido: - o alu­ afirmavam seu invulgar talento de
no orgulhoso de seu papel e de seu lu­ Chefe ( . . . ) �equenina, no meio da
gar, confiante em si mesmo, amigo multidão seu vulto agigantava-se e
da escola e estudante por amor. E polarizava as atenções. Comandava
esse é, sem dúvida, o próprio ideal ou melhor, decidia - porque coman­
cívico, porque ali estavam as fúturas dar é prever e tudo estava previst9;
mães e futuras professoras - ar[?amassa só o imprevisto exigia sua atenção - e
inicial e permanente de todo o complexo era breve, suave, mais de gestos - e a
social de um povo livre, formador de máquina prosseguia, máquina com­
sua índole, tendências e tradições, plexa de complexos organismos vivos
penhor de suas lutas, sacrifícios e (...). Vimos que as altas autoridades
vitórias ..." (grifos nossos)10. estaduais - Interventor e Secretário
de Educação - em tudo amparavam e
É necessário que se ressalte que tal des­ facilitavam sua obra. Estava ali um
criçao é feita por um visitante, capitão do programa de governo em ação na
exército, e como tal poderia não revelar mais difícil de suas tarefas - o Estado
exatamente a ideologia que a escola transmi­ educador... " (grifos nossos ) 1 2 .
tia, mas sim mais especialmente a de seu ob­
servador. Contudo, este relato aparece na Se, como assinalamos antes, o texto po­
"Revista do Instituto de Educação", 6rgão de estar carregado das cores do observador
oficial do Grêmio de Alunas, o que nos leva militar, ele não deixa de ser também elucida­
a inferir que a qescrição feita encontra res- tivo do ambiente da escola. Parece que esta

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buscava marcar seu espaço na comunidade uma concentração de poder no dirigente,
apresentando-se como uma instituição mo­ uma centralização de decisões. Realça tam­
derna e ao mesmo tempo fiel à tradição. bém a importância das pessoas que ocuparam
Apoiada pelas autoridades estaduais, coadu­ tais cargos, influenciando com suas caracte­
nava-se com os princípios educacionais do rísticas pr6prias a hist6ria da instituição.
estado vigente, daí o destaque ao civismo e Chama nossa atenção a importância que
nacionalismo dos coros e danças apresenta­ tiveram algumas destas figuras. Pelo menos
dos. É também de todo coerente com o espí­ até as décadas de 50 ou 60, podemos obser­
rito do regime do País a idéia de um coman­ var, tanto nos documentos como nos depoi­
do central personalizado. mentos, o realce à pessoa que dirigia a esco­
Mas no texto transparece ainda mais um la, como sendo ela a explicação e a fonte de
certo ideal de aristocracia, colocando como orientação fIlosófico-pedag6gica que a tudo
modelo a diretora, metaforicamente compa­ imprimia sua marca. Assim são feitos desta­
rada a uma castelã que sabe a todos e a tudo ques para personalidades como Florinda Tu­
controlar com gestos discretos. Parece suge­ bino Sampaio, Olga Acauan Gayer e Mary
rir que a escola formava "moças de fino Acauan Titoff. As características de perso­
trato", o que nos remete à colocação de que nalidades dessas mulheres - nas quais se
não era para jovens de classe menos privile­ destacam traços muitos específicos, como
giadas que ela se destinava. É bom lembrar formas de mandar ou de decidir, maior ou
que se considerava nesta época o ensino se­ menor religiosidade, modo de vestir, tom de
cundário destinado às "individualidades con­ voz, tipo de relação estabelecida com alunos,
dutoras" - conforme a lei de Reforma do professores e funcionários, etc. - parecem
Ensino Secundário de 1942 (Capanema). ser muitas vezes a explicação para uma uni­
Sendo o Instituto uma escola que abrangia dade de ação da escola (pelo menos assim
ginásio e normal, é de se imaginar que a ela muitos acreditam).
ocorressem aquelas que pertenciam aos se­ A escolha destas mulheres para a dire­
tores dirigentes da sociedade. ção também seria provavelmente uma resul­
Não seria então por este ângulo que se tante das condições políticas do estado - já
poderia afirmar o caráter democrático do que essa era uma escola oficial. Certamente
Instituto de Educação. É verdade que a es­ prerrogativas regimentais asseguravam essa
cola era pública e gratuita ma� provavel­ força decis6ria à diretora, mas não podemos
mente por sua tradição e seus níveis de exi­ deixar de registrar que algumas dessas mu­
gência ali se concentravam as jovens das ca­ lheres exerceram uma liderança que era mais
madas médias. Outros indicadores apontados do que formal. Alguma� delas criaram esco­
para afirmar sua democracia eram raça e re­ las, no sentido de que tiveram seguidoras de
ligião. Efetivamente a escola não discrimina­ seu tipo de conduta, do seu modo de vestir e
va estudantes segundo estes critérios, em­ de ser, enquanto professoras e mulheres.
bora a maioria fosse branca e cat6lica. Escolhidas pelo estado para a direção da
Os ideais da escola eram algumas vezes escola que era o ponto mais elevado na car­
expressos na figura de suas dirigentes. Como reira do magistério público gaúcho, isso sem
lembra esta entrevistada: dúvida representava um grande prestígio, e
algumas souberam ampliá-lo ainda mais dan­
" ... Naquela época (1944) havia uma do sua pr6pria I1Ulrca ao período em que di­
efervescência de vida, de alegria... rigiram o Instituto de Educação.
mas - é meio esquisito eu dizer - mas Na lembrança de outra professora da
era uma alegria respeitosa. As pes ­
década de 40, fica este registro:
soas tinham uma meta. Existia uma
ideologia que seria... que emanava de " ... A dona Florinda tinha assim um
professores anteriores, diretores dife­ espírito muito aberto, a educação
rentes, mas que tinha à frente do IE feminina para ela não era uma edu­
uma das maiores figuras de educado­ cação para limitar a mulher para
res que já vi: Florinda Tubino Sam­ determinadas tarefas ( ...) .
paio, cuja ideologia era democracia e Eu me lembro bem que ela estimula­
saber ( ...). Era a coisa fundamental va muito as alunas a estudar.
que vem se perdendo, ela tinha cons­ Depois o Instituto tinha uma limita­
ciência de sua postura, de sua posi­ ção que eu nunca aceitei, que era de
ção, e ela era uma mulher profun­ fazer a fOI mação das meninas apenas
damente culta e democrática. Então para o magistério estadual, para se­
ela queria fazer da escola ou de cada rem professoras primárias. Porque a
uma das que estavam ali o que ela no idéia dominante era de que o estado
fundo era... (A). fornecia o curso e que então ( ... ) a
aluna tinha o dever m( ral de servir o
A figura da diretora, e de modo especial estado depois, como professora pri­
desta diretora, é muito destacada nas lem­ mária. E eu, não sei se eu poderia ser
branças. Isso permite imaginar que havia chamada de des l ea l ma s eu nun ca
,

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 25 - 56, jul/dez. 1986 33


estive de acordo com isso, eu sempre era condizente com isso, parecia até que tor­
aconselhei as minhas alunas a que nar-se efetivamente professora não era a
continuassem a estudar, fizessem um meta principal naquela época, já que havia
outro curso, se elas tivessem possibi­ moças que faziam sua formação sem exer­
lidades" (B). cerem depois o magistério, ou o exerciam
apenas até o casamento.
Assim, se constatamos que a escola ex­ Quase trinta anos depois alguns ele ­
pressava um conjunto de metas e estimulava mentos deste ideal feminino ainda eram va­
a adesão a elas por todos seus membros, lorizados pela escola. Lembra uma ex-aluna,
também é possível perceber que havia algu­ sobre o início dos anos 60:
mas diferenças no entendimento de qual seria
o melhor caminho para as alunas. Esta entre­ "(a escola desenvolvia uma educação
vistada fala de sua discordância e do incenti­ feminina)... com relação a um certo
vo que dava a suas alunas para irem além em requinte, da mulher de um determi­
seus estudos, para seguirem outra trajet6ria. nado status... se valorizava muito
As metas da escola sem dúvida compre­ este aspecto de postura, de atitudes,
endiam também uma determinada visão de porque quando a gente queria mani­
mulher. No período que agora focalizamos, a festar suas opiniões, a gente não po­
década de 40, não eram muitas as oportuni­ dia ser uma pessoa impositiva, tinha
dades de estudos fora ou além da escola que sutilmente .. Isso era muito ali­
.

normal. mentado na escola - que o compor­


Assim é dentro deste contexto que de­ tamento da mulher era este - não fi­
vemos entender a colocação que se segue: car em destaque, em primeiro plano,
mas influir por trás, meio na surdi­
"... Na década de 40, que foi a pri­ na, isso passava veladamente. . . " (D).
meira que eu peguei, eu diria que na
escola de Florinda Sampaio se pre­ Na verdade esta é uma face da realida-
tendia umr. mulher digna - e essa de. As profundas mudanças que ocorriam na
frase é da Florinda. sociedade provocavam dúvidas e choques
Agora, o que é que é uma mulher com relação a estas orientações. As pr6prias
digna, sem os bestas preconceitos so­ depoentes que recordam estes ensinamentos
ciais? É uma mulher que tivesse desenvolveram intensas vidas profissionais e
acesso ao saber, que tivesse uma pro­ contrariam estas regras.
fissão, embora ainda essa profissão No final da década de 40 de muitos mo­
fosse muito atribuída a ser uma pro­ dos a imagem feminina se transformava. A
fissão para mulher (que seria a de guerra impusera mudanças, as mulheres ha­
professora), e que acreditasse nessa viam assumido de modo mais explícito dife­
profissão, (quer dizer ainda se acre­ rentes funções no mundo da produção. Elas
ditava no magistério como sacerdó­ haviam substituído os homens nas fábricas,
cio). E que essa mulher fosse uma no campo, nos hospitais, no comércio; ha­
viam assumido até mesmo cargos de chefia e
amorosa mulher do lar" .
(E em outro momento): algumas tinham sido suas companheiras nas
"A Florinda tinha uma grande preo­ forças armadas. É verdade que isto aconte­
cupação com. a libertação da mulher cera nos países mais diretamente envolvidos
pela cultura, mas era (hoje de longe, no conflito, mas não podia deixar de ter re­
vendo isso) uma libertação meio no percussões sobre todo o mundo. A decantada
fragilidade e incapacidade feminina fora
plano ideal, quer dizer... te liberta
no plano do pensar, não do agir. desmentida. E então o cinema, as revistas,
Porque no fundo havia a preocupa­ o rádio, enfim os vários meios de comunica­
ção de dar à mulher a estética, a hi­ ção formadores de opinião revêem a figura
giene, o cuidado da casa, havia um ideal da mulher.
belo curso de coisas domésticas, tam­ Um dos veículos mais fortes desta época
bém ... " (A) . é o cinema, especialmente o norte-america­
no. O B rasil, que através de Vargas demo­
Neste perftl feminino parece que se rara a definir sua posição no conflito mun­
mantinham muitos elementos dentro dos pa­ dial, assumira após 1942 o lado Aliado. Isso
drões tradicionalmente idealizados: daí o representava também sua aceitação da hege­
treino nas prendas domésticas que a escola monia dos norte-americanos e a ampla en­
não deixava de desenvolver. Colocava-se trada destes no País. Por tudo isso é a ima­
também um ideal burguês de mulher "ilus­ gem hollywoodiana de mulher que ganha es­
trada". Uma mulher culta que se liberta pelos paço na década de 401 3.
seus livros e pensamentos, mas que não vai à Se de um lado isso representava uma
luta, que participa do mundo produtivo na c6pià de um padrão feminino estrangeiro,
maior parte das vezes de modo transitório. A estes ftlmes (embora não deixassem de exal­
pr6pria profissionalização que o colégio dava tar a mulher doméstiCa) . traziam um certo

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cosmopolitismo para a versão brasileira e que fossem nocivas à formação da mo­
gaúcha de mulher. cidade" (grifos nossos) 1 4.
Por outro lado, objetivamente haviam se
ampliado os espaços de atuação feminina Não há dúvida pois de que se fazia uma
nesta época no Brasil - por mais áreas de seleção e censura de leituras recomendadas
trabalho feminino, de modo especial no fun­ às estudantes. Mas o que levaria a se consi­
cionalismo público que aumentara bastante derar um livro "corrupto" ou " moralmente
nos últimos tempos. mau'''! Quais seriam as obras "impuras" ou
Terminada a guerra, suas conseqüências "nocivas à mocidade"? Não ficam claros os
econômicas e sociais se fazem sentir mun­ critérios que norteavam a exclusão ou a elei­
dialmente. No Brasil, além de acelerar a que­ ção de determinada obra. De qualquer modo
da da ditadura getulista, há repercussões de o que se percebe é a não aceitação de ter o
ordem econômica, das quais o Rio Grande do aluno livre acesso a idéias ou a posições
Sul não foge... Ap6s esta data é evidente que contrárias aos valores dominantes da institui­
o modelo econômico tradicional do estado ção.
não é mais viável, e se discutem os diferentes E isso seria capaz de bloquear a entrada
caminhos para a maior industrialização do de valores conflitantes? Acreditamos que
Rio Grande. A sociedade gaúcha apresen­ não. Alunos e professores enquanto indiví­
ta-se agora com características muito mais duos são síntese de determinadas condições
urbanas e com múltiplas exigências de me­ sociais e hist6ricas, e, ao se relacionarem,
lhor atendimento à população. Entre estas integram suas pr6prias hist6rias e confir­
exigências sem dúvida está a possibilidade de mam, permutam ou rejeitam idéias e valores.
escolarização. Dessa relação e nessa relação, mediados pe­
Por isso a formação de professores ga­ los conteúdos estudados, pelos livros permi­
nha realce nas preocupações governamentais tidos e até mesmo mediados pela proibição,
(Lei Orgânica do Ensino Normal de 1946) e idéias e valores não hegemônicos também
neste momento o Instituto de Educação sofre passam e têm espaço no contexto escolar.
uma reformulação que amplia seus cursos, O texto em que nos apoiamos mais en­
reformulação que traz como uma das marcas cobre do que mostra estas idéias, mas se há
mais evidentes a maior valorização da psico­ tais advertências (aos professores que per­
logia. mitem a leitura de uma obra "má" que faci­
Também nesta fase amplia-se muito a litam o acesso a fontes "impuras") é porque
procura do IE. Em conseqüência, a escola existiam aqueles que ousavam entregar estes
institui rigorosos exames de seleção, que materiais a seus alunos, transgredindo as
provavelmente conduziram a urna certa eliti­ normas ou o pensamento dominante.
zação da escola. Adiante, ao referir-se ao movimento re­
Ao lado da introdução de algumas ino­ ligioso do colégio, outros indícios se infIl­
vações pedag6gicas, aparecem (em relat6rio tram. Citamos mais uma vez a diretora:
da direção da época) outras indicações que
provavelmente representavam um movi­ "Educação -neutra, !'elr. a preocupa­
mento contrário. Sobre os livros das biblio­ ção de uma orientação religiosa, não
tecas da escola, diz a diretora: é aconselhável, sob nenhum ponto de
vista, mormente em nosso meio, em
"As obras devem ser selecionadas, que religiosas são as raízes de nosso
sob todos os aspectos. Consentir ou povo, e religioso o ambiente no qual
aconselhar a leitura de livros cor­ cresce e se desenvolve a nossa juven­
ruptos à mocidade, sob o pretexto de tude.
ser obra de escritor célebre ou bem Com a finalidade de dar essa orienta­
estilizada, é trair a missão educacio­ ção à educação da mocidade, e so­
nal, é solapar a integridade moral da bretudo por verificar seu valor em
pessoa, da pátria, e da família. Há uma escola em que se formam e pre­
tantos livros bons e sãos, belamente param nossos professores primários,
escritos que, sob a desculpa de exami­ tomou-se a iniciativa da entroniza­
nar o estilo, permitir-se a leitura de uma ção do Crucifixo, à entrada do Esta­
obra má, moralmente falando, é ação belecimento. ( ... ) Foi rezada por S.
que revela descarada malícia, e não é Excia. Rvm�. a Santa Missa no 'hall'
digno de quem se ocupa do admirável do Instituto de Educação, e pelo
mister de educar a nossa mocidade. mesmc proferido o discurso alusivo,
A par da seleção cultural e intelec­ do qual mandamos imprimir 2.000
tual das obras adquiridas para nossas exemplares, que foram distribuídos
bibliotecas, preocupou-se ainda, as­ ao corpo docente, discente e servido­
sim, a feição moral. res da Casa, bem como às Escolas
Atendendo a este critério, determina­ Normais do interior. Em todas as
mos a exclus ão de todas aquelas obras salas do prédio, foram colocados,

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também no momento, pequenos cru­ atravessam outras mensagens e que a própria
cifixos. escola oferece meios para que suas jovens
A todos os que levantaram críticas ou alunas percebam mais amplamente a realida­
objeções a respeito deste ato, respon­ de, assumam uma profissão, tomando-se
demos com as palavras do Snr. Dr. mulheres menos submissas e escondidas.
Marcondes Filho, então Ministro da Então o espaço de luta em que se chocam as
Justiça, na exposição de motivos so­ idéias dominantes com as idéias dominadas
bre assunto semelhante, ao Snr. Pre­ poderia permitir questionar não só a divisão
sidente da República ... " (grifos nos­ classista da sociedade, mas também a imagem
sos) 1 5. feminina idealizada como conseqüência da
dominação do sexo masculino sobre o femi­
Finaliza a Diretora comentando palavras nino.
de Joaquim Nabuco sobre a quase perfeição O movimento estudantil, que se pro­
moral da mulher brasileira, dizendo que se ao cessava não só no Instituto de Educação co­
redor dela desaparecesse a religião muito se mo nas demais escolas do estado e do país,
perderia. representava uma outra fonte - importante -
Essa linha de argumentação nos permite de aprendizado.
observar que a religião era considerada in­ Neste mesmo relatório de 1946, é possí­
dispensável à formação da mulher (e da vel observar a preocupação que tem a dire­
professora) ideal e que, se o colégio se man­ ção da escola com o movimento estudantil:
tinha oficialmente leigo, ele tinha na verdade
uma nítida orientação católica, pois é trans­ "Tem-se dito a respeito, desde vários
parente o esforço de difusão desta posição anos, que há um generalizado fer­
religiosa dentro da escola e na sua imagem mento de insubordinação e de des­
perante a comunidade. Acreditamos que é conformismo que se difundiu na so­
possível explicar tal preocupação pelas justi­ ciedade e contaminou a famOia, e
ficativas que o próprio texto apresenta, que, reflexivamente, desta retornou
aceitando-se que havia uma religiosidade de­ aquela, numa constante, perdurável
clarada na população (mesmo que se possa e funesta interação dos grupos so­
questionar sua profundidade). Assim prova­ ciais.
velmente seria menos recomendável na déca­ Este estado de espírito se reflete na
da de 40 que uma escola tradicional se apre criança, no adolescente, e repercute
sentasse sem religião. Por outro lado, tam ­ na escola. Daí a intensificação das
bém se menciona que houve aqueles que le­ responsabilidades pedagógicas, so­
vantaram críticas e objeções. Ora, se coexis­ brelevando a majestade da missão do
tiam proposições opostas, é razoável que se mestre, consistente na restauração da
admita que essa escola (como de resto qual­ disciplina, da hierarquia e da ordem
quer escola) não era capaz de reproduzir no conjunto escolar.
fielmente, em falhas, apenas as idéias ofi­ Provocar, estimular ou apadrinhar
ciais. Tanto no que se refere à colocação dos movimentos pseudo-estudantis, con­
crucifixos, como à "seleção" dos livros, su­ cordar em concessões infudadas que
põe-se a necessidade de se impor uma posi­ se encadeiam umas às outras, num
ção - o que evidentemente significa impor movimento sem fim, é fácil, cômodo,
sobre ou contra outra posição. e se ganham, com isso, os aplausos de
Não discutimos a realidade de que as ocasião. Mas é concorrer também pa­
idéias oficiais eram obviamente dominantes, ra a manutenção de semelhantes es­
mas apontamos para o fato de que existiam tados de insubordinação, sinton:.a
idéias divergentes, idéias que as oficiais bus­ muito em voga em más épocas" 1 6.
cavam dominar e que a elas se opunham.
Neste processo de luta é que nos parece O texto supõe que se vive, nesse final da
existir um espaço para o papel transformador década de 40, uma destas "más épocas" e
da escola. que nestes momentos a missão do educador é
Parece-nos que fica implícito que a po­ mais importante. Como há uma "dispersão
sição dominante na escola esperava formar geral", "os rumos da educação se devem im­
uma jovem com religiosidade, obediente aos por com mais energia".
superiores e às leis, recatada; uma professora Numa visão da sociedade que revela tra­
bem preparada para exercer suas funções, ou ços do positivismo, entende-se que cada um
seja, com domínio do saber escolar, com ha­ dos círculos de influência do homem (família,
bilidades técnico-pedagógicas e dedicação escola, sociedade) contribui para sua forma­
quase maternal a seus alunos. ção, e que se este todo é orgânico, ou seja, se
Mas os próprios textos oficiais em seus cada setor se integra de modo harmônico,
comentários e parênteses, somados aos ou­ o resultado será salutar.
tros documentos e depoimentos da época, O intercâmbio pessoa-sociedade é visto
permitem que se entenda que tal posição é como um organismo em que a célula sadia
dominante mas. não é única, que na escola resiste ao ataque da doença e restaura a vita-

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lidade a todo o conjunto. Esclarece a diretora cupação com harmonia.üa. Referindo-se ao
que episódio, diz:

"Tais reflexões nos ocorrem a pro­ " . . . Nunca se notou assim no com­
pósito da disseminação de conheci­ portamento dos professores alguma
mentos gerais históricos, sociais, fi­ discordância com a direção, mas a
losóficos que passam a ser outras gente sentia um clima estranho. Essa
tantas norm� s de ação, mercê de uma direção durou pouco tempo. Foi só
formação defeituosa do caráter do este ano ( ... ) no ano seguinte assumiu
educando, que passa a ter tantas reli­ direção a dona Olga Acauan Gayer,
giões quantas conhece pela leitura que foi durante grande parte de mi­
apressada, tantas filosofias quantas nha vida escolar a diretora que eu
conhece por um estudo superficial, conheci. ( . . . ) Então justamente
tantas idéias sociais quantas lê aqui, olhando a escola hoje, o próprio pro­
ali, acolá, colhendo de cada discipli­ cesso sucessório, a escolha dos direto­
na farta sementeira de desordem re­ res, o movimento que é feito na es­
ligiosa, moral, intelectual, e que, por cola, me parece que naquele período
força de extroversão irá irradiar no ( ...) a escola era para mim urna coisa
círculo social a que pertence, contri­ muito estável. ( ... ) Cada ano que se
buindo, assim, para conturbar ainda voltava à escola não havia assim
mais a vida" 17. muitas modificações, a escola me pa­
recia assim uma coisa muito estável,
J-Iá, portanto, um claro receio de que se mesmo, muito eterna, na minha vi­
perca o controle, a unidade (ou uniformida­ são de criança" (D) .
de) de pensamento e de princípios. O livre
acesso às diferentes fontes fIlosóficas pode­ A permanência do corpo docente e de
ria representar o questionamento e até a re­ funcionários possivelmente é um elemento
jeição das idéias dominantes - daí então a para transmitir esta idéia de estabilidade. Isso
justificativa que mais do que nunca "os ru­ também ajudava a criar algumas figuras es­
mos da educação se devem impor com mais peciais (às vezes até carismáticasf na história
energia". do colégio. A recordação das pessoas que
Fala ainda a diretora na necessidade de passaram pelo IE está sempre entremeada
se ter "a coragem da reação", mesmo sendo destas personagens, quase com um folclore
chamados de "reacionários", e em "reagir rodeando a vida de algumas delas.
contra a corrupção". Isso para concluir que o Como o Instituto de Educação se colo­
mestre tem uma missão mais importante do cava no topo da carreira, as professoras para
que ministrar conhecimentos intelectuais, ali nomeadas geralmente ficavam na escola
qual seja, a de ser um verdadeiro exemplo até a sua aposentadoria. Isso talvez explique
por suas ações, constituindo-se num "educa­ o contato de várias gerações com as mesmas
dor na verdadeira acepção do termo". pessoas. Por outro lado, sendo uma escola
Parece-nos possível afirmar que muitos que valorizava a tradição, não estimulava
elementos deste relatório (que é escrito na ousadias no comportamento. Assim suas
segunda metade de 48) têm tons conserva­ professoras de modo geral trajavam e agiam
dores e autoritários e revelam uma preocu­ dentro dos padrões mais clássicos, ou seja,
pação de manter a escola ajustada ao estado, aqueles que se supunha ser os mais conve­
longe de qualquer semente de subversão, de nientes e dignos. Havia mesmo um certo de­
contestação ou mesmq crítica. O Instituto ti­ sestÚllulo a seguir a moda - no vestir e no
nha neste momento uma "reputação" e um comportamento - sendo o cigarro inadmissí­
" prestígio" (conforme sua direção) que pre­ vel em público - até mesmo na década de 60
cisavam ser zelados. quando o hábito já era então largamente di­
Acreditamos encontrar neste documento fundido entre as mulheres. Esse padrão de
uma continuação do autoritarismo do Estado comportamento era por conseguinte um mo­
�ovo que findara, como se não houvesse delo que se pretendia que influísse nas jovens
ainda se desvestido um modelo de ação e fi­ estudantes.
casse difícil adotar um comportamento mais Provavelmente influía, mas não apenas
democrático. levando à cópia do modelo, talvez muitas ve­
No entanto, seria necessário indicar que zes o que provocasse fosse a desmistificação
a direção que assina o relat�rio atua num e a contraposição ao modelo. Diz uma ex­
curto período na escola ( 1 946-47 o menor
- aluna:
mandato que registramos) e, segundo o de­
poimento de uma aluna da época, a escola " ... Relerr'brando o tipo de professo­
passava por um momento de divergências ra que a gente tinha no ginásio, às
internas, ainda que houvesse um esforço para vezes eu me apavoro . . . como é que
aparentar uma unidade ideológica. No relato aquelas pessoas não influíram nega­
desta ex-aluna fica bem salientada esta preo- tivamente na adolescência da gente?

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, julldez. 1986 37


Porque realmente a nossa adolescên­ bém arte culinária" poesias, aniversários do
cia acho que foi povoada por tipos, mês, biografia de artista de cinema, "pUulas"
que um Felini faria um filme supe­ de notícias do mundo, "mexericos" sociais
rável a um Amarcord por exemplo. das alunasl 8 . Não há nada portanto que seja
Realmente aqueles tipos eram ímpa­ contestador, o que nos parece que se explica
res! A maior parte delas soturnas, por serem jornaizinhos editados dentro da
sofridas... Tu repara bem, quando pr6pria escola e provavelmente passarem por
aparecia alguma um pouco mais ale­ alguma revisão da direção.
gre, um pouco mais aberta, remo a Mas a atividade jornalística em si mesma
gente ficava assim apaixonada pela tem importância. Nos anos posteriores, dé­
professora, como a gente buscava a cada de 60 especialmente, vamos notar al­
professora pelos corredores ... Porque gumas diferenças nos textos. Adiante discu­
havia uma questão, eu acho que era tiremos isto, mas o que queremos acentuar
um respeito (eu sentia isso), um certo aqui não se refere somente ao que veicula o
distanciamento, era aquele negócio: jornal, mas à pr6pria existência do peri6dico.
os modelos, o exemplo. Eram pessoas Essa era uma prática inscrita dentro das re­
de conduta irrepreensível, eram comendações do escolanovismo, daí ser esti­
pessoas de aspectos até acéticos, ves­ mulada; então, junto com a atividade reco­
tidas meio pobremente, um aspecto mendada pela escola, viria também a leitura
tão sofrido ... Sei lá! Acho que pode­ dos jornais da cidade para seleção de artigos,
riam passar tanta coisa para a cabeça o ensaio em redigir suas impressões e opi­
da gente! Acho que graças a Deus não niões, a descoberta que é possível organizar­
passou tanto ... " (D). se um grupo para um trabalho coletivo como
a edição de uma revista, etc. Enfim, ensina­
Enquanto argumenta deste modo, esta va-se a vibrar pelos ideais do colégio, defen­
ex-aluna também aponta para o grande nú­ der estes princípios e se orgulhar de fazer
mero de egressas da escola que se destaca­ parte deles e, ao mesmo temI'<>, contradito­
ram profissionalmente na vida cultural, ar­ riamente, se sugeria os mecanismos de liber­
tística e até política de Porto Alegre. tação da dominação, ou seja, a iniciativa, a li­
A constatação do fato de que várias li­ derança, a associação.
deranças (especialmente no setor educacio­ Possivelmente podemos nos questionar
nal) passaram pelo IE parece contrariar a se as alunas ao utilizarem estes meios de ex­
força da dominação ideol6gica que propunha pressão percebiam sua potencialidade. Talvez
o perfIl feminino de uma mulher discreta, não claramente. Também não podemos afIr­
obediente, recatada. Havia portanto uma mar que elas fossem capazes de desvendar os
reação a esta dominação. Reação que não se meios que se usava para inculcar-lhes as
dava de modo organizado ou criticamente idéias dominantes na sociedade, enquanto
desenvolvido. Era uma reação que se fazia a estavam atuando dentro do processo escolar.
nível de marchinhas que ridicularizavam de­ Mas entendemos que era a pr6pria escola que
terminados comportamentos e figuras, a ní­ lhes fornecia alguns instrumentos para este
vel de manifestações individuais ou de pe­ desvendamento, não s6 por dar-lhes os ar­
quenos grupos de rebeldia às normas, e até tefatos básicos de leitura, como por am­
de descobertas de "macetes" para dar a im­ pliar-lhes as formas de linguagem, comuni­
pressão de que se seguia a filosofia recomen­ cação e compreensão.
dada. A escola utilizava também determinados
"Saíram boas cabeças", porque pela rituais para marcar momentos específicos da
pr6pria contradição que existe em qualquer vida escolar. Um destes rituais era a cerimô­
prática social esta mesma instituição engen­ nia do laço, que ocorria na entrada para o
drava situações que permitiam a percepção curso ginasial. -
dos contrários. Fazia parte do uniforme do ginásio um
Uma prática educativa que, no nosso laço de seda azul marinho que as meninas
entender, exemplifica isto é a imprensa es­ deveriam conservar rigorosamente preso à
colar. gola das blusas brancas. Esse laço era retira­
Chama nossa atenção a quantidade de do solenemente pelas estudantes na cerimô­
revistas e jornais impressos pelos 6rgãos es­ nia da formatura e guardado pela escola. No
tudantis da escola em diferentes momentos início do ano letivo seguinte os mesmos laços
de sua hist6ria, o que parece revelar uma eram entregues na recepção às novas gina­
certa vitalidade dos 6rgãos estudantis. sianas, sendo que a aluna que conquistava o
E essa é uma das instâncias em que 12 lugar no exame de admissão o recebia das
acreditamos ser possível evidenciar-se o mo­ mãos da pr6pria diretora. Sem dúvida havia
vimento contradit6rio da escola. neste ritual uma idéia de vínculo Oaço) e de
Vejamos: suas seções se constituem no continuidade entre as gerações de estudantes.
"esperado", ou seja, aparecem artigos sobre O laço era também o indicativo de uma nova
a escola nova, textos recolhidos de jornais ou etapa - já que era a única mudança no uni­
escritos pelas estudantes, humorismo e tam- forme do primário para o ginásio (saia azul

