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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILODOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

Thiago Barcelos Soliva

SOB O SÍMBOLO DO GLAMOUR:


Um estudo sobre homossexualidades, resistência e mudança social

Rio de Janeiro
2016
Thiago Barcelos Soliva

SOB O SÍMBOLO DO GLAMOUR:


Um estudo sobre homossexualidades, resistência e mudança social

Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de doutor
em Ciências Humanas (Antropologia
Cultural).

Orientadora: Profª. Dra. Mirian Goldenberg


Coorientadora: Profª Dra. Maria Elvira Díaz
Benítez

Rio de Janeiro
2016
À Marquesa e Anuar Farah, eternas Divas.
AGRADECIMENTOS

Esta tese é o coroamento de uma longa jornada da qual participaram pessoas que listo aqui
como essenciais em diferentes momentos da minha vida. Chegar até o ponto final desta tese
foi um processo que envolveu altos e baixos, mas sinto-me muito grato por sempre poder
contar com alguém nessa jornada.

À minha orientadora, Professora Dra. Mirian Goldenberg, pela parceria que construímos
juntos nestes anos de mestrado e doutorado.

À minha coorientadora, Professora Dra. Maria Elvira Díaz Benítez, pela generosidade e
amizade com que aceitou este compromisso.

Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do


Rio de Janeiro, pelo ambiente agradável e intelectualmente estimulante.

Às secretárias do PPGSA, Claudia de Jesus Vianna, Verônica e Ângela Dias, pela assistência
prestativa e sempre simpática na resolução de problemas burocráticos indispensáveis a rotina
acadêmica.

À Capes, pela concessão da bolsa de doutorado, sem a qual não seria possível executar este
trabalho.

Aos/às professores/as Maria Barroso, Maria Laura Viveiros de Castro, Sérgio Carrara e
Horácio Sívori pelas aulas enriquecedoras que seguramente lançaram muita luz a esta tese.

Aos/às professores/as Maria Laura Viveiros de Castro e Sérgio Carrara pelos comentários
valiosos na banca de qualificação.

Aos/às professores/as Regina Facchini, Luiz Fernando Dias Duarte, Peter Fry e Maria Laura
Viveiros de Castro por aceitarem compor a banca de defesa. Agradeço, principalmente, a
professora Dra. Regina Facchini, pela troca estimulante em congressos e via internet. Seus
elogios a minha dissertação me ofereceram um inestimável vigor.
À Thaís Chaves Ferraz, pela minuciosa e valiosa revisão do texto final.

À minha mãe, a quem devo grande parte do que sou. Sua dedicação maternal foi
extremamente valiosa, sobretudo nos momentos em que o cansaço e a perda de esperanças se
abateram sobre mim.

Ao meu marido e companheiro de vida, Franciel da Silva Cruz Gregório, pela sua
simplicidade em se relacionar com a vida, pela leveza com que construímos nossa relação e
pelos jantares deliciosos que me prepara com tanto amor.

Às minhas irmãs: Vanessa Barcelos Soliva, Júlia Maria Barcelos Soliva e Tatiana Barcelos
Torres, pela convivência agradável.

Às minhas tias: Ângela, Carla, Solange, Creuza, Vera Lúcia e Gracinha que sempre me
mostraram que os problemas da vida se resolvem com boa música, alegria e muita dança.

À amiga Joice Cristina Campos, pela atenção fraternal e pela forma sempre lúcida de me dar
conselhos sobre a vida.

À amiga Claudia Moraes, pelo apoio material e espiritual que ofereceu para a construção
deste trabalho.

Aos amigos do Instituto de Segurança Pública: Núbia dos Santos, Diego Gimenes e Mayara
Farage.

Aos/às queridos/as amigos/as que fiz ao longo de minha trajetória acadêmica: Gustavo
Saggese, Márcio Zamboni, Gibran Braga, Rafael Noleto, Robson Cardoso de Oliveira,
Guilherme Passamani, Isadora Lins França, Paula Lacerda, Lucas Freire, Raphael Bispo e
Margareth Cristina de Almeida Gomes.

Às/aos queridas/os amigas/os do NESEG: Nathalia Gonçales, Rodrigo Coelho, Natalia Alves,
Larissa Quillinan, Thaíza Santos, Vivien Merciel, Diana Neves e Vanessa Lourenço.

Aos pesquisadores do NuSEX.


À querida Rita Colaço, pelas sugestões valiosas, ótimas tardes e generosidade acadêmica
refletida na disponibilização de fontes de pesquisa sem as quais essa tese não seria possível.

Aos queridos amigos, Ramon Reis, Milton Ribeiro e Bruno Puccinelli, pela troca estimulante,
pelo senso de humor diante da vida e pelas sugestões de bibliografia. Com esses
pesquisadores aprendi a fazer boa antropologia. Amo vocês!

Por último, mas não menos importante, gostaria de agradecer imensamente a todas/os as/os
interlocutoras/os que me ajudaram na construção desta tese.
Over The Rainbow

Somewhere over the rainbow, way up high


There's a land that I've heard of
Once in a lullaby

Somewhere over the rainbow, skies are blue


And the dreams that you dare to dream
Really do come true

Some day I'll wish upon a star


And wake up where the clouds are far behind me
Where troubles melt like lemon drops
Away above the chimney tops
That's where you'll find me

Somewhere over the rainbow, blue birds fly


Birds fly over the rainbow
Why, then, oh why can't I?

If happy little blue birds fly


Beyond the rainbow
Why oh why, can't I?
Judy Garland1

1
Dedico esta música à Turma OK, espaço de sociabilidade homossexual por excelência.
RESUMO

SOLIVA, Thiago Barcelos. Sob o símbolo do glamour: um estudo sobre homossexualidades,


resistência e mudança social. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) – Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciência Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

Esta tese constitui uma contribuição aos estudos de gênero e sexualidade no Brasil. O objetivo
geral deste estudo é analisar as formas de agenciamento, estratégias de resistência e as
mudanças nas convenções sociais relacionadas à diversidade de gênero e sexualidades não
normativas no contexto brasileiro. Focalizando a relação entre essas convenções e a ideia de
glamour, cujas imagens e sentidos estão profundamente associados ao mercado de bens
culturais e de entretenimento que se desenvolveu na segunda metade do século XX, busca-se
compreender como indivíduos situados fora da norma heterossexual incorporaram e
manejaram essas imagens na construção de formas de agenciamento e de “universos
simbólicos” específicos. O argumento principal deste trabalho é que o glamour, conjugando
imagens de cosmopolismo e modernidade, se constituiu como um tipo de agência entre esses
indivíduos, permitindo que habitassem o mundo, reivindicando existência dentro da norma
heterossexual. Para tanto, este estudo se baseia em um conjunto diferenciado de fontes, que
incluem documentos, pesquisa bibliográfica, jornais, revistas, fotografias e relatos de
trajetória de vida de indivíduos diretamente envolvidos em tais processos.

