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E73
Formato: ebook
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-87594-54-5(recurso eletrônico)
CDD:
CDU:
apoio:
2
ESCoLA Em TrANSE
ESCOLA DE ARQUITETURA E URBANISMO - UFF
orgANizAdorES:
FErNANdA SáNChEz
LouiSE LANd
CAio NoguEirA
CriSTiNA NACiF
gLAuCo biENENSTEiN,
iSAbELA bACELLAr
pâmELA vENTurA
pAuLA LAibEr
pAuLA morEirA
riCArdA TAvArES
roSSANA TAvArES
ThAYANA FoNTES
viTóriA gouvEiA
viTor roppA
Editora
ESCOLA EM TRANSE...............................................................................................16
Rossana Brandão Tavares
A MEMÓRIA DA FAVELA..........................................................................................69
Cosme Felippsen
Prezad@s,
O Brasil e o mundo têm enfrentado a presença e expansão da
pandemia da COVID-19. Cada nação, cada cidade, cada família e cada
indivíduo hoje procuram uma forma de se precaver ou tratar.
Diariamente, nos angustiamos com as perspectivas que se apresentam,
tanto quanto ao prazo da quarentena, como quanto ao número de
mortos nessa guerra mórbida.
No caso brasileiro, a situação é ainda dificultada pelo sucateamento
das políticas públicas, entre outros atos irresponsáveis de um presidente
despreparado, autocrata e criminoso que, em muitos momentos,
contribui para o agravamento da crise.
O país e, notadamente, os mais pobres, são alijados das melhores
práticas e bens da ciência. O ódio e o preconceito são disseminados
contra mulheres, negros, nordestinos e grupos LGBT, entre outros,
invertendo o processo de inclusão social e respeito à diversidade, até
então, incrementado por políticas públicas e pela adesão da sociedade.
Na verdade, a incapacidade já revelada em conter a expansão da
pandemia ocorre no momento mais grave, sob um governo que, desde
seu início, promoveu a divisão dos brasileiros, suprimiu direitos
trabalhistas e previdenciários; ampliou a desigualdade e reduziu as
oportunidades de ascensão social e geração de empregos. Ao mesmo
tempo, abre mão do patrimônio público e da soberania nacional, e
insulta o direito à liberdade de expressão. Recursos da cultura, da
ciência, da universidade pública e da própria saúde são subtraídos. Vale
lembrar que, desde o início desse governo, a permanência do tão bem-
sucedido Sistema Único da Saúde, o SUS, sofre ameaças.
Pode-se dizer que hoje a população brasileira enfrenta
simultaneamente duas graves crises: a pandemia da COVID-19 e os
desmandos criminosos do governo Bolsonaro.
As circunstâncias exigem um posicionamento crítico e político.
Durante o período de isolamento, um grupo de pessoas que integram a
Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense
(EAU-UFF) vem articulando um movimento coletivo para refletir sobre
questões que afetam a vida dos brasileiros, não somente as evidenciadas
pela pandemia, mas principalmente as já vivenciadas no cotidiano
institucional e que fazem parte do campo de atuação e influência de
professor@s, estudantes e técnicos da EAU-UFF.
O movimento Escola em Transe apresenta algumas dessas questões e
reflexões, em forma de manifesto.
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Princípios
Quadro Institucional
Hoje a EAU-UFF conta com 468 estudantes na graduação, 30% deles
ingressos por cotas de renda, etnia ou necessidades especiais. Vale
também destacar o predomínio feminino entre @s estudantes
matriculados, atualmente em torno de 70%. Este predomínio ou, pelo
menos, o equilíbrio hoje existente, também se estende ao quadro de
professores e ao de estudantes da pós-graduação. 70% dxs mestrandxs
são mulheres. No doutorado, chegam a 56%. Entre os professores, a
composição, por gênero, é equilibrada.
Esses percentuais têm-se elevado a cada semestre e estimulam a
reflexão, não apenas quanto ao perfil desejado para ess@ arquitet@ e
urbanista, mas, sobretudo, quanto ao modelo de ensino e ao papel que
se deve assumir diante dessa realidade. É cada vez mais clara a
necessidade de rever métodos e procedimentos pedagógicos, visando à
renovação do ensino, para a formação desse novo profissional e cidadão.
Faltam espaços físicos para o ensino e a pesquisa, ambientes saudáveis
para estudantes, professor@s e servidor@s, de modo a oferecer o
mínimo adequado às funções acadêmicas. Não há como buscar
qualidade e excelência, alheios a equipamentos e recursos tecnológicos
Escola em Transe
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compromisso de absorver a experiência das Periferias para formar
arquitet@s e urbanistas que exerçam uma cidadania crítica, que sejam
capazes de, antropofagicamente, mesclar “centros” e “periferias”,
projetar futuros imaginando “espaços da esperança”.
Os tempos atuais são difíceis, de convivência com ameaças constantes
aos direitos duramente conquistados por trabalhador@s e produtor@s
do conhecimento. Essas ameaças compreendem redução de salários;
mudanças no sistema previdenciário e na progressão funcional; cortes
nos recursos destinados a pesquisas e no sistema de cotas; inclusão sem
base didática do “ensino à distância”, que se sabe improdutivo e farsesco,
entre tantos outros golpes ao mundo acadêmico.
Nesses termos, a Escola em Transe convoca estudantes, professor@s,
técnic@s e demais servidor@s a participar deste movimento que propõe
o pensar e o agir visando à renovação, a um novo convívio entre pessoas
que compartilham o mesmo ambiente institucional, a transformá-lo em
espaço de acolhimento ao debate, à diversidade, à solidariedade e à
cooperação. São essas as condições que farão com que, unid@s,
atent@s, persistentes e articulad@s a outros setores da sociedade, a
EAU-UFF esteja mais forte para enfrentar as ameaças e superar os
problemas que se apresentem.
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em outubro deste ano e apresentada em Roda de Conversa, ao fim
daquele mês.
Também a representação profissional, em suas entidades culturais e
de classe e a ampla produção arquitetônica na América Latina foram
temas concorridos em Rodas realizadas neste período. Além dessas,
destacamos a expressiva produção do escritório Brasil Arquitetura,
apresentada pelo arquiteto Marcelo Ferraz, com grande atenção de
todos os participantes.
A avaliação do ensino de arquitetura e urbanismo e da experiência em
outros países foi abordada em Rodas de Conversas dedicadas aos
estudantes egressos da EAU/UFF. Em uma delas, ouvimos depoimentos
sobre suas vivências internacionais, complementada pelo depoimento
de alunos estrangeiros, que hoje vivem a experiência brasileira na EAU/
UFF.
E, para encerrar esta breve descrição, vale destacar o debate quanto ao
direito à cidade e à habitação digna, objeto de Rodas de Conversa, que
trataram da potência da periferia, do direito à moradia e do habitar o
centro, como ponto central da reforma urbana. Em parceria com o CAU/
RJ, discutimos a mobilidade urbana, a partir de filme em curta
metragem sobre a experiência de três mulheres, que se deslocam pelo
transporte coletivo do Rio de Janeiro. Outra Roda complementou o tema
da mobilidade, abordando o cotidiano das ciclistas e dos ciclistas, os
problemas e oportunidades de quem circula em duas rodas pelas ruas
da cidade.
Como vimos, um amplo espectro de temas abordados e debates
produzidos contribuíram não apenas para o fortalecimento da
resistência ao arbítrio e à luta da sociedade por um futuro melhor,
mobilizador de utopias, mas também contribuindo para a projeção da
EAU/UFF no âmbito acadêmico nacional e da luta política da sociedade
civil.
Passados oito meses desde o anúncio da pandemia e quase dois anos
da posse do atual presidente, a cultura, a ciência, a educação e, em
especial, o ensino superior, como dissemos na apresentação do primeiro
e-pub, lançado em Roda de Conversa realizada em 27 de julho último,
seguem ameaçados. O desmanche das instituições de ensino e pesquisa,
as conquistas relacionadas à inclusão social, da proteção ambiental e
desenvolvimento da ciência e da cultura constituem a face mais visível
do grupo hoje no poder.