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marinho pregueada e blusa branca). Também sora (referindo-se às crianças das escolinhas
era um dos motivos mais pr6ximos para as anexas ao IE):
pequenas rebeldias das meninas, pois tirá-lo
do pescoço ou usá-lo com a blusa mais " ... Essas escolas pertenciam ao Ins­
aberta e decotada resultava em repreensões e tituto de Educação. No Instituto ha­
às vezes até em outras punições mais severas. via o exame de admissão que era
Outra atividade marcante era a conces­ aberto para quem quisesse. Inscre­
são do prêmio "Miriam Rosemblat" à aluna viam-se 50e, 600, 700, 800 e havia
classificada em 12 lugar no exame de admis­ 120 vagas. Essas nossas crianças, que
são ao ginásio. (O prêmio fora instituído pe­ tinham uma riqueza de experiências
los pais desta menina que falecera após o diferentes das nossas crianças de
exame, antes de entrar na primeira série.) classe média, vinham para cá para
Nesta solenidade, além da entrega de um di­ concorrer ao mesmo exame de ad­
ploma, era colocada na sala da estudante uma missão e é claro que não podiam en­
fotografia de Miriam. Esta foto indicava a trar. ( ...) Então as nossas crianças
sala de aula onde estudava a aluna primeira das escolinhas de arredores quando
colocada. vinham ... (...) era essa injustiça so­
Ambas as cerimônias se revestiam de cial, concorrer já era perda na certa.
emoção e acabavam funcionando como "ri­ ( ...) Eu reuni os pais da 5:! série e dis­
tuais de passagem". Aliás coroavam um mo­ cuti com eles o problema que eles po­
mento extremamente exigente e temido: o deriam ir ao Instituto, poderiam ins­
exame de admissão. crever... que eles tinham o mesmo
A este exame concorriam não s6 as alu­ direito... ( ...) mas é que acontecia
nas do primário do IE como de qualquer ou­ uma injustiça antes do exame de ad­
tra escola, e então se criava uma grande ex­ missão. ( ... ) porque os pais de modo
pectativa para obter as disputadas vagas. geral (os pais das crianças daqui) pu­
Como diz uma depoente: "era um mini vesti­ nham professor particular ... e leva­
bular". As alunas do IE passavam percen­ vam as crianças ao cinema , ao teatro
tualmente em maior número, mas este era um infantil, sei lá, de certo tinham livros
dos únicos momentos em que oficialmente em casa, era muito difícil essa con­
havia possibilidade de ingresso na escola corrência. Então o que eu queria
(outra era o admissão ao curso normal, tam­ mostrar a eles é que eles estavam
bém muito concorrido; e a seleção para o concorrendo já numa pré-injusti­
jardim de infância). ça ... " (C).
É interessante o que lembra uma ex­
aluna sobre o exame de admissão ao ginásio: Esta professora tem consciência de que
as diferenças sociais eram criadas fora da es­
" ... era uma coisa que mudava um cola, mas que também nela se manifestavam.
pouco o clima da escola porque no Adiante ela faz um relato do diálogo com
exame de admissão as alunas do Ins­ pais analfabetos e da percepção que alguns
tituto entravam em igualdade de deles têm do problema. E destaca o quanto
condições com as alunas vindas de ela e as companheiras aprenderam no contato
todas as outras escolas. ( ...) Então na com as pessoas da escolinha:
primeira série do ginásio mudava um
pouco aquela fisionomia, e a gente " ... Foi uma experiência muito espe­
conhecia pessoas novas, havia in­ cial e foi a vez que nós tivemos lima
fluências diferentes. ( ...) Então isso percepção de que a realidade ( . . .)
mudava um pouco ( ...) aquelas coisas cultural, social, econômica, tudo .. .
tão certinhas, tão organizadas, tão era muitQ diferente ao redor de Porto
estáveis que a escola apresentava. Alegre, do centro urbano e do Insti­
Entrava um sangue novo nisso ar' tuto de modo especial" (C).
(D).
O trecho acima permite que comente­
Talvez justamente pela entrada de "san­ mos um outro traço do IE: a ênfase em sua
gue novo" é que a escola buscava marcar realidade interna.
com solenidades a nova etapa. Parece-nos Pelo que podemos apreciar nos diferen­
que era preciso reconstruir a identificação tes depoimentos e mesmo nos registros es­
com a escola, criar laços (uma vez que muitas critos, a escola voltava-se muito mais para
meninas estavam ali chegando), ou desenvol­ dentro de si mesma. Buscava desenvolver
ver o orgulho de pertencer àquela institui­ nas normalistas a preocupação com os pro­
ção .. blemas de sala de aula, o interesse pelos seus
Sobre a destacada igualdade de condi­ alunos (cujas diferenças eram vistas pelo ân­
ções em que as alunas entravam, é significa­ gulo psicoI6gico), além do treinamento em
tivo observar o comentário de uma profes- métodos e técnicas que melhorassem o pro-

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cesso ensino-aprendizagem, coerentes com convivência. Eu até acredito que em
os princípios escolanovistas. A realidade so­ alguns momentos a escola não conhe­
cial era encarada de modo harmônico. É as­ cesse o que é que a JEC realmente fa­
sim que o pensamento liberal entende a so­ zia, o que era a JEC, por que n a ver­
ciedade, e por extensão provavelmente se dade as reuniões da JEC eram fora
pensava que a realidade do IE, as condições da escola, mas a atuação da gente era
objetivas de vida das alunas do IE represen­ dentro da escola. E dentro da JEC,
tavam a realidade social mais ampla. sim, foi o primeiro lugar onde eu
Contudo, embora a escola "não gostasse comecei a me dar conta de uma rea­
muito de influências exteriores" (conforme lidade social diferente do IE, e de
uma depoente), ela era sem dúvida atraves­ uma realidade política, porque o
sada por estas influências. Instituto parecia que dentro da es­
Fazia parte da concepção pedagógica ali cola se defendia para que essas coisas
defendida colocar as alunas em contato com não crescessem muito mais em ter­
experiências de arte, debates, eventos da co­ mos de discussão.. . " (D).
munidade.
Além desta participação na vida cultural A preocupação com a realidade social e
de Porto Alegre (que nas décadas de 50 e até política de modo mais crítico não era desen­
60 era bastante expressiva), e nas competi­ volvida pela escola, mas acontecia também
ções esportivas, a escola também contava na escola.

com duas instituições às quais as alunas ade­ Como linha de atuação pedagógica, o IE
riam voluntariamente e que tinham maior não acentuava o questionamento da conjun­
abertura para a comunidade: o TIPIE (fea­ tura social e política, ou da estrutura econô­
tro Infantil Permanente do Instituto de Edu­ mica. A história ensinada era muito pouco
cação) e o Orfeão Artístico. crítica, pelo menos no que se referia ao B ra­
O TIPIE, que se iniciou oficialmente em sil contemporâneo, como lembram algumas
1956, criado e liderado por Olga Reverbel, ex-alunas. Sabiam muito dos antigos, roma­
era mantido pelas normalistas, que encena­ nos e gregos, era aguda a análise de sua arte
vam e dirigiam peças infantis, além de pre­ e civilização, mas o "aqui" e "agora" era
parar cenários, guarda-roupas, etc ... Acabou visto de modo oficial.
se constituindo numa atividade sistemática, No entanto a crítica penetrava na escola.
apresentando espetáculos semanais, muitas As injustiças sociais, as diferenças de classe e
vezes fora do IE, em praças, escolas da pe­ a dominação de sexos acabavam sendo per­
riferia e cidades do interior. Foi uma ativida­ cebidas. Talvez as alunas que tivessem me­
de que causou polêmica quando de sua im­ lhores oportunidades destes debates fossem
plantação, provocando a discordância de al­ as envolvidas nos órgãos estudantis.
guns que temiam que as alunas se transfor­ Duas entidades haviam sido criadas já
massem em atrizes. desde a década de 40: o Grêmio de Alunas e
O Orfeão Artístico, regido por Dinah o Conselho de Alunas, mas elas parecem ad­
Néry Pereira, sempre teve caráter de ativi­ quirir maior expressão apenas por volta de
dade opcional, e pela qualidade do trabalho 1955.
desenvolvido acabou alcançando grande Pela forma de criação do Conselho, e
prestígio na comunidade, sendo solicitado também por sua história, parece-nos que este
para os eventos mais importantes, recepções órgão nasceu e se desenvolveu mais vincula­
que o governo gaúcho promovia e festivais do à administração da escola. O Grêmio de
de música. O "Artístico" (como era chamdo Alunas parecia contudo ter uma autonomia
para distinguir-se do Orfeão Geral, obriga­ um pouco maior. Diz uma depoente:
tório) conseguia uma adesão muito especial
das alunas, e sua participação também se es­ "a minha participação no Grêmio da
tendia além das fronteiras da escola. escola foi muito i mportante, porque
Mas além destas atividades que coloca­ o Grêmio do Instituto - embora fosse
vam as jovens em contato exterior, havia um uma entidade muito bem comporta­
outro tipo de interferência não programada e da (especialmente a julgar pelos pa­
talvez até mesmo não desejada pelo IE. Esta drões de hoje) - era uma entidade
interferência podia ser notada especialmente que mantinha dentro da escola uma
através dos órgãos estudantis e da JEC. autonomia muito grande. E tinha
Lembra uma ex-aluna: um contato externo, porque era fi ­
liado a UGES (União Gaúcha de
"... quando eu cursava o Instituto, Estudantes Secundários) (.. .) De
eu entrei num movimento chamado certa forma as pessoas, as alunas que
JEC (Juventude Estudantil Católica) participavam do Grêmio, tinham um
e depois me prolonguei na JUC, par­ contato mais intenso com a realidade
ticipei na AP e outras coisas mais. fora da escola. ( . . . ) Havia no Insti­
( ... ) A JEC funcionava dentro do tuto um espírito de fazer as coisas o
Instituto num clima de muito boa melhor possível ( ... ) mas o Instituto

40 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Pano Alegre, 1 1(2): 25 - 56, julldez. 1986


era meio fechado dentro de sua reali­ País, o I.E. de Porto Alegre colocou em prá­
dade e meio que se auto-sustentava e tica esta nova legislação Gá no 2Ç? semestre de
não gostava muito de interferências 55), fazendo do estágio em escolinhas da pe­
externas. A gente sentia um certo riferia a sua mais importante inovação. Era
desagrado da escola quando algJ'ma sem dúvida um avanço no sentido de uma
coisa de fora era adotada pelos alu­ prática mais realista para as estudantes, que
nos do Instituto. ( ... ) E o Grêmio de assim seriam durante todo um semestre res­
certa forma incomodava um pouco ponsáveis como professoras junto às crian­
em relação a isso, porque tinha um ças. A experiência do estágio, iniciada no IE
permanente contato externo, às ve­ antes mesmo da exigência legal, certamente
zes, inclusive outras pessoas vinham obrigou as orientadoras a reverem suas re­
às reuniões do Grêmio" (D). ceitas didáticas construídas para situações
idealizadas de ensino com crianças das cama­
Aqui parece-nos que fica mais saliente o das médias. Possivelmente algumas se refor­
movimento contradit6rio da prática escolar. mularam, mas muitas continuaram com o
Os organismos estudantis eram em certa me­ descompasso entre a preparação feita dentro
dida necessários para os pr6prios objetivos do IE e as necessidades reclamadas pelas
da escola, e eram controlados, no sentido de condições diferentes das escolinhas.
contribuírem na orientação pedag6gica do Mas outro ângulo desta reforma pode­
IE . Congregavam as estudantes" (era reco­ mos observar pelos objetivos da Divisão de
mendado que assim o fizessem), representa­ Atividades Econômicas (do Depart. de Cul­
vam suas reivindicações, e possivelmente fo­ tura Geral) que permitem (ou estimulam)
ram muitas vezes colaboradores na implanta­ uma relação escola-lar. Assim ensinava-se
ção da ideologia dominante. Mas dentro no IE trabalhos de agulha, aproveitamento
deste mesmo processo estas entidades leva­ de materiais, administração do orçamento
vam ao contato com o movimento estudantil doméstico e regras de etiqueta no lar, por
mais amplo, ao contato com outros colégios e exemplo - o que provavelmente não deixava
estudantes, com outras realidades. Coloca­ de atender às expectativas das pr6prias estu­
vam-se contradições para as alunas, preocu­ dantes, porque ao lado da formação profis­
pações diferentes das postas pelo Instituto, sional e talvez mesmo acima dela estava o
talvez propostas de uma ação menos obe­ projeto de casamento.
'
diente, ou uma ação diversa dos padrões das O curso normal manteve (na opinião de
moças bem comportadas do IE. muitos) a fama de um curso para esperar ma­
Estas moças que atuavam no movimento rido, ou seja, as jovens faziam o normal
estudantil possivelmente se tornariam mais aguardando que seus namorados e noivos
"metidas", mais "salientes". Era um início de concluíssem a faculdade ou, quando não es­
participação política, de desenvolvimento de tavam ainda comprometidas, esperavam que
liderança. isto acontecesse.
A escola não era pois tão fechada como Assim, se o casamento não ocorresse lo­
se poderia pensar, ou até como alguns o de­ go, a normalista tinha uma profissão sem ter
sejassem. Necessariamente, como qualquer necessidade de cursar a universidade, e essa
prática social, era plena de contradições. profissão era bem aceita, já que era tida co­
A vanguarda pedag6gica que ela assu­ mo adequada à sua condição de mulher. Por
iiúa ao abraçar as teorias educacionais mais outro lado, as características do curso normal
modernas era, em contraposição, acompa­ também significavam uma formção conve­
nhada por uma fidelidade a tradições com niente pl'ra que ela se tornasse uma boa mãe
referência à formação feminina. e uma esposa satisfatoriamente culta.
" Era um perfIl feminino típico de cama­
O IE buscava estaI' "na ponta" em rela­
ção às novidades em teoria e prática educa­ das médias.
cionais, com isto suas normalistas eram ge­ Mas é importante que registremos que
ralmente muito atualizadas no que se referia algumas depoentes, quando indagadas, dis­
ao fazer escolar. Mas como predominava a cordaram desta condição de curso "espera
concepção de formação feminina tradicional, marido". Na opinião destas entrevistadas, o
a escola se esforçava para manter nestas jo­ curso estimulava a atuação profissional, e a
vens comportamentos sociais mais conve­ comprovação disto seria o percentual signifi­
nientes com a tradição: pouca ousadia ou cativo, por elas estimado, de ex-alunas que
concessões aos modismos, discreção, valori­ seguiram carreiras.
zação da maternidade e da vida doméstica, Dentro desta formação feminina mais
etc. tradicional se colocava a questão religiosa.
Um exemplo desta situação é a reforma Ao que parece dependendo em grande parte
do curso normal em 1955. Reforma que tem da posição que assumia a direção, a tendência
como ponto básico a flexibilidade curricular religiosa (cat6Iica) era mais ou menos acen­
e introduz o sistema de departamentos, as tuada.
disciplinas optativas, a recuperação, etc. Se­ Era usual, por exemplo, a participação
gundo se afirma, antes de qualquer escola no do IE na procissão de Corpus Christi, ativi-

EDUCAÇAO & REALIUADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, ]ulla"z. 1986 41


dade não obrigatória, mas muito estimulada. ela salienta resultados que se contrapõem às
Criava-se mais um momento para defender o pressões. E isso ocorria não porque houvesse
nome do colégio, como lembra uma ex-alu­ brechas ou falhas (embora as houvesse), mas
na: porque o processo de dç>minação gerava ele
próprio sua oposição. E claro que não era
" . . . quem assumia o compromisso de absolutamente eficiente a pregação de um tal
ir e se inscrevia para ir devia assumir perfil feminino (os comentários das depoen­
a responsabilidade de que a repre­ tes e os relatórios da direção indicam as vo­
sentação do Instituto seria impecá­ zes discordantes), a própria comparação com
vel, ia botar boina na cabeça e desfi ­ a libertação feminina pregada pelos meios de
lar com boina na procissão. E cha­ comunicação de massa e com a participação
mava a atenção que na procissão de da mulher nas atividades fora do lar provo­
Corpus Christi a delegação do Inti ­ cavam o questionamento deste modelo. Sem
tu to era a mais disci plinada, a mais esquecermos que a nova imagem que aí se
piedosa, a mais . . . Porque os outros divulgava era por si só bem mais atraente...
(os colégios religiosos) estavam for­ Mas além disso, ao se exigir estudo e refle­
çados, então a proveitavam para boi ­ xão das jovens elas exerceriam estes com­
cotar, fazer anarquia, criar proble­ portamentos também para além das orienta­
mas e a do Instituto era aquilo per­ ções previstas.
feitíssimo. Isso era facultativo. Ja­ Alguns textos utilizados na escola na
mais houve obrigatoriedade" (D). década de 60 permitem-nos apreciar com
mais precisão a imagem dominante (ou ofi­
cial) sobre a mulher.
Não era preciso obrigatoriedade, a pró­
Nesta época, nos primeiros dias de cada
pria comunidade escolar criava elementos de
semestre letivo, o Departamento Pedagógico
persuasão.
do curso normal promovia encontros de pla­
Ocorria também no IE a situação co­
nejamento e estudos conjuntos entre os pro­
mum às escolas leigas: no momento da aula
fessores do curso, numa prática recomenda­
de religião nem sempre havia professores
da pela tendência pedagógica mais atual (te­
para os não católicos. E sem dúvida estas
cnologia educacional).
aulas eram recheadas de conselhos morais
Um dos textos usados como subsídio
sobre a conduta adequada para moças cristãs.
para discussão em 1 966 tinha por título:
Lembra uma ex-aluna:
" Alguns aspectos da educação da jovem no
mundo atual". Nele se indicava a que educa­
" . . . ur: li professora começou a se re­
ção moderna deveria ser "funcional e so­
ferir ( . ): os 'pecados do sexo que vo­
cial", uma educação que buscasse a harmo­
..

cês cometem , etc. e tal ' . Deu um ver­


nia, o equihõrio entre o homem individual e a
dadeiro ' frisson' na aula, porque
comunidade. E fazia-se um destaque especial
ninguém l abia exata�ente o que que
à mulher:
se estava referindo, que pecados de
sexo eram estes . . . Eu me lembro que
"Há alguns anos vem conquistando a
uma certa hon: eu tomei coragem e
jovem igualdade com o homem em
perguntei. Quando eu perguntei a
muitos domínios da vida moderna.
professora foi tomada de um verda­
Mas apesar da iniciativa, competição,
deiro horror: - ' Mas como é que tu
sef:urança e responsabilidade que essa
não sabes dos pecados que tu come­
nova posição exige, continuamos a
tes?' E eu realmente. . . me passava
valorizar nela, a f:raça, a meif:uice,
pela cabeça, mas. . . naquela época,
a doei/idade, a vif:ilãncia, a resistência
pelo me nos eu acho que ninguém
não ostensiva a certos háhitos modernos
transava co m namorado nenhum.
que tendem a introduzir-se e a fixar­
Então que coisas eram aquelas? Ela
se, a pesar de prejudiciais à natureza
referiu-se a dançar de rosto colado
fem inina " . (grifos nossos) 1 9.
ou beijar algum namorado, que eram
pecados de sexo. Tu repara bem.
Em função disso, colocavam-se as per­
Então .. que loucura! Nós estávamos
guntas chave para discussão entre os pro­
já na década de 60! O que era isso
fessores:
que passavam para a gente? E eu
realmente fico pensando, o que terá " No momento atual, em que aspectos
feito sair, grande parte daquelas a educação social da jovem requer
pessoas, com a cabeça saudável? . . "
maior vigilância por parte dos pro­
(E). fessores? Que recursos são indicados
para desenvolver essas qualidades e
A colocação já fora feita anteriormente
atitudes, e outras desejáveis?"
por esta mesma depoente: diante da consta­ O texto nos parece representativo do
tação de que havia pressões conservadoras, pensamento sobre a mulher que tem a insti-

42 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1 (2): 25 - 56, julldez. 1 986


tuição neste momento. Ela é considerada ca­ " - Com(, levar os alunos a reconhe­
paz socialmente - e isso seria evidentemente cer os limites de sua liberdade, a res­
o mínimo que se· poderia esperar num curso peitar a autoridade, a aceitar e prati­
na época freqüentado totalmente por mu­ car t ma disciplina escolar que eles
lheres. A escola se insere no pensamento próprios elegeram , por reconhecerem
dominante na sociedade que supõe igualdade válida e necessária? " 2 1 .
de oportunidades aos jovens de ambos os se­
xos. Mas, (há sempre este "mas") são realça­ Parece a partir daí que poderíamos in­
das a "graça", a "meiguice", a "docilidade"; ferir que as alunas foram de algum modo
o que leva, como colorário, à aceitação e à consultadas sobre a disciplina escolar (suge­
obediência. Ainda mais, se pede a "resistên­ re-se que o Conselho de Alunas faça uma
cia não ostensiva a certos hábitos moder­ proposição de normas para serem observadas
nos". Isso não seria sugerir apenas acomoda­ pelas estudantes na escola).
ção e manutenção dos comportamentos tra­ Há mais de uma leitura para isso, no
dicionais? nosso entender. De um lado, poderia repre­
O texto fala em "harmonia social" e sentar uma forma mais participativa de ad­
para que esta seja alcançada parece que a ministração da escola, na qual as estudantes,
mulher deve manter-se fiel à sua idealização. que são o alvo principal da disciplina e auto­
Aceita-se que ela tenha "iniciativa", "segu­ ridade, contribuíriam com suas próprias opi­
rança", "responsabilidade" nas novas tarefas niões sobre a torma ou limites dessa autori­
que o mundo contemporâneo lhe permitiu, dade. Por outro lado, poderia significar que
mas não se espera que ela promova nenhuma este órgão estudantil era suficientemente dó­
revolução ou mudança mais brusca. Todo cil e que seria fácil controlá-lo no sentido de
o tom é de acomodação e quando se fala em ter sua anuência à orientação que se quisesse
resistência é para resistir ao novo, o que po­ imprimir, ou ainda seria possível influenciá­
de ser entendido também como reação, ou lo para que elegesse um conjunto de normas
reacionarismo. Dos professores se espera consideradas adequadas pelos dirigentes.
que estejam vigilantes, que identifiquem os Talvez não possamos definir qual dessas lei­
indícios de atitudes indesejáveis, e que indi­ turas mais se aproxin1a da realidade, mas, o
quem modos para desenvolver as qualidades que é mais provável, devemos entender que
desejadas. ambas as leituras são verdadeiras e a prática
Outro tema proposto à discussão pelos teve as duas versões juntas.
professores nesta fase de planejamento con­ Quanto às normas propriamente ditas,
junto refere-se à "Liberdade, autoridade e parece-nos que este texto, como o anterior,
disciplina" . refere-se ao fumo que deveria ser combatido
A própria colocação do trinômio já nos na escola (daí falar em resistir a certos hábi­
permite perceber como ele é concebido. tos modernos prejudiciais à natureza femini­
São evidentes suas matrizes liberais, on­ na, ou exercer a liberdade em direções que
de se entende que todo o homem tem direito não são biologicamente úteis); e poderia
à liberdade, mas que esta se limita com a li­ também estar aludindo ao uso da pOula anti­
berdade dos demais e cabe às institl,ições so­ concepcional, o que então já se difundia no
ciais exercerem a autoridade sobre os gru­ País.
pos. O texto é também ajustado ao momento A preocupação que a liberdade pudesse
político do País, quando evoca um abalo no ser exercida em direção de "duvidosa signifi­
trinômio liberdade-autoridade-disciplina, cação social" é provável que se referisse aos
que estaria sendo intentado neste período receios com o avanço de um pensamento de
histórico. esquerda nos meios estudantis e em outras
A escola alinha uma série de elementos entidades, como a Juventude Estudantil Ca­
para indicar que a liberdade de suas alunas é tólica (JEC).
assegurada. Há uma série de áreas nas quais Não é demais lembrar que estes subsÍ­
se supõe que a estudante pode expandir sua dios para discussão estão sendo utilizados em
liberdade, inclusive associando-se a seus 1966, quando o País está vivendo novamente
iguais. Mas se entende que essa liberdade não uma escalada de autoritarismo e repressão e
pode ser exercida que ainda se tomaria mais aguda ao final da
década. A palavra democracia, usada nestes
"em direções que não são biologica­ textos e em outros, é empregada pelos pró­
mente úteis ao indivíduo (contrárias prios dirigentes do Estado brasileiro, enten­
às leis naturais) ou que são de duvi ­ dendo que no País se tinha uma restauração
dosa significação social (contrárias dos costumes e uma forma especial de go­
aos interesses sociais que em uma verno, mas não admitindo que se estivesse
democracia se confundem com os do negando a democracia; ao contrário, no en­
p róprio indivíduo) ,, 20 . tender destes, o movin1ento de 64 fora feito
para resguardá-la. O pensamento de esquer­
Na pergunta que deveria suscitar a dis­ da era considerado então uma ameaça à de­
cussão se ooloca: mocracia. Os jovens precisavam pois ser bem

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 25 - 56, julldez. 1986 43


orientados, pois no idealismo próprio de sua Assim, e talvez até por não ser esta (a
idade poderiam ser seduzidos por estas dominação de sexo) a contradição básica da
idéias. sociedade, esse terreno seria mais permeável
Devemos ressaltar que este conjunto de à discussão, numa instituição escolar que já
textos que seriam discutidos pelos professo­ por várias gerações dedicava-se à educação
res do Instituto de Educação tem um tema das mulheres.
central gerador que é "Unidade e diversidade Podemos até supor que este tipo de dis­
na ação educativa". cussão fosse desenvolvido por alguns setores
Não há d6vida que todo o trabalho pre­ justamente na busca de uma ·imagem mais
paratório do semestre letivo visava harmoni­ avançada e moderna, embora pudessem
zar os pontos de vista fundamentais dos do­ manter uma posição conservadúra em rela­
centes para uma ação conjunta. Mas devemos ção à contradição fundamental da sociedade.
notar que o próprio Departamento Pedagó­ A final essa era uma escola já pratica­
gico (enunciando vários aspectos) percebia mente centenária e que tinha tanto no seu
os limites dessa unidade ou harmonização. corpo docente como discente uma expressiva
Em outros termos, o que se observa nos maioria feminina. Eram fundamentalmente
elementos apontados é que os professores mulheres que ali se relacionavam. Mulheres
são indivíduos com origens, condições sociais profissionais instruindo outras, com um ob­
e histórias diferentes, impossíveis de ser en­ jetivo final também profissional.
quadradas em um 6nico modelo, e implicita­ Assim, ainda que houvesse professoras
mente se admite aí uma interação não de to­ conformes com a ideologia llIachista, acre­
do controlável pelo sistema. ditamos que a própria condição de trabalha­
É pois interessante notar que o próprio doras lhes conferia algum grau de resistência
texto do Instituto de Educação fala que ao enquadramento no modelo doméstico
absoluto que a sociedade criara para a mu­
"Toda educação é uma história que lher. Por outro lado, certamente havia muitas
se faz e que não se saberia escrever de professoras que contribuíam com seu salário
antemão. Ela resulta, em grande para a manutenção da família, e que possi­
parte, de acontecimentos inespera­ velmente deveriam ser mais conscientes de
dos, de descobertas, de acasos, acer­ sua participação produtiva e menos depen­
tos e erros. De certo modo ela é, e é deontes dos homens como chefe" familiares.
preciso que continue a ser, uma E com isso queremos maIS uma vez sa­
aventura" 22 . lientár o espaço de luta na escola - o espaço
para a transformação.
Isso representa aceitar que há elementos Acreditamos que mereceria registro
não predizíveis na relação professor-aluno. E também a qualidade do ensino ministrado na
note-se que este texto se põe num momento escola.
de grande reverência ao planejamento e ao Nas lembranças das entrevistadas são
controle, à previsão de comportamentos ... ! freqüentes os destaques para um bom nível
Mas há uma dose de realismo que permite de conteúdo, especialmente em português,
aos organizadores de um encontro para pla­ matemática, ciências (no ginásio). Diz uma
nejamento educacional perceberem que a delas:
atuação de cada professor é também deter­
minada por suas condições de vida e que es­ " ... na realidade eu creio que o pri­
tas pçdem ser diversas. mário do IE dava uma base muito
E provável que idéias profundamente boa, o ginásio solidificava esta base.
opostas às dominantes e claramente mani­ ( ) Acho que te dava instrumentos,
.•.

festadas sofressem uma repressão maior - e em termos de conhecimento (até te


aqui não nos referimos só à instituição esco­ proporcionava então a forma de ins­
lar. Mas sempre haveria uma margem para trumentalizar estes conhecimentos),
divergência, e nos parece que o texto da pró­ te habilitando a uma vida competiti­
pria coordenação entende assim. va, a concursos, a exames de seleção,
Com referência à dominação-libertação etc. e tal. (...) Acho que o processo de
feminina possivelmente a tolerância em rela­ alfabetização realmente foi muito
ção às idéias inovadoras seria maior do que bom. Acho que as pessoas do I E
no terreno especificamente político. Não so­ conseguem escrever bem, uma coisa
mos ingênuos de supor que não estejam inti­ que já não é tão freqüente. (...) acho
mamente ligados estes temas, mas devemos que deu uma formação muito boa no
lembrar que um discurso feminista já se fazia terreno da linguagem" (E).
amplamente presente no mundo capitalista de
então, e, mesmo com todas as incoerências
que ali identificamos, conviviam idéias de li­ A formação em linguagem aparece ou­
bertação da mulher com as de manutenção da tras vezes nos depoimentos, como no que se­
exploração classista. gue:

