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EDGAR JORGE KOLLING

MIGUEL ENRIQUE STÉDILE


PAULO ALENTEJANO
RAFAEL LITVIN VILLAS BOAS
SILVIA BEATRIZ ADOUE (ORGS.)

MOVIMENTOS
POPUL ARES E
UNIVERSIDADES
Edgar Jorge Kolling
Miguel Enrique Stédile
Paulo Alentejano
Rafael Litvin Villas Boas
Silvia Beatriz Adoue (orgs.)

MOVIMENTOS POPU L ARES


E U NIVERS IDADES

1ª edição

OUTR AS EXPRESSÕES

São Paulo • 2018


Copyright © 2018, Outras Expressões

Revisão: Nilton Viana e Lia Urbini


Diagramação e capa: Zap Design

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: abril de 2018

OUTR AS EXPRESSÕES
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S U MÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................... 7

A EXPERIÊNCIA DAS JORNADAS UNIVERSITÁRIAS DE


APOIO À REFORMA AGRÁRIA ................................................................................ 15
Os organizadores

ANÁLISES DE CONJUNTURA E DESAFIOS


DA REFORMA AGRÁRIA POPULAR

FUTURO DA INCERTEZA BRASILEIRA................................................................. 23


Marcio Pochmann

REFORMA AGRÁRIA POPULAR: BALANÇO


DA CONSTRUÇÃO, TEORIA E PRÁTICA............................................................... 37
Nivia Silva

CONSTRUIR UM NOVO PROJETO DE PAÍS A PARTIR


DOS INTERESSES DO POVO BRASILEIRO........................................................... 49
Neuri Rosseto

EXPERIÊNCIAS DAS JORNADAS UNIVERSITÁRIAS


DE APOIO À REFORMA AGRÁRIA

O PAPEL DO MOVIMENTO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DA


UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL............................................... 57
Ana Cristina Hammel e Alex Verdério

O MST E A PAULATINA OCUPAÇÃO DO “LATIFÚNDIO


DO SABER E DO CONHECIMENTO”: O CAMINHAR COM AS
UNIVERSIDADES PÚBLICAS NO CEARÁ ............................................................. 87
Adelaide Maria Gonçalves Pereira, Celecina Maria de Veras Sales, Célia Maria
Machado de Brito, José Ernandi Mendes, Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo
Lia Pinheiro Barbosa, Liana Brito de Castro Araújo e Maria Inês Escobar
UNIVERSIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS NO SUDESTE DO
PARÁ: A CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NA UNIFESSPA ......... 105
Ailce Margarida Negreiros Alves, Fernando Michelotti, Glaucia de Sousa Moreno
Haroldo Souza e Jorge Luís Ribeiro dos Santos

ENFF UMA ESCOLA EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO ................................. 119


Djacira Araújo

A EXPERIÊNCIA EM CONSTRUÇÃO DA RELAÇÃO DA UNB


COM OS MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO................................................... 129
Mônica Castagna Molina, Rafael Villas Bôas, Felipe Canova Gonçalves
Luis Antônio Pasquetti

ANEXO

CARTA DO III ENCONTRO NACIONAL DE PROFESSORES(AS)


UNIVERSITÁRIOS COM O MST.............................................................................. 149
APRES ENTAÇ ÃO

Este livro se situa no cruzamento da história de longo prazo,


expressa nas relações estabelecidas do Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Terra (MST) com professores, professoras
e instituições universitárias brasileiras ao longo das três últimas
décadas, com as agruras da conjuntura, num momento em que
a sociedade brasileira foi sacudida por um golpe político-jurí-
dico-midiático que afastou do governo central o Partido dos
Trabalhadores (PT) e o entregou a uma coalizão de forças con-
servadoras lideradas pelo Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB).
Embora a iniciativa do MST de fortalecer os vínculos com
os professores e professoras universitários(as) que lutam pela re-
forma agrária, de forma articulada em esfera nacional, tenha se
iniciado há cinco anos, com a realização do I Encontro Nacional
dos(as) Professores(as) Universitários(as) com o MST, as relações
dessa organização com professores, professoras e universidades
brasileiras remontam aos anos 1990, quando se iniciaram os pri-
meiros cursos desenvolvidos em parceria entre o MST e univer-
sidades no Brasil, configurando uma relação entre movimen-

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tos sociais e universidades públicas essencialmente distinta das
parcerias público-privadas que têm sido uma das formas mais
perversas de privatização dos bens e serviços públicos no Brasil
nos últimos anos.
As questões que nortearam a realização do III Encontro
Nacional dos(as) Professores(as) Universitários(as) com o MST
atravessam os diversos textos que compõem este livro, e foram
as seguintes: (1) aprofundar o debate sobre a questão agrária e os
desafios de construção da reforma agrária popular no momento
atual; (2) analisar a crise da função social da universidade públi-
ca e o papel da relação com os movimentos sociais de trabalha-
dores na construção do seu futuro; (3) fazer um balanço proje-
tivo das atividades de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas
na relação entre universidades e MST, especialmente nas áreas
da questão agrária, agroecologia, cultura e educação; (4) socia-
lizar e refletir coletivamente sobre a III Jornada Universitária
de Apoio à Reforma Agrária extraindo lições para continuidade
dessa iniciativa; (5) discutir como potencializar a atuação dos
movimentos sociais de trabalhadores nas instituições de edu-
cação superior; (6) definir linhas de ação para fortalecimento
desta articulação e discutir possibilidades de redes de intercâm-
bio entre cursos, grupos de pesquisa e militância do MST nos
estados; (7) rememorar o massacre de Eldorado dos Carajás e
denunciar a continuidade da violência e impunidade.
No bloco 1 estão os textos que relatam os debates em gru-
po realizados durante o Encontro e as palestras dos convidados
para as mesas redondas. O bloco 2 apresenta algumas das par-
cerias estabelecidas entre o MST e as universidades e que foram
apresentadas nos grupos temáticos.
Tais desafios da conjuntura se juntam a outros, retratados
no primeiro bloco deste livro, que apontam para a desconstru-
ção dos direitos sociais no Brasil e o favorecimento cada vez

8
mais acentuado do capital financeiro e das grandes corporações
transnacionais que dominam a nossa economia e, em especial, a
nossa agricultura.
É neste sentido que Marcio Pochmann denuncia as ações de
desmonte do incompleto estado de bem-estar social no Brasil,
com a forte redução dos gastos sociais em favor dos interesses
rentistas e aponta as possibilidades alternativas de construção
de uma sociedade baseada no conhecimento intensivo e na soli-
dariedade social, no contexto de uma competição internacional
cada vez mais acirrada.
Nivia Silva e Neuri Rosseto nos trazem os desafios para a
construção da reforma agrária popular (RAP) no Brasil. Nivia
Silva aponta as necessárias articulações entre agroecologia, edu-
cação e formação política como base para a construção da RAP,
diante dos desafios técnicos, econômicos e ideológicos decor-
rentes da hegemonia do agronegócio no campo brasileiro. E os
desafios para envolver os trabalhadores da cidade na luta pela
reforma agrária no contexto atual.
Neuri Rosseto aponta a RAP como a síntese da estratégia
política do MST diante do atual momento da luta de classes no
Brasil, considerando que as possibilidades de uma reforma agrá-
ria clássica se esgotaram diante da hegemonia do agronegócio,
expressão da profunda articulação da grande propriedade fun-
diária com o grande capital transnacional. Diante disso, a RAP
se configura como estratégia de acúmulo de forças, a partir da
transformação dos assentamentos rurais em territórios da agri-
cultura camponesa baseada na agroecologia, em contraposição
ao agronegócio.
Os textos do bloco 2 apresentam experiências mais recen-
tes – como a da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS),
de enorme potência transformadora, inclusive pelo fato do cam-
pus de Laranjeiras do Sul desta Universidade situar-se dentro da

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área de um assentamento rural – e também experiências de mais
longo prazo, como o caso do Ceará, onde há décadas o MST
e professores e professoras das universidades federais e estadu-
ais daquele estado têm estabelecido ações educativas conjuntas.
São ainda apresentadas as relações entre o MST e a Universi-
dade de Brasília (UnB) – em especial com o campus de Planal-
tina – e com a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(Unifesspa­), outra jovem universidade brasileira, mas que, neste
caso, representa o desdobramento de ações que já vinham se de-
senvolvendo quando a Unifesspa ainda era um campus da Uni-
versidade Federal do Pará (UFPA).
Por fim, também é relatada no bloco 2 a experiência da Es-
cola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), escola de formação
política do MST. Foi justamente na ENFF que ocorreu em no-
vembro de 2016 um dos episódios que retrata, de forma dramá-
tica, os desafios da conjuntura atual para os movimentos popu-
lares e seus aliados: a tentativa de invasão da ENFF pela polícia
civil de São Paulo.
A pretexto de capturar dois militantes do MST com man-
dados de prisão expedidos pela Justiça do Paraná, duas escolas
do MST foram atacadas pela polícia civil dos estados do Mato
Grosso do Sul e de São Paulo. No caso de Mato Grosso do
Sul, um centro de formação foi cercado por horas pela polícia.
No caso de São Paulo o episódio foi ainda mais grave, pois os
policiais, sem mandado judicial específico, invadiram a ENFF
atirando (com balas de verdade) e por pouco não houve uma
tragédia no local, onde duas pessoas foram presas, uma mulher
e um idoso que sofre de mal de Parkinson, e várias outras agre-
didas. A ação – típica das que as polícias brasileiras realizam
cotidianamente nas favelas e comunidades populares das perife-
rias das grandes cidades brasileiras – foi prontamente rechaçada
por centenas de organizações políticas e movimentos sociais do

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mundo todo, graças à ampla rede de solidariedade que o MST e
a ENFF – onde estudam todos os anos centenas de latino-ame-
ricanos, africanos e asiáticos – cultiva, por meio de seu trabalho
em defesa da reforma agrária e da democratização da terra e da
sociedade brasileiras.
Estas ações de criminalização de movimentos sociais como o
MST têm se intensificado após o golpe de 2016, numa perversa
articulação entre polícia, sistema judiciário e mídia, que mani-
pulam fatos e dados para caracterizar mobilizações voltadas para
a democratização da terra como ações criminosas. Em 2016, dez
militantes do MST foram presos nos estados de Goiás e Para-
ná sob acusação de pertencer a uma “organização criminosa”.
Casos de infiltração de policiais à paisana em manifestações e
assembleias estudantis e de trabalhadores também têm se mul-
tiplicado, demonstrando que os velhos métodos repressivos tão
comuns na ditadura empresarial-militar que vigorou nas déca-
das de 1960 a 1980 no Brasil estão mais presentes que nunca.
No ano de 2017, o sistema do aparato coercitivo, jurídico e
policial passou a direcionar as operações “supostamente” contra
a corrupção também contra as universidades públicas brasileiras
e institutos federais. Táticas do manual da operação Lava Jato
foram aplicadas com todos ingredientes de espetacularização
contra reitores e gestores do ensino superior.
No dia 16 de agosto de 2017 os funcionários do Instituto
Federal Catarinense campus Abelardo Luz foram surpreendidos
por uma ação do Ministério Público e da Polícia Federal, au-
torizada pela 1ª Vara da Justiça Federal de Chapecó. Segundo
a decisão do tribunal, a medida buscou, supostamente, apurar
a intervenção do MST nas atividades da instituição. Com esse
argumento, foram apreendidos computadores pessoais, telefones
celulares, e solicitada a quebra de sigilo telefônico e de correios

11
eletrônicos enviados e recebidos pelos servidores. Segundo nota
divulgada pelo MST:
No Brasil há somente duas unidades de institutos federais localiza-
das em áreas de Reforma Agrária. Desde o início da implementação
do campus em Abelardo Luz, foram inúmeras denúncias infundadas,
parte de uma ofensiva que visa retirar o IFC do meio rural. Neste
mesmo sentido, nas últimas décadas, milhares de escolas do campo
têm sido fechadas, demonstrando a negação ao direito à educação
aos trabalhadores e trabalhadoras do campo e a estratégia de invia-
bilizar seu modo de vida.1

“Minha morte foi decretada quando fui banido da universi-


dade” foi o bilhete encontrado no bolso da jaqueta que o reitor da
Universidade Federal de Santa Catarina Luiz Carlos Cancellier
de Olivo, sessenta anos, vestia sobre uma camiseta da UFSC,
após ele ter cometido suicídio, no dia 2 de outubro de 2017. A
Operação Ouvidos Moucos, da Polícia Federal, decretou a pri-
são do reitor, que durou um dia, e foi acompanhada da restrição
judicial que limitou a entrada dele ao campus por apenas algu-
mas horas por dia. Tragicamente, Cancellier, que se considerou
exilado, retornou à universidade dentro de um caixão, recebido
por uma multidão que protestava contra o abuso de operações
judiciais e policiais que desrespeitam direitos básicos de defesa e
expõem cidadãos à perversidade dos holofotes midiáticos.
No dia 6 de dezembro de 2017 a Polícia Federal realizou
a operação Esperança Equilibrista na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) para apurar supostos desvios de recur-
sos na construção do Memorial da Anistia Política do Brasil. A
ação foi realizada com apoio da Controladoria-Geral da União
(CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Na operação,
1
Extraído do sítio eletrônico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra no dia 15 de janeiro de 2018. Disponível em: <http://www.mst.org.
br/2017/08/18/mst-e-contra-a-criminalizacao-do-instituto-federal-catarinense-
-campus-abelardo-luz.html>.

12
Jaime Arturo Ramirez e Sandra Regina Goulart de Almeida,
respectivamente reitor e vice-reitora da instituição, foram alvos
de condução coercitiva pela PF. Todas as ações citadas foram
fortemente contestadas pela comunidade acadêmica brasileira e
pelos movimentos sociais, e as vítimas de abuso de poder rece-
beram a solidariedade de muitas associações de trabalhadores de
diversos setores.
O discurso privatista da gestão atual do Ministério da Edu-
cação, que procura carimbar o ensino público superior brasilei-
ro como ineficiente e elitista, encontrou no clima desenvolvido
pela Lava Jato e pela mídia empresarial brasileira, uma maneira
de desqualificar o trabalho de universidades e institutos fede-
rais, caracterizando-os como corruptos. A medida, somada ao
progressivo corte de investimentos em ciência e tecnologia no
país, tem como consequência a naturalização da ideia de que a
solução contra a precarização dessas instituições passa por medi-
das como a cobrança de mensalidades e abertura para parcerias
público-privadas.
Os textos deste livro, ao combinar reflexões sobre os desa-
fios conjunturais com reflexões sobre as relações entre o MST
e universidades brasileiras, trazem importantes elementos para
pensar as tarefas históricas da classe trabalhadora brasileira do
campo e da cidade.

13
A E XPERIÊNCIA DA S
JORNADA S U N IVERS ITÁRIA S DE
APOIO À RE FORMA AGR ÁRIA

Os organizadores

Em 2017 mais de cinquenta universidades e institutos fede-


rais brasileiros realizaram, de forma simultânea e articulada, en-
tre abril e maio, a V Jornada Universitária de Apoio à Reforma
Agrária. A ideia de realização das jornadas surgiu em 2012 du-
rante reunião dos professores universitários com o MST, como
forma de demonstração política, científica e cultural do apoio
de inúmeras universidades e institutos federais, por meio de fa-
culdades, grupos de pesquisa e programas de extensão à luta
pela reforma agrária no Brasil como medida emblemática para
a consolidação da democracia e diminuição da desigualdade em
território brasileiro.
O período de abril e maio foi escolhido como o mês de rea-
lização das jornadas simultâneas porque é o mês em que come-
moramos o Dia Internacional de Luta pela Reforma Agrária,
em 17 de abril, data em que ocorreu, em 1996, o massacre de
Eldorado dos Carajás, que vitimou 21 trabalhadores rurais e se-
quelou gravemente mais de meia centena de camponeses. Nesse
mês os movimentos sociais do campo brasileiro fazem diversas
ações de luta para pressionar os governos estaduais e federal a

15
cumprir a Constituição Federal de 1988 e realizar a reforma
agrária em terras que não cumprem a função social prevista no
código legal.
A grande mídia empresarial apelidou a jornada de lutas de
“Abril Vermelho” como tática de desqualificação prévia da legi-
timidade das lutas e da causa perante a opinião pública. Avalian-
do as consequências funestas do bloqueio midiático – que relega
os movimentos sociais e suas lutas à condição de invisibilização
ou de criminalização –, os professores de ensino superior decidi-
ram se manifestar em coro uníssono no mesmo período, como
atitude em defesa da democracia, do direito à manifestação e à
luta social, ao lado dos trabalhadores rurais sem terra, quilom-
bolas, indígenas e outros tantos segmentos dos povos do campo.
Iniciada em 2013, as JURAs tiveram grande repercussão nas
universidades públicas federais e estaduais de diversos estados, e
em muitos casos as ações transbordaram para fora dos campi, se
espalhando por escolas públicas, praças, casas de cultura, acam-
pamentos e assentamentos da reforma agrária e quilombos. Os
temas mais debatidos nas programações das JURAs espalhadas
pelo Brasil foram, até o momento: violência no campo; sobera-
nia e segurança alimentar; a campanha contra os agrotóxicos;
agroecologia; e comunicação e cultura.
Foi com o intuito de difundir a riqueza dessas experiências
que no III Encontro Nacional dos Professores com o MST rea­
lizamos um amplo mapeamento sobre a diversidade de ações
realizadas durante as jornadas, para compartilhar o amplo leque
de ações que podem ser desenvolvidas dentro e fora das univer-
sidades e institutos.
Na sistematização que realizamos, a primeira questão de des-
taque são as diferentes providências organizativas no momento
preparatório das JURAs. Há estados em que as articulações têm
início com meses de antecedência e envolvem diversas universi-

16
dades do estado e o MST. A tentativa, nesses casos, é de integrar
o planejamento das ações em cada universidade numa única jor-
nada, tornando a programação bastante capilarizada no territó-
rio e diversificada em termos de formatos e temas abordados.
A reflexão prévia sobre a forma das ações e a relação delas
com o público a ser atingido é uma questão que apareceu no
relato das experiências. Foi avaliado que há formas ainda pouco
exploradas na máxima potência, como as ações culturais – mos-
tras audiovisuais, festivais musicais e de poesia, apresentações
teatrais, cortejos, oficinas de artes etc. – e debates em grupos,
e outras de reconhecida importância mas que muitas vezes se
mostraram com formato desgastado frente a ressonância ao pú-
blico esperado, como as conferências e mesas de debates com
poucos especialistas discorrendo sobre temas por longo tempo.
Sobre o público a ser atingido, foi consensual a avaliação de
que ainda estamos contemplando prioritariamente o público
dos cursos mais afinados com a questão agrária e a educação do
campo, enquanto temos dificuldade de ampliar a dimensão do
público-alvo para estudantes e professores de outros cursos, bem
como para a comunidade em geral. Uma das formas apontadas
para superação desse impasse é ampliar o raio de abrangência
das JURAs realizando atividades fora das universidades, nos es-
paços de movimentos sociais do campo e na periferia urbana,
colocando o público interessado em movimento e em contato
com outras realidades.
Diante de experiências que alegaram dificuldades financeiras
e logísticas, outros relatos informaram articulações bem sucedi-
das com sindicatos, associações e outras organizações da socie-
dade civil que tenham interesse em apoiar e participar ativamen-
te das JURAs.
Do ponto de vista metodológico, compreendemos que exis-
tem dois grandes conjuntos de ações organizadas pelas JURAs

17
nos estados, a saber: as ações estáticas, compostas por aquelas
que podem ser realizadas em espaços fixos e que serão vistas
pelo público independentemente da presença das pessoas que
produziram as intervenções, como por exemplo, exposições fo-
tográficas, painéis e murais, cartazes e faixas, monumentos, po-
mares, plantio de árvores e nomes dos prédios; e as ações di-
nâmicas, que se constituem nos métodos que dependem das
pessoas que produzem a intervenção no espaço e tempo em que
durar a intervenção, como por exemplo as mesas temáticas, as
conferências, os testemunhos, os lançamento de livros, as fei-
ras de orgânicos/agroecológicos, as aulas públicas, as saídas de
campo, ações que envolvem as linguagens artísticas – cinema,
teatro, música, capoeira, dança, saraus, festas, cortejos –, arti-
culação com marchas e acampamentos com estudantes e movi-
mentos sociais.
Muitos desdobramentos das JURAs se tornaram ações per-
manentes no decorrer dos anos em que acontecem as jorna-
das, ou se mostraram ações potenciais, tais como: novas disci-
plinas elaboradas e implementadas a partir do intercâmbio de
experiên­cias entre grupos de pesquisa e movimentos sociais e
de acordo com a demanda dos estudantes e movimentos; novos
projetos de extensão/pesquisa a partir da percepção das deman-
das emergentes dos movimentos sociais do campo e da forma
como a universidade pode colaborar com as pautas; a retomada
dos cursos de Realidade Brasileira a partir da obra dos principais
intérpretes da formação brasileira, para fortalecer o processo de
formação da juventude brasileira; e a intensificação e multipli-
cação dos Estágios Interdisciplinares de Vivência (EIVs) como
iniciativa que fortalece os vínculos entre movimento estudantil
e movimentos sociais do campo.
No âmbito dos desafios relacionados pelos protagonistas das
experiências das jornadas nos estados, foram listados: a neces-

18
sidade de capilarizar para dentro das universidades e expandir
para fora delas a ação das jornadas; a importância de fortalecer a
articulação do debate sobre a relação campo/cidade; a possibili-
dade de expansão das JURAs de modo que elas acompanhem as
jornadas de luta que ocorrem no decorrer do ano. Foi aventada
a criação de uma rede regional para fortalecer as JURAs com
possibilidade de divisão de custos das atividades e circulação de
palestrantes; a necessidade de fortalecer a articulação de apoios
sindicais; e, por fim, o desafio de fortalecer a presença de estu-
dantes não apenas como público das jornadas, mas no protago-
nismo do processo organizativo das JURAs.
O entendimento consensual entre todos os realizadores das
JURAs presentes no III Encontro é que a responsabilidade pela
organização das JURAs é da comunidade acadêmica (professo-
res, estudantes e servidores técnicos que apoiam a luta pela re-
forma agrária no Brasil), com o apoio, mas não o protagonismo,
dos movimentos sociais, pois compreendemos que no mesmo
período em que as jornadas são realizadas os movimentos sociais
do campo estão protagonizando as diversas lutas em defesa da
reforma agrária nos estados da federação.

19
ANÁLI S ES DE CON J U NTU R A
E DESAFIOS DA RE FORMA
AGR ÁRIA POPU L AR
FUTU RO DA INCERTE Z A B R A S ILE IR A

Marcio Pochmann1

Neste início do século XXI, a economia brasileira encontra-


-se diante de duas visões distintas. De um lado, aquela que re-
sulta da identificação do Brasil do presente como resultado dos
problemas do passado e, de outro, a localização dos problemas
no presente como entraves ao futuro superior.
Como se sabe, a ascensão do provisório governo Temer resul-
tou justamente da perspectiva neoliberal de que tudo está errado
no Brasil. A perspectiva do colonizado pela descrença generali-
zada no poder transformador do povo local segue alimentando
parte importante da elite nacional, capaz de contaminar a socie-
dade com a ideia de que o bom mesmo encontra-se fora do país.
Assim, o ministério das Relações Exteriores passa atualmen-
te a abandonar o sentido da soberania nacional, promovendo
rapidamente a subordinação e passivação junto aos interesses es-
trangeiros dominantes. O governo Temer manifesta-se também

1
Professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindi-
cais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.

23
favorável à venda das empresas públicas ao setor privado, sobre-
tudo internacional.
Nesta toada, o ouro da coroa, como a Petrobras, Eletrobrás
e outras, irão junto com a água suja da corrupção. É por con-
ta disso que as indicações de expoentes do governo Fernando
Henrique Cardoso, como Gustavo Loyola e Pedro Malan, que
bradavam nos anos de 1990 que, no Brasil, até o passado é incer-
to, têm sido recuperadas por jornalistas entreguistas e políticos
neoliberais para sustentar o seu descrédito no futuro do Brasil.
O desfazimento do passado deve vir logo, anunciando re-
correntemente que os governos liderados pelo PT desde 2003
foram trágicos para o país. Ademais, a própria Constituição Fe-
deral de 1988 não mais poderia se manter ativa e altiva.
O retorno ao século XIX se faria necessário quando a socie-
dade dos 2/3 era a ideal, segundo a perspectiva das velhas elites
da época. Como somente 1/3 da sociedade cabia no orçamento
público, era isso o possível para o Brasil do passado.
Ao contrário disso, havia a perspectiva de que o enfrenta-
mento dos problemas atuais, como a desigualdade derivada do
baixo dinamismo econômico e da péssima distribuição de renda
e de oportunidades, apontaria para o porvir superior. Neste sen-
tido, a insistência na inclusão de toda a sociedade no orçamento
público, por exemplo, levaria inexoravelmente ao encurtamento
do espaço fiscal para a cobertura plena dos interesses dos ricos.
Ao contrário do ajuste fiscal proposto pelo governo Temer, que
busca conter as despesas primárias (saúde pública, o Sistema Úni-
co de Saúde, a Previdência e a Assistência Social e outras) ao ritmo
da inflação passada, regredindo a sua participação relativa à evo-
lução do Produto Interno Bruto, o caminho seria outro. Sem isto,
as despesas financeiras que alimentam a renda dos ricos na forma
dos juros da dívida pública se manterão livres, com crescimento
acima da inflação, com maior espaço no orçamento público.

24
Não causa espanto, portanto, revelar que neste início do se-
gundo semestre de 2016 a desesperança se generaliza em torno
do provisório governo Temer, não apenas no âmbito da política
e sociedade, mas também na economia, e por isso o tema da
saída da recessão econômica tem sido colocado em pauta. Sobre
isso, aliás, há que se questionar, inicialmente, a respeito de qual
recuperação econômica se está mencionando.
Ao se analisar a trajetória de longo prazo da economia bra-
sileira, identificam-se dois tipos principais de recuperação após
ambientes recessivos. De um lado, a recuperação simples que
permite ocupar a capacidade ociosa gerada pela recessão ante-
rior, desapegada da ampliação dos investimentos. Neste senti-
do, a recuperação da economia que possibilita elevar o nível de
renda sem favorecer, contudo, o aumento da capacidade de pro-
dução. O resultado é a mera ocupação da capacidade produtiva
ociosa desprovida da possibilidade de fazer com que o nível de
atividade siga crescendo sustentadamente no período seguinte.
O resultado é o baixo dinamismo e a estagnação da renda por
habitante.
De outro lado, a recuperação complexa que favorece tanto
a ocupação da capacidade ociosa existente como a elevação da
taxa de investimentos. Assim, a saída da recessão compreende as
bases de um novo ciclo de expansão sólido, distante da situação
de baixo dinamismo econômico ou mesmo de estagnação da
renda per capita.
Nas quatro recessões as quais o Brasil esteve submetido, per-
cebe-se que somente uma delas pode ser definida por comple-
xa. Diante da profunda recessão no início da década de 1930,
o governo provisório de Getúlio Vargas estabeleceu uma nova
política econômica e social que reverteu a tendência de queda da
produção, ao mesmo tempo em que configurou o novo ciclo de
crescimento de longo prazo da produção nacional.

25
Nas recessões de 1981 a 1983 e de 1990 a 1992, a recuperação
econômica foi simplesmente a ocupação da capacidade ociosa a
partir da melhora do setor externo, mas distante de uma reto-
mada consistente dos investimentos. O que se assistiu de recupe-
ração iniciada tanto em 1984 como em 1993 foram dois perío­
dos seguidos de baixo dinamismo econômico, apontando para
prevalência da estagnação da renda per capita nacional.
A recessão de 2009 foi estancada mediante a adoção de po-
lítica econômica anticíclica de apoio ao mercado interno, cujo
objetivo associado era o de inaugurar um novo ciclo de expan-
são dos investimentos. Pela reorientação da política econômica
e social desde 2011, contudo, o investimento não voltou a ser
acelerado, o que levou o país novamente ao baixo dinamismo da
produção e à estagnação da renda per capita nacional.
Para a recessão atual, que se iniciou em 2015, constata-se
fundamentalmente a reversão puxada pelo setor externo frente à
desvalorização cambial. Diante do quadro recessivo, sobretudo,
no mercado interno, teria o setor externo capacidade suficien-
te para indicar a saída econômica, como verificado em 1984 e
1993? Essa é uma aposta que somente os próximos meses pode-
rão confirmar ou não. De todo modo, se isso vier a acontecer
de fato, o Brasil estará, possivelmente, reafirmando, mais uma
vez, o padrão de recuperação econômica simples, que desacom-
panhado da elevação da taxa de investimento tende a promover
tão somente o baixo dinamismo e a estagnação da renda per
capita nacional.
Neste sentido, o Brasil, que era visto desde a primeira metade
do século passado como país do futuro, passa a ser identificado
pela visão neoliberal como o de passado incerto. A perspectiva
do austríaco Stefan Zweig apresentada em 1941 sobre o país do
futuro por conta do vigor de suas transformações e a diversidade
do seu porvir estaria colocada cada vez mais em dúvida.

