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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

CORPO, EMOÇÃO E IDENTIDADE NO CAMPO FEMINISTA CONTEMPORÂNEO


BRASILEIRO: A MARCHA DAS VADIAS DO RIO DE JANEIRO

Carla de Castro Gomes

Rio de Janeiro
Março de 2018
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CORPO, EMOÇÃO E IDENTIDADE NO CAMPO FEMINISTA CONTEMPORÂNEO


BRASILEIRO: A MARCHA DAS VADIAS DO RIO DE JANEIRO

Carla de Castro Gomes

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em
Sociologia (com concentração em Antropologia).

Orientadora: Profª. Dra. Bila Sorj

Rio de Janeiro
Março de 2018
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CORPO, EMOÇÃO E IDENTIDADE NO CAMPO FEMINISTA CONTEMPORÂNEO


BRASILEIRO: A MARCHA DAS VADIAS DO RIO DE JANEIRO

Carla de Castro Gomes

Orientadora: Profª. Dra. Bila Sorj

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Sociologia (com concentração em
Antropologia).

Aprovada em 5 de março de 2018 por:

Profª. Drª. Bila Sorj (PPGSA/IFCS), Presidente

Profª. Drª. Adriana de Resende Barreto Vianna (PPGAS/MN/UFRJ)

Profª. Drª. Ana Paula da Silva (PCH/INFES/UFF)

Profª. Drª. Aparecida Fonseca Moraes (PPGSA/IFCS)

Profª. Drª. Regina Facchini (Pagu/PPGCS/PPGAS/IFCH/UNICAMP)

Profª. Drª. Sonia Alvarez (University of Massachussets, Amherst)


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Gomes, Carla de Castro


Corpo, emoção e identidade no campo feminista contemporâneo
brasileiro: a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro/ Carla de Castro
Gomes. - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2018.
xii, 315f.: il.; 30cm
Orientadora: Bila Sorj
Tese (doutorado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia, 2018.
Referências Bibliográficas: f.271-285
1. Corpo. 2. Emoção. 3. Identidade. 4. Movimento Feminista. 5.
Marcha das Vadias. I. Sorj, Bila. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título
4

RESUMO

CORPO, EMOÇÃO E IDENTIDADE NO CAMPO FEMINISTA CONTEMPORÂNEO


BRASILEIRO: A MARCHA DAS VADIAS DO RIO DE JANEIRO

Carla de Castro Gomes


Orientadora: Profª. Dra. Bila Sorj

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e


Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Sociologia
(com concentração em Antropologia).

A literatura sociológica sobre movimentos sociais fala pouco sobre o corpo como elemento
constitutivo do protesto. No entanto, o corpo deve ser reconhecido como um importante artefato
político dos movimentos e protestos atuais, preparado e modulado por ativistas para expressar suas
preocupações políticas. Ao estudar a Marcha das Vadias carioca, protesto anti-estupro que desde
2011 atrai milhares de pessoas às ruas, analiso a construção do corpo sob duas óticas. Na primeira,
apresento o corpo como repertório. A Marcha das Vadias aposta em um frame de transgressão, em
que o corpo e a emoção desempenham papel central, e relega a segundo plano o frame
vitimário que costuma dar o tom das ações feministas de combate à violência de gênero no Brasil
e no mundo. Na segunda, analiso como o corpo é mobilizado na produção de narrativas de diferença
e identificação entre grupos feministas. Emoções e marcas corporais de raça, gênero, sexualidade,
idade e classe são agenciadas por apoiadoras e críticas da Marcha das Vadias na construção e
legitimação de agendas políticas distintas. O corpo, aqui construído como suporte para alianças,
contestações e conflitos, constitui um terreno fértil para a reelaboração da política identitária
feminista contemporânea. Materializando, para as participantes, um poderoso sentido de agência
individual e coletiva, o corpo que protesta está investido de uma eficácia simbólica que merece a
atenção dos estudiosos dos movimentos sociais.

Palavras-chave: Corpo, Emoção, Identidade, Movimento Feminista, Marcha das Vadias


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ABSTRACT

BODY, EMOTION, AND IDENTITY IN THE BRAZILIAN CONTEMPORARY FEMINIST


FIELD: THE RIO DE JANEIRO MARCHA DAS VADIAS

Carla de Castro Gomes


Orientadora: Profª. Dra. Bila Sorj
Co-orientadora: Profª. Dra. Aparecida Fonseca Moraes

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e


Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Sociologia
(com concentração em Antropologia).

Social Movements theories have been neglecting the body as a constitutive element of protest.
However, it should be acknowledged as an important political artifact of contemporary movements
and protests, one that is prepared and modulated by activists to express their political concerns. By
studying the Rio de Janeiro SlutWalk (Marcha das Vadias), an anti-rape protest that since 2011
has been attracting thousands of people to streets, I analyze the construction of the body in two
levels. First, I display the body as repertoire. The SlutWalk invests in a transgression frame, in
which the body and the emotion enact a pivotal role, and pushes to the backstage the victimization
frame that usually characterizes feminist actions against gender violence in Brazil and the world.
Second, I analyze how the body is mobilized in the production of narratives of difference and
identification between feminist groups. Bodily marks of race, gender, sexuality, age and class are
operated by SlutWalk’s supporters and detractors in the building and legitimation of distinct
agendas. The body, hereby constructed as a support to alliances, disputes and conflicts, constitutes
a fertile ground to the re-elaboration of contemporary feminist identity politics. By materializing
to activists a powerful sense of individual and collective agency, the protesting body is invested
with a symbolic efficacy that deserves social movements scholars’ attention.

Key-words: Body, Emotion, Identity, Feminist Movement, Marcha das Vadias


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Para Virgínia Figueiredo, há quase quarenta anos feminista e lésbica “de plantão”.
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AGRADECIMENTOS

Cinco anos, quinze quilos e muitos encontros reverberam nestas páginas. Debates, aventuras,
gargalhadas, abraços, angústias. Pessoas que de muitas formas habitam minha escrita, meus dias,
minha vida e a quem sou profundamente grata.

Josalma, Rachel, Julliano, Duda, Fabinho, Yasmin, Theo e Emanuel, minha família primeira,
sempre torcem por mim, perdoam minhas ausências e fazem os melhores almoços de domingo.
Perguntam pelo que aprendi e me desafiam a dizê-lo: uma tese tem que caber na mesa da cozinha,
ora bolas. Poucas vezes sou bem-sucedida, mas vocês nunca deixam de perguntar. Amo vocês.

As vadias que conheci nessa jornada mudaram minha vida para sempre. Minhas interlocutoras,
amigas, irmãs. Compartilharam comigo suas memórias e saberes, sem reservas. Com elas me torno
feminista todos os dias. Juntas, vadiamos muito por aí, ganhamos as noites, bebemos as ruas,
adocicamos os carnavais. Fazemos planos mirabolantes para acabar com o patriarcado, festejamos
nossas pequenas vitórias, navegamos os enormes desafios e aflições dessa travessia. Rimos tanto,
tememos também, brigamos às vezes, de mãos dadas. Jimena, Gabi, Jandira, Virgínia, Alyne, Laura
e Jordanna: é nóis. Essa tese é de vocês, amoras.

Bila Sorj me enfeitiçou ainda na graduação. Me guiou pelo mestrado, pelo doutorado e por
caminhos que nem imagina. Acho que sabe tudo, sem saber. Generosa, me presenteia com sua
amizade, com suas ideias, com suas perguntas, com sua visão de pássaro, com seu gosto pelo
pensar. É sempre uma honra e uma alegria ter você nessa caminhada.

O cordão do 302, melhor bloco de carnaval, é pau pra toda obra. Turri é a porta-estandarte, tem as
melhores fantasias, a sagacidade de pensamento e juntas caminhamos os labirintos do doutorado.
Tainex, incríiiiivel companheira de livros e dona de abraços revigorantes, me inspira com sua
curiosidade e me fortalece com seu carinho sempre a postos. Rapha me mostra caminhos criativos
enquanto canta tchá-tchá-rá-tchá, rebatiza as ruas da Tijuca e revisa minha tese. Marquitos me
alimenta com as conversas das madrugadas, com a divina torta de chicória (ou é acelga?) e com as
referências bibliográficas prontinhas. Ô sorte!
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Silvia enche a casa com a melhor risada que tem. Nas horas vagas é também bôta, Chacrete,
Palomita, liderança, parecerista de artigos enormes, abridora de caminhos e sossegadora de
cancerianas aflitas. Lulu, de há muito e de sempre, de longe e de perto, sempre me encoraja a pisar
o desconhecido, me mostra cidades, me empresta sua biblioteca e me contagia com sua energia
inesgotável. Às amigas Camila Fernandes, Priscilla Brito, Anna Bárbara Araújo e Paulo Victor
Leite Lopes agradeço pelas leituras de partes deste trabalho e pelos valiosos insights. Rimão Juliano
D’Angelo, Maria Abreu, Marina Nucci, Livi Faro, Suzane Vieira, Stephanie Ribeiro, Lucas Freire,
Everton Rangel, Aline Rabelo Turtle, Ozzy, Aline Paiva, as chicas Julica, Júlia e Aninha, as ADS
Aline, Anita, Marina e Ju: meu muito obrigada pelo carinho, presença e torcida.

Aparecida Fonseca de Moraes me iniciou na pesquisa de campo, me deu puxões de orelha


providenciais, me co-orientou no mestrado, divide estórias e cervejas e sempre me incentiva.
Adriana Vianna esteve presente em todas as minhas bancas, me oferece seu olhar generoso e
sensível, compartilha réveillons, sushis e cancerianismos. Ana Paula da Silva é companheira nas
tretas e risadas. Regina Facchini e Sonia Alvarez são inspiradoras. Agradeço a vocês por
participarem da banca examinadora desta tese, pela leitura tão generosa que dela fizeram e por
iluminar novos caminhos. Às professoras Maria Elvira Diaz-Benítez, Elisa Reis, Grazi Moraes,
Eloisa Martin e Jean François Verán, agradeço pelas aulas inspiradoras e pelas contribuições a este
trabalho.

Minha aventura de um ano em Nova York foi uma das experiências mais incríveis que vivi nos
anos de doutorado. Encontrei os melhores roommates da cidade, meus ursinhos queridos Leonel e
Dane. Inesquecíveis nossas noites de RuPaul, nossos passeios na neve, de bicicleta, nos museus,
na Opera. Love you, guys! Gabi foi minha parceira de vadiagem na gringolândia, de pad thai, de
Halloween, de boates desconhecidas e de longas conversas. Fui aprender inglês com Tamerra e
ficamos amigas antes mesmo de saber as palavras. Heather me levou à praia, a shows, a museus;
me convidou para falar em sua aula e debateu generosamente meu trabalho. Sandrita e Cookie
animaram o natal e o office. Lulu (de novo!) e Shim; Rafa e Catalina; Luciana e Felipe; Benny e
Rob; Roberta, Vera e Marina; Raphi; Flávia e Anderson; Andrei e Aya; Maria e Fernanda; Tinka;
Karina e Yin; JQ, Brian, Daniel, Michael e Bill; Michelle Flores e Daphne Carr; Isaque Ribeiro,
Burcu, Lucia Guerra, Mayra Cotta, Renata Menezes e Marco Antônio Gonçalves, muito obrigada
por alegrarem minha estadia em Nova York. À Kiamesha Wilson e Mrs. Dora, do departamento de
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Sociologia da Universidade de Columbia, agradeço pelo cuidado e atenção. Ao prof. John Krinski
e colegas do Politics and Protest Workshop (CUNY), à profa. Diana Taylor e à turma de
Performance and Activism (NYU), e à profa. Saidiyia Hartmann e à turma de Feminist Theoretical
Paradigms (Columbia), sou muito grata pelos debates instigantes.

DeeDee Pereira, Nat Gonçales, Amanda Giordano, Julia Zanetti, Iara Amora, Nataraj Trinta, Lili
Maiques, Malu Barbosa, Íris Medeiros, Carol Brandão, Jessicka Silveira, Indianara Siqueira,
Mariana dos Reis, Angela Freitas, Sonia Correa, Adriana Mota, Brena O’dwyer, Carla Romão,
Maria Suprani, Jac Ribeiro, Jurema Werneck, Thayz Athayde e Thais de BH, muito, muito
obrigada pela amizade, colaboração, tempo e saberes que dedicaram a mim e a esta pesquisa.

Ao PPGSA, à Claudinha, Angela, Verônica e Gleidis meu muito obrigada pelo apoio em todos
esses anos. Agradeço também à Columbia University e ao professor Yinon Cohen por
possibilitarem minha estadia e estudos em Nova York.

Ao CNPq e à CAPES, agradeço pelas bolsas de estudos concedidas.


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A mulher de Lot

Dizem que olhei para trás de curiosa.


Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam lá no cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma e outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira, trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.

(Wisława Szymborska)
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Sumário

Introdução ................................................................................................................................. 13
A Pesquisa ................................................................................................................................. 24
Capítulo 1: As vadias .................................................................................................................. 36
1.1. Vadias em toda parte....................................................................................................... 37
1.2. As vadias cariocas ........................................................................................................... 47
Primeiros passos (2011-2012) ............................................................................................ 47
“Autonomia” ..................................................................................................................... 57
“Horizontalidade” .............................................................................................................. 69
Online ................................................................................................................................ 73
Off-line .............................................................................................................................. 87
“Evento” ou “processo”?.................................................................................................... 92
Capítulo 2: Os corpos ............................................................................................................... 100
2.1. Encorporando frames .................................................................................................... 102
2.2. Corpo e emoção na Marcha carioca ............................................................................... 113
2.3. “Corpos-bomba” ........................................................................................................... 137
Capítulo 3: As outras ................................................................................................................ 162
3.1. As “institucionalizadas” ................................................................................................ 163
3.2. “RadFems” ................................................................................................................... 202
3.3. Vadias pretas? ............................................................................................................... 227
Conclusão: De finais, (re)começos e transformações ................................................................ 267
Referências bibliográficas......................................................................................................... 271
ANEXO A: Imagens da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro ..................................................... 286
ANEXO B: Manifestos da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro (2011-2015) ............................. 295
ANEXO C: Roteiro básico de entrevista com feministas............................................................. 313
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Introdução

Em 2006, a Revista Veja publicou um número intitulado “O que sobrou do feminismo”, em que
afirma que o movimento teria fracassado em acabar com as grandes desigualdades de gênero e, por
isso, estaria em crise, se não morto. Quase dez anos depois, a Revista Época lança o número “A
primavera das mulheres”, em que descreve a “onda” de protestos feministas que “varreu” a internet
e as ruas do país em 2015. O que aconteceu?

Nenhum movimento social foi tantas vezes declarado morto como o feminismo. Desde a década
de 1970, narrativas de enterro do feminismo têm sido recorrentes nos meios de comunicação em
várias partes do mundo (Hawkessworth, 2006). No Brasil, discursos em revistas e blogs na última
década apontam causas de morte variadas e mesmo opostas. Enquanto para alguns a “crise” do
movimento é explicada por seu suposto fracasso em alcançar os objetivos almejados, para outros,
é o seu extraordinário sucesso que o tornaria agora dispensável. Os que apostam no seu fracasso
avaliam que ele deixou inalterada a divisão sexual do trabalho, ou que se degenerou em
individualismo e desorientação: mulheres se comportando como “predadoras” sexuais, enquanto,
no fundo, ainda procuram pelo “príncipe” viril; homens atônitos sem saber que “papel” devem
desempenhar. Os que acreditam no sucesso do movimento, argumentam que ele já teria franqueado
às mulheres igualdade e liberdade, e estaria, portanto, obsoleto. Na melhor das hipóteses, seria uma
relíquia ainda necessária às “outras” mulheres, aquelas que vivem em regiões “atrasadas”, ora em
partes remotas do globo, ora nas periferias vizinhas, mas sempre longe de “nós”.

Narrativas de morte são também produzidas por muitas feministas que presumem que o legado de
lutas das gerações dos anos 1970, 1980 e 1990 esteja se perdendo, uma vez que as jovens, ao
crescerem em uma sociedade que ampliou as liberdades de escolha das mulheres, teriam perdido a
noção da transformação histórica das relações de gênero provocadas pelas lutas feministas do
passado. Condenado ao fracasso, ao sucesso ou ao esquecimento, nestas narrativas o feminismo
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teria deixado de representar adequadamente os anseios das mulheres e perdido a legitimidade como
arcabouço ideológico e prática política – um discurso que se reproduz há mais de quatro décadas.

Como explicar então as aparições públicas de mulheres que de tempos em tempos voltam para nos
assombrar em protestos? É aí então que surgem as narrativas de ressuscitamento, que com olhos
arregalados de surpresa, descrevem as manifestações feministas como eventos pontuais e súbitos,
surtos espontâneos que “varrem” as ruas em momentos críticos. A “Primavera das Mulheres” é
descrita nos canais de comunicação como um “novo” movimento, que “explodiu” a partir da
indignação de mulheres atomizadas e retomou questões há muito “paradas” – uma “onda” sem
passado, e que provavelmente será declarada morta na próxima estação.

Tanto as narrativas de morte como as de ressuscitamento se baseiam em definições estreitas e


anacrônicas do movimento. Nas décadas de 1970 e 1980, o incipiente feminismo brasileiro era
caracterizado por coletivos auto-organizados de mulheres, que embora inseridas no campo mais
amplo de resistência à ditadura e de mobilização popular, buscavam definir um campo e agenda
próprios. Na década de 1990, com a redemocratização, o movimento se institucionaliza em ONGs,
que se tornam as principais articuladoras do feminismo no Brasil e na América Latina. Um circuito
feminista transnacional se constitui, cujos lugares mais visíveis são as grandes conferências
mundiais e instituições intergovernamentais, que incorporando a chamada “agenda de gênero”,
eram as principais financiadoras das ONGs. Organizações feministas de advocacy articularam a
criação de políticas públicas e leis de promoção da igualdade de gênero e, ao longo da primeira
década do novo milênio, a maioria dos países da América Latina desenvolve mecanismos
institucionais para o avanço das mulheres dentro da burocracia estatal, com a criação de
ministérios, institutos, conselhos e outras figuras. Com base nesse passado recente, muitos analistas
(e ativistas) do movimento feminista se acostumaram identificá-lo com uma forma muito específica
de atores – organizações bem delimitadas – realizando uma gama restrita de atividades, como a
promoção de políticas públicas e sociais, com grande interesse em incidir no Estado, e com
visibilidade pública em nível nacional e internacional. Quando não detectam essas formas
amplamente conhecidas de ação feminista, declaram a morte do movimento; quando vislumbram
alguma movimentação pública, anunciam sua ressurreição.

Se no passado recente a atuação mais visível das feministas se deu nas organizações e junto ao
Estado, isso não significa que essas eram as únicas expressões do movimento, mas apenas as mais
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visíveis em uma dada conjuntura. Do mesmo modo, se atualmente ONGs e mecanismos estatais
parecem não ter o mesmo protagonismo de outrora, isso não seve ser pretexto para “matar” o
feminismo mais uma vez. Muito pelo contrário, como mostra Alvarez (2014b), o campo feminista
vem se expandindo para diversos espaços para além dos locais mais facilmente identificáveis do
Estado e das organizações. Percebendo tendência semelhante nos EUA, Jo Reger (2012) argumenta
que o feminismo está ao mesmo tempo “em toda parte” e “em lugar nenhum”: as novas gerações
de ativistas vivem num contexto em que a igualdade de gênero é tomada como dada, mas os rastros
da transformação histórica das relações de gênero não estão aparentes, dada a ausência de grandes
lideranças e organizações nacionais. As novas gerações passam por um processo gradual de se
tornarem feministas, a partir das relações de diferença e semelhança com as gerações mais velhas
e entre os diversos grupos, e a partir das oportunidades colocadas pelo contexto político e cultural
local.

Pensar o ativismo feminista pela ótica das mudanças e permanências leva necessariamente a
enfrentar o tema da periodização do movimento, que tem sido objeto de muita controvérsia. No
esforço de criação de uma narrativa histórica do movimento, tornou-se comum descrevê-lo como
dividido em “ondas”, períodos mais ou menos delimitados no tempo e caracterizados por um tipo
de concepção e prática política dominante. Assim, para o Brasil, são apresentadas, em geral, três
grandes ondas. Na primeira, compreendida entre final do século XIX e a 2ª Grande Guerra,
mulheres se organizaram em torno da conquista de direitos fundamentais, como o voto, educação,
ingresso em carreiras consideradas masculinas e condições dignas de trabalho. A segunda onda,
deflagrada no bojo da contracultura dos anos 1970, marca a consolidação do feminismo enquanto
movimento político e a produção teórica sobre a opressão feminina em diálogo com a militância
política (Heilborn e Sorj, 1999). “Nosso corpo nos pertence” e “o pessoal é político” foram
bandeiras desta fase, frequentemente rememorada como uma espécie de “época de ouro” do
feminismo. A terceira onda, mais imprecisamente localizada no final da década de 1980, marca um
momento de renovação teórica e de proliferação de diversas categorias identitárias de mulheres
(Piscitelli, 2002; Pinto, 2003). A unidade do feminismo, construída pelo discurso da opressão
comum das mulheres nas sociedades dominantemente patriarcais, é contestada. Inaugura-se uma
noção de múltiplas opressões, notadamente aquela que emerge das desigualdades raciais. Ao
discurso binário simples que opunha mulheres e homens se sobrepõem outras oposições binárias,
sobretudo entre mulheres brancas e negras, do Sul e do Norte.
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Todavia, a periodização do feminismo em ondas vem sendo contestada por diversas razões.
Argumenta-se que o uso da noção de ondas implica omissões e exclusões de muitas expressões do
feminismo que não se enquadram nos critérios definidos como dominantes em cada onda,
conferindo, dessa maneira, uma ideia de uniformidade a um movimento que sempre teve práticas
e concepções diversas. Além disso, o uso do termo onda cria uma aparência de neutralidade e
objetividade sobre o processo de nomeação quando, na verdade, toda periodização envolve disputas
de poder e lutas por reconhecimento. Nesse sentido, proclamar um momento histórico como uma
“nova onda” confere poder aos seus enunciadores e valoriza a sua agenda política. Por fim, a
metáfora de “onda” remete a um processo de constante substituição de feminismos, no qual o
anterior se esvai e é sucedido por um novo, enfatizando as rupturas entre gerações e projetos,
ignorando as linhas de continuidade entre eles (Hemmings, 2009; Bailey, 1997).

Assim, enquanto alguns anunciam a “quarta” onda, ou ainda “o novo” feminismo, opto por pensar
o feminismo, e os movimentos sociais em geral, como configurações históricas mutáveis,
iluminando seu caráter processual e heterogêneo. Considero muito elucidativa a formulação
epistemológica de Sonia Alvarez (2014b), para quem o movimento feminista é um “campo
discursivo de ação”, constituído por uma vasta gama de atores coletivos e individuais alocados em
diferentes lugares sociais, compartilhando e disputando visões de mundo. De acordo com o
contexto histórico, e sua particular configuração de oportunidades, constrangimentos e forças
políticas, certos atores e formas de ação ganham maior projeção que outros no campo. Produto de
disputas internas e externas, o campo feminista está sempre em fluxo e nunca foi homogêneo.

Bem antes da “Primavera das Mulheres”, já era possível notar sinais de expansão e diversificação
de campos feministas no Brasil. Por exemplo, a trajetória de participação de feministas em
organizações sindicais, que começa de forma marginal na década de 1980, se consolida nos últimos
anos com a proliferação de secretarias, departamentos e coletivos de mulheres, de gênero ou de
igualdade de oportunidades, promovendo agendas feministas no mercado de trabalho e no
sindicalismo (Soares, 2016). Entre os sindicatos rurais, também é notável a difusão do ideário
feminista. Em sua quinta edição em 2015, a Marcha das Margaridas, organizada por entidades
sindicais da agricultura, reuniu em Brasília mais de cem mil trabalhadoras pelo “Desenvolvimento
Sustentável com Democracia, Justiça, Autonomia, Igualdade e Liberdade”, e é considerada a maior
mobilização de mulheres do campo e da cidade no país. Dentro dos movimentos de esquerda, como
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o Levante da Juventude, as Brigadas Populares, a Consulta popular, o MST e o movimento


estudantil, além dos grupos anarquistas, vêm se consolidando espaços feministas auto-organizados,
em que mulheres, especialmente as jovens, buscam incrementar a participação feminina nas
instâncias decisórias, bem como incluir pautas de gênero nos programas políticos. Importante
mencionar também a Marcha Mundial de Mulheres, que vem atuando como importante
articuladora do chamado “feminismo popular”, ao promover a organização de núcleos feministas
dentro de sindicatos urbanos e rurais, partidos e movimentos populares (Lebon, 2014). No âmbito
das relações entre feminismo e Estado, destaco, entre outros processos, as Conferências Nacionais
de Políticas para as Mulheres, realizadas entre 2004 e 2016, cuja organização mobilizou centenas
de milhares de mulheres nos níveis municipal, estadual e federal. Em todos esses espaços e
processos sobressai a diversidade de atoras, projetos, formas de organização e expressão. As
disputas que permeiam e constituem o espaço discursivo nesses diferentes campos feministas e
entre eles também são diversas e giram em torno de problemas como a ênfase dada às questões de
classe ou gênero/sexualidade, as desigualdades raciais entre mulheres, o status feminista e
trabalhista das prostitutas, a participação de pessoas trans1, entre outras.

As feministas negras, que desde o final da década de 1970 vêm construindo uma rede própria de
organizações e atores diversos, constituem hoje um dos movimentos mais vibrantes do campo.
Entre as iniciativas recentes, destaco a criação de incontáveis coletivos de mulheres negras nas
universidades; grupos de pesquisa, de intelectuais e acadêmicas negras; grupos comunitários de
“conscientização” e “empoderamento”; coletivos de lésbicas e trans negras. Ao debaterem sobre
racismo, sexismo, corpo, sexualidade, maternidade, trabalho, cultura etc., constroem um
vocabulário político compartilhado e disputam identidades. Sempre em tensão com o movimento
negro e com o movimento feminista, e atravessado por disputas internas que refletem a diversidade
de ativistas e organizações, o feminismo negro tem sido fundamental para visibilizar as articulações
entre raça, gênero e outros marcadores sociais. A primeira Marcha das Mulheres Negras, que reuniu
mais de 30 mil participantes em 2015 em Brasília, foi uma expressão pública recente da vitalidade
desse movimento.

1
“Pessoas trans” é um termo êmico usado para abarcar as identidades “travestis”, “mulheres transexuais”, “homens
trans”. Sobre identidades trans, ver Carvalho (2011).
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Expressões feministas “autônomas” se multiplicam em toda parte: são grupos mulheres


“periféricas” e “faveladas”; coletivos de mães, de lésbicas e bissexuais, de estudantes universitárias
e secundaristas; de jovens grafiteiras, rappers, MC’s, funkeiras e skatistas; integrantes de teatro
popular ligados aos movimentos de esquerda; poetisas, escritoras, atrizes e musicistas; cooperativas
de mulheres e pequenas empresárias, e até blocos e fanfarras de carnaval feministas. Se organizam
e se expressam tanto nos espaços físicos, como também na internet, onde a polifonia de blogs e
portais de notícias, canais no Youtube e páginas do Facebook é quase ensurdecedora. Mais do que
uma ferramenta de organização, a internet é uma extensão do campo feminista.

Meu esforço de enumerar aqui várias expressões recentes do feminismo brasileiro não faz jus à
diversidade e complexidade do campo. São inúmeros os espaços onde pessoas elaboram suas
atividades em torno de discursos feministas, criando redes cada vez mais extensas de atores
institucionalizados ou não, articulados em maior ou menor grau entre si. Se no início dos anos 1980
o campo feminista era bastante circunscrito, hoje ele permeia outros movimentos sociais, a
sociedade civil e as instituições políticas, além de cenas culturais e artísticas e o mercado. Este
tampouco é um processo exclusivamente brasileiro, mas têm sido observado em diferentes
contextos, de que o Ni Uma Menos na América Latina em 2015, a greve de mulheres na Polônia
em 2016 e a Marcha das Mulheres nos EUA em 2017, são apenas alguns exemplos recentes.

Este processo de expansão e diversificação do campo feminista acontece em um contexto em que


grupos conservadores religiosos e seculares têm ocupado lugares estratégicos de poder, como a
mídia e o Congresso, onde disputam ativamente questões que afetam os direitos relacionados à
equidade de gênero e à diversidade sexual e de gênero (Facchini e Sívori, 2017). Como analisam
Vital e Lopes (2013), nas eleições presidenciais de 2010, líderes católicos e evangélicos
pressionaram os candidatos a se posicionarem contra qualquer flexibilização da legislação sobre o
aborto 2, o que evidenciou o avanço da agenda religiosa na esfera política. Os autores também
descrevem como, em 2011, um projeto de material didático para debater questões de gênero e
sexualidade com adolescentes em escolas públicas, o Kit Anti-Homofobia, foi vetado depois que
deputados conservadores e religiosos foram bem-sucedidos em sua estratégia de criar pânico
moral, enquadrando qualquer tentativa de debater desses assuntos em escolas como “sexualização

2
No Brasil, o aborto induzido é ilegal, exceto em casos de gravidez resultante de estupro, risco à vida da mulher e
anencefalia fetal.
19

de crianças” (Vital e Lopes, 2013).3 No mesmo ano, o Congresso criou o Sistema Nacional de
Cadastro, Vigilância e Acompanhamento da Gestante e Puérpera para Prevenção da Mortalidade
Materna, visto por feministas como um dispositivo para identificação e criminalização de eventuais
tentativas de aborto. Desde 2007, o projeto de lei n. 478/07 ameaça garantir “proteção integral ao
nascituro”, o que, se aprovado, poderia anular o já restrito direito ao aborto no país.

Essas e outras investidas contra os direitos sexuais e reprodutivos, e identificadas por vários
movimentos sociais como parte de uma “onda conservadora” em ascensão, podem ter ajudado a
abrir uma oportunidade política para a emergência de novas expressões do movimento feminista
brasileiro. Muitos coletivos feministas têm aparecido em escolas e universidades, onde organizam
debates sobre assédio sexual, identidade de gênero e currículo inclusivo. Na internet, uma miríade
de blogs e fóruns feministas vem produzindo e difundindo um corpo de conhecimentos feministas
e mediando o engajamento político de jovens. Em 2014, a campanha online “Eu não mereço ser
4
estuprada” levou milhares de mulheres a postar selfies semi-nuas no Facebook depois de um
survey nacional ter revelado que 26% dos entrevistados concordavam que “mulheres que usam
roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” (IPEA, 2014) 5. Em 2015, a campanha
#PrimeiroAssédio teve, em apenas alguns dias, 82 mil tweets com depoimentos de mulheres
descrevendo sua primeira experiência de assédio sexual. Diante da grande repercussão, uma ativista
iniciou a campanha #AgoraÉQueSãoElas, que visava persuadir homens colunistas de canais de
notícias e blogs a ceder seus espaços a mulheres durante uma semana, o que resultou em várias

3
O fato de que o Kit Anti-Homofobia - composto de livros didáticos e vídeos produzidos pelo Ministério da
Educação para tratar de assuntos como identidade de gênero e violência contra gays e lésbicas – tenha ficado
pejorativamente conhecido como “Kit Gay” sintetiza o sucesso da estratégia conservadora. Mais recentemente, a
exclusão de qualquer conteúdo referente a gênero e sexualidade de alguns planos estaduais e municipais de
educação, sob a bandeira do combate à “ideologia de gênero”, e o programa “Escola sem partido”, que pretende
aprovar leis “contra o abuso da liberdade de ensinar”, podem ser considerados marcos importantes no processo de
organização de grupos conservadores no país.
4
O Facebook é muito popular no Brasil, país que representa um dos maiores mercados da empresa. Junto com Índia
e EUA, tem liderado o crescimento constante em número de usuários ativos nos últimos anos (Relatórios Anuais do
Facebook de 2012, 2013 e 2014, disponíveis em: http://investor.fb.com/annuals.cfm, u.a. 31 de janeiro de 2018).
5
Para ver os resultados completos da pesquisa: http://bit.ly/2eln0sz O IPEA, agência governamental que coordenou a
pesquisa, primeiro revelou erroneamente uma taxa de 65%. Quando alguns dias depois a agência publicamente
corrigiu a taxa para 26%, as mulheres mantiveram a campanha, declarando que ainda era necessário discutir os
preconceitos que normalizam a violência contra a mulher. Para ver algumas imagens dessa campanha:
http://bit.ly/1T92E4Z (u.a. 31 de janeiro de 2018)
20

colunas “ocupadas” por mulheres e na criação de uma coluna semanal escrita por mulheres
feministas em um jornal de grande circulação.

No final de 2015, quando outro Projeto de Lei (n. 5069/2013), de autoria de deputados integrantes
da Bancada Evangélica do Congresso Nacional, ameaçava dificultar o acesso aos serviços de
abortamento legal para vítimas de violência sexual no sistema público de saúde esses diversos
campos feministas organizaram protestos de massa, em que milhares de mulheres,
majoritariamente jovens, protestaram nas ruas das principais cidades do país. Reunindo mais de 20
mil pessoas apenas na primeira manifestação, no Rio de Janeiro, o protesto foi replicado em
diversas capitais brasileiras e obteve grande visibilidade midiática. Nessas manifestações, havia
diferentes repertórios e coreografias de protesto (Tilly, 1993; Foster, 2003). Entre bandeiras de
partidos e sindicatos e faixas de organizações feministas conhecidas, destacava-se um estilo de
mobilização que investe no valor performativo do corpo para questionar as normas de gênero e
sexualidade. Mães carregando seus bebês de colo, gestantes exibindo suas barrigas pintadas com a
frase “ser mãe é uma escolha”, mulheres com os seios nus ou com o corpo pintado de vermelho
simulando hemorragia abortiva tiveram grande repercussão na mídia e se tornaram símbolos desses
protestos. Cunhados pela mídia como “Primavera das Mulheres”, esses protestos manifestaram a
diversidade de atores e formas de organização feministas que vêm se consolidando nos últimos
anos. Mas, quase cinco anos antes, a Marcha das Vadias no Brasil já sinalizava a ebulição de um
feminismo jovem e a centralidade do uso político do corpo em protestos feministas.

A Marcha das Vadias é inspirada na SlutWalk, que começou em Toronto, no Canadá, como uma
reação à fala de um policial que disse que se as mulheres quisessem evitar o estupro, não deveriam
se vestir como sluts (putas, piranhas, vagabundas, vadias). A SlutWalk rapidamente foi replicada
em diversas cidades do mundo. No Brasil, onde ocorreu em mais de 60 cidades, com a participação
de milhares de pessoas e grande visibilidade midiática, foi chamada de Marcha das Vadias (daqui
em diante também referida como “MdV” e “Marcha”). Longe de ser uma “importação” do protesto
canadense, a Marcha é uma tradução política “translocal” (Alvarez, 2009), o que implica em
constantes trânsitos, transfigurações, reelaborações e reinvenções por parte de atores inseridos em
contextos políticos e relações sociais específicos. Neste estudo, eu exploro o modo como a Marcha
foi localmente traduzida na cidade do Rio de Janeiro, desde a sua aparição em 2011 até os últimos
acontecimentos que acompanhei, em 2016. Busco explicitar o contexto político da cidade e do país
21

que serviu de substrato às escolhas e ações das ativistas. Enfatizo especialmente o campo de forças
em que elas estavam imersas, junto com outras atoras feministas e de outros movimentos sociais,
com quem se engajavam em relações contingentes de aliança e disputa.

As vadias – categoria êmica central neste trabalho, pela qual as ativistas da Marcha se referem a si
mesmas e são reconhecidas por outros atores, e cujos significados são sempre contextuais e
relacionais, como ficará claro ao longo do texto – fazem um grande investimento na apresentação
dos seus corpos. Muitas mulheres usam sutiãs, biquínis, decotes ou exibem os seios nus, usam
roupas transparentes e curtas, batom vermelho e salto alto, pintam a pele com bordões como “meu
corpo, minhas regras”, “tire seus conselhos dos meus pentelhos”, “puta livre” e “útero laico”. As
roupas são muito coloridas, há homens de saias e vestidos, mulheres com bigodes sintéticos,
pessoas com perucas, com purpurina na pele, mascaradas, fantasiadas, rodando bambolês,
empunhando dildos, sinalizando “bucetas” com as mãos. A sensualidade dos corpos é celebrada;
os padrões de beleza feminina são questionados por corpos que reivindicam pêlos e diferentes
formatos; a menstruação é positivamente assumida. As vadias usam o corpo para demandar o
corpo; a tautologia como modo de encorporar projetos de “autonomia” e “liberdade”.

Na Marcha, os corpos das participantes constituem os próprios sentidos da ação coletiva, ao serem
mobilizados por elas para produzir novos códigos acerca da violência sexual e da sexualidade.
Essas corporalidades políticas incluem a expressão de emoções e sentimentos ligados ao humor,
ironia e provocação, preterindo a expressão pública de dor e a figura da vítima, marcantes em
outros protestos contra o estupro e a violência contra a mulher.

Os corpos e as emoções, que ocupam lugar central na MdV, sempre foram importantes recursos
políticos para todos os movimentos sociais, embora apenas recentemente tenham se tornado objetos
de interesse dos estudos sobre ação coletiva. As mensagens produzidas pelos movimentos têm
componentes corporais e emocionais que lhes dão sentido e capacidade de apelo público. Seus
slogans e palavras de ordem expressam e incitam certas emoções e afetos, como indignação,
orgulho e ironia, enquanto inibem outros. Isto fica evidente nas ruas, quando ativistas encorporam
emoções que se articulam ao teor das suas mensagens políticas: são corpos enlutados, potentes,
vulneráveis, estoicos, transgressores, ameaçadores, que riem ou que expressam dor. Assim como
os discursos e práticas corporais, a chave emocional de um protesto não é casual, mas resultado de
um trabalho de seleção e modulação de um repertório afetivo. Assim, corpos e emoções são
22

recursos discursivos dos movimentos sociais, tanto veículos de expressão – empunham-se cartazes,
gargantas falam, pernas caminham – como parte constitutiva dos conteúdos das mensagens –
punhos desmunhecados, gritos indignados, caminhadas orgulhosas. Nas páginas que se seguem, eu
dialogo criticamente com estudos no campo dos movimentos sociais, feminismo, emoções e
performance para explorar como corpos e emoções são produzidos por ativistas e, assim,
transformados em artefatos políticos.

Porque o corpo é tão provocador na MdV, este protesto angaria tanto adesões como rejeições
apaixonadas e levanta muitas controvérsias e debates em todos os lugares por onde passa. Se por
um lado, a marcha atraiu muitas participantes interessadas em um formato menos “convencional”
de ativismo, por outro, provoca muitas reações negativas por parte da mídia mainstream, do público
e, principalmente, de setores do movimento feminista, que reprovam o nome do protesto, o uso da
nudez ou duvidam da sua eficácia e legitimidade política. Diferente das gerações anteriores de
feministas, cuja atuação mais visível se dava em organizações formais e junto ao Estado, com
ênfase na formulação de políticas públicas de promoção da igualdade de gênero, as gerações
contemporâneas, incluíndo aí a Marcha das Vadias, se expandem também para outros espaços
menos visíveis no nível nacional e organizacional e enfatizam ações que visam a transformação
cultural. Isso têm gerado preocupações e críticas por parte de feministas e pesquisadoras. Por
exemplo, em seu artigo sobre as relações entre feminismo e Estado, Lia Zanotta Machado se
pergunta: “Estarão as novas feministas tão distantes do rumo forte que as feministas vieram a
incidir buscando não só a revolução das subjetividades, mas a reforma/revolução política de
legitimar os direitos e as oportunidades iguais a partir das políticas públicas? Distantes ou
próximas, mas sabedoras dos caminhos construídos e dos caminhos a construir?” (Machado, 2016,
p. 25).

Os diferentes modos com que feministas se organizam e politizam corpos e emoções denotam
diferentes projetos políticos. Os repertórios corporais e emocionais da Marcha carioca, bem como
sua rejeição às “hierarquias” e às “instituições”, são usados tanto pelas vadias como por outros
grupos feministas para delimitar fronteiras, sempre fluidas e contingentes, de diferenciação ou
identificação mútua. Ao elaborarem narrativas de “nós” e das “outras”, ativistas de diferentes
vertentes constroem avaliações sobre o que é ou não legítimo no feminismo, traçando fronteiras e
produzindo reacomodações no campo político. Na disputa sobre quais pessoas e qual feminismo a
23

MdV “representa” ou não, o corpo que protesta adquire diferentes significados, e atualiza uma série
de tensões no movimento feminista. Isso ocorre porque corpos e emoções têm marcas de geração,
raça, classe, gênero e sexualidade que são transformadas por ativistas em substrato político para
identificação e diferenciação, alianças e rupturas. Em outras palavras, as ativistas acionam o corpo
e as emoções na produção de narrativas de si e das “outras”, o que desloca as fronteiras entre grupos
feministas e, portanto, constitui um terreno fértil para a reelaboração da política identitária
contemporânea. Como uma fonte importante de conflitos e alianças, diálogos e rupturas, o corpo e
as emoções produzem movimento no Movimento feminista. Por isso, procuro compreender como
os repertórios e práticas organizativas das vadias afetam suas relações com suas “outras”
constitutivas, em especial as feministas de organizações e mais velhas, as chamadas Feministas
Radicais ou RadFem, a feministas negras e as autodenominadas feministas periféricas.

A Marcha das Vadias têm sido apontada por feministas e pesquisadoras como um importante marco
no campo feminista contemporâneo. Assinalou um novo regime de visibilidade do feminismo no
cenário político nacional, alcançando setores da população que até então nunca haviam tomado
contato com tais agendas sociais e políticas. Seus repertórios corporais e emocionais reverberam
atualmente em diversos protestos e ações feministas. Catalizou discussões importantes acerca da
inclusão e exclusão de sujeitos políticos e das diferenças e desigualdades de raça, geração, classe,
gênero e sexualidade – questões que continuam a repercutir no espaço público. Por tudo isso,
analisar a Marcha das Vadias pode ser uma forma interessante de mapear o campo feminista
brasileiro contemporâneo, os contrastes e semelhanças no modo de diferentes grupos se
organizarem, as disputas e alianças entre eles e os dilemas que este tipo de ativismo vem
enfrentando no país.
24

A Pesquisa

Cena: O corpo em campo

Em julho de 2013, duas semanas antes da data marcada para a Marcha, as


vadias organizaram uma festa, “Noite Vadia”, para arrecadação de fundos
para a compra de material para a confecção de faixas, cartazes, stencils etc.
A festa foi realizada numa boate que fica na Rua Prado Junior, situada
numa das principais áreas de turismo e prostituição de Copacabana. O
espaço foi escolhido e reservado por Sinara, liderança travesti e prostituta
da Marcha. Haveria show de drags, performances feministas, DJ’s
mulheres agitando o som. Além das vadias e suas/seus amigas/os, vieram
feministas de diversos outros grupos, inclusive algumas feministas
“históricas” que quiseram dar o seu apoio, além de ativistas LGBT.
Primeiro, eu fiquei na entrada da boate, recolhendo o dinheiro das pessoas
que chegavam. Depois, alguém veio me render e eu fiquei livre, circulei
um pouco pela festa, dancei. Então, Graça, uma das organizadoras da
Marcha, me fez uma proposta inusitada: vestir uma das “roupas de puta”
trazidas por Sinara e ir para a rua, para divulgar a festa nos bares e
arredores. Eu hesitei um pouco, mas decidi me arriscar. Eu vesti uma saia
branca plissada, possivelmente a menor que já usei na vida, e um top branco
que deixava à mostra as minhas costas e tinha um decote na frente que
exibia quase todo o meu sutiã preto. Graça vestiu uma saia preta justa, ainda
mais curta que a minha, meias finas pretas que iam até a coxa, um top
branco que mostrava sua barriga e seu sutiã vermelho. Retocamos o batom
vermelho e saímos. Enquanto Graça parecia completamente à vontade, eu
estava morrendo de vergonha. Sentia meu corpo exposto demais; isso me
embaraçava. Evitava os olhares interessados dos homens. Nós éramos duas
25

mulheres jovens, brancas, de classe média, estudantes. Tenho certeza que


não “passávamos” como putas, mesmo com aquelas roupas exíguas em
pleno inverno carioca. Mas aquelas roupas em corpos que não se
encaixavam nos estereótipos de puta causavam estranhamento ou
curiosidade. As pessoas olhavam. E eu, de novo, desviava meu olhar. Graça
abordava as pessoas nos bares, falava sobre a festa, explicava o que era a
Marcha das Vadias: “você já ouviu que as mulheres que usam roupas curtas
merecem ser estupradas? Então. A gente acha que ninguém tem que ser
estuprada, não importa a roupa que use”. Na minha vergonha infinita, eu
só conseguia acompanhar Graça, esperar que ela se aproximasse das
pessoas, e só então, falar alguma coisa, complementando o que ela dizia.
De repente, avistei uma conhecida, que também me viu. “Puta que pariu!”,
pensei. Senti uma imprescindível necessidade de ir falar com ela, me
explicar. Foi minha primeira abordagem. Ela estava numa mesa grande,
cheia de gente. Eu sabia que tinha que fazer uma performance: sorri, tentei
relaxar o corpo, fingi que estava à vontade naquelas roupas, “expliquei” a
Marcha, usei gírias, fiz alguma piada, as pessoas riram, saí, até que enfim.
Mais adiante abordamos dois homens, que descobrimos serem turistas.
Graça falou com eles num excelente inglês. Eu entendia tudo, mas não
saberia falar com tanta fluência. Graça repetiu o script festa-Marcha-
roupas-estupro. Os homens estranharam que esse tipo de slut-shaming
acontecesse aqui, uma cidade tão “liberada” e de “tão poucas roupas”.
Antes de partirmos, um deles perguntou: “Mas vocês são mesmo...
prostitutas?”. Enquanto eu e Graça ríamos da situação, chegamos em frente
ao Copacabana Palace, em cuja calçada cerca de cinquenta pessoas
protestavam. Dentro do luxuoso hotel acontecia o casamento da “Dona
Baratinha”, apelido irônico dado à neta de Jacob Barata, conhecido como
“o Rei dos ônibus”, um dos maiores empresários do ramo do transporte
público do Rio, considerado o chefe de um dos mais lucrativos carteis ou
“máfias” locais. O protesto era muito bem-humorado, com pessoas
fantasiadas, segurando cartazes com dizeres como “Pego ônibus lotado, me
26

dá um bem casado” ou distribuindo baratas de plástico aos convidados que


chegavam. Eu e Graça nos juntamos ao grupo, cantamos músicas de
protesto, dançamos, rebolamos. Ali eu fiquei mais à vontade, afinal,
estávamos todos deliberadamente performando.

O tema da pesquisa surgiu em maio de 2012, quando fui à segunda Marcha das Vadias do Rio de
Janeiro, em Copacabana. Eu já tinha ouvido falar deste protesto, quando uma amiga, que nunca
antes tinha especialmente se interessado pelo feminismo ou pelo tema das relações de gênero, me
convidou para ir ao evento com ela. Então, pesquisei na internet sobre a Marcha, sua origem no
Canadá e as polêmicas que levantava acerca do uso do termo vadia e da nudez como instrumentos
políticos.

Eu já me identificava como feminista então, embora nunca tivesse participado de um protesto ou


movimento feminista antes. Meu envolvimento com o feminismo era, até então, acadêmico.
Quando cheguei à concentração da Marcha das Vadias em Copacabana, eu pisava em um terreno
novo. Mas a novidade não era apenas a minha primeira participação no “movimento feminista”.
Pareceu-me que a Marcha em si representava algo de novo para o feminismo. O que eu
experimentava naquele protesto era muito diferente das imagens e narrativas que eu conhecia sobre
o movimento feminista. A atmosfera vibrante, festiva e bem-humorada lembrava a de um bloco
carnavalesco. Muitas mulheres usavam sutiãs e corpetes, outras tinham os seios nus, usavam batom
vermelho, pintavam a pele com bordões e reivindicações. Sua performance deliberadamente
emulava uma atitude de provocação que passava pela afirmação do corpo e da sexualidade. A
maioria era bastante jovem; havia pouquíssimas mulheres que aparentassem ter mais de 50 anos.
Havia vários homens ativamente participando do protesto. Algumas pessoas levavam suas crianças,
que também carregavam cartazes. Os “gritos de guerra” eram irreverentes: “Se o corpo é da mulher,
ela dá pra quem quiser, inclusive pra outra mulher”, “de burca ou de shortinho todos vão me
respeitar”. Não havia carro de som, palanque ou qualquer grande aparato. Havia apenas um
megafone e um microfone conectado a uma pequena caixa de som sobre rodinhas, puxada pelas
próprias pessoas em revezamento. Os cartazes, muito coloridos, podiam ser confeccionados por
qualquer participante. Reivindicavam direitos, políticas e, principalmente, reconhecimento, por
27

meio de uma linguagem pouco formal: “Sou minha, só minha, e não de quem quiser”, “Estamos
muito putas”, “Mulher bonita é mulher que luta”.

Tudo isso contrastava com as minhas noções sobre o que seria o movimento feminista: mais focado
em demandas por direitos e políticas; exclusivamente frequentado por mulheres; tímido ou
desinteressado na abordagem do corpo e da sexualidade; encabeçado por instituições ou coletivos,
com suas siglas, bandeiras, carros de som e lideranças habituais, que preservavam conteúdos e
formatos habituais da linguagem política.

As amigas que encontrei na Marcha, muitas do meio acadêmico e militantes de movimentos sociais
diversos, falaram da Marcha como algo que “finalmente sacudiu a poeira do movimento feminista”,
que “finalmente conseguiu incluir mulheres lésbicas”, que trouxe “irreverência” e “criatividade” a
um movimento “careta” e “fechado”, há muito “acomodado” às mesmas fórmulas. Percebi que,
como a amiga que me convidou, muitas/os participantes não tinham identificação prévia com o
feminismo ou, como eu, participavam pela primeira vez de uma manifestação feminista de rua.

Foi, em suma, um evento que me pareceu ter a capacidade de atrair pessoas que estavam fora do
ativismo feminista e de inovar no repertório de expressão política. A ênfase no corpo e na
sexualidade e a aposta na provocação e na festividade eram os principais elementos que
diferenciavam a Marcha de outros protestos feministas, segundo as noções que deles eu tinha. Será
que a Marcha das Vadias poderia ser compreendida como um indício de transformações no modo
de o feminismo se organizar e se expressar? O que este evento poderia revelar sobre o campo mais
amplo do movimento feminista? Quais e como eram os “outros” grupos e protestos feministas que
estavam sendo referidos pelas vadias como “caretas”? Que semelhanças e diferenças haveria entre
eles e a Marcha?

Escolhi então pesquisar a Marcha das Vadias como um caminho para compreender processos mais
amplos de diferenciação e identificação no feminismo brasileiro contemporâneo. Isto implicava
fazer algumas perguntas centrais: Como a MdV é organizada? Que percepções sobre feminismo,
corpo, diferença e identidade são mobilizadas por participantes e organizadoras da Marcha? Como
essas percepções se contrastam ou se assemelham às de outros grupos feministas? Que narrativas
a MdV provoca dentro e fora do feminismo?
28

Em fevereiro de 2013 fui à primeira reunião de organização da MdV do Rio de Janeiro daquele
ano, anunciada em sua página no Facebook. Numa sala do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), junto a cerca de trinta pessoas, me
apresentei como pesquisadora – não fui a única a fazê-lo – e afirmei minha disponibilidade em
colaborar nas atividades de organização. Desde então, acompanhei as reuniões, os eventos
promovidos pelas organizadoras (debates, festas, campanhas nas ruas), a lista de discussão por
email, as publicações no Facebook e blog. Eu colaborava nas atividades, confeccionando atas de
reunião, reservando salas no IFCS para os encontros seguintes, ajudando na redação do manifesto,
conseguindo junto à ONG em que eu trabalhava um espaço para abrigar um debate ou um
patrocínio para imprimir os convites da festa de arrecadação de fundos da Marcha.

Inicialmente, eu percebia meu envolvimento nas atividades como um método de pesquisa, o único
modo de ter acesso às pessoas e processos decisórios da Marcha. Era também uma exigência que
as ativistas faziam aos pesquisadores: “não queremos nos sentir observadas como ratos de
laboratório, precisamos de braços, precisamos que vocês contribuam com a Marcha”, diziam elas
às varias pesquisadoras/es que passaram por lá. Aos poucos, porém, minha participação foi me
afetando de uma forma mais profunda. Na campanha de 2014, a Marcha já era para mim também
uma fonte de satisfações, decepções, sociabilidade e amizades.

Minha participação nas atividades da Marcha tinha se tornado mais ativa: eu fui a principal
organizadora de um debate sobre aborto, tema que também era meu objeto de pesquisa na ONG
em que trabalhava; comparativamente ao ano anterior, eu opinava mais nas discussões da lista de
emails; eu me tornei uma das moderadoras da página da MdV do Facebook; eu era chamada para
fóruns restritos no aplicativo de celular WhatsApp; ativistas recém-chegadas algumas vezes me
procuraram para saber o que eu pensava sobre determinado assunto, me reconhecendo como
alguém “mais experiente”. Eu me tornei uma vadia. Deste lugar, eu tive acesso a pessoas,
informações e espaços, que eu não alcançava no primeiro período do trabalho de campo, em 2013.
Ao mesmo tempo, este lugar não me deu acesso igual a todas as pessoas e espaços dentro da
organização da Marcha, e certamente me fechou algumas portas quando a Marcha “rachou” no
final da temporada de 2014.

Quando houve conflitos internos, eu não podia mais, como ainda era possível em 2013, prescindir
de me posicionar e, portanto, de ser e estar identificada com determinados posicionamentos, forças
29

e subgrupos que se delinearam ao longo do meu trabalho de campo. Era preciso, como Becker
aponta (1970), definir de que lado eu estava, por mais que às vezes os “lados” não fossem tão
“definidos” assim. Enquanto era afetada pela Marcha, eu tinha consciência de que minha presença
e participação, junto com a das demais pessoas, também afetava e constituía os processos que eu
procurava estudar. Ao mesmo tempo, em diversos momentos, meu olhar etnográfico dificultava e
mesmo impedia que eu me posicionasse ou tomasse partido. Porque esse olhar é reflexivo, indeciso,
reticente, cauteloso, irônico e mesmo desconfiado, muitas vezes eu recorria ao silêncio e à
pergunta, antes ou em vez de assumir uma posição. Eu era aquela que tomava notas
compulsivamente e que fazia as atas de reunião mais longas e detalhadas, para o desespero de
algumas amigas. Se eu me tornei uma vadia, e precisava aceitar estar nesse lugar para ter acesso
aos processos que afetavam as ativistas, nunca deixei de ser também pesquisadora e de ser
identificada como tal por minhas interlocutoras6.

Entre fevereiro de 2013 e agosto de 2014 eu fiz trabalho de campo presencial na Marcha. Depois
disso, passei a acompanhá-la apenas de longe, pelas páginas do Facebook e pelas notícias que
amigas me traziam. Eu comecei, então, a frequentar outras redes ativistas. Participei de reuniões e
eventos de uma ONG feminista, do Fórum Estadual de Combate à Violência Contra a Mulher e da
Frente Estadual pela Legalização do Aborto, além de ir a praticamente todos os atos feministas da
cidade, como os eventos do Dia Internacional da Mulher e do Dia Latinoamericano e Caribenho de
Luta pela Legalização do Aborto, entre outros. Embora eu desconfiasse que observar esses espaços
era importante para a pesquisa – vários deles constituíam o que as vadias chamavam de feminismo
institucionalizado, com os quais mantinham uma relação constitutiva de contraposição –
inicialmente foi a minha vontade pessoal de encontrar novas arenas de ativismo que me
impulsionou em direção a eles. No entanto, enquanto eu compreendia que minhas expectativas de
militância não seriam satisfeitas nesses lugares, eu percebia mais claramente o valor dessas
experiências para a pesquisa. Nesses espaços eu aprendi mais sobre o campo feminista local em
que a Marcha estava inserida e pude construir um mapa sociológico mais detalhado com as
posições, sempre contextuais, de diferentes atores e grupos, bem como as relações, sempre
contingentes, entre eles.

6
Para explorar como participação, parcialidade e afeto se constituem como dimensão central do trabalho de campo e
atravessam as relações de pesquisa, ver Favret-Saada (2005) e Lacerda (2012).
30

Também foi importante integrar, junto com amigas de dentro e de fora da MdV, o grupo ativista
de performances Finadas do Aborto. Embora eu não inclua explicitamente esta experiência neste
estudo, ela me situou em ainda outro lugar no campo feminista, que não coincidia nem com a
Marcha nem com os atores mais institucionalizados que conheci, o que certamente me ajudou a
enxergar a ambos de um outro ponto de vista e me permitiu relativizar algumas das minhas
observações iniciais. Finalmente, frequentei espaços que, se não são estritamente militantes,
também revelaram aspectos interessantes das “culturas feministas” (Taylor e Whittier, 1995) e
ativistas: saraus de mulheres; festas e mesas de bar com amigas feministas; cineclubes e festas
LGBT; slam das minas; rodas de samba de mulheres; rodas de samba de negras e negros; blocos
de carnaval feministas, étnicos e de “esquerda”; entre outros eventos. A partir da Marcha, eu me
inseri em redes feministas que me abriram as portas de diversos espaços neste campo. Seja por
interesse de pesquisa, de ativismo ou apenas por diversão, experimentar esses ambientes e relações
correspondeu ao aprendizado de um “ethos feminista”, um processo que informa as reflexões deste
estudo e é informado por elas.

Meu duplo lugar como pesquisadora e como ativista envolvida nos processos organizativos e
afetivos da Marcha frequentemente me confrontou com dilemas tanto na academia quanto entre as
vadias. Por diversas vezes, me senti desconfortável de detalhar na escrita e em apresentações orais
episódios de conflito que pudessem expor negativamente minhas interlocutoras ou grupos
feministas. Necessitei buscar modos de dizer e de “não dizer” aquilo que desejava falar. Entre
integrantes da MdV, eu precisei algumas vezes defender-me da acusação de “acadêmica”, lugar
considerado inferior no “feministômetro” das militantes (Masson, 2007), mesmo que muitas delas
também fossem pesquisadoras do campo dos estudos de gênero e feminismo. Na outra mão, para
algumas de minhas professoras e professores do doutorado eu tive que justificar várias vezes meu
objeto de pesquisa e o tipo de envolvimento que eu tinha com ele. Uma professora chegou a sugerir
que eu abdicasse de estudar a Marcha, pois considerava que a combinação de afetos, militância e
pesquisa de campo violaria princípios epistemológicos clássicos da disciplina. No entanto, não é
de hoje que as trocas entre ciência e política existem, e no caso dos campos de estudos de gênero
e sexualidade no Brasil, é impossível desarticular militância de academia (Correa, 2001; Carrara,
2006).
31

Têm sido vários os desafios decorrentes de ser uma pesquisadora que se tornou ativista feminista.
A marca militante está presente em todo o meu trabalho, que não abandona o mundo da política.
Ao mesmo tempo, minha identificação política com a Marcha e com o feminismo me colocou
armadilhas. Em diversos momentos eu me vi reproduzindo acriticamente em minhas análises
alguns discursos e visões de mundo das vadias. Algumas vezes, a minha própria inexperiência no
movimento feminista me levou a fazer perguntas básicas que me devolveram a capacidade de
estranhamento e me salvaram das naturalizações. Mas, principalmente, as diversas oportunidades
de interlocução com minha orientadora e com outras pesquisadoras em congressos e seminários
têm sido fundamentais para me fazer problematizar aquilo que tomei (e certamente ainda tomo)
como dado.

Além desses expedientes, digamos, “cognitivos” do aprendizado, é importante destacar o meu


próprio corpo como instrumento de conhecimento e método de pesquisa (Braz, 2009; Okely, 2007).
A participação requer engajamento corporal. Nos protestos da Marcha, eu integrei a “comissão de
segurança”, o que significou, no limite, me disponibilizar mental e fisicamente para riscos,
inclusive o de conflitos violentos com a polícia ou com eventuais “agressores” – o que felizmente
não aconteceu. Senti medo e prazer ao fazer stencils nas fachadas de prédios durante protestos
feministas, enquanto vigiava o entorno para evitar ser surpreendida, ou ao fazer performances pela
Legalização do aborto, enquanto era xingada por passantes. No protesto de 2014, eu tive a
experiência marcante de empunhar um megafone e declamar o manifesto da Marcha diante de uma
pequena multidão. Foi no ato de falar e de ouvir minha própria voz, que eu percebi que estava
deliberadamente incitando ativistas a Marchar. Numa espécie de megafone humano, as pessoas
repetiam cada frase que eu dizia, o mais alto que podiam, algumas de olhos fechados, punhos
cerrados, emocionadas. Eu pude simultaneamente ver como minha voz afetava as pessoas e sentir
como meu próprio corpo era afetado de volta. Ao fim dos protestos, estávamos fisicamente exaustas
e emocionalmente excitadas. Em todas essas experiências, eu aprendia no e com meu corpo que
protestar é desempenhar uma performance física e um trabalho emocional específicos, noções que
se tornaram centrais nesta pesquisa, como veremos no capítulo 2.

Como a cena que abre esta seção indica – eu e Graça “vestidas de puta” em Copacabana – ser vadia
implica o aprendizado de mostrar o corpo, lidar com a vergonha, gerenciar olhares. Naquele dia,
como nos protestos da Marcha, eu tinha que encorporar uma sensualidade provocadora e um tipo
32

de humor debochado e irônico. Ao lado de Graça, o meu fracasso era evidente. Nos protestos da
Marcha, nunca tive coragem de ficar só de sutiã, menos ainda de mostrar os peitos. Em 2013, eu
apenas consegui improvisar um decote. Quando uma vadia me viu – uma mulher gorda, de sutiã,
com a barriga de fora – me disse que eu estava “muito limpinha” e “comportadinha”, e tratou de
escrever “vadia” no meu decote, para que eu me aproximasse mais da performance desejada do
protesto. Meu fracasso físico e emocional em encorporar uma vadia tornou evidente para mim o
próprio caráter construído desta performance, quais tipos de fisicalidade e chave emotiva eram
incitados ou evitados pelas ativistas.

Em outros sentidos, no entanto, eu era muito parecida com a maioria das vadias: mulher, branca,
jovem, classe média, escolarizada, solteira, sem filhos; morava na Tijuca, um bairro relativamente
perto do Centro, onde ocorriam a maioria das reuniões. Foi fácil me misturar com elas. Lembro das
meninas negras da Marcha contando que para elas era desconfortável estarem cercadas de tantas
mulheres brancas nas reuniões. Ao vê-las e ouvi-las, minha própria branquitude, essa cor/raça não
marcada socialmente (Huijg, 2007), se tornava evidente como uma característica tanto pessoal
como coletiva. Além disso, eu tinha disponibilidade física e de tempo para estar com elas depois
das reuniões nos bares. Beber era uma parte importante da sociabilidade das vadias. Fico
imaginando que se eu não gostasse de cerveja ou se sentisse sono cedo ou se tivesse que ir para
casa para cuidar de filhos, e mesmo se tivesse um namorado ou companheiro, minha interação com
elas seria diferente, mais limitada. Enfim, minha corporalidade e meu engajamento físico e
emocional em campo, inclusive meus fracassos em desempenhar o que de mim era esperado, foram
importantes instrumentos de conhecimento.

As diversas atividades que observei e de que participei, dentro e fora da MdV, como reuniões,
debates, protestos, campanhas, fóruns, seminários, eventos acadêmicos, entre outras, são os
principais substratos para as “cenas” que confecciono ao longo da tese. As cenas são um recurso
etnográfico para introduzir questões que considero centrais neste estudo. Nelas eu reconstruo
acontecimentos que presenciei e deliberadamente ilumino os aspectos que me parecem mais
convenientes para minha argumentação. Assim, embora descrevam fatos “reais”, as cenas são
também ficções no sentido de que eu me coloco nelas como autora e intervenho na narrativa de
acordo com meus propósitos analíticos.
33

Além da minha participação em diversos espaços e eventos, os dados empíricos também foram
construídos a partir das entrevistas que realizei entre 2014 e 2015 com 29 feministas. Entre elas,
16 são integrantes ou ex-integrantes da organização da MdV-Rio e duas são ou foram
organizadoras de Marchas de outras cidades, totalizando 18 vadias. Entre as 11 restantes, estavam
quatro ativistas de ONGs feministas; uma de partido político; uma gestora de políticas públicas de
gênero; três integrantes de grupos, coletivos e articulações feministas; uma colaboradora de uma
revista feminista online; e uma que no momento da entrevista não tinha um local principal de
militância, mas já tinha passado por um coletivo LGBT e continuava atuante nas cenas feminista e
anarquista da cidade. Importante dizer que esses pertencimentos não são exclusivos: eu escolhi as
entrevistadas a partir de seu principal local de ativismo, mas muitas delas participavam
simultaneamente de mais de um espaço de militância ou tiveram experiências passadas em outros
lugares. Ou seja, elas circularam e circulam por diferentes espaços do campo feminista.

Elas tinham de 18 a 66 anos de idade à época da entrevista. A maioria delas é jovem: 13 tinham
entre 18 e 29 anos e 8 tinham entre 30 e 39 anos. Entre as 8 mais velhas, 4 tinham entre 40 e 49
anos e 4 tinham 50 ou mais anos. A maioria delas, 12 no total, se identificou como “branca”; dez
como “pardas” ou “não-brancas” (incluindo aí uma “morena” e uma “mestiça”) e 6 como “negras”
ou “pretas”. Para uma delas eu não registrei a auto-identificação racial; ela poderia ser percebida
como branca ou parda. Há uma pessoa que pode ser identificada como travesti ou mulher trans (ela
se definiu como “pessoa de peito e de pau”); uma se classifica como “gênero fluido”, depois de ter
passado por uma fase se identificando como homem trans; e o restante são mulheres cis7. A maioria
se classifica como “heterossexual” (15 pessoas), 10 como “lésbicas” ou “bissexuais” e 4 usaram
outros termos para identificar sua orientação sexual: “assexuada”, “gosto de pessoas”, “queer”,
“não gosto de rótulos; em geral, gosto de homens” (que foi o caso da travesti/mulher trans).

É importante registrar a dificuldade dessas classificações para as próprias entrevistadas. No caso


das “pardas”, era frequente a menção de pais e avós “negros” e “índios”, da noção de “mistura” ou
“mestiçagem”, de comentários sobre como era “difícil” ou mesmo da recusa explícita a encaixar-
se em uma classificação racial inequívoca. As classificações sobre orientação sexual eram

7
“Cisgênero” ou “cis” é uma categoria êmica, contraposta à de “trans”, e designa pessoas cuja identidade ou
performance de gênero corresponde às normas consideradas adequadas ao sexo que lhe foi designado ao nascer. Em
suma, “cis” é uma pessoa que não é “trans”.
34

frequentemente enunciadas como mutáveis, como no caso de algumas mulheres que se


identificaram como “heterossexuais, até o momento”. Em alguns casos, as classificações sexuais
não descreviam práticas sexuais, mas pareciam expressar outros critérios de identificação – como
no caso de mulheres que tinham ou tiveram relações afetivo-sexuais com outras mulheres, mas que
não se identificaram como lésbicas nem bissexuais.

Com diferentes experiências em termos de idade, raça, classe e ativismo, as entrevistadas me


ensinaram sobre diferentes narrativas de feminismo, engajamento, corpo e identidades políticas.
Elas foram perguntadas sobre suas percepções sobre a Marcha das Vadias; suas trajetórias de
militância; as estratégias e modos de expressão que consideram relevantes; quais sujeitos políticos
o feminismo representa ou não; quais atoras, setores ou práticas feministas consideram
problemáticas; quais consideram ser os desafios enfrentados pelo movimento etc. O roteiro básico
de entrevista pode ser encontrado no anexo C. Eu utilizei o roteiro apenas como um guia e me
permiti improvisar de acordo com as entrevistadas e suas narrativas.

Finalmente, materiais de internet foram parte importante dos dados que construí: conteúdos da lista
de emails, Facebook e blog da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro; páginas na internet, vídeos e
fotografias de Marchas de várias cidades; reportagens e notícias sobre a MdV e o feminismo; blogs
e outros fóruns feministas online, especialmente no Facebook. Este material é rico em percepções
sobre questões importantes para o movimento feminista contemporâneo, como a prostituição,
participação de homens e pessoas trans, questões de raça e classe, entre outras.

Para tornar mais clara a compreensão do texto, adoto aspas duplas (“) para citações de
interlocutores em campo e itálico para categorias êmicas relevantes, à exceção de vadias, que
aparece tantas vezes no texto que optei por não marcá-la. Para me referir às organizadoras da MdV,
adoto termos mais descritivos, como “integrantes” e “organizadoras”, e termos nativos, como
“ativistas”, “militantes” e “vadias”, com os quais elas se referem a si mesmas. Vale ressaltar,
entretanto, que os usos nativos desses últimos termos não são intercambiáveis, pois são
mobilizados em situações distintas e com propósitos específicos, conforme terei a oportunidade de
explorar. Para me referir às pessoas que apenas vão aos protestos da Marcha na rua, utilizo
“participante” ou “manifestante”. Embora em certos momentos alguns homens, inclusive trans,
tenham colaborado na organização da Marcha, a maioria das organizadoras no período que
permaneci no campo era de mulheres, inclusive trans. Assim, exceto em casos específicos, darei
35

preferência ao gênero feminino nas flexões das palavras (as organizadoras, as vadias). Por fim, dei
nomes fictícios a todas as minhas interlocutoras. Apesar de algumas delas terem dito que não se
importavam de serem identificadas – especialmente as que tinham trajetórias mais longas de
ativismo e que, dentro do campo feminista, podem ser facilmente identificáveis a partir dos meus
relatos – optei por adotar um critério único de nomeação.
36

Capítulo 1: As vadias

porque uma mulher boa


é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa
há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava
porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa
há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa

(Do poema “Uma mulher limpa”, de Angélica Freitas)


37

1.1. Vadias em toda parte

Uma narrativa de fundação da SlutWalk/Marcha das Vadias foi construída e consagrada: “tudo
começou” em 2011, quando um policial, em um fórum de segurança para estudantes da
Universidade de York, em Toronto, Canadá, disse “Me avisaram que eu não deveria falar isso, mas
as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias (sluts) para não serem vitimizadas”8. Segundo
Andrea O’Reilly (2015), professora do curso de Women’s Studies naquela universidade, havia
apenas dez pessoas na plateia naquele fatídico 24 de janeiro de 2011. Somente em 18 de fevereiro
a história chegou à imprensa, através de uma matéria do Toronto Star sobre o pedido formal de
desculpas do policial à Universidade9. A publicação da matéria e a circulação do pedido de
desculpas na lista de e-mails da comunidade acadêmica deram ímpeto à mobilização política.
O’Reilly relata que, no final de fevereiro, enquanto o assunto era comentado em todo o campus e
nas redes sociais, algumas alunas começaram a organizar um protesto em resposta ao comentário
do policial (O’Reilly, 2015)10.

Além de estudantes universitárias, as cinco jovens que idealizaram a manifestação estavam


familiarizadas com estudos de gênero. Nem todas, no entanto, tinham experiência prévia em
movimentos sociais. Elas montaram um site, uma página no Facebook e uma conta no Twitter,
todas com o nome de SlutWalk Toronto11. O site é uma espécie arquivo da memória da SlutWalk,
alimentado e modificado ao longo de pelo menos três anos a partir do início do processo de

8
"I've been told I'm not supposed to say this – however, women should avoid dressing like sluts in order not to be
victimised" (citado em diversas reportagens).
9
Esta matéria está disponível em
https://www.thestar.com/news/gta/2011/02/18/cop_apologizes_for_sluts_remark_at_law_school.html(último acesso
em - de agora em diante “u.a.” - 16 de junho 2017).
10
Uma entre muitas reportagens sobre a difusão da SlutWalk e a sua relação com a declaração do policial:
https://www.theguardian.com/world/2011/may/06/slutwalking-policeman-talk-clothing (u.a. 16 de junho 2017).
11
O site (http://www.slutwalktoronto.com) parece ter ficado fora do ar ao longo de todo o ano de 2016 e parte de
2017, voltou a funcionar por um breve período e, em seguida, foi transformado numa página cujo conteúdo nada tem
a ver com o protesto. Felizmente, há um arquivo online de sites que permite salvar e acessar páginas ao longo do
tempo. A, página da SlutWalk Toronto pode ser acessada, por exemplo, tal como capturada em 31 de julho de 2011:
https://web.archive.org/web/20110731072335/http://slutwalktoronto.com/ (u.a. 5 de dezembro de 2017). A conta do
Twitter (https://twitter.com/SlutWalkTO?lang=en) parece ociosa. A página do Facebook
(https://www.facebook.com/SlutWalkToronto/?fref=ts) continua ativa e recentemente publicou um chamado a
voluntárias/os para organizar a SlutWalk de 2017 (u.a. 19 de junho de 2017).
38

mobilização. Apresenta as justificativas para o protesto e suas reivindicações, no que se assemelha


a um manifesto político: “demandamos responsabilização [accountability], não pedidos de
desculpas”, lê-se em uma das páginas. À polícia fizeram algumas solicitações formais, que não
constam no site, mas foram divulgadas à imprensa, como “reestruturar treinamento e educação” e
“melhorar sua divulgação pública, com ênfase em consentimento e mitos do estupro”12.

Ao longo das seis semanas que antecederam ao protesto, as organizadoras produziram muitas
mensagens para as redes sociais, deram mais de quarenta entrevistas, angariaram apoio de
organizações e grupos, reuniram-se com alguns deles para planejar o protesto, convidaram pessoas
para discursar no dia do evento, arrecadaram dinheiro, organizaram um dia de preparação para a
marcha com a participação de várias colaboradoras, entre outras providências. Estimando a
presença de aproximadamente cem pessoas, se surpreenderam quando mais de três mil
compareceram à SlutWalk Toronto no dia 3 de abril de 2011, e rapidamente se espalhou pelo
mundo13. “O que começou como uma reação a um comentário, uma reação que inicialmente
imaginamos incluir apenas um punhado de nossas amigas mais íntimas, explodiu em um tipo de
movimento que nós nunca poderíamos ter esperado”, dizem as organizadoras no site.

O site registra e torna visível o processo de constante incremento, edição e reinvenção da memória
da SlutWalk, à medida que o protesto se difundia para outros lugares e se estendia pelos anos
seguintes, tomando a dimensão de um movimento transnacional. É possível imaginar o momento,
ao longo deste processo, em que as organizadoras decidem organizar o site nas sessões “Por que”,
“O que”, “Como” e “Quem”, por meio das quais compartilham suas experiências com as
companheiras de outras partes do mundo: descrevem o processo de mobilização, inclusive o
trabalho afetivo que precisaram fazer, como “soluçar com agradecimentos e relatos de
sobreviventes e lidar com mensagens de ódio”; mencionam críticas recebidas, como a de não
contemplarem todas as mulheres em sua “diversidade”; e tentam algumas respostas.

12
Informações disponíveis em
https://www.thestar.com/news/gta/2011/04/03/sluts_march_against_sexual_assault_stereotypes.html (u.a. 19 de
junho de 2017).
13
O site da SlutWalk Toronto diz que a marcha se espalhou para “mais de 200 países”, mas esta informação é
equivocada, já que atualmente existem apenas 196 países. Acredito que a intenção era dizer “mais de 200 cidades”.
39

Em todas as mídias da SlutWalk Toronto, há várias referências à declaração do policial, que a cada
reiteração – na imprensa, nas redes, no processo de difusão do movimento – vai sendo lapidada
como mote para mobilizações e consolidada como narrativa de fundação. A descrição do seu perfil
no Twitter sintetiza a narrativa em sua forma acabada, como se pronta para um epitáfio: “Dizer que
devemos evitar nos vestir como vadias para não sermos vitimizadas não vai colar. Começou em
Toronto, espalhou-se pelo mundo”14. No entanto, se a declaração do policial pôde se transformar
em narrativa fundacional – e com isso transcender os usos locais e ser apropriada pelas marchas de
vários lugares do mundo – é porque as organizadoras canadenses perceberam a importância de
frisar que aquela fala não era acidental, nem exclusiva das forças policiais, mas expressão de uma
cultura generalizada que culpabiliza as vítimas pelo estupro que sofrem. Deste modo, foram
capazes de retirar um evento da esfera individual e enquadrá-lo como um “problema social”, o que,
como aponta Gamson (1992), é uma operação central para todos os movimentos sociais. Mais do
que um acontecimento oportuno, a fala do policial foi “tomada” pelas ativistas, ressignificada como
evento crítico e transformada em oportunidade política (Heidemann, 2014). Reconhecida e
mobilizada como índice da cultura do estupro pelas Marchas em toda parte, a “infeliz” declaração
do policial foi transformada em uma narrativa política eficaz em seus próprios termos, ou “feliz”
no sentido que Austin (1962) empresta à palavra15.

No discurso da SlutWalk Toronto, slut-shaming é um mecanismo de acusação historicamente


direcionado a mulheres “sexualmente promíscuas”, que visa à sua descredibilização enquanto
vítimas de violência sexual:

Estamos cansadas de sermos oprimidas por slut-shaming; de sermos julgadas por nossa
sexualidade e de nos sentirmos inseguras por causa disso. Estar no comando de nossas
vidas sexuais não deveria significar que estamos nos abrindo para uma expectativa de
violência, independentemente de se participamos do sexo por prazer ou trabalho. Ninguém
deveria equacionar gostar de sexo com atrair violência sexual. (Site da SlutWalk
Toronto)16

14
“Being told we should avoid dressing like sluts in order not to be victimized ain't gonna fly. Began in Toronto,
spread around the world.” (https://twitter.com/SlutWalkTO?lang=en, u.a. 19 de junho de 2017)
15
Austin (1962) reflete sobre as condições que tornam um enunciado “eficaz” ou “feliz”, que são diferentes das que
o tornam “verdadeiro” ou “falso”. Quando as palavras são enunciadas da maneira correta, pelas pessoas autorizadas a
fazê-lo, um enunciado tem grandes chances de ser “feliz”.
16
“We are tired of being oppressed by slut-shaming; of being judged by our sexuality and feeling unsafe as a result.
Being in charge of our sexual lives should not mean that we are opening ourselves to an expectation of violence,
40

Nesse excerto, as organizadoras anunciam sua estratégia política: não se trata de negar a
“promiscuidade” para afastar o estigma de slut, mas questionar as próprias lógicas sociais que o
fundamentam. Assim, ao nomear o protesto como SlutWalk, elas declaram estar se “reapropriando”
da palavra slut, e ressignificando-a positivamente como “estar no comando das nossas vidas
sexuais”. É assim que desde a primeira SlutWalk, várias participantes vestem-se como sluts – usam
meia-calça arrastão, lingerie aparente, batom vermelho, salto alto e outros elementos considerados
“provocantes” – para mostrar que roupas não podem ser usadas para “justificar um comportamento
indesculpável”17 (ver figura n.1). Apostando na irreverência como estética política, as Slutwalkers
de Toronto traziam cartazes com frases como “A sociedade ensina ‘não seja estuprada’ em vez de
‘não estupre’”, “Conheceu uma slut hoje? Não a estupre” e “Estamos aqui, somos sluts, acostume-
se com isso”18. A mensagem de combate à violência sexual é amalgamada à de liberdade e
autonomia das pessoas sobre seus corpos e sexualidades.

Figura n.1 - 1a SlutWalk, Toronto, 2011

regardless if we participate in sex for pleasure or work. No one should equate enjoying sex with attracting sexual
assault.”
17
“Being assaulted isn’t about what you wear; it’s not even about sex; but using a pejorative term to rationalize
inexcusable behaviour creates an environment in which it’s okay to blame the victim.” (Site da SlutWalk Toronto)
18
“Society teaches don’t get raped, rather than don’t rape”, “Met a slut today? Don’t assault her” e “We’re here,
we’re sluts, get used to it”.
41

Se analisadas em seus próprios termos, os atos corporais e de fala das SlutWalkers funcionam como
paródia social. Butler (1999) mostra que não há uma identidade de gênero original ou natural “por
trás” do ser, mas que o gênero precisa ser reiteradamente feito, gestualizado, e é essa repetição
constante que lhe dá a aparência de naturalidade. Portanto, os atos de gênero não são cópias de um
gênero original e natural, mas cópias de uma ficção, cópias de uma cópia, imitações de imitações
e, nesse sentido, são paródias. Como paródias de uma “ideia de natural”, os atos de gênero tanto
instituem o gênero como essência, escondendo seu caráter imitativo, como, ao mesmo tempo, o
desmascaram como simulacro. Sem ignorar esta dupla performatividade da paródia, é o seu sentido
de desmascaramento que Butler enfatiza. Assim, ela considera que algumas práticas de gênero,
como o drag e as estilizações corporais butch e femme das lésbicas, são paródias “hiperbólicas”,
na medida em que, pela imitação exagerada do “natural”, desterritorializam o gênero e expõem sua
estrutura imitativa e não natural (Butler, 1999, 2002, 2006; Safatle, 2006; Rodrigues, 2012). O
mesmo ocorre quando os sujeitos enquadrados como queer no discurso público homofóbico citam
este mesmo termo para ressignificá-lo: “esta classe de citação se manifestará como algo teatral, na
medida em que imite e faça hiperbólica a convenção discursiva que também inverte” (Butler, 2002,
p.326, grifos originais, tradução minha).

Seguindo essas pistas, considero que a SlutWalk transforma slut em paródia da moral sexual
feminina. A teatralidade hiperbólica dos saltos e lingeries recorre ao insulto de slut para
ressignificá-lo. Ao criar uma justaposição dissonante entre a sexualidade feminina e o espaço
público, revela a arbitrariedade das interdições de gênero, segundo as quais mulheres que aparecem
como sujeitos desejantes tornam-se corpos ininteligíveis. O espaço público, como espaço que
reproduz regimes de aparição e inteligibilidade, lhes é negado; paradoxalmente, é sua presença
corpórea hiperbólica que denuncia isso, ao temporariamente reconfigurar o espaço público19. Em
vários lugares, a paródia de slut foi capaz de atrair ao protesto não apenas mulheres, mas outros
sujeitos cujos corpos também resultam ininteligíveis e cuja entrada no espaço público é negada ou
punida, como lésbicas20, gays, pessoas trans e trabalhadoras sexuais.

19
A noção de espaço público como “espaço de aparição” (space of apperance) é de Butler, em seu diálogo com
Arendt no livro Notes toward a performative theory of assembly (Butler, 2015). Retomarei esta noção no capítulo 2.
20
É interessante notar como várias mulheres lésbicas da organização da MdV disseram que o que as atraiu à Marcha
foi o fato de “não se sentirem contempladas no movimento LGBT”, onde “só homens falam, há misoginia,
lesbofobia e transfobia”.
42

No entanto, houve muita controvérsia no campo feminista, na imprensa e entre o público comum
acerca do nome do protesto e sua estilização corporal. O’Reilly, a professora da Universidade de
York acima mencionada, uma “assídua frequentadora de protestos feministas em Toronto ao longo
dos últimos trinta anos”, festejou a SlutWalk pelo tamanho, “entusiasmo”, “vibração” e “energia”,
“raramente experimentados desde as marchas pro-choice do início dos anos 1980” (O’Reilly, 2015,
p.25). Já Gail Dines, professora de sociologia e women’s studies em Wheelock College e criadora
do site Stop Porn Culture, e Wendy Murphy, professora de sexual violence em New England
School of Law, ambas universidades de Boston (EUA), publicaram um artigo no The Guardian
intitulado “SlutWalk não é liberação sexual”, em maio de 2011, logo a após o protesto ter sido
replicado naquela cidade, atraindo mais duas mil pessoas. Para elas, “o termo slut é tão
profundamente enraizado na visão patriarcal ‘santa/puta’ da sexualidade das mulheres”, que “tentar
mudar seu significado é um desperdício de preciosos recursos feministas”21. Já para O’Reilly,
“reivindicar um termo pejorativo” não é nenhuma novidade, mas uma tática de longa tradição no
ativismo feminista, como no caso dos termos “bruxa”, “bitch”, “queer”, “mama”, entre outros
(O’Reilly, 2015, p.28). Partindo desta mesma observação, Teresa O’Keefe, feminista e professora
no departamento de sociologia da National University of Ireland Maynooth, considera que a
reapropriação de slut falha em explicitar-se claramente como paródia ou ironia. Para ela, o termo
apenas reforça um discurso de “auto-sexualização do corpo”, que seria idêntico às convenções
patriarcais, exceto pelo fato de que agora “as mulheres estão escolhendo se auto-sexualizar”
(O’Keefe, 2014, p. 6).

Este debate lembra a discussão sobre o drag entre feministas, que também girou em torno da sua
“eficácia” ou “ineficácia” no desmonte das dualidades de gênero. Se inicialmente muitas
argumentavam que o drag apenas reproduzia modelos tóxicos de feminilidade, o assunto passou a
ser visto de outra forma depois que Butler desenvolve a noção de paródia como subversão em seu
seminal Gender Trouble. A própria autora, no entanto, volta ao tema em trabalhos posteriores para
explicitar, em resposta às críticas, que paródias não são subversivas per se. Como citações

21
“The term slut is so deeply rooted in the patriarchal "madonna/whore" view of women's sexuality that it is beyond
redemption. The word is so saturated with the ideology that female sexual energy deserves punishment that trying to
change its meaning is a waste of precious feminist resources.”
(https://www.theguardian.com/commentisfree/2011/may/08/slutwalk-not-sexual-liberation, u.a. 21 de junho de
2017).
43

imperfeitas da norma, podem abrir brechas para questioná-la, mas o fazem sempre parcialmente
(Butler, 2002).

Embora a declaração do policial tenha sido dirigida explicitamente às mulheres, as organizadoras


buscaram ampliar o escopo do chamado a todas as “pessoas” e fizeram um esforço visível de evitar
acionar classificações identitárias definidas. A palavra “mulheres” aparece raramente no site, ora
nas citações da fala do policial, ora enunciada pelas organizadoras, de forma a relativizar ou dilatar
seu apelo:

ESTAMOS NOS UNINDO. Não apenas como mulheres, mas como pessoas de todas as
expressões e orientações de gênero, todos os status socioeconômicos, níveis de emprego
e educação, todas as raças, idades, habilidades e experiências, de todos os pontos desta
cidade e de outros lugares. (Site da SlutWalk Toronto, ênfase original)22

No entanto, diversas críticas contestaram o caráter inclusivo do protesto. A principal delas veio da
Black Women’s Blueprint, uma organização de direitos humanos e civis, que trabalha “para
desenvolver uma cultura em que mulheres de descendência africana sejam plenamente
empoderadas e em que disparidades de gênero, raça e outras sejam apagadas.” Em setembro de
2011, quando o protesto já tinha se difundido por diversos continentes, esta organização publicou
em seu website “Uma carta aberta de mulheres negras à SlutWalk”. Para suas subscreventes, o
insulto slut, por causa de suas inflexões racistas, está tão entranhado nas representações e
identidades das mulheres negras, que não pode ser ressignificado:

Nós não temos o privilégio ou o espaço de nos chamarmos de “slut” sem validar as já
historicamente enraizadas ideologias e mensagens recorrentes sobre o que e quem a
mulher negra é. (...) Mulheres negras têm trabalhado incansavelmente desde os clubes de
colored women para livrar a sociedade da linguagem sexista/racista da slut, jezebel,
hotentot, mammy ou sapphire – para construir nosso senso de si e redefinir o que mulheres
com nossa aparência representam. (...) Podemos aprender com movimentos bem-
sucedidos como o Civil Rights, o sufragista, o Nacionalismo Negro e o Feminismo Negro
que podemos provocar mudança sem recorrer à reapropriação de palavras que, para
começar, nunca foram nossas, mas na verdade nos sobrecarregaram num processo de
desumanização e desvalorização (Black Women’s Blueprint, 2016).23

22
“WE ARE COMING TOGETHER. Not only as women, but as people from all gender expressions and
orientations, all walks of life, levels of employment and education, all races, ages, abilities, and backgrounds, from
all points of this city and elsewhere”. “Estamos gozando juntas/os” também poderia ser subentendido como um
segundo significado para a expressão “we are coming together”. Agradeço a Raphi Soifer por me mostrar esta
conotação da expressão.
23
“We do not have the privilege or the space to call ourselves “slut” without validating the already historically
entrenched ideology and recurring messages about what and who the Black woman is. (…) Black women have
worked tirelessly since the nineteenth-century colored women’s clubs to rid society of the sexist/racist vernacular of
44

A última parte da carta, que contém cinco páginas, enumera vários pedidos às organizadoras, como
consultar as women of color e privilegiar suas experiências na construção do movimento, além de
mudar o nome do protesto. Esta carta circulou pela internet, foi traduzida para outras línguas e
amplamente reproduzida e citada, inclusive nas redes feministas brasileiras. Frequentemente
apresentada como uma espécie de posicionamento “oficial” das mulheres negras, a carta adquiriu
status de documento de autoridade. Influenciou inclusive artigos acadêmicos como o de O’keefe,
que a cita para embasar seu argumento de que a SlutWalk, ao tentar “universalizar” o termo slut,
“invisibiliza as múltiplas formas pelas quais as mulheres experimentam violência sexual”,
reproduzindo desigualdades de gênero (O’Keefe, 2014, p.15-16).