Palavras-chave: homossexualidades; glamour; travestis; mudança social; resistência.


ABSTRACT

SOLIVA, Thiago Barcelos. Sob o símbolo do glamour: um estudo sobre homossexualidades,


resistência e mudança social. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) – Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciência Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

This thesis is a contribution to gender and sexuality studies in Brazil. The aim of this study is
to analyze the forms of agency, resistance strategies and changes in social conventions
relating to gender diversity and sexualities not normative in the Brazilian context. Focusing
on the relationship between these conventions and the idea of glamor, whose images and
meanings are deeply associated with the cultural goods and entertainment that developed in
the second half of the twentieth century market, we seek to understand how individuals
situated outside the heterosexual norm incorporated and wielded these images in the
construction of forms of agency and "symbolic universes" specific. The main argument of this
paper is that the glamor, combining modernity and cosmopolism images, constituted as a kind
of agency among these individuals, allowing inhabit the world, claiming existence within the
heterosexual norm. Therefore, this study is based on a different set of sources, including
documents, literature, newspapers, magazines, photographs and life trajectory of reports of
individuals directly involved in such processes.

Keywords: homosexualities; glamor; travestis; social change; resistance.


LISTA DE IMAGENS

Imagem 01 – “Homens travestidos” durante o carnaval do Rio 53

Imagem 02 – Homem negro “em travesti” na Avenida Rio Branco, carnaval de 1940 54

Imagem 03 – Carnaval, Cinelândia, 1954 55

Imagem 04 – Abertura do filme de viagem Carnival in Rio, de Andre de LaVarre 56

Imagem 05 – O Príncipe Hindu: fantasia com que Clóvis Bornay venceu o concurso de
fantasias do Theatro Municipal, em 1937 69

Imagem 06 – Concurso de fantasias no Hotel Glória – 1975 73

Imagem 07 – Ivaná 80

Imagem 08 – Impresso do espetáculo Alta Tensão, realizado pela trupe de Les Girls, no
Teatro das Nações, São Paulo 101

Imagem 09 – Trecho d’O Globo sobre o show Les Girls, na boate Stop 102

Imagem 10 – Trecho de O Globo sobre o show Very, Very Sexy realizado no Top Club, Rio de
Janeiro, em 1965 105

Imagem 11 – Valéria, Coccinelle e Rogéria 107

Imagem 12 – Jane Di Castro na revista Fatos & Fotos, 1981 113

Imagem 13 – Matéria da revista Manchete, 1981 113

Imagem 14 – Divulgação da boate Sucata no Correio da Manhã 114

Imagem 15 – Impresso do espetáculo Misto Quente no Correio da Manhã, 20 jul. 1972 115

Imagem 16 – Impresso do espetáculo Les Girls, no Teatro Nacional, em Buenos Aires, em


1972 119
Imagem 17 – Impressos do Carrousel de Paris e do Madame Arthur 125

Imagem 18 – Coccinelle e Tracy-Lee, primeira geração do Carrousel de Paris 126

Imagem 19 – Jane Di Castro para o Carrousel de Paris 127

Imagem 20 – Yeda Brown para o Carrousel de Paris 128

Imagem 21 – Impressos jornalísticos veiculados na imprensa espanhola divulgando o Gay


International Show, espetáculo do Carrousel de Paris com Marquesa 129

Imagem 22 – Weluma Brown entre outras Chacretes do Programa do Chacrinha 146

Imagem 23 – Dener na porta de sua Boutique em São Paulo 155

Imagem 24 – Clóvis Bornay participando do Programa Sílvio Santos 166

Imagem 25 – Cartum de Nani sobre as demissões de Dener e Clodovil 167

Imagem 26 - Jane Di Castro para O Pasquim, 1983 186

Imagem 27 – Cartaz promocional do filme Gilda 196

Imagem 28 – Capa do número 08 d’O Snob, na qual Gilka Dantas (Agildo Bezerra
Guimarães) aparece coroada 212
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 16
Percursos da pesquisa 20
“Bichas”, “travestis”, “homossexuais”... Trânsitos identitários e mudanças nas convenções de
gênero e sexualidade na sociedade brasileira 25
Metodologia 29
Entre fragmentos, apagamentos e amizades 36
Organização dos capítulos 41

CAPÍTULO I – O glamour e a construção de uma “sociedade bichal”: a produção de


significados sobre as sexualidades não normativas no Brasil e o mercado de bens
culturais 44
1.1 – O carnaval, a fotografia, os filmes de viagem e o espetáculo dos “homens em travesti”46
1.2 – Concursos de fantasia 67
1.3 – O Teatro de Revista 74
1.4 – Concursos de Miss 85
1.5 – Nos bastidores da Rádio Nacional 89

CAPÍTULO II – Internacionais e glamourizadas: a invenção da “travesti profissional”


como “espetáculo de consumo” 95
2.1 – Sobre o talento de ser fabulosa: os “shows de travestis” e a invenção da “travesti
profissional” 96
2.2 – Deslocamentos latinos 118
2.3 – A viagem e o seu retorno: o début das “travestis profissionais” na Europa 120
2.4 – Impactos duradouros 143

CAPÍTULO III – Sobre trejeitos e faceirices: o espetáculo das afetações e


extravagâncias entre interdições e insurgências 151
3.1 – Dener é um luxo! Dandismo e as parafernálias de classe e gênero 152
3.2 – A guerra das tesouras: distinção e mudança social 158
3.3 – Insurgências na televisão: a “bichice” entre a proibição e o freak show 161
3.4 – A breve conquista do horário nobre 172
3.5 – Do glamour à abjeção 175
CAPÍTULO IV – Imaginando comunidades, parodiando convenções: diva, imaginação,
resistência e agenciamentos 191
4.1 – Uma arqueologia da diva: o mito da “mulher fatal” 192
4.2 – As divas como totens 198
4.3 – Parodiando a sociedade, ritualizando a diva: o Snob, as turmas e a invenção de uma
“sociedade bichal” 211