26
Mas Stefan Zweig não estaria errado, posto que entre os anos
de 1890 e 1980, por exemplo, o Brasil foi o segundo país que
mais cresceu no mundo. Somente nas três décadas após a Se-
gunda Guerra Mundial a economia brasileira registrou desem-
penho comparável à China atual.
Com todo este desempenho, a aposta no futuro brilhante
para um país com dimensão continental, riqueza natural e um
povo dinâmico e promissor seria certeira. Tudo isso, ainda que
indispensável, não parece ter sido suficiente, especialmente para
os neoliberais que seguem desacreditando nos brasileiros.
Diante de um futuro incerto, a recuperação econômica segue
posta em dúvida. Assim, o Brasil se mantém atrelado à lógica do
“curto prazismo”, sem explicitar um projeto de desenvolvimento
capaz de conformar uma nova maioria política que lidere o ca-
minho em direção ao futuro superior.

Uma nova maioria política para o desenvolvimento de


longa duração
O processo democrático das três últimas décadas não per-
mitiu conformar uma nova maioria política sólida e duradoura,
capaz de sustentar um ciclo de expansão econômica, conforme
observado anteriormente entre as décadas de 1930 e 1970. Des-
de a adoção das políticas de ajuste exportador no início dos anos
1980 que transcorreu o definhamento da antiga maioria política
desenvolvimentista, suplantada apenas pontual e parcialmente
em momentos críticos como na Constituição Federal de 1988
em transição da ditadura militar, na estabilização monetária
frente ao mais longevo período de superinflação (1979-1994) e
na associação ao ciclo de commodities diante da crise do Plano
Real (1998-2008).
Diante do desafiador cenário mundial atual de novas cen-
tralidades geoeconômicas dinâmicas, a formatação de maioria

27
política se impõe. Esse acontecimento deveria se combinar com
o limiar da fase de crescimento considerável conduzido, por um
possível longo período, cujas forças políticas a serem recompos-
tas necessitam estar atentas às novas oportunidades internacio-
nais.
Isso implica reconsiderar os equívocos de condução da polí-
tica econômica a partir da crise da dívida externa (1981-1983).
A imposição imediata da queda na taxa de lucro do conjunto do
setor produtivo se manteve, sobretudo, pelas medidas macroe-
conômicas adotadas de esvaziamento do mercado interno em
prol da alta exportação e baixa inflação.
Por mais de duas décadas, o Brasil transferiu uma parcela
do seu produto interno ao pagamento da dívida externa, cuja
consequência maior foi a interrupção da mobilidade social ele-
vada, principal charme do capitalismo urbano-industrial. Nesse
contexto, as alternativas implementadas por acordos políticos de
ocasião buscaram compensar a redução da taxa de retorno dos
investimentos produtivos por meio da crescente valorização dos
improdutivos ganhos financeiros.
Assim, a região foi modificando a macroeconomia da indus-
trialização para a da financeirização da riqueza, com presença
permanente das políticas de ajustes fiscais (privatização do setor
público, elevação dos tributos e estagnação ou redução dos gas-
tos sociais). Nos anos 1990, por exemplo, a sustentação do custo
ampliado com o pagamento do endividamento público, deriva-
do de altas taxas de juros reais, se mostrou capaz de repor aos
grupos econômicos o retorno perdido pelo fraco desempenho da
produção e garantir o próprio sucesso eleitoral entre as décadas
de 1980 e 1990.
Mesmo assim, os sinais de regressão econômica e social tor-
naram-se maiores, como a sucessiva perda de posição relativa na
economia mundial e forte elevação do desemprego e exclusão

28
social no conjunto da região. O processo eleitoral na década de
2000 proporcionou, de maneira geral, o fortalecimento de no-
vas forças políticas, gerado pela aglutinação dos setores perdedo-
res do período anterior com parcela crescente de segmentos em
trânsito do ativo processo de financeirização da riqueza para o
novo ciclo de expansão dos investimentos produtivos.
Com isso, reacendeu-se o compromisso da maioria política
emergente com a manutenção da fase expansiva da economia,
embora permaneçam dúvidas em relação ao perfil do desenvol-
vimento. A encruzilhada brasileira reside aí, com desfecho a ser
revelado nos próximos anos. Disputa-se, no interior da maioria
política, pelo encaminhamento do país da Fama (fazenda, mi-
neração e maquiladoras), por um lado, e por outro, pelo país do
Vaco (valor agregado e conhecimento).
O cenário atual tende a valorizar mais os países dependen-
tes da exportação de matérias-primas e da geração de produtos
internos com forte conteúdo importado. Dessa forma, a taxa
de investimento abaixo de 20% do produto é suficiente, assim
como a contenção da inovação tecnológica, suprida por compras
externas. Os esforços em educação são importantes, embora
doutores e mestres em profusão sigam mais ativos na docência
do que na pesquisa aplicada no sistema produtivo.
Assim, o caminho da Fama também cresce gerando mais
postos de trabalho na base da pirâmide social e ocupando maior
espaço internacional. Sua autonomia e dinâmica, no entanto,
parecem menores frente aos imutáveis graus de heterogeneidade
econômica e social que marcam o subdesenvolvimento.
Em contrapartida, o caminho do país do Vaco pressupõe
reafirmar a macroeconomia do desenvolvimento sustentada no
maior valor agregado e conhecimento. A superimpulsão dos in-
vestimentos é estratégica, seja pela agregação de valor nas ca-
deias produtivas e nas exportações, seja pela ampliação da ino-

29
vação tecnológica e educacional exigida. Assim, o novo salto no
desenvolvimento permite a convergência produtiva e ocupacio-
nal de qualidade e rompe com o atraso secular da condição su-
bordinada e passiva no mundo.
Nestas novas circunstâncias que as políticas públicas inova-
doras se habilitariam ainda mais para conferir a constituição
de superior padrão civilizatório. São possibilidades reais que o
Brasil dispõe neste início do século XXI e que requerem agenda
inovadora com nova maioria política aprimorada.

Perspectivas possíveis
A crise mundial nesta primeira década do século XXI pode-
rá ser ressaltada no futuro próximo como propulsora das bases
de uma nova fase do desenvolvimento capitalista. Isso porque
os constrangimentos atuais se apresentam como os primeiros a
se manifestar no contexto do capital globalizado. Nas crises de
grandes proporções anteriores, como entre 1873 e 1896 e entre
1929 e 1947, o mundo era ainda constituído por colônias (pré-
-capitalista) e pela presença de experiências nacionais de econo-
mias centralmente planejadas.
A nova fase do desenvolvimento depende crescentemente da
retomada do capitalismo reorganizado, após quase três longas
décadas de hegemonia neoliberal. Os quatro pilares do pensa-
mento único (equilíbrio de poder nos Estados Unidos, sistema
financeiro internacional fundado nos derivativos, Estado míni-
mo e mercados desregulados) tornaram-se crescentemente desa-
creditados, mas ainda não superados.
A reorganização capitalista mundial nesta fase de transição
pós-crise deve apoiar-se numa nova estrutura de funcionamen-
to. O tripé da expansão do capital consiste na alteração da parti-
lha do mundo em função do policentrismo, na era da associação
direta da ultramonopolização do setor privado com o Estado

30
supranacional e na revolução da base técnico-científica da pro-
dução e consumo sustentável ambientalmente, conforme pode
ser identificado na sequência.
Com os sinais de fracasso do equilíbrio do mundo he-
gemonizado pelos Estados Unidos, após a queda do muro
de Berlim, tornou-se presente o movimento de deslocamen-
to relativo do centro dinâmico. Diferentemente da experiên-
cia anterior de transição da hegemonia inglesa para os Esta-
dos Unidos, gradualmente consagrada pela saída da crise de
1929, percebe-se atualmente a possibilidade real do mundo
pós-crise ser constituído pelo dinamismo policentrista. Ou
seja, o fortalecimento de diversos centros regionais do desen-
volvimento mundial.
Nos dias de hoje, os controversos sinais de decadência dos Es-
tados Unidos parecem ser mais relativos do que absolutos, tendo
em vista a desproporção econômica, tecnológica e militar ainda
existente em relação aos demais países do mundo. Apesar disso,
observa-se que no contexto de emergência da reestruturação no
centro do capitalismo mundial ganham maiores dimensões os
espaço mundiais para a construção de uma nova polaridade no
sul da América Latina, para além dos Estados Unidos, da União
Europeia e da Ásia.
Essa possibilidade real de partilha do mundo em novas cen-
tralidades regionais implica – ademais da coordenação de gover-
nos em torno de Estados supranacionais – aceitação de parte dos
Estados Unidos em reestruturação interna. Do contrário, cabe
resgatar o fato de a fase de decadência inglesa desde a Primeira
Grande Guerra Mundial ter sido demarcada por grandes dis-
putas econômica e, sobretudo, militar entre as duas principais
potências emergentes da época: Estados Unidos e Alemanha. Ao
mesmo tempo, a reação sul-americana à condição de economias
exportadoras de commodities para a China termina por equivaler

31
ao retorno de uma situação que predominou até o início do sé-
culo XX, de exportadores de bens primários à Inglaterra.
Por outro lado, destaca-se que, na passagem para o século
XXI, o modelo de globalização neoliberal produziu, entre ou-
tros eventos, uma inédita era do poder monopolista privado. Até
antes da crise mundial, não eram mais do que quinhentas cor-
porações transnacionais com faturamento anual equivalente a
quase metade do Produto Interno Bruto (PIB) mundial.
No contexto pós-crise, tende a ser um contingente ainda me-
nor de corporações transnacionais a governar qualquer setor de
atividade econômica, podendo resultar na ultramonopolização
privada sem paralelo histórico. Essa realidade possível faz com
que os países deixem de ter empresas para que empresas passem
a ter países.
A ruína da crença neoliberal explicitada pela crise atual tor-
nou profundamente desacreditada tanto a vitalidade dos mer-
cados desregulados como a suficiência do sistema financeiro
internacional assentado nos derivativos. Por isso, espera-se que
algo de novo deva surgir das práticas de socialismo dos ricos
praticadas na crise internacional por intermédio das enormes
ajudas governamentais às corporações transnacionais (bancos e
empresas não financeiras).
A maior interpenetração governamental na esfera dos altos
negócios ultramonopolistas do setor privado global pode dar lu-
gar ao fortalecimento de Estados supranacionais capaz de alte-
rar as condições gerais de produção dos mercados (regulação da
competição intercapitalista e apoio ao financiamento das gran-
des empresas). Em resumo, percebe-se que a viabilização do ca-
pital ultramonopolista global tende a depender crescentemente
do fortalecimento do Estado para além do espaço nacional.
Diante da maior instabilidade do capitalismo submetido a
poucas e gigantescas corporações transnacionais – muito grandes

32
para quebrarem a partir da própria lógica do mercado –, amplia-se
o papel do Estado em relação à acumulação de capital. A coorde-
nação entre os Estados supranacionais poderá permitir a minimi-
zação das crises frente à regulação da competição intercapitalista.
Todavia, o estreitamento da relação cada vez mais orgânica
do Estado com o processo de acumulação privada do capital
global deve reverter-se no aprofundamento da competição entre
os Estados nacionais.
Por fim, o terceiro elemento do novo tripé do possível surgi-
mento do capitalismo reorganizado e em melhores oportunida-
des ao desenvolvimento latino-americano encontra-se associado
à mais rápida aceleração e internalização da revolução técnico-
-científica no processo de produção e consumo. Pelo conheci-
mento produzido até o momento acerca da insustentável de-
gradação ambiental gerada pelas atuais práticas de produção e
consumo, sabe-se que a saída da crise global não deveria passar
pela mera reprodução do passado.
Nesse sentido, o padrão de produção e consumo precisa ser
urgentemente reconfigurado. Para isso, não apenas a matriz
energética mundial vem sendo alterada como as alternativas de
sustentabilidade ambiental tornam-se cada vez mais viáveis do
ponto de vista econômico (lucrativas). Assim, as penalizações
governamentais às atividades de produção e consumo degradan-
tes ambientalmente devem crescer e serem politicamente aceitas,
permitindo que um conjunto de inovações técnico-científicas
possa fazer emergir um novo modelo de produção e consumo
menos encadeador de uma maior mudança climática.
Da mesma forma, o avanço da sociedade pós-industrial, cada
vez mais apoiada no avanço do trabalho imaterial, tende a via-
bilizar uma profunda reorganização dos espaços urbanos, fru-
to de exigências do exercício do trabalho em locais apropriados
(fazenda para a agricultura e pecuária, fábrica e indústria para

33
a manufatura, entre outros). Pelo trabalho imaterial, a atividade
laboral pode ser exercida em qualquer local, não mais em es-
paços previamente determinados e apropriados para isso, bem
como em qualquer horário.
Com isso, a reorganização social em comunidades territo-
riais torna-se possível, o que pode evitar o comprometimento
temporal cotidiano com os deslocamentos da casa para o traba-
lho e vice-versa, entre outras tarefas comuns. Nesses termos, o
fundo público precisará ser fortalecido muito mais em cima da
tributação de atividades de produção e consumo ambientalmen-
te degradantes como nas novas formas de riqueza vinculadas à
expropriação do trabalho imaterial.
Somente a maior ampliação do fundo público poderá per-
mitir a postergação do ingresso no mercado de trabalho a partir
dos 25 anos, com o estabelecimento de mecanismos que permi-
tam o processo de educação e aprendizagem para a vida toda e,
ainda, jornada laboral de até 12 horas por semana. Ao mesmo
tempo, devem ser consideradas e tratadas questões da saúde hu-
mana, como as novas doenças depressivas, transtornos mentais
e as relacionadas à revolução da longevidade.
As transformações profundas no Estado se fazem urgentes e
estratégicas, e pressupõem maioria política necessária para tor-
nar realidade o que hoje se apresenta como mera possibilidade.
No atual período democrático, há uma grande expectativa de se
estabelecer os novos rumos no desenvolvimento.
Ademais do obstáculo de consagrar uma nova maioria políti-
ca que ouse mais na direção da transformação da crise mundial
atual em oportunidade de maior reposicionamento do país no
mundo, cabe ainda a árdua tarefa da refundação do Estado sob
novas bases. Três podem ser os seus eixos estruturantes.
O primeiro consiste na reorganização administrativa e institu-
cional que viabilize a reprogramação de todas as políticas públicas

34
a partir da matricialidade e integração setorial de suas especiali-
dades. Enquanto o Estado funciona na forma de caixinhas seto-
riais (educação, saúde, trabalho, entre outros) e regionais, os pro-
blemas atuais tornam-se cada vez mais complexos e totalizantes,
incapazes de serem superados pela lógica de organização pública
em partes que não se comunicam, quando concorrentes entre si.
A fonte disso encontra-se centrada na recuperação do sistema de
planejamento democrático e transparente de médio e longo prazo.
O segundo eixo concentra-se na necessária ampliação das po-
líticas distributivas para as redistributivas. Ou seja, a transição
da melhor repartição social do orçamento governamental para a
expansão da progressividade do fundo público, com a redução
da carga tributária sobre a renda do trabalho e ampliação dos
impostos, taxas e contribuições sobre as rendas do capital (lucro,
juros, aluguel e renda da terra). Arrecadando mais e melhor, o
Estado passa a alterar a desigualdade medieval que se mantém
nos países da região latino-americana.
O terceiro eixo refere-se à reinvenção do mercado, tendo em
vista o poder dos grandes grupos econômicos sobre o Estado.
Ademais das exigências da transparência e crescente participa-
ção social, o Estado precisa reconstituir-se fundamentalmente
para o verdadeiro mar que organiza os micro e pequenos negó-
cios no país, com políticas de organização e valorização do setor
por meio da criação de bancos públicos de financiamento da
produção e comercialização, fundos de produção e difusão tec-
nológica e de assistência técnica e de compras públicas.
Esses são alguns dos passos que o Estado brasileiro precisa
ainda percorrer. A refundação do Estado é urgente e inadiável.
A oportunidade trazida pela crise mundial é real, mas depende
da capacidade interna de organizar uma nova maioria política
capaz de colocar em marcha o projeto de desenvolvimento so-
nhado por muitos e que agora ameaça se tornar realidade.

35
RE FORMA AGR ÁRIA POPU L AR : BAL ANÇO
DA CON STRUÇ ÃO, TEORIA E PR ÁTIC A

Nivia Silva1

Elementos históricos introdutórios


O tema da reforma agrária ganha contornos definidos pela
questão agrária ao longo da caminhada histórica. Possui ques-
tões amplas que foram se complexificando à medida que envolve
processos políticos econômicos mais recentes, como o atual está-
gio do capitalismo financeiro no campo. Desta forma compreen­
demos que alguns desafios não estão colocados somente para o
MST e os movimentos camponeses, mas para toda sociedade.
Tivemos algumas experiências mundiais neste tema dialo-
gando com momentos históricos específicos:2 a reforma agrária
burguesa, objetivando democratizar a terra, superar resquícios
do feudalismo e transformar camponeses em produtores de mer-
cadoria para indústria (Europa ocidental e EUA, 1870-1950); a
reforma agrária anticolonial, compreendida mais especificamen-
te como distribuição de terras aos camponeses crioulos (Hai-
ti, Uruguai, Paraguai, 1804-1810), incluindo lutas pela inde-

1
Integrante da Coordenação Nacional do MST.
2
MST. Cartilha – A reforma agrária popular, 4ª edição. Novembro de 2015.

37
pendência expropriando terras dos colonos europeus; a reforma
agrária de governos populares, que se propunham a fazer a tran-
sição para o socialismo (Cuba, Vietnã, Nicarágua); e a reforma
agrária socialista, na qual nacionalizaram a propriedade da terra
como um bem de toda nação, socializaram os meios de produ-
ção e coletivizaram o trabalho (Rússia em 1917, Iugoslávia em
1945, China em 1949, Coreia do Norte em 1956).
O processo de dominação da agricultura pelo capitalismo é
um dos capítulos mais complexos da consolidação deste modo
de produção. Qualidades específicas da agricultura são a base
dessa complexidade: mesmo com toda a tecnologia existente, é
da agricultura que sai a base da sustentação da força de trabalho
em qualquer parte do mundo; a limitação natural do principal
meio de produção existente, a terra.
Justamente por essas especificidades, a agricultura despertou
movimentações distintas das classes dominantes. A oligarquia rural
e os setores mais conservadores da burguesia historicamente se vin-
cularam à defesa da propriedade privada. As terras, para esse setor,
funcionaram (e funcionam) como acumulação de riqueza material,
fonte de especulação e consolidação de poder local e regional.
Frações da burguesia, nesta etapa industrial, juntamente com
classes médias, transitaram entre o apoio a diferentes formas de
reforma agrária. A essas frações, interessava, primeiramente, o
elevado potencial de extração da renda da terra ao qual o cam-
pesinato se submetia possibilitando recursos importantes para o
processo de industrialização de diversos países europeus e norte-
-americanos, entre o final do século XIX e primeira década do
século XX, e países da Ásia Oriental, no final da primeira meta-
de do século XX (Kay, 2002).
Não interessava somente a extração da renda da terra, senão a
produção de alimentos mais baratos, o que derivava em uma força
de trabalho industrial igualmente mais barata. As limitações tec-

38
nológicas da produção agrícola monocultural de larga escala con-
trastavam com um campesinato numeroso e, por diversas questões
objetivas e subjetivas, extremamente dedicado ao labor agrícola.
De certa forma existia um campesinato que trouxe consigo,
até momentos muito recentes do capitalismo, formas de orga-
nizar os sistemas agrários fortemente baseadas na diversidade
biológica, tecnológica e cultural. A produção de alimentos cons-
tituía-se como uma necessidade (Polanyi, 1980).
Até meado do século XIX as estratégias técnicas e produção
para gestão da fertilidade do solo eram desenvolvidas com base
no manejo da biomassa localmente produzida (Tibau, 1978).
Principais nomes da agricultura química sintética – como Frie-
drich Wöhler (que em 1828 descobriu a síntese da ureia); Lieb
(considerado o pai da agricultura química); Carl Sprenger (que em
1820 descobriu a lei do mínimo), Norman Bourlag (que em 1940
introduziu a mudança genética das plantas com melhoramento
de sementes) e Paul Miller (responsável em 1939 pela síntese do
DDT) – desenvolveram no campo da ciência fundamentação
para a ampliação do modelo químico industrial da agricultura.
Inúmeros teóricos da questão agrária apontaram que a hege-
monia do capitalismo industrial se sobrepôs à lógica campone-
sa. Dentre os impactos dessa hegemonia, um dos principais foi a
transformação do alimento em mercadoria, dada a ruptura me-
tabólica (Foster, 2005) entre campo e cidade pós-Revolução In-
dustrial.
Elementos dessa falha metabólica compreendem duas prin-
cipais questões que podemos localizar no debate de Foster: i)
o metabolismo é entendido como capacidade de gerar riqueza
material por meio do trabalho, não podendo estar separada do
potencial de geração de riqueza da própria natureza; ii) e para
Marx, o modo de produção capitalista imprime uma falha irre-
parável entre os metabolismos sociais e naturais. A falha é resul-

39
tado da alienação material da sociedade capitalista das condi-
ções naturais que conformam a base de sua subsistência.
O desenvolvimento do capitalismo industrial aponta a refor-
ma agrária como política de desenvolvimento das forças pro-
dutivas do capitalismo no campo, desenvolvimento da produ-
ção de mercadorias, transformando os camponeses produtores e
consumidores de mercadorias.
A Revolução Verde somou-se ao aprofundamento da indus-
trialização do capitalismo mundial e, consequentemente, com a
urbanização da população.
Esses fatores anteriormente citados permitiram que, a partir do
final do século XX, ocorresse uma profunda oligopolização dos pro-
cessos produtivos de alimentos (Stedile e Martins, 2010). O capital
financeiro se aliou ou mesmo avançou sobre as burguesias agrárias,
às vezes se apropriando diretamente das terras em diversos países e
sempre aumentando sua parcela de apropriação da renda da terra.
Nesta movimentação histórica, o Brasil e a América Latina
possuem particularidades importantes que não abordamos aci-
ma nos elementos introdutórios, mas que têm grande relevância
do ponto de vista do debate da posse e uso da terra e da luta pela
reforma agrária: um processo violento de destruição das popula-
ções tradicionais e dos recursos naturais. Povos subjugados, civi-
lizações e culturas dizimadas, destruição de construções, conhe-
cimentos, artes, simbologias, escritas. Esse processo produziu
uma agricultura desculturalizada e desecologizada (Leff 2002).

A reforma agrária clássica e o MST


No Brasil ocorreram experiências de luta pela terra ainda
com Canudos, Contestado e Caldeirão (1894, 1912, 1926), na
busca da sobrevivência, do trabalho e reprodução camponesa.
A expressão “reforma agrária” surge principalmente no
pós-Segunda Guerra, mas tem no processo de reascenso das

40
mobilizações a luta crescente pela reforma agrária protagoni-
zada por movimentos camponeses, como as Ligas campone-
sas, Ultabs, Master, que se constituíram como organizações
nacionais.
O processo da ditadura militar impõe uma modernização
sem reformas, com forte repressão aos movimentos camponeses.
À burguesia industrial se alia a oligarquia rural para o desenvol-
vimento do capitalismo industrial dependente, modernização
conservadora e dolorosa para os camponeses, consolidando uma
agricultura capitalista voltada para o mercado externo, com ado-
ção da Revolução Verde como pacote tecnológico. Este momen-
to promove a maior migração camponesa da história.
Ocorre a criação de diversos mecanismos públicos e privados
para dar suporte tecnológico, científico, educacional a este fato:
as escolas técnicas agrícolas, as faculdades de agronomia, vete-
rinária e zootecnia, para formar técnicos e pesquisadores – os
agentes técnico-científicos – para dar suporte ao modelo; cria-
ção da Embrapa; surgimento da Embrater (Empresa Brasileira
de Assistência Técnica e Extensão Rural) e das Ematers.
Mesmo com todas essas ofensivas e condições contrárias,
o campesinato resistiu no Brasil. Segundo Carvalho (2005), o
campesinato brasileiro esteve “bloqueado”, impossibilitado de
desenvolver suas potencialidades enquanto forma social espe-
cífica de produção. Assim, a história do campesinato no Bra-
sil pode ser definida como o registro das lutas para conseguir
um espaço próprio na economia e na sociedade. Segundo Silva
(2001), a permanência do campesinato brasileiro deve ser visto
como um trunfo para uma perspectiva de inclusão, democracia
e sustentabilidade, pois elas guardam diferentes sociabilidades e
formas de apropriação da natureza.
Na década de 1980, com a redemocratização, ocorre o res-
surgimento da luta pela terra. Com novos movimentos campo-

41
neses, levanta-se novamente a bandeira da reforma agrária nos
moldes de uma reforma agrária clássica.
O MST surge nesse período com objetivos bem definidos
– luta pela terra, reforma agrária e transformação social. Esse
conteúdo dos objetivos contribuiu para elevar politicamente a
luta pela reforma agrária.
Na década de 1990, com o desenvolvimento do neolibera-
lismo, ocorreram transformações no modo do capitalismo es-
truturar a produção e o trabalho, com inovações tecnológicas,
privatização, globalização.
A ofensiva neoliberal na agricultura brasileira ainda iniciada
no governo Fernando Henrique se consolida na década de 2000.
Desenvolve-se um novo modelo de dominação do capital no
campo para atender as demandas do mercado externo, definidas
por uma divisão mundial da produção e do trabalho, não sendo
mais necessária uma reforma agrária burguesa para o desenvol-
vimento das forças produtivas na agricultura. Do ponto de vista
do capital, considera-se que a questão agrária está resolvida.
O MST recoloca a reforma agrária como tarefa das classes
camponesa e trabalhadora, reconhecendo a necessidade de avan-
çar em elementos táticos.

Reforma agrária popular e as suas bases estruturais

Nossa caminhada3
Alguns sinais da nossa caminhada mostravam que não bas-
tava uma reforma agrária clássica que dividisse a propriedade da

3
Diálogo com textos internos: SPCMA: Um novo impulso para a organização
dos assentamentos e da cooperação. Abril, 2006; SPCMA: Os assentamentos no
centro de nossas ações. Outubro, 2006; MST. CONCRAB: Os assentamentos
neste novo período da luta pela reforma agrária. Abril, 2001.