Com tal diversidade do debate e a efervescência do contexto político,
optamos por abrir e fechar esta segunda publicação da Escola em
Transe com advertências epistemológicas que apontam para a
necessidade de mudanças em termos da produção de conhecimento. A
começar pelo texto de Rossana Tavares, que desafia a ressignificação de
narrativas e do lugar das mulheres, seguida do texto de Poliana
Monteiro, que indica que a promoção das mulheres no campo da
produção de conhecimento deve caminhar contrariamente ao
silenciamento.
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Depois, em um segundo bloco, estão relatos e provocações relativos à
formação do arquiteto e urbanista, um interregno entre a experiência e a
teoria. O debate começa pela exposição de Caio Nogueira, segundo o
qual o pensamento educacional ainda fluente na formação do arquiteto
urbanista é localizado no tempo e no espaço. Ao questionar sobre os
modelos em relação ao urbanismo, que se cristalizam na formação
profissional, Raquel Rolnik instiga a construção de conhecimento a
partir dos territórios populares. Ainda nesse bloco, Margareth da Silva
Pereira mostra a indispensabilidade da atualização do campo da
arquitetura e do urbanismo, que reflete as expansões e crises globais. Já
o relato de Letícia Lyra recorda a experiência do programa Ciência sem
Fronteiras e a valorização do ensino de qualidade.
Ainda na discussão acerca do ensino, seguem os textos com múltiplos
aportes teóricos sobre a cidade e a forma contemporânea. Thereza
Carvalho explora algumas hipóteses sobre a vitalidade local que as
novas e velhas formas do urbano produzem. Discutindo sobre habitar o
centro, Pedro da Luz levanta as condições de um projeto de
desenvolvimento que combata a forma inercial de reprodução da cidade
brasileira. Claudio Ribeiro, por sua vez, atenta para as relações atuais de
trabalho e sua interferência na forma das cidades contemporâneas.
Pensando sobre a essência e a aparência, Guilherme Figueiredo destaca
a compreensão da forma arquitetônica em sua totalidade conceitual.
Fechando o terceiro bloco, a crítica à ideologia da forma arquitetônica,
produzida por Pedro Arantes, provoca a experiência da forma
compreendida como obra compartilhada de saberes.
Por fim, se apresentam três textos que abordam o patrimônio
enquanto tema chave para a compreensão do urbano e de suas relações
sociais. Cristóvão Duarte debate a crise urbana e a preservação do
patrimônio cultural edificado nas cidades brasileiras. Discutindo sobre a
destruição e a memória, Clarissa Moreira desconstrói discursos até hoje
consolidados em relação ao patrimônio. Por fim, como fechamento, o
relato de Cosme Felippsen sobre o projeto “Rolé dos Favelados”
demonstra como o circuito turístico por ele organizado, pode tornar
sensíveis memórias que aparentemente estavam sob escombros. Propõe
um exercício de imaginação espacial da área portuária do Rio de Janeiro,
que conecta tempos diferentes em um mesmo espaço racializado.
Finalmente, como já afirmamos anteriormente, o momento é de luta e
de reflexão coletiva, com vistas a garantir direitos conquistados, o amplo
debate democrático, a qualidade do ensino e formação profissional de
arquitetas, arquitetos e urbanistas, da EAU/UFF.
Nesta publicação digital, reunimos novamente textos que são
contribuições do movimento Escola em Transe para esse debate. Vamos
a eles! Estamos todos convidados, somos todos protagonistas!
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é um espaço adverso, e esse fator se radicaliza num contexto urbano
precário, sem abastecimento e saneamento, enfim, sem a infraestrutura
adequada. As dificuldades que enfrentamos neste cotidiano têm como
resultado o adoecimento físico e psicológico, o desemprego, ou mesmo
o impedimento de se manter trabalhando, conforme o esperado. Esses
fatores também se radicalizam e se sobrepõem à segregação
socioespacial e ao isolamento que estruturam um terreno fértil para o
medo e inseguranças de todas as ordens. Tudo isso não deixa de ser uma
forma de violência.
Como que as questões e críticas colocadas sobre o trabalho remoto e o
ensino à distância não consideram as dificuldades que atravessam nossa
vida no espaço doméstico? Essa tem sido uma questão central para as
mulheres que são pressionadas ou mesmo obrigadas a esse tipo de
trabalho. Não por acaso, algumas matérias na imprensa têm vinculado
pesquisas, como da professora de biologia da UFRGS, Fernanda
Staniscuaski, (projeto brasileiro - Pais na Ciência), que num universo de
mais 2000 questionários respondidos, 40% das mulheres sem filhos não
concluíram seus artigos, contra 20% dos homens; 52% das mulheres com
filhos não concluíram seus artigos, contra 38% de homens.
Como se faz necessário descolonizar percepções, linguagens (que dão
sentido ao nosso mundo) e a própria produção do conhecimento,
considerando as opressões interseccionais de gênero, raça, classe,
sexualidade, localização e até geopolíticas (COSTA, 2020). Não é por
acaso que é simbólica a derrubada de estátuas recentemente nos atos
antirracistas “Vidas negras importam”. É uma linguagem celebrativa no
espaço público que disputa o direito de tornar visível uma versão da
história que não só não deveria ser celebrada, mas que é representativa
daquilo que importa. Se fôssemos derrubar todos os monumentos de
homens na cidade do Rio de Janeiro, sabe quantos ficariam de pé? 16 de
um universo de 2000, segundo levantamento realizado pela Isabela
Rapizo, mestranda do IPPUR e minha coorientanda2. Como ela afirma,
as cidades também revelam a nossa história, mas também o nosso
presente, e esse levantamento ilustra como as lógicas capitalistas, que
incluem a própria perspectiva patriarcal, heteronormativa e racista, são
estruturantes no modo como o espaço é produzido e a sociedade se
reproduz; como nos ensina Silvia Federici e as intelectuais negras Leila
Gonzales, Angela Davis, entre outras.
Esse sistema de gênero e racial de que Maria Lugones (2020)3 discorre
é uma construção colonial. E é preciso desnaturalizar esses princípio
organizador do campo da arquitetura e do urbanismo. Não só não se
questiona entre nós que grande parte das nossas referências
bibliográficas é eurocêntricas, como também masculinas! Não podemos
esquecer que é bastante recente o reconhecimento da importância das
2 Artigo publicado na Revista Arquitetas n.2 Invisíveis “Invisibilidade feminina na
história e na cidade: os monumentos públicos falam sobre quem?”
3 Filósofa feminista argentina, ativista e professora associada de literatura comparada e
de estudos sobre mulheres na Binghamton University, no Estado de Nova York.
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Temos uma potência de experimentação e rupturas de sermos vistas
sobre nossos próprios termos e contribuirmos para a experiência e
pensamentos críticos, que promovam uma vida que possa ser vivida
plenamente, como coloca Butler, que é fundamental ser considerada.
Temos aqui Gabriela Gaia e Monica Benício que não nos deixam
dúvidas. E, inclusive, evitar a perpetuação de nossas reflexões de forma
petrificada ou até estigmatizada é um caminho que precisamos
percorrer ainda. Precisamos desse espaço.
BIBLIOGRAFIA
Poliana Monteiro 2
A amplificação do campo de debates feministas nos últimos anos
evidencia que um dos principais desafios das mulheres na disputa pela
produção do conhecimento consiste em feminizar e racializar as
pesquisas e práticas dentro das universidades, o que significa também
ocupar espaços não somente para pesquisar com mulheres ou pesquisar
sobre mulheres, mas principalmente pesquisar como mulheres
epistemicamente situadas e engajadas em uma perspectiva de
conhecimento libertária, dialógica e popular, o que tenciona e
desestabiliza as formas hegemônicas de produção do conhecimento.
Para compreender de forma mais profunda os desafios de ocupar esses
espaços, é preciso pensar o que significa a promoção das mulheres no
mercado de trabalho, de forma geral, e nas universidades,
especificamente. E, ainda, como a divisão sexual do trabalho, um
mecanismo de opressão e exploração patriarcal, pode operar na
produção do conhecimento.
