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ESCOLA

ESCOLA DE ARQUITETURA E URBANISMO - UFF

nº2 - 2º SEMESTRE 2020

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 1


ESCOLA EM TRANSE: ESCOLA DE ARQUITETURA E URBANISMO - UFF
nº2 - 2º Semestre
© 2020 Movimento Escola em Transe |Grupo de pesquisa Grandes Projetos de Desenvolvimento
Urbano | Laboratório de Conservação de Energia e Conforto Ambiental | UFF

Capa, projeto gráfico e assessoria à editoração | Paula Moreira


Revisão | Caio Nogueira, Ricarda Tavares e Leticia Lyra.
Apoio técnico de pesquisa: Paula Laiber
Imagens e Fotos: Acervo GPDU

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

E73

Escola em Transe: Escola de Arquitetura e Urbanismo nº2 - 2º Semestre [recurso eletrônico] /


organizadores: Fernanda Sánchez, Louise Land, Caio Nogueira, Cristina Nacif, Glauco Bienenstein,
Isabela Bacellar, Pâmela Ventura, Paula Laiber, Paula Moreira, Ricarda Tavares, Rossana Tavares,
Thayana Fontes, Vitória Gouveia, Vitor Roppa. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2020.
Recurso digital; 10 MB

Formato: ebook
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-87594-54-5(recurso eletrônico)

1. Universidade Federal Fluminense. Escola de Arquitetura e Urbanismo. 2. Coronavírus (Covid-19).


3. Epidemias - Aspectos sociais. 4. Epidemias - Educação. 5. Livros eletrônicos. I. Sánchez, Fernanda.

CDD:
CDU:

Leandra Felix da Cruz Candido - Bibliotecária - CRB

apoio:

Letra Capital Editora


Av. Treze de Maio, 13 gr. 1301 – Centro
CEP: 20031-901 – Rio de Janeiro – RJ
www.letracapital.com.br

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ESCoLA Em TrANSE
ESCOLA DE ARQUITETURA E URBANISMO - UFF

nº2 - 2º SEmESTrE 2020

orgANizAdorES:
FErNANdA SáNChEz
LouiSE LANd
CAio NoguEirA
CriSTiNA NACiF
gLAuCo biENENSTEiN,
iSAbELA bACELLAr
pâmELA vENTurA
pAuLA LAibEr
pAuLA morEirA
riCArdA TAvArES
roSSANA TAvArES
ThAYANA FoNTES
viTóriA gouvEiA
viTor roppA

Editora

E SCO L A EM TRA N SE: EA u - uF F 3


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Sumário
MANIFESTO ESCOLA EM TRANSE........................................................................... 6

ESCOLA EM TRANSE: Apresentação...................................................................12


Caio Nogueira, Fernanda Sánchez, Louise Land e Paula Moreira.

ESCOLA EM TRANSE...............................................................................................16
Rossana Brandão Tavares

Uma reflexão sobre a divisão sexual do trabalho na produção do


conhecimento.....................................................................................................20
Poliana Monteiro

o ensino de arquitetura e o projeto de brasil..........................................24


Caio Nogueira

Desafios do planejamento para um novo ciclo de lutas urbanas .......28


Raquel Rolnik

O campo da arquitetura e do urbanismo e as expansões e crises


globais: Atualizações necessárias ..............................................................32
Margareth da Silva Pereira

Experiência Italiana: formação sem fronteiras........................................38


Leticia Lyra Acioly

O passado tem futuro? pode ser? - as nossas novas e velhas formas


urbanas na cidade contemporânea...............................................................40
Thereza Christina Couto Carvalho

ESCOLA EM TRANSE: HABITAR O CENTRO, MORAR É CENTRAL............................44


Pedro da Luz Moreira

Forma urbana, desigualdade e infoproletarização.................................49


Claudio Ribeiro

SOBRE A FORMA ARQUITETÔNICA.........................................................................53


Guilherme Araujo de Figueiredo

Crítica à ideologia da forma arquitetônica...............................................57


Pedro Fiori Arantes

A crise urbana e o patrimônio cultural edificado nas cidades


brasileiras..........................................................................................................61
Cristóvão Duarte

Patrimônio e destruição: notas introdutórias.........................................65


Clarissa da Costa Moreira

A MEMÓRIA DA FAVELA..........................................................................................69
Cosme Felippsen

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MANIFESTO ESCOLA EM TRANSE

Prezad@s,
O Brasil e o mundo têm enfrentado a presença e expansão da
pandemia da COVID-19. Cada nação, cada cidade, cada família e cada
indivíduo hoje procuram uma forma de se precaver ou tratar.
Diariamente, nos angustiamos com as perspectivas que se apresentam,
tanto quanto ao prazo da quarentena, como quanto ao número de
mortos nessa guerra mórbida.
No caso brasileiro, a situação é ainda dificultada pelo sucateamento
das políticas públicas, entre outros atos irresponsáveis de um presidente
despreparado, autocrata e criminoso que, em muitos momentos,
contribui para o agravamento da crise.
O país e, notadamente, os mais pobres, são alijados das melhores
práticas e bens da ciência. O ódio e o preconceito são disseminados
contra mulheres, negros, nordestinos e grupos LGBT, entre outros,
invertendo o processo de inclusão social e respeito à diversidade, até
então, incrementado por políticas públicas e pela adesão da sociedade.
Na verdade, a incapacidade já revelada em conter a expansão da
pandemia ocorre no momento mais grave, sob um governo que, desde
seu início, promoveu a divisão dos brasileiros, suprimiu direitos
trabalhistas e previdenciários; ampliou a desigualdade e reduziu as
oportunidades de ascensão social e geração de empregos. Ao mesmo
tempo, abre mão do patrimônio público e da soberania nacional, e
insulta o direito à liberdade de expressão. Recursos da cultura, da
ciência, da universidade pública e da própria saúde são subtraídos. Vale
lembrar que, desde o início desse governo, a permanência do tão bem-
sucedido Sistema Único da Saúde, o SUS, sofre ameaças.
Pode-se dizer que hoje a população brasileira enfrenta
simultaneamente duas graves crises: a pandemia da COVID-19 e os
desmandos criminosos do governo Bolsonaro.
As circunstâncias exigem um posicionamento crítico e político.
Durante o período de isolamento, um grupo de pessoas que integram a
Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense
(EAU-UFF) vem articulando um movimento coletivo para refletir sobre
questões que afetam a vida dos brasileiros, não somente as evidenciadas
pela pandemia, mas principalmente as já vivenciadas no cotidiano
institucional e que fazem parte do campo de atuação e influência de
professor@s, estudantes e técnicos da EAU-UFF.
O movimento Escola em Transe apresenta algumas dessas questões e
reflexões, em forma de manifesto.

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Princípios

Evidencia-se a necessidade de atitudes e meios mais democráticos e


inclusivos, que recoloquem em pauta o papel do Estado e,
especialmente, da Universidade Pública, quanto ao desenvolvimento de
pesquisas e projetos voltados à formulação e à condução de ações em
defesa de direitos humanos garantidos em compromissos e leis
nacionais e internacionais, particularmente, as garantias relacionadas ao
ambiente construído e às vulnerabilidades sociais.
Nesse quadro, as lutas típicas pertinentes ao campo da arquitetura e
do urbanismo apresentam-se ainda mais relevantes, notadamente,
quanto aos direitos urbanos, que incluem as aspirações à igualdade de
acesso ao saneamento básico, à condições adequadas de moradia, à
urbanização de favelas, à mobilidade urbana e a equipamentos e
serviços públicos essenciais, entre tantos outros.
A Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF tem, historicamente,
protagonizado diversas ações neste sentido. Estudantes, professor@s e
demais servidor@s têm atuado com comprometimento às questões
sociais e em busca da construção coletiva do ensino e da cidade. À
comunidade EAU, e a toda a UFF, cabe pensar e se preparar, de forma
unida, atenta e articulada, para grandes embates nos próximos anos.
Nosso perfil tem sido moldado pelo cinzel da diversidade e pela
coexistência do fazer arquitetônico com o pensamento urbano, tendo a
teoria crítica como uma de suas matrizes. É preciso entender a
sociedade em sua totalidade concreta para poder atuar como produtores
de ciência e agentes de transformação.

Quadro Institucional
Hoje a EAU-UFF conta com 468 estudantes na graduação, 30% deles
ingressos por cotas de renda, etnia ou necessidades especiais. Vale
também destacar o predomínio feminino entre @s estudantes
matriculados, atualmente em torno de 70%. Este predomínio ou, pelo
menos, o equilíbrio hoje existente, também se estende ao quadro de
professores e ao de estudantes da pós-graduação. 70% dxs mestrandxs
são mulheres. No doutorado, chegam a 56%. Entre os professores, a
composição, por gênero, é equilibrada.
Esses percentuais têm-se elevado a cada semestre e estimulam a
reflexão, não apenas quanto ao perfil desejado para ess@ arquitet@ e
urbanista, mas, sobretudo, quanto ao modelo de ensino e ao papel que
se deve assumir diante dessa realidade. É cada vez mais clara a
necessidade de rever métodos e procedimentos pedagógicos, visando à
renovação do ensino, para a formação desse novo profissional e cidadão.
Faltam espaços físicos para o ensino e a pesquisa, ambientes saudáveis
para estudantes, professor@s e servidor@s, de modo a oferecer o
mínimo adequado às funções acadêmicas. Não há como buscar
qualidade e excelência, alheios a equipamentos e recursos tecnológicos

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M ANI F ES T O ES C OL A E M TR A N S E

ainda inacessíveis, com o que seria possível ampliar experimentações e


a capacitação nos campos da arquitetura e do urbanismo.
O quadro de funcionári@s é reduzido e a estrutura pífia e improvisada,
diante das demandas atuais. Os serviços de manutenção e melhoria
apresentam-se muitas vezes como bênção concedida pelo acaso ou pelo
beneplácito de uma entidade superior. Não é raro que professor@s e
estudantes se vejam obrigad@s a arcar com a manutenção e, até mesmo,
com a construção de novas instalações necessárias as suas pesquisas.
Acresce-se aos problemas que hoje se vive, em termos de recursos
materiais e humanos, a observação de que, infelizmente, a crise
civilizatória não se restringe, no Brasil, ao atual presidente, seus filhos e
seguidores. Mesmo no meio universitário, em que se deveria respirar um
clima cultural e político mais ameno e coerente com as atividades de
ensino, pesquisa e extensão, já se veem reflexos do arbítrio e do
preconceito.

Escola em Transe

Transe significa “estado de alteração da consciência”. No momento


atual, pode significar a oportunidade de desenvolver uma nova
consciência, de pensar “tudo ao mesmo tempo, agora!”. O movimento
coletivo Escola em Transe propõe o pensar e projetar a EAU-UFF como
Unidade, como síntese de atravessamentos escalares múltiplos: a Escola
no Mundo, no País, no Estado e na Região Metropolitana do Rio de
Janeiro, na Baía de Guanabara, na cidade de Niterói, no bairro de São
Domingos...

PORQUE ESCOLA EM TRANSE?


Terra em Transe é um filme dirigido por Glauber
Rocha que dividiu a opinião pública quando foi
lançado, em 1967, primeiro em Cannes e depois
em breve exibição nos cinemas brasileiros.
A obra conta a história fictícia da República de El
Dorado, protagonizada pelo personagem Paulo
Martins, interpretado por Jardel Filho. A trama se
inicia quando o jornalista e poeta Paulo se alia ao
político em ascensão Porfício Diaz, interpretrado
Paulo Autran, para apoiarem a cadidatura a
governador da provincia de Alecrim, o populista
Filipe Vieira, interpretado por José Lewgoy.
No filme, Glauber Rocha desperta o senso crítico
em relação à fome, à violência, ao racismo,
o populismo, e ao regime militar ,que era o
contexto da produção do filme, além de ser
inovador nas técnicas de captação de som e
8 movimento.
A inserção da EAU-UFF, em diversas escalas de atuação possível, por
meio de projetos de ensino, extensão e pesquisa, torna-se indispensável
neste momento. Mais do que nunca, aqui se somam estudantes e
servidor@s públic@s de todas as funções, acadêmicas, técnicas e
administrativas, em busca da materialização da qualidade de ensino, da
participação nas lutas populares e da construção de uma cidade e de
uma sociedade mais justas, fraternas e humanas.
Diante disso, a Escola em Transe considera fundamental manter uma
posição crítica e independente em defesa da Universidade Pública e do
direito à Educação de qualidade, que se some aos esforços para a
construção de um novo tempo, em que o interesse coletivo não se
submeta aos ditames individualistas dos que detêm o poder, em todos os
níveis em que se apresenta. Esta é a lição que a crise, que hoje atinge a
toda a sociedade, deve trazer para a reconstrução almejada.

Em relação ao projeto político pedagógico, a Escola


em Transe:
- Evoca a livre circulação de ideias, a escuta das demandas e a
expressão dos sentimentos coletivos de seus três segmentos
constituintes: estudantes, funcionári@s e professor@s;
- Respeita e valoriza a diversidade, a diferença, o contraditório, a
copresença de opiniões e posições, pois acredita na condução
democrática da coisa pública, no debate aberto visando ao
enfrentamento de conflitos, e teme o consenso aparente, que muitas
vezes acoberta e silencia violências de gênero, de raça e de classe no
cotidiano universitário;
- Apoia a continuidade e o fomento dos processos de integração de
conteúdos e disciplinas, de modo a estabelecer um sentido claro ao ato
de pensar, projetar e construir a/na cidade, agregando conhecimentos
para o exercício profissional e contribuir para a redução da carga horária
despendida, que hoje promove a alienação do aluno da vida social e
cultural, tão valiosa para sua formação;
- Acredita no aprofundamento do diálogo entre diferentes instâncias
de gestão e administração da universidade, garantindo, entretanto,
posição autônoma quanto às suas especificidades e visão de mundo; e
na participação ativa e constante nos conselhos superiores e nos demais
espaços de decisão da universidade, com vistas à melhoria das
condições de ensino, trabalho e vida universitária;
- Enfatiza a importância das instâncias colegiadas internas, em
particular, o Colegiado da Escola, e defende sua composição mediante
assembleia geral de professores, com indicações pessoais e coletivas.
- Conclama a articulação com diferentes entidades de representação
de professor@s, estudantes e técnic@-administrativ@s, visando ao
reconhecimento e à garantia de direitos, em face ao crescente
sucateamento da Escola e da Universidade, originado do desmonte das
políticas públicas, e da soberania nacional;

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- Reconhece a importância de acompanhar as tendências nacionais e


internacionais de pensamento e produção nos campos da Arquitetura e
Urbanismo, mas, ao contrário de reproduzir cegamente modelos criados
nos países centrais, defende que é necessário e urgente filtrar, reinventar
modelos e produzir alternativas assentadas na visão crítica das cidades
brasileiras, que se projetam, orgulhosamente, como arquiteturas do Sul
do mundo.
- Projeta a ampliação de relações, colaborações e amizades com as
demais escolas de arquitetura e urbanismo, especialmente as do Brasil,
da América Latina e do Sul do mundo.
Em relação ao espaço físico e ao ambiente social, a Escola em Transe:
- Fomenta a ideia de criação de espaços saudáveis e agradáveis
visando ao desenvolvimento das atividades cotidianas, mas que também
possam abrigar momentos de convivência e troca de experiências; e de
viabilização de recursos para a aquisição de equipamentos e a formação
de profissionais técnic@s, professor@s e estudantes, para uso e operação
em pesquisa e formação em arquitetura e urbanismo.
- Apoia iniciativas de estudantes, inclusive, para a viabilização material
da continuação de seus estudos e da criação de um ambiente saudável,
considerado seu perfil plural e desigual.
- Vislumbra o fortalecimento progressivo do Programa de Pós-
Graduação, mediante efetiva cooperação material e de pessoal;
- Conclama a integração mais intensa entre a Graduação e a Pós-
Graduação, por meio da recuperação e aprofundamento das
experiências de sucesso e da abertura de novas possibilidades.
- Acredita na luta, em diversas instâncias, pela ampliação das bolsas de
graduação e de pós-graduação, que viabilizam a produção do
conhecimento em arquitetura e urbanismo, projetando a Escola para
além de seus muros e limites visíveis;
- Reconhece e valoriza a produção dos diversos grupos de pesquisa e
extensão que compõem a história institucional, sua identidade, seus
sentidos de pertencimento e suas experiências de sucesso na região, no
país e no mundo;
- Zela por uma gestão transparente, em atendimento às demandas
d@s estudantes, professor@s, funcionári@s e instâncias colegiadas da
comunidade EAU;
Por fim e acima de tudo, a Escola em Transe defende uma formação
que, mais do que preparar condignamente para o exercício da profissão,
ofereça uma visão crítica e abrangente sobre a função d@ arquitet@ e
urbanista em relação à sociedade e ao objeto de seu trabalho. É preciso
recolher de sua história o que fez e faz a Escola de Arquitetura e
Urbanismo um lugar (como ente identitário espacial) assentado em
valores humanistas, na justiça social, na liberdade e no enfrentamento
das desigualdades e assimetrias que assolam as cidades e a sociedade.
Não há como se acomodar, aninhar-se nos braços afáveis de uma
entidade chamada Mercado, nas soluções fáceis da formação do
arquitet@ e urbanista market friend. A EAU-UFF tem que assumir o

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compromisso de absorver a experiência das Periferias para formar
arquitet@s e urbanistas que exerçam uma cidadania crítica, que sejam
capazes de, antropofagicamente, mesclar “centros” e “periferias”,
projetar futuros imaginando “espaços da esperança”.
Os tempos atuais são difíceis, de convivência com ameaças constantes
aos direitos duramente conquistados por trabalhador@s e produtor@s
do conhecimento. Essas ameaças compreendem redução de salários;
mudanças no sistema previdenciário e na progressão funcional; cortes
nos recursos destinados a pesquisas e no sistema de cotas; inclusão sem
base didática do “ensino à distância”, que se sabe improdutivo e farsesco,
entre tantos outros golpes ao mundo acadêmico.
Nesses termos, a Escola em Transe convoca estudantes, professor@s,
técnic@s e demais servidor@s a participar deste movimento que propõe
o pensar e o agir visando à renovação, a um novo convívio entre pessoas
que compartilham o mesmo ambiente institucional, a transformá-lo em
espaço de acolhimento ao debate, à diversidade, à solidariedade e à
cooperação. São essas as condições que farão com que, unid@s,
atent@s, persistentes e articulad@s a outros setores da sociedade, a
EAU-UFF esteja mais forte para enfrentar as ameaças e superar os
problemas que se apresentem.

“Os deuses condenaram Sísifo


a rolar incessantemente uma
rocha até o alto de uma
montanha, de onde tornava a
cair por seu próprio peso.
Pensaram, com certa razão,
que não há castigo mais
terrível que o trabalho inútil e
sem esperança.”
(Albert Camus, in O Mito de Sísifo. 1944)
Sísifo, de Ticiano, 1549

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ESCOLA EM TRANSE: Apresentação

Caio Nogueira, Fernanda Sánchez, Louise Land e


Paula Moreira.
“Viver é desenhar sem borracha”.
(Millôr Fernandes)

Enfim, chegamos à segunda publicação coletiva da Escola em Transe.


Também aqui, reunimos textos nascidos das comunicações e debates
das Rodas de Conversa que produzimos, e não foram poucas. Enquanto
escrevemos esta apresentação, mais de vinte e cinco “Rodas” se
realizaram. Há muito que dizer, há muito que debater, nada a apagar,
como Millôr diz ser a vida. Nossa esperança é a luta.
Se, na primeira publicação, refletíamos sobre as restrições impostas
pela pandemia e a ela se somava o “pandemônio” criado e estimulado
por um governo que se organiza em direção a um genocídio seletivo,
hoje, no nono mês de isolamento social, reclusão e expectativa,
esperamos o nascimento de uma nova vacina, de uma nova esperança e,
mais do que nunca, de uma mudança de rumo para o país, para o nosso
estado, nossa escola, para tudo enfim com que nos envolvemos e
participamos. Este envolvimento se reflete e se estende em nossas Rodas
de Conversa, nos temas que as motivaram e nos textos aqui publicados.
Abordamos ações mobilizadoras da sociedade, que hoje vive o risco da
chamada “Reforma Administrativa”, que ameaça a nação e o serviço
prestado ao público, isto é, aos cidadãos. Também reunimos
ambientalistas, juristas e ativistas ambientais para promover o debate e a
resistência à destruição da Floresta do Camboatá, ameaçada por um
projeto catastrófico de desmatamento para a instalação de um
autódromo inexplicavelmente priorizado pelas autoridades do estado e
do município.
As questões de gênero, raciais e demais hierarquias de dominação,
debatidas atualmente pelos arquitetos em formação, estiveram
presentes nas mais diversas rodas de conversa, com grande e efetiva
participação de estudantes, professores e profissionais de arquitetura e
urbanismo. O tema da desigualdade de gênero foi também tratado em
duas oportunidades, na primeira, quanto às interseções das questões de
gênero, em meio à produção e à prática profissional de arquitetas e
urbanistas. Em um segundo momento, tratando da rica experiência
dessas profissionais em cargos e funções relacionadas à gestão
acadêmica.
Nos campos do ensino e da cultura arquitetônica e urbanística,
discutimos o patrimônio das cidades, a produção contemporânea da
forma e a visão sobre a cidadania, que se reflete em nossos projetos e
posicionamentos frente às questões da sociedade. Os debates sobre o
ensino se estenderam às técnicas construtivas alternativas e ao diálogo
com as experiências de outros países, na Summer School, desenvolvida

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em outubro deste ano e apresentada em Roda de Conversa, ao fim
daquele mês.
Também a representação profissional, em suas entidades culturais e
de classe e a ampla produção arquitetônica na América Latina foram
temas concorridos em Rodas realizadas neste período. Além dessas,
destacamos a expressiva produção do escritório Brasil Arquitetura,
apresentada pelo arquiteto Marcelo Ferraz, com grande atenção de
todos os participantes.
A avaliação do ensino de arquitetura e urbanismo e da experiência em
outros países foi abordada em Rodas de Conversas dedicadas aos
estudantes egressos da EAU/UFF. Em uma delas, ouvimos depoimentos
sobre suas vivências internacionais, complementada pelo depoimento
de alunos estrangeiros, que hoje vivem a experiência brasileira na EAU/
UFF.
E, para encerrar esta breve descrição, vale destacar o debate quanto ao
direito à cidade e à habitação digna, objeto de Rodas de Conversa, que
trataram da potência da periferia, do direito à moradia e do habitar o
centro, como ponto central da reforma urbana. Em parceria com o CAU/
RJ, discutimos a mobilidade urbana, a partir de filme em curta
metragem sobre a experiência de três mulheres, que se deslocam pelo
transporte coletivo do Rio de Janeiro. Outra Roda complementou o tema
da mobilidade, abordando o cotidiano das ciclistas e dos ciclistas, os
problemas e oportunidades de quem circula em duas rodas pelas ruas
da cidade.
Como vimos, um amplo espectro de temas abordados e debates
produzidos contribuíram não apenas para o fortalecimento da
resistência ao arbítrio e à luta da sociedade por um futuro melhor,
mobilizador de utopias, mas também contribuindo para a projeção da
EAU/UFF no âmbito acadêmico nacional e da luta política da sociedade
civil.
Passados oito meses desde o anúncio da pandemia e quase dois anos
da posse do atual presidente, a cultura, a ciência, a educação e, em
especial, o ensino superior, como dissemos na apresentação do primeiro
e-pub, lançado em Roda de Conversa realizada em 27 de julho último,
seguem ameaçados. O desmanche das instituições de ensino e pesquisa,
as conquistas relacionadas à inclusão social, da proteção ambiental e
desenvolvimento da ciência e da cultura constituem a face mais visível
do grupo hoje no poder.
Com tal diversidade do debate e a efervescência do contexto político,
optamos por abrir e fechar esta segunda publicação da Escola em
Transe com advertências epistemológicas que apontam para a
necessidade de mudanças em termos da produção de conhecimento. A
começar pelo texto de Rossana Tavares, que desafia a ressignificação de
narrativas e do lugar das mulheres, seguida do texto de Poliana
Monteiro, que indica que a promoção das mulheres no campo da
produção de conhecimento deve caminhar contrariamente ao
silenciamento.