42
terra e integrasse os camponeses como fornecedores de matérias-
-primas e mercadoria para sociedade urbano industrial.
No início do MST a prioridade de trabalho dentro dos as-
sentamentos consistiu em ações como a luta pela educação e a
organização da produção, incentivos para a cooperação agrícola
das famílias assentadas, ampliando a capacidade das famílias as-
sentadas de resistirem e permanecerem na terra e desenvolverem
as forças produtivas.
Com a forte crise e poucas perspectivas econômicas, o MST
pensa os assentamentos enquanto espaços de resistência e supe-
ração. Como frutos deste processo, no período de 1996 a 2000
começam a surgir dezenas de iniciativas de produção agroeco-
lógica no MST, em diversos estados, com distintos produtos e
estilos de agricultura ecológica. Processos ainda com pouca con-
sistência.
Surgiram as experiências do arroz ecológico na região da
grande Porto Alegre, no RS, a soja orgânica no norte do RS,
as sementes ecológicas de hortaliças e de pêssegos ecológicos na
região sul do RS, da erva mate e chá mate ecológico no PR, do
café orgânico no ES, quintais produtivos no Nordeste, hortas
medicinais e fitoterápicos, a constituição da primeira empresa
de sementes ecológicas do MST, atuando em esfera local e orga-
nizando a multiplicação de sementes ecológicas.
No IV congresso (2000), o MST lança o cartaz “Nossos
compromissos com a terra e com a vida”, em que afirma o com-
promisso de defender e preservar todas as formas de vida avan-
çando na concepção do cuidado com a terra, a biodiversidade,
preocupação com uso de agrotóxicos e posteriormente com os
transgênicos.
Esta é a fase em que o MST mais se apropria do debate e
da concepção sobre a agroecologia. A Via Campesina lançou a
campanha “Sementes: patrimônio dos povos a serviço da hu-

43
manidade”. O setor de produção elaborou o “Programa Am-
biental do MST: constituição da proposta dos Centros Irradia-
dores do Manejo da Agrobiodiversidade” (CIMAs), da Rede
de Pesquisa em Agroecologia e do programa de Formação do
MST; Desenvolveram-se também experiências de metodolo-
gias, como a “camponês a camponês”; o “diálogo de saberes”,
o processo de planejamento e a organização dos assentamentos
(PPOA).
A iniciativa na área da formação dos técnicos do MST é sem
sombra de dúvidas de grande envergadura e dimensão, assim
como o acúmulo e experiências da educação do campo, escolas
do campo, os cursos formais em parceria com as universidades e
os processos de formação político-ideológica.
Nesta caminhada, num período mais recente, o movimento
elabora algumas sínteses com avaliação sobre a política de as-
sentamentos, fazendo refletir sobre os limites da reforma agrária
clássica, onde podemos destacar:
– Apesar do desenvolvimento dos projetos de assentamentos
levar a melhorias importantes (terra, moradia, crédito, infraes-
trutura), elas vão ocorrer de forma lenta e às vezes incompleta.
– Trata-se de uma política baseada em desapropriação pon-
tual, negociada, com compra de áreas e regularização fundiária.
São respostas às pressões e conflitos sociais, promovendo assen-
tamentos de forma dispersa e sem prover as condições básicas
para seu desenvolvimento sustentável.
– Num cenário onde a prioridade é o agronegócio, nos depa-
ramos com problemas estruturais para a produção camponesa,
como o pouco capital num sistema de economia de escala, o
baixo grau de desenvolvimento tecnológico, que resultam em
uma baixa escala de produção com altos custos e poucos rendi-
mentos. Completa o cenário a baixa infraestrutura básica, como
energia, água e estrada.

44
– As marcas do itinerário técnico da revolução verde tam-
bém estão presentes em nossos assentamentos. Isso implica
assumir um ambiente extremamente vulnerável, que foi arti-
ficializado pela agricultura “moderna” e, portanto coloca de-
safios técnicos, políticos e culturais de produzir em terras de
baixa qualidade.
– Encontramos cada vez mais a disputa do agronegócio por
terras e pelo domínio dos territórios e da biodiversidade. Outra
tática é a integração dos assentamentos com empresas que man-
têm o monopólio de algumas cadeias agroindustriais.
– Constrói-se o pensamento hegemônico de que não é possí-
vel produzir de outra forma. A pesquisa, a assistência técnica e
extensão rural e as escolas de ensino agrícolas também vêm para
reforçar esta posição.

Nossa proposta da reforma agrária popular


A luta pela reforma agrária tem passado por mudanças de
natureza e conteúdo, com o desenvolvimento da luta de classes
contra o modelo do capital na agricultura, o que significa a
luta dos camponeses pelas terras agrícolas e por um novo mo-
delo de agricultura, tendo como enfrentamento contra capital:
a terra e o território, a biodiversidade, tecnologias, a água e as
florestas.
O Movimento Sem Terra desenvolveu o programa de refor-
ma agrária popular, tendo como conceito “popular”4 o desafio
de um novo patamar de forças produtivas e de relações sociais de
produção necessárias para outro padrão de uso e posse da terra.
A reforma agrária popular traz a proposta de mudanças na
forma de usar os bens da natureza (superação da alienação do
ser humano e natureza), que pertencem à toda sociedade (uso

4
MST. Cartilha – A reforma agrária popular. 4ª edição. Novembro de 2015.

45
comum dos bens naturais), na organização da produção e nas
relações sociais no campo.
Esta concepção de reforma agrária integra relações amplas
entre o ser humano e a natureza, que envolvem diferentes pro-
cessos que representam a reapropriação social da natureza, como
negação da apropriação privada, mercantil e alienada da nature-
za realizada pelos capitalistas.
A reforma agrária popular só pode ser conquistada por um
amplo leque de forças populares representadas pelos trabalhado-
res do campo e da cidade. Assume perspectiva internacionalista,
pois a luta dos trabalhadores contra o capital é internacional no
atual estágio de hegemonia do capital financeiro e atuação das
empresas transnacionais em todo o mundo. Passa pela constru-
ção de um modelo de agricultura popular e camponesa, a partir
das experiências dos trabalhadores de muitos países, culturas,
organizações e lutas.
Precisamos discutir com a sociedade: Que tipo de uso quere-
mos dar ao solo, à água, aos recursos naturais, à biodiversidade?
Que tipo de comida nós queremos comer? Que tipo de paradig-
ma tecnológico queremos desenvolver? Para o MST, dependen-
do da resposta que se quer dar, a reforma agrária pode ou não
fazer sentido hoje, por isso ela é um projeto popular, deve ser do
conjunto da sociedade.
Isso envolve pensar a pesquisa, o ensino, o processo de pro-
dução e organização do trabalho em outras dimensões que não
o desenvolvimento das forças produtivas destrutivas do capital.
Estamos numa discussão com professores universitários; esta
tarefa é de todos nós. Sem cair no idealismo (que não reflete as
contradições dos espaços em luta e de vida) e sem relação equi-
vocada com a produção do conhecimento. Neste momento his-
tórico de enfrentamento, temos que aproximar melhor o campo
do campus (Universitário) do campus do campo (assentamentos),

46
numa relação dialética, pensando a hibridação de conhecimen-
tos teóricos e práticos.
Devemos também realizar a intensificação da formação: além
da dimensão da luta econômica e política, encontra-se também
a dimensão da consciência, da desconstrução da ideologia do-
minante. Como bem traz Carvalho (2007), a possibilidade de
adoção pelos camponeses da matriz tecnológica apoiada nos
princípios gerais da agroecologia será consequência da concep-
ção de mundo que os camponeses, ou significativa parcela deles,
criticamente desenvolvam como negação da matriz tecnológica
de produção dominante.
O aumento da escala da produção camponesa, aliado à diver-
sificação de cultivos e criações, ao aumento da produtividade e
ao estabelecimento de relações menos degradadoras do meio am-
biente, não pode estar condicionado às mudanças gerais (em toda
a sociedade) na concepção de produção e consumo hoje imperan-
tes. Aumentar, diversificar, beneficiar a escala de produção para
a obtenção de recursos monetários para darem conta da melhoria
continuada da reprodução social das condições de vida (qualidade
de vida e de trabalho camponeses) da família camponesa.
A agroecologia requererá não apenas superar as limitações
na escala e volume de produção, mas também encontrar solu-
ções para a socialização da produção no campo, seja inicialmen-
te através da cooperação, seja numa fase mais avançada, aqui
incluindo a agroindustrialização camponesa (Carvalho, 2007).
Por fim, cabe trazer a ideia de Foster (2005) ao dizer que não
há, na vasta obra de Marx, um único indício de que ele acreditasse
que uma relação mais sustentável com a terra ocorreria “automa-
ticamente” com a transição ao socialismo. Em vez disso ele salien-
tou a necessidade de ações que levem os produtores a governar o
metabolismo humano com a natureza de forma racional. Portan-
to a reforma agrária popular é uma tarefa da classe hoje!!!!

47
Referências
CARVALHO, Horácio Martins de. O campesinato no século XXI: possibili-
dades e condicionantes do desenvolvimento do campesinato brasilei-
ro. Petrópolis: Vozes, 2005.
CARVALHO, Horácio Martins de. Desafios para o agroecologista como por-
tador de uma nova matriz tecnológica para o campesinato. Texto inédi-
to. Julho de 2007.
FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
MST. Cartilha – A reforma agrária popular. 4ª edição. Novembro de 2015.
MST. CONCRAB: Os assentamentos neste novo período da luta pela refor-
ma agrária. Abril, 2001.
MST. SPCMA: Os assentamentos no centro de nossas ações. Outubro,
2006.
MST. SPCMA: Um novo impulso para a organização dos assentamentos e
da cooperação. Abril de 2006.
POLANYI, Karl. A grande transformação – as origens de nossa época. Rio
de Janeiro: Editora Campus Ltda., 1980.
SILVA, Carlos Eduardo Mazetto. Democracia e sustentabilidade na agricul-
tura: subsídios para a construção de um novo modelo de desenvolvi-
mento rural. Rio de Janeiro: Projeto Brasil sustentável e democrático
(Série cadernos temáticos, n. 4), 2001.
STEDILLE, João Pedro. A questão agrária no Brasil: o debate tradicional –
1500-1960. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
TIBAU, Arthur O. Matéria orgânica e fertilidade do solo. São Paulo: Editora
Nobel, 1978.

48
CON STRU IR U M NOVO PROJE TO DE PAÍ S
A PARTIR DOS INTERES S ES DO POVO
B R A S ILE IRO

Neuri Rosseto1

Proponho que, para refletirmos sobre o significado da pro-


posta da reforma agrária popular como síntese da estratégia po-
lítica do MST para o próximo período, possamos pensar, de
forma mais ampla, nas transformações da natureza dos movi-
mentos sociais, que foram se tornando mais complexos na me-
dida em que o capitalismo apresentava seu processo de contra-
dições.
Analisando esse processo contraditório de avanço destruti-
vo do capitalismo notamos que quando o camponês enfrenta o
modelo de desenvolvimento ou quando luta para defender sua
cultura – aqui entendida enquanto modo de reprodução que
garante sua sobrevivência –, está enfrentando, à sua maneira, o
sistema capitalista. Ao contrário de uma interpretação do senso
comum que coloca a luta camponesa como sinônimo de atraso,
como se estivesse inevitavelmente limitada ao economicismo.
No caso do MST, a luta que se expressa por meio do objetivo

1
Integrante da Coordenação Nacional do MST.

49
tático do acúmulo de forças está vinculada a uma estratégia que
é a conquista de uma sociedade socialista.
Em nossa avaliação, este é o primeiro momento em que o
MST apresenta para o conjunto da sociedade uma proposta es-
tratégica que sintetiza, que coloca para a cena política brasilei-
ra, um conceito novo no campo da questão agrária, que avança
em relação aos limites que identificamos no modelo de reforma
agrária clássica. Apresento a seguir as cinco premissas para a re-
forma agrária popular.
Primeiro, a Reforma Agrária Popular é um processo resultan-
te de um acúmulo de forças, dividido em frentes de luta com as
seguintes características: 1) é contra o inimigo de classe, pautado
pelo enfrentamento com a classe antagônica, com o objetivo de
derrotar a classe que monopoliza o uso da terra no Brasil, in-
cluindo a imposição de derrotas ao Estado Burguês; 2) possui
o desafio de construir a hegemonia na sociedade; e 3) busca trans-
formar a nossa classe social em sujeito revolucionário, fortalecendo,
junto à nossa base social, a organização classista do campesina-
to, em sentido mais amplo possível.
A premissa seguinte é a de que vivemos uma relação dialéti-
ca permanente entre teoria e prática. O tempo da teoria é mais
abrangente e largo, enquanto o tempo da política é o imediato,
é o da urgência. Há tensões nesta relação. A teoria pode levar ao
desvio do subjetivismo, do idealismo, e o praticismo também
pode levar ao desvio do pragmatismo, dando margem para prá-
ticas oportunistas.
Outra premissa é a de que as alternativas à sociedade bur-
guesa não podem existir apartadas do capitalismo, mas em con-
fronto com ele. A construção de uma nova sociedade se dá no
confronto com a sociedade capitalista. Neste momento, não é o
projeto de uma nova sociedade que está confrontando e atacan-
do o capitalismo, mas as próprias crises geradas por sua contra-

50
dição interna. O centro do conflito é gerado pela luta de classes.
Para a luta pela reforma agrária, as contradições são produzidas
pelo próprio desenvolvimento do capitalismo no campo: mono-
pólio da terra e alimentos envenenados. Elas não são resultado
do atraso, mas do mais alto desenvolvimento do capitalismo.
É preciso ainda considerar os aspectos dos processos revolu-
cionários – as transformações do modo de produção e consumo;
as transformações culturais; e a tomada do poder. Muitas vezes
nos atemos apenas ao último, mas os outros dois aspectos são
anteriores, simultâneos e posteriores à tomada de poder. E estas
transformações podem ser de largo prazo. A questão é como en-
tender a luta pela reforma agrária contribui com as transforma-
ções culturais e de modo de produção e consumo.
Dentro desta premissa, significa atender à demanda de ne-
cessidades reais da produção e alimentação da população, já que
ela se contrapõe aos interesses do capital, que são determinados
pela taxa de lucro e não pela necessidade humana. Isso nos leva à
necessidade de refletirmos sobre como estruturar uma produção
que tenha como horizonte uma sociedade mais humanitária,
igualitária e democrática. A discussão da soberania alimentar da
Via Campesina contribui para este objetivo, quando buscamos
recuperar a independência da sociedade para definir a dinâmica
e a finalidade da produção de alimentos.
Outra característica a ser trabalhada é como envolver a popu-
lação na tomada de decisões que definem as áreas prioritárias de
investimento e desenvolvimento, de modo que a população nos
nossos territórios exercite a participação popular e a perspectiva
de construção do poder popular.
A quinta e última premissa é a de que esta sociedade dividi-
da em classes antagônicas cria conflitos, e na medida em que o
sistema não extingue estes conflitos, ele tenta controlá-los. Para
controlar estes conflitos que ele mesmo gera, o capitalismo, atra-

51
vés do Estado, atua no desmonte das conquistas obtidas no sé-
culo XX pela classe trabalhadora: no alto nível de prevenção
de práticas subversivas e táticas repressivas; na repressão e cri-
minalização a qualquer forma de alternativa a esta sociedade
capitalista; e na intensificação de uma guerra cultural mundial.
Trata-se de um “imperialismo mundializado”, que busca padro-
nizar o comportamento tendo a sociedade estadunidense como
parâmetro.
Neste cenário e partindo destas premissas, a reforma agrária
popular é um passo adiante à reforma agrária clássica, capitalis-
ta, meramente distributiva de terras, porque ela é também uma
tentativa de alternativa ao sistema hegemônico. Mas essa afir-
mação nos remete à necessidade de diferenciação entre a refor-
ma agrária popular e a reforma agrária burguesa.
Quando a burguesia implementa a reforma agrária clássica,
ela está olhando para a nascente sociedade industrial. Um dos
objetivos era tomar o poder político – que estava concentrado
em quem possuía a terra – como objetivo de subordinar a agri-
cultura à indústria, através da alimentação para os trabalhadores
e do fornecimento de matéria-prima para a indústria, além de
criar um mercado interno. No fundo, a intenção era integrar o
camponês a este desenvolvimento industrial, em condição su-
bordinada, como produtor e consumidor de mercadorias. E para
isso, bastava a distribuição de terras para que o servo/camponês
fosse convertido neste produtor e consumidor.
No Brasil, nunca houve uma tentativa de exclusão do latifún-
dio, ao contrário, o projeto de desenvolvimento que foi imple-
mentado pela classe dominante sempre teve o latifúndio como
um dos principais pilares da modernização periférica. Não ha-
via um projeto nacional baseado no mercado interno, mas um
modelo sempre voltado para o mercado externo. E havia uma
margem, uma válvula de escape: as fronteiras agrícolas, que per-

52
mitiam ampliar a produção sem ter que transformar a grande
propriedade.
Mesmo com o pacto entre a burguesia industrial e a oligar-
quia latifundiária, havia espaço para fazer a reforma agrária dis-
tributiva nas áreas improdutivas, e isso interessava para a bur-
guesia para desenvolver estes espaços mais afastados.
Entretanto, essa dinâmica entra em crise, na década de 1990,
quando este modelo de desenvolvimento industrial também en-
tra em crise. A agricultura deixa de ser linha auxiliar para se
tornar espaço para acumulação e exploração do que há de mais
moderno no sistema. Assim, a reforma agrária clássica se esgo-
tou como projeto.
Ao mesmo tempo, a reforma agrária socialista não está posta
pelas condições materiais e políticas deste tempo, ainda que seja
nosso objetivo estratégico. De modo que a reforma agrária po-
pular é um processo de acúmulo de forças que pode contribuir
para nos aproximar da sociedade socialista. A nossa elaboração
coletiva, no MST, aponta para algumas características centrais.
Primeiro, a distribuição de terras como parte inerente de um
modelo de produção camponês que se contrapõe ao modo de
produção capitalista. O modelo do agronegócio é viável eco-
nomicamente apenas para 8% dos proprietários rurais. Não há
espaço ou alternativa no campo para os 92% e esse contingente,
se organizado conforme um projeto contra-hegemônico, pode
ser a resistência à expansão capitalista.
Segundo, o sistema agrícola centrado na agroecologia, coo-
peração, agroindústria e na educação junto às áreas da reforma
agrária. Na agroecologia, isto significa lutar por políticas públi-
cas por assistência técnica, comercialização, agroindustrializa-
ção etc. Outro aspecto central é a nossa compreensão dos cam-
poneses como guardiões da biodiversidade, como aprendemos
com as elaborações de Horacio Martins de Carvalho.

53
Para nós, a reforma agrária popular estabelece uma relação
política com a propriedade da terra. Há dois enunciados: 1) toda
propriedade agrícola deve estar subordinada à função social, aos
interesses sociais, portanto, a proposta quebra a lógica da pro-
priedade privada como absoluta, e 2) ela também quebra a ca-
racterização da terra como mercadoria. Se não avançarmos nisso
a terra se mantém como refém do enunciado da propriedade
privada.
A reforma agrária popular compreende ainda a reapropriação
social dos bens da natureza: visa transformar as áreas de assen-
tamento em territórios do exercício do poder popular e parte
do pressuposto de que o alimento não é uma mercadoria, mas
um direito. Isso envolve enfrentar a Organização Mundial do
Comércio: como fazer com que o ser humano, por ser huma-
no, tenha direito ao alimento? E nisto desdobra-se a soberania
alimentar, como o direito de todos os povos de produzirem seu
próprio alimento.
Nesse sentido, os nossos assentamentos representam um acú-
mulo de forças potencialmente revolucionário ou um retrocesso?
As áreas sinalizam para um acúmulo de forças ou paramos na
distribuição de terras para camponeses que não tinham terra?
Influenciamos, animamos, conseguimos colocar para a socieda-
de estas conquistas que tivemos? Até que ponto a sociabilidade
que temos em nossas áreas sinalizam para uma nova sociedade?
Este é o conjunto de desafios que temos diante de nós para cons-
truir a reforma agrária popular e a nova sociedade.

54
E XPERIÊNCIA S DA S JORNADA S
U N IVERS ITÁRIA S DE
APOIO À RE FORMA AGR ÁRIA
O PAPE L DO MOVI M ENTO SOCIAL
NA CON STITU IÇ ÃO DA U N IVERS IDADE
FE DER AL DA FRONTE IR A S U L 1

Ana Cristina Hammel2


Alex Verdério3

Introdução
Este texto tem por objetivo refletir sobre a relação entre o Mo-
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a consti-
tuição da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), dialo-
gando com o projeto de desenvolvimento regional na perspectiva
dos trabalhadores da região centro-sul do Paraná, também conhe-

1
Texto elaborado a partir da exposição apresentada no III Encontro Nacional de
Professores Universitários, ocorrido entre 19 e 21 de maio de 2016, na Escola
Nacional Florestan Fernandes, em Guararema/SP.
2
Professora da UFFS. Licenciada em Pedagogia e História pela Universidade Es-
tadual do Centro Oeste (Unicentro), mestre em educação e doutoranda em his-
tória vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Integrante do Grupo de Pesquisa em
Educação do Campo, Cooperação e Agroecologia (Geeca). Contato: ana.ham-
mel@uffs.edu.br
3
Professor da UFFS. Licenciado em Pedagogia para Educadores do Campo
e mestre em educação pela Unioeste. Doutorando em educação vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná
(UFPR), linha de pesquisa Escola, Cultura e Ensino. Integrante do Geeca. Con-
tato: alex.verderio@uffs.edu.br

57
cida como território da Cantuquiriguaçu.4 Partimos do pressu-
posto de que, diante dos entraves colocados pela materialidade de
uma sociedade cindida em interesses e classes sociais antagônicos,
o conhecimento é determinado pelas relações no interior da luta
de classes e pelos avanços e retrocessos deste processo.
Entre as conquistas das lutas dos trabalhadores no plano his-
tórico, no âmbito do território da Cantuquiriguaçu está coloca-
da a UFFS, com cursos de formação inicial e continuada em di-
ferentes âmbitos para a qualificação profissional e a construção
de processos que busquem o fortalecimento dos trabalhadores e
de suas lutas, sobretudo no que tange à formação de educadores
do campo, à cooperação popular e à agroecologia.
Ao falar do território da Cantuquiriguaçu, nos referimos a
um território específico, onde historicamente tem predominado
o latifúndio, a grilagem de terras, a espoliação dos camponeses
e das populações indígenas e tendo como um dos reflexos dire-
tos desta realidade a negação da escolarização. Neste espaço, as
interferências de interesses da classe no poder marcam presença,
o que no limite determina as definições das políticas públicas,
compreendendo-as como resultado objetivo e imerso nas dispu-
tas entre as diferentes e antagônicas classes sociais.
Por sua vez, ao tomarmos o território da Cantuquiriguaçu,
temos a presença efetiva de movimentos sociais combativos que
têm assumido incessantemente sua tarefa na luta de classes, na

4
Conforme dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Terri-
tório da Cantuquiriguaçu tem um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento
Humano (IDH) do estado do Paraná, sendo considerado Território da Cidada-
nia. O mesmo abrange uma área total de aproximadamente quatorze mil qui-
lômetros quadrados e é composto por vinte municípios: Porto Barreiro, Campo
Bonito, Candói, Cantagalo, Catanduvas, Espigão Alto do Iguaçu, Foz do Jor-
dão, Goioxim, Guaraniaçu, Ibema, Laranjeiras do Sul, Marquinho, Nova La-
ranjeiras, Pinhão, Quedas do Iguaçu, Reserva do Iguaçu, Rio Bonito do Iguaçu,
Três Barras do Paraná, Virmond e Diamante do Sul.

58
perspectiva de defesa dos direitos dos trabalhadores e em con-
fronto direto com o metabolismo social que dá base para a so-
ciedade capitalista. Esta tem sido a tarefa do MST na região,
a de buscar as contradições no interior destes processos, tendo
a capacidade de perceber possibilidades na formação de sujei-
tos com vistas à construção de novos valores sociais a partir do
desenvolvimento regional e de uma nova matriz produtiva que
tenha por base a agroecologia e a cooperação popular.
Está inscrito nesta ordem de disputas e enfrentamentos o sur-
gimento da Universidade Federal da Fronteira Sul, que, fruto da
luta do Movimento Pró-Universidade Federal, assume o desafio
de superar a negação histórica de acesso ao conhecimento cientí-
fico à população da Cantuquiriguaçu, mesorregião da Fronteira
Sul do Brasil, com vistas, dentre outras tarefas, ao desenvolvi-
mento regional e à superação dos baixos índices educacionais da
população regional.
Na perspectiva de recuperar, registrar e problematizar essa
história construímos o texto a partir de três momentos, que dia-
logam entre si. Essa escolha procura retomar o processo de cons-
tituição do MST na região centro-sul do Paraná, a expectativa
de desenvolvimento regional e o diálogo com a educação dos
trabalhadores, sendo que é na coadunação destes três aspectos
que se coloca a necessidade da construção de uma universidade
capaz de articular as demandas sociais a um projeto de desenvol-
vimento para o território articulado com os interesses e necessi-
dades da classe trabalhadora do campo e/ou da cidade.
Assim, o texto recupera o acúmulo da luta dos trabalhadores,
organizados no MST e na Via Campesina por terra, trabalho,
qualidade de vida e pela universidade pública e popular, articu-
lados a um projeto de desenvolvimento, pautado em novas rela-
ções humanas fundadas na superação da exploração do trabalho
e dos recursos naturais.

59
O MST e o desenvolvimento
da região centro sul do Paraná
A região centro-sul do Paraná é constituída por terras férteis
e agricultáveis, com uma colonização recente e marcada por for-
tes disputas de terras. Fabrini (2002) identifica pelo menos três
matrizes produtivas predominantes que marcaram o enriqueci-
mento e o estabelecimento dos fazendeiros na região: a extração
da erva-mate, da madeira nativa e a criação do gado bovino. Por
sua vez, Janata (2012), ao retomar os estudos sobre a colonização
deste território, identifica que em 1848 processa-se a chegada –
aos campos de Guarapuava, como era conhecida na época – dos
desterrados de São Paulo. Dentre estes, destaca-se a presença de
José Nogueira do Amaral, quem, com o desmembramento do
Paraná da província de São Paulo, em 1853, passa a ser um dos
primeiros proprietários destas terras.
Esta forma demarca o processo de titulação das terras na pro-
víncia recém-criada. Relatos da história paranaense revelam a
presença de indígenas, caboclos e posseiros que viviam nas ter-
ras e que não foram contemplados pela Lei de Terras de 1850, e
nem pelas políticas de titulação dos governos da época. Reflexos
dos conflitos e da inoperância nestas terras se expressam na in-
tervenção federal, que cria no ano de 1943 o território federal
do Iguaçu, que impulsiona a vinda de muitos migrantes para a
região, com a promessa de terras férteis, segurança e acessibili-
dade.
A presença do MST na região coincide com a criação deste
movimento social na década de 1980, na região oeste do estado
do Paraná. Os primeiros assentamentos de reforma agrária reco-
nhecidos na região datam de 1985, nos municípios de Cantaga-
lo, de Candói e Nova Laranjeiras (Fabrini, 2002).
Cezimbra (2013), recuperando os estudos de Pires (1996),
identifica em meados de 1990 a existência 58 assentamentos de

60
reforma agrária na região de Guarapuava, o que representava
naquele período 65% do total de assentamentos no estado do
Paraná, totalizando mais de mil famílias assentadas na região.
No ano de 1996, novamente a região é palco de um grande
conflito. Sob a bandeira do MST, mais de três mil famílias Sem
Terra realizam a ocupação do latifúndio Giacomet-Marodin,
com cerca de noventa mil hectares destinados à extração de ma-
deiras. Com a aquisição da área pelo Instituto Nacional de Co-
lonização e Reforma Agrária (Incra), em 1997 foram assentadas
1500 famílias, em 28 mil hectares de terras. Os relatos sistema-
tizados por Janata (2012) revelam a crueldade das madeireiras
com as populações que viviam nos limites das terras.
A desapropriação desta área e sua regularização para fins
de reforma agrária representou – a partir das análises desen-
volvidas por Pires (1996), Fabrini (2002), Cezimbra (2013) e
Janata (2012) – um processo intenso de redimensionamento do
desenvolvimento regional. A conquista pelas famílias sem terra
de parte das terras griladas e sob o domínio da então empresa
Giacomet-Marodin superou o que até então o MST identificava
como assentamentos marginais, ou seja, marcados pelo isola-
mento, a grandes distâncias dos centros urbanos e com topo-
grafia acidentada, ondulada, com solos de baixa fertilidade. A
ocupação da fazenda Pinhal Ralo pelo MST – que integrava
parte das áreas espoliadas pela Giacomet-Marodin, no municí-
pio de Rio Bonito – inaugura uma nova fase do desenvolvimen-
to regional, haja vista ser constituída por terras férteis e planas,
propícias para agricultura, sendo necessário organizar os grupos
de trabalhos coletivos, as casas, as escolas, a vida nas novas co-
munidades.
Aspectos que redimensionam o desenvolvimento regional
após a ocupação de parte do latifúndio Giacomet-Marodin pe-
las famílias sem terra que logo se constituiram como assentadas

61
são refletidos nos números da produção nos municípios da re-
gião, bem como na própria qualidade de vida da população de
forma geral. Neste sentido é importante situar a definição do
MST enquanto estratégia organizativa que compreende diferen-
tes dimensões de enfrentamento à lógica constitutiva do modelo
capitalista neoliberal que marcou a década de 1990.
A presença das cooperativas da reforma agrária, com des-
taque para a Cooperativa de Trabalhadores Rurais e Reforma
Agrária do Centro-Oeste do Paraná Ltda (Coagri), representa a
aposta do MST em outra lógica organizativa pautada na coope-
ração, na agroindústria e no desenvolvimento regional. Para Ce-
zimbra (2013), essa perspectiva de desenvolvimento representou
a possibilidade de fortalecer os assentados e a luta pela reforma
agrária numa região marcada pelo latifúndio, pela falta de polí-
ticas públicas e pelo abandono governamental.
A Coagri, a despeito de todas as contradições do modelo que seguiu
com forte viés da agricultura convencional, num aspecto havia con-
senso entre os dirigentes do MST e da diretoria formal da cooperati-
va, era todo apoio às lutas pela terra e pela reforma agrária e as mu-
danças sociais. Isto em termos de disponibilidade de infraestrutura,
finanças e apoio político. Assim, após o ano de 1996, a luta pela terra
ganha grande impulso na região centro-sul da Cantuquiriguaçu e
também para todo o estado do Paraná e com apoio às lutas nacionais
do MST, visto que a Coagri conquistou mais de 8 milhões de reais a
partir de 1994 para investir em infraestrutura que foram os recursos
do teto 2 do Procera (Cezimbra, 2013, p. 68).