O feminismo liberal tem defendido a inserção das mulheres no
mercado de trabalho e a geração de renda autônoma como forma de
alcançar a igualdade entre mulheres e homens. O slogan da ONU
Mulheres, por exemplo, defende abertamente que “igualdade de gênero
significa negócios” quando apresenta os princípios de empoderamento
das mulheres, ou seja, posiciona as mulheres ou como
microempreendedoras individuais hiper-responsabilizadas pela
produção e pela reprodução social em uma conjuntura de avanço
neoliberal, que retira direitos e aprofunda a violência, ou como um
mercado consumidor em potencial. A igualdade de gênero, pautada no
“empoderamento” individual, portanto, se consolidou discursivamente
como um objetivo a ser alcançado e tem reverberado, de forma cada vez
mais recorrente, inclusive, nos espaços de produção do conhecimento.
A figura das CEOs, mulheres imensamente privilegiadas que se
inseriram no mundo corporativo em posição de destaque, hoje
monopoliza o imaginário social sobre o que é ser uma mulher que
alcançou a igualdade social. Uma pesquisa da Universidade de
1 Gostaria de agradecer à minha orientadora professora Fernanda Sánchez e à querida
Cecília Vieira pelas contribuições para a construção dessa reflexão.
2 Arquiteta e Urbanista (UFJF); Mestra em Planejamento Urbano e Regional pelo
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Atua como Assessora Técnica de favelas ameaçadas por processo de remoção. Tem
experiência nas áreas de Arquitetura e Urbanismo e Planejamento Urbano, principalmente
nos temas Habitação de Interesse Social, Assentamentos Precários, Política Habitacional
e Produção do Espaço com foco nas Lutas protagonizadas por Mulheres e Feminismo.
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Cambridge, entretanto, demonstra que a presença feminina na diretoria
das corporações é de pouco mais de 10%, em média 3. Além disso,
esquecemos que as badaladas CEOs utilizam invariavelmente a mão de
obra de outras mulheres, em geral, periféricas e não brancas, para
manter o cuidado com os dependentes e a reprodução social ou, como
Kergoat e Hirata costumam dizer, a produção do viver. Enquanto isso,
metade das mulheres da classe trabalhadora que engravidam e voltam
para seus empregos são demitidas em até 12 meses, de acordo com uma
pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV)4. Assim, seguindo Dworkin,
onde não há justiça e liberdade, a igualdade só existe na figura do
oprimido que se torna igual ao opressor.
Assim, para além das disputas discursivas e ideológicas, o fato é que há
materialidade nas relações de trabalho legitimadas pelo patriarcado.
Recentemente um relatório da Organização Oxfam demonstrou que as
tarefas de casa e cuidados de criança e idosos persistem submetendo
mulheres ao trabalho não pago, que equivale a 10 trilhões de dólares por
ano. Isto é, o patriarcado que permite a legitimação do trabalho
doméstico como não produtivo e, portanto não passível de
remuneração, permite a ampliação do lucro do capital e do Estado.
Assim, mais lucro para alguns é sinônimo de mais vulnerabilidade para
muitas5.
O conceito de divisão sexual do trabalho, que seguindo Hirata e
Kergoat pode apresentar dois diferentes sentidos, é fundamental para a
compreensão desse fenômeno. O primeiro sentido corresponde ao
conceito se refere à análise da disposição diferenciada de mulheres e
homens, não somente no mercado de trabalho de maneira geral, mas
também nas diferentes profissões, cargos, carga horária e distribuição
espacial. O segundo consiste no exame dessa disposição diferenciada
em relação à divisão desigual do trabalho referente às atividades
domésticas e ao cuidado com os dependentes, afirmando o caráter
sistemático das desigualdades engendradas pelas “relações sociais de
sexo”. Esse processo determina que as mulheres, enquanto grupo social,
sejam historicamente posicionadas como exército industrial de reserva
para o capital. Este utiliza, entre outras coisas, a negação dos direitos
reprodutivos como elemento de opressão e exploração.
A divisão sexual do trabalho segue vigente também nas Universidades
o que obviamente implica a produção do conhecimento. Recentemente
o CNPq acatou o pedido de mães pesquisadoras para incluir o período
da licença-maternidade no currículo acadêmico considerando que a
queda na produção não é um fator de capacidade, mas de um
3 Ver: https://infograficos.oglobo.globo.com/economia/representatividade-e-
longevidade-das-mulheres-em-cargos-de-chefia.html
4 Ver: https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos
5 Ver: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/trabalho-domestico-vale-10-
trilhoes-de-dolares-nao-pagos-a-mulheres-anualmente/?fbclid=IwAR0N1L4kZenrXkFL
3voqBcWvlgCXX-drVMyxBV4yOQHNB0I3X2m1ewBwrvo
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Vendedora da Salgados, foto tirada na da Rodovia BA-528, Salvador, Bahia, 2018.
Foto: Paula Moreira.
Antecedentes e Desdobramentos
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recursos pedagógicos sistematizados, iria se estabelecer apenas, em
1671, com a fundação da Academia Real de Arquitetura, em Paris, por
Luís XIV.
No Brasil, essa prática é ainda mais recente, e remonta à Academia
Real de Belas Artes, fundada por D. João VI, em 1816, quando da
presença da Família Real no Brasil. O conhecimento, antes transmitido
entre os membros das ordens religiosas, nos canteiros de obra ou nas
academias militares, passou a ser oferecido de modo regular pelo
método da escola neoclássica, então dominante na Europa, trazida ao
Brasil pela chamada Missão Artística Francesa.
Se me permitem um salto histórico desde esse período, que
compreende cerca de quinhentos anos, se considerarmos a matriz
renascentista de domínio clássico, passando barroco anticlássico
(segundo Giulio Argan) e o classicizante, reduzido, em seu esgotamento,
à condição estilística do ecletismo, chegamos ao século XX e à
arquitetura moderna. A reforma proposta por Lucio Costa em sua breve
passagem como diretor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), em
1931, é o marco inicial da reformulação do ensino que é até hoje
referência para os cursos de Arquitetura e Urbanismo no Brasil.
A Reforma é parte do movimento político, cultural e educacional, que
via novas possibilidades e demandas para o país que se urbanizava.
Pode-se dizer que, não apenas uma nova arquitetura buscava impor-se,
mas um novo modo de ver a cidade e de intervir sobre seus problemas.
No Brasil dos anos 1930, a industrialização era apenas um prenúncio,
mas a concentração urbana já se apresentava. Uma nova geração de
intelectuais e artistas entendia a criação do novo não apenas como um
fenômeno de originalidade formal ou linguagem artística, mas também
como parte de uma luta coletiva. O Estado passaria a desempenhar
papel de grande relevância, como mediador das diferenças sociais
existentes, mas também transformando a própria vida social, a partir de
suas bases. Uma nova classe dirigente, integrada por profissionais de
formação superior, ansiava por mudanças e contrapunham, à realidade
dada, novas propostas para a sociedade...
No campo educacional, ampliava-se o debate com vistas a uma nova
pedagogia voltada, não apenas para o ensino do cidadão e do trabalho
especializado, mas, para a formação de uma nova intelectualidade. As
Conferências Brasileiras de Educação, promovidas pela ABE,
desencadeariam as reformas do ensino secundário e universitário, a
criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, e a publicação, em
1932, do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova3. Esses debates
26
interesses, entre o poder constituído e a vanguarda artística, ocorreu no
Brasil por um raro encadeamento de fatores e circunstâncias que deu à
arquitetura moderna caráter oficial, em curto espaço de tempo.