44 EDUCAÇÁO& REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 2; - 56, juildez. 1986


j
" Uma coisa que me chamava Mas, como salienta Snyders, não existe
atenção é que nós todas que saíamos uma incomunicabilidade entre as duas lin­
do Instituto tínhamos muita segu­ guagens (popular e culta) e é possível esta­
rança em redigir. ( ... ) Até hoje eu sou belecer a continuidade entre elas, o que seria
uma pessoa que tem segurança orto­ papel da escola. Também não podemos negar
gráfica e redijo com facilidade. . . Eu que há maior riqueza na linguagem elabora­
acho que isto é mérito da escola, por­ da, riqueza de nuance s , de precisão, de c1are-
que eu via depois os meus colegas de za.
faculdade ( .. . ) Então, mesmo admitindo que houvesse
. . . Mesmo depois na vivência da po­ lima certa familiaridade em relação à lingua­
lítica estudantil, quando se tinha de gem culta, por parte de alguns estudantes,
redigir alguma coisa, a dificuldade parece ser verdadeiro que o IE desenvolvia a
que era a redação para os demais, nós capacidade de expressão oral e escrita, com
tínhamos uma facilidade . . . Parecia ... exigências de rigor, correção, exatidão, esta­
que era mesmo u m processo que belecendo um crescimento em relação à lin­
acontecia naturalmente. ( ... ) E não guagem já dominada pelos alunos.
era uma característica só m inha. (. ..) Acreditamos ainda mais que esta capa­
Eu fico pensando que talvez esta fa ­ cidade de expressão pode ser vista como um
cilidade que a gente tinha fosse por­ instrumento de poder.
que a escola oportunizava muita A escola dava este instrumento de modo
coisa. O que eu me lembro da m inha seguro e consistente e de posse dele as pes­
vida escolar era uma vida muito ocu ­ soas podiam mais facilmente dominar infor­
pada, muita coisa. ( . .. ) ninguém es­ mações e expressar-se. Quando esta ex-alu­
creve sobre o que não viveu. Na me­ na associa a facilidade de redação à atividade
dida em que a vida é muito intensa , de política universitária, ela permite que sa­
as idéias vêm ... " (D). lientemos o poder daquele que registra o
pensamento de um grupo. Os relatores de
Seria interessante que examinássemos discussão (tarefa usualmente destinada a
um pouco mais detidamente esta característi­ quem redige bem) elaboram as idéias, orga­
ca do I E - o desenvolvimento da expressão nizam o pensamento do grupo, certamente
escrita e da boa linguagem. nele colocando o seu cunho pessoal. Mesmo
Sobre a linguagem escolar os reprodu ti­ que tente ser fiel reprodutor da discussão,
vistas não são nada complacentes. Para aquele que escreve fica investido de uma
Bourdieu e Passeron a escola usa a lingua· certa autoridade que advém de ser ele o or­
gem dos grupos dominantes e então somente ganizador da palavra do grupo. E esta capa­
para as crianças burguesas este é um discurso cidade pode muitas vezes ser um caminho
familiar. Para Baudelot e Establet a situação para liderança.
é mais grave: a linguagem escolar é proposi­ O domínio da linguagem é também fun­
talmente manipulada com intenção de excluir damental para melhor compreensão e análise
as criançlll' do proletariado. do que se lê e conseqüentemente facilita o
Nesta linha de raciocínio, teríamos de acesso às informaçóes, ao saber acumulado.
pensar o Instituto como uma escola tipica­ Não s6 a precisão e a clareza, mas ainda
mente burguesa e atribuir esta facilidade de todas as possibilidades de tonalidades e
expressão indicada pelas ex- alunas à possível nuances que tornam mais rica a comunicação
presença maciça das crianças das classes do­ são ensinadas pela linguagem da escola e
minantes, que ali não fariam nada mais do parece que para isso é indispensável a vivên ­
que reforçar sua pr6pria linguagem. cia de diferentes "situações pedagógicas cada
Mas este seria um raciocínio extrema­ vez mais complexas" (como diz Snyders). 24
mente simplificador. O IE como escola pú­ Parece-nos que é nesta direção que aponta a
blica e leiga não abrigava maciçamente os declaração da depoente quando relaciona a
fIlhos da burguesia, era muito mais uma ins­ facilidade de expressão com as múltiplas ati­
tituição das camadas médias, na qual também vidades proporcionadas pela escola.
estavam presentes (em menor número) ele­ Pelos indicadores que temos, a escola
mentos dos setores desfavorecidos social­ não procurava dirigir o pensamento crítico
mente. de suas alunas para a análise da realidade so­
Encontramos em Snyders 2 3 alguns cial, mas acreditamos que ao desenvolver­
apoios para desenvolver outra caminho de lhes as habilidades de expressão e comunica­
argumentação. Não há dúvida que esta escola ção estava lhes fornecendo instrumentos ne­
(à semelhança das demais escolas da nossa cessários para posteriormente construírem
sociedade capitalista) usava a chamada lin­ esta análise.
guagem culta, e valorizava os grandes escri­ Uma depoente refere-se à abertura em
tores da língua portuguesa e também os tex­ termos intelectuais, que a escola proporcio­
tos antigos, em detrimento do cotidiano dos nava, ligando-a à existência de divergências
alunos. entre posições dos professores. Para ela, a

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1 (2): 25 - 56, julldez. 1986 45


escola tinha como critério básico a compe­ do, e não explicitamente na conceituação
tência, então: dialética. Então ela diz que a escola jamais
permitiu perceber as contradições. Mas a
" ... no Instituto se respirava um cli ­ contradição aparece no mesmo depoimento,
ma bom de autonomia intelectual. quando - pela capacidade de reflexão desen­
Isso eu acho que é mérito do Insti­ volvida pela própria escola - ela é capaz de
tuto, mais do que da universidade. desconfiar das aparências, de questionar
( . . .) Durante algum tempo ( . . .) eu além do previsto. A contradição também
considerava o curso efetivamente de aparece no processo educati ,o que estamos
nível superior que eu tinha feito sido examinando quando a prática educativa que
o curso normal. Porque, por exem ­ submete as meninas à aprendizagem de de­
plo, no Instituto nunca houve una­ terminado perfil feminino tradicional cria,
nimidade de opiniões, havia plura­ ela mesma, os instrumentos de libertação
lismo, nós tínhamos professores que deste perfIl.
a gente sentia tacitamente que . . . Na escola ganhavam realce as idéias e
eram posições conflitantes, embora posições coerentes com o pensamento domi­
houvesse uma convivência educada nante da sociedade brasileira naquele mo­
em que os conflitos ni!o aparecessem . mento. Sabemos que as idéias dos grupos
Não se trabalhava tm cima do con­ dominantes sempre são as idéias que prevale­
flito, agora o conflito era presente. cem (que dominam) e há tendência de mos­
(... ) trá-las como únicas. Assim seria próprio da
Porque a gente percebia nitidamente, escola escamotear o conflito, evitando que as
por exemplo, que os professores ti­ idéias divergentes ganhassem mais espaço.
nham posições antagônicas, embora Na formação feminina o pensamento di­
nenhum fizesse apologia de suas posi ­ vergente seria a representação da mulher
ções. Eles aparentemente eram neu ­ participante, profissional, crítica, politizada.
tros, eles davam a sua disciplina com Seria admitir na mulher o questionamento, a
seu compromisso científico, mas discordância, a desobediência e a capacidade
permeava por meio disso suas posi­ de decisão. Na medida em que há possibili­
ções diferentes. Então a gente sabia dade de entrar em contato com posições di­
nitidamente . . . embora nunca aber­ ferentes, possibilidade de se apropriar de
tamente este debate tivesse se institu­ informações e de adquirir habilidades de es­
cionalizado na escola. Isso, eu me tudo e de análise, vai também se desenvolver
lembro que nunca! ( ...) e contradi­ a capacidade de "descon fiar" da harmonia,
ções, jamais! O conflito não era ad­ daí porque "se percebia nitidamente" o con­
ministrado e nem era permitido que flito, embora houvesse um esforço para es­
ele eclodisse. Havia de certa forma camoteá- lo.
uma camuflação do conflito, mas as É evidente que este escamoteamento di­
idéias dos professores permaneciam ficultava o desenvolvimento da consciência
divergentes. E neste aspecto eu acho crítica, emperravà a poli ti z ação. Como ten­
que tive uma educação pluralista!" dência geral diríamos que esta escola não
(D) acelerava as transformações sociais, na me­
dida em que acentuava a estahilidade c a
A rememoração da passagem pela escola harmonia.
por esta ex-aluna é bastante expressiva. Há
Mas esta aparência de estabilidade e
uma reflexão sobre o cotidiano do IE e uma
harmonia interna não resiste a uma análise
tentativa de ver além da sua aparência.
mais aguda. As contradições que permeiam a
O pluralismo que ela identifica se exer­
sociedade burguesa também estavam ali
cia apesar da busca de unidade que os textos
presentes. A formação das jovens gaúchas
e planejamentos cooperativos declaravam.
não estava pois preservada de contradição,
Pluralismo representa variedade, diferença
nem poderia, é claro! Como cada pessoa se
de posições - o que serve para reforçar a ar­
constitui nas relações sociais, elas também se
gumentação de que a escola não reproduz
formavam se espelhando ou se contrapondo
apenas e maciçamente o pensamento domi­
às outras pessoas. Deste modo nem sempre
nante.
haveria a imitação desejada dos modelos
Mas o pluralismo não significa necessa­
propostos pela escola, mas ocorreria também
riamente contradição. Contradição supõe um
a negação destes modelos - o que significa
movimento dialético em que um elemento
transformação.
nega o outro, mas ambos dependem e se
constituem mutuamente. E este é o próprio Evidentemente a escola não se mantinha
movimento que fundamenta a vida e que cria alheia às mudanças sociais que ocorriam no
a transformação. Brasil e no mundo. As mudanças ali entra­
No comentário feito pela depoente pa­ vam, emborá muitas vezes sendo incorpora­
rece que a contradição é empregada como das para a reconstrução do pensamento do­
oposição de idéias e posições, como desacor- minante.

46 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, julldez. 1986


Observemos a década de 60 para perce­ criando a farsa de que tinham sido convenci ­
ber este movimento. Naquele momento no das. E isto é também uma forma de resistên­
IE estuda-se Sartre, discute-se o existencia­ cia à dominação.
lismo, lê-se extensiva e intensivamente "O As mensagens de fim de ano, de festas e
Pequeno Príncipe" , de Saint Exupêry (o que formaturas, ou, enfim, dos mais variados
aliás não foi privilégio desta escolas, mas um eventos, escritas tanto por alunas como pro­
modismo cultural brasileiro). fessores nos permitem perceber claramente
O catolicismo de outros momentos cedia uma visão idealista e até mesmo romântica
lugar para a mística d'O Pequeno Príncipe. com referência à educação. Vocação é ainda
Repetia-se "ad nauseam" as frases de Exu­ o elemento usado como definidor do magis­
pery. E delas se extrai a docilidade, a frater­ tério. Para esta época possivelmente soaria
nidade, o amor ao próximo, a crença no valor quase anacrônico falar-se em maior profis­
do indivíduo. Não seria esta uma forma de sionalização, valorização salarial, etc. - ar­
recriação ou transformação do ideário hu­ gumentos que s6 estarão no discurso da ca­
manista católico? (Aliás neste momento a tegoria alguns anos mais tarde.
própria igreja se transformava, com João Mas se as normalistas pareciam ter uma
XXIII e com sua doutrina social). visão romântica de sua atividade profissional
Para o IE o livro Servia muito bem: não futura, mesclava-se a isso a inquietude e a
trazia explícito nenhum credo, mas exaltava energia tidas como características de sua ida­
praticamente os mesmos valores que a escola de. Lemos no artigo de capa da revista JOIE
vinha trabalhando. A amorosidade que o de fms de 1968:
texto transmitia podia ser dirigida para mar­
car a atividade da normalista junto às crian­ " Quem construiu este mundo?
ças. Continuava-se exaltando a dedicação Quem semeou esses problemas?
integral da professora à criança, não mais Não são aqueles que agora querem
usando o argumento da maternidade (do impedir que o jovem conquiste e al-.
destino feminino), mas recriando esta dedi­ cance algo para si?
cação com outras justificativas. Não é aquela geração de após guerra,
Apesar da hegemonia destas idéias é in­ que quer que a mocidade siga de
teressante observar que algum tipo de resis­ olhos e mente fechados para tudo
tência também se desenvolvia. Observemos o aquilo que não representa a sua or­
depoimento seguinte: dem, o bem estar, a segurança?
A vida continua e se renova a cada
" . . . Quando chegou a época da escola nascimento de seres humanos e as
normal eu percebi a jogada, por idéias evoluem e tomam outra forma
exemplo, de como me sair bem em nessas novas vidas que surgem" . 25
determinadas provas, para as quais
eu não apostava muito nas discipli­ Assim se expressa uma estudante do
nas. ( . . .) Era muito em voga colocar Instituto de Educação lembrando o constante
assim algum pensamento . . . e a gente choque entre as gerações, acreditando que
deveria dissertar. ( . . . ) Eu descobri "serão os jovens que traçarão as normas de
que jogando com cleterminadas pala­ uma ordem social mais condizente com as
vras eu me saía bem sempre e inclu­ aspirações e necessidades da própria época".
sive em cerca de quinze m inutos es­ É uma jovem mulher que parece se entender
tava pronta a prova que invariavel­ como parte importante da mudança. Não é
mente tirava A , embora não estivesse um discurso de acomodação, contudo é im­
acreditando muito naquilo. Eu per­ portante ler mais um pouco para observar­
cebi que havia determinadas pala­ mos os limites ou as formas de luta que ela
vras chaves que eram jogadas de um propõe. Diz adiante:
contexto pro outro e que certo tipo de
coisa funcionava praticamente e m "Os estudantes procuram senão uma
qualquer disciplina. Isso é uma coisa igualdade social, pelo menos uma
que eu me dei conta aos 17 anos" (E). maior justiça. Quem tem um jornal
ou uma revista ou ainda está com o
E conforme a entrevistada esta forma de rádio ou a televisão ligados, recebe a
"driblar" os professores era comum ao seu cada instante informações sobre as
grupo de colegas. Aqui a boa linguagem, a revoltas estudantis no mundo inteiro.
facilidade de expressão desenvolvidas pela (... ) A liderança estudantil é de suma
escola eram utilizadas contra a própria esco­ importância para o país, para o
la, ou pelo menos contra a pregação feita por mundo, pois será da juventude que
ela. nascerão as novas idéias, as reestru­
De certa forma as alunas percebiam co­ turações das normas sociais. ( . . . ) Será
mo vazias as propostas que lhes eram feitas deles o mundo que construírem e que
e, usando os mesmos conceitos, devolviam deverá estar repleto de compreensão
aos professores o que eles queriam ouvir, e ajuda tanto ao branco como ao

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, juUdez. 1 986 47


preto, tanto ao rico como ao pobre. No mesmo jornal há outro artigo, tam­
Existe uma grande desigualdade no bém assinado por uma normalista, intitulado:
que diz respeito à distribuição de ri­ "Importância da liderança estudantil no
queza e bens, e que são as causas contexto político-sócio-econômico", no qual
primeiras do desequilíbrio econôm i­ alguns temas se repetem, e onde é evidente a
co que deixa um traço marcante nas valorização da força estudantil. Isto significa
diferenças das classes sociais. Essa uma autovalorização e talvez também signi­
luta pela liberdade e pelos novos fique uma percepção da importância da força
ideais não será vencida hoje, nem da escola como mediadora entre o "idealis­
amanhã. É uma luta constante do mo" do jovem e sua capacidade para a ação
homem que se sente envolvido r r consciente. A articulista levanta o choque
um grande progresso científico" . 2 entre as gerações, mas assume uma posição
dócil, como representando a filha bem com­
Como podemos perceber, a aluna iden­ portada que espera dos pais (ou dos profes­
tifica a desigualdade na distribuição de ri­ sores) a orientação.
quezas como causa primeira do desequilíbrio Entende o trabalho como móvel da mu­
econômico e das diferenças de classe. De al­ dança, por isso critica os "hippies" que, se­
gum modo estas idéias foram incorporadas gundo ela, "escapam covardemente ( ... )
pela normalista - direta ou indiretamente - criando uma sociedade utópica e frágil como
através da educação escolar, ou fora desta, uma bolha de sabão". Para ela o esforço para
mas, seja como for ela as está expressando modificar o mundo está certo, errados são os
no jornalzinho que circularia entre suas com­ meios. Assim, termina pregando a união das
panheiras. Ainda que a ideologia dominante gerações, pois "os jovens precisam de al­
encobrisse estas idéias, ela começava a des­ guém que os oriente, de modo que possam
vendá-las. E ao referir-se aos jovens sem trilhar a estrada certa". 2 9
distinção de sexo certamente incluía a mulher Há um certo direcionamento mais ou
(incluía-se) na luta pela transformação. menos semelhante na apreciação do movi­
Ela continua expondo como vê a luta mento estudantil desencadeado naquele mo­
por um novo tipo de sociedade: mento, embora com diferentes nuances nas
interpretações. Mas ambas criticam os méto­
"Mas não será pela violência que en­ dos de transformação que estão sendo em­
pregados pelos jovens.
contrarão a paz de que necessitamos
Como estamos lidando com materiais
e sim agindo pacificamente, buscan­
escritos e assinados pelas estudantes, em jor­
do a palavra que é o veículo de co­
nal de circulação interna no colégio, enten­
municação entre os homens. O estu­
demos que aí estejam as razões de seu tom
dante pode revolucionar o mundo,
pouco contestador.
abalar conceitos e atravessar frontei­
As outras matérias deste mesmo jornal
ras, desde que encontre as suas armas
espelham a visão mais tradicional sobre a
na palavra e o apoio na razão. Atra ­
mulher. Os títulos de algumas delas servem
vés do trabalho bem organizado, do
para ilustrar: "A normalista na cozinha";
conhecimento dos problemas chegará
"As mulheres e seus regimes"; "De olho na
à compreensão da vida s6çio- políti­
Moda"; "Tu sabes te fazer estimar?"; "Co­
co-econômica do seu país e então terá 30
mo conquistar a pessoa amada (ele)" . São
condições de dar um passo à frente
e iniciar as reformas" .27 todos textos perfeitamente coerentes com
a idealização do feminino.

Reforma é o termo utilizado, talvez cir­ O relatório do CAIE da gestão 69170


cundando (ou evitando) o conceito de revo­ traz indicações que podem ser interpretadas
lução, tão temido naqueles tempos. A forma mais ou menos na mesma linha. Afora cam­
de transpor os problemas sociais é mais re­ panhas assistenciais ou torneios esportivos,
formadora do que revolucionária. Mas de observamos entre as atividades promovidas
qualquer modo os temas tratados pelo jornal por sua secretaria social o baile do centenário
não são mais apenas "pflulas de notícias do da escola, reuniões dançantes com o Colégio
mundo", ou mexericos sociais. 2 8 O texto re­ Militar, chá das mães e cafézinhos poéti­
presenta uma preocupação da estudante com cm ; " . 3 ! A secretaria cultural organiza alguns
a sociedade em que está vivendo, há uma cursos diretamente ligados ao quadro que
percepção da ligação de seu pequeno mundo expusemos, como os de ginástica estética
(Instituto de Educação, P. Alegre) com o que feminina, yoga, decoração e maquilagem.
se passa internacionalmente (movimentos Contudo, promove também outros mais rela­
estudantis na França), e ela própria percebe­ cionados com a atividade profissional: de da­
se como tendo uma parte na tarefa de cons­ tilografia, alfabetização de adultos e labora­
trução de um outro tipo de sociedade. Pare­ tório de sensitividade.
ce-nos que de qualquer modo isso representa Então se o pensamento dominante pode
uma posição mais participante e desalienada. ter sua força medida pela extensão de sua

48 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1 (2): 25 - 56. julldez. 1 98 6


presença, acreditamos que a observação minhos diferentes, era um caminho
quantitativa dos diferentes artigos de jornal SÓ, para chegar a um objetivo só .
do Instituto de Educação e das atividades Então o que matou o Instituto: o
estudantis indicam claramente que ainda pre­ autoritarismo, os objetivos operacio­
dominavam as idéias mais conservadoras so­ nais, mal entendidos, tomados ao fa­
bre mulher e sociedade. natismo, um planejamento que se es­
Se este tipo de pensamento tinha já uma gotava no planejamento e não havia
longa hist6ria, ele também recebia neste final vez para as pessoas enriquecerem
dos anos 60 um reforço através do conserva­ com idéias, não se ensinava a pensltr
dorismo que a nova ordem política impusera com possibilidades diferentes, era
ao País. um pensar numa linha só, com o re­
O fechamento político era bastante sultado previsto ... " (C).
abrangente, como sabemos, e com diferentes
mecanismos de censura e controle procura­ Nl. concepção que esta entrevistada faz
va-se evitar as transformações, inclusive no da queda do IE estaria o abandono de seu
terreno do comportamento social. A liberali­ caráter de escola experimental, que seria a
zação dos costumes era atacada e o alvo de fonte e conseqüência de uma inquietude e di­
pregação mais direto era a mulher. O con­ namismo. Segundo ela "a burocracia entrou
trole sobre os movimentos estudantis tam­ para dentro das pessoas".
bém era muito forte. Havia um grande temor Mas se havia vozes discordantes que
ao avanço de um pensamento contestador. atuavam no IE naquele período, é .claro que
Tudo isto justificava a redobrada "vigi­ junto com elas haviam também vozes de
lância" que uma escola secundária feminina apoio ao autoritarismo.
teria nesta época. O IE mostraria também É por esta época que o IE comemora
sua preocupação em não subverter a ordem. seu centenário, em 1 969, com muitos feste­
Mas a sociedade civil brasileira crescera jos. Estes s6 se encerram em abril de 70 nu­
e se estava tolhida no momento isso não sig­ ma sessão solene, onde fala o antigo secretá­
nificava unanimidade de apoio. Como antes rio de educação do estado, Coelho de Souza,
salientamos, nos últimos anos os debates so­ exaltando a hist6ria do colégio.
bre os projetos políticos para o País haviam Para uma escola que buscara acentuar
sido travados intensamente e com a partici­ na comunidade a idéia de estabilidade e soli­
pação feminina. Assim numa escola como dez, o centenário era muito significativo -
o IE o golpe de 64 seria aplaudido por uns e exaltava-se a tradição do IE, a continuidade.
rejeitado por outros. Mas algumas mudanças eram evidentes.
Haveria o medo de fazer algum gesto A procura pela escola normal diminuía, e
que pudesse ser interpretado como subversi­ com a ampliação dos cursos do Instituto para
vo; infIltrar-se-ia a desconfiança entre pro­ o turno da noite (o ginásio noturno iniciara
fessores, alunas e funcionários, com receio em 1 965) , modificara-se a composição social
de denúnciás; mas haveria também a resis­ de seu alunado. As moças do noturno não
tência (ainda que tímida) perceptível ao se pertenciam mais às farnflias , de classe média,
discutir por exemplo, Paulo Freire, em pe­ mas aos grupos mais desfavorecidos, bus­
quenos grupos. cando no estudo a possibilidade de ascensão.
O autoritarismo do período atingiu de Este aumento de demanda �la escola (que
modo amplo a prática educativa. Para urnas não se fazia apenas neste nível, mas era
das depoentes este autoritarismo matou o IE, muito mais intenso no primário) acontecia
no que ele tinha de inovação, inquietude e em decorrência da industrialização e urbani­
experimentação. Diz ela: zação da sociedade brasileira e gaúcha. E se
de fato o País ampliava o sistema educacio­
" ... O autoristarismc se instalou no nal, não aumentava na mesma proporção os
País e este autoritarismo através da investimentos com a educação. Em conse­
Secretaria de Educação matou o Ins­ qüência, a chamada crise da qualidade do
tituto de Educação. Matou, exato is­ ensino se acentuava. O próprio magistério
so, matou. Por quê? Enquadrou o também vinha sofrendo uma queda expressi­
Instituto no mesmo setor de todas as va pela desvalorização de seus salários, pela
escolas ( . . . ) Eu argumentava que o conseqüente busca de vários empregos, pelo
Instituto é uma escola de experi­ aligeiramento do preparo das aulas, etc. Um
mentação. . . mas aí não valia... Co­ fenômeno que era muito mais abrangente do
meçou-se a falar outra linguagem , que aquela escola ou estado, mas que tam­
a linguagem do autoritarismo. En­ bém ali se refletia.
trou também pedagogicamente, A formatura das normalistas do ano do
junto com o autoritarismo, os objeti­ centenário é, curiosamente, destituída de so­
vos operacionais, que foi outra morte lenidade: o paraninfo ausente, poucas pes­
para todo o ensino. Era um treina­ soas no ato, algumas formandas ausentes
mento ( . . . ) não havia tentativas, não também , uma cerimônia simples, de trinta
havia possibilidades, não havia ca- minutos, no meio da tarde. Interrogadas pela

EDUCAÇÃO & REAL1DADE, Porto Alegre. 1 1 (2): 25 - 56, julldú. 1986 49


reportagem de um jornal32 sobre suas ativi­ parte da realidade, mas não a realidade com­
dades futuras, as normalistas dizem: "Não pleta.
queremos responder". E outras cantam o Determinada pelas condições estruturais
samba de Martinho da Vila, ironizando a di­ da sociedade brasileira e gaúcha, esta escola,
ploma, seu "canudo de papel". sem dúvida, refletiria as características de
Sem dúvida, é um contraste com as so­ dominação de classes e de sexos presentes no
lenidades tradicionais da escola que sempre todo social.
acentuou a emoção e o caráter oficial de suas Alguns traços da sociedade capitalista,
formaturas. Talvez as moças que deixavam o como o individualismo, a negação do conflito
colégio estivessem manifestando suas dúvi­ social, a manutenção do "status quo" eviden­
das sobre o reconhecimento social da pro­ ciavam-se, mesclados com marcas de domi­
fissão em que se habilitavam, ou até questio­ nação masculina.
nando o comportamento apreendido em O individualismo podia ser percebido
tantos anos. De qualquer modo, bombinhas, pelo emprego da seleção, da competição e
foguetes e serpentinas, como reporta o jor­ classificação.
nal, eram muito pouco usuais na fachada se­ A escola estimulava o crescimento indi­
vera do Instituto de Educação. vidual de cada aluna; em outras palavras,
A nova legislação educacional que entra sua proposta não era de um projeto coletivo
em vigor a partir de 1971 concretiza mudan­ de desenvolvimento da sociedade, mas sim a
ças evidentes na instituição. A lei 5692171 de construção de projetos individuais. Evi­
para o ensino de 12 e 22 graus exige que o dentemente esta é a proposta educacional
Instituto reformule alguns dos objetivos fi­ predominante numa sociedade dividida, pois
nais de seus cursos. a construção de um projeto coletivo impli­
O antigo ginásio (diurno e noturno) caria também a existência ou o desenvolvi­
passa a ter como áreas de estudo técnicas in­ mento de uma outra ordem social. Não po­
dustriais, comerciais, agrícolas e domésticas; demos esquecer que ainda que tenha uma
e o 22 grau acrescenta à sua tradicional habi­ "autonomia relativa", a escola não sobrevive
litação magistério outras habilitações: au­ desarticulada da estrutura da sociedade.
xiliar de orientação de creche, auxiliar de A aparência de harmonia de princípios,
terapia ocupacional e secretário auxiliar ausência de conflitos e busca de unidade ti­
(para o curso noturno). Como nos lembrou nham apoio no fechamento do IE sobre si
uma das depoentes (então professora do IE), mesmo, evitando ser invadido pela sociedade
as terminalidades escolhidas eram aparente­ contraditória e confusa que "estava lá fora".
mente destinadas a um público feminino. São Estas são tendências ao conservadoris­
todas atividades auxiliares, de assessoria, e mo e que apareceram numa escola que in­
por isso mais freqüentemente destinadas, em cursionava na sociedade exterior com "luvas
nossa sociedade, para as mulheres. (Mesmo o de pelica", escolhendo o que mostrar e fa­
curso notuJ;1lo era de secretário auxiliar, e na zendo o possível para preservar-se da con­
escola usualmente referido como secretária taminação. Em decorrência disso também se
auxiliar.) Assim, embora com modificações, colocava a valorização do passado e o estudo
a tendência seria de continuar a instituição da cultura antiga, com menos ênfase no coti­
predominantemente feminina, ainda que sua diano e no imediato.
principal característica, de escola especifica­ Mas sem dúvida a escola não realizou
mente de formação de professoras primárias estes intentos plenamente, já que a sociedade
tivesse terminado. desarmoniosa estava também "lá dentro" .
O I E fazia também uma curiosa combi­
nação de escola tradicional e moderna. Em
dia com as novidades educacionais, anteci­
CONCLUSÕES pando-se e irradiando as novas teorias e ten­
dências pedagógicas, e escola era moderna:
Procuramos nas páginas antecedentes mas também, concomitantemente, fortalecia
revelar como se comportou o Instituto de uma sólida imagem de instituição fiel à tradi­
Educação enquanto escola formadora de ção, com seus rituais, seus hinos e símbolos,
mulheres no Rio Grande do Sul, durante as com metas e valores permanentes, atrelada
décadas de 30 a 70. ao estado e em conseqüência mostrando res­
Como vimos, o IE era uma instituição peitosa obediência às orientações governa­
pública, freqüentada majoritariamente por mentais.
mulheres das camadas médias, e que se Do ponto de vista especificamente pe­
apresentava como uma escola avançada pe­ dagógico, foi mais marcantemente escolano­
dagogicamente, fiel às suas tradições e com vista entre 1930 e 60 (mantendo no entanto
uma unidade de princípios fIlosóficos e edu­ alguns traços da pedagogia tradicional, como
cacionais orientadores de sua ação. Essa era a disciplina). Ao longo da década de 60 as
sua aparência, difundida por documentos, orientações da tecnologia educacional pas­
planos e regimentos, o que certamente seria sam a integrar sua linha ' programática, onde

50 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, julldez. 1986


também se observa, desde alguns anos, o es­ ela seria educadora da geração de amanhã,
tbnulo às práticas não diretivas. reduto dos bons costumes, regeneradora da
Se aplicarmos a análise de Saviani33 sociedade e mantenedora dos valores morais.
para as tendências da educação brasileira, Sua educação então tinha mais um sentido
concluiremos então que o IE seguiu mais ou para fora ou além dela mesma (o ftlho, o alu­
menos a mesma trajetória do ensino no País no), do que para seu próprio crescimento en­
nesta época, com emprego de teorias e práti­ quanto pessoa.
cas educativas acríticas. Com as transformações sociais mais
Todas as tendências estão voltadas para amplas exigindo mudanças na imagem femi­
dentro da escola, tentando compreender o nina, a escola buscou combinar característi­
processo ensino aprendizagem e melhorá-lo cas modernas com alguns traços tradicionais.
como uma realidade em si. Em conseqüência, Em síntese podemos dizer que a escola
há também nestas práticas uma crença na ca­ estimulou nas moças: mais a disciplina, do
pacidade de a escola gerar transformações que a contestação; a obediência, e menos a
mais profundas em toda a sociedade, e as crítica; a discreção, e não a imposição; a do­
desigualdades são percebidas como resul­ cilidade, e não a agressividade; a teoria, mais
tantes de "diferenças individuais", de "esti­
do que a prática; o passado, mais do que o
los de aprendizagem", encaradas e encami­
presente; o individual, mais do que o coleti­
nhadas a partir do psicológico e do técnico.
vo; o estudo livresco, mais do que a ação so­
Não se assume que a sociedade é dividida em bre a realidade.
classes e grupos antagônicos, não se entende
Observando estes pares de conceitos
a educação estreitamente vinculada à estru­
podemos perceber que os elementos primei­
tura social ou relacionada dialeticamente com
ros são aqueles que justiftcam ou reforçam a
a sociedade. Nesse sentido, as diferentes
dominação do sexo feminino, pois são ca­
teorias, ainda que proponham mudanças de
mcteríticas que implicam mais em ações
forma, de procedimentos, ou de ênfases,
coadjuvantes, acessórias, e não traços que
guardam uma continuidade no modo não crí­
distinguem os protagonistas e lideres.
tico de compreender a educação - o que tal­
Mas estes pares de conceitos, que talvez
vez permita melhor combinar tradição com
possam levar à uma classiftcação simpliftca­
modernidade.
dora da escola, são, no entanto, oposições
Parece que podemos aftrmar que o Ins­
que na realidade se apresentam-de modo mais
tituto exerceu um papel de liderança na edu­
complexo. Na busca de um destes elementos
cação escolar riograndense. Papel especial­
pode-se provocar a presença do outro, ou
mente evidente no início de sua história, mas
seja, a escola ao acentuar um dos fatores
que se estendeu pelo menos até a d�ada de
contribuía não apenas para sua aftrmação,
60. Por isso, fazia parte de seu projeto for­
como para a reação contrária - de negação.
mar a elite do professorado gaúcho.
Queremos crer que a negação também
Estes elementos, que possivelmente ser­
se deu, não s6 pelo destaque de varias mu­
viriam para construir a imagem de uma es­
lheres egressas da escola em atividades de li­
cola qualquer de classe média, precisam ser
derança na comunidade (especialmente no
articulados ao fato de que esta era funda­
âmbito educacional), mas também pelas di­
mentalmente uma escola para melças. Então
ferentes manifestações de resistência, oposi­
alguns destes dados contribuíram para refor­
ção ou desmistiftcação dos modelos, percep­
çar o ideal de obediência, docilidade e res­
tíveis nos relatórios, nos depoimentos, no
peito, que, junto com outros elementos, ca­
movimento estudantil, na imprensa escolar e
racterizaram o perfil feminino desejado pela
mesmo nas atitudes irreverentes das alunas.
instituição.
Talvez aqui pudéssemos lembmr Sny­
Na construção deste perfIl se percebia
ders quando ele diz:
de um lado o estímulo ao estudo, o desejo de
formar uma jovem que se "libertasse pela
"Entende-se por dialética que cada
cultura", pelos livros. Uma mulher "ilustra­
contrário é penetrado pelo seu con­
da". Seu destino seria o magistério primário
trário, correndo portanto o risco
público e/ou o lar, numa combinação harmo­
constante de se perder arrastado por
niosa de professora competente e dedicada e
ele, mas podendo igualmente encon­
de amorosa mulher do lar, sem descuidar das
trar nesse contrário o aguilhão da
prendas domésticas, da etiqueta e da estética.
luta".34
Dentro deste espírito é que se pensava
na escola como uma continuação do lar e
buscava-se estabelecer um "continuum" en­ Desconftar das aparências, questionar o
tre as funções de professora e mãe. que está por trás, perceber os conflitos es­
Seu comportamento deveria tender para condidos, reagir a partir da práxis, inventan­
a discreção e nela se valorizava a religiosi­ do seus próprios recursos para "driblar" a
dade e a moral. autoridade, são todas formas de resistência à
Em alguns momentos se salientou com dominação, que também no IE fomm exerci­
clareza a $!oncepção positivista de mulher - das. Na verdade parece ser esta uma carac-