Contudo, inserida num contexto de disputa contínua, a


Coagri­, enquanto instituição legal vinculada à luta concreta do
MST, sofreu os efeitos das problemáticas inerentes à luta pela
terra, desde a morosidade nas liberações dos recursos pelo Incra,
as distâncias entre os lotes dos produtores e os locais de proces-
samento e revenda dos produtos, suporte à luta dos trabalhado-
res e as primeiras iniciativas de produção e até as dificuldades na

62
venda dos produtos decorrentes de preconceitos contra os sem
terra (Fabrini, 2002).
A falência da Coagri (Fabrini, 2002; Janata, 2012; Cezimbra,
2013) representou uma quebra de confiança entre os assentados
e a direção do MST da região, e inaugurou uma nova forma de
luta organizativa, pautada nas associações e na luta pela consoli-
dação dos assentamentos e acampamentos na região. Nasceram
também outras experiências de cooperação que foram reconfigu-
rando a própria estrutura organizativa do MST, como os casos da
Cooperativa Terra Viva, no vizinho estado de Santa Catarina, e a
Cooperjunho, em Laranjeiras do Sul (Cezimbra, 2013).
Outra importante experiência inserida neste processo orga-
nizativo, vinculada a uma perspectiva de desenvolvimento re-
gional, tendo por base a constituição e consolidação dos assen-
tamentos de reforma agrária na região, foi a criação do Centro
de Desenvolvimento Sustentável e Agroecologia (Ceagro). Esse
centro de formação, além do trabalho de assistência técnica com
os assentados e acampados da região, colocou-se na perspectiva
de ofertar cursos de formação para os trabalhadores destas áreas,
sobretudo a juventude e as mulheres.
Neste contexto, o Ceagro passou a cumprir na região a tare-
fa de articulação das diferentes áreas conquistadas pelo MST e
também contribui no processo de luta, seja pela terra, seja por
políticas públicas nestas áreas. Neste aspecto a formação e a
educação ganharam centralidade, para além dos aspectos pro-
dutivos, como no caso das Cooperativas. Vários foram os cursos
realizados em parceria com as universidades e com institutos
federais e estaduais de educação, seja em nível Fundamental, na
Educação de Jovens e Adultos (EJA), em nível Médio Profissio-
nal e Tecnólogo.
Em meados dos anos 2000 o Ceagro, em parceria com os
assentados do município de Rio Bonito do Iguaçu, recuperou

63
uma importante área conhecida como Vila Velha. A Vila Velha
é uma área de aproximadamente 300 mil hectares localizados
dentro da reserva legal do assentamento Ireno Alves dos Santos.
Andreetta, Hammel e Silva (2007), no livro Escola em movimen-
to: a conquista dos assentamentos, recuperaram a história deste lo-
cal, desde as origens, como núcleo habitacional dos funcionários
da Usina de Salto Santiago em meados dos anos de 1980, até a
conquista dos assentamentos em 1996-1997 e desejo estratégi-
co da construção de um centro educacional da reforma agrária
neste espaço. Segundo relatos de Monteiro (2003) os assentados
definiram que ali seria a Rurolopólis, uma espécie de centro de
serviços, com mercados, acesso à saúde, lazer e um vasto centro
de formação e educação. Como o local já dispunha de uma in-
fraestrutura básica, com asfalto, rede de água, esgoto e alicerces
de prédios da antiga vila, os esforços estavam na construção das
casas e recuperação dos espaços coletivos. Quando o projeto foi
inviabilizado por forças políticas locais (Monteiro, 2003, apud
Andreetta, Hammel e Silva, 2007), restaram os escombros das
casas que iniciavam o processo de construção.
Com a recuperação do espaço da Vila Velha, o Ceagro pas-
sou a contar com duas unidades, a Unidade Educacional Cea-
gro do Cavaco, localizada no município de Cantagalo, e a Uni-
dade Educacional Ceagro Vila Velha, em Rio Bonito do Iguaçu.
Com a ocupação do espaço da Vila Velha renasceu o antigo de-
sejo de construção de um centro educacional da reforma agrária,
então com novo fôlego, o de constituir neste espaço uma univer-
sidade popular, uma universidade camponesa, dos sem terra. O
que reafirma a compreensão de que a educação como estratégia
para o desenvolvimento das áreas conquistadas e da região sem-
pre permeou a luta dos sem terra.
Neste aspecto de compreender a educação como uma neces-
sidade preemente na luta dos sem terra destaca-se que nos anos

64
2000 já haviam sido conquistadas cerca de 20 escolas em áreas
de assentamentos, sendo que, com a constituição do assenta-
mento Celso Furtado, em 2003-2004, no município de Quedas
do Iguaçu, esse número chega a trinta escolas. Nos dias atuais
(2016) são cerca de 32 escolas em funcionamento, que atendem
mais de 3 mil educandos matriculados da Educação Infantil ao
Ensino Médio.
Outro elemento que cabe destacar no processo de entender a
relação entre o movimento social, com centralidade na inserção
do MST nesta região e no desenvolvimento regional, é a criação
no ano de 2008 do Território da Cidadania da Cantuquirigua-
çu. Esse processo possibilitou a desvinculação política de Gua-
rapuava, centro urbano mais próximo aos municípios da região.
Muito embora, ainda hoje, alguns centros de referências ainda
estejam localizados em Guarapuava, tal como a 5ª Regional de
Saúde, a sede de várias instituições de assistências sociais passam
a ser instaladas em outros espaços do território, aqui cabe desta-
que para a implantação de um campi da UFFS no município de
Laranjeiras do Sul.
Para Coca (2013), a implantação dos Territórios da Cidada-
nia representa uma estratégia política definida no contexto da
reconfiguração do neoliberalismo e da conformação do Estado
mínimo, bem como para o fortalecimento do discurso de com-
bate à pobreza e à miséria, sobretudo intencionalizado desde
organismos internacionais, tais como: a Organização das Na-
ções Unidas (ONU), a Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura (FAO), o Instituto Interamericano
de Cooperação para a Agricultura (IICA), o Banco Mundial
(BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Nas palavras
do autor,
A década de 2000 marcou a introdução do desenvolvimento terri-
torial como uma das principais referências na aplicação de políticas

65
públicas para o campo, no Brasil. Conjuntos de municípios, muitos
dos quais consonantes às microrregiões administrativas, com eleva-
dos índices de pobreza e significativa participação do setor primário,
foram definidos como territórios e passaram a ser o foco de diversas
ações de incentivo à produção agrícola, incremento da infraestrutura
e garantia de direitos sociais por parte do governo federal. As políti-
cas públicas para o campo deixaram de ser centralizadas nos muni-
cípios, passando para os territórios. Passou-se a valorizar um modelo
de gestão “de baixo para cima”, que parte da própria sociedade civil,
em detrimento do modelo centralizador, que tem o Estado como
principal referência de políticas públicas (Coca, 2013, p. 1).

A Cantuquiriguaçu é um dos quatro Territórios da Cida-


dania criados no Paraná. Esse Território, conforme Mapa 1, é
composto por vinte municípios caracterizados pela produção
agropastoril. Segundo dados do Portal da Cidadania, os muni-
cípios constituintes do Território da Cantuquiriguaçu possuem
232.546 habitantes, dos quais mais de 46% vivem na área rural
(Portal da Cidadania, 2013).
Mapa 1

66
A maior parte dos municípios que integram o território da
Cantuquiriguaçu é caracterizada pela presença de assentamen-
tos ou acampamentos do MST, como é possível visualizar no
Mapa 2. Outro destaque é a presença no território de indígenas
aldeados na Terra Indígena Rio das Cobras, a maior do Paraná,
com uma população de 2.263 habitantes, ocupando uma área
de 18.681,98 ha, nos municípios de Nova Laranjeiras e Espigão
Alto do Iguaçu.

Mapa 2

Cezimbra (2013) afirma que o desenvolvimento regional ga-


nha destaque a partir desta configuração e elenca o protagonis-
mo do MST na organização dos assentamentos e acampamen-
tos, fazendo uma interlocução com os demais projetos sociais
da região. A partir da criação do território da Cantuquiriguaçu,
da constituição do Conselho de Desenvolvimento Territorial

67
(Condetec) e das políticas governamentais é possível empreen-
der ações de fortalecimento de um nova matriz produtiva, pau-
tada na agroecologia e em políticas de cooperação. Nas palavras
de Cezimbra:
A região da Cantuquiriguaçu, onde está localizado o assentamento
Oito de Junho, é a segunda região com mais baixo IDH do Paraná,
composta por vinte municípios, que conformam uma associação de
prefeitos, a Associação de Prefeitos da Cantuquiriguaçu, bem como
um Território da Cidadania. A região tem esse nome por conta das
delimitações de três rios que a circundam, a oeste o rio Cantu, ao
norte o rio Piquiri e ao sul o rio Iguaçu. O território da Cantuqui-
riguaçu tem um conselho de desenvolvimento territorial, o Conde-
tec, composto por mais de trinta entidades entre públicas e privadas
que debatem e organizam aspectos do desenvolvimento territorial,
muito influenciados pelas políticas públicas dos governos federal e
estadual­. Esta região encontra-se em transformação socioeconômica,
onde um dos fatores impactantes é a reforma agrária. São mais de
5 mil famílias assentadas, com concentração maior nos municípios
do entorno de Laranjeiras do Sul, a qual constitui-se como cida-
de polo do território. A região é eminentemente agrícola, com cida-
des pequenas. O território todo chega a 232.729 habitantes, sendo
pouco mais da metade da população na média geral ainda rural, ou
seja, mais de 27 mil famílias de agricultores. Destes mais de 80%
são pequenos agricultores. Ainda existem muitos latifúndios, áreas
irregulares e não legalizadas. No território também está concentra-
da a maior população indígena do PR, conforme informa boletim
do Condetec. Por todos estes aspectos ganha relevância o tema do
desenvolvimento rural no território, por ter mais da metade da po-
pulação rural e por conter uma grande quantidade de famílias as-
sentadas e em vias de serem assentadas, pois ainda estão em situação
de acampamentos. Esses assentamentos e acampamentos da região
estão todos vinculados ao MST. No final dos anos [19]80, toda dé-
cada de [19]90 e começo de 2000 houve grandes acampamentos e
grandes ocupações na região. Dessas lutas fortalece-se o MST, bem
como os STRs, as cooperativas da agricultura familiar e da reforma
agrária, o movimento agroecológico e na política partidária o PT
(Cezimbra, 2013, p. 70).

68
O Quadro de Investimentos na Cantuquiriguaçu para o ano
de 2013, sistematizado por Coca (2013) demonstra o rol de in-
vestimentos para apoio às atividades produtivas para o Território
da Cantuquiriguaçu. Destaca-se neste âmbito:

Quadro de Investimentos na Cantuquiriguaçu, ano 2013


Investimento previsto
Ação Órgão
em R$
Apoio a projetos de infraestrutura e Ministério do
350.000,00
serviços em territórios rurais Desenvolvimento Agrário
Aquisição de alimentos provenientes da
Ministério do
agricultura familiar - Plano Brasil Sem 977.147,84
Desenvolvimento Social
Miséria
Ministério do
Programa de aquisição de alimentos 470.842,33
Desenvolvimento Agrário
Assistência técnica especializada para Ministério do
41.666,66
mulheres rurais Desenvolvimento Agrário
Assistência técnica e extensão rural para Ministério do
266.287,66
reforma agrária Desenvolvimento Agrário
Desenvolvimento do associativismo rural Ministério da Agricultura,
120.000,00
e do cooperativismo Pecuária e Abastecimento
Fomento à estruturação e consolidação
Ministério do
de redes socioprodutivas da agricultura 80.000,00
Desenvolvimento Agrário
familiar no âmbito dos territórios rurais
Fomento à participação da agricultura
Ministério do
familiar nas cadeias de energias 80.338,08
Desenvolvimento Agrário
renováveis
Fonte: Portal da Cidadania, 2014. Org: Estevan Coca.

A partir da indicação acima coloca-se a possibilidade de de-


senvolvimento regional dentro de uma ótica de fortalecimento
da organização dos trabalhadores, porém o limite está na condi-
ção de programas e projetos parciais e com prazos determinados.
Neste sentido, pensar ações que de fato pudessem consolidar um
plano estratégico articulado à perspectiva dos trabalhadores na
região representa a possibilidade de avançar a longo prazo e é
nesta esfera que está situada a luta pela implantação da Univer-
sidade Federal da Fronteira Sul neste território.

69
A luta pela implantação da Universidade Federal da
Fronteira Sul e o protagonismo dos movimentos sociais
A implantação de universidades federais no interior do país,
especialmente em pequenos centros habitacionais, ganhou im-
pulso em 2003, com a política de reestruturação e expansão do
Ensino Superior no governo do então presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. Várias foram as instituições de Ensino Superior
que foram criadas neste processo. Dentre elas, ganha destaque
a Universidade Federal da Fronteira Sul, na região sul do país,
com abrangência nos estados de Santa Catarina, Paraná e Rio
Grande do Sul, com campi instalados em seis municípios que
compõem a mesorregião da Fronteira Sul.
As Universidades Federais criadas neste período por região
foram:
– Universidade Federal do ABC (UFABC)
– Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
(FUFCSPA)
– Universidade Federal de Alfenas (Unifal)
– Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)
– Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM)
– Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa)
– Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
– Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)
– Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
– Universidade Federal do Tocantins (UFT)
– Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
– Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)
– Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)
– Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)
– Universidade Federal da Integração Luso-Afro-Brasileira
(Unilab)

70
– Universidade Federal do Cariri (UFCA)
– Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa)
– Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob)
– Universidade Federal do Sul da Bahia (Ufesba)
A UFFS surgiu a partir do Movimento Pró-Universidade
Federal que foi constituído em prol da luta pela implantação
da universidade compreendendo municípios e regiões historica-
mente excluídos do Ensino Superior público e gratuito. A cons-
trução histórica partiu da mobilização social, realizada e con-
duzida pelo conjunto dos movimentos sociais, que entendiam
a necessidade de ter uma universidade pública e de qualidade
nesta região desprovida destas instituições. No site da UFFS é
possível verificar que
A Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) é uma instituição
de ensino superior pública, popular e de qualidade. Criada pela Lei
n. 12.029, de 15 de setembro de 2009, a UFFS abrange mais de qua-
trocentos municípios da Mesorregião Grande Fronteira Mercosul –
Sudoeste do Paraná, Oeste de Santa Catarina e Noroeste do Rio
Grande do Sul (PPI, 2009, p.01).

A constituição histórica da UFFS demarca, como já descrito


acima, um sonho antigo da população desta região e, do mesmo
modo, insere-se na luta dos movimentos sociais em prol do de-
senvolvimento regional. No caso do Paraná, sobretudo na ins-
tituição de um campus da UFFS em Laranjeiras do Sul, ganha
destaque a atuação efetiva da Via Campesina e do MST.
Para Ló e Trevisol (2013),
As mobilizações se intensificaram, dando origem, em 2005, ao Mo-
vimento Pró-Universidade Federal (MPUF). Coordenado pela Fe-
deração dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul e
pelo MST, e integrado pelo Fórum da Mesorregião Grande Frontei-
ra do Mercosul, igrejas, movimento estudantil, associações de pre-
feitos, vereadores, deputados (estaduais e federais) e senadores dos
três estados do Sul, o movimento passou a articular os diferentes

71
movimentos e lideranças em prol do projeto de implantação de uma
universidade pública federal na região (Ló, Trevisol, 2013, p. 27).

Em maio de 2006, segundo Ló e Trevisol (2013), foi instituí-


do o Grupo de Trabalho pela Portaria 356/GR/2006, vinculado
à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Este Gru-
po de Trabalho teria prazo até o final de 2006 para apresentar
o projeto da nova universidade. Esse processo foi marcado por
uma série de reuniões e mobilizações, nos diversos municípios
da mesorregião da Fronteira Sul.
No Paraná o movimento não foi diferente, além das disputas
políticas entre as cidades das regiões centro-sul e sudoeste do
estado que tinham interesse na consolidação dos campi, várias
mobilizações, reuniões políticas nas prefeituras da região marca-
ram as ações do Grupo de Trabalho. O Movimento Pró-Univer-
sidade Federal era constituído pela sociedade civil organizada,
movimentos e organizações sociais e sindicais, organizações não
governamentais, pequenos empresários, escolas da região, com
grande destaque para os movimentos sociais articulados na Via
Campesina, dentre os quais o MST. Também tiveram presença
efetiva o Condetec e a Associação dos Prefeitos da Cantuquiru-
guaçu.
As mobilizações contaram com uma ampla participação po-
pular, desde os abaixo-assinados, as passeatas em praças públi-
cas, a presença das escolas da Educação Básica e as discussões
em todos os âmbitos da sociedade civil.
Como resultado deste processo, o Paraná foi contemplado
com dois campi, sendo instituído um campus em Laranjeiras do
Sul e outro em Realeza. Os cursos implantados no primeiro ano
na UFFS, campus de Laranjeiras do Sul, foram resultado de uma
avaliação contextual a partir das necessidades vinculadas ao de-
senvolvimento regional do território da Cantuquiriguaçu.

72
A predominância de atividades econômicas vinculadas à
agricultura da maior parte dos municípios foi a justificativa para
a implantação dos seis cursos de graduação5 ofertados neste cam-
pus da UFFS, sendo que quatro cursos são de bacharelado e dois
são de licenciatura. Apesar de alguns elementos característicos
dos demais cursos de licenciaturas ofertados em outras univer-
sidades próximas, os cursos oferecidos no campus da UFFS em
Laranjeiras do Sul apresentam os diferenciais da Educação do
Campo6 e do regime de alternância.7
Para Cezimbra (2013), a implantação de um campus da UFFS
em Laranjeiras do Sul está no rol das ações estratégicas do de-
senvolvimento regional.
É o campus da UFFS que tem seus cursos voltados para a perspec-
tiva do desenvolvimento regional, definidos nos espaços de atuação
dos movimentos sociais. Os cursos são: Agronomia com ênfase em
Agroecologia, Engenharia de Aquicultura, Engenharia de Alimen-
tos, Economia Política, com foco em cooperativismo e na economia

5
Dentre os cursos de graduação ofertados no campus da UFFS em Laranjeiras do
Sul, cinco são de bacharelado e dois são de licenciatura, sendo eles: Agronomia –
linha de formação em Agroecologia (bacharelado), Ciências Econômicas (bacha-
relado), Engenharia de Alimentos (bacharelado) e Engenharia de Aquicultura
(bacharelado), Interdisciplinar em Educação do Campo: Ciências Sociais e Hu-
manas (licenciatura) e o Interdisciplinar em Educação no Campo (licenciatura).
6
Ver Caldart (2008).
7
No caso do curso Interdisciplinar em Educação do Campo: Ciências Sociais e
Humanas – Licenciatura “O curso será desenvolvido de forma presencial pressu-
pondo a instituição da alternância como estratégia curricular. Entende-se como
alternância a existência de espaços e tempos de formação que promovam a inte-
gração do curso com instituições educativas e/ou do poder público e com orga-
nizações da sociedade civil, todas vistas como corresponsáveis pela formação dos
estudantes da Licenciatura. A organização do curso se dá em ‘momentos’ peda-
gógicos que interagem – chamados de ‘Tempo Universidade’ e ‘Tempo Comu-
nidade’ – para envolver o educando num processo educativo uno, que articula
a experiência acadêmica (universitária) propriamente dita com a experiência de
trabalho e vida no seio da comunidade onde vive. Tempo Universidade e Tempo
Comunidade estarão imbricados, já que são formas metodológicas de interlocu-
ção sobre os mesmos temas.” (UFFS, 2013, p. 42-43).

73
solidária, e Educação de Campo, pela forte presença de escolas no
campo, municipais e estaduais, principalmente nos assentamentos
e também nas comunidades indígenas e em algumas comunidades
rurais. Isto se deve ainda à forte presença de pequenos agricultores
no campo, como acima atestam os dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), e pelas lutas por terra, tanto dos sem
terra do MST, como dos indígenas, que recuperam suas áreas já per-
didas, em Nova Laranjeiras, e em recuperação de uma área de 7 mil
hectares em Laranjeiras do Sul. A participação dos movimentos so-
ciais no conselho do território, o Condetec, deu-se através de muito
debate e choque de ideias. Havia muita resistência de representantes
de prefeituras e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Ru-
ral (Emater), quanto à ideologia mais transformadora e progressista
dos movimentos sociais contra uma ideologia mais conservadora e
até preconceituosa. Mas como a presença era muito grande, logo se
tornou ampla maioria, aos poucos num mútuo aprendizado, com
participação de representantes do governo federal e intelectuais que
reforçaram uma visão mais popular do desenvolvimento regional,
inclusivo, agroecológico, fazendo com que houvesse um amadureci-
mento nos debates e proposições. Sendo a bandeira da educação uma
das que ganhou mais destaques, devido ao alto índice de analfabe-
tismo no campo, chegando a mais de 30% em algumas situações,
ao pouco acesso dos jovens do campo às escolas secundárias e quase
nenhum acesso às universidades públicas. Daí por que a ênfase na
luta pela universidade federal, hoje a UFFS, como já se mencionou.
Outra ênfase do trabalho no território foi o do cooperativismo so-
lidário e o empenho em desenvolver a bacia leiteira na região, ati-
vidade esta em franco crescimento quantitativo e qualitativo, com
algumas experiências em fase de agroindustrialização (Cezimbra,
2013, p. 71-72).

Além da trajetória da implementação marcada pela esperan-


ça e pelo protagonismo dos trabalhadores, que viam na consti-
tuição da UFFS uma possibilidade de continuar os estudos, de
não abandonar suas casas e famílias para poder acessar o Ensino
Superior, o campus Laranjeiras do Sul está localizado em um
assentamento da reforma agrária, o que coloca a necessidade do
diálogo com a realidade dos trabalhadores do campo, dos as-

74
sentados e do desenvolvimento desta região. Fruto do esforço
coletivo e da organização da comunidade regional, a UFFS é, na
análise de Loss e Kratochvil,
a primeira universidade pública federal cuja criação deveu-se, dire-
tamente, ao poder de mobilização e de convencimento público pelos
movimentos sociais e pelas lideranças políticas e comunitárias. As
redes de associativismo civil e o denso tecido de organizações sociais
da região – berço de alguns dos principais movimentos sociais do
campo do Brasil – foram mobilizados para a formulação do projeto
de universidade e sua subsequente concretização (Loss; Kratochvil,
2013, p. 7).

Segundo Silva e Hammel (2016), a UFFS em Laranjeiras do


Sul é o primeiro campus de uma universidade federal no Brasil
localizado na área rural em uma região do interior do estado, em
um assentamento de reforma agrária vinculado ao MST, viabi-
lizado na parceria com o Incra.
O campus de Laranjeiras do Sul se edifica dentro do assentamento
08 de Junho, que conta hoje com cerca de setenta famílias assenta-
das. Para instituição da universidade neste assentamento de reforma
agrária, no ano de 2010, as famílias ali assentadas, em discussão co-
letiva, decidiram por ceder três lotes que integravam o assentamento
para construção do campus da UFFS (Silva; Hammel, 2016, p. 47)

Os elementos destacados acima expressam a proposição de


uma universidade que se configura a partir e em vínculo direto
com uma perspectiva de desenvolvimento, sendo que, além do
ensino de excelência e vinculado ao desenvolvimento regional,
traz a pesquisa e a extensão centradas na aproximação das de-
mandas dos movimentos e organizações dos trabalhadores desta
região. A tríade ensino, pesquisa e extensão, a partir dos cur-
sos existentes, abre um leque de possibilidades na perspectiva
de atender as demandas da comunidade regional, organizadas
nas diferentes instâncias da universidade, com destaque para o
conselho comunitário que, conforme o estatuto da universidade

75
(UFFS, 2015), constitui-se como órgão consultivo do campus
universitário da UFFS.
Na sequência do texto serão apresentados elementos consti-
tuintes do projeto pedagógico institucional e da forma organiza-
tiva da UFFS que visam atender ao princípio de desenvolvimen-
to da mesorregião da Fronteira Sul.

A interdependência entre ensino, pesquisa e extensão e a


participação da comunidade regional
Como já foi dito anteriormente, a UFFS nasce com um proje-
to inovador, vinculado às necessidades da comunidade regional;
isso é afirmado categoricamente em seu perfil ao explicitar que:
A Universidade Federal da Fronteira Sul caracteriza-se por voltar-
-se às necessidades da mesorregião Grande Fronteira Mercosul onde
está instalada, configurando-se como universidade: pública e popu-
lar; de qualidade, comprometida com a formação de cidadãos cons-
cientes e comprometidos com o desenvolvimento sustentável e soli-
dário da região sul do Brasil; democrática, autônoma, que respeite a
pluralidade de pensamento e a diversidade cultural, com a garantia
de espaços de participação dos diferentes sujeitos sociais; que esta-
beleça dispositivos de combate às desigualdades sociais e regionais,
incluindo condições de acesso e permanência no ensino superior, es-
pecialmente da população mais excluída do campo e da cidade; que
tenha na agricultura familiar um setor estruturador e dinamizador
do processo de desenvolvimento; que tenha como premissa a valori-
zação e a superação da matriz produtiva existente (UFFS, 2015, p. 1).

A partir desta proposta, a universidade se coloca como um


fator determinante na possibilidade de formação de profissionais
capazes de entender a realidade num sentido amplo, consideran-
do outros aspectos para além de sua área de formação específica,
tendo na interdisciplinaridade a aposta para superar os limites
colocados na especialização e fragmentação do conhecimento,
elemento postulado com primazia pela ciência moderna. Assim,
a proposta curricular da UFFS está pautada em três grandes do-

76
mínios, concebidos como Domínio Comum, Domínio Conexo
e Domínio Específico. No Projeto Pedagógico Institucional da
UFFS (UFFS, 2009) é possível observar a estruturação e a in-
tencionalidade desta organização.
Tal forma de organização curricular tem por objetivo assegurar que
todos os estudantes da UFFS recebam uma formação cidadã, inter-
disciplinar e profissional, possibilitando otimizar a gestão da oferta
de disciplinas pelo corpo docente e, como consequência, ampliar
as oportunidades de acesso à comunidade. A finalidade do Domí-
nio Comum é: a) desenvolver em todos os estudantes da UFFS as
habilidades e competências instrumentais consideradas fundamen-
tais para o bom desempenho de qualquer profissional (capacidade
de análise, síntese, interpretação de gráficos, tabelas, estatísticas;
capacidade de expressar-se com clareza); b) dominar minimamente
as tecnologias contemporâneas de informação e comunicação; e c)
despertar nos estudantes a consciência sobre as questões que dizem
respeito ao convívio humano em sociedade, às relações de poder, às
valorações sociais, à organização sociopolítico, econômica e cultu-
ral das sociedades, nas suas várias dimensões (municipal, estadual,
nacional, regional, internacional). Entende-se por Domínio Conexo
o conjunto de disciplinas que se situam em espaço de interface de
vários cursos, sem, no entanto, poderem ser caracterizadas como ex-
clusivas de um ou de outro. Na consolidação do modelo de pesquisa
institucional, são incentivadas práticas de iniciação científica, com
avaliação quanti-qualitativa e relevância da investigação científica,
em sintonia com os domínios conexos que caracterizam a identidade
acadêmica da Instituição. Assim, contempla-se o incentivo à criação
de núcleos de pesquisa e de iniciação científica e das práticas investi-
gativas interdisciplinares, fortalecendo linhas de pesquisa institucio-
nais num primeiro momento, para serem sucedidas pelas práticas de
pesquisa em seu sentido mais amplo, de modo a traduzir e atender
efetiva e prioritariamente às demandas regionais e às necessidades da
coletividade (PPI, 2009, p. 3).