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das centenas de milhares de hectares de periferias, favelas, espaços
autoproduzidos, grandes precariedades e escassos recursos públicos e
que, hoje, procuro denominar territórios populares. No âmbito da luta
pela reforma urbana nós fomos construindo uma espécie de renovação,
ao mesmo tempo fomos nos construindo enquanto movimento político,
pelo reconhecimento da existência desse território popular junto à
necessária relação com a arquitetura e o urbanismo. Reconhecer sua
existência – e resistência – é reconhecer as pessoas que habitam esses
espaços como sujeitos de direitos. Ao longo dos anos oitenta e noventa o
desafio no campo do ensino da arquitetura e do urbanismo era o da
inclusão territorial. Muitos profissionais entraram de cabeça nesta
pauta e experimentaram concretamente processos de urbanização de
favelas. O Rio de Janeiro, particularmente, tem uma rica trajetória nessas
práticas, das quais deriva uma linha presente até hoje: a da assistência
técnica. A arquitetura e o urbanismo têm que pensar junto, construir
com as pessoas dos territórios populares. Houve uma geração, da qual
eu faço parte, que tentou mudar a prática e o conteúdo dos instrumentos
de planejamento urbano.
A partir da entrada dos planos diretores no capítulo de política urbana
na Constituição, literalmente inserido no meio do caminho da
implementação da função social da propriedade, foram feitos muitos
esforços, para que o instrumental do planejamento urbano pudesse
contemplar não apenas a ideia da redistribuição de ônus e benefícios, o
caráter redistributivo da política urbana, mas também integrar os
territórios populares no próprio plano. Toda a ideia, por exemplo, de
zonas especiais de interesse social, as ZEIS, foi uma contribuição
técnica, teórica e prática que emerge nesse campo, assim como os
instrumentos de captura de mais valias imobiliárias no sentido de
constituir estratégias redistributivas nos planos. Então, houve um
esforço conceitual e político de renovação da prática, que vinha de uma
tradição muito marcada por uma perspectiva tecnocrática nos anos
setenta, da ditadura militar, na qual se constituiu a linguagem do
planejamento. Ela vinha das empresas de engenharia que elaboraram os
planos diretores para as prefeituras, e da linguagem do mercado
imobiliário. A formulação do léxico do planejamento urbano é desse
setor, por e para esse setor, e dentro da agenda da reforma urbana nós
procuramos denunciar essa prática pois não atendia, não resolvia, não
dialogava com a cidade real. A estratégia foi inserir, dentro dela,
aberturas para essa inclusão territorial. Esta é a ideia de ZEIS, captar
excedentes da produção da cidade do mercado imobiliário formal para
investir nas periferias, nas margens do plano. Isso se revelou na
participação intensa dos urbanistas no processo de definição do capítulo
de política urbana da Constituição; depois, para poder construir o
Estatuto da Cidade, os chamados “instrumentos da reforma urbana”
como as ZEIS e o solo criado, entre outros. Além das heroicas tentativas
de abrir o debate do plano para os moradores de forma ampla, mediante
processos participativos que incluíram audiências públicas,
30
asfalto, dos automóveis, constituído de enclaves e muros, nega a
existência de um sítio natural, aterra e tampona rios e lagoas. As
características desse modelo, mais ligado à morte do que à vida,
sustentam uma extração ilimitada dos recursos naturais e a
rentabilidade do espaço construído. Um modelo que não foi desenhado
para a proteção da vida! O problema é que nesta trajetória nós acabamos
não questionando esse modelo. Pelo contrário, sempre o reafirmamos
ao reivindicar que fosse estendido para os territórios populares. Me
parece que esse é o ponto cego. Nós, da área de planejamento, podemos
assumir esse desafio imenso, questionar a taxa de ocupação, o
coeficiente de aproveitamento, ou os recuos. A quem servem esses
parâmetros? E, sobretudo, que modos de vida eles condenam à
destruição, numa situação de transitoriedade permanente sujeita a
negociações eleitorais. Trago essa questão porque me parece que a
renovação do pensamento e do ensino da arquitetura e urbanismo
merece um questionamento profundo se quisermos ter, de fato, alguma
incidência na produção do território popular, onde estamos perdendo
para os milicianos, os mercados ilegais, as religiosidades ligadas à
prosperidade, enquanto não temos linguagem, enquanto não temos
metodologia, enquanto não temos presença para poder trabalhar esses
territórios numa outra direção. Enfim, esta é minha provocação para
nosso debate hoje.
32
plano. Pode-se constatar tanto que a globalização tem uma história,
quanto como se vem dando certa história dos embates e ajustes do
capital, do trabalho e do capitalismo ou das formas de definir a prática
da arquitetura.
No Brasil, a história, por exemplo, do setor das comunicações; da
implantação das redes de luz, água, gás, transporte, telefonia,
saneamento; do vocabulário das cidades e das metrópoles; da
emergência de certos programas arquitetônicos e urbanísticos e das
mudanças nos regimes formais e de gosto mostram que não estamos na
quarta revolução industrial.
A história das estatísticas, das formas historicamente diferenciadas de
associativismo ou, enfim, da história das crises econômicas, das lutas
sociais, os tempos das ditaduras, das prisões, dos exílios, das
perseguições políticas, das imigrações e das migrações mostram que em
um campo de forças heterogêneas e em conflito, estamos no sexto ou
oitavo tempo de crise e de rearranjo social.
De todo modo, seis ou oito tempos, ao longo dos quais, caminhando
em determinada direção - conseguindo conquistas, como disse Rachel...
pois temos conquistas - de repente tudo freia, tudo desanda, tudo
desmonta e se desfaz.
No Brasil, no Rio, em duzentos anos, desde a fundação de academias
de belas artes, e como professores de arquitetura, e mais tarde de
urbanismo, quantas vezes tentamos criar novas epistemologias, novas
práticas de ensino e quantas vezes esse processo foi interrompido? O
próprio Grandjean de Montigny, por exemplo, entendeu que não podia
operar por modelos trazidos de sua formação europeia. Joaquim
Lebreton, o chefe da chamada missão francesa de 1816, defendia uma
democratização da universidade que não possuía, à época, caráter
universal. As universidade não eram abertas nas cidades europeias e não
podiam estudar nelas judeus, mulheres ou filhos de comerciantes, por
exemplo.
Grandjean, portanto, um dos criadores da primeira escola de
arquitetura no país, em seu exílio político no quadro da “globalização”
de fins do século XVIII e inícios do século XIX, se instalará no Rio
trazendo uma noção de ornamento, uma noção de arquitetura, uma
noção de cidade pensada e feita para príncipes. Mas vai percebendo
seus limites e mudará suas formas de ação, de professorado, de
arquitetura e de concepção. Seu percurso é fascinante e não menos
relevante, por seu alcance político e por poder observar, inclusive, como
a noção de “público” passa a fazer parte de sua obra.
Nesse primeiro momento de globalização, no caso com a instalação da
corte em 1808 e 1831, ou a partir de 1822, com a Independência,
observa-se uma nova organização geopolítica dos Impérios que vinha
do século XVIII. Assim, Espanha e Portugal os grandes impérios
europeus entre os séculos XVI e XVIII cedem espaço para uma
afirmação, a partir daí, da Inglaterra, juntamente com a Escócia, e da
França, mas também do império austro-húngaro e, com isso, inclusive,
34
relação às propostas reunidas em um grande plano para a cidade,
apresentadas entre 1874-75 pela “Comissão de Melhoramentos.”
A unificação da Itália (1861), a guerra do Paraguai (1864-1871), a
guerra franco-prussiana e a unificação da Alemanha (1870-1871)
servem de termômetros de alguns dos ajustes macro-políticos. Por que
esses fatos interessam os que estudam arquitetura e urbanismo, a
cidade e formação profissional? Porque, nesse segundo tempo da
história do impacto do liberalismo e da “abertura” de fronteiras - nesse
segundo tempo da globalização e da história moderna das cidades sob o
capitalismo como doutrina econômica - o Brasil recebeu centenas de
milhares de imigrantes excluídos de muitos países. Com todas as letras,
passa a ser tematizada a questão da pobreza, dos excluídos, dos
despossuídos, dos “sem teto” e o mundo do trabalho passa a ser melhor
analisado seja o das relações escravagistas, o do trabalho remunerado, o
dos imigrantes e sobretudo como gerar trabalho e renda onde falta.