CONSIDERAÇÕES FINAIS 221

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 225

ANEXOS 240
16

INTRODUÇÃO

Esta tese constitui uma contribuição aos estudos de gênero e sexualidade no Brasil. O
objetivo geral deste estudo é analisar as formas de agenciamento, estratégias de resistência e
as mudanças nas convenções sociais relacionadas à diversidade de gênero e sexualidades não
normativas no contexto brasileiro. Focalizando a relação entre essas convenções e a ideia de
glamour, cujas imagens e sentidos estão profundamente associados ao mercado de bens
culturais e de entretenimento que se desenvolveu na segunda metade do século XX, busca-se
compreender como indivíduos situados fora da norma heterossexual incorporaram e
manejaram essas imagens na construção de formas de agenciamento e de “universos
simbólicos” específicos. O argumento principal deste trabalho é que o glamour, conjugando
imagens de cosmopolismo e modernidade, se constituiu como um tipo de agência entre esses
indivíduos, permitindo que habitassem o mundo, reivindicando existência dentro da norma
heterossexual. Para tanto, este estudo se baseia em um conjunto diferenciado de fontes, que
incluem documentos, pesquisa bibliográfica, jornais, revistas, fotografias e relatos de
trajetória de vida de indivíduos diretamente envolvidos em tais processos.
Os problemas levantados por esta pesquisa se articulam às transformações daquilo que
Carrara (2005) chamou de “homossexualidade” como “lugar social”. Tal perspectiva se torna
uma contribuição importante aos estudos das sexualidades não normativas, uma vez que
oferece uma percepção não essencializada desse complexo fenômeno como um processo
produzido em múltiplos planos. É nesses termos que o mencionado autor propõe a
necessidade de pensar o “lugar social” e “simbólico” ocupado por indivíduos considerados
como fora da norma heterossexual na sociedade brasileira. Essa reflexão busca reter o caráter
multifacetado das sexualidades não normativas como um processo que envolve diferentes
dimensões do social. Para o autor, essas experiências devem ser definidas como:
Um “lugar” simbólico, aberto a múltiplas incorporações, imagens e personificações.
Um “lugar” que, se fala de estigma, de preconceito e de aprisionamento identitário,
fala também de prazer, de potência, de irreverência, de transgressão, de mobilidade,
de migração, de deriva, de uma continua e árdua transformação de si e dos outros
(CARRARA, 2005, p. 23).

Pensar as transformações dessas experiências como “lugar social” implica reconhecer


os processos de (des)construção, ressignificação, negociação e resistência que produziram a
existência de um grupo de pessoas cujas vidas são marcadas por situações de silenciamento,
marginalidade absoluta e assimilação (MISKOLCI, 2011) e, mais que isso, de todo um
17

universo simbólico construído a partir dessas experiências. Simultaneamente, tal existência


produziu mudanças significativas na própria sociedade brasileira e na forma como são
organizadas suas convenções relacionadas a gênero e sexualidade. Esta tese trata desse duplo
processo, de “transformação de si e dos outros”, como bem definiu Carrara (2005).
Compreender as sexualidades não normativas como “lugar social” se aproxima ainda
daquele processo a que Rubin (2003) chamou de “etnogênese sexual”. O interesse dessa
autora foi justamente compreender o dinâmica de formação do que ela chama de
“comunidades sexuais” ou “populações sexuais” na sociedade norte-americana. Ou seja, para
ela, é instigante entender como determinadas práticas e desejos sexuais considerados
estigmatizados em um dado período de tempo foram se institucionalizando em uma
subcultura, na qual eram percebidos como normais e desejáveis (RUBIN, 2003). Dessa forma,
Rubin oferece uma percepção desses indivíduos não como entidades clínicas ou expressões de
uma psicologia individual, mas antes como um grupo social dotado de histórias, territórios,
estruturas sociais, modos de comunicação, etc.
Dadas tais intenções de Rubin (2003), o interesse pela construção de uma
“etnogênese” das sexualidades não normativas no contexto urbano brasileiro anterior ao
movimento homossexual reflete a necessidade de melhor compreender os processos de
negociação e produção de sentidos que levaram indivíduos fora da norma heterossexual a
atribuir significados a suas trajetórias e a construir um sistema cultural dotado de existência
própria – contra-hegemônico da norma sexual vigente. Tais compromissos se alinham ainda
às preocupações de Marcia Ochoa (2004) acerca das imaginativas estratégias de sobrevivência
que indivíduos considerados fora da norma heterossexual inventam face à sociedade que os
veem como ameaças às suas convenções. A autora chama a atenção para a seguinte estratégia
de agenciamento: o “talento de ser fabulosa”, ou seja, um tipo de agência com a qual esses
indivíduos negociaram existência, a partir da incorporação de imagens e performances
relacionadas ao glamour. Considerando essa dimensão imaginativa, é importante explorar a
relação entre esses sujeitos fora da norma e o mercado de bens culturais, contexto sobre o qual
a ideia de glamour assume importância central na construção de imagens e representações.
Tal investimento vem sendo comum entre pesquisadores norte-americanos (DYER, 2008;
HALPERIN, 2012), mas são ainda tímidos no contexto brasileiro.
O glamour é aqui entendido em sua íntima relação com o mercado de bens culturais e
de entretenimento, tal como aquele formatado pela cultura de massas, espaço assentado nos
sonhos e nas imagens (MORIN, 2007). Nos termos de Morin (2007), cultura de massas é
definida como um fenômeno cujos inícios se encontram no processo de industrialização das
18

sociedades moderno-contemporâneas. Para o autor, esta nova forma de industrialização se


realiza através das imagens e dos sonhos, levando a um duplo movimento, a que chama de
“industrialização do espírito” e “colonização da alma”. Morin refere-se a um dos
desdobramentos mais recentes da sociedade de consumo, a qual não está mais circunscrita a
circulação e consumo de objetos, mas antes a um “consumo psíquico”, cujo objetivo é
penetrar na alma humana através de uma reserva quase infinita de imagens e na projeção de
sonhos, alguns realizáveis somente no plano da imaginação. É neste contexto onde os sonhos
e as imagens são responsáveis pela produção de sujeitos e projetos de vida que emergem
“formas de vida” relacionadas às sexualidades não normativas.
Tomando essa noção como ponto de partida para pensar as estratégias imaginativas de
sobrevivência de indivíduos que estão fora do discurso hegemônico, como sugere Ochoa
(2012), o argumento principal desta tese é que o glamour permitiu aqueles indivíduos fora da
norma heterossexual habitar as normas (MAHMOOD, 2006), inserindo-se em espaços antes
impenetráveis da sociedade. Ele se constituiu como uma “tecnologia da intimidade”,
materializando um “espaço contingente de ser e pertencer” (OCHOA, 2012) entre esses
indivíduos, através do qual foi possível existir.
É possível sugerir que o investimento do mercado de bens culturais sobre esses
sujeitos fora da norma estimulou a produção de novas formas de controle sobre a mesma. Tal
regime discursivo passa de um “controle repressão” para um “controle estimulação”, nos
termos de Foucault (1988), incitando a construção de novas “formas de vida” e transformando
os lugares sociais ocupados por esses indivíduos. Simultaneamente, foi a partir do mercado de
bens culturais que indivíduos fora da norma heterossexual puderam reinventar um espaço de
agência e resistência, gerando solidariedade entre iguais e organizando formas de
sociabilidade em torno de símbolos comuns associados à ideia de glamour, como é o caso das
divas.
Esse “controle estimulação” de que fala Foucault (1998) passa a evocar para as
“bichas”, “bonecas”, “travestis profissionais”, etc. uma visibilidade sem precedentes,
relacionada aos usos das novas “tecnologias do olho” (BRAH, 2006), como a fotografia, os
filmes, as ondas radiofônicas e a televisão. Logo, o “homossexual”, de pervertido sexual
restrito aos tratados produzidos pelos “doutores da pureza” (FRY, 1982), seria convertido em
objeto de exibição pública, uma mercadoria cultural (MORIN, 2007) relacionada ao lucrativo
negócio da “espetacularização do estranho” (LEITE JÚNIOR, 2006). Novas “formas de vida”
foram inventadas nessa indústria, como as “travestis”, provocando fascinação e ansiedade no
mundo ocidental. As “travestis” foram assimiladas a uma “maravilha” ou “prodígio” (LEITE
19