Outra crítica bastante citada em páginas feministas do Twitter e Facebook é a da jornalista argentina
radicada nos EUA Aura Bogado, que em maio de 2011 publicou em seu blog um texto em que
acusa a SlutWalk de reproduzir “privilégios” de raça e classe. Segundo ela, querer dialogar com a
polícia, como fizeram as organizadoras do protesto, é algo que as people of color, cujas
comunidades sempre foram afligidas pela violência policial, jamais cogitariam. Além disso, ela
argumenta que uma acusação de slut pode resultar em denúncia criminal para mulheres negras,
trans e pobres que fazem “sexo para sobreviver”. Ao “silenciar” essas experiências, diz, a SlutWalk
não passa de um “exercício de supremacia branca”. Comentando, ainda, sobre o fato de que uma
SlutWalk iria ocorrer na Argentina, seu país natal, Bogado afirma: “Eu não quero mulheres de
língua inglesa do Norte Global dizendo a mulheres de língua espanhola do Sul Global que
‘reivindiquem’ uma palavra que é estrangeira ao nosso próprio vocabulário.”24

slut, jezebel, hottentot, mammy, mule, or sapphire—to build our sense of selves and redefine what women who look
like us represent. (…) We can learn from successful movements like the Civil Rights movement, from Women’s
Suffrage, and the Black Nationalist and Black Feminist movements that we can make change without resorting to the
taking-back of words that were never ours to begin with, but in fact heaved upon us in a process of dehumanization
and devaluation.” A carta não se encontra mais no site da Black Women’s Blueprint. Foi publicada com sua
permissão na revista Gender & Society (Vol. 30 No. 1, 2016). Sua versão em português pode ser lida em
http://www.feministacansada.com/post/44143444731 (u.a. 23 de junho de 2017).
24
“I do not want white English-speaking Global North women telling Spanish-speaking Global South women to
“reclaim” a word that is foreign to our own vocabulary. To do so would be hegemonic, and would illustrate the ways
in which Global North “feminists” have become a tool of cultural
imperialism.” (https://tothecurb.wordpress.com/2011/05/13/slutwalk-a-stroll-through-white-supremacy/, u.a. 27 de
julho de 2017)
45

Tanto as severas críticas como o respaldo dado pela difusão estrondosa do protesto pelo mundo
levaram as organizadoras de Toronto a tentar responder às críticas e conciliar as diferentes visões,
como mostra esse trecho publicado em seu site:

Pedimos que você se junte a nós na SlutWalk para fazer uma declaração unificada sobre
violência sexual e os direitos das vítimas, e para demandar respeito para todas/os. Sendo
um/a companheira/o slut ou simplesmente um/a aliada/o, você não precisa anunciar suas
inclinações sexuais, nós apenas pedimos que venha (Site SlutWalk Toronto, ênfase
original)25

Três anos depois do primeiro protesto canadense, Alyssa Teekah, uma das fundadoras da SlutWalk
Toronto, escreveu um artigo, em que refletiu sobre o grande volume de críticas que as
organizadoras receberam de outras feministas pela internet: quando o movimento se difundiu pelo
mundo, foram acusadas de “coloniais”; feministas mais velhas as acusaram de “envergonhar seu
legado”; as anti-prostituição as chamaram de “sexistas”; e as liberais, para quem a discussão sobre
igualdade deveria se dar no terreno econômico, as criticaram por “idealistas” ou “volúveis”. Para
Teekah, a SlutWalk foi o que chamou de “call out culture”, que traduzo livremente como “cultura
do escracho”26, que transforma o feminismo online em uma “crítica infinita”, sempre negativa e
sem nuances, similar a processos de “excomunhão” pública. Tornar-se feminista neste contexto,
argumenta ela, é uma experiência “forjada pelo trauma” (Teekah, 2015, p.32-34). 27

Diversas respostas a essas críticas foram elaboradas. Selma James, coordenadora da Global
Women’s Strike, uma organização que busca o reconhecimento e a remuneração do trabalho

25
“We are asking you to join us for SlutWalk, to make a unified statement about sexual assault and victims’ rights
and to demand respect for all. Whether a fellow slut or simply an ally, you don’t have to wear your sexual
proclivities on your sleeve, we just ask that you come.” A ênfase dada pelas organizadoras ao trecho da frase indica
que esta é uma ressalva feita em resposta às críticas.
26
De acordo com http://idioms.thefreedictionary.com/call+out, “to call out” significa gritar; anunciar algo em voz
alta; desafiar alguém ou algo. A noção de call out cuture é definida pelo The Urban Dictionary como “um grupo de
pessoas, especialmente nas redes sociais, que ridicularizam outras por palavras ou ações, reais ou percebidas, que
contrariam suas crenças” (http://www.urbandictionary.com/define.php?term=call%20out%20culture). Em blogs e
revistas eletrônicas estadunidenses de cultura e política, call out cuture tem sido imputada principalmente ao campo
dos movimentos sociais e à academia, onde é objeto de disputa entre os que a percebem como recurso legítimo de
denúncia de “comportamentos opressivos” e os que argumentam que na maioria das vezes é um mecanismo “tóxico”
de ataques pessoais na internet, visto como um fim em si mesmo. Exemplos representativos dos dois
posicionamentos podem ser vistos em https://medium.com/@dtwps/call-out-culture-isnt-toxic-you-are-
6e12b5410cd6 e https://briarpatchmagazine.com/articles/view/a-note-on-call-out-culture (todos os links, u.a. 26 de
junho de 2017).
27
O artigo foi publicado em uma coletânea organizada pela própria Teekah e outras pessoas sobre a SlutWalk em
diversos lugares do mundo. Há poesia, ensaio fotográfico, depoimentos (como o da já citada O’Reilly) e artigos
acadêmicos, produzidos por apoiadores, críticos e estudiosos do movimento (Teekah et al, 2015).
46

doméstico e de cuidado, publicou uma carta em resposta à Black Women’s Blueprint. Ela
argumenta que, ao recusar “se identificar com aquelas de nós que frequentemente ou sempre somos
identificadas como sluts”, esta organização afirma desigualdades de classe e aumenta a distância
entre mulheres negras e brancas28. Alice Walker escritora e ativista negra, quando perguntada sobre
o que pensava da SlutWalk em uma entrevista, responde: “eu sempre compreendi a que a palavra
slut significa uma mulher que desfruta livremente de sua própria sexualidade (...) O movimento
espontâneo que cresceu em torno de reivindicar essa palavra expressa a resistência das mulheres a
terem nomes transformados em armas contra elas.”29

Esses e outros argumentos favoráveis e contrários ao protesto se multiplicaram nas comunidades


feministas dentro e fora da academia, nos fóruns de debate das redes sociais e na imprensa. Há um
fluxo intenso e uma lógica circular de citação desses enunciados, que segue critérios próprios de
autoridade. As declarações de mulheres negras e women of color parecem investidas de maior
legitimidade para avaliar o movimento, e por isso são as mais citadas tanto por quem quer criticá-
lo como por quem quer apoiá-lo. Como veremos no capítulo 3, a noção de interseccionalidade,
apropriada como valor moral no campo feminista contemporâneo, é o que estrutura este sistema de
citações e autoridade.

Se cito aqui as críticas e defesas à SlutWalk, é porque constroem e revelam as lógicas e práticas
políticas em jogo no campo feminista contemporâneo. Assim, não trato a discussão sobre a
“eficácia” do movimento a partir de qualquer critério objetivo ou extrínseco de avaliação. Em vez
disso, opto por tratar “eficácia” como categoria êmica e como ferramenta analítica. Como categoria
êmica, me interessa saber quando, como e por quem é mobilizada. Como ferramenta analítica
tomada da antropologia dos rituais de Mariza Peirano, “eficácia” é uma qualidade intrínseca de
certos eventos que acentuam “visões de mundo dominantes ou conflitantes de determinados

28
A carta de Selma James foi publicada no site de sua organização, que encontra-se temporariamente fora do ar
(http://globalwomenstrike.net/, u.a 27 de junho de 2017). As citações acima foram transcritas dos artigos acadêmicos
de Schiappa (2015, p. 70-71) e Noe (2014, p. 18-19).
29
“I’ve always understood the word “slut” to mean a woman who freely enjoys her own sexuality in any way she
wants to (…). The spontaneous movement that has grown around reclaiming this word speaks to women’s resistance
to having names turned into weapons used against them.” Entrevista publicada em junho de 2011 na revista online de
arte e política, Guernica. (https://www.guernicamag.com/michael_archer_qa_with_alice_w/, u.a. 27 de junho de
2017).
47

grupos” (Peirano, 2006, p.11)30. Mais do que enunciar, atos e palavras performativos “fazem” ou
“provocam” alguma coisa (Austin, 1962; Peirano, 2001, 2006; Butler, 2015). Nesse sentido, me
interessa a eficácia ritual da SlutWalk sobre os atores que dela participam e que com ela se
relacionam – o que faz e provoca neles, que visões de mundo suscita. Em ambos os casos, eficácia
não pode ser compreendida fora do contexto cultural e político que lhe dá sentido, que no escopo
desta tese, é o campo feminista. Assim, eficácia é, antes de mais nada, produto e motor das disputas
por visibilidade e legitimidade, diferenciação e identificação que movimentam esse campo.

1.2. As vadias cariocas

Primeiros passos (2011-2012)

Imediatamente após a primeira SlutWalk, muitos protestos semelhantes foram organizados em


várias cidades do mundo, levando milhares de pessoas às ruas. Em países de língua espanhola,
ganharam o nome de Marcha de las Putas. No Brasil, o protesto foi organizado pela primeira vez
em junho de 2011 em São Paulo, e chamado de Marcha das Vadias. A tradução de slut para vadia
não é o resultado de uma equivalência de representações, mas, como toda tradução, é uma
transfiguração, uma criação política. Ainda que vadia seja um termo depreciativo direcionado às
mulheres percebidas como “promíscuas”, vagabunda, piranha ou puta são termos mais correntes
no sudeste do Brasil quando se quer chamar uma mulher de slut.

30
Peirano evita uma definição a priori dos rituais. Aponta que “podem ser vistos como tipos especiais de eventos,
mais formalizados e estereotipados, mais estáveis e, portanto, mais suscetíveis à análise porque já recortados em
termos nativos – eles possuem uma certa ordem que os estrutura, um sentido de acontecimento cujo propósito é
coletivo, uma eficácia sui generis, e uma percepção de que são diferentes” (Peirano, 2006, p.10). Ela enfatiza que é
possível aplicar o instrumental teórico desenvolvido para os rituais a outros “eventos etnográficos”: ritual deixa de
ser apenas um objeto empírico para se transformar em ferramenta analítica. Assim, em coletânea por ela organizada,
eventos diversos foram analisados como rituais: a Marcha Nacional dos Sem-Terra, reuniões camponesas, o processo
de cassação do político Sérgio Naya, entre outros (Peirano, 2001). Por isso, considero esta perspectiva útil para
analisar reuniões, protestos, debates e outros eventos relacionados à SlutWalk.
48

Por um lado, “vadia/vadio/vadiar” assume conotações negativas associadas à moral sexual e à


criminalização da “vadiagem”. A “vadiagem” é criminalizada desde as leis do período colonial e
Império até a redação do artigo 59 da Lei de Contravenções Penais de 1941, que vige até hoje e
assim a define: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem
ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência
mediante ocupação ilícita”. O dispositivo jurídico da vadiagem tem sido historicamente usado
como instrumento de controle de populações específicas, por meio do emprego seletivo de uma
certa ética do trabalho informada por mecanismos de hierarquização social, como raça, classe e
gênero. Embora hoje sejam pouco frequentes as condenações por vadiagem (Ribeiro, 2000), a
noção ainda atravessa representações e práticas discriminatórias, por parte do Estado e da
Sociedade, direcionadas em especial a negros/as, favelados/as, prostitutas, cafetões, trabalhadores
informais, moradores de rua, usuários de certas drogas (Leal, 2016), entre outros.

Por outro lado, “vadiar” é interpretado como resistência e transgressão ao disciplinamento social
(Carvalho, 2008; Poreli e Giannattanasio, 2008)31. Na língua corrente, na música, na literatura, na
capoeira, nos imaginários de “nação”, entre outras expressões culturais, “vadiagem” é utilizada
com conotação positiva para expressar o tempo do prazer, do ócio, da “liberdade”, do vagar sem
propósito específico, em contraposição deliberada ao tempo do trabalho, da produtividade e
instrumentalidade. Neste sentido, vadiar é como flanar, um modo não-rotinizado de experimentar
o tempo, a cidade, o corpo. Como esta acepção suaviza a carga pejorativa dos termos vagabunda,
piranha e puta, acredito que a escolha foi uma estratégia para tornar a recepção do protesto mais
bem-sucedida no contexto cultural brasileiro. Como, também, esta significação positiva está, via
de regra, associada aos homens e ao universo masculino, vadia pode ter sido percebida como mais
rentável para questionar a política sexual das palavras do que os outros termos32.

31
Poreli e Giannattanasio (2008, p.482) afirmam: “A vadiagem está sendo apropriada, aqui, como o ato de entregar-
se ao destino, como a recusa de submeter a existência às formas de programação, à colonização do tempo”.
32
Se tratam apenas de suposições, pois eu não tive contato com as organizadoras paulistanas. Outros motivos
também podem ter sido relevantes na tradução. Por exemplo, uma amiga me relatou que uma das razões para a
exclusão do termo “putas” na primeira Marcha em São Paulo foi o fato de “não ter prostitutas na organização”. Já as
vadias cariocas me disseram que não havia consenso na Marcha paulistana sobre apoiar ou não as prostitutas.
Lembro-me de uma controvérsia envolvendo um cartaz na MdV-SP que dizia “Nem santas, nem putas” e que foi
bastante criticado pelas vadias cariocas, que o consideraram indicativo de uma posição de exclusão das prostitutas.
Adriana Piscitelli (2012) entrevistou uma organizadora da MdV-SP que relatou que o cartaz foi posteriormente
removido, em prol de um posicionamento mais cauteloso sobre a prostituição.
49

Já em 2012, 23 cidades de todas as regiões do país organizaram suas marchas, mantendo o espírito
original do protesto canadense, mas definindo localmente outras reivindicações e modos próprios
de mobilização. Em 2013, a Marcha ocorreu simultaneamente em sete capitais. Até maio de 2015,
havia acontecido em cerca de 60 cidades brasileiras33, e continua até hoje em alguns locais. A
velocidade com que o protesto se propagou pelo país e pelo mundo, mobilizando a juventude e
repercutindo em diversas mídias, é inseparável das possibilidades que as novas tecnologias de
comunicação oferecem ao ativismo político. Plataformas como Facebook e Twitter foram
utilizadas como espaços de produção de conhecimento e debates, difusão de informações,
recrutamento de apoiadores, e construção de fronteiras de diferenciação política. Mais do que
apenas uma ferramenta de organização, a internet é uma extensão do campo feminista.

O sucesso da MdV no Brasil deve ser situado em relação ao campo feminista e ao contexto político
do país. Por um lado, se consolidou aqui, desde as décadas de 1970 e 1980, uma teia político-
comunicacional feminista (Alvarez, 2014b) bastante dedicada ao combate à violência contra a
mulher. Esta temática foi exitosamente politizada pelo movimento, que teve um papel crucial no
seu enquadramento como um “problema social” e “público”, e não individual e privado (Gomes,
2010). Todo o esforço para a criação de políticas públicas de combate à violência contra mulher
esteve articulado ao debate público da questão, das telenovelas ao Congresso Nacional. A Lei
Maria da Penha, criada em 2006, e voltada especificamente para o combate e prevenção da
violência de gênero, tem grande popularidade e é conhecida por uma parcela bastante significativa
da população, de variados segmentos sociodemográficos (DataSenado, 2015). Ainda que esses
esforços tenham visibilizado muito mais a violência conjugal e doméstica do que a violência sexual
e o assédio, temas mais enfocados pela MdV, certamente contribuíram para a formação de uma
sensibilidade política acerca da violência de gênero, que informou o processo de recepção e
apropriação local do protesto.

Ao mesmo tempo, eu ouvi muitos relatos de participantes e organizadoras da Marcha sobre a


existência de um “gap” geracional no movimento. Com muitas ativistas alocadas na burocracia
estatal e em ONGs, o feminismo, diziam minhas interlocutoras, “não estava mais nas ruas”, exceto

33
Cheguei a este número buscando por “Marcha das Vadias” no Facebook. Identifiquei páginas e eventos do protesto
em 63 cidades. Em alguns casos não é possível saber se os protestos de fato ocorreram ou se se tratava apenas de
tentativas de mobilização ou fóruns de discussão.
50

pelos atos rotinizados do calendário feminista, que muitas consideravam pouco interessantes e
mesmo pouco acessíveis, atraindo apenas restritos círculos de ativistas. Não havia, elas me diziam,
espaços de militância que atraíssem as jovens, com exceção, talvez, da Marcha Mundial de
Mulheres, que no Rio de Janeiro, de todo modo, não é tão “orgânica” como em outros estados,
como me disse uma de suas militantes em entrevista. A MdV teria, então, suprido essa “demanda
represada” por participação, por performances políticas de visibilidade e por uma atuação não
institucionalizada ou não atrelada a relações partidárias e governamentais.

No Rio de Janeiro, a primeira MdV aconteceu em julho de 2011, apenas poucos meses depois da
marcha canadense e da paulistana, e num contexto de crescentes mobilizações no país e no mundo.
No plano internacional, a “Primavera Árabe” e o movimento dos Indignados da Espanha estavam
em curso, e em breve o Occupy Wall Street tomaria as manchetes de jornal. No Brasil, a Marcha
da Maconha ocorreu em maio de 2011 em diversas cidades, sendo que em São Paulo foi proibida
pela justiça e duramente reprimida pela polícia nas ruas. Era um contexto percebido pelos
movimentos sociais como de crescente conservadorismo. Em resposta, os paulistanos realizaram a
Marcha da Liberdade, que contou com defensores da descriminalização das drogas, feministas,
ativistas LGBT, ambientalistas, militantes sem-teto, sem-terra, entre outros movimentos sociais,
grupos e indivíduos, demandando liberdade de expressão e manifestação. Enquanto diversas outras
cidades se preparavam para replicar a Marcha da Liberdade, a primeira Marcha das Vadias
brasileira aconteceu em São Paulo, no dia 4 de junho. Seguiram-se Recife (11 de junho), Fortaleza
(17 de junho), Belo Horizonte, Brasília, Florianópolis, Juiz de Fora e Porto Alegre (18 de junho).
Em algumas dessas cidades a MdV ocorreu junto da Marcha da Liberdade. No Rio de Janeiro,
cinco ativistas, que já se conheciam das redes do movimento feminista carioca, participavam das
reuniões de organização da Marcha da Liberdade local, quando decidiram realizar também a
primeira MdV na cidade, seguindo os moldes das outras cidades e da Marcha da Liberdade. Em 18
junho, a Marcha da Liberdade aconteceu no Rio, e em 2 de julho, a Marcha das Vadias.

As idealizadoras da MdV carioca eram: Keila, jornalista e ativista LGBT, que tinha então 35 anos
e trabalhava em uma ONG ligada a direitos sexuais; Filomena, funcionária pública de 52 anos,
militante lésbica, feminista e de direitos humanos há mais de 30; Sinara, prostituta, travesti, 40
anos, militante pelos direitos das trabalhadoras sexuais, das pessoas vivendo com HIV/AIDS e das
pessoas trans; Petra, militante feminista profissional, de 38 anos, que integra a Articulação de
51

Mulheres Brasileiras (AMB)34, uma das principais organizações feministas do país; e Montse, 28
anos, profissional de recursos humanos, também da AMB.

Em entrevista, Keila, relembrou que aquele era um momento em que os movimentos sociais
começaram a se articular para ir às ruas, iniciando um novo ciclo de manifestações, anterior ao de
junho de 2013. Pela internet e canais de notícias, ela soube do evento da MdV de São Paulo, que
lhe chamou a atenção por não ter sido arregimentada “por organizações e entidades tradicionais do
movimento feminista e de mulheres”, mas por “uma moçada nova do movimento que a gente não
conhecia”. Ela contou que à época seu trabalho lhe permitia dedicar bastante tempo à organização
da Marcha, que foi preparada em cerca de um mês.

A rapidez com que a 1ª MdV Rio foi organizada é notável. As cinco idealizadoras conseguiram
atrair outras pessoas para compor ou apoiar o grupo de organização, várias delas vindas do próprio
grupo que preparava a Marcha da Liberdade, outras pertencentes às suas redes de ativismo
feminista e várias desconhecidas, em geral estudantes universitárias sem experiência em
movimentos sociais. Criaram uma página no Facebook e um blog, por meio dos quais convocaram
duas reuniões públicas de organização, em que se dividiram em quatro comissões: “Divulgação”,
responsável pelo material impresso, por uma panfletagem no Centro da cidade na véspera da
Marcha e pela comunicação na internet; “Organização”, incumbida de coordenar a oficina de
cartazes, a abertura e encerramento do protesto e a articulação com a imprensa;
“Comunicação/Agitação na Marcha”, responsável por “puxar as palavras de (des)ordem”, controle
dos megafones e carrinhos de som, coordenação da percussão e registro fotográfico; e “Segurança”,
que deveria cuidar das “interferências externas”, articulação com policiamento e agentes de
trânsito, e proteção das manifestantes contra assédios. Cerca de vinte pessoas se engajaram nas
comissões. No blog da Marcha uma das reuniões foi assim divulgada: “Levem ideias, disposição e
material para fazer cartazes. Conta com todas as vadias e com vadios também.”35

34
A AMB é uma organização feminista nacional, fundada em 1994, que atua “no fortalecimento das instâncias
estaduais do movimento de mulheres” (http://articulacaodemulheres.org.br/, acesso em 10 de maio de 2017).
35
As entrevistas e as informações do blog da MdV-Rio me ajudaram a reconstruir esses e outros aspectos dos
primeiros anos da Marcha. O blog está disponível em http://marchadasvadiasrio.blogspot.com.br/ (acesso em 12 de
junho de 2017)
52

As vadias elaboraram um manifesto36, publicado no blog, onde enumeravam diversas razões pelas
quais marchavam, como a cotidianidade e naturalização do estupro, o medo e a violência que as
mulheres experimentam nos espaços públicos e privados, o “estupro corretivo” sofrido por lésbicas
e os “dispositivos patriarcais” de repressão da sexualidade feminina, como as classificações “santa”
e “puta”:

Se, na nossa sociedade machista, algumas são consideradas vadias, TODAS NÓS SOMOS
VADIAS. E somos todas santas, e somos todas fortes, e somos todas livres! Somos livres
de rótulos, de estereótipos e de qualquer tentativa de opressão masculina à nossa vida, à
nossa sexualidade e aos nossos corpos. Estar no comando de nossa vida sexual não
significa que estamos nos abrindo para uma expectativa de violência, e por isso somos
solidárias a todas as mulheres estupradas em qualquer circunstância, porque foram
agredidas e humilhadas, tiveram sua dignidade destroçada e muitas vezes foram culpadas
por isso. O direito a uma vida livre de violência é um dos direitos mais básicos de toda
mulher, e é pela garantia desse direito fundamental que marchamos hoje e marcharemos
até que todas sejamos livres. Somos todas as mulheres do mundo! Mães, filhas, avós,
putas, santas, vadias... Todas nós merecemos respeito! (Manifesto MdV-Rio, 2011, grifo
original)

Não há demandas específicas no manifesto, mas a formulação de um problema ou questão social:


a opressão da sexualidade feminina e o concomitante direito à liberdade. Demandas foram listadas,
no entanto, no release que as organizadoras produziram especificamente para a imprensa: o direito
de ir e vir e o direito de existir sem ser vítima da violência; atendimento de qualidade pelo SUS
para todas as pessoas que sofrem violência sexual; acesso sem burocracia ou protelação ao aborto
pelo SUS quando as gravidezes são consequência de um estupro e se esta for a decisão da mulher;
implementação efetiva da Lei Maria da Penha; melhorias nas Delegacias Especiais de Atendimento
às Mulheres (DEAMs); e qualificação das delegacias não especializadas para atender vítimas de
violência sexual e doméstica, com capacitação de agentes da segurança pública sobre diversidade
sexual. O contraste entre manifesto e release no que tange à enunciação de demandas “concretas”
parece apontar para o desempenho de scripts políticos diferenciados de acordo os interlocutores
em questão. Se demandas específicas não foram mencionadas para as participantes e o público
geral, foram consideradas necessárias para tornar o protesto inteligível para a imprensa. De fato,

36
Os manifestos da MdV, dos anos de 2011 a 2015, podem ser lidos na íntegra no Anexo B desta tese.
53

quase todas as reportagens que pude encontrar sobre a marcha carioca de 2011 citam a lista de
reivindicações37.

Diversos tipos de mídia foram usados para diferentes funções. Enquanto a página do Facebook e o
blog foram usados para divulgar a Marcha, as reuniões e outras atividades, uma lista de emails
facilitava a coordenação interna entre as organizadoras. A página do evento no Facebook teve
quase 7.000 adesões, quando, a uma semana do protesto, foi repentinamente excluída, sem qualquer
aviso às moderadoras, que tiveram que criar outra. As velhas mídias também foram acionadas. As
organizadoras mais experientes nos movimentos tinham contatos na imprensa e conseguiram
entrevistas de divulgação do protesto em três programas de rádio e em uma reportagem do Jornal
O Globo38. As redes pré-existentes das organizadoras, muitas ligadas a alguma forma de militância
política, foram fundamentais para acionar esses canais de comunicação, bem como para maximizar
o alcance das redes sociais da internet, o que contraria a noção de espontaneísmo frequentemente
associada aos protestos contemporâneos.

Com concentração marcada para as 14h no posto quatro da praia de Copacabana, o protesto foi
aberto com uma peça, criada especialmente para a Marcha pelo Centro de Teatro do Oprimido
(CTO), uma associação sociocultural que difunde o método do Teatro do Oprimido junto a
movimentos sociais, educadores, lideranças comunitárias, camponeses, entre outros. Através do
blog da Marcha, mulheres foram convidadas a participar da peça, ensaiar na véspera do protesto e
contribuir com materiais recicláveis para a montagem do cenário. A Rede Nami, uma rede
feminista que usa artes urbanas para promover os direitos das mulheres, e integrada por algumas
das organizadoras da Marcha, ofereceu uma oficina de grafite no encerramento do protesto. A
Marcha Mundial das Mulheres também apoiou o evento e contribuiu com a impressão de cartazes.

37
“Fazer demandas” é parte de expectativas consagradas sobre o que são ou devem ser os movimentos sociais.
Estudos sobre o Occupy Wall Street, por exemplo, mostram que a recusa dos ativistas em fazer demandas formais
era objeto de constante estranhamento na imprensa e outros atores (Milkman et al, 2015). Outro exemplo que
evidencia a expectativa de demandas formais é uma matéria sobre a Marcha, cuja manchete diz “‘Marcha das
Vadias’ cobra fim da exploração sexual no RJ”, o que me parece, mais que um equívoco, uma forma de dar
inteligibilidade ao protesto. (http://www.jb.com.br/rio/noticias/2011/07/02/marcha-das-vadias-cobra-fim-da-
exploracao-sexual-no-rj/, u.a. 27 de junho de 2013)
38
A reportagem d’O Globo está disponível em https://oglobo.globo.com/rio/contra-violencia-sexual-marcha-das-
vadias-ocupa-ruas-de-copacabana-no-proximo-sabado-2755389 (u.a. 9 de junho de 2017).
54

O suporte desses atores políticos foi importante para dar visibilidade e legitimidade à MdV, além
de ampliar as redes mobilizadas.

As organizadoras calculam que cerca de 1.200 pessoas compareceram à Marcha de 2011, o que
consideraram um sucesso de público. Acreditam que mais pessoas teriam vindo se a página do
Facebook não tivesse sido derrubada. Ônibus partiram de São João de Meriti e da Zona Oeste para
Copacabana. Após caminhar pela orla, a Marcha seguiu pelas ruas internas do bairro e foi encerrada
em frente à 12a Delegacia de Polícia. Um breve relato de uma das organizadoras, publicado no
blog, assim avalia o protesto:

[…] o principal objetivo da marcha, que era ser uma manifestação pacífica e irreverente
para levar a sociedade a repensar sobre a culpabilização da vítima de estupro, foi atingido,
o tema da violência sexual contra mulheres e meninas foi assunto de vários meios de
comunicação e com destaque. Sobre as músicas, gostei muito da que o pessoal do CTO
puxou "ao longo da vida me transformei, fui santa, fui bruxa, fui puta, mas não me calei,
mas não me calei" e a que mais adorei foi "eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente
com a roupa que escolhi, é, e poder me assegurar, que de burca ou de shortinho todos vão
me respeitar". Meu momento preferido da marcha foi quando saímos da Av. Atlântica e
fomos por dentro de Copacabana, fizemos tanto barulho que tinha gente nas janelas,
saindo de dentro de restaurantes para ver o que era, tenho certeza que conquistamos mais
pessoas à causa.39

Desde 2011, a Marcha vem se repetindo anualmente, sempre em Copacabana, que também tem
sido palco para manifestações diversas40. Segundo estimativas das organizadoras, em 2012 cerca
de duas mil participantes compareceram; em 2013, três mil. Em 2014, houve uma grande queda na
participação, com cerca de 600 manifestantes. De 2015 a 2017, a tendência de queda se manteve.
As pessoas vão ao evento individualmente ou integrando coletivos feministas, partidos políticos,
grupos de performances artísticas, grupos de estudantes, de amigos, entre outros. Um survey
realizado com 102 participantes da Marcha carioca de 2012 por Name e Zanetti (2013) mostra que
a maioria (52%) toma conhecimento da Marcha pela internet. Os autores apontam ainda que os

39
http://marchadasvadiasrio.blogspot.com.br/2011/07/algumas-breves-consideracoes-sobre.html (acesso em 12 de
junho de 2017)
40
Copacabana é um bairro bastante heterogêneo em termos de classe e estruturas de habitação. Há setores muito
ricos, outros de classe média e ainda favelas populosas. Além de turística, é área de lazer para moradores de várias
partes da cidade. É tanto comercial como residencial, além de tradicional área de prostituição. Somente durante o
período do meu trabalho de campo, foi palco de protestos situados em um amplo espectro político e cultural: contra a
Copa Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos, de professores em greve, pelo fim da violência policial contra
moradores de favelas, contra as mortes de policiais no exercício do trabalho, contra e a favor do impeachment da
presidente Dilma Rousseff, contra o Uber, pela descriminalização do aborto, em defesa da liberdade religiosa, em
defesa da família etc..
55

participantes são majoritariamente mulheres (68%) e jovens (66% têm entre 15 e 29 anos). 83%
são solteiras/os, 67% são heterossexuais e 33% se declaram lésbicas, gays ou bissexuais. 89% têm
ensino superior completo ou incompleto, uma proporção muito superior à média de escolaridade
nacional. A popularização do acesso à universidade parece afetar positivamente as chances de
exposição aos movimentos sociais e de engajamento político. 48% se declararam brancas/os, 26%
preta/os e 23% parda/os. Se comparada ao censo demográfico nacional, a porcentagem de
autodeclaradas/os pretas/os está sobrerepresentada na MdV, já que a distribuição racial no país é
de 47,7% de brancos, 7,6% de pretos e 43,1% de pardos (IBGE, 2011). A sobrerepresentação de
pretas/os na Marcha aponta para a experimentação de processos de politização da raça entre as
pessoas que frequentam o protesto. Somente 16% moravam ou haviam morado em favelas e 64%
tinham renda superior a R$3.001,00, o que indica uma composição de classe média. Embora a
constituição da Marcha varie a cada edição de acordo com as estratégias de ação e recrutamento,
observei que é significativa a presença de pessoas que se identificam como trans, homens
heterossexuais acompanhando suas amigas ou parceiras sexo-afetivas, e crianças.

O perfil do grupo organizador da Marcha é semelhante ao dos participantes do protesto. Em 2014,


havia cerca de 50 membros na lista de emails montada para a organização da campanha daquele
ano. Entre os membros, havia um homem cis, pelo menos seis pessoas trans e o restante se
identificava como mulher cis41. As duas mais jovens tinham 17 e 18 anos; a maioria, menos de 30
anos; quatro estavam em torno dos 40; e a mais velha do grupo tinha então 55. Segundo minha
percepção, a maioria é branca. Pelo menos oito se identificavam como negras. A maioria possui
terceiro grau em curso ou completo. Apenas três são mães. Pelo menos 21 se relacionam com outras
mulheres ou com pessoas de ambos os sexos e o único homem cis da lista se identifica como gay.
Muitas circulavam em outros espaços políticos, como partidos, grupos feministas, ativismo LGBT,
movimento negro, anarquismo, movimentos de acesso à moradia urbana, sindicatos, grêmios
estudantis e centros acadêmicos universitários. No entanto, para várias integrantes, a MdV era a
primeira experiência de ativismo. As pessoas ingressavam na organização em diferentes momentos

41
As identidades e experiências de gênero das organizadoras desafiam qualquer contagem desse tipo. Pelo menos
três trans fizeram suas transições de gênero no decorrer da Marcha. Por exemplo, Ramona era identificada como
mulher quando entrou na Marcha, depois passou a se identificar como “homem trans” e mais tarde como “gênero
fluido”.
56

e permaneciam por durações variadas, além de terem diferentes graus de participação e influência
nos processos decisórios.

A cada início de ano, ativistas que participaram de edições anteriores da Marcha “puxam” a
primeira reunião da nova temporada, que sela simbolicamente o compromisso coletivo de dar
seguimento à Marcha e atrair novas pessoas para a organização. Diversas outras reuniões são
realizadas ao longo da temporada, marcadas em lugares públicos, como universidades e parques, e
anunciadas na página da Marcha no Facebook e abertas a quem quiser participar. Eu registrei 13
reuniões convocadas pela Marcha em 2013 e o mesmo número em 2014. As reuniões são os
principais espaços de tomada de decisão, em que as ativistas disputam aspectos centrais do protesto,
como a data mais oportuna e os temas que serão problematizados; a melhor forma de comunicar as
bandeiras encampadas; as estratégias de articulação com outros grupos militantes; a distribuição
de tarefas, entre outros. Além das reuniões, as mesas de bares, as festas e os círculos menores de
amizade que vão se constituindo também são espaços de reflexão, deliberação e de construção
identitária. A lista de emails, os grupos de WhatsApp e a página do Facebook funcionam como
fóruns de debate e produção de conhecimentos comuns.

Além do protesto anual, que constitui o principal evento da Marcha, as organizadoras também
promovem outras atividades. Os “debates de formação política” são mesas ou rodas de conversa,
em geral abertas à comunidade, com a presença de ativistas, pesquisadoras/es e outros atores
convidados para debater os temas abordados pela Marcha a cada ano. Nos “arrastões”, as vadias
saem às ruas à noite para colar lambes de divulgação da Marcha e conversar com as pessoas sobre
as bandeiras do protesto. A divulgação também é feita na página do Facebook, por meio de imagens
produzidas especialmente para esse fim, e em eventos diversos, como debates acadêmicos e
eventos culturais na cidade. A alimentação da página do Facebook com textos, notícias e eventos
relacionados ao feminismo é uma tarefa que toma bastante tempo e é feita por um grupo restrito de
organizadoras que têm acesso à moderação da página. A articulação com outros grupos de ativistas
e a interação com a imprensa; oficinas de cartazes, construção de tambores e ensaios de batucada;
participação em eventos promovidos por outros movimentos; arrecadação de fundos e compra de
materiais para o protesto também são parte da rotina política das vadias. Finalmente, já perto do
dia do protesto, elas elaboram o manifesto anual, que explica os propósitos a Marcha e declara as
bandeiras previamente debatidas.
57

“Autonomia”

Cena: Primeira Reunião da Marcha das Vadias de 2013

5 de fevereiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade


Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), 19h30

Quando eu cheguei, tinha poucas pessoas, mas elas foram chegando ao


longo da reunião. Contei mais ou menos 25 no total. Era uma daquelas salas
semelhantes a um auditório, no pátio. Lá na frente da sala, perto do quadro
negro, uma mulher jovem se dirige a todas e diz que participa da Marcha
desde 2012. Ela comenta que há muitos rostos novos ali e que gosta disso.
Explica que a Marcha não tem ligações com partidos políticos, sindicatos
ou outras organizações. Não possui estatuto ou qualquer tipo de
formalização: “é sociedade civil organizada, o que não quer dizer que seja
organizadora”, diz. Não entendo muito bem. Outra mulher, de uns 37 anos,
diz que a “pauta” da reunião é a escolha da data da Marcha: “sugerimos
que seja dia 27 de julho, sábado, quando o papa vai estar aqui para a
Jornada Mundial da Juventude Católica. Outra opção seria fazer uma
passeata ou ato-performance em maio”, diz. Uma terceira acrescenta mais
um ponto de pauta, as formas de obtenção de recursos mínimos para a
Marcha. As três têm experiência em outros anos da Marcha e nesta reunião
assumem lugares de liderança. Sugerem uma rodada de apresentação.

Cada pessoa se apresenta seguindo a ordem dos assentos. Há muitas


estudantes universitárias, inclusive do IFCS. Há apenas 3 homens, e um
deles acompanha a Marcha desde 2012. Descubro depois que ele é aluno
do IFCS e está fazendo uma pesquisa sobre a Marcha, junto com mais duas
bolsistas de graduação que eu conheço e que também se apresentam na
reunião. Uma garota diz que participou da organização no ano passado e é
militante do movimento dos Sem-Teto. Uma estudante do IFCS relata que
58

participou da reunião de avaliação da Marcha de 2012, quando brigou com


algumas organizadoras por terem desprezado suas críticas à invasão à
igreja42. Uma militante anarquista diz que não concorda com o Femen43.
Um dos homens diz apenas que quer conhecer a Marcha. Uma garota diz
que é da Baixada Fluminense44, do Fórum de Mulheres de Caxias e do
Núcleo de Jovens da Casa da Mulher Trabalhadora, uma ONG feminista.
A mulher que abriu a reunião se apresenta: “eu sou integrante da
Articulação de Mulheres Brasileiras, mas quando eu sou vadia, eu sou
vadia”. Eu digo que estou fazendo uma pesquisa sobre a Marcha e que
também quero contribuir como militante. O debate começa.

Uma garota pergunta qual o posicionamento da Marcha em relação ao


Femen, pois “é quase impossível não associar as duas coisas”. Uma das
organizadoras responde: “em primeiro lugar, é importante ter e mente que
a Marcha não é um movimento tradicional como, por exemplo, o MST,
mas um protesto”. Outra complementa: “nenhuma representante do Femen
procurou a organização da Marcha até agora”. “Há divergências entre os
dois coletivos. Por exemplo, o Femen não aceita homens; suas integrantes
devem ser sempre brancas e lindas. Mas as discussões sobre isso variam
em cada Marcha ou cidade”, explica uma terceira. Uma advogada, que
participa da Marcha desde o primeiro ano, diz: “o processo de organização

42
No protesto de 2012, a Marcha passou em frente a uma igreja católica. Nos arredores da igreja, havia grandes
banners com a foto do então papa Bento XVI, Joseph Ratzinger, anunciando a sua vinda ao país no ano seguinte para
a Jornada Mundial da Juventude. De onde eu estava, pude ver quando um grupo de 10 a 15 manifestantes entrou na
igreja, onde se realizava uma missa. Algumas tinham os peitos de fora. A polícia, que acompanhava o protesto desde
o início, foi acionada por fiéis que estavam na missa. Houve tensão entre vadias e policiais, com gritos, dedos em
riste, empurrões. O cortejo parou. Um grupo de mulheres exortou as que estavam na igreja a voltarem para a Marcha
para que o protesto seguisse em frente; foram apoiadas em coro por muitas participantes. Depois de alguns minutos,
o cortejo voltou a andar, e as que tinham entrado na igreja se juntaram. Esse episódio foi amplamente noticiado na
grande mídia como uma “invasão à igreja”, expressão também usada por diversas interlocutoras em campo.
43
Femen é um grupo feminista ucraniano, cujas militantes ficaram conhecidas mundialmente por protestar de peitos
de fora em diversas cidades. Houve uma unidade brasileira do grupo, representada por Sara Winter, hoje uma
militante “anti-feminismo” e “anti-aborto”. O Femen foi globalmente criticado, em especial por feministas, inclusive
integrantes da MdV do Rio e de diversas partes, por diversos motivos: não ter “propostas substanciais”, recrutar
apenas “mulheres magras, brancas e belas”, por quererem apenas “atenção midiática” e por “islamofobia”, após
protestarem contra o uso de véus por mulheres muçulmanas.
44
A Baixada Fluminense é a região que engloba os municípios ao norte da cidade do Rio de Janeiro.
59

dos atos foi também um processo de descoberta do que a gente queria. Não
concordo com o Femen, mas se elas quiserem participar sem a identidade
Femen, apenas como integrantes da Marcha, acho que tudo bem”.

Alguma novata pergunta qual é a base comum entre as diferentes Marchas


de cada cidade. Uma das lideranças responde que o combate à violência
contra as mulheres e contra expressões de feminilidade em geral, a
identificação como uma mobilização feminista e a bandeira da legalização
do aborto são origens comuns a todas as Marchas no país. Outra das
organizadoras, que se apresenta como prostituta, e me parece uma mulher
trans ou travesti, diz que entre as Marchas há discordâncias sobre a questão
da prostituição: “é importante diferenciar prostituição, realizada por
maiores de 18 anos, e exploração, que atinge menores de idade, e acontece
não apenas na rua, mas também em casa, atrás do altar etc. As pessoas
vitimizam muito as prostitutas e isso dificulta a regulamentação da
profissão”. Chega atrasada mais uma organizadora da Marcha, que diz que
está no movimento LGBT há mais de uma década e na MdV desde o início.
Ela diz que as casas de prostituição de Copacabana estão sendo fechadas
sob a justificativa dos grandes jogos e que, “embora a prostituição não seja
o foco da Marcha, mas a violência, especialmente a sexual, contra
mulheres, queremos conversar com as trabalhadoras e trabalhadores do
sexo”. Ela informa que uma assembleia de trabalhadoras do sexo será
realizada em breve e que algumas vadias estão articulando junto às
prostitutas a possibilidade de irem; os detalhes serão discutidos no
Facebook e na lista de discussão.

Um homem pergunta se há materiais informativos da Marcha, como


folders, site, entre outros. Uma liderança explica que, diferentemente das
Marchas de Brasília e Salvador, que se constituíram como coletivos mais
orgânicos, com atividades contínuas o ano inteiro, a Marcha do Rio
promove atos mais pontuais e não é uma “organização”, o que não impede
que haja 40 pessoas “na organização” das atividades. Embora haja
comprometimento das integrantes, é difícil alimentar sites sem a estrutura
60

de uma organização ou coletivo permanente, ela diz. Não obstante, “o


coletivo debate tudo exaustivamente; todas as decisões são realmente
coletivas”, explica.

Tenta-se retomar a questão da data. Alguém avalia que a principal


desvantagem de fazer em julho é que nem todos os estados vão aderir e,
por isso, pode haver menos mídia. A menina que discordou da invasão à
igreja pergunta: “por que esse confronto com a Igreja Católica? Por que
querer mídia, se ela não nos contempla?”. Uma organizadora responde que
a Marcha não fala apenas para o Estado, mas para a rua por onde passa,
para as pessoas que observam o ato. E a mídia, mesmo que hostil, é
importante, porque gera debate. Alguém reivindica que é preciso fazer atos
também nas Zonas Norte e Oeste, e não só em Copacabana, “apenas para
ter mídia”45. Uma das lideranças responde que a escolha de Copacabana se
deu não apenas para conseguir mídia, mas “também porque é um ponto de
prostituição”. Outra acrescenta que o trajeto foi “exaustivamente debatido”
nas marchas passadas: “queremos fazer em Madureira [Bairro da Zona
Norte], mas não podemos fazer isso se as pessoas de Madureira não
participarem da organização. Seria prepotência. Temos também que
garantir a segurança dxs manifestantes, a organização do trânsito. E nada
impede de tentar fazer o ato em Copa e em Madureira ao mesmo tempo”.

Sobre a Igreja, outra organizadora diz: “o Brasil é o maior país católico do


mundo. A Igreja Católica tem privilégios fiscais e um grande poder
político. A Igreja historicamente controla os corpos das mulheres e ainda
hoje é um grande problema para as mulheres. As bandeiras do papa na
Jornada serão ‘não à camisinha’ e ‘não ao casamento gay’. Por isso, é
importante se posicionar contra”. “Não somos contra as pessoas religiosas,
mas contra a Igreja e sua incompatibilidade com meu corpo, minha

45
Copacabana se localiza na Zona Sul da cidade, área com a maior concentração de renda. A expressão “Zona Sul” é
utilizada simbolicamente como marcador de classe, tanto como distinção quanto como acusação, dependendo do
contexto. Os seus opostos constitutivos, tanto em termos socioeconômicos, como simbólicos, são principalmente a
Zona Norte, Zona Oeste, Baixada e favelas, que constituem praticamente todo o resto da cidade.
61

sexualidade e escolhas”, diz outra. Uma garota pondera que seria mais
produtivo discutir sobre a laicidade do Estado, e não sobre os dogmas da
Igreja: “eu também discordei da invasão à igreja na última Marcha. Sou
candomblecista e também não ia gostar se invadissem meu espaço. A Igreja
é uma instituição que tem que ser respeitada. Se não, vamos discutir
também a Igreja Universal. Por que esta Igreja não está sob discussão?”,
pergunta. “Mas eu me sinto desrespeitada, meu corpo é desrespeitado pela
Igreja”, diz a liderança trans. Além disso, “a invasão não foi planejada”,
acrescenta alguém. “A escolha da data é puramente política: nossos corpos
não podem ofender à Igreja”, afirma outra organizadora.

Alguém pondera que para fazer a marcha em julho, tem que ter muita gente
mobilizada, porque outras “movimentações concorrentes” devem
acontecer, como o movimento LGBT, por exemplo. As organizadoras
acham que é possível juntar bastante gente e que dificilmente vai haver
tantos movimentos paralelos assim. Alguém lembra que em julho é
possível conseguir o apoio de católicas/os divergentes, como as Católicas
Pelo Direito de Decidir.

“Tem a questão da segurança também”, alguém comenta. Uma das


lideranças responde: “a gente não é oficial. A gente é vadia. Oficial é o
movimento LGBT, ou o movimento de mulheres que tem dinheiro do
Estado. A gente não levanta dinheiro. A gente optou por não se alinhar a
partidos e sindicatos, porque aqui [no Rio de Janeiro] a gente acha que os
movimentos estão se alinhando demais ao Estado. E também a gente não
está fazendo organização com mais ninguém. Teve uma proposta de fazer
com a Marcha da Maconha, mas a gente não quer, porque vai se sobressair
à gente. Eles queriam que a gente alterasse a data e o trajeto. Nada a ver”.
“Se vamos fazer em julho, temos que pedir autorização agora. Na verdade,
é só uma ‘comunicação’ de que vai ter marcha”, diz outra. Uma delas
sugere que as pessoas procurem saber se outras organizações vão atuar no
dia do Papa. A data de 27 de julho parece ir se confirmando. É hora de
62

fechar o IFCS. Decide-se a data da próxima reunião, dia 25 de fevereiro. A


reunião é encerrada.

Me apresento à organizadora que abriu a reunião. Ela me pergunta sobre o


doutorado e a pesquisa e me pede para fazer o relato da reunião. Depois,
vou com o que me parece o “núcleo” da organização e seus mais chegados
para uma cerveja. No caminho, elas criticam as pessoas que opinaram pelo
não confronto com a Igreja. A prostituta fala sobre a “despolitização das
trans”, que assim que conseguem tornar-se mulheres, acham que
“ganharam o jogo”. Para ela, a luta continua, agora pela “igualdade de
gênero”. Ela conta com bom humor seus casos com clientes e parceiros,
sua crescente falta de paciência para satisfazer os homens. Diz que é ateia,
ou numa forma mais “politicamente correta” de falar, que seu corpo “é um
Estado laico”. Elas falam sobre os banheiros divididos por gênero, acham
que isso devia acabar, mas que há enorme resistência, inclusive por parte
de mulheres e trans. Uma delas me diz que acha que os movimentos sociais
do Rio foram “cooptados” demais pelo Estado: “as lideranças estão todas
caladas, vendidas por cargos. O 8 de março é uma tristeza, disputam pelo
microfone”. Mas, apesar de tudo, a Marcha é o único movimento que ela
ainda se mete a fazer porque “causa comoção”, “identificação” e porque
“não é cooptado”. Falei da minha experiência na Marcha do ano passado,
que eu tinha gostado muito do clima. Vou embora já tarde. Em casa,
acrescento todas no Face, elas me aceitam.

Assim foi meu primeiro contato com as organizadoras da MdV. Embora elas refutem que haja
“lideranças”, “porta-vozes” ou “representantes”, não é fortuito que, entre as que eu identifiquei
nesta primeira reunião como “organizadoras” ou “lideranças” estivessem, como soube mais tarde,
quatro das cinco idealizadoras iniciais, além de outras, que continuaram a ocupar um lugar de
destaque no grupo ao longo do trabalho de campo. Olhando retrospectivamente, diversas questões
que iriam orientar as interações entre as vadias, e entre elas e o campo feminista mais amplo, já
63

estavam colocadas nessa primeira reunião, como por exemplo as disputas em torno das noções de
autonomia, horizontalidade e coletivo.

Como em outros movimentos sociais recentes, como o Occupy Wall Street dos EUA, os Indignados
da Espanha e a Marcha da Maconha e o Movimento Passe Livre brasileiros, as organizadoras da
MdV do Rio de Janeiro se definem como “autônomas”. Por autonomia, elas entendem a rejeição a
qualquer interferência do Estado, de outros movimentos sociais e de organizações políticas,
especialmente partidos políticos, sindicatos e ONGs feministas. Elas acreditam que aceitar recursos
externos exigiria a negociação e o comprometimento da identidade e objetivos políticos da MdV,
o que chamam de “aparelhamento”. Principalmente, elas buscam se diferenciar do que chamam de
movimento feminista institucionalizado, que consideram ter perdido o potencial crítico e criativo,
em virtude da rotinização das práticas e da interferência dos partidos e outros atores.

De meados da década de 1970 até o final da década de 1980, o incipiente feminismo brasileiro era
caracterizado por coletivos auto-organizados de mulheres, inseridas no campo mais amplo de
resistência à ditadura e, ao mesmo tempo, buscando definir uma agenda própria em torno da
“condição da mulher” (Sarti, 2001, 2004). Nesse contexto de luta pela redemocratização, a
categoria “autonomia” era evocada por feministas para se diferenciarem especialmente das
mulheres que militavam nos partidos políticos, acusadas de negligenciar a “luta específica” de
gênero em favor da “luta geral”, mais voltada a questões de classe (Alvarez, 2014b). Nos anos
1990, muitos grupos feministas se institucionalizaram em ONGs profissionalizadas e
especializadas, que buscaram influenciar as políticas públicas e administrar projetos diversos de
desenvolvimento voltados para mulheres pobres, financiados por governos e agências
internacionais. Nesse contexto, ser “autônoma” foi novamente alçado como discurso de
diferenciação pelas “novas” correntes feministas organizadas em diferentes lugares sociais, que
criticavam a institucionalidade das ONGs e acusavam-nas de “traição neoliberal” ao feminismo
(Alvarez, 2014a, 2014b).

As relações do movimento feminista com o Estado também sempre foram objeto de tensão. Minhas
interlocutoras mais velhas se recordam dos longos debates entre feministas sobre se deveriam ou
não participar da construção do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), de
1984; do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985; e da Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-88. Grosso modo, as atoras divergiam entre a preocupação com a
64

preservação da capacidade crítica do movimento feminista, de um lado, e a possibilidade de


incidência concreta nas políticas públicas a partir de uma agenda de gênero, de outro (tensão que
permanece ainda hoje, como veremos). Apesar da disputa, elas decidiram participar de modo
articulado daqueles empreendimentos, de que o “Lobby do Batom” e a “Carta das Mulheres”
durante a Constituinte são constantemente rememorados.

A partir daí, as relações institucionais do feminismo com o Estado começaram a se formalizar.


Primeiro, nos governos de Fernando Henrique Cardoso, que em 1995 reativou o CNDM como
instância do Ministério da Justiça, e em 2002 criou a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher,
ainda subordinada à mesma pasta e sem estrutura administrativa. Depois, nos governos Lula, esta
institucionalização se consolida a partir da criação, em 2003, da Secretaria Especial de Política para
Mulheres (SPM), vinculada à Presidência da República, com status ministerial, diretrizes e
orçamento próprio (Pimenta, 2008; Machado, 2016). A criação da SPM, que articulou a realização
das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, a construção dos Planos de Políticas
para as Mulheres e outros mecanismos na burocracia estatal para a promoção da igualdade de
gênero, repercutiu nas esferas estaduais e municipais de governo, com a implantação de secretarias
locais da mulher, equipamentos de combate à violência e outras políticas46. Este contexto recente
de institucionalização das relações entre feminismo e Estado é reconhecido por diversos setores
feministas – as “autônomas” da MdV, da internet e dos “coletivos”, as ativistas alocadas em ONGs
etc. – como um período de ganhos em termos de políticas públicas e legislação, mas também tem
gerado críticas à assimetria entre governo e sociedade civil nas tomadas de decisão e ao prejuízo
da capacidade crítica do movimento em relação ao Poder Executivo (Machado, 2016).

Assim, a categoria autonomia é hoje novamente reclamada por diversos grupos feministas,
inclusive as vadias, para legitimar suas agendas e modos de organização, em contraste com o
Estado, ONGs, partidos e sindicatos. Ademais, como estes espaços de atuação são geralmente
ocupados por feministas de gerações mais velhas, a distinção entre autônomas e institucionalizadas
adquire atualmente uma inflexão geracional que não estava explicitada nas décadas anteriores.

46
Avelar e Rangel (2017, p.270-271) chamam “Feminismo de Estado” às “instâncias de representação
extraparlamentar das mulheres no âmbito da burocracia estatal”. Para Cruz (2016, p. 175), o termo designa o
“conjunto dos movimentos sociais contemporâneos que passam a fazer parte da sociedade política, atuando como
membro executor da política pública setorial do governo”.
65

Assim, são as feministas mais jovens, embora não apenas, as que mais frequentemente reclamam
hoje o lugar da autonomia e da rejeição à institucionalidade 47.

A declaração, na primeira reunião de 2013, de que “a gente não é oficial, a gente é vadia” expressa
bem essas distinções. A categoria vadia, incorporada nos protestos e discursos da Marcha como
afirmação de “transgressão e autonomia sexual”, desliza para o nível organizativo como
“transgressão e autonomia política”. Ser vadia na política é recusar a doação de dinheiro e a
institucionalidade que o dinheiro supostamente produz, é não negociar a identidade do grupo com
outros movimentos, é valorizar o “faça você mesma”, a “criatividade” e a “rebeldia”, ideais
semelhantes aos que balizavam a construção do estilo das Riot Girrls e Minas do Rock, com suas
bandas e zines (Facchini, 2008; Camargo, 2010).

As passeatas anuais do 8 de março, em comemoração ao dia Internacional da Mulher, são sempre


citadas pelas vadias como o “outro” da Marcha, um modelo de tudo o que elas não gostariam de
ser, fazer ou participar: a “invasão” das bandeiras dos partidos, que “sequestram” as pautas
feministas; os grandes carros de som, que, comandados por sindicalistas, hierarquizam e
centralizam a passeata; a eterna “briga pelo microfone” entre participantes; as “falas” repetitivas e
previsíveis, que em vez de atrair, afastariam o público; a “falta de criatividade” dos repertórios de
ação, sempre muito controlados; os mesmos trajetos pelo centro da cidade; a insistência, enfim,
num formato de expressão e organização política que as vadias consideram pouco criativo, ineficaz
e autoritário48.

No entanto, conforme pude perceber ao longo do tempo, não se trata de recusar qualquer relação
com outros atores, mas de definir quais serão os participantes e os termos da interação. Em diversas
ocasiões, eu mesma intermediei o apoio do Instituto de Estudos da Religião (ISER), ONG em que

47
Nos últimos anos, o bloqueio das pautas de direitos reprodutivos e direitos sexuais, o fortalecimento das bancadas
parlamentares conservadoras e o aprofundamento de políticas de austeridade fiscal a partir do impeachment de Dilma
Roussef já impactam a configuração do campo feminista. Se por um lado, os coletivos continuam a se multiplicar e a
ressignificar os sentidos de autonomia, por outro, percebe-se sinais, segundo Sorj (2017), de um “reencatamento da
política institucional-partidária”. Para a autora, o aumento das candidaturas feministas, especialmente de jovens,
negras e trans, aos legislativos municipais no pleito de 2016, aponta para uma tentativa de se contrapor às frentes
parlamentares conservadoras desde dentro da institucionalidade.
48
O 8 de março de 2017 pode ter começado a mudar esta percepção. Fruto de uma articulação global que organizou
uma “greve internacional de mulheres” em diversas cidades, a construção do ato envolveu muito mais atoras, redes e
repertórios do que aquelas que tradicionalmente faziam o 8 de março no Rio. Cerca de 15 mil pessoas participaram
do ato na cidade, no que provavelmente foi o maior 8 de março da sua história.
66

eu e outra integrante da Marcha trabalhávamos à época, e que várias vezes nos cedeu salas para
reuniões e debates, e uma vez até financiou a impressão de material de divulgação. A Anistia
Internacional, onde Keila então trabalhava, também cedeu suas salas para eventos da Marcha, e um
centro acadêmico universitário uma vez emprestou pincéis, tintas e cartolinas. Essas instituições
não pediram contrapartidas e não eram percebidas como ameaças à identidade da Marcha,
diferentemente de partidos, sindicatos e organizações feministas. Mas mesmo estes atores foram
ocasionalmente acionados pelas vadias, de modo que registrei reuniões no Instituto Equit e no
SINDSPREV49, além de cópias de panfletos financiadas pelo Núcleo de Mulheres do PSOL, por
exemplo.

As redes em que as vadias estavam inseridas eram, portanto, de um modo ou de outro, acionadas,
o que às vezes era motivo de conflitos. Quando cheguei em 2013, percebi que já havia se
estabelecido uma disputa particularmente acentuada entre as mais antigas. Algumas delas
integravam a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e eram frequentemente acusadas por
outras de tentar “se apropriar” da Marcha, de querer subsumi-la à AMB, ferindo a autonomia do
grupo. As acusações surgiam, por exemplo, quando aquelas davam entrevistas à imprensa sobre a
Marcha das Vadias e mencionavam sua filiação à AMB. As outras, então, as acusavam de
propositalmente não distinguir a AMB da Marcha, dando margem à interpretação de que a primeira
“organizava” a segunda50. Além de terem contatos na imprensa, as integrantes da AMB se
mostravam mais equipadas para dar entrevistas – vocabulário e performances fluentes, confiança
– diferentemente das vadias menos socializadas em movimentos. Por isso, suas entrevistas eram
recorrentes, assim como as acusações.

“Separar” a atuação como vadia das “outras militâncias” era uma cobrança frequente e exigia de
algumas ativistas um difícil gerenciamento de seus múltiplos pertencimentos políticos. Era isso o
que tentava fazer aquela que, na primeira reunião de 2013, declarou “sou integrante da Articulação
de Mulheres Brasileiras, mas quando eu sou vadia, eu sou vadia”. Ou a que disse que não se opunha

49
O Instituto Equit é uma ONG feminista que atua nas áreas de “gênero, economia e cidadania global” e o
SINDSPREV é o Sindicato dos trabalhadores da Saúde, Trabalho e Previdência Social do Estado do Rio de Janeiro.
50
Uma reportagem, por exemplo, diz que “O ato [MdV] foi organizado pela Associação de Mulheres Brasileiras
(AMB) e vai partir da praia de Copacabana, protestando contra a opressão e controle da sexualidade das mulheres.”
(https://www.terra.com.br/noticias/brasil/papa-francisco-no-brasil/rj-marcha-das-vadias-vai-ironizar-dogmas-da-
igreja-na-jornada,c2c9dd78187ef310VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html, u.a. 7 de janeiro de 2018)
67

à participação de integrantes do Femen, desde que “sem a identidade Femen, apenas como
integrantes da Marcha”. Já Petra, umas das idealizadoras da MdV-Rio e integrante da AMB de
longa data, considerava que era impossível separar suas militâncias. Segundo ela, sua identidade
de AMB é pública e, portanto, conhecida em todos os espaços militantes e pela imprensa. Ela não
podia e nem queria omiti-la, dizia. Por fim, tive notícias de que algumas ativistas se afastaram da
Marcha por sentirem que suas outras experiências e identidades políticas eram desvalorizadas ou
rejeitadas.

A presença de mulheres que se identificavam primariamente como militantes de partidos nas


reuniões da Marcha também gerava desconfiança, especialmente por parte das organizadoras com
mais experiência nos movimentos sociais, algumas das quais também eram ou haviam sido filiadas
a partidos políticos. Para elas, a filiação não é um problema, mas sim estar na Marcha apenas
“cumprindo tarefa” do partido e buscando dar visibilidade às suas próprias pautas, às expensas das
bandeiras da MdV. Nas reuniões e conversas, as vadias frequentemente mencionavam os embates
que tiveram nos anos anteriores com militantes de partidos e sindicatos que, apesar de “não terem
construído” a Marcha, sempre apareciam no dia do protesto com as bandeiras de suas organizações
(as de tecido e as políticas) e tentavam “tomar o protagonismo” do ato. Há uma forte percepção
entre as vadias, assim como entre feministas de ONGs e com quem conversei, de que os partidos
têm historicamente “sequestrado” os atos e pautas feministas. Essa é a justificativa para que a
Marcha se apresente publicamente como “apartidária”. O manifesto de 2012 diz:

A Marcha é uma manifestação plural, autônoma e independente de qualquer movimento,


governo, partido, sindicato, bandeira, etc. Dia 26 de maio denunciaremos os abusos e
absurdos que enfrentamos cotidianamente pelo simples motivo de querermos SER
LIVRES! Priorizamos a participação real das pessoas com faixas, imagens, cartazes que
expressem os anseios em torno dos temas e da luta da Marcha das VADIAS. (Manifesto
MdV-Rio, 2012, grifos originais)

Mas em 2013, dadas as manifestações públicas de repúdio aos partidos políticos durante as
Jornadas de Junho, elas avaliaram que precisavam reformular a noção de apartidarismo, para que
“não fosse confundida com anti-partidarismo”. Os episódios de queima de bandeiras e agressões
físicas a militantes de partidos, considerados por elas como atitudes “fascistas” e “de direita”,
tornavam o apartidarismo agora “perigoso”: “a Marcha das Vadias já é acusada de ser
despolitizada, por causa dos peitos de fora. Temos que nos posicionar e mostrar que somos
politizadas, sim”, diz Petra, em uma reunião da MdV ocorrida dias depois do grande protesto de
68

20 de junho de 2013. Naquele contexto de acirramento político, elas decidem que é importante
afirmar seu “caráter de esquerda, anticapitalista e libertário” e “se posicionar claramente ao lado
dos partidos”, reconhecendo-os como “uma conquista histórica”. Ao mesmo tempo, ponderam, é
preciso “evitar que suas bandeiras escondam as nossas”. Assim, “em vez de pedir que não tragam
bandeiras, vamos pedir que façam suas bandeiras”, decidem, para mostrar que “não temos
problemas com partidos e que continuamos dialogando com eles”. No Manifesto de 2013, a questão
aparece assim elaborada:

A Marcha é apartidária e, mais uma vez, em 2013 convidamos partidos, sindicatos,


coletivos e organizações que queiram trazer suas pautas e construir seus cartazes,
pinturas e demais intervenções “artivistas” junto conosco. Pedimos que bandeiras não
sejam levantadas para que não se sobreponham às vozes e demandas vadias estampadas
nos cartazes. Acreditamos na ocupação das ruas para transformar ideias e práticas, para
isso, buscamos dialogar com todos os setores da sociedade. (Manifesto MdV-Rio, 2013)

Suavizada, a tensão com os partidos e instituições, no entanto, continua presente no texto. É


encarnada aqui na oposição entre “bandeiras”, percebidas como produtos de uma institucionalidade
impessoal e da política de massas, e “cartazes”, vistos como expressões da “participação real das
pessoas” e de suas “vozes”, “construídos” a mão, remetidos, enfim, à participação direta dos
indivíduos de carne e osso no jogo democrático, considerada mais autêntica.

A rejeição ou desconfiança em relação aos partidos extrapola o contexto da MdV e deve ser
compreendida como um fenômeno mais amplo, certamente de caráter geracional. Embora eu não
aprofunde esta questão aqui, vale à pena fazer uma observação pontual que pode estar relacionada
a esta visão negativa dos partidos: tanto as vadias como outras feministas jovens com quem
conversei preferem se identificar com o termo “ativista”, enquanto a palavra “militante” aparece
mais entre minhas interlocutoras mais velhas e integrantes de partidos. Algumas vadias associam
o termo “militante” diretamente aos partidos políticos e ao contexto da ditadura, em que “militar”
significava atuar em grupos de luta armada e outros movimentos “revolucionários”51.

51
Já no trabalho de Stephanie Lima (2016) sobre o Encontro Nacional Universitário da Diversidade Sexual, “militante”
aparece como categoria política e valorativa para (auto)identificar sujeitos que se organizam “coletivamente”, com
outras pessoas, enquanto “ativista” designa aqueles que atuam “individualmente”.
69

“Horizontalidade”

Para as vadias, a vigilância sobre tudo o que pudesse representar um processo de


institucionalização ou formalização visa não apenas evitar a descaracterização de sua identidade
política, mas também a adoção de formas “hierárquicas” de organização. Segundo elas,
institucionalizar-se significa, necessariamente, reproduzir uma estrutura de organização
centralizada, cujas decisões seriam tomadas de forma “autoritária”, restringindo a expressão e
participação individual e igualitária a todas as integrantes. Em contraposição à hierarquia, as vadias
valorizam a horizontalidade como princípio que deve guiar seu modo de organização, de modo a
garantir igual legitimidade e oportunidade de participação. Horizontalidade é assim definida por
Keila em uma conversa informal:

Qualquer um pode falar, não importa se chegou na primeira ou na décima reunião, não
importa se tivermos que discutir tudo de novo, e mesmo mudar nossas decisões anteriores,
não importa se for um homem fazendo perguntas ou comentários machistas e a gente tenha
que explicar as coisas mais básicas. Na verdade, essa é a beleza da Marcha.

Os ritos das reuniões e tomadas de decisão eram modelados pela noção de horizontalidade.
Diferente de outros fóruns feministas que frequentei durante o campo, majoritariamente compostos
por organizações, as vadias recusavam o expediente das inscrições para organizar as falas, bem
como a figura da coordenadora de reunião. As vadias levantavam a mão quando queriam falar e
tentavam ceder a vez àquelas que ainda não tinham falado. Não eram raros os momentos em que
várias pessoas falavam ao mesmo tempo e, então, alguém tentava reorganizar as falas, uma por
vez. O aspecto meio “caótico” das reuniões, apesar de cansativo, era valorizado como um modo
menos hierarquizado, mais direto e espontâneo, de participação.

Em comum com os outros espaços feministas que frequentei, as vadias não votavam para tomar
decisões. Sempre que alguém sugeria uma votação, geralmente uma pessoa pouco socializada no
movimento, as vadias mais experientes argumentavam que “feministas não votam”, acionando aqui
o lugar da tradição, que em outros momentos rechaçavam. Votar era identificado com os métodos
decisórios dos partidos, sindicatos e movimentos sociais “tradicionais”, e considerado um recurso
muitas vezes “anti-democrático”. Elas explicavam como a votação era usada como estratégia
autoritária nesses espaços: no dia da votação, os defensores de uma certa posição convocavam seus
70

prosélitos, que “blocavam” a reunião, isto é, constituíam maioria, apenas com o propósito de ganhar
a votação, inibindo o debate. Assim, a votação não expressaria a “vontade democrática da maioria”,
mas, antes, favoreceria que uma maioria fosse forjada e imposta pela autoridade do número.
Feministas de partidos, especialmente o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado),
de alguns sindicatos e de certos setores do movimento estudantil, como a UJS (União da Juventude
Socialista), eram acusadas, tanto pelas vadias como por outras feministas, de usar a prática de
“blocar”, por exemplo, nas reuniões para a construção do 8 de março.

Em vez do voto, as vadias buscavam “construir consensos”, o que implicava em longos debates,
que visavam não apenas decidir sobre as chamadas questões “deliberativas”, relativas à
manutenção material do grupo (locais das atividades e divisão de tarefas, por exemplo), como
também produzir um ideário político compartilhado. Os consensos eram alcançados pelo embate e
síntese de diferentes propostas, reelaboradas a cada fala. Os debates para construção de consensos
eram imaginados por elas como uma arena horizontal, em que as participantes ocupam posições
igualitárias e se engajam tanto em convencer como em ceder.

A horizontalidade, princípio valorizado pelas vadias, expressa o esforço de evitar a constituição de


hierarquias internas, garantindo igual legitimidade e oportunidade de participação a todas, algo que
consideram ser impossível em organizações e coletivos feministas. É, assim, um ideal que norteia
as interações internas das ativistas, ao mesmo tempo em que as diferencia das “outras” feministas
com as quais se contrastam. Entretanto, o ideal de horizontalidade implica negociações constantes
e é continuamente desafiado nas interações cotidianas. Ao longo do processo de organização, as
participações das organizadoras não são homogêneas. As vadias desenvolvem diferentes
capacidades de afetar as tomadas de decisão do grupo, de acordo com sua disponibilidade de tempo
e recursos para o engajamento, experiência prévia em movimentos sociais, conhecimentos sobre o
campo feminista, idade, carisma, habilidades sociais e pessoais, alianças internas, redes externas,
entre outros fatores. Em geral, as ativistas mais experientes52 na MdV e/ou nos movimentos sociais

52
A noção de “experiente” é bastante relativa. Se aplica a pessoas com longa experiência nos movimentos sociais e
feministas, que em geral são também mais velhas; àquelas que são jovens, mas possuem “tempo de movimento(s)”,
como Zanetti também percebeu em seu estudo sobre “jovens feministas” (Zanetti, 2011); e, finalmente, às que
participaram da organização da Marcha em anos anteriores. Eu, que nunca tinha tido nenhuma experiência de
militância antes da MdV de 2013, fui identificada como “experiente” em 2014, por uma menina bem mais jovem que
eu, recém-chegada à organização. Meu uso da noção de “experiente”, portanto, segue e explicita as lógicas nativas.
71

têm informações sobre as Marchas passadas e o campo feminista em geral, que usam para construir
seus argumentos. Elas falam mais e com mais autoconfiança, estão e são investidas de certa
autoridade e legitimidade e influenciam mais do que as “novatas” a construção de consensos, como
no caso da escolha da data da Marcha de 2013 para o mesmo dia do evento católico.

As que tinham maior disponibilidade de tempo para participar também acabavam influenciando
mais as decisões. Estudantes, trabalhadoras em horário parcial e as que circulavam nas zonas
centrais da cidade, onde as reuniões costumavam acontecer, eram as que possuíam maior
“disponibilidade biográfica” (McAdam, 1986) para “colocar a mão na massa”, e acabavam
afetando mais as decisões políticas do que as que não podiam estar presentes em todas as reuniões.
Havia poucas mães no grupo, e quase todas que o eram, tinham filhos adolescentes ou jovens, já
mais autônomos, o que também lhes proporcionava mais tempo para o ativismo.

Silvia, recepcionista, negra, moradora de Nilópolis, município da Baixada Fluminense, tem um


companheiro e é mãe de uma filha de quatro anos. Participou da Marcha em 2012 e 2013, e
lamentava não ter tempo de participar das reuniões e debates promovidos pela organização.
Somente em 2014, quando passou a trabalhar no Centro do Rio, começou a frequentar as reuniões,
mas não conseguia ir a todas, por conta das dificuldades materiais que enfrentava: o tempo corrido,
as horas gastas no transporte público, o cansaço, os cuidados com a família. Quando a maioria das
vadias ia para algum bar depois das reuniões, Silvia precisava voltar para casa, porque seu ônibus
parava de circular, e se ausentava deste importante espaço da política que é a mesa de bar.53 Para
ela, essas razões dificultam que mulheres da Baixada participem do ativismo político, não só no
Rio, como dentro da própria Baixada, onde as distâncias são grandes e os serviços de transporte
ainda mais precários. Apesar disso, ela se manteve presente, entre outras razões, porque “queria
aprender um pouco mais de como se organizar” (entrevista concedida em 5 de agosto de 2015).
Esse lugar de “aprendizado” em que se colocava54 era também partilhado por algumas das mais
jovens ou recém-chegadas, que me relataram que se sentiam desencorajadas a falar por sua pouca
idade e inexperiência, além de intimidadas pela ocasional “indiferença” ou “menosprezo” às suas

53
Em sua dissertação de mestrado sobre a Marcha carioca, Leticia Ribeiro (2016) analisa as barreiras à participação
de mães na MdV-RJ e no movimento feminista de modo geral.
54
Não obstante, Silvia foi responsável por articular uma importante reunião entre as vadias do Rio e um grupo de
mulheres ativistas de São João de Meriti, em que aprendi bastante sobre as disputas de classe em torno da MdV, de
que falarei no capítulo 3.
72

colocações por parte das mais experientes. Do mesmo modo, algumas organizadoras negras
relataram publicamente em reuniões que algumas vezes se sentiram desencorajadas a falar diante
de um grupo majoritariamente branco.

Portanto, no processo de organização da Marcha, experiência, disponibilidade, classe e cor operam


como disposições sociais que afetam a capacidade das pessoas de influenciar as decisões do grupo,
formando um “núcleo” informal de liderança. Ao longo de 2014, meu segundo ano em campo, eu
mesma me percebi integrando esse “núcleo” mais atuante, ajudando a organizar debates,
conseguindo acomodações para as reuniões, fazendo articulações com outros grupos feministas,
participando da redação do manifesto e moderando a página do grupo no Facebook. Godiva, 24
anos à época da entrevista, participou de algumas reuniões em 2014 e relata assim o modo como
percebia a constituição de hierarquias internas na Marcha:

Eu percebia muito que existiam pessoas que estavam na militância há mais tempo,
portanto, elas se achavam no direito de falar mais, ou então, de falar: “Não, cara, eu sei
que isso não vai dar certo. Você ainda não tem a experiência que eu tive, que eu acumulei”.
(...) o peso da experiência tem a sua carga de sedimentação, de uma coisa que acaba se
fixando, e que pode ser muito ruim, porque perde a dinâmica do que é mais sutil, de uma
coisa que às vezes não está no roteiro, e eu percebia isso em algumas pessoas, isso me
incomodava um pouco. Não que a gente não possa construir entre gerações, mas como se
dá esse peso de uma disputa de poder, de uma voz de autoridade? Óbvio que isso existia.
Isso existia [também] se você já tinha participado desde a primeira formação, sabe, na fala
das pessoas, tipo: “Não, mas era assim, a gente fazia assim. Então, você está fazendo
errado”, e tipo “Calma aí! Eu não sei nem como que era, porque eu não estava antes”,
sabe?, “Ah, se você não estava na reunião passada, que isso foi discutido, você não pode
falar sobre isso agora”. (Entrevista concedia por Godiva em 19 de agosto de 2015)

Como a história tem mostrado, o surgimento de lideranças é inevitável em qualquer movimento


social, mesmo naqueles que buscam praticar a horizontalidade. Assim, ainda que esse ideal possa
ajudar a criar um ambiente menos hierárquico e mais participativo, também atua “mascarando o
poder”, como Jo Freeman (1972) observou há muito tempo no contexto do feminismo
estadunidense55. Na ausência de estruturas organizacionais formais, redes exclusivas de amizade e
claques passam, então, a constituir “elites informais” com poder de afetar as instâncias decisórias
do movimento. Como a existência de hierarquias internas não pode ser sequer reconhecida em

55
Aliás, o famoso texto de Freeman, “A tirania das organizações sem estrutura”, circulou na lista de e-mails das
vadias em 2014, quando conflitos raciais eclodiram e ensejaram críticas à noção de “horizontalidade” (ver capítulo
3).
73

organizações que se proclamam horizontais, fica difícil criar mecanismos de controle


[accountability], porque as lideranças permanecem invisíveis ou implícitas (Freeman, 1972).

Na Marcha carioca, pequenos círculos de amizades foram se formando e consolidando com o


tempo, em torno de disposições sociais, afinidades eletivas, intensidade da participação,
posicionamentos políticos diante de cada situação concreta, redes de contatos, projetos feministas
etc. Os círculos de amigas trocavam experiências e conhecimentos sobre ativismo, refletiam juntas
sobre questões que tocavam a Marcha, desenvolviam argumentos. Essa elaboração conjunta era
um importante recurso político nos debates. Houve inclusive disputas entre diferentes círculos, por
exemplo, sobre como deveria ser a participação de homens na Marcha ou sobre como lidar com
uma denúncia de agressão entre ex-namoradas. Havia uma considerável rotatividade nos quadros
da organização, seja porque alguns desses conflitos levaram à saída de integrantes ou porque novas
pessoas entravam no grupo, de modo que os círculos de liderança se reconfiguravam
continuamente.

Se autonomia foi acionada para regular as tensões resultantes das múltiplas militâncias das vadias,
a horizontalidade também foi mobilizada em situações de conflito entre diferentes projetos dentro
do grupo. Nessas ocasiões, a “falta de horizontalidade” ou a desigualdade de participação entre as
ativistas era problematizada, ensejando acusações de “autoritarismo”. Assim, por um lado,
horizontalidade e autonomia são mobilizados como qualificativos positivos de diferenciação entre
as vadias e seu “exterior constitutivo” (Alvarez, 2014b), isto é, “outras” feministas com as quais
querem se contrastar – em especial, as institucionalizadas – e em relação às quais se definem como
um “nós”. Por outro lado, são noções acionadas nos conflitos internos das vadias, quando se tornam
parte de lógicas acusatórias.

Online

Nos estudos sobre ação coletiva, o uso marcante da internet pelos movimentos sociais recentes vem
despertando o interesse de pesquisadoras/es sobre como “off-line” e “online” se relacionam,
renovando as chaves de análise e conceitos do campo. Os movimentos não se reduzem aos aspectos
técnicos dos meios de comunicação utilizados, mas envolvem sobretudo a produção cultural de
74

símbolos e significados compartilhados (Johnston e Klandermans, 1995; Melucci, 1996). Assim,


embora as redes sociais sejam usadas pelos movimentos sociais para compartilhar informações,
marcar datas importantes (como na opção “eventos” do Facebook) e formar grupos (“páginas”,
“comunidades”), elas são muito mais que simples ferramentas. O que há de mais relevante nelas
para os estudos sobre movimentos sociais é como afetam e transformam seus modos de
organização, como efetivamente levam pessoas às ruas e modelam seus repertórios de ação.

Ainda que haja “pessimistas” – que consideram que a internet empobrece e polariza o debate
político, cria formas de “clique-ativismo” que geram pouco impacto real e ameaça a privacidade
individual, colocando ativistas em risco – a maior parte dos estudiosos celebra as novas tecnologias
de comunicação. Argumentam que a internet teria finalmente oferecido as condições materiais e
técnicas para a que a “horizontalidade” fosse efetivamente concretizada nos movimentos sociais
contemporâneos, ao reduzir os custos de transação no espaço público, democratizar a produção de
informação, eliminar as distâncias, remover, enfim, os obstáculos à ação coletiva, possibilitando a
participação direta e igualitária das pessoas (Castells, 2013; Gerbaudo, 2012; Sorj e Fausto, 2016).

Em seu livro “Tweets and the streets”, Pablo Gerbaudo (2012) refuta, no entanto, a equação entre
internet e “horizontalidade”, que no campo teórico é expressa pelas noções de “redes” [networks],
de Castells, e “multidões” [multitudes, em inglês], cunhada por Hardt e Negri56. A internet é
descrita como uma “rede de cérebros” “sem centro”; as multidões, como “enxames sem colmeias”,
termos que, aplicados aos movimentos sociais, os retratam como configurações desterritorializadas
e desencarnadas, que prescindiriam de qualquer núcleo, simbólico ou físico. Mas, ao analisar a
Revolução Egípcia, os Indignados da Espanha e o Occupy Wall Street de Nova York, que tiveram
seu ápice em 2011, Gerbaudo mostra que esses pressupostos estão equivocados.

Se no passado os movimentos sociais dependiam de interações face-a-face e da construção de


“vínculos fortes”, hoje as condições materiais para que isso ocorra já não estão dadas. Em
sociedades marcadas pela individualização, dispersão espacial e privatização dos espaços públicos,
as pessoas apelam a formas mediadas de interação, como as redes sociais da internet. Mas as
relações aí estabelecidas constituiriam, em geral, “vínculos fracos”, além de tenderem a reforçar as
dinâmicas de isolamento e segmentação presentes nas sociedades, o que é menosprezado pelos

56
Castells (2013); Hardt e Negri (2000, 2004, 2009) apud Gerbaudo (2012).
75

entusiastas da internet. É exatamente porque faltam identidades e vínculos fortes que eles precisam
ser deliberadamente inventados pelos movimentos. Segundo Gerbaudo, isso é feito em dois níveis:
1) há a criação de símbolos comuns ou “coreografia” de protesto, uma narrativa cultural própria de
um movimento que monta a “cena” e o “script” para a 2) assembleia ou reunião física de pessoas
em um espaço público (as “ocupações”, nos casos estudados pelo autor). Muito do que se faz via
celulares e Facebook é condensar símbolos, imagens e formas de ação coletivas – a coreografia,
que dá coerência à ação social, incentiva o comprometimento emocional dos participantes e depois
pode se materializar em assembleias corporais.

As coreografias e assembleias evidenciam processos de condensação ou concentração simbólica e


física, respectivamente. Assim, o uso generalizado da internet pelos movimentos não só não
dispensa, como, pela sua tendência à dispersão, exige a produção de simbologias relativamente
coerentes, territorialidades e corporalidades, que unificam ou concentram audiências difusas. Além
disso, tanto os movimentos estudados por Gerbaudo quanto a Marcha das Vadias mostram que
esses processos de concentração simbólica e física não acontecem por acaso, mas são
deliberadamente construídos e coordenados a partir de um núcleo informal de liderança. Em suma,
o uso da internet pelos movimentos num contexto de dispersão social cria uma forma específica de
liderança na ação coletiva contemporânea, que o autor chama de “liderança coreográfica”: não a
figura carismática singular do passado, nem a “horizontalidade” total, mas uma liderança “suave”,
relativamente centralizada num núcleo informal de pessoas que, pela lógica do consenso em vez
do comando, propõem coreografias possíveis (Gerbaudo, idem).

A página Marcha das Vadias do Rio de Janeiro no Facebook57, a principal rede social do
movimento carioca, contabilizava em junho de 2017 mais de 15 mil “curtidas”. Se no grupo
organizador circulam cerca de 50 pessoas, apenas algumas delas, talvez cinco, entre as mais
experientes e/ou com maior disponibilidade de tempo, têm status de moderadoras da página e
podem postar conteúdos e responder mensagens. A foto de “perfil” da página é uma imagem em
preto e branco de uma boca que grita, envolta por mãos que tanto amplificam o som como evocam
a forma de uma vagina (figura n. 2). A imagem foi criada em 2012 por uma das organizadoras,
estudante de história da arte, que produziu também outras “artes” para a MdV, como a figura de

57
https://www.facebook.com/MarchaDasVadiasRioDeJaneiro/?fref=ts (u.a. 8 de junho de 2017)
76

seios em close-up vestindo um sutiã vermelho (figura n. 3). Essas e outras imagens foram usadas
na construção de uma “identidade visual” das vadias, que produz e condensa símbolos comuns em
torno dos quais uma audiência dispersa se aglutina e se mobiliza. Esta identidade visual evoca a
centralidade do corpo, retratado como jovem, vigoroso, “livre”, sexualizado e provocador,
adjetivos que povoam os repertórios da Marcha nas redes e nas ruas.

Figura n. 2 – Foto de perfil da página da MdV-Rio no Facebook. Acervo do grupo


77

Figura n. 3 – Imagem de divulgação da MdV Rio. Acervo do grupo.

O Facebook é uma plataforma que privilegia imagens ao texto. Isso afeta as práticas de mobilização
dos movimentos sociais que o utilizam como principal meio de comunicação, tornando a produção
de imagens um dos principais recursos para a construção dos seus repertórios cognitivos, corporais
e emocionais. Imagens, na forma de banners, filipetas, jornais e zines, sempre foram relevantes ao
feminismo, como de resto a outros movimentos. Mas redes sociais como o Facebook, somadas à
maior acessibilidade das tecnologias de produção gráfica, incentivam a elaboração imagética dos
repertórios políticos em detrimento da elaboração textual. Mesmo em plataformas de texto, como
o Twitter, há um limite de caracteres que não permite mais que uma ou duas frases curtas, o que
faz com que esta plataforma se preste melhor à coordenação entre organizadores e à transmissão
ao vivo de notícias relevantes para a mobilização in loco (eventos, repressão policial etc.)
(Gerbaudo, 2012; Castells, 2013). Embora o Facebook acomode textos longos, os pequenos têm
mais chances de serem lidos dada a intensidade do fluxo de informações. Nos perfis pessoais,
ninguém se atreve a redigir mais de um parágrafo sem advertir que “lá vem textão”. Nas páginas
de movimentos sociais, mesmo isso está fora de cogitação.

Além das funcionalidades técnicas que privilegiam a produção de imagens, no caso da MdV há
também a preocupação específica de construir uma visibilidade pública positiva, que possa fazer
frente às polêmicas causadas pelo nome do protesto e pelo uso da nudez. Frequentemente, as vadias
78

se dizem “mal compreendidas” e atacadas pela mídia, por movimentos sociais e pelo público em
geral. “Não importa o que fizermos, sempre vão falar mal”, diziam sobre a mídia hegemônica. Por
isso, ao mesmo tempo em que não abrem mão do “corpo provocador”, também consideram
importante exercer algum tipo de controle dos discursos e imagens vinculados à sua identidade
política, de modo a reduzir os riscos de má-interpretação, deturpação ou invisibilização58. “Temos
que produzir nossas próprias mídias”, afirmavam.

Assim, a produção de imagens é uma atividade a que as vadias se dedicam bastante. Em 2013, uma
poeta e performer, que frequentou por um curto período as atividades de organização, produziu a
campanha de divulgação “Vadivas”, uma série de imagens com fotos e frases de personalidades
públicas admiradas nas culturas feministas, além da data e local do protesto. Retratavam a cantora
Elza Soares dizendo “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, a cartunista trans Laerte
Coutinho declarando “eu acho desprezível esse tipo de separação ideológica homem x mulher”,
entre outras (ver figura n. 4). Selecionadas pela relevância de suas obras, força, irreverência ou
sensualidade, as “Vadivas” representam ideias e corporalidades que a Marcha busca politizar.