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escola em transe : apresenta çã o

A colagem acima foi feita com os cartazes de divulgação de algumas das


rodas de conversa on-line organizadas pela Escola em Transe em 2020.

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Depois, em um segundo bloco, estão relatos e provocações relativos à
formação do arquiteto e urbanista, um interregno entre a experiência e a
teoria. O debate começa pela exposição de Caio Nogueira, segundo o
qual o pensamento educacional ainda fluente na formação do arquiteto
urbanista é localizado no tempo e no espaço. Ao questionar sobre os
modelos em relação ao urbanismo, que se cristalizam na formação
profissional, Raquel Rolnik instiga a construção de conhecimento a
partir dos territórios populares. Ainda nesse bloco, Margareth da Silva
Pereira mostra a indispensabilidade da atualização do campo da
arquitetura e do urbanismo, que reflete as expansões e crises globais. Já
o relato de Letícia Lyra recorda a experiência do programa Ciência sem
Fronteiras e a valorização do ensino de qualidade.
Ainda na discussão acerca do ensino, seguem os textos com múltiplos
aportes teóricos sobre a cidade e a forma contemporânea. Thereza
Carvalho explora algumas hipóteses sobre a vitalidade local que as
novas e velhas formas do urbano produzem. Discutindo sobre habitar o
centro, Pedro da Luz levanta as condições de um projeto de
desenvolvimento que combata a forma inercial de reprodução da cidade
brasileira. Claudio Ribeiro, por sua vez, atenta para as relações atuais de
trabalho e sua interferência na forma das cidades contemporâneas.
Pensando sobre a essência e a aparência, Guilherme Figueiredo destaca
a compreensão da forma arquitetônica em sua totalidade conceitual.
Fechando o terceiro bloco, a crítica à ideologia da forma arquitetônica,
produzida por Pedro Arantes, provoca a experiência da forma
compreendida como obra compartilhada de saberes.
Por fim, se apresentam três textos que abordam o patrimônio
enquanto tema chave para a compreensão do urbano e de suas relações
sociais. Cristóvão Duarte debate a crise urbana e a preservação do
patrimônio cultural edificado nas cidades brasileiras. Discutindo sobre a
destruição e a memória, Clarissa Moreira desconstrói discursos até hoje
consolidados em relação ao patrimônio. Por fim, como fechamento, o
relato de Cosme Felippsen sobre o projeto “Rolé dos Favelados”
demonstra como o circuito turístico por ele organizado, pode tornar
sensíveis memórias que aparentemente estavam sob escombros. Propõe
um exercício de imaginação espacial da área portuária do Rio de Janeiro,
que conecta tempos diferentes em um mesmo espaço racializado.
Finalmente, como já afirmamos anteriormente, o momento é de luta e
de reflexão coletiva, com vistas a garantir direitos conquistados, o amplo
debate democrático, a qualidade do ensino e formação profissional de
arquitetas, arquitetos e urbanistas, da EAU/UFF.
Nesta publicação digital, reunimos novamente textos que são
contribuições do movimento Escola em Transe para esse debate. Vamos
a eles! Estamos todos convidados, somos todos protagonistas!

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ESCOLA EM TRANSE

Rossana Brandão Tavares 1

Gostaria de começar reafirmando a importância deste espaço na


conjuntura em que estamos vivendo. Vejo inclusive esta roda de
conversa virtual como um lugar de acolhimento a um debate que parece
ser muito áspero para muitos, mas que é acolhedor para nós, em
especial mulheres. Estamos falando de uma problemática que não é
nova para nossa sociedade, mas ainda parece novidade no universo
entre arquitetas/os urbanistas. Frente a isso, acredito que este momento
não pode e não deve ser romantizado. A meu ver, são tempos de desafio
diante da radicalização de problemas e desigualdades sociais, sobretudo
para a ruptura de paradigmas fundamentais que garanta nossas vidas.
Num isolamento definido pela quarentena, que é um privilégio neste
contexto de pandemia (sem desqualificar sua importância diante do
quadro grave de saúde pública que vivemos), quando determinados
corpos, vidas se expõem diferente e desigualmente à precariedade e à
mortalidade, é importante ressaltar que “os isolamentos” não são uma
experiência nova para as mulheres. E aqui reside outro desafio
significativo: estamos falando de mulheres no plural. Em um universo
profissional e acadêmico, que tradicionalmente não discute, nem reflete
sobre o feminismo, a própria questão da interseccionalidade, eleita aqui
nesta roda como relevante, também favorece a darmos luz à realidade
da subordinação de nossas práticas sociais, como a colonialidade que
nos impõe reconhecer os efeitos da subinclusão epistêmica na própria
categoria gênero (AKOTIRENE, 2019). Falo isso porque nos avanços
históricos do debate sobre as desigualdades de gênero e
heteronormatividade na arquitetura e urbanismo também predominam
a produção de teorias feministas eurocêntricas.
É extremamente revelador como a invisibilidade da nossa experiência,
de nossos interesses, resistências e sobrevivências é estruturante entre
nossos pares, mesmo com a ascensão do feminismo pautando temas
políticos nacionais, para além das nossas reivindicações tradicionais e
que ainda permanecem importantes, como a questão da representação,
da violência, do assédio etc. Por exemplo, se busca ocultar a condição
instável e desigual do trabalho, em especial, a acumulação de tarefas
ligadas ao cuidado e ao trabalho considerado produtivo, no espaço
doméstico feminino. Para muitas de nós, em níveis diferenciados, a casa
1 Arquiteta e Urbanista (EAU/UFF). Mestre em Planejamento Urbano e Regional
(IPPUR/UFRJ) e doutorado em Urbanismo (PROURB/UFRJ), tendo realizado doutorado
sanduíche pelo convênio CAPES/COFECUB na AgroParisTech, França. Atualmente é
Professora Dra. Adjunta da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense EAU/UFF e professora colaboradora do Programa de Pós Graduação em
Arquitetura e Urbanismo PPGAU/UFF.

16
é um espaço adverso, e esse fator se radicaliza num contexto urbano
precário, sem abastecimento e saneamento, enfim, sem a infraestrutura
adequada. As dificuldades que enfrentamos neste cotidiano têm como
resultado o adoecimento físico e psicológico, o desemprego, ou mesmo
o impedimento de se manter trabalhando, conforme o esperado. Esses
fatores também se radicalizam e se sobrepõem à segregação
socioespacial e ao isolamento que estruturam um terreno fértil para o
medo e inseguranças de todas as ordens. Tudo isso não deixa de ser uma
forma de violência.
Como que as questões e críticas colocadas sobre o trabalho remoto e o
ensino à distância não consideram as dificuldades que atravessam nossa
vida no espaço doméstico? Essa tem sido uma questão central para as
mulheres que são pressionadas ou mesmo obrigadas a esse tipo de
trabalho. Não por acaso, algumas matérias na imprensa têm vinculado
pesquisas, como da professora de biologia da UFRGS, Fernanda
Staniscuaski, (projeto brasileiro - Pais na Ciência), que num universo de
mais 2000 questionários respondidos, 40% das mulheres sem filhos não
concluíram seus artigos, contra 20% dos homens; 52% das mulheres com
filhos não concluíram seus artigos, contra 38% de homens.
Como se faz necessário descolonizar percepções, linguagens (que dão
sentido ao nosso mundo) e a própria produção do conhecimento,
considerando as opressões interseccionais de gênero, raça, classe,
sexualidade, localização e até geopolíticas (COSTA, 2020). Não é por
acaso que é simbólica a derrubada de estátuas recentemente nos atos
antirracistas “Vidas negras importam”. É uma linguagem celebrativa no
espaço público que disputa o direito de tornar visível uma versão da
história que não só não deveria ser celebrada, mas que é representativa
daquilo que importa. Se fôssemos derrubar todos os monumentos de
homens na cidade do Rio de Janeiro, sabe quantos ficariam de pé? 16 de
um universo de 2000, segundo levantamento realizado pela Isabela
Rapizo, mestranda do IPPUR e minha coorientanda2. Como ela afirma,
as cidades também revelam a nossa história, mas também o nosso
presente, e esse levantamento ilustra como as lógicas capitalistas, que
incluem a própria perspectiva patriarcal, heteronormativa e racista, são
estruturantes no modo como o espaço é produzido e a sociedade se
reproduz; como nos ensina Silvia Federici e as intelectuais negras Leila
Gonzales, Angela Davis, entre outras.
Esse sistema de gênero e racial de que Maria Lugones (2020)3 discorre
é uma construção colonial. E é preciso desnaturalizar esses princípio
organizador do campo da arquitetura e do urbanismo. Não só não se
questiona entre nós que grande parte das nossas referências
bibliográficas é eurocêntricas, como também masculinas! Não podemos
esquecer que é bastante recente o reconhecimento da importância das
2 Artigo publicado na Revista Arquitetas n.2 Invisíveis “Invisibilidade feminina na
história e na cidade: os monumentos públicos falam sobre quem?”
3 Filósofa feminista argentina, ativista e professora associada de literatura comparada e
de estudos sobre mulheres na Binghamton University, no Estado de Nova York.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 17


ESCOL A EM T RAN S E

mulheres na produção arquitetônica em premiações. Isso não é


qualquer coisa!
A ideia de um pensamento padrão e universal condiciona uma
experiência de ensino e de concepção profissional que abre pouco
espaço para aquilo que Ana Clara Ribeiro (2010) chamava de “direito ao
espetáculo”. Mulheres que conquistaram esse direito e não a
espetacularização do seu corpo conseguiram superar obstáculos e
fronteiras a quem é destinado o fundo de cena, em que são os homens
que naturalmente conquistam os holofotes. Quem acredita que essas
viradas de mesa são esforços individuais não compreendeu o lema que
percorre desde 2017, entre os atos feministas no mundo: uma sobe puxa
a outra! Essas conquistas acontecem na fala, nos gestos, nas
insubordinações, nas resistências às acomodações e manipulações de
classificações sociais que se desenvolvem, citando novamente Ana Clara
Ribeiro, nas fronteiras do visível e invisível, ou mesmo naquilo que se vê
ou que não quer ser visto pela ação planejada dominante.
A subvalorização de exercícios de projeto de alunas foi um ponto
muito debatido em um debate que promovemos na EAU em 2017,
durante a Semana de Arquitetura. Ouvir de alunas que suas experiências
e saberes são menosprezados e estigmatizados em sala de aula,
sobretudo, em disciplinas de projeto revela como somos tolhidas na
origem. De fato, o direito de aparecer torna-se um desafio
primeiramente para nós, talvez todas nós tenhamos vivenciado isso,
com mais ou menos intensidade, mas sempre foi naturalizado.
Quero destacar aqui que um grande esforço para além de disputar o
espaço das proposições de projeto é encontrar ou construir brechas para
proposições teóricas, para a crítica e para construir nossa história neste
campo do conhecimento, e debater abertamente as contradições que
experimentamos cotidianamente nas cidades, no espaço urbano.
Disputar essa ressignificação das narrativas, do lugar das mulheres, e
considerar que o próprio debate sobre o espaço urbano, arquitetônico e
da paisagem são delimitados por essas desigualdades, de forma
estruturante no ensino, é também abrir uma brecha, pois pode atingir a
subjetividade de todos para percepção e compreensão acerca das
desigualdades, e assim ampliar os espaços para a construção ampla,
diversa e inclusiva do próprio pensamento crítico em nosso campo.
Não é por acaso que, cada vez mais, reconheço o papel relevante que
essa postura epistêmica tem para a transformação do olhar da sociedade
sobre o que é arquitetura e urbanismo. Apesar de parecer simples,
ampliar referências bibliográficas e chamar a atenção para a ausência do
debate da precariedade socioespacial demarcadas pelas desigualdades
de gênero não é qualquer coisa. É uma ação radical no âmbito de um
campo do conhecimento tido como técnico, onde se institui a
adequação à forma, à norma, ao enquadramento, às diferenças e às
desigualdades parece um risco ao saber tradicional, pretensamente
universal.

18
Temos uma potência de experimentação e rupturas de sermos vistas
sobre nossos próprios termos e contribuirmos para a experiência e
pensamentos críticos, que promovam uma vida que possa ser vivida
plenamente, como coloca Butler, que é fundamental ser considerada.
Temos aqui Gabriela Gaia e Monica Benício que não nos deixam
dúvidas. E, inclusive, evitar a perpetuação de nossas reflexões de forma
petrificada ou até estigmatizada é um caminho que precisamos
percorrer ainda. Precisamos desse espaço.

BIBLIOGRAFIA

AKOTIRENE, C. “Interseccionalidade”. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén,


2019.

COSTA, C. Feminismo decoloniais e a política e a ética da tradução. In:


HOLLANDA, H.B. (org.). “Pensamento feminista hoje: perspectivas
decoloniais”. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p.320-344.

LUGONES, M. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, H.B. (org.).


“Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais”. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2020, p.52-83.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 19


Uma reflexão sobre a divisão sexual do
trabalho na produção do conhecimento 1

Poliana Monteiro 2
A amplificação do campo de debates feministas nos últimos anos
evidencia que um dos principais desafios das mulheres na disputa pela
produção do conhecimento consiste em feminizar e racializar as
pesquisas e práticas dentro das universidades, o que significa também
ocupar espaços não somente para pesquisar com mulheres ou pesquisar
sobre mulheres, mas principalmente pesquisar como mulheres
epistemicamente situadas e engajadas em uma perspectiva de
conhecimento libertária, dialógica e popular, o que tenciona e
desestabiliza as formas hegemônicas de produção do conhecimento.
Para compreender de forma mais profunda os desafios de ocupar esses
espaços, é preciso pensar o que significa a promoção das mulheres no
mercado de trabalho, de forma geral, e nas universidades,
especificamente. E, ainda, como a divisão sexual do trabalho, um
mecanismo de opressão e exploração patriarcal, pode operar na
produção do conhecimento.
O feminismo liberal tem defendido a inserção das mulheres no
mercado de trabalho e a geração de renda autônoma como forma de
alcançar a igualdade entre mulheres e homens. O slogan da ONU
Mulheres, por exemplo, defende abertamente que “igualdade de gênero
significa negócios” quando apresenta os princípios de empoderamento
das mulheres, ou seja, posiciona as mulheres ou como
microempreendedoras individuais hiper-responsabilizadas pela
produção e pela reprodução social em uma conjuntura de avanço
neoliberal, que retira direitos e aprofunda a violência, ou como um
mercado consumidor em potencial. A igualdade de gênero, pautada no
“empoderamento” individual, portanto, se consolidou discursivamente
como um objetivo a ser alcançado e tem reverberado, de forma cada vez
mais recorrente, inclusive, nos espaços de produção do conhecimento.
A figura das CEOs, mulheres imensamente privilegiadas que se
inseriram no mundo corporativo em posição de destaque, hoje
monopoliza o imaginário social sobre o que é ser uma mulher que
alcançou a igualdade social. Uma pesquisa da Universidade de
1 Gostaria de agradecer à minha orientadora professora Fernanda Sánchez e à querida
Cecília Vieira pelas contribuições para a construção dessa reflexão.
2 Arquiteta e Urbanista (UFJF); Mestra em Planejamento Urbano e Regional pelo
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Atua como Assessora Técnica de favelas ameaçadas por processo de remoção. Tem
experiência nas áreas de Arquitetura e Urbanismo e Planejamento Urbano, principalmente
nos temas Habitação de Interesse Social, Assentamentos Precários, Política Habitacional
e Produção do Espaço com foco nas Lutas protagonizadas por Mulheres e Feminismo.

20
Cambridge, entretanto, demonstra que a presença feminina na diretoria
das corporações é de pouco mais de 10%, em média 3. Além disso,
esquecemos que as badaladas CEOs utilizam invariavelmente a mão de
obra de outras mulheres, em geral, periféricas e não brancas, para
manter o cuidado com os dependentes e a reprodução social ou, como
Kergoat e Hirata costumam dizer, a produção do viver. Enquanto isso,
metade das mulheres da classe trabalhadora que engravidam e voltam
para seus empregos são demitidas em até 12 meses, de acordo com uma
pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV)4. Assim, seguindo Dworkin,
onde não há justiça e liberdade, a igualdade só existe na figura do
oprimido que se torna igual ao opressor.
Assim, para além das disputas discursivas e ideológicas, o fato é que há
materialidade nas relações de trabalho legitimadas pelo patriarcado.
Recentemente um relatório da Organização Oxfam demonstrou que as
tarefas de casa e cuidados de criança e idosos persistem submetendo
mulheres ao trabalho não pago, que equivale a 10 trilhões de dólares por
ano. Isto é, o patriarcado que permite a legitimação do trabalho
doméstico como não produtivo e, portanto não passível de
remuneração, permite a ampliação do lucro do capital e do Estado.
Assim, mais lucro para alguns é sinônimo de mais vulnerabilidade para
muitas5.
O conceito de divisão sexual do trabalho, que seguindo Hirata e
Kergoat pode apresentar dois diferentes sentidos, é fundamental para a
compreensão desse fenômeno. O primeiro sentido corresponde ao
conceito se refere à análise da disposição diferenciada de mulheres e
homens, não somente no mercado de trabalho de maneira geral, mas
também nas diferentes profissões, cargos, carga horária e distribuição
espacial. O segundo consiste no exame dessa disposição diferenciada
em relação à divisão desigual do trabalho referente às atividades
domésticas e ao cuidado com os dependentes, afirmando o caráter
sistemático das desigualdades engendradas pelas “relações sociais de
sexo”. Esse processo determina que as mulheres, enquanto grupo social,
sejam historicamente posicionadas como exército industrial de reserva
para o capital. Este utiliza, entre outras coisas, a negação dos direitos
reprodutivos como elemento de opressão e exploração.
A divisão sexual do trabalho segue vigente também nas Universidades
o que obviamente implica a produção do conhecimento. Recentemente
o CNPq acatou o pedido de mães pesquisadoras para incluir o período
da licença-maternidade no currículo acadêmico considerando que a
queda na produção não é um fator de capacidade, mas de um
3 Ver: https://infograficos.oglobo.globo.com/economia/representatividade-e-
longevidade-das-mulheres-em-cargos-de-chefia.html
4 Ver: https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos
5 Ver: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/trabalho-domestico-vale-10-
trilhoes-de-dolares-nao-pagos-a-mulheres-anualmente/?fbclid=IwAR0N1L4kZenrXkFL
3voqBcWvlgCXX-drVMyxBV4yOQHNB0I3X2m1ewBwrvo