JUNIOR, 2006) do mundo moderno, suscitando simultaneamente atração e rejeição de um


público que se fascinava pela exuberante ambiguidade marcada em seus corpos. A fascinação
por essas “formas de vida” não normativas está intimamente relacionada ao crescimento de
uma “cultura do entretenimento”, item estruturante da cultura de massas moderna, com
admite Leite Júnior (2006). Sugiro que foi a partir da incorporação de valores e sentidos,
sobretudo relacionados à noção de glamour, que pessoas consideradas fora da norma
heterossexual encontram um lugar de agência.
Pensar esse processo sugere ainda reconhecer as suas conexões com outros focos de
discussão. O processo de (des)fazer gêneros e sexualidades não normativas não pode ser
considerado apartado dos efeitos produzidos pela articulação de diferentes eixos de
subordinação e daqueles que instituem sobre as trajetórias, o “campo de possibilidades” e as
escolhas dos indivíduos. Tampouco podemos deixar de considerar o contexto brasileiro no
qual narrativas sobre a modernidade e o processo de construção do “dispositivo da
sexualidade” ganharam sentidos específicos. Os efeitos da articulação desses marcadores vêm
se constituindo em área de interesse entre pesquisadores preocupados com a
contingencialidade das identidades e com a articulação de eixos de diferenciação
(FACCHINI, 2008). Nessa conjuntura, a noção de interseccionalidade1 (CRENSHAW, 1991)
vem sendo acionada para dar conta dessa constelação de experiências (MCCLINTOCK,
2010). Esta tese se situa dentro dessas abordagens, sobretudo das reflexões de Anne
McClintock (2010) e de Avtar Brah (2006).
McClintock (2010), principalmente na obra “Couro Imperial”, chama atenção para a
forma como esses eixos de diferenciação são pensados equivocadamente como experiências
que podem ser isoladas ou peças que se encaixam de forma simples, uma “soma de
opressões”. Para a autora, marcadores como raça, classe, gênero e sexualidade não são
“distintos reinos da experiência”, cuja existência pode ser avaliada de forma isolada. Sua
razão de ser, argumenta a autora, está condicionada às relações históricas que travam entre si,
surgindo apenas em “interdependência dinâmica, cambiante e íntima” (MCCLINTOCK,
2010, p. 104).
Brah (2006) revela preocupação semelhante acerca dessas interconexões, concebendo
a diferença como uma categoria de conhecimento para analisar essas conexões. A autora
propõe refletir sobre a noção de diferença como uma categoria não essencialista, mas antes

1
O desenvolvimento dessas reflexões no Brasil vem sendo beneficiada por um conjunto de autores que tem
produzido desde a década de 1970. No artigo Sobre gerações e trajetórias: uma breve genealogia das pesquisas
em Ciências Sociais sobre (homo)sexualidades no Brasil, é possível acompanhar a trajetória desse debate
articulada a formação da antropologia no Brasil (PUCCINELLI, REIS, RIBEIRO & SOLIVA, 2014).
20

marcada por relações historicamente contingentes e articuladas a um dado contexto. Adotando


como exemplos os usos das categorias “negro” e “feminismo”, ela realça o caráter histórico
dessas práticas discursivas, que não podem ser reduzidas a um significado particular, mas se
ligam a uma pluralidade de sentidos correlacionados ao contexto histórico no qual se inserem.
Brah (2006) destaca o caráter processual das noções de sujeito político e experiência –
alertando para o fato de que as identidades são sempre enunciados contingentes, portanto não
essencialistas.
Seguindo as formulações de Facchini (2008) acerca desses debates, pensar essa
articulação é rentável, como afirma a autora, para uma reflexão a respeito de suas implicações
em sistemas de classificação e convenções sociais e, ainda, na forma como essas convenções
se materializam em corpos e relações sociais. Seguindo essas recomendações é que tomo o
mercado de bens culturais e de entretenimento como um contexto que permite examinar as
transformações das sexualidades não normativas como “lugar social” (CARRARA, 2005),
combinado a um momento de forte crescimento urbano e vinculado a um cenário
internacional mais amplo, em que os veículos de comunicação começam a operar mudanças
na vida social mas, especialmente, passam a visibilizar “modos de vida” antes circunscritos a
espaços silenciosos da sociedade.

Percursos da pesquisa

A escolha de um tema de pesquisa é sempre mediada por negociações delicadas entre


as motivações do pesquisador e o “campo de possibilidades” que se abre ou não em relação à
pesquisa. Minhas escolhas certamente foram mediadas por essa combinação de elementos,
mas, principalmente, pela paixão que descobri existir em mim em relação à análise das formas
de agenciamento dos homens que se relacionaram afetivo-sexualmente com outros homens e
as representações decorrentes dessa forma de sociabilidade. Essa paixão se liga à necessidade
de contribuir com a bibliografia especializada sobre as diversidades sexuais e de gêneros no
Brasil, na qual ainda se encontram poucos estudos (GREEN, 2000; FIGARI, 2007) acerca dos
processos de construção das sexualidades não normativas no período explorado pela pesquisa,
segunda metade do século XX.
Meu interesse pela relação entre sociabilidade, processos simbólicos e a construção de
identidades coletivas não é recente. Já tenho me debruçado sobre ele desde a graduação em
Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense. Durante esse período fui bolsista de
21