Esse apontamento demarca uma nova forma de conceber o


ensino pautado no entendimento da importância de uma forma-
ção generalista que entende o ser humano como um ser integral,
completo e que todo conhecimento é necessário e formativo.

77
Os cursos de graduação e pós-graduação da UFFS buscam
formar profissionais cidadãos, comprometidos com uma socie-
dade justa, com capacidade técnica, teórica, emocional e cultu-
ral. Esta característica demonstra que, imbuída na formação, há
uma intencionalidade educativa para além do curso, a necessi-
dade de superar a forma da sociedade capitalista. Essa possibi-
lidade está posta no amplo diálogo com a comunidade, com os
movimentos e organizações sociais.
Outras formas de oferta dos cursos, tais como a alternância e
cursos em parcerias com movimentos e organizações sociais têm
viabilizado a permanência de estudantes das comunidades mais
distantes e sem condições de frequência regular. Da mesma for-
ma, isso tem estreitado o diálogo direto e permanente a propó-
sito das contradições entre o avanço do capital e as resistências
dos trabalhadores do campo, sejam eles assentados, pequenos
proprietários, indígenas ou quilombolas. A Fronteira Sul, de for-
ma geral, e em específico os municípios que compõem o terri-
tório da Cantuquiriguaçu, tem se apresentado como espaço de
luta destas populações.
O Projeto Político Curricular do curso interdisciplinar em
Educação do Campo: Ciências Sociais e Humanas – Licencia-
tura, por exemplo, apresenta elementos desta proposta, quando
afirma que:
Desenvolver metodologias que ajudem a compreender esse movi-
mento da realidade é tarefa inadiável do Ensino Superior na for-
mação de novos educadores e educadoras. Nesse sentido aparece a
importância do curso em regime de alternância onde, no proces-
so vivido didaticamente pelos sujeitos educativos, articula-se o co-
nhecimento teórico com a materialidade. As ideias, como um dos
produtos da existência humana, sofrem as mesmas determinações
históricas. As ideias são a expressão das relações e atividades reais
do homem, estabelecidas no processo de produção de sua existência
(UFFS, 2013, p. 35).

78
Assim, os cursos propostos pela UFFS, a partir dos conheci-
mentos e das vivências, buscam formar profissionais que apren-
dam, através do ensino, da pesquisa e da extensão, da práxis so-
cial, da interdisciplinaridade, a ser profissionais comprometidos
com o desenvolvimento de suas comunidades e da região.
Em seu Projeto Pedagógico Institucional, a UFFS indica
como pressuposto filosófico, político e acadêmico, que deve
orientar suas ações “à integração orgânica das atividades de en-
sino, pesquisa e extensão desde a origem da instituição” (PPI,
2009, p. 1). Isso remete à possibilidade de ações integradas e
considera as expectativas dos sujeitos coletivos e individuais des-
ta região, a partir da presença de uma Universidade Federal nes-
te Território.
Em sua I Conferência de Ensino, Pesquisa e Extensão
(Coepe­), a UFFS indicou as áreas temáticas prioritárias dentro
do tripé ensino, pesquisa e extensão. Destaca-se aqui novamen-
te a interdependência entre essas três dimensões do Ensino Su-
perior, que, articuladas às demandas da comunidade regional
e à definição estratégica da universidade, colocam-na na con-
dição de centro de referência e irradiador do desenvolvimento
regional. A própria forma de organização da I Coepe cumpriu
um papel importante na relação com a comunidade regional.
A Conferência se configurou como momento em que cada seg-
mento da sociedade trouxe contribuições para a concretização
da UFFS, ao mesmo tempo em que projetou sua expansão.
Assim, a UFFS vem buscando cumprir o papel que tinha em
seu nascedouro, ainda no Movimento Pró-Universidade Fede-
ral, numa região historicamente excluída do Ensino Superior e
onde a pesquisa e extensão eram desconhecidas.
Trata-se de equacionar a necessidade de investimentos na produção
de conhecimentos científicos e inovações tecnológicas de que o país
carece, e a democratização do acesso a esses investimentos para as

79
populações tradicionalmente excluídas. Desta forma, pretende-se
que essas populações sejam protagonistas do processo de desenvol-
vimento econômico, promovendo a geração e distribuição de rique-
zas para seu próprio benefício, superando o modelo tradicional que
visa à mera qualificação de uns poucos para um mercado formal de
trabalho que não dá conta de absorver a maioria dessas populações.

Ao mesmo tempo, não se trata apenas de superar a exclusão eco-


nômica. O desenvolvimento social requer a participação cultural e
política, garantindo o controle e a tomada de decisões às populações
historicamente excluídas de quaisquer instâncias de poder. A apro-
priação de conhecimentos científicos e tecnológicos é um pressupos-
to para o exercício da cidadania responsável (UFFS, 2010, p. 11).

A partir das questões apontadas acima, seja no ensino, na


pesquisa e na extensão, a UFFS campus Laranjeiras do Sul –
com um corpo docente estruturado, com discentes majoritaria-
mente oriundos da escola pública, que se constitui em quase sua
totalidade na primeira geração a ingressar em uma universidade,
sendo muitos deles trabalhadores do campo –, busca responder
às demandas históricas desta região.
Na relação com a comunidade regional, além dos seis cursos
acima citados, ganham destaque os programas de extensão, os
núcleos de pesquisa e extensão em diferentes áreas, o que propi-
cia o desenvolvimento de pesquisas com foco na flora, na fauna,
na diversidade e nos saberes da população regional, bem como
em suas necessidades e anseios.
As fotos na sequência registram atividades com a comunida-
de regional, com temáticas relevantes para o desenvolvimento
regional, pautadas na Educação do Campo, na Agroecologia, na
Cooperação, na Economia Solidária, na Alimentação Saudável,
entre outras questões relevantes para o território da Cantuquiri-
guaçu e para os movimentos sociais que o integram.

80
Mística de abertura da primeira turma do curso interdisciplinar em
Educação do Campo: Ciências Socais e Humanas/licenciatura

Confecção do mural “Que a universidade se pinte de povo!”

Formação de Educadores

Formação de Educadores Escola da Terra – UFFS/MST/MEC/Secadi. Maio de 2016

81
Núcleo de Estudos em Soberania Alimentar – NEASsanKaru Porá

Formação continuada de produtores da região

Ações na área de Cooperação

82
Incentivo às feiras – Feira Regional de Economia Solidária e Agroecologia

83
Educação do Campo

5º Seminário Nacional das Licenciaturas em Educação do Campo – 08 a 11 de dezembro de 2015

Jornadas Universitárias em Defesa da Reforma Agrária (JURAs)

Cartaz da III Jornada Universitária

84
Referências
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de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista, Presi-
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HAMMEL, Ana Cristina; SILVA, Nilton C.; ANDREETTA, Ritamar
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JANATA, Natacha Eugênia. “Juventude Que Ousa Lutar!”: Trabalho, Edu-
cação e Militância de Jovens Assentados do MST. 2012. 278 p. Tese
de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.
LÓ, M. A.; TREVISOL, J. V. Educação e política: movimentos sociais e
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pular: um sonho possível de ser concretização. São Paulo: Uninove,
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2003. Cadernos do ITERRA, ano III, n. 8.
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dade Federal da Fronteira Sul (UFFS) no território Cantuquiriguaçu

85
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______. I Conferência de Ensino, Pesquisa e Extensão – COEPE: Cons-
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______.Projeto Político Institucional. UFFS, 2009. Disponível em: <http://
uffs.edu.br/index.php?option=com_content&view=article&id=87&
Itemid=825>. Acesso em 30 de julho de 2016.
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nível em: <http://www.uffs.edu.br/images/CIS/estatuto%20da%20
uffs%20-%20aprovado%20consuni%20e%20mec.pdf>. Acesso em
30 de julho de 2016.

86
O M ST E A PAU L ATINA OCU PAÇ ÃO
DO “ L ATIFÚ N DIO DO SAB ER E DO
CON HECI M ENTO”: O C AM IN HAR COM A S
U N IVERS IDADES PÚ B LIC A S NO CE AR Á

Adelaide Maria Gonçalves Pereira1


Celecina Maria de Veras Sales2
Célia Maria Machado de Brito3
José Ernandi Mendes 4
Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo5
Lia Pinheiro Barbosa 6
Liana Brito de Castro Araújo7
Maria Inês Escobar 8

Da necessidade histórica de ocupar mais um latifúndio: o


do saber
Há três décadas, quando o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) levantou a bandeira da reforma agrá-
ria e deu continuidade à memória da luta camponesa no Brasil,
reconheceu que a ruptura do latifúndio da terra precedia outra
ruptura, aquela vinculada com “o latifúndio do analfabetismo
1
Docente da Universidade Federal do Ceará – Departamento de História.
2
Docente da Universidade Federal do Ceará – Programa de Pós-Graduação em
Educação Brasileira.
3
Docente da Universidade Estadual do Ceará – Centro de Educação.
4
Docente da Universidade Estadual do Ceará – Centro de Educação.
5
Docente da Universidade Federal do Ceará – Programa Residência.
6
Docente da Universidade Estadual do Ceará – Programa de Pós-Graduação em
Sociologia.
7
Docente da Universidade Estadual do Ceará – Mestrado Acadêmico em Serviço
Social, Trabalho e Questão Social.
8
Docente da Universidade Federal do Ceará – campus Cariri.

87
e da educação burguesa, fazendo a reforma agrária também do
saber e da cultura” (MST, 2005, p. 31). Embasados por esta
premissa, o MST recupera, em perspectiva crítica, o legado da
Pedagogia do Oprimido (Freire, 1987) e reivindica uma práxis
educativa libertadora, ao elaborar uma concepção de educação e
pedagogia intimamente relacionada à luta pela terra e à realiza-
ção da reforma agrária.
Nessa direção, ao longo de sua trajetória política, o MST tem
consolidado um projeto educativo próprio, avançando na conquis-
ta de suas escolas, sejam aquelas de caráter autônomo, a exemplo
da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e do Instituto de
Educação Josué de Castro (IEJC), ou ainda aquelas conquistadas
no território de disputa de projetos educativos, como as Escolas
Itinerantes e as Escolas do Campo. De igual maneira, o MST
tem historicamente tensionado as universidades para ocupar o
chamado “latifúndio do saber e do conhecimento” na busca por
“derrubar as cercas” ainda presentes nesses espaços. Isto ocorre no
campo de disputa hegemônica com o Estado, no debate político
de uma educação no e para o campo, e na reivindicação da Políti-
ca Nacional de Educação do Campo, como também nas diversas
estratégias de articulação com professores e estudantes que cons-
troem, de forma coletiva, propostas de formação acadêmica, pes-
quisas voltadas para as questões postas nos assentamentos rurais
e na própria dinâmica do Movimento, assim como projetos de
extensão, que permitem uma rica aproximação entre estudantes
das universidades, acampados e assentados.
O presente texto é um esforço coletivo de síntese do processo
de aproximação e articulação entre o MST e as universidades
públicas no Ceará. Interessa-nos destacar as primeiras experiên-
cias desenvolvidas e o seminário que delas emerge no paulatino
processo de derrubada das cercas que ainda são/estão presentes
no formato da universidade burguesa. Estamos conscientes que

88
não conseguimos incorporar a totalidade das atividades desen-
volvidas e/ou projetos em curso, dada a amplitude destas.

O I Enera como marco do diálogo


entre universidade e MST
O I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Re-
forma Agrária (I Enera), realizado em 1997 em Brasília, consti-
tui um marco na articulação da defesa da educação na perspec-
tiva da luta pela terra e pela Reforma Agrária. O Movimento por
uma Educação do Campo e as duas Conferências Nacionais Por
uma Educação do Campo ampliam o debate nacional e con-
cretizam uma maior aproximação entre o MST e os professo-
res universitários. Nesse sentido, a concepção da Educação do
Campo como projeto político possibilita o entrelaçar de um di-
álogo mais orgânico com os professores, sobretudo para avançar
na ocupação do latifúndio do saber, por meio da democratiza-
ção do acesso à educação para os povos do campo.
No Ceará, as primeiras aproximações acontecem a partir da
iniciativa de professores pesquisadores, cuja trajetória acadêmica
sempre esteve motivada pela memória da luta camponesa, pela
Educação de Jovens e Adultos e as experiências educativas junto
aos acampamentos e assentamentos do MST. Inclusive, alguns
desses professores participaram na agenda aberta pelo I Enera
e as Conferências Nacionais por uma Educação do Campo. É
importante salientar que o Ceará se destacou na constituição do
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)
colaborando, junto com outras cinco universidades de outros
Estados, na concepção e implementação do programa. A criação
do Pronera proporcionou uma maior abertura das universidades
às parcerias com o programa, bem como outras iniciativas de
pesquisa e extensão relacionadas à questão agrária, às lutas so-
ciais e políticas no campo.

89
Sendo assim, no mesmo ano de implantação do Pronera, a
Universidade Estadual do Ceará (Uece), a Universidade Fede-
ral do Ceará (UFC) e a Universidade Estadual Vale do Acaraú
(UVA), conjuntamente com o Instituto Nacional de Coloniza-
ção e Reforma Agrária (Incra/CE) recebem as demandas edu-
cativas do MST e da Federação dos Trabalhadores Rurais do
Ceará (Fetraece). Da parceria entre as três universidades locais e
o Incra/CE desenvolveu-se um grande projeto de Alfabetização
de Jovens e Adultos e de Escolarização de Educadores, em vá-
rias regiões do Estado, no âmbito dos assentamentos de reforma
agrária. Uma das principais metas era a redução do analfabe-
tismo nas áreas de assentamentos no Ceará. Com esta primeira
experiência surgiram sete novos projetos, envolvendo a UFC e
a Uece, em parceria com a Fetraece e com o MST. Os proje-
tos abrangiam os cursos de alfabetização e escolarização no 1º
segmento do Ensino Fundamental (325 turmas), Escolarização
nível Médio (uma turma), formação em magistério nível Mé-
dio (seis turmas), Pedagogia nível Superior (duas turmas), espe-
cialização em Agricultura Familiar Camponesa e Educação do
Campo (uma turma), com o envolvimento de aproximadamente
7 mil alunos de diversos assentamentos (Brito et. al.: 2007).
Em julho de 2004, o MST apresenta à Uece demanda para
novos cursos. Há a constituição do grupo de trabalho com pro-
fessores da universidade, representantes do MST e do Incra/CE,
que resultou na apresentação e posterior aprovação, em abril de
2005, dos seguintes projetos (Brito et al., 2007):
1. Projeto de Formação de Educadores e Educadoras de As-
sentamentos Rurais – Magistério da Terra, em área de reforma
agrária do Ceará. Tratava-se de um projeto de formação de 240
professores de nível Médio, com habilitação em Educação de
Jovens e Adultos para atuação na Educação do Campo. O refe-
rido projeto foi coordenado pela Uece e referenciado em grade

90
curricular da escola pública estadual pelo Instituto de Educação
do Ceará (IEC), com duração de quatro anos, e carga horária de
4 mil horas-aula.
2. Projetos de Escolarização de Trabalhadores e Trabalhado-
ras Rurais de Assentamento Rural do Ceará: I – Centro-Norte
e II – Centro-Sul. Ao longo de dois anos (2006/2007), o pro-
jeto desenvolveu ações de escolarização até o 4a ano do Ensino
Fundamental de 4.600 jovens e adultos assentados no estado do
Ceará, com certificação pelos Centros de Educação de Jovens e
Adultos (Ceja) da Secretaria de Educação Básica do Estado do
Ceará (Seduc). Os três projetos aconteceram de forma integrada
tendo em vista que parte dos educadores e educadoras dos pro-
jetos de Escolarização cursaram o Magistério de nível Médio, no
Projeto de Formação.
Os dois projetos acima mencionados, desenvolvidos pela Uece
no âmbito do Pronera, assumiram como abordagem pedagógica
a Pedagogia da Alternância. Com relação à matriz curricular, o
Magistério da Terra propôs quatro eixos temáticos: 1) Terra e
Trabalho; 2) Educação do Campo; 3) Cultura e Modo de Vida;
e, 4) Lutas Sociais e Sujeitos Coletivos. A existência desses eixos
foi justificada pela relação que todos tinham com a vida e a luta
dos trabalhadores do campo, as quais também dizem respeito às
trajetórias dos educandos do curso (Mendes, 2007).
É fundamental destacar que, entre os anos 2012-2013,
numa parceria realizada entre o Ministério da Reforma Agrária
(MDA), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a
Cátedra de Educação do Campo e Desenvolvimento Territo-
rial da Universidade Estadual Paulista (Unesp), foi realizada a II
Pesquisa Nacional de Educação em Áreas de Reforma Agrária
(II PNERA). O estado do Ceará participou da pesquisa com o
“objetivo de identificar, sistematizar e disponibilizar, através da
criação de um banco de dados, o Data-Pronera, a produção e

91
as contribuições do Pronera no conjunto das ações educativas
voltadas para o campo, entre 1998 e 2011” (Brasil, 2013, p. 4).
Conforme relatório final do II PNERA, a pesquisa:
constou de um levantamento criterioso da produção e repercussão
de doze projetos desenvolvidos no período que abrange a pesquisa,
identificando cursos por modalidade, educandos (as) ingressantes
e concludentes, perfil dos educadores envolvidos, organizações de-
mandantes, parceiros, procedendo ainda um levantamento da pro-
dução bibliográfica sobre o Pronera (Brasil, 2013, p. 04-05).

O relatório final do II PNERA apresenta maior detalhamen-


to com relação às dimensões pesquisadas, os cursos desenvol-
vidos, os territórios contemplados com os cursos, o perfil dos
educandos e dos professores-educadores, bem como a produção
bibliográfica resultante do Pronera e sobre o Pronera. Vejamos
o aprofundamento do diálogo entre MST e universidades pú-
blicas cearenses com relação à criação de cursos de Educação
Superior para os povos do campo, em áreas de assentamento de
reforma agrária no Ceará.

A democratização do acesso à Educação Superior para os


povos do campo
No que concerne à Educação Superior, o MST avançou no
diálogo com as universidades públicas cearenses, e consolidou
a conquista de cinco cursos: o pioneiro, em 2005, Licenciatura
em Pedagogia, conhecido como Pedagogia da Terra, coordena-
do pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com
o Ministério de Educação e o Incra. O curso Pedagogia da Terra
formou, em 2008, aproximadamente 100 Educadoras e Edu-
cadores do Campo, militantes do MST, membros da Comis-
são Pastoral da Terra (CPT) e de outros movimentos sociais do
campo, como Movimento dos Pequenos Agricultores (PMA),
Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador

92
(Cetra) e movimento indígena provenientes dos estados do Cea­
rá, Paraíba, Rio Grande do Norte e Maranhão.
Logo, ainda na UFC, o Curso de Comunicação Social
da Terra, que aconteceu entre 2009 e 2013, formou 45 co-
municadores sociais provenientes do MST, do Movimento
dos Atingidos por Barragens (MAB), da CPT e de Pontos
de Cultura provenientes de assentamentos de reforma agrária
de diferentes estados do Brasil. Outros dois cursos estão em
andamento pela Universidade Estadual do Ceará: a Licencia-
tura em Educação do Campo e o Serviço Social da Terra, e
o terceiro, Segunda Habilitação em História e em Geografia,
iniciou suas atividades em 2015, na Universidade Estadual
Vale do Acaraú, com 65 educandos, entre eles, militantes do
MST, educadoras e educadores das escolas de Ensino Médio
do Campo, professores dos sindicatos de professores muni-
cipais, comunidades quilombolas, coletivo de educadores e
educadoras da reforma agrária, além de egressos do curso Pe-
dagogia da Terra.
A experiência na Uece com a criação do curso de Serviço
Social da Terra surgiu a partir de um tensionamento do MST
apresentando à reitoria da Uece um documento com suas de-
mandas. Dessa iniciativa do Movimento iniciou-se um diálogo
entre militantes e professores do curso de Serviço Social que re-
sultou na proposta de formação de sessenta educandos de áreas
de reforma agrária do Nordeste e Norte.
O convênio entre Uece/Incra/Pronera foi aprovado em 2011
e o curso de Serviço Social da Terra iniciou em 2013 (com previ-
são de término para 2017), após uma forte pressão dos educan-
dos dispostos a ocupar a universidade caso as providências buro-
cráticas não fossem resolvidas para tal. Iniciamos a formação em
Serviço Social com uma turma de sessenta educandos de áreas
de reforma agrária do Nordeste e Norte, por meio do convênio

93
Funece/Incra/Pronera em parceria com o MST, MPA, MAB,
CPT e comunidades quilombolas.
Os educandos estão terminando o 5º semestre, realizando o
estágio supervisionado. Trata-se de um momento rico da forma-
ção e da inserção dos educandos nos diversos espaços institucio-
nais em Fortaleza e nos municípios onde residem, considerando
que esta atividade foi realizada parcialmente no Tempo Escola,
em Fortaleza, e está sendo desenvolvida em seus municípios, no
Tempo Comunidade.
Esta experiência nos permite expandir a IES Pública para os
trabalhadores rurais, uma possibilidade construída a partir da
prática política do MST e dos demais movimentos sociais do
campo parceiros. O curso Serviço Social da Terra também re-
presenta uma conquista da categoria dos assistentes sociais que,
historicamente, tem defendido a luta dos movimentos sociais
em geral.
A formação dessa turma e toda a dinâmica coletiva de gestão
dos trabalhos de coordenação e do acompanhamento pedagó-
gico têm ensinado muito àqueles que desse projeto participam,
tanto os professores, educandos, quanto militantes dos movi-
mentos sociais do campo, pois tem criado possibilidades únicas
de construção de um trabalho compartilhado entre Uece, MST,
ENFF, o Incra, outros movimentos sociais do campo e estu-
dantes. Esse coletivo trabalha intensamente na perspectiva de
desconstrução do latifúndio do conhecimento e da derrubada
das cercas da universidade. Essa história está sendo construída
por muitos que contribuem para esta formação, entre eles, des-
tacamos aqui os profissionais que receberam os educandos como
estagiários em suas instituições.
Pelo Programa Residência Agrária, foram desenvolvidos dois
cursos de especialização na região do Cariri, no extremo sul do
Ceará, pela Universidade Federal do Ceará, campus Cariri: Es-

94
pecialização em Desenvolvimento Regional Sustentável do Se-
miárido Cearense e Educação do Campo (2012-2013), e a Es-
pecialização em Cultura Popular, Arte e Educação do Campo
(2013-2015).9 E um terceiro curso, Especialização em Exten-
são Rural Agroecológica e Desenvolvimento Rural Sustentável,
também pela Universidade Federal do Ceará, campus Fortaleza.
A especialização em Desenvolvimento Regional Sustentável
do Semiárido Cearense e Educação do Campo foi resultado da
parceria entre MST, UFC-Cariri, Cáritas Diocesana, Fetraece
e o Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec), e propor-
cionou a formação de 36 especialistas. Atuou, especificamente,
na formação de profissionais da extensão rural, e educadoras e
educadores do campo a partir de uma metodologia dialógica,
realizada por meio de etapas de aprendizagem e temas geradores
acerca da realidade do estado do Ceará e dos interesses de seus
sujeitos. Um dos seus principais objetivos foi o de qualificar pro-
fissionais para atuarem na Extensão Rural/Assistência Técnica
e Extensão Rural (Ater), como também na educação a partir
das especificidades do semiárido cearense. Igualmente visou a
qualificação em novas bases educativo-pedagógicas, quais se-
jam: formação humanista, política e social, comprometida com
a transformação da realidade dos povos do campo; formação
questionadora da visão reducionista e tecnicista, formação crí-
tica, comprometida e estimulada para o exercício de um pensar
teórico em torno do desenvolvimento do campo.
A especialização em Cultura Popular, Arte e Educação do
Campo foi resultado da parceria entre MST e UFC-Cariri, com
a formação de 36 especialistas, com sólida base tecnocientífica,

9
Importante destacar que alguns trabalhos desenvolvidos nas duas especializa-
ções compõem os artigos da Série dos Cadernos Temáticos do Residência Agrá-
ria, no Caderno de Educação do Campo (Moreira; Lima, 2016).

95
capacidade de analisar e agir de maneira crítica sobre a realidade
cultural na qual trabalham, desenvolvendo projetos e atividades
que articulem as comunidades nas dimensões social, econômi-
ca e educacional. Com base na proposta pedagógica da Peda-
gogia da Alternância, a carga horária do curso foi dividida em
quatorze etapas de Tempo Universidade e quatorze etapas de
Tempo Comunidade, quando os educandos desenvolveram suas
pesquisas nos assentamentos de reforma agrária. O curso inten-
tou conectar, de forma lógica, a teoria com a realidade dos as-
sentamentos e das famílias. As disciplinas se dividiram em eixos
temáticos nos quais os educandos optaram por se aprofundar ao
longo do curso: Musicalização, Teatro Brincante, Danças Popu-
lares e Comunicação. As disciplinas optativas e obrigatórias se
desenvolveram nos assentamentos e na universidade.
A especialização em Extensão Rural Agroecológica e De-
senvolvimento Rural Sustentável aconteceu entre novembro
de 2013 e 2015, com aproximadamente quarenta educandas
e educandos oriundos do MST, da CPT, da Fetraece, além do
Incra, Secretaria de Desenvolvimento Agrário e estudantes da
UFC.10 Ademais do aprofundamento teórico acerca da Agro-
ecologia, a especialização buscou desenvolver uma formação
em tecnologias agroecológicas para o semiárido, na perspectiva
de demarcar o paradigma agroecológico como matriz produ-
tiva e princípio político nas áreas de assentamento da reforma
agrária.
O conjunto de experiências desenvolvidas pelos diferentes
projetos constituiu um seminário para a emergência de estu-
dos monográficos, dissertações e teses, entre outros estudos de
maior fôlego acerca dos aportes, aprendizagens, desafios e possi-

Alguns projetos desenvolvidos ao longo da especialização foram publicados no


10

livro “Tecnologias Agroecológicas para o Semiárido” (Albiero et. al.: 2015).

96
bilidades abertas pelo MST e a Educação do Campo no paulati-
no processo de ocupação das universidades. Conforme mencio-
namos anteriormente, o relatório final do II PNERA apresenta
uma aproximação inicial até o ano de 2011. Sabemos que há
continuidade nas pesquisas, o que mereceria um estudo mais
aprofundado para mapear as temáticas abordadas, relacionadas
com a luta pela terra, pela reforma agrária, a Educação do Cam-
po e a Agroecologia.
Por outro lado, seguimos com projetos em curso nas uni-
versidades e outros espaços de diálogo orgânico entre o MST e
professores-estudantes universitários, com destaque para os se-
guintes desenvolvidos pela UFC e Uece:
– Projeto: “Biorremediação vegetal do esgoto domiciliar em
comunidades rurais do semiárido, Água Limpa, Saúde e Terra
Fértil”, financiado por meio do Edital/Chamada: Edital MCT/
CNPq/CT-Hidro/CT-Saúde n. 45/2008 CNPq, sob a coorde-
nação do Prof. José Carlos de Araújo – UFC: apresentava o ob-
jetivo geral de avaliar a viabilidade da tecnologia “fossa verde”
em assentamento rural no semiárido, enfatizando os aspectos
hídricos, epidemiológicos, sociais e econômicos com a perspec-
tiva de formulação de política pública de saneamento rural. Re-
sultou na construção de sessenta módulos de fossa verde no as-
sentamento 25 de Maio, no município de Madalena/CE além
de diversas pesquisas na área de qualidade da água, gestão e
convivência com o semiárido, que ainda são produzidas em par-
ceria com a UFC e o MST. Embora este projeto tenha tido sua
vigência entre 2008 e 2011, a partir dele diversas pesquisas vol-
tadas para a questão da água e da convivência com o semiárido
estão sendo desenvolvidas no assentamento 25 de Maio, cujos
resultados são sistematizados em dissertações de mestrado, teses
de doutorados e artigos científicos, além de seminários internos
sempre em diálogo e parceria com os/as assentados/as.