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 21


a divis ão sex u al do trabal h o na produ çã o do con h ecimento

afastamento natural por um período. Sem entrar no mérito de quão


problemática é essa perspectiva produtivista, é fato que, para as
mulheres, ocupar certos espaços pode significar transitar entre a
interdição, a invisibilização ou até mesmo o assédio.
Algumas pesquisadoras decoloniais e/ou feministas afirmam que a
voz das mulheres é silenciada, tanto enquanto sujeitas epistêmicas, a
partir da generalização dos corpos e abstração dos sujeitos, quanto
como pesquisadoras, por meio da imposição de teorias e interdições
epistêmicas e também ontológicas (Gayatri Spivak e Veena Das são boas
referências), e para mulheres negras, esse processo é mais violento ainda
(essa discussão é feita de forma pungente pela Grada Kilomba). Outro
exemplo da misoginia, do racismo e do eurocentrismo na produção do
conhecimento são as traduções. Michel Foucault, por exemplo, foi
traduzido e publicado no Brasil, em geral, pouquíssimo tempo depois da
publicação de seu original na França. Mal comparando, 2016 foi a
primeira vez em que vimos uma obra de Angela Davis ser traduzida para
o português e publicada no Brasil: a obra original havia sido publicada
em 1981. Trinta e cinco anos de diferença! A geógrafa feminista britânica
Doreen Massey tem apenas um livro traduzido para o português.
Quantos outros casos? Isso não é irrelevante. Quem está fazendo as
escolhas editoriais? Quem escolhe qual conhecimento acessamos?
Quem lemos? Quando lemos? Compreender se e como isso ocorre com
outras autoras, principalmente não-brancas e provenientes do sul
global, é uma tarefa de pesquisa urgente. Entender como a divisão
sexual do trabalho opera nesse processo é igualmente importante.
Nesse sentido, o que significa promover as mulheres no campo da
Produção do Conhecimento? Para avançarmos na construção de um
ambiente paritário de gênero, não somente em termos quantitativos,
mas também qualitativos, ou seja, para garantir que nós mulheres
estejamos nos espaços de produção do conhecimento, mas que
estejamos nos espaços de decisão sobre como vamos produzir, é
necessário abrir espaço para o debate sobre violência epistêmica, que
ainda é bastante rechaçado no ambiente acadêmico. Nesse sentido, um
relatório publicado em 2017 pela consultoria Elsevier demonstrou que a
distribuição das mulheres na ciência é desequilibrada, e que. embora as
mulheres sejam maioria nas universidades, em geral, elas não
coordenam estudos científicos, são menos convidadas para pesquisas
internacionais e não participam da gestão de financiamentos6. Assim, é
decisiva a observação de que a interdição objetiva a certos espaços não é
meramente quantitativa para que a luta das mulheres caminhe para a
construção de justiça a partir do reconhecimento das diferenças.
A compreensão de que sexo, raça e classe não podem ser analisados
separadamente segue a reflexão de Hooks e permite avaliar que a
desejável ampliação do campo de estudos feministas, que observamos
nos últimos anos, se relacionam, por um lado, com a implementação das
6 Ver: https://oglobo.globo.com/sociedade/mulheres-sao-maioria-nas-universidades-
mas-nao-coordenam-estudos-cientificos-23440708

22
Vendedora da Salgados, foto tirada na da Rodovia BA-528, Salvador, Bahia, 2018.
Foto: Paula Moreira.

cotas nos programas de pós-graduação em todo o Brasil e, por outro,


com o fortalecimento das lutas antirracistas e feministas amplificadas
pelo mundo, principalmente, a partir de 2014. Ou seja, se há algum
avanço ele decorre da luta popular. Algo mudou certamente,
conquistamos mais espaço. Mas se não compreendermos em
profundidade a materialidade das desigualdades, que nos violentam, os
retrocessos serão iminentes, principalmente, em tempos de clara
retiradas de direitos e autoritarismo.
Por fim, vale destacar a potência do movimento Escola em Transe no
enfrentamento e ampliação do debate das questões expostas nesta breve
reflexão. A Escola em Transe, enquanto um movimento que busca, a
partir da EAU/UFF, se preparar coletivamente e de forma solidária para
seguir na luta intransigente pela educação de qualidade e pela
Universidade Pública, tem buscado de forma consistente promover a
paridade racial e de gênero nos mais variados debates, com o objetivo de
reconstruir nossas imaginações e desejos sobre a Escola de Arquitetura e
Urbanismo da UFF, diante da pandemia e para além dela. Um privilégio
e uma alegria fazer parte disto!

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 23


o ensino de arquitetura e o projeto de brasil
Caio Nogueira 1
Agosto de 2020

A 15ª Roda de Conversa promovida pelo movimento Escola em Transe:


Formação, Cidade e Cidadania 2 trouxe ao debate a formação do
arquiteto e urbanista, os princípios norteadores do ofício e a capacidade
desse profissional em responder aos complexos desafios da obra, sua
fruição e presença no meio urbano.
Esses temas me reportaram às reflexões sobre o ensino dessa arte e de
sua base científica, presentes na tese de doutoramento, que completei
há exatos cinco anos: A Reforma Lucio Costa e o Ensino de Arquitetura e
do Urbanismo, da ENBA, À FNA (1931-1945). Tratava-se,
essencialmente, de compreender a Reforma no âmbito mais amplo de
suas intenções sociais, culturais, políticas e econômicas, que envolviam
o pensamento educacional, no Brasil da chamada “Era Vargas”.

Antecedentes e Desdobramentos

Historicamente, a formação do arquiteto parte de uma fundamentação


teórica, que, associada à prática do projeto, o diferencia dos antigos
construtores. Este processo tem origem na tendência à especialização do
conhecimento, que ocorria e ganhou velocidade em meio ao
desenvolvimento do comércio e o crescimento das cidades desde o
período do Renascimento. Os primeiros tratados fundadores do ofício
foram produzidos no século XV, e têm início com o De re aedificatoria,
de Leon Battista Alberti, escrito a partir de suas reflexões sobre a obra de
Vitruvius (Marco Vitruvio Pollione, séc. I D.C.) para, a partir delas e em
vista das demandas de seu tempo, estabelecer regras para a edificação e
a produção arquitetônica e do espaço urbano, ao fim da Idade Média,
notadamente, na região do Veneto e da Toscana.
Entretanto, o ensino de Arquitetura como hoje é conhecido, isto é,
ministrado de forma coletiva, em um espaço adequado e por meio de
1 Arquiteto e Urbanista (FAU/UFRJ). Mestre e doutor em Educação pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul. Atualmente, é professor adjunto da Escola de Arquitetura
e Urbanismo da UFF. Tem experiência nas áreas de Arquitetura e Urbanismo,
Infraestrutura Urbana, Ensino de Arquitetura e História da Educação.
2 A Roda de Conversa: Formação, Cidade e Cidadania foi realizada, por meio virtual,
em 14 de agosto de 2020, pelo movimento Escola em Transe, da EAU/UFF. O grupo
formado por professores, estudantes e técnicos da Escola de Arquitetura e Urbanismo,
até aquela data, já havia promovido quatorze outros encontros semanais, em que se
debateram temas relevantes para o futuro do ensino de Arquitetura e Urbanismo e da
realidade brasileira após a Pandemia. Na oportunidade, os debates se desenvolveram
a partir de comunicações dos professores e pesquisadores Raquel Rolnik (FAU/USP),
Margareth Pereira (FAU/UFRJ) e Caio Nogueira (EAU/UFF).

24
recursos pedagógicos sistematizados, iria se estabelecer apenas, em
1671, com a fundação da Academia Real de Arquitetura, em Paris, por
Luís XIV.
No Brasil, essa prática é ainda mais recente, e remonta à Academia
Real de Belas Artes, fundada por D. João VI, em 1816, quando da
presença da Família Real no Brasil. O conhecimento, antes transmitido
entre os membros das ordens religiosas, nos canteiros de obra ou nas
academias militares, passou a ser oferecido de modo regular pelo
método da escola neoclássica, então dominante na Europa, trazida ao
Brasil pela chamada Missão Artística Francesa.
Se me permitem um salto histórico desde esse período, que
compreende cerca de quinhentos anos, se considerarmos a matriz
renascentista de domínio clássico, passando barroco anticlássico
(segundo Giulio Argan) e o classicizante, reduzido, em seu esgotamento,
à condição estilística do ecletismo, chegamos ao século XX e à
arquitetura moderna. A reforma proposta por Lucio Costa em sua breve
passagem como diretor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), em
1931, é o marco inicial da reformulação do ensino que é até hoje
referência para os cursos de Arquitetura e Urbanismo no Brasil.
A Reforma é parte do movimento político, cultural e educacional, que
via novas possibilidades e demandas para o país que se urbanizava.
Pode-se dizer que, não apenas uma nova arquitetura buscava impor-se,
mas um novo modo de ver a cidade e de intervir sobre seus problemas.
No Brasil dos anos 1930, a industrialização era apenas um prenúncio,
mas a concentração urbana já se apresentava. Uma nova geração de
intelectuais e artistas entendia a criação do novo não apenas como um
fenômeno de originalidade formal ou linguagem artística, mas também
como parte de uma luta coletiva. O Estado passaria a desempenhar
papel de grande relevância, como mediador das diferenças sociais
existentes, mas também transformando a própria vida social, a partir de
suas bases. Uma nova classe dirigente, integrada por profissionais de
formação superior, ansiava por mudanças e contrapunham, à realidade
dada, novas propostas para a sociedade...
No campo educacional, ampliava-se o debate com vistas a uma nova
pedagogia voltada, não apenas para o ensino do cidadão e do trabalho
especializado, mas, para a formação de uma nova intelectualidade. As
Conferências Brasileiras de Educação, promovidas pela ABE,
desencadeariam as reformas do ensino secundário e universitário, a
criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, e a publicação, em
1932, do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova3. Esses debates

3 O “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, escrito em 1932 consolidava a visão


de uma elite intelectual, que, mesmo com diferentes posições ideológicas, vislumbrava
a possibilidade de promover o desenvolvimento da sociedade brasileira a partir da
educação. O texto foi redigido por Fernando de Azevedo, com a colaboração de outoros
intelectuais, entre eles, Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Cecília Meireles, a pedido do
próprio Getúlio Vargas, em Conferência da ABE, naquele ano.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 25


o ensino de ar qu itet u ra e o pro j eto de brasil
também repercutiram entre arquitetos e engenheiros atuantes em obras
e projetos que intervinham diretamente sobre o território, a paisagem e
a população das cidades. A educação tornava-se uma causa, e a
construção de um “novo homem”, seu objeto.
No Manifesto, paralelamente à preocupação em dotar de “caráter
científico” o plano de ensino, e ao fazer a crítica à “formação
excessivamente literária de nossa cultura”, propõe-se a defesa e
preservação da arte. Mas uma arte nova, mais voltada para seu
significado social. Este ponto de vista alinha-se aos conceitos
modernistas da produção artística, notadamente, quanto à nova
Arquitetura, em seu caráter coletivista, evidenciado por uma nova
estética. Mas essencialmente em valores éticos que expressavam
respostas à nova conjuntura, suas demandas, programas e funções.
A nova política educacional rompendo, de um lado, contra a formação
excessivamente literária de nossa cultura, para lhe dar um caráter
científico e técnico, e contra esse espírito de desintegração da escola, em
relação ao meio social, impõe reformas profundas, orientadas no
sentido da produção e procura reforçar, por todos os meios, a intenção e
o valor social da escola, sem negar a arte, a literatura e os valores
culturais. (Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, 1932).
Estes valores também fundamentavam a proposta inaugural de Lucio
Costa, quanto à reforma do ensino de arquitetura, e se refletiam em sua
visão sobre a formação do arquiteto. Educação, Arquitetura e Urbanismo
eram parte de um mesmo projeto de país, que se traduzia no ensino
desse profissional.
No plano internacional, esses três campos também passavam a
constituir fortes laços e diálogos estreitos, com o fim da Grande Guerra
(1914-18) e os esforços de reconstrução da Europa. São exemplos desse
período, em que uma nova educação colocava em discussão a cidade e
seus edifícios, a Bauhaus (1919), em Weimar e posteriormente em
Dessau (1925), na Alemanha; além de numerosas palestras de Le
Corbusier, difusoras do novo espírito, que divulgavam, divulgadoras da
arquitetura moderna na Europa, no Novo Mundo e no Oriente.
No caso brasileiro, e pelas mãos de Lucio Costa, ao rigor das linhas do
racionalismo europeu, acrescentavam-se os muxarabis e venezianas que
a aclimatavam à construção do Brasil colonial; os jardins de Burle Marx;
as peças da pintura, escultura e azulejaria de Portinari, Di Cavalcanti e
outros artistas. São esses elementos construtivos e de complementação
do espaço arquitetônico e urbanístico, que respondiam às necessidades
funcionais e de adequação ao clima tropical, à cultura e à paisagem
como elementos formadores de uma linguagem que se pretendia
nacional.
Paralelamente à Reforma, a arquitetura moderna se consolidava como
expressão da arte e da cultura, mas também como representação
simbólica de um Estado que visava afirmar-se como nacional e
reformista, e se associava ao movimento dos artistas e intelectuais, em
torno da modernidade, como antecipação do futuro. Essa confluência de

26
interesses, entre o poder constituído e a vanguarda artística, ocorreu no
Brasil por um raro encadeamento de fatores e circunstâncias que deu à
arquitetura moderna caráter oficial, em curto espaço de tempo.

Formação e Campo de Ação do Arquiteto


Contemporâneo
Hoje, como testemunhamos em nosso cotidiano, o Estado e as ações
de governo apontam para o esvaziamento do interesse científico e para a
negação da produção da arte e da cultura, direcionando-se para a
obviedade técnica e o vazio do pensamento. Estaria o arquiteto e
urbanista, diante deste quadro, apto a responder aos novos anseios? A
formação do arquiteto e urbanista é capaz de lhe fornecer os meios para
pensar a sociedade e projetar soluções para os problemas
contemporâneos?
Vale considerar que a formação do arquiteto não parece estar
concluída quando ele sai da faculdade, possivelmente é aí que começa.
Caso tenha adquirido, ao longo do curso, uma consciência crítica capaz
de refletir sobre a arquitetura e a cidade, suas determinações sociais e
históricas, poderá obter as condições para uma educação permanente e
acúmulo de conhecimento para o auto aprendizado. Com efeito, a
produção arquitetônica cria condições para uma educação continuada,
como demonstra a biografia dos bons arquitetos. Em suma, como em
muitos outros setores, o saber arquitetônico e a ideia de cidade estão
hoje muito além do que pode ser obtido nas escolas ou nos projetos de
futuro que nos assomam com frequência pelos meios de comunicação.
Cabe a nós refletir, pesquisar e manter viva a chama crítica de nossa voz.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 27


Desafios do planejamento para um novo ciclo
de lutas urbanas 1
Raquel Rolnik 2

Olá, boa tarde a todas e todos. Em primeiro lugar eu queria agradecer


muito a oportunidade. Fernanda já tinha me convidado, mas coincidia
com meu horário de aula. Então, esperei acabar o semestre para poder
contribuir com esta iniciativa que é muita oportuna. Está tudo de pernas
pro ar e é hora de repensar tudo! Muito bom estar nessa roda com o
Caio, que já fez uma super introdução, e com a querida amiga Margareth
que, já em vidas passadas, nos idos dos anos 1980, foi minha colega
professora na FAU PUC Campinas. Não sei se por conta da idade, estou
com 64 anos, ou por ter quase cinquenta anos de docência, comecei
com 18 no cursinho pré-vestibular, ou se é a pandemia mas, por alguma
razão, nos últimos meses, ao invés de ficar com o pensamento mais
conformado eu mergulhei numa linha mais questionadora, inclusive do
que produzi, pensei e fiz até agora. Queria fazer um balanço da minha
própria trajetória como urbanista e como docente. Eu nunca parei de
dar aulas, nem de ter envolvimento com política urbana em nível
municipal, estadual, federal. Ao longo dessa trajetória eu pude
acompanhar e participar muito intensamente das lutas nesse país, por
cidades mais justas e, no plano internacional, como relatora do direito à
moradia na ONU que me abriu possibilidades. Então o que trago aqui é
uma reflexão acerca da política urbana ativista, enfim, comprometida
com a ideia de justiça territorial e que marca o ensino do urbanismo em
várias escolas do país e o urbanismo como política urbana, como ação
do Estado. Acompanho a trajetória da UFF, da UFRJ, da UFMG, da UFBA,
da própria FAU-USP e outras.
Escolas que tem uma história, não apenas de ensino, mas de
engajamento no debate público sobre a política urbana. Temos um
caminho que foi percorrido, no qual eu também me incluo, do ensino
comprometido com uma práxis transformadora. Nós temos uma
trajetória, uma história que vou contar desde que eu comecei a
participar dela. No final dos anos setenta coincidiam as lutas pela
redemocratização brasileira com as lutas pelo reconhecimento de uma
parte da cidade, autoconstruída, sem a presença do arquiteto urbanista,
ou engenheiro, profissões ligadas à organização do território. Falamos
1 Texto produzido a partir da transcrição da comunicação oral de Raquel Rolnik na 15ª
Roda de Conversa, sob o tema “Formação, Cidade e Cidadania”.
2 Arquiteta e Urbanista (FAU/USP). Mestrado em Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP),
doutorado na Graduate School Of Arts And Science History Department - New York
University, EUA. Foi Relatora Internacional do Direito à Moradia Adequada do Conselho
de Direitos Humanos da ONU (2008-2014). Atualmente é professora Titular da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo (USP)

28
das centenas de milhares de hectares de periferias, favelas, espaços
autoproduzidos, grandes precariedades e escassos recursos públicos e
que, hoje, procuro denominar territórios populares. No âmbito da luta
pela reforma urbana nós fomos construindo uma espécie de renovação,
ao mesmo tempo fomos nos construindo enquanto movimento político,
pelo reconhecimento da existência desse território popular junto à
necessária relação com a arquitetura e o urbanismo. Reconhecer sua
existência – e resistência – é reconhecer as pessoas que habitam esses
espaços como sujeitos de direitos. Ao longo dos anos oitenta e noventa o
desafio no campo do ensino da arquitetura e do urbanismo era o da
inclusão territorial. Muitos profissionais entraram de cabeça nesta
pauta e experimentaram concretamente processos de urbanização de
favelas. O Rio de Janeiro, particularmente, tem uma rica trajetória nessas
práticas, das quais deriva uma linha presente até hoje: a da assistência
técnica. A arquitetura e o urbanismo têm que pensar junto, construir
com as pessoas dos territórios populares. Houve uma geração, da qual
eu faço parte, que tentou mudar a prática e o conteúdo dos instrumentos
de planejamento urbano.
A partir da entrada dos planos diretores no capítulo de política urbana
na Constituição, literalmente inserido no meio do caminho da
implementação da função social da propriedade, foram feitos muitos
esforços, para que o instrumental do planejamento urbano pudesse
contemplar não apenas a ideia da redistribuição de ônus e benefícios, o
caráter redistributivo da política urbana, mas também integrar os
territórios populares no próprio plano. Toda a ideia, por exemplo, de
zonas especiais de interesse social, as ZEIS, foi uma contribuição
técnica, teórica e prática que emerge nesse campo, assim como os
instrumentos de captura de mais valias imobiliárias no sentido de
constituir estratégias redistributivas nos planos. Então, houve um
esforço conceitual e político de renovação da prática, que vinha de uma
tradição muito marcada por uma perspectiva tecnocrática nos anos
setenta, da ditadura militar, na qual se constituiu a linguagem do
planejamento. Ela vinha das empresas de engenharia que elaboraram os
planos diretores para as prefeituras, e da linguagem do mercado
imobiliário. A formulação do léxico do planejamento urbano é desse
setor, por e para esse setor, e dentro da agenda da reforma urbana nós
procuramos denunciar essa prática pois não atendia, não resolvia, não
dialogava com a cidade real. A estratégia foi inserir, dentro dela,
aberturas para essa inclusão territorial. Esta é a ideia de ZEIS, captar
excedentes da produção da cidade do mercado imobiliário formal para
investir nas periferias, nas margens do plano. Isso se revelou na
participação intensa dos urbanistas no processo de definição do capítulo
de política urbana da Constituição; depois, para poder construir o
Estatuto da Cidade, os chamados “instrumentos da reforma urbana”
como as ZEIS e o solo criado, entre outros. Além das heroicas tentativas
de abrir o debate do plano para os moradores de forma ampla, mediante
processos participativos que incluíram audiências públicas,

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 29


Desafios do plane j amento para u m nov o ciclo de lu tas urbanas
conferencias da cidade, numa tentativa de constituir um espaço público
amplo de pactuação, para além do espaço institucional das Câmaras
Municipais. Nos últimos trinta anos essa foi a diretriz fundamental.
Minha indagação é para todos nós, aonde esta trajetória nos levou?
Onde estamos neste momento? Ora, a utopia da inclusão territorial no
interior da regulação do Estado, produzida ex ante por investimentos
públicos, não aconteceu. O que temos não foi a construção de um novo
modelo, mas não podemos jogar fora toda essa experiência, pois neste
caminho tivemos vários ganhos. A ideia de criar espaços nos quais seus
proponentes poderiam constituir suas próprias regras de configuração
urbanística correspondia a um pensamento utópico. Isso não tem
acontecido, mas as ZEIS tem sido amplamente utilizadas como
instrumento pelas comunidades nas lutas contra a remoção, pela
destinação de determinados territórios para moradia. Nossa experiência
de intervenção nos territórios populares não foi capaz de melhorar
significativamente suas condições, mas sim introduziu modos de projeto
colaborativos que resultaram em melhorias urbanísticas. Acho
importantíssimo reconhecer estes ganhos. Mas acho também que já é
hora de perceber o limite das ações voltadas para a regulação. É
necessário pensar a regulação urbanística em sua incidência sobre o
modelo de cidade, quando o motor da exclusão, o processo decisório
sobre os investimentos na cidade, as formas hegemônicas de acesso à
terra, inscritas e constituintes da regulação, não mudaram. O modelo
não foi rompido. Trata-se de uma primeira questão, junto a outra mais
importante: a colonialidade do pensamento urbanístico no seu
nascedouro e na sua continuidade. Não apenas a história colonial de
ocupação, mas a epistemologia acerca da cidade. É ela que define o
território popular como ilegal, informal, é ela que vai delimitar o
perímetro onde temos a ação do Estado diferente daquela do território
formal. Por isso discordo radicalmente de quem fala em “ausência de
Estado” no território popular. Pelo contrário, há uma presença de
Estado de uma forma discricionária, excepcional, que permite inclusive
que a PM entre nas favelas atirando. É o planejamento urbano que
estabelece os perímetros onde alguém pode entrar, com o pé na porta
sem mandato e matar. É o parâmetro urbanístico estabelecido pelos
planos que define os locais “fora da norma”, aglomerados subnormais na
acepção discriminatória do IBGE. Algo muito grave, um modo de
funcionamento político territorial da cidade marcado por fronteiras do
permitido e do proibido. Nossa pauta da inclusão territorial negou os
modos de produção do território popular na sua especificidade, ao
defini-lo como falta, como sub, como ilegal, como informal, e jamais
permitir que ele também pudesse ser visto de um outro prisma: o
vínculo das pessoas com o território, as matrizes culturais variadas,
deslocadas da matriz europeia ou norte-americana que forjaram
modelos de cidade.
Então, pra nós, a ideia de transformação das periferias é que elas virem
centro, sem indagar afinal, que modelo é esse? Esse tal modelo do