Também foram feitos vídeos de divulgação da Marcha de 2013, disponibilizados no Youtube e


compartilhados na página do Facebook. No primeiro, realizado com a câmara de um celular, as
vadias parodiavam um desfile de moda, segurando cartazes que convidavam ao protesto, em várias
línguas. O segundo foi feito com a ajuda do irmão de uma das organizadoras, que trabalhava com
filmagem e tinha equipamentos. O vídeo começava com uma das vadias passando batom vermelho
e seguia com outras, eu inclusive, explicando a origem, o nome, os objetivos do protesto e as razões
da realização da Marcha no mesmo dia do evento católico.59

58
De certo modo, essa não deixa de ser uma preocupação comum ao movimento feminista como um todo. O esforço
hercúleo que feministas ainda têm que fazer apenas para conferir ao termo “feminismo” significados minimamente
positivos ou legítimos consome uma parte expressiva do trabalho de mobilização. Inúmeras vezes me deparei pela
internet com “manuais de feminismo”, que buscam combater os significados “equivocados” do movimento, por
exemplo, refutando frases como “não sou feminista, sou feminina” com outras como “feminismo: a simples ideia de
que mulher é gente” ou “feminismo não é o contrário de machismo”. A pedagogia dos sentidos, portanto, não é
novidade no feminismo, mas a MdV é um caso à parte, porque precisa disputar significados não apenas com o senso
comum, como também com vários setores do próprio campo feminista.
59
Vídeos disponíveis, respectivamente, em https://www.youtube.com/watch?v=tNv05JEkhtI e
https://www.youtube.com/watch?v=WI9AVXNy0FU (ambos acessados em 9 junho de 2017)
79

Keila produziu a “Campanha dos 100 dias”, uma contagem regressiva do tempo que faltava para o
protesto de 2013. As cem composições foram publicadas uma a uma diariamente no Facebook, e
continham fotos de Marchas de anos anteriores, trabalhos da fotógrafa Nan Goldin, vadias com o
rosto mascarado empunhando cartazes etc. (ver figura n. 5). Eram colagens de imagens feitas de
maneira “artesanal”. Keila achava positivo o aspecto “caseiro” e até meio “brega” das composições
e incentivava a todas a colaborarem com a campanha. O “faça você mesma”, com sua estética
própria, é valorizado como mais um aspecto dos ideais de autonomia e “autenticidade” da Marcha.

Em 2014, as organizadoras lançaram no Facebook um chamado a cartunistas, artistas e todas que


desejassem colaborar com a produção de cartazes que ilustrassem os temas da Marcha e
divulgassem a data e local do protesto. Muitas pessoas atenderam ao pedido e produziram mais de
30 cartazes, que foram divulgados no Facebook, impressos e espalhados por universidades (ver
figuras n. 6, 7 e 8). Nenhum cartaz foi vetado pelas organizadoras. Embora variassem em termos
de narrativas simbólicas (alguns enfatizavam narrativas de violência, outros de liberação, por
exemplo), foram considerados condizentes com os repertórios da Marcha, que se mostravam,
assim, relativamente decantados e coerentes, pelo menos entre as apoiadoras e simpatizantes do
movimento.
80

Figura n. 4 – Detalhes de banners da campanha Vadivas. Acervo da MdV-RJ


81

Figura n. 5 – Detalhes de banners da campanha dos 100 dias. Fotos: Nan Goldin e acervo da MdV-RJ
82

Figura n. 6 – Detalhes de banners feitos por cartunistas e colaboradoras diversas. Ilustrações (em sentido horário):
Crocomila, Hyldalice e acervo da MdV-RJ
83

Figura n. 7 – Detalhes de banners feitos por cartunistas e colaboradoras diversas. Ilustrações (em sentido horário):
Hyldalice, Fernanda Meirelles e Hyldalice
84

Figura n. 8 – Detalhes de banners feitos por cartunistas e colaboradoras diversas. Ilustrações (em sentido horário):
LoveLove6, Pendurado no Firmamento, Nega Hamburguer e Hyldalice

Além da produção própria de imagens, as vadias alimentam diariamente a página do Facebook com
conteúdos produzidos por diferentes plataformas da internet. São notícias, matérias, vídeos e
memes sobre gênero, sexualidade e feminismo, que circulam por outras páginas e perfis feministas
e “afins”. Quando eu fui uma das moderadoras da página, este era um trabalho constante de
garimpo de conteúdos em páginas e sites “parceiros” – de coletivos feministas e LGBT, artistas,
blogueiras, de humor, portais de notícias independentes etc. – selecionados por sua legitimidade
85

política e sua popularidade nas redes. Como o Facebook reforça as afinidades eletivas, era fácil
encontrar páginas e conteúdos que considerássemos de interesse para a Marcha: eles apareciam em
nossas próprias timelines pessoais. Assim, essa dinâmica de “compartilhar” conteúdos opera uma
espécie de fluxo reiterativo de citações: a Marcha replica conteúdos de emissores conhecidos e
acreditados, e estes fazem o mesmo, gerando narrativas autorreferentes e mutuamente definidas
(Ferreira, 2015)60.

Seja como for, esses conteúdos produzidos e circulados pelas vadias e por uma infinidade de outros
atores na internet são (re)apropriados pelas pessoas, decantando um corpo diversificado mas
reconhecível de discursos feministas, que são ao mesmo tempo compartilhados e disputados
(Alvarez, 2014b). Odessa, 22 anos, colaboradora da Capitolina, uma revista online para garotas
adolescentes com viés feminista, descreve assim as possibilidades da internet:

Eu acho que o que a internet possibilita é que as pessoas se informem, saibam o que é
feminismo, e saibam agir, entendeu? Assim, a gente ajuda a criar um discurso, sabe? A
menina pode ir lá e ler um texto que vai dizer pra ela que não tem problema ela ser gorda,
que a sociedade que é escrota, e que ela pode ser do jeito que ela quiser, e que ela pode
usar biquíni na praia, porque ela não precisa proteger os olhares de ninguém; eu acho que
isso pode fazer diferença na vida dela, e como ela vai agir, mas eu acho que o limite é sair
um pouco dessa questão individual, entendeu? (...) (Entrevista concedida por Odessa em10
de agosto)

Os discursos feministas que circulam na internet cumprem, como indica Odessa, uma função
didática, ou seja, são apropriados como recursos identitários e para a ação. Em blogs, nas timelines
de pessoas e de páginas no Facebook, nos espaços destinados a comentários, no twitter e em outras
redes, as experiências concretas de sujeitos são o principal substrato dos discursos feministas, cuja
narrativa é construída na primeira pessoa, em uma linguagem informal e emotiva. Embora Odessa
tema que esse tipo de discurso possa restringir o feminismo à esfera individual, me parece, antes,
que essa linguagem é capaz de articular público e privado de modo bastante eficaz. Questões

60
É muito provável que a audiência da página da MdV seja composta de um círculo das pessoas já “convertidas” que
compartilha intensamente conteúdos muito semelhantes para um grupo reduzido e homogêneo. Isso não pare ser uma
característica exclusiva da MdV. Diversas interlocutoras, vadias e de outros grupos, reiteradamente apontavam o
caráter restrito da “bolha” feminista nas redes sociais e a importância de encontrar maneiras de “sairmos de nós
mesmas”. Me parece provável que as experiências das hashtags feministas, como #MeuPrimeiroAssedio,
#NinguémMereceSerEstuprada e outras, tenham sido capazes de romper este círculo pré-definido e restrito,
alcançando audiências e redes além das comunidades feministas.
86

cotidianas, como por exemplo a experiência da maternidade, são usadas como gatilhos para falar
de políticas públicas relacionadas à saúde da mulher, ou das expectativas sociais de feminilidade
que limitam as vidas de mulheres e mães – e vice-versa. O “depoimento” pessoal se mostra uma
narrativa eficaz para a articulação dessas esferas. Ao mesmo tempo, esses conhecimentos
feministas que circulam pela internet são objetos de intensas disputas e conflitos. Eventos, textos
e imagens estão permanentemente sob escrutínio e debate. Cada análise produzida incita e
referencia a produção de outras, por meio de mais textos, imagens e eventos, numa espécie de
conversação autofágica. Ao se pronunciarem sobre um assunto qualquer, as pessoas também se
inscrevem como sujeitos políticos no debate – “falo, logo sou”. Não à toa, um dos principais objetos
de disputa dos discursos feministas na internet são os critérios de legitimidade e autoridade que
definem quem pode falar, quando e como (Carvalho, 2017).

Esse intenso fluxo de produção, compartilhamento e disputa de conteúdos na internet


desempenham um papel importante no processo de “enquadramento reflexivo” (“reflexive
framing”) dos movimentos sociais, como sugerem Chesters e Welsh (2006). Criado por Snow e
Benford, enquadramento (ou frame, em inglês) é “um esquema interpretativo que simplifica e
condensa o ‘mundo lá fora’ através da pontuação e codificação seletiva de objetos, situações,
eventos, experiências e sequências de ação em determinado ambiente presente ou passado” (Snow
e Benford, 1992, p.137). Uma das principais atividades dos movimentos sociais é a construção de
enquadramentos - um modo simples de apresentar eventos e experiências como “problemas” que
devem ser resolvidos. A noção de “enquadramento reflexivo” sugere que os frames dos
movimentos são continuamente reelaborados a partir de críticas, autocríticas e aprendizados, e a
internet desempenha um papel importante nesse processo61. Por exemplo, após e mesmo durante
os protestos da MdV, é enorme a produção de imagens fotográficas, vídeos e textos que os
descrevem e analisam. Compartilhados em blogs, portais de notícias, perfis pessoais ou de grupos
do Facebook, Twitter, canais do Youtube etc., os conteúdos compõem um grande arquivo, que é
circulado, traduzido e ressignificado, transcendendo a duração, localização e público do protesto
presencial62. Esses arquivos se tornam centrais para a construção de interpretações pós-evento, que

61
Voltarei ao conceito de frame/framing mais detidamente no próximo capítulo.
62
Algumas imagens da MdV-Rio de 2011: https://www.youtube.com/watch?v=4QKH-ruXLb0 e
https://www.flickr.com/search/?text=marcha%20das%20vadias%20rio%20de%20janeiro%202011 (acesso em 12 de
junho de 2017).
87

serão depois essenciais ao refinamento e reelaboração das abordagens e estratégias por parte de
organizadoras e participantes da MdV. Assim, Marcha e mídias se constituem mutuamente.

Off-line

Mesmo com muito do trabalho de produção simbólica dos movimentos sociais contemporâneos
sendo realizado online, encontros face-a-face ainda continuam sendo considerados fundamentais
por ativistas para consolidar decisões e um vocabulário político comum. As interações presenciais
não estão isentas de conflitos, mas decerto facilitam a expressão de afetos e corporalidades que
cimentam os laços de confiança e amizade tão fundamentais à política. As diversas ativistas com
quem conversei relatam que os momentos mais marcantes (inclusive negativamente) de suas
trajetórias feministas são os encontros: protestos, campanhas corpo-a-corpo nas ruas, espaços de
formação política, debates, confraternizações com as “companheiras” de movimento. Na Marcha,
embora a lista de email fosse usada para resolver questões mais burocráticas, às vezes conflitos e
questões que demandavam decisões importantes acabavam sendo expressos por lá, ao que alguém
sempre lembrava: “esse não é o melhor espaço para falarmos sobre isso” ou “vamos ver isso na
reunião?”. As reuniões eram valorizadas como as principais instâncias decisórias e de interação.

Entre as vadias, os debates de formação política organizados pela Marcha foram citados como
momentos muito importantes de aprendizado. Esses eram os principais espaços de elaboração dos
“consensos mínimos”63. Em 2013, depois que a relação entre Igreja e corpo foi definida como o
enquadramento político central daquele ano, as organizadoras elencaram, ao longo das reuniões
iniciais, três temas considerados estratégicos: “laicidade do Estado”, “legalização do aborto” e
“regulamentação da prostituição”, a serem abordados nos debates de formação.

O tema da laicidade do Estado, como também os outros, estava publicamente colocado no ambiente
político recente da cidade e do país. Em 2011, depois da primeira edição da MdV carioca, aconteceu
a Marcha pelo Estado Laico, que reuniu feministas, ativistas da Marcha da Maconha, movimentos
LGBT, profissionais da educação, entre outros. Algumas vadias participaram dessa marcha, onde

63
Mais sobre “consensos mínimos” nas páginas 93-94.
88

conheceram Cassia, funcionária pública da UFRJ, evangélica, negra, pesquisadora e militante do


tema da laicidade na educação pública. Cassia se aproximou da organização da MdV em 2012 e,
com a oportunidade colocada pela Jornada Mundial da Juventude Católica em 2013, intensificou
sua participação, ajudando bastante na construção política do tema da laicidade.

O tema do aborto, sempre presente nas pautas do movimento feminista, voltou ao debate público
nas eleições presidenciais de 2010, quando líderes católicos e evangélicos pressionaram os
candidatos a se posicionarem contra qualquer flexibilização da legislação sobre o aborto, momento
que Vital e Lopes (2013) inscrevem em um processo mais amplo de avanço da agenda religiosa na
esfera política. Em 2011, o Congresso criou o Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e
Acompanhamento da Gestante e Puérpera para Prevenção da Mortalidade Materna, que determina
que os estabelecimentos de saúde cadastrem dados de todas as gestantes, com o objetivo implícito,
e amplamente criticado por feministas do país inteiro, de facilitar a produção de provas nos casos
de aborto ilegal. A medida foi combatida no manifesto político da MdV-Rio de 2012 como
“vigilantista e criminalizadora” e por “ameaçar a autonomia das mulheres sobre seus corpos”
(Manifesto MdV-Rio 2012). No manifesto de 2012, a MdV festeja a decisão do Supremo Tribunal
Federal a respeito da descriminalização da interrupção da gravidez de fetos anencefálicos e enfatiza
que “a discussão sobre continuar ou não uma gravidez não é só uma importante questão de saúde
pública, mas também um direito que deve ser garantido para todas as mulheres”.

Finalmente, o tema da prostituição está presente na MdV carioca desde 2011, embora tenha sido
formalmente elaborado apenas nos manifestos dos anos seguintes. A presença de Sinara no grupo
das primeiras idealizadoras – prostituta e travesti, considerada hoje uma liderança e um símbolo da
Marcha carioca e de outros círculos ativistas – foi decisiva para o reconhecimento e participação
das prostitutas como sujeitos feministas da Marcha carioca. Historicamente objeto de disputas
acirradas no campo feminista, a prostituição não é encampada por todas as Marchas das Vadias
brasileiras. Já as organizadoras da Marcha carioca “reivindicam” o uso do termo vadia porque
acreditam “que ele é usado na sociedade brasileira como um conceito pejorativo, para nomear as
prostitutas ou outras mulheres que decidem usar seus corpos de maneiras distintas das formas pré-
estabelecidas pelas configurações sócio-políticas de gênero” (Manifesto MdV-Rio 2012).
Seguindo estratégias de setores do movimento de prostitutas e de organizações de direitos humanos
(Moraes, 2011), a Marcha diferencia a “exploração, escravização e tráfico de adultos, adolescentes
89

e crianças” do “trabalho sexual de pessoas maiores de 18 anos” (Manifesto MdV-Rio 2012). Este
discurso foi enfatizado por Sinara na primeira reunião de 2013 e nas palestras e debates
universitários para os quais era frequentemente convidada, ocasiões em que ela explicava com
muito humor e ironia como o casamento seria uma forma mal-sucedida de prostituição.

Com o objetivo de “trabalhar” esses temas, as vadias organizaram, ao longo dos meses que
antecederam o protesto de 2013, dois debates de “formação política”, um sobre “Estado laico” e
outro sobre “prostituição”, divulgados na página do Facebook e abertos ao público, para os quais
convidaram estudiosos, ativistas, profissionais, parlamentares e outros atores que consideram
expertos legítimos para compartilhar conhecimentos e experiências na área.

O debate sobre prostituição ganhou o instigante nome de “Rachas e tabus: prostitutas e feminismos
em debate”. Foi realizado em abril de 2013 na Anistia Internacional, instituição onde Keila então
trabalhava. As vadias consideraram importante convidar pessoas com visões distintas sobre a
prostituição e sua regulamentação. Para defender uma posição de apoio às prostitutas e à
regulamentação, estiveram presentes Sinara, da organização da MdV, o deputado Jean Willys
(PSOL-RJ), autor do Projeto de Lei (PL) Gabriela Leite, que regulamenta a atividade das
profissionais do sexo, e uma pesquisadora e ativista do tema. Para falar a partir de uma perspectiva
abolicionista (que, grosso modo, prega o fim da prostituição e a “libertação” de todas as prostitutas
– mais sobre isso no capítulo 3) e contra a regulamentação, foram convidadas duas mulheres cis,
uma integrante do Movimento Mulheres em Luta (MML), ligado a uma central sindical e ao PSTU,
e uma integrante da Marcha Mundial de Mulheres, que não compareceu ao debate. Representando
uma posição intermediária, foi convidada uma prostituta, integrante da Associação de Moradores
do Condomínio e Amigos da Vila Mimosa (AMOCAVIM)64, que embora favorável à
regulamentação, tinha críticas ao PL Gabriela Leite. As que defendiam o PL rejeitaram o estigma
moral de “vítimas” e enfatizaram o status de “trabalhadoras” das prostitutas, cujos direitos laborais
deveriam ser garantidos pela lei. A integrante do MML atacou o PL, que considerava “legalizar a
exploração de mulheres” e “favorecer os cafetões”, o que exasperou o deputado Jean Willys e gerou
bastante tensão. Embora ela estivesse isolada entre os palestrantes em sua posição abolicionista,
muitas integrantes do MML/PSTU estavam presentes na plateia e, quando o debate foi aberto,

64
A Vila Mimosa é a maior área de prostituição da cidade. A AMOCAVIM realiza projetos diversos voltados às
prostitutas.
90

reforçaram repetidamente a mesma visão. A representante da Vila Mimosa decidiu, então, diante
da tensão entre os grupos, problematizar menos o PL65 do que o discurso das abolicionistas, que
considerava excluir e fragilizar as trabalhadoras sexuais. Ela enfatizou que embora a entrada na
prostituição tenha sido, no seu caso e no de muitas, resultado da “falta de opções melhores” –
argumento usado pelas abolicionistas para definir a prostituição como “exploração” que precisa
ser extinta – era preciso levar em consideração as vidas concretas de mulheres que já estavam em
curso na prostituição. Ela apontou, ainda, que se o grupo do MML/PSTU ignorava isso, era porque
não havia ali prostitutas “falando por si”. Este debate foi considerado importante pelas vadias, pelo
aprendizado sobre sujeitos, posições e vocabulário político em disputa.

A oficina “A religião no Estado, o Estado nos nossos corpos”, realizada no ISER em junho de 2013,
teve como objetivo debater “sobre os desafios e conflitos da laicidade do Estado nos dias atuais,
com ênfase sobre como a crenças religiosas podem influir sobre os corpos - de mulheres, homens,
crianças, adultas, todas - e sobre políticas públicas de segurança, saúde, educação, entre outras”.
Três pesquisadores, inclusive Cassia, falaram sobre as noções de laicidade, Estado laico, religião e
política. Suas falas procuraram apontar a noção de laicidade como categoria estratégica na
abordagem da ideia de autonomia da MdV, além de ser também um discurso que poderia “fazer a
ponte” (Alvarez, 2014b) entre diversos movimentos sociais. Como havia, entre as organizadoras
da MdV, a preocupação constante de não fazer debates “acadêmicos demais”66, as falas foram
rápidas e a maior parte do tempo foi dedicada à “oficina”, em que o público se dividiu em grupos
para elaborar abordagens, cartazes, imagens e slogans políticos sobre religião e corpo. “Não preciso
te amar para te respeitar” e “É preciso amar como se não houvesse religião” foram alguns dos
cartazes confecionados.

65
Ela argumentou, em linhas gerais, que a AMOCAVIM não considerava o PL a melhor estratégia, naquele
momento, para impulsionar o debate sobre regulamentação, além de propor medidas com as quais organização não
concordava, como, por exemplo, a proporção da divisão de lucros entre proxenetas e trabalhadoras sexuais.
66
Talvez essa preocupação seja um reflexo justamente do trânsito frequente de integrantes da Marcha entre ativismo
e academia. Muitas vadias eram estudantes de graduação e pós-graduação, e seus interesses de pesquisa se
localizavam nos campos de gênero, sexualidade, movimentos sociais e outros temas relacionados ao feminismo. Na
convivência com ativistas sem inserção acadêmica, as estudantes eram cobradas a controlar o “academicismo” tanto
no formato dos eventos organizados pelo grupo (“mesas” e “palestras” eram pejorativamente consideradas
“acadêmicas”, ao contrário de “rodas de conversa”) como na linguagem utilizada (os jargões dos “estudos de gênero”
deveriam ser evitados nas reuniões e na redação do manifesto).
91

Esses temas continuaram a ser elaborados nas reuniões ordinárias, e quando consideraram terem
“acumulado” bastante sobre os temas, isto é, selecionado certos códigos para a construção de suas
abordagens políticas, as vadias escreveram o manifesto político, elaborado coletivamente pouco
antes da Marcha e divulgado no blog e no Facebook. Assim, a “laicidade” aparece como princípio
que deve regular as relações entre Estado, religião e corpo no manifesto de 2013. O texto traz ainda
dados estatísticos da Pesquisa Nacional do Aborto (2010) e critica o “estatuto do nascituro” (projeto
de lei n. 478/07), por “estabelecer ‘direitos’ a embriões e fetos em detrimento de direitos de
mulheres”. As vadias declaram também seu apoio à “adoção de um marco legal de proteção às
PROSTITUTAS, que permita que elas tenham todos os seus direitos de cidadãs garantidos e
respeitados, em especial os seus direitos sexuais e trabalhistas, contribuindo com a
desmarginalização e desestigmatização desta profissão, quando ela é escolhida, respeitada e
mantida como uma decisão digna” (grifo original). Elas denunciaram “o processo de limpeza social
moralista da cidade do Rio de Janeiro em preparação para a Copa das Confederações, Jornada
Mundial da Juventude, Copa do Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos”, que busca “construir um
cenário que mostre um ‘Rio de Janeiro para inglês ver’”, em que a prostituição tem sido
“silenciosamente higienizada dos centros turísticos da cidade, incluindo o local onde esta Marcha
será realizada”.

Nos anos seguintes, a dinâmica de atividades se manteve mais ou menos a mesma – reuniões
deliberativas, debates de formação, elaboração do manifesto e Marcha – mas novos eixos temáticos
foram abordados, construídos de acordo com a avaliação do contexto político e nas relações com
outras atoras feministas e movimentos sociais. Em 2014, ano em que o país sediou a Copa do
Mundo de Futebol, além da expulsão de prostitutas de seus locais de trabalho e moradia, as vadias
denunciaram também a “objetificação” das mulheres negras e as diversas formas de violência
sofridas por mulheres de favelas e periferias, como as remoções, a violência cometida pela polícia
e o assassinato de seus familiares. Além da violência contra lésbicas e bissexuais, abordaram
também a “violência transfóbica”. O direito ao aborto foi articulado ao direito a “partos sem
violência” (um tema que reverberava a recente visibilidade da questão da “violência obstétrica”),
ambos dentro da chave dos “direitos sexuais e reprodutivos”. Por fim, “atitudes machistas e
misóginas” nos movimentos sociais de esquerda foram denunciados, vocalizando experiências de
conflitos e desigualdades de gênero no âmbito das Jornadas de Junho de 2013. A inclusão desses
temas também foi resultado das críticas de outros grupos feministas, segundo as quais a MdV
92

precisava “incluir classe e raça” nas suas bandeiras. Eram, igualmente, uma resposta aos demais
movimentos de esquerda, que, segundo as vadias e feministas em geral, desconsideravam os
impactos dos megaeventos sobre as vidas de mulheres e minorias sexuais.

As imagens veiculadas online, as abordagens que as vadias produzem/reforçam a partir dos debates
e o manifesto forjam coreografias de protesto específicas (Gerbaudo, 2012), deliberadamente
incitadas pelas vadias desde antes da manifestação propriamente dita. Ao chegarem ao protesto de
rua, organizadoras e participantes já contam com um repertório comum de ideias, abordagens,
imagens, discursos, corporalidades e chaves emocionais, construído e decantado ao longo dos
meses que antecedem o evento. A partir desta coreografia comum, as participantes podem imprimir
suas marcas pessoais de expressão política, como veremos com mais detalhes no próximo capítulo.

“Evento” ou “processo”?

A rejeição à formalização e hierarquização leva a uma permanente disputa interna acerca do status
do grupo. O que é, afinal, a Marcha das Vadias para as vadias? Um evento? Um coletivo? Um
movimento social? Na primeira reunião de 2013, as organizadoras disseram que a MdV “é
sociedade civil organizada, o que não quer dizer que seja organizadora”; que “não é uma
organização (...), mas as decisões são realmente coletivas”. Essas definições quase enigmáticas
revelam a dificuldade de, por um lado, encontrar categorias que legitimem a Marcha enquanto ator
político, e por outro, escapar de rótulos inteligíveis, porém considerados limitadores pelas ativistas.
As disputas a respeito da noção de coletivo oferecem uma chave para entender o que está em jogo
nas classificações da Marcha e também, de modo mais amplo, nas reconfigurações dos movimentos
sociais contemporâneos.

As vadias mais antigas rejeitavam se definir como um coletivo e preferiam dizer que a Marcha era
um “processo coletivo” ou um “espaço de debate”. Até 2013, evitaram a autodefinição de coletivo
sem encontrar muitos questionamentos internos. No manifesto de 2011, declaram que “somos todas
as mulheres do mundo”; em 2012, que “a Marcha é uma manifestação plural”; e em 2013, se
apresentam como “um movimento social não institucional”. Se no primeiro ano, há uma clara
delimitação de gênero, “mulheres”, nos anos seguintes as definições do “nós” são ampliadas e
93

evitam fixar limites identitários e organizacionais estreitos. Em 2014, com a entrada de outras
ativistas, a disputa se intensifica e a necessidade de restringir que tipo de “animal político” é a MdV
parecia mais premente.

Nas longas reuniões de elaboração do manifesto de 2014, esse foi um dos pontos mais disputados.
Algumas defendiam o status de coletivo, argumentando que esta era a forma de organização que
melhor definia a Marcha, que com suas várias reuniões, debates e atividades, se constituía
efetivamente como um espaço de formação política para as organizadoras, e não era somente um
“evento anual” em Copacabana. Outras resistiam ao termo e, embora reconhecessem que a Marcha
era mais do que um “evento”, temiam que tornar-se um coletivo implicaria no fechamento,
homogeneização e hierarquização do grupo organizador, com efeitos negativos no protesto de rua.
A decisão de não se assumir como coletivo acabou se mantendo. Depois de cogitarem definições
como “grupo” e “confluência”, a redação final do manifesto ficou assim: “A Marcha das Vadias
do Rio é organizada por feministas autônomxs que lutam contra a violência sexual e de gênero e a
favor da autonomia dos corpos” (Manifesto MdV-Rio 2014). Não apenas a noção de organização
formal como também a de coletividade (de um “nós”) é dissolvida numa experiência mais
descentralizada e individualizada de ativismo.

Graça, na organização desde 2012, defendia que a Marcha não deveria ser um coletivo. A
contragosto, ela avaliou que, ao longo de 2014, a Marcha “estava se tornando” um, o que teria se
consolidado em 2015, com a saída de várias ativistas mais antigas, inclusive ela mesma:

Pra mim, coletivo é você se unir com um objetivo. O feminismo não é um objetivo pra um
coletivo se unir. [Um coletivo] tem que ter um problema e uma proposta. [...] O que eu vi
ali, na Marcha, justamente o que eu me apaixonei foi essa ideia dos consensos mínimos,
porque a marcha não era um lugar de construção necessariamente de uma militância, a
marcha era um espaço que reunia vários coletivos que tinham suas militâncias, pessoas
que tinham suas militâncias pessoais, e trabalhavam com consensos mínimos. Aí eu falei
assim: ‘perfeito, ou seja, não preciso estar necessariamente vinculada a nada, eu posso ser
mais fluida, e posso aprender, e posso ir gostando’. [...] Agora [2015] virou coletivo,
quando chamam pra reunião é ‘nós, o coletivo da MdV’. O que era um espaço que
agregava todos os coletivos, todas as associações, todos os indivíduos, todos os sujeitos e
suas subjetivações, virou agora um espaço de produção de discurso, ponto, não é um
espaço mais de debate, não é mais um espaço de conflitos, não é mais um espaço de
curiosidade, não é mais um espaço de despertar e de aprender muito, é um espaço que quer
ensinar. [...] A MdV sempre teve o motivo de querer só surtir o debate, o debate entre
todas as feministas, e não virar autoridade no assunto. Então, eu não entendi você virar
coletivo, quando, na verdade, você quer ser todos os coletivos, você quer ser o debate.
(Entrevista, 26 de junho de 2015)
94

Para Graça, assim como para outras vadias, um coletivo implicaria 1) na delimitação de
“problemas” e “propostas” pontuais, que constituiriam 2) uma “militância” política específica e
demandaria 3) um vínculo mais permanente ao grupo e 4) a produção de discursos prescritivos,
tudo isto redundando na 5) perda de heterogeneidade. Em oposição a este arranjo, está a Marcha
vista como 1) um fórum de amplos debates sobre feminismo, que comporta 2) vários modos de
militar e permite 3) vínculos “fluidos” às participantes, que 4) se limita à produção de “consensos
mínimos” e, assim, permanece 5) aberta à diversidade de participantes. O que parece estar em jogo
nesta disputa é a política identitária da Marcha. Para Graça e outras, trata-se de garantir que
nenhuma unidade bem definida se consolide, que nenhuma fronteira identitária clara se fixe, de
modo que a Marcha se mantenha capaz de atrair sujeitos diversos e garantir-lhes autonomia
individual.

A noção de “consensos mínimos”, central para articular a Marcha como lugar da “diversidade” de
pessoas e projetos, é assim definida por Cassia:

Você tem sua bandeira? Tem, mas o amigo também tem a dele. Então, a gente tem que
entrar num consenso do que da sua bandeira pode ficar junto com a minha, pra gente lutar.
O que vale é o consenso mínimo, o mínimo de consenso. Isso é um desafio: o consenso
do que é o mínimo, o mínimo entre todos, porque a gente tem essa questão das diferentes
bandeiras, todo mundo que é atraído pela questão do feminismo, da violência sexual quer
participar. (Entrevista, 21 de junho de 2015)

O “combate à violência sexual e de gênero” e a “liberdade” das pessoas para decidirem sobre “seus
corpos” eram os “consensos mínimos” da Marcha. Como os enquadramentos da Marcha eram
relativamente gerais, puderam acomodar pessoas diversas, que viam nela um espaço para vocalizar
projetos variados. Essa relativa inespecificidade ou elasticidade dos frames foi o que tornou
possível à MdV incluir os temas do aborto, prostituição, megaeventos, “direito à cidade”, racismo,
“violência obstétrica”, relação entre Estado e religião, articulações entre movimentos sociais e
gênero, etc. Isso mostra também que os enquadramentos discursivos da MdV, longe de
reproduzirem os da marcha canadense ou de serem uma “importação”, como criticavam várias
feministas, reelaboram o tema original da violência sexual e da autonomia das mulheres, de acordo
com as avaliações das ativistas acerca das oportunidades e constrangimentos do contexto local.
Enquanto a SlutWalk canadense tratava especificamente de questões relativas à sexualidade e
violência sexual, no Rio e em outras cidades brasileiras, esses temas foram articulados a discussões
que já circulavam no cenário político nacional e local. No processo de viagem e tradução do
95

protesto, os enquadramentos do movimento são reapropriados, desdobrados, expandidos (Alvarez,


2009; Batista, 2017).

A adoção de enquadramentos abrangentes é comum a outros movimentos sociais recentes. Sasson-


Levy e Rapoport (2003) contrastam o Women in Black e The 21st Year, movimentos surgidos no
final da década de 1980 pelo fim da ocupação israelense dos territórios palestinos. Para as autoras,
The 21st Year se baseava em um “símbolo-chave elaborado” (Ortner, 1973 apud Sasson-Levy e
Rapoport, 2003), um texto-manifesto longo, centrado em conhecimento ideológico e linguagem
acadêmica, que apresentava um complexo sistemas de ideias, conceitos, estratégias e orientações.
Já o Women in Black mobilizava um “símbolo-chave sucinto”, expressado pelo slogan “Stop the
Occupation”, um mote de elaboração ideológica mínima, que as manifestantes se recusavam a
detalhar, e que permitiu a coexistência de diferentes interpretações67. As mulheres deste protesto
vestiam-se de preto e ficavam em silêncio por uma hora, enquanto seguravam os cartazes
estampados com o slogan. É interessante pensar que a opção por um símbolo sucinto tenha se
materializado em uma performance política em que o corpo ocupa lugar central. Em contraste, a
densidade ideológica e textual do The 21st Year parecia não deixar espaço para os corpos de seus
manifestantes, que não eram imaginados como parte dos atos do protesto (Sasson-Levy e Rapoport,
2003).

Tanto os Indignados de Espanha como o Occupy Wall Street também elaboraram “símbolos-chave
sucintos”, por meio dos slogans “não somos mercadorias nas mãos de banqueiros” e “nós somos
os 99%”, capazes de unificar e atrair às ruas pessoas diversas. Nenhum dos movimentos tinha um
programa político definido, e o Occupy ficou conhecido por deliberadamente recusar a formulação
de “demandas concretas”, o que o tornava suficientemente aberto para acolher pessoas cujas
preocupações iam desde a democracia participativa e a influência do dinheiro na política até o
acesso a trabalho, educação e saúde (Gerbaudo, 2012; Castells, 2013; Milkman et al, 2015). A
despeito de que as pessoas mais ativas em ambos os movimentos eram, em sua maioria, homens

67
Os termos em inglês são “elaborated key symbol” e “summarizing key symbol”. As autoras dizem que além do
slogan Stop the Occupation, estampado em cartazes nos protestos semanais que as mulheres faziam numa das
principais praças de Jerusalém, o único outro texto escrito era uma filipeta curta, com linguagem informal, que
expressava as “diferentes vozes” das participantes.
96

jovens, brancos, de classe média e com alta escolaridade (Castells, 2013; Milkman et al, 2015)68,
a construção de uma autoimagem “popular”, isto é, a afirmação de que eram compostos por e para
“o povo” e as “pessoas comuns”, contra um “sistema” distante, foi fundamental para a construção
de uma identidade política ampla e aglutinadora, como mostra Gerbaudo (2012). Segundo o autor,
os organizadores dos Indignados escolhiam cuidadosamente as palavras nas suas comunicações,
de modo a evitar identificações que pudessem ser consideradas muito “políticas” ou “ideológicas”,
como “direita” e “esquerda”. Um dos principais articuladores deste movimento afirmou que o seu
sucesso se devia ao uso de “eufemismos”, como “os de baixo estão contra os de cima”, em
substituição a expressões como “luta de classes”, que poderiam “assustar as pessoas” (Gerbaudo,
2012, p.85).

No Brasil, como mostram Alonso e Mische (2016), as Jornadas de Junho foram disparadas por
protestos localizados contra o aumento de vinte centavos nas tarifas de transporte, organizados pelo
Movimento Passe Livre. Rapidamente, os protestos cresceram e se espalharam por diversas
cidades, incorporando outros atores e ampliando sua plataforma política. O slogan “não é só pelos
vinte centavos” expressou esta mudança de escala e funcionou como um aglutinador simbólico
para grupos e indivíduos diversos, em torno de agendas muito variadas, quando não contraditórias,
como a expansão de políticas públicas, a garantia de direitos, o combate à corrupção e a redução
de impostos e gastos públicos (Alonso e Mische, 2016).

Comparativamente a esses movimentos recentes, a Marcha das Vadias tem uma orientação mais
minoritária, já que seus enquadramentos apelam principalmente às temáticas de gênero e
sexualidade, historicamente associadas a minorias políticas. Não obstante, ao se apresentar como
sendo feita por “pessoas reais”, pelo “simples motivo de querer ser livres”, a Marcha opera o
mesmo tipo de apelo geral e eufemístico, que efetivamente foi capaz de atrair muitas/os
participantes sem qualquer contato prévio com o feminismo. De acordo com o survey de Name e

68
Milkman et al (2015) afirmam que o Occupy Wall Street foi progressivamente se tornando mais diversificado no
que se refere à composição socioeconômica das pessoas que frequentaram o acampamento, mas jamais se aproximou
da diversidade de Nova York. Castells (2013) também afirma que embora a composição inicial dos Indignados fosse
mais restrita a estudantes e jovens diplomados desempregados, o movimento foi ganhando adesão de vários setores
sociais, em especial os idosos. Em ambos os movimentos, os participantes compartilhavam uma situação de
“privação relativa”, caracterizada pela distância entre suas expectativas enquanto pessoas altamente escolarizadas e
suas condições concretas de vida, marcadas pelo desemprego, subemprego e dívidas estudantis (Milkman et al,
2015).
97

Zanetti (2013), 41% dos/as respondentes da Marcha de 2012 afirmaram não participar de nenhum
grupo, organização, instituição ou movimento de cunho político, o que não é comum em outras
manifestações feministas que frequentei. Assim, se por um lado, o nome “vadia” pode ter repelido
muitas pessoas, inclusive feministas, por outro atraiu sujeitos políticos diversos, para os quais
funcionou como um significante sucinto e elástico, capaz de acomodar diferentes projetos.
Gerbaudo (2012) cita o conceito de “significante vazio” (“empty signifier”), de Laclau (1996; 2005
apud Gerbaudo, 2012), um símbolo que, privado de conteúdos particularistas, é capaz de criar uma
“cadeia de equivalência” entre diferentes grupos e agendas, produzindo uma unidade performativa
entre eles. Se “vadia” não parece um significante tão “vazio” como “o povo” ou “os 99%”, ainda
assim se mostrou bastante elástico, comparativamente a outros protestos feministas, no que se
refere à gama de sujeitos e problemáticas que foi capaz de englobar.

Se algumas vadias rejeitavam o rótulo de coletivo, outras o defendiam sob a justificativa de que a
Marcha deveria ser “mais do que um evento anual”. Ramona, que participou ativamente da
organização até a temporada de 2013, dizia que a MdV poderia “oferecer mais” se fosse além da
lógica de evento. Ela contou que sofreu um episódio de violência sexual e que chegou à Marcha
com a expectativa de poder elaborar esta experiência coletivamente, algo que o “pragmatismo” do
evento impossibilitou. Embora reconheça a “potência” do evento para “provocar as estruturas de
opressão”, considera que seu impacto nas subjetividades políticas das organizadoras é insuficiente:

Eu acho que o principal problema é a marcha ser pensada como um evento. Eu acho que
a marcha não é só um evento, a marcha tem a potência de criar outras coisas e poderia,
talvez, ser mais fértil num outro tipo de configuração, talvez como um coletivo. Porque a
MdV é um evento que fala sobre violência sexual, então, no pragmatismo da função
“temos uma agenda, temos que fechar a data da festa que vai acontecer pra arrecadar
dinheiro, quem vai fazer a arte de tal coisa, já enviaram o documento pra prefeitura pra
autorizar”, enfim, quando a gente está muito preocupada com agenda, com data, com fluxo
de organização de evento, a gente acaba perdendo um pouco aquilo que é o fundamental,
que é a vida. Quem são as mulheres que estão envolvidas? Como elas vivem as vidas
delas? Elas tão passando por uma situação de violência? Então assim, se essas coisas estão
acontecendo, elas acabam ficando um pouco de lado, em detrimento desse ritmo de
organização de evento. Então, acho que a dinâmica da marcha poderia contar com espaços
de acolhimento, de falas de si, de construções de si mesmo, de um corpo... cada um
construindo seu corpo a partir de muitas vozes, nessa recusa de uma normativa e, ao
mesmo tempo, tendo essa chance de poder se desenvolverem idiossincrasias. O lugar da
singularidade se perde um pouco, quando fica uma coisa muito grande, né? (Entrevista
concedida por Ramona em 4 de agosto de 2015)

Godiva também oferece uma chave para compreender os modelos de organização em disputa. Ela
foi às Marchas de 2012 e 2013, e no ano seguinte frequentou algumas reuniões, embora nunca
98

tenha se considerado “filiada” à MdV. Reconhece que o caráter aberto das reuniões da marcha e a
sua visibilidade pública é o que atrai pessoas à participação, como atraiu a ela mesma. Por outro
lado, achava estranho estar reunida com pessoas “aleatórias”, que possivelmente tinham apenas um
único traço comum, o interesse na Marcha. Preferia investir no que chama de “feminismo dos
afetos”, atividades de menor escala (mostra de filmes, lambes, grupos de estudo) produzidas com
amigas, que contrastava às reuniões “deliberativas” e “impessoais” da Marcha e outros espaços
feministas:

A troca, a criação, o encontro parte desses acontecimentos afetivos, mais do que pensar
no feminismo, “Vou procurar aqui no Facebook que encontro vai ter sobre feminismo”, e
isso não vai me tocar. (...) os contatos afetivos e próximos, a gente se nutre nisso, a gente
está se fortalecendo também na alegria, na pegação, na experimentação, nos prazeres, não
só nesse marco do encontro pra discutir tal tema. A gente vai trocar uma cerveja, e a gente
chora, mas depois a gente já está de boa, e... não sei, nesse sentido de que existe uma outra
conexão que parte dessa interação, que não é uma interação tão incômoda quanto esse
espaço que é habitar uma sala de reunião, num lugar que não é sua casa, que não é a casa
da sua amiga, sabe? (Entrevista, 19 de agosto de 2015)

Tanto Ramona como Godiva valorizam a afetividade e a expressão das singularidades das
participantes, uma cultura de ativismo que consideram própria dos grupos menores e íntimos, como
os coletivos, de que ambas participam/ram. No fim de 2013, Godiva e outras pessoas identificadas
com a luta LGBT, organizaram um “Beijaço”, performance política em que pessoas do mesmo
sexo ou trans se beijam simultaneamente em público. O Beijaço aconteceu uma semana antes da
Marcha de 2013, na escadaria de uma igreja católica, próxima ao Palácio Guanabara, sede do
Governo do Estado do Rio de Janeiro, onde o papa estava sendo recebido por autoridades. Contra
a política “homofóbica” da Igreja e pelo “Estado laico”, o ato contou com a presença de várias
vadias, algumas das quais participaram da sua organização, e foi encenado novamente no dia da
Marcha em Copacabana. Nascia aí o Coletivo BeijAto, que Godiva passou a integrar. Apesar do
esvaziamento do grupo, que à época da entrevista não existia mais, Godiva ressalta que todos eram
muito “carinhosos” uns com os outros. Já Ramona fundou a Coletiva Maria Bonita, que promove
reuniões fechadas regulares e eventos públicos, como o “Chá Pós-Pornô”, que exibiu filmes sobre
“pós-pornografia”. Homens cis não são admitidos no grupo, embora possam participar de alguns
eventos públicos. Ela destaca que na Maria Bonita as “diferenças” e discordâncias internas são
assumidas e debatidas, o que não ocorreria na Marcha, em que “muitos diálogos são perdidos” por
conta de seu caráter de evento. Outras vadias formaram ou integraram coletivos a partir de sua
99

experiência inicial na Marcha, que era escrita com orgulho por muitas como uma “incubadora de
feministas”, um espaço de iniciação na militância.

Muitas vadias diziam que a Marcha, na prática, já era “mais que um evento”. As mais de uma
dezena de reuniões a cada ano, os dois ou três debates de formação e outras atividades promovidas
pelas vadias, a participação em outros protestos, as mesas de bar após as reuniões, os círculos de
amizades formados, tudo isso provia uma experiência comunitária e um senso de continuidade, de
que o protesto em Copacabana era apenas a culminação. Depois deste evento, havia apenas uma
reunião de avaliação e então as atividades da Marcha cessavam de todo, até o próximo ano. No
período de recesso, muitas se reencontravam nos eventos políticos, acadêmicos e culturais da
cidade; as redes de amizade formadas continuavam se frequentando. Para algumas vadias parecia
apenas natural continuar promovendo atividades políticas depois da grande marcha, o que,
novamente, implicaria em assumir a identidade de coletivo.

As disputas em torno desta noção colocavam alguns problemas práticos difíceis de solucionar:
como falar com a imprensa, se a Marcha não era oficialmente um coletivo nem possuía
“representantes”? Se a declaração emitida à imprensa não “representava” um posicionamento do
coletivo/grupo, seria então apenas uma “opinião individual”? A Marcha não poderia emitir cartas,
notas e moções em seu nome? Por outro lado, a Marcha não estaria já atuando como coletivo ao
escrever seu manifesto anual, publicar uma página no Facebook e manter um calendário extenso
de atividades? Recorrentes nas reuniões, esses dilemas traduziam impasses em torno de aspectos-
chave dos movimentos sociais, como duração, sustentabilidade, hierarquia, construção identitária,
expectativas individuais e afetividades.

Em suma, embora muito do trabalho da Marcha estivesse estruturado pela lógica da eficácia
simbólica das manifestações públicas, o protesto era construído ao longo de um processo que
levava meses, incluía diversas outras atividades menos visíveis e relações contínuas. Assim, a MdV
transita entre a temporalidade do evento – performativo, espetacular, fugaz – e a do processo, que
implica na construção cumulativa de saberes comuns e de laços afetivos duradouros. Essa hibridez
é fonte de contradições e alimenta um eterno debate sobre “o que a Marcha é”, uma discussão que
se estende ao campo mais amplo dos movimentos sociais contemporâneos, tanto no terreno das
práticas políticas como no da teoria.
100

Capítulo 2: Os corpos

The revolution in general is no longer imagined according to socialist


patterns of realism, that is, as men and women stoically marching
behind a red, waving flag towards a luminous future: rather it has
become a sort of carnival.

(Subcomandante Marcos, do Exército Nacional de Libertação Zapatista)


101

O apelo ao “corpo” é notável nos repertórios de ação feministas em diversos lugares do mundo, no
presente e no passado. No movimento feminista brasileiro atual, o corpo – isto é, certos discursos
e práticas de produção de algo chamado corpo – é mobilizado de várias formas. Há muito que as
reivindicações pelo direito ao aborto, ao exercício da sexualidade e por serviços de atenção à saúde
da mulher são enquadradas como demandas pela “autonomia das mulheres sobre seus corpos”. Mas
também fora do campo dos direitos sexuais e reprodutivos, o corpo é construído e politizado por
feministas, de diferentes matizes, em seus discursos e protestos.

Por exemplo, na última ação internacional da Marcha Mundial das Mulheres69 em 2015, que teve
como mote “direito ao nosso corpo, trabalho e território”, as ativistas dos meios rurais definiram o
agronegócio não apenas como uma violação às comunidades, mas também aos “corpos das
mulheres”, ressignificados, eles mesmos, como “território”. Entre feministas negras, a construção
de identidades políticas passa muitas vezes pela encorporação de certos atributos de “negritude”,
em especial a transição dos cabelos quimicamente tratados para cabelos crespos (Bueno, 2016). Na
Marcha das Mulheres Negras, as participantes adornaram seus corpos com roupas e turbantes que
visavam construir uma conexão simbólica e material entre cada indivíduo e uma “herança” Afro-
Brasileira comum70. Nos protestos pela descriminalização do aborto que ficaram conhecidos como
Primavera das Mulheres, mulheres com seus bebês no colo, ou com suas barrigas grávidas pintadas
com a frase “maternidade é uma escolha”, buscavam reenquadrar imagens e narrativas sobre
maternidade e aborto (Brito, 2017).

Desnudados, encobertos, paramentados ou pintados, se fazendo presentes nas ruas, em imagens ou


em manifestos, os corpos são transformados em artefatos políticos, acionados de diversas formas
por ativistas para comunicar diferentes mensagens e produzir efeitos desejados. Chave importante
de organização dos discursos e práticas feministas, a construção política do corpo não é, contudo,
uma exclusividade deste movimento. Implícita ou explicitamente, todos os movimentos sociais

69
A Marcha Mundial das Mulheres nasceu no ano 2000 como uma mobilização de mulheres de todo o mundo contra
a pobreza e a violência. Hoje é muito atuante no Brasil, onde possui núcleos permanentes em diversas cidades. A
Marcha Mundial das Mulheres defende a “necessidade de superar o sistema capitalista patriarcal, racista,
homofóbico e destruidor do meio ambiente” (Website da Marcha Mundial das Mulheres, disponível em
https://marchamulheres.wordpress.com/mmm/, u.a. em abril de 2017).
70
A primeira “Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver”, realizada no dia 18
de novembro de 2015, reuniu em Brasília cerca de 30 mil de participantes de todo o Brasil. “Nossos passos vêm de
longe” foi um dos slogans utilizados, reforçando a construção de uma história e experiências compartilhadas.
102

“politizam o corpo” e “encorporam a política”. Brandir os punhos cerrados, entrelaçar braços para
formar uma corrente humana, sentar ou deitar em espaços não-autorizados, gritar o mais alto
possível ou produzir o mais absoluto silêncio são formas consagradas nos movimentos sociais de
fazer do corpo, política – e vice-versa. No feminismo, entretanto, o “corpo” é um articulador central
dos repertórios políticos. É aquilo que Alvarez (2014b) chama de “lugar discursivo”, onde as
ativistas depositam uma multiplicidade de significados e projetos, constituindo uma gramática ao
mesmo tempo compartilhada e disputada.

Como o corpo é transformado em artefato político na Marcha das Vadias? O que os corpos das
vadias “dizem”? Como a literatura sobre movimentos sociais vem analisando os aspectos corporais
do protesto? Neste capítulo, eu dialogo criticamente com estudos sobre corpo e emoções e sobre
movimentos sociais, buscando encontrar caminhos teóricos que possam conectar esses campos de
pesquisa, que atualmente dialogam pouco. Em seguida, eu analiso os repertórios corporais e
emocionais da MdV. Por fim, analiso uma performance realizada na Marcha de 2013, que envolveu
atos sexuais e destruição de imagens sacras, um caso que fez emergir disputas acerca da
legitimidade de repertórios corporais distintos.

2.1. Encorporando frames

O corpo tem um caráter contestado na sociologia feminista, que fez um enorme investimento na
noção de que as mulheres não são redutíveis a seus corpos. Como mostra Witz (2000), o conceito
de gênero surgiu deste projeto de “des-corporalização” das mulheres – ou de desnaturalização de
seus corpos, o que em boa medida foi feito pelo preterimento do corpo. Por isso, a esfuziante
“virada corporal” nas ciências sociais e humanas na década de 1990 foi recebida senão com
desconfiança pelas sociólogas feministas71. Paradoxalmente, é nas pesquisas sobre movimentos de

71
Para Witz, que escreve sobre isto no início dos anos 2000 na Inglaterra, o corpo recuperado pela sociologia do
corpo nessa “virada corporal” é apenas o “corpo masculino abjeto”, e não os “corpos das mulheres”, que continuam
excluídos da epistemologia da disciplina. Já a filosofia feminista pós-estruturalista, avalia autora, ao abraçar o corpo,
escreve de modo “contraprodutivo” contra o gênero, peça central da sociologia feminista. Assim, segundo Witz,
ambos os campos “devem ser cuidadosa e criticamente negociados por sociólogas feministas enquanto procuram se
103

mulheres, feministas e LGBT onde os “corpos” mais aparecem, o que pode ser resultado da própria
politização do corpo e das emoções por militantes desses movimentos. Isso aponta para dois hiatos:
o corpo aparece pouco na literatura sobre movimentos sociais em geral; e a presença do corpo no
movimento feminista destoa da hesitação da sociologia feminista em abraçá-lo como objeto de
análise. Além disso, muitos dos estudos sobre movimentos feministas e LGBT falam do corpo
empírico, ou seja, reconhecem a presença e a politização do corpo nos espaços militantes, mas
deixam em segundo plano o corpo como artefato político, os modos pelos quais o corpo é
construído pelos atores. Por tudo isso, pensar o corpo nos movimentos sociais, inclusive feministas,
requer uma boa dose de “bricolagem” de conceitos e abordagens de diferentes campos de
conhecimento. A seguir, eu dialogo criticamente com alguns autores da sociologia das emoções e
dos estudos da performance na esperança de “encorporar”72 certas noções consagradas dos estudos
sobre movimento sociais.

Na literatura sociológica sobre movimentos sociais, recursos, organizações, redes, contexto


político e as mensagens dos movimentos têm sido privilegiados nas análises, enquanto
corporalidades raramente aparecem. A Teoria da Mobilização de Recursos, que se desenvolveu a
partir década de 1970 nos EUA, preocupou-se em mostrar que os movimentos não podem ser
explicados apenas pela existência de conflitos estruturais, como a precarização do trabalho ou as
desigualdades raciais, mas dependem de um complexo trabalho de mobilização de recursos feito
por organizações (Zald e McCarthy, 1987). Entre os principais recursos necessários ao
desenvolvimento dos movimentos, pesquisadores apontaram a arrecadação e manutenção de
dinheiro, a existência prévia de redes de solidariedade e capital social conectando e mobilizando
atores, entre outros (Diani, 1997; Della Porta e Diani, 2006; Goodwin e Jasper, 2015). Já a Teoria
do Processo Político aponta que as relações entre movimentos sociais e o sistema político
institucional, em especial o Estado, são centrais no surgimento, formatação e intensidade da ação
coletiva. Assim, o foco desta vertente são as condições políticas e institucionais que facilitam ou

mover confiantemente para além da distinção problemática ‘sexo’/gênero e realizar a tarefa de encorporar [embody]
o gênero” (Witz, 2000, p.2).
72
Me refiro à noção de “embodiment”, de Csordas (1994), que remete a contextos e processos corporalizados da
experiência, do self e da cultura, em que corpo e mente não são antitéticos, mas integrados e mutuamente referentes.
A dificuldade de tradução do termo no campo das Ciências Sociais já foi notada por diversos pesquisadores de língua
portuguesa e espanhola. “Incorporação” é recusada por Viveiros de Castro (1996) e Cavalcanti (2002) por sua
vinculação, na Antropologia da Religião, ao transe, ou na língua corrente, ao ato de “acrescentar algo a”. Seguindo as
sugestões desses autores, adoto o neologismo “encorporar/encorporação”.
104

dificultam a emergência dos movimentos - a chamada Estrutura de Oportunidades Políticas – como,


por exemplo, o grau de abertura do sistema político, a configuração dos campos de força, a
tolerância das elites para com protestos, a disponibilidade e postura de aliados etc. (Tilly, 1978;
McAdam, 1982). Se contrapondo às teorias funcionalistas do pós-Segunda Guerra Mundial, para
as quais os movimentos sociais eram ações de uma “massa irracional”, essas duas vertentes
postularam atores coletivos racionais, que buscam maximizar recursos e oportunidades para
alcançar seus objetivos.

Considerando que essas abordagens tinham um caráter excessivamente racionalista, que a


existência de recursos e oportunidades não explicam por que ou como as pessoas se engajam, e que
a construção dos significados do protesto é parte importante da ação coletiva, alguns teóricos
decidiram privilegiar a relação entre cultura e movimentos sociais. Para Melucci (1996), a ação
coletiva se ocupa, antes de tudo, de questionar as interpretações hegemônicas do mundo e propor
entendimentos alternativos, isto é, novos códigos culturais. Os primeiros substratos da ação
coletiva, segundo esta vertente de estudos, são símbolos, crenças, linguagens, rituais e outras
ferramentas interpretativas da cultura, usados na produção de novos códigos. Mais do que
condições estruturais “objetivas” à disposição dos atores, os recursos e oportunidades devem ser
percebidos e mesmo construídos como tais pelas pessoas a partir da mobilização de seus repertórios
culturais. Para esta vertente, a cultura é, portanto, aquilo que media a relação entre, de um lado, as
condições estruturais – recursos, oportunidades ou, ainda, transformações macro-históricas – e, de
outro lado, a ação dos atores concretos.

Uma das principais contribuições teóricas dos culturalistas foi o conceito de enquadramento
(frame/framing). Criado por Snow e Benford com base no trabalho de Goffman, frame é “um
esquema interpretativo que simplifica e condensa o ‘mundo lá fora’ através da pontuação e
codificação seletiva de objetos, situações, eventos, experiências e sequências de ação em
determinado ambiente presente ou passado” (Snow e Benford, 1992, p.137)73. É uma interpretação
simples que potencialmente é capaz de atrair apoiadores e mantê-los comprometidos com um
movimento (Goodwin e Jasper, 2015). Snow e Benford (1988) identificaram três tipos de frames

73
No original em inglês: “an interpretive schemata that simplifies and condenses the ‘world out there’ by selectively
punctuating and encoding objects, situations, events, experiences, and sequences of actions within one’s present or
past environment.” (Snow e Benford, 1992, p.137)
105

necessários aos movimentos sociais: os diagnósticos, pelos quais os ativistas atribuem sentidos a
problemas comumente percebidos como individuais ou naturais e os transformam em “problemas
sociais” que exigem atenção; os prognósticos, que definem soluções, estratégias e táticas; e os
motivacionais, que produzem incentivos à ação e recrutamento de ativistas. Os esquemas
interpretativos raramente são explicitados pelos atores; eles aparecem como fórmulas implícitas
que organizam a retórica dos movimentos em manifestos, declarações, slogans, palavras de ordem,
imagens e performances. Por exemplo, Gamson (1992) argumenta que a construção de frames de
“injustiça” depende da clara identificação de atores e instituições como responsáveis pelo
sofrimento, em vez de forças abstratas e impessoais. Taylor e Whittier (1995) observam que o
movimento de “depressão pós-parto” nos EUA inicialmente investiu no frame de “doença
psiquiátrica” e mais tarde reformulou o problema, bem como suas estratégias, em torno da noção
de “direitos das mulheres”.

Como molduras, os enquadramentos necessariamente selecionam certos elementos e excluem


outros na definição de um problema social, de modo a produzir narrativas simplificadas e coerentes
do mundo. A seletividade dos frames ilumina o caráter produtivo dos movimentos sociais, evidente
também na disputa simbólica por legitimidade entre esquemas interpretativos concorrentes e no
fato de que definir soluções implica não apenas escolher entre cursos de ação já conhecidos mas
também imaginar novas formas de se relacionar com os outros, novos mundos e futuros (Della
Porta e Diani, 2006; Alvarez, 2014b).

Embora esta perspectiva tenha o mérito de inserir a cultura nos estudos sobre movimentos sociais,
ela foi alvo de críticas. Uma delas diz respeito ao enfoque predominantemente cognitivista dos
frames, sempre imaginados como “ideias”, “retórica”, “palavra” (Goodwin, Jasper e Polletta
2001)74. Partindo desta crítica, eu gostaria de refletir sobre o conceito de frame para além de suas
dimensões cognitivas e desenvolvê-lo em suas dimensões corporais e emocionais, para, enfim,
reconectar a todas. Para isso, começo dialogando com a teoria performativa de Butler.

74
Outras críticas apontam que frames por si só não são capazes de sustentar movimentos sociais ao longo do tempo,
e tentam articulá-los à mobilização de recursos e às oportunidades políticas. Ryan e Gamson (2015), por exemplo,
defendem que além de criar uma mensagem atraente, é preciso mantê-la circulando, o que exige recursos financeiros,
planejamento estratégico e construção permanente de redes.
106

Em sua obra recente, “Towards a performative theory of assembly”, instigada pelos grandes
protestos na Praça Tahrir em 2011 e outros que lhe sucederam, Butler (2015) reflete sobre o status
dos atos corporais nas manifestações. Em diálogo crítico com Hannah Arendt, para quem o corpo
pertence à esfera privada da reprodução, Butler coloca o corpo no próprio processo de constituição
do espaço público75. Para ela, a mera presença de corpos nas “assembleias”76 – reunindo-se,
gesticulando, ficando de pé – já comunica uma demanda pelo “direito de existir” e “aparecer”
publicamente, mesmo se permanecem em silêncio77. Isso significa que o espaço público não está
dado: são os atos corporais dos sujeitos em assembleia que o reclamam e o instituem enquanto tal.
A noção de “performatividade encorporada” (“embodied performativity”) busca dar conta dessa
dimensão produtiva dos corpos nos protestos. A autora parte da noção de performatividade que
fundamenta seu pensamento sobre gênero: os atos corporais são performativos porque instituem o
gênero, tanto reproduzindo-o como reinventando-o (Butler, 1999, 2002). Do mesmo modo, os
corpos reunidos em assembleia são performativos porque, ao “dizer” que eles também têm direito
a aparecer publicamente, tanto reafirmam como transformam o espaço público, produzindo-o.

Se as assembleias públicas são um exercício de corpos que afirmam e produzem algo, também os
corpos protestadores são produzidos nas/pelas assembleias. Algumas delas transformam o corpo
na principal “mensagem” do protesto e, desta forma, investem deliberadamente na produção de
corpos políticos. Como mostram Sasson-Levy e Rapoport (2003), ao se manifestarem contra a
ocupação israelense dos territórios palestinos, o movimento Women in Black faz dos corpos das
participantes – vestidos de preto, em silêncio, de pé por uma hora, semanalmente, na mesma praça

75
Como Butler e outras autoras notam, o pensamento Arendtiano reproduz a divisão público x privado fundamentada
pelo gênero e, por isso, exclui o corpo do espaço público. Enquanto para Arendt o espaço privado é habitado por
mulheres e outros corpos feminilizados, o espaço público é concebido como a esfera de sujeitos sem corpos e sem
gênero, cujas necessidades materiais (corporais) de existência já foram misteriosamente satisfeitas: o ator da polis é
um sujeito que “não sente fome” atuando num espaço que não conhece necessidades físicas (Butler, 2015, p.47).
Para Butler, diferentemente, a mera presença corpórea dos sujeitos na assembleia pública revela que as condições
materiais para sua existência (alimentação, segurança) são inseparáveis das condições para sua aparição pública e,
portanto, para a produção do espaço público.
76
Uso a palavra assembleia no sentido amplo, tal como empregado pela autora, para denotar a reunião de pessoas no
espaço público, de forma planejada ou não, com fins políticos, e que pode assumir várias formas: ocupações,
assembleias deliberativas, marchas, paradas, performances artístico-políticas etc.
77
Diz a autora: “(...) temos que perguntar se é certo que a verbalização permanece como norma para pensar sobre a
ação política expressiva. De fato, temos que repensar o ato de fala para entender o que é feito por certos tipos de
atuações corporais: os corpos em assembleia ‘dizem’ que não somos descartáveis, mesmo se permanecem em
silêncio.” (Butler, 2015, p.18, tradução minha).
107

de Jerusalém – o principal símbolo do protesto. As Abuelas e Madres de Mayo caminhavam pela


Plaza, literalmente vestindo grandes fotos dos desaparecidos, retiradas dos arquivos oficiais. Como
mostra Diana Taylor (2003, p.170), que estudou o movimento, “transformando seus corpos em
outdoors, elas os usavam como conduítes de memória”, consagrando um “modelo de performance
de protesto movido pelo trauma”. Quero sugerir que se o corpo é transformado em mensagem pelos
movimentos, se ele é produzido para produzir efeitos políticos, então ele também é frame. Frames,
portanto, não são apenas “pensados”, “ditos”, “escritos”, mas também encorporados. Pensar corpos
como frames amplia as possibilidades analíticas sobre o que fazem os movimentos sociais, e como.

Para desenvolver a noção de corporalidade dos frames, dialogo agora com duas vertentes de
estudos sobre emoções nos movimentos sociais. A primeira vertente é representada aqui pela obra
de Goodwin, Jasper e Polletta (2001), Passionate Politics. Eles notaram que os frames são tomados
por pesquisadores como um tipo de recurso que, assim como dinheiro e redes de contatos, seriam
utilizados de modo estratégico por atores, que se comportariam, assim, como agentes
essencialmente racionais. O receio de se aproximar da antiga formulação dos movimentos sociais
como “massas irracionais” teria impedido os culturalistas de analisar elementos não-cognitivos da
ação coletiva, em especial as emoções78.

Segundo Goodwin e Jasper (2006), a experimentação de emoções é um importante elemento dos


frames, em especial os motivacionais. Sentimentos de raiva, indignação, vergonha, orgulho, falta
de respeito, de estima ou de reconhecimento são, argumentam os autores, estimuladores do
engajamento, assim como laços de solidariedade, amizade e amor são cruciais na manutenção das
redes de relações que constituem os movimentos. “Choques morais”, que ocorrem quando um
evento inesperado provoca tamanha indignação em uma pessoa que ela se inclina à ação política,
independentemente de fazer parte de alguma rede de movimento, são para Jasper (1997) o primeiro
passo em direção ao engajamento.

78
Muito antes, entretanto, a teoria feminista já criticava as dualidades engendradas pelo gênero, em especial a
separação público x privado, que associa o espaço público (a política, a ciência, o trabalho) ao exercício de valores
supostamente “masculinos”, como a racionalidade, e o contrapõe hierarquicamente ao espaço privado, definido como
reino das emoções e do corpo, domínios atribuídos ao “feminino” (Jaggar e Bordo, 1989; Haraway, 1991). A
naturalização dessas classificações e hierarquias é fundante das culturas ocidentais e da produção do conhecimento
científico, o que ajuda a explicar o fato de que o tratamento dado às emoções e ao corpo nos estudos dos movimentos
sociais tenha sido, via de regra, eclipsado, limitado ou modulado pela noção de racionalidade.
108

Além disso, as emoções também afetam o teor dos framings cognitivos, a identificação e
caracterização de alvos ou inimigos e os repertórios de ação adotados. Gould (2001) argumenta
que a ambivalência emocional que afeta gays e lésbicas com sentimentos simultâneos de vergonha
e orgulho, medo e raiva, desempenhou um papel importante nas suas práticas políticas em relação
à AIDS nos EUA. O início da epidemia estimulou sentimentos de culpa e desejo de aceitação,
aumentando a preocupação de gays e lésbicas com respeitabilidade e assimilação, e encorajando,
assim, respostas não-confrontacionais ao governo, como a prestação de serviços comunitários,
lobby e demonstrações públicas de luto. Ao longo dos anos 1980, o acúmulo de mortes, a
negligência do governo e o crescente clamor à criação de legislações repressivas à AIDS e à
homossexualidade estimularam uma onda de expressão pública de indignação e ativismo militante,
com ações diretas e protestos. Gould sugere, portanto, que diferentes chaves emocionais
incentivam distintos modos de ação coletiva. Yang (2005), a partir do caso do movimento
estudantil chinês que emergiu em 1989, propõe a noção de “eventos emocionais críticos”, uma
sequência de ocorrências emocionais que pode compelir ao engajamento e transformar as
dinâmicas da ação coletiva, ao dramatizar as relações entre ativistas, público e oponentes. Kleres
(2005) enfatiza que as emoções nem sempre têm um papel positivo ou produtivo, e mostra como a
análise das emoções pode elucidar processos de desmobilização. O autor relaciona o
enfraquecimento do movimento gay na antiga Alemanha Oriental ao sentimento de inferioridade e
vergonha que se generalizou entre os ativistas perante os novos e supostamente mais “eficientes”
grupos ocidentais a que foram expostos após a unificação. Grosso modo, todas/os essas/es
autoras/es, influenciados por Goodwin e Jasper, percebem as emoções como inerentes aos
movimentos, elementos cruciais nos processos de emergência e manutenção da ação coletiva.

Stéphane Latté (2015), que escolho para representar a segunda vertente, desenvolve uma
abordagem alternativa. Para ela, a noção de emoções mobilizadoras promovida pelas/os autoras/es
acima tenta derivar nexos causais das emoções tais como supostamente experimentadas pelos
ativistas, o que equivale a tomá-las como naturais, evidentes e auto-suficientes, além de ser de
difícil demonstração empírica. Em contraste, as emoções tais como publicamente mobilizadas
pelos atores se prestam melhor à observação e análise. Para a autora, se trata de

(...) circunscrever a análise das emoções de protesto às suas dimensões mais diretamente
observáveis: não mais os afetos que se sente, mas aqueles que se exprime e que se põe em
cena, aqueles que se invoca ou que se denuncia; as instituições e os saberes que contribuem
a torná-los prováveis ou deslocados, autorizados ou desqualificados; os dispositivos
109

simbólicos e materiais pelos quais se procura fazê-los emergir ou reprimi-los, enfim os


espaços onde se os comenta e onde se os avalia. (Latté, 2015, versão online, sem página)79.

Esta perspectiva torna visível, não a agência das emoções, mas o seu agenciamento, o trabalho
emocional realizado pelos atores, que Hochschild (1979) define como o gerenciamento das
emoções de modo a torná-las “apropriadas” às situações, e que é continuamente realizado pelos
ativistas quando publicizam certas emoções e inibem outras. Na tentativa de melhor equilibrar os
termos da dualidade razão x emoção, a primeira vertente tem o mérito de tornar visível o papel
desempenhado pelas as emoções nos frames dos movimentos sociais. Por outro lado, comparada à
segunda vertente, termina por apagar do conceito de frame o seu fundamento mais básico que é a
noção de trabalho, isto é, as operações de seleção, exclusão e classificação de códigos efetivamente
executadas pelos militantes na construção de seus repertórios. Já a abordagem do trabalho
emocional toma as emoções como cultural e socialmente construídas, e analisa as regras sociais
para o gerenciamento e expressão de sentimentos e emoções. Aplicada ao estudo dos movimentos
sociais, supõe que ativistas são conhecedores dos constrangimentos e virtudes atribuídos aos
diferentes registros emocionais em um determinado léxico cultural.

Assim, antecipando as expectativas da mídia, do público, dos poderes públicos e de movimentos


sociais concorrentes sobre um protesto, ativistas buscam modular a expressão pública de emoções.
Por exemplo, Vianna e Farias (2011) mostram que no movimento de mães de vítimas de violência
policial do Rio de Janeiro, não apenas a expressão pública de dor é central nos discursos e
corporalidades das ativistas, como elas aprendem a dosá-la de acordo com as distintas arenas
políticas em que atuam. Em seu estudo sobre a Marcha Nacional dos Sem-Terra de 1997, Chaves
(2000) observa que os manifestantes sublinham a “dignidade” e o “orgulho” de sustentar a
identidade de sem-terra. Além disso, o grande número de participantes e seu ordenamento em
fileiras denotam a capacidade de mobilização da “organização”, uma afirmação de força, e
comunicam “disciplina”, uma forma de apaziguar os temores suscitados pela “invasão” de terras,
ruas e praças.

79
No original em francês: “circonscrire l’analyse des émotions protestataires à leurs dimensions les plus directement
observables: non plus les affects que l’on ressent, mais ceux que l’on exprime et que l’on met en scène, ceux que l’on
invoque ou que l’on dénonce ; les institutions et les savoirs qui contribuent à les rendre probables ou déplacés,
autorisants ou disqualifiants ; les dispositifs symboliques et matériels par lesquels on cherche à les faire advenir ou à
les réprimer ; enfin, les espaces où on les commente et où on les évalue.”
110

McRae (1990) relata que no movimento homossexual brasileiro da década de 1970 havia uma
disputa entre militantes que consideravam necessário transparecer “seriedade e dignidade” para
difundir uma imagem “normal” dos homossexuais, e outros que apostavam na “fechação” –
performances de “desmunhecação” ou “bichice”, marcadas pelo deboche, sátira e humor – como
forma de contestação da naturalidade dos padrões de gênero e da própria “sisudez” da política. Em
trabalho mais recente, Gould (2015) reelabora sua análise inicial do movimento de AIDS, citada
acima (Gould, 2001), em direção a uma perspectiva mais construcionista. Se no texto de 2001 ela
oblitera a intencionalidade das/os ativistas em instigar a raiva e inibir a vergonha, agora ela
argumenta que as/os participantes se engajaram em um esforço de “pedagogia afetiva” para
produzir e legitimar a expressão de indignação. Isso foi possível porque os atores foram capazes
de reconhecer e questionar o “habitus emocional dominante”, que tipicamente desqualifica a
expressão pública de raiva por pessoas socialmente marcadas pela alteridade.

É, portanto, no jogo relacional entre ativistas e outros atores que o trabalho emocional é organizado.
Tomando emprestada a noção de “empreendedores morais” da sociologia da transgressão de
Becker (2008), podemos dizer que movimentos sociais e ativistas são “empreendedores
emocionais”. Nesta perspectiva, os afetos não são tratados como um dado pré-discursivo, um
estado interno pronto para “eclodir” ao sinal de algum “choque moral”, mas como artefatos que os
ativistas se dedicam a produzir, legitimar, publicizar, controlar. Isso não significa dizer que a
relação dos ativistas com as emoções será sempre e unicamente instrumental, mas que a análise
das emoções não deve perder de vista as relações e os contextos onde elas se situam e ganham
sentido80.

Do modo como vejo, a noção de trabalho emocional, junto com a de performatividade encorporada,
permite trazer à tona a dimensão da produção do corpo pelos movimentos sociais. Assim, o trabalho
emocional não é apenas resultado dos constrangimentos da estrutura social e das regras de
expressão dos sentimentos, como enfatiza Hochschild (1979) em sua elaboração original do
conceito, mas também um vetor de agência e criatividade. Se trata de compreender como, no
processo mesmo de gerenciamento das emoções e corpos, os atores produzem afetos e

80
O foco na dualidade razão x emoção ainda é um balizador das teorias sobre movimentos sociais e, ao meu ver, um
dos principais limitadores da compreensão do papel desempenhado pela corporalidade e emoções na ação coletiva.
Mais do que tentar conciliar razão e emoção, a análise deve tratar de contextualizar a mobilização de qualquer
elemento, quer se trate de dinheiro, símbolos, emoções ou corpos.
111

corporalidades. Pois, como argumenta Shilling (2001), a experiência corporal dos sujeitos é tanto
produto como produtora da cultura, modelada pelos contextos sociais e ao mesmo tempo irredutível
a eles. Ademais, os frames foram frequentemente tomados como estruturas estáticas, com pouca
atenção dispensada à sua emergência e mudança ao longo do tempo, como resultado de diálogos e
disputas entre vários atores (Della Porta e Diani, 2006). Analisar a contínua fabricação dos corpos
e o trabalho emocional nos movimentos permite pensar os frames como processo.

A noção de “repertórios de ação” ou “de contestação” (repertoires of contention), de Tilly (1993),


muito utilizada nos estudos sobre movimentos sociais, se refere às diferentes e limitadas formas de
ação e expressão política mobilizadas pelos atores em determinado tempo e espaço, como a greve,
a ocupação, a passeata, o boicote, a destruição etc. Como kits de ferramentas, os repertórios são
finitos, modulares, adaptáveis, combináveis e contingentes, podendo manter-se, desaparecer ou
transformar-se através do tempo e dos contextos locais (Alonso, 2012, 2009; Alonso e Mische,
2016; Bringel, 2012). Para dar um exemplo de como o termo é usado na literatura sobre ação
coletiva, Alonso e Mische (2016), identificam três repertórios básicos no ciclo de protestos das
Jornadas de Junho de 2013: o socialista, constituído por atores ligados a partidos e movimentos
centralizados e hierarquizados, com exibição de bandeiras e outros símbolos de filiação; o
autonomista, que valoriza a organização “horizontal”, a ação direta e demonstrações violentas de
resistência; e o patriota, caracterizado pelo uso de símbolos nacionais e reivindicações “anti-
corrupção”.

Embora a noção de repertório diga respeito a formas de “ação e expressão”, a “fisicalidade” dessas
formas nem sempre é objeto de interesse de pesquisadores na hora de tipificar e analisar repertórios.
É no campo de estudos da arte e da performance que essa dimensão é mais desenvolvida. Diana
Taylor (2003), por exemplo, define “perfomance” como um repertório de conhecimento
encorporado, uma aprendizagem no e através do corpo, um meio de criar, preservar e transmitir
conhecimento, memória e identidade81. Quero preservar essa dimensão da encorporação quando

81
Em abordagem semelhante à dos rituais de Peirano (2001, 2006), Taylor diferencia dois aspectos da performance.
Em um primeiro nível, performance é um objeto de análise, isto é, evento que envolve comportamentos teatrais,
ensaiados ou convencionais, como dança, teatro, protestos, funerais. Essas práticas são separadas (bracketed off) de
outras formas de expressão cultural ao seu redor, como, por exemplo, quando seu início e fim são bem marcados.
Aqui, dizer que algo é performance é uma afirmação ontológica, êmica, culturalmente localizada. No segundo nível,
o termo designa uma lente epistemológica que permite analisar eventos como performance. Nesse caso, a separação
de uma prática de outras é uma operação externa, feita pela pesquisadora. É assim que cidadania, gênero, etnicidade,
entre outras práticas normalizadas, cujos contornos não estão claramente separados, mas antes dissolvidos na trama
112

me referir à noção de “repertório” – encorporação que, para Schechner (2013, p.27), “realiza
(enact) a unidade do sentir, pensar e fazer”. Em outras palavras, considero que iluminar o caráter
encorporado da ação coletiva é uma boa forma de superar a abordagem cognitiva que têm
prevalecido nesse campo: não por inverter a hierarquia que coloca mente/razão acima de
corpo/emoção, mas por abordar performances encorporadas como a realização de ambos.

Finalmente, a noção de “coreografias de protesto”, da coreógrafa, bailarina e pesquisadora Susan


Foster (2003), vai no mesmo sentido de questionar as distinções entre pensamento/ação e ação
simbólica/física que povoam os estudos sobre movimentos sociais. Para ela, o corpo é um
articulador de sentidos e criador de interferências; sua “fisicalidade” desempenha um papel na
construção da agência individual e da socialidade. Especificamente, ela argumenta que sem falar
da fisicalidade do protesto, ou de suas “coreografias”, não é possível considerar seriamente suas
táticas em si. Outras formulações da noção de “coreografia” também são interessantes para ativar
um certo modo de olhar. Para André Lepecki (2015, p. 47), também estudioso da performance e da
dança, vivemos em sociedades de controle que “assinalam e mantêm corpos, sujeitos e seus modos
de circulação em espaços preestabelecidos, considerados os únicos apropriados para (apropriada)
circulação”. Assim, a política tem uma dimensão “coreográfica”, capaz tanto de policiar
(choreopolicing) como reinventar (choreopolitical) modos de se mover e se comportar, e que
informa concretamente o componente “movimento” na expressão “movimento político”. Atentar
para a dimensão coreográfica dos movimentos sociais é, portanto, atentar para a dimensão de
agência dos corpos. Finalmente, Paolo Gerbaudo (2012, p.5), como vimos no capítulo 1, utiliza a
noção de “coreografia de assembleia” para qualificar “o processo de construção simbólica do
espaço público que facilita a reunião física de um público altamente disperso e individualizado”.
Se contrapondo à noção corrente de que os movimentos que surgem na rede da internet são
“horizontais” ou “sem liderança”, Gerbaudo argumenta que há uma “liderança coreográfica”, em
que pessoas-chave atuam como “soft leaders”, responsáveis por “montar a cena e construir um
espaço emocional nos quais a ação coletiva pode se desdobrar” (idem). Embora aqui a noção de
coreografia não remeta diretamente à fisicalidade do corpo, e tenda a privilegiar a “dimensão
simbólica” da ação coletiva, a noção de “cena” e de “espaço emocional” evocam o trabalho

do cotidiano pela contínua reiteração, podem ser analisadas como performance. Para Taylor, essa dupla dimensão ser
performance/como performance sublinha a compreensão desta “como simultaneamente ‘real’ e ‘construída’”
(Taylor, 2003, p. 3).
113

emocional e de produção do espaço público, que são centrais para minha abordagem. Vejamos
então como a Marcha das Vadias elabora suas coreografias, repertórios, emoções e frames.

2.2. Corpo e emoção na Marcha carioca

Cena: Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013,


Copacabana

Peguei o metrô para Copa. Na saída, vi umas meninas que, pelas roupas e
maquiagens, deduzi que também estavam indo para a Marcha. Fui
caminhando próxima a elas até o posto cinco. Chegamos um pouco depois
das 13h, horário marcado para o início da concentração. Havia ainda pouca
gente ali, mas a orla estava movimentada. O dia estava azul e, por causa da
vigília da Jornada Católica, havia muitos peregrinos pra lá e pra cá com as
mochilas coloridas do evento. Eu sabia que não teria coragem de ficar de
peito de fora. Escolhi, então, uma roupa “estratégica”. Era um vestido verde
cítrico, bem curto, ajustado ao corpo e com um grande decote nas costas.
Assim que cheguei no posto cinco, virei o decote para a frente, de modo
que meu sutiã preto ficasse à mostra. Levei batom vermelho na bolsa e
passei nos lábios. As integrantes da comissão de segurança, eu incluída,
colocamos uma faixa roxa no braço como forma de identificação. Algumas
participantes tamparam o rosto com panos, camisas e calcinhas. Tanto as
organizadoras como participantes íamos, assim, “nos montando” na rua. As
garotas iam tirando a blusa, colocando peças coloridas, escrevendo dizeres
nos corpos umas das outras. Era preciso transgredir sempre mais: se você
estivesse “limpinha demais”, vinha alguém e dizia “Não, vamos escrever
‘vadia’ aí nesse decote!”.

Conforme combinado na última reunião, levei latas de tinta spray,


compradas com o dinheiro arrecadado na festa que organizamos. Outras
114

levaram cartolinas, pincéis, tintas guache, tecido para a grande faixa e


outros materiais. Colocamos tudo no chão e convidamos as pessoas a
fazerem seus cartazes. Mais e mais gente ia chegando. Teresa, uma das
organizadoras da Marcha, grafitava a faixa. Pessoas posavam para fotos e
selfies. Algumas chegavam com instrumentos musicais e arriscavam algum
som, ensaiavam gritos de guerra. Era como um aquecimento para um
espetáculo.

Durante a concentração, várias “performances” aconteceram. As


Madalenas, do Centro do Teatro do Oprimido, estiveram presentes, como
nos anos anteriores, e fizeram uma espécie de “roda de confissão”. As
mulheres, sem blusa, de sutiã ou vestidas com um manto de “santa”, se
revezavam no centro da roda, “confessando” seus “pecados” em voz alta:
“eu confesso que toco siririca!”, diz uma, enquanto as outras aplaudem e
batucam instrumentos de percussão; “eu confesso que já fui estuprada”,
revela outra. Teresa entoava ao megafone “palavras de desordem”, como
“Lutar, lutar, não deixe de lutar, por um orgasmo livre, coletivo e popular!”
e “Se o papa fosse mulher, o aborto seria legal e seguro”, dizeres que eram
repetidos por outras pessoas em coro e acompanhados de improviso por
uma banda. A banda lembra as fanfarras do carnaval de rua da cidade, com
seus metais e percussões penduradas no corpo. Dançando de saia preta
abaixo dos joelhos, blusa pálida de manga comprida abotoada até o
pescoço, meia calça e sapatos escuros, cabelo preso em um coque severo,
toda a sua aparência parodiando uma pessoa “decente”, uma mulher
segurava um estandarte com o nome da banda: “Meu cu é laico”. Na outra
face do estandarte, a frase: “Quem apoia pisca o cu”.

As Loucas de Pedra Lilás, um grupo feminista de Recife (PE) que usa o


teatro de rua para falar sobre os direitos das mulheres, encenou a esquete
“Via Crucis do aborto”. As atrizes, algumas delas integrantes da MdV que
nunca tinham atuado antes, tinham o rosto pintado de branco. Uma,
remetendo ao sofrimento de Jesus, carregava uma grande cruz nas costas,
de onde pendiam camisinhas e calcinhas, além de objetos usados na
115

encenação. Outra, interpretando a Virgem Maria, exibia um cartaz que


dizia “Gravidez apenas quando desejada”. Uma terceira “morria” de
hemorragia, e era amparada pelas personagens de Maria e de uma
enfermeira. As Tambores de Safo, um grupo de percussão formado por
mulheres lésbicas e bissexuais de Fortaleza (CE), liam poesias feministas
e batucavam. Um homem e uma mulher, com os rostos cobertos por
camisas velhas, tinham os corpos totalmente nus, exceto pelas imagens
sacras que amarraram na cintura e transformaram em tapa-sexo.
Acompanhados por um terceiro integrante vestido, que batucava músicas
de protesto num carrinho de lixo da prefeitura, transformaram imagens
sacras em dildos: a mulher sentou na cabeça de uma santa, introduzindo-a
em sua vagina, e depois penetrou o ânus do homem com um crucifixo de
madeira. Também quebraram algumas estátuas de santas, atirando-as ao
chão.

Em várias dessas encenações, especialmente nas que envolviam nudez,


havia um cordão humano de isolamento formado pela comissão de
segurança e voluntárixs, que de mãos dadas buscavam “garantir a
segurança” das participantes. Muitas pessoas se aglomeravam em volta dos
cordões para observar, cantar junto e, principalmente, fotografar ou filmar.
Durante o ato com os objetos sacros, o assédio de fotógrafos e espectadores
foi maior. As integrantes do cordão temiam pela segurança dos
participantes. Quando vi de perto o ato, fui impactada pela provocação
encenada; senti que havia risco de surgir reações violentas. Logo em
seguida, as organizadoras anunciavam que a Marcha ia começar a andar. O
trio finalizou o ato chutando os cacos de gesso e crucifixos, no que foram
ajudados por participantes da Marcha. O protesto, então, iniciou sua
caminhada em direção ao posto 9. Tinha muita gente, como nunca tinha
visto antes em nenhum protesto feminista.

A vigília da Jornada Católica ia acontecer em Guaratiba, num campo aberto


que virou um lamaçal depois das fortes chuvas da semana anterior. Foi
transferida para Copacabana, decisão tomada às vésperas do evento. As
116

vadias mais experientes propuseram, então, mudar o trajeto da Marcha, o


que foi amplamente aceito. Em vez de ir, como nos outros anos, em direção
ao Leme, onde o palco da Jornada foi montado, iríamos para Ipanema. À
imprensa, Petra disse que a mudança de trajeto visava evitar conflitos com
os peregrinos e também marcar simbolicamente diferenças políticas com o
Vaticano: “estamos indo na contramão da Igreja”, declarou.

Ao longo do trajeto de aproximadamente 2,5 km, as pessoas pulavam,


dançavam e cantavam gritos de guerra irreverentes, como “Se o corpo é da
mulher, ela dá pra quem quiser, inclusive pra outra mulher”, “De burca ou
de shortinho todos vão me respeitar” ou “a verdade é dura, o papa apoiou
a ditadura”, embalados pelas Tambores de Safo, Meu Cu é Laico e outras
pequenas “batucadas” dispersas na multidão. Um “papa gay”, vestido com
uma túnica branca, de pé em cima de um pódio puxado por uma bicicleta
(conduzida por um homem que usava uma máscara de satanás), oferecia
um “batismo queer”: soprava purpurina nos rostos das pessoas ou oferecia-
lhes uma “hóstia” – um pedaço de algodão-doce rosa – e declarava-as
“abençoadas”. Muitos participantes, em sua maioria homens, usavam
máscaras de papel verde no formato da planta de maconha. Suponho que
são integrantes da Marcha da Maconha. Várias bandeiras do movimento
LGBT podiam ser vistas ao longe. Os cartazes eram divertidos e muito
criativos: “Chupai-vos uns aos outros”, “Tire seus rosários dos nossos
ovários”, “Deu é amor”, “Seu fundamentalismo bate na minha xota
feminista e volta”, “O papa é BOPE, o BOPE não poupa ninguém!”82,
“Nascituro no útero dos outros é refresco” e “Xota M Xota”, uma paródia
lésbica da sigla “JMJ” (Jornada Mundial da Juventude). Integrantes do
coletivo BeijAto distribuíam camisinhas cujas embalagens exibiam uma
imagem do Papa Francisco e a frase “Use, o Papa não vai saber”. Tinha um

82
A expressão é uma paródia da canção o “Papa é pop”, da banda Engenheiros do Hawaii, que fez sucesso nos anos
1990. BOPE é o Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, responsável por atuar
em “situações críticas” (http://www.pmerj.rj.gov.br/2015/10/bope-batalhao-de-operacoes-especiais/, u.a. 26 de abril
de 2018). Retratado no filme Tropa de Elite, o BOPE é conhecido por suas operações nas favelas cariocas e pelo uso
do blindado “caveirão”.
117

varal ambulante de calcinhas coloridas. Muitos homens vestiam sutiãs,


vestidos, maquiagem. Alguns traziam inscrições na pele, como “O corpo é
dela. Regras dela”. Não havia carro de som, palanque ou qualquer aparato
que exigisse grande volume de recursos ou apoio substantivo de
organizações. Se na Marcha de 2012 tinha um carrinho de som do tamanho
de uma mala média de viagem, puxado à mão pelas organizadoras, dessa
vez há apenas um ou dois megafones usados em revezamento pelas
pessoas. Alguns dos tambores trazidos por participantes são feitos de latas
velhas customizadas.