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terística do ser humano que, mesmo quando deu de modo autoritário, com uma avalanche
submetido à situações muito mais envolven­ de leis, normas e atos que se refletiram tam­
tes de dominação, descobre formas de resis­ bém no comportamento das pessoas.
tir e reagir - ainda que não o faça de modo A nova legislação e orientação do ensino
organizado e crítico, num primeiro momento. decorrentes deste movimento político tam­
É neste nível que acreditamos poder in­ bém implicaram em mudanças significativas.
serir as manifestações das estudantes do IE, Intensificaram a burocrataação da educação.
como uma resistência pouco organizada ou Significaram ainda a "parcelarização do ato
pouco elaborada criticamente. A irreverên­ de ensinar", como lembra Guiomar N. Mel-
cia, as trovas e modinhas, troçando das nor­ 10.36
mas do colégio e das atitudes das professo­ Outras mudanças, talvez mais lentas, já
ras, podem ser entendidas como uma reação vinham se fazendo, como' a procura da esco­
crítica - ainda que primitiva ou primária. larização por camadas mais amplas da popu­
Representam manifestações de desconformi­ lação,. e essa pressão por escola revela-se no
dade e desconfiança diante do que era posto IE pela mudança da composição social de seu
como correto, desejável, verdadeiro. alunado.
É necessário que consideremos que o Alia-se a este fato também a progressi­
IE, como qualquer realidade social, era e é va desvalorização econômica do magistério -
uma realidade em movimento, em constante o que começará a se refletir na queda da pro­
transformação. Porque tem uma história, a cura pelo curso normal.
escola é uma realidade viva que sofre modi­ Estes são alguns dados que alteram a fi­
ficações e contradições. E o mais interes­ sionomia da instituição, e que mostram ob­
sante é nos darmos conta que os contrários viamente a impossibilidade de ela existir fe­
existem dentro da prática social: no caso, chada em si mesma, ou preservada das mo­
coexistem dentro da escola. Não é uma opo­ dificações sociais.
sição que se faça de fora, por outros agentes, Se alguns são capazes de enxergar por
mas sim ela está embutida, embricada no trás desta mudança de fisionomia da escola
próprio processo que a escola desenvolve. As as transformações que se faziam na socieda­
mesmas professoras que funcionavam como de brasileira e gaúcha, outros olham-na ape­
modelos e os mesmo textos que orientavam a nas com um certo sentimento de nostalgia.
conduta das alunas, provocavam a contesta­ Uma nostalgia na qual pode estar inserido,
ção, a crítica, a irreverência, e em conse­ quase imperceptivelmente, um viés conser­
qüência o comportamento oposto ao deseja­ vador e elitista, já que esta saudade do IE de
do. E aqui nos parece ser possível afirmar antigamente traz junto a lembrança "das mo­
que se algumas mulheres se tornaram "meti­ ças de fmo trato".
das" ("antiprendas", no dizer de Luís Fer­ Por todas as colocações já feitas espe­
nando Veríssimo) não o foram somente por ramos que tenha se tornado evidente que o
brechas na dominação, mas porque o próprio estudo desta escola não se fez por ela mesma,
processo de dominação traz dentro dele a sua ror sua sinruJaridade, ma� sim porque acre­
negação. ditamos que nesta realidade particular é pos­
Lembra Ianni35 que o movimento é a sível encontrar também a realidade social
própria contradição em sua essência, que al­ maior.
guma coisa é viva quando contém em si a RespondendO à pergunta básica que
contradição. O Instituto não foi um monu­ conduziu esta pesquisa, teríamos que dizer
mento estático, mas é uma escola que tem que a escola jogou sem dúvida uma parte
história, portanto movimento. Mesmo quan­ significativa na dominação sexista. Com seus
do algumas depoentes falam em sua mortt­ currículos, normas e orientações, com a va­
(ao longo da década de 60), pelo autoritaris­ lorização da religião e da moral, ensinou a
mo, pelo tecnicismo, ou pela nova legislação obediência, a docilidade e a submissão às
de ensino, estão usando uma expressão típica mulheres. E, com este mesmo currículo e
dos seres vivos - a morte. Ainda aqui no en­ orientações, também desenvolveu-lhes a co­
tanto o que se deu provavelmente foi uma municação, as formas de expressão, criou­
nova transformação, que rompeu com ten­ lhes espaços organizativos, abriu-lhes poten­
dências consideradas "vitais" por aquelas cialmente um campo de trabalho e permi­
observadoras. tiu-lhes ensaiar a liderança e a participação.
Se a escola mostrava-se diferente ao fi­ No IE se salientou o papel da lingua­
nal da década de 60 é justamente porque as gem, a ênfase na capacidade de expressão es­
transformações sociais mais amplas força­ crita. Sem dúvida um instrumento útil para o
vam mudanças dentro dela. A nova ordem enfrentamento da dominação. Um instru­
política sem dúvida foi uma destas mudanças . mento necessário para apropriação do saber
A escolha de um dos projetos político-eco­ acumulado e para manifestação das reivindi­
nômicos até então em debate no Brasil impli­ cações e desejos dos que estão dominados.
cou em defmir determinado rumo para a so­ Assim, se a escola serviu indubitavel­
ciedade brasileira globalmente, e significou mente como instrumento de dominação mas­
outras prioridades para a educação. Isso se culina, não há também como negar que as

52 EDUCAÇÀO & REALIDADE, Porto'Alegre, 1 1(2): 25 - 56, julldez. 1 986


mulheres foram ainda mais intensamente
dominadas quando não tinham acesso à es­
Importante que não esqueçamos que se
a dominação sexista aparece e se manifesta
1
colarização. na escola (assim como aí aparece a domina­
Devemos acrescentar tamb.ém que tra­ ção de classe), ela não é criada pela escola e
tando-se aqui de uma escola de formação nem mesmo apenas por ela sustentada. A
de professores, não poderíamos deixar de desigualdade é criada e mantida pela vida
apontar, entre seus resultados, que ela signi­ material, pelas diferenças na posse dos meios
ficava objetivamente uma oportunidade de e bens da produção.
profissionalização para as mulheres. E, como Snyders diz que ao se imputar à escola
sabemos largamente, por muito tempo a úni­ um papel determinante na reprodução das

ca profissão admitida para elas. Este é um desigualdades cai-se "de novo no idealismo,
dado que parece apontar para um dos esp-a­ segundo o qual as ideologias são apoiadas e
ç<lS de libertação que a escola oportunizava mantidas unicamente com ideologias e não
ao elemento feminino. Então se a escola lhes com a materialidade dos fatos da existência
dava instrumentos para inserção no mundo coletiva"3 9.
produtivo, tomava-se também um veículo Talvez seja necessário fazer alguns co­
para mudança de sua imagem diante de si e mentários à fala de Snyders - proposital­
dos homens: mente incisiva devido à sua polêmica com os
Mas não podemos esquecer que desde os reprodutivistas.
primeiros tempos a escolarização feminina Historicamente a escola tem sido mais
sempre foi cercada de cuidados, buscando o conservadora, e portanto reprodutora das
encaminhamento das mulheres para ocupa­ desigualdades sociais. Assim, à medida
ções condizentes com seus papéis tradicio­ que as transformações da sociedade permi­
nais. Esta é a primeira justificativa para que a tiram e exigiram a escolarização das mulhe­
função de professora primária seja destinada res, esta instância, como vimos, foi também
a elas: mulheres sabem melhor lidar com utilizada para manter sob formas novas a
criança e o próprio manejo de classe, a disci­ dominação sexista. E ainda assim as mulheres
plina, é mais um serviço de mulher3? Além que tiveram acesso à escola foram por muito
disso, sempre é possível combinar esta tarefa tempo exclusivamente aquelas pertencentes
(de tempo parcial) com as lides domésticas ­ às camadas médias e burguesas da sociedade.
o que lembra a idéia de que o trabalho fora Deste modo, a escola foi reforçadora da
do lar para a mulher deve ser preferente­ submissão feminina.
mente transitório. Mas o que manteve a submissão intrin­
Assim, a própria história da profissão de secamente não foi a escola e sim a marginali­
professora primária se desenvolveu carrega­ zação da mulher do mundo produtivo. Esta
da da ideologia de ser uma profissão femini­ marginalização se deu tanto pela exploração
na, onde amor e dedicação maternal eram das proletárias e por sua exclusão no usu­
componentes tão ou mais valorizados do que fruto dos bens, como pelo alijamento das
conhecimento e competência técnica.GuiOOlar mulheres burguesas nas decisões e na produ­
N. de Mello analisa muito bem estes aspectos ção.
em seu livro "Magistério de lÇ? Grau". Não
vamos repetir aqui suas conclusões, ou de É em conseqüência destas condições
outros estudos3 8, mas deles nos fica saliente materiais e históricas que os homens (bur­
o quanto a vocação - expressão vaga e inde­ gueses) têm ficado com a capacidade de de­
finida - foi usada para manter a profissão do cisão e com o pleno uso dos bens do capital;
magistério como carreira feminina, para ligá­ e o� proletários, mesmo explorados por seus
Ia com um ideal de sacerdócio e em conse­ patrões, exercitam a opressão sobre suas
qüência com a aceitação de baixa remunera­ mulheres, enquanto provedores da família, já
ção. que detêm, no restrito âmbito doméstico, um
No período que examinamos, ainda que poder econômico, ainda que escasso.
mudanças importantes ocorressem na socie­ A diferença e a oposição masculino- fe­
dade brasileira globalmente e se refletissem minina, que é biológica e natural, encontra,
na escola, o discurso do amor e doação da portanto, sua forma opressiva na desigualda­
professora foi sempre mantido. E aqui pro­ de de posse e de acesso aos bens materiais,
vavelmente está uma das pontas onde tam­ na desigualdade no manejo dos meios produ­
bém se amarra a formação religiosa da nor­ tivos e de gozo dos resultados da produção
maIista. A religião ajudava a compor este social. Em conseqüência disso, a desigualda­
quadro de entrega e doação às crianças. O de se manifesta também de modo expresso
relacionamento afetivo, que sem dúvida é in­ ou implfcito nos campos jurídico, educacio­
dispensável na interação professor-aluno, nal, cultural, religioso, etc.
ganhava um intenso realce, e, se numa escola A manutenção das mulheres dentro do
como o Instituto não chegava a substituir ambiente doméstico facilita este desequilíbrio
a formação técnica, era de qualquer forma e a desvantagem feminina. Sob este ângulo, o
supervalorizado. acesso à escola é desde seus primeiros tem-

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, julldez. 1 986 53


pos um avanço, porque representa um rom­ Pensamos que na medida em que a es­
pimento com o fechado mundo doméstico, cola escamoteia o conflito (pois coerente
uma abertura para fora do lar. Significa tam­ com a ideologia dominante busca aparentar a
bém a oportunidade de a mulher adquirir hannonia social), ela também dificulta a po­
outros instrumentos para apropriar-se da litização e a criatividade.
realidade e representa (ao menos potencial­ Não que não se falasse no IE (como em
mente) a possibilidade de maior participação muitas escolas brasileiras de então) em cria­
(qualitativa e quantitativa) no mundo produ ­ tividade, cidadania (politização?). Falava-se e
tivo. se fala muito. Especialmente no contexto do
Reafirma-se o caráter contradit6rio da escolanovismo. Mas a criatividade que se
educação escolar, aqui vista sob o ângulo buscava não deveria chocar, não podia ousar
feminino, já que a escola constr6i e simulta­ nem escandalizar. Na prática isso significava
neamente destr6i a submissão. uma criatividade dentro de cânones adequa­
Dissemos antes que o dornfuio da lin­ dos. Ora, uma criatividade que s6 pode ser
guagem, da expressão �scrita e das diferentes exercida dentro de determinados limites não
formas de comunicação é um instrumento é uma criatividade real. É um pensar com­
útil na luta dos dominados e que este instru­ portado, conformado a determinados pa­
mento foi dado às mulheres pela escolariza­ drões.
ção. Contudo é necessário acrescentar que Também fazia parte do discurso peda­
tal instrumento não é por si s6 suficiente. g6gico da escola nova a construção da cida­
A capacidade de luta toma-se maior e as dania. Mas a cidadania proclamada nos pare­
condições de êxito também, na medida em ce que não ia muito além das praças e das vi­
que há consciência crítica das possibilidades sitas aos museus da comunidade pr6xima.
e limites de cada parte, e evidentemente O interesse efetivo pela realidade imediata, o
quando se tem clareza sobre o que se busca. acompanhamento dos problemas e das solu­
No nosso modo de entender, as peculia­ ções políticas, e especialmente a discussão
ridades da contradição homem/mulher pare­ destes encaminhamentos não se fazia. A
cem que ainda hoje confundem a clareza dos mulher cidadã, responsável e participante,
objetivos a perseguir e portanto colocam preocupada com a sociedade em que vivia
complicadores para a luta. não foi intencionalmente formada pela esco­
A discussão sobre a transformação de­ la.
sejada na relação homem/mulher é ainda um No entanto o interesse feminino pelo
processo aberto, inconcluso. Sem dúvida, público e sua inserção nos movimentos da
esta é uma transformação que se constrói sociedade civil brasileira já se fazia e era
junto com as transformações sociais mais crescente. O que nos parece é que a escola
amplas, mas que nem por isso deixa de ter buscava afastar-se dos debates, procurava
sua especificidade e de poder alcançar ga­ evitar que as discussões fossem trazidas para
nhos parciais mesmo na atual sociedade. dentro de seus muros - temendo as manifes­
Se estas questões são postas ainda hoje, tações de desconformidade com o estado,
nos parece razoável concluir que no período com os governos, os possíveis desagrados
estudado, num ambiente escolar feminino, à igreja e aos setores mais tradicionais da so­
também não se tinha um encaminhamento ciedade. Tendência que não cremos fosse ex­
claro para a luta das mulheres. clusividade do IE, mas que parece ser uma
Não estamos questionando se esta seria manifestação do freqüente atrelamento da
uma tarefa da escola, mas levantamos as difi­ escola, enquanto instituição, às forças sociais
culdades para que tal discussão (ainda que de conservadoras, ao invés das progressistas.
interesse das mulheres) se desse num am­ Compondo este quadro é importante
biente escolar feminino. Colocamos que seria lembrar que se a escola se manteve por mui­
dificil porque ainda havia pouca clareza so­ tos anos predominantemente com alunas das
bre os objetivos, e também porque o desen­ camadas médias, a imagem feminina de re­
volvimento da consciência crítica como ins­ ferência foi a mulher burguesa, destinada ao
trumento básico para a luta contra a domina­ lar e ao casamento, culta e sem necessidade
ção não chegava a ser empreendido pela es­ de trabalhar fora de casa.
cola. É certo que esta imagem foi se trans­
Trabalhar deliberadamente na formação formando. Mas mesmo assim a idéia de que o
de uma consciência crítica é tarefa conside­ trabalho não doméstico para a mulher deve
rada perigosa, já que os rumos da aplicação ser transitório, ou descaracterizado de sua
desta consciência não podem ser restringidos importância na contribuição no rendimento
ou canalizados apenas nas direções desejadas. familiar, persistiu.
Por isso acreditamos que nestas característi­ Acreditamos que com estes condicio­
cas o IE é representativo das escolas oficiais nantes podemos entender melhor os limites e
brasileiras . as possibilidades de libertação feminina atra­
Acreditamos também que podemos es­ vés da escola. Parece evidente que para mu­
tabelecer um vIDculo entre consciência críti­ lheres das camadas médias" numa escola ofi­
ca, politização e criatividade. cial e "padrão", de certa forma preservadas

54 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, juVdez. 1 986


da exigência vital de inserção no mundo pro­ SPALDING (porto Alegre: Ed. Sulina, 1953),
dutivo, colocam-se limites no nível de (,'Jns­ p. 1 67.
ciência crítica e de participação efetiva numa 5. FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, Mulher
prática social transformadora. Não houve na Brasileira, Bibliografia Anotada, Vol. 2 (São
escola uma tendência decisiva de acelerar a Paulo: Brasiliense, 1981).
conscientização política, seja da sua própria 6. Decreto estadual 775A de 1 5.5. 1943, assinado
condição de dominadas enquanto mulheres, pelo interventor federal no RS, Cordeiro de
seja da dominação classista da sociedade em Farias e secret. Coelho de Souza, artigo 572,
que viviam.
item lI.
Mas como buscamos, ao longo destas 7. Ibid., artigo 1412•
páginas, evidenciar a contradição na esco­ 8. Os depoimentos serão referidos por letras (A,
la,visualizamos que a própria prática educa­ B, C, D, E), colocadas imediatamente após a
tiva também engendrou mecanismos de re­ passagem transcrita.
sistência à dominação. O trabalho das pro­ 9. Revista do Globo, publicação quinzenal da Liv.
fessoras com suas alunas, a presença das do Globo, Porto Alegre, 08.07. 1944.
idéias não hegemônicas, as atividades pro­ 10. Revista do IE, Porto Alegre, Ano 1lI, n2 3 (de-
gramadas e espontâneas, os órgãos estudan­ zembro 1944).
tis, o processo de escamoteamento e percep­ 11. Ibid.
ção dos conflitos, os c6nhecimentos e habili­
12. Ibid.
dades de acesso ao saber, criaram a resistên­
cia à dominação e ofereceram instrumentos 13. D. BUITONI, A Mulher de Papel (São Paulo:
Ed. Loyola, 1981), p. 75.
para uma possível conscientização.
Este trabalho talvez tenha tido um tom 14. O Instituto de Educação de P. Alegre, em 1946
e 1947, relatório de M. Heloisa Degrazzia, Of­
de defesa da escola, e isto é assumido decidi­
fie. Gráfica da Imprensa Oficial, 1948, p. 26.
damente. Não de modo idealista, acreditando
que a escola é suficientemente poderosa para 15. Ibid., p. 35.
transformar a sociedade, mas de um modo 16. Ibid., p. 39.
crítico, na medida em que buscamos de­ 17. Ibid., p. 4 1 .
monstrar que ela é contraditória e portanto
18. Revista do IE, Porto Alegre, Ano I , n� 1 (dez.
espaço de luta, que nela se acentua a sub­ 42); Porta Voz do IE, Porto Alegre, Ano I, n2 4
missão, mas também se dão instrumentos (set. 49).
para superação desta submissão.
19. Boletim do Departamento Pedag6gico do Curso
Por isto nos referimos várias vezes a Normal, I.E., n2 1 (dezembro 66), anexo 2, pp.
Snyders: 23/24 (mimeo).
20. Ibid.
"A escola nem é um local de vitória,
21. Ibid.
de libertação já assegurada, nem o
órgão votado à repressão, o instru­ 22. Ibid.
mento essencial da reprodução; se­ 23. G. SNYDERS, Escola, Classe e Luta de Clas­
gundo as relações de força, acompa­ ses, trad. M. Helena Albarran (2! ed., Lisboa:
nhando o momento histórico, ela é Moraes Ed., 1976).
uma instabilidade mais ou menos 24". Ibid., p. 362.
,,
aberta para nossa ação 40 . 25. M .A. ARGEMI, "A Posição do Jovem no
mundo atual, in JOIE, órgão informativo do
Talvez com um vício de normalistas do Conselho de Alunas do IE, Porto Alegre, (nov.
IE, concluímos quase com uma mensagem - 68).
esperando que os educadores se disponham a 26. Ibid.
alargar a contradição, ou melhor, a aprovei­ 27. Ibid.
tarem-se dela para colocar a escola mais
28. Cf. Porta Voz do IE, jomal de 1949.
próxima das forças transformadoras ao invés
das conservadoras, onde ela tem tradicional­
29. I.M. BORSA, "Importância da liderança estu­
dantil no contexto político-sócio-econômico" ,
mente se posto. in JOIE, Porto Alegre (nov. 68).
30. JOIE, texto citado.
31. Relat6rio do CAIE (Conselho de Alunas do
1 . E. VERfsSIMO, O Tempo e o Vento, O Arqui­ Instituto de Educação), gestão 69170 (mimeo).
pélago, I Tomo ( 1 � ed. 4� impressão, Porto 32. Folha da Tarde, de 23.09.69: "Uma formatura I
Alegre: Ed. Globo, 1961), p. 277. diferente esta do centenário" .
2. P. SOARES, "Feminismo no RS, Primeiros 33. D. SA VIANI, Escola e Democracia (São Paulo:
Apontamentos - (1835 - 1 945)", in Vivência, Cortez e Autores Associados, 1983).
BRUSCHINI e ROSEMBERG (org.) (São
Paulo: Brasiliense, 1980), p. 123. 34. G. SNYDERS, Escola, Classe e Luta de Clas­
ses, Trad. M.H. Albarran (2! ed., Lisboa: Mo­
3. Ibid., p. 165. raes Ed., 1 977).
4. Ana Aurora em entrevista a Carlos Reverbel. 35. O. IANNI, Anotações de Aula (Disciplina: So­
Transcrito no livro A Grande Mestra, de W. ciologia - Pós-Graduação PUCISP, 1984.)

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56,juUdez. 1986 55


36. G.N. MELLO, Magistério de 1!! Grau, Da com­ 39. G. SNYDERS , op. cit., p. 38.
petência técnica ao compromisso político (2�
ed., São Paulo: Cortez e Autores Associados, 40. G. SNYDERS , op. cit., p. l06.
1 982), p. 54.
***
37. M.E. NOVAES, Professora Primária, Mestra
ou Tia (São Paulo: Cortez e Autores Associa­
dos, 1 984). Guacira Lopes Louro é Professora Adjunta do De­
partamento de Estudos Básicos da FACEDIUFRGS
38. G.N. MELLO, op. cit.; idem, "A mulher e o
Sistema de Educação formal" (depoimento
apresentado à CPI sobre situação da Mulher, em
1977); M. NOVAES, op. cito

56 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 25 - 56, julldez. 1986


'i

Entrevista COJt:J" IClllaetl'W

ichael Apple pertence àquele pequeno grupo de educadores

M norte-americanos. lá rhamados de "radicais", que vem


tentando construir uma teoria crítica das relações entre
educação e sociedade. Seu livro Ideologia e Currículo (Brasiliense, 1982),
aqui traduzido, contribui u para torná-lo conhecido entre nós. Mais
recentemente, ele escreveu o livro Education and Power (Routledge &
Kegan Paul, 1982) e está lançando agora seu último livro, Teachers and
Texts (Routledge & Kegan Paul). Esta entrevista foi realizada em
outubro de 1985, em Porto Alegre. Participaram como entrevistadores
os professores Nilton B. Fi'icher e Tomaz Tadeu da Silva.
NOTA: Por coerência com sua própria análise, Michael é
extremamente cuidadoso em usar uma linguagem que não seja sexista.
Tentamos, na tradução, ser fiéis a esse aspecto da sua fala. Nem sempre a
solução foi fácil, entretanto. Um exemplo em que a solução finalmente
adotada não nos pareceu inteiramente satisfatória foi a palavra teachers.
Em inglês ela não causa problemas já que designa, indistintamente,
homens e mulheres. O seu equivalente, em português,
professor / professora, causa problemas para quem não quer usar uma
linguagem sexista. Usar a forma masculina, professor, além de nãu
corresponder à observação empírica (no 19 e 2 9 graus), seria sexista por
privilegiar essa forma para designar uma profissão que, como todas as
outras. não é exclusiva de um sexo. Inversamente, o uso da forma
feminina. profess ora, estaria marcando uma profissão como
espec!fi"camente feminina. A nossa solução. a do uso da fórmula
professor (a), contorna esses problemas, mas apresenta outros. Mas
como tinhamos que decidir, na falta de melhor alternallva, foi a que
acabamos adotando.

EDUCAÇÃO & RE ALIDADE. Porto Alegre, 11(2): 57 68,julldez. 1986


- 57
Tornaz - Eu começo pedindo a o no trabalho anterior, em Ideologia e
Michael para falar um pouco sobre a sua Currículo, era uma teoria da luta, da
formação e a s u a e x p e r iênc i a em ideologia como uma forma de poder que
educação. as pessoas tanto podem usar, como serem
Michael - Eu venho de uma antiga e usadas por, e uma teoria da esfera
decadente cidade industrial em Nova política. Assim muito do meu trabalho
Jérsey, nos Estados Unidos, onde a taxa tem sido uma tentativa de alargar minha
de desempn:go, mesmo quando �u era perspectiva para a esfera política e de
criança, bem no inicio dos anos quarenta, incluir a ideologia tanto no seu sentido
era de cerca de 40% ... Assim minha positivo quanto no seu sentido negativo.
experiência é de um tipo específico ... Eu Eu tam1>ém tenho tentado aperfeiçoar a
venho de uma família que é bastante dinâmica de que falávamos. Eu quero
politizada. ... Eu era professor (de 10/20 sair do reducionismo econômico para
graus), então comecei como professor falar da importância da política e da
substituto, depois de ter sido recrutado cultura. Também quero me afastar do
pelo exército e t ê-lo deixado, para que nós chamamos reducionismo de
trabalhar nos bairros centrais de Nova classe, onde tudo é explicado pela
Jérsey e de Nova Iorque. E trabalhei seis constelação de forças de classe. Eu acho
anos como professor de escola elementar que o sexo e a raça são m u i t o
e secundária. Depois fui fazer pós­ importantes, não somente nos Estados
graduação, Mestrado e Doutorado na Unidos. São categorias constitutivas
Universidade de Colúmbia. Uma outra para entender os movimentos sociais,
experiência importante é que eu fui p ar a e n t e n d e r c o m o a e d u c a ç ã o
p r e s i de n te d e u m S i n d i c a t o d e funciona. Assim a maior parte d o
Professores e fui presidente numa época trabalho agora tem sido sobre a relação
em que tivemos uma longa e violenta entre classe, sexo e ensino. E também
greve, que nós ganhamos. Daí eu saí da tentar entender como a economia, a
Universidade de Colúmbia, onde eu fiz cultura e a política combinam-se e
minh a pós -gr aduaç ão, para a contradizem-se umas às outras para
Universidade de Wisconsin-Madison, formar a educação, o ensino e o
que é, eu acho, o campus mais politizado currículo.
nos Estados Unidos. De forma que isto Tornaz - O livro de Michael Young,
foi a continuação da possibilidade de um Knowledge a n d Power, t e v e u m a
trabalho político ... importância fundamental na definição de
Tornaz - Poderias nos dar uma breve uma á r e a chamada Soc i o l o g i a d o
retrospectiva do teu trabalho a partir do C urrículo. Quais são a s princi pais
livro Ideologia e Currículo? diferenças entre aquele trabalho e o
Michael - Ideologia e Currículo é trabalho que tem sído feito desde então e
apenas a metade de um programa, que se o teu próprio trabalho?
constitui numa análise de como a M i c ha el - Es t a é u m a q u e s t ã o
ideologia funciona como uma força importante. Existe uma introdução
reprodutiva. Era uma leitura somente da clássica à Nova Sociologia da Educação,
noção de senso comum de Gramsci, não sobre como o trabalho de Young iniciou,
da ideologia como um campo de luta. feita por Karabel e Halsey no livro Power
Assim o meu trabalho desde Ideologia e and Ideology in Educatíon, e e les
Currículo, em livros tais como Education examinam aí basicamente a literatura
and Power ou meu novo livro chamado sobre Sociologia da Educação. Por causa
Teachers and Texts, tem sido uma disto eles não se dão conta de que
tentativa de entender como elementos de Michael Young estava fazendo seu
percepção crítica e de percepção ingênua trabalno na Inglaterra, assim como
são sempre pensados como ideologia. Eu Bern stein. Ha via movimentos n o s
acho que este trabalho desenvolveu uma Estados Unidos que estavam tomando
teoria mais sofisticada de como a cultura, u m a r o t a p a r a l,el a , m a s n ã o e m
a economia � o Estado interagem para Sociologia, a maioria do trabalho estava
formar a educação. O que estava faltando sendo·feita na área do Currículo. Assim