pesquisa (Pibic/CNPq) do professor João Bôsco Hora Góis, inserido em um projeto sobre
violência contra “jovens homossexuais” universitários. Apesar de o tema principal da
investigação ser as situações de violência sofridas por esses jovens em suas trajetórias, fiquei
interessado nas estratégias de enfrentamento nesses contextos hostis. Um bloco de questões
dessa pesquisa versava justamente sobre as formas de resistência. Uma dessas estratégias, a
que mais me atraiu, era a adesão a grupos de sociabilidade, sobretudo na universidade,
temática objeto de minha monografia.
Na ocasião, pude perceber que existiam na universidade grupos de “jovens
homossexuais” com graus diferentes de institucionalização, os quais se mobilizavam de
distintas formas. Esses jovens faziam festas, emprestavam dinheiro uns aos outros, iam juntos
aos almoços e jantares do bandejão2 da instituição, faziam atividades de conscientização da
população acadêmica e até promoviam orgias entre eles. Um importante achado da pesquisa
foi a percepção de que muitos jovens assumiram a sua “homossexualidade” depois de terem
entrado para a faculdade, sobretudo em função dos contatos que começaram a travar com
esses grupos.
Ainda com esse conjunto de questões, fiz seleção para o Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia do IFCS-UFRJ. Fui selecionado com um projeto de pesquisa
cujo foco era pesquisar a emergência e dinâmica de grupos gays universitários. Consegui ter
acesso a esses grupos na pesquisa já mencionada. Meu objetivo era trabalhar especificamente
com um destes, o Diversitas, grupo do qual fiz parte. Trata-se de “jovens homossexuais” que
organizam um tipo de militância acadêmica – realizam cine-debates, participam das semanas
de calourada, fazem palestras, encontros, etc. –, com o objetivo de sensibilizar a comunidade
universitária para a temática da diversidade sexual. Esses diferentes grupos formados,
mormente por alunos da graduação, realizam a cada ano um encontro – o Encontro Nacional
Universitário de Diversidade Sexual (ENUDS) – reunindo jovens gays universitários de
diferentes regiões brasileiras.
Já como mestrando dessa instituição, fui acometido por um momento de crises e
incertezas que, de uma forma ou de outra, se abate sobre os jovens pesquisadores começando
a vida acadêmica. Essa difícil decisão em relação aos meus objetivos de trabalho me levou a
trocar o estudo dos “jovens homossexuais” por outro grupo de não tão jovens assim – decidi
pesquisar na Turma OK. Sabia da existência desse grupo por “ouvir falar” mas tinha poucas
informações sobre ele, adquiridas por meio de meu então orientador na graduação. É uma

2
Restaurante universitário localizado no Campus do Gragoatá.
22

associação fundada em 1962, com sede na Lapa, na época da pesquisa. Ela é formada
majoritariamente por homens com “condutas homossexuais”, geralmente com mais de 50
anos de idade, dedicados a profissões variadas. Esses homens possuem uma longa história de
amizades que guardam relações com as mudanças na sociabilidade “bichal” no Rio de
Janeiro, tal como vivenciada nas décadas de 1950 em diante.
Apesar de figurar nos principais trabalhos que se ocuparam da construção das
sexualidades não normativas no Brasil, principalmente nas pesquisas de Green (2000), Figari
(2007) e Costa (2010), a Turma OK é pouco conhecida no meio acadêmico e entre as pessoas
LGBT em geral, mesmo entre aquelas vinculadas à militância organizada. Diante da
oportunidade de estudar um grupo ainda pouco explorado por outros pesquisadores, fiquei
seduzido pela tarefa de trazer à luz a história e a dinâmica dessa associação.
Permaneci oito meses entre os “okeis”. Tornei-me sócio da instituição, participando
ativamente de várias atividades organizadas pelo grupo, tais como shows, concursos e até
mesmo um curso de dublagem oferecido por um de seus membros, um professor de teatro.
Minhas noites de final de semana eram ocupadas por shows de artistas-transformistas, em que
eram revividos estilos musicais consagrados por gerações passadas no palco da Turma OK.
Sempre era tomado, nesses momentos, de um sentimento de nostalgia de um tempo que nem
tinha experimentado, mas lembrado repetidamente por essas pessoas. Nessas ocasiões, a
memória se constituía como um importante instrumento de resistência, que me fazia lembrar
de um passado tortuoso, vivenciado por outros iguais a mim. Reconheço que muitas vezes me
emocionei ouvindo ou vendo personagens que me inspiraram tanto a escrever a dissertação.
Quando pensei em um tema de pesquisa para o doutorado na mesma instituição, tinha
em mente dar continuidade aos achados que fiz na pesquisa na Turma OK, mas não sabia
ainda como. Em uma conversa com o professor João Bôsco Hora Góis, surgiram elementos
para um projeto de pesquisa que combinavam alguns pontos presentes de forma recorrente na
experiência com a Turma OK. Nessa conversa, falávamos de alguns temas que apareceram de
forma muito constante na minha dissertação. Um desses era a forma como esses indivíduos
compartilhavam alguns “símbolos de distinção” que marcaram toda uma geração de
indivíduos e ajudaram a organizar convenções sobre a diversidade sexual e de gênero, entre
eles e a sociedade mais ampla.
Essa discussão me levou a rever com mais cuidado o gosto dos homens com quem
dialoguei pelos shows de artistas-transformistas, um dos principais motivos que os
mobilizavam a se organizar em grupos de amigos. Identifiquei que esse gosto estava
relacionado à idolatria que eles nutriam pelas divas do cinema norte-americano e do cenário
23

musical brasileiro, sobretudo aquele povoado por artistas considerados mais antigos ou
mesmo ultrapassados – como os repertórios melancólicos e dramáticos das cantoras do rádio.
Mulheres como Judy Garland, Barbra Streisand, Liza Minnelli, Elizeth Cardoso, Emilinha
Borba e outras cantoras e atrizes, ainda que estivessem separadas por décadas umas das
outras, eram consideradas por esses homens como símbolos de beleza e de elegância.
Nas conversas, os entrevistados mostraram que essas mulheres pareciam estar ainda
bem vivas em suas memórias, ainda que muitas não fossem suas contemporâneas. Essa
questão me fez retornar à análise de Pollak (1989) sobre as memórias dos franceses da
Normandia em relação à II Guerra Mundial. Esse autor observou que as narrativas dos
moradores dessa região não correspondiam aos eventos históricos transcorridos, uma vez que
suas memórias sobre homens com capacetes pontiagudos durante a II Grande Guerra se
relacionavam antes ao tipo de uniforme usado pelos soldados da I Grande Guerra. Isso
implica dizer que a dimensão afetiva e coletiva da memória supera a própria experiência
vivida, evidenciando a complexidade que caracteriza essa parte da vida social. Durante a
pesquisa, notei que a paixão desses homens pelas grandes divas exigia de mim, como
pesquisador, um comprometimento que ia além da prática da observação e da leitura de textos
acadêmicos. Era necessário realizar uma imersão no gosto desses homens. Fui apresentado
então a um universo que conhecia muito pouco, principalmente em função da falta de
interesse que a minha geração tinha por esses ícones.
Recorri a diferentes estratégias para a constituição desse capital cultural desconhecido
pela minha geração. Vi muitos vídeos no YouTube, procurei frequentar musicais, li sinopses
de espetáculos, privilegiei conhecer a história dessas mulheres, li biografias – sobretudo a de
Carmem Miranda. Carmem Miranda aparecia para esses homens da Turma OK uma
personagem muito presente. Apesar de sua morte prematura na década de 1950, o legado
estético dela era lembrado como significando, simultaneamente, o glamour e o exagero.
Enfim, busquei enriquecer o meu olhar para a compreensão da visão de mundo desses
homens.
Essa imersão despertou-me uma paixão especial por esse universo. A recepção dessas
informações não apenas enriquecia o meu repertório cultural como também implicava
mudanças na minha vida, interligando, em uma experiência singular, não somente uma cultura
diferente, como sugeriu Peirano (1991), mas, ainda, gerações distintas. Musicais, idas a
espetáculos e apresentações antigas assistidas no computador foram se tornando constantes
em meus dias.
24