30
asfalto, dos automóveis, constituído de enclaves e muros, nega a
existência de um sítio natural, aterra e tampona rios e lagoas. As
características desse modelo, mais ligado à morte do que à vida,
sustentam uma extração ilimitada dos recursos naturais e a
rentabilidade do espaço construído. Um modelo que não foi desenhado
para a proteção da vida! O problema é que nesta trajetória nós acabamos
não questionando esse modelo. Pelo contrário, sempre o reafirmamos
ao reivindicar que fosse estendido para os territórios populares. Me
parece que esse é o ponto cego. Nós, da área de planejamento, podemos
assumir esse desafio imenso, questionar a taxa de ocupação, o
coeficiente de aproveitamento, ou os recuos. A quem servem esses
parâmetros? E, sobretudo, que modos de vida eles condenam à
destruição, numa situação de transitoriedade permanente sujeita a
negociações eleitorais. Trago essa questão porque me parece que a
renovação do pensamento e do ensino da arquitetura e urbanismo
merece um questionamento profundo se quisermos ter, de fato, alguma
incidência na produção do território popular, onde estamos perdendo
para os milicianos, os mercados ilegais, as religiosidades ligadas à
prosperidade, enquanto não temos linguagem, enquanto não temos
metodologia, enquanto não temos presença para poder trabalhar esses
territórios numa outra direção. Enfim, esta é minha provocação para
nosso debate hoje.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 31


O campo da arquitetura e do urbanismo e
as expansões e crises globais: Atualizações
necessárias 1
Margareth da Silva Pereira 2
A experiência da Escola em transe vem sendo uma espécie de “câmara
elástica”, às vezes mais reduzida, às vezes mais ampliada, que está
permitindo vários cruzamentos entre aqueles que pensam cidades e
cidadania, debatem sobre a força dos movimentos políticos, culturais e
sociais, ou se interrogam também sobre as mudanças no perfil da
formação nas áreas de arquitetura e do urbanismo.
Que arquitetos fomos e somos, quais temas foram e guiaram as
práticas dos arquitetos e urbanistas e perderam sua potência em
diferentes momentos mas, sobretudo, que arquitetos queremos formar
são as perguntas que originaram esta mesa à qual agradeço aos
organizadores em poder participar. Três temas indissociáveis portanto
percorrem as reflexões esboçadas aqui: Formação, cidade e cidadania.
A questão que sublinho nesta “Roda de Conversa” é o que nós,
envolvidos com a questão da universidade, do ensino e da cidadania
temos feito? E o que pensamos? O que essa situação pândemica, que é,
ao mesmo tempo, absurda em relação ao número de mortes que atinge,
em relação ao despreparo de autoridades, em relação às assimetrias de
direitos civis e urbanos que expõe ou, enfim, em relação a ideia de
tempo em suspensão que se vive, pode trazer de insumos para se pensar
sobre nossas práticas, enfrentá-las e, eventualmente, fazê-las tomar
outros rumos?
Recentemente, em 2018, comprei um exemplar do Journal of
International Affairs editado pela Columbia University, dedicado à
“Quarta revolução industrial”. Comprei a publicação, o volume nº72 da
revista, pensando: “- enfim, uma grande universidade do mundo, não à
toa, americana, fala de uma quarta revolução industrial, uma vez que os
europeus identificam geralmente uma segunda, e uma terceira...”
De nossa parte, vimos repetindo, há pelo menos vinte anos, que,
quando se estuda a história das cidades, e com elas nossas profissões de
arquitetos e urbanistas, percebem-se com clareza os momentos em que
os saberes urbanos foram criados, acionados ou deixados em segundo
1 Texto produzido a partir da transcrição da comunicação oral de Margareth da Silva
Pereira na 15ª Roda de Conversa, sob o tema “Formação, Cidade e Cidadania”.
2 Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-UFRJ(1978), graduação
em Urbanismo pela Université de Paris VIII (1979), DEA em Etudes Urbaines (1984) e
Doutorado (1988) pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1984).Atualmente
é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Atua no Programa
de Pós-graduação em Urbanismo - PROURB desde 1999, do qual foi coordenadora entre
2013 e 2016.

32
plano. Pode-se constatar tanto que a globalização tem uma história,
quanto como se vem dando certa história dos embates e ajustes do
capital, do trabalho e do capitalismo ou das formas de definir a prática
da arquitetura.
No Brasil, a história, por exemplo, do setor das comunicações; da
implantação das redes de luz, água, gás, transporte, telefonia,
saneamento; do vocabulário das cidades e das metrópoles; da
emergência de certos programas arquitetônicos e urbanísticos e das
mudanças nos regimes formais e de gosto mostram que não estamos na
quarta revolução industrial.
A história das estatísticas, das formas historicamente diferenciadas de
associativismo ou, enfim, da história das crises econômicas, das lutas
sociais, os tempos das ditaduras, das prisões, dos exílios, das
perseguições políticas, das imigrações e das migrações mostram que em
um campo de forças heterogêneas e em conflito, estamos no sexto ou
oitavo tempo de crise e de rearranjo social.
De todo modo, seis ou oito tempos, ao longo dos quais, caminhando
em determinada direção - conseguindo conquistas, como disse Rachel...
pois temos conquistas - de repente tudo freia, tudo desanda, tudo
desmonta e se desfaz.
No Brasil, no Rio, em duzentos anos, desde a fundação de academias
de belas artes, e como professores de arquitetura, e mais tarde de
urbanismo, quantas vezes tentamos criar novas epistemologias, novas
práticas de ensino e quantas vezes esse processo foi interrompido? O
próprio Grandjean de Montigny, por exemplo, entendeu que não podia
operar por modelos trazidos de sua formação europeia. Joaquim
Lebreton, o chefe da chamada missão francesa de 1816, defendia uma
democratização da universidade que não possuía, à época, caráter
universal. As universidade não eram abertas nas cidades europeias e não
podiam estudar nelas judeus, mulheres ou filhos de comerciantes, por
exemplo.
Grandjean, portanto, um dos criadores da primeira escola de
arquitetura no país, em seu exílio político no quadro da “globalização”
de fins do século XVIII e inícios do século XIX, se instalará no Rio
trazendo uma noção de ornamento, uma noção de arquitetura, uma
noção de cidade pensada e feita para príncipes. Mas vai percebendo
seus limites e mudará suas formas de ação, de professorado, de
arquitetura e de concepção. Seu percurso é fascinante e não menos
relevante, por seu alcance político e por poder observar, inclusive, como
a noção de “público” passa a fazer parte de sua obra.
Nesse primeiro momento de globalização, no caso com a instalação da
corte em 1808 e 1831, ou a partir de 1822, com a Independência,
observa-se uma nova organização geopolítica dos Impérios que vinha
do século XVIII. Assim, Espanha e Portugal os grandes impérios
europeus entre os séculos XVI e XVIII cedem espaço para uma
afirmação, a partir daí, da Inglaterra, juntamente com a Escócia, e da
França, mas também do império austro-húngaro e, com isso, inclusive,

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 33


O campo da ar qu itet u ra e do u rbanismo e as expansõ es e crises globais
outros regimes de saber-poder e outras formas de colonialidade. O Brasil
não é uma ilha e o Rio, o município da corte, a Academia Imperial, a
arquitetura estão no bojo dessa reorganização. Lembre-se que Pedro I
era cunhado de Napoleão, Leopoldina arquiduquesa da Áustria e, nesse
primeiro tempo ainda se sonhava com a possibilidade de um império
luso-espanhol, muito maior do que aquele que seria o Império do Brasil.
E o Brasil neste novo cenário de reorganização? Neste segundo grande
período de globalização que poderia situar-se entre 1843 e 1875 qual a
sua posição? No caso do Rio e no campo do que se chamaria, mais tarde,
urbanismo, pode-se dizer que na década de 1850 tanto ampliam as
visões territoriais e sobre a própria questão da mudança da capital
quanto as questões de embelezamento urbano, de circulação e
transporte, quanto de justiça social e de investimentos na imagem da
cidade.
Pode-se citar, por exemplo, além da ação dos engenheiros da Câmara,
como Beaurepaire Rohan, uma forte atratividade de profissionais
estrangeiros. Na Academia Imperial, Manoel de Araújo Porto Alegre
pode ser citado em seu esforço no sentido de refletir sobre as condições
do curso de arquitetura e qual o seu sentido no Brasil daqueles anos.
Um estudante de arquitetura deveria ficar desenhando templos gregos
e romanos? Teria que desenhar o Pantheon ou, sobretudo, olhar o que
está à sua volta? Para ele, se o estudante não tem o exemplo das
construções grandiosas, deve observar o entorno do que vive e vê. Olhar,
a cidade - lembre-se que Porto Alegre foi vereador - olhar a natureza,
olhar as ruas, estudar a vida como ela se dá.
Depois da morte de Grandjean de Montigny, em 1850 e fracassada a
Reforma Pedreira, da qual faz parte Porto Alegre, as graves epidemias -
cólera e febre amarela -, trazem os médicos para o primeiro plano do
pensamento sobre a arquitetura e sobre a cidade, levando-os à própria
direção da Imperial Academia de Belas Artes. A posição de prestígio que
a medicina alcança nesse sistema alterará completamente a percepção
do mundo social quanto ao perfil do arquiteto e, em relação ao
momento precedente, diminui o reconhecimento de suas contribuições
para uma “ arquitetura da cidade.”
A Alemanha inicia sua industrialização a partir dos anos 1870, quando
passa a competir , intensamente, com a Grã-Bretanha e a França no
processo de expansão de suas economias e de suas visões de
arquitetura, mas também de exportação de seus saberes técnicos e
artísticos. Os estados nacionais tomam sua forma plena e seu nível de
progresso também passa a ser medido pela imagem das suas cidades,
sobretudo suas “capitais”. O que significa uma certa ampliação do espaço
profissional dos arquitetos, mas, sobretudo dos engenheiros.
As fantasmagorias do capital ganham os lares, as famílias, o
vocabulário das ruas. As cidades começam seu processo de expansão e
o esgarçamento do tecido social passa a ser visível. São tempos de
exacerbação da pobreza, da exclusão e torna-se “difícil ser pobre no Rio
de Janeiro” - como criticamente aponta Luiz Rafael Vieira Souto em

34
relação às propostas reunidas em um grande plano para a cidade,
apresentadas entre 1874-75 pela “Comissão de Melhoramentos.”
A unificação da Itália (1861), a guerra do Paraguai (1864-1871), a
guerra franco-prussiana e a unificação da Alemanha (1870-1871)
servem de termômetros de alguns dos ajustes macro-políticos. Por que
esses fatos interessam os que estudam arquitetura e urbanismo, a
cidade e formação profissional? Porque, nesse segundo tempo da
história do impacto do liberalismo e da “abertura” de fronteiras - nesse
segundo tempo da globalização e da história moderna das cidades sob o
capitalismo como doutrina econômica - o Brasil recebeu centenas de
milhares de imigrantes excluídos de muitos países. Com todas as letras,
passa a ser tematizada a questão da pobreza, dos excluídos, dos
despossuídos, dos “sem teto” e o mundo do trabalho passa a ser melhor
analisado seja o das relações escravagistas, o do trabalho remunerado, o
dos imigrantes e sobretudo como gerar trabalho e renda onde falta.
No Brasil, a pobreza, ainda que ele não utilize essa palavra, já havia
começado, em 1843, a chamar a atenção de Henrique de Beaurepaire-
Rohan. Em seu relatório sobre a cidade, ele considera que na cidade do
Rio de Janeiro, as autoridades deveriam construir um edifício de
alojamento para abrigar essa população que carece de abrigo e regular o
valor dos aluguéis, que haviam disparado já por volta de 1840. Em 1874-
1875 é Luiz Rafael Vieira Souto que se contrapõe ao modelo liberal de
cidade que se deseja implantar e já começava a ser visto como modelo.
Suas críticas sobre os rumos da urbanização do Rio de Janeiro pode ser
seguida por quase dois anos nos jornais da época.
O terceiro grande período de globalização (1890-1914), pode ser
situado quando a Alemanha unificada busca se impor, com tecnologias
em torno da eletricidade e de motores, na cena internacional lado a lado
dos Estados-Unidos que vinham promovendo, desde os anos 1870, uma
política “pan-americanista” . Será impossível de se tratar no âmbito
desta conferência, este terceiro momento bem como os três outros
seguintes quando se observa grande aceleração nas trocas
transnacionais, isto é nas trocas sobretudo entre cidades.
A literatura sobre este terceiro tempo é bem mais extensa do que a
precedente e entre nós se sobressaem as reformas do Rio de Janeiro,
com Lauro Müller à frente do Ministério da Viação e Obras Públicas e
Pereira Passos na Prefeitura do Distrito Federal. Ao lado da
modernização do porto, da abertura de bulevares e da construção de
grandes equipamentos públicos - Biblioteca Nacional, Teatro Municipal,
Escola Nacional de Belas Artes, Polícia Federal - lembre-se das revoltas
populares em torno da moradia e da vacina e que o papel dos arquitetos
ainda aqui é secundário.
Estamos em tempo dos primeiros automóveis e da telefonia nas
cidades e o Rio de Janeiro, a despeito de suas grandes obras, começa
também, como resultado da competitividade entre empresas
prestadoras de serviços de eletricidade a perder seu protagonismo.
Desacelera o ritmo da atividade industrial e comercial com a

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 35


O campo da ar qu itet u ra e do u rbanismo e as expansõ es e crises globais
modernização do porto de Santos e com a rapidez que os serviços da
Light se implantam e passam a estimular a industrialização da cidade de
São Paulo. O caso desta concessão no Rio, sendo infinitamente mais
complexo. Nasce contudo a ideologia da cidade maravilhosa, prestadora
de serviços, cujo ícone é o serviço do teleférico do Pão de Açucar.
Resumidamente, o quarto momento de revolução e rearranjo das
cidades sob impacto das novas tecnologias e nas nossas profissões foram
os anos 1918-1940, ou entre 1922 e 1945, se quisermos. Pensem no papel
do radio e da aviação nesses anos uma vez que os recortes temporais são
sempre artifícios e as datas aqui servem sobretudo para balizar inflexões
e ressignificações no campo dos saberes urbanos e na vida social das
cidades.
De todo modo, no período entre guerras, a partir da famosa febre
espanhola, vemos desfilar no Rio, mais agora também em São Paulo ou
em Recife, uma série de gestos no campo dos saberes como a fundação
da Universidade do Brasil, por exemplo, ou gestos urbanísticos como a
demolição do Castelo e a contratação do plano Agache ou ainda gestos
políticos, como a revolta paulista de 1924, a Coluna Prestes, a Revolução
de 1930, a Constituição de 1934, o golpe do Estado Novo de 1937.
A tentativa de reforma da Escola Nacional de Belas Artes em 1931 e
como já tratado aqui por Caio Nogueira, a criação da Universidade do
Distrito Federal (1935) colocam os arquitetos em uma posição, agora, de
destaque. Em seu Curso de Urbanismo (1937-1939) formaram-se
Carmen Portinho e Paulo de Camargo, por exemplo. Camargo será um
dos criadores da Escola de Engenharia de São Carlos, da USP e, entre
outros, foi quem convidou e deu as condições para que Vilanova Artigas
fizesse, anos mais tarde, a FAU-USP. Engenheira e arquiteto, cujas
histórias - intelectual, estética e política- , precisam ser estudadas, para
se compreender que suas lutas são individuais e coletivas, e, em grande
parte, hoje ainda também são nossas.
A Universidade do Distrito Federal foi uma das criações mais
inteligentes dos anos 1930. Concebida por Anísio Teixeira e por um
grupo de intelectuais e artistas - de Cecília Meirelles a Lúcio Costa, de
Portinari a Villa Lobos e Mario de Andrade - e por todos aqueles que
naquele momento discutiam o que era educar e sobretudo o que era
educar transversalmente, olhando para o que estava mais rasteiro, mais
próximo, mas também de baixo pra cima.
Anísio Teixeira acreditou que sequer era necessária a concepção de
um campus universitário. A UDF ocuparia os edifícios que eram
próprios da União e a universidade estava, assim, diluída na cidade. Se
alimentava da cidade. Getúlio Vargas fechou em 1939 a UDF.
Desmantelou o curso de urbanismo, desmantelou perspectivas de
ensino que demoraram a vicejar de novo.
Contudo, pensem como certas lutas que se perdem são retomada.
Pensem na Universidade de Brasília, no quinto tempo desses rearranjos,
mais ou menos entre 1955 e 1968. Tempos da televisão, dos satélites e
naves espaciais e dos primeiros computadores. Pensem no percurso de

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um Darcy Ribeiro e na concepção de um plano de universidade
autônomo, pleno, potente, crítico, atento à diversidade de culturas, que
se tem no Brasil.
Hoje, filhos de um sexto tempo global de terremotos e rearranjos,
somos outra geração, que deve construir suas reflexões, suas utopias.
Este é o desafio. Temos conquistas, é claro. Houve uma democratização
do espaço universitário. O aluno da universidade de hoje não é o aluno
da universidade pública de trinta anos atrás. Contudo, repensar a
densidade da história da própria cultura profissional, inseri-la em
histórias que nos fazem e são, para além das nações, histórias
planetárias, talvez auxilie a escolher o que se quer manter pulsante.
Isto significa começar pelo problema da formação. Há um bem que
ninguém tira de ninguém, que é a formação de cada um. E a formação
não é um valor. Não é um acúmulo de informações, mas é a capacidade
reflexiva e crítica. E no presente lembrei-me do tempo de Grandjean de
Montigny e de sua visão sobre a dimensão pública da arquitetura.
Estamos vivendo os efeitos violentos do último tempo de mutações e
embates nas relações entre saber e poder desde 1988, quando arquitetos
e urbanistas foram chamados mais uma vez para contribuir com o que
possuem de pensamentos técnico na construção das cidades. Não se
cogitou falar em música ou poesia ou aproximar arquitetos e urbanistas
de filósofos epicuristas. Mas é a contribuição humanística que demanda
atenção neste momento e em tempos de crise parece ser isso que, numa
torsão do corpo como ensinam os antigos, nós os discóbolos modernos,
temos que continuar lançando para o futuro.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 37


Experiência Italiana: formação sem fronteiras

Leticia Lyra Acioly 1


Entre os anos de 2014 e 2015 tive a oportunidade de participar do
programa de intercâmbio do governo federal “Ciência sem Fronteiras”.
Por meio dele, eu e mais alguns colegas da Escola de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) iniciamos a
aventura de morar em Roma, na Itália, por um ano. O programa
financiava as nossas passagens, o seguro saúde, os auxílios locação e
para a aquisição de equipamentos eletrônicos e concedia bolsas que
garantia o nosso sustento e conforto durante a estadia. Além disso,
especificamente para esse edital, a exigência da língua italiana era
mínima, o que garantiu a nossa participação em aulas de língua italiana
na Universidade que nos recebeu (Università degli Studi Roma Tre),
antes mesmo que as aulas na faculdade de arquitetura começassem.
Em um primeiro momento, o contato com os outros alunos brasileiros
se deu durante as aulas de italiano, no Instituto de Letras, que
aconteciam durante um turno inteiro e se assemelhavam com a nossa
realidade: poucos alunos por turma, proximidade e boa relação entre
alunos e professores, além das possibilidades de confraternizações e
passeios guiados organizados pelo próprio instituto.
Esse cenário mudou bastante quando as aulas na faculdade de
arquitetura começaram. Turmas com um número de alunos bem maior
ao que estávamos adaptados; em algumas disciplinas de projeto
arquitetônico ou urbanístico o número de estudantes era próximo de
100 e os grupos passavam de 30 pessoas. O acesso e contato com os
professores eram muito escassos. E o ambiente era pouco amigável com
aqueles que vinham de fora.
Talvez o maior impacto dessa experiência tenha sido o convívio
acadêmico e a comparação imediata que fazíamos com a nossa alma
mater. É estranho chegar em um lugar em que somos pouco queridos,
onde o sentimento de competição é imperativo, o contato com o
professor é raro e a relação é extremamente hierárquica, além da
ausência de um movimento estudantil que exista para incomodar, para
minimamente questionar a ordem ali estabelecida.

1 Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista BIC/UFF de


2013 à 2014, novamente de 2015 à 2016 e voluntária até o ano de 2018 no Laboratório
de Pesquisa Arquitetura da Violência sob orientação da professora Sônia Maria Taddei
Ferraz. Monitora no ano de 2017 da disciplina de Teoria e História da Arquitetura I,
ministrada pelo professor Juarez Torres Duayer. Atualmente participante do Grupo de
Estudos e Pesquisa em Ontologia Crítica da UFF, coordenado pelos professores Paulo
Henrique Furtado de Araújo e Mario Duayer de Souza e colaboradora do Projeto de
Pesquisa “As categorias fundamentais para o entendimento da estética na obra de Georg
Lukács”, coordenado pela professora Cristina Lontra Nacif.