58 EDUCAÇÃO & RE ALIDADE, Porto Alegre, 11(2): )7 - 68, ]ulldez. 1986


enquanto Young trabalhava na como professor seja como estudante.
Sociologia da Educação e queria afastar­ Penso que a pós-graduação é uma fase
se do que se chamou a posição aritmética muito especial na vida de alguém, onde
de Halsey e outros, ele não podia fazer você está lá por causa de um movimento
conexões com a área de Currículo na político e porque um movimento político
Inglaterra, porque não havia tal área lá. precisa de intelectuais orgânicos. E uma
Nos Estados Unidos existe uma tradição vez que somos pagos com a mais-valia do
muito, muito antiga de trabalho político trabalho do resto da população, nós
sobre currículo. devemos sempre incorporar em nossa
A ssim as questões que Young prática a política que nós queremos para
começou a levantar sobre as relações a sociedade mais ampla, porque nós
entre poder e conhecimento, entre o que estamos sendo pagos pela exploração das
c o nt a c o mo' c o n h e c i m e n t o e o s pessoas naquela sociedade mais ampla.
movimentos sociais, tinham sido Assim, penso sobre a pós-graduação
levantadas por cerca de duas décadas como um aprendizado e o estudante
nos Estados Unidos. E seria exatamente como um aprendiz de seu orientador,
isto: para aquelas pessoas que estão mas realmente não dele ou dela como
familiarizadas com a área de Currículo uma pessoa, mas de uma tradição mais
nos Estados Unidos e outros lugares antiga que passa por mim e que eu quero
houve um grande debate sobre o que que passe para outras pessoas. Mas para
�c chama o "rationale"de Tyler, que é um que este aprendizado funcione, ele deve
plano comportamentalista de currículo. ser feito coletivamente. Assim, toda
E nessa controvérsia, começou um s e x ta-f e i r a e u e t o d o s o s m e u s
movimento, a partir de cerca de 1955, na estudantes d e doutorado temos u m
teoria do currículo, de rejeição de encontro. São vinte e um, dez dos quais
sistemas comportamentalistas e d e se encontram comigo às sextas-feiras, o
sistemas de planejamento e de controle resto ainda está fazendo sua pesquisa.
das pessoas, e de defesa de uma teoria Nós nos encontramos por três horas, e
social e ética de currículo. E isto era este é um período em que certas coisas
similar ao que acontecia na Inglaterra e acontecem. Quando eu escrevo, esta é a
não foi senão quando o trabalho de primeira audiência, de forma que eles se
Young tornou-se popular que as pessoas tornam meus primeiros críticos. Não sai
nos Estados Unidos e as pessoas na nada meu até que eles aprovem. Eles
Inglaterra.começaram a se dar conta que podem não concordar, mas eles dizem
esses eram movimentos paralelos. Uma "está pronto". Assim não é somente que
it
grandtf/ rte do meu trabalho inicial eles estejam trabalhando comigo, eu
tornou�se uma ponte entre os dois. O que ..:stou constantemente aprendendo com
eu tentei fazer no, trabalho antes de eles.
Ideologia e Currículo e em Ideologia e Quando é o caso de dissertações que
Currículo foi sintetizar o material teriham sido planejadas por algum
britânico de forma que a área de estudante, a prática normal é pensar e
Currículo e a Sociologia do Currículo conversar com a pessoa, eu e a pessoa, e
pudessem juntar-se. então trazê-la para o grupo. Aí então ela é
Nilton - Eu tenho uma pergunta trabalhada, nós gastamos duas ou três
relacionada com nosso próprio trabalho semanas somente nas idéias de uma
como orientadores em nosso Programa pessoa para a dissertação. E há então
d e P ós-Gr a d u ação. C omo é que ajuda coletiva constante, encontros
trabalhas com teus estudantes e m suas constantes, questões educadas, muito
dissertações? Tu pensas quP é somente agudas às vezes, mas sempre tendo o
um trabalho individual ou existiria uma cuidado de lembrar que a pessoa é o fator
outra maneira de encarar esse trabalho? mais importante. Quando as pessoas
Michael -Deixe-me tentar ser tão claro estão estudando para o que chamamos
sobre isto quanto eu possa. Eu não "exames preliminares", as questões são
acho que seja bom, jamais, trabalhar d e s e nvol vidas C'o njuntamente pelo
totalmente de maneira individual seja estudante e pelo professor. Elas nunca

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- 59
são cegas. E as possíveis respostas são história. Essas teorias devem ser contra
trabalhadas na frente do grupo. De o reducionismo econômico e contra a
forma que mesmo as respostas a teus redução à classe. Agora mesmo, por
exames, antes que tu possas continuar exemplo, nos Estados Unidos e em
com tua dissertação, são trabalhadas outros países capitalistas avançados, a
coletivamente. maioria das posições na classe operária
Agora, o que é muito importante são preenchidas por mulheres, cujo
sobre isto é que existe uma gama de trabalho tem sido proletarizado e
posições políticas no grupo. Há pessoas desqualificado e tem sido empobrecido.
que estão bem na extrema esquerda, há Assim, mes m o que v o c ê s e j a um
pessoas que são democratas-sociais, reducionista de classe, mesmo que você
todos estão na esquerda. Há também tenha uma posição de redução à classe na
pessoas de vários países. Um estudante de economia, você não pode ter uma teoria
Barbados, por exemplo, que acredita completamente articulada das relações
muito fortemente que a política racial é de classe sem uma teoria da di visão
a mais importante. Assim, as pessoas sexual do trabalho e de suas mudanças ao
estão muito conscientes a respeito de longo do tempo, sem uma teoria das
diferentes formas de análise e elas estão relações patriarcais. É simplesmente não­
muito abertas a elas. A chave, eu acho, é Marxista ignorar a experiência das
esta combinação de lermos juntos,estu­ mulheres. E eu penso que Marx seria o
darmos juntos e também de sermos primeiro a admitir isto.
muito conscientes de que as diferenças Agora, uma vez que eu entendo o
políticas não nos devem impedir de nos M a r x i s mo c o m o u m a t e o r i a d e
ajudarmos mutuamente. Na maioria das materialismo histórico, isto significa que
u n i v er s i d a de s a q u e l a s d i f e r e n ç a s a teoria também deve mudar com as
políticas podem dividir os professores e relações sociais que mudam ao longo do
os estudantes, e eu venho de uma tempo. Isto significa que para entender o
instituição . .. quando eu fiz minha pós­ trabalho de ensinar nós devemos tomar
graduação n a Universidade de esta teoria de forma séria. Nos Estados
Columbia, isto era muito violento. Eu Unidos, como na maioria dos países, o
penso, outra vez, que nós devemos t r a b a l h o de e n s i n a r n a s e s c o l a s
refletir o tipo de sociedade em que elementares tem sido, amplamente, um
acreditamos, em nossa pedagogia e trabalho de mulheres. E isto se articula,
especialmente em nosso trabalho com os .ao longo do tempo, com mudanças nas
estudantes de pós-graduação. relações patriarcais e com mudanças na
Tomaz - Eu queria que tu falasses um estrutura de classe. E o trabalho de
pouco sobre o teu trabalho mais recente: ensinar tem sido historicamente uma
o ensino como um trabalho feminino, extensão do trabalho doméstico. E isto
que tu já mencionastes anteriormente. significa que nós não podemos entender a
Mas eu gostaria que tu te estendesses um forma com que o trabalho de ensinar é
pouco mais sobre isto. controlado e a forma com que o s
Michael -Deixe-me dar primeiro as currículos s ã o planejados s e m que,
pré-condições conceptuais e políticas primeiro, levantemos a questão "quem
sobre isto. Eu nunca me satisfiz com a está fazendo o trabalho de ensinar"?
teoria econômico-reducionista Marxista. Assim o que eu tenho tentado fazer é
Eu não pertenço a uma Igreja e não estou tomar esta questão seriamente, isto é,
preocupado com heresias. Nossas teorias quem domima no ensino primário e
devem ser desenvolvidas a partir de elementar? Como isto difere do ensino na
nossas práticas políticas correntes. De escola secundária? Quais as formas pelas
forma que eu não quero reduzir tudo à quais controlamos o trabalho de ensinar?
economia, no último momento. Eu acho Quais são os mecanismos ideológicos
que este último momento nunca chega, às pelos quais o Estado, a economia e as
vezes, e freqüentemente este último formas culturais formam o ato de ensinar
momento foi há mil anos atrás, o que e formam o ato de construção do
aponta para à importância de conhecer a currículo? Assim, na maior parte do

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-
trabalho recente num livro que está mais racionais, os currículos são pré­
para sair chamado Teachers and Text, empacotados, com muitos, muitos testes
que é sobre este tema, o que eu tento fazer ... E a linguagem tem sido transformada
é examinar a história e o tipo de políticas numa linguagem de administração.
na Inglaterra e nos Estados Unidos sobre Nós poderíamos dizer, então, que os
isto. Como o trabalho de ensinar tornou­ professores (as) estão sempre se tornando
se um trabalho feminino e o que instrumentos ideológicos dos grupos
aconteceu quando se tornou um trabalho dominantes. Porque, afinal, eles (as) não
feminino? Quais são as relações entre ser reconhecem o que está acontecendo a eles
algo que parece trabalho feminino e o (as) quando pensam em si mesmos (as)
tipo de controle que se manifesta? como profissionais. Isto seria uma
A gora, muito disto tem vindo de analise de classe do que está acontecendo,
estudos do processo de trabalho. Está mas não podemos compreender as
bastante claro, por exemplo, que tão logo c o n t r a d i ções d a s posições dos
algo torna-se um trabalho feminino, seu p r o f e s s ores ( a s ) a menos que
prestígio diminui. Há tentativas de compreendamos que a linguagem do
proletarizá-Io, de tirá-lo do controle das profissionalismo quando usada por
pessoas que o fazem e de racionalizá-lo. mulheres tem sido uma arma muito
De forma que enquanto o trabalho da efetiva contra o controle de seu trabalho
c l a s s e operá ria t e m sido sempre pelos homens porque os homens têm
submetido à lógica do capital, h á uma estado sempre nas posições mais altas
outra dinâmica em operação. Quando dentro do sistema escolar e as mulheres
uma posiçã o torna-se um trabalho têm feito o trabalho de ensinar na escola
feminino, existe uma dupla opressão. e l e m e ntar. Assim a l in uagem do
Assim parte do meu argumento é que não profissionalismo fornece uma barreira
podemos compreender o trabalho de muito efetiva contra a proletarização
ensinar a menos que vejamos como ele porque o trabalho feminino tem sido
tornou-se um trabalho feminino, o que historicamente' mais proletarizado. Isto
aconteceu quando tornou-se.um trabalho significa que podemos usar isto como
feminino e como as mulheres lutaram de uma forma de compreender a dinâmica
formas contraditórias. E isto toca numa da posição de classe das mulheres e
série de temas que estão organizados no também entender a contradição em sua
o utro trabalho sobre ideologia, o s posição. Nós podemos começar a ver
elementos d e percepção correta e de como trabalhar politicamente sobre isto,
percepção equivocada, intenções, vendo de forma que isto torne-se ... de forma
o ensinar como um processo de trabalho que o trabalho da mulher, como ensinar,
com um tipo específico de ideologia. Eu por exemplo torne-se uma forma de
vou dar um exemplo e aí eu páro de falar combinar a posição de classe e de sexo e
sobre isto. Os professores (as) nos sua dinâmica, e a forma de compreender
Estados Unidos, por exemplo, pensam a r elação entre raciona lizações
em si mesmos (as) como profissionais, econômicas e lutas culturais. Assim este é
ainda que, ao mesmo tempo, estejam o tipo de trabalho que eu tenho tentado
perdendo controle de seus empregos. No fazer.
mesmo exato tempo, as condições de seu Nilton - Tu pensas que a forma de
trabalho estão sendo proletarizadas, de análise que tu vens desenvolvendo é bem
forma que seu salário tem diminuído por aceita nos Estados U n i d o s ou é
que os Estados Unidos estão passando somente uma análise isolada? E tu pensas
por uma crise fiscal, que não é certamente que tua análise tem alguma relação com
tão ruim quanto a do Brasil, mas é ainda países subdesenvolvidos ou países do
assim uma crise fiscal. Ainda assim os Terceiro Mundo?
(as) professores (as) vêem a si mesmos Michael Deixe-me começar pela
-

(as) como sendo profissionais ao mesmo primeira pergunta. Existe um debate


tempo que as suas condições de trabalho i mportante n o s Estados U nidos a
estão piorando, em parte porque as respeito do reducionismo de classe e do
técnicas de controle do ensino são agora reducionismo econômico. E entre teorias

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e s t r u t u r a i s e t e o r i a s c ul t u r a i s . separar. Agora, por causa disto haverá
D iferentemente de alguns d e meus debates que estão surgindo entre Carnoy
colegas, de Giroux, por exemplo, que é e eu, ele é um economista e eu ... eu acho
um grande amigo meu, nós concordamos que esta é uma metade da posição. Mas
em discordar sobre uma série de coisas ... estes são debates muito especiais, porque
eu acho que você não pode ignorar as nós temos bastante cuidado na esquerda
relações sociais capitalistas. E nos Estados Unidos em não nos ferir uns
e n quanto eu sou u m Marxista aos outros, porque· a comunidade
culturalista o u u m novo Marxista, esquerdista é muito dividida e muito
dependendo do lado da cama em que �u pequena. Os Estados Unidos é o único
l e vanto d e manhã, e u penso q u e país no mundo capitalista que não tem
realmente temos d e argumenta,· em favor um movimento socialista de grande
daquelas posições. Eu acho que devemos escala. Existe um movimento em certos
ent�nder como as forças econômicas sindicatos progressistas, no movimento
operam. Elas não são leis, mas são negro, em alguns dos movimentos
tendências, e a cultura tanto cria relações feministas socialistas. Não é visível como
econômicas como é criada por elas, é uma uma grande força política. Existem dois
posição muito dialética. Agora, por partidos: o republicano e o democrata.
causa disto eu tendo a querer tomar uma Por causa disto nós somos muito
p osição i ntermediár ia entre o cautelosos em não deixar que este debate
estruturalismo e o culturalismo porque saia para fora. E isto é muito sensato
eu acho que há bons insights em ambas. porque os Estados Unidos também tem
Isto significa que meu trabalho tende a uma história em que, na esquerda, as
s e r a c e it o p o r M a r x i s t a s m a i s pessoas se matam umas as outras. Elas
economicistas mesmo quando eu rejeito não precisam da direita para isto. A
uma grande porção daquela posição. E é esquerda se encarrega, como t e m
aceita por pessoas que são fundamental­ acontecido em outros países no passado.
mente culturalistas porque eu quero Assim, o meu trabalho ... Eu penso que
combinar as duas. E é aceita pelos por causa da minha tendência que é estar
estruturalistas tanto quanto por pessoas entre grupos, e também em estar ligado
que vêem a ação humana como muito de perto a sindicatos onde eu faço
importante. Assim o meu caminho tem muito trabalho político, e a grupos de
sido sempre o de tomar o que é bom em professores (as) onde eu faço muito
ambas e desenvolver a política num trabalho feminista e político de classe, eu
enfoque muito mais integrado. estou ligado mais diretamente a
Mas existem grandes diferenças. Um sindicatos e a organizações nacionais de
bom exemplo seria este: por causa das professores, de forma que eu sou capaz de
crises e c on ô m i c a s no capitalismo trabalhar estas coisas de formas que
ocidental há um movimento de retorno à outros, talvez, não possam.
posição de Bowles ·e Gintis nos Estados
Unidos e na Inglaterra, um movimento Agora, sobre o assunto do Terceiro
de retorno à economia como um fator Mundo e do reducionismo de classe. Esta
p ri m á r i o . E u a ch o que isto é é uma questão difícil, porque eu não
fundamentalmente incorreto em algumas penso ... Eu não gosto da linguagem:
formas muito importantes. Porque, de desenvolvido, subdesenvolvido ... Em
alguma forma, supõe que existe alguma certo sentido, ela diz que existe um
coisa lá fora chamada "a economia". E modelo lá fora, chamado Estados
que de alguma forma passa atravé� de Unidos, que tudo seria melhor se todos os
outras coisas. Eu acho que esta é uma países se parecessem com os Estados
distinção tola e somente analítica entre Unidos. A razão porque os Estados
relações econômicas e culturais. Todas as U nidos é como é, é por que n ó s
relações econômicas são culturais e todas exploramos o resto do mundo.É isto ... eu
as relaç ões c u ltur,ais são r e l a ç õ e s não gosto da linguagem. Eu penso que
econômicas. D e forma que e u não quero classe não seja a categoria primária, mas
forçar. Eu quero combinar, eu não quero t a m b é m p e n s o q u e é a um d o s

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instrumentos analíticos mais importantes dominação sexual e racial em nosso
p a r a entender o d e s e nvolvimento programa nós fracassaremos. Isto não é
internacional como um processo de socialista, não é democrático. Desta
acumulaç�o capitalista. Eu penso que tu forma, embora eu queira privilegiar
não podes compreender as questões de classe como um ponto de partida, porque
educação no Brasil, por exemplo, sem é muito visível, é muito potente, eu quero
entender o contexto internacional da que sejamos muito cautelosos sobre estas
divisão social do trabalho ou o capital tendências.
internacional, uma vez que o Brasil é Tomaz- Eu gostaria de ouvir tua
parte de uma economia mundial. Eu o pinião sobre as formas ns quais
penso também que, internamente, as intelectuais como nós na Universidade,
relações de classe devem ter prioridade na podem cooperar com professores (as) nas
expl icação de. m o v i m e n t o s s o c i a i s escolas para transformá-las.
parti culares n o s países d o Terceiro Michael - Eu serei muito honesto aqui.
Mundo. Assim em minha análise, eu Eu não acho que haja qualquer Cálice
tendo a dar prioridade, no Terceiro Sagrado, que haja qualquer método que
Mundo, a relações de classe. se possa aplicar. Eu penso que isto
Entretanto, eu acho que há perigos funciona através da prática política.
muito reais nisto, e um grande perigo. Mas há tendências que podem ser
Um deles é que pode envolver o que se apontadas. A primeira é livrar-se a si
chama a tese da automaticidade. Uma mesmo da noção de falsa consciência, de
v e z q u e as c o n d i ç õ e s t o r n e m -s e que todos os (as) professores (as) são
suficientemente más n a economia, as fantoches, de que tudo o que eles as fazem
pessoas que são pobres, ou os é ter valores que passam através deles (as)
trabalhadores se revoltarão. Não há e de que eles (as) não têm valores de
nenhuma evidência que este seja o caso. percepção correta, como t ê m de
E o m a r x i s m o e c o n o m i c i sta e o percepção equivocada. E u acho que
marxismo reducionista de classe tendem muitas das intuições dos (as) professores
a não aprender as lições que Gramsci nos (as) sobre o que está acontecendo com
ensinou. Que existem pré-condições as crianças, com seus próprios empregos
culturais para todos os movimentos e que e com a sociedade são interessantes e
não existe nenhum movimento com freqüência corretas. Não faz parte
automático. Isto signifiba que nós temos da linguagem de esquerda dizer que elas
que ver como os movimentos sociais são estão disponíveis e que estão lá. Assim a
formados. E os movimentos sociais primeira coisa é se afastar da noção de
pod e m ser m ai s amplos que o s que ... é bastante peculiar a muitas
movimentos de classe. E há uma vásta universidades a noção de que todas as
literatura emergindo sobre a formação de análises políticas e todos os métodos de
movimentos sociais que são populares fazer um trabalho educacional vem do
que incorpora a dinâmica racial, etc. alto, agora. Os professores (as) (de 10 e 20
Penso que nós temos muito que aprender graus) desenvolveram seus próprios
disto, especialmente naqueles países em processos de tr abalho que, com
que existe uma história de opressão freqüência, funcionaram. E seria, eu
racial, uma grande questão é a do acho, um erro negar que eles (elas) sabem
racismo. E o Brasil é uma dessas nações. um bocado, mesmo aqueles (as) que não
Desta forma, eu seria muito cauteloso, têm uma educação universitária. Assim a
então, em só ver classe. A outra razão primeira coisa é isto, reconhecer que há
pela qual eu seria cauteloso, mesmo que e l e m e n t o s de p e r c e p ç ão c o r r e t a
eu privilegie classe como um ponto de n o trabalho dos professores (as), e que
partida, é que naqueles países em que há p o d e haver t e m a s democráticos e
relações privilegiadas de classe, mesmo genuinamente populares perpassando­
quando houve transfoq:nações sociais, os, que eles mesmos não compreendem.
ainda persistem relações de dominação Outra coisa é fazer pesquisa não sobre
por sexo. E eu quero ar-gumentar que na professores (as), mas com professores
medida em que não inclu amos a (as) de forma que se tome seriamente seus

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reais problemas, sem desconsiderá-los. acadêmicos, podemos fazer para
Nós podemos pensar que esses problemas transformar as escolas. As escolas são
são causados pela economia, podemos instituições com uma base estrutural.
pensar que a compreensão que os (as) Nunca serão fáceis de mudar e existem
professores (as) têm desses problemas é m u i t a s c o i s a s q u e , eu a c h o , o s
errada. Mas sempre que fazemos algum acadêmicos não podem mudar. E e u acho
trabalho com professores (as) devemos que nós temos um pouco demais de
estar com eles (as), devemos agir para elitismo. Exatamente como os
criticá-los e abrir-nos para as críticas professores (as) trabalham em certo
deles. E como uma forma democrática tipo de condições, assim nós também
genuína. trabalhamos em outro tipo de condições.
Isto constitui uma tensão porque nós E nosso trabalho pode não ser mais
temos a sorte de ter um tempo livre para importante que seus trabalhos. Assim,
estudar as realidades sociais, em formas isto significa que nós e os (as) professores
que nós conquistamos ... Eu acho qEe o (as) devemos começar a ver nós mesmos
tempo livre para estudar o que está não como os (as) professores (as) da
acontecendo na sociedade é o que nós universidade e os (as) professores (as) nas
queremos que todas as pessoas tenham. escolas podem trabalhar juntos para
De formas que não há nada errado nisto. mudar as escolas mas como nós devemos
E nós temos algo para oferecer em termos nos tornar parte de movimentos sociais
de análise, em termos de fazer as pessoas muito mais amplos, juntos, que formem
se distanciarem e examinar o impacto coalizões para a reforma social e
latente de seu trabalho e do currículo. educacional. Assim não é nós levando
Mas esse tipo de coisa somente pode ser algo a eles (as) embora eu ache isto
frutífero, somente pode funcionar se é importante, e eles (as) trazendo algo a
feito numa forma democrática. Isto nós, mas que formemos com outros
significa que as pessoas na universidade movimentos, isto faz uma diferença.
têm que definir suas tendências de forma Porque a academia não é o lugar onde a
diferente. Eu acho que qualquer análise mudança esteja.
que é escrita em uma forma impossível de Tomaz - Eu quero te fazer agora uma
se comunicar é elitista. Assim parte da questão bem prática. Como uma pessoa
luta não é trabalhar com professores (as), politicamente comprometida lida com as
embora isto seja importante, mas lutar relações sociais dentro da universidade,
internamente na universidade e dentro de dentro da sala-de-aula, com formas de
nós mesmos, para nos certificar que a avaliação que sejam democráticas ao
audiência, o leitor não seja a única pessoa invés de opressivas, e também em termos
a fazer o esforço. Nós devemos lutar de mudar as relações hierárquicas dentro
para tornar nosso próprio trabalho da universidade. Como se age para
disponível em formas que sirvam para t r a n s f o r m a r as r e l a ç õ e s na e s f e r a
eles (as). Agora, isto é difícil de fazer. E administrativa, qual o trabalho político a
m u i t o s d e m e u s c o l e g a s t ê m- s e ser feito aí?
repetidamente recusado a tomar este Michael Esta é uma questão muito
-

passo. O (a) leitor (a) ou o (a) professor importante. Deixe-me começar fora da
(a) tem que fazer todo o trabalho de universidade e então voltar para dentro
compreensão e eu penso que isto é uma da universidade. Muito da m in h a
política errada de nossa parte. Nossa politização é formada não somente pela
política deve ser a de também contribuir universidade mas pelo meu trabalho com
com metade do esforço. Porque se nossas sindicatos. Eu sou treinado não somente
análises estão corretas então elas devem em sociologia ou filosofia, mas como um
fazer sentido para as pessoas e nós trabalhador de curr ículo. Eu tenho
devemos lutar para isto. habilidades práticas. Eu trabalho com
Uma última coisa, eu acho que não um grupo de membros esquerdistas de
devemos romantizar, entretanto, o que um sindicato e uma grande fábrica de
nós podemos fazer com os (as) automóveis e eles querem criar material
pro,fe:ssores (ás) e o que nós, como de educação política para seus membros.

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Eu tenho habilidades na construção de tudo está bem, nenhuma disciplina é
currículo e na redação de materiais para exigida, e se compra a felicidade, é uma
propósitos educacionais, que é parte do ideologia de individualismo possessivo.
meu treino. Assim eu tenho trabalhado Eu acho que é preciso disciplina da parte
nos últimos dez anos com eles, para dos professores e dos estudantes para
ajudá-los a desenvolver as habilidades aprender, e é trabalho árduo. Mas deve
para construir materiais que façam ser feito em um forma que o torne
diferença, que analisem suas próprias relevante às necessidades dos estudantes
situações no local de trabalho, na fábrica. e deve estar aberto à crítica. Assim nas
Agora minha tarefa lá é tornar-me disciplinas que eu ensino, às vezes há
d e s n e c e s s á r i o . I s t o é, d a r - l h e s aulas expositivas porque freqüentemente
habilidades de forma que e u me torne é m�lhor dar análises bem organizadas,
apenas um membro do sindicato. porque economiza tempo e porque é o
Assim, isto tem influência na forma m e u traba lho. e u sou pago para
em que eu penso meu trabalho na organizar coisas para as pessoas, ensinar
universidade. Porque eu não acho que a envolve dizer, às vezes. Mas no meio de
política universitária seja suficiente. Mas toda aula expositiva eu páro e digo: é isto
eu acho que a universidade é um campo o que vocês queriam? E o que eu preciso
no qual uma luta política real tem lugar e fazer agora antes de continuar? Não
é muito importante. Então eu penso que somente perguntar, mas também o que
uma influencia a outra. Com freqüência falta fazer. Isto está indo de encontro às
o que tento argumentar é que ao invés de necessidades de vocês? E no final há uma
dizer que a luta está lá fora na economia, sessão de críticas. De forma que a idéia é
em algum lugar, e que esperemos para honestamente estabelecer uma forma na
aquela luta mudar o que acontece nas qual as pessoas confiem umas nas outras.
escolas, nós devemos lembrar que nós E isto é muito difícil de f.azer. Não é uma
também somos a economia, nós temos coisa que se constrói facilmente porque
relações salariais e de trabalho onde nós há relações sociais na universidade que
trabalhamos. Nós temos relações de são muito competitivas, em que tudo o
classe, sexo e raça aqui mesmo na que importa aos estudantes é a nota,
universidade. E antes de dize( que a luta porque o mercado de trabalho é muito
está na fábrica ou em lugares onde c o m p e t it i v o .· É d i f í c i l p a r a e l e s
e xiste produção, nós estamos aprenderem estes estilos também. É
produzindo estudantes, nós estamos muito difícil para eles criticarem uns aos
produzindo em nossos atos cotidianos outros e a mim. Porque eles sentem que
opressão de classe, de sexo e de raça para eu posso lhes dar uma nota baixa por
a democracia. Por isto eu acho que causa disto.
existem muitas, muitas coisas que Assim o que eu faço é prometer que se
acontecem na universidade, porque eu eu sou criticado de forma que seja
sou Gramsciano. Eu acho que nós c o o p e r a tiva não haverá nenhuma
devemos cercar o Estado com relações influência na nota. No fim de cada aula
sociais p r é - f o rmativas em nossos q ue eu dou, de cada disciplina, a
contextos locais. disciplina é reconstruída. Assim a última
Deixe-me então começar com certas aula é uma reconstrução de outra
coisa:. sobre avaliação e ensino então ir disciplina. O que estava bom, o que
para as relações na universidade. Eu acho estava errado? Como deve ser mudada
que não devemos jamais nos sentir para o grupo seguinte de estudantes? De
culpados sobre as coisas tais como aulas forma que este tipo de crítica é feito de
expositivas. Eu acho que há, de fato, forma que eu possa me tornar um melhor
muita aula expositiva e a maioria delas é professor. Muito do que é feito nas
horrorosa. Mas há razões pelas quais os disciplinas de currículo que eu ensino
estudantes escolheram deixar suas envolve habilidades que as pessoas
famílias e seus empregos, freqüentemen­ possuem, que são partilhadas. E então eu
te, para estudar. E eu acho que aquilo que hajo como um crítico e também como
é uma doença americana, "o hedonismo": alguém que faéilita a discussão. Assim, a

EDUCAÇÃO & RE ALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 57 - 68,Julldez. 1986 65


tentativa, ao menos em relação ao ensino com crianças. Eu quero que vocês tentem
é ter aulas expositivas às vezes, mas elas fazer filmes, algo que não seja escrito
estão abertas àquelas críticas e questões. assim como também trabalhos escritos.
É dar a oportunidade de os estudantes Se vocês tentam fazer isto, eu garanto que
expressarem suas experiências e de fazer vocês não tiram menos que "B", nosso
uma aula em que eles sintam que têm sistema é A, B, C, D, F. Assim, se vocês
algum controle. Isto é apenas boa tentam algo experimental, eu garanto
pedagogia. Eu acho que às vezes um bom que não prejudicarei suas notas. Desta
trabalho pedagógico é um bom trabalho forma eu faço a metade, e qualquer
político. trabalho escrito que se começa é sempre
A nota é às vezes um problf'!ma. Eu provisório. Pode ser refeito até que nós
quero ser franco aqui. Eu tenho tentado estejamos ambos satisfeitos com ele.
uma variedade de coisas, algumas das Assim minha primeira leitura é sempre
quais são mais satisfatórias que outras. u m a primeira l e i t u ra . S e m p r e h á
Uma é avaliação coletiva, que leva muito comentário sobre ele, ele é devolvido e
tempo e é muito difícil de fazer. Neste eles o refazem. Mas, outra vez, como
caso a turma escolhe um comitê, e todos tod�s as pessoas, eu não estou satisfeito
entregam seu trabalho e o comitê, que é com nada disto. Acho que a questão é:
democraticamente eleito, faz a avaliação. como continuar experimentando de
Isto não funciona a maioria das vezes. forma a encontrar modos que vão de
Mas é uma coisa que eu tentei. Eu estou encontro às necessidades de todos?
c o n s t an t e m e n t e e x p e r i me n t a n d o , Agora sobre as relações sociais dentro
tentando fazer isto mais democratica­ da universidade. Este é um problema
m e n t e . P o r q ue é u m v e r d a d e i r o real. Falando muito pessoalmente, eu
problema, porque a universidade insiste acho que aí é onde uma porção de ação
que demos notas. E se damos "A" para política é exigida. Eu tenho proposto que
todo mundo, ninguém gosta, nem mesmo n a nos s a u n i v e r s i d a d e t o d a s a s
os estudantes. Outra forma que eu secretárias tenham o direito de votar nos
experimentei foi que haverá grupos de processos de tenure (estabilidade do
estudantes que se formam, quatro, cinco, professor). Porque nos Estados Unidos a
e eles lêem, uns os trabalhos dos outros. E forma de obter tenure é... você deve
eles dem·o craticamente discutem as escrever um bocado e ensinar e então teus
notas. E eles dizem: "Olha, tu não estás colegas votam no fim de cinco ou seis
levando isto a sério, tu estás brincando anos no teu tenure. E então você tem a
... " e isto está aberto para discussão no garantia do teu atual emprego. Então
grupo. Isto funciona melhor, mas é muito parte da luta em que um nosso grupo está
rancoroso, e ainda é muito competitivo. engajado em Wisconsin é de conseguir
O que eu decidi foi experimentar que as secretárias e todos os funcionários
continuamente. E dependendo da de escritório votem sobre ele, para dar­
disciplina, se é uma turma gigantesca, lhes o direito de votar em quem serão os
uma das minhas disCiplinas tem 200 membros da comunidade. Esta é uma
estudantes, o que eu tendo a fazer é isto: forma de mudar as relações de sexo
Se tu fazes um esforço sério ... eu não dou porque quase todos os funcionários de
exames, eu não acredito neles, por razões escritório são mulheres e isto é também
psicológicas tanto quanto por razões uma forma de alterar relações de classe,
pedagógicas. A curva do esquecimento ... porque nós construimos a dinâmica de
se eu dou o mesmo exame três dias mais classe e sexo toda vez em que pisamos na
tarde, você terá esquecido a metade de universidade. Assim o esforço, então, é o
qualquer forma. Mas também por razões de encontrar mecanismos no qual nós
políticas eu não vejo a razão para podemos democratizar nosso local de
exames. O que eu tento fazer então é trabalho. Não esperar que os locais de
dizer: Vocês têm uma variedade de trabalho, lá fora, na economia, entre
projetos. Eu quero que vocês tentem aspas, sejam democratizados. N ó s
coisas que não sejam trabalhos escritos. estamos em locais de trabalho, nós somos
Eu mesmo faço filmes. Eu faço filmes parte da economia, nós somos parte da