97
– Educação Ambiental: afagando a terra e semeando vidas.
Projeto de extensão que tem como público-alvo os jovens as-
sentados. O projeto aborda temas sobre a realidade ambiental e
culminou numa uma proposta de educação ambiental, na pers-
pectiva de troca de saberes fundamentada na educação popular.
– Publicação e lançamento, durante a III Jornada Universi-
tária em Defesa da Reforma Agrária, do “Atlas Socioambiental
do assentamento 25 de Maio – Madalena – Ceará”, resultado
desse trabalho de parceria entre universidade e MST, organi-
zado pelos(as) professores(as) Edson Vicente da Silva, Adryane
Gorayeb e José Carlos de Araújo.
– Curso de Agroecologia e Extensão Rural, sob a coordenação
da profa. Celecina Sales, realizado com cinquenta jovens oriun-
dos das escolas do campo de assentamentos de reforma agrária do
Cea­rá. Conta com a participação de quatro monitores que são jo-
vens militantes do MST e mais dois estudantes bolsistas da UFC.
A referida professora desenvolve projetos de iniciação científica
com jovens da Escola de Ensino Médio do Campo Florestan Fer-
nandes, no assentamento Santana, Monsenhor Tabosa/CE, ade-
mais de outras pesquisas e colaborações diretas relacionadas à dis-
cussão de juventude, gênero e sexualidade.
– Projeto de iniciação científica da Uece: As Escolas de Ensi-
no Médio do Campo nos assentamentos de reforma agrária no
Ceará, sob a coordenação da profa. Lia Pinheiro Barbosa, reali-
zado com estudantes da graduação em Pedagogia, da Faculda-
de de Educação de Crateús (Faec). O projeto tem por objetivo
debater a proposta da Educação do Campo no estado do Ceará
e, em particular, analisar os fundamentos pedagógicos presentes
no Projeto Político Pedagógico das Escolas de Ensino Médio do
Campo, como o caso da Escola de Ensino Médio do Campo
Florestan Fernandes, no assentamento Santana, município de
Monsenhor Tabosa/CE.

98
– O Plebeu Gabinete de Leitura é outro espaço fundamental
nos processos de formação educativa e política com a juventu-
de das Escolas do Campo, educandas e educandos dos cursos
universitários, demais militantes do MST e outros movimen-
tos sociais do campo. Coordenado pela professora Adelaide
Gonçalves, tem sido um espaço de difusão do livro e da leitura
emancipatória, com a realização de oficinas de leitura, de arte
popular, além de feiras latino-americanas do livro. O Plebeu
Gabinete de Leitura é aberto ao público e, portanto, acolhe o
conjunto das experiências desenvolvidas pelo MST e as univer-
sidades públicas cearenses.
Os professores universitários têm assumido uma militância
dentro das universidades públicas do Ceará, colaborando com
a formação das educadoras e educadores das Escolas do Campo
nos assentamentos, bem como em outros espaços de formação
educativa e política, como o Centro de Formação Frei Hum-
berto e a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF/NE). De
igual maneira, temos assumido o compromisso nas orientações
de monografias, dissertações e teses de doutorado que abordam
temáticas relacionadas aos movimentos sociais do campo, ques-
tão agrária, reforma agrária, feminismo camponês e popular, a
memória das lutas camponesas, Educação do Campo, infância
e juventude sem terra, entre outras temáticas emergentes e rela-
cionadas à agenda política e teórica do MST.

Jornada universitária em defesa da reforma agrária popular


Em 2014, durante a realização do VI Congresso Nacional do
MST, o Setor Nacional de Educação convocou as universidades
presentes para articular uma nova agenda política: o desenvol-
vimento da Jornada universitária em defesa da reforma agrária
(Jura). Um dos principais objetivos era o de construir um espaço
para o debate político da reforma agrária popular no cotidia-

99
no da universidade, entre a comunidade acadêmica e os demais
movimentos sociais do campo, expandindo a universidade para
além dos seus muros.
Nessa perspectiva, as universidades cearenses, em especial a
Universidade Estadual do Ceará (Uece), Universidade Federal
do Ceará (UFC) e Universidade Estadual Vale do Acaraú (Uva),
abraçaram o compromisso e iniciaram neste mesmo ano a pri-
meira JURA. Vale destacar que o processo de construção da
JURA, em sua intencionalidade política e organizativa, se deu
de forma coletiva, com reuniões sistemáticas em Fortaleza, com
a participação de professores, estudantes, militantes do MST e
de outros movimentos e organizações do campo e da cidade.
Portanto, são três anos de realização da JURA, tanto nas sedes
da Uece e UFC na capital, como também nos campi localizados
em outros municípios do Estado, e na Uva (que está localizada
na cidade de Sobral, a 230 km da capital), ampliando o debate
da reforma agrária popular, com temáticas relacionadas à ques-
tão agrária e aos conflitos no campo, Educação do Campo, Es-
colas do Campo e agroecologia, feminismo camponês e popu-
lar, juventude camponesa, entre outras temáticas relacionadas.
Um dos maiores aprendizados na trajetória da JURA é o re-
conhecimento dos movimentos sociais do campo como sujeitos
coletivos construtores de conhecimento. Participam da JURA di-
ferentes sujeitos políticos, como o próprio MST, a Pastoral da
Terra, a Fetraece, o Levante Popular da Juventude, ademais dos
estudantes universitários, estudantes secundaristas e a popula-
ção convidada a participar da programação.
Ao longo desses três anos, a JURA realizou mesas redondas
com a participação de militantes e pesquisadores para debater,
em profundidade, problemas centrais concernentes à questão
agrária e às lutas no campo em nosso estado. Por outro lado, ar-
ticulou a dimensão estética da luta, com a realização das Jorna-

100
das Socialistas, da Feira da Reforma Agrária, cine-debate, com o
Cinema da Terra, exposições fotográficas com o acervo das três
décadas da trajetória política do MST, apresentação de livros,
com a exposição e venda do material da Editora Expressão Po-
pular, além de oficinas de artes da resistência, junto às Escolas
do Campo.
Por outro lado, a JURA participa em outras atividades rea-
lizadas em alguns acampamentos do estado, como o acampa-
mento Zé Maria do Tomé, localizado na Chapada do Apodi,
no município de Limoeiro do Norte (localizado a 170 km de
Fortaleza), um dos mais resistentes e combativos com respeito
ao avanço do agronegócio no Ceará. O acampamento leva por
nome a memória do líder comunitário e ambientalista Zé Maria,
assassinado no dia 21 de abril de 2010 na comunidade do Tomé,
zona rural, por denunciar as consequências da pulverização aé-
rea de agrotóxicos, ademais das irregularidades na concessão de
terras nos perímetros irrigados da região da Chapada do Apodi.
Zé Maria se tornou um símbolo da luta contra o uso de agro-
tóxicos na região da Chapada do Apodi e Baixo Jaguaribe. Seu
assassinato vem sendo acompanhado pela Comissão Nacional
de Combate à Violência no Campo (CNCVC), pelo Conselho
de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDH) e pela Se-
cretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Por
outro lado, o MST, outros movimentos sociais do campo e uni-
versidades realizam, no mês de abril, a Semana Zé Maria do
Tomé, com o objetivo de denunciar a impunidade pelo crime
cometido, bem como discutir os conflitos socioambientais no
Ceará e no Rio Grande do Norte.
Em nossa sistematização, também gostaríamos de registrar
que no ano de 2016 a Jornada universitária em defesa da refor-
ma agrária popular rendeu homenagem a Eldorado dos Cara-
jás, recuperando a memória do massacre ocorrido há vinte anos

101
no Pará. Nessa perspectiva, a JURA organizou uma programa-
ção durante todo o mês de abril, com atividades desenvolvidas
não somente nos espaços internos das universidades envolvidas
(Uece, UFC e Uva), mas expandindo-se a outros espaços, como
escolas da rede estadual e municipal, com a realização de aulas
públicas e atividades culturais em praças, com a temática dos
conflitos do campo e dos vinte anos do Massacre de Eldorado
dos Carajás.
Vale ressaltar que durante uma semana houve exibição de
filmes no Cine-Teatro São Luís, localizado no centro da cida-
de, principal cinema de Fortaleza. As exibições contaram com a
participação de educandos e educadores das Escolas do Campo
e estudantes das escolas ocupadas da capital. Ademais, aconte-
ceu no mesmo cinema o belíssimo encerramento da JURA.

Desafios na caminhada
Embora tenhamos construído pontes de diálogo e de mi-
litância política entre as universidades públicas cearenses e o
MST, há desafios na caminhada, sobretudo aqueles relaciona-
dos à conquista do Pronera e sua efetivação. Com respeito à
especificidade do Pronera, destacamos como desafios as limita-
ções orçamentárias e as travas burocráticas na implementação
dos cursos de graduação.
Na experiência do Ceará, todos os cursos sofreram as conse-
quências dessa contradição de origem na conquista de uma polí-
tica pública específica para os povos do campo. Estes são fatores
que obstaculizam, sobremaneira, propostas de formação dessa
envergadura, que envolvem mais de um estado do Nordeste e
Norte do país. Sendo assim, tanto o curso de Licenciatura em
Educação do Campo como o de Serviço Social da Terra, expe-
riências que acontecem nesse momento no estado, encontram-se
sob tensão, em virtude da recorrência da descontinuidade do

102
programa político que garante o financiamento de projetos vin-
culados à Educação do Campo.
O caso específico do Serviço Social da Terra abrange sete esta-
dos do Nordeste (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Nor-
te, Pernambuco, Alagoas e Bahia) e um do Norte (Pará), o que
representa uma grande complexidade na garantia da logística,
desde as viagens para o Tempo Escola, hospedagem, alimenta-
ção quanto o acompanhamento do Tempo Comunidade. O cur-
so tem se materializado porque conta com a valentia e teimosia
das(os) educandas(os) militantes, e o compromisso ético e políti-
co dos(as) professores(as) e militantes que formam a coordenação,
assim como com o apoio político e burocrático da própria Uece.
O próprio orçamento do Pronera, com o valor-aluno or-
çado no valor de R$ 5.500,00 (atualmente este valor é de R$
7.600,00), já denuncia o nível de dificuldades encontradas para
a implantação do projeto. Além desse orçamento bastante limi-
tado, temos um processo burocrático que exige da coordenação
um gasto excessivo de energia e estratégias de trabalho para ga-
rantir a realização das atividades de formação em tempo hábil
a cada ano. Neste sentido, destacamos os processos de licitações
como condição sine qua non para a realização do convênio entre
Uece e Incra.
Esta avaliação também se fez presente durante o Projeto de
Formação de Educadores e Educadoras de Assentamentos Ru-
rais – Magistério da Terra, e os Projetos de Escolarização de
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Assentamento Rural
do Ceará – I e II, mencionados no início desse texto, o que nos
levou a considerar, naquele período, que a estrutura weberiana
do Estado não se reorganizou para a relação de parceria com os
movimentos sociais (Barbosa; Carvalho, 2009).
Muito embora perdurem as contradições no processo de
dispu­ta hegemônica com o Estado, logramos avançar no paula-

103
tino processo de democratização da universidade para os sujeitos
do campo, passo que consideramos fundamental no horizonte
utópico anunciado por Che Guevara ao reivindicar uma univer-
sidade popular, em diálogo permanente com a luta social.

Referências
ALBIERO, D. et. al. (orgs.). Tecnologias agroecológicas para o semiárido. For-
taleza: Edição do Autor, 2015.
BARBOSA, L.; CARVALHO, S. M. G. A escolarização dos trabalhadores
nas áreas de assentamentos rurais no Ceará. Cadernos Ceru, série 2, v.
20, n. 2, dezembro, 2009.
BRASIL. II Pesquisa Nacional de Educação em Áreas de Reforma Agrária.
Relatório Final – SR Ceará (2012-2013). Incra/Ipea/Unesco, 2013.
BRITO, C. M. M. et. al. O Programa Nacional de Educação em Áreas de
Reforma Agrária na Universidade Estadual do Ceará: uma experiên-
cia de extensão com movimentos sociais do campo. Trabalho apre-
sentado no V Encuentro Nacional y II Latinoamericano: la Universi-
dad como objeto de investigación. Universidad Nacional del Centro
de la Provincia de Buenos Aires, Tandil, 2007.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
MENDES, E. O lugar da extensão na universidade: diferentes projetos em
disputa. Trabalho apresentado no V Encuentro Nacional y II Latino-
americano: la Universidad como objeto de investigación. Universidad
Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Tandil, 2007.
MOREIRA, E. M; LIMA, M. C. A. (orgs.). Caderno de Educação do Cam-
po. Série Cadernos do Residência Agrária, 2. Santa Maria: Editora e
Gráfica Caxias: 2016.
MST. Dossiê MST e Escola. Documentos e Estudos 1990 - 2001. Cadernos
de Educação n. 13. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

104
U N IVERS IDADE E MOVI M ENTOS SOCIAI S NO
S U DESTE DO PAR Á : A CON STRUÇ ÃO DA
E DUC AÇ ÃO DO C AM PO NA U N IFES S PA

Ailce Margarida Negreiros Alves1


Fernando Michelotti2
Glaucia de Sousa Moreno3
Haroldo Souza4
Jorge Luís Ribeiro dos Santos 5

O objetivo deste texto é refletir sobre a construção da rela-


ção de diálogo entre docentes da Universidade Federal do Sul e
Sudeste do Pará (Unifesspa) e os movimentos sociais do campo,
em especial o MST. Esse diálogo não se deu apenas nas ações
ligadas à Educação do Campo, embora esta tenha sido a via
principal em que esta relação tem ganhado materialidade no
período mais recente.
Para compreendê-la, será apresentada uma breve contextua-
lização histórica da região, enfatizando a dinâmica agrária e o
papel dos movimentos sociais de luta pela terra que se colocaram
1
Ailce Margarida Negreiros Alves é vice-diretora da Faculdade de Educação do
campus da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).
2
Fernando Michelotti é professor adjunto da Universidade Federal do Sul e Su-
deste do Pará (UNIFESSPA).
3
Glaucia de Sousa Moreno é docente efetiva no curso de Licenciatura em Educa-
ção do Campo na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).
4
Haroldo Souza é professor assistente da Universidade Federal do Sul e Sudeste
do Pará (Unifesspa – campus Marabá/PA).
5
Jorge Luís Ribeiro dos Santos é doutor em Direitos Humanos pela Universidade
Federal do Pará, professor e atual diretor do Instituto de Estudos em Direito e So-
ciedade da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, campus Marabá/PA.

105
como sujeitos políticos regionais capazes de provocar o diálogo
com a universidade. Por outro lado, será apresentado, em traços
bastante gerais, o processo de constituição da universidade na
região que criou a possibilidade do estabelecimento de ações em
parceria com o movimento sindical de trabalhadores/as rurais e
o MST. A partir desse contexto mais amplo, serão apresentados
alguns elementos que permitiram a ampliação das ações conjun-
tas entre esses parceiros, bem como certos desafios que foram
se colocando nesse processo. As experiências ligadas ao Pronera
e sua incorporação no curso de Licenciatura Plena em Educa-
ção do Campo, criado como parte da expansão da universidade,
apresentam-se como determinantes centrais da relação entre a
universidade e os movimentos sociais. Por fim, serão discutidas
algumas tendências do momento atual e os desafios que elas
colocam.

Contexto Regional
A região sudeste paraense passou por transformações radi-
cais nas décadas de 1970 e 1980 em função dos grandes pro-
jetos articulados pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento e
pela implantação do Programa Grande Carajás. Paralelamente à
instalação de grandes empresas agropecuárias e minerais, atraí­
das por incentivos fiscais e pela construção de infraestrutura
de suporte, houve migração expressiva de camponeses sem-terra
para a região, criando uma dinâmica de fronteira analisada por
vários autores, entre eles Velho (2009), Martins (2009), Hébette
(2004), Guerra (2001) e Costa (2000).
O caráter conflitivo dessa dinâmica levou a inúmeros casos
de violência contra os trabalhadores do campo, mas também
a uma organização política dos camponeses em torno do mo-
vimento sindical e, a partir dos anos 1990, também do MST.
Desde o final da década de 1980, teve início um processo de ter-

106
ritorialização camponesa, um reconhecimento social e a articu-
lação regional orgânica em torno da luta pela terra, que forjou a
criação de assentamentos pelo Incra, chegando ao final de 2014
com 503 projetos de assentamento criados e 71,5 mil famílias
assentadas em 4,6 milhões de hectares, sendo caracterizada por
Leite et al. (2004) como uma das manchas de reforma agrária
no país.
Segundo estudo de Leite et al. (2004), essas manchas indi-
cam não apenas o protagonismo dos movimentos sociais na luta
pela terra, mas também o seu reconhecimento social, alterando
a cena política local. No caso do sudeste paraense, que já era re-
conhecido como lócus de enfrentamentos e resistência na e pela
terra desde os anos do extrativismo da castanha, esse processo
foi fortalecido pela presença de diferentes entidades, locais ou
regionais, estaduais ou nacionais, de apoio aos movimentos so-
ciais do campo, como a Sociedade Paraense de Defesa dos Di-
reitos Humanos (SDDH), a Comissão Pastoral da Terra (CPT),
o Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popu-
lar (CEPASP), o Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), o
Movimento de Educação de Base (MEB), a Federação de Ór-
gãos para a Assistência Social e Educacional (Fase), além de gru-
pos de pesquisa ligados ao Centro Agroambiental do Tocantins
(CAT). Essa mudança política decorrente da conquista dos as-
sentamentos é vista por Leite et al. (2004) como ponto de par-
tida para novas demandas, tornando o assentamento um espaço
de referência de políticas públicas e de afirmação de novas iden-
tidades e interesses, assim como de novas formas organizativas.
A implantação das políticas de educação do campo e da assistên-
cia técnica e extensão rural foram expressivas no sudeste paraense
nesse novo contexto, levando os movimentos sociais a buscar uma
interlocução com a universidade para apoio político e de formação
profissional. No caso em análise, um exemplo de aproximação e di-

107
álogo institucional representativo desse novo momento, desdobran-
do-se e diferenciando-se da parceria consolidada entre Sindicatos de
Trabalhadores Rurais e UFPA, que já existia desde 1986 através do
Programa CAT,6 deu-se em 1997, com o Projeto Lumiar, quando
alguns professores foram convidados pela Federação dos Trabalha-
dores da Agricultura (Fetagri) Regional e pelo MST para compor
a Equipe de Supervisão do referido Projeto. Em seguida, em 1998,
começaram a se esboçar os primeiros diálogos sobre o Pronera, en-
tre professores do campus de Marabá e movimentos sociais do cam-
po, particularmente o MST, que buscava parcerias para formar as
primeiras turmas de escolarização.
A Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa)
teve sua origem como campus de Marabá da Universidade Fe-
deral do Pará (UFPA), criado em 1987 como parte do processo
de interiorização dessa instituição. Esse processo desenvolvido
pioneiramente pela UFPA deu-se em um quadro mais geral de
precarização das universidades federais, que predominou ao lon-
go dos anos 1990, e que limitou sobremaneira essa ação. Até o
ano 2002, o campus ofertava apenas seis cursos regulares, com
um quadro docente de cerca de 35 professores.
Apesar desse quadro limitado, havia por parte de alguns do-
centes do campus de Marabá uma sólida relação com as organi-
zações políticas locais, que constantemente procuravam apoio
da universidade para suas ações, tanto aquelas ligadas à luta pela
terra quanto aquelas engajadas na luta pela educação pública,
criando um envolvimento significativo do campus universitário
com as lutas sociais.
A presença de professores que compartilhavam da crítica à
estrutura e aos problemas enfrentados pela sociedade brasileira

6
Para uma leitura sobre o Programa CAT, recomenda-se a leitura de Hébette e
Navegantes, 2000.

108
de então, bem como de militantes dos movimentos sociais e sin-
dicais e de partidos políticos que ingressaram como estudantes
nos cursos de graduação, favoreceu a politização do ambiente
acadêmico, tornando-o crítico e aberto à participação dos diver-
sos sujeitos locais. Essa característica foi se ampliando à medida
que alguns egressos das primeiras turmas de graduação foram
se tornando docentes do campus, possibilitando a realização de
ações de assessoria e formação de militantes, projetos de pesqui-
sa e extensão diretamente ligados às lutas sociais e a implanta-
ção de cursos intensivos de férias voltados para os trabalhadores
da educação. Todo esse processo foi fortalecendo, ampliando e
consolidando a relação entre a universidade e os movimentos
sociais levando a que, em 1998, o campus ofertasse a primeira
turma de alfabetização pelo Pronera.
Essa resumida contextualização aponta para a importância
da existência não apenas das lutas populares na região, mas de
movimentos sociais com capacidade política de provocar o en-
volvimento da universidade nas temáticas dessas lutas. Ao mes-
mo tempo, esse processo só pôde avançar porque foi sendo cria-
do um ambiente relativamente politizado no interior da própria
universidade, para o qual contribuíram fortemente a presença
de estudantes militantes de organizações sociais e docentes com
envolvimento nessas lutas. A partir dessa base inicial, a realiza-
ção de ações conjuntas, tanto cursos de formação, como proje-
tos de pesquisa e extensão, foi fundamental para fortalecer esse
diálogo entre a universidade e os movimentos sociais, indo além
da copresença de estudantes e docentes críticos no espaço aca-
dêmico.

A expansão da universidade e da Educação do Campo


A partir de 2003, com o início dos governos federais petistas
houve duas mudanças significativas na questão agrária regional.

109
A prioridade dada por esses governos à mineração e ao agro-
negócio levaram a um crescimento da presença política desses
segmentos na região e, consequentemente, um bloqueio à refor-
ma agrária, expressa pela redução drástica da criação de novos
assentamentos. Se até 2002 haviam sido assentadas 57,5 mil fa-
mílias na região, a partir de 2003 foram assentadas apenas 13,9
mil famílias, sendo aproximadamente 80% delas até 2007, o
que mostra como a reforma agrária foi saindo da pauta no perío­
do mais recente. Nesse cenário houve uma ressignificação dos
conflitos agrários na região.
Por outro lado, houve uma ampliação dos recursos aplicados
nos assentamentos nesse período, seja em infraestrutura e crédito
produtivo, seja em programas de educação e assistência técnica.
Apesar disso, a hegemonia do agro-mineiro-negócio levou a uma
maior disputa política em torno dessas ações, com frequentes in-
terrupções nesses programas por medidas político-jurídicas, além
de criminalização de lideranças. A expansão desses programas,
apesar das interrupções e descontinuidades, permitiu uma am-
pliação das ações realizadas em parceria entre movimentos sociais
e universidade, especialmente no caso da educação do campo.
Ao mesmo tempo, a universidade também passou por uma
expansão significativa nesse período com os programas federais
de expansão e interiorização do Ensino Superior, que apesar dos
vários limites apresentados levaram ao crescimento do quadro
docente do campus de 35 em 2002 para cerca de 170 em 2010 e
do número de cursos ofertado de seis para dezesseis no mesmo
período, sendo que um desses novos cursos criados foi o de Li-
cenciatura Plena em Educação do Campo. Em 2013, o campus
foi desmembrado da UFPA e passou a integrar a Universidade
Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), o que intensificou
esse ciclo de crescimento alcançando, em 2016, o total de 265
docentes em 27 cursos (Seplan/Unifesspa, 2016).

110
Ao longo desse período, a relação com os movimentos sociais
do campo que tinham um viés fortemente relacionado às de-
mandas da assistência técnica e extensão rural foi incorporando
com maior intensidade a temática da educação. A possibilida-
de de turmas pelo Pronera foi importante para tal fim, tendo
sido ofertadas nesse período novas turmas de EJA/magistério,
três turmas de graduação pelo Pronera (agronomia, pedagogia
e letras) e duas turmas de ensino médio agropecuário (EFA),
envolvendo docentes dos cursos de Pedagogia, Licenciatura em
Letras e Agronomia.
Essas turmas do Pronera foram importantes não apenas para
estreitar as relações de docentes com os movimentos sociais do
campo, especialmente a Fetagri e o MST, mas também para
aproximar academicamente os próprios professores envolvidos,
com atuação em áreas diferentes, principalmente os das licencia-
turas e os de ciências agrárias. Com a criação do Fórum Regio-
nal de Educação do Campo (FREC), esse diálogo ampliou-se
para além dos aspectos pedagógicos dos cursos, ganhando força
política, o que levou a duas conquistas importantes: a criação
do campus Rural de Marabá ligado ao Instituto Federal do Pará
(IFPA), em uma área de assentamento e com projeto político
pedagógico ligado à educação do campo, e a criação da Licen-
ciatura Plena em Educação do Campo na universidade.
A criação do curso de Licenciatura Plena em Educação do
Campo pela universidade aproveitou a experiência acumulada
nos cursos do Pronera e na Escola Família Agrícola (EFA) para
a sua construção político-pedagógica. Também criou um espaço
de referência permanente para o diálogo com os movimentos so-
ciais. Atualmente, este é um curso consolidado com um quadro
de 25 docentes e 407 educandos.
Dentre os inúmeros desafios decorrentes desse processo de
expansão da educação do campo na universidade, alguns mere-

111
cem destaque nesta reflexão. Um deles refere-se à tensão entre
as possibilidades de conquistas mais estruturais e permanentes
decorrentes da incorporação de um curso como o de Educação
do Campo na estrutura da universidade e os riscos de perda de
sua identidade e radicalidade. A incorporação pela universidade
cria uma pressão para adequação às suas normas, assim como
aos condicionamentos impostos pela institucionalidade científi-
ca, apresentada como a única forma válida de saber em negação
às demais formas de produzir e validar conhecimentos. Por isso,
parece importante um questionamento permanente às normas
universitárias que permita adequá-las aos objetivos da educação
do campo e não o contrário, mas também uma reflexividade
epistemológica que coloque em questão a própria produção do
conhecimento e as relações entre saber e poder, conforme discu-
tido por Arroyo (2014).
Um segundo desafio reside na dificuldade de manutenção
da organicidade da parceria entre movimentos sociais e univer-
sidade em função da ampliação do número de ações realizadas.
A medida que um curso é internalizado em caráter permanente
pela instituição de ensino, surgem exigências constantes de to-
mada de decisões que criam dificuldades de os representantes
do movimento social acompanhá-las, diferenciando-se de uma
turma específica vinculada ao Pronera. Criar condições para
manter a organicidade do diálogo passa a ser uma preocupação
importante.
Esses dois desafios apresentados apontam para o risco de a
Licenciatura em Educação do Campo distanciar-se da sua cons-
trução inicial ao ser incorporada na estrutura administrativa da
universidade, apesar da ampliação das possibilidades de expan-
são de acesso aos sujeitos do campo que ela representa. Por isso,
a experiência da Unifesspa indica a importância da manutenção
de outras ações em parceria com os movimentos sociais que rea­

112
limentam essa relação e reinventem a própria parceria. Nesse
caso, tem sido importante a oferta de outros cursos do Pronera
que têm permitido a construção da educação do campo com
mais autonomia, aproveitando a experiência acumulada com a
Licenciatura em Educação do Campo, mas também experimen-
tando outras possibilidades que têm mais dificuldade de serem
concebidas e experimentadas em um curso permanente, mas
que depois podem ser incorporadas por ele. Três exemplos de
ações na Unifesspa podem ser percebidos nessa direção.
A turma de Direito do Pronera, que iniciou em 2016, am-
pliou as ações conjuntas com os movimentos sociais em uma
nova área de conhecimento. Foram oferecidas cinquenta vagas
para educandos(as) beneficiários(as) da Reforma Agrária. Cerca
de 90% dos aprovados(as) provêm da região sudeste do Pará e
o restante do Maranhão, Piauí e Mato Grosso. Esta é a primei-
ra turma desta modalidade na Amazônia. O projeto é fruto da
luta histórica dos movimentos sociais do campo e coaduna-se
com a perspectiva de atuação de egressos nos embates jurídicos
críticos e emancipatórios do movimento camponês, bem como
fortalecimento da Rede Nacional de Advogados e Advogadas
Populares (Renaap).
Também a abertura de turmas específicas da própria Licen-
ciatura em Educação do Campo, realizadas em parceria com os
movimentos sociais através do Pronacampo, tem permitido uma
maior aproximação do movimento social com esse curso. Nessa
mesma direção, destacam-se as experiências de especialização
em Residência Agrária, seja na área da agroecologia, seja na for-
mação/qualificação de educadores do campo.
No caso específico do Residência Agrária em Agroecologia,
foram ofertados cursos em parceria com o Instituto de Agroeco-
logia Latino-Americano (Iala Amazônico). Este é um espaço de
formação da Via Campesina que além dessa especialização, tem