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No entanto, esse ambiente acadêmico italiano dentro da faculdade de
arquitetura possibilitou um maior envolvimento entre os próprios
brasileiros que estavam lá, além de uma reflexão mais ampla sobre as
condições acadêmicas no Brasil. Se, no Brasil, conseguimos constatar
com facilidade o quanto as escolas e faculdades de arquitetura são
ambientes elitistas e segregadores, isso não é diferente no continente
europeu, ou pelo menos, no território italiano, onde até mesmo as
universidades públicas são pagas. E isso se reforça no estereótipo do
estudante de arquitetura pouco interessado nos conflitos de nossa
profissão e sociedade, porque está mais preocupado com questões
formais de representação do seu projeto.
Dizem que às vezes é necessário certo afastamento para
apreendermos melhor o que é nosso. Foi através dessa experiência que
confirmamos nossas limitações e nos apropriamos da nossa identidade,
daquilo que somos e fazemos melhor. Compreendemos que uma boa
infraestrutura de estudo é importante, que um desenho técnico bonito e
bem feito complementa e dá força ao nosso trabalho, mas esses pontos
sozinhos não dão conta da complexidade de nossas discussões, das
nossas lutas e das nossas urgências. O nosso campo de disputas é maior
e apresenta muito mais possibilidades que a antiga estrutura europeia.
Obviamente isso não sugere uma afirmação de nossa “superioridade” ou
uma “romantização” do que vivemos, mas demonstra o entendimento
da realidade na qual desenhamos a nossa formação, exorta o famoso
complexo de vira-lata e nos convida a refletir de maneira mais profunda
a complexidade da sociedade brasileira.
Nesse sentido, só podemos lamentar imensamente pelo fim de um
programa que deveria ter sido mantido e ampliado. Sua abrangência
dentro de determinadas áreas do conhecimento foi pouca e seletiva,
ainda mais se compararmos todas as possibilidades que existem, todas
as áreas de atuação do ensino, pesquisa e extensão em nosso território. E
o que parecia ser o início de novas costuras, de novos encontros, redes e
possibilidades, se encerrou em um momento da história no qual cada
vez mais se avança rumo ao retrocesso e à negação de direitos
conquistados sob muita luta, durante anos.
Quando compreendemos a importância de programas como “Ciência
sem Fronteiras”, compreendemos igualmente que a sua relevância
ultrapassa uma formação puramente técnica com experiência
internacional, ela avança na formação de seres humanos que
minimamente tendem a olhar o mundo de maneira mais humana e, ao
fazer isso, retornam seus olhares ao ponto de onde partimos com muito
mais compreensão e seriedade.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 39


O passado tem futuro? pode ser? - as nossas
novas e velhas formas urbanas na cidade
contemporânea

Thereza Christina Couto Carvalho 1

Trabalho em ensino, pesquisa e extensão, com os temas morfologia


urbana, espaço público e ordenamento territorial. Adoto ‘Utopias,
Desejo e Fruição’ como premissas motivadoras da configuração urbana -
definem as lentes através das quais olhamos, nos vemos, e interagimos
com a cidade. Utopias sobre cidade e sociedade, relações de poder e
formas de governança, foram formuladas por diferentes autores. Aponto
Platão, e a sua concepção de ordem perfeita; Aristóteles, e a sua
concepção orgânica de fazer cidade; Thomas Morus no séc. XVI, e a sua
proposta de dar limites ao poder do rei; todos os chamados socialistas
utópicos do séc. XIX, suas concepções de reforma da sociedade e seus
modelos espaciais; a utopia modernista rodoviarista de Corbusier, no
séc. XX, da segregação espacial funcional como critério de ordem; a
proposta pós moderna de François Acher, no séc. XXI, e seus ‘princípios
do novo ‘humanismo’, aos quais chamou de urbanismo (!), baseado no
desempenho, no individualismo e na competição.
Para além desses acima citados, muitos outros escritores, romancistas,
poetas, pensaram a cidade a partir do olhar e dos espaços onde viviam.
Suas relações com vizinhos, afetos, famílias, emprestaram atmosferas
específicas, diversas, fizeram lugares e personagens.
Com esses me alinho, pensando a cidade que nos contempla, através
dos olhos dos vários personagens que somos, diferentes papéis que
assumimos, todos os dias.
Trato, portanto, de formas de fazer cidade a partir das nossas utopias
individuais, para além dos planos e projetos arquitetônicos urbanísticos.
Chamo isso de capital genético do (nosso) espaço público.
Estudo Espaços Públicos, praças e ruas, como articuladores de
vitalidade e centralidades urbanas, com foco nas bordas internas à
cidade. Estudo bordas como espaços de permissão e transgressão, onde
a forma urbana é configurada, e reconfigurada, todos os dias, com as
nossas práticas cotidianas de ver e escolher caminhos, de nos vermos e
nos relacionarmos com certos objetos no espaço, e com outros não, de
1 PhD em Desenho Urbano pela Oxford Brookes University (antiga Escola Politécnica
da Universidade de Oxford) onde se doutorou em Desenho Urbano, em 1994. É Arquiteta
e Urbanista, desde 1975, pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Santa Úrsula,
USU, no Rio de Janeiro, e Mestre em Planejamento Urbano e Regional, desde 1980,
pela COPPE/UFRJ, Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Professora Titular de Urbanismo na
Universidade Federal Fluminense, desde 2001.

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consumirmos e produzirmos alguns serviços e mercadorias com rotas
específicas de localização e circulação na cidade.
Como fazemos cidades? Primeiramente com o nosso olhar,
contemplando o que é singular, o que nos desperta desejo de estar e
ficar, de degustar, usufruir. Em sequência, a fruição consumada é
agregadora de novos olhares, outras perspectivas, outros usos, acolhe
práticas socioespaciais das quais extraímos, ora o sustento, ora a
diversão. A consolidação dessas práticas, individuais ou coletivas, e
cumulativas, quando ocorre, sob certas condições, faz formas urbanas,
vincula afetos, subjuga a ação, cria significados e identidades. Em
conjunto, constituem ciclos orgânicos de configuração, entrelaçados
com nossas vidas. Ciclos que se repetem enquanto processo, embora
sempre diverso nas criações, pulsam ou repulsam, sempre, ininterruptos
– sob certas condições.
Com o tempo, quando permitido, tornam-se tradições, passam a
emprestar valor de mercado ao lugar e aí... Aí é que mora o perigo.
Surgem condomínios privados, modelos de outro viver, privatizadores
de fragmentos do espírito público do lugar, segregadores, na contramão
do coração de bairros gostosamente lentos, coloridos, diversos, atraentes
para diferentes olhares, degustáveis. Cabe ao setor público, que nos
representa, regular para manter o processo de configuração urbana, que
é público. o potencial de gênese do lugar, vivo e atender ao nosso desejo
legítimo de nos preservarmos.

O bairro de Botafogo: ilustração dessa perspectiva

Uma vez borda externa da cidade, ainda é marcado pela presença do


cemitério, equipamento implantado para conter o crescimento da
cidade naquela direção. E, desde então, o baixo valor da terra,
decorrente dessa vizinhança, atraiu moradores de classe média,
comércio local de pequeno e médio porte. Assim, foi se configurando a
rua Voluntários da Pátria, rua de serviços, complementar à nobreza da
rua São Clemente com seus casarões aristocráticos em seus grandes
lotes, não mais residenciais, cujas dimensões atraíram, para si e
vizinhanças, outra escala de negócios, empresas, centros culturais,
escolas, hospitais e investimentos públicos, que lhe fizeram corredor de
passagem, túneis, viadutos e finalmente o metrô.
A existência de uma multiplicidade de “personagens”, com suas
heranças, perspectivas, potencial criativo, tecem, simultaneamente, suas
vidas em um dado espaço da cidade. A valorização dos nossos percursos
pedestres, que ligam, em rede, as centralidades de diferentes
hierarquias, revelam fluxos e práticas que nos materializam no espaço.
Alimenta e preserva a diversidade que atrai o olhar, favorece a agregação
de usos, de escalas variadas de espaço, tempo, negócios, assim como,
potencialmente, a consolidação de diferentes padrões espaciais de
ocupação. Tudo isso Botafogo tem.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 41


O passado tem f u t u ro? pode ser ?

A transição entre diferentes escalas – físicas, temporais e sociais,


envolvendo diferentes portes de atividades e negócios – é outro
importante atributo da riqueza morfológica do bairro.
Talvez seja adequado explicar de que espaço público estamos falando
– aquele que constitui nosso bem de uso comum. Tem entre seus
atributos físicos essenciais a singularidade atratora que o distingue na
malha e que, nessa qualidade, permeia as margens estimulando
negócios, respeitadas certas escalas, usos mistos e práticas sociais
variadas, atraem outros usos compatíveis e complementares que por sua
vez reforçam a singularidade que os destacou em primeiro lugar.
O bairro em questão foi objeto de estudo para avaliação final da
disciplina de Morfologia Urbana, do programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.
A leitura urbana daquele trecho da cidade foi feita a partir de espaços
públicos singulares, tipologias, usos e funções, com destaque para as
formas de ocupação das suas bordas. Buscou-se identificar a
repercussão das suas características constitutivas espaciais, e suas
singularidades atrativas, sobre a vitalidade, os usos e as ocupações
daqueles espaços singulares. Buscou-se, também, entender as redes de
conexões observadas que esses espaços singulares, com frequência
geram entre si, sob certas condições. A leitura do bairro apoiou-se no
método de leitura de bordas desenvolvido pela professora da disciplina
(eu), consolidado no meu relatório de pós-doutorado, publicado sob a
forma de capítulos, e artigos, alguns com parceiros que colaboraram nos
testes e aplicação, em 2009, 2012, 2014, 2017. O trabalho final da
disciplina, tratou do bairro de Botafogo, e foi publicado, artigo completo,
nos anais do Congresso PNUM, 2019, escrito com as alunas A. Silva, A.
Pagano, D. Teixeira e K. Souza.
Adoto como primeira categoria analítica - singularidades atrativas -
entendida como atributo de um dado espaço público, percebido como
‘chamariz’ para certos usos e formas de ocupação, ao nível do pavimento
térreo das ruas que definem as suas respectivas bordas (margens). São
articulados em rede, e apresentam complementaridade entre esses
espaços conectados. Efetivamente atraem múltiplos usos e atividades
complementares, fonte de animação, induzindo o crescimento e
reforçando o tecido urbano. Revelou-se uma tendência à perpetuação,
ou seja, a geração de atração pela singularidade induz novos
investimentos, que por sua vez reforçarão as singularidades e o seu
poder de atração.
A identificação das distintas temporalidades, cujos vestígios marcavam
a forma urbana de diferentes maneiras, ajudaram a compreender a
evolução dos atributos atrativos que deram início e continuidade à
dinâmica existente no espaço público. Contudo, a identificação do
processo de sedimentação interativa (dinâmica) das temporalidades não
foi óbvia. Mapas, textos, expressões artísticas diversas, regulamentos de
construção e uso, assim como outras alterações nas feições do território

42
contribuíram para a construção de hipóteses sobre as forças de
configuração. Focalizaram interações (entre si e com o território),
dinâmica de evolução e lógicas de localização espacial das
singularidades atratoras, nas dimensões qualitativas contempladas pelo
método – morfológica, da natureza, social, cultural, econômica,
institucional e de acessibilidade.
A exploração dessas hipóteses se mostrou útil para o entendimento
dos processos de troca atuantes na formação da vitalidade local e
auxiliou na leitura da gênese do tecido urbano e da sua morfologia.
Contribuiu, também, para esclarecer a rede de conexões que se forma
por relações percebidas de complementaridade entre os espaços
públicos, as apropriações gradativas e cumulativas dos seus atributos
singulares atratores, que se expandiram pelos percursos de interligação.
Em tempo, uma particularidade para qual vale chamar a atenção do
leitor. A estação do metrô... Ah a estação do metrô em Botafogo,
associada à “lei do álcool Zero”, fez das bordas da estação do metrô uma
centralidade importante no bairro, chamou a atenção da cidade,
atravessou a praia, ampliou seu patamar de atração para além das
bordas cariocas da Baía de Guanabara. Foram chegando e ficando.
Estágios distintos de consolidação da forma urbana, do transitório ao
edificado, são observáveis configurando as margens da estação do metrô
entre as ruas Voluntários da Pátria e São Clemente.
Os funcionários, empregados desses negócios ‘alimentaram’ o bairro
com seus salários e encontros ao fim de turnos de trabalho,
engendrando a formação de múltiplas centralidades, com várias
singularidades atratoras, entre livrarias, cinemas, cafés, bares e lojas
variadas.
O Bairro de Passagem tornou-se, até à pandemia, ‘Bairro de Ficagem’
com reconhecimentos manifestos, singularidades atrativas, em
diferentes dimensões, agregadoras para distintos grupos sociais,
consolidáveis em formas urbanas múltiplas e diversas.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 43


ESCOLA EM TRANSE: HABITAR O CENTRO, MORAR É
CENTRAL

Pedro da Luz Moreira 1

No último dia 25 de setembro de 2020, foi realizado dentro do


movimento pertencente à Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF –
Escola em Transe – o encontro: “Habitar o Centro, Morar é Central”, com
a participação das arquitetas Helena Galiza, Raquel Lejtreger e de Pedro
da Luz Moreira. O debate abordou a delicada questão sobre a
compreensão do valor cultural da produção habitacional para as
cidades, e a sua centralidade no campo da arquitetura e urbanismo. Um
tema importante nessa atual conjuntura de persistente permanência do
discurso neoliberal, que tanto prejuízo vem causando às cidades no
Brasil, e em todo o mundo2. As apresentações mostraram diferenciadas
formas de resistência a essa forma de operar nas cidades de todas as
partes e, mais particularmente, dentro de nossa realidade da América
Latina. A arquiteta Helena Galiza trouxe sua experiência à frente da
Caixa Econômica Federal, principal órgão de gestão do FGTS, e no
assessoramento de ocupações, como a da Rua Regente Feijó, na Praça
Tiradentes no Centro do Rio de Janeiro. A arquiteta uruguaia, Raquel
Lejtreger, ex-vice-ministra da habitação do governo uruguaio, trouxe as
experiências das Cooperativas Habitacionais e dos movimentos de
moradia da cidade de Montevidéu.
Durante a apresentação, procurei apresentar minha visão sobre as
formas de reprodução e desenvolvimento das cidades brasileiras e do
terceiro mundo, que partem de um plano e projeto exclusivista e elitista.
E, que no Brasil assumem dimensões perversas, dado as nossas
condições de concentração de renda, que impedem e bloqueiam a
ampla participação de parcelas expressivas de nossa população, que
permanecem à margem do desenvolvimento. Apontei, ainda, a urgência
e necessidade de sua mudança, gerando e explicitando um contra-plano
e contra-projeto de maior inclusão, que transmita para o conjunto da
sociedade a noção de que todos os seus extratos sociais participam do
desenvolvimento do país. É importante salientar que o desenvolvimento
1 Possui graduação em Faculdade de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1983), mestrado em Urbanismo pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (1999) e doutorado em Urbanismo pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (2007). Atualmente é presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil -
Matriz, professor adjunto da Universidade Federal Fluminense e professo associado da
Universidade Federal Fluminense.
2 ROLNIK (2015) demonstra de forma clara a ampliação da desregulamentação sobre
as políticas urbanas pelo mundo a partir da chegada ao poder de Margareth Thatcher na
Inglaterra (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1981), que transformaram a moradia numa
mercadoria financeirizada.

44
econômico brasileiro é significativo, alcançando, segundo especialistas,
a décima ou décima primeira posição dentre as nações mais ricas do
mundo. No entanto, sua concentração de renda é também das piores do
mundo, onde o 1% mais rico monopoliza 27% da renda total nacional,
enquanto em países como a Suécia esse índice é de 4%3. Quando
ampliamos a faixa para os 10% mais ricos brasileiros percebe-se que essa
faixa se apropria de 55% da renda nacional, atrás apenas de países ou
regiões como: Oriente Médio, Argélia, África do Sul e Haiti4.
Nesse sentido, a espacialidade da cidade é o dado concreto mais
palpável da injusta divisão de renda, que caracteriza a sociedade
brasileira, onde se percebe desníveis de urbanidade escandalosos. Basta,
para tal, compararmos a presença de benfeitorias urbanas tais como:
coleta de lixo, esgoto, distribuição de água, drenagem, transportes,
calçadas, iluminação, arborização, e outras entre áreas como o bairro do
Flamengo na cidade do Rio de Janeiro e a cidade de São Gonçalo. Dentro
dessa questão, salientei a centralidade do tema da habitação, que na
verdade corresponde a 80% do parque construído de qualquer cidade no
mundo, efetivamente: a arquitetura da cidade . Daí, que a relevância do
tema habitacional para o ensino e a pesquisa de arquitetura e urbanismo
é absolutamente central no contexto do mundo contemporâneo e na
forma da reprodução das cidades. Por isso, a disciplina que leciono na
EAU-UFF – Habitar o Centro – oferecida tanto para a graduação como
para a pós-graduação, se configura como um campo de pesquisa notável
para aferição dos humores das cidades brasileiras. Compreender de
forma mais aprofundada os mecanismos, inerentes à dinâmica urbana
da periferização, do espraiamento, da informalidade, da autoconstrução,
do valor da terra urbana, das infraestruturas de transportes, da captação
de impostos em cima de eventuais valorizações desmedidas é hoje
fundamental, no âmbito da academia. Essa disciplina vem
apresentando uma série de esforços no sentido da produção da
habitação em territórios centrais e nas subcentralidades que
caracterizam as grandes metrópoles. A reutilização e ressemantização de
variados patrimônios notáveis, presentes nesses contextos, estão sempre
presentes e são recorrentes nas pesquisas e projetos desenvolvidos.
Nesse ambiente, a episteme do plano e do projeto são abordados,
considerando-os como uma forma específica de abordagem sobre a
realidade. Uma forma de se apropriar do real, que investe fortemente no
vir-a-ser, no futuro das cidades, que se utiliza das condições do contexto
que enfrenta, para imaginar pré-configurações possíveis. Esse exercício,
de engajamento com as condições específicas das cidades brasileiras
pretende encarar o plano e o projeto como um espaço crítico, onde o
produto a ser formulado não está pronto na prateleira, mas precisa ser
formulado de forma a pensar uma outra cidade, mais justa e inclusiva.
Dentro dessa perspectiva da proposição de uma outra cidade,
considero fundamental a formulação de um plano e projeto de um
3 (PIKETI, 2020, p. 244).
4 (PIKETI, 2020, p. 243).

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 45


ESCOL A EM T RAN S E: H A B I TA R O CE NTR O, MO R A R É C EN TRA L

ambiente mais inclusivo, onde se combata a concentração de renda e


onde se possibilite a formulação de pré-figurações que celebrem a
convivência entre extratos sociais e usos. Nesse sentido, a macro política
não tem dado a devida importância para a espacialidade da sociedade,
abordando temas como: educação, saúde e economia de forma
desterritorializada. A explicitação dos quatro pontos a seguir combate a
forma inercial de reprodução da cidade brasileira, segundo os quais ela
vem se desenvolvendo de uma maneira perversa, garantindo acesso a
uma urbanidade plena apenas a parcelas restritas de nossa sociedade.
O primeiro ponto seria a busca pela configuração de territórios
urbanos, com diversidade de usos e extratos sociais, combatendo a
tendência da cidade brasileira a segregar usos e classes, abandonando
contínuos construídos. Nesse primeiro ponto, as áreas centrais
desempenham papel fundamental, pois estão sendo abandonadas e
esvaziadas de população e, permanecem com a presença de
infraestruturas urbanas capazes de garantir qualidade de vida e
possibilidade de inserção no desenvolvimento do país. O segundo
ponto, se refere à busca de uma maior densidade, combatendo o
esgarçamento e o espraiamento da mancha urbana, que a partir da
hegemonia do automóvel e do pneu, determinaram uma expansão
desmedida do urbano. Esse segundo ponto também reforça a presença
das centralidades e subcentralidades da cidade brasileira, onde há um
patrimônio construído notável, que deve ser reutilizado, a partir da
consideração de que são um bem comum da sociedade. O terceiro
ponto, seria a luta pela ampliação de nossas condições de mobilidade,
permitindo ao conjunto da população urbana desfrutar das condições
de acesso amplo a todas as partes de seu território, tanto pela qualidade
como pelo preço das tarifas. Esse ponto significa a mudança de direção
dos investimentos públicos, que vêm privilegiando o carro particular e o
ônibus, que claramente não significam modais que promovam a
inclusão de todos. Por último, o quarto ponto a ser contemplado seria
uma aproximação positiva com os contínuos ambientes próximos ou
inseridos nas cidades, promovendo um didatismo capaz de doutrinar
novas mentalidades para a preservação de nossa biodiversidade. Esse
último ponto, está particularmente presente na cidade do Rio de Janeiro,
que possui contínuos memoráveis como: a Floresta da Tijuca, o Maciço
da Pedra Branca, o maciço do Tinguí, o morro do Estado em Niterói, as
baías de Guanabara e Sepetiba, dentre outros.
A partir desses quatro pontos, acredito que seria possível mudar a
inércia do desenvolvimento das cidades brasileiras, promovendo uma
espacialidade urbana que promova a inclusão de todos, usando a
territorialidade da cidade para promover a justiça social. Uma última
questão ainda mencionada na minha apresentação foi em relação à
emergência de uma visão conservadora que vem sacralizando a
propriedade da terra, indo contra a determinação de nossa Constituição
Federal, que definiu que o Direito de Propriedade deve atender à sua
função social. Parâmetro que determinou exatamente que o exercício do

46
Terreno explorado como estacionamento, aonde existe farta oferta de modais
de transportes (Metrô, VLT, Ônibus, Trem), na Zona Portuária do Rio de Janeiro,
esquina da rua Argemiro Bulcão, com Venezuela, Coelho e Castro e Sacadura
Cabral. Porquê está sendo explorado por estacionamento? Queremos fomentar
mais automóveis? Porquê não moradias? Nesse terreno poderiam estar 260
familias, em um empreendimento habitacional, com comércio, sem vagas de
garagem, trazendo vida e diversidade para a cidade.
Fonte: Arquivo GPDU.