Outro elemento que me chamou a atenção foi a energia direcionada para a organização
dos concursos de miss na Turma OK. Lá pude presenciar a preparação e o acontecimento do
“Miss OK”, o mais importante concurso de beleza e elegância feito pela associação. A
observação mais atenta para esses eventos me fez refletir sobre os aspectos simbólicos que
estes apresentam. Mais do que disputas entre homens que se vestiam de mulher, eles se
constituíam como marcos históricos de uma geração de “homens homossexuais”. Nesses
concursos estavam sendo construídos significados sobre as sexualidades não normativas, os
quais foram fundamentais para construção de uma identidade – um “sentido de comunidade”
– compartilhada por esses indivíduos.
Esses elementos me ajudaram a compreender que a sociabilidade desses homens era
animada por um conjunto de valores sociais que predominavam em suas narrativas –
elegância, luxo, glamour e beleza eram, certamente, os mais importantes. Percebi que essas
palavras tinham uma força mágica, capaz de organizar espaços, hierarquizar pessoas ou dotá-
las de prestígio. O glamour, sobretudo, aparecia como uma chave que permitia que essas
pessoas habitassem o mundo, através da qual elas eram convertidas divas.
A experiência de pesquisa com a Turma OK me conduziu a uma série de questões
sobre a formação daquilo que Meccia (2011) definiu como “regime de homossexualidade”.
Para este autor, o “regime de homossexualidade” consiste naquele tipo de experiência social –
incluindo aqui práticas, imaginários e representações que associadas às trajetórias individuais
se distinguem da experiência heterossexual – na qual as sexualidades não normativas eram
vivenciadas no registro da invisibilidade, sofrimento e marginalidade, em contraposição ao
“regime de gaycidade” que, para o autor, é a ideia de orgulho que desponta como elemento
fundamental para organizar representações sobre a temática. Outra característica estruturante
do “regime de homossexualidade” é a produção de representações sobre as
“homossexualidades” a partir de marcas de feminilidade. A Turma OK parecia estruturar-se
no “regime de homossexualidade”, valorizando em sua dinâmica de sociabilidade elementos
rejeitados pelos indivíduos de gerações mais recentes, como os shows de dublagem e
concursos de beleza estilo miss3.
Esse gap geracional produzia entre os “okeis”, em relação aos demais frequentadores
de espaços de sociabilidade homossexual no Rio de Janeiro, um conjunto de mágoas e atritos.
Os “okeis”, principalmente aqueles mais antigos no grupo, acusavam os “homens

3
Nos últimos anos, temos assistido a um retorno dos concursos estilo “Miss”. O Miss Brasil Gay realizado em
Juiz de Fora, Minas Gerais, é um exemplo emblemático de que o gosto por esse tipo de evento ainda persiste na
“comunidade gay”.
25

homossexuais” mais jovens de se esquecerem que foram eles que impulsionaram as


transformações sociais que permitiram maior visibilidade para o conjunto das “pessoas
LGBT”, incluindo maior liberdade em manifestar sua identidade sexual em diferentes
espaços. Essa foi, certamente, uma questão importante que surgiu na pesquisa de mestrado, o
que ajuda a compreender essa transição entre o “regime de homossexualidade” e o “regime de
gaycidade” no contexto brasileiro (MECCIA, 2011).
Outro importante ponto de tensão manifestado entre os “okeis” e outros homens que se
relacionam afetivo-sexualmente com homens, sobretudo os mais jovens, foi em relação à
forma como os primeiros valorizavam certas práticas e símbolos que não são tão apreciados
pelos últimos. Em um dado momento, sobretudo a partir da década de 1980, deixaram de ser
importantes elementos que associavam as “homossexualidades” à feminilidade, em um
processo que Pollak (1987) já havia destacado e que seria constitutivo de novas
representações sobre as “homossexualidades” e, principalmente, sobre a “identidade
homossexual”. Essa redefinição da “identidade homossexual” implicaria ainda a forma como
esse grupo organizaria a sua militância (MACRAE, 1982).
Considerando esses apontamentos e buscando aprofundar os resultados da pesquisa de
mestrado, além de contribuir para o adensamento das discussões sobre a construção das
diversidades de gênero e sexualidades no Brasil, proponho nesta tese pensar as
transformações dessas convenções, relacionadas às profundas modificações provocadas pela
formação desse mercado de bens culturais e de entretenimento, que converteram o glamour
em tópico de interesse. A partir desse contexto é possível perceber que a percepção pública
em torno das sexualidades não normativas foi redimensionada, ainda que momentaneamente,
de um lugar de excrescências para outro, de fascínio e desejo.

“Bichas”, “travestis”, “homossexuais”... Trânsitos identitários e mudanças nas


convenções de gênero e sexualidade na sociedade brasileira

Antes de me debruçar sobre o tema desta tese propriamente dito, cabe elucidar alguns
problemas de classificação sobre os quais esta análise se estrutura, facilitando assim a leitura
deste texto. “Homossexuais”, “travestis”, “bissexuais”, “transexuais” e outras identidades
coletivas e expressões de gênero são construções bem recentes no que é possível chamar de
“história das homossexualidades no Brasil”, e mesmo em outras realidades. O impacto da
obra de Foucault (1988) nos estudos de gênero e sexualidade tem mostrado o caráter histórico
26

dessas convenções e classificações acerca da sexualidade. Em a “História da sexualidade: a