Havia também grupos com bandeiras e camisas de diversas organizações:


ANEL (Assembleia Nacional dos Estudantes Livres), PSOL (Partido
Socialismo e Liberdade), Movimento Mulheres em Luta da Central
Sindical e Popular Conlutas, representantes da Central Sindical Unidos
Para Lutar, Marcha Mundial das Mulheres. Em geral, esses grupos
gritavam palavras de ordem que criticavam o governador e o prefeito.
Havia também algumas organizações feministas, como Católicas Pelo
Direito de Decidir e Pão e Rosas. Vindas de São Paulo (SP), as Católicas
tiveram uma participação bastante ativa no protesto. Levavam uma grande
faixa que dizia em inglês “Queremos uma Igreja que não condene mulheres
por aborto e que abençoe casamentos entre pessoas do mesmo sexo” e
distribuíram uma carta aberta ao Papa Francisco, intitulada “Queremos
uma nova Igreja”. Suas representantes deram entrevistas a diversos jornais.
As integrantes do Pão e Rosas distribuíram uma declaração intitulada
“Papa e Vaticano, tirem as mãos de nossos corpos!”, ilustrada com uma
foto da presidente Dilma Rousseff e do Papa Francisco se cumprimentando.
O documento critica a “rifa dos direitos das mulheres e dxs LGBTTIs” pelo
governo em troca do apoio político das Igrejas Católica e Evangélica.
Folhetos de grupos autônomos também foram distribuídos, como a zine
“Voz da Vulva”, produzida por “uma grupa de feministas radicais do Rio
de Janeiro” que, opondo-se às bandeiras da Marcha, defendia a “abolição
da prostituição” e a exclusão de homens de espaços de militância feminista.
118

Em quase todo o trajeto, a comissão de segurança fez um cordão de


isolamento entre a Marcha e o público geral, majoritariamente peregrinos
que vieram para a vigília. Algumas vadias me contaram depois que houve
alguns momentos isolados de tensão, com peregrinos “esconjurando” e até
cuspindo em participantes da Marcha, que respondiam dançando e
rebolando. Mas também houve momentos de interação amigável,
peregrinas/os demonstrando apoio à Marcha e conversando com vadias. Vi
uma peregrina jovem participando da Marcha: sem camisa, de top, usava
uma mochila colorida da JMJ e empunhava um cartaz que dizia “Cristã
pelos motivos certos”. No meio do trajeto, na altura do Arpoador, havia
uma igreja católica. Rapidamente formou-se um cordão de isolamento na
frente da igreja, composto por participantes da Marcha mais do que
organizadoras, para evitar uma invasão como a que aconteceu no ano de
2012.

Vi mulheres empunhando cartazes relativos à violência policial que diziam


“Amarildo? Não tem preço” e “Dor de mãe de filho chacinado não tem
preço”, em alusão ao caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo,
levado por policiais, duas semanas antes da Marcha. Houve um momento
em que motociclistas da Polícia Federal que escoltavam um veículo
passaram no meio do protesto em velocidade imprudente, muito perto das
pessoas, com sirenes ligadas, numa operação que parecia estar relacionada
à Jornada Católica. Manifestantes reagiram gritando “Não acabou, tem que
acabar, eu quero o fim da polícia militar”, canto bastante entoado nas
Jornadas de Junho, e “Ei, polícia, cadê o Amarildo?”, também muito
presente nos últimos protestos. Depois ouvi outra versão, polissêmica e
bem-humorada, desse canto: “Ei, papa, levanta o seu vestido, quem sabe aí
embaixo não está o Amarildo!”.

A Marcha foi encerrada no posto nove com um beijaço: vários casais de


gays e lésbicas se beijaram ao mesmo tempo. Muitos aplausos, abraços.
Dali, as pessoas se dispersaram. Soube depois que um grupo voltou para
perto do evento católico em Copacabana, onde continuaram a protestar,
119

diante da vigilância atenta de um cordão policial. As organizadoras da


Marcha, colaboradoras e amigas fomos confraternizar na escadaria do
Selarón, na Lapa. Ocupamos toda a parte baixa da escadaria, estendemos a
faixa colorida que abriu o protesto, continuamos a cantar os gritos de guerra
e inventamos outros, como “Quanto mais eu rezo, mais Maria vibra”.
Algumas mostraram os peitos de novo, se beijaram, brindaram, dançaram,
num clima dionisíaco. Era como se a Marcha tivesse sido estendida no
espaço e no tempo, excedendo o ritual do protesto. Estávamos muito felizes
com o sucesso da Marcha. Calculamos que mais de três mil pessoas
estiveram presentes em Copacabana.

Keila acessa o Facebook da Marcha pelo celular para acompanhar os


comentários e se surpreende com a repercussão negativa que começava a
crescer a respeito da encenação com as santas e crucifixos católicos. Ela
decide ir para casa para responder às críticas. Nós continuamos festejando
na escadaria até a madrugada.

Na Marcha das Vadias o corpo tem um lugar central. Como meio de provocação, o corpo é usado
pelas ativistas para questionar as normas de gênero e sexualidade, especialmente as regras de
apresentação dos corpos femininos no espaço público. Ao mesmo tempo, o corpo é experimentado
no protesto como um veículo de “narrativas de auto-identidade” (Giddens, 1991), um artefato em
que cada participante busca expressar uma mensagem distintiva, um self único e autêntico que
demanda reconhecimento (Taylor, 1992). Assim, ao articular a produção de identidades coletivas,
o corpo também serve à expressão da “originalidade” individual.

Esta dupla articulação pode ser percebida no modo como as participantes escolhem se expressar
corporalmente. Quando se chega ao protesto da Marcha, é possível perceber que já existe um
repertório pré-selecionado de palavras-chave, bordões, figurinos e coreografias à disposição das
pessoas, como um cardápio. Estes repertórios são aprendidos ainda antes do protesto: são incitados
pelas organizadoras através da internet, são rememorados de protestos passados, são transmitidos
entre pares, são, enfim, um conjunto compartilhado de enquadramentos cognitivos, corporais e
emocionais. Assim, as participantes já chegam ao protesto sabendo, ou aprendem assim que
120

chegam, que podem lançar mão de um sutiã e de um batom vermelho, podem escrever palavras
como “vadia”, “respeito” e “laico” em partes preferenciais do corpo, como ventre, colo do peito,
costas, e confeccionar cartazes com frases recorrentes, como “mulher bonita é a que luta”. Aqui
está a dimensão coletiva da construção dos repertórios, que serão, por sua vez, modulados,
reapropriados e customizados pelos indivíduos em seus corpos, o que lhes permite perceberem-se
como experimentando um forte senso de agência e originalidade. Seguindo esses repertórios
básicos, cada um pode colocá-lo a serviço da construção de uma identidade pessoal: eu preferi o
decote aos peitos nus, uma lutadora de Krav Maga usou seu kimono para falar de violência, alguém
inventou uma frase criativa para seu cartaz. Essa possibilidade de customizar o corpo e a mensagem
é uma diferença notável em relação a alguns protestos, como por exemplo a maioria dos protestos
trabalhistas, cujo modo desejado de ação se caracteriza por uma maior uniformidade coreográfica
(ver imagens da MdV-Rio no anexo A).

Transformado em locus de resistência, expressão do eu e identidade coletiva, o corpo das vadias é


um “corpo-bandeira” (Gomes e Sorj, 2014). Proponho a noção de corpo-bandeira para enfatizar
tanto a significância e centralidade do corpo na MdV como o trabalho por meio do qual esse corpo
é produzido, seu caráter de artefato político. Ramona, organizadora da MdV, descreve assim o
modo como o corpo é transformado em bandeira pelas vadias:

(...) eu acho que a MdV tem essa potência, né, porque traz a fala sobre violência, diferente
daquilo que as pessoas que são identificadas como mulheres aprendem a fazer desde a
infância, que é se calar, que é ficar em silêncio, e não responder, não reagir a nenhum tipo
de violência, a nenhum tipo de agressão, a MdV traz esse lugar de tomada do corpo pra
si, pra que então se possa falar, pra que se possa reagir, pra que se possa dizer não, pra que
se possa, junto com outros corpos, agir de maneira combativa às estruturas de opressão.
Então, eu acho que... eu não sei se é um diferencial, eu acho que o feminismo organizado
já vem fazendo isso não é de hoje, mas a MdV atualiza isso, traz esse lugar do corpo como
um lugar de inscrição, como um território de emancipação e de luta política. (Ramona,
entrevista concedida em 4 de agosto de 2015)

Assim, como uma bandeira, o corpo é simultaneamente transformado em assunto ou pauta em


questão (como em “a principal bandeira do protesto é a descriminalização do aborto”), em veículo
material (uma camisa, a pele, partes específicas do corpo), e em mensagem (“autonomia”,
“liberdade”, “transgressão”).

Que tipos de coreografias animam esse corpo-bandeira? São tipos relacionados ao elemento que
considero ser o mais distintivo da Marcha das Vadias, enquanto um protesto feminista contra o
121

estupro, que é o seu reenquadramento (reframing) da abordagem pública da violência sexual. Em


suas performances corporais e emocionais, as ativistas da MdV apostam em um “frame de
transgressão”, relegando a segundo plano o “frame vitimário” que costuma dar o tom das ações
feministas contra o estupro e a violência contra a mulher no Brasil e no mundo nas últimas décadas
(Gomes, 2017).

No Brasil, os grandes protestos contra o assassinato de mulheres na década de 1980, sob o lema
“Quem ama, não mata”, inauguram um longo processo de politização da violência contra a mulher.
Dois aspectos são centrais nos movimentos feministas brasileiros de combate à violência contra a
mulher: primeiro, a violência contra a mulher foi, via de regra, enquadrada como violência
doméstica, isto é, aquela que acontece no espaço privado e no âmbito das relações de intimidade
(Gomes, 2010). Segundo, o tratamento público da violência contra a mulher se centrou, não sem
disputas e ambiguidades, na identidade de vítima das mulheres. O esforço de criar mecanismos
institucionais para administração deste tipo de violência, como a Lei Maria da Penha, as delegacias,
os centros de atendimento e os juizados especializados, é politicamente inseparável da afirmação
de uma imagem de vítima. Embora a vitimização seja sempre passível de relativização pelos
agentes públicos e pelas próprias mulheres que utilizam esses serviços (Gregori, 1993; Brandão,
1998; Debert, 2006; Sorj e Moraes, 2008; Gomes, 2010), ela acabou se cristalizando como frame
principal do movimento de combate à violência contra a mulher, em que noções de sofrimento e
direitos estão intimamente articuladas (Correa e Vianna, 2006; Sarti, 2009).

Na Europa e nos EUA, o “Take back the night” (também chamado de “Reclaim the Night” e “Toma
la Noche”), protesto que emergiu no final da década de 1970 e ressurgiu no início dos anos 2000,
ficou conhecido por abordar publicamente o estupro. Em seu formato mais conhecido, as
participantes desse protesto fazem uma caminhada em grupo segurando velas, invocando um
cortejo ou uma vigília fúnebre, em que demandam o direito de andar sem medo pelas ruas a
qualquer hora e compartilham depoimentos pessoais de suas experiências de estupro. Taylor e
Whittier (1995) discorrem sobre a importância, nos movimentos anti-estupro, desses momentos
rituais para expressar emoções que emergem da experiência de vitimização, como medo e culpa, e
transformá-las em emoções que “empoderem as mulheres”. Nos depoimentos, é comum que se
refiram a si mesmas como “sobreviventes” (Taylor e Whittier, 1995), como forma de questionar as
regras sociais que confinam a experiência do estupro à esfera privada e ao registro da vergonha. A
122

partir da publicização e reelaboração da experiência de violência sexual no protesto, emerge uma


identidade coletiva positiva. Assim, argumento que o trabalho emocional e as corporalidades
mobilizadas nesse tipo de protesto estão centrados na experiência de vitimização e expressam, por
um lado, sentimentos de luto, dor e reparação e, por outro, um sentido coletivo de “força” e
“agência”. Como a experiência de vitimização é o principal substrato da ação, eu chamo este
enquadramento de frame vitimário.

Diferentemente do que historicamente vinham fazendo os movimentos feministas brasileiros de


combate à violência contra a mulher, a Marcha das Vadias coloca a violência sexual, em especial
aquela que acontece no espaço público, no centro dos holofotes. Ela também expande a noção de
violência sexual para abarcar não apenas o estupro como também atos mais corriqueiros e
normalizados no Brasil, como as cantadas de rua, as “encoxadas” no transporte público e certos
tipos de investidas nas festas e no carnaval. O termo cultura do estupro, formulado no contexto do
feminismo estadunidense da década de 197083, é reativado pela MdV para designar práticas,
discursos e crenças frequentes que naturalizam a violência sexual contra mulheres, como, por
exemplo, a culpabilização da vítima e a noção de que homens não conseguem controlar seu desejo
sexual. A noção de cultura do estupro conecta diferentes práticas, que vão desde comentários
verbais sexuais até toques e estupro, em um mesmo continuum de violência. A maioria das Marchas
enfatiza ainda que a cultura do estupro incentiva a violência sexual não apenas contra mulheres
como também contra pessoas de outros modos marcadas por corporalidades ou status de
feminilidade, como travestis, mulheres e homens trans, bichas e crianças. Há aqui uma

83
As informações que encontrei apontam que o termo foi criado a partir das experiências dos grupos de
conscientização (consciousness raising groups) promovidos pela organização New York Radical Feminists (NYRF),
criada em 1969. Através dos relatos que emergiram nos primeiros anos dos grupos, a NYRF descobriu que o estupro
era uma experiência muito comum na vida das mulheres, embora ignorada tanto pela academia quanto pela
sociedade. Em 1971, a NYRF organizou um speakout, evento em que mulheres compartilharam publicamente suas
experiências de estupro, e uma conferência sobre o tema, que resultaram na publicação de dois livros onde o termo
“cultura do estupro” é cunhado – Rape: the First Sourcebook for Women (1974), organizado por Noreen Connell e
Cassandra Wilson, e Against Our Will: Men, Women and Rape (1975), escrito por Susan Brownmiller. Ver, por
exemplo, o guia datilografado da NYRF, disponível em
https://cache.kzoo.edu/bitstream/handle/10920/28141/NYRFNewsletter1975-03.pdf?sequence=1 e o New York
Radical Feminists Manifesto of Shared Rape, disponível em
https://web.viu.ca/davies/H323Vietnam/Manifesto.SharedRape.1971.htm, e publicado em Rape: the First
Sourcebook for Women (ambos os links, u.a. 6 de setembro de 2017).
123

reelaboração do frame vitimário, com a diversificação e expansão das definições de violência e


vítima (Ferreira, 2015).

Mas a principal particularidade da MdV em comparação a outros movimentos de combate à


violência de gênero é que ela relativiza ou confronta a noção de vítima e prioriza um “frame de
transgressão”. O ponto de partida da ação não é experiência de vitimização, nem a identidade de
“sobrevivente”, mas a afirmação da transgressão das normas de gênero, que se expressa na
celebração do corpo e da sexualidade das participantes. A MdV quer desafiar os displays
socialmente legítimos da vítima de violência sexual. A “verdadeira” vítima, aquela que conquista
o topo da hierarquia de credibilidade (Moraes, 2006) perante o Estado e a sociedade, pode até
demonstrar força, desde que observe uma certa “política da respeitabilidade” (Higginbotham,
1993). Em outras palavras, as regras de gênero exigem que a vítima de violência sexual realize um
trabalho emocional que consiste na expressão obrigatória de sentimentos como vergonha, culpa,
medo, luto e, principalmente, recato, ou a negação de si como sujeito desejante, sexualizado.

Ao encorporar sujeitos individualizados, autônomos, fortes, irônicos, que afirmam seu desejo
sexual e transformam seus corpos em lócus de “resistência” e “mudança”, as vadias questionam as
lógicas de gênero que regulam as definições de vitimização e, no limite, eclipsam a figura da vítima
em seus repertórios. Zuzu, 34 anos, conheceu o feminismo em 2000, quando trabalhou em uma
ONG feminista. Frequentadora da MdV e, há muitos anos, dos já tradicionais atos do 8 de março84,
contrastou assim os dois eventos:

Eu fui a duas MdV. Eu acho muito maneira a proposta, a linguagem, a irreverência. Assim,
algumas pautas que são mais difíceis, são menos conciliatórias, a galera não banca. Nesse
tempo todo que eu estou [no movimento], eu normalmente vou no dia 8 de Março. Esse
ano [2015], pela primeira vez o aborto foi uma pauta explícita. É sempre “Ah, é ‘direitos
sexuais reprodutivos’, porque aborto não agrega”. Mas se a gente não pautar isso, mesmo
não agregando... E a marcha tem um pouco esse desprendimento, talvez por não ser
institucionalizado, ou por esse caráter mais jovem, não sei muito o porquê, mas eu acho
que traz questões que... como é talvez mais horizontal, cada um traz a sua questão que é
cara, e aí... Eu acho que é muito legal, as palavras de ordem, eu adorei, na JMJ, aquela do
capeta85. Acho que é isso, vai pra porrada, chupa o capeta na JMJ! Não quero falar, ah,
“da violência contra a mulher, porque as católicas também sofrem violência contra a
mulher”. Não! Eu acho que essa ousadia é muito legal. É claro que capitaliza um estresse,
mas é uma ousadia necessária. (Entrevista concedida por Zuzu em 2 de julho de 2015)

84
Mais sobre o 8 de março e outros atos do calendário feminista da cidade no próximo capítulo.
85
Referência ao grito de guerra “Eu chupo pau/ Chupo buceta/ Se eu for pro inferno, chupo até o do capeta!”
124

Como sugere Zuzu, a ideia de vitimização, inseparável de certas imagens de vítima definidas pelo
sofrimento e passividade, é colocada em questão pela Marcha. Os depoimentos de experiências de
violência são pouco comuns nos protestos da MdV no Brasil e, no Rio de Janeiro, estão
completamente ausentes. Assim, em vez da expressão pública de gravidade que caracteriza as
marchas do Take Back the Night, os protestos de mães contra a violência do Estado no Brasil e
outras manifestações centradas na categoria de vítima, a MdV, à semelhança das paradas do
Orgulho LGBT, investe em repertórios de provocação, em especial o humor e a nudez.

O humor é central nas performances corporais e emocionais da Marcha, que carregadas de


elementos carnavalescos e dramatúrgicos, jogam com a paródia, o deboche e a brincadeira.
Contrastados aos “grandes” gestos de resistência, como os manifestos “revolucionários” ou a luta
armada, esses repertórios de “frivolidade tática” (tactical frivolity), como os nomeia Kingsmith
(2016), são gestos sem importância, banais, que não podem ser levados a sério, mas que,
precisamente pelo riso, constituem formas potentes de contestação das normas sociais86. O humor,
ao tornar absurdos e grotescos objetos e situações cotidianos, funciona como mecanismo de
inversão. Ao mostrar o que “não é”, evidencia hierarquias e expressa descontentamento, ao mesmo
tempo em que, inofensivo, protege e imuniza os manifestantes. Em outras palavras, o humor
introduz um frame de referências que colide com os frames usuais e, assim, é capaz de abrir um
assunto à discussão e de mudar a perspectiva das pessoas sobre as coisas (Roy, 2006). Como afirma
Kingsmith (2016, p. 296), “o repertório criativo da frivolidade tática revela como o humor é um
poder sem poder [a powerless power] que usa sua posição de fraqueza para expor os poderosos
através de formas de ridicularização auto-reflexiva” (tradução minha).

86
O “Grupo de Frivolidade Tática” (Tactical Frivolity Group) era composto de mulheres ativistas do Reino Unido,
que participaram dos protestos alterglobalização ocorridos em Praga, em 2000, durante o encontro do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial. Para se contrapor aos repertórios de “guerra”, performados tanto
por forças policiais como por black blocs, o grupo integrou o Pink and Silver Bloc, formado por diversos grupos e
pessoas vestidas de “fadas rosas” (pink fairies), “armadas” com espanadores de pó da mesma cor, que marchavam e
dançavam ao som de uma bateria improvisada de samba (Chesters e Welsh, 2006). Em protestos subsequentes, “pink
blocs”, “pink fairies”, “carnivalistas” e “samba bands” se popularizaram e se consolidaram como repertórios de
protesto. A partir disso, Kingsmith (2016) analisa a frivolidade tática como performance de contestação que remonta
aos coringas das cortes da Idade Média, passando pelo carnaval e chega a movimentos sociais recentes, como o
Zapatista, Alter-Globalização e Anonymous.
125

O humor contestador remete ao carnaval, cuja essência, como mostrou Bakhtin (1993), é a “paródia
da vida ordinária”, é o “mundo ao revés”. As fantasias e máscaras permitem a troca de papéis e a
proximidade dos corpos, cujos excessos e prazeres são desfrutados em público; o mundo “elevado”
(o sagrado, o trabalho, a arte) é rebaixado e transfigurado pela sua transposição à esfera material e
“baixo-corporal”: o carnaval subverte temporariamente as hierarquias e regras sociais. A MdV faz
uso deliberado da estética carnavalesca como meio de contestação política. Diversos elementos do
carnaval de rua do Rio de Janeiro, em especial dos blocos da região central da cidade, estão
presentes na Marcha carioca: grupos com fantasias temáticas, bandas e músicas de fanfarras,
sensualidade, nudez, exagero, deboche. O sagrado é um alvo preferencial nos protestos da Marcha,
em especial no ano de 2013, quando o papa estava na cidade. Foram várias as paródias de
profanação: além do “papa gay” fazendo “batismo queer”, houve mulheres vestidas com véus de
freira ao mesmo tempo em que exibiam peitos, sutiãs ou enormes decotes; pessoas fantasiadas de
diabas/diabos; mulheres comendo maçãs, transfigurando o “pecado de Eva”; gritos de guerra como
“Eu chupo pau/ Chupo buceta/ Se eu for pro inferno, chupo até o do capeta!”.

Para Teresa, uma das organizadoras da marcha carioca:

A MdV tem uma capacidade midiática boa. É isso, ela tem uma capacidade de visualidade,
é performática, então, ela carnavaliza. O ‘vadia’ é uma carnavalização, que é interessante
pelo ato comunicacional. E trabalha diretamente com sexo, com a ideia de sexualidade e
direito reprodutivo, mas é uma marcha que fala de violência, então, é uma forma da gente
pegar, a partir dessa sexualidade, retornar de modo bem declarado para o discurso sobre
violência. (...) A ideia é você tensionar, a MdV tensiona nesses contrapontos políticos.
Tensiona carnavalizando, mas tensiona. A gente vai experimentando núcleos que
propiciam sensações de liberdade, né, sensações de tirar a blusa, sensações que vão desde
encarar o nosso corpo, a nossa nudez, até enfrentar posições ideológicas religiosas,
classistas. (Teresa, entrevista concedida em 1o de julho de 2015)

Teresa nos mostra como este repertório de ironia, paródia e “carnavalização” é deliberadamente
incitado pelas organizadoras, que estão conscientes de sua eficácia “comunicacional”. Teresa sabe
que a carnavalização habilita uma economia específica de “ver” e “ser vista” no espaço público:
como performances que explicitam seu caráter “performático”, teatral, a carnavalização produz
“visualidades” atraentes – “aparições espetaculares”, como diria Abramo (1994) – imagens
corporais pelas quais a Marcha se faz ver, se faz “mídia” 87. Ao mesmo tempo, como performance

87
O “espetáculo” é frequentemente interpretado, por estudiosos e ativistas inspirados em uma certa leitura de Guy
Debord (1997), como uma “alienação” capitalista e despolitizante. Como vimos anteriormente, essa interpretação é
comum a muitas feministas, que desqualificam a MdV como “despolitizada” e “fútil”. Aqui, eu trato o caráter
126

de contestação, a carnavalização é uma linguagem na qual as organizadoras e participantes


encontraram uma fonte de recursos discursivos e coreográficos que permitem fazer pontes e
“contrapontos políticos” acerca da sexualidade e violência. Em outras palavras, as coreografias
carnavalescas da MdV são produzidas mediante performances corporais e emocionais que
enunciam – e ao enunciar, produzem – fissuras e ressignificações às normas sociais, isto é, possuem
uma qualidade performativa. Ambos os aspectos da carnavalização da MdV – espetacular e
contestatório, performático e performativo – se fazem no corpo e pelo corpo.

O corpo subversivo do carnaval é um corpo “grotesco”, no sentido que Bakhtin (1993) delineia:
um corpo dos excessos, aberto, cujos contornos se tornam mais permeáveis ao exterior, fazendo
com que as fronteiras físicas e sociais entre corpos se relaxem; um corpo sempre em movimento,
em construção, inacabado88. O corpo carnavalesco, nu, excessivo, aberto das vadias busca
relativizar as fronteiras sociais entre política e sexualidade, público e privado, gênero e sexo. O
“Hino Nacional Vadix”, composto e cantado ao microfone na abertura do protesto de 2014 por
Sinara, organizadora travesti e prostituta da MdV carioca, com os seios à mostra, é um dos muitos
exemplos do frame transgressor e seus repertórios carnavalescos e grotescos de provocação
adotados pelas ativistas:

“Suspiros do Ipiranga às margens plácidas


De vadias em gemidos retumbantes
E o gozar da liberdade em lábios úmidos
Esguichou no céu da mátria nesse instante (...)”

Pela sexualidade e pelo humor, essa paródia do hino nacional brasileiro ridiculariza a nação e seus
símbolos, seus “heróis patriarcas”, sua seriedade e pompa, ao mesmo tempo em que afirma um
sujeito feminino que protagoniza a “grande história” pelo gozo do corpo. Ao ser transposta para o
“baixo corporal”, a pátria é rebaixada. Mas como enfatiza Bakhtin, o corpo grotesco não apenas
destrona e degrada o mundo “elevado”, como também o renova, o transfigura em outra coisa, de
valor positivo, nesse caso, o gozo. Quando abrem o protesto com o “Hino Nacional Vadix”; ou
quando evitam o silêncio durante a marcha, e a todo momento exortam gritos de guerra, palmas e

“espetacular” da Marcha como um tipo específico de agência política, que se expressa por meio de coreografias de
transgressão.
88
Sou grata ao trabalho de Kelly Mendonça (2017) sobre a MdV de Curitiba por me apontar a noção bakhtiniana de
corpo grotesco, à qual ela articula também a noção de “corpo efervescente”de Banes (1999).
127

batucadas, pulos e danças; quando escolhem propositalmente as roupas mais coloridas, decotadas,
curtas, justas e/ou rasgadas que possuem; quando utilizam calcinhas como máscaras; quando
confeccionam cartazes com dizeres minuciosamente provocativos, como “Degenerai-vos” e “Seu
machismo é broxante”; quando um “papa gay” batiza “fieis” com purpurina; ou ainda quando
ironizam o controle da polícia cantando “Ei, Pezão, toma da polícia, porque tomar no cu eu te
garanto é uma delícia!”89 e “Contra a polícia, estou na luta e meu spray é água de chuca”90 (ver
figuras n. 9 e 10) – em todas essas coreografias de frivolidade, carregadas de elementos grotescos,
sátiras e paródias, as vadias visam deliberadamente rir do poder, ridicularizá-lo e transfigurá-lo.

Figura n. 9 – Repertórios de frivolidade: Calcinha-máscara

89
Fernando Pezão era em 2014 o então recém-eleito governador do estado do Rio de Janeiro. Os protestos ocorridos
no país desde as Jornadas de Junho de 2013 têm sido reprimidos pela polícia, com sprays de pimenta e bombas “de
efeito moral”. No Rio de Janeiro, em especial nos protestos contra as recentes políticas governamentais de “ajuste
fiscal”, é comum que os manifestantes expressem repúdio ao prefeito e governador gritando “vai tomar no cu”, o que
é considerado pelas vadias, ativistas LGBT e outros como “homofobia”. O grito “tomar no cu é uma delícia” é,
assim, uma provocação tanto aos governantes e policiais, quanto aos demais movimentos sociais que compõem o
“exterior constitutivo” da Marcha, com o qual se contrasta (Alvarez, 2014b).
90
“Chuca” é uma gíria usada principalmente entre homens gays para se referir à lavagem retal com água, realizada
antes de relações sexuais anais.
128

Figura n. 10 – Repertórios de frivolidade: “Ditador Gay” marchando junto com a polícia. Foto: Agência Brasil.
Publicada no Facebook do performer Rafucko com a legenda “O Ditador caminhou em companhia de seu exército e
cumprimentou os manifestantes, trocando telefone com alguns deles, em especial os que tinham peito cabeludo”91

A carnavalização permite a aparição pública de sujeitos, corpos e sexualidades que normalmente


têm seu acesso ao espaço público negado e/ou punido com violência. Esses corpos grotescos,
abjetos, subalternizados ou “inapropriados” conseguem, pela via do humor, franquear sua entrada
no espaço público sem tornarem-se alvos prioritários da violência policial. Como mostra Douglas
(1975 apud Kingsmith, 2016), a piada confere uma espécie de imunidade ao coringa da corte,
afinal, “tolos” não devem ser levados à sério. Suspeito que mulheres de peitos de fora, homens de
saia, “bichas” e “travecos”, essa gente pelada, fantasiada e “rebolativa” não parece, a princípio,
violenta e perigosa aos olhos da força policial carioca, conhecida por sua truculência e acostumada
a reprimir protestos. Ainda que em todos os anos tenham havido momentos de tensão e conflito
entre vadias e polícia – sempre presente nos protestos da Marcha carioca – nunca houve qualquer
coisa parecida com a repressão com cassetetes, bombas e gás que se tornou rotineira nas

91
Disponível em
https://www.facebook.com/okcufar/photos/a.155342024548846.38977.155319264551122/485554644860914/?type=
3&theater (u.a. 7 de fevereiro de 2018)
129

manifestações locais a partir das Jornadas de Junho de 2013. A vulnerabilidade dos corpos nus e a
banalidade do “carnaval” das vadias parecem abrir um espaço de resistência e contestação
permeável a diferentes imaginações políticas e ao mesmo tempo protegido de ações violentas de
repressão.92

Esse framing de transgressão e os repertórios de provocação que o expressam, são, para as


organizadoras, uma das principais “potências” e atrativos da MdV. Algumas delas, motivadas por
minha pergunta “O que te atraiu na Marcha?”, assim falaram:

A Marcha de 2013 foi de uma riqueza de arte, misturada com política, com liberdade, com
brincadeira, de uma leveza, que foi gostoso você ir pra rua lutar por direito; é isso que é
gostoso você lutar” (Filomena, 56 anos, uma das criadoras da MdV-Rio, militante
feminista há mais de 30 anos. Entrevista concedida em 25 de agosto de 2015).
Quando eu fui pra marcha, eu achei maravilhoso, até o próprio espírito da Marcha, que é
uma coisa meio dionisíaca. Só fala de coisas seríssimas, mas eu acho que as pessoas se
libertam ali, entendeu, eu vejo as pessoas se libertarem na Marcha, eu vejo isso até hoje,
e é uma coisa linda. Muita gente não enxerga o trabalho que a gente faz ao longo do ano,
e acha que a Marcha é só esse momento de festa, vamos dizer assim. Eu acho que a
militância pode ser uma festa também, mas não é só isso, a gente tem vários debates super
sérios ao longo do ano todo, em preparação pra marcha. Próximo da marcha, o trabalho
fica puxado, as pessoas ficam estressadas, mas assim, aquele momento ali é um momento
de explosão, que é maravilhoso. (Gisele, 35 anos, entrou no grupo organizador em 2013,
sem nenhuma experiência prévia de ativismo. Entrevista concedida em 24 de junho de
2015)
Eu lembro que eu não tinha resolvido se eu ia ficar sem blusa ou não, mas na hora eu
encontrei uma amiga minha lá que, no momento que a gente chegou, ela já não tava de
blusa nem sutiã, nada. E ela me pareceu tão confortável! Eu, “Nossa! Que incrível!”. Aí,
aos poucos, durante a Marcha, eu fui começando a me sentir mais confortável. Primeiro
eu tirei a blusa e fiquei de sutiã. No meio da Marcha, eu já tava sem blusa, dançando, já
tinha mandado meus amigos segurarem meu cartaz, tava rodopiando de saia! Eu falei,
“Gente, que coisa incrível”! O que me atraiu mais na Marcha acho que foi essa ideia - que
me passou muito de primeira - de libertação. Tranquilidade. Estar ali junto com suas
amigas, e até alguns amigos, e estar sem blusa. Isso pra mim foi muito incrível! Eu nunca

92
Claro, não há na MdV nenhuma garantia contra a repressão violenta pelo Estado e outras instituições hegemônicas.
Na MdV de Guarulhos de 2013, por exemplo, algumas manifestantes foram fisicamente agredidas e detidas pela
polícia por protestarem com os seios à mostra. A repressão foi um desdobramento do “apelo” do pároco da Catedral
da cidade às autoridades contra a MdV local, que aconteceria em frente à igreja. Uma das manifestantes foi
denunciada pelo Ministério Público por “ato obsceno em lugar público” (art. 233 CP). Condenada em primeira
instância a pagar uma multa no valor de R$1000,00, teve em seguida seu recurso na Sucursal de Guarulhos negado.
O caso se encaminha agora para o Supremo Tribunal Federal. Em reação, diversas entidades feministas assinaram
um manifesto contra a “criminalização de expressões minoritárias e já tradicionalmente marginalizadas na
sociedade” e o “desrespeito aos direitos constitucionais à liberdade de expressão e reunião”. O pedido de repressão
policial feito pelo padre pode ser lido aqui: https://fratresinunum.com/2013/06/07/paroco-da-catedral-de-guarulhos-
apela-as-autoridades-contra-a-marcha-das-vadias/. O manifesto de feministas, aqui:
http://artigo19.org/blog/2017/09/04/entidades-assinam-manifesto-em-defesa-de-manifestante-condenada-por-
mostrar-os-seios/ (ambos links, u.a. 11 de setembro de 2017).
130

tinha feito topless em praia, eu nunca fui de praia. E aí eu pensei “Caraca! Tá tudo bem!”,
sabe?, “Eu tenho direito de fazer isso, eu não tô fazendo nada de errado”. (Suzana, 18
anos, tinha experiência no movimento estudantil e entrou para o grupo organizador da
Marcha em 2013. Entrevista concedida em 11 de julho de 2015)

O “carnaval” da Marcha é vivenciado como um momento em que as coreografias rotineiras dos


corpos na cidade patriarcal e capitalista são questionadas e suspensas, dando lugar a coreografias
que criam espaços de “liberdade”, brincadeira e sensualidade. No repertório carnavalesco, imaginar
novas coreografias é, simultaneamente, imaginar novos modos de fazer política: “leve”, “gostosa
de lutar”, “dionisíaca”. Ao mesmo tempo, trata-se de assuntos “muito sérios”, sendo abordados de
formas pouco literais ou convencionais. Como em outros protestos que lançam mão de repertórios
de humor, trata-se de rejeitar a instrumentalidade e o “realismo” da “política convencional” (Notes
from Nowhere, 2003), com seus discursos maçantes, trajetos e coreografias previsíveis. Trata-se
de tornar a política “irresistível”, a política como lugar do desejo e o desejo como lugar da política.

Ao mesmo tempo, a fala de Suzana sobre tirar a blusa mostra que fazer uma “outra política”, tanto
quanto fazer “política convencional”, não é algo evidente, mas envolve um processo pedagógico:
estar na MdV requer o aprendizado de técnicas corporais de nudez, de sensualidade, de excesso93.
Teresa, na sua fala citada mais acima, também fala disso, de experimentar a sensação singular de
“encarar o nosso corpo, a nossa nudez” em público. Esse aprendizado pressupõe, como aponta
Susan Foster (2003, p.412), um comprometimento com a ação física que imbui os indivíduos
participantes de um “aprofundado senso de agência pessoal” – aquilo que as vadias chamam acima
de “libertação”. Para a autora,

[I]n achieving this sense of agency, protestors are not enacting a script, where the body
would function as mere instrument of expression, the meat that carries around the subject.
Nor is agency the product of the heightened sense of physicality that results when the body
steps outside the quotidian routines of daily life and into non-normative action. Agency
does not manifest as the product of a transcendent state. Instead, the process of creating
political interference calls forth a perceptive and responsive physicality that, everywhere
along the way, deciphers the social and then choreographs an imagined alternative. As
they fathom injustice, organize to protest, craft a tactics, and engage in action, these bodies
read what is happening and articulate their imaginative rebuttal. In so doing they

93
O estatuto ambíguo da nudez na cultura brasileira, que simultaneamente a incita e controla, premia e pune,
mereceria maior atenção na análise do uso do corpo na MdV. É no mínimo intrigante que a Marcha carioca aconteça
na praia de Copacabana, na pista de asfalto que fica há poucos metros da areia, onde banhistas seminuas não
constituem, a princípio, nenhuma anormalidade. Que fronteiras simbólicas há entre a areia e o asfalto? Quem pode
ficar nua, em que ocasiões e lugares, e como?
131

demonstrate to themselves and all those watching that something can be done. (Foster,
2003, p. 412)

Repertórios de transgressão não gozam de legitimidade no senso comum, onde circulam outras
noções sobre o que são ou devem ser a política, o espaço público, os corpos e as relações de gênero.
Logo, a menção do próprio nome Marcha das Vadias exige explicações e justificativas que possam
refazer as expectativas sociais rompidas. Conscientes disso, para aqueles que “não entendem a
piada”, as vadias encontraram formas eficazes de justificar o caráter provocador do protesto, o que
equivale a reinscrevê-lo, ao menos parcialmente, numa chave de “seriedade”, em busca de
legitimação. A repetição da narrativa de origem da SlutWalk é um dos principais expedientes
utilizados. Por exemplo, antecipando dificuldades, eu evitava dizer espontaneamente às pessoas
qual era o meu objeto de estudo, e mencionava apenas “o movimento feminista”. Quando me
pediam mais detalhes, era muito comum que ficassem desconcertadas ao ouvir “Marcha das
Vadias”. Eu sentia, então, a necessidade constante de explicar o que era a Marcha, o que fazia
sempre recitando a fórmula “Aquele protesto que começou quando um policial canadense disse
que as mulheres deviam evitar se vestirem como vadias para não serem estupradas”.

Repetido como um mantra em blogs, redes sociais, manifestos e reportagens, esse explicativo era
também acionado pelas vadias em suas conversas com amigos, familiares, mídia e curiosos, como
um dispositivo de justificação. Em suas ações de divulgação, as vadias atribuíam grande
importância a uma comunicação “bem-humorada”, mas que fosse também “didática”. Numa de
minhas primeiras ações públicas na MdV no início do meu trabalho de campo em 2013, eu e Graça
nos voluntariamos para divulgar a Marcha num evento cultural tipo “palco aberto”, que acontecia
mensalmente numa praça da zona sul da cidade. Esse evento entrou na nossa agenda porque era
produzido por Melissa, também organizadora da Marcha. Quando o apresentador-palhaço
anunciou que algumas “vadias” queriam “dar um recado importante”, eu e Graça fomos para o
centro da grande roda formada pelo “respeitável público”.

Graça encenou um flerte com o palhaço, performando uma “vadia”, mas logo o tom ficou mais
sério: recitamos a narrativa de fundação da SlutWalk, dissemos que “nenhuma mulher pode ser
culpabilizada pela violência sofrida em virtude de suas roupas”. No fim do evento, Melissa, que
estava filmando as apresentações, nos disse que não tínhamos sido suficientemente “didáticas”. Era
preciso dar exemplos “fortes”, como o da violência sofrida por “crianças” e por “mulheres que
132

usam burca”, casos que tornariam “evidente” que a justificativa das roupas é somente um embuste
patriarcal. Para as pessoas “entenderem”, às vezes era preciso ser séria, grave, dramática. Espera-
se que o “sério” e o “escrachado” se combinem em doses “corretas” – ou “felizes”, para lembrar
mais uma vez Austin (1962) – para que a comunicação seja eficaz. O acionamento estratégico de
“fórmulas de gravidade” em momentos específicos pelas vadias indica um trabalho constante de
produção simbólica de indignação, que se articulando e se tensionando com a provocação e o
humor, organiza e busca legitimar os sentidos do protesto.

É preciso ressalvar também que o frame de transgressão, os repertórios de humor e a afirmação da


sexualidade não são, de modo algum, estranhos aos movimentos sociais e ao movimento feminista,
ou uma “inovação” da MdV. Táticas de resistência carnavalizada foram identificadas na prática da
capoeira – seu “disfarce” como dança – durante o período escravocrata; na Comuna de Paris de
1871; nas paradas londrinas das Suffragettes no início do século XX; nos grafites dos estudantes
parisienses nas manifestações de maio de 1968; na Radio Alice do movimento autônomo italiano
na década de 1970; no carnaval de 1988 em Wroclaw, Polônia, em que mais de cinco mil pessoas
fantasiadas cantavam “Hocus Pocus” para fazer desaparecer a polícia comunista. Mais
recentemente, a frivolidade tática se popularizou como repertório nos movimentos contra a
globalização neoliberal, a partir da emergência do Exército Zapatista de Liberação Nacional em
1994, com sua “força aérea” de aviões de papel e as parábolas cômicas do Subcomandante Marcos;
no “Carnaval Contra o Capital”, com protestos em diversos países contra o encontro do G8 em
1999; na Batalha de Seattle e seus ativistas, que vestidos de tartarugas, conseguiram paralisar o
encontro da Organização Mundial do Comércio no mesmo ano; com as fadas do Tactical Frivolity
Group, brandindo suas varinhas mágicas e desempoeirando os escudos da polícia com espanadores
durante o encontro do Fundo Monetário Internacional em Praga em 2000; o Medieval Bloc em
Quebec, com suas “bombas” de ursinhos de pelúcia contra o encontro da Área de Livre Comércio
das Américas em 2001; até os ainda mais recentes repertórios eletrônicos de pegadinhas dos
“hacktivistas” do Anonymous (Notes from Nowhere, 2003; Kingsmith, 2016; Olesen, 2007). Os
exemplos abundam.

Entretanto, no que se refere ao movimento feminista, a relação paradoxal entre mulheres e humor
nas culturas ocidentais modernas certamente contribuiu para invisibilizar a sua relação com
repertórios de frivolidade. O mito de que “mulheres não têm senso de humor”, que por muito tempo
133

as excluiu dos cânones da literatura e da dramaturgia de comédia, ainda reverbera hoje94, a despeito
da crescente participação de mulheres humoristas nas artes (Kein, 2015). Considerado uma das
mais altas faculdades intelectuais humanas, o humor é historicamente concebido, em teorias
diversas e no senso comum, como um terreno masculino. “Ser engraçada/o é ser assertiva/o,
agressiva/o e contundente; ou seja, tudo o que uma ‘boa garota’ não deve ser. A capacidade para a
perspicácia [wit] e o humor é inibida nas mulheres desde os primeiros anos de vida pela pressão
social”, afirma Sevda Caliskan (1995, p.52), em seu estudo sobre “humor de mulheres” na literatura
estadunidense. Para serem engraçadas, mulheres precisam violar as expectativas sociais associadas
ao feminino, o que explica por que comediantes mulheres historicamente precisaram degradar a si
mesmas para provocar risos, isto é, parecer feias, esquisitas, assexuadas.95

No campo da política, o uso do humor e da ironia por mulheres que ocupam posições de poder na
administração estatal e transnacional tem sido interpretado como uma forma de se equilibrar na
“corda bamba” desses espaços tão masculinos. Seja para não parecer muito “cerebrais”, “incisivas”
ou “confrontadoras”, seja como estratégia de crítica política e de recusa às expectativas de
feminilidade, ou ainda para construir espaços alternativos para o discurso, o uso da ironia e humor
por essas mulheres é subestimado (Graban, 2014). O mesmo acontece nos estudos sobre
movimentos feministas, onde encontrei poucas referências ao modo como o humor é acionado
como ferramenta política 96. Mulheres feministas em particular são vistas como incapazes tanto de
fazer piada como de rir delas, uma acusação frequentemente acionada como forma de desqualificar
o movimento. Por outro lado, quando utilizam o humor, também são criticadas: “Na minha cabeça,
se ser sexy e engraçada são os dois pilares de um novo movimento feminista, nós podemos fazer
as malas e ir pra casa agora. Em sua essência, o feminismo deve ser zangado. Deve ser zangado
porque mulheres ainda estão sendo feitas de trouxas”, escreveu Ellie Mae O'Hagan no

94
Vide o texto “Why women aren’t funny”, de Christopher Hitchens, publicado na revista Vanity Fair em 2007
(disponível em: https://www.vanityfair.com/culture/2007/01/hitchens200701, u.a 13 de setembro de 2017).
95
Isso parece estar mudando (embora certamente colocando outros dilemas), especialmente na cultura estadunidense,
à medida em que mais comediantes mulheres ganham espaços de protagonismo na TV. Em resposta ao texto de
Christopher Hitchens, citado na nota anterior, Alessandra Stanley entrevista mulheres comediantes famosas nos
EUA, observando que elas “devem ser bonitas e até sexy para conseguir uma risada”:
https://www.vanityfair.com/news/2008/04/funnygirls200804 (u.a. 14 de setembro de 2017).
96
Encontrei, no entanto, várias referências sobre feminismo e mulheres na imprensa (Bastiat, 2003), no humor
gráfico (Crescêncio, 2016), no teatro (Ludec, 2007), na literatura (Silva, 2010), na palhaçaria (à qual foi dedicado um
simpósio temático no Seminário Fazendo Gênero de 2017, que pode ser visto em
http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=148, u.a. em 13 de setembro de 2017)
134

The Guardian, em 201397. Mesmo o uso do humor na MdV foi diversas vezes identificado como
atributo de uma “esquerda festiva”, uma categoria geralmente pejorativa que questiona a
legitimidade de estéticas políticas que envolvem diversão e que, geralmente atribuídas às classes
médias e abastadas, são consideradas “superficiais”. Assim, em sua relação com o humor, o
feminismo têm sido, ele mesmo, objeto de piada e ridicularização, seja por sua suposta sisudez ou
por sua alegada banalidade98. O humor, para as feministas, ainda é uma artimanha ardilosa, de que
ora se diz que vai “longe demais” ora “não longe o suficiente”.

Mesmo assim, gerações de feministas têm lançado mão do humor, ironia e provocação em suas
coreografias de transgressão. Em conversas com feministas experientes, eu fui lembrada, por
exemplo, do recurso à figura da bruxa, recorrente em protestos passados. Vestidas de bruxas,
munidas de vassouras, varinhas mágicas e outros apetrechos, ativistas simbolizavam as
transgressoras de todos os tempos, as primeiras “aborteiras”, detentoras de conhecimentos
proibidos às mulheres, corajosas, agressivas, independentes, bem-humoradas, sensuais. Também o
teatro popular, em especial a técnica do Teatro do Oprimido, foi e é um importante recurso de
humor e crítica do movimento feminista. As Loucas de Pedra Lilás, grupo de teatro feminista
pernambucano atuante há quase trinta anos, presente na MdV de 2013, são apenas um exemplo99.
O movimento Mujeres Creando, da Bolívia, é conhecido por seus programas de rádio cheios de
humor e acidez, em que a leitura de nomes da “lista de pais irresponsáveis” e da “lista de machos
violentos” é parte da programação regular100. As Raging Grannies (algo como Vovós Furiosas)
ficaram conhecidas no final da década de 1980 por seus irreverentes protestos anti-guerra no
Canadá. Contrariando os estereótipos e expectativas associados às mulheres idosas, que as relegam
à invisibilidade, elas usavam roupas coloridas e chapéus “absurdos”, dançavam e cantavam

97
Em inglês: “In my mind, if being sexy and funny are the two cornerstones of a new feminist movement, we may as
well all pack up and go home now. At its core, feminism should be angry. It should be angry because women are still
being taken for a ride”. (Texto disponível em https://www.theguardian.com/commentisfree/2013/feb/26/feminists-
sexy-funny-anger-changes-world, u.a 13 de setembro de 2017).
98
Como me disse Coralina, uma feminista brasileira atuante desde a década de 1970, numa conversa sobre os
possíveis significados de “frivolity” no campo dos movimentos sociais: “Quando se fala em frivolidade, eu sempre
me lembro de uma frase clássica dos esquerdistas dos anos 1970-1980 nos debates sobre feminismo: ‘esse negócio
de sexualidade feminina é uma frivolidade’” (Comentário por escrito na minha página pessoal do Facebook, em
agosto de 2017).
99
Para saber mais sobre a trajetória do grupo, ver Nascimento (2014).
100
Para saber mais sobre o Mujeres Creando, ver entrevista com Maria Galindo, uma das fundadoras do grupo,
disponível em http://revistadr.com.br/posts/maria-galindo (u.a.14 de setembro de 2017).
135

músicas bem-humoradas de protesto, ao mesmo tempo reconhecendo e ressignificando seus corpos


envelhecidos. Em uma de suas mais famosas ações, elas se paramentaram com uniformes militares
de veteranas de guerra e se alistaram para a Guerra do Iraque “no lugar de seus netos”. Como as
forças armadas não podiam recusar voluntários com base na idade, os recrutadores tiveram que
preencher a papelada, enquanto as demais Grannies formavam uma longa fila do lado de fora. A
ação foi replicada em outros países e diversos outros grupos de Grannies foram formados. Em seu
estudo sobre as Vovós canadenses, Roy (2006, p. 143) afirma que “as Grannies sabem que para
ser ouvidas, têm que ser vistas”; essa é a importância de performances criativas de humor que
tomam o corpo como veículo.

Como apontam Facchini e França (2011, p. 21), “parece hoje haver maior preocupação com uma
série de questões relacionadas à sexualidade entre as jovens. É como se o aprofundamento da
incorporação do lema ‘o pessoal é político’ tivesse trazido o ‘dispositivo de sexualidade’ (Foucault,
1977) para o centro da agenda feminista jovem”. No entanto, é importante pontuar, como fazem as
autoras, que a sexualidade já estava presente dos repertórios feministas do passado101. Se hoje a
sexualidade é mais relevante nos protestos do que antes, é também porque – como fruto, entre ouros
fatores, das próprias lutas de gerações de feministas – houve uma mudança na percepção social
sobre o tema, uma condição importante para o lugar de centralidade que ocupa hoje nas agendas
do campo, especialmente entre jovens. As condições históricas e culturais dos anos 1970 e 1980
reprimiam muito mais a sexualidade feminina e interditavam ou dificultavam a sua abordagem
pública. O processo de mudança (nunca linear, claro) da percepção social da sexualidade e corpo
das mulheres é importante para a compreensão da possibilidade mesma de um protesto massivo de
jovens que colocam o desejo e os corpos nus no centro do protesto. A própria nudez, se não
acontecia reiteradamente em protestos públicos no passado, era acionada em espaços restritos como

101
Atualmente, há uma certa retórica política pela qual jovens feministas se autodenominam como “sex-positive” ou
“pró-sexo”, como uma forma de se diferenciar das que supostamente têm uma abordagem mais “conservadora” ou
“moralista” da sexualidade feminina. Não raramente essa diferenciação adquire uma inflexão geracional, em que as
“moralistas” são imaginadas como mais velhas. Esse tipo de distinção política é mobilizada principalmente, por
exemplo, nas disputas acerca da pornografia e da prostituição, dividindo feministas em “sex-positive” – quando
reconhecem a pornografia como expressão legítima, a prostituição como trabalho e as atrizes pornô e prostitutas
como sujeitos do feminismo – ou, contrariamente, em “pró-censura” e “abolicionistas”. Implícita aqui está a
desqualificação de feministas que combatem a prostituição e a pornografia com base na acusação de “moralismo
sexual”. Sem me aprofundar nesse debate ou tomar posição, quero apenas apontar que tais classificações polarizadas
podem acabar por produzir a ideia equivocada de que a “celebração da sexualidade feminina” é um empreendimento
feminista recente, quando ela já estava presente no movimento desde a década de 1970 no Brasil.
136

um dispositivo de transgressão, como nos encontros feministas e no campo da performance


artística. Como afirmou Coralina, feminista atuante desde a década de 1970, as ativistas promoviam
muitas discussões e workshops sobre sexualidade e corpo nos anos de 1970 e 1980. Houve, no
entanto, uma descontinuidade na abordagem e modos de expressão desses assuntos. Segundo
Coralina, a partir da década de 1990, quando o feminismo se institucionalizou e se tornou
“mainstreaming”, houve um “encaretamento” do movimento, e a sexualidade foi preterida. Não
apenas outros temas se tornaram prioritários, como a violência contra mulher e a pobreza, como
também os repertórios de ação se racionalizaram e se profissionalizaram. Ações de advocacy –
defesa e promoção de políticas de gênero – se tornaram hegemônicas. A marca de “irreverência”
do movimento e sua presença física nas ruas perderam a visibilidade que tinham antes.

Assim, quando gerações contemporâneas de feministas defendem um feminismo “irreverente”


(Alvarez, 2014b), elas estão se contrapondo a certos setores e repertórios que se tornaram
predominantes a partir dos anos de 1990, e não a “todo o movimento”. Eu não me proponho a
explorar aqui como e quais coreografias de provocação foram utilizados por diferentes gerações de
ativistas brasileiras. Quero enfatizar apenas que o feminismo está muito bem familiarizado com
repertórios de transgressão, que embora não tenham sido utilizados de modo consistente através
das diferentes gerações, setores e fluxos do movimento, não são, de modo algum, inovações de um
“novo feminismo”. É o seu uso em protestos contra a violência sexual e a violência contra a mulher
que é incomum e controverso, porque contraria as noções sobre vitimização historicamente
mobilizadas pelas feministas.

Assim, como um “evento crítico” (Benski, 2005), a MdV produz uma violação simbólica e concreta
de práticas e definições socialmente aceitas, em dois níveis: no nível da cultura do senso comum,
desafia regras de gênero e sexualidade que conformam imagens de vítima, da política e do espaço
público; no nível da cultura dos movimentos sociais, a MdV diverge dos enquadramentos já
estabelecidos nos movimentos feministas anti-estupro/anti-violência.

Mas como repertórios de transgressão interpelam o público comum, a imprensa e outros campos
de movimentos sociais? A transgressão tem “limite”? Quais são esses limites, quem os determina
e por que? Quais critérios de classificação tornam um repertório de transgressão mais ou menos
legítimo que outro? Que outras mensagens e estéticas pode o corpo-bandeira assumir? Essas
questões emergiram para mim a partir do ato com santas e crucifixos na MdV-Rio de 2013. Como
137

a Marcha, este ato também acionou repertórios de transgressão, mas gerou grandes conflitos entre
as vadias, a partir de sua repercussão negativa nas mídias. Passo a tratar deste caso na próxima
sessão para refletir sobre diferentes performatividades no protesto e as lógicas de enquadramento
que mobilizam.

2.3. “Corpos-bomba”

Cena: O Coletivo Coiote na MdV

No dia do protesto, eu só vi o final da performance das santas. Quando


cheguei perto, as vadias já estavam anunciando a partida da Marcha.
Minhas memórias sobre esse ato, como de resto do protesto como um todo,
são uma mistura indiscernível entre o que vi in loco, o que ouvi depois das
vadias, e o que aprendi com vídeos, fotos e textos que circularam na
internet. Tento reconstituir, a partir desses fragmentos, uma descrição mais
detalhada do ato. Coletivo Coiote é o grupo que fez a performance,
composto naquele dia de três pessoas. O homem que batucava no carrinho
de lixo estava de bermuda ou calça, sua camisa cobria o rosto e a parte
superior do tronco. No centro do cordão de isolamento, a mulher e o outro
homem também cobriam os rostos com camisas, apenas os olhos à mostra,
como os black bloc nos protestos recentes das Jornadas de Junho. Eu
classificaria os homens como negros, embora o que estava nu pudesse
também ser classificado como “pardo”. A mulher é mais clara que eles,
mas não inequivocamente branca. Os corpos nus do casal traíam sua
juventude de 20 e poucos anos. Tinham muitas tatuagens, usavam coturnos
militares e, como muitos participantes da Marcha, tinham inscrições a tinta
na pele: “dar o cu é uma delícia”, dizia o corpo dele, “Estado não manda
aqui”, o dela. Pendendo de cordas finas amarradas em torno das cinturas,
estavam seus “tapa-sexos”: um grande crucifixo, pesado demais, ameaçava
138

cair e revelar a vagina dela; um quadro oval com a imagem de Cristo tapava
o pênis dele e, atrás, como uma continuidade da dobra que separa suas
nádegas, um crucifixo pequeno completava o figurino.

No chão, colocam imagens de santas e crucifixos de diversos tamanhos. Os


objetos me parecem verossímeis: feitos de gesso e madeira antiga, talvez
tivessem mesmo habitado igrejas. Durante todo o ato, cantam músicas de
protestos do Anarcofunk102, ao ritmo das batucadas ritmadas do terceiro
integrante. Cantam a todo fôlego, numa espécie de mantra que prepara seus
corpos para a ação. Enquanto ele canta uma música e espalha os crucifixos
no chão com os pés, chutando-os displicentemente, ela se agacha na cabeça
de uma grande imagem de Nossa Senhora Aparecida. Introduzindo-a em
sua vagina, ela sobe e desce seu quadril, transformando a santa em dildo.
O cordão de isolamento, que até então tinha buracos, começa a ser
reforçado por integrantes da comissão de segurança e voluntárias, que se
esforçam para não deixar ninguém entrar. Ele começa a rebolar até o chão,
parodiando o movimento dela. Ainda em cima da santa, ela começa a cantar
“Chama a revolta, ela não senta, ela só quebra, quebra todas as regras,
quebra com a polícia... ela só quebra” – e então ela se levanta e atira a
imagem no chão com força, quebrando-a, sob aplausos e ovações de
observadores. Ele pega os pedaços grandes que ficaram no chão, os atira
novamente e pisa na poça de cacos que se formou. Ela agita no ar outra
santa de tamanho pequeno, exibindo-a, ridicularizando-a, e também a joga
no chão. Eles cantam “La policia não te protege, só te vigia”103, enquanto
chutam os cacos e crucifixos.

102
Anarcofunk é um movimento musical que surgiu no Rio de Janeiro em 2011, na Ocupação Flor do Asfalto
(Vergara, 2015), uma ocupação no centro da cidade, que existiu entre 2006 e 2011. Foi desalojada durante o
processo de “revitalização” da área do cais do porto para a construção do “Porto Maravilha” (ver
https://pelamoradia.wordpress.com/?s=flor+do+asfalto, u.a. 14 de Agosto de 2017). Com agudo senso crítico a
respeito desta onda recente de “reformas” urbanas, as músicas do Anarkofunk mencionam expressões como “PAC –
Processo de Aceleração de Chacinas”, “UPP pacifica pra reprimir, reprime pra matar”, “A Copa mata”, “Gentrifica o
extermínio, higieniza o genocídio”.
103
Esta música e a anterior podem ser ouvidas respectivamente em https://soundcloud.com/anarkofunk/contra-la-
policia e https://soundcloud.com/anarkofunk/chama-a-revolta-da-terra (u.a. 14 de agosto de 2017)
139

Em um vídeo disponível no Youtube104, reconheço algumas organizadoras


se entreolhando, cochichando, aparentemente tensas, possivelmente
tentando decidir como lidar com o ato. Ele se senta no chão, joga o corpo
para trás, apoia-o sobre sua cabeça e ombros, levanta o quadril para cima,
joga as pernas para trás, apontando o ânus para o alto. Ela pega um
crucifixo do chão, veste-o com uma camisinha, se inclina sobre o corpo do
colega e introduz o objeto em seu ânus. As imagens do vídeo agora
balançam muito, já há muitas pessoas em volta do cordão. Uma das
organizadoras pergunta ao terceiro integrante “quanto tempo deve durar a
performance”, ao que ele responde “Sei lá! Pergunta pra eles!” e volta a
batucar. O casal continua com o ato de sexo anal no centro da roda. Outra
organizadora se aproxima deles, cutuca as costas da mulher e se retira antes
de dizer qualquer coisa, rindo nervosamente ao ver o que faziam.
Reconheço vozes de organizadoras em off dizendo “a Marcha tem que sair”
e “Fala pra ele acabar, eu não quero mais ver isso, não! [risos]”. A Marcha
começa a andar; as integrantes do cordão tentam acompanhar a multidão
enquanto se esforçam para manter o cordão fechado. O casal já está de pé
novamente e o vídeo termina. Seu ato está prestes a terminar. O cordão vai
se desfazendo, o casal chuta os fragmentos de imagens no chão, outras
pessoas os imitam. O ato é então dissolvido na Marcha, que segue seu
rumo.

O ato do Coletivo Coiote repercutiu intensamente na imprensa e redes sociais. Ainda na noite de
27 de julho 2013 (data do protesto), enquanto estávamos comemorando na escadaria do Selarón, o
Jornal Nacional, um dos principais telejornais do país, exibiu uma breve reportagem105 sobre a
Marcha, que continha basicamente imagens da quebra das santas e mencionava a “troca de
hostilidades” entre peregrinos e manifestantes. Mais cedo, quando a Marcha ainda estava em curso,

104
https://www.youtube.com/watch?v=1peVY3moOyI&spfreload=10&bpctr=1501196124 (u.a. 27 de julho de 2017)
105
Pode ser vista em http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/07/marcha-das-vadias-reune-dois-mil-
manifestantes-no-rio-de-janeiro.html (u.a. 27 de julho de 2017).
140

o jornal O Globo publicou uma matéria106 online intitulada “Manifestantes quebram imagens sacras
na praia de Copacabana”, cuja principal foto capta o momento em que os dois ativistas atiram as
imagens ao chão, imagem que vi reproduzida em dezenas de outras reportagens, blogs e
comentários de Facebook (ver figura n. 11).

Figura n. 11 – Coletivo Coiote quebrando imagens católicas

Enquanto o Jornal Nacional e O Globo omitiram os atos sexuais com os objetos católicos (ver
figura n. 12), o blog do jornal O Povo assim descreve o ocorrido:

“Quebraram imagens sacras, símbolos da fé católica, estamparam ícones de Cristo


nas partes íntimas, puseram uma camisinha na imagem da Nossa Senhora Aparecida e
chegaram a cometer a aberração de se masturbarem com um crucifixo em pleno espaço
público à vista dos peregrinos. O movimento foi encabeçado pela Marcha das Vadias,

106
Está disponível em https://oglobo.globo.com/rio/manifestantes-quebram-imagens-sacras-na-praia-de-copacabana-
9220356 (u.a. 27 de julho de 2017).
141

uma organização feminista ligada à defesa da pauta LGBT. Na ocasião, a postura dos
católicos foi de resignação e oração pelos manifestantes que abusaram da liberdade com
um ato de ofensa. O deputado carioca Flávio Bolsonaro encaminhou ao Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro representação exigindo identificação e
responsabilização criminal dos autores dessa agressão a todas as religiões e seus
seguidores, segundo informou o blog do parlamentar, único a se manifestar de forma
contundente sobre o assunto.” (Blog do Jornal O Povo, em 4 de Agosto de 2013, grifos
originais)107

O autor do texto incentiva ainda que as pessoas denunciem o caso ao Ministério Público, além de
publicizar os nomes, telefones e perfis do Facebook do casal que integrava o Coletivo Coiote e de
algumas organizadoras da MdV. A ideia de que um “crime” havia sido cometido ganhou força. O
artigo 208 do Código Penal, que prevê punição a quem “vilipendiar publicamente ato ou objeto de
culto religioso” era citado em diversos textos e mídias.

Figura n.12. – Coletivo Coiote faz penetração anal com cruxifixo.

Nenhuma das vadias esperava tamanha repercussão. Na noite do protesto, comemoramos o que
todas consideramos o “sucesso” da Marcha: a grande quantidade de gente; a “irreverência” e a
“energia” do protesto; a ausência de episódios graves de violência por parte da polícia e
observadores, um perigo que sempre preocupa as organizadoras, ainda mais em meio a um mega-

107
Disponível em http://blog.opovo.com.br/ancoradouro/integrantes-da-marcha-das-vadias-quebraram-imagens-e-
realizaram-sacrilegios-na-jmj/ (u.a. 27 de julho de 2017)
142

evento católico, altamente militarizado. Muitas nem sequer tinham visto o ato com os objetos
sacros, envolvidas com outras atividades que ocorriam simultaneamente em diferentes locais da
grande aglomeração. Mesmo quando Keila percebeu, durante a comemoração, que crescia a
comoção negativa nas redes sociais, ninguém imaginou a proporção que tomaria. Eu e as outras
somente compreendemos o que se passava quando, no dia seguinte, algumas vadias relataram que
seus números de telefones estavam sendo divulgados nas redes e que estavam recebendo ameaças
de morte e estupro. Comentários com críticas, xingamentos e ameaças não paravam de chegar na
página da Marcha das Vadias no Facebook. Por outro lado, começavam a aparecer também algumas
manifestações de apoio ao ato.

O ato do Coletivo Coiote é um caso muito frutífero para refletir sobre os usos do corpo-bandeira
no protesto, bem como seus limites, tais como percebidos por diferentes atores. Como veremos, a
performance das santas, expressão com que a maioria das vadias se referia ao ato, introduziu um
repertório emocional e corporal que simultaneamente dialoga e se choca com os repertórios
conhecidos da MdV. Mas a tensão entre os dois repertórios extrapola o evento da Marcha e se
insere no contexto político do país em 2013, em especial das Jornadas de Junho, em que diferentes
atores disputavam sobre a legitimidade de certas formas de manifestação política. Assim, o ato
mobilizou um debate que envolveu um público amplo, e não apenas os participantes da Marcha e
seus interlocutores diretos. Integrantes de diversos movimentos sociais se posicionaram,
mobilizando noções que já circulavam nos debates públicos sobre as Jornadas e que ganhavam
ainda novos desdobramentos agora. Do lado de dentro da Marcha, no processo de tomada de
decisão sobre como lidar com estas repercussões amplificadas do ato e com as ameaças às vadias,
conflitos internos emergiram e velhas disputas foram reforçadas, levando à saída de algumas
integrantes.

Para reconstruir esse processo, começo apresentando o Coletivo Coiote, que fez o ato com as
santas. Como há poucas informações sobre o grupo na internet, me utilizo dos trabalhos de Andiara
Pereira (2017) e Camile Vergara (2015) para descrevê-lo. Ambas o definem como um “grupo
nômade”, que vai agregando colaboradores ao longo de seus trajetos, e que desde 2012 realiza
“ações estético-políticas de combate ao capitalismo cisheterocentrado” (Pereira, 2017, p.14). Em
espaços públicos, bares, festas e manifestações, fazem uso de repertórios corporais que envolvem
nudez, escatologia (como passar fezes e urina em seus corpos), modificação corporal (como costura
143

da boca e genitais, escarificações, queimaduras) e orgias públicas, onde performam atos de sexo
homossexual, masoquismo, sadismo e introdução de objetos incomuns nos orifícios sexuais. Em
entrevista à Vergara, duas integrantes do coletivo declararam:

Nos rebelamos contra opressões vindas do colonialismo e capitalismo, somos aliadas aos
oprimidxs de gênero, pessoas não aceitas socialmente, radicalizadas, marginalidades
extremas, corpos periféricos não generalizados, corpos sujos e demonizados pelas
instituições castradoras. Pensando em guerra de classes, descolonização, morte ao
patriarcado e esclarecimentos sobre os privilégios que oprimem a marginalidade a qual
somos impostas, como a horizontalização pode ser uma cilada, etc. Queremos a quebra
total, colamos com a galera da rua, pensamos em fortalecimentos afetivos dentro da
margem, somos todas korpos-bomba! (Vergara, 2015, p.121)

E sobre o ato na Marcha das Vadias, um membro do Coiote afirmou:

A performance que rolou na Marcha das Vadias em 2013, enquanto o Papa Francisco veio
ao Brasil, foi uma ação necessária. A Igreja é castradora, colonizadora, assassina. Nos
impressionou muito que nada estivesse sendo feito, em termos de ação direta ou algum
protesto durante as marchas do JMJ ou a fala do Papa. Enfim decidimos fazer a mulher
santificada, a castração dos nossos desejos, a caça às bruxas, o massacre aos povos
originários. (Vergara, 2015, p.110)

As autoras analisam as ações do Coiote sob a categoria de “pornoterrorismo”. Ações


pornoterroristas produzem “choques estéticos” que buscam subverter os códigos sociais que
hierarquizam corpos e regulam sua circulação. Para tanto, valem-se de uma estética da crueldade e
da violência – imagens de excesso, destruição, sujeira e dor – que incita no público um sentimento
análogo ao terror, de profunda repugnância. Por meio de atos corporais viscerais, os sujeitos
engajados no pornoterrorismo reivindicam o lugar de abjeção que lhes é imposto, para, de posse
desse lugar “monstruoso”, destituir o poder que lhes subjuga. Pereira (2017, p.18-19) propõe que
o terror se move simultaneamente entre a recusa, porque repele poderes hegemônicos – “a Igreja
castradora”, dizem os Coiotes no trecho acima – e o diálogo, porque afirma outras discursividades,
performatividades e constituições de si – os “fortalecimentos afetivos dentro da margem”.

O corpo é o principal locus de ação no pornoterrorismo. Ao profanar o corpo, minando suas


próprias formas de resistência, profanam-se também as fronteiras sociais que gerenciam os corpos:
entre público e privado, sagrado e profano, desejável e repugnante, interno e externo. Como
144

argumenta Nathalia Gonçales (2017)108 essas fronteiras asseguram a própria impermeabilidade,


coerência e estabilidade dos contornos corporais produzidos pela matriz heterossexual. Embaralhá-
las significa também torcer o próprio sentido de violência: se a Igreja violenta pessoas, seus
símbolos agora são deliberadamente violentados, rebaixados a dildos, reformatados para o prazer
e o gozo impenitente dos atores, e depois destruídos. Como na MdV, há aqui uma produção do
“excesso” corporal: a nudez pública, a exposição visceral das partes “baixas” e internas do corpo,
a penetração das partes sexualizadas e sexualizáveis por objetos externos, o canto enérgico das
músicas de protesto, o arremesso vigoroso dos objetos. Mais do que um corpo grotesco, os coiotes
produzem um corpo “monstruoso” (Pereira, 2017), que é, acima de tudo, ambivalente: por um lado
é vulnerável à Igreja, à polícia, aos fotógrafos, à aspereza dos objetos que o penetra; por outro,
recusa o lugar de vitimização ou passividade, inscrevendo-se num lugar de agência que é definido
pela capacidade de violentar símbolos e fronteiras sociais.

Tanto Vergara como Pereira enfatizam que, embora se apropriem de linguagens artísticas, os
Coiotes recusam o título de “artistas”. Se percebem, antes, como provocadores que fazem “ação
direta” no intuito de evidenciar e quebrar as normas sociais. Suas próprias vidas cotidianas se
confundem com suas ações políticas, borrando as fronteiras entre o ordinário e o extraordinário,
vida e arte. Recusam galerias e museus; preferem atuar no espaço público. Para Pereira (2017, p.14
e p.20), o rótulo de “arte” (e dentro dele, o de “performance”) despolitiza tais movimentos de
resistência política, pois, ao achatá-los sob a fórmula “isto é arte”, torna “possível” aquilo que têm
de execrável, neutraliza a confrontação pretendida, domestica o desconforto produzido.

Justamente, inserir o ato com as santas no domínio da “arte” foi a estratégia encontrada pelas vadias
e seus apoiadores para legitimá-lo. Este é o post publicado ainda no dia do protesto na página da
MdV no Facebook por Keila, em resposta às críticas e ataques:

Informe: A performance que envolveu quebra de imagens de santas na Marcha das Vadias
hoje não foi programada pela organização deste evento. Tínhamos o compromisso com a
segurança das pessoas, e fizemos tudo o que esteve ao nosso alcance para garantir isso,
seja de quem estava apenas marchando, seja de quem estivesse performando. Acreditamos
e defendemos a liberdade de expressão artística, religiosa, de consciência, de pensamento,
de crítica, de vestimenta, e todas as liberdades civis individuais e coletivas garantidas pela
Constituição Cidadã de 1988. Entendemos que a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro em

108
Em seu trabalho, Gonçales (2017) analisa performances que chama de “pós-pornô”, e que de modo semelhante às
ações do Coiote, profanam manifestações corporais da “heterossexualidade”, da “branquitude”, da “colonialidade” e
da “tradição cristã”.
145

2013 foi um total sucesso! Agradecemos a todas as pessoas que construíram esta marcha,
da primeira reunião de organização até o último momento de dispersão hoje, incluindo
todas as performances, todos os cartazes, todos os coletivos, partidos, sindicatos,
movimentos que ocuparam as ruas hoje para dizer que JÁ BASTA DE VIOLÊNCIA
SEXUAL, VIOLÊNCIA DE GÊNERO, MORTES EVITÁVEIS DE MULHERES QUE
ABORTAM E DE INTERFERÊNCIA RELIGIOSA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS QUE
SÃO PARA TODAS AS PESSOAS, DE TODAS AS CRENÇAS, RAÇAS, CORES,
DESEJOS E FORMATOS. Convidamos a todas e todos para que compartilhem aqui seus
relatos e experiências com a Marcha de hoje, para que o Brasil possa saber quão maior foi
a nossa marcha, para além das imagens de gesso quebradas. (Post na página Marcha das
Vadias do Rio de Janeiro, Facebook, 27 de julho de 2013, grifos originais)109

A afirmação mais central do informe é classificação do ato como performance110, por oposição à
violência. Ao ser nomeado pela Marcha como performance, definida aqui como “expressão
artística” e “de crítica”, o ato ganha inteligibilidade e legitimidade, pois é alocado no campo
semântico da cultura e dos direitos, que compõem os repertórios típicos dos movimentos sociais.
Nesse caso, fez-se necessário demarcar que o qualificativo de violência não se aplica ao ato; deve
ser atribuído apenas à “violência sexual e de gênero” e à “interferência religiosa nas políticas
públicas”, por sua vez combatidas pelas participantes da MdV.

A antinomia entre as categorias performance e violência, que permeia todo debate gerado pelo ato
do Coiote, delineia uma disputa pela inteligibilidade e legitimidade de distintos repertórios de
protesto, cujos sentidos se referem ao contexto político global e nacional recente. Os protestos que
ganharam visibilidade a partir de 2011, como a Primavera Árabe, os Indignados da Espanha e o
Occupy Wall Street, se utilizaram de repertórios de “desobediência civil”, como a ocupação e
bloqueio de espaços públicos e privados, não pagamento de transporte público e impostos,
barricadas e destruição de propriedades privadas, cujo caráter “pacífico” ou “violento” foi um
constante objeto de avaliação e dissenso entre manifestantes e outros atores (Martínez, 2015). Em
especial, as imagens dos embates entre forças do Estado e manifestantes, transmitidas ao vivo pelas
redes sociais e pela TV, alimentaram discussões sobre as fronteiras entre violência, protesto e
autoridade. No caso das Jornadas de Junho no Brasil, vimos imagens na TV de policiais
paramentados, bombas de gás, canhões de água, armas de borracha, veículos blindados, cavalos e

109
Disponível em https://www.facebook.com/MarchaDasVadiasRioDeJaneiro/posts/468419556586543 (u.a. 27 de
julho de 2017)
110
Grafada em itálico, performance se refere ao uso êmico da palavra, que a inscreve no campo das artes, tal como o
empregaram vadias e outros atores relevantes nesse episódio do ato do Coiote. Quando quero me referir à noção de
performance tal como utilizada por teóricas, para denotar ações encorporadas variadas (não necessariamente
artísticas), não uso marcas tipográficas.
146

escudos; multidões correndo, pessoas espancadas, feridas, presas, revidando com pedras, paus,
bombas e máscaras improvisadas. Enquanto as grandes mídias desqualificavam os manifestantes,
vídeos e relatos online de “midiativistas” mostravam práticas recorrentes de brutalidade policial,
com prisões arbitrárias, provas forjadas, policiais à paisana insuflando violência, emprego
injustificado e desproporcional da força. Assim, as imagens dos protestos tornaram-se armas de
uma disputa discursiva bastante polarizada em torno da categoria violência.

Ainda que os participantes das Jornadas de Junho tenham criado performances políticas híbridas a
partir de diferentes tipos de repertórios (Alonso e Mische, 2016), reproduziu-se, com ajuda da
grande mídia brasileira, uma narrativa polarizada e moralizante que dividia manifestantes entre
“pacíficos” e “vândalos”. Eram classificados como “pacíficos” os que empregavam repertórios de
protesto considerados “legítimos”, como as passeatas, enquanto aqueles que se utilizavam de meios
enquadrados como “violentos” – como uso de máscaras pretas, ataques à polícia, quebra de
vidraças de bancos, queima de ônibus e de sacos de lixo, pixações e danos a prédios do Estado –
eram chamados de “vândalos” e “baderneiros”. Entre manifestantes e apoiadores dos protestos,
também houve quem condenasse o uso de repertórios de destruição e violência, mas setores
autonomistas das Jornadas, como notam Alonso e Mische (2016, p.15) eram receptivos ao “uso da
violência como uma arma política”, em especial às táticas black bloc.

Esse debate se acirrou a cada um dos grandes protestos de junho de 2013, e se estendeu ao longo
dos protestos menores, porém numerosos, que adentraram o mês de julho nas principais cidades do
país111. Um exemplo das disputas em torno de repertórios de destruição e violência foi o episódio

111
No Rio de Janeiro houve muitos protestos em julho de 2013 (e além). Alguns deles, em virtude do embate entre
policiais e manifestantes, eram nomeados como “batalhas” pelas mídias alternativas. Cito alguns, para que o
contexto político local fique mais palpável: no dia 4/11, há a “Batalha da Aristides”, em que a polícia reprime
manifestantes que acampavam desde junho em frente à casa do então governador Sérgio Cabral, próxima à rua
Aristides Espínola, no Leblon; no dia 11, há a “Batalha de Laranjeiras”, ao fim do Dia Nacional de Lutas, organizado
por sindicatos, com a presença de diversos setores sociais; em 17/11, três dias depois do desaparecimento do pedreiro
Amarildo após ser detido por policiais da UPP da Rocinha, houve um protesto nesta favela que se juntou depois à
“Batalha do Leblon”, em que a depredação da loja Toulon ganha destaque na grande imprensa; no dia 22/7, em
virtude da chegada do papa Francisco para a JMJ e sua recepção por autoridades na sede do Governo do RJ, diversos
setores protestam nas imediações do Palácio Guanabara, e um Beijaço entre pessoas do mesmo sexo, inclusive várias
vadias e colaboradoras, é realizado em frente a uma igreja próxima; no dia 25/7, há mais um protesto no Leblon,
conhecido como a “Missa de sétimo dia dos Manequins da Toulon”; no dia 26/7, véspera da MdV, black blocs
protestam em frente ao palco da JMJ. Para um relato detalhado das Jornadas de Junho (e julho), do ponto de vista de
um manifestante identificado com os setores autonomistas dos protestos, ver a série de reportagens publicadas no
VICE, um grupo de mídia global focada em jovens: https://www.vice.com/pt_br/article/vv4bza/ta-putinho-reclama-
com-o-papa, u.a. 14 de setembro de 2017.
147

da queima dos manequins da loja de roupas Toulon, em 17 de julho de 2013, no Rio de Janeiro, a
apenas dez dias da MdV, cujos desdobramentos afetaram as repercussões do ato do Coiote. Durante
um escracho112 em frente à casa do então governador do estado do Rio, Sérgio Cabral, no Leblon,
um dos bairros mais ricos da cidade, houve dura repressão policial, com diversas pessoas presas e
feridas. O protesto se estendeu pela madrugada, quando black blocs atacaram a fachada de um
prédio da Rede Globo, a vidraça de um banco, destruíram vitrines e saquearam lojas, entre elas, a
Toulon, cujos manequins foram incendiados. No dia seguinte, a grande mídia enfatizou o “rastro
de destruição” deixado pelos “vândalos” e a indignação dos comerciantes e moradores. Uma
reportagem no G1, portal de notícias da Rede Globo, entrevistou o dono da marca:

"Eu mesmo estou aqui emocionado, cumprindo esse dever doloroso [orientar funcionários
a colocar portas improvisadas na fachada da loja]. Foi uma violência sem tamanho com
uma marca que tem 43 anos de Rio de Janeiro, DNA carioca e identidade Rio", disse,
preparando-se para ir à 14ª DP (Leblon), registrar a ocorrência. Abordado a cada minuto
por moradores indignados, [o dono da marca] disse que só podia agradecer a solidariedade.
"Estamos recebendo muito carinho", disse. (Trecho da reportagem “Dono de loja
depredada em protesto no Rio chora e desabafa: ‘maldade’”)113

Na semana seguinte, em 25 de julho, houve novo protesto perto da casa de Sérgio Cabral, divulgado
através do Facebook pelo grupo “Black Bloc RJ”, sob o irônico nome de “Missa de Sétimo Dia dos
manequins da Toulon” e a seguinte descrição:

Vamos nos reunir para homenagear os manequins queimados, pois são mais valiosos do
que as pessoas que foram assassinadas na Maré. Viva o falso moralismo! Pela morte dos
manequins. Pelas vítimas da Maré. Pec 300. Desmilitarização da PM. Impeachment do
Sergio Cabral. Contra a quebra de sigilo na internet imposta pelo Cabral.114

Nesse episódio, como em diversos outros do ciclo de protestos de 2013, o caráter “violento” das
ações ora é recebido com indignação, ora é justificado como ato de “resistência” e como “reação

112
Escracho é um tipo de repertório dos movimentos sociais que consiste em atos de humilhação pública. Na
Argentina, são comuns os escrachos de militares da ditadura, em que manifestantes vão à residência dos generais e
denunciam sua participação em práticas de tortura e desaparecimentos forçados. Nas MdV, houve escracho a
homens acusados de assediar mulheres que participavam dos protestos. Uma das táticas de escracho usadas nas
marchas cariocas consistia em uma integrante da “comissão de segurança” se posicionar ao lado do “assediador”
com um cartaz onde se via uma seta apontando para o homem e a frase “Tem um machista aqui”.
113
Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/07/dono-de-loja-depredada-em-protesto-no-rio-
chora-e-desabafa-maldade.html (u.a. 17 de agosto de 2017)
114
Página do evento disponível em https://www.facebook.com/events/535649783149398/ (u.a. 17 de agosto de
2017). O texto alude ao assassinato de mais de dez pessoas pelo BOPE no complexo de favelas da Maré, em 24 e 25
de junho de 2013, e à criação da Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações
Públicas, que previa a quebra de sigilo telefônico e de internet de manifestantes.
148

do oprimido”, enquanto as ações repressivas do Estado são qualificadas como “criminalização dos
movimentos sociais” por parte de manifestantes e apoiadores115. Ivana Bentes (2013), por exemplo,
argumentando em defesa dos black bloc, afirma que suas ações são menos uma “destruição do
patrimônio”, como na narrativa da grande mídia, do que de uma “guerrilha semiótica”. Como os
alvos preferenciais dos black bloc não são quaisquer bens, mas aqueles tomados como ícones do
“poder” e da “opressão” do capital e do Estado (Vergara, 2015), seus atos de violência se abrem a
uma ressignificação moral positiva.

Em suma, as disputas políticas em jogo nos protestos de 2013 foram travadas em diversos planos,
inclusive no plano discursivo, onde um léxico polarizado povoou os conflitos116. “Pacíficos e
“vândalos”, “coxinhas” e “petralhas”, “fascistas” e “libertários”, “conservadores” e “progressistas”
eram categorias com as quais pessoas e grupos rotulavam uns aos outros. Os repertórios da MdV e
do Coletivo Coiote tanto foram capturados por esses enquadramentos discursivos como, ao mesmo
tempo, desdobraram-nos em inflexões de gênero, sexualidade e religião.

Somente o informe postado por Keila na página da MdV-Rio no Facebook teve 923 comentários.
A maioria classificava o ato com objetos católicos como um ato de violência e, portanto,
ininteligível e ilegítimo como estratégia política. “Agressão”, “desrespeito” ou “intolerância
religiosa” foram qualificativos recorrentemente utilizados. Entre críticas mais articuladas e ataques
raivosos – como, por exemplo, “Lixo!” e “Vocês têm que ser presas, piranhas, putas, sem valor” –
é difícil distinguir os que sempre rejeitaram a MdV dos que a condenaram especificamente por
causa da performance das santas. Preferi selecionar abaixo alguns exemplos que me parecem se
enquadrar no segundo caso, pois ao criticarem especificamente o ato com as santas, iluminam
lógicas de contraste entre diferentes repertórios de transgressão:

115
A frase “Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”, que opera esta ressignificação, foi
muito citada em blogs, canais de notícias e perfis de redes sociais autoidentificados com setores das “esquerdas”, que
ora a atribuem a Malcolm X ora a Paulo Freire. O argumento da criminalização dos movimentos evoca a memória da
ditadura civil-militar (1984-1985) e é sinalizado com políticas contemporâneas, como os gastos sistemáticos do
poder público com armamentos e o decreto do governador do Rio de Janeiro, de 22 de julho de 2013, que criou a
Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas, que previa a quebra de sigilo
telefônico e de internet sem necessidade de autorização judicial. A aprovação, em março de 2016, da Lei Anti-
Terrorismo pela então presidente Dilma Roussef foi interpretada pelos movimentos sociais como a concretização
mais recente desse processo de criminalização.
116
Sobre esse processo de polarização política sedimentado pelas Jornadas de Junho, ver Bringel e Pleyers (2015).
149

Sempre fui a favor da luta contra a violência contra a mulher, mas depois dessa afronta
desnecessária que houve ontem, me decepcionei demais... Intolerância religiosa,
violência, vandalismo, falta de respeito com quem pensa diferente... horrível... SOU
MULHER e essa marcha não me representa mais...
Se igualaram aos intolerantes religiosos que tanto abominam. Fora que esteticamente não
ficou bonito... Ainda prefiro o beijaço. Haha
Queridas vocês dançaram nessa, deram um tiro no pé... o povo tá horrorizado. Vcs
mexeram com a fé das pessoas. ADEUS!!!!!!
(Comentários de três pessoas na Página da MdV-Rio no Facebook, no dia 28 de julho de
2013. Pontuação e grifos originais.)117

Esses comentários indicam que o ato do Coletivo Coiote feriu sensibilidades morais, políticas e
estéticas, não apenas de setores “anti-feministas” como também entre feministas e simpatizantes
da MdV, religiosas ou não. O acionamento recorrente da categoria de acusação “intolerância
religiosa” indica que a ação foi vista como uma forma irremediável de “vandalismo”, além de
qualquer possibilidade de positivação moral. Como argumenta Renata Menezes (2017), para
pessoas religiosas, a profanação e destruição de objetos sacros não foi percebida apenas como um
ataque a “estátuas de gesso”, mas a imagens que, ao presentificar a coisa simbolizada, tornam-se
coisas vivas. Entretanto, o fato de que a categoria “intolerância religiosa” tenha sido acionada
também por pessoas não-religiosas indica sua penetração social como construto político118.

Foram recorrentes as comparações entre o ato do Coletivo Coiote e eventos críticos agenciados
nesse processo de construção social da “intolerância religiosa”, como o episódio do “chute da
santa”, em que um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus chutou uma imagem de Nossa
Senhora Aparecida em um programa de TV em 1995, e os recorrentes ataques de neopentecostais
a terreiros e membros de religiões afro-brasileiras. Menezes (2017) notou que a noção de

117
Disponível em https://www.facebook.com/MarchaDasVadiasRioDeJaneiro/posts/468419556586543 (u.a. 27 de
julho de 2017).
118
Redes de movimentos sociais, organizações da sociedade civil, lideranças de diversas denominações religiosas e
setores da administração estatal têm construído a noção de “intolerância religiosa” por meio da promoção de
políticas públicas, leis e ações que tipificam e criminalizam atos de “desrespeito” às religiões, promovem formas de
prevenção, regulamentam o atendimento a “vítimas”, organizam manifestações públicas etc. Um marco da
institucionalização do termo como categoria política no país foi a aprovação da Lei nº 11.635 em 2007, que criou o
Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado a cada dia 21 de janeiro. Desde 2008, Comissões de
Combate à Intolerância Religiosa vêm promovendo nesta data “Caminhadas em Defesa da Liberdade Religiosa”, que
no Rio de Janeiro integram o calendário político anual da cidade, e acontecem, como a MdV, na Praia de
Copacabana. Ao longo desse processo de construção política, a noção de “intolerância religiosa” deixa de remeter
mais especificamente às religiões minoritárias, e passa a ser acionada também (junto com “liberdade religiosa”) no
repertório cristão hegemônico.
150

“intolerância religiosa” foi bastante mobilizada por feministas negras nas redes sociais para criticar
o ato. É possível que suas reprovações estivessem previamente informadas pelas já conhecidas
críticas de mulheres negras às implicações raciais do termo vadia, mas isso não explica tudo. Como
observa Menezes (2017, p. 10), o ato com as santas fez com que a pauta feminista fosse “tensionada
pela questão religiosa e por uma nova categoria política acusatória, ‘intolerância religiosa’, aí
colocada em operação”.