113
proporcionado a realização de outros processos mais autônomos
de formação direcionados para a juventude e para agricultores.
A realização dos cursos no próprio Iala, o maior contato com a
realidade do assentamento onde ele se localiza e as demandas de
produção de conhecimento que emergem de sua estreita relação
com assentamentos e acampamentos da região, têm provocado a
criação de metodologias de trabalho que têm contribuído tanto
para ressignificar as práticas da Educação do Campo na univer-
sidade quanto a própria universidade para os sujeitos do campo,
apontando outras possibilidades de formação mais dialógica,
permitindo assim a problematização de elementos da realida-
de vivida, eleitos como componentes importantes do contexto
didático-pedagógico-formativo.
Um terceiro desafio refere-se à inserção dos estudantes da
Educação do Campo no conjunto das lutas por uma universida-
de democrática, crítica e engajada na solução dos problemas en-
frentados pela população da região. O fato de esses cursos serem
ofertados em caráter intensivo, normalmente em períodos de fé-
rias de outros cursos da universidade, cria uma dificuldade de
maior interação destes estudantes nas demais lutas políticas da
instituição, seja pela via da participação no movimento estudan-
til, seja pela participação em outros momentos políticos da vida
universitária, como greves, eleições, seminários e debates. Esse
desafio reflete um risco de isolamento da educação do campo
no interior da universidade, em que a presença desses educan-
dos e dos próprios movimentos sociais não contribui para uma
politização mais geral da universidade como um todo, apesar de
algumas sinalizações positivas de participação militante.
Na busca de evitar esse isolamento da Educação do Campo
tem-se pensado na Unifesspa em outras ações que façam o mo-
vimento em sentido inverso. Ou seja: como aproximar outros
estudantes universitários da realidade dos assentamentos onde

114
vivem os estudantes da Educação do Campo e onde atuam os
movimentos sociais? Nessa perspectiva, a universidade, através
da pró-reitoria de extensão, está iniciando um programa para
viabilizar a realização de estágios interdisciplinares de vivência
(EIV), realizados conjuntamente com o movimento estudantil e
com os movimentos sociais. Ao estimular que estudantes de vá-
rias áreas conheçam e vivenciem a realidade dos assentamentos,
busca-se fortalecer o reconhecimento da questão agrária como
tema relevante para as distintas áreas de estudo e politizar a te-
mática do campo no conjunto da universidade. Podemos citar
também iniciativas de ampliação desse diálogo com outros seg-
mentos do campo, como indígenas e quilombolas, ação presente
tanto no debate sobre universidade e diversidade quanto pelo
debate da interculturalidade. A problematização da questão da
territorialidade nos convoca a desafios como o de perceber e
analisar o campo na sua complexidade e no seu sentido diverso
também do ponto de vista étnico, cultural e de gênero.
Todos esses exemplos mostram que, apesar das contradições
do processo de expansão e interiorização das universidades, a
partir de meados dos anos 2000, foi possível um crescimento
da Educação do Campo e ampliação da presença de educandos
oriundos do campo na universidade. No entanto, a experiência
acumulada com os cursos do Pronera e a capacidade de orga-
nização coletiva construída entre movimentos sociais e educa-
dores da universidade foi fundamental para potencializar essa
expansão.
É importante reconhecer que a incorporação dos cursos da
educação do campo na universidade criou uma tensão entre as
suas possibilidades de expansão e estruturação e a garantia do
envolvimento dos movimentos sociais e da manutenção de sua
identidade e radicalidade. Essa tensão exige uma disputa com a
própria universidade e suas normas e concepções de ciência, mas

115
também uma reinvenção permanente da relação universidade
– movimentos sociais, para a qual a criação de novas fronteiras
de ação, como turmas específicas, cursos em novas temáticas e
ações nos próprios assentamentos, a exemplo dos cursos para
camponeses ou estágios de vivência para acadêmicos, mostram
seu potencial criativo.

Contexto atual, perspectivas futuras


O momento atual é de muita incerteza política, o que cria
dificuldades de serem feitos prognósticos precisos sobre o futu-
ro. No entanto, aparenta-se com muita força uma pressão por
novas rodadas de neoliberalização, com tendência a aprofundar
a precarização das universidades. No caso específico da Unifess-
pa, uma pequena universidade recém-criada no contexto de um
processo de interiorização do ensino superior, a manifestação
dessa tendência sugere duas dimensões.
Uma delas deve consistir no aumento da pressão de que
universidades desse tipo fiquem restritas ao ensino, cada vez
mais precário, e forçando a universidade a adotar formas de
ampliação da oferta com baixo custo e com redução significa-
tiva da assistência estudantil. Essa perspectiva, que de alguma
maneira já estava contida na expansão do período anterior, ten-
de a se intensificar, afetando diretamente a possibilidade de in-
clusão de estudantes do campo em cursos com qualidade, pois
estes envolvem custos específicos, por exemplo, a realização
de processo seletivo específico, a manutenção dos estudantes
na universidade, realização de viagens de campo, possibilidade
de dedicação de professores a ações de acompanhamento em
Tempo Comunidade, ou seja, todas essas ações fundamentais
para a Educação do Campo que podem a ser limitadas pelos
cortes orçamentários. Acrescenta-se a isso uma contraofensiva
conservadora que tenderá a questionar qualquer forma de in-

116
gresso que não seja meritocrática, como as cotas e processos
seletivos especiais.
No caso de uma universidade cujos investimentos iniciais em
infraestrutura ainda não se completaram e que o ensino-pesqui-
sa-extensão não está consolidado, como o caso da Unifesspa,
a ausência de recursos sugere que se intensifique uma tendên-
cia, por parte inclusive de segmentos docentes e estudantis, de
captação de recursos junto à iniciativa privada que, na região,
significa parceria com os grandes empreendimentos minerais e
agropecuários. O significado da concretização dessa tendência é
o reforço a uma perspectiva conservadora da universidade, su-
bordinada aos interesses dessas frações do capital, com crescente
marginalização dos temas e ações ligados à reforma agrária.
Nesse possível cenário, uma questão em aberto é como a rela-
ção entre docentes e estudantes universitários, mobilizados atra-
vés dos projetos de ensino-pesquisa-extensão ligados à reforma
agrária e outras lutas sociais – bem como suas organizações es-
tudantis e sindicais, e os próprios movimentos sociais do campo
–, podem fortalecer a luta pela universidade pública, gratuita, de
qualidade e socialmente referenciada? De forma mais específica,
como essa luta pode garantir o não retrocesso dos direitos con-
quistados e, inclusive, ampliá-los, o que inclui a continuidade da
expansão da educação do campo?
Novos contextos políticos, novos desafios.

Referências
ARROYO, Miguel G. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes,
2014.
COSTA, Francisco de Assis Costa. Formação agropecuária da Amazônia: os
desafios do desenvolvimento sustentável. Belém: NAEA, 2000.
GUERRA, Gutemberg Armando Diniz. O posseiro da fronteira: campesina-
to e sindicalismo no sudeste paraense. Belém: UFPA/NAEA, 2001.

117
HÉBETTE, Jean. Cruzando a fronteira: 30 anos de estudo do campesinato
na Amazônia. Belém: EDUFPA, 2004. 4 v.
HÉBETTE, Jean & NAVEGANTES, Raul da Silva. CAT – Ano décimo:
etnografia de uma utopia. Belém: UFPA/CAT, 2000.
LEITE, Sérgio et al. Impacto dos assentamentos: um estudo sobre o meio
rural brasileiro. Brasília: IICA, Nead/São Paulo: Editora da Unesp,
2004.
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins
do humano. São Paulo: Ed. Contexto, 2009.
SEPLAN, Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Institucional. In-
dicadores de gestão dos institutos, ano base 2015. Manuel Enio de Al-
meida Aguiar (org.). Marabá: Unifesspa, 2016.
VELHO, Otávio Guilherme. Frentes de expansão e estrutura agrária: estu-
do do processo de penetração numa área da Transamazônica. Rio
de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. Edição
on-line. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/zjf4z/pdf/ve-
lho-9788599662915.pdf>. Acesso em: 14/03/2018.

118
EN FF U MA ESCOL A
E M PERMAN ENTE CON STRUÇ ÃO

Djacira Araújo1

Contexto de fundação da ENFF


A Escola Nacional Florestan Fernandes, criada pelo MST,
foi fundada em 2005 com o objetivo da formação de quadros,
em um contexto em que os partidos de esquerda e a igreja que
nas décadas de 1970 a 1980 realizaram um amplo trabalho da
formação ideológica passam a uma inflexão regressiva na prática
da formação.
O trabalho de conscientização popular realizado pela igreja
através das pastorais sofria uma intensa ofensiva do Vaticano
que isolou o clero adepto da Teologia da Libertação e, conse-
quentemente, fortaleceu os setores conservadores como a Opus
Dei, igrejas Maranata, abrindo também espaço para o cresci-
mento do fundamentalismo religioso das igrejas evangélicas.
Os Partidos de esquerda, em função de priorizar a luta ins-
titucional e o crescimento legal dos próprios partidos, abando-
nam a formação ideológica como parte da estratégia da luta po-
lítica e revolucionária. Em especial, percebe-se essa tendência

1
Mestra em educação e integrante da coordenação estadual do MST/Bahia.

119
no PT, que era o catalisador da unidade na luta institucional e
que, anteriormente, havia criado algumas escolas de formação
de quadros como foi o instituto Cajamar, fechado em 1989.
O PT passou a apostar no marketing das campanhas eleito-
rais como mecanismo de formar opinião. Também os demais
partidos de esquerda se voltaram quase que exclusivamente para
a organização partidária, com isso perderam terreno no campo
da disputa ideológica, tanto com relação às escolas de formação,
quanto no aspecto da comunicação de massas. Estes partidos
não foram capazes de construir mecanismos próprios de comu-
nicação de massas.
O refluxo interno da luta de massas, o distanciamento dos
partidos das lutas de massas e a ofensiva ideológica imperialista
fortalecida com o fim do bloco socialista impôs ao MST, quase
que isoladamente, a tarefa de seguir resistindo à ofensiva neoli-
beral no Brasil.
O MST sempre compreendeu a importância estratégica da
formação política na luta social. Desde o início o Movimento
priorizou a formação como parte fundamental da estratégia da
luta pela reforma agrária e pela transformação social. Em 1990
realiza a primeira turma nacional de formação em Caçador,
Santa Catarina, e em 1995 cria o Instituto Técnico de Pesquisa
e Capacitação em Reforma Agrária (Iterra). Em 2005, o MST
funda a Escola Nacional Florestan Fernandes.

Matrizes pedagógicas
A formação e escolarização desde sempre está imbricada nas
necessidades, nas lutas e na concepção do MST. Fundamental-
mente, as matrizes pedagógicas que norteiam as suas práticas
educativas e formativas são:
a) Os aprendizados extraídos das experiências de luta e orga-
nização do MST, nos enfrentamentos diretos, nos acampamen-

120
tos (a primeira escola de formação) e também nos assentamen-
tos, nas marchas, nas escolas etc.;
b) O legado das experiências de luta e da cultura camponesa
e da classe trabalhadora;
c) As pedagogias socialistas, a pedagogia crítica e a pedagogia
do oprimido;
d) Os aprendizados obtidos através dos intercâmbios e ex-
periências internacionais, especialmente com Cuba, que abriu
as portas das suas escolas para a militância das organizações e
países do mundo. Também com as experiências de luta do povo
da Nicarágua, que entre os anos 1970 e 1990 seguiam a luta re-
volucionária no continente.

Objetivo da ENFF
Ao projetar a ENFF, o MST definiu que um dos seus princi-
pais objetivos é a formação de quadros do próprio movimento,
porém, estando aberto para contribuir na formação de militan-
tes dos diversos movimentos da classe trabalhadora do Brasil,
América Latina e do mundo.
Sendo a ENFF uma escola em permanente construção, o seu
papel a desempenhar é projetar e realizar práticas formativas no
intuito de avançar na formação dos militantes sociais para reali-
zação das tarefas históricas que a realidade exige. Para tanto sua
prática formativa deverá incorporar o dinamismo dialético da
luta social, no movimento constante da formação.
A finalidade do programa de formação da ENFF é fazer das
práticas formativas instrumento de construção de unidade teóri-
ca e de fortalecimento da luta do MST e de classe trabalhadora.
Por isso, a formação deve contribuir na implementação das es-
tratégias da organização, isto é, estar de acordo com os objetivos
imediatos e estratégicos do Movimento: a luta pela terra, refor-
ma agrária e o socialismo.

121
Buscando concretizar estes objetivos se elaborou o progra-
ma de formação organizado através de núcleos de estudo, sendo
hoje os seguintes: o núcleo de teoria política nacional, o núcleo
de teoria política internacional, o núcleo dos cursos formais e o
núcleo urbano.
É no âmbito do núcleo dos cursos formais que a ENFF es-
tabelece amplas relações e experiências com as universidades e
instituições públicas do Brasil e América Latina.

Concepção da formação
A formação é concebida como um processo contínuo, amplo
e sistemático de reflexão sobre a prática, sobre a realidade con-
creta e as contradições nela presentes, e na busca da socialização
de conhecimentos já produzidos que sejam socialmente úteis,
ecologicamente corretos e socialmente sustentáveis. É também
um processo de produção e socialização de novos conhecimen-
tos (práxis) a partir das realidades concretas específicas e das
totalidades mais amplas (concreto pensado).
A formação expressa-se como um conjunto de ações for-
mativas, organizativas e de lutas em diferentes metodologias e
conteúdos. O intuito é elevar de forma permanente o nível de
consciência e de conhecimento da base, dos militantes e dos di-
rigentes/quadros, buscando o crescimento cultural e político do
conjunto da organização.
A formação está vinculada a um projeto político maior, que
estabelece as tarefas políticas fundamentais. Deve formar para
a luta de classes, isto é, contribuir para a constituição da classe
em luta. A luta de classes não pode estar só na teoria mas na
prática da militância e da base nas ações concretas, na materia-
lização de novas relações sociais que possam contribuir para a
superação do corporativismo, economicismo, individualismo e

122
do autoritarismo próprio do pensamento burguês, e formar para
a vivência dos valores humanistas e socialista.
A formação deve contribuir para a elaboração teórica, para a
produção de novos conhecimentos para o desenvolvimento dos
setores, coletivos e da organização do MST e da sua luta como
um todo. Por isso, deve contribuir na interpretação do momen-
to atual, e revelar as contradições e possibilidades de supera-
ção nos processos de transformação da realidade. Para tanto, é
fundamental organizar e desenvolver pesquisas e estudos siste-
máticos, sempre numa perspectiva dialética, tendo o marxismo
como guia.

Relação com a universidade


Embora a Escola Nacional Florestan Fernandes não tenha
como seu principal objetivo a escolarização, ela também atua
no campo da escolarização e da formação técnica e política dos
quadros do MST através do núcleo dos cursos formais. Através
da luta, o MST tenciona e obtém conquistas nas políticas pú-
blicas educacionais, entre estas, o Pronera, a residência agrária,
as licenciaturas etc. Estas conquistas possibilitaram ao MST e
à ENFF avançar na relação com as universidades e na oferta do
ensino superior às populações do campo.
As experiências da escolarização são frutos das lutas do MST
na sua longa trajetória em defesa da educação como direito dos
camponeses e trabalhadores sem terra. Neste sentido elas incor-
poram tanto a dimensão da denúncia da negação histórica deste
direito aos povos do campo quanto também a denúncia sobre
a qualidade da educação brasileira e sobre que educação se faz
necessária no campo.
Através de sua práxis o MST compreende a importância de
combinar a formação técnica com a formação ideológica, enten-
dendo o trabalho enquanto um princípio da formação humana

123
no qual os elementos técnicos, as finalidades e intencionalidades
são partes constituintes do processo de organização do trabalho
e da gestão da sociedade humana em suas relações sociais.
Apesar de inúmeros avanços ao longo do trabalho de parce-
ria entre o MST e suas escolas e as universidades, nos interessa
aqui abordar a relação da ENFF com as universidades e explici-
tar algumas tensões, contradições e desafios que necessitam ser
superados na perspectiva de fortalecer os processos formativos
construídos na perspectiva do avanço da reforma agrária popu-
lar e da luta pela transformação social. São elas:
a) A necessidade de estabelecer um diálogo sobre o currículo
básico a ser incorporado nos cursos formais para a formação téc-
nica, política e ideológica Que conteúdos e disciplinas estão sendo
demandadas pelos movimentos e a realidade concreta? Este é um
dos grandes pontos de tensão, em função da fragmentação, da
compartimentação, das grades de conteúdos e disciplinas, das re-
gras impositivas da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal
de Ensino Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério de Educação
e Cultura (MEC). Geralmente cursos em uma mesma área de
conhecimento realizados por diferentes parcerias têm conteúdos
disciplinares muito diversos, sendo estes às vezes construídos sem
tomar em conta a realidade do campo e as demandas do Movi-
mento. A educação tem intencionalidades e se vincula a um pro-
jeto político de sociedade e de campo. Por isso é fundamental que
em cada área de conhecimento se estabeleçam os eixos e discipli-
nas comuns que dialogam com o projeto de reforma agrária po-
pular a se incorporar em todos os cursos formais de determinadas
áreas de conhecimento. A problematização que trazemos é que
sendo a educação escolar embutida de intencionalidades predefi-
nidas, como esta dialoga com o projeto de Educação do Campo e
com o projeto político da classe trabalhadora?

124
b) Choque entre a cultura coletivista do Movimento e a ló-
gica individualista da academia. Isto não significa que os mo-
vimentos negam nas suas práticas formativas a importância de
desenvolver as capacidades individuais, contudo, é fundamen-
tal combinar a relação entre individualidades e coletividades. A
cultura do ser social, coletivo, é parte constitutiva da vida dos
sujeitos sem terra e das comunidades camponesas. Desde a luta
e organização pelo direito à entrada coletiva na universidade en-
quanto grupo que foi excluído deste espaço, ao direito de man-
ter a identidade e o vínculo com a realidade e a origem social e
cultural de onde provém. Os estudantes trazem toda uma expe-
riência de vida coletiva que aprendem enquanto sem terrinhas,
enquanto assentados e associados das cooperativas, ou dirigentes
nos coletivos de setores, núcleos da organização do Movimento.
Enfim, são dirigentes militantes, são sujeitos construídos nestas
vivências coletivas. A lógica da academia é a entrada individual,
o produtivismo e a meritocracia. Esta lógica infunde uma nova
conduta e valores que contribuem para romper com a cultura e
os valores construídos na luta política dos sujeitos sem terra.
c) A lógica da produção do conhecimento (o que, para que,
e para quem). O que pesquisar, quais os temas de pesquisa que
se vinculam a necessidades e demandas da luta social dos mo-
vimentos. Em geral não há espaços para avançar na produção
de conhecimentos socialmente úteis e necessários para o avanço
no desenvolvimento dos territórios e comunidades camponesas.
Muitas vezes as pesquisas estão sendo direcionadas pelos interes-
ses dos orientadores. É imprescindível pautar coletivamente os
temas de pesquisa relacionados aos desafios da reforma agrária
popular.
d) As formas de elaboração dos estudos acadêmicos, que va-
lorizam padrões estabelecidos: os trabalhos escritos. O problema
não é esta forma em si, mas a limitação das formas principal-

125
mente quando se pensa a socialização dos conhecimentos pro-
duzidos para uma base social camponesa. É preciso pensar as
formas e as linguagens dos estudos realizados como formas que
possam ser socializadas para o conjunto da base social.
e) O local do estudo. Para os movimentos sociais não basta
apenas ocupar os espaços das universidades, é preciso expandir
a universidade para o campo. Assim, é necessário combinar estes
processos de convivência e práticas formativas em espaços cons-
tituídos na cidade e recriar novos espaços, novas universidades
no território do campo.
f) Os tempos educativos. Nas práticas educativas desenvol-
vidas pelo Movimento, busca-se avançar numa proposta de for-
mação humana integral, uma formação mais totalizadora. Daí o
entendimento de que muitos são os tempos das práticas forma-
tivas (tempos trabalho, estudo, organização, cultura e lazer etc.).
A formação técnica acadêmica é orientada especificamente para
a formação da mão de obra, a formação do trabalhador. Mui-
tas vezes também se vivenciam estudos críticos, contudo, para
avançar nas transformações necessárias à perspectiva da eman-
cipação humana, não basta formar trabalhadores, ou apenas su-
jeitos críticos. É preciso saber analisar e interpretar a realidade, e
construir novas sociabilidades. É preciso, sobretudo, avançar na
formação com vista à compreensão e intervenção construtora e
organizativa de novas formas de vida, estudo e trabalho.
g) Acesso restrito em algumas áreas de conhecimento. Avan-
çamos na pedagogia. Hoje existem as licenciaturas do campo,
todavia outros cursos como agronomia e direito são de difícil
acesso e temos duras batalhas jurídicas para garantir. Na atuali-
dade o direito tem sido um campo de batalha na grande ofensiva
dos retrocessos legais e democráticos, da judicialização da luta
e da criminalização dos movimentos. Também o acesso à área
da medicina; se esta não chega aos estudantes pobres da cida-

126
de, muito menos aos estudantes do campo para o qual todas as
portas de entrada estão fechadas. Ressalta-se aqui que alguns
avanços do MST na formação de profissionais na área de saúde
se deram na parceria com as escolas de medicina de Cuba.

Alguns desafios que se apresentam como linhas de


ação neste contexto de ofensiva do ideário da educação
produtivista
a) A afirmação da concepção da educação crítica e organi-
zativa vinculada ao projeto da classe. Embora muitos estudos
elevem a criticidade, é necessário que o vínculo orgânico seja
parte constituinte de uma educação que articula estudo, traba-
lho e gestão social. Os conteúdos dos cursos na grande maioria
têm base na educação crítica, mas não conseguem avançar na
consciência organizativa.
b) Estamos na luta de resistência em que não se apontam
ganhos reais para os trabalhadores. Ao contrário, a natureza das
lutas tem sido de defesa de direitos que estão sendo retirados.
Como defendê-los e como sair da resistência para nova ofensiva
e novas conquistas?
c) Pensar sobre as novas estratificações nos segmentos dos
trabalhadores da educação e das universidades: terceirizados,
professores, e pessoal do setor técnico-administrativo. O que
unifica como bandeira de luta os diversos trabalhadores enquan-
to classe? Como romper o corporativismo e o isolamento polí-
tico? É necessário pensar as estruturas e as formas de organiza-
ção e representação em que estamos inseridos e que precisamos
construir de novo.
d) A socialização das elaborações, ideias, como instrumentos
fundamentais na batalha ideológica. Muitas coisas boas foram
produzidas, mas não foram socializadas e muito menos utiliza-
das como instrumento político na batalha das ideias.

127
e) A relação entre o MST e as universidades se faz, sobretu-
do, com professores comprometidos com as lutas sociais, mais
do que com a instituição. As universidades são muito fechadas
para o campo. O próprio modelo de ensino superior não pensa
as diferenças entre o campo e a cidade no que se refere aos su-
jeitos do campo, ao espaçamento demográfico da população, ao
calendário agrícola e à cultura camponesa.
f) Uma das práticas dos cursos em parcerias, através do Pro-
nera, é a organização diferenciada das turmas e a gestão com-
partilhada através das Coordenações Políticas e Pedagógicas
(CPPs) dos cursos das quais fazem parte os professores, estudan-
tes e coordenadores da Educação do MST. As CPPs incidem no
aspecto pedagógico, no vínculo orgânico coletivo de educadores
e movimento social; no reconhecimento da autogestão das tur-
mas. Contudo, nem todas as parcerias tornaram possível a cria-
ção destes espaços. Como fazer para que a universidade aceite
a gestão compartilhada, inclusive repensando a formação das
CPPs, que por falta de recursos estão sendo desarticuladas.
g) A luta educa: este é um dos primeiros aprendizados peda-
gógicos extraídos das práticas formativas do MST. Como avan-
çar nas Jornadas Universitárias e nas jornadas de lutas? O que
fazer?

128
A E XPERIÊNCIA E M CON STRUÇ ÃO DA
RE L AÇ ÃO DA U N B COM OS MOVI M ENTOS
SOCIAI S DO C AM PO

Mônica Castagna Molina


Rafael Villas Bôas
Felipe Canova Gonçalves
Luis Antônio Pasquetti1

Nossa meta era, portanto, criar


aquela universidade que, em lugar
de apenas refletir o atraso cultural
e a desigualdade social, antecipasse,
no que fosse possível, a sociedade
avançada e solidária que havemos de
ser amanhã.
Darcy Ribeiro, 1978

O texto tem como objetivo descrever e analisar a parceria en-


tre professores, estudantes e técnicos da Universidade de Brasília
com os movimentos sociais do campo brasileiro, em particular
com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
que têm resultado em aprendizados recíprocos, durante duas dé-
cadas de trabalho ininterrupto.
Para compreendermos as condições em que se estabelecem as
parcerias entre a UnB e os movimentos sociais, nos anos seguin-
tes à redemocratização do país, cabe explicar a relação da UnB
com os desdobramentos da história política nacional.

Professores da Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília.


1

129
Criada no início dos anos 1960, no contexto de fundação da
nova capital do país, a UnB foi construída com projeto original,
que propunha, por meio de ousada articulação entre as diversas
áreas de conhecimento, um projeto diferente de universidade,
considerado na época como de vanguarda que, se bem imple-
mentado, poderia ser a bandeira da Reforma Universitária, uma
das tantas reformas de base, plataforma de lutas democráticas
que aglutinavam diversas forças sociais progressistas do país na-
quele período.
Na concepção, o projeto da UnB pretendia formar quadros
capazes de pensar o país e sua inserção no mundo, rompendo
com tradições colonialistas de transmissão do modelo europeu
de universidade. Era um momento de reavaliação do modelo
etapista, em que se colocava em xeque a concepção de um de-
senvolvimento linear da economia dos países que foram colônias
das metrópoles europeias.
Naquele contexto era formulada, por exemplo, a Teoria da
Dependência, responsável pela constatação de que o subdesen-
volvimento da periferia do sistema capitalista mundial estava
ligado ao desenvolvimento do centro, de modo que o aparen-
te arcaísmo do modo de produção escravista não era atrasado,
pois era parte do moderno sistema capitalista. Indo além, essa
teoria propunha que não era possível transpor o estágio do sub-
desenvolvimento para o desenvolvimento, mas apenas desenvol-
ver o subdesenvolvimento – com exceção dos países que leva-
ram adiante a luta política pela descolonização e romperam, por
meio de revoluções, com as estruturas de poder que condicio-
navam suas economias à condição periférica de abastecimento
do centro com a exportação de matérias-primas: Rússia, China,
Cuba, entre outros.
Os intelectuais que construíram o projeto da UnB, como
Darcy Ribeiro, reconheciam especificidades do processo de

130
formação nacional e do povo brasileiro que deveriam ser re-
conhecidas e estudadas. Isso apontava para uma universidade
com perspectiva anticolonial, anti-imperialista e com forte viés
terceiro-mundista, que implicava a ampliação das parcerias com
países do hemisfério sul, da América Latina e África, principal-
mente.
No limite, para aquela geração de intelectuais que projetou
a UnB, os dilemas do país não poderiam se dissociar daqueles
enfrentados pelos intelectuais de suas universidades, de modo
que os quadros nacionais deveriam se comprometer com a con-
solidação do projeto de nação brasileiro, por meio do amadure-
cimento da democracia no país. Estava posto na ordem do dia o
sentido de missão aos intelectuais e à UnB.
Esse projeto novo de universidade sofreu muita resistência
dos segmentos conservadores aliados à classe dominante, na me-
dida em que não interessava sequer a existência de universidade,
como também não era de interesse aos proprietários a presença
de indústrias pesadas na capital do país, para evitar a organiza-
ção de movimento estudantil e operário combativos como os do
Rio de Janeiro e de São Paulo.
Vencendo a resistência, a UnB foi construída e sobre ela
pairava grande expectativa quando o golpe militar-empresa-
rial de 1964 bloqueou o amadurecimento do projeto original,
com mudanças no sistema de educação nacional, como por
meio do acordo MEC-USAID, e com mudanças na dinâmica
interna da universidade, que envolviam a colocação de um
reitor militar, oficial da Marinha, monitoramentos, delações,
prisões, demissões e ataques ao campus por militares e poli-
ciais. O projeto original da UnB sucumbiu diante do padrão
autoritário, tecnocrático e militarista imposto ao país por 21
anos.