Direito de Propriedade deve ser regulado, principalmente no que se


refere a valorizações abusivas no seu valor, invariavelmente no ambiente
urbano, determinadas por investimentos públicos. A Constituição
Federal e o Estatuto da Cidade, que foram frutos de lutas históricas dos
movimentos sociais, trouxeram para o pacto social no Brasil a
possibilidade de taxação dessas valorizações desmedidas, a fim de
possibilitar a promoção de uma cidade mais justa e inclusiva. A
sacralização do Direito de Propriedade bloqueia essa possibilidade de
controle dessas valorizações e impede a promoção de uma cidade mais
justa. É também preciso reconhecer que essas conquistas da
Constituição e do Estatuto não foram inteiramente internalizadas nas
práticas e cotidianos das cidades brasileiras, mesmo nos tempos de
governos mais progressistas. Na verdade, a cultura patrimonialista de
sacralização da propriedade privada é uma presença constante na nossa
sociedade e pode ser percebida na história do urbanismo, representado
na fala do urbanista Alfredo Agache, que em 1930 já apontava sua
capacidade de gerar injustiças:
Quase sempre após os trabalhos de urbanismo, o valor da parte
conservada pelo proprietário aumenta de tal maneira, que é de
toda justiça obrigá-lo a ceder, à cidade a metade da valorização
obtida. (AGACHE, 1930, apud FURTADO; REZENDE, 2016, p. 127).

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 47


ESCOL A EM T RAN S E: H A B I TA R O CE NTR O, MO R A R É C EN TRA L

Apesar dessa constatação tão antiga, percebe-se ainda nos setores


conservadores uma enorme resistência à aplicação dos mecanismos do
Estatuto da Cidade, como: a contribuição de melhoria, o IPTU
progressivo, o Direito de Preempção, dentre outros; que visam distribuir
o lucro imobiliário por parcelas mais representativas de nossa
população, possibilitando o controle do valor da terra urbana e
garantindo sua acessibilidade ao precariado despossuído, que tanto luta
por uma maior participação no desenvolvimento do país. A promoção
de uma cidade mais justa não será possível sem que esse controle social
seja introjetado como prática corriqueira na vigilância das dinâmicas
urbanas. Por fim, houve uma série de provocações e questionamentos
notáveis por parte dos participantes que ilustraram esse debate,
ampliando em muito as nossas colocações. Desse universo, destaco a
provocação feita pela professora Louise Lomardo, que ponderou sobre o
benefício apurado pelos bancos em nossas sociedades contemporâneas,
beneficiando a especulação improdutiva . Realmente essa é uma
condição que parece se impor no mundo contemporâneo, a partir da
desregulamentação dos Estados Nacionais, que não conseguem mais
captar os fluxos monetários especulativos e que cada vez mais circulam
livremente, promovendo a concentração de renda. A hegemonia do
capital financeiro impulsionada pelas Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs) determinam uma forma de enriquecimento
independente da produção, que também só produz mais injustiça e
concentração de renda. Sem dúvida, essa é uma questão que não pode
ser esquecida pelas ações de plano e projeto no contexto da cidade
contemporânea, e deve se pautar pela universalização dos benefícios da
urbanidade para todos. E, portanto, precisa reencontrar a prática
corriqueira e continuada da vigilância sobre os lucros abusivos da
valorização da terra urbana.

BIBLIOGRAFIA:
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do
nosso tempo. São Paulo: Editora Unesp, 1996.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo, ensaio
sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.
FURTADO, Fernanda; REZENDE, Vera. O financiamento da Abertura
da Avenida Presidente Vargas: estratégias institucionais e legais. Rio de
Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2016.
PIKETI, Thomas. Capital e Ideologia. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca,
2020.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares, a colonização da terra e da
moradia na era das finanças. São Paulo: Editora Boitempo, 2015.

48
Forma urbana, desigualdade e
infoproletarização

Claudio Ribeiro 1

Milton Santos soube debater, como poucos, a relação entre forma e


produção do espaço. Construiu uma obra que orienta um debate crítico
capaz de romper com usuais dualismos que opõem a forma ao
conteúdo, reforçando o senso comum sobre o tema. No campo da
arquitetura e do urbanismo, esta oposição costuma ser apresentada
como um verniz que tradicionalmente separa estética e política,
produzindo, de forma contraditória, um discurso estético que tiraniza os
ocultos debates políticos.
São usuais as polêmicas a respeito de estilo ou do uso de materiais
high-tech, interferindo nas “peles” dos edifícios, que sempre ocultam
uma permanência no modo de produção do espaço, que é sempre
desigual para aqueles que são considerados como desprovidos de
qualquer estilística. A forma de determinadas áreas da cidade podem ser
debatidas, desde que não revelem o contraste com outras.
Esta possibilidade do debate arquitetônico pensar a forma descolada
do conteúdo autoriza e reforça um discurso autoritário do objeto a ser
projetado, da maneira como ele é projetado e dos resultados de sua
realização projetual ou construtiva. Criando um campo isolado de
reflexão, torna a arquitetura e urbanismo um campo exclusivo para
iniciados nas ciências da forma, no léxico estilístico, impedindo que um
objeto socialmente edificado seja socialmente concebido, reforçando a
ideia de um projetista detentor de saberes capazes de decidir sozinho,
inclusive, a inserção de objetos feios que serão avaliados apenas pelos
iguais, considerados inovadores, incompreendidos ou vanguardistas…
Trata-se de um curto-circuito no qual quem concebe a forma é quem a
julga. Mas não necessariamente será quem vai ter que se apropriar dela
e, definitivamente, não será quem vai construí-la.
A concepção de Milton Santos, na qual o espaço é um híbrido entre
forma e conteúdo impede esta distorção, na medida em que a dialética
exige que o entendimento formal esteja conectado com sua história,
com sua finalidade, o sistema de objetos deve ser contrastado com o
sistema de ações. O conteúdo presente nas sínteses espaciais edificadas,
que observamos em nossa paisagem urbana cotidiana, insere elementos
complexos que reconstroem a trajetória da mercadoria cidade em

1 Arquiteto e Urbanista (UFMG), Mestrado em Planejamento Urbano e Regional


(UFRJ), Doutorado em Urbanismo (UFRJ). professor Adjunto do Departamento de
Urbanismo e Meio Ambiente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (DPUR-FAU-UFRJ) e do curso de Pós-Graduação em
Urbanismo (PROURB) da FAU-UFRJ.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 49


Forma u rbana , desig u aldade e infoproletariz aç ã o

constante transformação, cada vez mais veloz, dentro do modo


capitalista de produção. Isso significa identificar que determinados
conteúdos tem produzidos formas que lhe servem, e, por outro lado,
como o autor afirma de maneira mais detida em Economia Espacial,
determinadas formas possuem, cada vez mais, um conteúdo social que
lhe acompanha.
Este debate inicial se faz necessário para demarcar a breve exposição
que segue a respeito da forma contemporânea da cidade, que,
necessariamente, está atrelada ao conteúdo de aprofundamento de uma
crise sem precedentes do capitalismo. No caso brasileiro, essa crise
encontra cidades forjadas durante séculos na desigualdade extrema da
escravidão, que nunca foi totalmente superada ou mesmo enfrentada de
forma efetiva na história da urbanização brasileira.
Não é necessário muita reflexão para perceber que cidades com
tamanha desigualdade não reverterão sua condição durante uma crise
do capital. Salvo um processo de ruptura revolucionária que,
aparentemente, não está em processo. Portanto, é forçoso admitir que as
assimetrias existentes serão aprofundadas. Mas em um cenário onde a
desigualdade e a segregação encontram elementos ultraconsolidados e
bastante elevados de violência objetiva, espalhados no cenário urbano,
por onde podem caminhar os resultados da crise que se impõe, a ponto
de piorar as fraturas? Quais os rumos das mudanças formais oriundas de
uma crise que foi acelerada pela pandemia?
A resposta pode ser experimentada a partir de importantes mudanças
do campo trabalhista. A forma da cidade tem uma relação profunda com
a maneira através da qual ela é produzida, e a organização do trabalho
dá um tom fundamental para isso. Cidades produzidas sob a égide da
escravidão, por exemplo, desenvolveram-se com equipamento territorial
de infraestrutura praticamente ausente devido à superexploração de
pessoas escravizadas, que faziam o papel de todo o meio técnico
urbanístico. E foram equipadas a partir de interferências externas,
configurando uma paisagem que, no Brasil, é regra. É o que podemos
chamar de paisagem da dependência.
Como estão as relações atuais de trabalho e como elas irão interferir na
forma das nossas cidades contemporâneas? De forma breve, como
convém a este texto, todos os caminhos laborais apontam para um
impressionante aumento da informalidade e instabilidade contratual,
em todos os setores. A informalidade poderá ser eliminada não pela
formalização total, mas por se converter em norma. As reformas
trabalhista, previdenciária, as leis de terceirização e todas as
flexibilizações feitas em nome do combate aos efeitos da pandemia à
saúde da “economia” levam a um cenário inevitável de rebaixamento de
direitos, renda e estabilidade da classe trabalhadora. Tudo isso
impulsionado por enorme desemprego que já era realidade antes da
chegada da Covid-19 e que está em franco aumento no mundo inteiro.
Estas reformas estão acompanhadas de diversas outras
regulamentações que apontam para a mesma direção no que tange à

50
organização da terra urbana e rural. Um marco pode ser a aprovação da
lei 13.465/2017, que flexibiliza inúmeros elementos que vão desde a
regularização fundiária, a reforma agrária, a privatização de terras
públicas e a exploração da Amazônia Legal. Não deve ser reduzida a
importância da extinção do Ministério da Cultura e a consequente
transposição do IPHAN para o Ministério do Turismo, pressionando
mudanças na direção da mercantilização do patrimônio cultural.
Recentemente foi iniciada aprovação do marco legal para a privatização
dos serviços de abastecimento e tratamento de água e esgoto no País e,
não menos importante, tramita a PEC 80/2019, que retira a função social
da propriedade rural e urbana.
Todos estes elementos conjugados indicam que o aprofundamento das
desigualdades urbanas receberá um duplo impacto possível em sua
forma. O primeiro deles, o aumento da informalidade, da insegurança e
da tradicional violência destinada a estas áreas no País. Menos direitos
sociais sempre estiveram relacionados a menos garantias de
permanência espacial. O aumento destas inseguranças significará um
aumento brutal da porção da classe trabalhadora que estará à mercê de
remoções, deslocamentos forçados, despejos, etc., em nome de um
avanço imobiliário para áreas consolidadas, que serão alvo de renovação
no intuito de garantir a velocidade de rotação do capital fictício aplicado
no setor imobiliário. Os centros das cidades, sobretudo, deverão passar
por novas ondas de renovação, na medida em que o teletrabalho
esvaziará edificações e conjuntos comerciais em nome da economia das
empresas. Será preciso uma reorganização do setor imobiliário para
retomar essas áreas e, para isso, pode ser preciso remover cada vez mais
aquelas e aqueles que vivem na sua vizinhança. Isto sem mencionar a
tendência de milicianização do espaço, conjugando um supercontrole
de clusters privados, que conjugarão condomínios fechados e centros de
compras para a parcela da classe que se sentir no privilégio da
estabilidade (uma segunda onda de segregação de condomínios
fechados de nova geração).
O segundo impacto é o aumento espetacular da padronização formal
de todas as realizações que forem feitas. O teletrabalho e a
informalização da mão de obra de projeto de arquitetura e urbanismo,
aparentemente inevitável nas atuais condições sociais, são possíveis
exatamente pela existência de softwares cada vez mais abrangentes, que
tomam as decisões projetuais de maneira paramétrica, potencializando
um controle autoritário e vertical de parâmetros, restando apenas
adaptações menores realizadas pelos uber-arquitetos-cad-monkeys. O
nível de padronização oriundo desta infoproletarização do executor de
projetos pode alterar ainda mais a forma urbana. Se antes era imposta
uma paisagem homogênea aos conjuntos habitacionais pensados para
os estratos mais baixos da classe trabalhadora, agora os condomínios da
classe média também se tornarão uma mercadoria de exclusividade na
era da reprodutibilidade técnica.
Mas não só de aplainamentos deve ser a produção da forma urbana

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 51


Forma u rbana , desig u aldade e infoproletariz aç ã o

nas cidades brasileiras. As rugosidades surgem. Quando Lefebvre


formulou seu conceito de direito à cidade, reivindicando a luta de
classes como elemento necessário para a configuração urbana segundo
seu valor de uso, ele partiu da noção de que apenas um trabalho não
alienado seria capaz de garantir esse direito. Tomar a cidade para si,
reivindicando-a, significa também reivindicar um cotidiano pleno de
realizações autônomas da classe trabalhadora. A dialética entre forma e
conteúdo atuando como elemento de conscientização.
Toda a expropriação de saberes, que a vida laboral contemporânea
impõe ao habitante da cidade, também possibilita que o chão urbano se
torne o local do encontro, reunião e conflito da classe explorada, que se
identifica na uberização, na ausência de direitos, na informalidade.
Esse contato de uma classe ampliada que ainda não se reconhece
começa a dar resultados de resistência quando, em plena pandemia,
entregadores empregados pelas plataformas de aplicativos para
celulares realizam manifestações em todo o país, de maneira vigorosa,
em diálogo com categorias de outros países e de maneira crescente. A
forma da cidade, portanto, se por um lado se mantém como reprodutora
de uma hiperdesigualdade, por outro lembra a todas e todos que
também é produtora de conflitos urbanos. Conflitos que, da mesma
maneira, poderão se acirrar!

52
SOBRE A FORMA ARQUITETÔNICA
Guilherme Araujo de Figueiredo 1
Philosophia est cognitio per causas

Segundo Aristóteles a filosofia entende o universo e a existência em


função de suas causas. Desse modo, todos os objetos guardam
características próprias que dizem respeito à matéria da qual são feitos;
quem ou o que os originou; sua constituição em essência e aparência e,
por fim, sua razão de existir. Revelam-se a nós, portanto, como um
conjunto de causas denominadas materiais, eficientes, formais e finais.
Desde a pré-história temos recebido informações existenciais acerca dos
vários tempos por meio de mensagens subjetivas, atreladas a artefatos,
aos quais nos referimos como arte. A arte é uma habilidade humana
caracterizada por noções experimentais que sustentam convicções,
edificam pensamentos e elaboram julgamentos. Consequentemente os
artistas, para poderem criar, precisam que seu ofício busque as causas
dos objetos. Daí concluímos que enquanto a arte investiga causas para
que conceitos sejam estabelecidos a ciência, embora também busque
causas, o faz à base do conhecimento desinteressado. Assim sendo a
ciência é, essencialmente e por definição, neutra. Os preceitos acima
situam então, a partir do século IV a.C., que a significação de forma é,
fundamentalmente, ser o elemento ativo da existência.
A ciência arquitetônica tomou corpo nos séculos XIV e XV, quando o
texto De Architectura Libri Decem, do arquiteto romano Marcus
Vitruvius Pollio, trouxe à superfície ideais do período da antiguidade
greco-romana quando retomados por teóricos da Europa renascentista.
O trinômio vitruviano utilitas – firmitas – venustas enfatizou que o
edifício, para ser considerado como pleno em sua arquitetura deveria
abrigar usos compatíveis com suas funções, ser tecnicamente bem
erigido e comunicar-se por meio de sua plástica. Leon Battista Alberti,
arquiteto e teórico do Renascimento era leitor atento de Virtuvius e
acrescentou à teoria que a razão primordial da arquitetura é dar ao
homem condições plenas para o enfrentamento da vida. Em sua obra De
Re Aedificatoria (século XV), o tratadista enfatiza o bene beateque
vivendum, ou seja, que a forma arquitetônica, diferentemente, por
exemplo, de nossas construções contemporâneas, não tem fim em si
mesma.
Ao retomarmos a questão da causa, como essencial ao objeto,
entenderemos que sua porção formal – ou causa formal – não o explica
completamente. O arquiteto e professor catalão Josep Maria Montaner,
na introdução do livro As formas do século XX, retoma o conceito forma,
afirmando que ele possui uma enorme ambiguidade e uma grande

1 Arquiteto e Urbanista (FAU/UFRJ). Doutorado e Mestrado em Ciências em


Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura (FAU/UFRJ) Atualmente é
Professor de Projeto de Arquitetura do Departamento de Arquitetura (EAU/UFF)

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 53


SO BRE A F ORM A ARQU I TE TÔ N I CA

variedade de significados. Mesmo admitindo que o termo significa


“figura exterior ou aparência visual”, “contorno ou silhueta” e “gênero ou
estilo artístico”, o autor adota como seminal a concepção de forma como
“estrutura essencial e interna ou construção do espaço e da matéria
onde forma e conteúdo tendem a coincidir” (MONTANER, 2002).
Interpretações da forma como aparência e como objeto passível de
análise puramente visual prevaleceu na história da estética, onde regras
superficiais de composição sobrepujaram a manipulação da estrutura
interna como foco de interesse da criação arquitetônica. O parâmetro
qualitativo da arquitetura deixou de ser entendido como sendo sua
estrutura intrínseca e a beleza plástica enraizou-se como objetivo a ser
alcançado. Em suma, passou-se a medir o talento do arquiteto pela
capacidade ou não dele criar objetos belos e agradáveis aos olhos.
A aparência formal do objeto é uma expressão – visual, auditiva, táctil,
... – de sua essência, não a finalidade primordial. Todas as respostas
plásticas são, portanto, consequência, não a razão principal da
arquitetura. Os edifícios góticos louvam a Deus por meio dos ornatos,
pedras, vidros, luz e espaço, mas essencialmente seus enormes pés-
direitos e suas estruturas colossais assim o fazem como resultado da luta
entre o empirismo e a gravidade terrestre. A plástica nasce da essência. É
intrínseca ao objeto. Desse modo, toda forma arquitetônica encontra sua
origem na necessidade, desenvolve-se em função da praticidade e foi
embelezada pelo uso, já que para o homem ela é feita.
As dicotomias entre os valores da aparência do objeto arquitetônico e
sua materialidade, que até os limiares do século XV compunham-se em
uma única preocupação científica, sofreram significativa ruptura na
segunda metade do século XVII. Na década de 1670 funda-se em Paris,
França, a primeira academia de arquitetura, consubstanciando o ensino
generalista da atividade, embora inserido em um cenário intelectual de
contenda entre os ideais das belas artes, louvados pela arquitetura, e do
pragmatismo científico das engenharias.
A academia, a partir do século XVIII, incorporou a estática dos
materiais como princípio norteador das construções, embora a noção e
a certeza de que a capacidade expressiva da arquitetura jamais houvera
sido desprezada. Assim sendo, a arquitetura e a engenharia passaram a
conviver, como ciências da construção, pari passu.
Sobre a forma arquitetônica, é natural que possamos ser levados a
concluir que tanto o arrebatamento estrutural gótico quanto o
funcionalismo modernista, tomados como exemplos de soluções
técnicas e plásticas, devem ser considerados como respostas formais a
problemas postos pela necessidade de se construir e se expressar por
meio da arquitetura. A arquitetura, portanto, situa-se entre os requisitos
específicos dos usuários e sua forma, constituída de matéria e imagem.
Em outras palavras, a forma arquitetônica deve ser entendida como
intrínseca à ideia do edifício e mostra sua epifania por ser produto do
pensamento e da imaginação do arquiteto. A ideia em arquitetura,
portanto, reside no nascedouro do projeto e permeia todo o processo de

54
configuração e materialização do objeto arquitetônico, desde as
prerrogativas programáticas manifestadas pelo contratante até o
detalhamento executivo.
A forma, que em Vitruvius e Alberti era definida como uma entidade
holística, inerente à arquitetura, transformou-se com o tempo em um
conceito puramente estético, onde se discute a beleza do resultado
aparente do objeto arquitetônico e não a essência – ou a estrutura
interna – que o consubstanciou fisicamente. Segundo Brandão essa
definição distorcida da forma limita a crítica da arquitetura ao campo
das opiniões epidérmicas sobre o objeto e exacerbou-se nesse novo fim-
de-século com a cultura de massas que trabalha de maneira imediatista,
muito mais com as imagens do que com os conceitos que levaram os
arquitetos a produzir suas criações.
O texto acrescenta também que

o sentido de forma não é unívoco e comporta dois entendimentos


distintos e que, no caso da crítica e da história da arquitetura
chegam a se opor: a forma como morfh, ‘morphé’ e a forma como
eidoz, ‘eidos’. Na primeira acepção, da qual se originará ‘morfologia’
por exemplo, ela é considerada como o aspecto externo de alguma
coisa, sua aparência visível e dimensão sensível, ou seja, ‘estética’.
No segundo caso, forma significa ‘ideia’, conformação mental
ou disegno interior, como em Cennini e Vasari, a ser aplicado
para ordenar a matéria e estabelecer nela relações e disposições.
(BRANDÃO, 2004)

Depreende-se, portanto, que seja primordial para a crítica da forma


que antes se defina em que campo conceitual se está analisando a obra,
se pela perspectiva do vocábulo morphé ou do vocábulo eidos, se pela
estética ou pela ideia do projeto. Assim, ao avaliar a forma como
“gratuita, arbitrária, injustificada, onerosa, mera aparência ou simulacro
podemos estar a fazê-lo em nome de um outro conceito de ‘forma’ que
expressa a essência, substância, pertinência de algo.” (id. ibid.)
A boa qualidade de intervenção nesse sistema intrínseco da ciência
arquitetônica é, no fim das contas, onde repousa o que poderia ser
chamado de talento individual do arquiteto. O fato de se concordar com
a existência de uma estrutura autônoma da forma arquitetônica não
exclui a figura do profissional. Pelo contrário, enfatiza sua
responsabilidade sobre a criação dela. Em resumo, o fato de existirem
incontáveis formas morphé justifica-se pela diversidade de opiniões e
filosofias aplicadas nas formas eidos.
Na obra Complexidade e Contradição em Arquitetura, de 1966, o
arquiteto norte americano Robert Venturi forjou um aforismo, em
contraponto ao lapidar less is more de Mies van der Rohe, ao trazer à
discussão pós-modernista o reconhecimento do ornamento e da plástica
superficial como elemento inerente às soluções da arquitetura da virada
do século XX. Assim sendo, o novo lema less is a bore de Venturi ao invés

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 55


SO BRE A F ORM A ARQU I TE TÔ N I CA

de rejeitar a superfície dos edifícios como veículo de informações,


valorizou a capacidade comunicativa da plástica arquitetônica e
endossou o reencontro dos arquitetos com o gosto popular. Destacou a
multiplicidade de significações e contradições da imagem, sublinhou a
potencialidade das percepções dos observadores e enalteceu a
arquitetura como importante participante da pop-art. Entre aplausos e
rejeições, a pauta de então apresentou a dicotomia entre o chamado
edifício-pato, que valoriza, por meio de seu desenho, a forma morphé e o
galpão decorado, que explicita a forma eidos.
Como conclusão, é primordial que voltemos a compreender a forma
arquitetônica em sua totalidade conceitual e procuremos nos
desvencilhar da experiência estética como mediadora única das
informações intrínsecas e ontológicas da arquitetura.