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luta cultural e política ali mesmo. ver o que realmente acontece, para ver
Devemos democratizar o lugar do qual como ele é reapropriado por professores
estamos próximos. (as) e estudantes em uma forma que é
Tomaz - Eu sei que tu tens estado algumas vezes emancipatória tanto
tra b a l hando no que tu chamas "a quanto opressiva. E então, como isto
economia política da publicação do livro forma uma base para a ação?
didático". Podes dar mais alguns detalhes O q ue eu comecei a fazer,
sobre isto? principalmente, não é somente um
Michael - Sim. Eu acho que a forma trabalho econômico, onde a economia
com que nós, nos Estados Unidos, das editoras é quem decide o que entra.
d i z e m o s i s t o, é: n o s s a p a l a v r a s Como os grupos dominantes funcionam
adquiriram asàs. Nós não temos mais realmente e como as frações de classe nas
nenhum referente para nossas teorias. E classes médias e na pequena burguesia
eu objeto às teorias em educação que não agem para patrocinar seu pr óprio
sejam relacionadas ao currículo e ao conhecimento, que algumas v e z e s
ensino reais. Do contrário, elas são contradiz o conhecimento d e grupos de
abstrações refletidas. Se lemos Marx, elite? Então nós começamos a ver o que é,
mesmo nos seus trabalhos mais teóricos, eu a c h o , uma f o rma mu ito m a i s
ele está ligado à economia política do detalhada de como o conhecimento é
Estado naquela época. E está cheio de realmente produzido, o conhecimento de
referência empírica. Agora, eu não sou quem é introduzido e à ver, neste circuito
um positivista, eu não acho que o de prod ução, onde nós realmente
empirismo seja a solução, mas penso que podemos fazer alguma coisa além de
nós devemos tentar usar os instrumentos somente teorizar sobre isto. Assim, este é
que nós desenvolvemos. Refiná-los em o meu trabalho sobre isto.
situações políticas reais. Penso que se Tomaz - Nós terminamos com os
não compreendemos as relações entre a comentários finais de Michael.
cultura, a economia e o Estado em Michael - Deixe-me falar um pouco
educação ... nós aplicamos aqueles sobre a importância deste encontro paa
conceitos se eles realmente funcionam. O mim. Porque eu penso que a maior parte
livro didático é a melhor constelação de do tempo as pessoas tendem a pensar
todas essas forças juntas.É tanto uma sobre quanto eu teria contribuído para o
mercadoria econômica como uma forma desenvolvimento do pensamento e do
na qual a cultura é tornada mercadoria, é trabalho e da análise nos lugares onde eu
tornada disponível ou não. E na maioria vou. Nos Estados Unidos, como um país
dos países tem relações muito estreitas que é economicamente e culturalmente
com o Estado. É através de Ministérios imperialista em algumas importantes
da Educação, nos 'Estados U nidos formas, isto tem um efeito sobre nós, isto
através de Comitês do Livro Didático, nos torna ignorantes das reais condições
que realmente as relações entre a cultura, de vida e de luta no Terceiro Mundo e em
a economia e o Estado se combinam, outros lugares. Assim uma das coisas que
numa forma que nós podemos ver como eu .nais gostei sobre este encontro foi a
isto opera. Usando os conceitos para habilidade para ver que certos tipos de
explorar como o que conta como análises e lutas e movimentos políticos
conhecimento legítimo é produzido, são de fato internacionais. E permitiu
como é distribuído e como é apropriado conexões que são muito, muito
por professores (as) e estudantes, nós importantes.
podemos ver o circuito da produção E também me proporcionou uma
cultural e podemos também intervir em f o r m a de ver quão importante é
cada nível. Assim a tentativa em relação compreender o contexto internacional
ao livro didático é a de tomar os conceitos dos Estados Unidos. Isto é crucial, eu
que têm sido desenvolvidos para aplicá­ acho, quando eu voltar para os Estados
los a um campo específico da produção Unidos. Porque não é somente o fato de
de conhecimento legítimo que é, com que eu vim influenciar as pessoas aqui,
freqüência, conhecimento de elite, para mas meu papel também é voltar e ter

EDUC AÇÃO & RE ALID ADE, Porto Alegre, 11(2): 57 - 68,julldez. 1986 67
sofrido a influência disto. Nós dizemos fornecer um contexto melhor para o tipo
nos Estados Unidos: não existe um de educação e trabalho político que se
problema das mulheres, o que existe é um passa aqui. E isto torna- �e muito, muito
problema dos homens. Não existe um importante, eu acho. E aquilô com que eu
problema dos negros, o que existe é um saio daqui é com este real reconhecimen­
problema dos brancos. Não existe ... um to.
problema brasileiro, bem existe um
problema brasileiro, mas não existe um
real problema brasileiro, tanto quanto
* * *
existe um problema dos Estados Unidos.
E nossa tarefa é voltar e fazer uma
*MICHAEL APPLE é professor da Universidade
d i f e r e nç a , a p a r t i r d o q u e n ó s
de Wisconsin, nos Estados Unidos.
aprendemos, l á onde nós estamos.
Porque existem lutas políticas que estão A Entrevista, dada em inglês, foi traduzida pelo
localizadas n ecessariamente l á para Tomaz Tadeu da Silva
prof.

68 EDUCAÇÁO& REALID ADE, Porto Alegre, 11(2): 57 68, julldez. 1986


-
o s primeiros 30 anos do regime na educação como fator decisivo na resolu­
republicano representaram um ção dos problemas sociais3.
período de formação e consoli­ Esse esboço de "entusiasmo pela educa­
dação da Pedagogia Tradicional ção" não durou muito. O Governo Republi­
brasileira1. As teorias pedagógicas pestaloz­ cano, inicialmente, era uma composição de
zianas e herbartianas mescladas com princí­ fazendeiros do oeste paulista, militares e in­
pios positivistas, aportaram no país e, paula­ telectuais das camadas médias. As posições
tinamente, se acomodaram com os procedi­ mais avançadas, que defendiam a construção
mentos pedagógicos até então vigentes, do país sobre bases urbano-industriais, eram
pautados pela influência jesuítica. É possível assumidas pelos militares e pelos intelectuais
dizer, portanto, que a Pedagogia Tradicional das classes médias. Todavia, uma vez conso­
brasileira originou-se de um amálgama entre lidado o novo Governo, uma vez afastada a
tendências pedagógicas católicas (de inspira­ possibilidade de um contra-golpe monar­
ção jesuítica) e as concepções pedagógicas quista, essas facções mais progressistas fo­
modernas, cientificistas, inspiradas nos tra­ ram alijadas do aparelho de Estado. As oli­
balhos de Pestalozzi e Herbart. Tais concep­ garquias agrárias (os fazendeiros do café)
ções chegaram ao país através da influência exigiram o monopólio do Poder, insistindo
americana que, moderadamente, já se fazia numa política identificada com a "vocação
2
sentir nos anos iniciais da República . agrária" do país. Com essas posições conser­
O .período de transição do Império para vadoras assumidas pelo Estado, principal­
a República assistiu a uma certa efervescên­ mente a partir de 1894 (eleição de Prudente
cia intelectual e ideológica. A possibilidade de Morais), a sociedade brasileira recebeu
de construção de um novo país, livre do re­ um incentivo para a manutenção de um estilo
gime de trabalho escravo e do arcaico arca­ de vida ruralístico e oligárquico, onde a polí­
bouço jurídico-político monárquico, entu­ tica era padronizada pelo "voto de cabresto",
siasmava as elites intelectuais que, euforica­ fraudes eleitorais, formação de milícias de
mente, discutiam os rumos da nação profes­ jagunços, coronelismo, etc. Os grandes temas
sando idéias sobre federalismo, democracia e nacionais, e entre eles o problema da educa­
educl!ção para todos (19, p. 261). ção, ficaram abafados por essa espécie de
E na dinâmica desse contexto que se ini­ "freio ruralístico" imposto à sociedade bra­
ciaram reformas de ensino, circunscritas a sileira.
algumas capitais, no sentido de implantar no­
vas idéias educacionais necessárias - segundo Os anos entre 1894 e 1917 foram mar­
as elites intelectuais da época -à construção cados por um visível arrefecimento da dis­
de uma nação moderna. Na verdade, ser mo­ cussão educacional e pedagógica no seio das
derno no Brasil da Primeira República era elites dominantes. Em contrapartida ao de­
ser liberal (11), o que implicava t>,m acreditar sinteresse das classes dominantes pela educa-

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 69 - 79, juUdez. 1986 69


ção popular, o nascente proletariado urbano exibidos nos cinemas brasileiros eram distri­
desenvolveu experiências educacionais ino­ buídos pela Metro Goldwin Mayer e Uni­
vadoras e independentes do Estado. Os tra­ versal Picture; as informações internacionais
balhadores socialistas, anarquistas e anar­ reproduzidas pela imprensa brasileira eram
co-sindicalistas fundaram escolas agregadas cedidas, exclusivamente, pela United Press.
aos seus sindicados, a maioria delas inspira­ Da· mesma forma, a literatura educacional do
das na Pedagogia Libertária de Francisco país passou a receber uma influência decisiva
Ferrer4. Essas experiências nem sempre pu­ das universidades americanas, que produ­
deram sobreviver por muito tempo, dada a ziam e disseminavam o ideário pedag6gico da
violência dos setores dominantes frente ao Escola Nova. Em pouco témpo, grande parte
Movimento Operário. dos intelectuais jovens interessados nos pro­
A década de dez foi palco de sensíveis blemas de educação no Brasil passaram a
transformações na sociedade brasileira. A consagrar as idéias da Pedagogia Nova, prin­
Guerra Mundial (1914-18) contribuiu para a cipalmente nas versões de Dewey-Kilpa­
diminuição do fluxo de importações, o que, trick5.
em parte, possibilitou ao Brasil um surto in­ Tanto os aparelhos do Governo como as
dustrial e, conseqüentemente, uma elevação entidades da sociedade civil ligadas à educa­
no grau de urbanização e o retomo das po­ ção serviram de canais de veiculação da Pe­
lêmicas em tomo dos destinos da nação. As dagogia Nova. Assim, por obra dos Gover­
elites intelectuais, imbuídas de um fervor na­ nos Estaduais efetivou-se o chamado "ciclo
cionalista, constatavam horrorizadas que de reformas do ensino" dos anos 20 e 30, em
85% da pOp'ulação era analfabeta e que a Re­ grande parte confeccionado sob a luz dos
princípios escolanovistas. Pelo lado da socie­
pública, depois de 20 anos de vigência, pouco
dade civil, a ABE (Associação Brasileira de
havia feito em matéria de educação no senti­
Educação) realizou as célebres Conferências
do de "transformar o súdito em cidadão".
Nacionais de Educação, que colaboraram
Foi no bojo dessa vontade de "republi­
para tornar a Pedagogia Nova conhecida no
canizar a República" que nasceram, em vá­
conjunto dos educadores brasileiros6 (13).
rias cidades, as "ligas de combate ao analfa­
Em suma, é possível dizer que a Pri­
betismo", inspiradas diretamente na Liga de
meira República se caracterizou por manter
Defesa Nacional (1916) e na Liga Naciona­
lista de São Paulo (1917), entidades que uma estrutura social marcada pelo ruralismo,
com uma industrialização forjada e subjuga­
aglutinavam elementos da burguesia e das
da pela reorganização capitalista da cafei­
camadas médias professando um credo na­
cultura. No plano político manteve os indus­
cionalista (até certo ponto industrialista),
triais como meros parceiros secundários das
patri6tico e militarista. As "ligas" materiali­
oligarquias no interior dos PRs (partidos re­
zaram o "entusiasmo pela educação" empu­
publicanos estaduais), apoiando a manuten­
nhando pela burguesia da 6poca, que chegou
ção da política do "café com leite" e o mo­
a pensar na alfabetização como instrumento
delo econômico agrário-exportador-depen­
político no sentido de abrir espaço no Poder,
dente. No âmbito pedag6gico esse período
até então monopolizado pelas oligarquias
consolidou a Pedagogia Tradicional, sufocou
agrárias.
a organização da Pedagogia Socialista e da
Ao adentrar nos anos 20 o Brasil passou
Pedagogia Libertária e assistiu o advento da
a conhecer uma nova disposição quanto ao
Pedagogia Nova.
jogo de forças da política internacional. A
A política inaugurada após 19 30, paula­
Inglaterra, que desde os tempos do Império
tinamente, foi retirando das oligarquias
era o tradicional credor do Brasil, e quem fi­
agrário-exportadoras o monopólio do exer­
nanciava a política de valorização do café
cício do poder, abrindo espaço para os gru­
("socialização de perdas") instaurada pelas
pos coligados de tecnocratas, militares e em­
oligarquias agrárias, saíra cambaleante da
presários industriais. O país passou a conhe­
primeira Guerra Mundial. Os Estados Uni­
cer uma situação de redirecionamento de
dos emergiram do Conflito Mundial como
suas atividades econômicas, com uma sensí­
potência vitoriosa, com uma economia po­
vel melhora no grau de industrialização via
derosa capaz de ocupar o lugar da Grã-Bre­
substituição de importações. A urbanização,
tanha no cenário internacional.
a expansão do mercado interno e o início do
O imperialismo americano, diferente­
ciclo de migrações no sentido nordeste-sul
mente do inglês, não se continha em explorar
foram modificando as características sociais
"de fora" os países da América Latina, Ásia
do país.
e África. O imperialismo americano penetra­
va desde a origem nas novas linhas de produ­ A década de 30 acentuou a radicalização
ção instaladas nesses continentes (24, p. política que se esboçava desde os anos vinte
372). Assim, o Brasil dos anos 20 passou a (Tenentismo), algutinando forças à direita
sentir uma razoável influência americana que (Ação Integralista Brasileira) e à esquerda
não se limitava à área econômica, mas evo­ (Aliança Nacional Libertadora). O Governo
luiu rapidamente para o campo cultural e de Vargas namorava com as idéias fascistas,
educacional. Em 1928 a maioria dos fIlmes todavia, pelo menos nos, primeiros anos do

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novo regime, preferia a busca de uma políti­ desencadear violenta repressão às esquerdas
ca autônoma, aparentemente equidistante dos e preparar o fIm do regime constitucional
grupos ideologicamente defmidos. (9;10).
As Conferências Nacionais de Educação Com a onda de repressão desencadeada
promovidas pela ABE acompanharam a pro­ após 1935 o grupo dos Pioneiros, que tran­
gressiva radicalização política do país. Cató­ sitavam em cargos públicos, foram atingidos
licos e Liberais passaram a se degladiar nes­ e, em parte, divididos. Anísio Teixeira demi­
ses encontros até que, ap6s a IV Conferên­ tiu-se do cargo de Secretário de Educação e
cia, os Liberais vieram a público expressar Cultura do Distrito Federal. Paschoal Leme,
formalmente suas idéias através do Manifesto que vinha trabalhando com cursos noturnos
dos Pioneiros da Educação Nova (1932). para adultos sob a supervisão de Anísio Tei­
O texto do Manifesto se desenvolveu em xeira e do Prefeito Pedro Ernesto, foi preso.
dois níveis: no plano da política educacional e Os escolanovistas mais comprometidos com
no pedagógico-didático. No âmbito da pelíti­ a causa democrática ou simpatizantes de
ca educacional o Manifesto reivindicava a idéias de esquerda não escaparam à tempora­
educação como responsabilidade do Estado da de "caça às bruxas" desencadeada nesse
através da institucionalização da "escola úni­ período de violência.
ca, pública, gratuita, obrigatória e laica". Em Apesar de manter boa parcela das forças
relação ao plano pedagógico-didático o Ma­ democráticas e de esquerda na prisão, o Go­
nifesto endossava os conceitos e propostas verno ainda não estava contente. Desejosos
provindos do escolanovismo americano(17)7 . de exterminarem de vez com o regime cons­
Durante a década de 30, Vargas mten­ titucional, os grupos reacionários forjaram
sificou e esmerou um tipo de política traba: o Plano Cohen, pelo qual existiriam "estran­
lhista esboçada nos governos de Hermes da geiros comunistas orquestrados para deses­
Fonseca e Arthur Bernardes, que pautava-se tabilizar o regime". Com base em documen­
pela cooptação e desmobilização dos traba­ tos falsificados (pelos próprios elementos do
lhadores através de medidas paternalistas e Governo), Vargas desfechou o Golpe de
do incentivo ao sindicalismo corporativista Estado de 1937 e implantou a ditadura do
(nos moldes da Itália de Mussolini). Dentro Estado Novo que "salvaria a Pátria do co­
dessa política (que não excluía a violência munismo".
contra o proletariado) o discurso educacional O regime ditatorial do Estado Novo foi
utilizado pelos liberais era útil ao Governo. um divisor de águas no campo político e no
Os signatários do Manifesto insistiam na ne­ campo da legislação educacional, porém, não
cessidade de uma expansão quantitativa e, foi o bastante para abalar a concepção peda­
principalmente, numa reformulação qualita­ gógica endossada pela maioria das vanguar­
tiva da rede escolar, através da criação e in­ das dos educadores do período. Vários esco­
centivo das escolas técnicas agrícolas, indus­ lanovistas se afastaram (ou foram afastados)
triais e comerciais. O Governo, preocupado, dos cargos públicos. Todavia, outros, pelo
entre outras coisas, com o inchamento das contrário, se entusiasmaram com o novo re­
cidades, encampou esse mesmo discurso no gime, sonhando com as possibilidades educa­
sentido de acenar aos trabalhadores com uma cionais que se criariam com "um Governo
"válvula de escape" dentro do sistema capi­ forte e centralizado"9.
talista que se instalava no país. O discurso Os anos 40 e 50 se caracterizaram por
escolanovista vinha, portanto, se encaixar no um processo de acelerada industrialização e
conjunto da política trabalhista getuliana, que acentuada urbanização. No fmal da década
eficazmente marcou a história das relações de 50, pela primeira vez na história do país, a
de trabalho do Brasil contemporâneo. população urbana se aproximou, em número,
O acirramento do conflito teleológico, da população rural. As década de 40 e 50 as­
em tomo de temas educacionais, entre Libe­ sistiram a implantação, em território nacio­
rais e Católicos, obrigou Getúlio a tomar nal, de indústrias de caráter monopolista;
distância para não comprometer o Governo, entre 1933-35 tais indústrias se organizaram
deIXando à Assembléia Nacional Constituinte sob a égide do capital estatal; a partir desse
a arbitragem da disputa. De fato, a Consti­ período tal processo de crescimento indus­
tuinte de 1933-34 mediou o conflito entre a trial de caráter monopolista se fez através de
LEC (Liga Eleitoral Católica) e os escolano­ uma participação maior do capital interna­
vistas, aceitando sugestões de ambos os lados cional (23, p. 226).
e incorporando-as à nova Carta8.
O regime liberal, instituído com a Cons­ A partir dos anos 50, também o campo
tituição de 34, durou pouco tempo. O cres­ passou a se transformar em ritmo mais veloz.
cimento da ANL (Alianca Nacional Liberta­ As relações capitalistas atingiram a zona ru­
dora) e a popularidade do "Cavaleiro da Es­ ral, forjando um processo de expulsão de
perança"· (Luís Carlos Prestes) nas camadas camponeses (que se intensificou nos anos 60)
populares assombravam Vargas. O episódio e criando a fIgura do trabalhador volante
de 1935 (a chamada Intentona Comunista) ("bóia-fria"), o que veio agravar ainda mais
foi o pretexto que o Governo precisava para os problemas sociais das grandes cidades.

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 69 - 79, juUdez. 1986 71


Ao apagar das luzes do Estado Novo o O texto do Manifesto de 59 voltava-se
país iniciou uma quarta etapa de sua vida re­ para os temas relacionados à política educa­
publicana: a chamada redemocratização de cional, assumindo, no plano pedag6gico-di­
1945-64. Foi um período de relativa liberali­ dático, os ideais escolanovistas descritos no
dade onde floresceu um número significativo documento de 32.12
de partidos e agremiações políticas. Todavia, Durante os anos 50 todas as facções po­
três grandes partidos dominaram a cena po­ líticas concordavam com a necessidade de
lítico-partidária: A UDN (União Democráti­ industrialização do país. A "vocação agrá­
ca Nacional), o PTB (Partido Trabalhista ria", tão aclamada na Primeira República,
Brasileiro) e o PSD (Partido Social Demo­ estava efetivamente afastada dos discursos
crático)\O modernos. Porém, se a necessidade de in­
Tanto o PTB como o PSD foram cria­ dustrialização era consenso, não o era a for­
dos sob a tutela de Vargas. O PSD abrigava � que deveria adquirir tal processo. A
os antigos interventores do Estado Novo, UDN pregava a industrialização via coliga­
elementos da burocracia estatal, grandes fa­ ção com o capital estrangeiro. As esquerdas
zendeiros e parte da burguesia industrial­ e parcela da burguesia empresarial-industrial
empresarial. O PTB foi criado por Vargas encontraram um denominador comum na
para dar continuidade à sua política traba­ ideologia do nacionalismo-desenvolvimen­
lhista de controle sobre o movimento do tista, que se elaborava e se disseminava atra­
proletariado urbano, que passara a ser uma vés do ISEB (Instituto Superior de Estudos
força eleitoral importante. O PSD e o PTB, Brasileiros),13 pela qual a industrialização do
em coligação, venceram insistentemente a paíS deveria se fazer com capital nacional e
maioria das eleições nesse período, colocan­ com o Estado protegendo as indústrias bra­
do a UDN na oposição. A UDN reunia os sileiras da concorrência das multinacionais.
grupos da direita antigetulista e a parcela da De fato, a industrialização foi se efeti­
burguesia ligada aosínteresses do imperia­ vando sob esse conflito ideol6gico e, chega­
lismo. Assim, pode-se dizer, de uma maneira do aos anos 60, o Brasil contava com um
geral, que o PSD abrigava os setores das parque industrial diferenciado e importante
classes dominantes que defendiam uma polí­ para a economia da nação. Aí os conflitos se
tica nacionalista, enquanto que a UDN de­ acirraram. As esquerdas haviam se aliado à
fendia uma aliança com o capital estrangeiro. burguesia industrial através do nllcionalismo­
A posição a favor de uma industrialização desenvolvimentista. Boa parte dos industriais
controlada pelo Estado nacional, que era a brasileiros concordavam que o país s6 sairia
tônica da burguesia abrigada no PSD, per­ de situação de semi-colônia se protegesse sua
mitia a coligação desse partido com as es­ indústria nacional. Dessa forma, quando se
querdas no PTB, no PCB, PSB, etc. tratava de proteção cambial à indústria na­
Nesse contexto, findado o Estado Novo, cional, ou facilidades concedidas pelo Estado
revigorou-se o debate educaCional. Todavia, para importação de equipamentos, ou ainda,
diferentemente dos anos 30, a década de 50 de transferir lucros da agricultura para as in­
se pautou por manter a tônica dos debates dústrias e protegê-Ias da concorrência das
mais ao nível da política educacional do que multinacionais, então, nesses casos, os in­
no âmbito da discussão pedag6gico-didática. dustriais brasileiros apoiavam as teses do na­
De fato, a presença do projeto de Lei de Di � cionalismo-desenvolvimentista. Todavia,
fetrizes e Bases da Educação Nacional,H quando se tratava de nacionalização de em­
que tramitou no Congresso entre 1948 e presas estrangeiras ou de exercer um con­
1962, serviu de pano de fundo para a polê­ trole na remessa de lucros para o exterior, os
mica entre a Escola Pública e a Escola Priva­ empresários industriais não se entusiasma­
da. vam tanto (3, p. 102). Essa "pequena" dife­
A disputa entre a Escola Pública e Es­ rença de enfoque sobre o nacionalismo de­
cola Privada voltou a aglutinar forças e gru­ senvolvimentista se aprofundou nos anos 60.
pos de pressão sobre o Congresso Nacional. Uma vez industrializado o país, as es­
A favor da Escola Particular situaram-se querdas passaram a exigir a efetiva demo­
grupos cat6licos e proprietários de escolas, cratização da sociedade e uma melhor redis­
defendidos no parlamento pelo Deputado tribuição da renda. Parte das lideranças po­
Carlos Lacerda (UDN). Pela Escola Pública pulistas, impulsionadas pelas esquerdas e pela
reuniram-se educadores liberais e socialistas crescente participação do proletariado in­
(4). A imprensa foi, então, abarrotada de ar­ dustrial na vida política embarcaram na de­
tigos das facções em disputa. Analogamente fesa das célebres "reformas de base") 4
à década de 30, a polêmica culminou com um De fato, o aprofundamento das teses
manifesto de educadores: em 1959 era publi­ nacionalistas pelas esquerdas enfraqueceu o
cado no jornal O Estado de S. Paulo o Ma­ pacto com a burguesia industrial, colocando
nifesto dos Educadores Mais Uma Vez Con­ em risco a vida constitucional do paíS. A
vocados (cuja redação fmal, como em 32, fi­ UDN, infeliz no plano eleitoral, passou todo
cou a cargo de Fernando de Azevedo). o período p6s-45 tentando seduzir os mili-

72 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 69 -79, juVdez. 1986


tares de direita para uma aventura golpista, o bertadora, que se refugiou no exterior e
que efetivamente conseguiu em 1964, colo­ também no movimento de pré-escolas da dé­
cando fim ao regime liberal. cada de 70, ressurgindo nos anos da "aber­
Todo o clima de efervescência política e tura política" nas CEBs (Comunidades Ecle·
mobilização popular no final da década dt; 50 siais de Base).20
e início dos anos 60, em torno das "reformas Como foi colocado, a aliança entre as
de base", reacendeu a discussão cultural e esquerdas e a burguesia industrial, através
pedag6gica. O próprio Governo, em 1958, daquilo que ficou conhecido como "pacto
através do Ministério de Educação e Cultura, populista", se tomou inviável na década de
baixou instruções para organização de 60. Enquanto a burguesia tendia a deixar-se
"classes experimentais" no âmbito do ensino seduzir pelo imperialismo, e ante o temor da
secundário (:Zô, p. 196),15 o que despertou o "república sindicalista" para a qual- segun­
interesse dos educadores no sentido de colo­ do a direita exaltada - o país se encaminhava,
car na prática os princípios da Pedagogia as esquerdas uniam-se em tomo das "refor­
Renovada tão discutidos desde os anos 30. mas de base" e se dirigiam para o confronto.
Assim, na rede pública foram criados colé­ Pouco organizadas, as esquerdas foram pe­
gios experimentais (em São Paulo, por gas de surpresa pelos golpistas de 64 que,
exemplo, o Vocacional da Lapa, os Pluri­ numa operação rápida, derrubaram um Pre­
curriculares, o Colégio de Aplicação da USP, sidente legitimamente eleito pela vontade
etc). Na rede particular, principalmente nas popular (Jango) e levaram o país para o pe­
escolas católicas, iniciou-se um movimento ríodo ditatorial mais longo de sua história.
de renovação do ensino; as outrora tão com­ O período p6s-64 promoveu uma reor­
batidas idéias da Pedagogia Nova penetraram ganização do Poder. A burguesia industrial,
colégios confessionais (Colégio Santa Cruz, que praticamente direcionou o desenvolvi­
Colégio Madre Alix, etc). Através de convite mento do país entre 45-64, foi substituída
da AEC (Associação de Educação Cat6Iica), (mas não excluída dos benefícios) no coman­
o educador francês Pierre Faure ministrou do do Estado por uma tecnoburocracia mili­
cursos de treinamento de professores no Rio tar e civil aliada ao capital internacional. O
e em São Paulo, divulgando os métodos no­ proletariado urbano teve suas associações
e instituições fechadas e a organização sindi­
vos inspirados em Montessori e Lubienska
(1). Dessa forma, se os educadores cat6licos cal passou a ser controlada de forma mais rí­
gida pelo Ministério do Trabalho. A repres­
faziam restrições ao pragmatismo de Dewey,
são se estendeu ao campo, onde as Ligas
paulatinamente foram aceitando a Pedagogia
Camponesas foram dissolvidas à base da
Nova através das correntes renovadas espi­
violência. Os 6rgãos de representação popu-
ritualistas de Montessori e Lubienska.16
,lar foram submetidos drasticamente ao con­
O movimento cultural dos anos 60 foi
intenso e adquiriu uma conotação nova: a
� do Executivo e os partidos políticos
foram extintos. Grande parte das lideranças
preocupação dos intelectuais jovens com a
de esquerda foram cassadas impiedosamente.
participação popular, com a "emergência do
Com a nação sufocada, o novo bloco no Po­
povo" no processo político nacional. Nesse
contexto, onde se criava o CGT (Comando der garantiu a preservação dos interesses do
Geral dos Trabalhadores) no plano sindical e capital internacional promovendo a manu­
revigorava-se a UNE (União Nacional dos tenção e expansão daquilo que ficou �onhe­
Estudantes) no plano educacional e político, cido como processo de "internacionalização
nasceram os diversos "movimentos de cul­ da economia brasileira" (23, pp. 233-245).
tura popular" (MEB, MCPs, CPCs), geral­ O nacionalismo desenvolvimentista foi
mente guiados por um pensamento cristão e substituído pela ideologia da Segurança Na­
de esquerda (mas também abrigando mar­ cional, que passou a ter na ESG (Escola Su­
xistas-Ieninistas) (20, pp. 230-258;25).17 perior de Guerra) o seu ponto de elaboração
Do interior dos "movimentos de cultura e irradiação. O "desenvolvimento com se­
popular" e "alfabetização de adultos", e nu­ gurança", carro chefe da ideologia do Estado
trindo-se da ideologia nacionalista-desenvol­ p6s-64, interpretava os problemas culturais,
vimentista isebiana, do pensamento moderno educacionais e artísticos dentro dos limites
da Igreja Cat6lica e dos princípios da Peda­ de uma representação excessivamente es­
gogia Nova, floresceu a Pedagogia Liberta­ treita. Toda produção cultural de 1964 a
dora, calcada originariamente nas experiên­ 1978 passou a receber controle rígido do
cias e teorizações de Paulo Freire (2; 21).18 Estado através da censura explícita ou vela­
A Pedagogia Libertadora nasceu como da. Toda a produção cultural passou a ser vi­
uma espécie de "Escola Nova Popular", po­ giada, li partir do pressuposto que os orga­
rém, paulatinamente, foi se desgarrando de nismos culturais e educacionais mais facil­
alguns pressupostos liberais e assumindo uma mente abrigavam "elementos subversivos" e
postura mais crítica e pr6xima das postula­ "simpatizantes do comunismo"(15).
ções socialistas.19 O Golpe de 64, em parte, A política educacional também teve de
abortou o <lesenvolvimento da Pedagogia Li- se açlaptar rapidamente às diretrizes do Esta-