No Brasil, a pobreza, ainda que ele não utilize essa palavra, já havia
começado, em 1843, a chamar a atenção de Henrique de Beaurepaire-
Rohan. Em seu relatório sobre a cidade, ele considera que na cidade do
Rio de Janeiro, as autoridades deveriam construir um edifício de
alojamento para abrigar essa população que carece de abrigo e regular o
valor dos aluguéis, que haviam disparado já por volta de 1840. Em 1874-
1875 é Luiz Rafael Vieira Souto que se contrapõe ao modelo liberal de
cidade que se deseja implantar e já começava a ser visto como modelo.
Suas críticas sobre os rumos da urbanização do Rio de Janeiro pode ser
seguida por quase dois anos nos jornais da época.
O terceiro grande período de globalização (1890-1914), pode ser
situado quando a Alemanha unificada busca se impor, com tecnologias
em torno da eletricidade e de motores, na cena internacional lado a lado
dos Estados-Unidos que vinham promovendo, desde os anos 1870, uma
política “pan-americanista” . Será impossível de se tratar no âmbito
desta conferência, este terceiro momento bem como os três outros
seguintes quando se observa grande aceleração nas trocas
transnacionais, isto é nas trocas sobretudo entre cidades.
A literatura sobre este terceiro tempo é bem mais extensa do que a
precedente e entre nós se sobressaem as reformas do Rio de Janeiro,
com Lauro Müller à frente do Ministério da Viação e Obras Públicas e
Pereira Passos na Prefeitura do Distrito Federal. Ao lado da
modernização do porto, da abertura de bulevares e da construção de
grandes equipamentos públicos - Biblioteca Nacional, Teatro Municipal,
Escola Nacional de Belas Artes, Polícia Federal - lembre-se das revoltas
populares em torno da moradia e da vacina e que o papel dos arquitetos
ainda aqui é secundário.
Estamos em tempo dos primeiros automóveis e da telefonia nas
cidades e o Rio de Janeiro, a despeito de suas grandes obras, começa
também, como resultado da competitividade entre empresas
prestadoras de serviços de eletricidade a perder seu protagonismo.
Desacelera o ritmo da atividade industrial e comercial com a
36
um Darcy Ribeiro e na concepção de um plano de universidade
autônomo, pleno, potente, crítico, atento à diversidade de culturas, que
se tem no Brasil.
Hoje, filhos de um sexto tempo global de terremotos e rearranjos,
somos outra geração, que deve construir suas reflexões, suas utopias.
Este é o desafio. Temos conquistas, é claro. Houve uma democratização
do espaço universitário. O aluno da universidade de hoje não é o aluno
da universidade pública de trinta anos atrás. Contudo, repensar a
densidade da história da própria cultura profissional, inseri-la em
histórias que nos fazem e são, para além das nações, histórias
planetárias, talvez auxilie a escolher o que se quer manter pulsante.
Isto significa começar pelo problema da formação. Há um bem que
ninguém tira de ninguém, que é a formação de cada um. E a formação
não é um valor. Não é um acúmulo de informações, mas é a capacidade
reflexiva e crítica. E no presente lembrei-me do tempo de Grandjean de
Montigny e de sua visão sobre a dimensão pública da arquitetura.
Estamos vivendo os efeitos violentos do último tempo de mutações e
embates nas relações entre saber e poder desde 1988, quando arquitetos
e urbanistas foram chamados mais uma vez para contribuir com o que
possuem de pensamentos técnico na construção das cidades. Não se
cogitou falar em música ou poesia ou aproximar arquitetos e urbanistas
de filósofos epicuristas. Mas é a contribuição humanística que demanda
atenção neste momento e em tempos de crise parece ser isso que, numa
torsão do corpo como ensinam os antigos, nós os discóbolos modernos,
temos que continuar lançando para o futuro.
38
No entanto, esse ambiente acadêmico italiano dentro da faculdade de
arquitetura possibilitou um maior envolvimento entre os próprios
brasileiros que estavam lá, além de uma reflexão mais ampla sobre as
condições acadêmicas no Brasil. Se, no Brasil, conseguimos constatar
com facilidade o quanto as escolas e faculdades de arquitetura são
ambientes elitistas e segregadores, isso não é diferente no continente
europeu, ou pelo menos, no território italiano, onde até mesmo as
universidades públicas são pagas. E isso se reforça no estereótipo do
estudante de arquitetura pouco interessado nos conflitos de nossa
profissão e sociedade, porque está mais preocupado com questões
formais de representação do seu projeto.
Dizem que às vezes é necessário certo afastamento para
apreendermos melhor o que é nosso. Foi através dessa experiência que
confirmamos nossas limitações e nos apropriamos da nossa identidade,
daquilo que somos e fazemos melhor. Compreendemos que uma boa
infraestrutura de estudo é importante, que um desenho técnico bonito e
bem feito complementa e dá força ao nosso trabalho, mas esses pontos
sozinhos não dão conta da complexidade de nossas discussões, das
nossas lutas e das nossas urgências. O nosso campo de disputas é maior
e apresenta muito mais possibilidades que a antiga estrutura europeia.
Obviamente isso não sugere uma afirmação de nossa “superioridade” ou
uma “romantização” do que vivemos, mas demonstra o entendimento
da realidade na qual desenhamos a nossa formação, exorta o famoso
complexo de vira-lata e nos convida a refletir de maneira mais profunda
a complexidade da sociedade brasileira.
Nesse sentido, só podemos lamentar imensamente pelo fim de um
programa que deveria ter sido mantido e ampliado. Sua abrangência
dentro de determinadas áreas do conhecimento foi pouca e seletiva,
ainda mais se compararmos todas as possibilidades que existem, todas
as áreas de atuação do ensino, pesquisa e extensão em nosso território. E
o que parecia ser o início de novas costuras, de novos encontros, redes e
possibilidades, se encerrou em um momento da história no qual cada
vez mais se avança rumo ao retrocesso e à negação de direitos
conquistados sob muita luta, durante anos.
Quando compreendemos a importância de programas como “Ciência
sem Fronteiras”, compreendemos igualmente que a sua relevância
ultrapassa uma formação puramente técnica com experiência
internacional, ela avança na formação de seres humanos que
minimamente tendem a olhar o mundo de maneira mais humana e, ao
fazer isso, retornam seus olhares ao ponto de onde partimos com muito
mais compreensão e seriedade.
40
consumirmos e produzirmos alguns serviços e mercadorias com rotas
específicas de localização e circulação na cidade.
Como fazemos cidades? Primeiramente com o nosso olhar,
contemplando o que é singular, o que nos desperta desejo de estar e
ficar, de degustar, usufruir. Em sequência, a fruição consumada é
agregadora de novos olhares, outras perspectivas, outros usos, acolhe
práticas socioespaciais das quais extraímos, ora o sustento, ora a
diversão. A consolidação dessas práticas, individuais ou coletivas, e
cumulativas, quando ocorre, sob certas condições, faz formas urbanas,
vincula afetos, subjuga a ação, cria significados e identidades. Em
conjunto, constituem ciclos orgânicos de configuração, entrelaçados
com nossas vidas. Ciclos que se repetem enquanto processo, embora
sempre diverso nas criações, pulsam ou repulsam, sempre, ininterruptos
– sob certas condições.
Com o tempo, quando permitido, tornam-se tradições, passam a
emprestar valor de mercado ao lugar e aí... Aí é que mora o perigo.
Surgem condomínios privados, modelos de outro viver, privatizadores
de fragmentos do espírito público do lugar, segregadores, na contramão
do coração de bairros gostosamente lentos, coloridos, diversos, atraentes
para diferentes olhares, degustáveis. Cabe ao setor público, que nos
representa, regular para manter o processo de configuração urbana, que
é público. o potencial de gênese do lugar, vivo e atender ao nosso desejo
legítimo de nos preservarmos.