Mesmo feministas que recusaram ou hesitaram em usar tal classificação, criticaram o ato por sua
suposta “ineficácia política”. Argumentaram que a despeito de sua duração de seis horas, sucesso
de público e diversidade de expressões, a Marcha foi reduzida pela grande mídia a um único ato, o
que afastou possíveis aliadas, gerou conflitos entre feministas e resultou em ameaças a vadias e
Coiotes. Neste tipo de avaliação, as críticas intrínsecas ao ato não são centrais, mas suas
consequências, que só podem ser conhecidas a posteriori, no processo de disputas ao longo do qual
a transgressão é produzida enquanto tal (Menezes, 2017). Mainá, advogada feminista, militante do
Setorial de Mulheres do PSOL-RJ, integrante da Frente Estadual Contra a Criminalização das
Mulheres e Pela Legalização do Aborto e do Fórum Estadual de Combate à Violência Contra as
Mulheres, assim criticou o ato do Coiote:

Fiquei muito chocada com as reações que rolaram, na época da MdV, no período da JMJ,
à performance do Coletivo Coiote, de colocar objetos religiosos e tal em partes íntimas,
quebrar imagens de santos e tal. Acho que o limiar entre a gente fazer uma crítica – que
eu não vou chamar de irresponsável, porque eu sou desordeira, baderneira, eu não faço
militância estritamente responsável, já invadi espaços, já fiz ocupações, então, não topo
essa – mas uma militância respeitosa, né? Você achar que você vai fazer qualquer
manifestação, qualquer diálogo com a população, num dos países mais católicos do
mundo, e não considerar esse elemento na hora que você vai dialogar, eu acho que é uma
burrice, entendeu, que eu acho que você joga pessoas contra você desnecessariamente.
Então, achei que foi inabilidade, e que é uma parada que naturalmente vai acontecer num
movimento que tem pouca centralização, o que também foi uma opção da Marcha das
Vadias. (Mainá, entrevista concedida em 20 de agosto de 2015)

Ciente das fórmulas usadas para desqualificar certos repertórios como “vandalismo”, Mainá se
esforça para neutralizar a carga moral daquilo que considera ser uma “militância respeitosa”.
Assim, ela evita classificar a performance do Coiote como “irresponsável” ou “baderneira”. Uma
“militância respeitosa” é aquela que busca o “diálogo”, que Mainá tenta enquadrar, não como um
imperativo moral, mas racional. Romper o diálogo lhe parece uma “burrice” estratégica, o que
considera uma consequência inevitável da “pouca centralização” da Marcha. A partir de sua
151

experiência como uma “feminista de partido”, a crítica de Mainá ultrapassa o ato em si, e se refere
ao modo de organização da Marcha, incapaz de assegurar uma estratégia clara e unificada, o que
lhe parece um problema. Ela prossegue:

Porque se você não tem algum grau de direção, todo mundo é dono do espaço e ninguém
é dono, então, não existe um coletivo responsável, que dialoga com as pessoas. O que o
Coletivo Coiote fez naquele momento, na minha opinião, desqualificou muito a MdV, e
foi uma sacanagem com a MdV. Desqualificar a MdV é uma merda, entendeu, porque
fragiliza aquele espaço. Então, eu acho que foi um erro, e que só aconteceu, na minha
opinião, por conta dessa opção, que os setores que estavam construindo a MdV naquele
momento fizeram, de não constituir o espaço de construção da MdV como algo mais
sólido, mais combinado entre as pessoas. (Mainá, idem)

Como Mainá indica, e como detalharei no próximo capítulo, a própria pretensão de centralizar ou
não o protesto é percebida como um índice de diferenciação entre setores feministas. Por hora,
quero apenas sinalizar que várias críticas de feministas ao ato do Coiote apontam para os riscos do
princípio de horizontalidade adotado pela Marcha e das performatividades que esse modo de
organização possibilita. Para Mainá, o risco é a “desqualificação” de expressões feministas. Mesmo
as feministas que apostam em formas mais descentralizadas de mobilização refletiram sobre o
desafio de organizar uma manifestação que atrai grupos diversos, cujas coreografias poderão ter
afinidades estéticas e políticas, mas estarão sempre abertas ao imprevisível, e não podem ser
submetidas ao controle de ninguém. Uma das primeiras e mais conhecidas blogueiras feministas
brasileiras, Lola Aronovich, uma entusiasta da MdV que criticou o ato pelo “estrago” causado,
escreveu sobre isso:

(…) é preciso que a organização se posicione melhor, sem ambiguidades. É preciso que a
Marcha do Rio (e todas as outras) discutam o que fazer se ocorrer um outro caso desses.
Interromper? Expulsar e dizer que a Marcha não compactua com intolerância religiosa?
Ou todas as performances (não os gritos de guerra, mas os atos artísticos, teatrais) teriam
que passar pelo crivo da organização antes do dia? Eu realmente não sei. (Trecho do texto
“A dimensão do estrago”, publicado no Escreva Lola Escreva, em 29 de julho de 2013)119

As manifestações de apoio ao ato também começaram a aparecer, embora sua circulação fosse mais
restrita nas redes. Cito exemplos de textos produzidos por blogueiras/os que circularam também
pelo Facebook:

119
Disponível em http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/07/a-dimensao-do-estrago.html (u.a. 17 de agosto
de 2017)
152

O ideal de manifestante limpinho, higienizado, bonzinho, que dá a outra face para bater,
não é o único caminho (Trecho do texto “Meu apoio à Marcha das Vadias do Rio de
Janeiro”, de Bia Cardoso, postado em 29 de julho de 2013)120
Condenar esta performance artística, pra mim, é uma hipocrisia tão grande quanto chorar
pelas vitrines quebradas da Toulon e dar de ombros aos 13 mortos na Maré, ou ignorar o
pedreiro Amarildo, que desapareceu na Rocinha após ser levado de casa por policiais da
UPP. Não consigo me compadecer por pedaços de gesso quando tantas mulheres são
despedaçadas todos os dias fazendo abortos clandestinos, quando são despedaçadas pela
violência doméstica, por estupros; quando tantos LGBTs são agredidos e mortos todos os
dias. A Igreja Católica também carrega responsabilidade por todo este sangue derramado
quando fomenta intolerância e misoginia. (Trecho do texto “Sobre santas quebradas
e violência”, de Karla T., postado em 28 de julho de 2013)121
Conheci mulheres (e homens) que passaram (e passam) a vida atormentadas pelo
terrorismo religioso. Uma marca que ficou no corpo. No jeito de sentar, de falar, de trepar
e sentir prazer, nos projetos de vida. (...) Há quem compare a quebra da santa aos crentes
que invadem terreiros de umbanda e destroem as imagens. Não, não, não, moço. Quando
evangélicos arrebentam um centro, eles são os opressores, os históricos e violentos
opressores. Aqui, quebrar a santa pode ser um ato de revolta de quem passou a vida
tomando porrada, como um grito dos excluídos. (Trecho do texto “Sobre santas e vadias”,
de Alexandre Bortolini, postado em 28 de julho de 2013)122

Essas narrativas, como no episódio da destruição da loja Toulon, deslocam o significado de


violência. Aqui, violência é construída como uma categoria relacional, que não pode ser definida
a priori pela sua forma, mas emerge nas relações entre os atores envolvidos. Nessa formulação,
importam mais as posições relativas dos envolvidos nas hierarquias sociais do que aquilo que
fazem. Assim, a violência institucional da Igreja e do Estado é considerada ilegítima diante daquela
produzida pelos subalternos sociais (ver figura n. 13). Além disso, a violência, assim definida,
depende da sua inscrição em uma narrativa histórica. O próprio passado precisa ser ressignificado
como uma longa história de violência: da Igreja, que “derrama sangue todos os dias”, contra as
pessoas, que “passam a vida tomando porrada”. Essa contextualidade da violência permite inferir
e comparar materialidades, de modo que despedaçar “símbolos” jamais será mais grave que
despedaçar “pessoas”123. Por fim, permite também questionar o monopólio estatal da violência:

120
Disponível em http://srtabia.com/2013/07/meu-apoio-a-marcha-das-vadias-do-rio-de-janeiro/ (u.a. 17 de agosto
de 2017).
121
Disponível em https://escritosfeministas.wordpress.com/2013/07/28/sobre-santas-quebradas-e-violencia/ (u.a. 17
de agosto de 2017).
122
Disponível em http://foradacaxa.blogspot.com.br/2013/07/sobre-santas-e-vadias.html (u.a. 14 de agosto de 2017).
123
Muitos textos e comentários compararam, por exemplo, a distribuição de réplicas de fetos aos peregrinos da JMJ,
como parte de um “kit pró-vida” (ver imagens em http://www.escolheavida.com.br/), à manipulação de objetos
sacros pelo Coiote. A disputa é materializada por meio de objetos-símbolos, “estátuas” versus “fetos”, ambos com
grande potencial de produzir efeitos. Uma blogueira feminista escreveu: “Eu me senti agredida, pessoalmente e pela
coletividade em que me insiro enquanto mulher, ao me deparar com a distribuição de fetos de plástico e de terços de
153

manifestantes não precisam sempre adotar um repertório estóico, do tipo que “dá a outra face para
bater”; podem lançar mão, legitimamente, de repertórios de violência.

Figura n. 13 – Meme favorável ao ato do Coiote

Esta disputa sobre os significados da performance do Coletivo Coiote traz outros elementos para
pensar as coreografias de protesto. A performance das santas e os repertórios das vadias são
semelhantes em aspectos importantes da discussão que tenho feito neste capítulo: ambas têm um
framing de transgressão, que tem na sexualidade e a nudez seus elementos centrais. A principal
diferença está no tipo de trabalho emocional realizado. Enquanto a Marcha aposta no humor, os
Coiotes investem no terror e em repertórios de destruição. Ainda que a Marcha sempre tenha sido
objeto de desaprovação social, o ato das santas desagradou até mesmo a “entusiastas” das vadias,
apontando para limites performativos de repertórios transgressão. Se a Marcha revigorou a cena
feminista contemporânea ao colocar o corpo e a sexualidade no centro das suas coreografias, a
performance das santas evidenciou que nem toda provocação e nem toda profanação é eficaz como
protesto, ainda que outros tipos de eficácia, para além das instrumentais, possam estar em jogo. A
celebração festiva da sexualidade feminina e/ou não-heteronormativa parece muito mais

fetos pelas ruas da minha cidade, na campanha ‘ética’ da JMJ.” (Trecho do texto “Marcha das Vadias do Rio de
Janeiro: os santos que nos têm quebrado”, disponível em http://blogueirasfeministas.com/2013/07/marcha-das-
vadias-do-rio-de-janeiro-os-santos-que-nos-tem-quebrado/). Para ambos os links, u.a. em 18 de agosto de 2017.
Agradeço a Marcos Carvalho por ter me chamado à atenção sobre as materializações da disputa.
154

politicamente desejável e “limpinha”, apesar de ainda perturbadora, do que a performance de uma


sexualidade vista como “repugnante”, porque goza com a destruição e se assenta enfaticamente no
terreno da pornografia, ainda que à margem do mercado pornográfico de massa, ou precisamente
por isso.

Se a performance das santas não foi um enunciado “feliz” (Austin, 1962) do ponto de vista político-
instrumental, ela teve repercussões internas, entre as vadias, que resultaram em outras formas de
eficácia, como a afirmação de identidades e a construção de legitimidades políticas pessoais e
coletivas no interior da Marcha (Aguião, 2014). As vadias precisavam “se posicionar”, não apenas
nesta disputa política sobre performance e violência, mas também levando em consideração as
ameaças e denúncias contra organizadoras e Coiotes. O fato de que muitas pessoas recriminassem
a MdV pelo ato do Coiote indicava que percebiam ou construíam uma “continuidade moral”
(Lopes, 2015) entre ambos. A decisão de negar essa continuidade, marcando uma diferença clara
entre vadias e coiotes, ou de mantê-la, defendendo o frame transgressor comum a ambos os grupos,
foi objeto de muitos debates e conflitos entre as organizadoras.

No dia seguinte à Marcha, via Facebook, as organizadoras debatiam o que podia ser feito para se
defender das denúncias contra a MdV que se proliferavam no site do Ministério Público. Mônica,
advogada, na organização da Marcha desde 2012, reiterou a estratégia delineada no post inicial da
MdV:

Além de fazer o que já estamos fazendo, de dizer que não somos responsáveis pela
performance, temos que relembrar que é uma performance artística! É arte (por mais
duvidoso que isso soe para mim, mas temos que insistir nisso), arte é ficção, arte é
representação da realidade, ou seja, NÃO houve desrespeito de verdade, apenas
representação de profanação (profanar = devolver ao mundo dos homens o que é da ordem
do sagrado). (Comentário de Mônica no grupo das organizadoras no Facebook, em 28 de
julho de 2013)

Ao mesmo tempo, Sinara convocou em seu perfil pessoal do Facebook a “Missa de sétimo dia da
santa de gesso” para o dia 3 de agosto de 2013, uma crítica irônica às exaltadas reações de “defesa
das santas”, parodiando o caso dos manequins da Toulon. Ainda no domingo, as vadias que foram
ameaçadas convocaram uma “reunião de emergência” presencial, que aconteceu em um sindicato
onde estavam hospedadas várias feministas que vieram de outros estados para a Marcha. Logo no
início, alguém reportou o texto da blogueira Lola (acima citado), já viralizado na internet: “ela
155

achou a performance péssima para o movimento feminista, irresponsável, e acha que deveríamos
reprová-la publicamente”. A maioria discordou da reprovação pública, mas uma integrante das
Católicas Pelo Direito de Decidir (CDD), organização paulista que apoiou e participou da Marcha
do Rio, afirmou que o ato foi uma “agressão”, que foi “contra tudo o que defendemos como
feministas”, que “a Marcha não pode parecer conivente com isso” e que o grupo deveria fazer uma
nova nota dizendo que “não concorda com a performance”. Graça argumentou que isso seria “jogar
o Coletivo Coiote na fogueira”, “criminalizá-lo”. Acrescentou que, diferentemente dos peregrinos,
que “cuspiram, tacaram ovo e areia” em participantes da Marcha, os coiotes “não agrediram
ninguém” e, por isso, “não vamos dizer que eles não nos representam”, afinal, “defendemos a
autonomia dos corpos, artística, simbólica, estética”. Sinara e Keila concordaram com Graça e
argumentaram ainda que não deveríamos fazer outra nota: “dar satisfação é retroceder; daqui a
pouco vamos ter que marchar de biquíni”, disseram.

“Não me sinto ofendida pela performance, mas estávamos construindo a Marcha no sentido do
diálogo”, rebateu Teresa, uma das que vinha sofrendo ameaças, avaliando que o ato do Coiote teria
rompido o “diálogo”. Petra, também ameaçada, integrante de longa data da AMB, organização que
financiou a vinda das CDD e outros grupos à Marcha (mais sobre isso adiante), sugeriu que a Missa
de Sétimo dia das Santas era “inconsequente”, pois poderia agravar as ameaças e “não ajudava a
defender politicamente a Marcha”. Sinara protestou:

Não vou recuar nem uma linha. Não devemos dar voz aos fundamentalistas que querem
atacar a Marcha e usariam qualquer coisa pra isso. Ano passado foi a invasão à igreja, esse
ano é a performance. Já estamos acostumadas com as ameaças. Eu já fui inclusive presa.
Vou manter a Missa de Sétimo Dia. Não importam os santos de gesso, há muitas pessoas
morrendo por causa da religião. Os ataques vão continuar por muito tempo, independente
de fazermos uma nova nota. Os vídeos [do ato] estão se multiplicando. (Fala de Sinara em
reunião, 28 de julho de 2013, anotação em caderno de campo)

O argumento da criminalização do Coiote convenceu a integrante da CDD, que recuou em sua


posição. Petra, Teresa e outras que haviam sido ameaçadas pareciam ter assentido em “não jogar
ninguém na fogueira”, mas insistiram na ideia de uma nova nota em nome da Marcha, a ser
submetida à uma assessoria jurídica, o que acabou sendo aceito por outras. Ficou decidido também
que todas deveríamos nos esforçar para divulgar os “vários aspectos” da Marcha nas redes, para
156

que ela não fosse “reduzida” ao ato do Coiote. Depois da reunião, as vadias registraram as ameaças
sofridas na Delegacia da Mulher (DEAM)124.

Na segunda-feira, as discussões seguiam no grupo fechado do Facebook. Várias expressavam


preocupação crescente com as ameaças, que se tornavam mais violentas (a integrante do Coletivo
Coiote, por exemplo, teve seu endereço divulgado em páginas como “Policial Um Herói” e teve
que sair de casa). Advogadas foram consultadas sobre a probabilidade de uma condenação da
Marcha ou do Coiote em decorrência da denúncia no MP, ao que respondiam negativamente: “Meu
humilde palpite jurídico é que não tem como nos processar por conta da necessidade de
individualização das condutas... nós não fizemos a performance. E acho que não tem como
condenar o casal porque se trata de uma manifestação ‘artística’”, reafirmou Mônica.

Mas isso não parecia suficiente para acalmar os ânimos. Soubemos que Petra deu uma entrevista
para uma matéria especial do Conexão Jornalismo, intitulada “Casal que quebrou imagens sacras
na Marcha das Vadias não nos representa, diz organizadora da passeata”125. Algumas vadias a
criticaram por ter condenado o Coiote “em nome da Marcha”, sem consultar ninguém e
desconsiderando os debates anteriores sobre isso. Em seguida, Sinara anunciou o seu desligamento
da Marcha: “Como vamos lutar e ser a voz dos oprimidos se recuamos nas primeiras ameaças, que
foram potencializadas pela visita do papa? Pensei que éramos mais fortes, mas vi que somos mais
frágeis que a estátua de gesso que se fragmentou na Av. Atlântica”, escreveu.

Uma nova reunião foi marcada para o dia 3 de agosto, mesma data da “Missa de sétimo dia da
santa de gesso”. As vadias que foram ameaçadas se mostravam indignadas com as que
confirmavam presença na “Missa” ou emitiam publicamente (em seus perfis pessoais das redes)
opiniões favoráveis ao ato do Coiote. Os conflitos se acirraram:

É URGENTE QUE SÁBADO [na reunião] TENHA O MAIOR CORO DE VADIAS


POSSÍVEL!!! SEM ESSA DE QUE É MEU ANIVERSÁRIO, TENHO ISSO OU
AQUILO. A AVALANCHE DE VIOLÊNCIA SÓ AUMENTARÁ. INCLUSIVE

124
Petra relatou que as primeiras ligações que recebeu anunciavam ameaças de “processo na justiça”. Depois,
recebeu mensagens pelo celular que diziam coisas como “puta, feminista do caralho, vamos enfiar um cabo de
vassoura no seu cu”. Recebeu muitas ligações de um homem do Rio que sabia o bairro em que ela morava e os locais
que frequentava, e fazia ameaças de morte e violência sexual. Esse mesmo homem ligou para várias outras vadias.
As ameaças que recebeu pela internet eram todas de sites “antifeministas” (“neonazistas”, “antiateístas”).
125
O título da reportagem foi posteriormente modificado, possivelmente a pedido de Petra, para “Quebra de imagens
sacras na Marcha das Vadias foi fato isolado, diz organizadora da passeata”.
157

QUANDO PUBLICIZAREM O ATO IRÔNICO E DESRESPEITOSO QUE ESTÁ


MARCADO PARA SÁBADO [a “missa”]. FICO GRATA A TODXS QUE APOIAM
OU NÃO ESTÃO SE MANIFESTANDO ADEQUADAMENTE [sic] PARA EVITAR
MAIS MOÇÕES DE ÓDIO E INCITAÇÃO À VIOLÊNCIA a todas as pessoas
ameaçadas. Agradeço de igual maneira às companheiras que manifestam a verdadeira
solidariedade e senso de responsabilidade e respeito à construção coletiva. (Comentário
de Teresa no grupo das organizadoras no Facebook, em 1o de agosto de 2013, grifos
originais.)

Na reunião do dia 3, que ocorreu na Anistia Internacional, havia várias advogadas, em geral ligadas
a organizações de Direitos Humanos, que desde as Jornadas de Junho vinham prestando assistência
a manifestantes durante os diversos episódios de prisões, denúncias e outras formas de
criminalização dos movimentos sociais. Elas faziam parte das redes de várias vadias, elas mesmas
também ligadas a outros movimentos sociais e bastante atuantes nas Jornadas. Elas foram
consultadas sobre os possíveis desdobramentos da denúncia no MP e sobre como lidar com as
ameaças126. Além de um problema político, a performance das santas tinha se tornado também um
problema jurídico.

Petra justificou a entrevista que deu ao Conexão Jornalismo como uma resposta “individual”,
motivada pela iniciativa igualmente “individual” da “Missa de sétimo dia das santas”: “Se uma
pessoa toma a decisão de fazer o evento individualmente, dá espaço pra outras pessoas falarem
individualmente. Eu dei a entrevista em meu nome [e não em nome da Marcha]”. Ao mesmo tempo,
ela insistiu que a Marcha “tem que ter um posicionamento” e precisa falar com a grande imprensa:
“Se a gente se cala, a gente se fragiliza. Se a gente fala, a gente continua pautando”. Keila discorda;
acha que a grande imprensa “vive de sangue” e insiste que é preciso “fechar a tampa das
explicações”. Petra rebate que “não temos que falar da performance, mas da Marcha, das nossas
pautas”. No auge da tensão, Teresa desabafa sobre o estresse que as ameaças vêm lhe causando,
além de dificuldades pessoais, e chora. Uma colaboradora da Marcha diz que “nossa emoção e

126
As advogadas reforçaram a hipótese de que as vadias não corriam risco de serem processadas e explicaram que as
denúncias ao MP, que podem ser feitas por qualquer pessoa no site do órgão, não são “ações judiciais”, mas relatos a
serem analisados pelas autoridades. Sobre as ameaças, as vadias relataram que tiveram muitas dificuldades de
registrá-las na DEAM. Só havia profissionais homens, que se recusaram a fazer o Boletim de Ocorrência sob a
justificativa de que “não havia materialidade do crime”, a despeito das mensagens de ameaça arquivadas nos
celulares das vadias. Somente depois que Petra mobilizou a subsecretária de políticas para as mulheres do Estado do
RJ, que contatou outras autoridades, é que conseguiram fazer o Registro de Ocorrência. As advogadas as orientaram
a fazer a denúncia através da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
(ALERJ), cuja representante também estava presente na reunião, em delegacias especializadas em crimes virtuais e
na divisão de Direitos Humanos da Polícia Federal.
158

nosso corpo são nossa política; sempre que tem estresse na política, isso estoura no grupo” e, por
isso, é preciso ter espaço para “trabalhar as emoções”. A reunião se encerra com esse tom emotivo
e com uma data para outro encontro entre as vadias ameaçadas e as advogadas de Direitos
Humanos127.

Eu não fui à Missa de sétimo dia das santas, que aconteceu à noite, na escadaria do Selarón. As que
foram, reportaram, com ironia, que estavam “todas bem” e que não houve nenhum “perigo” que
justificasse tanta rejeição ao evento. Esse encontro selou um “racha” na MdV e a formação de uma
dissidência, liderada por Sinara. A maioria das pessoas que aderiram à missa não cortou totalmente
seus laços com a MdV. Participaram de reuniões seguintes e, eventualmente, retornaram à
temporada de 2014 da Marcha, como a própria Sinara. Essa dissidência não se constituiu como um
novo grupo político propriamente dito, mas se integrou de modo mais decidido a uma rede de atores
que, desde as Jornadas de Junho, se reconheciam mutuamente na crítica a oposições como
“pacíficos versus vândalos”. Como uma forma de questionar as lógicas hegemônicas de
classificação de repertórios de protesto, essas pessoas se reapropriaram da noção de “vandalismo”,
ressignificando-a de modo positivo, descriminalizando-a e legitimando-a128.

Quais eram, então, as lógicas e forças em torno desse conflito entre as vadias estimulado pelo do
ato do Coiote? A dissidência girava em torno de fazer ou não distinções morais ou políticas entre

127
Online, as vadias seguem trabalhando na redação de uma nova nota, que é finalmente publicada no dia 7 de
agosto. A nota tinha um tom crítico e condenou a cobertura tendenciosa da mídia e a “criminalização” da MdV. Ao
mesmo tempo, adotava um tom cauteloso, ao reforçar a expressão “performance artística” para se referir ao ato,
enquanto “quebra das santas” e “performance pornô-terrorista”, sugeridas por algumas vadias, foram vetadas.
Arrefecia também o tom crítico às religiões, afirmando que “muitas de suas organizadoras e parceiras diretas são
pessoas religiosas” e que a Marcha “sempre manteve estreito diálogo com organizações religiosas que reconhecem e
exigem a efetivação dos direitos das mulheres e dos LGBTs”. Havia uma clara preocupação em não desagradar as
Católicas pelo Direito de Decidir. Nota disponível em http://marchadasvadiasrio.blogspot.com.br/2013/08/nota-de-
posicionamento-da-marcha-das.html (u.a. 29 de agosto de 2017).
128
Por exemplo, em contraponto aos gritos de “Sem violência!” – que alguns setores da Jornada dirigiam
indistintamente aos policiais e aos black bloc, em momentos de confronto ou de destruição – essa rede, identificada
com setores do movimento feminista e LGBT, gritava “Sem-Sualismo!” e “Com vandalismo!”. As pessoas que
aderiram à Missa das Santas criaram um grupo no Facebook chamado “S-27 Vadias e Wândalas”, em referência à
Selarón (escadaria), ao dia 27 de julho de 2013, data em que a escadaria foi ocupada pelas vadias após à Marcha, e à
reapropriação da noção de vandalismo. A grafia “Wândalas” é uma alusão bem-humorada ao cantor de “música
brega” Wando, morto em 2012. Reunindo vadias e ativistas de grupos LGBT, o S-27 organizou alguns encontros
para debater e criar performances políticas de crítica à opressão religiosa, a partir uma “estética de choque”. Após
alguns períodos de inatividade, a página voltou a publicar recentemente:
https://www.facebook.com/s.27.vadias.wandalas/?ref=ts&fref=ts (u.a. 18 de setembro de 2017).
159

este ato e os repertórios da MdV. Para as que optaram por não fazer essa distinção, condenar a
transgressão do Coiote significaria renegar o próprio frame transgressor da MdV. Entre os
repertórios de humor da Marcha e os de terror do Coiote, entre o corpo grotesco das vadias e o
corpo monstruoso dos coiotes, haveria muito mais semelhanças que diferenças, segundo essa
avaliação. O comentário de Marília, organizadora da Marcha e também integrante do BeijAto,
ilustra essa posição:

Discordo totalmente da Lola [Aronovich, blogueira], o que a gente deveria fazer?! Nos
desvincular totalmente da performance?! Quer dizer, se vestir de Ave Maria tudo bem,
mas porno-terrorismo com crucifixo já é vandalismo?! A organização não sabia nem
programou, como também nunca pretendeu saber e/ou programar tudo o que acontece na
marcha, essa na verdade é uma das suas maiores forças e belezas. A gente não pode
estabelecer o limite para a radicalização do outro. É importante a organização se
diferenciar, até mesmo por questões jurídicas, mas condenar ou repudiar publicamente é
um tiro no pé. Pq os mesmos conservadores que acharam extrema a masturbação com
santos, não acham legal camisinha com a cara do papa, ave maria pró-aborto e papa queer
satirizando o batismo. A Marcha estava atravessada de sátiras (muito bem) politizadas dos
efeitos do imaginário cristão-católico nos nossos corpos. Se desvincularmos essa
performance da marcha o que faríamos com o resto?! (Comentário de Marília no grupo
das organizadoras no Facebook, em 29 de julho de 2013)

O grupo que defendia a diferenciação entre Marcha e Coiotes, por sua vez, valorizava a relevância
das experiências pessoais de vitimização das vadias ameaçadas. Ironicamente, o framing vitimário
volta para “assombrar” o grupo quando suas integrantes se vêem em risco. Motivadas pelos relatos
de ameaças, outros “depoimentos” de experiências de violência habitam a reunião da Anistia, com
narrativas de fragilidade, trauma e “acolhimento”, um repertório emocional que eu nunca tinha
visto antes nas atividades da Marcha. Na chave oposta, as vadias que organizaram a “Missa de
sétimo dia das santas”, seguiam apostando na provocação, irreverência, humor e deboche,
reafirmando o framing de transgressão. Elas diziam não acreditar que as ameaças pudessem se
concretizar129 e eram acusadas pelas outras de “falta de solidariedade” diante de uma experiência
concreta de “fragilidade” e “violência contra a mulher”, de minimizar seu sofrimento ao organizar
a “Missa” e de abandoná-las na batalha jurídica então em curso. Uma contradição estava colocada:
como lidar com a experiência de violência sem reproduzir as lógicas, repertórios e imagens da
vitimização? Como afirmar a chave de provocação e ao mesmo tempo oferecer solidariedade às
que se percebiam como vítimas? A identidade da Marcha estava em jogo.

129
Como uma delas disse, “Vamos nos acalmar, eu tenho certeza que tudo isso é muito mais latido do que mordida.”
160

O contexto das Jornadas, como procurei mostrar, também jogou a sua parte. Num momento de
grande efervescência política, em que diversos setores dos movimentos sociais acusavam o Estado,
a grande mídia e uma parcela da sociedade de promover a criminalização das manifestações,
diferenciar a Marcha do Coiote se tornou um problema de “equilibrismo político”. A diferenciação
deveria evitar a incriminação das vadias, mas não culpabilizar os Coiotes, termos de uma difícil
equação.

Mas a batalha interna dos frames entre as vadias também mobilizou e foi mobilizada por velhos
conflitos em torno das noções de autonomia e horizontalidade. Petra acionou as ONGs que dão
sustentação à AMB para financiar a vinda de grupos feministas de outros estados para a Marcha de
2013, como as Tambores de Safo, as Loucas de Pedra Lilás e as Católicas pelo Direito de Decidir,
todas filiadas à AMB. A realização de um debate sobre “violência lesbofóbica” foi a justificativa
formal da AMB para pleitear o recurso, uma prática comum no mundo dos projetos e editais das
ONGs. De fato, o debate aconteceu na véspera da Marcha, e contou com a participação de várias
vadias, além das ativistas trazidas de outros estados. No entanto, toda essa operação institucional
só ficou clara para a maioria das vadias (e para mim mesma) após o protesto. Na reunião de
avaliação da Marcha, Petra, que é coordenadora local da AMB, disse que levantou mais de 25 mil
reais para custear a vinda das ativistas. Com exceção das vadias mais experientes, que disseram já
desconfiar que isso tinha acontecido, as demais se mostraram surpresas tanto com o valor do
montante como com o trabalho de articulação feito por Petra, que mobilizou pelo menos cinco
diferentes fundos e organizações da rede da AMB para conseguir o recurso, sem comunicar ou
consultar o grupo. Como já tinha ocorrido no passado, a AMB, através de Petra, foi então
novamente acusada de “aparelhar” a Marcha, rompendo os acordos de autonomia e horizontalidade
previamente estabelecidos. Além do dinheiro, as várias entrevistas concedidas por Petra, em que a
AMB aparece como principal organizadora do protesto e em que afirma que o “casal que quebrou
imagens sacras na Marcha das Vadias não representa a Marcha”, foram citadas como exemplos de
“desrespeito” aos acordos do grupo. Keila foi incisiva na acusação de “aparelhamento” e anunciou
a sua saída da Marcha.

Petra, por sua vez, defendeu sua “autonomia individual” para financiar a vinda das suas
“companheiras da AMB”, que “também são vadias em suas cidades”. Pediu “confiança política”
às demais, no sentido de que entendessem que “os recursos foram para enriquecer a MdV”. Branca,
161

26 anos, organizadora da MdV desde o início de 2013, assim sintetizou as questões em jogo e a
sua frustração:

A gente tem que ter paciência com quem sofreu ameaça pela primeira vez. Temos que
reavaliar nossas próprias atitudes, se exageramos com alguém num momento de exaltação.
Mas também temos que pensar: quando é conveniente, somos coletivo ou indivíduo,
marcha ou evento. Eu acho que somos mais que evento, organizamos coisas o ano todo.
Eu participei de todas as atividades, mas no final fiquei com sensação de que dormi em
algum ponto, porque não fiquei sabendo dos recursos da AMB. Não acho que a AMB não
pudesse levantar esses recursos; ela tem legitimidade pra isso, como qualquer outra
organização. Mas ficou confuso na minha cabeça; o debate [sobre “violência lesbofóbica”]
que era só da AMB se confundiu com as atividades da Marcha. É uma questão de
horizontalidade: então nós que temos menos experiência não ficamos sabendo das
decisões? (Fala de Branca na reunião de avaliação, em 28 de agosto de 2013. Anotação
em caderno de campo.)

Por causa desse conflito em torno da autonomia (do coletivo ou do “indivíduo”?) e da


horizontalidade (somos todas mesmo iguais?), a ênfase na diferenciação entre coiotes e vadias,
capitaneada por Petra, foi interpretada por várias integrantes, especialmente as mais experientes e
as organizadoras da “missa”, como uma “prestação de contas” à AMB. Segundo essa visão, o
discurso de vitimização seria antes uma estratégia política para justificar essa diferenciação e,
assim, livrar Petra, a AMB e as demais organizações que doaram dinheiro, de qualquer vinculação
pública com o “vandalismo” do Coiote.

Numa ação coletiva como a Marcha – que não pode optar entre indivíduo e coletivo, entre evento
e movimento, mas que se caracteriza por transitar agonisticamente entre esses pólos – os ideais de
autonomia e horizontalidade se mostram tanto como guias imperfeitos para a ação como enquanto
instrumentos de disputa no jogo interno e externo de forças. A falta de centralização da Marcha e
sua abertura relativa a grupos e pessoas diversas, que podem nunca ter tido contato ou afinidades
entre si, faz da imprevisibilidade uma certeza, com consequências dentro e fora da Marcha. Se a
performance das santas não angariou a simpatia externa, mobilizou internamente disputas acerca
da identidade da Marcha, da legitimidade ou ilegitimidade das suas práticas de organização e da
reputação das vadias e instituições próximas.
162

Capítulo 3: As outras

I was Ripon and then Mina and then Liza depending on the home I entered. Now I am Rita and I
know who I am. I know what my name is, no further changes are required.

RITA, 46

(Texto impresso em um cartão, lembrança da exposição fotográfica “Call me Heena”, de Shahria


Sharmin, sobre as hijras sul-asiáticas, exibida em maio de 2016 na sede da Open Society
Foundations, em Nova York)
163

Vimos como as vadias produzem repertórios corporais e emocionais específicos em busca de


eficácia simbólica, isto é, para desestabilizar e propor projetos políticos. Mas esses repertórios
também atualizam práticas de diferenciação e identificação política. O corpo e a emoção,
articuladores centrais dos repertórios políticos do campo feminista, são mobilizados de diferentes
formas pelas ativistas, expressando tanto experiências desiguais como agendas políticas distintas.
Experiências e agendas são afetadas pelo modo como raça, gênero, sexualidade, idade, classe,
origem geográfica e outros marcadores de diferença simultaneamente hierarquizam pessoas e são
performativamente politizados por elas em seu favor. Por meio do manejo dessas categorias
classificatórias, as feministas produzem fronteiras entre “nós” e as “outras”, transformando o corpo
em instrumento de reelaboração da política identitária do movimento.

Assim, ao mesmo tempo em que as vadias investem em performatividades de transgressão, humor


e ironia, e valorizam em seus discursos os princípios organizativos de horizontalidade e autonomia,
esses elementos são mobilizados, por elas e por outras atoras do campo, como características que
as distinguem ou as aproximam entre si. Os repertórios dos diferentes grupos e setores feministas
alimentam jogos relacionais de oposições, identificações, acusações e conflitos (Masson, 2007).
Como veremos neste capítulo, as vadias definem certas atoras como parte de um “nós” mais
abrangente, como é o caso das ativistas prostitutas e trans. Já as chamadas Feministas Radicais ou
RadFem, as feministas de organizações e partidos, e em alguns casos, de gerações mais velhas, são
classificadas como suas “outras”. De outra parte, as vadias são tomadas como “outras” por alguns
grupos de feministas negras e de autodenominadas feministas periféricas. A produção dessas
relações mutuamente constitutivas envolve a mobilização de diversos elementos discursivos e
performativos, entre os quais destacarei os repertórios corporais e emocionais de protesto e os
modos de organização política.

3.1. As “institucionalizadas”

Cena: Uma ala feminista nos protestos anti-Copa

Em maio de 2014, setores das esquerdas se mobilizaram para organizar


protestos contra a iminente Copa do Mundo de Futebol. No início daquele
164

mês, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, a primeira


plenária reuniu mais de 200 pessoas para “discutir a mobilização contra os
abusos cometidos em nome da Copa do Mundo”. Uma comissão
organizadora foi formada, integrada majoritariamente por entidades
sindicais, partidos políticos, movimentos de moradia e coletivos de
comunicação. O Fórum Estadual de Combate à Violência contra a Mulher
(FEM) era a única entidade feminista da comissão130. Na plenária seguinte
ficou definido que haveria quatro atos “unificados” ao longo da
competição, o primeiro deles marcado para 12 de junho de 2014, dia da
abertura da Copa. O conjunto de atos foi nomeado “Nossa Copa é na Rua:
por uma cidade de direitos. Todo apoio aos trabalhadores em luta!”. As
reivindicações eram por “segurança pública sem criminalização da pobreza
nem dos movimentos sociais”; “direitos sociais: saúde, educação, moradia
e mobilidade”; “comunicação popular, direito à comunicação e fim do
oligopólio da mídia”; “combate à elitização dos esportes e à privatização
do Maracanã”; “fim das opressões contra mulheres, LGBTs, negras e
negros”; “direito à cidade e à terra: reforma urbana e reforma agrária”; “fim
das remoções”; e “garantia dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores
em luta”131. Ficou decidido que haveria seis alas no protesto de abertura,
correspondentes às principais reivindicações, e que a “ala das opressões”
ficaria sob a responsabilidade das feministas, representadas pelo FEM.

O FEM puxou então reuniões com grupos feministas para organizar a ala e
construir uma carta sobre “os impactos da Copa na vida das mulheres”, a

130
Fundado em 2011, o FEM é fruto das articulações para as atividades do dia 25 de novembro – Dia Internacional
pela Eliminação da Violência contra as Mulheres - do ano de 2010. Tem por objetivo “a construção de estratégias
conjuntas para o enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres, combatendo o machismo, o
racismo e a lesbofobia” (Carta de princípios do FEM, elaborada em 2011). A página do FEM no Facebook é:
(https://www.facebook.com/ForumdeCombateaViolenciaContraAsMulheres/?fref=ts, u.a. 20 de dezembro de 2017).
O FEM e a Frente Estadual Pela Legalização do Aborto do Rio de Janeiro (ou Frente) eram dois dos principais
fóruns feministas ativos na cidade durante meu trabalho de campo, e cujas atividades passei a acompanhar
regularmente a partir de 2015. Esses dois espaços reúnem um considerável número de organizações de mulheres e
feministas, em sua maioria concentradas na capital do estado.
131
Informações disponíveis nas páginas das plenárias no Facebook,
https://www.facebook.com/events/733955456655439/ e https://www.facebook.com/events/290794551098075/ (u.a.
20 de dezembro de 2017).
165

exemplo do que grupos feministas vinham fazendo em outras cidades-sede


do torneio. Participaram desses encontros organizações integrantes do
FEM, como a Casa da Mulher Trabalhadora (Camtra), o Setorial de
Mulheres do PSOL, a Marcha Mundial de Mulheres, a Organização
Mulheres de Atitude de Manguinhos, o Coletivo RUA e o Instituto PACS
– Políticas Alternativas para o Cone Sul, além de grupos autônomos como
o PaguFunk, o Coletivo Acontece Comigo e a Marcha das Vadias.132

Destaco algumas questões que emergiram entre as feministas nos processos


de construção da ala e da carta. A primeira diz respeito à própria noção de
“ala” e às tensões que ela traz à tona. Várias mulheres falaram da
impossibilidade de fazer uma “ala das opressões” que “representasse a
todos os oprimidos”. Na melhor das hipóteses, fariam “uma ala feminista”,
para o que, aliás, seria necessário um esforço de articulação que
extrapolasse as organizações integrantes do FEM. Além disso, algumas
feministas denunciaram que nas plenárias gerais do Nossa Copa é na Rua
“só tem homem falando”. A própria Copa, objeto tanto da admiração
mundial como dos protestos locais, é masculina, ao passo que o futebol
feminino é marginalizado. Nesse contexto, a existência de uma ala
feminista é vista como uma oportunidade senão insuficiente de “visibilizar

132
A Camtra é uma ONG feminista carioca fundada em 1997, que se dedica a desenvolver projetos nas áreas de
direitos sexuais e reprodutivos, educação, trabalho e violência contra as mulheres. É uma das principais articuladoras
do FEM e da Frente Estadual Pela Legalização do Aborto do Rio de Janeiro (http://www.camtra.org.br/). O Setorial
de Mulheres do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) também é bastante atuante no FEM e na Frente
(https://www.facebook.com/mulheresdopsol/). A Organização Mulheres de Atitude de Manguinhos é uma ONG,
também bastante ativa no FEM, formada por “mulheres de diferentes áreas de formação, voltadas para um trabalho
de garantia dos direitos das mulheres com enfoque de gênero, raça, classe e direitos humanos”
(https://www.facebook.com/OMA-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mulheres-de-Atitude-545050235848672/). O
Coletivo RUA - Juventude Anticapitalista, ora denominado também “Movimento RUA”, é uma tendência do PSOL,
criada durante as Jornadas de Junho de 2013 (https://www.movimentorua.org/). O Instituto PACS – Políticas
Alternativas para o Cone Sul, também integrante do FEM, foi criado em 1986 e foi um dos “fundadores dos
movimentos de comércio justo e economia solidária no Brasil” (http://www.pacs.org.br/). O PaguFunk é um grupo
autônomo, surgido em julho de 2013 na Baixada Fluminense, que através do funk escreve “sobre feminismo e o
nosso cotidiano nas periferias do Rio de Janeiro”
(https://www.facebook.com/pg/pagufunk/about/?ref=page_internal). O Acontece Comigo foi um coletivo que
produziu e divulgou vídeos com relatos de episódios de violência sexual sofridos por mulheres
(https://www.facebook.com/Acontece-Comigo-413648362068505/?fref=ts). Suas integrantes também criaram o
grupo de carnaval e de performances políticas Tropa de Xota, em que exibiam adereços e fantasias em forma de
vaginas. (Todos os acessos em 8 de novembro de 2017)
166

as questões feministas”. Se por um lado não se pode dispensar essa


oportunidade, por outro a ala circunscreve territorial e visualmente as
“questões das mulheres” como “específicas”, operando uma forma de
isolamento e mesmo subalternização em relação às chamadas “questões
gerais”. Como disseram algumas mulheres, essa é uma lógica de “cotas”,
“como se as mulheres não tivessem nada a dizer sobre direito à cidade ou
sobre a privatização do Maracanã”.

A segunda questão diz respeito a como essa tensão entre as mulheres e a


“esquerda masculina” é problematizada pelos diferentes setores feministas.
Para se distinguir do conjunto mais amplo de movimentos sociais no
protesto e dar visibilidade às suas questões, as feministas de organizações
e partidos sugeriam repertórios como “ficar no chão, sem subir ou dialogar
com o carro de som” e “se destacar visualmente com balões, adesivos e
camisas de cor roxa”. Já as vadias, com o eventual apoio de outras
feministas autônomas, propuseram estratégias de confronto direto com os
outros setores do ato. Em vez de blusas roxas para “mostrar-se como um
bloco”, as vadias sugeriram ir sem blusa. Também se dispuseram a
“invadir” as outras alas com cartazes que expressassem uma visão
feminista de suas respectivas reivindicações, o que chamaram de
“rolezinho feminista”133 no ato. Por fim, aventaram fazer um “apitaço
feminista” toda vez que os participantes do ato mandassem, como é comum
em protestos da esquerda carioca, as autoridades “tomarem no cu”, o que
as vadias consideram um ato “homofóbico e sexista”. Essas sugestões
provocaram conflitos especialmente com as feministas de partidos e ONGs,
que reagiram dizendo que “fazer uma crítica à esquerda em ano de eleição
seria um tiro no pé” e que confrontar as outras forças dentro do mesmo ato

133
É uma referência aos “rolezinhos” que aconteceram em shoppings de várias cidades em 2014, encontros marcados
pela internet por adolescentes e jovens, em geral pobres e negros. Foram inicialmente organizados em resposta a um
projeto de lei que proibia bailes funk nas ruas da capital paulista. Os jovens, que se encontravam nos shoppings e
cantavam funk, foram alvos de repressão policial. Alguns estabelecimentos conseguiram liminares na justiça para a
realização de “triagem de clientes”, estopim para que os “rolezinhos” se espalhassem por diversas cidades. Causando
incômodo e até pânico em lojistas e clientes “regulares”, que temiam se tratar de “arrastões”, foram reconhecidos
como uma forma de protesto à discriminação por raça e classe.
167

poderia provocar “confusão” e submeter todo o protesto ao risco de


repressão policial. Como disse uma integrante do Setorial de Mulheres do
PSOL, “temos que combinar tudo o que vamos fazer: estamos na Lei da
Copa e não podemos ser nós a faísca pra porrada e proibição dos próximos
atos”. “Mas e a espontaneidade?”, questionou uma vadia.

A terceira questão expressa o conflito histórico entre feministas acerca da


prostituição. Antes de convocar “outros setores do feminismo” para
construir a ala e a carta, o FEM fez uma plenária interna, em que algumas
organizações expressaram preocupação com a “exploração e violência
sexual” e o “tráfico de pessoas” no contexto da Copa. Nos encontros que
se seguiram, essas organizações propuseram que a faixa principal da ala
feminista dissesse “Nossos corpos não são mercadoria”. No entanto, esta
forma de enquadramento da prostituição foi enfaticamente questionada
pelas vadias. Ao comentar os “uniformes sexistas” que as atletas mulheres
geralmente usam em competições, a vadia Sinara declarou: “eu, enquanto
prostituta, digo que isso sim é mercantilização do corpo, porque elas não
ganham nada mais para vestir essas roupas”. As vadias insistiram em
problematizar não a prostituição, mas a sua repressão, e incluí-la como
parte das ações de “higienização” e de “precarização das trabalhadoras”
promovidas pelo Estado e pelo Mercado em nome da Copa. Depois de um
longo debate, tal enquadramento foi aceito tanto na redação da carta – que
ao longo de suas três páginas teve um parágrafo inteiramente dedicado a
repudiar as “violações dos direitos das prostitutas” – como na escolha da
frase da faixa: não ganhou a sugestão das vadias, “Geral feminista na rua”,
considerada muito “conceitual” pelas demais, nem tampouco “Nossos
corpos não são mercadoria”. A frase escolhida foi mais conciliatória:
“Copa pra quem? Feministas na Luta”.

Por último, cabe observar as diferenças nos modos pelos quais as vadias e
as demais ritualizam as reuniões. Nas reuniões da ala, seguiu-se o mesmo
rito usado em reuniões dos fóruns feministas, de que participam mulheres
de organizações, partidos, sindicatos e articulações. Primeiro, a
168

organização que puxa a reunião abre os trabalhos anunciando ou propondo


a “pauta”. Em geral, essa organização coordena a reunião, o que significa
demarcar todas as suas etapas, passar a lista de presença, controlar a
inscrição e o tempo de fala das pessoas, anotar as propostas e redigir uma
ata. Depois, há uma “rodada de apresentação”, em que as pessoas
geralmente empregam a fórmula consagrada que consiste em dizer seu
nome e o da organização que integra/representa. Com isso, as pessoas
imediatamente se localizam e são localizadas no campo feminista. As mais
experientes aprendem a prever os possíveis impasses de uma reunião por
meio desse mapeamento político das organizações presentes. Em seguida,
passa-se aos “informes”, em que as organizações divulgam seus
calendários próprios de atividades, como “atividades de formação”, “rodas
de conversa”, ações de mobilização pública etc. Depois abrem-se
inscrições para organizar as falas, que primeiro tratam da “análise de
conjuntura” e depois passam às propostas de estratégias para a ação em
foco. É esperado que as pessoas sejam sucintas e não se inscrevam muitas
vezes. Há muita repetição de falas, especialmente nas análises de
conjuntura, expressas por ideias e vocabulário amplamente conhecidos e
compartilhados. Em geral, não há votação. Os acordos são construídos por
“consenso”, uma construção que emerge do jogo entre convencimento e
objeção. Em geral, essas reuniões dos principais fóruns feministas são
marcadas em torno das 18h, mas sempre começam e terminam com grande
atraso, o que faz com que o “consenso” seja também determinado pelo
cansaço. Em uma das reuniões da ala feminista, depois de todo este ritual,
uma vadia disse em tom de brincadeira: “quase tive um treco aqui para não
interromper a fala de ninguém. Devo me parabenizar!”

Como vimos nos capítulos anteriores, a Marcha das Vadias busca se diferenciar daquelas que
identificam como feministas institucionalizadas. De modo geral, são classificadas como tal pelas
vadias as organizações feministas, o “feminismo de Estado” e as mulheres dos partidos e sindicatos.
Esses são setores que ganharam visibilidade sobretudo nas décadas de 1990 e 2000, quando o
169

campo feminista brasileiro se institucionalizou, tanto na forma de ONGs como em sua relação com
o Estado, que criou órgãos e mecanismos administrativos para a implementação de políticas de
promoção da igualdade gênero (Alvarez, 2014a, 2014b; Machado, 2016; Avelar e Rangel, 2017).
Ainda que o campo sempre tenha sido plural em sua constituição, este foi um período em que seus
setores mais destacados eram bastante profissionalizados, dedicados a ações de advocacy134 nos
campos da violência contra a mulher e dos direitos sexuais e reprodutivos, atuantes em redes de
instituições governamentais e intergovernamentais, e com uma presença mais escassa em protestos
de rua. É nas redes desta institucionalidade que o frame vitimário se consolida como principal
repertório feminista de combate à violência contra a mulher.

É importante frisar que, embora a literatura reconheça e tipifique


“institucionalização/instituição/institucional” como processo/ator/qualidade relevante no campo
feminista brasileiro e latinoamericano dos anos 1990 e 2000, institucionalizadas é uma categoria
êmica, política, de cunho acusatório, e não um termo descritivo ou analítico. É mobilizada
sobretudo pelas que, como as vadias, se autodenominam autônomas, categoria cuja constituição,
por sua vez, depende da relação de oposição ou contraste com a primeira. Aquelas que são objeto
da classificação institucionalizadas geralmente rejeitam a oposição implicada nessa nomeação. Por
exemplo, em uma reunião recente para organizar um ato do 8 de março, de que participaram
ativistas de diferentes setores, algumas feministas de ONGs demonstraram irritação com o
qualificativo autônoma com que diversas participantes “independentes” se apresentavam
publicamente. Segundo seu ponto de vista, esta é uma fórmula hierarquizante que as rebaixa ao
lugar de “não autônomas”, com o que discordam veementemente. Assim, os significados dessas
categorias são inseparáveis de seus contextos de enunciação.

Também é relevante notar que os critérios para a classificação de pessoas ou grupos como
institucionalizados não são uniformes, mas dependem das sujeitas em questão, das relações
idiossincráticas estabelecidas entre elas e das situações específicas em que essas relações se dão.

134
Na apresentação ao dossiê “Advocacy Feminista” da Revista Estudos Feministas, Alvarez et al (2000, p.168)
refletem sobre as políticas de tradução do termo: “Mais do que a pressão política sobre gestores e/ou legisladores,
como usualmente é considerado no norte, o fazer advocacy exige sistematizar aprendizados, desenvolver habilidades
de negociação, planejamento e trato com os meios de comunicação. Exige também um conhecimento do terreno
político onde circulam as propostas, os atores e os conflitos presentes.”
170

Assim, nem toda integrante de ONG feminista, por exemplo, será vista como institucionalizada
ou, ainda, tão institucionalizada como as demais. Algumas institucionalizadas são tidas como mais
ou menos institucionalizadas do que outras, como veremos.

Os repertórios corporais e emocionais das vadias são produzidos nas dinâmicas do jogo identitário,
pelo qual elas buscam se distanciar de práticas e discursos das atoras identificadas como
institucionalizadas. Assim, quando apostam no frame transgressor, as vadias se contrapõem a um
só tempo ao frame vitimário, às atoras que o consagraram e às formas de organização que lhe deram
estofo. Para a vadias, as institucionalizadas grosso modo se organizam segundo práticas que
consideram “hierarquizadas”, “autoritárias” e “centralizadoras”; seus repertórios de ação são vistos
como “caretas” e “pouco criativos”; e sua autonomia estaria comprometida pelas relações que
mantêm com o Estado, partidos, agências de fomento e outras organizações. Os atos do 8 de março
materializam, para as vadias cariocas, todas essas insuficiências atribuídas aos setores
institucionalizados do campo local.

Nos dias de hoje, ainda que existam nesses espaços do feminismo institucional ativistas de variadas
idades, não é raro que os cargos de liderança sejam ocupados por mulheres mais velhas que
iniciaram sua atuação nas décadas passadas, o que traz uma inflexão geracional a essas narrativas
de diferenciação. Assim, os modos de organização considerados indesejáveis pelas vadias são
imputados muitas vezes, embora não exclusivamente, a feministas mais velhas. A geração aparece
aqui menos como uma noção censitária do que como base classificatória para relações de
diferenciação e identificação. É, portanto, assim como institucionalizada, uma noção política
mobilizada pelas atoras de acordo com o contexto. Enquanto institucionalizada é acionada
sobretudo pelas autônomas, as categorias geracionais – “novas”, “velhas”, “jurássicas”,
“históricas” – são mobilizadas e relevantes para diversas atoras, de diferentes idades, ora como
mecanismo de diferenciação ora de identificação, em variadas situações.

Ainda que essas relações de oposição sejam relevantes na configuração do campo feminista atual,
a pluralização de atores e espaços de atuação que o movimento tem visto nos últimos anos (Alvarez,
2014b) torna as relações entre eles muito mais diversificada e complexa do que o binarismo
autônomas x institucionalizadas pode supor. Se as feministas autônomas se organizam de formas
muito diversas – dos incontáveis coletivos de mulheres negras aos grupos de lésbicas e bissexuais;
171

das mulheres “periféricas” e “faveladas” aos coletivos de mães e de estudantes universitárias e


secundaristas; dos grupos de jovens grafiteiras, MC’s, funkeiras e skatistas às mulheres do teatro
popular ligados aos movimentos de esquerda; das poetisas, blogueiras e atrizes às cooperativas de
mulheres e pequenas empresárias, e até blocos de carnaval feministas – as chamadas
institucionalizadas e mais velhas também estão longe de constituírem um grupo homogêneo. Esses
setores contam com diferentes graus e tipos de institucionalização, e incluem, além das ONGs e da
burocracia estatal, as organizações sindicais rurais e urbanas, os setoriais de mulheres de partidos
de esquerda e os movimentos de “juventude”, como o Movimento Rua e o movimento estudantil,
para nomear apenas alguns atores relevantes na cidade.

Além disso, se existe conflito entre autônomas e institucionalizadas, é certo também que elas estão
imbricadas em redes de colaboração. A própria MdV carioca, apesar de suas restrições às ONGs
feministas, contou, como vimos, com o apoio de algumas, por exemplo na oferta de espaço para
realização de reuniões, no acesso a redes de comunicação para dar visibilidade midiática ao
protesto (espaço em programas de rádio, matérias jornalísticas etc.), entre outros recursos. De modo
mais amplo, é notável o fato de que recentemente diversas ONGs, fundações e fundos feministas
têm voltado sua atuação para apoiar projetos de pequeno porte, inclusive de grupos não
institucionalizados de mulheres. Por exemplo, o edital de 2017 “Building Movements -
Feminismos Contemporâneos” do Fundo Elas, um fundo brasileiro “voltado exclusivamente para
a promoção do protagonismo das mulheres”, apoiou projetos de grupos “formais e informais” de
mulheres, com experiência mínima de um ano de atuação135. Isso mostra uma abertura de
organizações feministas a grupos pouco ou nada formalizados, além de borrar a própria distinção
entre autônomas e institucionalizadas.

Finalmente, o próprio campo institucional feminista tem passado por reconfigurações importantes
nos últimos anos. Desde os anos 2000, a cooperação internacional para o desenvolvimento, de onde
provinha a maior parte do financiamento das ONGs do campo dos direitos, vem redirecionando
suas prioridades para outras áreas geográficas, à medida em que o Brasil alcança o status de “nação

135
O edital está disponível em http://fundosocialelas.org/feminismos-contemporaneos/ (u.a. 13 de dezembro de
2017). O Festival Roque Pense, que promove bandas de mulheres na Baixada Fluminense, o Slam das Minas do Rio
de Janeiro, uma batalha de rimas entre mulheres, o Grupo Cultural Balé das Iyabas, que oferece oficinas de “dança
Afro” na mesma cidade, e as Blogueiras Negras, que atuam na área de comunicação, são alguns exemplos de grupos
autônomos ou pouco formalizados que receberam recursos e assessoria de instituições feministas consolidadas.
172

de renda média”. As ONGs precisam então procurar novos recursos, como a captação individual e
o crowdfunding. Nesse processo, muitas organizações passaram a atuar mais próximas do Estado
na implementação de políticas públicas (CEAPG e Articulação D3, 2013). Embora eu não tenha
encontrado nenhum estudo recente sobre a situação atual das ONGs feministas, os relatos que ouvi
em campo dão conta de que muitas vêm fechando as portas ou funcionando precariamente, tendo
de reduzir sua estrutura, reformular e restringir seu campo atuação.

Também o chamado “feminismo de Estado”, consolidado ao longo dos anos 2000, passa hoje por
uma fase de incertezas. Enquanto forças conservadoras laicas e religiosas ocupam posições de
destaque no Poder Legislativo Federal, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, junto com as de
Igualdade Racial, de Juventude e de Direitos Humanos perderam em 2016 seu status de ministério
e passaram a ser subordinadas à pasta da Justiça, com o que perderam recursos, capacidade de
atuação e legitimidade junto aos movimentos sociais. Segundo reportagem da Rede Brasil
Atual, recursos federais destinados a políticas para mulheres, igualdade racial, LGBTs e direitos
humanos caiu 35% em 2016 em relação ao ano anterior, o que acarreta redução nos repasses para
estados e municípios136. As feministas com quem estive em contato no Rio de Janeiro falam em
“sucateamento” dos equipamentos de combate à violência contra a mulher e “desmonte” das
políticas de gênero. Embora ainda seja cedo para prever o futuro, é possível imaginar a
possibilidade de um processo parcial “des-institucionalização” das relações entre feminismo e
Estado. Assim, com as transformações no campo das ONGs e da burocracia estatal, o status das
institucionalizadas no campo feminista vem se transformando. Ao mesmo tempo, outros atores
vêm ganhando visibilidade e outras formas de relações entre eles vêm emergindo.

Ainda em 2014, eu me aproximei de atividades eventuais da Camtra (Casa da Mulher


Trabalhadora), uma ONG feminista carioca fundada em 1997, da qual algumas vadias eram
colaboradoras eventuais. Algumas das ativistas fundadoras da MdV carioca, como Petra, Keila e
Filomena, que são também mais velhas e mais experientes que a maioria das vadias, mantinham
relações de proximidade com a Camtra há vários anos. A AMB, representada por Petra, e a Camtra
eram duas das organizações com maior visibilidade e incidência no FEM e na Frente Estadual Pela

136
http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/01/governo-temer-reduz-em-35-investimentos-em-politicas-de-
direitos-humanos-2206.html (u.a. 14 de dezembro de 2017)
173

Legalização do Aborto do Rio de Janeiro (ou Frente)137. Keila e Filomena colaboravam em


atividades promovidas pela Camtra, em especial as que eram voltadas para lésbicas. Por meio
dessas conexões prévias, Gardênia, na organização da MdV desde 2012, também se aproximou
bastante da ONG, se tornando uma colaboradora constante. Também outras vadias eventualmente
circularam por lá.

Em entrevista, Janaína, 30 anos, uma das coordenadoras da Camtra138, define assim a atuação da
ONG:

O que marca o perfil da Camtra é buscar atuar junto a mulheres que a gente pode
conceituar como trabalhadoras, no sentido socioeconômico mesmo, mulheres que não têm
histórico de militância, e que estão inseridas, de uma forma geral, em profissões mais
precárias, ou dona de casa, ou moradoras de comunidades mais pobres. (Entrevista
concedida por Janaína em 23 de junho de 2015)

Além de criar e executar projetos nas áreas de direitos sexuais e reprodutivos, educação, trabalho
e violência contra as mulheres, a Camtra busca atuar na “articulação dos movimentos sociais”.
Como explica Janaína, “apostamos na organização coletiva e na auto-organização, por isso pra
gente é tão importante fazer parte, e, ao mesmo tempo, impulsionar, fortalecer [o movimento
feminista]”.

Por conta das relações de colaboração e pessoais estabelecidas entre vadias e a Camtra, e pelo fato
de esta ONG apresentar sua atuação como voltada para “mulheres pobres”, ela era percebida pelas
vadias como menos institucionalizada que as demais. Também contribuía para esta percepção o
fato de a ONG desempenhar um papel de “articuladora” do movimento, puxando reuniões do FEM
e da Frente, oferendo suas salas para estes encontros, fornecendo bandeiras, panfletos, barracas,
preservativos e outros recursos para atos do calendário feminista da cidade (mais sobre o
calendário adiante). Enquanto outras ONGs dedicavam-se mais estritamente aos seus “projetos”,

137
“A Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto foi criada nacionalmente
em 2008 e, em seguida, estruturadas nos estados, reunindo pessoas, organizações, movimentos sociais e
parlamentares comprometidos ao mesmo tempo com a defesa das mulheres criminalizadas pela prática do aborto e
com a luta em defesa do direito ao aborto legal e seguro” (https://www.facebook.com/Frente-contra-
Criminaliza%C3%A7%C3%A3o-das-Mulheres-pela-Legaliza%C3%A7%C3%A3o-do-Aborto-RJ-
424275597693545/, u.a. 5 de dezembro de 2017). A Frente Estadual do Rio de Janeiro é composta de diversas
organizações, entre as quais as mais atuantes estão também no FEM: Camtra, AMB, Marcha Mundial de Mulheres,
Setorial de Mulheres do PSOL, Redeh, entre outras. Ver nota 3 para uma breve descrição dessas organizações.
138
Janaína é filha da fundadora da ONG e trabalha lá desde os 14 anos de idade.
174

a Camtra destinava parte do seu orçamento139 para atividades “militantes”, o que era percebido
pelas vadias e outras atoras como uma qualidade positiva, de “proximidade” com “as pessoas
reais”. Portanto, a categoria institucionalizada carrega uma evidente conotação de classe, além de
estar permeada pela proximidade entre a instituição e a “militância” e pelas relações pessoais entre
as atoras.

Ter frequentado as reuniões para a construção da ala feminista nos protestos anti-Copa, onde
presenciei a tensão entre as vadias e mulheres de organizações e partidos, me fez querer conhecer
estes setores do movimento para compreender o campo de forças em que autônomas e
institucionalizadas, entre outras categorias, se diferenciavam e se definiam mutuamente. Foi assim
que em 2014 e 2015, conforme eu encerrava meu trabalho de campo na Marcha das Vadias e
passava a acompanhá-la apenas “de longe”, eu passei a frequentar as reuniões do FEM e da Frente,
dois dos principais fóruns feministas ativos na cidade, dos quais a Camtra é integrante e uma das
principais articuladoras. Esses dois espaços reúnem um considerável número de organizações de
mulheres e feministas, em sua maioria concentradas na capital do estado. Via de regra, ambos se
mobilizam em função do chamado calendário feminista de lutas, constituído por eventos
comemorativos de datas simbólicas e rotinizadas do movimento: o 8 de março (Dia Internacional
da Mulher), o 28 de maio (Dia Nacional de Luta pela Redução da Mortalidade Materna), o 28 de
setembro (Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Pela Descriminalização do Aborto) e o 25
de novembro (Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher). Há também o 25 de julho
(Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha) e o 20 de novembro (Dia
Nacional da Consciência Negra), organizados por instituições e articulações de mulheres negras,
algumas delas também integrantes dos fóruns mencionados. Ocasionalmente, esses fóruns
organizam ações extraordinárias, motivadas por eventos críticos, como ameaças legislativas
iminentes e “mortes evitáveis” de mulheres com destaque na mídia (por exemplo, em clínicas
clandestinas de aborto e em maternidades públicas). Em geral, todos esses eventos têm o formato
de marchas ou “eventos parados” em ruas e praças importantes.

139
A Camtra é financiada tanto por organizações nacionais, como o Fundo Elas, como internacionais, como o Global
Fund for Women, entre outras. Conta também com doações de pessoas físicas, arrecadadas em campanhas de
crowdfunding. Apesar disso, as coordenadoras da ONG relatam que a captação de recursos é insuficiente, o que
constantemente coloca dificuldades orçamentárias à organização.
175

Esses dois fóruns têm, portanto, um tipo de atuação que podemos denominar simbólica, que
consiste basicamente na organização de manifestações de rua. Durante o período que frequentei
esses espaços (com bastante regularidade nos anos de 2014 e 2015 e ocasionalmente a partir disso),
houve tentativas de manter uma forma mais consistente de mobilização, mas sem sucesso. Durante
o período da Copa e Olimpíadas, por exemplo, o FEM tentou organizar um ciclo de debates sobre
os impactos dos megaeventos nas vidas das mulheres, mas as organizações integrantes não
conseguiram executar as tarefas acordadas coletivamente e a iniciativa não se concretizou. Tanto
FEM como Frente tentam monitorar as atividades do legislativo municipal e estadual referentes
aos direitos das mulheres, mas o fazem senão com muita dificuldade, com pouca ou nula
capacidade de lobby. Embora o FEM seja composto de dezenas de organizações localizadas em
diversas partes da região metropolitana, apenas algumas, e sempre as mesmas – as mais antigas,
que se concentram no Centro da cidade e/ou circulam nas principais redes feministas nacionais –
frequentam as reuniões presenciais e são capazes de influenciar as decisões, constituindo uma
hierarquia interna. Essas organizações coincidem, em grande parte, com aquelas que compõem a
Frente, de modo que a rede institucional feminista da cidade é bastante restrita e concentrada. As
expressões que eu mais ouvia nesses fóruns era “Não temos pernas suficientes” e “Estamos sempre
apagando incêndios; não conseguimos ir além”, com o que lamentavam as limitações de uma
atuação que basicamente consiste em “reagir”, e tem pouca capacidade de planejamento e
proposição.

Para organizar as atividades do calendário feminista, as instituições mais ativas dos fóruns
convocam reuniões ou “plenárias” presenciais, que junto com os atos, foram os principais objetos
de minhas observações. A minha proximidade com a Camtra140 facilitou minha entrada nas
reuniões desses fóruns, que costumam ser bastante restritas a organizações feministas já
conhecidas. Mesmo assim, o fato de que eu não era filiada a nenhuma instituição gerou alguns
constrangimentos, a começar pelo momento crucial da apresentação nas reuniões, em que eu não
era capaz de reproduzir a fórmula “nome + instituição”, já que estava ali na condição de indivíduo,

140
Eu colaborei com a Camtra como voluntária na revisão de algumas de suas publicações; na arrecadação de roupas
para o bazar de fim de ano; na seleção de estagiárias; na distribuição de rosas a mulheres na Central do Brasil e na
região comercial do Saara, realizada anualmente pela ONG no 8 de março; e nas barracas informativas sobre saúde
sexual e reprodutiva das mulheres, atividade que a organização fazia regularmente também no Saara. Minha
aproximação com a Camtra foi possível graças à minha amizade com três vadias, Gardênia, Keila e Filomena, que já
eram colaboradoras da organização.
176

e não representava nenhuma organização. Eu me apresentava como “feminista autônoma” e, ao


longo do tempo, como “colaboradora nas ações da Frente e do FEM”, mas essas coordenadas eram
insuficientes em um setor do campo feminista que toma as organizações (ONGs, associações,
partidos, sindicatos, entre outras entidades) como os principais pontos de referência de seu “mapa”
político. Eu não me apresentava como pesquisadora, porque meu principal objetivo inicialmente
nesses espaços era o ativismo e eu ainda não tinha clareza do quanto minhas experiências ali seriam
objeto desta pesquisa. Algumas vezes experimentei me apresentar como “colaboradora da Camtra”,
mas embora isso facilitasse a minha localização no campo pelas outras organizações, se revelou
uma posição desconfortável de habitar. Afinal, eu não era uma das funcionárias remuneradas da
ONG e, embora esta cultivasse relações com várias mulheres na condição de “colaboradoras” e
“militantes”, isso não implicava uma relação clara de “pertencimento”.

À medida que eu convivia mais com essas ativistas, e eventualmente entrevistava algumas delas,
minha condição de pesquisadora passou a ser mais visível, e talvez tenha se tornado tão central
quanto a de ativista na minha identidade em campo. Algumas conheciam minha orientadora, que
além de ser uma importante referência nos estudos de gênero, circula por espaços feministas com
frequência. Minhas atividades de pesquisa podiam ser lidas tanto positivamente, em especial por
aquelas que estavam familiarizadas com espaços acadêmicos, como negativamente, pelas que
rejeitavam o que chamavam de feminismo acadêmico ou academicista. O fato de ter participado
da Marcha das Vadias também deve ter sido considerado na minha classificação política, mas não
estou certa se de forma negativa ou positiva. Embora muitas das integrantes desses espaços fossem
críticas à MdV, havia também aquelas que frequentavam os protestos da Marcha, além de Petra,
umas das idealizadoras e organizadoras do protesto e figura bastante conhecida nos fóruns
feministas locais e nacionais.

Por outro lado, eu acredito que minha falta de “institucionalidade” era compensada pelo fato de eu
sempre me oferecer para ajudar nas tarefas necessárias, como a redação de atas de reunião e de
panfletos, e pela minha frequente presença naqueles espaços. Eu também evitava contrariar os
modos de organização daqueles fóruns ou propor coisas que, embora fizessem todo sentido no
contexto da minha experiência na Marcha, pudessem, eu desconfiava, ser consideradas impróprias
ali. Na verdade, eu nunca tinha tido outra experiência feminista fora da MdV e, por isso, realmente
não sabia como as mulheres de outros espaços atuavam. Eu levei bastante tempo para entender as
177

lógicas e práticas de mobilização das organizações que integravam a Frente e o FEM, e por isso,
eu ficava a maior parte do tempo em silêncio, ouvindo. Ao frequentar esses espaços, eu conheci
diversas ativistas de fora da organização da MdV, algumas das quais eu tive a oportunidade de
entrevistar, o que considero ter sido importante na reconfiguração do recorte da pesquisa,
inicialmente focado apenas na Marcha. Eu passo agora a explorar práticas de feministas com
experiência institucional e de gerações mais velhas e suas narrativas sobre feminismo, repertórios
e Marcha das Vadias.

Assim como as vadias buscam se diferenciar de feministas mais velhas e/ou com carreiras
institucionais, muitas destas criticam a MdV. Em geral as reprovações se voltam para o emprego
da nudez, considerado “contraprodutivo”. Morena, feminista de 44 anos com experiência
profissional em ONGs feministas e, no momento da entrevista, ocupando um cargo de coordenação
na Secretaria de Políticas para as Mulheres do Estado do Rio de Janeiro, celebra a existência da
MdV, cujos protestos frequentou durante os três primeiros anos, além de outras expressões do
feminismo contemporâneo, como as blogueiras e as grafiteiras:

Acho muito necessário esse feminismo novo. Pra mim tá dando maior vida, tá trazendo o
feminismo pro topo, pros trend topics [risos]. Que era uma coisa que já tava até meio
demodê, né. Eu tava me sentindo uma velha de 100 anos, toda enrugada [risos], mas agora
tô vendo que, assim, bem bacanas as questões, os debates. (Trecho de entrevista concedida
por Morena em 10 de agosto de 2015)

Para Morena, o feminismo passa por um processo de popularização, alcançando mulheres e


públicos antes restritos aos pequenos círculos militantes. A circulação da linguagem feminista na
internet e na cultura de massa – Morena lembra os episódios recentes de atrizes de Hollywood que
fizeram discursos por igualdade salarial na cerimônia do Oscar – são identificados como fatores-
chave para essa “nova” virada. Por outro lado, ela avalia que o “novo feminismo” pode ser “muito
radical”, algo que pode repelir o apoio das pessoas:

Eu não gostei da invasão à Igreja [no ano de 2012] porque no dia seguinte a mídia só
noticiava isso e não falou de mais nada que aconteceu durante a Marcha. A mesma coisa
eu penso sobre a nudez, os seios de fora: não é por moralismo que não gosto muito, mas
porque a mídia só foca nos peitos das mulheres e as pautas desaparecem de vista. (Idem)

Frida, feminista de 66 anos, integrante da AMB e uma das fundadoras, no final da década de 1970,
do SOS-Corpo, que veio a ser uma das principais ONGs feministas brasileiras, participou de
178

algumas edições da MdV. Embora, quando perguntada, ela conceda que goste de ir na Marcha –
“eu adoro ir, e vou fantasiada” – suas observações sobre este movimento são, de resto, bastante
críticas. Contrapondo à MdV a atuação de feministas em uma audiência pública sobre a
descriminalização do aborto no Congresso Nacional em 2015, ela avalia assim o uso que as vadias
fazem do corpo:

Está na origem da MdV, essa irreverência, essa coisa do corpo. Eu só não sei se hoje em
dia não seja contraproducente pro feminismo (...), porque se a gente faz a nudez e trabalha
isso, e produz texto, e analisa, e justifica, cria impacto positivo. A minha questão é criar
impacto positivo, porque eu acho que o feminismo está muito estigmatizado. Eu venho
dizendo em algumas reuniões: “a gente precisava desmanchar um pouco o estigma”. Não
é ficar agradando, mas desmistificar mesmo, colocando com seriedade a que nós viemos.
Acho que a gente está começando a retomar isso, por isso que eu digo que eu fiquei feliz
com a audiência pública, porque com toda a diversidade que a gente tinha ali, das mulheres
jovens às mais antigas, as intermediárias, pesquisadoras, comunicadoras, mulheres de
cabelo raspado, mulheres com cabelo mais tradicional – tinha ali um colorido, mas você
via ali que tinha um trabalho sendo mostrado, ideias sendo colocadas, um discurso que
não se deixou ameaçar pelas provocações. Eu acho que a gente está precisando disso, de
não cair na provocação, de não se deixar levar por elas, e de mostrar que existe um trabalho
sério por trás da nudez, ou do que quer que seja de irreverência, e que não é nudez pela
nudez. (Trecho de entrevista concedida por Frida em 20 de agosto de 2015)

Tanto Frida como Morena fazem questão de mostrar que suas restrições à nudez ou à irreverência
não são de natureza “sexual-moralista”, mas pragmática, e justificam suas preocupações em termos
da eficácia ou ineficácia política de certos repertórios. Para elas, os repertórios centrados no corpo,
na afirmação da sexualidade e na provocação podem produzir imagens indesejadas ou
“estigmatizadas” do feminismo, ora pouco “sérias” ora “radicais” demais. As vadias parecem
perturbar fronteiras que delimitam aquilo Frida e Morena consideram legítimo na política. A
política feminista é, para as últimas, um jogo que pode até ter um toque de irreverência, um
“colorido”, mas cuja eficácia depende de performatividades “sérias”. É um terreno em que deve
prevalecer um tipo de reciprocidade balizada pelo “respeito”: respeitamos as regras do jogo, somos
respeitáveis, seremos respeitadas (e ouvidas).

É, por isso, um jogo essencialmente cognitivo e racional: para elas, não são os corpos e as emoções
que produzem seriedade e respeito, mas sim, como afirma Frida – que tem larga experiência
profissional na área de comunicação de ONGs feministas – os “textos”, as “ideias”, as “análises”.
“Trabalhar a nudez” significa para ela “trabalhar ideias sobre a nudez”, algo totalmente distinto do
trabalho emocional e corporal realizado pelas vadias. Se por um lado, Frida e Morena “adoram ir
e se fantasiar” na MdV, por outro são céticas quanto à eficácia política dessa experiência afetiva e
179

corporal. Em outras palavras, para essas feministas de gerações mais velhas e com experiências
institucionais de militância, o corpo é um acessório da política, uma “presença ausente”, expressão
usada por Shilling (2003) para qualificar semelhante negligência do corpo pela sociologia141. Já
para as vadias, o corpo é central tanto para expressar suas bandeiras como para questionar as regras
consagradas do fazer política, duas instâncias que tratam como inseparáveis.

Essa visão cética sobre o corpo pode estar articulada à crítica que feministas mais velhas ou de
organizações têm feito à abordagem “individualista” do feminismo por parte de alguns campos.
Para Janaína, uma das coordenadoras da Camtra, a rejeição das vadias ao feminismo
institucionalizado parece estar associada à uma abordagem individualista, que considera
insuficiente:

A gente pode pensar o feminismo do ponto de vista individual: você pode ser feminista na
sua vida, nos seus atos. Mas isso, pra mim, é muito pouco. Não estou dizendo que não é
feminismo, mas, pra mim, feminismo tem que estar engajado com a concepção de
mudança de sociedade, mudança coletiva, feita socialmente, organizada, no sentido mais
da coletividade. (...) Eu fui em algumas MdV, acho que uma ou duas marchas... mais por
uma questão de não-reconhecimento, de eu não me sentir totalmente identificada, em dois
sentidos: um é esse, da organização, tipo “Você aqui [na MdV] é Janaína, você não pode
representar a Camtra”. Eu acredito na organização, enquanto movimento, enquanto
construção. E um discurso muito de: “O que vocês fazem está ultrapassado, e isso aqui
que é o feminismo”. Eu acho que é uma postura complicada, e acabo não me identificando.
E, ao mesmo tempo, tinha um discurso em determinado momento de: “Ah, é só uma
marcha, não é um movimento”, mas isso pra mim... não estou dizendo que não é
importante, acho que datas, marcos, passeatas são importantes, mas pra mim elas têm que
estar dentro de uma estratégia maior. (Entrevista concedida por Janaína em 25 de agosto
de 2015)

Janaína sugere que o fato de a MdV apenas admitir a participação de indivíduos, e não de
organizações, está relacionado com a ausência de uma “estratégia maior” de “mudança da
sociedade”. O “individualismo” é identificado não apenas como o escopo de atuação das vadias –
“sua vida”, “seus atos” e, poderíamos dizer, “seus corpos” – mas também como a sua metodologia
política: o agente da mudança deve ser o indivíduo. Para Janaína, ao contrário, a base da mudança
e dos próprios movimentos sociais é a “organização”, que para ela é tanto a “construção coletiva”

141
Não é apenas uma coincidência que tanto a sociologia como setores importantes do feminismo moderno tenham
historicamente tratado o corpo com reservas, já que a legitimidade de ambos os campos foi construída com base em
uma abordagem des-encorporada das sociedades em geral, e das mulheres em particular. Sobre as restrições da
sociologia feminista ao corpo, ver Witz (2000).
180

quanto as relações institucionais que a constituem, como, por exemplo, “representar” uma
instituição.

Morena, que é de uma geração intermediária entre as feministas dos anos 1970-80 e as jovens que
atuam hoje, nota que “não tem muitas mulheres mais velhas na MdV”. Eu pergunto por quê ela
acha que isso acontece, ao que responde que “as mulheres mais velhas são mais ‘caretas’”, e
rapidamente emenda: “nem vou falar careta, mas com modos mais tradicionais de falar e fazer as
coisas”. Outro relato interessante me fez uma amiga na casa dos 30 anos que foi a um dos protestos
da Marcha com uma feminista lésbica que tinha mais ou menos o dobro de sua idade. Chegando
lá, ao ver várias participantes com os seios de fora, a mais velha pensou em voz alta: “mas só as
jovens podem?”, num misto de lamento e interrogação. Mais tarde, ela tirou a blusa e o sutiã e,
segundo minha amiga, ficou muito feliz ao fazê-lo, dançando e posando para fotos. Também
Filomena, uma das idealizadoras da Marcha carioca, 56 anos, militante sindicalista, feminista e
lésbica desde o início da década de 1980, nos dá pistas para compreender essas diferenças
geracionais:

A Marcha, ela me impulsionou, como se tivesse dado uma oxigenada, fez eu tirar alguns
tabus da minha cabeça, porque, óbvio, por mais que eu queira acompanhar algumas coisas,
eu ainda tenho muitos resquícios de alguns tabus, eu tenho muitas coisas da educação que
eu tive, da época que eu vim. A própria nudez. Por exemplo, a gente, como feminista,
sempre lutou que o corpo exposto não era mercadoria, você não podia... então, você tem
que começar a olhar aquilo de outra maneira. (...) Na terceira marcha, o crucifixo no cu,
quebrar a santa, fez, não só a mim, mas muita feminista que se achava acima do bem e do
mal – porque é a feminista, porque tem a tese, e isso e aquilo – tirar o feminismo do porão
e começar a rediscutir o que é ou não o feminismo. Eu fui uma dessas. Eu acho que deu
uma balançada, uma sacudida naquelas feministas antigas, porque aquilo ali mexe, né?
Assim, o capital te quebra? Vamos quebrar o capital. Achei legal as pessoas saírem
quebrando algumas coisas aí, porque é prejuízo no capital, né? Quanta gente morre todo
dia quando os juros aumentam no banco, ou quando a aposentadoria fica presa? Não sou
eu que vou quebrar, mas não vou apontar o dedo. É a mesma coisa: todo dia a Igreja está
te botando no cu de qualquer jeito; aquilo ali só foi uma imagem, entendeu? Aí você
começa a ver de outra maneira. Até hoje eu converso com amigas minhas, da minha idade,
que são feministas: “Ai, mas o que é que foi aquilo da Marcha?”, “Será mesmo um
desrespeito com a imagem?” Bom, pelo menos nisso eu já dei uma avançada, né?
(Filomena, entrevista concedida em 25 de agosto de 2015)

Esses relatos falam de certos modos rotinizados de “fazer as coisas”, repertórios cognitivos,
corporais e emocionais consagrados ao longo de diferentes gerações de ativistas. Para as gerações
mais velhas, a nudez passa de um tabu cultural a um interdito político, um contrassenso na luta
contra a “mercantilização dos corpos”, que foi e ainda é um enquadramento importante para muitos
181

campos do feminismo. Quando essas barreiras caem e a nudez passa a ser celebrada na Marcha das
Vadias, ela pode parecer para as mais velhas uma coisa que “só as jovens” podem desfrutar. Tirar
a blusa ou apoiar os repertórios de destruição e violência do Coiote requer o aprendizado de outros
códigos culturais e de protesto.

Além da chave corporal e emocional da Marcha, outro problema identificado por Frida é a ausência
de um sentido inequívoco de unidade. Em sua percepção, falta na MdV a concertação de um
discurso ou “palavras de ordens” homogêneos, sem o que a própria diversidade da Marcha se torna
uma fonte de inquietação:

Frida: Me neguei [a ir na MdV durante a visita do Papa], porque eu raciocinava da


seguinte maneira: não tem como ser produtiva uma manifestação durante a visita do Papa,
no dia da passagem do Papa, em Copacabana, isso não dá samba, isso não dá certo, e eu
não participei, e não gostei do que soube que aconteceu lá.
Carla: Aquela performance das santas?
Frida: É, a performance, e depois toda a briga, “Fui eu”, “Não fui eu”, “Eu não sou
responsável”, assim. Ali era um tipo de decisão “Vamos fazer”, que ou se faz em conjunto
ou..., mas não parece que anda sendo assim. Você vê uma MdV que tem uma ala aqui,
outra ala aqui, outra ala acolá, você não vê um conjunto que se entende, e que está ali pro
que der e vier, e “A gente aqui, todo mundo defende todo mundo”. Essa pulverização, eu
tenho dificuldade com ela. Quando eu estive em algumas MdV (...), eu fico sempre
tentando integrar, eu fico feito uma maluca, andando de frente pra trás, tentando fazer com
que as palavras de ordem sejam as mesmas, tentando dar um sentido naquilo, uma espécie
de, sei lá, de doida, de maluca. (...) Eu acho que precisa ter ali um comando, mínimo que
seja, que diga: “Gente, vamos garantir o que a gente combinou aqui”. Eu deixei de ir nas
passeatas feministas de 8 de Março, porque se combinava “Não vão levar bandeira de
partido”, chega lá, vira passeata de partido. Não vou mais, não é o acordo, e eu acho que
os acordos têm que ser cumpridos, senão, não tem movimento que se sustente, ainda mais
com tamanha diversidade. (Entrevista concedida por Frida em 20 de agosto de 2015)

Essa angústia acerca de como construir “um sentido” claro e unificado a um protesto caracterizado
pela heterogeneidade é uma preocupação comum a outras feministas socializadas nas estruturas
organizacionais mais centralizadas e centralizadoras, em diferentes graus, das ONGs, do Estado e
dos partidos. A própria configuração de “alas”, um recurso coreográfico cada vez mais utilizado
em protestos recentes para expressar e acomodar a “diversidade” de agendas e atores, pode
comprometer, na visão de Frida, a unidade que considera necessária à eficácia performativa do
evento. Como Frida acrescenta, é preciso que as alas funcionem como numa “escola de samba”,
“formando um conjunto, um enredo”; mas se as alas “se esbarram, se acotovelam”, “não faz
sentido”.
182

As feministas de organizações e partidos também expressaram essa preocupação nas reuniões da


ala feminista dos protestos anti-Copa. Num primeiro plano, elas consideraram que as alas
compartimentalizam agendas, em vez de tratá-las como “transversais”, uma noção cara às
feministas, especialmente as que estão familiarizadas com a promoção de políticas de gênero a
partir de instituições142. Mas, uma vez aceitando essa limitação, era preciso dar “destaque” à ala
dentro do protesto – “ser diferente” – sem, contudo, comprometer a “unidade” do ato (ver figura n.
14). Quando as vadias propuseram mostrar os peitos, fazer “rolezinho feminista” entre alas e
“apitaço” contra os repertórios da “esquerda machista”, estavam performando mais uma vez a
transgressão das convenções sobre o que é considerado aceitável na política, nesse caso a noção de
unidade, que sabiam ser cara às institucionalizadas. Se para estas últimas confrontar a “esquerda”
colocaria em cheque a legitimidade do ato, para as vadias é uma expressão legítima do feminismo
e da individualidade. Como me disse Gardênia, vadia que frequentava a Camtra, a Frente e o FEM,
após uma das reuniões da ala, comentando o machismo dentro dos partidos e as limitações de ser
uma feminista nesses espaços: “o grupo não pode ser mais importante do que os princípios que me
fizeram entrar nele”. E completou: “É uma manifestação! Por que as pessoas têm que se comportar
igual?”. Segundo esta visão, o protesto deve ser o lugar por excelência da expressão da
individualidade e de identidades políticas específicas, enquanto a unidade seria uma forma de
privilegiar os interesses hegemônicos do grupo em detrimento das “diferenças”.

142
Sobre a noção de “transversalidade de gênero” no âmbito da atuação da Secretaria de Políticas para as Mulheres,
ver Aguião (2017), e no contexto das ONGs feministas, ver Alvarez (2014a, 2014b).
183

Figura n.14 - Ala feminista em protesto anti-Copa, junho de 2014. Integrantes com camisas e balões roxos. Ao
fundo, bandeiras de sindicatos, partidos e outros movimentos sociais.

O incômodo das feministas mais velhas e/ou institucionalizadas com a “falta de unidade” da
Marcha e outros protestos recentes está associado, como indica o relato de Frida, com o que
percebem como ausência de um comando centralizador, capaz de assegurar performances,
narrativas e sentidos convergentes, e de evitar repertórios imprevistos e dissonantes. No entanto,
embora os protestos da MdV estejam sujeitos, ou mesmo deliberadamente abertos, a imprevistos,
sabemos que há lideranças na Marcha, que fazem um trabalho prévio de incitação de um
determinado frame coreográfico. Por que será, então, que Frida e outras atribuem a esse protesto
uma “falta de unidade” e “comando”? O fato de que de que as coreografias da Marcha sejam de
irreverência, provocação, humor e nudez pode criar a ilusão de uma organização mais “frouxa” ou
mesmo de uma completa ausência de comando – uma “bagunça”. Há mecanismos de controle na
Marcha – lideranças, comissão de segurança, framings emocionais e corporais previamente
compartilhados – mas como ela adota uma performatividade de “abaixo os controles sociais” e de
“liberdade”, cria-se a ilusão de “falta de/da organização”. Assim, não é que não haja controle e
184

lideranças na MdV, mas sim que vadias/autônomas e institucionalizadas têm tipos diferentes de
controle e liderança.

As institucionalizadas esperam e se esforçam para que “os acordos sejam cumpridos”, o que
pressupõe não apenas uma definição precisa de quais serão os repertórios utilizados, mas também
de quais pessoas e grupos participarão da organização dos atos e terão permissão para falar
publicamente neles. Por isso, elas planejam eventos “unificados”, isto é, construídos e frequentados
pelas organizações feministas já conhecidas, que compartilham repertórios rotineiros, ainda que
possam ser objetos de disputa. Quando participei de reuniões da Frente e do FEM para planejar os
eventos do calendário feminista, percebi que as mulheres de organizações e partidos não estavam
dispostas a participar de atos organizados por autônomas nem a incluí-las na construção dos seus
protestos, reforçando um círculo bastante restrito de atoras autorizadas a integrar e representar esses
fóruns143.