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 69 - 79, julldez. 1986 73


do-policial. A educação passou a ser vista lares. No interior do movimento de p rolife­
como fator propício para o assistencialismo e ração de pré-escolas, a Pedagogia Liberta­
para a difusão da nova ideologia oficial que dora passou a sofrer a concorrência da.Peda­
visava, antes de tudo, "neutralizar os focos gogia Freinet, que conquistou boa parcela de
de subversão interna" (22, pp. 28-36). educadores desejosos em implementar expe­
A escola brasileira passou a ser acusada riências educacionais inovadoras (5, pp. XI­
pelos tecnocratas como excessivamente poli­ XVI).
tizada e de baixo rendimento. Para resolver A Reforma Universitária, a burocratiza­
essa situação aprovaram-se os acordos ção progressiva da atividade docente nos vá­
MEC-USAID que deveriam "modernizar rios graus de ensino, a introdução de aulas de
o sistema escolar".21 As escolas (do primário Educação Moral e Cíviva (OSPB, EPB, etc),
à Universidade) eram responsabilizadas pela a função ideológica (no sentido de falsea­
baixa qualidade da mão-de-obra nacional e mento da realidade) e cooptadora do MO­
pela distribuição desigual da renda. Além BRAL, Projeto Minerva e similares, as va­
disso, esse "mau ensino" era culpado pelo riadas formas de repressão aos educadores
"despreparo da população para a vida de­ mais críticos e, principalmente, a decepção
mocrática", fazendo com que o povo aca­ generalizada diante da lei 5692171 (após al­
basse votando em "líderes demagógicos" (na guns momentos de ingênua euforia),2 5 levou
verdade, na ausência de lideranças legítimas, boa parcela do professorado a refugiar-se no
o povo votava no "menos pior"). consolo de teorias mais propriamente anti­
A proposta pedagógica oficial do Estado pedagógicas do que realmente voltadas para
pós-64 se consubstanciou na Pedagogia Tec­ soluções no plano didático. Essas teorias se
nicista, baseada nos princípios da Teoria consubstanciaram em três correntes: as cha­
Geral da Administração (Taylor-Fayol), que madas Pedagogias Não-Diretivas, as Teorias
procurava impor padrões de racionalização, da Desescolarização e as Teorias Crítico­
eficiência e redução de gastos ao ensino bra­ Reprodutivistas.
sileiro, nos moldes da visão empresarial-tec­ As Teorias de Desescolarização impri­
nocrática assumida pelo Estado (18, pp. miram críticas violentas à escola e ao autori­
29-52).22 tarismo dessa instituição, acabando por en­
Paralelamente ao desenvolvimento da dossar a tese que advogava uma certa irrecu­
pedagogia oficial, outras propostas se desen­ perabilidade da escola como instituição de­
volveram nos diversos estabelecimentos da mocrática; a grosso modo acreditava-se na
rede particular de ensino. Algumas das ini­ "sociedade sem escolas", engendrada nos es­
ciativas de desenvolvimento de pedagogias critos de Ivan Illich.26
extra-oficiais cresceram à luz do dia e não As Pedagogias Não-Diretivas nu­
foram molestadas diretamente pelo aparelho triam-se de pressupostos já anunciados pela
repressor do Estado, outras, no entanto, ti­ Pedagogia Nova. Todavia, apesar de seduzir
veram de optar pela ;semiclandestinidade, alguns grupos de educadores que se consi­
não por estarem vinculadas a correntes de deravam críticos, essas diretrizes pedagógi­
pensamento mais radicais, e sim pelo clima cas encaminharam-se por soluções conserva­
de trevas criado pelos golpistas de 64.23 doras expressas, principalmente, no trabalho
A Pedagogia Tradicional, em sua "for­ de divulgação dos escritos de NeilI (Escola
ma pobre", continuou sobrevivendo nas es­ SurnrherhilI), Carl Rogers, etc.27
colas públicas. É óbvio que sofrendo influên­ As Teorias Crítico-Reprodutivistas, por
cias decisivas tanto da Pedagogia Nova como sua vez, iam além da "ingenuidade liberal"
da Pedagogia Tecnicista. Todavia, na sua das Pedagogias Não-Diretivas ou da Teoria
"forma rica", relativamente eficiente, foi da Desescolarização, assumindo pressupostos
resgatada pelos cursinhos pré-vestibulares e weberianos e pinceladas marxistas. Todavia,
pelos grandes colégios particulares ao nível eram restritas à medida que entendiam, a
de 2'2 grau. grosso modo, que a escola era um simples
A Pedagogia Nova, por sua vez, teve al­ aparelho reprodutor da ideologia dominante
guns de seus princípios assimilados pelas es­ ou então um instrumento da classe domi­
colas públicas. Todavia, em sua roupagem nante utilizado contra as classes populares.28
característica dos anos 60-70, ou seja, vesti­ Todo esse emaranhado de vertentes, que
da pelas teorias piagetianas e por pinceladas procuravam saídas para o impasse pedagógi­
da moderna teoria das comunicações (McLu­ co, foi se solucionando à medida que a situa­
han), encontrou no movimento de prolifera­ ção política do país foi se encaminhando para
ção de pré-escolas e nos grandes colégios uma redemocratização.
particulares camy,0 propício de desenvolvi­ De fato, nos anos finais da década de 70
mento (anos 70). 4 o regime militar começava a dar mostras de
Também a Pedagogia Libertadora pas­ esgotamento. A burguesia industrial já não
sou a se aproveitar do espaço aberto com a mais se conformava em situar-se numa posi­
proliferação de pré-escolas e de classes de ção relativamente secundária no interior do
alfabetização epI escolas de 1'2 grau particu- pacto que sustentava a tecnoburocracia (mi-

74 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 69 - 79, julldez. 1986


litar e civil) no poder. O regime político im­ gogia que está ciente da dominação burguesa
posto à nação após 64 baseava-se na aliança sobre o aparelho escolar (ponto fundamental
da burguesia com o capitalismo internacional das Teorias Crítico-Reprodutivistas), mas
sob a tutela da tecnoburocracia militar e ci­ que, em momento algum, entende a escola
vil, servindo-se do braço armado militar para como instituição "inimiga" das classes po­
excluir a participação do proletariado e das pulares. Para tal concepção a escola é o local
camadas médias. A partir de 1974 essa alian­ de contradições, é um dos palcos da luta de
ça passou a dar indícios de franca autode­ classes e, sob esse clima de luta por hegemo­
composição. Essa rachadura no bloco domi­ nia (concepção burguesa X concepção pro­
nante foi aproveitada pelas camadas popula­ letária), a escola cumpre a função de sociali­
res no sentido de pressionarem e exigirem zadora da cultura (saber gerado historica­
a redemocratização do país. mente pela humanidade). Essa formulação
O sistema pru;tidário, mesmo oontido tem se apresentado como Pedagogia Históri­
por uma camisa de força produzida pela le­ co-Crítica ou Pedagogia Crítico-Social dos
gislação autoritária, expressou, razoavel­ Conteúdos.29
mente, as contradições do período. Em 1965 Concluindo, é possível dizer que as
foram extintos os partidos (PTB, PSD, idéias pedagógicas no Brasil, apesar de tudo,
DDN, PSP, PSB, etc) e criado o bipartida­ têm caminhado, entre processos contraditó­
rismo (ARENA - Aliança Renovadora Nâ­ rios que, muitas vezes, apresentam retro­
cional e MDB - Movimento Democrático cessos, num sentido de incorporar e satisfa­
Brasileiro). A partir de 1974, e novamente zer, cada vez mais, os interesses das camadas
em 1978, o MDB, aglutinando as insatisfa­ populares. De fato, a emergência de uma pe­
ções contra o Governo, venceu os pleitos dagogia circulante no âmbito da Concepção
para a renovação do Parlamento. Num dos Dialética em FilosofIa da Educaçã030, faz
últimos esforços para se perpetuar no poder, parte de um processo de recuperação e con­
os setores dirigentes alimentaram a divisão tinuidade das teorias educacionais esboçadas
dás oposições forjando nova legislação para pelos trabalhadores, em momentos oportu­
criação de novo quadro partidário (PDS, PP, nos, ao longo da história republicana31
PMDB, PDT, PT e PTB). Todavia, boa par­ Todas as pedagogias citadas, na verda­
cela da burguesia e das esquerdas reorgani­ de, não se apresentam como formas puras na
zaram a oposição na fusão do PP com o realidade da vida escolar e na cabeça dos
PMDB, propiciando novamente derrotas ao educadores. De fato, o professorado (1!?, 2!? e
Governo (PDS) e prenunciando o fim do re­ 3!? graus) vem incorporando princípios dife­
gime militar. rentes (e muitas vezes conflitantes) das di­
Esse quadro de oxigenação da vida pú­ versas pedagogias.32 Assim, o trabalho do­
blica brasileira permitiu um reordenamento e cente (atual), o trabalho pedagógico de sala
um reavivamento da discussão educacional e de aula, é o resultado de um amálgama de di­
pedagógica, principalmente entre os educa­ versas tendências pedagógicas. Isto, à pri­
dores de esquerda. A Anistia Política e a meira vista, poderia levar a conclusões con­
reintegração de intelectuais e educadores às servadoras e desanimadoras. AfInal, se o
universidades brasileiras contribuíram para destino de toda nova concepção pedagógica,
urna retomada das discussões pedagógicas ao chegar na rede de ensino (público ou pri­
(1979). vado), é o de. se transformar em "salada teó­
rica", qual a vantagem, então, de se lutar por
O amadurecimento de boa parte das es­ uma nova concepção?
querdas durante os 20 anos de regime militar Ora, na verdade não se trata apenas de
colaborou paia o surgimento de um pensa­ lutar por mais uma pedagogia, mas sim de
mento pedagógico inspirado numa concepção exercer uma batalha pela hegemonia de uma
democrática e socialista de mundo, em con­ concepção pedagógica democrática, e demo­
traposição às Teorias Crítico-Reprodutivis­ crática justamente pelo fato de que corre no
tas e às várias vertentes da Pedagogia Nova, mesmo sentido dos interesses (de classe) da
que se fIzeram passar por radicais durante maioria da população, que são os trabalha­
bom tempo. Dentro desse quadro se insere a dores. Isso signifIca acreditar que a tomada
explicitação de uma formulação pedagógica da escola pelos fIlhos dos trabalhadores - e é
que absorve e supera as concepções pedagó­ o que ocorre hoje com a escola pública - po­
gicas de esquerda dos anos 60 e 70 repre­ de transformar os conteúdos e a metodologia
sentadas, principalmente, pela Pedagogia Li­ de ensino, de forma análoga à transformação
bertadora e pelas Teorias Crítico-Reproduti­ das relações de produção quando da tomada
vistas (que se caracteriza maIS como uma es­ das fábricas pelos trabalhadores. Na verdade,
pécie de antipedagogia). Assim, explicita-se de uma certa forma caótica, isso vem ocor­
urna pedagogia que leva em conta o "saber rendo; a cada ano que passa os educadores
popular" (ponto fundamental da Pedagogia tentam novas fórmulas para abrigar os filhos
Libertadora), mas que, em momento algum, dos trabalhadores que pressionam o Poder
despreza ou considera totalmente domestica­ Público reivindicando mais escolas e insistin­
dor o saber erudito. Explicita�se uma peda- do numa reformulação pedagógica.33 É

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 69 -79,julldez. 1986 75


nesse sentido que emergem pedagogias vin­ ver: Gilberto, R. As idéias atuais em pedago­
culadas aos interesses populares e filiadas aos gia. Santos,Martins Fontes,1974. Um con­
fronto entre a Pedagogia Nova (Dewey) e a
projetos de transformação radical da estru­ Pedagogia Tradicional (Herbart) (também
tura econômica e social vigentes, indicando sob uma ótica escolanovista), ver: Broba­
caminhos de construção de uma sociedade cher, J. A Importl1ncia da Teoria em Educa­
efetivamente democrática. ção. Rio de Janeiro, INEP,1961,pp. 23-40.
Para um estudo sobre a Pedagogia Nova no
-Brasil ver o livro que é, praticamente,o mar­
co histórico da entrada dessa concepção no
NOTAS país: Lourenço Filho, M.B. Introdução ao
Estudo da Escola Nova. São Paulo, Melho­
I. O período anterior à República não pode ser ramentos, s. d. (publicado pela primeira vez
considerado fundamental par� a fonnação da em 1929).
Pedagogia Tradicional, conforme ela é en­
6. Tanto o "cicio de refonnas" como as Con­
tendida neste texto.. Na Colônia e no Império
ferências projetaram no cenário nacional os
a teoria educacional hegemônica era a Peda­
gogia Jesuítica. Neste artigo a Pedagogia Je­ jovens intelectuais que se colocaram na van­
suítica compõe, jü.ltamente com as teorias guarda desses movimentos. Refonnas: Sam­
pedagógicas cientificistas, uma síncrese res­ paio Dória (1920 - São Paulo); Lourenço
ponsável pela Pedagogia Tradicional brasi­ Filho (Ceará-1922); Anísio Teixeira (Bahia
leira, e tal smcrese se consubstanciou princi­ - 1924); Bezerra de Menezes (Rio Grande do
Norte - 1925); Antônio Carneiro Leão (Dis­
palmente na Primeira República.
trito Federal - 1922); Antonio Carneiro Leão
2. Sobre a penetração das idéias de Pestalozzi e (Pernambuco - 1928); Lisímaco da Costa
Herbart no meio intelectual, na transição do (Paraná - 1927); Francisco Campos (Minas
Império para a República, ver: Lourenço Fi­ Gerais - 1928); Fernando de Azevedo (Dis­
lho, M.B. A Pedagogia de Rui Barbosa. São trito Federal-1928).
Paulo, Melhoramentos, 1954, p. 54. Sobre a Sobre o movimento de modernização do en­
Pedagogia Tradicional como fundament� da sino nos anos 20 e 30 ver: Leme, P. O Mani­
teoria educacional endoSsada pelos educado­ festo dos Pioneiros da Educação Nova e suas
res liberais e positivistas do início do século, repercussões na realidade educacional brasi-
ver: Reis Filho, C. A Educação e a Ilusão Li­ 1eira. Revista Brasileira de Estudos Pedag6gi­
beral. São Paulo, Cortez e Autores Associa­ coso Brasília, 65 (150):255-72, mailago.
dos,1981,pp. 49-68. 1984. Ver também: Azevedo, F. A Cultura
Brasileira. São Paulo, Melhoramentos, 1964,
3. O pensamento liberal atribuía à ignorância
pp. 655-711.
popular a culpa pelos problemas sociais. O
Sobre as Conferências Nacionais de Educa­
discurso de Rui Barbosa, na transição do Im­
ção ver: Cunha, L. A. A Organização do
pério para a República, é significativo nesse
Campo Educacional: As Conferências de
sentido: "Ao nosso ver a chave misteriosa das
Educação. Educação & Sociedade. Campinas
desgraças que nos afligem é esta, e só esta:
(9):5-48, maio 1981.
a ignorância popular, mãe da servilidade e da
miséria. Eis a grande ameaça contra a exis­ 7. Dentre os signatários do Manifesto era possí­
tência constitucional e livre da nação; eis o vel encontrar três correntes de pensamento:
fonnidável inimigo intestinó,que se asila nas os "liberais elitistas" liderados por Fernando
entranhas do país" (16, p. 61). de Azevedo; os "liberais igualitaristas" , cujo
expoente máximo era Anísio Teixeira; e os
4. A Primeira República foi testemunha da gê­
simpatizantes do socialismo, representados
nese do Movimento Operário Brasileiro. Po­
por Paschoal Leme e Hennes Lima (8).
de-se dizer que seis correntes políticas dis­
Sobre novas hip6teses a respeito do papel
putaram á hegemonia do Movimento Operá­
histórico do Manifesto de 32 ver: Cury, C.J.
rio no período: socialistas, Iibertários (anar­
Comemorando o Manifesto dos Pioneiros da
quistas e anarco-sindicalistas), comunistas
Educação Nova. Educação & Sociedade.
(PCB), católicos, "trabalhistas" e "amare­
Campinas (12):5-14,set. 1982.
los". Dentre as correntes de esquerda (socia­
listas, libertários e comunistas) proliferaram 8. Sobre a crítica dos Católicos aos escolano­
iniciativas em favor da educação popular. vistas é interessante consultar o pensamento
Os socialistas tiveram hegemonia no Movi­ de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athaíde)
mento Operário no período 1889- I 906. Fun­ através de: Morais, R. Hist6ria e Pensamento
daram "escolas operárias", jornais, bibliote­ na Educação Brasileira. Campinas, Papiros,
cas populares,etc. 1985, pp. 81-98.
Os libertários dominaranl o Movimento
9. Educadores como Lourenço Filho, Fernando
Operário entre 1906 e 1922, contribuindo
de Azevedo, etc, conviveram e, em vários
para a educação com três iniciativas caracte­
momentos,apoiaram o Estado Novo. Outros,
rísticas: Universidade Popular, Centros de
ao contrário, se posicionaranl em favor da
Estudos Sociais e Escolas Modernas baseadas
democracia, como foi, por exemplo, o caso
na Pedagogia Racionalista de Ferrer.
de Anísio Teixeira, Paschoal Leme, etc. Tais
Os comunistas, através do PCB (1922) con­
divergências no campo político, todavia, não
tribuíram através da educação política (for­
os impedia de aceitarem como teoria válida
mação de quadros) e da fonnulação de uma
os pressupostos da Pedagogia Nova o que,
platafonna de política educacional para o
provavelmente, significava um relativo com­
Movimento Operário.
promisso com a tese liberal da neutralidade
Mais detalhes sobre o assunto ver: Ghiraldel­
da educação e da pedagogia.
li, P. Pedagogia, Educação e Movimento
Sobre as concepções pedagógicas escolano­
Qperário na Primeira República. São Paulo,
vistas aceitas por Paschoal Leme ver: Leme,
PUC,1986 (dis. de mestrado).
P. Estudos de Educação. Rio de Janeiro, Tu­
5. Para uma descrição das idéias básicas da Pe­ pã, 1953. Sobte as concepções pedagógicas
dagogia Nova (sob uma ótica escolanovista),

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escolanovistas de Anísio Teixeira ver: Tei­ ção da Universidade reorientando sua atuação
xeira, A. Pequena Introdução à Füosofta da no sentido de satisfazer interesses populares
Educação. São Paulo, Companhia Editora (7,p.51).
Nacional,1975.
15. Na exposição de motivos do Ministro da
10. O PCB teve vida legal entre 1945-47, quando Educação e Cultura para a criação das "clas­
ses experimentais" destacava-se a necessida­
cresceu vertiginosamente; o PSB (Partido
Socialista Brasileiro) abrigou social-demo­ de de se forjar "oportunidade para o ensaio
cratas, trotskistas, libertários e até elementos de modalidades de ensino do segundo grau
de direita. Outros partidos como o PSP (Par­ que procurem harmonizar o ensino acadêmi­
tido Social Progressita) e o PDC (Partido co com as tendências a dar ao ensino secun­
dário um sentido mais concreto de formação
Democrata Cristão) conseguiam razoável pe­
para tarefas e responsabilidades da vida social
netração nas camadas médias. Ver: Carone,
e profissional" (26,pp. 196-197).,
E. O Movimento Operário no Brasil. São
Paulo,Difel,1981. 16. Sobre as divergências entre a corrente dewe­
yaria e montessoriana, ver: Eby, F. lIistória
11. Sobre a cronologia da tramitação do projeto
da Educação Moderna. Porto Alegre,Globo,
das Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
196I,pp.549-550.
ver: Saviani, D. Educação Brasileira - Es­
trutura e Sistema. São Paulo, Saraiva, 1978,
Sobre a evolução do pensamento educacional
católico no Brasil é interessante consultar:
pp.1I5-137.
G6es, M. "Escola Pública: História e Católi­
Em 1952, o professor Paschoal Leme escre­
cos". In: Simpósios da 111 Conferência Brasi­
via que mais importante que a interminável
leira de Educação. São Paulo, Loyola, 1984,
discussão sobre a "diretrizes e Bases" era a
pp. 162-183.
luta pelo "cumprimento expresso do que de­
O professor Flávio Luizzeto, que trabalhou
termina a Constituição em vigor". Para ele,
no Colégio confessional "Rainha da Paz"
na época, "a primeira e mais tremenda defi­
(SP), na transição dos anos 50 para os anos
ciência de nossa organização escolar, em to­
dos os graus e modalidades de ensino, como 60, acrescenta que também as idéias de Pia­
todos estão fartos de saber, é a deficiência get, Freinet, Paulo Freire acabaram pene­
quantitativa". Para maiores detalhes do pen­ trando nesses estabelecimentos.
samento de Paschoal Leme sobre a discussão 17. Sobre os "movimentos de cultura popular" ,
da Lei de Diretrizes e Bases, ver: Leme, P. ver: Fávero, O. Cultura Popular - Educação
Estudos de Educação. Rio de Janeiro, Tupã, Popular - Mem6ria dos anos 60. Rio de Ja­
1953,pp.255-262. neiro, Graal, 1983. E também: Goés, M. De
12. Pé no Chão Também se Aprende a Ler -
É significativo o trecho seguinte do Mani­
festo de 59: "Não renegamos nenhum dos 1961/1964 - Uma Escola Democrática. Rio
princípios por que nos batemos em 1932, e de Janeiro,Civilização Brasileira,1980.
cuja atualidade é ainda tão viva ( ...)". Para 18. Ver: Freire, P. Educação Como Prática da
um estudo sobre o Manifesto de 59 e sobre os Liberdade. Rio, Paz e Terra, 1976; Pedago­
textos publicados durante a 'Campanha de gia do Oprimido. Rio, Paz e Terra, 1985; Ex­
Defesa da Escola Pública, ver: Barros, tensão ou Comunicação?, Rio, Paz e Terra,
R.S.M. Diretrizes e Bases da Educação Na­ 1983; Conscientization. Buenos Aires, Bus­
cional. São Paulo,Pioneira, 1960. queda,1974.
A necessidade de manter coesa a Campanha 19. Ver: Freire,P.Ação Cultural para a Liberda­
de Defesa da Escola Pública levou os educa­ de. Rio,Paz e Terra,1982.
dores de esquerda a moderarem qualquer ím­
peto de críticas às pedagogias liberais. Em 20. Ver: Queiróz, J. (org.) A Educação Popular
1960, Florestan Fernandes escrevia: "Parti­ nas Comunidades Eclesiais de Base. São
cipam da Campanha de Defesa da Escola PÚ­ Paulo,Paulinas-Educ. 1985.
blica pessoas de diferentes credos. políticos 21. Para um estudo sobre os acordos MEC -
( ... ) Limitamo-nos a defender idéias e princí­ USAID, ver. Tavares, J.N. Educação e Im­
pios que deixaram de ser matéria de discussão perialismo no Brasil. Educação & Sociedade.
polftica nos países adiantados. Tudo se passa Campinas (7): 5-53,set. 1980.Sobre a polfti­
como se o Brasil retrocedesse quase dois sé­ ca educacional durante os vinte anos da Dita­
culos, em relação à história contemporânea dura Pós-64, ver: Curiha,L.A. & Góes, M. O
daqueles países, e como se fôssemos forçados Golpe na Educação. Rio de Janeiro, Zahar,
a defender, com unhas e dentes,os valores da 1985.
Revolução Francesa! (...) Apesar de socialis­
22. Para uma crítica à Pedagogia Tecnicista,ver:
ta, somos forçados a fazer a apologia de me­
Saviani, D. Ensino Público e Algumas Falas
didas que nada tem a ver com o socialismo e
Sobre Universidade. São Paulo, Cortez e
que são, sob certos aspectos, retrógradas"
Autores Associados, 1984, pp. 75-86.E ain­
(12,p. 427).
da: Saviani, D. Escola e Democracia. São
13. Sobre o ISEB, ver: Sodré, N.W.lfistória da Paulo, Cortez e Autores Associados, 1983,
História Nova. Petrópolis, Vozes, 1985. pp. 15-19. Libâneo, J.C. Democratização da
Escola Pública. São Paulo,Loyola.
14. RefofJllas de Base: reforma eleitoral - con­
sistia na extensão do direito de voto ao anal­ 23. Em Curitiba (PR), na década de 70, a polfcia
fabeto; reforma tributária - aumentar a re­ chegou a fechar uma pré-escola e prender
ceita do Estado através da taxação dos mais seus professores que foram acusados de sub­
ricos; reforma agrária - desapropriação do versão - eles trabalhavam com métodos pia­
latifúndio improdutivo; reforma urbana - getianos!
limitar o número de imóveis que um capita­
lista poderia ter; reforma bancária -naciona­ 24. A partir do início dos anos 60 a Pedagogia
lização e estatização dos bancos; reforma Nova "esquecia" seus antigos mentores (De­
universitária -modernização e democratiza- wey, Kilpatrick, etc - e também os textos

EDUCAÇÃO &'REALIDADE,Porto Alegre,11(2): 69 -79, juUdez. 1986 77


mais democráticos de Anísio Teixeira) e en­ Cadernos de Pesquisa. São Paulo (57);30 -39,
dossava as teses da psicologia genética de maio 1986.
Jean Piaget. De certa forma, a versão da Es­
32. Existem tentativas interessantes e bem suce­
cola Nova baseada no neopositivismo piage­
didas no sentido de captar e descrever o
tiano alcançou razoável divulgação no Brasil
amálgama te6rico que se forma na cabeça dos
nos anos 70. O Estado p6s-64 absorveu e in­
professores em contato com as diversas peda­
corporou esse movimento, integrando nas bi­
gogias. Sobre isso, ver: Ribeiro, D. Nossa
bliografias de concursos oficiais para in­
Escola é uma Calamidade. Rio de Janeiro,
gresso no magistério público os textos piage­
Salamandra, 1984, pp. 61-65. E também:
lianos e o tecnicismo educacional. Na verda­
Saviani, D. Tendências e Correntes da Edu­
de, o tecnicismo pedag6gico e o escolano­
cação Brasileira. In: Mendes, D.T. Filosofia
visrno piagetiano não eram incompatíveis,
da Educação Brasüeira . Riú de Janeiro, Civi­
pelo contrário, ambos se fundamentavam na
lização Brasileira, 1984, pp. 40-43.
ideologia liberal que sustentava o caráter téc­
nico-neutro da educação . Ver: Piaget, J. Psi­ 33. A Gestão Guiomar Namo de Mello na Se­
'
cologia e Pedagogia. Rio de Janeiro, Forense, cretaria de Educação da Prefeitura de São
1970. Paulo (Gestão Mário Covas), a construção
dos CIEPS por iniciativa do Governo Brizo­
25. Alguns professores, enjaulados pela ideolo­
la-Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro, são
gia dominante, ainda hoje, repetem inge­
exemplos (distintos) de atuação de grupos de
nuamente que "a lei era boa, s6 que os erios
esquerda no controle dos aparelhos de Estado
surgiram na aplicação"!
e, conseqüentemente, de iniciativas no senti­
26. Para uma crítica contundente à desescolariza­ do da resolução dos problemas referentes à
ção, ver: Snyders, G. Escola, Classe e Luta de educação das camadas populares.
Classes. Lisboa, Moraes, 1981.

27. Para uma crítica objetiva ao não-diretivismo,


ver: Snyders, G. Para onde vão as Pedago­ REFERÊNCIAS B m LIOGRÁFICAS
gias Não -Diretivas? Lisboa, Moraes, 1978.
1. AVELAR, G . Renovação EducacionaI Cat6Iica .
28. Ver: Althusser, L. Ideologia e Aparelhos São Paulo, Cortez & Moraes, 1978.
Ideológicos de Estado. Lisboa, Presença, s.d.
Bourdieu & Passeron. A Reprodução. Rio, 2. BEISIEGEL C. Polftica e Educação Popular.
,
Francisco Alves, 1982. Establet & Baudelot. São Paulo, Atica, 1982.
A Escola. Tempo Brasüeiro. Rio de Janeiro 3: BRESSER PEREIRA, L.C. Desenvolvimento e
(35):93-125, 1974. Alguns textos influencia­ Crise no Brasü. São Paulo, Brasiliense, 1985.
dos pelos crítico-reprodutivistas: Cunha,
L.A. Educação ,e Desenvolvimento Social no 4. BUFFA, E. Ideologias em ConfTito: Escola PÚ­
Brasü. Rio, FranCisco Alves, 1975. Rossi, W. blica e Escola Particular. São Paulo, Cortez &
Capitalismo e Educação. São Paulo, Cortez & Moraes, 1979.
Moraes, 1978. Freitag, B. Escola, Estado e 5. CABRAL, M.1. De Rousseau a Freinet ou da
Sociedade. São Paulo, Dart, 1977. Teoria à Prática. São Paulo, Hemus, 1978.
Para uma crítica ao reprodulivismo, ver: Pe­
tit, V. As Contradições de "A Reprodução" . 6. CARONE, E. O Movimento Operária no Brasü.
Cadernos de Pesquisa. S . Paulo (43):43-51,
São Paulo e Rio, Difel, 1981, vol. lI .
nov. 1982. 7. CUNH A , L.A. A Universidade Crítica. Rio de
29. Sobre a Pedagogia Crítico-Social dos Con­ Janeiro, Francisco Alves, 1983.
teúdos, ver: Saviani, D. Escola e Denwcra­ 8. CURY, C J . ldeologia da Educação Brasüeira.
.

cia. Cortez e Autores Associados, 1983. Li­ São Paulo, Cortez e Autores Associados, 1984.
bãneo, J.c. Redenwcratização da Escola PÚ­
blica. São Paulo, Loyola, 1985. Cury, C.J 9. DULLES, J.F. Anarquistas e Comunistas no
Educação e Contradição. São Paulo, Cortez e Brasü. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1973.
Autores Associados, 1981. Na mesma linha 10. DULLES , J.F. O Comunismo no Brosü. Rio de
desses autores, ver: Ribeiro, M. L.S. A For­ Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
mação Política do Professor de jq e 2q Grtlus.
São Paulo, Cortez e Autores Associados, 11. FAORO, R. Os Donos do Poder. Porto Alegre,
1 984. E ainda: Ghiraldelli Jr., P. Trabalho do Globo, 1979.
Magistério, Pedagogia Dominante e Pedago­ 12. FERNANDES, F. Educação e Sociedade no
gia de Oposição. Rio Claro, UNESP, 1986 Brasü. São Paulo, Edusp, 1966.
(mim.) (a sair na Revista da ANDE) .
Sobre a polêmica em tomo do livro Escola e 13. FERREIRA, S .C. A Primeira Conferência Na­
Denwcracia, ver: Nosella, P. Pedagogia Tra­ cional de Educação . São Carlos, UFSCar
dicional e Pedagogia Moderna. Educação & (mim.).
SociedaJe. Campinas (23): 106-136, abril 14. GHIRALDELLI Jr.,P. Pedagogia, Educação e
1 986. Ghiraldelli Jr., P. A Vara Teimosa. Movimento Operário na Primeira República.
i:dl!cação & Sociedade. Campinas São Paulo, PUC-SP, 1986 (dis. de mestrado) .
(24): 1 1 6- 1 46, ago. 1986.
15. IANNI, O. O Estado e a Organização da Cultu­
30. Ver: Saviani, D. Tendências e Correntes da ra. Revista Civilização Brasüeira. São Pau-
10(01):216-241, 1978.
Educação Brasileira. In: Mendes, D.T. Filo·
sofia da Educação Brasileira . Rio, Civiliza­ 1 6 . LOURENÇO FILHO, M.B . A Pedagogia deRui
ção Brasileira, 1 984. Barbosa. São Paulo, Melhoramentos, 1954.

31. Sobre a articulação de uma pedagogia Jigada 17. MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDU­
aos interesses das camadas populares, ver: CAÇÃO NOVA. Revista Brasüeira de Estudos
Ghiralrlelli Jr., P. Educação Popular e Mo­ Pedag6gicos. Brasília 65 (150):407-425,
vimento, Operário na Primeira República, maio/ago. 1984.