Bibliografia

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. A crítica da forma na Arquitetura.


Interpretar Arquitetura: Revista de Teoria e História da Arquitetura e do
Urbanismo, nº 6, vol. 5, maio de 2004. Disponível em <http://www.
arquitetura.ufmg.br/ia/>. Acesso em 13 de julho de 2007
MONTANER, Josep Maria. As formas do século XX. Barcelona: Editorial
Gustavo Gili, SA, 2002
THOENES, Christof. Introdução In Teoria da arquitectura: do
Renascimento aos nossos dias. Colônia: Taschen, 2003
VENTURI, Robert. Complexidade e contradição em arquitetura. São
Paulo: Martins Fontes, 1995

56
Crítica à ideologia da forma arquitetônica 1

Pedro Fiori Arantes 2


Obrigado, Fernanda, pelo convite. Começarei relembrando
brevemente uma das minhas primeiras pesquisas, sobre um coletivo de
arquitetos radicais de São Paulo nos anos 1960-70: o grupo Arquitetura
Nova, cujo núcleo duro era formado por Sérgio Ferro, Flávio Império e
Rodrigo Lefèvre (ver meu livro de 2002). O nome nasceu em referência
ao Cinema Novo, à estética da fome e sua agressividade poética e
política – que vocês adotam aqui no nome da “Escola em Transe”.
O ponto de partida da Arquitetura Nova era a crítica ao brutal
descompasso, visto em Brasília, entre forma arquitetônica moderna, sua
ideologia e o processo de produção arcaico. Descompasso entre a
generosidade do desenho de Lúcio e Oscar e a brutalidade da
exploração e violência nos canteiros de obra – além do fato de que os
trabalhadores, candangos, não tiveram onde morar em Brasília, foram
apartados para cidades satélites.
Sérgio e Rodrigo estiveram lá, projetando prédios comerciais, e viam
os canteiros, os acampamentos, a violência toda. Se o ponto culminante
do projeto moderno na arquitetura era aquilo, eles começavam a
duvidar de qualquer promessa redentora. Por isso, a Arquitetura Nova
começa com a crítica à crença cega no progresso das forças produtivas,
para pensar uma outra arquitetura a partir dos temas do
subdesenvolvimento, dos limites das nossas condições precárias, na
moradia, na infraestrutura, na tecnologia. Tentaram pesquisar qual a
arquitetura para um contexto altamente desigual e conflitivo – em eterno
“tempo de grossura”, para usar uma expressão de Lina Bo Bardi –, de
violência aberta, de luta de classes, com seu padrão de extermínio, com
explicou Florestan.
Evidentemente, eles colocaram em cheque visões convencionais,
ideológicas e hegemônicas – justamente, e inclusive, as noções
Vitruviana, Aristotélica, Le Corbusiana – sobre o que é forma na
arquitetura. Formularam a hipótese de que, por trás da forma
arquitetônica, existe um conjunto de forças e interesses. Não são
escolhas estritamente do campo da beleza, do uso ou da solidez, a tríade
vitruviana, que movem a produção da arquitetura. São escolhas que

1 Texto produzido a partir da transcrição da comunicação oral de Pedro Fiori


Arantes na 9ª Roda de Conversa, sob o tema “Arquitetura, Urbanismo e Forma na
Contemporaneidade”.
2 Arquiteto e Urbanista (FAU/USP). Mestrado e Doutorado em Arquitetura e
Urbanismo (FAU/USP). Atualmente na Universidade Federal de São Paulo é Professor
Associado na graduação e pós-graduação no Curso de História da Arte, da Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH), professor colaborador no curso de
Geografia e Pró-Reitor de Planejamento.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 57


Crítica à ideologia da forma ar q u itetônica

estão associadas às relações de poder, de produção e de valorização.


Do ponto de vista teórico, o grupo Arquitetura Nova constrói uma
hipótese crítica sobre a contradição desenho e canteiro e como
interpretar o problema da forma. A forma arquitetônica tem uma
dimensão evidentemente ideológica, mas também nasce planejada
como mercadoria. Por isso, o grupo busca entender qual é a capacidade
de controle real sobre a forma que tem o arquiteto, enquanto
trabalhador especial que é. Isso porque, o arquiteto, na verdade, é o
operário construtor que um dia fugiu do canteiro. Recebendo uma nova
formação, era ao arquiteto desenhador e conhecedor da história e das
regras de composição a quem recaía a encomenda dos papas, dos
príncipes, dos presidentes, da burguesia, das corporações. Assim, ele se
torna um intermediário entre o encomendante e o conjunto dos
trabalhadores. E vai projetar e entregar um desenho que será a ordem de
comando sobre os demais, que perdem progressivamente o saber e
poder sobre seu trabalho, que se torna cada vez mais parcelado e
alienado. O arquiteto passa a atuar, então, como um intérprete dos
desejos dos poderosos, como alguém que tem uma autonomia relativa
em relação as decisões de forma. A realidade é que o arquiteto não é
livre para fazer a sua poética do espaço, ele está inserido em um
conjunto de relações que induzem escolhas e a obra, ao final, é a
representação do sistema.
Em 2006, eu publiquei um livro com quase todos os textos do Sérgio
Ferro, chamado Arquitetura e Trabalho Livre. Sérgio deu origem a uma
pequena mas crescente tradição crítica brasileira (hoje se
internacionalizando) que o Norte não produziu. Escrevi recentemente
um artigo que considera a Arquitetura Nova em uma perspectiva
decolonial e a crítica da contradição desenho/canteiro como uma
epistemologia do Sul. O problema do canteiro nos diz especialmente
respeito, porque nós dos países subdesenvolvidos e dependentes,
entendemos o canteiro na economia política como forma de circulação
e produção de riqueza similar à nossa condição periférica no
capitalismo. Essa relação entre forma-canteiro e forma-do-
subdesenvolvimento é uma hipótese que o Sérgio Ferro propôs a partir
do André Gunder Frank. Nós aqui estamos interessados na forma-
canteiro porque, na divisão internacional do trabalho, cabe ao Sul
Global, que foi colônia e ainda permanece numa posição subalterna na
divisão internacional do trabalho, ser uma espécie de canteiro
permanente, canteiro de obras, canteiro agrícola, canteiro de mineração
e exportação de trabalhadores para os canteiros do mundo.
Quem está nos canteiros de obras dos países do Norte, em geral, são os
trabalhadores do Sul, negros, latinos, árabes ou do Leste Europeu. São
trabalhadores precarizados, imigrantes, que estão em situações análogas
à escravidão em vários locais do mundo. Por isso, o tema/problema do
canteiro nos diz respeito, como pensadores, ativistas e arquitetos do Sul.
Trabalhei essas questões no meu doutorado (publicado em livro em
2012) a partir da crítica à arquitetura contemporânea, aos arquitetos que

58
Cr ítica à ideologia da forma ar q u itetônica

ganharam Prêmios Pritzker, aos chamados super-heróis da nossa


profissão. Eu proponho um conceito novo, que chamei de “renda da
forma”, por analogia à renda da terra, mas olhando menos para o solo
urbano e mais para a arquitetura de exceção que os arquitetos estrela
produzem.
A hipótese da renda da forma era a de que, nessas obras que são tidas
como as novas maravilhas do mundo contemporâneo, havia um
mecanismo de captura de renda que era dada pela forma exclusiva da
sua arquitetura. Essa forma é, muitas vezes, delirante, retorcida, feita
com os novos softwares, novos materiais, peles de revestimento, objetos
que são pensados para serem únicos e atrair multidões de turistas e
também a classe criativa e, assim, reposicionar suas cidades na
competição global. Essa forma excepcional produzia um rentismo que
não era exatamente a renda imobiliária, mas de novo tipo, que foi o que
procurei estudar.
Antes de abrirmos para o debate, trago outro ponto para discussão: o
que seria o oposto dessa renda da forma? Talvez algo como a forma
arquitetônica que nasce do valor de uso, com critérios não mercantis.
Não é fácil achar onde isso ocorre. Talvez nas estratégias de
sobrevivência popular ou, de forma mais qualificada, nas ações de
arquitetos que atuam com os movimentos populares, sem-teto, sem-
terra, cooperativas, produzindo com outras premissas, em conjunto com
os trabalhadores, algo que por eles será também coprojetado, produzido
em outras condições e ao fim apropriado.
Mesmo assim, a autogestão que ali se pratica é totalmente
condicionada pelas regras do jogo, do sistema capitalista e, no nosso
caso, em sua forma ainda mais extrema, dependente, desigual e
predatória. Não existe, nesse contexto, autogestão plena. O que temos
são hipóteses sendo testadas, são experiências, são esperanças, para
usar a expressão do David Harvey. São possibilidades de organização de
autogoverno e de autogestão que estão sendo permanentemente
cerceadas, boicotadas, implodidas pelo sistema.
Nas práticas autogestionárias, o que é produzido como obra coletiva
entre arquitetos, construtores, moradores, são formas híbridas diversas,
dependendo das situações em que a gente trabalha. Eu vivi algumas
experiências de autogestão bastante radicais, sobretudo nos
assentamentos do MST, produzindo moradias, escolas, etc. Mas se você
pensar na autogestão do programa Minha Casa Minha Vida Entidades, é
uma autogestão completamente limitada, constrangida. Toda a lógica
privada que tem por trás do Minha Casa Minha Vida foi simplesmente
transferida para os movimentos, no Entidades. O MCMV é (ou foi) um
programa operado por um banco que conduz a política habitacional por
análise de risco. Isso significa que as experiências de autogestão devem
ser vistas nesses contextos de fortes restrições, senão caímos em uma
romantização.
A hipótese dessa outra forma arquitetônica não totalmente
subordinada ao capital é a de que o trabalho coletivo das cooperativas e

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 59


Crítica à ideologia da forma ar q u itetônica

brigadas dos movimentos não está produzindo uma mercadoria e, logo,


as decisões de projeto e de forma não são conduzidas pelo valor de troca
e de poder simbólico dominante, mas pelo valor de uso e pelo direito à
vida. Não tem cálculo imobiliário, não tem “eu vou fazer assim porque
vende”. Evidente que tem um cálculo econômico, da racionalidade, do
emprego, dos recursos, mas é para conseguir construir melhor e com
maior área, dentro dos limites que nós temos de recursos escassos, de
políticas públicas que oferecem orçamentos irrisórios.
Outro ponto fundamental é que saber e poder se reintegram.
Trabalho intelectual e trabalho manual se aproximam. E aproximam a
tal ponto que, muitas vezes, os arquitetos estão nas frentes de obra,
trabalhando como mestres de obra e os trabalhadores também estão
projetando, permanentemente discutindo decisões de projeto em
maquetes, em desenhos ou por outras metodologias diversas que a
gente usa para possibilitar a participação e a democratização do saber
do arquiteto. Isso vai levando a uma produção que tem algumas
premissas, uma delas é segurança dos trabalhadores. Uma arquitetura
autogestionária, mesmo nos limites do capitalismo, mesmo com os
programas habitacionais fechados, mesmo com todos esses limites em
pastas, tem que preservar o trabalhador.
As escolhas tecnológicas também são pautadas por outras
premissas, tanto a de segurança quanto a de extrair o melhor resultado,
em geral deixando a vista o saber construir. Ou seja, a forma nasce a
partir de uma outra relação de produção e de articulação entre saberes e
construtores, dentro nas possibilidades dadas pelo seu tempo, nos
limites do capitalismo. Mas isso permite dizer que há, sim, nesses e
noutros contextos, uma outra arquitetura que pode ser experimentada,
uma obra coletiva feita com pessoas que compartilham saberes e
compromissos, numa espécie de comunidade de livres produtores.
Bom, vamos abrir para o debate.

60
A crise urbana e o patrimônio cultural
edificado nas cidades brasileiras

Cristóvão Duarte 1
A 10a. Roda de Conversa on-line da Escola em Transe (EAU-UFF)
coloca em discussão o tema “Patrimônio das Cidades: diversidade,
conflitos e possibilidades, na contemporaneidade”. Buscaremos, dessa
forma, tratar dos desafios colocados pela crise urbana ao patrimônio
cultural edificado, sobretudo, no que se refere aos conjuntos urbanos em
centros históricos das cidades brasileiras.
Diante do grave quadro politico, econômico e pandêmico que
enfrentamos, é forçoso admitir o agravamento dos muitos desafios
colocados para a preservação dos centros históricos em nossas cidades.
Contudo, o pressuposto teórico aqui assumido afirma que tais desafios
transcendem a conjuntura atual, revelando-se como resultantes de uma
crise maior que submete nossas cidades, desde a segunda metade do
século XIX. Para abordá-los, nos propomos a fazer uma breve
contextualização histórica, através da qual pretendemos não apenas
compreender mais claramente a noção de centro histórico, como
também problematizar os processos de esvaziamento e degradação a
que foram submetidos ao longo do tempo.
Os centros históricos correspondem aos núcleos pioneiros de
formação das cidades. Como áreas mais antigas eles reúnem
testemunhos de várias épocas, constituindo-se como o locus, por
excelência, da memoria coletiva. São áreas dotadas de infraestrutura
urbana e vantagens locacionais em relação ao conjunto da cidade, em
função de constituírem antigas centralidades urbanas.
A partir da segunda metade do século XIX essas áreas passaram a
sofrer pressões dos processos de modernização e urbanização,
decorrentes dos progressos científicos e tecnológicos da Revolução
Industrial. São efeitos decorrentes tanto do crescimento econômico e
populacional, verificado nas principais capitais do país, como também
das ondas reformistas em cursos nas principais cidades europeias.
No Brasil os centros históricos passaram, basicamente, por dois
processos distintos. Alguns experimentaram um processo de
esvaziamento político, seguido de estagnação econômica. E foi
justamente a decadência econômica que ajudou a preservar quase
integralmente o acervo edificado nessas cidades. Foi esse o caso das
cidades que perderam o status de capital de seus estados, substituídas
por outras, especialmente projetadas para serem as novas e modernas
1 Arquiteto e Urbanista (FAU/UFRJ). Metrado em Urbanismo pelo (PROURB/UFRJ).
Doutorado em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Atualmente é professor
Associado (FAU/UFRJ) e professor do Departamento de Urbanismo e Meio Ambiente e
do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB/UFRJ). Faz parte do LAPA -
Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidades Contemporâneas (PROURB-FAU/UFRJ).

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 61


A crise u rbana e o patrimônio c u lt u ral edificado

capitais. Como exemplos mais destacados podemos indicar a cidade de


Outo Preto em Minas Gerais, substituída por Belo Horizonte em 1897;
São Cristóvão em Sergipe, substituída por Aracaju em 1855; e Goiás,
substituída por Goiânia, projetada por Atílio Correa Lima em 1937.
Outro processo foi aquele ocorrido em centros históricos que
permaneceram como áreas dotadas de vitalidade econômica e como
centros de decisão política. Essas cidades experimentaram um processo
de renovação predatória que implicou na destruição ou
descaracterização do Patrimônio Cultural edificado. Em meio a essas
transformações, verificou-se também o processo de especialização
funcional dos centros urbanos, como área de comércio, serviços e
finanças, com o progressivo esvaziamento da função residencial e a
expulsão de seus moradores.
Sobre o processo de especialização funcional das cidades, vale abrir
parêntesis para mencionar o famoso Plano Voisin, apresentado por Le
Corbusier no Pavilhão do Espírito Novo, na Exposição Internacional de
Artes Decorativas de 1925, em Paris. O plano previa a demolição quase
integral de uma extensa área do centro de Paris, vizinha ao Museu do
Louvre e à Catedral de Notre-Dame. Descrita por Corbusier como uma
área particularmente decrépita e insalubre, aí seriam implantados dois
novos setores, um destinado, exclusivamente, à função comercial e outro
residencial. O primeiro, arrasando o bairro do Marais, ostentaria 18
torres cruciformes, todas idênticas, com 200 metros de altura, nas quais
funcionariam escritórios. O setor residencial, seria estruturado por um
eixo viário leste-oeste, paralelo à rua de Rivoli e com 120 metros de
largura, ladeado por edifícios habitacionais de 50 metros de altura,
construídos em meio a áreas verdes.
Felizmente, como se sabe, Paris não foi arrasada. Entretanto, a
apresentação e divulgação dos princípios modernistas contidos no
Plano Voisin, posteriormente consagrados pela Carta de Atenas de 1933,
funcionou como uma “bomba de efeito retardado”, produzindo
explosões em série e acarretando a destruição de muitos outros centros
históricos mundo afora.
Entre as recomendações da Carta de Atenas, encontram-se o desprezo
pela cidade antiga; a abolição da rua, considerada anacrônica e perigosa
e a proposição do zoneamento funcional da cidade a partir de quatro
funções básicas: habitação, trabalho, lazer e circulação. As novas
propostas desenvolvidas para as cidades visavam redesenhá-las
integralmente, de modo a adequá-las aos princípios de padronização e
mecanização inerentes à logica da racionalidade industrial.
A ressalva a ser feita aqui consiste em que os processos de
fragmentação e homogeneização impostos aos tecidos urbanos da
cidade pré-industrial não foram, nem poderiam ter sido, uma invenção
da arquitetura moderna. O que os arquitetos modernistas fizeram, de
forma muito competente, foi dar uma nova roupagem progressista e
modernizante às transformações decorrentes da aceleração dos
processos de industrialização e urbanização, ajudando assim a disfarçar

62
suas consequências em termos de destruição dos vínculos
tradicionalmente estabelecidos entre a vida urbana e o ambiente
construído.
Ao decretar a “morte” da cidade tradicional, representada como um
entrave ao progresso tecnológico e ao desenvolvimento urbano, os
arquitetos ligados ao Movimento Moderno estavam, na verdade, pondo
em ação uma “operação ideológica” que permitiu ao Capital tomar de
assalto as cidades e transformá-las em laboratórios de experimentos
urbanísticos extremamente lucrativos, a serviço da lógica da mercadoria
e da apropriação privada da mais-valia urbana.
Retornando aos centros históricos das cidades brasileiras, podemos
dizer que, com o passar do tempo, verifica-se uma tendência de
hibridização e/ou alternância entre os processos de decadência
econômica e renovação predatória, anteriormente assinalados. O
resultado foi um progressivo agravamento do estado geral de
conservação do patrimônio arquitetônico de seus centros históricos.
Parte do acervo histórico edificado simplesmente desapareceu ou se
arruinou.
De fato, aquilo que se encontra preservado nos centros históricos
brasileiros deve-se, em larga medida, à ação pioneira (e por muito
tempo solitária) do IPHAN, com base na aplicação do instrumento do
tombamento, em vigor desde a promulgação do decreto-lei 25 de 30 de
novembro de 1937. Somente a partir dos anos 1980, com o
restabelecimento do estado de direito democrático e os novos
dispositivos constitucionais, a experiência do IPHAN pode ser replicada
em escala nacional pelas administrações estaduais e municipais, não
apenas descentralizando e capilarizando as ações preservacionistas,
como também desenvolvendo novos instrumentos de proteção.
Não obstante os avanços conquistados com a ampliação das ações
preservacionistas, o processo de degradação das áreas urbanas centrais
permanece como um problema compartilhado pela grande maioria das
cidades brasileiras. Com o longo processo de abandono e desvalorização
simbólica dessas áreas, foram sendo erodidas as condições mínimas de
habitabilidade, necessárias ao estabelecimento da vida urbana. Rompe-
se, assim, o complexo e delicado equilíbrio entre as funções urbanas
cotidianas. As edificações ainda existentes nas áreas históricas
encontram-se, na grande maioria dos casos, em péssimo estado de
conservação, demandando intervenções técnicas especializadas. Tais
intervenções implicam, muitas vezes, em complexos projetos de
consolidação estrutural e restauração arquitetônica dos imóveis,
incluindo a completa renovação das instalações prediais.
Como tentativa de reversão desse quadro, assistimos, sobretudo a
partir da década de 1990, a importantes experiências implementadas
pelo poder público em centros históricos de algumas cidades brasileiras.
Os resultados obtidos, no entanto, não têm se demonstrado econômica e
socialmente sustentáveis ou, mesmo, inteiramente aceitáveis com
relação aos critérios de preservação adotados pelos órgãos responsáveis

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 63


A crise u rbana e o patrimônio c u lt u ral edificado

pela proteção do patrimônio cultural. A criação de cenários urbanos sem


vida e a gentrificação desses espaços são problemas ainda por ser
resolvidos.
Acreditamos que pensar soluções para a revitalização das áreas
históricas implica em considerar também o contexto urbano ampliado
em que elas se inserem. De nada adiantará a recuperação física das
estruturas históricas ou a construção de “uma nova imagem urbana”, se
não forem criadas as condições necessárias ao pleno desenvolvimento
urbano dessas áreas. Temos vários exemplos de conjuntos restaurados
que, em pouco tempo, voltaram a necessitar de novas intervenções de
restauro. Para que haja manutenção preventiva e continuada no tempo
precisamos restaurar a própria vida urbana que foi arruinada.
Será necessária, portanto, a articulação dos três níveis de governo com
as populações locais, apoiada numa estratégia de desenvolvimento
sustentável, tanto do ponto de vista econômico, como do ponto de vista
social.
Os arquitetos têm certamente um papel importante a cumprir. Mas,
para isso, seus projetos deverão levar em conta não apenas o patrimônio
arquitetônico, mas também e, sobretudo, o patrimônio social,
representado pelas populações locais. Estamos falando, em última
análise, de um projeto de cidade que pressupõe uma gestão
transparente e democrática do espaço urbano.
Podemos afirmar que o processo de degradação dos centros históricos
das cidades brasileiras é também sintoma de uma crise maior,
envolvendo a cidade como um todo. O que está ameaçado, em última
análise, não é apenas a preservação do patrimônio histórico e cultural,
mas a própria sobrevivência de um tipo de sociabilidade
eminentemente urbana, baseada na apropriação coletiva dos usos do
espaço e do tempo.
Preservar o Patrimônio Histórico significa preservar valores culturais
em processo de transformação permanente. Para que sejam
preservados, esses valores devem estar sempre sendo atualizados e
reapropriados pela sociedade, através das práticas socioespaciais
cotidianas. Não se deve confundir a preservação do Patrimônio Cultural
com a preservação do Passado: o Passado é justamente aquilo que não
deve ser preservado, mas superado. A preservação da memória coletiva
não pode prescindir da dialética entre conservação e renovação, entre
tradição e invenção. É o presente que explica o passado, ao mesmo
tempo em que anuncia o devir. Precisamos, portanto, ser capazes de
desejar e construir (!) um futuro mais humano, mais justo e mais belo
para nossas cidades.