vontade de saber”, o autor lança as bases do argumento que marcou de forma decisiva a
produção sobre sexualidade, sobretudo no conjunto das ciências sociais. Para Foucault (1988),
a sexualidade é histórica e a sua existência está condicionada à produção de discursos
disciplinadores de corpos e prazeres.
Contudo, essas ideias não faziam parte somente da produção foucaultiana: elas
apareceram de forma simultânea nos trabalhos de Jeffrey Weeks e Mary McIntosh4. Ao
primeiro autor é atribuída a distinção entre “comportamento homossexual” e “identidade
homossexual”. De acordo com Weeks (2000), o “comportamento homossexual” é um fato
observável em diferentes culturas espalhadas pelo mundo, mas somente nas sociedades
ocidentais se desenvolveu uma “identidade homossexual”, elaborada por símbolos, discursos
e práticas. Já a Mary McIntosh é reputada a noção de “papel homossexual”. Analisando
registros da “homossexualidade” na Inglaterra, a autora percebeu a emergência de um
conjunto de expectativas sociais relacionadas à “homossexualidade” associadas aos
indivíduos que teria se organizado a partir da ocupação de espaços por homens que se
relacionavam afetivo-sexualmente com outros homens, um rótulo. A existência desse rótulo
constrangeria o comportamento a adequar-se às expectativas sociais e sexuais conforme
estereótipos. O argumento da autora sugere que a noção de “papel homossexual” está
diretamente vinculada ao desenvolvimento das sociedades moderno-industriais, as quais
ofereceram condições para a emergência desse rótulo.
Apesar do pouco alcance desses autores, dado o duradouro impacto de Foucault
(1988) no Brasil, as ideias de Mary McIntosh ganharam operacionalidade no influente
trabalho de Peter Fry sobre a construção da “homossexualidade” no país. No artigo “Da
hierarquia a igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil”, Fry (1982) se
ocupa da forma como os brasileiros organizam categorias de conhecimento relacionadas à
“homossexualidade masculina”. A partir das contribuições de McIntosh, o autor sugere que as
taxonomias são como “profecias que se cumprem”. Ele afirma que é postulada,“por exemplo,
a existência de um tipo natural, o homossexual com sua essência e especificidade, e ele logo
passa a existir” (FRY, 1982, p. 89). Para o autor, a construção de categorias de pessoas
relacionadas à “homossexualidade”, apesar da influência do saber médico e do moderno

4
Carrara e Simões (2007) revisitam esses autores como estruturantes na produção antropológica brasileira sobre
gênero e sexualidade, sobretudo no que se relaciona aos impactos de suas ideias nos trabalhos de Peter Fry sobre
“homossexualidade masculina”. De acordo com ambos, a invisibilidade de trabalhos como os de Jeffrey Weeks e
Mary McIntosh se deu em função da massificação da obra de Foucault.
27

movimento homossexual, só pode ser efetivada e validada em função de condições sociais


específicas – no caso por ele estudado, o contexto brasileiro.
Vance (1995), ao falar da contribuição da antropologia aos estudos sobre a
sexualidade, também chama atenção para essa questão. Ao adotar a noção de
“homossexualidade” para explicar a ocorrência de enlaces sexuais entre pessoas do mesmo
sexo em sociedades estudadas pelos antropólogos, esses pesquisadores estariam incorrendo
em um etnocentrismo – tema tão caro aos antropólogos –, posto que não seria correto
transferir para essas sociedades uma categoria tão carregada de sentidos forjados nas nossas
sociedades. Nessa perspectiva, adotar categorias identitárias cuja existência se liga a
processos sociais e momentos históricos bem específicos constitui um ponto de tensão,
apontando para implicações significativas no tempo e no espaço, acarretando riscos de se
estar incorrendo em anacronismo ou etnocentrismo.
O uso de categorias identitárias relacionadas às diversidades de gênero e sexualidades,
assim, encerra problemas de classificação que merecem reflexão por sua estreita relação com
os diferentes processos de mudanças operadas em uma dada sociedade. Quanto a essa
discussão, Mauss e Durkheim (1964) já haviam alertado para o fato de as classificações
explicarem mais sobre as lógicas subjacentes às sociedades que produzem uma dada categoria
classificatória do que sobre uma essência comum compartilhada por aqueles sobre os quais
recai a classificação. Assim, examinar a emergência dessas categorias implica compreender
como as diferentes sociedades constroem expectativas sociais acerca de seus indivíduos cuja
função é atenuar as ansiedades provocadas pela possibilidade da ambiguidade. Foi exatamente
sobre esse ponto que se debruçou o famoso artigo de Fry (1982).
Considerando as influências desses autores, podemos inferir que a noção de
“homossexualidade” é histórica e discursiva, e se relaciona diretamente às mudanças
processadas no conjunto da sociedade brasileira. Se para Foucault (1988) não seria correto
admitir a existência da “homossexualidade” nas sociedades clássicas da antiguidade, como
Roma e Grécia, posto que lá o que ocorria era um “comportamento homossexual” (WEEKS,
2000), não é correto afirmar que os processos examinados por esta tese correspondem à
existência de categorias identitárias contemporâneas como “gay” e “travesti” ou mesmo
“homossexual”, cujas existências não possuíam materialidade, mesmo para os “doutores da
pureza” que se dedicaram a examinar as raízes da “homossexualidade”5 (FRY, 1982).

5
De acordo os trabalhos de autores como Leonídio Ribeiro, não existia uma distinção clara entre expressões de
gênero e identidade sexual. O modelo médico, tal como analisado por Fry (1982), mesclava sexualidade e
28

Outro dado que complexifica ainda mais essas formas de classificação é a


possibilidade de falar delas em “tempos que não são o presente” (PASSAMANI, 205), algo
que esta tese busca explorar. Passamani (2015) fala de “rupturas” e “permanências” em
relação a essas formas de classificação que não atendem as percepções mais atuais sobre o
que se entende por “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Considerando essa difícil
inteligibilidade, todo uso de expressões com ambições de explicar essa diversidade de
experiências é sempre algo contingente e momentâneo (PASSAMANI, 2015).
Dadas essas dificuldades, adoto nesta tese um cardápio extenso de termos que se
relacionam a essa constelação de experiências. Falo de um universo povoado por “bichas”,
“bofes”, “frescos”, “homens em travesti”, “bonecas”, “enxutos”, “travestis profissionais”, etc.
– categorias vinculadas às experiências sociais de indivíduos situadas por constrangimentos
sociais e contextos históricos.
No contexto aqui tratado, décadas de 1950 a 1970, a noção de “bicha” abarcava,
simultaneamente, o que hoje definimos por “homossexuais” e “travestis”. A emergência da
noção de “travesti profissional”, analisada no capítulo II, mostra essa relação de disputa de
sentidos em torno dessas duas dimensões. “Homossexuais” e “travestis” constituíam
processos sociais que estavam em construção e em disputa com dimensões relacionadas a
diferentes experiências que envolviam corpo, gênero, sexualidade, classe social, cor, etc. É
um risco colocar, inclusive, a expressão “homossexualidades” no título desta tese, mas
assumirei este risco com o propósito de mostrar como ela esteve relacionada a mudanças
sociais mais profundas nas convenções relacionadas a gênero e sexualidades. Para falar dessa
multidão de categorias, adoto ainda as expressões “sexualidades não normativas” e
“diversidades de gênero e sexualidade” com a intenção de situar essa diversidade de
classificações identitárias.
Considerando essas preocupações, convencionei a adoção de aspas quando há
referência a categorias nativas relacionadas às diversidades de gênero e sexualidades cujas
existências são, no termo consagrado por Brah (2006), um “campo em contestação”. Tal
estratégia visa a reconhecer o caráter não essencialista dessas categorias, portanto inscritas em
dimensões históricas específicas. Mesmo a noção de “homossexualidade” e o moderno “gay”
serão grafados da mesma forma, já que também se relacionam a tensões e disputas de sentidos
envolvendo a articulação dos campos médico e dos movimentos sociais pela livre expressão
sexual que emergiram na década de 1960. Tal como Brah (2006), sugiro que as categorias