78 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 69 - 79, julldez. 1986


1 8 . MELLO, G.N. (org.) Escola Nova, Tecnicisnw e 24. SINGER, P . ° Brasil no Contexto do Capita­
Educação Compensat6ria. São Paulo, Loyola, lismo Internacional. In: FAUSTO, B . Hist6ria
1 986. Geral da Civilização Brasileira. São Paulo e Rio
19. NAGLE, J. Educação na Primeira República. de Janeiro, Difel, 1985, vol. I, tomo 111 .
In: FAUSTO, B. Hist6ria Geral da Civilização 25. WANDERLEY, L.E. Educar Para Transfor­
Brasileira. São Paulo e Rio de Janeiro, Difel, mar. Petrópolis, Vozes, 1 984.
1 978, vol. 11, tomo 111.
26. WARDE M. & RIBEIRO, M.L.S. ° Contexto
20. PAIVA, V. Educação Popular e Educação de Histórico da Inovação Educacional no Brasil.
Adultos. São Paulo, Loyola, 1 983. In: GARCIA, W. (org.) Inovação Educacional
no Brasil. São Paulo, Cortez e Autores Asso­
2 1 . PArv.A, V. PauÚJ Freire e o Nacionalismo-De­
senvolvimentista. Rio de Janeiro, Civilização
ciados, 1980.
Brasileira, 1986.
22. SAVIANI, D. A Política Educacional no Con"
junto das Políticas S ociais. In: Simp6sios da III
CBE. São Paulo, Loyola, 1 984.

23. SINGER, P. Interpretação do Brasil: Uma ex­ ***

periência histórica de Desenvolvimento. In:


* PAULO GHIRALDELLI Jr. é professor do De­
FAUSTO, B . História Geral da Civilização
Brasileira . São Paulo, Difel, 1984, vol. IV,
. partamento de Educação do Instituto de Biociências
Tomo 111. da UNES P, Rio Claro.

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1 (2): 69 - 79, julldez. 1 986 7<,)
Fatores

mulher vem sendo subjugada mente em casa, quando seu pai tem sempre a

A
intelectualmente e criativamen­ última palavra e é visto como todo-poderoso.
te, na sociedade ocidental e na O menino aprende a superioridade paterna
oriental. Esta opressão sobre a como uma rivalidade, enquanto que à menina
mulher vem do cultivo de padrões culturais, é transmitida a submissão (Beauvoir, 1949).
impostos pela sociedade, que lhe são trans­
mitidos desde a infância. A submissão ao homem é transmitida à
menina sob diferentes formas: a religião, li­
Na infância, já se pode observar clara vros de hist6rias, livros escolares e anúncios
diferenciação na educação dos dois sexos. de televisão. A mensagem dada é sempre a
Para a menina, é ensinado um comporta­ mesma, através de diferentes maneiras: à
mento de passividade, enquanto que para o mulher cabe a tarefa de cuidar para que a sua
menino é reforçado um comportamento mais casa seja bonita, que cheire bem, que tenha
agressivo. É dada mais proteção à menina, uma comida saborosa, para que o marido e os
mais indulgência com as lágrimas, tentan­ filhos se sintam confortáveis, não se esque­
do ampará-la contra a angústia e a soli­ cendo nunca de ser uma boneca fisica­
dão. Ao contrário, para o menino, existe to­ mente bem atrativa. O modelo de Cinderela
do um ensinamento voltado para que ele se que espera que um homem tome as decisões
tome independente, livre, que ele seja forte e por ela, é ensinado à mulher a todo momento
não chore, principalmente, pois corre o risco (Dowling, 1981).
de virar mulher (Beauvoir, 1949).
Durante a sua vida escolar e juventude,
Desde cedo, o brinquedo preferencial­ novamente a mulher sentirá a pouca ênfase
mente dado à menina será a boneca, transmi­ que � dada à sua intelectualização pela socie­
tindo-lhe assim que a sua função será a de dade. A mensagem, geralmente dirigida à
ser bonita como uma boneca, e a de tomar adolescente mulher, é de que os estudos
conta de alguém, como um ftlho, que a sua existem apenas para preencher o tempo ne­
boneca representa. Outro brinquedo a ser cessário para encontrar seu companheiro Ou
ensinado à menina será o de fazer comidinha futuro marido. Para o adolescente homem, a
ou de bordar, imitando assim o papel da mãe mensagem é bem diferente: os estudos são
em casa, e inculcando-lhe o valor pela vida vistos como algo muito importante para que
doméstica. Por outro lado, nos brinquedos ele se tome um bom profissional, ganhe um
dados ao menino, existe uma ênfase maior no bom salário e possa sustentar uma mulher.
desenvolvimento intelectual e motor, como Desta maneira, à mulher nada mais resta do
quebra-cabeças, jogos de armas, pequenos que esperar um outro alguém que possa cui­
laborat6rios, etc. dar dela, passando assim dos braços dos pais
de quem dependia para os braços de outra
No desenrolar de sua infância, a menina pessoa, de quem continuará a depender.
cada vez mais se defronta com a superiorida­
de masculina. Esta se manifesta principal- A vivência sexual é também dirigida de

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 8 1- 86,julldez. 1986 81


diferente maneira para os dois sexos. Ao (com personagem chamado João) foi aplica­
garoto adolescente é dada liberdade de ex­ do em 88 homens, e os resultados não apon­
perimentar seu corpo, enquanto que à garota taram existência significativa do medo ao su­
adolescente é pedido para esperar até o ca­ ces�o, como aconteceu com as mulhere s.
samento. O padrão de comportamento, ativo
para o homem, passivo para a mulher, se es­ Fox (1979) estudou as características de
tende das outras áreas também para a área adolescentes norte-americanos, de ambos os
sexual. As próprias mudanças que ocorrem sexos, que se salientaram em matemática no
no corpo durante o período adolescente são exame vestibular (SAT). Os resultados mos­
explicadas pelos meios de comunicação traram que as meninas subestimam as suas
muito mais detalhadamente para o sexo mas­ habilidades enquanto que os meninos supe­
culino do que para o feminino, que se assusta restimavam as deles. As meninas percebiam a
quando na relação sexual livre acontece ge­ Matemática como sendo menos importante
rar um ser. para o seu futuro do que os meninos, e não
tinham ainda bem definidos os seus planos de
É só através do casamento e da materni­ carreira profissional. Os valores das adoles­
dade que a mulher se realiza, segundo a so­ centes mulheres eram mais de cunho social
ciedade. Esta visão é causadora de grandes ou artístico do que intelectuais, e considera­
problemas emocionais naquelas mulheres que vam a habilidade matemática como sendo
não conseguiram encontrar um companheiro mais uma área masculina do que feminina.
ideal ou ter um fIlho. Nenhum estímulo vem
da sociedade no sentido de que é importante Apesar de serem muito fortes as mensa­
para a mulher se auto-encontrar, mas sim gens transmitidas pela cultura, no sentido de
que ela será reconhecida e estimada pelo reprimir o potencial intelectual e criativo das
melhor bolo que cozinhar, pela casa mais bo­ mulheres, podemos notar que muitas mulhe­
nita que tiver, mais limpa, etc. Quando os res conseguem superar estes ensinamentos e
fIlhos crescer e precisam menos dela, ocorre, se sobressaírem. InlÍmeras pesquisas têm sido
para a grande maioria, o questionamento de feitas, principalmente nos Estados Unidos, a
"quem sou eu ou para que eu sirvo", período fim de se investigar quais foram as variáveis
este que foi chamado por alguns autores influenciantes na biografia destas mulheres
(Mednick, Tangri, Hoffman, 1975) de "sÍn­ que as ajudaram a superar estas barreiras so­
drome do ninho vazio". Muitas mulheres ciais.
conseguem superar este período através da
participação ativa em obras sociais, onde se­ Rieger (1982), por exemplo, estudou as
guem a mesma linha da educação recebida: características de vida de mulheres norte­
ser para alguém, realizar-se através de al­ americanas altamente criativas e pouco cria­
guém. tivas. Os resultados apontaram que as mu­
lheres altamente criativas se diferenciavam
Estas mensagens podem vir a ser trans­ das menos criativas por possuírem um maior
mitidas mais francamente em algumas famí­ sentimento de independência e um maior
lias, mas elas ainda são as mensagens predo­ comprometimento com a carreira profissio­
minantes na cultura ocidental. O efeito des­ nal. Além disto, as mulheres altamente cria­
tas mensagens sobre as mulheres tem sido tivas se caracterizavam por serem solteiras
comprovado através de inúmeras pesquisas, ou terem casado tarde, terem menos fIlhos, e
onde se demonstrou que estas mensagens le­ não sentirem dificuldades em combinar a vi­
vam as mulheres a desenvolverem barreiras da profissional com a vida familiar.
internas que as impedem de se auto-realiza­
rem. Rieger e Blaubergs (1979) revisando
estudos com mulheres criativas norte-ameri­
Homes (1972), por exemplo, estudou o canas, observaram que a grande maioria
porquê as mulheres têm medo do sucesso. destes apontavam certos traços comuns nas
,
Pediu-se a uma amostra de 99 mulheres mulheres criativas norte-americanas: maior
norte-americanas que escrevessem sobre o independência, maior conformismo e maior
seguinte tema: "Nas provas finais do curso preponderância de características de perso­
de Medicina, Ana percebeu que obteve as nalidade consideradas "masculinas". Com­
melhores notas da classe." Os temas desen­ parando mulheres criativas com homens
volvidos pelas mulheres mostraram que elas criativos, perceberam que estes dois grupos
associavam brilhantismo intelectual com per­ se assemelhavam mais entre si nos traços de
da da feminilidade, com rejeição social, ou personalidade do que com os homens e as
uma grande destruição pessoal. As respostas mulheres da população em geral. Postularam,
das mulheres deste estudo, significantemen­ assim, que a personalidade criativa seria an­
te, mostravam conseqüências negativas para drógena, no sentido de que homens e mu­
Ana, medo que ela se tornasse lésbica ou que lheres criativos conseguiram combinar den­
nunca pudesse se casar. Este mesmo tema tro de si tanto os traços considerados "mas-

82 EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 81 - 86, jul/dez. J 986


culinos" pela sociedade, quanto os traços tigadas foram: emoção, movimento, fantasia,
considerados "femininos". perspectiva incomum (figuras vistas de ân­
A falta de estudos com mulheres criati­ gulo), perspectiva interna (figuras vistas por
vas brasileiras levou-nos a questionar o que dentro), uso de contextos e combinações.
acontece no nosso país. Com base nas pes­ c) Teste pensando criativamente com
quisas feitas com mulheres criativas norte­ palavras (Torrance, 1966). Foi utilizado uma
americanas, foram levantadas as seguintes das atividades deste teste, que pede a pessoa
hipóteses: para hipotetizar as conseqüências de uma si­
tuação impossível, descrita no teste.
A mulher criativa brasileira teria: Esta atividade foi corrigida pelas carac­
a) na infância e adolescência: maior terísticas criativas verbais, validadas por We­
influência do pai do que da mãe; maior pre­ chsler (1981). As características verbais in­
ferência por brinquedos e atividades "mas­ vestigadas foram: emoções, analogias, fanta­
culinas"; menor necessidade de dependência; sias.
mais interesses artísticos e criativos. d) Questionário sobre realizações criati­
b) na vida escolar: menor necessidade vas: Este instrumento foi composto de per­
de dependência; maior necessidade de inte­ guntas abertas sobre realizações em diferen­
lectulllização. tes áreas, que foram reconhecidas publica­
c) no trabalho: maior assertividade de mente. As áreas investigadas foram: litera­
comportamento; menor necessidade de de­ tura, teatro, pintura, decoração, escultura,
pendência; maior necessidade de intelectuali­ tecelagem, ciências, negócios, esportes, ci­
zação. nema, fotografia, culinária, decoração e mo­
d) na família: menor necessidade de se das.
realizar através dos outros; maior divisão de
tarefas e papéis. PROCEDIMENTO: Foram realizadas
e) na vida sexual: menor tendência à entrevistas individuais com os sujeitos para
passividade; maior abertura à vivência se­ aplicação dos instrumentos. Após a correção
xual. do questionário biográfico, este foi validado
f) personalidade: mais impulsiva, emo­ através da análise fatorial.
tiva; mais inconformista; mais idealista. A análise da regressão foi feita poste­
riormente, para investigar os efeitos dos fa­
tores encontrados no questionário biográfico
sobre as variáveis dependentes: realizações,
MÉTODO criativas, criatividade verbal e criatividade
figuraI. A correlação de Pearson foi também
AMOSTRA: a amostra foi composta de utilizada para comparar as variáveis depen­
77 mulheres da cidade de Brasília, de nível dentes entre si.
sócio-econômico médio-alto, havendo mu­
lheres casadas, desquitadas e solteiras.
Estas mulheres pertenciam a diferentes
áreas profissionais e apresentavam, em dife­
rentes graus, uma produtividade criativa já RESULTADOS
reconhecida publicamente.
Através da análise fatorial, foram en­
contrados 12 fatores, a sererr. explicados a
seguir:
INSTRUMENTOS: Fator 1 -chamado de "Realização atra­
yés dos outros" onde a preponderância dos
a) Questionário hiográfico: Foi cons­ .itens revela a preferência de se realizar atra­
truído um questionário, de escala tipo Íikert vés dos filhos e do marido, mostrando tam­
de 5 (muito freqüentemente), a 1 (muito ra­ bém bastante controle emocional.
ramente). Os ítens abrangiam as áreas de: Fator 2 - denominado de "Rigidez e
infância, adolescência, escolaridade, traba­ controle", onde os itens revelam uma pessoa
lho, família, sexualidade e personalidade (5 rígida, não perdoando as faltas alheias e pou­
ítens para cada área). co emotiva.
b) Teste pensando criativamente com fi­ Fator 3 - chamado "Passividade com
guras (Torrance, 1966). Foi utilizado uma conflito", onde os itens demonstram uma
das atividades deste teste, que consiste em atitude bastante passiva frente ao homem,
uma série de rabiscos que devem ser com­ mas revelam também uma atitude de conflito
pletados para formarem figuras. ou insatisfação frente a esta passividade.
Esta atividade foi corrigida pelas carac­ Fator 4 -denominado "Curiosidade",
terísticas criativas apresentadas nos dese­ revela uma mulher idealista, interessada por
nhos, procedimento este validado por Tor­ novas idéias, dando pouca importância à vida
rance e Ball (1980). As características inves- social.

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 81- 86,julldez. 1986 83


Fator 5 denominado "Realização
- Tabela 2
pessoal", indica na maioria dos itens, uma
pessoa centrada em si mesma, pouco preocu­ ANÁLISE DA REGRESSÃO DOS FATORES
COM A CRIATIVIDADE VERBAL
pada com opiniões contrárias de colegas, e
empenhada na sua auto-realização. Descrição do Fator
Fator 6 - chamado de "Autoritarismo",
revela através de grupamento de Ítens, uma Passividade/Conflito 0,0678 0,0678
mulher dominadora, que gosta de ter sempre Curiosidade 0,0992 0,0314
Originalidade/Conflito 0,1300 0,0307
a última palavra.
Assertividade/Conflito 0,1442 0,0142
Fator 7 - denominado "Assertividade Intelectualização 0,1640 0,0198
com conflito", mostra uma mulher que luta Rigidez e Controle 0,1731 0,0091
pelos seus direitos, que defende as suas opi­ Identificação com a mãe e
niões frente aos homens, porém, não está Conflito 0,1816 0,0085
ConformismolMedo do novo 0,1828 0,0012
muito tranqüila internamente.
Realização através do outro 0,1840 0,0019
Fator 8 - chamado de "Subrr.issão ao Submissão ao papel feminino 0,1853 0,0006
papel feminino", demonstra uma mulher que Realização Pessoal 0,1855 Q,0002
absorveu grande parte dos papéis exigidos à
mulher pela sociedade.
Fator 9 denominado de "Identificação
Tabela 3
-

com a mãe e conflito", revela uma mulher


que teve grande influência da mãe na infân­ ANÁLISE DE REGRESSÃO DOS FATORES
cia e adolescência, porém, não aceita muitas COM A CRIATIVIDADE FIGURAL
das atitudes tomadas por ela.
Descrição do Fator
Fator 10 chamado de "Intelectualiza­
-

ção", mostra uma pessoa centrada na vida Intelectualização 0,0344 0,0344


intelectual, preferindo sempre as tarefas mais Identificação com a mãe e
difíceis e buscando melhorar seu desempe­ Conflito 0,0605 0,0260
nho através de cursos de especialização. Originalidade/Conflito 0,0770 0,0165
Autoritarismo 0,0831 0,0061
Fator 11 denominado "Originalidade e
Submissão ao Papel Feminino 0,0881 0,0050
-

conflitos", revela uma pessoa que busca se.r Curiosidade 0,0926 0,0045
diferente o original nas suas ações, porém, Assertividade/Conflito 0,0969 0,0043
bastante intranqüila nestes seus comporta­ Realização através do outro 0,0983 0,0014
mentos. Conformismo/Medo do novo 0,1007 0,0024
Passividade/Conflito 0,1009 0,0002
Fator 12 -chamado de "conformismo e
medo do novo", mostra uma pessoa passiva
frente ao homem, obediente aos pais e pro­ Nas tabelas de 1 a 3 estão apresentados
fessores, convencional nos seus comporta­ os fatores que deram maiores contribuições à
mentos, com muito medo de arriscar. predição das realizações criativas, à predição
Os 12 fatores acima relacionados foram da criatividade verbal e da criatividade figu­
então usados na análise de regressão para a ralo
predição das variáveis: realizações criativas Na variável de realizações criativas, os
(reconhecidas publicamente), criatividade fatores encontrados como melhores predi­
verbal e criatividade figural. Estas duas últi­ tores, em ordem decrescente de importância,
mas variáveis se referem à criatividade em foram: passividade com conflito, originalida­
potencial, não necessariamente já reconheci­ de e conflito, autoritarismo, rigidez e con­
das publicamente. trole, identificação com a mãe e conflito,
submissão ao papel feminino, realização
através do outro, conformismo e medo do
Tabela I novo, intelectualização, curiosidade, e, por
último, realização pessoal.
ANÁLISE DA REGRESSÃO DOS FATORES Na variável de criatividade verbal, os
COM AS REALIZAÇÕES CRIATIVAS
fatores de preditores, em ordem decrescente,
Descrição do Fator Mudança R2 foram: passividade com conflito, curiosidade,
originalidade e conflito, assertividade com
Passividade/Conflito 0,2687 0,2687 conflito, intelectualização, rigidez e controle,
Originalidade/Conflito 0,4218 0,1531
identificação com a mãe e conflito, confor­
Autoritarismo 0,4543 0,0325
Rigidez e Controle 0,4929 0,0386 mismo e medo do novo, realização através do
Identificação com a mãe e outro, submissão ao papel feminino, e, por
Conflito 0,5031 0,0102 último lugar, realização pessoal.
Submissão ao papel feminino 0,5102 0,0071 A variável "criatividade figuraI" apre­
Realização através do outro 0,5124 0,0022
sentou como melhores preditores os seguin­
Conformismo/Medo do novo 0,5158 0,0034
Intelectualização 0,5163 0,0005 tes fatores, em ordem decrescente de im­
Curiosidade 0,5170 0',0007 portância: intelectualização, identificação
Realização Pessoal 0,5171 0,0001 com a mãe e conflito, originalidade e confli-

84 EDUCAÇÃO & REALIDADE,Porto Alegre, 11(2): 81-86, julldez. 1986


to, autoritarismo, submissão ao papel femini­ àrriscar, de tentar a ser reconhecida publi­
no, curiosidade, assertividade com conflito, camente, o que também contribui a ausência
realização através do outro, conformismo e do fator Rigidez e Controle. Esta mulher tem
medo do novo, e, por último, passividade mais facilidade de se realizar publicamente
com conflito. do que a mulher criativa verbal, comparan­
A correlação de Pearson demonstrou do-se a ordem dos fatores preditores.
maior significância (0,05) entre as caracte­ Os resultados acima encontrados mos­
rísticas criativas figurais e as realizações tram que a mulher criativa brasileira diverge
criativas do que entre as características cria­ da mulher criativa norte-americana na sua
tivas verbais e as realizações. maior identificação com a mãe, em uma
maior submissão e dependência à figura mas­
culina, e por colocar sua realização pessoal
em último lugar.
CONCLUSÕESEINTERPRETAÇÕES
É necessário que se faça um trabalho
Os resultados encontrados demonstram junto à mulher superdotada brasileira, seja na
que a mulher brasileira, que se realiza criati­ área criativa ou intelectual, no sentido de
vamente, é uma figura bastante conflituada. mostrar-lhe que é importante que ela busque
Ela se debate em ser ou não passiva, em ser a sua realização pessoal, que a sua intelec­
ou não original, em assumir ou não os papéis tualização, a sua curiosidade, a sua originali­
tradicionalmente impostos pela sociedade dade, devem ser desenvolvidas e que por isto
como femininos, que são o de conformismo, ela não deixará de ser feminina. É importante
o de submissão ao masculino, o de realização que a mulher superdotada brasileira possa
através dos outros. É uma mulher que se vislumbrar que ser intelectual e ser produtiva
identifica com a mãe, que tem medo de se não a impede de ser boa mãe, boa esposa ou
arriscar e deixar de ser feminina e reprime companheira.
assim grande parte de sua curiosidade e da
Os conflitos apresentados pelas mulhe­
sua vontade de se desenvolver intelectual­
res criativas, aqui estudadas, mostram a ne­
mente e pessoalmente. Os traços presentes
cessidade de se implementar junto aos pro­
de autoritarismo e rigidez a ajudam a efetuar
gramas de atendimento aos superdotados, um
algumas realizações criativas, mas o conflito
programa de apoio psicológico, de clarifica­
é marcante na sua personalidade, visualizan­
ção de valores. Os programas, para os super­
do quase como impossível combinar auto­
dotados existentes no Brasil, tendem a se fo­
realização com feminilidade.
carem, exclusivamente, no desenvolvirr:ento
A mulher criátiva na área verbal, ou se­
do potencial cognitivo do superdotado, dei­
ja, aquela que tem alto potencial criativo na
xando de lado o emotivo. Porém, se a mulher
área de expressão com palavras, apresenta
superdotada não for ajudada a superar as
também conflitos na sua personalidade. Ela
armadilhas que a sociedade traça para ela,
demonstra estar em conflito entre ser passiva
restringindo-a no seu desenvolvimento inte­
e ser assertiva e, apesar de curiosa intelec­
lectual e criativo, ela nunca conseguirá real­
tualmente, ela tem dúvidas quanto à sua ori­
mente se auto-realizar ou produzir.
ginalidade. Ela se identifica Icom a mãe, em­
bora em conflito com esta identificação, é Um trabalho junto aos pais de garotas
conformista, submete-se aos papéis tradicio­ superdotadas se faz notar como sendo de
nalmente impostos como femininos, se reali­ grande importância. Os pais devem questio­
za através dos outros e deixa para o último nar os papéis impostos pela sociedade à mu­
lugar a sua realização como pessoa. Apesar lher, e tentar educar suas fIlhas sem o pre­
de apresentar o fator rigidez, não apresenta o conceito do que deve ser o comp0rtamento
fator autoritarismo, que talvez a tivesse aju­ feminino ou masculino. O apoio que a família
dado a ter suas realizações reconhecidas pu­ puder dar à mulher superdotada, neste senti­
blicamente. do, vai lhe ser de grande ajuda para que esta
consiga superar as dificuldades que encon­
A mulher criativa figural, ou seja,
trará no futuro.
aquela que tem alto potencial criativo na área
da expressão com figuras ou desenhos, di­ As pessoas envolvidas na identificação e
verge um pouco da mulher criativa verbal. educação dos superdotados deverão estar
Ela é uma pessoa mais intelectualizada e cônscias da dificuldade de ser mulher e ser
apresenta uma identificação mais forte com a superdotada na nossa cultura. Desta maneira,
mãe. Ela é original, é curiosa, e também au­ deverão se utilizar de modos múltiplos de
toritária, se debatendo entre seguir ou não os identificação e também de atendimento, para
papéis impostos como femininos. Está, por­ que a mulher superdotada tenha compreen­
tanto, em conflito entre ser ou não ser asser­ são e apoio, e possa conseguir superar as
tiva, l'er ou não ser conformista, ser ou não barreiras colocadas há séculos no seu canoi­
ser passiva.O medo do novo a impede de se nho, conseguindo assim se auto-realizar.

EDUCAÇÁO & REALIDADE, Porto Alegre, 11(2): 81-86, julldez. 1986 85


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Este trabalho foi apresentado no VI Seminário Na­
gies and support systems in high and low creati­
cional sobre Superdotados, realizado em Belo Hori­
ve womem. Doctoral dissertation, University
zonte de 10 a 13 de setembro de 1985.
of Georgia.

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre,11(2): 81-86,juUdez. 1986


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do IIEllCOdtrG'de
deEd�

umprindo decisão do Seminário da informação, razão primeira da existência

C
de "Educação e Informação de uma revista.
Educacional" realizado em Flo­ Constatou-se, ainda, que embora muitos
rian.6polis em outubro de 1985, destes problemas sejam comuns a todas as
promovido pela Revista Perspectiva da Revistas, há diferenças segundo o vínculo de
UFSC e, fmanciado pelo CNPq, realizou-se origem.
em Campinas, em maio de 1986, o 11 En­ As Revistas ligadas às Universidades,
contro de Revistas Brasileiras de Educação. que divulgam sobretudo trabalhos produzi­
O evento foi organizado pelas revistas Edu­ dos por seus pesquisadores, acabam muitas
cação e Socidade (CEDES), Cadernos de vezes fechando-se em si próprias não dando
Pesquisa (Fundação Carlos Chagas) e ANDE conta das inovações ocorridas no campo da
(Associação Nacional de Educação), e finan­ Educação. Além disso, os entraves burocrá­
ciado peloCNPq, INEP e CAPES. Contou ticos, a falta de apoio financeiro e o pouco
com a participação de 28 Revistas - editadas valor atribuído aos períodos acadêmicos
em vários estados do Brasil, por diferentes científicos por partI! da Universidade, aca­
associações, entidades e universidades - e bam prejudicando a sua produção gráfica e
representantes das agências fmanciadoras periodicidade. Conseqüentemente, a distri­
que propõem políticas de apoio a edições do buição é precária e, com freqüência, lm:al.
campo educacional. Contou, ainda, com a As Revistas produzidas por associações,
presença de representantes da FAE e da Se­ centros de estudos e pesquisa e por funda­
cretaria de Planejamento do Ministério de ções, destinadas, em sua maioria, a um pú­
Educação. blico mais diversificado e de âmbito nacional,
O tema central do Encontro "A busca encontram muitas vezes problemas para ob­
(:e profissionalização das Revistas de Educa­ tenção de artigos de acordo com a sua linha
ção como questão de sobrevivência" orien­ editorial. Isto compromete a qualidade, já
tou os debates em torno de quatro questões: que nem sempre a colaboração espontânea é
1) a produção das matérias para publicação; de boa qualidade e há falta de recursos para
2) a editoração; 3) a distribuição e divulga­ pagamento de artigos encomendados. O re­
ção; e 4) as políticas de apoio das agências sultado é que também estas Revistas acabam,
financiadoras às Revistas de Educação. por usa vez, não refletindo as tendências
O quadro apresentado pelas Revistas, no mais significativas do pensamento educacio­
que se refere aos seus problemas específicos, nal brasileiro. A falta de recursos materiais
mostrou, de forma contundente, as inúmeras compromete a periodicidade e, em decorrên­
dificuldades que enfrentam. De um lado, as cia, a credibilidade das mesmas face aos assi­
dificuldades vão desde a obtenção de artigos nantes e a todo o sistema de distribuição.
de qualidade, até de infra-estrutura material Estas são apenas algumas das inúmeras
e de recursos humanos para a sua publicação. dificuldades levantadas pelas Revistas. Ten­
De outro, a distribuição precária acaba pre­ t"n00 int",rferir ne�se (jllllnro, no sentido de
judicando a socialização do conhecimento e transfornlá-Io para fazer frente às demandas

EDUCAÇÃO & REALIDADE, Porto Alegre, 1 1(2): 87 - 88; juUdez. 1986 87


e exigências atuais da Educação brasileira e à vulgue os resultados mais expressivos -ia
necessidaJc de fortalecer o espaço de crítica produção acadêmica para outros púhlicos.
da produção intelectual, o II Encontro apre­ - Revisão de critérios das agências fi­
sentou as seguintes propostas: nanciadoras, no sentido de vincular dotação
de verbas à compra de assinaturas, possib"ili­
- Criação de um grupo de trabalho para tando uma melhor distribuição (fazer a re­
examinar a possibilidade de ser instituído um vista chegar às bibliotecas).
programa de apoio aos periódicos de Educa­ - Viabilização da venda das Revistas
ção. Neste grupo estariam representadas em encontros, congressos, através de stands
agências de governo e editores de periódicos. organizados (verba de dotação para distri­
O grupo foi constituído pelas Revistas: buiçii.o através de aluguel de stand, paga­
Perspectiva - UFSC,.Educação e Sociedade mento de pessoal para venda de assinaturas,
- CEDES, Cadernos de Pesquisa - FCC etc.).
e ANDE - Associação Nacional de Educa­ - Priorização, por parte das agências fi­
ção, e Agências financiadoras: TNEP, FAE, nanciadoras, no que se refere às publicações
CNPq, FINEP, FAPESP, PROED/SESU. destinadas aos professores do ensino de 1 ç
- Organização pelo grupo de trabalho, grau, às Revistas ligadas a Instituições que
de uma reunião dos Editores, durante a IV atuam na área de Educação.
CBE, com o objetivo de colocá-los a par do - Recomendação à FAE, CEDATE e
andamento dos trabalhos. SESU, para que façam assinaturas de mais
- Organização de um Caderno, conten­ Revistas de Educação para distribuir às es­
do a descrição das revistas brasileiras em colas normais e de 12 e 22 graus.
educação, para ampla distribuição junto às - Preocupação com as condições de
escolas. "produção de leitura" dos professores, prin­
- Revisão elos crJ.térios das agências fi­ cipalmente os de 12 e 22 graus de modo que:
nanciadoras, à luz das reais necessidades das • sejam repensadas as suas condições
revistas, nas etapa., de produção e circulação de trabalho e o tempo a ser dedicado
em função de pílblicos específicos. ao estudo, à pesquisa e à leitura;
- Criação de um programa de apoio às • exista uma política voltada à instala­
publicações científicas de Educação, visando: ção de infra-estrutura para organiza­
• integrar o apoio à produção de perió­
ção dos materiais escritos, no âmbito
dicos ao da distribuição e divulgação; das escolas de 12 e 22 graus, que pro­
• contemplar os vários públicos da picie a organização desses materiais
área: através de bibliotecários.
- professores de 12 e 'f2 graus;
- Realização do 111 Encontro Brasileiro
- ensino superior; de Revistas de Educação, em 1987, em data e
- técnicos de órgãos oficiais, etc.
local a serem definidos pelo Grupo de Tra­
- Dotação de recursos das agências fi- balho. De preferência, esse 111 Encontro de­
nanciadoras para o Projeto do INEP, visando verá ocorrer fora do eixo Rio-São Paulo,
a criação de uma revista para os professores promovido por Revistas diferentes da3 que
do ensino de 12 grau com distribuição ampla organizaram o 11 Encontro.
para todo o território nacional.
- Criação de um programa pelo MEC, Ficou decidido que o 111 Encontro reali­
através do INEP, de apoio . às Revistas de zar-se-á em Belo Horizonte, no final de
Educação e Ensino, com recursos suficientes 1987, durante 3 dias, sob a coordenação de
para atender às necessidades de produção, Educação em Revista e AMAE Educando.
editoração, divulgação e distribuição dos pe­
riódicos dessas áreas.
Campinas, 23 de maio de 1986
- Proposição de que se faça anual ou
Goiânia, 04 de setembro de 1986.
bienalmente uma edição condensada, que di-

Revisão, Composição e arte-final:


ARTEXTO: (054)222-6223
R. Luiz Michielon, 853 - Sala 4 - Caxias do Sul- RS

Impressão e acabamento:
Gráfica da UCS

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