42
contribuíram para a construção de hipóteses sobre as forças de
configuração. Focalizaram interações (entre si e com o território),
dinâmica de evolução e lógicas de localização espacial das
singularidades atratoras, nas dimensões qualitativas contempladas pelo
método – morfológica, da natureza, social, cultural, econômica,
institucional e de acessibilidade.
A exploração dessas hipóteses se mostrou útil para o entendimento
dos processos de troca atuantes na formação da vitalidade local e
auxiliou na leitura da gênese do tecido urbano e da sua morfologia.
Contribuiu, também, para esclarecer a rede de conexões que se forma
por relações percebidas de complementaridade entre os espaços
públicos, as apropriações gradativas e cumulativas dos seus atributos
singulares atratores, que se expandiram pelos percursos de interligação.
Em tempo, uma particularidade para qual vale chamar a atenção do
leitor. A estação do metrô... Ah a estação do metrô em Botafogo,
associada à “lei do álcool Zero”, fez das bordas da estação do metrô uma
centralidade importante no bairro, chamou a atenção da cidade,
atravessou a praia, ampliou seu patamar de atração para além das
bordas cariocas da Baía de Guanabara. Foram chegando e ficando.
Estágios distintos de consolidação da forma urbana, do transitório ao
edificado, são observáveis configurando as margens da estação do metrô
entre as ruas Voluntários da Pátria e São Clemente.
Os funcionários, empregados desses negócios ‘alimentaram’ o bairro
com seus salários e encontros ao fim de turnos de trabalho,
engendrando a formação de múltiplas centralidades, com várias
singularidades atratoras, entre livrarias, cinemas, cafés, bares e lojas
variadas.
O Bairro de Passagem tornou-se, até à pandemia, ‘Bairro de Ficagem’
com reconhecimentos manifestos, singularidades atrativas, em
diferentes dimensões, agregadoras para distintos grupos sociais,
consolidáveis em formas urbanas múltiplas e diversas.
44
econômico brasileiro é significativo, alcançando, segundo especialistas,
a décima ou décima primeira posição dentre as nações mais ricas do
mundo. No entanto, sua concentração de renda é também das piores do
mundo, onde o 1% mais rico monopoliza 27% da renda total nacional,
enquanto em países como a Suécia esse índice é de 4%3. Quando
ampliamos a faixa para os 10% mais ricos brasileiros percebe-se que essa
faixa se apropria de 55% da renda nacional, atrás apenas de países ou
regiões como: Oriente Médio, Argélia, África do Sul e Haiti4.
Nesse sentido, a espacialidade da cidade é o dado concreto mais
palpável da injusta divisão de renda, que caracteriza a sociedade
brasileira, onde se percebe desníveis de urbanidade escandalosos. Basta,
para tal, compararmos a presença de benfeitorias urbanas tais como:
coleta de lixo, esgoto, distribuição de água, drenagem, transportes,
calçadas, iluminação, arborização, e outras entre áreas como o bairro do
Flamengo na cidade do Rio de Janeiro e a cidade de São Gonçalo. Dentro
dessa questão, salientei a centralidade do tema da habitação, que na
verdade corresponde a 80% do parque construído de qualquer cidade no
mundo, efetivamente: a arquitetura da cidade . Daí, que a relevância do
tema habitacional para o ensino e a pesquisa de arquitetura e urbanismo
é absolutamente central no contexto do mundo contemporâneo e na
forma da reprodução das cidades. Por isso, a disciplina que leciono na
EAU-UFF – Habitar o Centro – oferecida tanto para a graduação como
para a pós-graduação, se configura como um campo de pesquisa notável
para aferição dos humores das cidades brasileiras. Compreender de
forma mais aprofundada os mecanismos, inerentes à dinâmica urbana
da periferização, do espraiamento, da informalidade, da autoconstrução,
do valor da terra urbana, das infraestruturas de transportes, da captação
de impostos em cima de eventuais valorizações desmedidas é hoje
fundamental, no âmbito da academia. Essa disciplina vem
apresentando uma série de esforços no sentido da produção da
habitação em territórios centrais e nas subcentralidades que
caracterizam as grandes metrópoles. A reutilização e ressemantização de
variados patrimônios notáveis, presentes nesses contextos, estão sempre
presentes e são recorrentes nas pesquisas e projetos desenvolvidos.
Nesse ambiente, a episteme do plano e do projeto são abordados,
considerando-os como uma forma específica de abordagem sobre a
realidade. Uma forma de se apropriar do real, que investe fortemente no
vir-a-ser, no futuro das cidades, que se utiliza das condições do contexto
que enfrenta, para imaginar pré-configurações possíveis. Esse exercício,
de engajamento com as condições específicas das cidades brasileiras
pretende encarar o plano e o projeto como um espaço crítico, onde o
produto a ser formulado não está pronto na prateleira, mas precisa ser
formulado de forma a pensar uma outra cidade, mais justa e inclusiva.
Dentro dessa perspectiva da proposição de uma outra cidade,
considero fundamental a formulação de um plano e projeto de um
3 (PIKETI, 2020, p. 244).
4 (PIKETI, 2020, p. 243).
46
Terreno explorado como estacionamento, aonde existe farta oferta de modais
de transportes (Metrô, VLT, Ônibus, Trem), na Zona Portuária do Rio de Janeiro,
esquina da rua Argemiro Bulcão, com Venezuela, Coelho e Castro e Sacadura
Cabral. Porquê está sendo explorado por estacionamento? Queremos fomentar
mais automóveis? Porquê não moradias? Nesse terreno poderiam estar 260
familias, em um empreendimento habitacional, com comércio, sem vagas de
garagem, trazendo vida e diversidade para a cidade.
Fonte: Arquivo GPDU.
BIBLIOGRAFIA:
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do
nosso tempo. São Paulo: Editora Unesp, 1996.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo, ensaio
sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.
FURTADO, Fernanda; REZENDE, Vera. O financiamento da Abertura
da Avenida Presidente Vargas: estratégias institucionais e legais. Rio de
Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2016.
PIKETI, Thomas. Capital e Ideologia. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca,
2020.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares, a colonização da terra e da
moradia na era das finanças. São Paulo: Editora Boitempo, 2015.
48
Forma urbana, desigualdade e
infoproletarização
Claudio Ribeiro 1
50
organização da terra urbana e rural. Um marco pode ser a aprovação da
lei 13.465/2017, que flexibiliza inúmeros elementos que vão desde a
regularização fundiária, a reforma agrária, a privatização de terras
públicas e a exploração da Amazônia Legal. Não deve ser reduzida a
importância da extinção do Ministério da Cultura e a consequente
transposição do IPHAN para o Ministério do Turismo, pressionando
mudanças na direção da mercantilização do patrimônio cultural.
Recentemente foi iniciada aprovação do marco legal para a privatização
dos serviços de abastecimento e tratamento de água e esgoto no País e,
não menos importante, tramita a PEC 80/2019, que retira a função social
da propriedade rural e urbana.
Todos estes elementos conjugados indicam que o aprofundamento das
desigualdades urbanas receberá um duplo impacto possível em sua
forma. O primeiro deles, o aumento da informalidade, da insegurança e
da tradicional violência destinada a estas áreas no País. Menos direitos
sociais sempre estiveram relacionados a menos garantias de
permanência espacial. O aumento destas inseguranças significará um
aumento brutal da porção da classe trabalhadora que estará à mercê de
remoções, deslocamentos forçados, despejos, etc., em nome de um
avanço imobiliário para áreas consolidadas, que serão alvo de renovação
no intuito de garantir a velocidade de rotação do capital fictício aplicado
no setor imobiliário. Os centros das cidades, sobretudo, deverão passar
por novas ondas de renovação, na medida em que o teletrabalho
esvaziará edificações e conjuntos comerciais em nome da economia das
empresas. Será preciso uma reorganização do setor imobiliário para
retomar essas áreas e, para isso, pode ser preciso remover cada vez mais
aquelas e aqueles que vivem na sua vizinhança. Isto sem mencionar a
tendência de milicianização do espaço, conjugando um supercontrole
de clusters privados, que conjugarão condomínios fechados e centros de
compras para a parcela da classe que se sentir no privilégio da
estabilidade (uma segunda onda de segregação de condomínios
fechados de nova geração).