Em 2014, sob a intensa repercussão da morte de Jandira Magdalena dos Santos Cruz e de Elizângela
Barbosa em decorrência de aborto clandestino na região metropolitana do Rio de Janeiro144, uma
feminista autônoma puxou um evento pelo 28 de setembro (Dia Latino-Americano e Caribenho de
Luta Pela Descriminalização do Aborto) no Facebook, que rapidamente contou com a adesão de
quase duas mil pessoas, um número bastante elevado se comparado a atos semelhantes na cidade145.
Paralelamente, a Frente se reuniu para planejar sua própria atividade. Uma vadia presente na
reunião informou sobre a iniciativa “independente” que já estava em curso, que logo foi alvo de
críticas das integrantes da Frente, que enfatizaram que, como não foram “convidadas” a construí-

143
Zuzu, colaborada da Camtra desde 2000, ao falar sobre seus planos futuros no feminismo, explicou que não teria
interesse de participar do FEM porque é um grupo que só “faz sentido” para feministas profissionais, ou
pesquisadoras, como eu: “acho que hoje talvez eu me animasse mais de participar de um grupo de estudos do que de
uma coisa tipo o FEM, que é uma coisa mais de articulação. Até porque é isso: articulação sem uma coisa por trás,
sem um alimento por trás... Se você não está trabalhando diretamente com isso, se você não está estudando isso, não
vejo muito sentido em ir numa reunião do FEM, me parece meio desconectado”. (Entrevista concedida por Zuzu em
2 de julho de 2015)
144
Em agosto de 2014, Jandira, 28 anos, mãe de duas crianças, saiu de casa para fazer um aborto em uma clínica
clandestina. Morreu durante o procedimento e teve seu corpo mutilado e carbonizado. Em setembro, o corpo de
Elizângela, 32 anos, mãe de três filhos, foi encontrado em uma vala em Niterói, com perfurações no útero e no
intestino após realizar um aborto em clínica clandestina. Os dois casos tiveram visibilidade na imprensa e redes
sociais, por meio de inúmeras reportagens e textos de protesto.
145
Página do evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/387212948098850/?active_tab=about (u.a. 29
de dezembro de 2017)
185

la desde o início, então não era um ato da Frente e, portanto, não iriam participar: “a organizadora
é ex-amiga de Sara Winter, do Femen”146, “temos nossa própria forma de nos organizar”,
“Copacabana não é o melhor lugar, pois é frequentada por mulheres ricas, que podem pagar 10 mil
por um aborto”, “as mulheres negras não vão, nem as organizações” – foram alguns dos
comentários das participantes. Apenas Filomena, da MdV e integrante da Liga Brasileira de
Lésbicas, organização participante da Frente, elogiou a iniciativa e defendeu que a Frente se
integrasse ao ato:

“Ir para Copa não é o ideal para a Frente, mas o espaço já vai estar ocupado. O ato em
Copa não vai dialogar só com quem mora lá. As organizadoras são punks, nem conhecem
a Frente, as organizações; elas fazem do jeito delas. A Sara pode estar lá, mas tem outras
maneiras de dialogar, com adesivo, com panfleto sério. Independente de quem puxa o ato,
é muito corajoso se manifestar”. (Fala de Filomena em reunião da Frente, 18 de setembro
de 2014)

A sugestão não foi acatada e ficou decidido que a Frente faria um ato próprio, chamado “Somos
todas Jandira! Somos todas Elisângela! Legalizar o aborto pela vida das mulheres!”, na Cinelândia,
centro da cidade, onde seria possível “dialogar com as trabalhadoras”. Se alguma integrante
quisesse ir também ao ato de Copacabana, poderia ir “como feminista autônoma, não como Frente”.
Acertaram de fazer uma arte para adesivo, um texto para panfleto e um evento no Facebook, onde
algumas pessoas questionaram a existência de dois atos separados: “Tem um ato sexta e outro
domingo, é isso? Alguém explica?”, disse uma mulher147. A mesma dinâmica se repetiu em outras
ocasiões, marcadas pelo paralelismo de atos da Frente e de autônomas. Como vemos, não basta

146
Como mencionei na nota n.42, o Femen foi criticado por feministas de todo o mundo. Como existiu, por um breve
período de tempo, uma unidade do Femen no Brasil, o grupo foi alvo de muita rejeição por feministas locais. O
Femen-BR foi coordenado por Sara Winter, uma figura controversa no campo, acusada de apenas querer “aparecer
na mídia”. Branca, jovem e magra, Sara corroborava as acusações internacionalmente feitas ao Femen de apenas
recrutarem mulheres que se encaixassem nos padrões de beleza. Sara também foi acusada de ter feito declarações
“nazi-fascistas”. Em 2013, a página do Facebook “Nós Denunciamos”, que não existe mais, publicou uma nota em
que acusava o Femen de ter sido patrocinado por uma marca de lingerie turca, durante um de seus protestos no país.
Dizia a nota: “O incômodo não vem do uso do corpo feminino nu ou de uma suposta competição com o feminismo
‘tradicional’, mas de uma desconfiança cada vez maior de ligações do Femen com movimentos de inspiração fascista
e neo nazi. O Femen internacional também atraiu dúvidas por suas declarações xenófobas, islamofóbicas e até
racistas. O Femen também é alvo de críticas por escolher as mulheres que participam dos protestos através de
critérios estéticos duvidosos para um grupo que diz lutar contra imposições patriarcais. Mas agora uma denúncia
grave chegou até nós. O Femen vende seus protestos! Está claro para nós que o Femen não é nada mais que uma
agência de modelos que finge uma agenda feminista e de direitos humanos para ganhar dinheiro” (O texto, que salvei
nos meus arquivos, não está mais disponível online).
147
Página do evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/573589756097401/?active_tab=about (u.a. 29
de dezembro de 2017).
186

puxar um ato pelo aborto para garantir a presença de feministas que, como as da Frente, se dedicam
ao tema: quem puxa o ato é um elemento ainda mais relevante nos cálculos e alianças políticas das
feministas, especialmente as de organizações. Puxar, mais do que um verbo, é um índice de
localização referencial, pelo qual as ativistas medem as distâncias políticas entre elas e outras no
campo feminista, um índice de identificação e legitimação política. Por isso a ênfase dada pelas
integrantes da Frente à diferença entre os “jeitos de se organizar”, seus e das autônomas.

Via de regra, os atos da Frente e do FEM são previamente planejados pelas organizações
integrantes em reuniões presenciais. Em casos de eventos críticos, esses fóruns podem levar alguns
dias ou semanas para se reunir e organizar uma manifestação, enquanto ativistas autônomas, cuja
autoridade para puxar um ato não depende da aprovação mútua das organizações, podem
simplesmente criar um evento no Facebook. Nas poucas vezes em que algumas organizações da
Frente e do FEM puxaram um “ato-relâmpago” sem consultar as demais, houve críticas por parte
das que foram excluídas do processo decisório, o que torna visível tanto as hierarquias internas
desses espaços – em que algumas organizações atuam, na prática, como um núcleo de coordenação
– como as tentativas de submeter as lideranças ao controle coletivo e reestabelecer o discurso de
igualdade entre as atoras148. Assim, fazer uma convocatória a todas as organizações conhecidas
para a construção do ato, mesmo que, no fim das contas, somente o núcleo esteja presente (como
aconteceu várias vezes), é parte do “jeito de fazer” das organizações feministas e condição para a
legitimidade do evento. A institucionalidade cria e pressupõe a interdependência entre as
organizações, que embora com capacidades desiguais de atuação, exercem um jogo mútuo de
legitimação e controle. A “unidade”, como discurso ou como performance, muito cara às feministas
institucionalizadas, é produto da manutenção dessas relações de interdependência. Para recapitular
até aqui, quero argumentar que os tipos de controle e liderança das institucionalizadas envolvem:

148
Em maio de 2017, quando dois casos de estupros coletivos ganharam visibilidade na mídia, o núcleo mais atuante
(ou poderoso) do FEM se reuniu privadamente, sem uma convocação ampla a todas as organizações integrantes, e
comunicaram na lista de e-mails do Fórum a decisão de fazer um ato “de resposta imediata”, “sem tanta organização
prévia”, “para não perdermos o tempo de mobilização”. Foram criticadas pela representante de uma organização
sindical participante do FEM: “Entendo o imediatismo em responder [aos estupros], mas quero salientar que mesmo
os atos do ano passado fazíamos reunião, as vezes com dois dias antes de realizar os eventos. Acho importante frisar
para que não vire um hábito entre nós não realizarmos, construirmos ou mesmo organizar as coisas de forma
coletiva, mesmo com todas as divergências em muitos aspectos que primam entre todas!”. Numa tentativa de retomar
o acordo de legitimação e controle mútuo exercido pelas organizações do FEM, a crítica expõe as hierarquias
internas. Há também outras disputas em jogo: a organização sindical de onde partiu a crítica e o núcleo que decidiu
fazer o ato têm posicionamentos historicamente divergentes dentro do FEM, como veremos adiante.
187

1) Restringir a organização dos atos às organizações já conhecidas, que compartilham linguagens


semelhantes de protesto, o que inclui 1A) não organizar nem participar de atos puxados por atoras
autônomas, que têm outros repertórios e alianças; e 1B) identificar-se com as “trabalhadoras”, o
que é tanto um discurso comum entre as organizações como uma forma de se diferenciar das
autônomas. 2) Ainda que haja hierarquias entre as organizações, e algumas atuem claramente como
lideranças, elas estão sujeitas a algum nível de controle mútuo, do qual emergem tanto a
legitimidade do ato como sua “unidade”.

O ato da Frente aconteceu num dia de chuva e contou com aproximadamente 50 pessoas, entre elas
várias feministas mais velhas e de organizações feministas, que formaram um grande círculo na
praça. Elas colaram os adesivos nas blusas, distribuíram e receberam panfletos. A batucada ficou
por conta das “jovens” da Marcha Mundial das Mulheres, cujas músicas “irreverentes” foram
depois elogiadas pelas feministas mais velhas149. Um megafone era revezado entre representantes
das organizações, cujas falas eram marcadas por um vocabulário compartilhado e ritualizado:
“Educação sexual para prevenir, contraceptivo para não engravidar, aborto legal e seguro para não
morrer!”; “É pela vida das mulheres!” (ver figura n. 15).

149
Em especial, essa paródia de um funk conhecido de MC Marcinho: “O Estado é laico/ Não pode ser machista/ O
corpo é nosso/ Não da bancada moralista/ As mulheres tão na rua por libertação/ Lugar de estuprador não pode ser na
certidão”.
188

Figura n. 15– Ato das institucionalizadas, setembro de 2014, Cinelândia. Momento das falas de encerramento. Foto:
Marcelo Elizardo/G1

O evento das autônomas, que se chamou “Ato pela legalização do aborto”, teve pelo menos o dobro
de pessoas, majoritariamente jovens, incluindo vários homens. Confeccionaram seus próprios
cartazes à mão e caminharam de um ponto a outro da orla. Várias vadias estiveram presentes e
improvisaram uma batucada com latas de tinta. Nenhuma representante das organizações da Frente
foi, exceto Filomena. Várias integrantes usavam roupas curtas e tinham inscrições na pele, como
na MdV (ver figura n. 16). Um megafone era passado de mão em mão, aparentemente sem nenhum
tipo de controle. Se comparadas ao ato da Frente, as falas aqui tinham menos fórmulas conhecidas
e apresentavam um tom mais pessoal e emotivo. Houve conflito quando um homem falou ao
megafone e foi imediatamente questionado por uma jovem, que argumentou que apenas mulheres
deveriam falar no ato.
189

Figura n. 16 - Ato das autônomas pela legalização do aborto, setembro de 2014, Copacabana. Fonte: Página do
evento no Facebook

Nos atos do calendário feminista em geral, os repertórios utilizados, reiterados a cada ato e
submetidos ao controle das organizações, são bastante ritualizados, ou seja, rotinizados e
estilizados, e, por isso, bem conhecidos pelo público que os frequenta. Primeiro, há a distribuição
de panfletos e de adesivos; depois, as falas ritualizadas das representantes de organizações e
lideranças locais; as músicas e gritos de guerra. Quando é uma marcha, as faixas e bandeiras das
organizações então abrem caminho nos trajetos usuais entre os principais centros de poder da
cidade; quando é um ato parado, pode haver alguma performance ou instalação como esquetes de
teatro e a disposição de sapatos femininos no chão, para simbolizar mortes por aborto ou violência.
Por fim, o fechamento do ato é feito com a batucada ou com os jograis de nomes de vítimas de
violência. Pode haver pequenas variações no tipo de coreografia, mas esses são os repertórios
básicos utilizados.

A confecção de panfletos em grande quantidade é uma característica marcante desses atos em


comparação com os protestos da MdV e de outros grupos autônomos. Não é só que as
institucionalizadas podem contar com recursos para impressão através de suas organizações, mas,
antes, que tomam como dada a confecção de um panfleto. Tanto quanto a presença das participantes
nas ruas, o panfleto materializa o ato, além de produzir o tipo de performatividade “séria” que
desejam. Em um mesmo ato, pode haver dois, três ou mais panfletos produzidos por diferentes
organizações, contendo uma ou duas laudas de texto em letras pequenas, em que apresentam um
190

“problema” relacionado à data comemorativa ou evento em tela, identificam causas e responsáveis,


propõem soluções e fazem demandas. Em sua redação, as ativistas evitam termos considerados
muito técnicos ou “acadêmicos”, mas a linguagem utilizada não deixa de ser formal e cheia de
jargões dos movimentos sociais: “cultura do estupro”, “lesbo-bi-transfobia”, “militarização da
cidade”, “criminalização da pobreza”, “racismo institucional”, “precarização da vida”, entre outros.
Os panfletos são distribuídos aos passantes e observadores, mas sobretudo às próprias participantes
do ato, que provavelmente já conhecem os enquadramentos ali expressos.

Os repertórios rotinizados e os panfletos são uma afirmação performativa da “organização”, da


existência de um “comando” e de uma “unidade”. Em contraste, nos atos das autônomas
geralmente não há panfletos, nem adesivos, nem falas rotinizadas ao microfone. O megafone á
passado de mão em mão; aparentemente não há um controle prévio de quem vai falar, ainda que
possa haver conflitos posteriores acerca de quem falou (o que não deixa de ser um tipo de controle).
As narrativas de quem fala são mais pessoalizadas, emocionais; as demandas políticas podem ficar
em segundo plano ou serem formuladas por meio de um vocabulário com menos fórmulas
conhecidas. As partes do ato são menos demarcadas: há uma abertura, uma caminhada e um
fechamento, mas não há o “momento” do jogral, o “momento” da batucada, o “momento” das falas.
Como sugeri acima, tudo isso pode criar uma aparência de “falta de comando” e “falta de unidade”
que camufla o trabalho de coreografia e controle realizado antes, durante e após o ato150.

Além disso, o tipo de frames e coreografias valorizados pelas autônomas pode fortalecer uma
relação carismática com a(s) liderança(s). Se a afirmação da organização não se faz a partir de atos
rotinizados, panfletos etc., se faz a partir de performances “surpreendentes” que fortalecem a figura
pessoal da(s) liderança(s). Nos protestos da Marcha, a figura de Sinara era a que mais se destacava.
Ela estava sempre à frente da faixa de abertura, megafone em mãos, peitos de fora. Criativa,
inventou vários dos mais debochados gritos de guerra da MdV, que cantava ao megafone, seguida
das participantes do protesto. Fanfarrona, fazia piadas dos policiais que escoltavam os atos da
Marcha, provocando gargalhadas e admiração. Era e é frequentemente convidada para falar em
eventos diversos, onde mantém o traço irônico. É percebida como um ícone da Marcha e um
símbolo trans – uma “diva”, como muitos se referem a ela e a outras “personalidades” LGBT. No

150
Um exemplo de coreografia pós-ato é a postagem e interpretação de fotos nas páginas do evento no Facebook,
quando se elaboram e se consolidam significados sobre o que aconteceu.
191

dia em que a entrevistei, numa casa colaborativa de ativistas que ela integrava, Sinara estava
conversando com uma jovem mulher trans que lhe pedia conselhos sobre como lidar com a
transição de gênero, o preconceito e outras questões. Não escondia o orgulho pela “legião de
seguidores” no Facebook, pessoas que lhe escreviam agradecendo por seu “exemplo” pessoal e
pela “coragem” que inspirava diante de uma sociedade transfóbica. Entre as próprias vadias,
também infundia admiração e respeito, com o que angariava apoio político em situações de
conflito, como no caso da “Missa de sétimo dia das santas”151.

Assim, tomando como referência, ainda que de maneira frouxa e com muita liberdade de
interpretação, a tipologia de Weber (1996), a coreografia incitada pela Marcha (e talvez possamos
estender isso às autônomas) favorece o surgimento de lideranças carismáticas, que mobilizam
qualidades pessoais e intransferíveis, que são o fulcro do exercício da autoridade e da legitimidade.
Dilatando este argumento às últimas consequências, é possível cogitar se a dificuldade de
rotinização de repertórios na MdV não se deve, justamente, à dependência desse tipo de liderança.
A Marcha é uma manifestação em que as pessoas se esforçam por serem cada vez mais
“fanfarronas” e “transgressoras”. A liderança sabe que a “fanfarronice” e a capacidade de
“surpreender” conferem autoridade. Por isso, ela se esforça para manter esse “padrão de
excepcionalidade” e “originalidade” em suas performances políticas.

Em contraste, as institucionalizadas, com seus panfletos, falas ritualizadas e outros performativos


da “organização”, despessoalizam, grosso modo, a autoridade, que se aproxima do tipo tradicional.
Elas não se abrem facilmente a pessoas “de fora” e restringem o papel de coordenação e liderança
de seus atos a organizações já conhecidas e reconhecidas como de uma mesma “linhagem”, ainda
que haja diferenças e divergências entre elas. Essas organizações estão ligadas por uma relação de
fidelidade, reiteração e autorização mútua. Esse reconhecimento recíproco, baseado em relações
de confiança construídas ao longo de anos entre “companheiras”, é a fonte da autoridade e
legitimidade da(s) liderança(s). É claro que, concretamente, há líderes carismáticas aqui também,
figuras fortes que mobilizam pessoas em torno de si, mas a autoridade é legitimada publicamente

151
Havia outras lideranças importantes na MdV, como Petra, Keila e Teresa. Elas também desempenhavam papel de
destaque nos protestos e capitalizavam, com base em suas qualidades pessoais, admiradoras e apoiadoras entre as
vadias. Mas Sinara se destacava mais do que elas. Inclusive, quando Petra e Teresa brigaram com Sinara por conta
da “Missa de sétimo dia das santas”, elas a criticaram por seu “capricho” e por desempenhar o papel de uma
“personalidade” com suas “seguidoras”.
192

pelo apelo a “manter os acordos” coletivos, os “modos de fazer” em que o grupo acredita e que se
esforça por manter. Há, talvez, alguns traços do tipo racional de autoridade, na medida em que há
esforços para limitar o arbítrio de lideranças e as hierarquias internas, como quando as lideranças
do FEM foram criticadas por puxar um ato-relâmpago sem consultar as demais.

Tendo isto em mente, quero agora dedicar um pouco de atenção ao ritual político das falas nos atos
das institucionalizadas enquanto uma das mais importantes performatividades de produção e
legitimação das lideranças. As representantes das organizações são chamadas uma a uma ao
megafone ou microfone para falar. Seus discursos contêm fórmulas que são repetidas em diversas
falas, como estatísticas de violência contra a mulher (“a cada quinze segundos uma mulher é
espancada no país”), quem são as vítimas (“as mulheres negras e pobres são as mais atingidas”),
falhas ou ameaças aos mecanismos de proteção de direitos (o “sucateamento” dos hospitais, o
“fundamentalismo religioso”), gritos de guerra (“Fora Crivella!”152, “Por mim, por nós, pelas
outras”). Ao microfone, as ativistas se dirigem às outras como “companheiras”, numa performance
estilizada e fluente, que indica um longo processo de aprendizado e treino. As mulheres que
coordenam o ato exercem grande controle do microfone. Estão autorizadas a falar apenas
organizações e ativistas conhecidas e reconhecidas como autoridades legítimas. Nesses atos, onde
a presença de homens é bem escassa, dificilmente eles chegariam a furar a barreira de controle do
megafone como ocorreu (não sem resistência, é verdade) no ato das autônomas em Copacabana.

Frequentemente as vadias que iam a esses atos se diziam enfadadas. Se queixavam que as falas se
repetiam muito e que era “sempre a mesma coisa” em todos os eventos. Eu também tinha a
impressão de que as falas eram repetitivas e pareciam mais uma formalidade, uma tarefa a ser
cumprida (e que elas faziam questão de cumprir), do que uma tentativa de “comunicar” ideias e
projetos. Ao final dos atos, eu tinha recebido, assim como as outras participantes, vários panfletos,
de conteúdos bastante similares, que futuramente encheriam uma pasta grossa. Para que e para
quem as ativistas falavam? Por que tanta repetição? A repetição de fórmulas conhecidas, tanto nos
panfletos como nas falas, indica que tão ou mais importante do que o que se fala e escreve, é o ato
mesmo de falar e escrever, com o que as organizações se fazem presentes perante as outras e

152
Marcelo Crivella é o atual prefeito da cidade do Rio de Janeiro. “Bispo licenciado” da Igreja Universal do Reino
de Deus, Crivella já foi senador e ministro, e tem posições conservadoras em relação aos direitos sexuais e
reprodutivos.
193

perante o público. Ou, como colocou Maria Claudia Coelho (2009), essas “narrativas da
redundância”, são formas de se instaurar como sujeito de uma verdade compartilhada: “A novidade
não está naquilo que é dito, mas em quem o diz. Não se trata assim de afirmar uma nova verdade,
mas sim de apropriar-se dela”, afirma (Coelho, 2009, p. 131). Fazer uma fala é um “ato de fala”,
no sentido de Austin (1962) – a reiteração estilizada de discursos – por meio da qual se faz um
sujeito político e se afirma a organização153.

Por exemplo, Luana, ativista da Marcha Mundial de Mulheres, uma organização que sempre se
pronuncia em atos e reuniões feministas, vê na repetição de falas um exercício de poder pelo qual,
não apenas um sujeito se faz presente, como também legitima lideranças e reproduz hierarquias:

Como a gente cria o tempo todo um processo de formação, de diálogo, de modo que as
pessoas não se sintam fora, estejam elas há um mês ou há 10 anos na Marcha [Mundial de
Mulheres]? Porque tem muito isso, uma coisa de ego, né, vaidade. Você vai pra umas
reuniões e aí todo mundo em consenso, todo mundo falando a mesma coisa, e aí levanta
uma pessoa e faz uma fala reiterando tudo que todo mundo já disse, só pra falar que ela
está ali, uma fala completa de vaidade, sem levantar um elemento novo. Nossa! Eu acho
isso sério mesmo, acho que é um dos maiores problemas que a gente tem, porque o
coletivo, ao mesmo tempo que ele acolhe a gente, ele recrimina também, e quanto maior
for o movimento, acontece muito isso, a reiteração o tempo todo das nossas lideranças.
(Entrevista concedida por Luana em 21 de agosto 2015)

Além disso, na medida em que essas falas reiteram umas às outras e ecoam os mesmos “consensos”,
ajudam a produzir a imagem de “unidade” que é tão cara a estes grupos. Embora estes atos sejam
frequentados por grupos e pessoas distintos, o controle estrito de quem pode falar e como pode
falar evita que dissensos sejam publicizados. É assim que, no palco político, são todas
“companheiras”, ainda que as diferenças e disputas sejam bem conhecidas por todas. Portanto, o
falar e o escrever, imaginados como formas de comunicar frames para o público externo, produzem
também outras eficácias importantes: a performance de unidade política e a movimentação de uma
economia interna de hierarquias, visibilidades, reconhecimento e legitimação mútuos.

Mas a “unidade” é difícil de construir e manter. Ao contrário de constituírem, como postulam as


vadias em suas críticas, um campo homogêneo, estes setores mais institucionalizados são
diversificados e marcados por disputas e tensões internas. Grosso modo, essas disputas opõem

153
Silvia Aguião (2014) também percebe o caráter performativo da repetição das falas entre ativistas nas
Conferências de Direitos LGBT.
194

“feministas de organizações”, “feministas de partidos e sindicatos” e “feministas de Estado”,


reelaborando conflitos que já apareciam em décadas passadas. Ainda que sejam empregadas por
minhas interlocutoras em alguns momentos, essas categorias são tipos ideais criados por mim, e
portanto, não designam uma descrição exata do que encontrei em campo, mas recursos para melhor
compreender as disputas em jogo, que por sua vez jamais são fixas, mas se delineiam a partir de
situações concretas. Assim, os três tipos designam grupos cujas fronteiras são flexíveis e se
sobrepõem em diversas situações (por exemplo, há feministas de partidos no tipo que chamo de
“feministas de organizações”). Além disso, as feministas, inclusive autônomas, circulam por esses
diferentes espaços, borrando a todo tempo esses limites.

Assim como as vadias, as feministas de organizações são bastante críticas às de partidos e


sindicatos. Também elas consideram que as últimas colocam as agendas partidárias acima das
feministas e localizam no 8 de março o principal palco deste conflito, como relatou Frida.

No início de 2015, enquanto vadias e autônomas organizavam atividades comemorativas do Dia


Internacional da Mulher, sob o sugestivo lema “retomando o 8 de março!”154, uma reunião foi
puxada pela Camtra na lista de emails do FEM para a construção do “8 de março unificado”, que
acontece todos os anos na cidade. Foram no total quatro reuniões organizativas. Além da Camtra,
participaram dessas reuniões: representantes de outras ONGs, como ActionAid, Instituto PACS
(Políticas Alternativas para o Cone Sul) e Organização Mulheres de Atitude de Manguinhos;
organizações do movimento feminista nacional, como a Articulação de Mulheres Brasileiras
(AMB), a Marcha Mundial das Mulheres, a Marcha das Mulheres Negras, a Liga Brasileira de
Lésbicas, o Pão e Rosas e o Movimento Olga Benário; atores ligados a partidos, como o Setorial
de Mulheres do PSOL e o mandato do Deputado Flávio Serafini (PSOL); setores do sindicalismo,
como o SEPE (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação), o Movimento de Mulheres em
Luta e o Movimento Nacional Quilombo-Raça-Classe; grupos autônomos feministas, como o
Coletivo Mulheres em Movimento, o Femme Relações Internacionais da UFRJ e o PaguFunk; além

154
A “I Semana de Agitação Feminista”, como foram nomeadas as atividades, foi puxada por diversas integrantes da
Marcha das Vadias junto com ativistas de coletivos e outros grupos autônomos. Na página de organização do evento
no Facebook constavam as decisões tomadas na primeira reunião de organização, como por exemplo “Todas são
bem-vindas, inclusive as partidárias, mas não assinaremos em nome de nenhum partido e não permitiremos bandeiras
de partidos durante nosso ato no domingo ["por motivos de" estamos "retomando o 8 de março"]”. (Citações da
página fechada de organização do evento no Facebook, a que tive acesso por ter sido convidada a ajudar na
construção)
195

de outros setores dos movimentos sociais, como o Coletivo RUA, a Consulta Popular e a
Associação de Afrodescendentes do Brasil155. Apenas mulheres frequentaram as reuniões.

Após a terceira reunião ainda não havia consenso sobre qual seria o “eixo” ou “pauta” do ato, nem
sobre seu formato. As participantes se polarizaram em dois grupos. O grupo liderado por
organizações, todas integrantes do FEM (como Camtra, AMB, Setorial de Mulheres do PSOL e
Marcha Mundial das Mulheres), defendia que o ato deveria tratar explicitamente da legalização do
aborto. Já as mulheres ligadas aos sindicatos, em especial aquelas vinculadas ao PSTU e à
tendência do PSOL Liberdade, Socialismo e Revolução (LSR), como o Movimento Mulheres em
Luta, o SEPE e o Pão e Rosas, propuseram como eixo principal do ato a crítica ao governo Dilma
e suas políticas de “ajuste fiscal” e “precarização da vida”, com o que pretendiam abarcar desde a
falta de água, luz e creches até o Estatuto do Nascituro e a falta de investimento no combate à
violência contra a mulher. As mulheres dos sindicatos/partidos disseram que o direito ao aborto é
um “debate da classe média” que “não dialoga com as trabalhadoras”, que estariam mais
preocupadas com questões que “sentem na pele”, como o desemprego. As integrantes do FEM
reagiram, se dizendo “chocadas” com essa ideia, já que “são as mulheres pobres as que mais sofrem

155
Algumas dessas organizações foram descritas na nota n. 131 e em outras partes deste trabalho. A ActionAid é
uma ONG internacional que “trabalha por justiça social, igualdade de gênero e pelo fim da pobreza”
(http://actionaid.org.br/). Possui uma sede no Rio de Janeiro e está sempre presente nas atividades do FEM. A
Marcha das Mulheres Negras aconteceu em 18 de novembro de 2015, reunindo em Brasília cerca de 30 mil mulheres
negras de todo o país. Encontros preparatórios foram organizados desde um ano antes, em diversas cidades. A Liga
Brasileira de Lésbicas é “uma articulação de grupos, entidades, movimentos, lésbicas e bissexuais autônomas”
(https://lblnacional.wordpress.com/sobre/). O Pão e Rosas, integrante do movimento latino-americano Pan y Rosas,
surgiu no Brasil em 2007 (https://www.facebook.com/PaoeRosasBrasil/). O Movimento Olga Benário, socialista,
surgiu na formação da delegação brasileira à 1ª Conferência Mundial de Mulheres de Base, realizada na Venezuela,
em 2011 (https://www.facebook.com/olga.benario.14/). Tem núcleos em diversos estados do país e, no Rio de
Janeiro, se faz presente nas atividades do FEM. Flavio Serafini é deputado estadual pelo PSOL e seu mandato, na
figura de suas assessoras, participa das atividades do FEM (http://www.flavioserafini.com.br/). SEPE é o Sindicato
Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (http://www.seperj.org.br/). O Movimento Mulheres em
Luta é um “movimento feminista, classista e socialista” vinculado à Central Sindical e Popular da Coordenação
Nacional de Lutas (CSP-Conlutas), ligada ao PSTU (http://mulheresemluta.blogspot.com.br/). O Movimento
Nacional Quilombo-Raça-Classe, também vinculado à CSP-Conlutas, “organiza a luta de trabalhadores e jovens
negros” (https://www.facebook.com/racaeclassesp/). O Coletivo Mulheres em Movimento foi um “coletivo feminista
e anticapitalista que atua[va], principalmente, na região da Zona Oeste do Rio de Janeiro”
(https://www.facebook.com/cmulheresm/). Extinto em 2016, deu origem à “Coletiva Visibilidade Lésbica”. O
Coletivo Femme RI-UFRJ “busca pensar criticamente as lacunas sobre mulheres e gênero existentes dentro do
campo das Relações Internacionais” (https://www.facebook.com/coletivofemmeri/?fref=ts). A Consulta Popular se
assemelha a um partido e surgiu em 1997, impulsionada por movimentos como o MST, com o objetivo de
“contribuir na construção de um Projeto Popular para o Brasil” (http://www.consultapopular.org.br/). Não consegui
encontrar informações sobre a Associação de Afrodescendentes do Brasil (Todos os acessos em 8 de novembro de
2017).
196

com a criminalização”. Uma integrante do Setorial de Mulheres do PSOL disse que, como militante
de partido político, ela tinha aprendido que era preciso “tratar o espaço do 8 de março como aquele
em que as mulheres têm protagonismo e condições de trazer as suas questões mais específicas, o
que não quer dizer esquecer das questões gerais”. Diante da dificuldade para “construir acordos” –
o que, alguém pontuou, “acontece todos os anos” – as participantes enfatizaram a importância de
“zelar pela unidade do ato”.

Enquanto o grupo do FEM insistia em uma “atividade parada”, as outras preferiam uma “marcha”.
Como eu entendi mais tarde, naquele contexto a marcha ou passeata é um formato que as feministas
de organizações consideram favorecer os repertórios e coreografias dos partidos e sindicatos, com
suas enormes bandeiras e a velha “briga pelo microfone” obliterando as “pautas feministas”. “Fazer
passeata contra a Dilma é se juntar com conservadores”, disse uma representante da AMB, em uma
reunião exclusiva das organizações do FEM, em que algumas ativistas relembraram o 8 de março
do ano anterior, classificado como um “desastre”, “sem unidade”, “rachado”, com os “acordos
descumpridos”, cada grupo entoando suas palavras de ordem. Elas decidiram, então, se retirar da
construção do ato “unificado” e fazer um ato próprio: “as outras pautas são puxadas - luz, água,
violência policial – mas se a gente não puxar aborto, ninguém vai”, sintetizou a representante de
uma ONG. “Mas romper não fica ruim para a construção?”, alguém objetou? “A avaliação é”,
respondeu uma terceira, “construção do que? Vale a pena ficar em uma unidade que não existe?”.

Na quarta e última reunião, uma a uma as organizações lideradas pelo FEM se retiraram da sala,
após justificar a saída pela “falta de unidade”. As feministas e grupos autônomos apoiaram a
decisão. “Vocês estão rachando?”, perguntou uma integrante do Movimento Mulheres em Luta,
ligado ao sindicalismo e ao PSTU. “Vocês têm que ser mais honestas e assumirem que não querem
criticar o governo”, disse uma mulher do SEPE. “A questão não é o eixo nem o formato”, diz uma
representante da Liga Brasileira de Lésbicas, “a construção não tá rachando agora. A questão é o
nosso método, a forma de se inscrever, formar consensos. Temos que fazer uma autocrítica de
como a gente constrói unidade”. Uma feminista autônoma diz: “As companheiras não podem
deixar seus companheiros um minuto para levantar as bandeiras feministas. Todo homem de
esquerda é oprimido, mas também é nosso maior opressor”. Do outro lado, uma representante da
tendência LSR do PSOL denuncia que houve “um acordo para implodir o ato” e as sindicalizadas
197

acusam as que se retiravam de “irresponsáveis” e “autoritárias”. A reunião, que tinha começado


com mais de 50 pessoas, termina esvaziada.

A apenas uma semana do dia 8 de março, o grupo liderado pelo FEM começa então a organizar o
ato. Os acordos saíram rapidamente, porque já estavam sendo construídos nas reuniões exclusivas
que o grupo vinha fazendo paralelamente à reunião “unificada”. O lema do ato foi “Pela vida das
mulheres, legalizar o aborto já”. Foi um evento parado numa praça no centro da cidade que incluiu
a distribuição de panfletos, falas ao microfone e sapatos para simbolizar as mulheres mortas por
aborto inseguro, mas também “atividades lúdicas” cuja necessidade foi enfatizada pelas
organizadoras: um esquete de teatro, uma batucada, grafitagem, colagem de lambes e o
pisoteamento bem-humorado de um boneco do Deputado Eduardo Cunha156 (ver figura n.17). Ao
fim do ato, a avaliação das organizadoras foi bastante positiva. Como alguém sintetizou, foi um
ato “sem disputa, sem tensão, o que se refletiu nas falas: ninguém ficou falando da sua instituição”.
A “unidade” foi reconstruída, desta vez sem as feministas de partidos e sindicatos.

156
Uma das justificativas para a escolha do tema aborto foi a declaração, em fevereiro de 2015, do então presidente
da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, de que projetos de descriminalização do aborto só seriam votados
naquela casa “passando por cima do seu cadáver”. “Passar por cima” do boneco foi uma resposta irônica à essa
declaração. Sobre a declaração do deputado, ver reportagem disponível em
http://brasil.estadao.com.br/blogs/estadao-rio/aborto-so-vai-a-votacao-se-passar-pelo-meu-cadaver-diz-cunha/ (u.a.
10 de novembro de 2017).
198

Figura n. 17 – Ato do 8 de março de 2015, no Largo da Carioca. Mulheres “passam por cima do cadáver” do Dep.
Eduardo Cunha. Bandeiras do MST ao fundo.

Zuzu, 34 anos, entrou na Camtra em 2000, onde trabalhou por cinco anos. Hoje, é colaboradora da
ONG. Presente anualmente nos atos do 8 de março, ela não se recorda de algum que tenha pautado
o aborto senão este de 2015. Uma de suas melhores lembranças no movimento feminista foi de um
8 de março, no início dos anos 2000, que ficou marcado na sua memória pelo caráter de exceção
em relação a outros:

Eu lembro um 8 de Março, não sei se foi 2001 ou 2002, que, de fato, a galera se juntou e
fez um puta 8 de Março, colorido, bonito, e aí trocou as placas dos nomes das ruas
transversais à Rio Branco, trocou por nome de mulheres ilustres, tinha uma playlist
maneira, sabe assim?, uma coisa que de fato foi organizada pelo movimento. Então, esse
é um momento que eu lembro com muito carinho. Tinha uma coisa de dividir em alas,
então, teve a ala da juventude, e cada ala tinha um tema, a ala da juventude era a dos
padrões de beleza, aí a gente fez faixas de Miss Silicone, Miss de não sei das quantas,
enfim, foi supercriativo, foi superbonito, e superunido. É que a gente já teve 8 de Março,
por exemplo, que tinha tanta bandeira do PSTU, que a nossa brincadeira foi passar o 8 de
Março pintando no Photoshop todas as bandeiras vermelhas de lilás, né [risos]. (Entrevista
concedida por Zuzu em 2 de julho de 2015).

Esta narrativa do 8 de março como ato descaracterizado e apropriado pelos partidos políticos é,
como temos visto, bastante frequente e compartilhada por diferentes grupos e setores do feminismo
carioca, das vadias às feministas com experiências institucionais e outras. No entanto, em várias
dessas narrativas, fica claro que elas não estão falando de todo e qualquer partido, mas
199

especialmente do PSTU. É possível conjecturar que o 8 de março de 2015 só tenha pautado o aborto
em virtude de uma conjuntura política específica de acirramento não só entre “esquerda” e
“direita”, “liberais” e “conservadores”, como também entre as próprias forças de esquerda. Num
contexto em que o governo Dilma e o PT estavam sendo criticados por atores de todo o espectro
político, alguns setores de esquerda consideravam importante defendê-los ou, pelo menos, não
atacá-los. Alguns dos grupos que apoiaram a saída do ato unificado têm vinculações explícitas com
partidos. A Marcha Mundial de Mulheres, o primeiro grupo a se retirar da reunião, é vinculada à
corrente Democracia Socialista (DS) do PT157. O Setorial de Mulheres do PSOL era disputado,
como ficou evidente nas reuniões, pela tendência LSR, próxima do PSTU, partido de oposição ao
governo PT, e outras tendências que, embora críticas ao governo, não lhe faziam oposição formal,
e apoiaram a saída do ato unificado.

Em suma, as reuniões e narrativas do 8 de março põem em tela as intricadas relações do feminismo


com outros atores coletivos, o que exige negociação de diferentes interesses. As relações com os
partidos, ou melhor, com as mulheres dos partidos parecem ser as mais conflituosas, mas há
também mulheres de sindicatos, do Movimento Sem Terra, de movimentos de mulheres negras,
entre outras, que, nos momentos de encontro, como o 8 de março, trazem demandas e interesses
próprios. Se, por um lado, esses múltiplos pertencimentos aportam a tão valorizada “pluralidade”
às reuniões e atos, além de garantir que as feministas circulem em diferentes espaços e consigam
recursos, por outro desafiam a construção de acordos comuns.

O chamado “Feminismo de Estado”, que se consolidou principalmente a partir do Governo Lula,


nos anos 2000, também é alvo de críticas por parte de outros setores. Frida, que não teve uma
carreira no Estado, aponta como problemas a “falência” das políticas de gênero, a saída das

157
Luana, 25 anos, é ativista da Marcha Mundial de Mulheres desde 2010, em seu estado natal, Minas Gerais.
Quando se mudou para o Rio em 2012, estranhou a forte vinculação partidária da MMM carioca: “Aqui, no Rio,
você tinha uma conjuntura da Marcha [Mundial de Mulheres] muito vinculada ao PT. Era também muito concentrada
na cidade do Rio de Janeiro, você não tinha esse processo de nucleação, esse trabalho de base, que a marcha de
Minas fazia; aqui, não tinha um diálogo com outros movimentos, do campo. Aqui, onde tinha um trabalho de base
era nas universidades, e as meninas eram vinculadas ao PT. Eu tinha alguma dificuldade de diálogo com as meninas
que estavam na DS aqui, pela condução dos espaços, uma diferença muito grande, não de concepção, mas de
metodologia de trabalhar: aparece nos espaços, depois some, enfim, nessa dinâmica um pouco do partido também”
(entrevista concedida por Luana em 21 de agosto de 2015).
200

“cabeças” da militância e os próprios limites e impasses da política durante o governo do PT, que
à época das entrevistas já vivia a crise que resultou no impeachment da presidente Dilma Rousseff:

O que a gente tem no processo democrático é essa coisa clássica, né, de você ter pessoas
que estavam na militância e que vão pro governo, então, é um deslocamento. Não só isso,
como vão para o governo e chegam ali e não podem trabalhar, porque o governo está
amarrado, temos um sistema político que inviabiliza botar em prática as políticas, as leis
etc., que depende de alianças pra ter governabilidade, então, esse é um problema, porque
muitas feministas que antes estavam aqui, na militância, contribuindo aqui, estão do outro
lado, literalmente de saia justa, quando não traindo a causa, aí é o que é mais grave, né? É
um ambiente de decepção, de impotência muito grande. (Trecho de entrevista concedida
por Frida em 20 de agosto de 2015)

Outras feministas se mostram preocupadas com as próprias contradições de um “feminismo de


Estado”. Se reconhecem o impacto positivo das recentes normas legais, políticas públicas e outros
mecanismos estatais de promoção da igualdade de gênero na difusão do feminismo em campos
antes não cogitados – desde esferas profissionais, como entre professoras e enfermeiras, às
mulheres indígenas e rurais – por outro lado, se preocupam com a “dinâmica de amortecimento”
que esse mesmo processo tem provocado. Para Coralina, feminista atuante desde a década de 1970
e diretora de uma ONG no campo da saúde e direitos sexuais, o movimento feminista, assim como
outros atores sociais identificados com a esquerda política, tem sido “capturado” pela adesão
“instrumental” aos governos do PT:

Sabe-se que não é possível criticar o Governo Dilma porque é um governo de mulher, ou
é impossível criticar a ministra Eleonora, porque finalmente... Uma abdicação absoluta do
pensamento crítico, em nome de uma adesão de caráter político instrumental (...). Então,
tem esse problema, que é um problema que não é do feminismo, é um problema da cultura
política brasileira, né, a incapacidade de fazer a crítica do Estado, o Estado como
problema. (Trecho de entrevista concedida por Coralina em 20 de agosto de 2015)158

158
Um relato que corrobora esta avaliação foi feito por Rosana, 28 anos, integrante de dois coletivos feministas e ex-
ativista da Marcha Mundial de Mulheres: “Na época que eu participava da Marcha (Mundial de Mulheres) aqui do
Rio, a gente conseguia aglutinar mulheres de diversos lugares, desde a zona sul até da Baixada Fluminense. Isso pra
gente era muito rico, porque era ver a diversidade das mulheres, como as mulheres de diferentes partes do estado
conseguem construir um movimento feminista. E aí a gente tem uma questão política, no Brasil, que é a entrada do
PT. Quando a gente tem o PT no governo, a crítica não fica tão acirrada, e aí há uma vontade de calar algumas
demandas, algumas disputas, que pra gente é muito importante, por exemplo, a pauta do aborto, que foi muito calada
durante essa gestão do PT. Então, isso acabou criando um desgaste, algumas situações que preferi me afastar da
Marcha, apesar de ainda acreditar nessa beleza que a Marcha Mundial das Mulheres tem”. (Entrevista concedida por
Rosana em 20 de agosto de 2015)
201

Coralina se refere ainda à crise das ONGs, feministas e de outras áreas, relacionada ao mesmo
processo de imbricação com o Estado:

As ONGs estão desaparecendo, não tem mais ONG. Tem ONG feminista funcionando no
país mesmo? Quantas são? Dessa tradição, tem uma porção de ONG hoje virando
prestador de serviço, quer dizer, complementando o papel do Estado, sobretudo na área de
violência. Mas ONG como um lugar outro, né, como dizia o Betinho lá atrás, aquele lugar
da sociedade civil que articula ideias e questionamentos, tanto com relação ao mercado,
quanto ao Estado, tem quem?

Morena, que à época da entrevista era responsável por alguns dos equipamentos de combate à
violência contra a mulher do Estado do Rio, tem uma visão mais nuançada sobre ser uma feminista
de Estado. Ela prontamente relatou que trabalhava com recursos escassos, com os Centros de
Atendimento à Mulher e casas-abrigo passando por uma fase de desinvestimento, além da
inexistência de políticas de prevenção da violência contra a mulher. Conquanto reconhecesse as
limitações de seu trabalho (“Claro que eu não vou conseguir resolver tudo dentro do Estado”), ela
considerava importantes as possibilidades de interlocução e trânsito entre Estado e sociedade civil.
Ademais de “reclamar por dentro do Estado”, “fazer seus protestos ali”, ela não deixava de
comparecer aos atos da Frente e do FEM, além de recorrer às redes da internet. Eventualmente
escreve para as Blogueiras Feministas e “apresenta o quadro” (“olha, aqui no Estado tá acontecendo
isso e isso”). Já que ela “não pode falar”, as Blogueiras então publicam um texto-denúncia. Essas
estratégias mostram que as fronteiras entre Estado e movimento social, ainda que marcada por
relações de conflito e oposição, são também porosas, constituídas por pontes e trânsitos.

Em suma, nas interações entre vadias e feministas de ONGs, partidos e Estado, as categorias
autônoma e institucionalizada são mobilizadas como forma de diferenciação. Essas categorias,
como vimos, são sempre relacionais, acionadas de acordo com o modo como os atores em questão
são mutuamente percebidos no campo e nas situações específicas. Se elas pressupõem oposição e
conflito entre diferentes modos de fazer feminismo, é certo também que se abrem a relações de
colaboração.

Se os repertórios das institucionalizadas são considerados pelas vadias “pouco criativos” e seus
modos de organização, “hierárquicos” e pouco “autônomos”, aquelas, por sua vez, criticam as
vadias pela “ineficácia política” de seu nome, da nudez e da provocação, que produziriam imagens
estigmatizadas de feminismo, ora pouco sérias, ora radicais demais. Para as feministas que tiveram
202

carreiras institucionais, o corpo é um acessório da política, enquanto para as vadias assume um


valor central. As institucionalizadas valorizam um sentido de “unidade” e “organização”, que é
performativamente produzido por repertórios rotinizados, panfletos, falas reiterativas e lideranças
tradicionais, que, por sua vez, encobrem a heterogeneidade e os conflitos internos do setor. Já as
vadias apostam na excepcionalidade e na pluralidade, performadas por meio de coreografias
carnavalizadas de “desordem” e por lideranças carismáticas, o que encobre o trabalho de
organização.

Assim como feminismo autônomo não denomina um grupo homogêneo, tampouco o faz a categoria
de institucionalizadas. Entre aquelas que são ou poderiam ser classificadas como tal, há disputas
entre feministas de partido, de ONGs e do Estado. Como em outros momentos do feminismo, essas
disputas também giram em torno da categoria de autonomia, que permanece sendo um valor
político central do campo. Nos anos 2000, vimos estas disputas se reconfigurarem, com a
institucionalização da relação entre feminismo e Estado. No entanto, a recente mudança no status
dessa relação – simbolizada pela submissão da Secretaria de Políticas para as Mulheres ao
Ministério da Justiça no Governo Temer – possivelmente irá imprimir novas dinâmicas às relações
entre feministas.

Se a noção de autonomia, informada por diferentes coreografias de protesto e modos de


organização, é central nas disputas identitárias, o debate sobre a inclusão ou não de pessoas trans,
homens cisgênero e prostitutas como sujeitos do feminismo, muito presente nos últimos anos no
campo como um todo, e particularmente intensificado no Rio de Janeiro e nas redes sociais a partir
de ações da MdV, também excita a política identitária do movimento. É o que vamos ver na
próxima seção.

3.2. “RadFems”

Os debates teóricos sobre a construção de identidades políticas mostram como os sujeitos políticos
do feminismo são definidos, sempre transitoriamente, por meio de disputas e exclusões. Se, na
203

primeira e segunda ondas do movimento, o sujeito político do feminismo era “A Mulher”, a partir
da década de 80, há uma proliferação de categorias identitárias de mulheres. A politização das
experiências e corpos de mulheres negras, lésbicas, de países periféricos e, mais recentemente, de
pessoas trans, evidenciaram que a mulher que o feminismo representava era, via de regra, branca,
heterossexual, de países centrais e de classe média ou alta. Ao questionar a centralidade discursiva
desta mulher no feminismo, outras facetas da desigualdade entre homens e mulheres foram
iluminadas e, principalmente, as diferenças e hierarquias entre as próprias mulheres (Cabrera e
Monroy, 2014).

Como resultado desse processo de proliferação de sujeitos e discursos feministas, a noção de


“interseccionalidade” passou a ser fundamental para a visão que as gerações mais contemporâneas
do feminismo têm da “diversidade” e “inclusão” (Reger, 2014). No plano teórico, o conceito de
interseccionalidade, cunhado ainda no final da década de 1980 por Kimberlé Crenshaw (1989), é
uma ferramenta analítica para apreender a interação entre gênero, raça, classe, sexualidade e outros
marcadores da diferença na produção de sujeitos e relações sociais. No plano político, os sentidos
da noção de interseccionalidade transcendem o debate teórico e, como sugere Carolina Ferreira
(2015, p. 217), são produzidos “por meio da articulação entre feminismos, outras pautas de lutas
(por exemplo de pessoas trans, do movimento negro, de pessoas com deficiência) e a experiência
de sujeitos que ganham corpos e materialidades nesses cenários”.

Na Marcha das Vadias, desde sua primeira edição canadense, a noção de interseccionalidade foi
apropriada para designar o caráter “inclusivo” e “diverso” do movimento. Em seu site-manifesto,
a Slutwalk Toronto convoca pessoas de “todas as expressões de gênero e orientações sexuais, níveis
de ocupação, educação, raças, idades, habilidades, experiências e origens geográficas”. A
interseccionalidade também foi mobilizada nas Marchas brasileiras e, no contexto da Marcha
carioca, seus sentidos foram forjados na interação com diferentes sujeitos feministas: por um lado,
numa relação de identificação com as prostitutas e pessoas trans; por outro, numa relação de
conflito, com as chamadas feministas radicais ou RadFem, feministas negras e feministas
periféricas.
204

Muitos foram os embates online e presenciais entre vadias e as RadFem159, que, de modo geral,
definiam sua atuação pela oposição 1) ao discurso de “liberação sexual”, 2) à participação de
homens cis e mulheres trans nos espaços feministas, e 3) à regulamentação da prostituição – todos
enfaticamente defendidos pela MdV carioca. Nas disputas entre os dois grupos, RadFem apareceu
tanto como uma identidade política reivindicada por feministas como enquanto categoria de
acusação, mobilizada sobretudo por ativistas que se autodenominavam feministas interseccionais,
transfeministas ou putafeministas. É nas relações de oposição e aliança que esses grupos, sujeitos,
corpos e discursos se constituem mutuamente e ganham sentido. Nesta seção, eu procuro explicitar
os processos de constituição dessas categorias, a partir de eventos ocorridos na Marcha das Vadias
e no campo feminista mais amplo, procurando localizá-los no contexto político-social em que se
inseriam.

Num dos protestos da Marcha, uma autodenominada “grupa de feministas radicais do Rio de
Janeiro” distribuiu uma zine intitulada “Voz da Vulva”, em que afirmava que o discurso da
“liberdade sexual” resulta “em um cenário trágico no qual mulheres são coagidas, sob o pretexto
de serem tachadas de ‘antiquadas’, a relacionamentos abertos, sexo casual e afins (...) para atender
aos desejos de homens”. Também defendem a “abolição da prostituição”, por considerarem-na um
trabalho que transforma o corpo das mulheres em “mercadoria” e as submete à humilhação,
exploração e indignidade. Defendem os “espaços auto-organizados de mulheres”, ou seja, sem a
presença de homens, que “nos inibem de compartilhar experiências e sentimentos, atrapalhando na
percepção de nossa unidade”. Por fim, combatem o que chamam de “política da identidade de
gênero”, por “reduzir a categoria gênero ao individual, à escolha”. Gênero, argumentam, nunca é
uma “escolha” para as mulheres, mas uma “imposição” a todas as pessoas que “nascem com
vaginas”, que por isso serão socializadas da mesma maneira “subalterna”. A posse de uma vagina
e o tipo de socialização que acarreta seriam a base de uma “experiência comum” entre todas as
mulheres e, afirmam, “o que nos une como classe”.

Essas teses recuperam obras de feministas radicais norte-americanas da década de 1970, como
Janice Raymond, autora de “The transexual empire” (1979). Se baseiam naquilo que Linda

159
Outras nomenclaturas circularam nas redes para especificar diferentes grupos de RadFems, como TERFs (Trans
Exclusionary Radical Feminists, algo como Feministas Radicais que Excluem Trans) e SWERFs (Sex Workers
Exclusionary Radical Feminists ou Feministas Radicais que Excluem Trabalhadoras Sexuais).
205

Nicholson (2000) classificou como “fundacionalismo biológico”, a ideia de que a posse de um ou


outro tipo de genitália será interpretada culturalmente de forma a produzir certos efeitos na
personalidade das pessoas. Mesmo as teorias fundacionalistas mais atentas à história e à
diversidade cultural pressupõem que há pouca variabilidade na interpretação das genitálias, de
modo que o gênero seria produzido de forma bastante homogênea ao longo do tempo e entre
diferentes culturas. É a ideia de que “as constantes da natureza são responsáveis por certas
constantes sociais” (Nicholson, 2000, p. 12). Assim, supõe-se que todas as pessoas que têm vagina
serão socializadas de modo muito semelhante em toda parte. Aqui, os aspectos comuns entre as
mulheres e suas diferenças com os homens são privilegiados.

A noção teórica de interseccionalidade confronta essas ideias ao propor que a socialização de


gênero não é igual em todas as mulheres, mas é modificada por outras marcas de diferença, como
raça, classe, sexualidade, idade, deficiências, etc., além de variar bastante histórica e culturalmente.
Aqui, ser mulher não é unicamente resultado de ter uma vagina, assim como ter uma vagina não
produzirá sempre uma mulher. Várias outras marcas corporais, biográficas, sociais e históricas
interagem na produção da pessoa, de modo que a ideia de uma “essência” da mulher (o gênero) é
desconstruída tanto quanto a de uma “essência” do gênero (a genitália). Esta perspectiva abre
espaço para abordar as diferenças entre mulheres bem como as semelhanças entre mulheres e outros
sujeitos, além de explorar os próprios limites do binarismo de gênero, algo que a Teoria Queer
aprofundou ainda mais. As categorias de feminismo interseccional, transfeminismo e
putafeminismo são traduções e apropriações, no plano político, de algumas dessas ideias.

Na Marcha, desde a primeira reunião que fui em 2013, percebi que a “questão trans” era assumida
como dada, isto é, a presença de sujeitos e agendas trans raramente era questionada ou exigia
explicações e justificativas; era simplesmente tomada como legítima. Para as organizadoras da
Marcha, as pessoas trans compartilham a experiência e a identidade subalterna do feminino, o que
as legitimaria enquanto sujeitos do feminismo. No caso das mulheres trans, as vadias evitam
diferenciá-las das mulheres cis, e afirmam que “mulheres trans são mulheres”. Estas noções
seguem a tendência, observada nas últimas décadas, de ampliação ou desconstrução das noções de
mulher e gênero, e se contrasta com os argumentos, também bastante presentes no campo feminista
atual, que apontam a “condição biológica” das mulheres trans ou sua “socialização masculina”
como impeditivos para seu reconhecimento enquanto feministas.
206

Em parte, a legitimidade das pessoas trans enquanto feministas e vadias está relacionada à presença
de Sinara, travesti e prostituta, uma das principais lideranças da Marcha desde sua primeira edição
em 2011, além de outras pessoas trans que participaram ativamente do grupo organizador ou com
ele dialogaram ao longo dos anos. Havia uma grande preocupação, nas atividades da organização,
de incluir bandeiras (“combate à transfobia”), linguagem (pronomes neutros, respeito ao nome
social) e campanhas de divulgação que contemplassem pessoas trans. Ao longo de 2013, várias
vadias começaram a adotar o termo transfeminista para se referirem a si e à Marcha.

A facilidade com que a Marcha incorporou sujeitos e agendas trans foi objeto de crítica de
Filomena, vadia lésbica, em algumas ocasiões. Como ela me disse em entrevista: “A marcha, apesar
de ter várias lésbicas, ela pulou do feminismo pro transfeminismo, e abraçou de uma tal maneira –
que, aliás, o feminismo como um todo também está fazendo isso –, e as lésbicas continuam
invisíveis”. Esta avaliação me parece mais uma crítica ao fato que de que o feminismo, em sua
opinião, nunca tenha “abraçado” as lésbicas com o mesmo entusiasmo que as trans, e menos uma
rejeição à presença destas últimas na Marcha. Pelo contrário, Filomena enfatiza que acha um
“absurdo” “essas feministas radicais que são contra trans”. Assim, ainda que este tipo de crítica
indique uma disputa por visibilidade entre diferentes sujeitos, nunca foi percebido como uma
negação da legitimidade das trans, de modo que não houve conflitos.

Apenas seis anos antes do surgimento da Marcha a situação era bastante diferente. Como mostrou
Maluf (2006), no 10º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe (EFLAC), ocorrido em
2005, em Serra Negra, o tema foi objeto de acirradas disputas. Semanas antes do encontro,
mulheres trans reivindicaram oficialmente a sua participação no evento enquanto uma identidade
política específica do campo feminista, o que foi negado pela comissão organizadora. Na plenária
final daquele Encontro, a questão foi levada à votação e, após a apresentação de argumentos a favor
e contra, a participação das trans foi aprovada para o EFLAC seguinte160. Frida, que presenciou a

160
A autora enumera alguns desses argumentos: “Durante a plenária, enquanto os discursos favoráveis à inclusão das
transgêneros acionavam argumentos relacionados à construção social do gênero e da diferença, de que a presença das
trans é uma ‘consequência do movimento feminista’, necessidade de acatar a auto-declaração dos sujeitos, os
argumentos contrários denunciavam a precariedade e a novidade dessa discussão e os riscos de uma decisão não
amadurecida, até as defesas mais evidentes de que a diferença de gênero parte de uma ‘questão biológica’ e que essa
seria uma posição realista e não conservadora.” (Maluf, 2006, p.3)
207

decisão negativa da comissão organizadora antes do evento, avaliou que o principal nó era a
articulação da questão trans com a prostituição, que trouxe à tona disputas históricas do feminismo:

Foi votado, e perdemos. Eu votei a favor que abrisse [para pessoas trans], eu sou a favor
que abra mesmo, mas é a coisa das prostitutas, não querem, que “prostituta não é
feminista”. Eu acho que uma prostituta pode ser feminista, perfeitamente, eu não tenho
essa visão de que prostituição é tradução do patriarcado, da exploração. (Entrevista
concedida por Frida em 20 de agosto de 2015)

Quando estive presente no 13o EFLAC, em 2014, em Lima, Peru, a cena era outra. Mulheres trans
organizaram e foram convidadas para painéis e oficinas, e sua presença parecia normalizada; não
se falava muito nisso. A “questão da vez” (ou pelo menos uma delas) foi a prostituição161. Havia
um numeroso grupo de prostitutas, composto majoritariamente de mulheres cis, que se
autodenominavam trabalhadoras sexuais e eram integrantes da Red de Mujeres Trabajadoras
Sexuales de América Latina y el Caribe (RedTraSex) e da Asociación de Trabajadoras Sexuales
Mujeres del Sur. Elas organizaram pelo menos dois debates sobre o tema, em que buscaram
enquadrar a prostituição como trabalho sexual, categoria que diferenciaram de “tráfico de pessoas”
e “exploração sexual”. Na plenária de encerramento, Gina Vargas, feminista peruana
internacionalmente reconhecida e representante da comissão organizadora do evento, declarou que
“reconhecemos os direitos das trabalhadoras sexuais” e que “a diferença entre tráfico de pessoas e
trabalho sexual merece mais discussão”. Em seguida, vários grupos que reivindicavam identidades
políticas específicas subiram ao palco para fazerem as suas declarações finais. O grupo das
trabalhadoras sexuais disse que se sentiu “acolhido” no Encontro, falou sobre os vários tipos de
violências a que as prostitutas estão sujeitas em toda parte e declarou que “nossa dignidade não
está na vagina, mas na luta coletiva” 162.

Depois das declarações, as transfeministas, grupo composto por mulheres trans e apoiadoras,
pleitearam que se votassem duas moções antes do encerramento: a “participação de múltiplas

161
A discussão sobre “feminismo comunitário” – categoria defendida por feministas bolivianas indígenas para
designar o feminismo teorizado e praticado nos “pueblos” indígenas latinoamericanos, e que opunham ao
“feminismo branco” – também gerou debates e conflitos. Sobre feminismos indígenas e comunitários, ver Francesca
Gargallo (2013).
162
Outros grupos que subiram ao palco para fazerem suas declarações foram: “Divergentes de sexo e gênero”,
“Jovens”, “Mulheres de El Salvador”, “Trabalhadoras do lar”, “Mulheres migrantes”, “Pessoas trans e
transfeministas”, “Afrodescendentes”, “Mulheres afetadas pelas esterilizações forçadas (Peru)”, “Mulheres
encarceradas” e “Mulheres da Nicarágua”. A “declaração contra o feminicídio” foi a única que não foi feita
explicitamente em nome de uma identidade específica além de “mulheres”.
208

corporalidades, incluindo homens transexuais” e a “criação de um espaço autogestionado para


dialogar sobre a participação de homens independentemente de sua orientação sexual”. Houve um
acalorado debate, ao mesmo tempo em que o auditório se esvaziava. Uma parte das pessoas,
incluindo a comissão organizadora, protestou quanto ao método de decisão, argumentando que não
se podia votar a questão “sem amplo debate” e que uma “minoria” estava tentando “impor” a
decisão às demais. Outras mobilizaram argumentos contrários à participação desses outros sujeitos:
“homens trans são homens; a discussão é sobre a participação de homens”; “todas as mulheres,
ainda que não tenham vagina? Sim! Homens que se dizem feministas? Não!”. Algumas pareciam
favoráveis às moções, mas ninguém foi ao microfone defendê-las. O grupo de transfeministas
apenas insistia que a questão fosse votada imediatamente. Depois de mais de meia hora de impasse,
a comissão propôs que o ponto fosse discutido no próximo EFLAC por um grupo de debate e –
fazendo subir rapidamente ao palco estudantes de teatro cuja apresentação encerraria a plenária –
colocou fim à discussão.

Os EFLAC, que acontecem a cada dois ou três anos desde 1981, são frequentados por uma grande
diversidade de feministas que se reúnem para construir identidades, discursos e práticas políticas,
fortalecer redes de solidariedade e ativismo, elaborar conflitos e controvérsias ou, como colocaram
Alvarez et al (2003), imaginar e reimaginar comunidades e políticas feministas latino-americanas.
São, assim, um bom “termômetro” dos principais debates que movimentam as feministas da região.
De fato, a discussão sobre a participação de prostitutas e homens vem repercutindo intensamente
no campo feminista brasileiro atual. Ainda que não sejam questões “novas” para as feministas,
ganharam ímpeto nos últimos anos.

Segundo Adriana Piscitelli (2012), nas décadas de 1970 e 1980, embora a prostituição não fosse
uma preocupação central das feministas, houve momentos de aproximação positiva ao tema, como
na produção de filmes, entrevistas e debates em que a sexualidade das prostitutas era abordada em
termos de autonomia e prazer. Na virada do milênio, no contexto da atuação de ONGs feministas
inseridas em redes transnacionais e da articulação do movimento com o Estado, começam a ganhar
visibilidade leituras negativas da prostituição que a associavam ao “tráfico de mulheres”, uma
categoria que rapidamente se disseminou na agenda dos direitos humanos no país e no exterior.
Visões abolicionistas da prostituição se popularizam entre setores feministas: a prática é
considerada uma forma de “violência sexista” e como “exploração sexual”; a prostituta é vista
209

como “vítima” que precisa ser “libertada”; o direito de prostituir-se é negado; o cliente deve ser
penalizado. Piscitelli mostra que, apesar disso, há atualmente também outras leituras no campo,
desde feministas que, mesmo declarando sua dificuldade com uma atividade que consideram
“objetificar” as mulheres, não se opõem às organizações de prostitutas favoráveis à
regulamentação, até posturas mais abertas que afirmam a atividade como um trabalho, compatível
com o exercício de agência das prostitutas.

A emergência da Marcha das Vadias em 2011 mais uma vez voltou a instigar disputas sobre
prostituição no campo feminista brasileiro. Nas Marchas de diversas cidades, especialmente nos
primeiros anos do protesto, uma linguagem de combate à “mercantilização dos corpos” – que se
expressava, por exemplo, em cartazes que diziam “Nem santa, nem puta” – convivia com um
discurso de reconhecimento da prostituição como “trabalho sexual” – em cartazes como
“prostituição é trabalho, regulamentação já!” (Piscitelli, 2012; Barreto et al, 2017). Esta
ambiguidade gerou um debate entre as vadias cariocas, e mais amplamente em blogs e redes sociais,
onde se apontava a incongruência entre participar de um protesto cuja principal palavra de ordem
era “somos todas vadias” e, ao mesmo tempo, diferenciar-se moral e politicamente das prostitutas,
hierarquizando diferentes tipos de sujeitos e práticas sexuais. A partir do segundo ano, diversas
Marchas promoveram debates sobre a prostituição e buscaram elaborar discursos mais consistentes
sobre a questão. De modo geral, adotou-se um enquadramento de apoio às prostitutas e à
regulamentação da atividade, ou pelo menos, um discurso de não-oposição. Em alguns lugares,
essa reelaboração resultou em alianças políticas mais duradouras entre vadias e prostitutas. Ao
mesmo tempo, afastou das Marchas setores do feminismo que mantinham uma posição
marcadamente abolicionista, como a Marcha Mundial de Mulheres (MMM).

Em São Paulo, por exemplo, a Fuzarca Feminista, o autodenominado “núcleo jovem” da MMM,
recebeu a MdV de 2011 com entusiasmo. Um texto que publicaram no “Blog da ofensiva contra a
Mercantilização do corpo e da vida das mulheres” dizia: “Marchamos pelo direito de nos vestir da
forma que quisermos sem que isso seja usado de pretexto para violência e para nossa
desqualificação. Queremos viver em uma sociedade em que não sejamos mais divididas entre
vadias e santas, ambas sob o controle do homem. E se apropriar do termo ‘vadia’, nesse sentido,
210

tem a ver com tudo isso.” Este texto foi encaminhado para lista de emails da MMM-SP163,
incentivando a participação de suas integrantes na Marcha das Vadias de São Paulo, que
aconteceria em poucos dias. Em visão retrospectiva, é interessante notar como os enquadramentos
da MdV, neste primeiro momento ainda bastante elásticos, foram apropriados pelas jovens da
Fuzarca de modo a reverberar as preocupações da MMM com a “mercantilização das mulheres”.
No ano seguinte, entretanto, enquanto as MdV se posicionavam mais claramente pela
regulamentação, a Marcha Mundial de Mulheres considerou importante se diferenciar e publicou
um texto intitulado “A Marcha das Vadias e a Mercantilização do corpo e vida das mulheres”, em
que afirmou que a prostituição não é “uma forma de viver a sexualidade”, mas “representa a
mercantilização, violência e subjugação às quais as mulheres são submetidas”, e sugeriu que a
MdV reafirma a “falsa liberdade” e a “banalização da sexualidade” promovidas pelo “mercado
capitalista”164. No Rio de Janeiro, a mesma dinâmica foi relatada pelas vadias: integrantes da
MMM apoiaram a MdV em 2011, mas no ano seguinte foram ao protesto com panfletos em que
criticavam a Marcha e sua abordagem da prostituição e da sexualidade.

No Rio de Janeiro, as disputas em torno da prostituição foram especialmente intensas em virtude


do contexto dos megaeventos sediados na cidade: Rio+20 em 2012; Copa das Confederações da
FIFA em 2013, que aconteceu em seis grandes cidades brasileiras, no auge das Jornadas de Junho;
Jornada Mundial da Juventude Católica, no final de julho de 2013; Copa do Mundo de Futebol em
2014, que ocorreu em 17 capitais; e Jogos Olímpicos e Paralímpicos, em 2016. A realização desses
eventos implicou em transformações relevantes na configuração e gestão de espaços e populações
para atender a interesses de diferentes atores. Foi um período marcado pela militarização de favelas
e áreas consideradas de “risco”, obras de grande porte, remoções de famílias, especulação
imobiliária, criminalização de movimentos sociais, repressão às/aos trabalhadoras/es informais e à
população de rua, entre outros acontecimentos, sob a insígnia da “revitalização urbana”.
Movimentos sociais e pesquisadores disputaram os significados deste processo com o Estado e a
grande mídia, através de enquadramentos como “mercantilização” e “higienização” da cidade.

163
Eu tive acesso ao texto pela lista de e-mails, que é pública: https://lists.resist.ca/pipermail/marcha-sp/2011-
June/000085.html (u.a. 14 de janeiro de 2017).
164
O texto foi publicado no Brasil de Fato (https://www.brasildefato.com.br/node/9663/ u.a. 14 de janeiro de 2017) e
circulado em listas de email feministas.
211

Nesse contexto, uma das principais preocupações anunciadas pela mídia, políticos, movimentos
sociais (inclusive feministas) e outros atores foi, como mostraram Thaddeus Blanchette e Ana
Paula da Silva (2016), o “turismo sexual” e a “exploração sexual” de crianças e mulheres, que
seriam supostamente incrementados com a vinda de milhares de visitantes estrangeiros para os
megaeventos, em especial a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos. O pânico moral em
torno dessas noções, argumentam os autores, serviu para empurrar populações “problemáticas”
para fora de áreas de gentrificação e aumentar o controle segregacionista sobre esses sujeitos, em
nome da agenda dos direitos humanos (Blanchette e Silva, 2016, p.414). Desde 2012, bairros
turísticos foram alvos de batidas policiais anti-prostituição e diversos locais de sexo comercial,
inclusive em Copacabana, onde fica uma das principais áreas de prostituição da cidade, foram
fechados sob a acusação de “exploração sexual de crianças”, mesmo quando não havia evidências
disso (idem). Como aponta Ana Paula da Silva (2015, p.229), embora a legislação brasileira não
classifique a prostituição como crime, essas políticas acabam por transformá-la em prática ilegal
em nome da proteção de supostas “vítimas”.

Organizações feministas foram importantes empreendedoras morais nesta “cruzada” contra a


prostituição durante os megaeventos no Rio de Janeiro. Por exemplo, a capa de uma cartilha do
Movimento Mulheres em Luta, organização feminista ligada ao movimento sindical e ao PSTU,
dizia: “Na Copa das injustiças sociais, as trabalhadoras dizem NÃO À EXPLORAÇÃO SEXUAL!
CARTÃO VERMELHO PARA O TURISMO SEXUAL! O corpo da mulher não é mercadoria!”
(panfleto em papel, 2014, grifos originais). No interior do panfleto, há uma charge em que um
garçom, cujo rosto estampa o logotipo da FIFA, serve numa bandeja uma mulher negra de mãos e
pés amarrados a um “turista” faminto, com um sorriso libidinoso (ver figura n. 18). Durante as
Olimpíadas, a Camtra produziu a campanha “Não caia na rede! Não à exploração sexual de meninas
e mulheres!”, em que alertava para o perigo de “ofertas de trabalho fácil e lucrativo” e incentivava
a denúncia de casos de “exploração sexual”. Ambos os materiais citam “tráfico de mulheres”,
“exploração sexual”, “exploração sexual de menores” e “turismo sexual” como termos
intercambiáveis, autoevidentes e sinônimos de prostituição. Além disso, as mulheres apontadas
nessas campanhas como alvo preferencial das redes de prostituição são descritas como pessoas
vulneráveis, com pouca capacidade reflexiva e de agência, que precisam ser protegidas e
controladas “para o seu próprio bem” (Silva, 2015). No caso da cartilha do Movimento Mulheres
em Luta, há ainda a mobilização de códigos compartilhados por diversos movimentos sociais na
212

crítica aos megaeventos. Ao apresentar a prostituição como mais uma das “injustiças sociais” da
Copa, o panfleto aciona uma linguagem-ponte reconhecível por diferentes atores sociais, através
da qual o combate à prostituição é diluído no rol de “lutas” comuns.

Figura n. 18 – Detalhes do panfleto “NÃO À EXPLORAÇÃO SEXUAL! CARTÃO VERMELHO PARA O


TURISMO SEXUAL! O corpo da mulher não é mercadoria!”

Diante deste cenário, a presença de Sinara na MdV-Rio foi essencial para que as vadias pudessem
aprender e instrumentalizar enquadramentos alternativos à prostituição. Aos 44 anos quando a
213

entrevistei, Sinara se define como “puta, prostituta” e como “pessoa de peito e de pau”. Iniciou seu
ativismo no movimento de HIV/Aids, na cidade de Santos, no início dos anos 1990, quando se
tornou agente de prevenção no “meio trans” local. Esta inserção lhe franqueou também entrada no
movimento de prostitutas e de travestis. Quando a entrevistei, Sinara era presidenta de um grupo
trans-ativista e filiada ao PSOL, atuando no setorial de mulheres e LGBT do partido. Nas eleições
de 2016 se candidatou ao cargo de vereadora, e apesar de não ter se elegido, obteve um significativo
número de votos. Atualmente, mantêm um espaço de acolhimento de pessoas “LGBTI”, em
especial travestis e trans, a maioria trabalhadoras sexuais.

Reconhecida como uma das principais lideranças da MdV, Sinara tinha uma atuação pedagógica
nas reuniões e debates organizados pelo grupo, ao definir a prostituição como trabalho realizado
voluntariamente por pessoas adultas e ao diferenciá-lo de “exploração sexual de crianças” e de
“tráfico de pessoas”. Ela também falava de si e das prostitutas como pessoas fortes, autônomas,
com capacidade e inteligência para navegar as adversidades e otimizar as oportunidades, uma
imagem bastante diferente daquela mulher pequena, de pés e mãos atados estampada no panfleto
acima.

Para a maioria das vadias, era a primeira vez que tinham contato com uma prostituta e com uma
abordagem da prostituição que – além de divergir do frame vitimário com que as trabalhadoras
sexuais eram habitualmente marcadas no discurso abolicionista e midiático – era apresentada
diretamente por uma profissional do sexo, sem a mediação de porta-vozes cujo envolvimento na
causa, a favor ou contra, implicasse numa relação de alteridade com as prostitutas. Sinara tinha,
assim, a autoridade da experiência e da identidade de prostituta trans, uma autoridade que,
emanando da sua presença, é performativamente encorporada. No jogo das identidades, em que
atores mobilizam diferentes marcas de autoridade para habilitarem-se enquanto sujeitos políticos,
a presença de um corpo que se apresenta como autóctone é investida de legitimidade máxima. Esse
corpo se apresenta e é reconhecido como uma representação da verdade, não apenas de si, como
também de todos os sujeitos “semelhantes” que busca representar.

A presença de Sinara e de outras pessoas trans no grupo organizador se faz sentir no processo de
(re)elaboração dos discursos da Marcha. Se no primeiro ano da MdV carioca, o manifesto se
limitava a questionar a dupla moral sexual e a violência sexual contra as mulheres, a partir de 2012
o discurso se torna cada vez mais abrangente no que se refere a problemas e sujeitos políticos e, ao
214

mesmo tempo, mais localizado no contexto do país e da cidade. No manifesto daquele ano, a noção
de “violência contra as mulheres” é substituída por “violência de gênero”:

Nossa existência não pode ser aprisionada a estéreis divisões binárias de gênero e poder!
Não aceitamos a violência física, psicológica, econômica, jurídica, verbal e simbólica
contra as pessoas que se insurgem à essa lógica e se permitem serem mais! Queremos
respeito às diversas formas de se relacionar e agir no mundo. (Manifesto da MdV 2012)

Além disso, evocando os debates suscitados pelas Marchas nas redes sociais naquele momento
acerca da prostituição, a MdV busca apagar as distinções morais entre vadias e prostitutas e declara
apoio ao reconhecimento legal desta profissão. É interessante como as vadias se valem
estrategicamente do mesmo vocabulário acionado pelo movimento “anti-tráfico de pessoas” para
enquadrar a prostituição como trabalho, numa referência direta às falas de Sinara em diversas
reuniões e debates:

Nós, VADIAS, somos contra qualquer tipo de exploração, escravização e tráfico de


adultos, adolescentes e crianças. A prostituição (trabalho sexual) de pessoas maiores de
18 anos não é ilegal - é inclusive reconhecida através do artigo 5198-05 da Classificação
Brasileira de Ocupações, mas é importante que @s profissionais exerçam essa atividade
de forma livre, segura e espontânea. A prostituição deve ser entendida e respeitada como
mais uma profissão, e o Estado deve garantir as condições para o seu exercício com
dignidade. As prostitutas fazem parte do mercado de trabalho e como qualquer pessoa,
elas oferecem serviços que alguém deseja e paga. Reivindicamos o uso do termo VADIA
na nossa Marcha, pois acreditamos que ele é usado na sociedade brasileira como um
conceito pejorativo, para nomear as prostitutas ou a outras mulheres que decidem usar
seus corpos de maneiras distintas das formas pré-estabelecidas pelas configurações sócio-
políticas de gênero. Então, se ser livre é ser VADIA, somos todas VADIAS! (Manifesto
da MdV 2012).

Os manifestos de 2013 e 2014 abordam a prostituição no contexto das violações dos direitos das
trabalhadoras sexuais em nome dos megaeventos:

Temos assistido ao processo de limpeza social moralista da cidade do Rio de Janeiro em


preparação para a Copa das Confederações, Jornada Mundial da Juventude, Copa do
Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos. Na busca de construir um cenário que mostre um
“Rio de Janeiro para inglês ver”, a prostituição vem sendo silenciosamente higienizada
dos centros turísticos da cidade, incluindo o local onde esta Marcha será realizada. Este
processo apenas reforça o estigma e vulnerabiliza ainda mais as prostitutas, com destaque
para as que são extorquidas, humilhadas e exploradas por cafetões e cafetinas, donos e
donas das casas de prostituição que ainda restam, e ainda pela polícia e pelas
milícias. (Manifesto de 2013)

Em 2013, a Marcha organizou um debate sobre a prostituição, com foco no Projeto de Lei Gabriela
Leite (PL n. 4211/12), que propõe a regulamentação da profissão (ver capítulo 1). Naquela ocasião,
215

como vimos, estiveram presentes tanto debatedoras pró-regulamentação (Sinara, o deputado Jean
Wyllys e uma pesquisadora do tema) quanto abolicionistas (uma representante do Movimento
Mulheres em Luta) e uma prostituta que, embora a favor da regulamentação, tinha críticas ao PL.
Apesar de bastante tenso, a vadias se referem a esse debate como um importante momento de
formação política, em que diferentes forças, discursos e sujeitos estavam em cena. Em 2016,
passada a Copa do Mundo e às vésperas das Olimpíadas, o campo feminista parecia ainda mais
polarizado em relação ao tema. Em meio a intensas disputas, on- e off-line, sobre os significados
de “turismo sexual”, “tráfico de mulheres” e “prostituição”, a Marcha anunciou em sua página do
Facebook a roda de conversa “Turismo sexual e olimpíadas: quebrando tabus”, em parceria com o
Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro165.

Desta vez, havia nitidamente dois polos, designados pelos termos RadFem/abolicionistas e
tranfeministas/putafeministas166, e o conflito online entre eles era tão intenso que não foi possível
conciliar a presença dos dois grupos no debate presencial, conforme as vadias pretendiam. Depois
de muita discussão e ataques na página do evento no Facebook, a organização decidiu
“desconvidar” as RadFem/abolicionistas que se ofereceram para compor a roda, e mantiveram
apenas as putafeministas/transfeministas. Além de Sinara, estiveram presentes uma travesti, autora
de um livro sobre suas experiências pessoais com a prostituição e a transição de gênero, além de
doutoranda e candidata à vereadora de uma cidade paulista; uma prostituta cis, blogueira e
presidenta de uma organização de trabalhadoras/es sexuais; uma militante do Comitê Popular da
Copa e Olimpíadas do Rio; e uma pesquisadora e ativista do campo da prostituição.

Eu acompanhei o debate apenas de longe, pela página do evento no Facebook, que rapidamente se
tornou um “campo de guerra” de discursos e sujeitos. Aparentemente, o evento foi massivamente
denunciado por RadFems/abolicionistas ao controle de “conteúdos abusivos” daquela rede social,

165
Em 2010, as 12 cidades-sede da Copa do Mundo criaram seus comitês populares, formados por entidades,
movimentos sociais, pesquisadores, organizações e cidadãos, “para se opor às violações, abusos e ilegalidades
relacionadas ao evento”. (https://www.facebook.com/pg/ComitePopularCopaRJ/about/?ref=page_internal, u.a. 15 de
janeiro de 2018)
166
Nos usos êmicos de RadFem, esse termo abarca tanto feministas abolicionistas como aquelas que não
reconhecem mulheres trans e homens como sujeitos do feminismo. No debate organizado pelas vadias, as feministas
ora se referiam a si mesmas ou a outras como RadFem ora apenas como abolicionistas. Putafeminista e
putafeminismo são categorias que emergiram a partir de 2016, para designar o ativismo feminista protagonizado por
trabalhadoras sexuais, provavelmente como um contraponto às RadFem e abolicionistas.
216

com o objetivo de derrubar a página. Além disso, elas “inundaram”167 a página com links de
reportagens com visões aterradoras do “turismo sexual”, sobre o “sucesso” da criminalização dos
clientes na Suécia ou o “fracasso” de políticas de regulamentação empregadas em outros lugares.
Elas acusavam as vadias e suas convidadas de “romantizar” a prostituição, que equiparavam ao
“estupro”: “prostituição é estupro pago”, afirmou uma mulher; é “lamentável que exista um
feminismo que não entenda a relação entre exploração sexual e cultura do estupro”, disse outra.
Argumentavam também que a posição das prostitutas convidadas pela Marcha não “contemplava”
a maioria das mulheres nesta situação: “As pobres e feias terão vez pra dizer o que acham?”, “Vai
ter prostituta negra, periférica e mãe?”, criticaram. O capital político e cultural das prostitutas
convidadas, construído ao longo de suas carreiras ativistas, foi utilizado pelas
RadFem/abolicionistas como um desqualificador de sua capacidade de “representar” a “categoria”,
supostamente desprovida de recursos. Havia também por parte delas uma forte oposição à
participação de homens e pessoas trans no debate: “O evento terá espaço para acolher mães?”,
perguntou uma mulher identificada com as RadFem. “Provável que não, mas deve ter cadeira
exclusiva pra homem”, ironizou outra. “Afinal de contas, maternidade é privilégio cis”, arrematou
a primeira.

Na mão oposta, outras pessoas respondiam com reportagens que apoiavam a regulamentação ou
lamentando comentários como os acima citados, que classificavam como atos de “desrespeito” e
“deslegitimação” das prostitutas. Muitas lastimavam a “falta de diálogo” e a agressão mútua entre
feministas. A cada novo post, centenas de comentários se seguiam, cada qual mobilizando seus
respectivos prosélitos e arrancando-lhes “curtidas”. No cruzamento das várias camadas de disputa
– o que é prostituição, quem são as prostitutas, quem pode falar, feminismo liberal x feminismo
radical – as opções resultaram achatadas a apenas duas posições totalizadoras: ser “contra” ou “a
favor” da prostituição.

Uma mulher que se identificou como ex-prostituta – a quem diversas RadFem/abolicionistas


passaram a se referir como “sobrevivente de prostituição” – escreveu:

Eu sobrevivi. 4 anos de prostituição. 4 anos de abusos. 4 anos de violência. 4 anos e meu


corpo ainda dói. 4 anos e 3 estupros, um deles coletivo. 4 anos sendo lésbica e vendo

167
Do inglês “flooding”, esta tem sido uma tática utilizada em disputas online. Grupos organizados pela internet
“invadem” uma discussão e “colam” em todos os posts os mesmos comentários.
217

centenas de lésbicas marginalizadas. 4 anos de desespero. Pra ter que ver vocês
banalizando a prostituição. É muito bonito achar que prostituição é empoderamento e
escolha quando não se precisa dela para comer, para sustentar sua família ou seus vícios.
Essa violência brutal que mais de 40 milhões de pessoas no mundo sofrem, graças a esse
tipo de postura. Vocês não estão do nosso lado. Vocês são só mais um membro do
patriarcado. Em uma sessão de terapia, minha psicóloga me perguntou uma vez:
- T., você tem noção de quantos homens já transaram com você?
- Não, por que?
- Porque eu gostaria de ter noção de quantas vezes você foi estuprada.
Vocês não são diferentes dos misóginos.
(Comentário na página do evento no Facebook)

Este post teve a maior aprovação entre todos, com mais de mil “curtidas”. Quando, mais tarde a
autora do post foi banida da página do evento, acusada pela organização de “transfobia”168, e
quando as vadias por fim decidiram também “desconvidar” as RadFem/abolicionistas que iriam
participar da roda de conversa presencial, “em função dos excessivos ataques ao evento”, houve
protestos generalizados. De ambas as partes houve acusações de “silenciamento” e “exclusão”:

“O nível dos comentários aqui no evento só reafirma a necessidade do debate sobre


prostituição, com mulheres prostitutas que podem - e vão - falar por si! Tá vergonhoso ver
um monte de mulher subestimando e humilhando milhares de outras como se essas não
tivessem capacidade de refletir e fazer a crítica sobre suas próprias vivências, de apresentar
suas demandas e serem respeitadas por elas. Vocês sabem que nesse evento terão
prostitutas e estão aqui destilando todo tipo de preconceito, reivindicando ser as donas da
verdade.”
“Realmente fica difícil entender como mulheres feministas acabam calando e roubando
lugar de fala das mulheres prostitutas. Como podemos criticar os homens que não
entendem nossas demandas e se metem em nossas batalhas sem nos ouvir e em seguida
ter a mesmíssima conduta? Sobre as putas e o trabalho das putas, quero ouvir as putas, os
argumentos delas, as demandas delas... são elas que entendem muito mais do que qualquer
um sobre suas necessidades, demandas, carências, dores... que sejam ouvidas com respeito
e amor, por isso parabenizo a postura (apesar de lamentar os fatos que desencadeiam um
resultado deste) dos organizadores do evento.”
“Uma ex-prostituta que discordou de vcs teve o comentário (com mais de mil curtidas)
apagado e foi bloqueada quando questionou os motivos. O lugar de fala é só para as
prostitutas que concordam com a posição da Marcha Das Vadias? Que bosta de feminismo
é esse?”

168
Numa longa discussão entre Sinara e a ex-prostituta, esta desqualificou a identidade de gênero da primeira,
dizendo coisas como “Não me surpreende [a sua posição], porque a socialização de gênero não falha” ou “Não estou
vendo nenhuma mulher aqui”, repetindo noções correntes entre as RadFem, segundo as quais mulheres trans “não
são mulheres” porque tiveram uma “socialização de gênero masculina”. Isso foi identificado pelas vadias como
“transfobia”. Além disso, Sinara foi acusada de ser “cafetina”, de “aliciar” prostitutas e “lucrar” com sua “exploração
sexual”, com o que suas adversárias negavam sua condição de prostituta (ou “vítima”) e a enquadravam como
“opressora”.
218

“Vocês nunca vão conseguir construir um debate com mulheres abolicionistas. É preciso
ter muita coragem pra colocar na mesma mesa pessoas que glamourizam a prostituição e
mulheres que farão questão de lembrar que o tal lugar de fala das prostitutas
não contempla mulheres que se vendem por um prato de comida na Central do Brasil ou
meninas de 12 anos que foram violentadas por parentes e se vendem pra caminhoneiros
no interior de Pernambuco. (...) Esse desconvite só mostra o quanto vocês são
despreparadas. Quem não tem preparo pra debater só pode aguentar um reformismo de
gênero mesmo. Revolucionar, destruir o patriarcado, é pra quem aguenta”.
(Comentários de quatro pessoas diferentes na página do evento no Facebook)

Nesses e em muitos outros comentários, a noção de “lugar de fala” foi mobilizada por ambos os
“lados” para autorizar ou barrar ou a participação de diferentes sujeitos na discussão, criando e
disputando uma escala hierárquica de legitimidades políticas. Nessa espécie de “triagem
identitária”, marcas reivindicadas ou presumidas de gênero, raça, classe e outras são utilizadas
como critério para a legitimação de sujeitos, corporalidades e narrativas. Assim, homens que
comentavam “contra” ou “a favor” da prostituição tinham sua autoridade imediatamente
questionada por mulheres – mas apenas por aquelas que discordavam da sua posição – sob a
justificativa de não terem “vivência” ou “experiência” de prostituição ou de feminismo169. Pelo
mesmo motivo, às prostitutas foi atribuída mais legitimidade para “falar” sobre prostituição do que
as ativistas não prostitutas e “acadêmicas” e, entre as prostitutas, as “pobres” e cis tinham mais
autoridade e “representatividade”. Narrativas de sofrimento e vitimização feitas por pessoas que
reivindicaram uma experiência encorporada de prostituição, como foi o caso da mulher que se
identificou como ex-prostituta, conferiam ainda mais autoridade a quem falava e status de verdade
ao que dizia.