64
Patrimônio e destruição: notas introdutórias

Clarissa da Costa Moreira 1

Os discursos que colocam a espécie humana como ameaçada se


multiplicam, causando temores e aflições comuns a todos os viventes
nos tempos atuais. O desgaste socioambiental é altíssimo: atmosfera e
águas poluídas, escassez de recursos, mudanças climáticas, sistemas
econômicos predatórios... No entanto, sob o prisma da catástrofe
processual em que vivemos, persiste o nosso mundo humano e urbano
com todos seus conflitos e tragédias - mas também suas belezas,
criações e encontros. Este mundo constitui patrimônio - cultural e
natural, a um só tempo - de inestimável valor. E a partir deste
entendimento se pode avaliar com mais clareza o que temos perdido ou
estamos perdendo, nos últimos tempos.
Numa cidade como o Rio de Janeiro, podemos facilmente pontuar
uma nova dimensão da catástrofe, quando, além das milhares de vidas
retiradas constantemente em conflitos armados endêmicos na cidade ou
nas inúmeras disfunções no acesso aos serviços urbanos de
saneamento, saúde e segurança, começamos a perder patrimônios já em
escala planetária, tanto do ponto de vista afetivo, quanto simbólico,
cultural, histórico, científico e financeiro, inclusive, como mostra o
exemplo do incêndio de um dos mais importantes museus brasileiros. A
sensação de que a catástrofe se amplificaria se estabeleceu de forma
plena com o incêndio do Museu Nacional em 2018 (JEUDY, 2018),
tragédia que conseguiu tocar até aqueles a quem a pena de morte
cotidiana exercida de fato na cidade já não tocava... para citar um dos
milhares de problemas. A partir de então seguimos numa rebordosa de
perdas simbólicas, institucionais, socioeconômicas, humanas e de
muitos dos fundamentos da vida coletiva, aqueles que tornam possível
coexistir. Neste momento, a crise se agravou muito e diante do crescente
extremismo ambiente no Brasil do século XXI, é todo o patrimônio
nacional em sua multiplicidade que é posto em perigo.

A questão da perda e dos choques e traumas que ela nos causa implica
em questões de diversas ordens. Na filosofia budista, se observa
continuamente a cadeia lógica existente entre os acontecimentos, que
respondem a processos de causa e efeito. Por esse viés do pensamento
oriental tradicional, se percebe que quase nunca é só pela fatalidade que
se chega à catástrofe, mas por uma linha de acontecimentos e

1 Arquiteta e Urbanista (FAU/UFRJ). Mestrado em Urbanismo (PROURB/UFRJ).


Doutora em Filosofia da Arte e da Arquitetura - Teoria do Urbanismo pela Universidade
Paris I -Sorbonne. Atualmente é Professora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Fluminense.

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 65


Patrimônio e destr u i çã o

dificuldades.
No caso brasileiro e carioca, em particular, o infortúnio atual foi
cuidadosamente construído com a participação direta ou indireta de
grande parte dos setores da sociedade, seja pela atuação criminosa
direta, pela indiferença ou pela mera crítica desvinculada de qualquer
sentido de ação. Afinal, não é da noite para o dia que uma cidade se
torna dominada por grupos paramilitares/religiosos extremistas, e que,
por fim, nela se assiste quase indiferente à morte de milhares. Este
processo é longo. Tamanha inércia foi colocada em cheque por um curto
período em 2013, mas rapidamente aqueles desejos de transformação e
mudança social foram desviados para fins tenebrosos, deixando
marcada em muitos níveis uma geração que havia reencontrado o
caminho da luta.
É, portanto, importante evocar a capacidade de resistir e se reinventar
do corpo social, o que também é um patrimônio, o maior de todos.
Patrimônio potente instituído pela própria vida, afinal viver é lutar,
resistir e sempre que possível, apreciar a própria vida e sua potência
criadora. É importante pontuar a presença destas forças construtivas,
afirmativas e criativas, antes de reexaminar brevemente o processo de
ascensão e queda do Rio de Janeiro no século XXI.
Tudo começa por uma festa ilusória que contou com a recepção dos
maiores investimentos que possivelmente a cidade viu nas últimas
décadas, à época da Copa, 2014 e Olimpíadas, 2016. Antes do Museu
Nacional, o Patrimônio local sofreu uma nova série de investidas
perigosas sob a justificativa das transformações urbanas necessárias
para sediar os megaeventos: Porto do Rio e suas destruições, ameaças e
remoções, trechos inteiros de bairros na zona oeste apagados para fazer
passar autopistas em pleno século XXI, quando em toda parte se busca
uma mobilidade com menor impacto sobre o clima e a cidade e
principalmente, as mais de 70.000 pessoas removidas por ocasião destas
grandes obras e todo o patrimônio e história de vida destruídos neste
processo . Nesse processo destrutivo, sequer a Marina da Glória e o
Hotel Glória escaparam.
Geralmente o que precede a ideia de que se pode destruir patrimônios
são ideias como “desenvolvimento e progresso”, mas o que vemos na
prática é que as grandes destruições patrimoniais raramente trouxeram
qualquer progresso, pelo contrário, muitas vezes resultam apenas em
maiores retrocessos.

Hoje, os ataques às tribos indígenas, os desmatamentos da floresta


Amazônica, a abertura de áreas preservadas oceânicas à exploração
comercial e os desastres ecológicos e sociais de Brumadinho, seguido ao
de Mariana são exemplos dos atentados constantes que causam vários
níveis de empobrecimento. As crianças que morrem baleadas, os 90.000
óbitos por covid-19 nos primeiros seis meses de pandemia e todos os
demais que ocorrem e ocorreram por falta de atendimento básico... são

66
Patrimônio e destru i çã o

nossos patrimônios sendo perdidos deste modo e dentro da mesma


lógica perversa.
Discutir as perspectivas do Patrimônio é, portanto, pensar em por que
precisamos de florestas, de cidades antigas, de livros, de culturas
ancestrais. E para quê? Esta pergunta que vem sendo respondida há
vários séculos em contextos distintos, começou a ser colocada ainda no
século XVII na perspectiva de destruição do patrimônio histórico
medieval na França por ocasião da Revolução Francesa, ou na Inglaterra
durante a Revolução Industrial (CHOAY, 2014).
Aos poucos, o maquinário patrimonial referido por Henri-Pierre Jeudy
virou uma grande estrutura complexa e transnacional (JEUDY, 2001). O
autor é um crítico dos processos de patrimonialização quando estes
perdem todo vínculo com as memórias sociais e suas práticas, ou
quando não problematizam suficientemente a questão, perdendo laços
com a vida atual. Mas entre problematizar a questão patrimonial e
simplesmente aniquilá-la, há um verdadeiro abismo. Que algo seja
sujeito à reformulação e crítica não implica que sua aniquilação seja
desejável. Esta máxima resume a maior parte dos problemas políticos do
Brasil recente, onde às críticas necessárias seguiu-se não realmente um
debate aberto, apontando os avanços e correções de rumos necessários,
mas aniquilações sumárias com imensos retrocessos.
As recentes destruições de esculturas urbanas consideradas racistas e
opressoras, por exemplo, são um sintoma desta questão: devemos
aniquilar as memórias do processo histórico mundial por mais cruéis
que sejam? Ou devemos decidir o que devemos manter em nossas
cidades como algo que queremos celebrar e o que devemos arquivar
como memória, mesmo que nefasta? O que queremos lembrar? O que
queremos esquecer? Ou será que melhor que esquecer e apagar não
seria compreender e superar?
Devemos decidir sobre o esquecimento da história humana ou será
que ela é maior do que nós, que somos apenas um momento nesse
processo? Talvez a grande discussão contemporânea seja novamente
sobre o que queremos construir e deixar como contribuição para as
gerações futuras. Esperando que realmente tenhamos este grande
privilégio.

De fato, para caminhar nesse sentido é preciso realmente dar voz aos
oprimidos, como dizia Foucault, sabendo que cada dia somos mais
numerosos nesta situação. Mas nesse processo teremos principalmente
que reaprender a ouvir uns aos outros, sabendo que falamos às vezes
línguas inteiramente diferentes mesmo que seja usando um mesmo
idioma, com visões de mundo contraditórias e viciadas nas estruturas de
poder históricas, enraizadas e muito habituais. Somos totalmente
construídos a partir do que foi feito e do que fizemos até hoje de nós e do
mundo. Todo este processo gera por um lado o que queremos guardar e
celebrar como parte de nós. Mas expõe também tudo aquilo que
precisamos mudar. Acontece que para mudar não é necessário destruir,

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 67


Patrimônio e destr u i çã o

dizimar, aniquilar, muito pelo contrário. É necessário construir a partir


do que temos, sobretudo hoje em dia. A democracia existe como forma
de conduzir estes grandes debates de forma o mais ampla e participativa
possível. E é por isso que a questão do Patrimônio deve ser re-inscrita
numa dinâmica radicalmente democrática e extremamente cuidadosa.

BIBLIOGRAFIA
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação
Liberdade, 2014.
JEUDY, Henri-Pierre. La machinerie patrimoniale. Paris: Sens & Tonka,
2001.
JEUDY, Henri-Pierre e MOREIRA, Clarissa. O simulacro perfeito.
Entrevista traduzida e publicada em português no website da Rede
Universidade Nômade. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/o-
simulacro-perfeito/ Acesso em: 24 novembro 2020.

68
A MEMÓRIA DA FAVELA 1

Cosme Felippsen 2

Eu faço parte do SOS Providência, um comitê de crise que se formou


na pandemia para atuar em favelas na região portuária. São quatro
projetos: “Rolé dos Favelados”; “Casa Amarela”; “Rio, Memória e Ação” e
“Galeria Providência”, um evento que acontece uma vez por ano, sempre
a partir de um tema e com a participação de vários grafiteiros e artistas,
para preencher nossas paredes com mais colorido. O Galeria
Providência deste ano seria, ou talvez será, sobre memória.
Quando falo de patrimônio aqui na Providência, além de toda a
história da favela, penso na fachada da casa de Machado Assis, na
Ladeira do Livramento, que continua abandonada. No ano passado fiz
uma movimentação para colocar ali uma placa, aquela típica do Rio de
Janeiro, como a do artista que fez a placa de Marielle Franco. Pouca
gente sabe que Machado de Assis nasceu onde hoje é a primeira favela
do Brasil. Quando ele nasceu, em 1839, a favela ainda não tinha esse
título. A chegada do pessoal de Canudos foi em 1897, antes disso, em
1893, aconteceu a demolição do cortiço “Cabeça de Porco”. Dizem que
foi o dia em que a barata venceu o porco, quando o prefeito Barata
Ribeiro mandou demolir esse cortiço e as pessoas subiram o morro para
fazer ali o seu barraco.
E por falar em barraco, barraco é de madeira ou de alvenaria? Para o
favelado, barraco é casa de madeira. Porque as pessoas que moram no
asfalto olham para cima e falam: “olha lá os barracos da favela!”, mas o
favelado desconsidera casa de alvenaria como barraco. Barraco é casa de
madeira. E por falar em barraco, em 2009 teve uma exposição na Casa
França-Brasil, que se chamava “28 Milímetros: Mulheres da
Providência”, do fotógrafo francês JR. Ele “desceu o barraco”, literalmente.
Tem essa expressão, “eu vou descer o barraco!”, que é pejorativa e
significa dizer que vai fazer confusão, que vai brigar. Mas ele “desceu o
barraco” desconstruindo um barraco, um dos últimos aqui da
Providência, e re-montando lá na Casa França-Brasil. Essa exposição
depois rodou em vários lugares. Em uma parte do Rolé dos Favelados,
quando dou uma aula a céu aberto, eu apresento um barraco que ainda
1 Texto produzido a partir da transcrição da comunicação oral de Cosme Felippsen
na 10ª Roda de Conversa, sob o tema: “Patrimônio das Cidades: diversidade, conflitos e
possibilidades na contemporaneidade”.
2 Guia turístico, poeta, morador da Providência e parte da Comissão de moradores
da Providência contra as remoções. Formado em Guia de Turismo e Conferencista
Internacional no tema Moradia, Juventude, Favela, Corpo Preto e Intolerância Religiosa.
Criador e organizador DO guiamento turístico e cultural do Rolé dos Favelados.

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A MEMÓRIA DA FAV E L a

sobrevive na Providência, mas que não é mais habitado. Sempre lembro


da minha infância, porque nasci em um barraco de três por três metros,
barraquinho pequeno. Esse barraco que ainda existe na Providência me
traz essa memória. Pra quem mora na favela, barraco não é patrimônio.
Eu falo muito de cultura, e talvez nem tanto de patrimônio, porque pro
favelado, pra favelada, o maior patrimônio que se tem é a vida. Enquanto
as pessoas lutam por direitos, o morador da favela luta por um único
direito, que é pra mim o principal, o de sobreviver. E ainda, no meio
dessa pandemia, com o caos que é a saúde pública, ainda temos que
enfrentar as balas, os tiros, os caveirões vindo destruir os nossos
patrimônios. Patrimônios nossos, os estudantes, as crianças de sete
anos, onze anos. Enfim, voltando ao que eu estava falando, o rolé visita
esse barraco, e agora eu vou dar uma cutucada no pessoal da
universidade. Vemos esse barraco e outras casas, de alvenaria, que estão
quase no topo do morro, e eu falo: “olha, isso tudo que foi construído
aqui em volta de vocês foi carregado nas costas dos trabalhadores”.
Hoje em dia, pra subir qualquer coisa é mais caro. Se paga pelo
material e também alguém pra carregar. Quando a favela teve início, as
coisas eram mais cooperativas, mais coletivas. O mutirão pra virar uma
laje era um evento de final de semana. Dona Maria fazia uma rabada,
uma feijoada, um mocotó, um churrasco, uma dobradinha ou um baião
de dois e, no final, as pessoas que viravam a laje ou faziam alguma parte
da casa, comiam e bebiam. De todas as casas de alvenaria que vi
construir, nenhuma é assinada por um arquiteto, um engenheiro. Elas
são feitas por favelados, em sua maioria nordestinos, negros, semi-
analfabetos, ou até analfabetos. E eu fico me perguntando, como uma
pessoa, sem um curso de matemática, engenharia, arquitetura faz essas
construções? E eu pergunto em inglês: “Who teaches in the university?”.
Será que são alienígenas que descem e vem trazer um ensino superior?
Ou é uma construção do dia a dia, o conhecer popular, a sabedoria
popular, que é aprendida no dia a dia, no cotidiano?
A universidade vem pesquisar esses espaços favelados, periféricos e
carregam esse saber pra dentro da academia, criam seus cursos, seus
diplomas… Então, a favela tem muito o que ensinar também. Alguém
disse que se a favela descer o morro pra protestar, haverá revolução, tudo
para; mas, na verdade, em dias normais, sem pandemia, se ninguém for
trabalhar, se em uma segunda ou terça de manhã, todos os favelados
resolverem ficar em casa, se ficarem em casa mesmo, nada funciona.
Nós somos potência!
Aqui no Morro da Providência, além da casa do Machado de Assis, tem
tantas outras coisas. No alto do morro tem o Oratório. Os moradores
chamam de Oratório das Almas, ou Capela das Almas, mas chamam
também de Igreja do Cruzeiro. Pouca gente sabe que ela foi construída
antes de 1900 e chegou a ser o referencial na paisagem do Rio de Janeiro.
Era o marco religioso da cidade, antes do Cristo Redentor. Já há muitos
anos, quando eu era criança, vejo o abandono dessa igreja. Inclusive, em
2006, ela foi invadida pelo Exército, que ocupou o Morro da Providência

70
à procura de fuzis, que sumiram em um quartel, mas não estavam aqui,
enfim. Eles invadiram essa igreja, arrancaram o cruzeiro e ficou por isso
mesmo. Ainda tem a Igreja da Penha, aqui da Providência, que tem mais
de 150 anos e fica próxima à Igreja do Cruzeiro.
César Maia fez um circuito na sua gestão, por volta de 2005, 2006, no
contexto do Favela Bairro aqui na Providência. Construiu três mirantes
lá em cima, no alto do morro, perto dessas igrejas, e fez um caminho de
lista metálica. Tem muito morador que até hoje não sabe pra que serve
aquilo, mas é o Museu a Céu Aberto, que na chuva só serve pra
escorregar. Essa história não foi adiante, poucas pessoas sabem desse
projeto do Museu a Céu Aberto porque não foi divulgado.
Depois, Eduardo Paes tentou remover quase 80% do Morro da
Providência e conseguiu construir o teleférico. Em 2012, estava pronto, e
em dezembro do mesmo ano Eduardo Paes e Papai Noel passearam no
teleférico. Somente em 2014, dois anos depois de pronto, que o teleférico
começou a funcionar, poucos dias antes da Copa do Mundo. Funcionava
muito precariamente, sem atender em horário agradável aos moradores.
Em 2016, um pouco depois das Olimpíadas, o teleférico fechou,
cumprindo seu prazo de validade, como já imaginávamos que seria.
Antes da construção do teleférico, os moradores disseram que
preferiam um elevador panorâmico, que levaria de fato as pessoas para o
alto do Morro da Providência, onde não chega carro e nem moto, só se
sobe por aquela escadaria a pé. Esse elevador panorâmico não
removeria ninguém, porque lá em cima há um espaço aberto, onde as
pessoas poderiam desembarcar. Então, as pessoas viriam da Central do
Brasil e subiriam. Assim, realmente atenderia ao pessoal que precisa, do
alto do morro, porque o teleférico faz o mesmo caminho das Kombis que
já fazem o transporte. Ele é apenas um atravessador, pega as pessoas na
Central do Brasil e leva pra Gamboa, fazendo o mesmo caminho do
túnel João Ricardo, que fica embaixo da Providência.
Então, Eduardo Paes tentou remover 832 famílias do Morro da
Providência. Eu fiz parte da comissão de moradores que lutou contra as
remoções. A Secretaria de Habitação, do Jorge Bittar, tinha 131 milhões
de reais para o projeto Morar Carioca. Começaram a remoção, que com
a nossa luta estagnou em 200 casas, porque em 2012 ganhamos uma
liminar na justiça que proibiu as remoções.
Estou falando da Providência, mas em volta do morro têm muitos
lugares ricos, que antes da pandemia já estavam em estado precário.
Tem o Cais do Valongo, que se não cumprisse algumas exigências,
perderia o título de Patrimônio da Humanidade. O interessante é que eu
fui ao lançamento da segunda etapa de restauração do Cais do Valongo e
a maior parte da doação em dinheiro para a obra não veio da Prefeitura
do Rio de Janeiro e sim de uma empresa chinesa. Não sei qual a relação
dessa empresa chinesa com o projeto, mas achei curioso esse apoio vir
de fora.
Existe o Jardim Suspenso do Valongo, que tem quatro imagens gregas

E SCO L A EM TRA N SE: EA U - UF F 71


A MEMÓRIA DA FAV E L a

que vieram para apagar e esquecer o que aconteceu ali embaixo, na Rua
Camerino. Essa rua não servia só como área para vender o corpo preto, o
corpo escravizado, sequestrado do continente africano. Servia também,
em vários casarões dali, para vender utensílios da escravidão, como
correntes, chicotes e outras coisas do tipo. Quando passo ali na Rua
Camerino, eu sempre me pergunto em qual daquelas casas eram
vendidos esses utensílios. Tem ainda o Cemitério dos Pretos Novos, o
Instituto dos Pretos Novos, que vem resistindo. O VLT passa por cima de
muita ossada, há quem diga que 60 mil corpos foram jogados ali. Os
historiadores falam “Cemitério dos Pretos Novos”, com muita delicadeza
e respeito, mas na verdade era uma vala, tanto que foram achadas
ossadas misturadas com restos de porcelana, coisas quebradas, que
eram jogadas por cima dos corpos pretos.

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