O segundo impacto é o aumento espetacular da padronização formal
de todas as realizações que forem feitas. O teletrabalho e a
informalização da mão de obra de projeto de arquitetura e urbanismo,
aparentemente inevitável nas atuais condições sociais, são possíveis
exatamente pela existência de softwares cada vez mais abrangentes, que
tomam as decisões projetuais de maneira paramétrica, potencializando
um controle autoritário e vertical de parâmetros, restando apenas
adaptações menores realizadas pelos uber-arquitetos-cad-monkeys. O
nível de padronização oriundo desta infoproletarização do executor de
projetos pode alterar ainda mais a forma urbana. Se antes era imposta
uma paisagem homogênea aos conjuntos habitacionais pensados para
os estratos mais baixos da classe trabalhadora, agora os condomínios da
classe média também se tornarão uma mercadoria de exclusividade na
era da reprodutibilidade técnica.
Mas não só de aplainamentos deve ser a produção da forma urbana
52
SOBRE A FORMA ARQUITETÔNICA
Guilherme Araujo de Figueiredo 1
Philosophia est cognitio per causas
54
configuração e materialização do objeto arquitetônico, desde as
prerrogativas programáticas manifestadas pelo contratante até o
detalhamento executivo.
A forma, que em Vitruvius e Alberti era definida como uma entidade
holística, inerente à arquitetura, transformou-se com o tempo em um
conceito puramente estético, onde se discute a beleza do resultado
aparente do objeto arquitetônico e não a essência – ou a estrutura
interna – que o consubstanciou fisicamente. Segundo Brandão essa
definição distorcida da forma limita a crítica da arquitetura ao campo
das opiniões epidérmicas sobre o objeto e exacerbou-se nesse novo fim-
de-século com a cultura de massas que trabalha de maneira imediatista,
muito mais com as imagens do que com os conceitos que levaram os
arquitetos a produzir suas criações.
O texto acrescenta também que
Bibliografia
56
Crítica à ideologia da forma arquitetônica 1
58
Cr ítica à ideologia da forma ar q u itetônica
60
A crise urbana e o patrimônio cultural
edificado nas cidades brasileiras
Cristóvão Duarte 1
A 10a. Roda de Conversa on-line da Escola em Transe (EAU-UFF)
coloca em discussão o tema “Patrimônio das Cidades: diversidade,
conflitos e possibilidades, na contemporaneidade”. Buscaremos, dessa
forma, tratar dos desafios colocados pela crise urbana ao patrimônio
cultural edificado, sobretudo, no que se refere aos conjuntos urbanos em
centros históricos das cidades brasileiras.
Diante do grave quadro politico, econômico e pandêmico que
enfrentamos, é forçoso admitir o agravamento dos muitos desafios
colocados para a preservação dos centros históricos em nossas cidades.
Contudo, o pressuposto teórico aqui assumido afirma que tais desafios
transcendem a conjuntura atual, revelando-se como resultantes de uma
crise maior que submete nossas cidades, desde a segunda metade do
século XIX. Para abordá-los, nos propomos a fazer uma breve
contextualização histórica, através da qual pretendemos não apenas
compreender mais claramente a noção de centro histórico, como
também problematizar os processos de esvaziamento e degradação a
que foram submetidos ao longo do tempo.
Os centros históricos correspondem aos núcleos pioneiros de
formação das cidades. Como áreas mais antigas eles reúnem
testemunhos de várias épocas, constituindo-se como o locus, por
excelência, da memoria coletiva. São áreas dotadas de infraestrutura
urbana e vantagens locacionais em relação ao conjunto da cidade, em
função de constituírem antigas centralidades urbanas.
A partir da segunda metade do século XIX essas áreas passaram a
sofrer pressões dos processos de modernização e urbanização,
decorrentes dos progressos científicos e tecnológicos da Revolução
Industrial. São efeitos decorrentes tanto do crescimento econômico e
populacional, verificado nas principais capitais do país, como também
das ondas reformistas em cursos nas principais cidades europeias.
No Brasil os centros históricos passaram, basicamente, por dois
processos distintos. Alguns experimentaram um processo de
esvaziamento político, seguido de estagnação econômica. E foi
justamente a decadência econômica que ajudou a preservar quase
integralmente o acervo edificado nessas cidades. Foi esse o caso das
cidades que perderam o status de capital de seus estados, substituídas
por outras, especialmente projetadas para serem as novas e modernas
1 Arquiteto e Urbanista (FAU/UFRJ). Metrado em Urbanismo pelo (PROURB/UFRJ).
Doutorado em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Atualmente é professor
Associado (FAU/UFRJ) e professor do Departamento de Urbanismo e Meio Ambiente e
do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB/UFRJ). Faz parte do LAPA -
Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidades Contemporâneas (PROURB-FAU/UFRJ).
62
suas consequências em termos de destruição dos vínculos
tradicionalmente estabelecidos entre a vida urbana e o ambiente
construído.
Ao decretar a “morte” da cidade tradicional, representada como um
entrave ao progresso tecnológico e ao desenvolvimento urbano, os
arquitetos ligados ao Movimento Moderno estavam, na verdade, pondo
em ação uma “operação ideológica” que permitiu ao Capital tomar de
assalto as cidades e transformá-las em laboratórios de experimentos
urbanísticos extremamente lucrativos, a serviço da lógica da mercadoria
e da apropriação privada da mais-valia urbana.
Retornando aos centros históricos das cidades brasileiras, podemos
dizer que, com o passar do tempo, verifica-se uma tendência de
hibridização e/ou alternância entre os processos de decadência
econômica e renovação predatória, anteriormente assinalados. O
resultado foi um progressivo agravamento do estado geral de
conservação do patrimônio arquitetônico de seus centros históricos.
Parte do acervo histórico edificado simplesmente desapareceu ou se
arruinou.
De fato, aquilo que se encontra preservado nos centros históricos
brasileiros deve-se, em larga medida, à ação pioneira (e por muito
tempo solitária) do IPHAN, com base na aplicação do instrumento do
tombamento, em vigor desde a promulgação do decreto-lei 25 de 30 de
novembro de 1937. Somente a partir dos anos 1980, com o
restabelecimento do estado de direito democrático e os novos
dispositivos constitucionais, a experiência do IPHAN pode ser replicada
em escala nacional pelas administrações estaduais e municipais, não
apenas descentralizando e capilarizando as ações preservacionistas,
como também desenvolvendo novos instrumentos de proteção.
Não obstante os avanços conquistados com a ampliação das ações
preservacionistas, o processo de degradação das áreas urbanas centrais
permanece como um problema compartilhado pela grande maioria das
cidades brasileiras. Com o longo processo de abandono e desvalorização
simbólica dessas áreas, foram sendo erodidas as condições mínimas de
habitabilidade, necessárias ao estabelecimento da vida urbana. Rompe-
se, assim, o complexo e delicado equilíbrio entre as funções urbanas
cotidianas. As edificações ainda existentes nas áreas históricas
encontram-se, na grande maioria dos casos, em péssimo estado de
conservação, demandando intervenções técnicas especializadas. Tais
intervenções implicam, muitas vezes, em complexos projetos de
consolidação estrutural e restauração arquitetônica dos imóveis,
incluindo a completa renovação das instalações prediais.
Como tentativa de reversão desse quadro, assistimos, sobretudo a
partir da década de 1990, a importantes experiências implementadas
pelo poder público em centros históricos de algumas cidades brasileiras.
Os resultados obtidos, no entanto, não têm se demonstrado econômica e
socialmente sustentáveis ou, mesmo, inteiramente aceitáveis com
relação aos critérios de preservação adotados pelos órgãos responsáveis
64
Patrimônio e destruição: notas introdutórias
A questão da perda e dos choques e traumas que ela nos causa implica
em questões de diversas ordens. Na filosofia budista, se observa
continuamente a cadeia lógica existente entre os acontecimentos, que
respondem a processos de causa e efeito. Por esse viés do pensamento
oriental tradicional, se percebe que quase nunca é só pela fatalidade que
se chega à catástrofe, mas por uma linha de acontecimentos e
dificuldades.