Luana, uma ativista da Marcha Mundial de Mulheres (MMM), movimento que se posiciona contra
a regulamentação da prostituição, falou sobre as contradições do “lugar de fala”:

Quem sou eu pra falar que não? O que é que eu vou falar, se eu tô num debate e chega
uma pessoa [prostituta] e fala que realmente a vida dela vai melhorar [com a
regulamentação]? (...) Tem trabalhos de base que a gente [MMM] vem fazendo ao longo
do mundo, de diálogo, a gente tem companheiras que já se prostituíram, e estão nesse
diálogo... elas criticam essa proposição de regulamentação hoje, entendeu? (...) Só que
essas pessoas não aparecem pra falar, não querem aparecer pra falar, pelos motivos que
elas têm; e as mulheres que estão nesse sistema, que aparecem pra falar, ou são

169
“Você não tem local de fala pra se irritar com a organização do evento. (...) Sua opinião não foi consultada apenas
porque: não importa”, disse uma vadia em resposta ao comentário de um homem que disse se irritar com “a tônica a
favor de turismo sexual e de romantização da prostituição” do evento. Outra mulher, identificada com o grupo das
RadFem, ironizou: “O D. não tem ~local de fala~ pq é contra esse absurdo, mas o T. [outro homem] que tá
defendendo com afinco a prostituição tem todo o local de fala, né? Estamos de olho”.
219

transexuais, elas têm uma postura... entendeu, só que não é porque elas aparecem nesses
espaços, e porque elas têm uma experiência concreta – que é super relevante – que é isso
o que conta no movimento. Mas eu não posso dizer que a fala delas não faz sentido, aí que
eu crio um problema. (Luana, entrevista concedida em 21 de agosto de 2015)

Luana, assim como as vadias e as RadFem, reafirma o “lugar de fala” como a primazia da
experiência vivida e encorporada sobre a abstração (ou qualquer conhecimento não baseado na
experiência vivida) na produção, autorização e hierarquização de sujeitos políticos, discursos e
identidades. Diante de uma mulher que fala a partir de sua própria experiência vivida, Luana
reconhece que a si só lhe cabe o silêncio. Mas ao falar das prostitutas que “não aparecem para
falar”, ela reivindica “o lugar de silêncio” como experiência tão (ou mais) habilitadora quanto o
“lugar de fala” na “triagem identitária”. Quem pode “aparecer” e ter seu “lugar de fala”
reconhecido? As pessoas que “não aparecem” nesse espaço de aparição que é a arena pública
(Butler, 2015) nos relembram que o “lugar de fala” é performativamente encorporado – é uma
“postura”, como sugere Luana. Falar é aparecer; o corpo visto como narrativa autóctone da
experiência vivida; a experiência vista como modo autêntico de conhecer, como alimento da
capacidade reflexiva, como vetor de ação e mudança social.

A “postura” das prostitutas que falam e a não aparição de outras iluminam ambiguidades na
construção da identidade política da prostituta. Sinara e as outras trabalhadoras sexuais que
participaram do debate de 2016 da MdV realizam o framing “prostituição é trabalho” por meio um
trabalho emocional e uma coreografia que, semelhantes às da MdV, evocam o humor, o prazer, a
ironia e a provocação na construção de um sujeito “autônomo”, “transgressor” e “empoderado”. Já
a representante da AMOCAVIM, que participou do debate de 2013, embora também tenha
defendido a prostituição como trabalho, enfatizou a condição de “marginalização” que precedeu
sua entrada nesta profissão e que continua a marcar sua experiência. A mulher que se identificou
como ex-prostituta na discussão do Facebook em 2016 enquadrou a prostituição como uma
experiência traumática de “violência” à qual “sobreviveu” e para a qual não quer voltar. Há outras,
ainda, que, dada a necessidade de manterem ocultas a sua identidade, sequer aparecem ou mostram
o rosto em ações políticas públicas. A passagem da dor para o orgulho, da vergonha para o
“desavergonhada” pode ser experimentada de diferentes e ambíguas maneiras no movimento de
prostitutas e na constituição de sua identidade política. Como mostrou Aparecida Fonseca Moraes
(1995), essas ambiguidades estão presentes de desde o início do movimento associativo das
220

prostitutas, em que a formação de uma identidade coletiva mobilizou elementos dicotômicos: ora
trabalhadoras ora vítimas, ora mulheres “decaídas” ora sujeitos importantes (por exemplo, como
agentes de controle da AIDS); ora a necessidade do anonimato ora a importância da publicização
da identidade.

Luana sugere ainda que as prostitutas “transexuais” teriam uma “atitude” diferente das prostitutas
cis, desde sua maior capacidade de “aparecer” e “falar” até o tipo de performance política em que
investem. Ainda que não seja possível generalizar isto, esta questão pode ser boa para pensar as
performances do movimento de prostitutas e o tipo de eficácias, adversários e aliados que
produzem. Lideranças importantes do movimento presente e passado de prostitutas são mulheres
cis que, ao afirmarem sua (séria) condição de profissionais, mobilizam repertórios de humor e
provocação. No entanto, é possível que as prostitutas trans invistam ainda mais na “fechação”
como performance política, a própria ambiguidade de seus corpos sendo transformada em palco
privilegiado para a encenação do corpo excessivo, dessacralizador e carnavalesco (Bakhtin, 1993).
Mas essas são questões para o futuro. Voltemos às RadFem.

Por fim, as RadFem/abolicionistas decidiram por organizar seu próprio evento, intitulado “Turismo
sexual e cultura do estupro sob a ótica do feminismo radical-materialista”, realizado um dia antes
do da MdV, na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. O evento da MdV aconteceu na casa de
acolhimento a pessoas LGBTI coordenada por Sinara, onde cerca de 40 pessoas estiveram
presentes. A conversa foi transmitida online e a audiência pôde fazer perguntas e comentários pela
página do evento durante a transmissão, e mais uma vez, as RadFem/abolicionistas se fizeram
presentes em massa, repetindo os comentários e acusações que haviam feito antes.

Retrospectivamente, é possível identificar indícios dessas tensões políticas já no primeiro debate


sobre prostituição organizado pela Marcha, em 2013. No entanto, apenas três anos depois, os
conflitos em torno da prostituição parecem ter se tornado tão irreconciliáveis como nunca. Me
parece que as noções de feminismo radical e abolicionismo se popularizaram nas redes sociais170,

170
No Facebook, há diversas páginas públicas de difusão e debate de ideias sobre feminismo radical. Alguns
exemplos de páginas em português são: “Feminismo Radical Didático”, com quase 50 mil seguidores
(https://www.facebook.com/feminismoradicaldidatico/); “Gênero e Materialismo”, com mais de 27 mil seguidores
(https://www.facebook.com/generoematerialismo/?ref=py_c); “RadFem resiste”
(https://www.facebook.com/radfemresiste/); “Feminismo Liberal? Não sou obrigada, não dou esse desgosto aos
meus pais” (https://www.facebook.com/libnemehgente/?ref=py_c); “Preta Radical”
(https://www.facebook.com/pretaeradical/); “Infelizmente a teoria queer é uma merda”
221

impulsionada pelo pânico moral em torno do “turismo sexual” durante os megaeventos, mas
também transcendendo esse contexto. Ao observar superficialmente as redes de RadFems e
abolicionistas que participaram da discussão online, me parece que, embora haja algumas
militantes mais velhas bastante conhecidas na cena feminista local, são compostas
majoritariamente de mulheres muito jovens, estudantes, cujo contato com o feminismo se deu
principalmente pelas redes sociais e pelas teorias feministas, sobretudo as norteamericanas radicais
da década de 1970. As figuras mais conhecidas chegam a alcançar milhares de pessoas em seus
perfis pessoais nas redes online, algumas com mais de dez mil “seguidores” no Facebook. Se no
primeiro debate, elas eram sobretudo militantes de partidos de extrema esquerda e sindicatos, neste
último evento este dado não foi identificado. A rejeição a sujeitos que não fossem classificados
como “mulheres biológicas” ou cis também foi mais explícita no último debate171.

Embora esta comunidade discursiva identificada como RadFem certamente seja muito mais
heterogênea do que faço parecer aqui, procurei mostrar como ela se constituiu ou se fortaleceu
como uma “unidade” nas interações com as vadias. Estas, por sua vez, ao longo dessas e outras
interações passaram a mobilizar cada vez mais em seus discursos as noções de feminismo
interseccional e transfeminismo. Nesse processo, as RadFem se constituíram como umas das mais
significativas “outras” das vadias. Absolutamente todas as integrantes da MdV que entrevistei
afirmaram que não concordam ou não se identificam com as RadFem, uma unanimidade que não
apareceu entre entrevistadas de outros grupos ativistas. Por exemplo, Rosana, 28 anos, que atuou
muitos anos em uma ONG feminista e na Marcha Mundial de Mulheres e hoje integra dois coletivos
de “jovens feministas”, não se classifica como RadFem, mas acha problemática a importância das
causas e sujeitos LGBT na Marcha das Vadias:

Defendo o direito ao corpo, enfim, se libertar dos padrões, mas, ao mesmo tempo, eu tenho
um entrave muito grande – que pode ser até preconceito, mas vamos conversar – que às
vezes eu acho que as bandeiras feministas ficam escamoteadas pelas bandeiras LGBT...
Porque a MdV, na verdade, acaba virando um grande palco – não que não deva ser, mas
eu não sei como a gente negocia isso, e isso me deixa muito angustiada –, um grande palco

(https://www.facebook.com/Infelizmente-a-teoria-queer-eh-uma-merda-1788996778035331/?ref=py_c). Há também
páginas que ironizam as RadFem, como “Crente ou Rad?” (https://www.facebook.com/CrenteOuRad/) (u.a. em 19
de janeiro de 2017)
171
É possível que essas diferenças sejam acentuadas pelo fato de o primeiro debate ter sido presencial enquanto o
segundo tenha se dado sobretudo online, espaço em que as acusações e ataques podem ser feitos sem implicar nos
mesmos tipos de constrangimentos que nas interações face a face.
222

da defesa das bandeiras LGBT, e as coisas que são caras pro feminismo ficam escondidas,
e a gente dá visibilidade só pra algumas questões, isso também me incomoda um pouco,
né? A gente vem acompanhando nos últimos anos que a bandeira LGBT tem sempre se
sobreposto às bandeiras feministas; não que não seja um espaço também pra isso, mas me
incomoda também um pouco, dentro da MdV, isso. E eu também não acho que tem uma
solução pacífica, no sentido de fácil e aceitável – como é que a gente garante a visibilidade
de todos os sujeitos que estão ali, que são os nossos grandes desafios. (Entrevista
concedida por Rosana em 20 de agosto de 2015)

Se pessoas trans, prostitutas e suas pautas foram incorporadas à Marcha desde cedo, a participação
de homens cis gerou mais ambiguidades. A participação dos homens nos protestos de rua da MdV
é bastante significativa, especialmente se contrastada à sua presença nos eventos do calendário
feminista mais rotinizado. Buscando atrair “todas as pessoas” que se identificavam com as
bandeiras de autonomia, “liberdade” e combate à violência de gênero, a Marcha buscava se
diferenciar de RadFems e outros feminismos, inclusive de MdV de outras cidades, cujos critérios
de identidade poderiam ser mais restritos. No chamado para a Marcha de 2012, as organizadoras
postaram no twitter do grupo: “Relembrando que homens dispostos a desconstruir o machismo são
sempre bem-vindos! Meninos, venham marchar com suas companheiras!”.

Assim, as vadias sempre conceberam que o espaço da rua estava aberto aos homens, ainda que isso
implicasse numa preocupação constante com a segurança do protesto. Às vésperas de cada Marcha,
uma comissão de segurança se formava e se reunia para decidir sobre que situações deveriam ou
não ser consideradas uma ameaça à manifestação e às suas participantes, e sobre como deveriam
agir em cada caso. As possíveis interações com homens e policiais (quase todos homens) eram os
pontos de maior preocupação. Algumas vezes na Marcha carioca, como em diversas outras cidades,
as vadias escracharam homens que assediaram e agrediram mulheres ou perturbaram, de alguma
forma, o andamento do protesto172. Ainda que a maioria dos homens que frequentam a Marcha
sejam vistos como representantes de modelos não-hegemônicos de masculinidade, a figura do
“homem algoz”, sempre presumida no framing vitimário, também é levada em consideração.

Mas a questão mais controversa era a participação de homens nas reuniões, debates e demais
atividades de organização da Marcha. Embora a presença deles nunca tenha sido interditada, desde
o primeiro ano da Marcha carioca até, pelo menos, o fim do meu trabalho de campo em 2014, ela

172
Naturalmente, “agressão”, “assédio” ou “perturbação” eram categorias sempre sujeitas a disputas nessas ocasiões,
como veremos adiante.
223

se tornou mais controversa ao longo desses anos. Durante todo esse tempo, pouquíssimos homens
cis participaram das atividades de organização. Todos tinham relações pessoais com alguma vadia
e a maioria colaborou apenas pontualmente, como por exemplo, na elaboração de uma charge sobre
a Marcha e na filmagem de um vídeo de divulgação. Apenas um homem cis foi incluído na lista de
e-mails da organização, indicando uma relação mais do que pontual com a Marcha.

Apesar de que poucos homens cis tenham tido uma participação regular nas atividades da
organização, vários estiveram presentes nas reuniões inaugurais de cada ano. Na reunião de
abertura de 2013, nenhuma objeção foi feita a presença deles, embora alguns, como soube depois,
tivessem despertado a desconfiança das organizadoras por terem feito “muitas perguntas” sobre a
invasão à igreja no ano anterior173. Na reunião de abertura de 2014, havia um homem cis que se
identificou como gay. Desta vez, uma vadia se colocou contrária à participação dele e de qualquer
homem cis nas reuniões da Marcha. A partir daí, a participação de homens passou a ser objeto de
debate com mais frequência.

Identifiquei três posições distintas nesses debates. Para algumas integrantes, os espaços de decisão
e debate da Marcha deveriam ser reservados exclusivamente às mulheres, incluídas aí as trans.
Para essas organizadoras, os homens sempre poderão ameaçar a autonomia feminina, e, por isso,
nunca serão “feministas”; no máximo, “pró-feministas”. Esse argumento se apoia numa versão
mais flexível do “fundacionalismo biológico” (Nicholson, 2000), segundo a qual os homens, por
possuírem pênis, seriam quase sempre socializados como opressores. As mulheres trans se
constituiriam como exceções a essa regra, pois ao transgredirem as corporalidades impostas pela
socialização masculina, estão sujeitas a todo tipo de opressão, assim como, ou talvez ainda mais
que, as mulheres cis. Embora não se opusesse à participação de homens, Sinara restringia a
identidade feminista a alguns sujeitos, entre os quais os homens cis não estavam incluídos:

Eu acho que as pessoas podem aprender a ser solidárias ao movimento feminista, mas só
é feminista quem é oprimida pelo machismo, pelo patriarcado. Então, os homens, eles
podem ser feministas, desde que eles sejam homens trans, que foram oprimidos pelo
machismo, então, eles sabem muito bem a necessidade de quebrarem com tudo isso. Mas
os homens cis, eles podem ser considerados solidários ao movimento feminista. Eles não

173
Keila achou que essa postura era muito “estranha” e desconfiou que eles pudessem ser “infiltrados” da Jornada
Mundial de Juventude, evento-alvo das vadias naquele ano. Não era uma objeção, portanto, ao fato de serem
homens, ainda que isso pudesse ter ajudado a gerar a desconfiança.
224

abrem mão de seus privilégios, então, não vejo como eles possam ser feministas naturais.
(Entrevista concedida por Sinara em 6 de agosto de 2015)

Se para Sinara (e a maioria das vadias) não há “mulheres naturais”, certamente existem “feministas
naturais”. Aqui, o que autoriza ou não os sujeitos à identidade feminista são, acima de tudo, as
experiências de “opressão de gênero”, por um lado, e dos “privilégios de gênero”, por outro – que
quase sempre estão condicionadas à posse de uma ou outra genitália.

A segunda posição era a das vadias que estavam dispostas a abrir uma exceção aos homens
homossexuais, que consideravam compartilhar, em alguma medida, com as mulheres e com as
trans, uma identidade subalterna, o que legitimaria sua participação nos espaços de decisão e
debate. A maioria das organizadoras, no entanto, era favorável à terceira posição, de abertura da
organização a todos os homens e quaisquer pessoas que compartilhassem dos princípios básicos da
Marcha de “não transfobia”, “não homofobia” e “não sexismo”. Elas consideravam uma missão
política importante admitir homens, não apenas nos protestos de rua, mas também nas esferas de
discussão e decisão feministas, para, desse modo, “transformá-los”, mesmo que isso envolvesse
conflito. Para Gisele, organizadora da Marcha desde 2013, o feminismo tem uma função
“pedagógica”:

Eu vejo muita feminista que fala que não tem que conversar com homem, aquela coisa,
‘empodere duas mulheres’. Cara, eu acho que tem que conversar, sim, entendeu, porque
eu acho que se você não vai mudar a mentalidade da pessoa que justamente está te
oprimindo, que é a metade da população, não vejo como você vai mudar isso sem
conversa, entendeu? Eu acho que faz parte do meu feminismo ser pedagógico também, ter
paciência e tentar desconstruir – quando a pessoa está disposta a desconstruir, claro, né?
(Entrevista concedida por Gisele em 24 de junho)

Outras vadias que compartilhavam desta opinião eram céticas, entretanto, ao fato de que algum
homem quisesse de fato participar regularmente das atividades de organização. Segundo suas
experiências na Marcha carioca, os homens apareciam apenas nas primeiras reuniões anuais e não
voltavam mais174. Como explicou Zuzu, que participou de algumas edições da Marcha:

Teoricamente, homem feminista OK, acho maneiro, seria muito bom. Agora,
concretamente, eu vejo tanto homem que se diz feminista e que não abre mão de seus
privilégios, né, e que na hora que está na disputa é o primeiro a falar grosso, e crescer pra

174
Eu não entrevistei nenhum homem que tivesse participado de alguma atividade ou protesto da Marcha. É bastante
provável que, apesar da abertura política da maioria das vadias a eles, houvesse barreiras informais à sua
permanência nos espaços organizativos da MdV.
225

cima da mulher. Teoricamente, eu acho supermaneiro; na prática, não me lembro de


nenhuma experiência exitosa. Pelo menos dos que eu conheço, o máximo que eu encontrei
foi machistas esclarecidos. (Entrevista concedida por Zuzu em 2 de julho em 2015)

A frustração com a recorrente e talvez inevitável falha dos homens em desenvolverem uma
subjetividade “genuinamente” feminista aponta para alguns limites das relações entre homens e
mulheres no feminismo e em outros movimentos sociais, uma questão constantemente debatida
pelas vadias. Ao ser perguntada sobre um momento ruim experimentado no feminismo, Gisele,
apesar da sua disposição em ser “pedagógica” com os homens, aponta a dificuldade de militar em
espaços mistos, como a Marcha da Maconha, de que também participa:

Militar com homem é foda, cara, é muito difícil, porque os caras... e aí eu estou falando
de caras que não querem se desconstruir, entendeu, então, ou você larga aquela militância
– e é por isso que não tem tanta mulher lá – ou você vai ter que ir realmente pra luta, e
cada coisa que você faz é questionada. A gente sentiu necessidade de criar uma ala
feminista [na Marcha da Maconha], até porque a gente é interseccional, e a gente não
consegue enxergar os problemas de uma forma separada, entendeu? O antiproibicionismo
é uma luta feminista, sim, porque a maior causa de encarceramento das mulheres nesse
país é o proibicionismo, existem questões na luta antiproibicionista que têm um recorte de
gênero, né, e você tem um movimento aqui, no Rio de Janeiro, que sempre teve mulheres,
obviamente, mas assim, a partir do momento que a gente fez a ala, criou-se uma tensão
muito grande, e esses caras não estão dispostos a desconstruir, é o tipo de caras que
chamam as feministas de feminazi, falam que o feminismo é o contrário do machismo. Se
puder imaginar a pessoa mais difícil de você militar junto, são esses caras, e assim... mas
eu também não quero ceder o espaço, essa luta é minha também, e eu não vou a lugar
nenhum, eles vão ter que se acostumar com a gente. (Entrevista concedida por Gisele em
24 de junho)

Se as vadias apontam a dificuldade em militar com homens em espaços mistos, há também disputas
sobre que tipo de participação eles devem ter em espaços feministas. Cerca de um mês antes da
Marcha de 2014, as vadias abriram o evento do protesto no Facebook, como fazem todos os anos.
Uma das moderadoras da página postou no evento a seguinte frase pelo perfil da Marcha: “Todas
as pessoas trans são bem-vindas e homens cis em processo de desconstrução de machismo também,
mas o protagonismo é das mulheres! Vocês são muito mais úteis à causa feminista questionando a
misoginia nos ambientes que frequentam e entre seus amigos”. A declaração causou uma reação
imediata, com mais de mil comentários. Algumas pessoas, principalmente homens, se sentiram
hostilizados. Muitas mulheres reforçaram a ideia do “protagonismo das mulheres” ou mesmo a da
não-participação dos homens. Por conta da conjunção “mas” na frase, a declaração deu margem à
interpretação de que mulheres trans não eram “mulheres”, e portanto não eram “protagonistas”, o
que também gerou protestos. Cito alguns comentários:
226

“Não consigo compreender a utilidade deste post. Além de evidentemente discriminar as


mulheres trans, só afasta homens (trans ou cis) que querem compartilhar da luta. Eu sou
viado. E como tantos outros viados, já apanhei muito na vida porque desrespeitei
determinadas normas de gênero. A nossa luta tem muitos pontos em comum (e muitas
diferenças). E mensagens como essa não somam em nada”.
“Uma opressão não anula a outra. Vocês serem gays e sofrerem com homofobia não anula
que vocês possam ser machistas.”
“A mulher que é chamada de vadia. Me diz onde está a coerência de um homem com as
costas dizendo "sou vadia", ou cartaz? Vocês também são oprimidos pelo patriarcado?
Vocês são chamados de vadias quando são estuprados pelo tamanho da sua roupa? Não
vão conseguir roubar nosso protagonismo na luta que é da MULHER”.
“Bom, se a gente não pode levar um cartaz, escrever no corpo, então não sei nem pra que
ir. Eu não participo de marcha pra fazer figuração. Era melhor ser explícita no post e dizer
que homens não são bem-vindos”. (Resposta do primeiro homem ao comentário acima)
“Mulheres trans são protagonistas também, ne? Porque não foi isso que pareceu rs”
“Era de cisperar” [trocadilho com o prefixo “cis”]
“Gentchy, eu sou mulher trans e tava super a fim de ir, mas minha amegan [sic] disse q o
povo q ta organizando tá infestado de TERFs [Trans Exclusionary Radical Feminists].
Procede isso!?”
“Penso que cabe uma reflexão acerca de que protagonismo é esse que precisa excluir o
outro para se autoafirmar...”
“Aí feministo, vaza de cócoras”
(Comentários feitos na página do evento Marcha das Vadias 2014 no Facebook)175

A moderação da página se colocou aberta a propostas de como editar o post. As discussões se


deram em torno de quais sujeitos, identidades e corporalidades precisavam ser nomeados e que
lugar eles ocupavam numa “hierarquia de protagonismos”. Depois de várias sugestões, uma das
opções aventadas foi “Homens trans, pessoas queers e não-binárias são bem vind@s. Também
homens cis em processo de desconstrução de machismo, mas o protagonismo é das mulheres!
Homens cis são muito mais úteis (...)”. Aqui, a categoria “pessoas trans” foi substituída por outras
classificações identitárias, de modo a incluir sujeitos que, segundo alguns argumentaram, não
seriam contemplados naquele grupo. Também foi uma estratégia para deixar claro que “mulheres
trans são mulheres” – aliás, uma das afirmações mais consensuais em todo o debate, o que, dois
anos depois, no evento sobre prostituição, foi massivamente questionado pelas RadFem. Mas o
debate entre as pessoas indicava que haveria sempre insuficiências, dúvidas e insatisfações, que

175
https://www.facebook.com/events/1485831408317133/permalink/1485908041642803/ (u.a. 18 de janeiro de
2018)
227

geravam mais questionamentos das escolhas feitas176 e mais ataques pessoais. A cada nova edição
do post, um “malabarismo” de categorias. Percebendo isso, a moderação chegou à conclusão de
que a melhor frase era: “Todxs que vierem pra somar são bem-vindos. Machismo, Transfobia,
Lesbofobia, Bifobia não serão tolerados”. Aqui, as categorias identitárias continuam presentes, mas
de forma indireta e não hierarquizante. Se referem menos a sujeitos autorizados do que às opressões
que sujeitos generificados e sexualizados sofrem, criando, de certa forma, uma “equivalência de
experiências” (Brah, 2006).

A participação de pessoas trans, prostitutas e de homens na Marcha das Vadias pode ser entendida
como um desdobramento da apropriação da noção de interseccionalidade como valor político na
construção da “diversidade” e da “inclusão”. Ser “feminista interseccional” significa investir na
articulação com diferentes agendas, sujeitos e corporalidades. Neste sentido, a interseccionalidade
desafia visões essencialistas do gênero e das identidades políticas, tornando mais sujeitos visíveis.
Ao mesmo tempo, a noção vem sendo apropriada – por vadias e não vadias – como recurso para o
gerenciamento das práticas de aparição e fala no espaço público. Aqui, ela é instrumentalizada para
a realização de uma espécie de “triagem identitária”, que autoriza/desautoriza e hierarquiza
sujeitos, experiências e performatividades e movimenta as disputas por legitimidade política entre
diferentes atores.

3.3. Vadias pretas?

Cena: Cadê as mulheres pretas?

Em junho de 2014, as vadias organizaram um debate sobre “aborto e


violência obstétrica”. Naquele momento, as lutas pela “humanização do
parto” tinham ganhado bastante visibilidade por diversas razões, como a
repercussão do caso Adelir, uma gestante do Rio Grande do Sul que foi
obrigada pela Justiça, sob a alegação de “preservar a integridade do bebê”,

176
Por exemplo, houve um longo debate acadêmico sobre o termo “queer”, o que indica que os estudos de gênero e o
ativismo online são uma das principais portas de entrada para o feminismo contemporâneo.
228

a realizar uma cesariana contra sua vontade, aparentemente sem evidências


médicas que justificassem a medida177. O objetivo do debate era “construir
pontos de convergência entre maternidade e feminismo, entre as lutas pelo
direito ao parto e ao aborto”. Foram convidadas para falar uma parteira,
uma doula, duas advogadas que trabalham com direitos sexuais e
reprodutivos e uma gestora pública da área de mortalidade materna.
Durante o debate, Filomena observou que nada se falou sobre o tema a
respeito das mulheres lésbicas. Sheila, feminista negra, amiga de Matilde,
uma das organizadoras da MdV, perguntou “por que as experiências e os
saberes das mulheres negras não estavam sendo contados na primeira
pessoa”; por que as mulheres negras estavam presentes apenas nas
“estatísticas” de violência obstétrica, mortalidade materna e por aborto.
Mônica, vadia branca, respondeu que a Marcha vivencia um “dilema”: quer
abordar as questões caras às mulheres negras, mas não pode se colocar
como “representante” deste grupo por “ter poucas negras” na organização;
ao mesmo tempo não se pode dizer que não há mulheres negras na MdV
porque isso seria “invisibilizar” as que estavam presentes. Disse também
que a Marcha “precisa ouvir esse tipo de crítica”, entender por que não há
muitas mulheres negras no grupo, compreender essa “experiência de
feminilidade” específica. Mônica afirmou ainda que a Marcha é “um
movimento de classe média”, o que não era necessariamente uma crítica,
mas “uma constatação”. Gisele acrescentou que o próprio nome da Marcha
“colocava essa diferença”, já que enquanto as mulheres brancas e de classe
média querem “conquistar o direito à sexualidade”, as negras e de classe
baixa estão no “movimento oposto de não serem sexualizadas”. Graça e
Gardênia, que organizam a MdV desde 2012, contaram das tentativas de se
aproximar de mulheres negras e pobres no passado. Primeiro tentaram fazer
um debate com diversos coletivos, inclusive de mulheres negras feministas,

177
Para saber mais sobre como o caso repercutiu em redes feministas, ver
http://blogueirasfeministas.com/2014/04/adelir-de-goes-e-os-absurdos-da-violencia-obstetrica/ (u.a. 22 de janeiro de
2018)
229

para entender essas “barreiras”, mas elas não quiseram participar. Depois
tentaram ir aos eventos puxados por outros grupos, mas também não deu
certo, como no caso de um protesto de combate ao estupro em Caxias, cujas
próprias organizadoras faltaram ao saber que as vadias estariam presentes.
“Mas isso tem uma história, né?”, observou Sheila. Gisele acrescentou que
as vadias não sabiam como fazer essa aproximação e tinham receio de
estarem “se impondo” às outras feministas: era melhor “chamá-las para
conversar” ou ir nos eventos delas “sem ter sido convidadas”? Depois de
alguns segundos, alguém diz: “ai, que silêncio constrangedor”. Todas riem,
retomam o tema dos direitos reprodutivos e o evento é encerrado sob
muitos aplausos.

No Brasil, como em outros países, a MdV recebeu críticas a respeito das implicações raciais da
noção de vadia. Para alguns movimentos de mulheres negras, assumir-se vadia no protesto impacta
diferentemente mulheres brancas e mulheres negras. Enquanto para as brancas, o termo pode ser
ressignificado como “transgressão”, “libertação” e autonomia – logo, como produto de sua
individualidade – para as negras, reforçaria seu estigma de mulheres “hipersexualizadas” e
“inferiores”, reafirmando o assujeitamento produzido pelas hierarquias sociais. Para os grupos que
sustentam esta posição, a Marcha das Vadias expressa as experiências de mulheres brancas de
classe média, e não atenta para o modo como a interação de gênero, raça e classe marcam
negativamente os corpos de mulheres negras (Gomes e Sorj, 2014).

Em resposta à minha pergunta sobre o que ela achava sobre as críticas de mulheres negras à
Marcha, Cassia, negra, 31 anos, evangélica, funcionária e doutoranda de uma universidade pública
prestigiosa da cidade, e desde 2012 na organização da MdV, observou:

Eu entendo essas mulheres negras, porque a demanda delas é outra, sabe, eu acho que é
justamente de inclusão social, de reconhecimento. Porque a gente, mal ou bem, a gente já
está incluída, a gente está ocupando vários espaços. Então, eu entendo porque as mulheres
negras não se identificam com a Marcha. Acho que aquela mulher que esteja na
universidade, ou então num espaço de discussões, que já esteja num movimento social,
ocupando outros espaços, acho que ela se identifica, mas a mulher negra de classes
populares, ela não vai... Porque justamente a luta dela é pra mostrar que ela é sujeito, e
que ela não é vadia, que ela não é objeto, que justamente ela não é essa pessoa que o outro
tem toda essa liberdade, ela é aquela pessoa que precisa ser respeitada; então, ela precisa
230

vender, digamos assim, uma moralidade pra se firmar, entendeu, pra se firmar, pra se
apoiar em certos pensamentos”. (Entrevista concedida por Cássia em 21 de junho de 2015)

Para Cassia a rejeição das mulheres negras à Marcha reverbera simultaneamente pertencimentos
de raça e classe. Ela mesma uma mulher negra, identifica em si as condições de classe que considera
necessárias à adesão à Marcha e a seus repertórios de afirmação da sexualidade. Ela sugere que as
mulheres negras pobres, na ausência de outros meios para compensar o estigma sexual de seus
corpos racializados, precisam recorrer à afirmação performativa da “moralidade sexual”, o que
Carla Mattos (2014) chamaria de uma estratégia de “limpeza moral como recurso de apresentação
de si”.

No Rio de Janeiro, foram frequentes as críticas que evidenciavam desigualdades de classe, além
das de raça, ou articuladas a elas. Essas críticas partiram principalmente de grupos que se auto-
identificam como feministas periféricas. Elas argumentam que organizar seu ativismo em torno
desta categoria é inviável em bairros periféricos, onde ser vista como tal coloca riscos mais
concretos de violência do que nas zonas mais centrais da cidade. Para elas, a performatividade
corporal das vadias é parte de um ethos “burguês” que trai profundas desigualdades de classe. A
nudez; a escolha de Copacabana como lugar do protesto, acusada de ser um bairro “rico”; os locais
e horários das reuniões organizativas (Centro e adjacências, durante a semana, no início da noite),
que dificultam o acesso de ativistas que moram longe e de mães; e mesmo a chave emocional do
protesto, seu tom carnavalesco e celebratório, considerados repertórios “burgueses”178, são
criticados pelas feministas periféricas e mobilizados como elementos de diferenciação.

Por exemplo, Rosana, negra, atuante em dois coletivos de “jovens feministas”, professora e
moradora de Acari, na Zona Norte da cidade, critica a MdV em termos de raça e classe:

Sobre a MdV, eu tenho bastante críticas, né, porque é um movimento ainda pensado com
uma cabeça muito de zona sul179, ou muito branca, tem recortes de cor aí muito forte. É

178
James Scott (1985) cunhou a expressão “armas dos fracos” (weapons of the weak) para se referir aos repertórios
de luta de grupos que, sujeitos ao cerrado controle e vigilância de elites e autoridades, encontram formas veladas de
resistência. Agricultores e escravos de sociedades feudais europeias, por exemplo, se utilizavam de expedientes
como trabalhar lentamente, sabotar construções, furtar, contar piadas e espalhar fofocas sobre seus superiores
(Goodwin e Jasper, 2015, p.215). Aquelas que acusam os repertórios de transgressão das vadias de serem estratégias
“burguesas”, inviáveis para ativistas das “periferias”, sugerem que as coreografias de afirmação da sexualidade
seriam uma espécie de “armas dos fortes”.
179
A Zona Sul, a área compreendida entre os bairros da Glória e São Conrado, onde se localizam muitas praias,
inclusive Copacabana, tem a maior concentração de renda da cidade. A expressão “Zona Sul” é utilizada
231

uma potência, no sentido de reivindicar o direito ao corpo, que eu acho que isso é básico...
Mas a maneira que faz, pra quem historicamente é objetificada, que são as mulheres
negras, essa reivindicação de ser vadia, pra gente ainda é complicado, e aí eu nem vou
falar pra gente, vou falar pra mim, bem pessoalmente. É complicado, porque eu vivenciei
toda essa megaexposição do corpo das mulheres negras que possui na nossa sociedade,
né, essa questão da exploração sexual, do turismo sexual, enfim, ele é visto pra esse corpo
negro, né, e nem tantas vezes visto pra esse corpo branco. (...) É uma bandeira que não vê
todas as consequências dos seus atos, mas que tem uma potência, que é a reivindicação do
direito ao corpo, de poder ir e vir, usar o que quiser, na hora que quiser, e isso é uma
potência muito legal, só que como é que a gente afina isso com quem historicamente está
sendo explorada, está sendo humilhada, está sendo discriminada? (Rosana, entrevista
concedida em 20 de agosto de 2015)

Ao mesmo tempo, Rosana considerou “estratégico” participar da MdV de 2013, para se contrapor
à Jornada Mundial da Juventude Católica:

Porque era importante estar ali, ocupando aquele espaço, porque a gente tinha um
contraponto muito importante, que era a juventude católica estar no Rio de Janeiro. Eles
fizeram várias campanhas contra o aborto, distribuíram fetinhos; era importante a gente
estar ali naquele momento, defendendo “Não, aqui tem feminista, aqui tem mulheres que
vão estar se pensando”. Então, aquele momento foi estratégico participar da MdV. Foi a
única vez que eu participei, porque eu achei importante estar ali, mas, em geral, eu não
participo, porque eu tenho essas críticas assim. (Idem)

Isto indica que as críticas não excluem a possibilidade de alianças estratégicas em contextos e
eventos críticos, em torno dos quais diferentes grupos se mobilizam, experiências que também
podem ser permeadas de conflito. Nesta sessão, ao tratar de situações de conflito e aproximação
entre vadias, feministas negras e feministas periféricas, sigo as pistas de Avta Brah (2006, p.331)
e não trato esses grupos como categorias fixas e em oposição, mas como “campos historicamente
contingentes de contestação dentro de práticas discursivas e materiais”.

Diferentemente do que apresentei nas duas primeiras sessões deste capítulo, em que as vadias
cariocas fazem questão de se diferenciar das feministas institucionalizadas e das RadFem, as
críticas colocadas por mulheres negras e periféricas são percebidas como um problema, uma fonte
de angústia e culpa que as leva a buscar soluções que, imersas nas dinâmicas do jogo identitário,
são sempre situacionais e provisórias. Para ilustrar as disputas entre os diferentes grupos, eu

simbolicamente como marcador de classe, tanto como distinção quanto como acusação, dependendo do contexto. Os
seus opostos constitutivos, tanto em termos socioeconômicos, como simbólicos, são principalmente a Zona Norte,
Zona Oeste, Baixada e favelas, que constituem praticamente todo o resto da cidade. “Periferia”, portanto, designa um
território relacional, político e simbólico.
232

reconstruo alguns eventos em que conflitos e tentativas de diálogo emergiram, na Marcha do Rio
e de outras cidades.

O Primeiro ocorreu na Marcha das Vadias de Brasília de 2013, em que movimentos de mulheres
negras criticaram a expulsão, por parte das ativistas, de um homem negro que adentrou o espaço
da manifestação. Esta crítica foi motivada a partir da intensa circulação na internet de um vídeo,
realizado durante a Marcha de Brasília, que exibia a expulsão do homem. O vídeo mostrava um
homem negro, portando muletas, levantando a camisa, tocando seu abdomen e seu pênis por cima
da bermuda, simulando prazer sexual. Ativistas da marcha, mulheres brancas em sua maioria,
escrachavam o homem com apitos e buzinas para denunciar a presença de um “agressor” ou
“machista”, e forçar sua saída daquele espaço, como ocorreu em diversas Marchas pelo país em
situações análogas. Ao que a edição do vídeo e os comentários indicam, foram vários minutos de
barulho ensurdecedor e de assédio fotográfico de jornalistas e participantes sobre o homem. Uma
mulher negra que participava da Marcha tenta proteger o homem com um cartaz que diz “Brasil
troque sua polícia racista por uma política humanista - Basta ao genocídio da Juventude negra!”,
mas ele afasta o cartaz bruscamente. Depois de algum tempo, algumas organizadoras tentam
demover as pessoas do escracho e levá-las de volta ao protesto. Enfim, abre-se uma brecha na
multidão, e o homem se afasta, deixando visível ao espectador sua perna amputada. Irritado, ele
atira sua muleta contra um carro 180.

Imediatamente, por meio de uma enxurrada de textos em blogs, comentários no Twitter, Facebook
e sites de movimentos sociais, feministas negras se levantaram contra as organizadoras da Marcha
de Brasília, acusando-as de racismo. Um texto publicado pelas Pretas Candangas181, um coletivo
de mulheres negras do Distrito Federal, compartilhado em diversas páginas, assim se expressa
sobre o referido episódio:

“(...) Alguém explica isso: como mulheres em grande parte brancas e universitárias,
hostilizando e perseguindo um homem negro, pobre, deficiente e com problemas mentais
pode ser igual a luta contra o machismo? Sério que ele personifica o inimigo?
(...) Nós, Pretas Candangas, estivemos em uma reunião de organização da Marcha das
Vadias no ano passado (...) a convite de algumas organizadoras. Junto com outras
mulheres negras presentes, posicionamos nossas divergências quanto à marcha.
Divergências de princípio. Falamos sobre como temos de enfrentar cotidianamente a

180
O vídeo pode ser assistido em https://www.youtube.com/watch?v=V0iDIkh4Epw (u.a. 22 de janeiro de 2018)
181
A página do grupo no Facebook é https://www.facebook.com/pretascandangas/ (u.a. 28 de janeiro de 2018).
233

sociedade hegemônica para mostrar que não somos vadias, que não temos a ‘cor do
pecado’. Falamos que não queremos reivindicar o direito de ser vadias, mas sim de ser
médicas, advogadas, doutoras. O fato ocorrido dentro da marcha este ano reforça as
diferenças.
(...) uma coisa que dificilmente entra na cabeça de várias de nossas interlocutoras é a
necessidade que nós, mulheres negras, temos de defender a existência dos homens negros.
Não falamos apenas do pai opressor. Pela nossa história, convivemos também com os
registros do avô escravizado, do pai encarcerado, do irmão desempregado, do filho
executado, todos pagando o preço de ser tidos como vadios!
(...) se a nota da organização da Marcha das Vadias chegar, servirá apenas como mais um
registro importante para nossas reflexões sobre essa instável parceria entre feministas
brancas e mulheres negras.” 182

A nota das organizadoras da MdV de Brasília apresenta uma retratação, mas também se ressente
da deslegitimação de seu modo de protesto e da participação de mulheres negras na Marcha:

“esse foi também o grande erro de ação da Marcha das Vadias do DF (...) a dificuldade na
desconstrução de privilégios que fazem parte do cotidiano de muitas de nós, o que muitas
vezes nos leva a reproduzir as opressões que buscamos combater. Considerando que
aquele homem também é constantemente oprimido – pela sua classe, sua situação de rua,
sua saúde debilitada e sua cor – não poderíamos agir de maneira a igualá-lo a um agressor
qualquer.”
“Algumas de nós – mulheres negras – nos sentimos profundamente magoadas pelas
maneiras antifeministas com que outras companheiras negras nos acusaram, questionando
não apenas nosso feminismo como também nossa militância e nossa composição dentro
da Marcha.” 183

Neste evento, a identidade de raça/cor foi construída de diferentes formas na sua relação com a
MdV. As Pretas Candangas e outros movimentos de mulheres negras interpretaram o evento como
um sinal de uma profunda divisão entre as feministas, segundo a qual a Marcha das Vadias,
formada majoritariamente por mulheres brancas de classe média, não teria como incorporar as
“especificidades” da mulher negra. Elas criticam a pretensão da Marcha de falar pelas mulheres
como categoria universal e afirmam a política da diferença e das identidades. Por outro lado,
mulheres negras feministas integrantes da Marcha das Vadias afirmam a diferença (“nossa
militância”, “algumas de nós, mulheres negras”) sem anular uma identidade feminista comum entre

182
A nota completa das Pretas Candangas está disponível em http://blogueirasnegras.org/2013/06/27/desafios-
politicos-feminismo-negro/. Ela se assemelha, pelo teor das críticas mobilizadas, à carta que feministas negras
norteamericanas endereçaram às SlutWalks, citada no capítulo 1, e que pode ser encontrada aqui:
http://www.feministacansada.com/post/44143444731 (u.a. 22 de janeiro de 2018)
183
A nota completa da MdV-Brasília, publicada em 2 de julho de 2013, está disponível em
https://marchadasvadiasdf.wordpress.com/2013/07/02/nota-publica-sobre-expulsoes-na-marcha-das-vadias-df-2013/
(u.a. 28 de janeiro de 2018)
234

elas, as outras vadias e as feministas negras que as criticaram. A política de identidades opera,
assim, um duplo movimento que ora reforça divisões, opondo “mulheres brancas” às “mulheres
negras”, ora promove alianças a partir da própria diferença.

Em 2014, sob a influência deste episódio, a MdV de Goiânia modificou seu nome para “Marcha
das Libertas”184, com a justificativa de “ampliar sua pluralidade” às mulheres negras, que não
aderiam ao protesto por causa do termo vadia: “nada de violentar quem não quer ser chamada por
um nome que não representa”, explicou a organização local em sua página do Facebook185. Em sua
dissertação de mestrado sobre a MdV de Goiânia, Paula Batista (2017) analisa este episódio. Ela
conta que a mudança do nome não foi amplamente debatida entre as vadias goianas, mas uma
decisão de poucas integrantes, em articulação com as Pretas Candangas. No ano da mudança para
“Libertas”, o local do protesto, que costumava ser em regiões mais centrais da cidade, foi
transferido para uma região periférica, estigmatizada por ser uma área “perigosa” de tráfico de
drogas, e principalmente, de prostituição de travestis, transexuais e mulheres mais velhas. A
intenção de se aproximar das prostitutas e atrair mais mulheres negras, no entanto, não se
concretizou. Apenas cerca de cinquenta pessoas estiveram presentes, todas integrantes da MdV ou
de círculos já conhecidos. A mudança de nome e local foi posteriormente avaliada como uma
“estratégia furada” pelas organizadoras, especialmente as negras e não-brancas, que votaram pela
volta do nome inicial, o que foi acatado (Batista, 2017, p.106). Como destaca a autora, as ativistas
goianas negras elaboraram a volta do vadia como uma estratégia múltipla: para afirmar que elas
são “negras e vadias também”, num contraponto à recusa da identidade vadia que se consolidou
como um posicionamento hegemônico e normativo de mulheres negras; para insistir na
“ressignificação” do termo; para retomar a “visibilidade” política que ele proporciona; e para
apostar em mudanças efetivas nas práticas do grupo (e não somente no nome) para torná-lo mais
“inclusivo”. A experiência goiana é interessante porque, como a autora aponta, evidencia as

184
Evento da Marcha das Libertas no Facebook: https://www.facebook.com/events/596410700465028/ (u.a. 22 de
janeiro de 2018)
185
Infelizmente, eu perdi o link desta postagem. Mas na descrição do evento (link na nota acima), há mais
elaborações sobre a mudança do nome: “Anunciamos que, tendo o controle de nossos corpos, seremos ou não vadias,
somente e só, se quisermos, pela boca que nos autoafirma. Não seremos mais, e tão somente, os corpos negros vadios
hipersexualizados, nem ama de leite ou de casa de quaisquer que se digam senhorios. Tampouco, apenas suas
Barbies de academia ditas adequadas pra casar. Não nos aponte esse seu dedo. Estamos libertas!”
235

práticas translocais de tradução política das SlutWalks. Também me parece importante porque
ilumina diversas camadas ou fluxos, sempre contingentes, de construção identitária.

Importante dizer que as vadias cariocas (e imagino que as demais também) estavam atentas às
experiências de outras cidades, como a de Brasília e a de Goiânia, que eram reflexivamente
elaboradas pelas ativistas. Por exemplo, as vadias cariocas se preocuparam em construir estratégias
de segurança para os protestos de 2013 e 2014 que evitassem repetir o “erro” da MdV de Brasília.
Em 2014, por exemplo, houve na Marcha do Rio o caso de um homem jovem, branco, com roupas
sujas, que aparentando estar muito alcoolizado, se juntou ao protesto, com o que as vadias se
colocaram em estado de alerta. Ele estava dançando no meio das pessoas, quando começou a
desabotoar a calça que vestia. Algumas vadias, considerando que aquele poderia ser um gesto de
assédio, tentaram impedi-lo, sem, contudo, performar um escracho típico, completo, barulhento.
Houve um princípio de confusão quando o homem insistiu em tirar a roupa, mas uma vadia interviu,
conversou com ele e avaliou que ele não pretendia assediar ninguém, mas apenas ficar de cueca,
no que possivelmente foi imaginado por ele como um ato de apoio ao protesto. As vadias o
deixaram de lado e depois de alguns momentos ele se retirou.

No mesmo ano, houve também um caso de um homem negro jovem, que constantemente atacava
as vadias nas páginas da Marcha, bem como feministas em geral. Em um fórum online que reunia
“homens contra o feminismo”, ele mencionou sua intenção de constranger vadias e outras
feministas que estariam na mesa de um debate sobre protestos na UERJ (Universidade Estadual do
Rio de Janeiro):

Opa... Vou participar de um debate numa convenção feminista na Uerj. Gostaria que me
dessem uma mão com materiais irrefutáveis que eu possa questioná-las. Estatísticas,
artigos misândricos, etc. Tudo que possa ajudar. Elas não vão poder me agredir porque
sou negro, e irão moderar suas palavras para comigo, pois o politicamente correto não iria
deixar. Ajudem aê. Tenho dois dias pra juntar e compilar esse material.186

As vadias que participaram do debate relataram que ele de fato foi ao evento e tentou constrangê-
las com acusações, aparentemente sem muito sucesso. Depois deste episódio, ele anunciou na
página da Marcha que iria ao protesto, com a mesma intenção de “refutá-las”. No dia do ato, ele

186
O link onde este comentário foi postado não funciona mais. Atualmente ele leva a um site malicioso, com links
que possivelmente contêm vírus, motivo pelo qual não o citarei aqui.
236

apareceu, se posicionou próximo ao ato e empunhou um cartaz que dizia algo que desqualificava a
Marcha (infelizmente nem eu nem minhas interlocutoras conseguimos nos lembrar da frase). As
vadias da comissão de segurança o reconheceram, lhe tomaram, amassaram e jogaram fora o cartaz,
e ele foi embora. Embora esta situação – a de um homem que sistematicamente ataca e se contrapõe
às vadias em espaços feministas – justificasse, para as ativistas, um escracho bastante performático,
elas não o fizeram, sem, contudo, deixar de reagir.

Tanto neste caso como no anterior, as vadias parecem ter incorporado criticamente a experiência
de Brasília. Mais interessante ainda, elas não foram as únicas: o segundo homem também conhecia
as implicações políticas de um escracho de feministas brancas a uma pessoa negra e jogou com
isso. Certamente, a atitude das vadias ao lidar com esses homens foi resultado de uma reavaliação
das estratégias de segurança, à luz das críticas de feministas negras. Isto envolveu uma releitura do
que pode configurar ou não um ato de “assédio” no protesto, e quais sujeitos serão reconhecidos
ou não como potenciais “agressores”, com base na avaliação de gestos e marcas corporais de raça,
gênero e classe.

Outros eventos foram ainda mais marcantes como experiências de conflito e elaboração de
identidades feministas racializadas na Marcha carioca. A Campanha Vadivas, citada no capítulo 1,
foi um deles. Realizada por uma artista visual que frequentava as atividades da Marcha, a campanha
consistiu na confecção de banners para divulgação online do protesto de 2013. Os banners tinham
imagens e frases de mulheres célebres, pessoas trans, personagens de quadrinhos e bandas
feministas, como Clara Nunes, Luz del Fuego, Elza Soares, Laerte, as personagens de quadrinho
de Persépolis e Radical Chic, a banda Pussy Riot, entre outras. Um dos banners produzidos tinha a
fotografia de uma mulher negra anônima, de seios de fora, no setor geral do Maracanã (conhecido
como “a Geral”), comemorando o primeiro título brasileiro do Flamengo em 1980, o maior time
carioca de futebol (ver figura n. 19). Além da imagem, o banner trazia as informações do protesto:
“Marcha das Vadias RJ - 27/julho/2013, 13h - Posto 5, Copacabana, Av. Atlântica”.
237

Figura n. 19 - Mulher negra na Geral no Maracanã. Foto: Ricardo Azoury, 1980

O banner foi publicado no Facebook da MdV, mas quando o procurei para salvá-lo no meu arquivo
de imagens da pesquisa, não o encontrei; o post havia sido removido. Dias depois, conversando
com a criadora do banner, ela me contou que ele havia sido criticado por mulheres negras, que o
consideraram “ofensivo”. Ela me disse que suas interlocutoras negras descreveram a imagem como
a de uma mulher com um “olhar animalesco”, “como se estivesse drogada”, com “os peitos de fora
na Geral do Maracanã”, “cheio de homens em volta ovacionando”, o que reforçaria estereótipos
negativos relacionados às mulheres negras. Ela se desculpou às mulheres que a criticaram, disse
que sua intenção era “passar uma mensagem de liberdade e autonomia dos corpos das mulheres”,
considerou que suas interlocutoras tinham razão em suas críticas e removeu o post.

A mesma foto circulou na internet em blogs, redes sociais e até um documentário que criticavam a
reforma do Maracanã para a Copa do Mundo, em 2013. Em um desses blogs, o autor desaprovava
os gastos excessivos e a “elitização” da cidade em nome da Copa, de que a reforma do Maracanã
era um símbolo. Ele dizia que os ingressos caros e a nova organização do espaço do estádio, com
cadeiras fixas, eram um aprofundamento de um processo “segregacionista” que começou com a
238

desativação da Geral em 2005, um processo que impediria para sempre que cenas como a da mulher
de topless se repetissem. Cito um trecho do texto:

Quem esteve nas arquibancadas e na geral do Maraca até meados dos anos 1990 pode se
lembrar que aquele estádio era o principal espaço de congregação social da cidade. Mais
insurgente do que a praia, que além da cada vez menos sutil territorialização, não possui
a mesma dimensão de interação dos corpos. Por mais que uns se recusassem a ir de geral
com argumentos preconceituosos, por mais que esses preconceitos fossem verbalizados
nas canções de torcidas, na hora do gol, abraçava-se quem estivesse do lado, não
importava a classe, não importava a cor. O fechamento da geral foi o primeiro passo para
a elitização – ou esterilização – do Maraca. Tanto lá, quanto agora, parte considerável da
elite carioca, sempre bem representada pelo governante da vez e pela mídia hegemônica,
utilizou o argumento de forças superiores (mandos da divina FIFA) como a justificativa
para implementar o mesmo processo segregacionista que se observa em toda a cidade (...)
[Fazendo uma comparação com outros países, o autor continua:] Em jogos do campeonato
alemão, [as cadeiras] são retiradas para que os torcedores “das antigas”, do povão, possam
assistir aos jogos como antigamente, em pé, pulando, cantando, com bandeiras, faixas e
bumbos. Trata-se de uma proposta que prima pelo convívio e não pela eliminação violenta
do outro. Este é só um exemplo de como soluções que valorizem a cultura local e a
diversidade seriam possíveis aqui no Rio de Janeiro. (Trechos do texto “O Maraca e nossa
violência estrutural”, de Guilherme Alcântara, publicado em 6 e março de 2013)187

É interessante notar como a mesma imagem, corpo e performance foram politizados de formas
completamente diferentes, segundo interesses distintos. Para os propósitos da MdV, a nudez da
mulher representava noções de “autonomia”, “liberdade” e “irreverência”, centrais nos repertórios
da Marcha. Aqui, a cor ou raça daquele corpo nu não é explicitamente marcada como um
incremento a essas noções, que são entendidas em termos universais: “a mulher autônoma e livre”.
Para os entusiastas do futebol “das antigas”, a nudez da mulher negra – a raça está bem marcada o
texto do autor – guarda uma memória da “irreverência perdida” no processo de transformação
recente da cidade e é mobilizada como símbolo de uma suposta “democracia racial e de classe” na
“congregação dos corpos” na Geral. Já para as mulheres negras que criticaram a imagem, aquele
corpo é ressignificado retrospectivamente como um corpo negro subalternizado e sexualizado pelo
racismo. É provável que não apenas a imagem produzida em 1980, mas principalmente a sua
apropriação pelas “mulheres brancas” da Marcha das Vadias, seja a causa da ofensa moral relatada
pelas mulheres negras.

187
Disponível em http://guilhotinada.wordpress.com/2013/06/03/o-maraca-e-a-nossa-violencia-estrutural/ (u.a. em
29 de janeiro de 2018).
239

Ainda que a mulher histórica da foto possa ser vista como uma pessoa que escolhe experimentar
sua nudez em público, por razões que possivelmente nada tem a ver com nenhuma das três
interpretações citadas, é a circulação da sua imagem em contextos atravessados por relações
assimétricas e politizadas, que a transforma em símbolo político – ora da “liberdade de gênero”,
ora da “igualdade social”, ora do “racismo”. Assim, as operações de (re)significação da imagem
são sempre relacionais e contextuais, produzindo diferentes performatividades. Assim como no
caso das imagens das santas e dos fetos de plástico durante a MdV e a Jornada Católica de 2013,
aqui também os conflitos políticos são materializados na produção, circulação e apropriação de
imagens-símbolo por diferentes grupos.

Durante meu trabalho de campo, a experiência mais marcante dos diferentes modos pelos quais
gênero, raça e classe podem ser mobilizados na produção de identidades, sujeitos e relações no
campo feminista foi o processo de organização de um debate sobre “feminismo negro” pela MdV
carioca em 2014. O debate foi um desdobramento direto da cena que abre esta seção, em que Sheila,
feminista negra, questiona as vadias pela ausência de mulheres negras palestrantes no evento sobre
aborto e violência obstétrica. A ideia de se aproximar de mulheres negras já era uma preocupação
das vadias em anos anteriores e, desde o início de 2014, elas vinham elaborando a ideia de conhecer
e pautar os impactos dos megaeventos nas vidas das mulheres negras e pobres. Mas foi depois
desse evento sobre aborto, a partir das críticas de Sheila, que essa aproximação começou a ganhar
corpo e a tomar a forma de um debate em que mulheres negras fossem as palestrantes.

Pela lista de e-mails, várias vadias se referiram ao evento e às críticas de Sheila como um “momento
importantíssimo de formação feminista”. Uma vadia sugeriu que fizéssemos “uma roda de
conversa sobre feminismo de mulheres negras/ feminismos negros”, como uma oportunidade de
“situá-las em 1ª pessoa, para que elas possam falar sobre as especificidades de suas experiências”,
além de “um momento para elaborar algumas questões que distanciam essas modalidades de
feminismo, bem como procurar convergências”. Outras vadias apontaram as tentativas fracassadas
que já tinham sido feitas nesse sentido e disseram que “é na construção cotidiana da marcha que
devemos pensar nesse desafio”, e não em um evento. Outras apontaram, ainda, que fazer um debate
para “situá-las em primeira pessoa” é bastante “hierárquico” e que convidar mulheres negras “para
falar sobre feminismo negro” era como convidar “pessoas trans para falar apenas de transfobia”:
240

“reproduz a hierarquização de conhecimentos e as estruturas patriarcais”. Não havia consenso


sobre como fazer essa aproximação.

Então, Matilde, a amiga de Sheila, contou que esta disse ter se sentido “acolhida” pelas vadias, que
ouviram suas críticas, o que segundo ela, “não costuma acontecer”. Matilde disse que Sheila, que
é uma jovem professora e pesquisadora de uma universidade pública prestigiosa da cidade, queria
participar mais ativamente da Marcha, e “tem pensado muito na importância dela, como mulher
negra de classe média, acadêmica, se fazer presente em espaços assim - sabendo, por ex, que ela
tem uma vivência muito diferente das mulheres negras da favela”. Matilde disse ainda que Sheila
propôs a ideia de “fazermos uma mesa de mulheres negras, pesquisadoras e ativistas, para falarem
sobre feminismo negro para nós”. Sheila teria pontuado ainda “a inversão de posições que
aconteceria”: “mulheres negras que normalmente são trazidas como estatísticas, falando em
primeira pessoa, e nós, num primeiro momento, ouvindo - e depois, claro, debatendo”. As vadias
se mostraram muito entusiasmadas com a ideia e disseram que “o movimento tem muito a ganhar
com essa discussão”, que seria “histórica em termos de MdV”.

Sheila foi incluída na lista de e-mails. As vadias cogitaram nomes de mulheres negras para fazerem
as falas principais: uma ativista da área da saúde; uma mulher trans maranhense, doutoranda de
uma universidade norte-americana que, por sua vez, indicou uma ativista trans que várias vadias
já conheciam da cena transfeminista; e uma professora, pesquisadora e ativista do tema da
prostituição, a mesma que participou do debate sobre a regulamentação da profissão que a MdV
promoveu em 2013. Sheila fez o convite formal a algumas delas, que aceitaram. Em plena Copa
do Mundo, foi difícil escolher uma data e um local que contemplassem o calendário dos jogos, as
agendas das palestrantes, as condições de transporte e o tamanho da plateia que, tudo indicava,
seria grande. Depois de várias sugestões, ficou acertado que o evento aconteceria no dia 11 de julho
de 2014, uma sexta-feira, a partir das 18h30, no salão do ISER (Instituto de Estudos da Religião,
onde eu trabalhava), que fica na Glória, um bairro da Zona Sul da cidade, bem próximo ao Centro.

Algumas vadias que já estavam há mais tempo na organização se mostraram preocupadas se a


“roda de conversa” não estaria se tornando muito “acadêmica” e também lembraram, se
contrapondo à ideia de que este seria um evento “histórico” nas MdV, que a Marcha carioca e de
outras cidades já se articulavam no sentido de dialogar com diferentes grupos. Outras vadias, então,
241

frisaram que, desta vez, não se tratava de tentar fazer alianças, mas de “ouvir o que as mulheres
negras têm a dizer”, sem a expectativa de que elas aderissem à Marcha.

Ao mesmo tempo em que redigiam um texto de descrição/convite do evento, as vadias pensavam


na escolha de uma imagem para a divulgação no Facebook, e foi aí, na hora de dar “cara e corpo”
ao debate, que os conflitos emergiram. Uma vadia de 17 anos, a mais jovem do grupo, sugeriu uma
fotografia em preto-e-branco, intitulada “Luz Negra”, que retratava “uma mulher de uma tribo
africana”, como ela mesma descreveu (ver figura n. 20)

Figura n. 20: “Luz Negra”. Foto: Robério Braga

Sheila protestou:

É sério que a imagem sugerida para o debate é de uma mulher preta anônima, que pertence
à alguma "tribo africana"? Já que a questão da escuta é sempre pontuada como desejo da
MdV, uma primeira lição: como feministas brancas, querendo aprender sobre o feminismo
negro e nossas epistemologias, é preciso, no mínimo, estranhar esta imagem. Origens,
nomes e sobrenomes (inclusive os patriarcais) interessam muito para nós mulheres negras,
historicamente tratadas como pedaços de carne. Que a minha raiva ao ver esta imagem
contribua para mudanças criativas. (Trecho de email, em 2 de julho de 2017, grifos
originais)

A vadia que sugeriu a imagem se desculpou: “não tive o intuito de ofender ou ser genérica, mas na
minha posição de mulher branca é um pouco difícil”. Outras vadias compartilharam a dificuldade
para “navegar a ignorância” e escolher uma imagem. Sheila diz: “é parte do exercício educativo
242

que vocês, enquanto feministas brancas, concentrem esforços (leiam, discutam, reflitam etc.) em
busca de imagens e palavras que rompam com essa ‘ignorância’ e que considerem nós, mulheres
negras, como parceiras, nessa tão questionável ‘irmandade’”. As vadias então sugeriram diversas
imagens de mulheres negras célebres, entre norte-americanas (Angela Davis, Audre Lorde, bell
hooks, Chimamanda Adichie, Sojourner Truth) e brasileiras (Carolina Maria de Jesus, Conceição
Evaristo, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Jurema Werneck). As imagens também foram
criticadas por Sheila, que argumentou que essas escolhas apenas reforçavam “a brancura como
norma, a negritude como alteridade”. As vadias pararam de sugerir imagens.

Omara, mulher negra da organização da Marcha, lembrou que a razão que motivou as vadias a
dialogarem com as mulheres negras não foi “uma busca acadêmica da trajetória de feministas
negras”, mas uma vontade coletiva de “conversar sobre essa mulher que sentiria diretamente os
efeitos da higienização da cidade”. Nessa lógica, defendeu uma “foto de uma negra anônima
mesmo”, num “processo de remoção, em situação de rua, numa favela, algo assim”. Depois de
alguns dias de silêncio na lista de emails, uma vadia branca disse que esteve buscando uma imagem
que “não apagasse as particularidades da luta da mulher negra ou, em outras palavras, que
escancarassem os privilégios da mulher branca”, e sugeriu então a foto de uma mulher negra
empurrando um policial armado com fuzil para defender um homem negro imobilizado no chão
(ver figura n. 21).

Figura n. 21 – Mulher negra enfrentando a polícia. Foto: Eduardo Naddar (Agência O Dia)
243

Então, algumas vadias brancas mandaram e-mails em que criticavam o modo “não-horizontal”,
“autoritário” e “indelicado” pelo qual as decisões estavam sendo tomadas. Questionaram a inclusão
de Sheila na lista de e-mails, já que ela se definiu em uma de suas mensagens como uma “não
vadia”, uma lista que além de ser reservada às organizadoras, envolvia o manejo de cuidados com
a “segurança” do grupo188. Apontaram também que desconheciam o modo como os convites às
palestrantes estavam sendo feitos e criticaram que todas as decisões estivessem sendo submetidas
apenas ao crivo de Sheila. Disseram que o diálogo se tornou um “julgamento” e não uma “troca”
e que as vadias estavam paralisadas pela “culpa” e pelo “medo de errar”. Pediam que “todas
construíssem juntas”, “sem hierarquias”, sem “observadores ou avaliadores”.

Outras vadias brancas contra-argumentaram que se houve “verticalidade” era pelo “cansaço” das
mulheres negras “em lidar com a necessária desconstrução do privilégio branco”. Sheila reiteirou
que seu “tom professoral” era decorrência do desejo das vadias de “conosco aprenderem” e que
“não é bacana ser cobrada por irmandades ou coisas do gênero, tampouco ficar ouvindo lições
verticais sobre como praticar a horizontalidade e as gentilezas”. Omara respondeu que, numa
discussão sobre racismo, “haverá dedo na cara”, “não porque nós pretas somos indelicadas, mas
porque há racismo e nem sempre responderemos ao racismo com delicadeza”.

Enquanto este debate ocorria numa sequência de emails, em outra, as vadias confeccionavam um
texto de descrição/convite do evento, que foi revisado por Sheila, para divulgação no Facebook e
outros canais. A cada edição, a linguagem ia ficando mais rebuscada, incorporando jargões que
circulavam entre a “academia” e alguns setores do feminismo. A edição final, que só ficou pronta,
dois dias antes do evento e depois de todo o conflito descrito acima, ficou assim:

Desde a sua primeira edição, em 2011, a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro se propõe
a ser um espaço de construção horizontal, coletiva e diversificada. Agimos no esforço de
trazer visibilidade às estruturas de dominação que agem em nossa sociedade explorando
mulheres e pessoas trans*.
Sabemos, no entanto, que essa exploração acontece em diferentes níveis para diferentes
identidades. Tendo por norte a necessidade de falar em opressões em suas diferentes

188
A inclusão na lista de e-mails da MdV era objeto de preocupação para as vadias. Para incluir alguém na lista, elas
esperavam até que a pessoa demonstrasse “compromisso” com a organização, o que em termos práticos significava
estar presente em pelo menos três reuniões. Periodicamente, faziam “limpezas” na lista de e-mails, excluindo as
pessoas que estavam há algum tempo ausentes. A preocupação com a “segurança” era a justificativa para tanto
cuidado. Num contexto em que os movimentos sociais estavam sendo criminalizados, as vadias sempre
desconfiavam de que poderia haver “infiltrados” na Marcha. Os cuidados se redobraram depois das ameaças e
denúncias que elas sofreram por causa da performance das santas.
244

camadas, buscamos construir uma marcha alinhada com o que se entende por feminismo
inter-seccional: um feminismo que entenda que a posição da mulher na sociedade não é
única, mas se modifica de acordo com sua raça ou etnia, sua classe social, sua identidade
de gênero, sexualidade, local de moradia, profissão e outras vivências.
Como nos anos anteriores, em 2014 a MdV-RJ vem realizando uma série de debates
formadores, buscando dialogar com perspectivas e questões plurais. Tendo sido
organizada majoritariamente por mulheres brancas, de classe média, e com inserção
acadêmica, o debate com feministas negras coloca-se como tarefa central para pensarmos
as pautas, os limites e possibilidades de ampliação da MdV-RJ.
A roda de conversa "Feminismo negro e Marcha das Vadias: diálogos sobre o racismo"
vem, justamente, ser um encontro em que ativistas negras serão convidadas a falar sobre
relações de gênero, feminismos (cis e trans) e desigualdades numa perspectiva
interseccional. (Texto de descrição do evento) 189

O nome inicialmente proposto para o evento foi “Roda de conversa: Marcha das Vadias e
feministas negras”. O nome final, por decisão de Sheila, ficou: “Roda de Conversa Feminismo
Negro e a Marcha das Vadias: Diálogos sobre Racismo”. Outra mudança de última hora foram os
nomes das convidadas e suas “credenciais” de apresentação. Embora as vadias tivessem sugerido
várias palestrantes e convidado algumas delas, elas não sabiam quem de fato tinha sido confirmada
e contatada por Sheila. Dois dias antes do evento, ela informou na lista de email que havia
convidado cerca de 20 mulheres negras para o debate aberto e que os nomes que comporiam a
“mesa” eram apenas três, incluindo ela mesma:

Sandra B. - Doutoranda no Depto. de Estudos da Diáspora Africana na Universidade


[norteamericana]
Sheila C. - Professora de História/Universidade [pública do Rio de Janeiro]
Lavínia D. - Psicóloga da Universidade [pública do Rio de Janeiro] e do Instituto [ONG]190

As vadias então lembraram que mais duas pessoas tinham sido convidadas por elas: Patrícia,
professora, pesquisadora e ativista do tema da prostituição, e Marcela, ativista trans, que teriam
ficado chateadas de não terem sido incluídas no convite “oficial” divulgado inicialmente. As vadias
também criticaram o formato indicado por Sheila, por estar “mais pra debate de mesa que de roda”,

189
Comparando com versões anteriores do texto, vê-se que foram excluídas da versão final as frases que falavam de
processos de “transformação”, “diferenciação” e “diversificação” das diversas Marchas ao longo dos anos, além das
palavras “solidariedade”, “colaboração” e “sororidade”, que foi considerada por Sheila “muito controversa para o
feminismo negro”. As expressões “interseccionalidade”, “identidade”, “horizontal”, “estruturas de dominação” e
“exploração”, que não estavam nas versões anteriores, foram incluídas no texto final.
190
Todos os nomes são fictícios. Os nomes das universidades foram omitidas. São universidades prestigiosas do Rio
de Janeiro e Estados Unidos.
245

e o fato de que apenas as “qualificações acadêmicas” das palestrantes eram mencionadas, enquanto
as “qualificações ativistas” foram deixadas de fora. Sheila ressaltou que “os títulos, para nós,
mulheres negras, têm um significado diferenciado, se considerarmos toda a animalização a que
estamos sujeitas ao longo da história”, mas mesmo assim, concordou em fazer modificações. A
apresentação final das convidadas ficou assim:

Para dar o pontapé inicial na roda de conversa, teremos as seguintes convidadas:

Patrícia F. - Professora de Antropologia da Universidade [pública do Rio de Janeiro]


Marcela G. - Tradutora e Ativista
Sandra B. - Ativista e Doutoranda no Departamento de Estudos Africanos da Universidade
[norteamericana]
Sheila C. - Ativista e Historiadora
Lavínia D. - Ativista e Psicóloga

Todas as pessoas interessadas serão bem-vindas! (Texto de descrição do evento)

Desde a ideia de fazer o debate até o último email acertando os detalhes do evento, foram mais de
200 mensagens trocadas na lista, num período de 25 dias. Por fim, o texto foi divulgado nas redes
sociais, sem qualquer imagem, por orientação de Sheila. Durante a organização do debate, se
acirram conflitos que, basicamente, dizem respeito aos termos em que o diálogo entre feministas
negras e brancas pode ou deve acontecer. Nesse processo, ora são mobilizadas divisões bem
marcadas entre feminismo “branco” e “negro”, que aparecem como irreconciliáveis, ora
enfatizadas possibilidades de alianças e borramento dessas fronteiras, sem, contudo, se deixar de
pontuar diferenças, desigualdades e conflitos entre as sujeitas e suas formas de militância. Essa é
uma disputa sobre quais posições devem ser ocupadas por elas na interação. Sheila e algumas
vadias brancas imaginam lugares temporariamente fixos, em que as brancas devem ater-se à
posição de “ouvintes/aprendizes” e as negras, à de “enunciadoras/professoras”, como uma
estratégia de inversão das hierarquias sociais. Outras vadias parecem imaginar lugares mais
móveis, em que “todas podem aprender e ensinar” e em que as posições de “avaliadora” e
“observadora” são problematizadas pela relação de objetivação que, em alguma medida, supõem.
As noções de igualdade e hierarquia são mobilizadas na definição desses lugares: se para Sheila e
algumas vadias, a igualdade entre negras e brancas envolve a produção simbólica de hieraquias
“invertidas”, outras vadias mobilizam a noção de horizontalidade como pré-requisito das
interações. Tudo isso é atravessado também por estratégias políticas opostas: por um lado, Sheila
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e algumas vadias buscam explicitar o conflito racial; por outro, ativistas utilizam expedientes de
evitação do conflito ou acomodação de seus termos – como a mobilização das noções de
horizontalidade e “delicadeza”.

Como no caso da imagem da mulher na Geral do Maracanã, há uma economia de produção,


circulação e apropriação de imagens-símbolo. Se as imagens de mulheres negras ilustres são
interpretadas pelas vadias brancas como uma forma de reconhecimento político dessas figuras, para
Sheila, representa a produção racista da “outra” e para Omara, ainda, uma abordagem “acadêmica”
da diferença e desigualdade racial. Há uma tensão constante entre os termos “feminismo negro” e
“feministas/mulheres negras”, que reflete a oposição, enfatizada sobretudo pelas vadias, entre o
“feminismo acadêmico” e a “experiência” de mulheres concretas. As conversas revelam ainda um
processo de aprendizado do vocabulário político considerado adequado para se falar de racismo
hoje: “reconhecer privilégios”; “lugar de fala”, ora mobilizado como assunção de um lugar
específico de enunciação ora como fórmula de autorização/interdição da fala e de sujeitos políticos;
“culpa branca”; “diferenças x desigualdades”; “ancestralidade”; “epistemologias negras”. Se é uma
conversa cheia de palavras carregadas politicamente, é também atravessada por silêncios: o silêncio
exigido; o silêncio da “ignorância”; o silêncio por omissão, por “vergonha”, por “culpa” ou por
“medo” da acusação de racismo; o silêncio do “cansaço”.

A posição de Omara enquanto vadia negra é muito interessante. Ela faz uma ponte entre as vadias
e Sheila e, ao mesmo tempo, um contraponto a elas. Ela enfatiza a necessidade de uma abordagem
“não-acadêmica” do debate, o que contraria o modo como Sheila e algumas vadias imaginaram e
construíram o evento. Por outro lado, ela sublinha a necessidade de “enegrecer” o feminismo da
Marcha e aponta que, nesse projeto, o conflito não pode nem deve ser evitado: “haverá dedo na
cara”. Se Sheila e algumas vadias brancas mobilizam as identidades de feministas brancas e negras
para reforçar a impossibilidade ou improbabilidade de alianças entre os grupos, Omara apela às
mesmas identidades (ou a uma versão delas) para sustentar a possibilidade de coalizão, ainda que
conflituosa.

No dia do debate, meia hora antes da hora marcada, já havia várias pessoas no grande salão do
ISER. Sheila chegou acompanhada de várias mulheres negras. Outras mulheres negras vieram
sozinhas, em grupos menores, ou acompanhadas por mulheres da Marcha ou de coletivos próximos.
As mulheres negras estavam “montadas”: usavam turbantes e lenços “étnicos”, acessórios
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coloridos, maquiagens marcantes – vestidas para a coreografia da afirmação da negritude feminina.


Eu conhecia apenas algumas delas, de circuitos acadêmicos e de ONGs do campo das favelas.
Filomena, que é ativista de longa data, me disse que estavam presentes lideranças importantes do
movimento negro e de mulheres negras. Segundo ela, as mulheres negras que foram ao debate eram
de diferentes grupos e vertentes; muitas não se conheciam antes do evento; e algumas eram
inclusive de grupos “rivais”. Ela disse ainda que soube que os e-mails tinham sido vazados por
Sheila para uma lista de e-mails de mulheres negras, e que teria sido isso o que motivou a vinda e
a reunião de grupos tão diversos. “Boa coisa não vai ser”, disse ela, preocupada.

Formou-se uma grande roda, que ia crescendo à medida que mais pessoas chegavam. Quando a
roda não podia mais crescer em diâmetro, foram-se formando fileiras de cadeiras atrás do círculo
central. Mais tarde, havia pessoas também em pé e sentadas no chão. Entre 80 a 100 pessoas
estiveram presentes. As convidadas se posicionaram na cabeceira da roda. O debate começou com
algum atraso e foi gravado em áudio, do qual transcrevo alguns trechos.

A primeira a falar foi Sheila. Ela explica que não faz parte da MdV e que é uma feminista
“autônoma” interessada em “todo e qualquer tipo de diálogo”. Preparou um texto de várias páginas,
com o título “Luz Negra, sororidade seletiva e a mulher negra que vi de perto: diálogos sobre o
racismo no movimento feminista”. Agradece às suas “irmãs pretas” e, da Marcha, especialmente à
Omara, que “avisou gentilmente que ‘vai ter dedo na cara’”, disse. Avisa que vai propor um
exercício difícil para as mulheres brancas: “serem narradas na terceira pessoa por uma mulher
negra”. Fala rapidamente de alguns aspectos do termo vadia: seus significados para as pretas,
diferentes do sentido de “liberdade e cidadania” que adquirem para as brancas, está associado ao
“trabalho”. Ser “trabalhadora” e “trabalhador” é fonte de afirmação de dignidade para os pretos,
diz. Cita a lei da vadiagem, que prendia quem não tinha carteira de trabalho, pretos, sobretudo. Por
isso, “recusamos com veemência essa categoria vadia”, diz. Cita o livro/tese de Nilma Gomes Lino,
de 1995, “A mulher negra que vi de perto: o processo de construção da identidade racial de
professoras negras”. É à luz deste livro, diz, que vai contar a sua experiência, uma espécie de
“observação participante” de três semanas nos espaços da Marcha. Adianta que vai usar termos
muito usados pelas vadias, “transparência”, “horizontalidade” e “gentileza”. “Vou pedir um grande
favor a cada uma das feministas brancas aqui presentes: reconheça-se branca, cale a boca e pela
primeira vez na vida escute o que as mulheres negras que vocês estão vendo de perto têm para
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ensinar a vocês”. E continua: “Para nós é muito difícil estar aqui; parece mesmo paradoxal atender
a um pedido de formação feito por mulheres que muitas vezes nos oprimem devido ao privilégio
da ignorância”.

Relata o processo de escolha da foto do evento, mostra a foto “Luz Negra” no projetor: “É assim
que vocês nos vêem, como uma luz negra? Uma mulher negra universal, anônima, proveniente de
algum ponto da África - que talvez seja um país e não um continente”. “E se um homem, branco,
classe média, Zona Sul escolhesse esta foto para um evento sobre machismo?” E mostra uma
charge de uma mulher branca, nua, peituda, servindo comida na bandeja a um homem satisfeito,
refestelado num sofá. Cita diversos trechos dos emails, especialmente os que a acusavam de “falta
de horizontalidade”. “Por que o tom professoral de alguém convidada a ensinar é tão incômodo?
Será que isso guarda alguma relação com o fato de a professora ser uma mulher negra?”. “Estamos
aqui não porque somos boazinhas, mas porque praticamos a irmandade entre mulheres negras”,
diz. Diferencia “irmandade” de “sororidade” – “a ideia de uma solidariedade inerente ao fato de
sermos todas mulheres, inverossímel a esse encontro e às nossas relações ao longo da história”. E
citando a blogueira Luna is the Queen, diz: “Sororidade é o caralho”. “Para que a guerra não ecloda,
depende muito mais de vocês do que da gente: depende de aceitar aprender em silêncio o que a
gente escolhe ensinar. Qualquer tentativa de estreitamento entre feministas brancas e negras parte
do entendimento das primeiras de que nós somos as únicas vozes autorizadas a falar sobre o que é
ser uma mulher negra – cis, trans, trabalhadora, mãe, namorada, esposa, e tantos outros papeis”.
Ela é muito ovacionada pelas mulheres negras.

Em seguida, Sandra B., trans negra, doutoranda da universidade estadunidense, tem a difícil missão
de ser a próxima a falar. Começa citando o livro “Travesti”, de Don Kulick – que fala sobre como
as travestis da Bahia “constroem suas identidades de maneira não normativa” – e observa que ele
não analisa a questão racial. Ela explica que as travestis e trans negras têm uma especificidade na
construção da materialidade do corpo e no modo como experimentam a violência: para elas,
explica, não é só uma questão de gênero. Citando Laverne Cox, atriz do seriado norteamericano
“Orange is the new Black”, e Sojourner Truth, diz que “a mulher negra, cis ou trans, tem a sua
mulheridade sempre questionada”. “É daí que vem a discussão de interseccionalidade, e essa
discussão também diz respeito à branquitude: o homem, cis, branco, heterossexual também é uma
discussão de interseccionalidade, mas ele tem o privilégio de não ter a sua interseccionalidade
249

marcada. É complicado pensar a interseccionalidade apenas no corpo da mulher negra; é


desconfortável”.

Ela diz que há uma “animalização” das mulheres negras cis e trans. Então, “falar apenas de
performance de gênero ou não falar de branquitude nos estudos queer é extremamente
complicado”. Ela diz que seu corpo é percebido como “terror racial”, “perigo”. Fala sobre a
“passabilidade”, termo que ela acha problemático. “Passar” como mulher negra é ser considerada
“disponível” sexualmente ou como “trabalhadora do sexo”. Ela explica que não há nada de ruim
em ser uma prostituta, apenas que ser automaticamente identificada como tal não é uma escolha,
mas um pressuposto para o corpo de mulheres negras. Diz que, embora faltem na academia textos
de intelectuais negras que dêem atenção à transexualidade, “na prática” existe uma relação de
“irmandade” entre mulheres negras cis e trans, como é o caso de bell hooks e Janeth Mock, uma
mulher trans negra, com quem a intelectual tem uma relação próxima de amizade e colaboração.

É a vez de Patrícia F., professora, pesquisadora e ativista do tema da prostituição. Ela fala sobre a
“má interpretação do conceito de interseccionalidade como sobreposição das desgraças”. A “soma
de opressões”, explica, leva a uma “diminuição do indivíduo”, a pessoa torna-se “nada”, não tem
“agência”, “escolha” e, portanto, precisa de “tutela”. É sob a perspectiva da tutela que as mulheres
negras são tratadas nas políticas públicas, explica. Isso vale especialmente para as políticas voltadas
para as sexualidades, em que são comuns as ideias de que “a mulher negra precisa aprender a se
comportar diante da sua sexualidade”, que ela é “sexualmente perigosa, faz muitos filhos”, que ela
tem uma “sexualidade desregrada que coloca em perigo o projeto da nação”. Embora não seja
crime, o “turismo sexual” vem sendo colocado como uma “questão moral” e “criminalizado
socialmente” nesse período de Copa do Mundo. Ela alerta que “turismo sexual é, na maioria dos
casos, uma categoria de acusação”. A mesma prática sexual pode ser ou não enquadrada como
“turismo sexual”, dependendo dos atores envolvidos. Nas políticas de Estado, o turismo sexual é
atribuído à figura do “estrangeiro tarado” acompanhado de uma mulher negra, que “só pode ser
puta”. Esta mulher é considerada “aliciada”, “cooptada”; seu comportamento sexual nunca é
entendido como uma escolha dela. Esses discursos têm efeitos complicados, porque está em jogo
“o cerceamento de práticas sexuais de mulheres negras”, que precisam, então, manter uma certa
“respeitabilidade” em nome da sua “honra”, ou em nome de “não ser vista como puta”. Com o
250

pretexto de sua suposta “exploração”, elas precisam ser “protegidas”. “Mas proteger o que de
quem?”, pergunta.

Cita o caso do Bonde das Maravilhas, grupo de meninas funkeiras cariocas, que foi investigado
pelo Ministério Público, porque foram consideradas “sexualizadas demais para a idade delas”. Por
serem pobres e oriundas de favelas, “o Estado tem que dizer qual é o seu lugar”, para que não
“agucem a libido de outras meninas que vão querer fazer a mesma coisa e sair fazendo filhos por
aí”. Contrasta este caso com o das modelos, que iniciam sua carreira em torno dos 12 anos de idade,
mas como são brancas, suas famílias não são investigadas por “exploração” ou “sexualização”,
ainda que o mercado da moda “também explore e sexualize”. Assim, diz, a “vitimização é um
discurso potencialmente perigoso, porque retira a possibilidade de esses indivíduos serem
indivíduos de fato e poderem decidir sobre o seu corpo”. Quem sofre com essas políticas de
controle do Estado são mulheres e meninas negras, que estão sendo “cada vez mais cerceadas em
seus trânsitos, em sua saída do país, em sua permanência fora do país”, tendo seus comportamentos
rotulados como “fora da norma”. Muito se fala da “hipersexualização da mulher negra”, mas esse
discurso traz, por outro lado, a ideia de que a tutela e o cerceamento de sua sexualidade são a
“solução” para essa exposição e para reverter a imagem do Brasil como “paraíso sexual”, conclui.

A próxima convidada é Marcela G., mulher trans, tradutora e ativista. Ela explica que “não fala de
um local de especialista ou acadêmica”, mas de um local que considera “muito interessante”, que
é “o da movimentação, da pessoa, do ser humano e do ativismo”. É a primeira vez, diz, que vê
“mulheres negras trans e cis falarem de ser mulher e de interseccionalidade de uma maneira normal,
tranquila”, em que “apontamos questões, mas não porque precisamos pedir um espaço e um local
para falar”. Ela explica que a mulher trans é “ininteligível pra uma sociedade cisgênera”. Assim,
“se para as mulheres brancas, a questão é desconstruir o significado de ser vadia e, para as mulheres
negras, ser vadia tem outra conotação, a mulher trans não é humana o suficiente pra ser vadia,
porque ela não é mulher, é um cabra safado”. “Faz pouco tempo que percebi”, conta, “que a
necessidade de falar que sou preta é anterior à necessidade de falar que sou trans”. “Quando
comecei a passar como mulher, eu sofri enquanto preta, eu fiquei passada! Eu passei tanto que
fiquei passada!”, diz, arrancando risos da plateia. “Ser homem preto é exótico”, mas “mulher preta
sofre”. Ela conclui: “Estou muito feliz de estar aqui, nunca tinha tido a oportunidade de trocar
informações com vocês e me sinto muito empoderada pessoalmente de estar aqui como mulher
251

negra e trans, não uma mulher essencializada, romantizada e glamourizada, mas uma mulher que
repensa o que é ser mulher e que se sente até tranquila de ser chamada não-mulher, de ser trans. É
desse lugar que eu falo. E eu quero que esse encontro sirva pra gente se fortalecer e compreender
uns aos outros com o coração aberto, que preto pode falar, que preto é igual a gente, e mesmo que
não seja igual, tem a mesma condição de igualdade de lutar junto. Isto legitima muito mais esse
respeito do que uma interseccionalidade que funcione como ‘soma das desgraças’”. Marcela é
muito ovacionada.

Por último, Lavínia D., psicóloga e ativista da área da saúde pública, faz um histórico do
movimento de mulheres negras. Conta que, em 1988, as mulheres negras se reorganizaram, o que
foi questionado tanto pelo movimento feminista como pelo movimento negro, que as acusavam de
“querer nos dividir”. As mulheres diziam “somos todas mulheres”; os negros falavam “somos todos
negros”: “só que não!”. “Para o movimento feminista, estávamos dizendo que as mulheres têm
raça; para o movimento negro, que existe gênero”. Se no início do século, o movimento feminista
reivindicava voto e trabalho, “as mulheres negras já trabalhavam há muito tempo”, diz. As
primeiras reuniões do movimento feminista, conta, “era com as empregadas servindo em vez de
participando, porque elas não eram mulheres”.

Se contrapondo à crítica feita por Patrícia, Lavínia diz que a interseccionalidade diz que “somos
várias coisas” e traz um “empoderamento” para dizermos que “não somos desgraça coisa
nenhuma”. Ela diz que o corpo das mulheres negras é tomado como a fonte da “pobreza do país”:
“sempre se resolve a pobreza no nosso útero, a esterilização foi feita nos nossos corpos”. Ela lembra
a fala do ex-governador do estado, Sergio Cabral, que disse que “deveria ter aborto nos morros”:
“o crime também está no nosso útero”, diz. Dá exemplos de falhas nas políticas de prevenção à
mortalidade materna: “vamos continuar como estatísticas; assim é o nosso genocídio”. Conta que
quando as feministas estavam se organizando no Rio de Janeiro para irem à Conferência de
Populações da ONU, no Cairo, elas trouxeram como atividade cultural “samba e mulatas”. As
mulheres negras argumentaram: “vocês estão dizendo que o corpo não é mercadoria, mas estão
colocando a mulata como objeto”.