131
Tropas das polícias militar, civil, do exército e o DOPS invadiram a UnB em 29 de agosto de 1968,
fato que levou à detenção de 50 estudantes, entre eles o líder estudantil Honestino Guimarães. Foto:
CEDOC – UnB (Gurgel, 2002).

1996: a presença da reforma agrária na UnB com o GTRA


Durante a redemocratização do país, as lutas sociais reascen-
deram trazendo novamente ao debate o papel da universidade
na relação com os movimentos sociais, na luta por direitos e na
formulação de políticas públicas. Mesmo em descompasso com
seu projeto original, a Universidade de Brasília vivenciou a par-
ticipação ativa de estudantes, técnicos e professores nas manifes-
tações pela anistia, pelas diretas, pelo impeachment de Fernando
Collor e a resistência ao neoliberalismo nos anos 1990.
Bandeiras como a reforma agrária ressurgem com a democra-
tização do país, sobretudo pela atuação de movimentos sociais
do campo como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). Definido enquanto um movimento de massas de
caráter sindical, popular e político, o MST assumiu, desde sua
fundação, o objetivo de lutar por terra, reforma agrária e mu-

132
danças sociais. Entre suas várias linhas de ação, o movimento
estabeleceu o diálogo com a sociedade e a educação de sua base
acampada e assentada enquanto prioridades (Morissawa, 2001),
o que abria possibilidades de relação direta com a universidade,
como vivenciamos na UnB.
Inicialmente vinculado à reitoria da UnB, e depois transfe-
rido ao decanato de extensão da universidade, o Grupo de Tra-
balho da Reforma Agrária (GTRA) foi criado, em 1996, com
o objetivo de conceber e articular projetos de ensino, pesquisa
e extensão nas áreas de reforma agrária, capazes de contribuir
com a transformação das condições de vida da população as-
sentada e acampada gerando, ao mesmo tempo, novos conhe-
cimentos e oportunizando espaços de formação, ação e reflexão
para os estudantes da graduação e da pós-graduação da UnB, de
diferentes áreas do conhecimento.
No mesmo ano de sua criação, uma das mais importantes
articulações, a que definiu sua principal vocação, aconteceu: as
reuniões e o convite do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) para a UnB sediar o I Encontro Nacional dos
Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (I Enera), que
ocorreria em Brasília, em 1997. Após o aceite da reitoria para
o convite feito ao GTRA, inúmeras articulações e negociações
foram feitas, com várias instâncias da universidade, para que o
I Enera pudesse ocorrer nas dependências da UnB, no ano se-
guinte.
A importância histórica deste evento e os inúmeros desdobra-
mentos nacionais que gerou, como a própria gestação que nele
ocorre do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(Pronera), e da conclamação, nele ainda, à realização da I Con-
ferência Nacional de Educação Básica do Campo (CNEBC­),
que ocorreria em 1998, em Luziânia, já estão descritos em dife-
rentes trabalhos, em livros e teses, como, por exemplo, no livro

133
“Brava Gente”, de Bernando Mançano Fernandes e João Pedro
Stedile, ou na tese de doutorado de Molina (2003). Mas ainda
não estão suficientes registrados os desdobramentos deste evento
na UnB.
Sem dúvida, a realização e a qualidade do Enera, deram las-
tro para que o GTRA pudesse ousar propor a realização de no-
vos projetos, de larga envergadura, envolvendo departamentos e
institutos da UnB que não tinham presença marcante nas áreas­
de reforma agrária, nem no Distrito Federal e entorno, nem
em âmbito nacional, embora tivessem o rural como objeto de
suas graduações, como, por exemplo, os cursos da Faculdade de
Agronomia (FAV) ou da Engenharia Florestal.
Entre estes desdobramentos destaca-se a construção de uma
parceria entre o GTRA, a Faculdade de Agronomia da UnB
e o Setor de Produção do MST para realização do Curso de
Especialização e Extensão em Administração de Cooperativas
(Ceacoop), que teve três edições, com diferentes parceiros na
sua execução. Entre estes ressalte-se o Instituto Nacional de
Educação Josué de Castro (Iterra), do próprio Movimento, e a
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Com a UnB o
Movimento desenvolveu três turmas de Ceacoop, com cerca de
quarenta alunos cada. O público-alvo destes cursos era consti-
tuído pelos agrônomos, economistas, administradores, técnicos
agrícolas e dirigentes que integravam o Sistema Cooperativista
dos Assentados (SCA).
Além destas parcerias no âmbito da organização da produ-
ção, a principal frente na qual foram realizadas várias ações en-
tre o MST e o Grupo de Trabalho de Apoio à Reforma Agrária
foi a própria Educação do Campo. Após a parceria para a reali-
zação do I Enera e da I CNEBC, em 1998, seguiu-se um inten-
so trabalho para a organização do Curso de Especialização em
Educação do Campo e Desenvolvimento Sustentável, também

134
parceria da UnB, via GTRA, e o Centro de Desenvolvimento
Sustentável (CDS), com o Iterra e a Escola Nacional Florestan
Fernandes (ENFF), em Guararema, onde ocorreram as etapas
de Tempo Escola 2 da referida especialização.
A experiência da oferta desta especialização foi um impor-
tante espaço de acúmulo de força e de experiências não só para
as próprias docentes da UnB envolvidas no processo, mas tam-
bém foi significativa na ampliação do vínculo entre o GTRA e
o Setor de Educação do MST.
Após o término desta especialização, a equipe da UnB tra-
balhou intensamente com os demais parceiros na organização
da II Conferência Nacional Por uma Educação do Campo, em
2004. Como resultado da própria conferência há uma demanda
para a elaboração de uma política pública de formação de edu-
cadores de campo, que vai resultar na criação, pela Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
do Ministério da Educação (Secadi/MEC), do Grupo de Traba-
lho para elaboração da proposta das Licenciaturas em Educação
do Campo.
Como desdobramento deste longo processo, em 2007, com a
proposta das Licenciaturas em Educação do Campo elaborada
e aprovada pelo MEC, vem a nova parceria Iterra/UnB para a
oferta desta nova modalidade de graduação. Já não mais como
GTRA, mas como uma unidade acadêmica capaz de apresen-
tar, perante o conselho universitário (Consuni), a proposta desta
nova modalidade de graduação: o Centro Transdisciplinar de
Educação do Campo, conquistado como resultado dos dezessete

2
O termo refere-se ao método da pedagogia da alternância, utilizado na Educação
do Campo, cuja principal característica consiste em articular etapas na escola ou
universidade (Tempo Escola) com a vivência prática dos conhecimentos estuda-
dos nas comunidades de origem dos educandos (Tempo Comunidade).

135
anos do GTRA, para desenvolver projetos inovadores no âmbito
da Educação do Campo, no ensino, na pesquisa e na extensão.

Do Grupo de Trabalho da Reforma Agrária para a Educação


do Campo na graduação e na pós-graduação da UnB
Durante toda a história do GTRA (1996-2014) sempre acon-
teceu de forma integrada a promoção de ações de ensino, exten-
são e pesquisa, inclusive com a promoção, em parceria com dife-
rentes unidades acadêmicas, de vários cursos de especialização,
em diferentes áreas do conhecimento, mas, especialmente, no
âmbito da Educação do Campo.
A experiência da oferta destes cursos de pós-graduação possi-
bilitou o acúmulo de forças necessário à proposição e aprovação
de uma Linha de Pesquisa em Educação do Campo, no mestra-
do e no doutorado da Faculdade de Educação da UnB, que se
transformou em um espaço importante para a continuidade da
formação de quadros vinculados à luta pelo direito à educação
dos camponeses, em todos os níveis de ensino.
Após a aprovação da primeira turma piloto, o curso de Licen-
ciatura em Educação do Campo da UnB foi incorporado como
curso permanente por meio do programa de expansão Reuni,
do Governo Federal. Isso permitiu a contratação de corpo do-
cente para suprir as demandas do curso, e a abertura regular de
turmas.
Com a criação das áreas de Educação, de Linguagens e de
Ciências da Natureza e Matemática, o corpo docente passou
a ofertar ocasionalmente cursos de especialização para comple-
mentar as demandas de formação, sobretudo dos egressos da
Educação do Campo.
Entre estas formações continuadas para os educadores do
campo, destacam-se a “Especialização para o trabalho docente
interdisciplinar nas Escolas do Campo na área de Ciências da

136
Natureza e da Matemática”, ofertado através de uma parceria
entre UnB, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
Unifesspa e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
para quarenta educadores egressos das Licenciaturas em Edu-
cação do Campo, desenvolvida em alternância nestas quatro
regiões­do país, no período de 2014 a 2016. Também é impor-
tante destacar a experiência da oferta da especialização em Edu-
cação e linguagens nas Escolas do Campo, realizada através de
uma parceria entre a UnB, o Instituto Técnico de Capacitação e
Pesquisa da Reforma Agrária e a Escola Nacional Florestan Fer-
nandes, no período de 2012 a 2014, coordenada pela professora
Ana Laura dos Reis Corrêa, do Departamento de Teoria Literá-
ria do Instituto de Letras da UnB.
A realização desses cursos permitiu, por meio de diversos se-
minários realizados em parceria com a Escola Nacional Flores-
tan Fernandes, como a série de quatro seminários Conexões,
organizados pelo grupo de pesquisa Modos de Produção e An-
tagonismos Sociais, o aprofundamento do debate de diversos te-
mas do escopo da reforma agrária, como o debate sobre o modo
de produção agrícola articulado à questão de gênero, à cultura,
à educação e à soberania alimentar.
A partir de 2013, os grupos de pesquisa da UnB que atuam
com a questão agrária como tema central ou articulado se reuni-
ram para organizar as Jornadas Universitárias de Apoio à Refor-
ma Agrária (JURAs),3 uma proposta deliberada nos encontros
dos professores universitários com o MST, reunião que acontece

3
Grupos de pesquisa participantes da JURA na UnB: Modos de Produção e An-
tagonismos Sociais (MPAS), Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Materialismo
Histórico-Dialético e Educação (Consciência), Núcleo de Estudos Afro-Brasi-
leiros (Neab), Literatura e Modernidade Periférica, Núcleo de Estudos Agrários
(Neagri), Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP) e Núcleo
de Estudos Cubanos (Nescuba).

137
bianualmente desde 2011 na Escola Nacional Florestan Fernan-
des, reunindo cerca de duas centenas de professores de universi-
dades e institutos federais de todas as regiões do país.
Em linhas gerais, as jornadas procuram articular nacional-
mente a defesa da educação pública de qualidade e a reforma
agrária como pilares de um projeto popular de país. Temas
correlatos como a democratização da cultura e da comuni-
cação, o reconhecimento dos movimentos sociais do campo
como sujeitos coletivos de produção de conhecimento, a luta
contra a criminalização destes movimentos, a necessidade de
uma reforma política e a defesa da qualidade da alimentação
dos brasileiros apareceram nos debates. As três edições rea-
lizadas da jornada na UnB nos anos de 2014, 2015 e 2016
contaram com os seguintes temas, respectivamente: “Univer-
sidade, Reforma Agrária e Projeto de Nação: novos horizontes
de mobilização social”, “Questão agrária, soberania popular e
alimentar” e “Em memória dos vinte anos do massacre de El-
dorado dos Carajás”.

Cartazes das JURAs na UnB em 2014 (E), 2015 (C) e 2016 (D).

A experiência de organização coletiva das JURAs, com o en-


volvimento de movimentos sociais do campo e urbanos, como

138
o Levante Popular da Juventude, e com diversos grupos de pes-
quisa e programas de pós-graduação da UnB, como o Programa
de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Ru-
ral e o Programa de Pós-Graduação em Educação, nos permitiu
imaginar a construção de outras formas de intervenção coletiva,
recuperando métodos e formas desenvolvidos em outros contex-
tos. Foi o caso da ação da primeira aula pública coletiva – Teatro
em Movimento – sobre a história da luta da UnB pela democra-
cia, em resistência aos 21 anos de ditadura, realizada no dia 16
de agosto de 2016.
Percorrendo um período histórico de 52 anos, de 1964 a
2016, a aula coletiva foi planejada com dez pontos de parada
em locais históricos da UnB, como o Anfiteatro 9, local em que
ocorriam as principais assembleias dos estudantes e professores,
o Diretório Central dos Estudantes, o Sindicato dos Técnicos da
UnB (SintFUB), o Memorial Honestino Guimarães, em home-
nagem ao líder estudantil desaparecido em 1972, quando presi-
dia, na clandestinidade, a União Nacional dos Estudantes, em
plena ditadura.
A Educação do Campo esteve presente tanto na organização
do teatro em movimento, por meio do Coletivo Terra em Cena,
um grupo de pesquisa e extensão que envolve a relação entre
tea­tro, audiovisual e educação do campo, quanto tematicamente
em uma das etapas da aula coletiva, com o debate sobre a rele-
vância da reforma agrária como uma das principais reformas
de base por que lutavam os camponeses, operários, estudantes,
intelectuais e artistas na década de 1960. A relevância da refor-
ma agrária para um projeto democrático para o país foi pautada
junto com o debate sobre a questão da soberania alimentar e da
luta contra os agrotóxicos e o avanço do agronegócio sobre as
terras devolutas e a natureza.

139
Do ponto de vista da relação com os movimentos sociais, na
medida em que os cursos vão sendo executados vamos progres-
sivamente amadurecendo a metodologia de trabalho coletivo,
desde a fase do planejamento dos cursos até o trabalho em par-
ceria na execução das etapas de Tempo Universidade e Tem-
po Comunidade, com a presença de militantes dos movimentos
sociais nas coordenações político-pedagógicas do curso, o que
proporciona aprendizados recíprocos, para a universidade e para
os movimentos sociais, a partir do compartilhamento da dimen-
são da práxis dos movimentos sociais do campo, de uma matriz
formativa que envolve a luta como parte essencial do processo
de formação da consciência, e a partir da colaboração da univer-
sidade no que diz respeito ao processo de produção e sistema-
tização de conhecimentos, o que permite fortalecer o processo
de formação de intelectuais orgânicos dos movimentos sociais.
Atualmente, buscamos articular nos territórios as diver-
sas ações de Tempo Comunidade que são encaminhadas pe-
los cursos em andamento, buscando meios de fortalecer a ação
conjunta dos estudantes e moradores das comunidades, com a
universidade e os movimentos sociais que atuam nos territórios.
Acreditamos que esse é um meio viável para o acúmulo de forças
da Educação do Campo nas diversas regiões em que atuamos,
evitando a dispersão de energia em muitas atividades paralelas.
Construir um processo coletivo pautado por uma ética do
trabalho compartilhado, em que as comunidades não sejam
apenas objeto de estudo da universidade, e, por outra via, que os

140
movimentos não se relacionem com o conhecimento e a univer-
sidade de forma instrumental, é um desafio que perseguimos.
Nesse sentido, avanços aparentemente pequenos podem conter
grande força simbólica, como a mudança da dinâmica de cons-
trução dos projetos de cursos em que apenas solicitamos dos mo-
vimentos a carta de intenção, para adornar os anexos do proje-
to, para o reconhecimento dos movimentos sociais como sujeitos
demandantes e protagonistas da construção dos cursos, portado-
res de experiências teóricas e metodológicas singulares. Esse foi o
processo metodológico adotado no curso “Educação do Campo e
Juventude Rural: formação profissional e social a partir das ma-
trizes formativas, associativas, cooperativas, artístico-cultural e da
comunicação no campo”, um curso de extensão financiado pelo
Pronera e pelo CNPq, e coordenado no campus de Planaltina pe-
las professoras Eliene Novas Rocha e Regina Coelly.
Outro exemplo é a devolutiva dos trabalhos desenvolvidos
pelos estudantes assentados e quilombolas em suas comunida-
des, antes dos processos formais de qualificação e defesa na uni-
versidade, criando um processo de debate intenso sobre a agenda
de pesquisa, sobre a forma de produção de conhecimento e a
apropriação posterior dos resultados dos trabalhos pelos movi-
mentos, associações e comunidades.
No âmbito interno à UnB, o diálogo e a pressão exercida por
professores e estudantes do curso de Licenciatura em Educação
do Campo para que a estrutura da universidade assimile a forma
do regime de alternância em sua dinâmica têm logrado algumas
vitórias, como a conquista do alojamento específico, com finan-
ciamento do Ministério da Educação. O alojamento, inaugura-
do com o nome Dom Tomás Balduíno, em homenagem ao di-
rigente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), comporta oitenta
estudantes e conta com instalações específicas para a ciranda
infantil, sala de estudos e copa.

141
Na esfera da organização sindical, os professores da Educação
do Campo perceberam o risco do isolamento do curso e de suas
demandas, caso não participassem dos espaços de organização
coletiva da categoria. Em consequência, além da atuação mais
incisiva no conselho de representantes da associação sindical,
nas assembleias e nos comandos de greve, nos dois últimos plei-
tos para a direção da associação dos docentes da UnB a chapa
mais comprometida com as pautas progressistas e com o diálogo
com os movimentos sociais teve como candidatos a presidente
docentes do curso da Licenciatura em Educação do Campo.

Desafios
Atualmente consideramos como desafios para o fortaleci-
mento da relação da UnB com os movimentos sociais do campo
as seguintes questões:
1ª) Fortalecer a participação dos movimentos sociais na uni-
versidade, pois temos avaliado que nas atividades como as JU-
RAs e em seminários como os Conexões as pautas dos movi-
mentos são o foco, há forte presença dos intelectuais militantes
nas mesas de debate, porém, há pouca presença das famílias
acampadas, assentadas e quilombolas no público dessas ações.
Bem como tem decrescido exponencialmente a presença de pes-
soas oriundas de movimentos sociais, sindicais e associações ati-
vas na Licenciatura em Educação do Campo.
Diante das características pulverizadas da organização po-
pular no Distrito Federal e entorno, em razão da ação populis-
ta de políticos financiados pela especulação imobiliária e pela
construção civil, o público crescente da Educação do Campo
na UnB não é o sujeito político coletivo organizado em movi-
mento social. É o indivíduo de áreas rurais-urbanas periféricas,
de assentamentos e quilombos como público beneficiário das
políticas públicas: agem como se estudar na UnB fosse um pri-

142
vilégio, um favor, mantêm uma atitude passiva de quem se sente
em dívida e deve agradecer, e quando os problemas imediatos se
colocam, como recurso para permanência no curso, a reação se
dá de forma conjuntural, clientelista, mediada por relações pre-
cárias de assistencialismo.
2ª) Nesse sentido temos trabalhado para estimular o for-
talecimento da organização em nível nacional dos estudantes
da Educação do Campo, para que as pautas desse segmento, já
presente em 48 cursos no Brasil, adquiram poder de pressão e
representatividade. Até o momento nenhum encontro nacional
dos estudantes da Educação do Campo foi organizado, embora
haja diálogo para o fortalecimento da recém-nascida Executiva
Nacional dos Estudantes da Educação do Campo, e possibilida-
des de que essa iniciativa cresça em representatividade, forman-
do uma Federação Nacional dos Estudantes do Campo, pas-
sando a representar não apenas os estudantes das Licenciaturas
em Educação do Campo, mas todos os estudantes em cursos
direcionados para o público camponês e quilombola.
3ª) Compreendemos que outro importante desafio que nos
compete é contribuir para superar a lógica hegemônica do traba-
lho nas Instituições de Ensino Superior (IES), em que prevalece
um ethos competitivo e individualista, no qual o processo de
produção de conhecimento é organizado a partir de estratégias
individuais e desarticuladas das demandas sociais. Temos feito
um esforço no sentido de romper este padrão, buscando cons-
truir projetos de pesquisa que estejam articulados às deman-
das e a partir de uma rede de universidades envolvidas em uma
mesma pesquisa, nas quais temos buscado, simultaneamente,
além de realizar a pesquisa, garantir também um processo de
formação dos formadores para o trabalho coletivo e solidário.
Como exemplo desta articulação, podemos citar a pesquisa que
vimos desenvolvendo sobre a Expansão da Educação Superior

143
do Campo, na qual estão envolvidas as seguintes instituições:
Universidade Federal do Pará (campus Cametá), Universidade
Federal do Sul e Sudeste do Pará e Universidade Federal do To-
cantins (campus de Tocantinópolis), na Região Norte; Universi-
dade Federal do Recôncavo da Bahia e Universidade Federal do
Maranhão, na Região Nordeste; Universidade de Brasília (cam-
pus Planaltina), na Região Centro-Oeste; Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro e Universidade Federal de Viçosa, na
Região Sudeste; Universidade Federal de Santa Catarina e Uni-
versidade Federal da Fronteira Sul, na Região Sul.
4ª) Por fim, também compreendemos que é uma tarefa e um
desafio importante contribuirmos com a promoção de uma for-
te articulação entre o conjunto dos cursos de Licenciatura de
Educação do Campo, com a perspectiva de fazer dos mesmos
espaços de resistência e promoção de uma nova concepção de
universidade, na qual, de fato, as necessidades do povo brasileiro
estejam em primeiro lugar.
Entendemos que a potencialização dos resultados desta rele-
vante conquista dos movimentos sociais, com implementação
dos cursos permanentes de Educação do Campo, só se efetivará
se realmente estes cursos conseguirem construir uma ação arti-
culada, posicionando-se política e ideologicamente em conso-
nância com o projeto da agricultura camponesa. Este não será
um processo natural e gratuito. Exigirá muito esforço de articu-
lação e formação política, pois parte significativa dos docentes
que ingressaram nos cursos de Licenciatura em Educação do
Campo não tinha uma trajetória anterior de vinculação com
as lutas populares, o que não quer dizer que não possam vir a
construí-la. Entendemos, portanto, que uma outra tarefa e um
outro desafio é também seguir na promoção de espaços de for-
mação e articulação do coletivo das Licenciaturas em Educação
do Campo para que cumpram realmente o papel que lhes foi de-

144
signado, no sentido de contribuir com o processo de resistência
do campesinato aos processos de desterritorialização impostos
pelo capital.

Referências
GURGEL, Antonio de Pádua. A rebelião dos estudantes (Brasília, 1968).
Brasília: Editora da UnB, 2002.
MORISSAWA, Mitsue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo:
Expressão Popular, 2001.
RIBEIRO, Darcy. UnB: invenção e descaminho. Rio de Janeiro: Avenir,
1978.

Sites e blogs de referência dos projetos desenvolvidos e/ou em anda-


mento e dos grupos de pesquisa:
Programa de extensão e grupo de pesquisa Terra em Cena: teatro e audio-
visual na Educação do Campo: <www.terraemcena.blogspot.com>
Grupo de Pesquisa Modos de Produção e Antagonismos Sociais: <www.
modosdeproducao.wordpress.com>.
Blog dos cursos de especialização em Residência Agrária e do Residência
Agrária Jovem da UnB: <www.matrizesprodutivasdavidanocampo.
wordpress.com>.
Núcleo de Estudos Agrários/Neagri: <www.neagri.unb.br/>.

145
AN E XO
C ARTA DO III ENCONTRO
NACIONAL DE PROFES SORES(A S)
U N IVERS ITÁRIOS COM O M ST

A expansão da ordem social


democrática constitui o requisito
sine qua non de qualquer alteração
estrutural da sociedade brasileira. Se
não conseguirmos fortalecer a ordem
democrática, eliminando os principais
fatores de suas inconsistências
econômicas sociais e políticas, não
conquistaremos nenhum êxito
apreciável no crescimento econômico,
no desenvolvimento social e no
progresso cultural .
Florestan Fernandes

Nós, participantes do III Encontro Nacional de Professores


Universitários com o MST, reunidos na Escola Nacional Flores-
tan Fernandes, entre os dias 19 e 21 de maio de 2016, vimos ma-
nifestar nossa posição de que o golpe contra a democracia que
afastou a presidente Dilma Rousseff expressa uma ruptura insti-
tucional promovida pela rearticulação de forças conservadoras,
com forte apoio midiático, e que teve como base de legitimação
o poder judiciário e agentes econômicos que buscam consolidar
políticas neoliberais, de interesse do grande capital e, com isso,
aprofundar as desigualdades em nosso país. Entendemos, assim,
que o governo provisório não possui legitimidade e aceitação,
por parte da população brasileira, para quaisquer mudanças na
orientação das políticas públicas de uma forma geral e na edu-
cação, em particular. Tal retrocesso só foi possível pela desmo-

149
bilização política e pela não realização das reformas estruturais
por parte dos governos populares, que consideraram a estratégia
de conciliação de classes a única alternativa política viável para
a governabilidade.
Destacamos que iniciativas como a extinção do Ministério
do Desenvolvimento Agrário, do Ministério da Cultura e a de-
sobrigação da aplicação de recursos constitucionalmente vincu-
lados a políticas sociais representam um retrocesso para a conti-
nuidade das políticas públicas de saúde e educação, da produção
científica e do desenvolvimento social do país.
Partimos da defesa intransigente da educação pública, estatal,
gratuita, laica e de qualidade como direito inalienável do povo
brasileiro e entendemos que, pela luta dos trabalhadores e das
trabalhadoras, esta foi uma conquista historicamente constituí-
da, ainda que não totalmente efetivada para todos e todas. Este
processo pressupõe instituições educacionais verdadeiramente
democráticas nas quais os valores de participação e o respeito à
diversidade são fundamentais. Neste contexto, entendemos que
as universidades públicas são instituições essenciais para a for-
mação humana, para a produção de conhecimento, de ciência e
de tecnologia que devem propiciar, em função de seu compro-
misso social, uma compreensão crítica da realidade brasileira e
uma atuação no enfrentamento e construção de uma sociedade
justa e igualitária. Para isso, a autonomia destas instituições e a
manutenção da liberdade de pensamento e criação são variáveis
fundamentais para a construção de uma universidade pública
socialmente referenciada.
Um dos grandes desafios de nossa sociedade é o enfrenta-
mento da questão agrária e, em especial, a efetivação de uma
reforma agrária popular que democratize o acesso à terra e su-
pere as desigualdades históricas entre o campo e a cidade. Lu-
tamos por um projeto que viabilize a produção agroecológica e

150
potencialize o meio rural como espaço de vida, de autonomia
de nossos povos e de soberania alimentar para toda a sociedade.
Denunciamos e repudiamos o recrudescimento da violência no
campo e nos solidarizamos com as famílias camponesas em luta
pela terra.
A Educação do Campo, historicamente relegada, é uma con-
quista fundamental dos trabalhadores e das trabalhadoras do
campo na direção de fortalecê-los e incluí-los na perspectiva da
emancipação e da justiça social. O Programa Nacional de Edu-
cação para a Reforma Agrária (Pronera), em seus 18 anos de
existência, como política pública, tem representado a materiali-
dade deste direito à educação, pois viabilizou a escolaridade de
cerca de 170 mil assentados, da Educação Básica/Educação de
Jovens e Adultos ao Ensino Superior.
No entanto, o processo de privatização e terceirização das
atividades científicas, artísticas e culturais, fortalecido pelo re-
trocesso democrático em curso, compromete conquistas históri-
cas dos trabalhadores e das trabalhadoras e acelera o processo de
mercantilização da educação e da produção de conhecimentos
necessários ao desenvolvimento do país.
O povo brasileiro reagirá! O protagonismo da juventude, que
ocupa escolas e realiza escrachos, demonstra o potencial de en-
frentamento e de formas alternativas de organização e luta cole-
tiva contra o golpe e o capital. Cabe a nós, como trabalhadores
e trabalhadoras da educação, a tarefa de organizarmos a resis-
tência em nossos espaços de trabalho e nos mobilizarmos para a
defesa das conquistas históricas de nossa sociedade.
Nossa luta é pela educação como direito e não mercadoria!
Seguimos comprometidos e mobilizados para a continuidade e
ampliação de sua efetivação!
NENHUM DIREITO A MENOS!!

151

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