No caso brasileiro e carioca, em particular, o infortúnio atual foi
cuidadosamente construído com a participação direta ou indireta de
grande parte dos setores da sociedade, seja pela atuação criminosa
direta, pela indiferença ou pela mera crítica desvinculada de qualquer
sentido de ação. Afinal, não é da noite para o dia que uma cidade se
torna dominada por grupos paramilitares/religiosos extremistas, e que,
por fim, nela se assiste quase indiferente à morte de milhares. Este
processo é longo. Tamanha inércia foi colocada em cheque por um curto
período em 2013, mas rapidamente aqueles desejos de transformação e
mudança social foram desviados para fins tenebrosos, deixando
marcada em muitos níveis uma geração que havia reencontrado o
caminho da luta.
É, portanto, importante evocar a capacidade de resistir e se reinventar
do corpo social, o que também é um patrimônio, o maior de todos.
Patrimônio potente instituído pela própria vida, afinal viver é lutar,
resistir e sempre que possível, apreciar a própria vida e sua potência
criadora. É importante pontuar a presença destas forças construtivas,
afirmativas e criativas, antes de reexaminar brevemente o processo de
ascensão e queda do Rio de Janeiro no século XXI.
Tudo começa por uma festa ilusória que contou com a recepção dos
maiores investimentos que possivelmente a cidade viu nas últimas
décadas, à época da Copa, 2014 e Olimpíadas, 2016. Antes do Museu
Nacional, o Patrimônio local sofreu uma nova série de investidas
perigosas sob a justificativa das transformações urbanas necessárias
para sediar os megaeventos: Porto do Rio e suas destruições, ameaças e
remoções, trechos inteiros de bairros na zona oeste apagados para fazer
passar autopistas em pleno século XXI, quando em toda parte se busca
uma mobilidade com menor impacto sobre o clima e a cidade e
principalmente, as mais de 70.000 pessoas removidas por ocasião destas
grandes obras e todo o patrimônio e história de vida destruídos neste
processo . Nesse processo destrutivo, sequer a Marina da Glória e o
Hotel Glória escaparam.
Geralmente o que precede a ideia de que se pode destruir patrimônios
são ideias como “desenvolvimento e progresso”, mas o que vemos na
prática é que as grandes destruições patrimoniais raramente trouxeram
qualquer progresso, pelo contrário, muitas vezes resultam apenas em
maiores retrocessos.
66
Patrimônio e destru i çã o
De fato, para caminhar nesse sentido é preciso realmente dar voz aos
oprimidos, como dizia Foucault, sabendo que cada dia somos mais
numerosos nesta situação. Mas nesse processo teremos principalmente
que reaprender a ouvir uns aos outros, sabendo que falamos às vezes
línguas inteiramente diferentes mesmo que seja usando um mesmo
idioma, com visões de mundo contraditórias e viciadas nas estruturas de
poder históricas, enraizadas e muito habituais. Somos totalmente
construídos a partir do que foi feito e do que fizemos até hoje de nós e do
mundo. Todo este processo gera por um lado o que queremos guardar e
celebrar como parte de nós. Mas expõe também tudo aquilo que
precisamos mudar. Acontece que para mudar não é necessário destruir,
BIBLIOGRAFIA
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação
Liberdade, 2014.
JEUDY, Henri-Pierre. La machinerie patrimoniale. Paris: Sens & Tonka,
2001.
JEUDY, Henri-Pierre e MOREIRA, Clarissa. O simulacro perfeito.
Entrevista traduzida e publicada em português no website da Rede
Universidade Nômade. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/o-
simulacro-perfeito/ Acesso em: 24 novembro 2020.
68
A MEMÓRIA DA FAVELA 1
Cosme Felippsen 2
70
à procura de fuzis, que sumiram em um quartel, mas não estavam aqui,
enfim. Eles invadiram essa igreja, arrancaram o cruzeiro e ficou por isso
mesmo. Ainda tem a Igreja da Penha, aqui da Providência, que tem mais
de 150 anos e fica próxima à Igreja do Cruzeiro.
César Maia fez um circuito na sua gestão, por volta de 2005, 2006, no
contexto do Favela Bairro aqui na Providência. Construiu três mirantes
lá em cima, no alto do morro, perto dessas igrejas, e fez um caminho de
lista metálica. Tem muito morador que até hoje não sabe pra que serve
aquilo, mas é o Museu a Céu Aberto, que na chuva só serve pra
escorregar. Essa história não foi adiante, poucas pessoas sabem desse
projeto do Museu a Céu Aberto porque não foi divulgado.
Depois, Eduardo Paes tentou remover quase 80% do Morro da
Providência e conseguiu construir o teleférico. Em 2012, estava pronto, e
em dezembro do mesmo ano Eduardo Paes e Papai Noel passearam no
teleférico. Somente em 2014, dois anos depois de pronto, que o teleférico
começou a funcionar, poucos dias antes da Copa do Mundo. Funcionava
muito precariamente, sem atender em horário agradável aos moradores.
Em 2016, um pouco depois das Olimpíadas, o teleférico fechou,
cumprindo seu prazo de validade, como já imaginávamos que seria.
Antes da construção do teleférico, os moradores disseram que
preferiam um elevador panorâmico, que levaria de fato as pessoas para o
alto do Morro da Providência, onde não chega carro e nem moto, só se
sobe por aquela escadaria a pé. Esse elevador panorâmico não
removeria ninguém, porque lá em cima há um espaço aberto, onde as
pessoas poderiam desembarcar. Então, as pessoas viriam da Central do
Brasil e subiriam. Assim, realmente atenderia ao pessoal que precisa, do
alto do morro, porque o teleférico faz o mesmo caminho das Kombis que
já fazem o transporte. Ele é apenas um atravessador, pega as pessoas na
Central do Brasil e leva pra Gamboa, fazendo o mesmo caminho do
túnel João Ricardo, que fica embaixo da Providência.
Então, Eduardo Paes tentou remover 832 famílias do Morro da
Providência. Eu fiz parte da comissão de moradores que lutou contra as
remoções. A Secretaria de Habitação, do Jorge Bittar, tinha 131 milhões
de reais para o projeto Morar Carioca. Começaram a remoção, que com
a nossa luta estagnou em 200 casas, porque em 2012 ganhamos uma
liminar na justiça que proibiu as remoções.
Estou falando da Providência, mas em volta do morro têm muitos
lugares ricos, que antes da pandemia já estavam em estado precário.
Tem o Cais do Valongo, que se não cumprisse algumas exigências,
perderia o título de Patrimônio da Humanidade. O interessante é que eu
fui ao lançamento da segunda etapa de restauração do Cais do Valongo e
a maior parte da doação em dinheiro para a obra não veio da Prefeitura
do Rio de Janeiro e sim de uma empresa chinesa. Não sei qual a relação
dessa empresa chinesa com o projeto, mas achei curioso esse apoio vir
de fora.
Existe o Jardim Suspenso do Valongo, que tem quatro imagens gregas
que vieram para apagar e esquecer o que aconteceu ali embaixo, na Rua
Camerino. Essa rua não servia só como área para vender o corpo preto, o
corpo escravizado, sequestrado do continente africano. Servia também,
em vários casarões dali, para vender utensílios da escravidão, como
correntes, chicotes e outras coisas do tipo. Quando passo ali na Rua
Camerino, eu sempre me pergunto em qual daquelas casas eram
vendidos esses utensílios. Tem ainda o Cemitério dos Pretos Novos, o
Instituto dos Pretos Novos, que vem resistindo. O VLT passa por cima de
muita ossada, há quem diga que 60 mil corpos foram jogados ali. Os
historiadores falam “Cemitério dos Pretos Novos”, com muita delicadeza
e respeito, mas na verdade era uma vala, tanto que foram achadas
ossadas misturadas com restos de porcelana, coisas quebradas, que
eram jogadas por cima dos corpos pretos.
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