Dá vários exemplos de como o racismo opera no cotidiano: numa loja de maquiagem, a vendedora
lhe disse que “a pele negra tem um problema”; o samba e a capoeira eram considerados vadiagem;
uma empregada doméstica foi assassinada quando chegava ao trabalho de madrugada, e a
252

justificativa dada pelos assassinos foi que “ela era prostituta”: “isso significa que prostituta merece
morrer e que o significado de chegar de madrugada já está dado pra gente”. E conclui: “A gente
sempre deve ser perguntar porque há menos pessoas de certo grupo num lugar e a gente deve olhar
pra si e se perguntar o que estamos fazendo com isso. Eu acho que sou racista, porque a sociedade
faz isso com todo mundo, então deve estar fazendo comigo também. Eu sou sexista porque se a
sociedade faz isso, deve estar fazendo comigo também. E eu sou homofóbica e lesbofóbica” – “e
transfóbica”, acrescenta Marcela. “Sim, você está certa”, diz Lavínia, e conclui: “dizer ‘eu não sou
racista’ é muito complicado. Se eu quero mudança, eu preciso entender que tenho um problema e
preciso mudá-lo”.

Terminadas as falas das convidadas, o debate com a participação do público começa, mediado por
Ingrid, organizadora negra da MdV, que começa observando que sua “negritude é uma construção”,
seu cabelo é “carregado de história”. “De quatro anos pra cá é que eu vim dar conta do que é ser
uma mulher negra”, diz. Sobre os e-mails de construção do evento, observa que “ao mesmo tempo
que rolou um mal-estar grande, foi ótimo, para evidenciar os problemas e mudar”.

A primeira a falar é uma mulher negra que observa que várias das presentes são suas “referências”.
Pontua que não se auto-intitula feminista, mas “mulherista”: “para mim, o homem negro também
é vitimizado, é meu irmão”, explica. “A figura do homem preto tem que estar no seio desse diálogo,
porque ele está morrendo e é vítima de coisificação”. Sinara – que em entrevista identificou sua
cor com diferentes termos, como “não-branca”, “parda”, “índia” e “negra” – é a próxima a falar.
Se referindo às vadias na terceira pessoa, diz que “elas têm que ouvir das negras o que é ser negra”.
“Elas já ouviram muito das trans e das prostitutas, porque é muita arrogância falar de prostituição
sem as prostitutas”. Filomena, branca191, explica a questão da “segurança” nos e-mails, que foi
criticada por Sheila em sua fala: “as vadias são ameaçadas desde sempre de violência e estupro; é
nesse sentido que falamos de segurança”. Ela dá os “parabéns à MdV por ter tido a coragem de
chamar as mulheres negras para conversar e nos ensinar”. “Não vi nenhum outro movimento
feminista fazer isso”diz. Ela denuncia a “invisibilidade das lésbicas no movimento negro e no

191
Embora eu perceba Filomena como branca, durante a entrevista ela me disse que é de uma “família interracial” e
que nunca gostou de se identificar como branca: “é como se eu estivesse negando a família da minha mãe todinha”,
argumentou. Por isso, ela sempre escolhe a opção “outros” quando perguntada sobre sua cor em formulários. Esta
situação é semelhante à que Paula Batista (2017) observou na MdV de Goiânia, em que muitas das vadias que
poderiam ser percebidas como brancas apenas com objeções se autoclassificam como tal.
253

movimento feminista” e, se dirigindo à Lavínia, observa que “não há dados sobre as lésbicas” na
saúde e em nenhuma área.

Eva, organizadora negra da MdV, critica o debate:

Acho bacana chamar o movimento negro para conversar, mas eu tinha uma ideia diferente
do que seria. Não me senti contemplada como negra, como vadia, como sapatã [sic],
quando a Sheila traz um texto que diz que está falando por todas as negras aqui presentes.
A construção era outra. Foi um método de usar as nossas palavras contra nós mesmas.
Temos que pensar o que a gente quer construir, ou se não queremos construir juntas. Lutar
contra o racismo é lutar para que nenhuma pessoa sofra violência, então a gente não tem
o direito de dar um cala a boca e dizer “fique quietinho”. Eu senti que muitas pessoas
ficaram oprimidas de falar pela culpa branca. Muitas pessoas se fecharam, poderiam dar
ótimas ideias pra gente, e não tiveram coragem. Se é pra construir, vamos construir; se
não é, não vamos descontruir. (Fala de Eva no evento, 11 de julho de 2014, transcrição de
áudio gravado)

Uma feminista integrante do coletivo Pagufunk, que faz funks feministas, diz:

Sou militante de um território onde a cada 5 horas é registrado um caso de estupro, onde
morre uma trans por dia e onde mais morrem jovens no estado do Rio de Janeiro: Caxias.
O que eu vou trazer é fruto de muitas conversas no movimento negro com as irmãs, porque
eu passo por um processo de violência dentro do movimento feminista, porque não pautam
o cotidiano de nós da periferia, nós da favela. O que eu vou trazer é demanda dos nossos
ancestrais, que são várias formas de violência que a gente sofre. Uma das principais, é a
invisibilidade de nossa história. Dentro do movimento feminista, nós somos obrigadas a
estudar Simone de Beauvoir, Pagu, Beatriz Preciado; e a sabedoria de minha vizinha,
empregada doméstica, é posta como algo inferior; a sabedoria de minha mãe, ex-
empregada doméstica, costureira, é vista como inferior [muitos aplausos]. Eu tô aqui por
causa das minhas irmãs pretas, eu não queria estar aqui; pra mim aqui é a Casa Grande,
um lugar opressor. Antes de vir, pensei: ‘vou com que roupa? Com que dinheiro eu vou
chegar?’. São 20 reais de passagem, fora que tenho que correr pra pegar o último ônibus
pra voltar pra casa; são duas horas e meia de viagem. Quero agradecer às minhas irmãs
pretas pelo convite. Aqui tem várias referências minhas, que são importantes porque me
mantêm viva. Porque quando o tiro pega lá, quando o estupro ocorre, quando a gente tem
que correr com as mulheres pra DEAM ou pro hospital, são elas que nos ajudam. Porque
o diálogo não se faz numa mesa de debate, mas no dia-a-dia com as mulheres da periferia
[ovação intensa]. (Fala de feminista negra no evento, idem]

Mais uma mulher negra fala:

Estou falando como uma mulher – vamos acumular minhas opressões – eu sou mulher
preta, pobre, favelada, macumbeira e sapatão, uma mulher que trabalha para se manter e
faz faculdade. Eu tive o privilégio de me matricular numa universidade pública, e eu
trabalho muito pra me manter nessa universidade, não tenho mamãe e papai pra me dar.
Eu coloco em todos os espaços dentro do feminismo branco: eu to aqui hoje por sorte.
Minha Casa Grande é aqui perto e eu pude caminhar até aqui para participar desse espaço.
Mas eu não participo da construção da MdV porque os espaços da Marcha são na Zona
Sul, em dia de semana, no horário em que eu e todas as outras pretas estão trabalhando
ou, com sorte, estudando. A galera que tem filho, tem que pegar na escola, ir pra casa,
254

fazer janta pra marido, não pode participar dos espaços. Se são as mulheres negras, pobres,
faveladas as principais vítimas, seria interessante se esse espaço pudesse acontecer num
momento em que elas pudessem participar. (Fala de feminista negra no evento, idem]

Uma mulher negra se apresenta como “socióloga e militante do fórum de Manguinhos, favela da
Zona Norte”. Ela diz:

Considero que este foi um convite importante da MdV para as negras, mas concordo muito
com a Sheila que esse é um lugar de aprendizado, porque o que aconteceu, e que ela expôs
muito bem, não teria sido colocado se ela não falasse. E assim como as companheiras já
colocaram, uma coisa que falta é discutir de onde vem esse corpo preto, aonde ele sofre,
aonde ele se constrói, aonde os seus morrem: é na favela. Nós estamos falando de uma
transformação na cidade, de um modelo de cidade, e é a favela o lugar que resiste, é na
favela que a mulher preta continua vivendo, lutando pelos seus filhos, pra continuar a sua
existência. A necessidade de as mulheres pretas estarem repetindo o tempo todo esse tipo
de opressão, só demonstra o quanto a MdV tem que aprender com essas mulheres, o
quanto tem que refletir. (Fala de feminista negra no evento, idem]

Outra mulher negra fala sobre “o cala a boca da Sheila”:

Eu participo de vários espaços, em que o protagonismo é sempre da pessoa branca”


[muitos aplausos]. Eu participo de sindicato; comecei no anarcopunk, e não tinha pessoas
pretas. O cala boca foi ‘vamos dar protagonismo à voz [das pretas] neste espaço, que foi
puxado por pessoas pretas’. Eu percebi que muitas pessoas aqui ficaram surpresas com os
exemplos trazidos, mas para mim eles não são nenhuma novidade porque eu vivo na
prática todos os dias. Há muito tempo que eu não ficava tão feliz em ter a minha voz
pronunciada na boca de todas essas pessoas aqui. (Fala de feminista negra no evento,
idem]

Gisele, da Marcha, que em entrevista se identificou como parda, fala:

Eu sou da Marcha, sobrou pra mim fechar o evento. Parabéns a todas as minas pretas que
vieram, com todas as dificuldades. A gente sabe que existe essa dificuldade de horário, e
a gente entende como é difícil esse encontro. É difícil entre a gente também. Por isso, a
gente reveza as datas das reuniões, a gente nunca faz no mesmo dia, pra tentar que as
pessoas possam ir ao menos uma vez. Esse encontro foi organizado a partir de uma
necessidade nossa de escutar vocês. A gente escutou, a gente vai ter muito o que pensar.
A nossa intenção nunca foi que fosse um evento só, para ‘riscarmos do nosso caderninho’,
mas que isto pudesse ser uma abertura pra que a gente possa continuar construindo
constantemente, mesmo que não sejam vocês vindo à MdV. Eu sei que nem todo mundo
quer ser vadia, mas todo mundo pode ser vadia. Eu espero que a gente possa se encontrar
em vários outros espaços. A gente tá aberta a ouvir, a aprender e a ir nos espaços de vocês,
então, podem convidar que a gente vai. Estou muito feliz de vocês terem vindo e espero
que no próximo convite vocês apareçam de novo. (Fala de Gisele, idem)

Lavínia e Sheila pedem para fazer falas de encerramento. Lavínia diz: “As companheiras que
falaram da questão da favela, é verdade! Tem a ver com classe, mas principalmente com raça,
255

porque vocês sabem por que se gastou 9 bilhões de reais para a militarização do Rio de Janeiro: é
pra matar a gente, varrer do mapa. É deste lugar que a gente tá falando”. E finaliza: “A gente tá
aqui pra trocar, e trocar significa dizer todas as coisas, todas. É pra gente ouvir e trocar. Eu espero
que o futuro faça com que a gente troque, porque além de você [Gisele], eu não ouvi mais ninguém
da MdV falar”. Várias pessoas apontam que Sinara, Filomena e Eva também tinham falado “pela
Marcha”, o que aparentemente não ficou claro para todas as participantes. Por fim, Sheila diz:

Agradeço às minhas irmãs pretas, na nossa diversidade de pensamentos – viu, Eva? – e na


nossa disponibilidade de movimentar os nossos corpos nessa cidade, nesta semana caótica,
porque isso também tem a ver com raça, classe, gênero, transgênero. A ideia inicial era
que o encontro fosse feito no IFCS, por ser no Centro da cidade, mas por conta desta
semana de Copa, acabou vindo pra cá. Isso foi discutido por nós mulheres negras. Com
certeza os elogios têm que ser feitos à MdV-RJ, que se ofereceu a discutir o feminismo
negro e a pensar as experiências de mulheres negras, mas isso só pode ser feito a partir da
disponibilidade de toda uma rede de mulheres negras que foi acionada, para além da MdV
e para além da Sheila. Se a MDV está de parabéns, nós mulheres negras, ativistas,
organizadas, autônomas, faveladas, da Zona Sul, acadêmicas, professoras, estudantes, na
nossa mais ampla diversidade, estamos mais uma vez de parabéns. Axé pra todo mundo.
(Fala de Sheila, idem)

O evento é encerrado. Enquanto arrumo o espaço, as mulheres negras alegremente se reúnem para
uma foto: “só as pretas”, dizem. Sheila e várias mulheres negras saem do prédio juntas. As vadias
saem depois. Na portaria, os grupos não se falam, se evitam. As vadias vão para um bar,
acompanhadas de algumas das palestrantes e amigas/os. As conversas giram em torno da fala de
Sheila. Algumas disseram que “nenhum diálogo é possível depois de um cala a boca”. Algumas
apontaram que houve muita “vitimização” por parte das negras e “ataques desnecessários”. Outras
diziam se sentir “culpadas” e “envergonhadas”. Eva conta que, ao fim do debate, uma mulher negra
a acusou de estar “embranquecendo”, o que a deixou indignada. Foi um encontro bastante tenso.

Vários elementos chamam à atenção nas performatividades mobilizadas pelas mulheres negras no
debate. Em sua fala, Sheila investe em frases de efeito e em uma retórica acusatória e de
enfrentamento. Ela usa metáforas da educação, em que professora e aprendizes ocupam lugares
opostos. Cita escritoras e pesquisadoras negras, com o que procura valorizar e identificar-se com a
imagem de mulher negra intelectual não sexualizada, num contraponto aos estereótipos mais
comuns pelos quais as mulheres negras costumam ser representadas. Sandra, doutoranda trans da
universidade dos EUA, se expressa com linguagem acadêmica, dialogando com autoras/es,
conceitos e problemas teóricos, como as limitações da teoria queer ou a utilização do conceito de
256

interseccionalidade como sinônimo de mulheres negras. Patrícia, pesquisadora e ativista do tema


da prostituição, embora também se refira a problemas na apropriação da noção de
interseccionalidade, formula a discussão com exemplos bastante concretos de como isso afeta a
vida de mulheres negras. Marcela, ativista trans e tradutora, percebe que ela é a única não
acadêmica entre as palestrantes e trata de valorizar isso, mobilizando seu carisma pessoal, humor
e a noção de solidariedade entre negras e brancas. Sua fala é a mais emotiva.

Quase todas as mulheres negras mobilizam o frame vitimário: valorizam a opressão, a dor, a falta
e a resistência como o fulcro das experiências das mulheres negras, de suas identidades políticas,
legitimidade e autoridade. De modo correspondente, seus repertórios emocionais invocam
seriedade, força e uma certa empáfia, um orgulho grave e altivo, necessários ao enfrentamento e à
deslegitimação política das vadias. Patrícia é a única que diretamente questiona o frame vitimário
que costuma cercar o uso da noção de interseccionalidade e as performances políticas em torno do
tema do racismo. Ao mostrar como o racismo pode ser produzido por discursos de vitimização, ela
enquadra a sexualidade das mulheres negras como algo que deve ser reclamado como “autonomia”,
“escolha” e “individualidade”. Interpreta a “respeitabilidade” sexual das mulheres negras como
uma performance que embora se contraponha, não questiona o estigma de “anormal” e “perigoso”
que historicamente marca seus corpos. Essas são ideias familiares às vadias, mas contrariam os
repertórios mobilizados por aquelas mulheres, naquele contexto em que era importante se opor, se
diferenciar e desautorizar as vadias. Não coincidentemente, Patrícia foi a menos aplaudida. Eva,
da MdV, também faz uma fala dissonante ao se afirmar como “negra, vadia e sapatã”, afirmando
sua sexualidade de forma positiva, questionando o discurso de rejeição da categoria vadia pelas
pretas e criticando a desqualificação sistemática da Marcha. Ainda que a recusa da
“respeitabilidade” não seja rara ou nova no campo do feminismo negro – campo marcado, como
qualquer outro, pela diversidade de abordagens e por disputas – houve um evidente esforço de
apagamento desta posição no debate por parte das mulheres negras.

Além do frame vitimário, várias mulheres negras investiram em uma performatividade de


homogeneidade, através do uso de termos como “minhas irmãs”, “nossos ancestrais”, “nossa
história”, “voz da mulher preta”. Também a reverência às palestrantes e às militantes, as
declarações de concordância mútua, as referências a uma cultura supostamente compartilhada e a
repetição de falas produzem uma imagem de consenso, enquanto relegam a heterogeneidade entre
257

pessoas e grupos, bem como possíveis dissensos, à invisibilidade. Mas apesar do esforço em
apresentar-se como um grupo coeso e uniforme, as diferenças internas emergem, especialmente
nas performances que valorizam as diferenças e desigualdades de classe – a vida na favela. A fala
da integrante do Pagufunk foi exemplar nesse sentido.

Para tornar concreto o seu discurso sobre a “violência” que sofre por parte do movimento feminista
(branco), ela aciona noções correntes sobre a “periferia” como lugar violento, ao mesmo tempo em
que valoriza a “sabedoria popular” das mulheres desses locais, em oposição às “teorias
acadêmicas” de feministas brancas célebres. Também o espaço do debate é desqualificado como
“Casa Grande”, um espaço de “opressão” para as “pobres” que moram “longe”. As desigualdades
de classe são, assim, valorizadas e materializadas através da noção de território – “periferia”,
“favela”, “Casa Grande” – construção a um só tempo espacial, moral e política. Finalmente, a
própria desqualificação do formato de debate – “o diálogo não se faz numa mesa, mas no dia-a-
dia” – traduz a rejeição, já percebida em diversos trabalhos sobre feminismo, de tudo o que se
afasta do “vivido” e do “partilhado” (Gregori, 1993), iluminando distinções de classe que afirmam
dualidades como academia x militância, intelectual x concreto, mente x corpo. Várias outras
mulheres negras reiteraram esses performativos, opondo “favela” à “Zona Sul”, as pretas que
“sabem na pele” às brancas que “precisam aprender”, entre outros.

Ainda que as acusações de classismo tenham sido dirigidas exclusivamente às feministas brancas
da MdV, as feministas pretas também se viram atingidas e várias delas perceberam que era preciso
justificar seus próprios trânsitos entre periferia e Zona Sul, entre militância e academia, de modo a
“descontaminá-los” e devolvê-los à legitimidade. Assim, uma mulher negra chama a sua própria
casa de “Casa Grande”, por ser perto do local do debate, um bairro valorizado, ao mesmo tempo
em que enfatiza que precisa “trabalhar muito” para se manter e para frequentar uma universidade
pública prestigiosa. As falas de encerramento de Lavínia e Sheila são voltadas para justificar os
seus próprios silêncios sobre a “favela” e as desigualdades de classe entre pretas, em que elas
próprias se vêem em lugares “privilegiados”, se comparados aos das mulheres da “periferia” e
“não-acadêmicas”. Se em sua fala inicial, as mulheres negras aparecem como um grupo uniforme,
na fala de encerramento, Sheila invoca a sua “diversidade”.

Houve reuniões de organização depois deste evento, mas nelas pouco se falou sobre o que
aconteceu no debate e na sua construção, como se o assunto tivesse se tornado um tabu. As
258

preocupações com os preparativos da Marcha, que se aproximava, eram os principais focos de


atenção. Era evidente que as vadias falavam sobre o assunto dentro de círculos menores de amizade,
mas pouco o elaboraram enquanto grupo, ainda que a redação do manifesto tenha incorporado
diversos elementos mencionados no encontro, como o modo como os megaeventos impacta as
vidas das mulheres negras e pobres. Outros conflitos conturbaram ainda mais as relações internas
do grupo e dificultaram uma reflexão coletiva do debate. Esses conflitos giraram em torno da
violência entre mulheres e em torno de desavenças pessoais entre duas lideranças importantes. No
primeiro caso, uma vadia teria expulsado de uma mesa de bar, após uma oficina de batucada da
MdV, uma mulher que teria agredido duas ex-namoradas anos atrás (uma delas presente na mesa
do bar). Houve disputas sobre o que deveria ser feito quando a violência envolve “mulheres
militantes” e, enquanto algumas defendiam que a Marcha deve ser um “espaço seguro” em que
“agressoras não devem ser toleradas”, outras consideravam que era válido “conversar” com as
partes em separado e avaliar o que fazer. Isso causou uma fratura dentro do grupo há poucas
semanas da Marcha de 2014, que também reforçava divisões pré-existentes. Além disso, duas
importantes lideranças do grupo tiveram uma briga pessoal, que foi levada para a lista de e-mails
da Marcha e desgastou ainda mais as relações. Ainda que eu não analise esses episódios aqui, eles
apontam para a intensa imbricação entre vida privada e vida política nos espaços feministas, e para
os desafios de lidar com isso na militância.

Na reunião de avaliação, que ocorreu após a Marcha, em agosto de 2014, após todos esses conflitos,
diversas vadias apontaram que a capacidade de “divergir” e “debater” tinha se perdido. O debate
sobre feminismo negro não opôs apenas vadias e negras, mas também gerou conflitos entre as
próprias vadias. Ficou claro que havia dois grupos antagônicos, uma oposição que também estava
informada pelos outros conflitos mencionados acima. Um grupo se voltou contra as que criticaram
Sheila por sua “falta de horizontalidade”: “Fomos as mulheres brancas mandando as negras se
comportarem”, disseram, e “Sheila foi ríspida, mas foi construtiva”. Elas argumentaram que entre
as que criticaram Sheila havia pessoas “autoritárias” e “grossas” que tampouco respeitavam a
horizontalidade. Mais uma vez, a horizontalidade foi criticada como uma forma de garantir espaço
de fala às “mais velhas”, “experientes” e, agora também “brancas”, “perpetuando hierarquias
internas”. Esse grupo defendia ainda que “não cabe a nós dizer às pretas como agir”, que “não
podemos exigir do outro que fale como a gente” e que era preciso aceitar o “cala a boca” como
259

uma estratégia legítima de ativismo: “não existe igualdade entre brancas e negras, por isso, temos
que ouvir”, disseram.

O segundo grupo reconhecia parcialmente os “erros” apontados pelo primeiro, mas enfatizava que
o que aconteceu no debate foi um “tribunal”, palavra que usaram para se referir também à situação
da “expulsão” da garota acusada de “agressão”. “O cala a boca está entalado”, disse uma. Outra
vadia apontou que “temos que dialogar com quem quer dialogar com a gente”. Outras, ainda, se
referiram ao tipo de visibilidade acadêmica que o debate privilegiou: “Em que momento isso virou
um debate acadêmico?”, disse alguém; “O preto tem que ser doutor? Tinha várias pretas lá que não
eram doutoras”, questionou outra. Em entrevista, uma vadia avalia que houve racismo por parte do
grupo, mas também observa que muitas das críticas feitas pelas negras não eram necessariamente
para as vadias, mas uma forma de canalizar “a frustração que elas realmente sentem de estarem
lidando numa sociedade extremamente racista” e os problemas do “feminismo branco” como um
todo, de modo que “a gente acabou sendo meio que um bode de expiatório, um boi de piranha”.

As divergências entre as vadias são, portanto, a respeito de quais são os vocabulários políticos e
repertórios emocionais legítimos ou não para balizar as relações entre feministas. São também
sobre o jogo de legitimidade de sujeitos políticos diversos, que ora reforça e (re)produz as
diferenças entre eles, ora os aproxima; ora autoriza sujeitos, ora interdita outros. Como sugere
Kelly Silva (2013, p.60-61), o grau de legitimidade dos sujeitos políticos não está relacionado
apenas ao reconhecimento daqueles que seriam mais vulneráveis a violações de direitos, mas
também à visibilidade moral dessas identidades junto a diferentes setores da sociedade. No debate
sobre feminismo negro, desde a sua construção por email ao encontro presencial, vemos como, a
partir da visibilidade moral das mulheres negras, diferenças e desigualdades entre brancas e negras
foram performativamente construídas. Discursos, imagens e coreografias são mobilizados para
marcar distâncias ou pontes, sempre contextuais e relacionais, entre as atoras.

Na reunião de avaliação, Eva disse, como no debate, que “se queremos troca, não podemos calar
ninguém”. Ela afirmou também que “as negras da Marcha não se colocam”, tendo ela sido a única
preta vadia que se pronunciou no debate. “Se nós mesmas pensamos que a MdV é elitista e branca,
estamos nos desconhecendo, porque nós sabemos que tentamos dialogar”, disse. Ela contou sobre
a acusação de “estar embranquecendo” que lhe fez uma mulher negra após o debate e disse que se
sentiu muito desrespeitada: “eu virei vadia e deixei de ser negra!”, disse. Uma vadia que se define
260

como parda conjecturou se essa acusação não seria também uma forma de “racismo”, o que foi
imediatamente criticado por outras vadias negras e brancas, que disseram que “não existe racismo
reverso, existem negros que ‘reproduzem’ racismo; assim como não existem mulheres machistas,
mas mulheres que ‘reproduzem’ machismo”, o que arrancou aplausos de várias ativistas. A vadia
que sugeriu o termo acatou a repreensão, mas pontuou que “a MdV é construção, não somos
pessoas prontas”. Mais tarde, algumas vadias observaram que, divididas internamente e imersas na
disputa sobre que nome dar ou não à acusação de “embranquecimento” sofrida por Eva, o grupo
ignorou sumariamente suas observações e pareceu se preocupar mais com as críticas das “negras
de fora” do que com “de fato” mudar as “práticas internas” para “acolher” e “ouvir” as “nossas
vadias negras”.

Aqui, as disputas sobre qual é o vocabulário adequado para falar sobre racismo distanciam ainda
mais os grupos internos. O distanciamento é reforçado pelo fato de que o processo mesmo de
aprendizado desse vocabulário é apagado nas disputas políticas. Ao se afastar das vadias que ainda
não conhecem as etiquetas performativas, aquelas que já as mobilizam e que já sabem que “não se
pode falar em racismo reverso”, apagam o seu próprio processo de aprendizado dessas regras. Me
inspiro aqui nas discussões de John Gagnon (2006) sobre os “scripts” sexuais. Ele argumenta que
as práticas sexuais não são naturais, mas “roteiros” – que podemos comparar aqui aos repertórios
– aprendidos e adaptados continuamente ao longo da vida. Gagnon argumenta que a ideia de uma
sexualidade “natural” é reforçada pelo fato de “esquecermos” ou “apagarmos” esse processo de
aprendizado dos roteiros, em parte, pela necessidade de nos apresentarmos como sujeitos
competentes (no sentido de aptos) sexualmente. Essas ideias podem nos ajudar a pensar o modo
como os “roteiros” políticos – vocabulários, coreografias – são mobilizados como mecanismos de
diferenciação e autoafirmação, um atributo “inerente” ao sujeito moral, enquanto o próprio
processo contínuo de aprendizado e adaptação desses scripts é apagado e esquecido. Assim, vemos
como os conflitos entre vadias e mulheres negras vão (junto com os outros conflitos acumulados)
se reproduzindo internamente numa disputa por competência política, e “rachando” o grupo.

Outras vadias negras, que não se posicionaram no debate ou nos e-mails de construção do evento,
o fizeram nesta reunião. Nádia contou sobre sua decisão de entrar na MdV:

Eu nem sabia que a Marcha tinha organização; achava que era “espontânea”. Na primeira
reunião da Marcha que fui, só tinha eu e mais uma amiga negra. Eram 14 brancas, eu até
contei, 14! Não me senti à vontade pra falar. Minha amiga não foi mais. Mas eu pensei:
261

‘vou ocupar esse espaço’. As mulheres negras já são vadias. Já as brancas nascem mulher
de respeito e precisam fazer algo para serem vadias. Concordo em parte com isso, porque
é lógico que há diferenças entre eu e a preta da periferia. Agora, não vi horizontalidade
nenhuma aqui: umas têm mais poder, têm mais experiência, falam melhor”. (Fala de Nádia
na reunião, agosto de 2014, anotação do caderno de campo)

Anita, negra lésbica, aponta também as suas razões para estar ali: “Eu escuto que na marcha só tem
branca, com dinheiro; que ‘colocar o peito pra fora em Copa é fácil, quero ver lá na favela’. Mas
por que não construir junto, se eu me sinto parte também? Já participei do movimento negro, mas
é muito radical, não pode namorar branco, não fala de sexualidade”.

Aqui, outro ponto interessante do conflito racial na MdV emerge. Diz respeito às relações entre as
vadias negras com as vadias brancas e com as negras não-vadias. As vadias negras apontam as
dificuldades que encontram dentro do grupo organizador da MdV, como o fato de se sentirem
pouco à vontade para falar diante de tantas brancas e de como a falta de horizontalidade agrava
isto, conforme apontou Nádia. Também Eva, numa entrevista que aconteceu quase um ano após o
debate com as negras, avalia as dificuldades de participar do grupo:

Cara, sinceramente, eu me senti fazendo parte da cota negra da marcha (risos). Eu não me
senti muito representada, não, nem na hora de falar, nem na hora de ser ouvida, nem na
hora de nada, só nos momentos que “Ah, eu preciso de uma negra da marcha”. Não sei,
pra mim, é muito estranho, porque você acaba se sentindo usada, sabe? (Entrevista
concedida por Eva em 23 de junho de 2015)

Por outro lado, as relações das vadias negras com as negras “de fora” tampouco são fáceis. Estas
constantemente deslegitimam as primeiras por sua participação da Marcha, desautorizando sua
condição de sujeitos políticos ou mesmo sua “negritude”, o que faz com que as vadias negras
precisem repetidamente justificar a sua permanência no grupo: para “ocuparem o espaço”, ou por
reconhecerem que o fato de “serem diferentes das pretas da periferia” as aproxima em alguns
aspectos das brancas ou, ainda, porque não encontram espaço para “falar de sexualidade” em outros
movimentos. Ainda assim, o fato de que Eva, Omara e Ingrid (a moderadora do debate) tenham
sido as únicas vadias negras a participarem do processo de construção do evento; que, entre elas,
somente Eva tenha explicitamente se identificado como vadia no debate; e que, justamente por
isso, tenha sido acusada de “embranquecimento” por outra mulher negra – são indícios bastante
sintomáticos dos custos políticos de ser uma vadia negra no Rio de Janeiro.
262

É interessante também que entre os expedientes de deslegitimação utilizados pelas negras não
vadias, a acusação de “embranquecimento” tenha sido a que mais ofendeu Eva:

Eu nunca pensei de alguém achar que eu sou branca, que o meu discurso é branco porque
eu ando com pessoas brancas, entendeu? Porque eu ando com pessoas brancas, eu virei
branca agora? E tudo que eu vivo? E toda a minha militância nos outros espaços, que não
são espaços delas, entendeu? E todo preconceito que eu vivo, no dia a dia, na rua? Isso
não importa, meu discurso é branco porque eu ando com uma branca192. Então, pra mim,
gente, isso é ridículo, sinceramente. (Entrevista concedida por Eva em 23 de junho de
2015)
Eu percebi que a acusação de “embranquecimento” não é só uma forma de deslegitimação das
vadias negras como sujeitos políticos, mas também um pressuposto, uma classificação a priori. Me
explico. Durante o doutorado, eu tive a oportunidade de apresentar minha pesquisa várias vezes
em encontros acadêmicos. Na maioria desses eventos, eu integrava grupos de discussão
interessados nas relações entre feminismo, gênero, raça, sexualidade e outros marcadores da
diferença. Em todos, havia pesquisadoras negras comentando os papers, apresentando
comunicações e participando do debate como integrantes do público. Era sempre um desafio falar
da Marcha das Vadias nesses espaços. Nas minhas apresentações, eu falava tanto das críticas das
mulheres negras à categoria vadia, como do modo como as vadias negras elaboravam sua
participação nesse movimento, apostando na ressignificação da palavra. Eu comecei a perceber
uma recorrência nos comentários das pesquisadoras negras ao meu trabalho: elas sempre
pressupunham que as vadias negras não eram negras.

Esses aparentes “equívocos” tomavam diferentes formas. Uma vez, uma comentadora negra da
plateia, se referindo a uma das vadias negras que eu citava, perguntou: “mas ela não é negra, é?”.
“Sim, é negra”, eu respondi. “Mas você não disse isso na sua apresentação, disse?”, ela insistiu.
“Sim, eu disse”, falei. Em outro seminário, a professora negra que comentou meu paper, uma
renomada especialista em estudos raciais, observou, a respeito de uma vadia negra que eu citava
no texto: “Ela se identifica como negra, mas você não pode tomar a autoclassificação acriticamente.
Mesmo que ela se classifique como negra, ela pode, na verdade, deslizar racialmente, não ser
percebida como ‘preta-preta’, mas como ‘moreninha’, ‘escurinha’”. Esse tipo de comentário se
repetiu mais algumas vezes nos espaços acadêmicos onde eu apresentei minha pesquisa. Era como
se uma vadia não pudesse ser “preta de verdade”. Ser vadia e preta soava como um tal contrassenso

192
Eva é companheira de Filomena, que é branca.
263

para minhas colegas e professoras negras que elas sequer registravam a informação de que a vadia
em questão era negra, ou simplesmente refutavam esse dado, argumentando que a autoclassificação
racial não é confiável. Uma vadia negra era algo que beirava a ininteligibilidade. O
“embranquecimento” – seja como acusação, seja como pressuposto – revela que, no jogo das
legitimidades políticas, a raça é menos um atributo da pessoa do que um significante sujeito a
disputas de classificação, em torno das quais sujeitos políticos são reconhecidos ou não,
autorizados ou não.

Mas, afinal, que são as vadias negras? Como elas se apresentam e percebem sua participação na
MdV? Como elaboram as críticas das mulheres negras de fora? Como mobilizam e negociam a
diferença? Com definem suas identidades?

Ramona, 25 anos, organizadora da MdV em 2012 e 2013, se define como negra e, quando
perguntada sobre sua orientação sexual, diz que “gosta de pessoas”. Quando a entrevistei, ela estava
terminando o ensino superior. Mais tarde ingressou no mestrado em uma universidade pública da
cidade. Em algum momento depois de eu conhecê-la em 2013, Ramona começou a se identificar
publicamente como “homem trans”. Depois, passou a se classificar como “gênero fluido” e a
aceitar tanto pronomes masculinos como femininos. Eu perguntei o que ela achava das críticas das
mulheres negras à Marcha. Se sentindo bastante dividida, ela respondeu:

A crítica que eu acompanho é que... bom, as mulheres da favela sempre foram vadias, elas
não precisam reivindicar esse lugar porque é esse lugar que elas desde sempre tiveram, e
aí, nesse sentido, não haveria, pra elas, nada de empoderador. E aí assim… [pausa longa,
risos]. Essa é uma pergunta muito difícil; ela sempre aparece, mas é muito difícil, porque...
Bom, eu particularmente acho que se eu não tivesse nada a ganhar com a apropriação e
transvaloração desse termo, não seria a minha luta, quer dizer, eu e outras mulheres,
pessoas que estão em algumas interseções de opressão, as mulheres trans, as mulheres
negras. Então, não sei muito bem, na verdade… Embora a MdV seja majoritariamente
construída por mulheres brancas, acadêmicas – no tempo que eu tive na marcha, isso foi
um fato sim –, eu não acredito que nela exista uma impossibilidade do diálogo com as
mulheres negras, ou a imposição de que elas devem ser vadias, ou que elas devam assumir
um lugar que não é delas, ou que seria da valoração, da positivação das mulheres brancas.
Eu tenho muita dificuldade pra falar sobre isso porque eu não consigo me ver nesse lugar
de… Assim, eu sou lida como uma mulher negra, mas eu não acho que eu sempre fui uma
vadia, sei lá, eu não sou uma mulher negra criada numa favela. E tem uma outra interseção
minha, que é a questão da sexualidade, então, sei lá, eu usei salto alto pela primeira vez
na semana passada, então, existe uma diferença no modo como o meu corpo ocupa o
mundo, porque é um corpo homossexual, e aí tem uma corporalidade que é outra em
relação às mulheres heterossexuais. Eu acho que isso influencia também… não sei, na
verdade. Eu tenho dúvidas... tenho dúvidas não, tenho dificuldade pra tomar o lugar dessa
crítica como um lugar meu, sabe, embora eu entenda (pausa, risos). Eu preciso pensar mais
um pouco.
264

Silvia, 25 anos, recepcionista, moradora de Nilópolis, município da Baixada Fluminense, negra e


mãe de uma filha, casada e heterossexual, também participou da organização da MdV ao longo de
2014. Ela me contou que foi estuprada pelo padrasto aos 11 anos e que por muito tempo pensou
que a “culpa” foi dela. Mais velha, sempre teve vontade de “fazer alguma coisa” e começou a
participar de grupos feministas na internet e a fazer os cursos online da Universidade Livre
Feminista193. Em 2012, ela foi à MdV com seu marido e filha, e disse que achou “muito legal” ver
“pautas” importantes serem abordadas publicamente e ver “mulheres se colocando nesses espaços”.
Em 2013, ela e outras feministas da Baixada organizaram uma oficina pública de cartazes para a
MdV daquele ano. Elas confeccionaram cartazes no calçadão de Nova Iguaçu como uma forma de
dialogar com as pessoas que passavam, explicar o que é a Marcha e convidá-las a irem ao protesto
no Rio (ver figura n. 22).

Figura n. 22 - “Vadias da Baixada”, atividade no calçadão de Nova Iguaçu, 2013

Em 2014, já participando das reuniões de organização da MdV, ela foi responsável por mediar uma
roda de conversa entre vadias e feministas da Baixada em São João de Meriti, na qual estive
presente194. Se por um lado Silvia reconhece as dificuldades materiais de sua própria participação

193
A Universidade Livre Feminista é uma plataforma que oferece artigos, cartilhas, livros e vídeos e promove fóruns
virtuais e cursos numa “perspectiva contracultural feminista, antirracista e anticapitalista”.
(http://feminismo.org.br/proposta/, u.a. 5 de fevereiro de 2018)
194
A roda aconteceu na véspera da Marcha de 2014, em agosto, e se chamou “Marcha das Vadias pra que? E pra
quem?”. As mulheres que participaram falaram que na Baixada, onde há uma crescente população evangélica, faltam
265

(falta de tempo, cansaço, precariedade do transporte público) e a rejeição por parte de muitas
mulheres da Baixada ao termo vadia, por outro afirma que a MdV foi “libertadora” para ela e se
esforça para divulgar o protesto entre feministas locais e no partido político em que atua:

Eu sei que ocorreram várias críticas, até mesmo dos movimentos de mulheres negras, da
periferia, criticando a MdV, mas, particularmente, eu acho que a MdV pra mim foi
libertador. Então assim, eu me identifico, e eu acho assim, a partir do momento que eu sei
que pra algumas mulheres isso pode soar agressivo, sabe, mas quando você se coloca dessa
forma, sabe, eu acho que você se liberta de vários estigmas que você mesmo às vezes tenta
se enquadrar: “Ah, eu tenho que ser quietinha, eu tenho que ser calminha, eu tenho que
fazer isso, eu tenho que fazer aquilo”, seguir toda uma regra, que, na realidade, às vezes
você vai seguir várias regras daquelas, e, em determinados momentos, você vai ser
colocada, mesmo assim, como vadia. (Entrevista concedida por Silvia em 5 de agosto de
2015)

Cassia, evangélica e negra, 31 anos, também organizadora da marcha, debateu sobre a MdV e
prostituição na sua igreja e com sua família, também evangélica. Faz parte de um grupo de
“Feministas Cristãs” no Facebook. Ela fala sobre os conflitos e alegrias que participar da MdV e
se tornar feminista lhe trouxe:

Eu acho que me aproximar da Marcha, me gerou muitos problemas religiosos, né? Ouvir
piadinha, as pessoas recriminarem mesmo, dizer “Que absurdo! Um monte de mulher
querendo botar o peito do lado de fora”. Mas eu falei: “Não, me desculpe, mas acho que
vocês não conhecem nada, e estão falando um monte de besteira. É muito fácil pra vocês
chegarem aqui, enquanto homens, e vocês, enquanto mulheres desses homens, e dizerem
que a vida é assim, que todo mundo tem um marido, que todo marido é bom, e que tudo é
perfeito, sendo que ele tem que ser sempre, digamos assim, a estrela de todos os eventos
e relações, e que você tem sempre que ficar à margem, à sombra do que ele permite”. E
tinha muito embate meu com o pessoal da igreja por causa disso. (...) Mas o ponto positivo
foi que, dentro da igreja, começaram a ter outras mulheres feministas e se posicionarem

“expectativas de futuro” para as mulheres, das quais se espera e se cobra “ter uma família”. Contam que as Lan
Houses, as quadras esportivas e os eventos de Rap, importantes espaços de sociabilidade jovem na Baixada, são
“hostis” às mulheres. As que frequentam esses espaços ou são as “namoradas”, com rígidos códigos de conduta, ou
são “putas”. Falaram sobre a divisão desigual de tarefas domésticas, assédio sexual, a dificuldade de circular pela
cidade e dentro da própria Baixada, que é enorme. Falaram de suas estratégias para atrair mulheres para debates
feministas: junto ao evento principal há sempre uma “atividade artística”, como confecção de bijuterias e discussão
de filmes, ou, ainda, trocas de chocolates. Contaram que conheceram mulheres que gostariam de ir à MdV, mas não
iam para não desagradar seus companheiros. Falaram que gostariam de organizar uma MdV-Baixada, mas temem
que o nome “não pegue” lá: “o conceito é mais fácil de trabalhar do que o nome”, avaliam. Nos perguntaram se
valeria à pena mudar de nome. Perguntam sobre como nos organizamos, quais temas “são importantes de serem
debatidos”. Também fazem críticas: “A MdV é elitista, não representa meu feminismo; acontece na orla de
Copacabana; estamos atentas a tudo isso”, disse uma delas. As vadias contam sobre como se organizam, mas
demonstram desconforto com o lugar de exemplaridade. O tempo todo lembram que “cada lugar é um lugar” e que
as experiências da MdV-Rio podem não ser as melhores para elas. Enfatizam que elas devem “organizar debates
sobre temas que sejam de interesse do local”. Dizem ainda que os espaços de sociabilidade do Rio são igualmente
“machistas”, tentando valorizar as semelhanças entre elas e as outras. As vadias saem satisfeitas com as “trocas”, e
dizem que “aprenderam muito”. As vadias da Baixada vão em um ônibus fretado à MdV no dia seguinte. Não sei
dizer se esses diálogos continuaram nos anos seguintes.
266

como feministas, e lerem sobre o feminismo, né, lerem muito, e eu ficava “Gente!...”, e
alguns homens também, e isso foi um momento assim, que pra mim foi muito bom, porque
eu achei aquilo muito legal. (...) Até minha mãe virou feminista. Eu falei: “Mãe, a senhora
sempre foi”. Ela: “Eu, não, isso é coisa do diabo” [risos]. Eu falei: “Mãe, olha só, vamos
pensar. Mãe, olha só, a senhora deixou meu pai, a senhora fez isso, a senhora fez aquilo,
sempre falou pra gente que... (Entrevista concedida por Cassia em 21 de junho)

Tanto produto como produtor de identidades políticas, o corpo que protesta adquire diferentes
significados, e atualiza uma série de tensões. Raça, classe e sexualidade são mobilizados pelos
grupos de ativistas para construir diferentes tipos de repertórios e identidades feministas. As
ativistas acionam o corpo e as emoções na produção encarnada de narrativas de diferença, o que
desloca as fronteiras entre grupos feministas e, portanto, constitui um terreno fértil para a
reelaboração da política identitária contemporânea. Embora essas identidades possam em
determinadas situações assumir contornos políticos e corporais bem definidos e coloquem conflitos
bastante concretos – entre “feministas brancas” e “negras”, “vadias” e “não vadias”, “privilegiadas”
e “periféricas” – essas fronteiras também podem ser borradas. Ao navegarem suas experiências de
interseccionalidade, as vadias negras que cito desafiam divisões identitárias e performativas muito
fixas ou binárias.
267

Conclusão: De finais, (re)começos e transformações

A Marcha das Vadias entrou na cena pública do Brasil em 2011, inaugurando um novo ciclo e
estilo de protesto feminista. Interrompendo um período de escassa ocorrência de manifestações de
rua, exceto aquelas já rotinizadas no calendário feminista, como as celebrações do Dia
Internacional da Mulher e o Dia Latino-Americano e Caribenho pela Legalização do Aborto, a
Marcha das Vadias assume a representação do “novo” no campo feminista e adquire grande
visibilidade pública. Reunindo muitas ativistas, em geral mulheres jovens, que não haviam
participado de nenhum movimento social anteriormente, mas também pessoas trans e homens, e
lançando mão de recursos das mídias eletrônicas para a mobilização, seu impacto sobre a
linguagem dos protestos feministas desde então, é muito significativo.

Tendo como foco mobilizador o tema do estupro e seu tratamento pelo Estado e pela sociedade, o
protesto amplia seu escopo inicial e tematiza variadas formas de controle sobre o corpo e a
sexualidade das mulheres e sujeitos identificados com expressões de gênero e sexualidade não
hegemônicas. As transformações urbanas pelas quais as grandes cidades vêm passando
recentemente, que implicam no aumento da desigualdade sócio-espacial em nome de projetos
governamentais-empresariais de grande porte, e o modo como afetam as vidas, corporalidades e
circulação de sujeitos generificados, sexualizados e racializados tornam-se também foco de atenção
da Marcha. Ela incita uma nova coreografia que rompe com o estilo dos protestos feministas de
combate ao estupro e à violência contra a mulher anteriores. O protesto assume a linguagem da
paródia e do humor, que destoa da linguagem vitimária, sexualmente contida, através da qual as
feministas expressavam a sua luta contra o estupro. As práticas corporais ganham o sentido de
bandeiras políticas, relegando a proposição de pautas de políticas públicas a um segundo plano.
Além disso, a Marcha das Vadias se constitui em um espaço para se falar – em meio a tensões,
disputas e possíveis alianças – sobre temas nebulosos do feminismo, como a prostituição, a questão
racial e de classe social e a participação de homens e pessoas trans, abrindo oportunidades para
que os protestos feministas sejam mais sensíveis à inclusão de mais vozes.
268

Desde seu surgimento no país, a Marcha aconteceu em pelo menos 60 cidades, em algumas delas
durante dois ou mais anos consecutivos. Desde 2014, no entanto, nota-se uma queda drástica tanto
no número de Marchas pelo país como na quantidade de pessoas que delas participam. No Rio de
Janeiro, por exemplo, a Marcha foi às ruas em todos os anos de 2011 a 2017. Mas se em 2013, teve
um recorde de público reunindo pelo menos 3 mil manifestantes durante a Jornada Mundial da
Juventude Católica, já no ano seguinte, a participação caiu para cerca de 600 pessoas. Nos anos
posteriores, embora eu não estivesse presente, foi possível ver por fotos e vídeos que o número
caiu para a ordem das dezenas. Esse esvaziamento foi observado nas Marchas de diversas
cidades195. É difícil identificar com precisão razões que sejam comuns a todas as cidades.

As dinâmicas internas dos grupos podem ter alimentado a sua dissolução, como as disputas e
conflitos entre forças distintas, que levaram a frequentes “rachas” e à saída de pessoas. Mas as
disputas internas estão relacionadas, em maior ou menor grau, a conflitos que estão colocados no
campo feminista como um todo, como por exemplo entre feministas de organizações e
“autônomas”, mais velhas e mais jovens, negras e brancas, entre outras. Nesse sentido, é possível
que as críticas externas recebidas pelas Marchas, em especial as das negras e periféricas, tenha
gerado conflitos internos que levaram à desmobilização. Num momento em que as disputas
identitárias ganham novos contornos e visibilidades dentro e fora do feminismo, não é tarefa
simples reconquistar a legitimidade política e se rearticular política e afetivamente depois que uma
acusação de “racismo” ou “classismo” repercute no grupo e nas redes online e off-line. Ou talvez
a estigmatização do protesto pelo público comum e pela mídia mainstream pode ter criado
condições inóspitas à participação das ativistas. Ou ainda, será que a falta de institucionalidade da
Marcha torna inevitável e breve o seu fim? Por quanto tempo é possível manter a consistência do
trabalho ativista não remunerado? A alta rotatividade das integrantes e a descontinuidade da
participação podem ter a ver com a dificuldade de fazer um “trabalho de base” regular a partir do
ativismo voluntário.

Mas me parece que só a médio e longo prazo poderemos compreender as razões da relativa
brevidade da Marcha, a partir da observação sistemática de padrões e regularidades entre diversas

195
As Marchas de Recife e Curitiba são exceções. A julgar por suas páginas do Facebook, parecem bastante atuantes,
organizando diversos eventos e se relacionando com diferentes atoras feministas.
269

formas de mobilização contemporâneas, feministas e de outros campos movimentistas. Afinal de


contas, também outras manifestações mundo afora foram tão incendiárias como breves. A
Primavera Árabe, o Occupy e os Indignados contaram com muito mais participação e visibilidade
midiática que a Marcha, mas duraram ainda menos do que ela. Por outro lado, quando imaginamos
que um protesto ou movimento durou “muito” ou “pouco”, em que pressupostos estamos nos
baseando? Há um tempo de duração esperado ou adequado? Esta discussão me parece intimamente
ligada às transformações dos movimentos sociais na contemporaneidade, que põem em jogo a
própria noção de movimento social e os termos pelos quais são analisados.

Pode ser mais produtivo pensar que a duração de um movimento ou protesto tem mais a ver com o
tipo de efeitos que produz do que com um período definido de tempo. Durante meu estágio de
doutorado em Nova York, conheci pesquisadoras que, tendo estudado o Occupy, estavam agora
interessadas em perceber as suas diferentes formas de continuidade após o fim das ocupações. Uma
delas percebia muitas semelhanças entre os discursos dos Occupiers e os atores políticos que se
reuniram em torno da campanha de Bernie Sanders nas prévias do partido Democrata nas eleições
presidenciais de 2016, cinco anos depois dos protestos. Em uma das manifestações de apoio ao
candidato, as pessoas cantavam gritos de guerra como “Nós somos os 99%” [We are the 99%] e
“Chega de ganância corporativa” [End corporate greed], repertórios conhecidos do Ocuppy. Era
comum ouvir pesquisadores de movimentos sociais dizerem que o Occupy “mudou a conversa” na
esfera pública estadunidense, inserindo de forma consistente o tema da desigualdade social nos
debates políticos (Milkman et al, 2015).

Com a Marcha das Vadias não é diferente. Nas manifestações feministas de rua que se seguiram à
Marcha, como a “Primavera das Mulheres” em 2015, o Ni Uma Menos em sua versão carioca em
2016, e a greve internacional de mulheres no 8 de março de 2017, foi possível ver o frame de
transgressão e o corpo-bandeira como linguagens correntes de protesto: mulheres jovens de sutiã,
peitos de fora e inscrições na pele; afirmação da sexualidade, provocação e humor. Os temas do
estupro, assédio de rua e diversidade sexual e de gênero continuam a ser elaborados em protestos
e nas redes sociais em termos muito semelhantes aos da Marcha. Não quero supor que a Marcha
inventou esses repertórios ou que é a raiz única de todas essas reiterações performativas, mas ela
teve um papel importante na legitimação e circulação dessas coreografias e discursos. A Marcha é
mesmo citada em eventos feministas, livros e reportagens sobre feminismo como uma precursora
270

do “novo feminismo”. Também os debates que provocou a respeito da prostituição, das mulheres
negras e periféricas, da participação dos homens e das pessoas trans, se já existiam antes, ganharam
ainda mais visibilidade, popularidade e vivacidade com ela, reverberando não apenas no campo
feminista como em outros campos. A Marcha das Vadias “mudou a conversa” do feminismo e da
esfera pública. Principalmente, mudou o corpo do protesto.

Figura n. 23 – Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, 2014, Copacabana


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ANEXO A: Imagens da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro


287
288
289
290
291
292
293
294
295

ANEXO B: Manifestos da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro


(2011-2015)

1 - Manifesto de 2011

No Rio de Janeiro, marchamos porque apenas nos primeiros cinco meses desse ano, foram 4.589
casos registrados de mulheres estupradas, uma média de dez mulheres estupradas por dia, e
sabemos que ainda há várias mulheres e meninas abusadas cujos casos desconhecemos; marchamos
porque muitas de nós dependemos do precário sistema de transporte público, que nos obriga a andar
longas distâncias sem qualquer segurança ou iluminação para proteger as várias mulheres que são
violentadas ao longo desses caminhos.

No Brasil, marchamos porque aproximadamente 15 mil mulheres são estupradas por ano, e mesmo
assim nossa sociedade acha graça quando um humorista faz piada sobre estupro, chegando ao
cúmulo de dizer que homens que estupram mulheres feias não merecem cadeia, mas um abraço;
marchamos porque nos colocam rebolativas e caladas como mero pano de fundo em programas de
TV nas tardes de domingo e utilizam nossa imagem semi-nua para vender cerveja, vendendo a nós
mesmas como mero objeto de prazer e consumo dos homens; marchamos porque vivemos em uma
cultura patriarcal que aciona diversos dispositivos para reprimir a sexualidade da mulher; nos
dividindo em “santas” e “putas”, e muitas mulheres que denunciam estupro são acusadas de terem
procurado a violência pela forma como se comportam ou pela forma como estavam vestidas;
marchamos porque a mesma sociedade que explora a publicização de nossos corpos voltada ao
prazer masculino se escandaliza quando mostramos o seio em público para amamentar nossas filhas
e filhos; marchamos porque durante séculos as mulheres negras escravizadas foram estupradas
pelos senhores, porque hoje empregadas domésticas são estupradas pelos patrões e porque todas as
mulheres, de todas as idades e classes sociais, sofreram ou sofrerão algum tipo de violência ao
longo da vida, seja simbólica, psicológica, física ou sexual.

No mundo, marchamos porque desde muito novas somos ensinadas a sentir culpa e vergonha
pela expressão de nossa sexualidade e a temer que homens invadam nossos corpos sem o nosso
296

consentimento; marchamos porque muitas de nós somos responsabilizadas pela possibilidade de


sermos estupradas, quando são os homens que deveriam ser ensinados a não estuprar; marchamos
porque mulheres lésbicas de vários países sofrem o chamado “estupro corretivo” por parte de
homens que se acham no direito de puni-las para corrigir o que consideram um desvio sexual;
marchamos porque ontem um pai abusou sexualmente de uma filha, porque hoje um marido
violentou a esposa e, nesse momento, várias mulheres e meninas estão tendo seus corpos invadidos
por homens aos quais elas não deram permissão para fazê-lo, e todas choramos porque sentimos
que não podemos fazer nada por nossas irmãs agredidas e mortas diariamente. Mas podemos.

Já fomos chamadas de vadias porque usamos roupas curtas, já fomos chamadas de vadias porque
transamos antes do casamento. Já fomos chamadas de vadias por simplesmente dizer “não” a um
homem. Já fomos chamadas de vadias porque levantamos o tom de voz em uma discussão. Já
fomos chamadas de vadias porque andamos sozinhas à noite e fomos estupradas. Já fomos
chamadas de vadias porque ficamos bêbadas e sofremos estupro enquanto estávamos
inconscientes. Já fomos chamadas de vadias quando torturadas e estupradas por vários homens ao
mesmo tempo durante a Ditadura Militar. Já fomos e somos diariamente chamadas de vadias
apenas porque somos MULHERES.

Mas, hoje, marchamos para dizer que não aceitaremos palavras e ações utilizadas para nos agredir
enquanto mulheres. Se, na nossa sociedade machista, algumas são consideradas vadias, TODAS
NÓS SOMOS VADIAS. E somos todas santas, e somos todas fortes, e somos todas livres! Somos
livres de rótulos, de estereótipos e de qualquer tentativa de opressão masculina à nossa vida, à nossa
sexualidade e aos nossos corpos. Estar no comando de nossa vida sexual não significa que estamos
nos abrindo para uma expectativa de violência, e por isso somos solidárias a todas as mulheres
estupradas em qualquer circunstância, porque foram agredidas e humilhadas, tiveram sua dignidade
destroçada e muitas vezes foram culpadas por isso. O direito a uma vida livre de violência é um
dos direitos mais básicos de toda mulher, e é pela garantia desse direito fundamental que
marchamos hoje e marcharemos até que todas sejamos livres.

Somos todas as mulheres do mundo! Mães, filhas, avós, putas, santas, vadias...
Todas nós merecemos respeito!

#MarchaDasVadias
297

2 - Manifesto de 2012

COMUNICADO E MANIFESTO DA MARCHA DAS VADIAS DO RIO DE JANEIRO

POSTO 4 DE COPACABANA – 13H

26 DE MAIO DE 2012

No dia 26 de maio, realizaremos a 2ª Marcha das VADIAS- RJ, e desta vez será Nacional! Várias
cidades brasileiras marcharão no dia 26 de maio de 2012 para defender bandeiras feministas contra
o sistema patriarcal, que privilegia o masculino sobre o feminino.

No Rio de Janeiro, elaboramos um Manifesto com as principais questões que serão abordadas e
discutidas neste ano. Entendemos que ainda existem dúvidas, resistências e aversões à Marcha das
VADIAS, mas antes de “atirar a primeira pedra”, leia e escute o que temos a dizer.

Por que “VADIAS”? Entenda o nome da Marcha!

A Marcha das VADIAS (Slutwalk, em inglês) teve origem no Canadá, a partir da declaração de
um policial que afirmou em uma palestra na Universidade de Toronto que “se as mulheres não se
vestissem como VADIAS, elas não seriam estupradas”. O fato repercutiu internacionalmente e
desde então a Marcha ocorre em diversas cidades do mundo inteiro! Este nome se manteve por
todas as pessoas que foram aderindo ao movimento para opor-se principalmente à violência contra
as mulheres, seja ela física, psicológica, verbal ou simbólica. Sobretudo as agressões relacionadas
ao controle e desrespeito à nossa sexualidade. Atualmente outros temas estritamente vinculados
com a violência sexual também foram acrescentados à discussão como, por exemplo, o aborto, o
tráfico de pessoas, a pedofilia e a exploração sexual.

Manifesto estendido da Marcha das VADIAS Rio de Janeiro

A Marcha é uma manifestação plural, autônoma e independente de qualquer movimento, governo,


partido, sindicato, bandeira, etc. Dia 26 de maio denunciaremos os abusos e absurdos que
enfrentamos cotidianamente pelo simples motivo de querermos SER LIVRES! Priorizamos a
participação real das pessoas com faixas, imagens, cartazes que expressem os anseios em torno dos
temas e da luta da Marcha das VADIAS.
298

Os 5 desafios da Marcha das VADIAS:

1 - Contra a Violência de Gênero

As VADIAS entendem que os gêneros feminino e masculino são construções sociais formadas
através de discursos e práticas culturais e políticas específicas. O sistema social sob o qual vivemos
associa a mulher ao espaço doméstico e privado e vincula o gênero feminino a características como
fragilidade, docilidade, passividade e delicadeza. Já ao gênero masculino atribuem-se aspectos
como a força, a coragem, e a inteligência. Ao homem é consagrado o lugar de reverência e o status
de superioridade. Estas concepções se baseiam numa lógica capitalista, patriarcal, machista e
heteronormativa, em que nos obrigam a fazer parte de uma dessas categorias a partir das nossas
características físicas. Nossa existência não pode ser aprisionada a estéreis divisões binárias de
gênero e poder! Não aceitamos a violência física, psicológica, econômica, jurídica, verbal e
simbólica contra as pessoas que se insurgem à essa lógica e se permitem serem mais! Queremos
respeito às diversas formas de se relacionar e agir no mundo. Ousamos ser socialmente iguais,
humanamente diferentes e completamente livres!

2 - Pela Autodeterminação Reprodutiva e do Direito a Decidir sobre o próprio corpo (Aborto)

VADIAS entendem que nosso corpo é território nosso! Defendemos a autodeterminação


reprodutiva e acompanhamento humanizado em caso de uma gravidez indesejada. Queremos mais
do que direitos reprodutivos: lutamos pelo respeito às mulheres. Festejamos a decisão do STF a
respeito da descriminalização da interrupção legal da gravidez de fetos anencefálicos, mas
insistimos que a discussão sobre continuar ou não uma gravidez não é só uma importante questão
de saúde pública, mas também um direito que deve ser garantido para todas as mulheres. Desta
forma o aborto – ou a interrupção voluntária da gestação, como preferimos chamar – que seja legal,
gratuita e segura é uma medida que o Estado laico brasileiro deve garantir a todas nós!

3 – Contra a MEDIDA PROVISÓRIA N°557, DE 26 DE DEZEMBRO DE 2011.

No governo da primeira presidenta do Brasil vivenciamos um dos maiores retrocessos na política


pública voltada no campo da saúde das mulheres! A Medida Provisória N°557, assinada
sorrateiramente em 26 de dezembro de 2011, determina o cadastro compulsório de todas as
gestantes e puérperas. A medida, vigilantista e criminalizadora das mulheres, determina que todos
299

os estabelecimentos de saúde são obrigados a manter um sistema informatizado com seus dados,
diagnóstico e o projeto terapêutico definido e executado para cada gestante, além de fornecer a
documentação necessária para investigação das causas de óbito de mulheres gestantes, parturientes
e fetos, sempre que solicitada pelas autoridades sanitárias. Isto representa a quebra de sigilo entre
médico e paciente, ou a violação do direito à privacidade e ao sigilo dos dados, e a drástica redução
da autonomia das mulheres sobre os seus corpos. Além disso, o texto da medida estabelece direitos
civis ao embrião ou feto, em detrimento dos direitos das mulheres – e isso é inconstitucional! Com
esta medida provisória, elaborada e assinada sem um debate político democrático com a sociedade,
que entrou em vigor com força de lei em pleno recesso parlamentar e depende apenas da aprovação
de uma das casas legislativas para tornar-se lei, o poder executivo brasileiro presta um desserviço
ao avanço no campo da garantia de direitos para as mulheres.

4° desafio – Contra a exploração sexual de menores e adolescentes e pelo reconhecimento


legal da profissão de prostituta.

Nós, VADIAS, somos contra qualquer tipo de exploração, escravização e tráfico de adultos,
adolescentes e crianças. A prostituição (trabalho sexual) de pessoas maiores de 18 anos não é ilegal-
é inclusive reconhecida através do artigo 5198-05 da Classificação Brasileira de Ocupações, mas é
importante que @s profissionais exerçam essa atividade de forma livre, segura e espontânea. A
prostituição deve ser entendida e respeitada como mais uma profissão, e o Estado deve garantir as
condições para o seu exercício com dignidade. As prostitutas fazem parte do mercado de trabalho
e como qualquer pessoa, elas oferecem serviços que alguém deseja e paga. Reivindicamos o uso
do termo VADIA na nossa Marcha, pois acreditamos que ele é usado na sociedade brasileira como
um conceito pejorativo, para nomear as prostitutas ou a outras mulheres que decidem usar seus
corpos de maneiras distintas das formas pré-estabelecidas pelas configurações sócio-políticas de
gênero. Então, se ser livre é ser VADIA, somos todas VADIAS! Nós não queremos apenas ousar
SERMOS LIVRES, queremos dignidade, direitos e garantias para o exercício pleno da nossa
cidadania.

5° desafio – A favor da diversidade sexual

A heterossexualidade compulsória também faz parte da violência de gênero, pois obriga todas as
pessoas a amar de uma determinada forma; sentir prazer de uma determinada forma; constituir uma
300

família de determinada forma... Acreditamos que o Brasil precisa respeitar a diversidade sexual em
todos os espaços, especialmente dentro do sistema educativo, onde os preconceitos sobre o gênero
e a sexualidade continuam perpetuando práticas de coerção, violências e abusos. Independente das
nossas crenças religiosas e/ou espirituais, não queremos que nenhum grupo religioso decida sobre
as nossas escolhas afetivas e sexuais!
301

3 - Manifesto de 2013

MARCHA DAS VADIAS 2013

Copacabana, 27 de julho – 13h – Posto 5, em frente à antiga boate HELP

“A pior decisão é aquela que tomam por você” (Pacha Urbano)

Pelo terceiro ano consecutivo, A Marcha das Vadias do Rio de Janeiro vai ocupar as ruas de
Copacabana para expressar a urgência de construirmos coletivamente uma sociedade que não mais
aceite ou promova a violência sexual e a violência de gênero. Essas violências, que tem as
mulheres como principal alvo, estão fundamentadas no machismo, no racismo, na diferença de
classes sociais, na homofobia, lesbofobia e transfobia, ou seja, na hierarquia que põe ‘homens
cis[1] brancos heterossexuais de classe média ou alta’ no topo da sociedade, e todas as demais
categorias abaixo desta numa escala de submissão socialmente cruel: pobres, mulheres, prostitutas,
lésbicas, negras e negros, indígenas, homens gays, travestis, entre outras. Isso representa um
obstáculo para a garantia de liberdade e de autonomia dos nossos corpos.

De acordo com o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, em 2012 houve um aumento
de 23% nos casos de estupro registrados em delegacias do estado. Foram cerca de 16 casos por dia,
contra 13 ocorrências diárias em 2011. Apesar disso, em 2013 assistimos ao governador Sergio
302

Cabral minimizar a frequência deste tipo de crime, quando dois casos de estupro ganharam
repercussão na grande mídia, um deles por envolver uma turista estrangeira.

A Marcha das Vadias ocupa as ruas de Copacabana, o bairro mais famoso e turístico da
“Cidade-Maravilhosa-dos-Mega-Eventos”, para dizer que BASTA de violência sexual!

A violência sexual e de gênero, nas suas versões simbólicas, nomeiam pejorativamente as mulheres
de “vadias” a cada vez que usufruímos do nosso direito de decidir sobre as nossas práticas e
expressões sexuais, profissionais, corporais e reprodutivas, e lança sobre nós a culpa pela agressão
sofrida. “Ela provocou, com aquela saia curta e aquele decote sensual”, “Se fosse uma moça séria,
não estaria bebendo até aquela hora da noite”, “Por que não chamou o irmão para acompanhá-la
até o ponto de ônibus que fica num lugar escuro?”. Estes são alguns dos argumentos para justificar
a invasão violenta e a tutela patriarcal dos nossos corpos.

A nossa roupa e o nosso corpo exposto nunca serão um convite ao estupro nem um insulto.

No dia da Marcha das Vadias, como no resto do ano, nós nos apropriamos do nome VADIA para
gritar ao mundo que cabe a nós, e a mais ninguém, a decisão do que fazer com os nossos corpos, e
que cabe a todas as pessoas RESPEITAR as decisões das outras.Porque se para exercermos e
lutarmos por mais espaços de liberdade teremos que ser chamadas de vadias, somos TODAS
VADIAS. Assim, frisamos alguns pontos que consideramos de maior urgência.

EU ABORTO, TU ABORTAS, SOMOS TODAS CLANDESTINAS

Uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já interrompeu a gravidez ao menos uma vez na vida.
Metade delas teve de ser internada devido a complicações derivadas do procedimento realizado de
forma clandestina e insegura [2]. A autonomia que demandamos sobre nossos corpos inclui o poder
de decisão sobre dar continuidade ou não a uma gravidez indesejada ou não planejada. O aborto
inseguro é uma das cinco principais causas de mortes maternas evitáveis no nosso país, matando e
criminalizando principalmente mulheres negras e pobres. Diferente de outros países latino-
americanos onde o ABORTO já é legal, seguro e gratuito, o Estado brasileiro continua sendo
responsável por um terrível desrespeito aos direitos humanos das mulheres, descumprindo e
retrocedendo na garantia do direito à vida, a não discriminação, à privacidade, ao planejamento
familiar, e indo na contramão de uma série de acordos internacionais em que nos comprometemos
303

a flexibilizar a legislação punitiva do aborto. Sem considerar sequer um caminho de legalização do


aborto, o Brasil abre cada vez mais espaço a propostas de políticas públicas que impedem a nossa
liberdade de escolha, como o “Estatuto do Nascituro”, que estabelece “direitos” a embriões e fetos
em detrimento de direitos de mulheres e cria a chamada “bolsa estupro”, que propõe que o
estuprador se responsabilize por pagar uma pensão à mulher que ficar grávida em decorrência de
uma violação sexual (estupro), obrigando-a a conviver com o agressor pelo resto da sua vida.

NEM IGREJA, NEM ESTADO: MEU CORPO, MEU TERRITÓRIO

Somente sem a interferência de dogmas religiosos nas políticas públicas poderemos avançar rumo
à garantia de direitos plenos às mulheres e a sujeitos da diversidade sexual e de gênero. A violência
institucional a que nos referimos anteriormente fere a laicidade do Estado. O Estado laico tem
como um dos seus pilares o respeito aos sujeitos por sua condição humana, independente de suas
escolhas individuais; pauta-se na lógica democrática da igualdade entre todos os cidadãos. Outro
aspecto central é a neutralidade da esfera pública, que possibilita a convergência democrática e
pacífica da pluralidade. A laicidade reitera que a esfera pública é constituída por seres humanos
livres e iguais que se governam sem envolver o recurso divino e, a crença. Ao se legislar amparado
sobre a ordem do sobrenatural e do divino, na ordem da crença - que é individual e privada - tem-
se uma política pública discriminatória, excludente e preconceituosa. Tal como pode ser visto nas
recentes atuações de grupos religiosos de orientação conservadora, que vêm interferindo nas
políticas públicas e na legislação brasileira, afetando negativamente a liberdade religiosa e sexual
de quem não adere a seus dogmas. Um exemplo disso foi a revisão inédita do Programa Nacional
de Direitos Humanos na sua 3a versão (PNDH3, 2010), que orientava para a flexibilização da
legislação punitiva do aborto e a retirada de símbolos religiosos de repartições públicas, e que foi
alterada depois de sancionada pelo Presidente Lula por pressões da Confederação Nacional dos
Bispos Brasil (CNBB).

Em nome da garantia dos direitos fundamentais a constituição brasileira veda a união, os estados,
os municípios e o distrito federal de estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los ou
manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma
de lei, colaboração de interesse público. No entanto, isto vem sendo feito mediante o apoio
explícito dos governos federal, estadual e municipal à realização da Jornada Mundial da Juventude
Católica. Além do emprego de dinheiro público para a realização do mega evento, equipamentos
304

públicos como escolas, universidades e centros culturais estão sendo postos à disposição e
orientados a realizarem atividades católicas no período da Jornada. Isto fere o princípio
constitucional que preconiza o não favorecimento ou impedimento, por parte do Estado, às
atividades de nenhuma religião. Em anos recentes, recursos federais, estaduais e municipais têm
sido destinados também a financiar as Marchas para Jesus, que fazem propaganda de uma fé
específica e ‘demonizam’ outras, pregam discriminação e disseminam discursos de ódio contra
parcelas da população, como homossexuais e adeptos de religiões de matriz africana. Outros
exemplos da interferência religiosa conservadora sobre o Estado incluem o veto presidencial ao kit
orientador do programa Escola Sem Homofobia e ao kit educativo de prevenção a DSTs e
HIV/Aids, por chantagem política da Frente Parlamentar Evangélica. Por isso, decidimos marchar
no Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que se realiza a JMJ para reafirmar a nossa posição pela
independência do Estado brasileiro de qualquer religião e livre de preconceitos.

EXISTIMOS E EXIGIMOS DIREITOS

Mais uma vez nos colocamos a favor da adoção de um marco legal de proteção às PROSTITUTAS,
que permita que elas tenham todos os seus direitos de cidadãs garantidos e respeitados, em especial
aos seus direitos sexuais e trabalhistas, contribuindo com a desmarginalização e desestigmatização
desta profissão, quando ela é escolhida, respeitada e mantida como uma decisão digna. Temos
assistido ao processo de limpeza social moralista da cidade do Rio de Janeiro em preparação para
a Copa das Confederações, Jornada Mundial da Juventude, Copa do Mundo de Futebol e Jogos
Olímpicos. Na busca de construir um cenário que mostre um “Rio de Janeiro para inglês ver”, a
prostituição vem sendo silenciosamente higienizada dos centros turísticos da cidade, incluindo o
local onde esta Marcha será realizada. Este processo apenas reforça o estigma e vulnerabiliza ainda
mais as prostitutas, com destaque as que são extorquidas, humilhadas e exploradas por cafetões e
cafetinas, donos e donas das casas de prostituição que ainda restam, e ainda pela polícia e pelas
milícias.

QUEM SOMOS?

A Marcha das Vadias do Rio de Janeiro se reconhece como um movimento social não
institucional, apartidário formado por pessoas que se identificam com a defesa da autonomia dos
corpos, com a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos e com a luta por justiça social. A Marcha
305

é apartidária e, mais uma vez, em 2013 convidamos partidos, sindicatos, coletivos e


organizações que queiram trazer suas pautas e construir seus cartazes, pinturas e demais
intervenções artivistas junto conosco. Pedimos que bandeiras não sejam levantadas para que não
se sobreponham às vozes e demandas vadias estampadas nos cartazes. Acreditamos na ocupação
das ruas para transformar ideias e práticas, para isso, buscamos dialogar com todos os setores da
sociedade. Afirmamos a igualdade de direitos e não discriminação a mulheres, lésbicas, gays,
pessoas bissexuais, travestis, transexuais, profissionais do sexo, prostitutas, de todas as cores,
formatos e classes sociais. As reuniões são abertas e todas as pessoas podem participar. Informe-
se das atividades pela nossa página no Facebook.

---

[1] “Cis” é o termo utilizado para se referir às pessoas que ao nascer foram identificadas com
determinado sexo e que, ao longo da vida, continuam se identificando como tal.

[2] Diniz D, Medeiros M. “Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna”. Anis,
UnB, 2010.
306

4 – Manifesto de 2014

MANIFESTO - MARCHA DAS VADIAS DO RIO DE JANEIRO 2014

A Marcha das Vadias do Rio é organizada por feministas autônomxs que lutam contra a violência
sexual e de gênero e a favor da autonomia dos corpos. Somos chamadas de “vadias” nos espaços
em que circulamos porque vivemos numa sociedade machista, racista e centrada na
heterossexualidade, que quer controlar os nossos corpos. O Ministério da Justiça divulgou no fim
de 2013 que 50 mil mulheres são estupradas por ano no Brasil! Uma pesquisa recente do IPEA
mostrou que 26% dxs brasileirxs concordam que mulheres que usam roupas que mostram o corpo
merecem ser atacadas! Marchamos pelo fim da violência sexual contra as mulheres e contra a
culpabilização das vítimas!

Somos chamadas de vadias quando usamos roupas curtas e também quando usamos roupas
compridas, somos chamadas de vadias quando andamos pelas ruas de noite e quando andamos pela
rua de dia, somos chamadas de vadias quando denunciamos o estupro e nos culpam pela violência
que sofremos, somos chamadas de vadias quando denunciamos o assédio sexual no transporte
público e a violência dentro de casa, somos chamadas de vadias quando dizemos “NÃO”, somos
chamadas de vadias quando dizemos “sim” ao prazer, somos chamadas de vadias quando
“ousamos” fazer escolhas de forma autônoma. Somos chamadas de vadias apenas porque somos
MULHERES. Marchamos para dizer NÂO ao controle da nossa sexualidade e para dizer NÂO ao
eterno julgamento e depreciação do feminino! Sabendo que o termo “vadia” tem significados
diversos para corpos diferentes, ressignificamos “vadia” como símbolo de nossa luta por liberdade
para experimentar nossos corpos e afetos da maneira que desejarmos. Não queremos ser
respeitáveis, exigimos ser respeitadas! Se ser livre é ser vadia, então somos todas vadias!

Fazemos parte da construção de um mundo livre de violência para todas as mulheres (cis e trans*),
um mundo onde nenhuma vítima seja culpabilizada, onde não haja vítimas. Combatemos todas as
formas de opressão: machismo, racismo, lesbofobia, transfobia, bifobia, exclusão das pessoas com
deficiência (ou capacitismo), violência de classe e outras. Nossos princípios são liberdade,
horizontalidade e autonomia.
307

Em 2014, a Marcha das Vadias ocupa as ruas, as esquinas, os bares e os becos da cidade do Rio
de Janeiro pelas seguintes razões:

1) Com os grandes eventos sediados no país e na cidade, a desigualdade, a exclusão e a violência


contra a população são agravadas. Diante disso:

a. Denunciamos o racismo que mulheres negras sofrem ao serem vistas como objeto de consumo,
facilitando a exploração sexual. Exigimos que as mulheres negras sejam vistas como seres humanos
e não como “pontos turísticos”. É urgente que se reconheçam as diferentes vozes e lugares
ocupados pelas mulheres negras na sociedade!

b. Denunciamos que as mulheres que moram em favelas e periferias são profundamente


atingidas por várias formas de violência: são arrancadas das suas casas e de suas raízes, têm filhxs
e companheirxs assassinadxs pela polícia, são violentadas pelos agentes de “segurança”. Nunca
esqueceremos o assassinato brutal de mulheres, como o de Cláudia da Silva Ferreira. Destacamos
também a enorme força com que as mulheres NÃO PACIFICADAS defendem suas causas,
organizando-se e exigindo direitos.

c. Repudiamos o projeto de cidade que marginaliza e criminaliza a prostituição. No caso da


remoção forçada do prédio da Caixa Econômica, do centro de Niterói, vimos como mulheres
trabalhadoras foram expulsas dos seus locais de moradia e trabalho, estupradas e roubadas, em uma
ação ilegal do Estado. Novamente, como Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, lembramos que a
prostituição nunca foi ilegal no Brasil e reafirmamos a necessidade da sua regulamentação,
reivindicação do movimento de prostitutas. Exigimos que a cidadania seja garantida já!

d. Sublinhamos a alarmante violência transfóbica persistente na nossa sociedade, que retira o


direito à cidade dos corpos que fogem ao padrão de gênero estabelecido. Afirmamos nosso
compromisso com os direitos das pessoas a se identificarem com o gênero que quiserem, inclusive
nenhum. Basta de invisibilidade! Basta de violência! Basta de ódio e transfobia!

e. Denunciamos o assédio, as agressões, os estupros “corretivos” e outros tipos de violência


sofridos por lésbicas e mulheres bissexuais em todos os espaços, tanto públicos quanto privados.
Por isso, rompemos o silêncio, destacando que esta violência é invisível aos olhos da sociedade e
308

das suas instituições. Exigimos liberdade e segurança para que lésbicas e mulheres bissexuais
possam expressar seu afeto em todo e qualquer lugar!

2) Denunciamos a manutenção de atitudes machistas e misóginas (atos que representam ódio à


condição feminina) nos movimentos sociais de esquerda: assédio moral e sexual, silenciamento das
vozes das mulheres, divisão sexual de tarefas. Que as pautas feministas sejam incorporadas e
PRIORIZADAS na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

3) Reivindicamos a garantia dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos. Exigimos a não
interferência das religiões nas políticas públicas e na legislação. Mais uma vez, exigimos o direito
aos nossos corpos. Repudiamos os retrocessos em relação ao aborto no Brasil, como a revogação
da portaria 415/2014 do Ministério da Saúde, que reafirmava e regulamentava os princípios de
humanização, qualidade e segurança do atendimento aos casos de aborto legal no SUS.

Demandamos a ampliação do acesso e a boa qualidade dos serviços de saúde integral para as
mulheres e pessoas gestantes, incluindo acesso a informação e métodos de qualidade sobre
contracepção e planejamento familiar. Da mesma forma que nenhuma mulher deve ser obrigada a
ser mãe, aquelas que fazem esta escolha devem ter a autonomia de seus corpos respeitada, inclusive
para decidir as condições em que desejam gestar e parir. Exigimos aborto legal, seguro, raro e
gratuito, assim como partos seguros e sem violência física e psicológica. Nossos corpos, nossas
regras.

A cor da pele não pode ser motivo de estupro!! O local de moradia não pode ser motivo de
estupro!! A profissão não pode ser motivo de estupro!! A identidade de gênero não pode ser motivo
de estupro!! A orientação sexual não pode ser motivo de estupro!! NADA PODE SER MOTIVO
DE ESTUPRO!!!"

Marcha das Vadias do Rio de Janeiro 2014

Dia 9 de agosto

Concentração 13h

Posto 5 – Praia de Copacabana


309

5 - Manifesto de 2015

Vamos continuar mostrando nossa força e nossa vontade de lutar contra o retrocesso que ameaça a
vida das mulheres todos os dias?!

DOMINGO agora, dia 08/11,TEM MARCHA DAS VADIAS!

Queremos ver todas lá :D

PS.: chamem as amigas, divulguem o evento, é importante todas estarmos na rua este domingo ♥

VEM!!!!

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A cor da pele não pode ser motivo de estupro!! O local de moradia não pode ser motivo de estupro!!
A profissão não pode ser motivo de estupro!! A identidade de gênero não pode ser motivo de
estupro!! A orientação sexual não pode ser motivo de estupro!! NADA PODE SER MOTIVO DE
ESTUPRO!!!"

No próximo domingo, dia 8 de Novembro, a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro realiza sua
quinta edição, chamando a atenção para o alto índice de estupros no estado e a cultura de
culpabilização das vítimas de violência sexual.

A Marcha das Vadias do Rio é organizada por pessoas feministas autônomas que lutam contra a
violência sexual e de gênero e a favor da autonomia dos corpos, inclusive do direito a livre
expressão e autoidentificação de gênero, como no caso de travestis, transexuais, transgêneros e
intersexuais. A marcha reivindica a ressignificação do termo “vadia” como símbolo de luta pela
liberdade de todas as pessoas para experimentarem seus corpos, desejos, sexualidades e afetos da
maneira que quiserem e decidam.

A Marcha das Vadias de 2015 traz a construção de cinco anos de ocupação de ruas, esquinas, bares
e becos da cidade, quando chamamos atenção para o lema “Meu corpo minhas regras”, pelo qual
repudiamos e rejeitamos qualquer intervenção ou imposição do Estado, da igreja ou de qualquer
sorte sobre ou a respeito de nossos corpos:
310

Em 2011 marchamos em Copacabana contra a violência de gênero e o abuso sexual naturalizados


pela cultura de estupro. Nenhuma mulher “está pedindo” ou “merece” ser estuprada;

Em 2012 tomamos as ruas pela legalização do aborto, pela regulamentação da prostituição, contra
o Cadastro Nacional de Gestantes, contra a violência contra a mulher, contra a lesbofobia, a
transfobia, a homofobia, a bifobia e o racismo;

Em 2013, ano em que a cidade recebeu a Jornada Mundial da Juventude, reforçamos nosso combate
às violências sexuais e de gênero, à criminalização do aborto, à interferência da religião nas
políticas públicas e nos corpos das mulheres e pessoas trans;

Em 2014, ano em que o Brasil recebeu a Copa do Mundo de futebol, tomamos as ruas contra as
violentas investidas do Estado contra as populações periféricas nas remoções de favelas e
ocupações e continuamos batalhando pela regulamentação da prostituição, pela garantia dos
direitos sexuais e reprodutivos e pela laicidade do Estado.

Hoje chamamos a atenção de todas as pessoas à urgente necessidade de nos posicionarmos contra
o conservadorismo que se amplia no Congresso Nacional.

A Constituição Federal traz, dentre seus princípios democráticos, a laicidade e a não discriminação
e temos acompanhado o pavoroso desrespeito às conquistas históricas dos movimentos sociais
diariamente naquela Casa que deveria nos representar. Acreditamos na construção da política pelo
debate entre os diferentes grupos que compõem a sociedade e temos acompanhado o enorme
retrocesso legislativo em busca de restringir a pluralidade de nossas vidas, quando senadores e
deputados vomitam sem modéstia declarações misóginas, transfóbicas, lesbofóbicas, homofóbicas
e racistas.

Em 21 de Outubro deste ano a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados


aprovou projeto de lei 5.069/2013, de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Esse
projeto proíbe a venda de pílulas do dia seguinte e impõe medidas que dificultam o acesso ao aborto
por mulheres que foram vítimas de estupro, projeto que fere princípios da dignidade humana da
mulher e nos coloca, mais uma vez, sob crivo da autoridade policial e do judiciário para que se
comprove a nossa inocência por um crime do qual somos vítimas. Uma semana depois, no dia 28
311

de Outubro, mais de três mil mulheres tomaram as ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro em
protesto ao projeto, pela legalização do aborto e exigindo a saída de Eduardo Cunha.

Salientamos a importância da legalização do aborto e acessibilidade de métodos abortivos, bem


como de partos sem violência, para que ser mãe/pai seja uma escolha e não uma consequência
pesarosa; do reconhecimento da identidade de gênero de pessoas trans sem obstáculos, para que
ser homem ou mulher seja uma escolha consciente e não biologizante; do combate à cultura de
estupro e do acesso à informação e acolhimento às vítimas desse odioso crime; da necessidade do
ensino nas escolas pautar temáticas associadas a gênero, sexualidades, culturas e religiões de
matrizes africanas, indígenas e orientais; para que as crianças e adolescentes conheçam as múltiplas
possibilidades de vida e invistamos em um futuro com menos violência e desigualdades.

Todas e todos somos responsáveis pelo sangue que tem sido derramado e precisamos nos
posicionar contra toda forma de violência e apagamento de vida que temos presenciado. Precisamos
renovar nossa paixão pela luta nos processos políticos que envolvem a garantia de direitos,
precisamos desafiar a ordem instituída e buscar resultados reais.

Somos chamadas de “vadias” nos espaços em que circulamos porque vivemos numa sociedade
machista, racista e centrada na cisgeneridade e na heterossexualidade, que quer controlar a forma
como nos vestimos, nos comportamos e até por quem sentimos desejo e a quem amamos. Ouvimos
diariamente que temos que ser “vadias na cama e damas em sociedade”, que “tudo bem ser lésbica,
bissexual ou gay, mas não precisa sair na rua de mãos dadas com alguém do mesmo sexo”, que
“tudo bem ser trans, desde que seja discreta”. Nos posicionamos contra esse controle e
reivindicamos nosso direito à vadiagem pública, que entendemos como nosso direito a viver como
queremos. Não vamos nos limitar a quatro paredes.

Dia 08 de novembro de 2015 vamos às ruas de Copacabana e convocamos todas as pessoas


comprometidas com o combate às injustiças e desigualdades sociais para que marchemos em
combate às ideologias que buscam nos padronizar e neutralizar nossas diferenças para que
possamos promover a singularidade que cada pessoa tem potência de construir sobre si e sobre o
mundo. Convocamos todas e todos a ocuparem os espaços públicos do qual tentam nos retirar!

PRA RUA VADIAGEM!


312

Serviço:

Marcha das Vadias do Rio de Janeiro 2015

Dia 8 de novembro - Concentração 14h - Posto 4 – Praia de Copacabana


313

ANEXO C: Roteiro básico de entrevista com feministas

Roteiro básico de entrevista com feministas

A) Integrantes da MdV, “autônomas” e feministas jovens

Explorar: narrativas sobre experiências pessoais, familiares, educacionais e políticas que levaram
a se interessar pelo feminismo. Narrativas de entrada no feminismo organizado. Circulação entre
grupos e redes feministas. Modos de fazer, de se expressar politicamente, de se organizar, agendas.
Disputas políticas. Desafios do feminismo.

B) Feministas mais velhas e/ou de ONGs, partidos e órgãos do Estado

Explorar: além das questões do grupo A, explorar o que acha da MdV, do ativismo na internet, dos
modos de organização do campo contemporâneo. Semelhanças e diferenças entre diferentes
gerações e entre feministas alocadas em diferentes espaços.

Dados socioeconômicos:

Data:
Nome:
Idade:
Escolaridade:
Escolaridade dos pais:
Profissão:
Estado civil / Se tem companheiro(a):
Nº de filhos:
Cor/raça:
Orientação sexual:
Renda mensal:
Local de moradia:
Local/instituição de militância:
314

Perguntas-guia:

1. Como entrou no feminismo? Por que se interessou? Como teve contato com o feminismo
pela primeira vez?
2. Grupos e instituições de que participou.
3. Principais preocupações políticas da MdV/do seu grupo.
4. O que a MdV/seu grupo tem de diferente dos outros movimentos feministas?
5. Quais seriam as limitações da MdV/ seu grupo?
6. Momentos que mais gostou/gosta e que menos gostou/gosta na MdV/ seu grupo/ na sua
trajetória de ativismo.
7. Problemas e desafios encontrados (impedimentos, tensões com outros grupos de luta,
dificuldades de organização).
8. Com o que você se identifica e não se identifica no feminismo? Por quê?
9. Feminismo é pra quem? Quem pode ser feminista?
10. Quais são para você os principais desafios (internos e externos) do feminismo?
11. Como o feminismo impacta sua vida (trabalho, família, relações afetivas e sexuais)?
12. Planos futuros no feminismo/ na militância?

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