gênero, ao classificar de “invertidos sexuais” todo aquele conjunto de práticas, identidades e representações
associadas hoje com outras sexualidades não normativas e expressões e expressões de gênero.
29

relacionadas à produção da diferença e da identidade se inscrevem em processos e práticas


discursivas circunscritas em um dado terreno histórico, sobre o qual se estabelecem seus
efeitos.

Metodologia

Esta pesquisa pode ser definida como explicativa, posto que busca aprofundar um
dado tema sobre um campo de estudos que vem se expandindo e se consolidando nos últimos
anos no Brasil, as sexualidades não normativas. Possui ainda uma abordagem qualitativa, com
uma preocupação em interpretar os dados de pesquisa (GEERTZ, 2008). Para Goldenberg
(1995; 1997), a pesquisa qualitativa se distingue da quantitativa por conseguir evidenciar
questões que certamente não poderiam ser reveladas pelo uso de estratégias de caráter mais
estatístico. Essa característica abre a possibilidade de constituir como fonte inúmeros registros
que permitem analisar um dado problema de pesquisa.
Compreender a construção e transformação das convenções de gênero e sexualidades
não normativas como “lugar social” no Brasil não é tarefa fácil. Implica debruçar-se sobre
silêncios e registros pouco evidentes que demandam estratégias diversificadas de construção
de dados. Dessa forma, nosso espaço etnográfico é constituído por revistas, jornais,
entrevistas, propagandas, etc. Somada a esse conjunto de fontes, a memória demonstra ser,
neste trabalho, um importante estoque etnográfico. São as lembranças evocadas tanto através
das entrevistas pessoais quanto aquelas encontradas na pesquisa documental que revelam as
evidências simbólicas que possibilitaram escrever esta tese.
Esta parte do trabalho se dedica a abordar as fontes de pesquisa e o trabalho de campo
com os quais foi construída esta tese. Ocupa-se ainda de apresentar de forma detalhada as
estratégias funcionais que viabilizaram a realização dessa pesquisa.
Como afirma França (2012), em sua pesquisa sobre três espaços de sociabilidade
relacionados à “homossexualidade” em São Paulo, definir as transformações concernentes à
“homossexualidade” como “lugar social” a partir de limites históricos precisos é tarefa difícil.
Esses limites são sempre provisórios, admite a autora. Considerando tal questão, esta pesquisa
prefere trabalhar com a noção de inícios para se referir a esses processos provisórios. Dessa
forma, faz sentido identificar um desses inícios no carnaval e no Teatro de Revista, que datam
da virada do século XIX para o XX. Mesmo separados por décadas do período de emergência
da “sociabilidade homossexual” no Brasil, como afirma a literatura dedicada ao tema
30

(GREEN, 2000; FIGARI, 2007), esses eventos ofereceram um material simbólico


imprescindível a esse surgimento.
Da mesma forma, esses pontos de partida tiveram nas décadas de 1960, 1970 e 1980
episódios importantes e que operaram mudanças, sentidas até hoje nesse processo. Isso se
explica em função de um conjunto de acontecimentos que marcaram o processo de construção
das sexualidades não normativas, mas a sociedade brasileira como um todo. Grandes
transformações marcaram esses períodos, tais como: o surgimento dos movimentos
feministas, homossexual e negro, na década de 1960; a emergência das classes médias nos
grandes centros urbanos brasileiros, na década de 1970; a emergência da televisão como
principal veículo de comunicação, na década de 1980; a deflagração de uma ditadura militar;
a eclosão de estéticas e estilos de vida contraculturais, a importância da psicanálise na vida
dos indivíduos, o advento da AIDS e, principalmente, o aparecimento de espaços dedicados à
“sociabilidade homossexual”. Essas décadas serão o contexto principal desta tese.
A percepção acerca desses contextos merece, contudo, uma reflexão. É correto afirmar
que os contextos não são vivenciados da mesma forma por todos os indivíduos que participam
de uma mesma sociedade em um dado período histórico. A ditadura militar, por exemplo, não
foi percebida com a mesma intensidade entre os diferentes setores que compunham a
sociedade brasileira. Para os objetivos perseguidos neste trabalho, é importante dizer que
alguns contextos foram mais importantes do que outros. Assim, é possível dizer que a
conjuntura da ditadura foi bem controversa, oferecendo a possibilidade de um costureiro com
ares afetados “aparecer na televisão”, ainda que tenha sido rapidamente substituído, como foi
o caso de Dener6. Simultaneamente, a presença de “travestis” era censurada na TV e a
existência de espaços de “sociabilidade homossexual” era reprimida, como pode ser percebido
na literatura produzida sobre o período (GREEN, 2000; FIGARI, 2007). Com isso, quero
afirmar que conceberei esses contextos não como totalidades que impactariam de igual
maneira as biografias individuais, mas sim como mais um registro da vida social que só faz
sentido quando articulado a outros elementos, como classe, sexualidade, cor, etc.
De uma forma ou de outra, esse conjunto de transformações marcou as trajetórias e o
“campo de possibilidades” (VELHO, 2003) de uma geração de homens que se relacionavam
sexualmente com outros do mesmo sexo. Em função dessa multiplicidade de contextos,
recorro a um conjunto diferenciado de fontes de pesquisa, que associadas às histórias de vida
oferecerão evidências empíricas a esta análise. O uso das trajetórias, para esse propósito,

6
Dener Pamplona de Abreu foi convidado para ser jurado no Programa Flávio Cavalcanti, um dos programas
mais populares da televisão, na época.
31

conduz a algumas questões. Bourdieu (1998), ao se debruçar sobre o tema, destaca os riscos a
que os pesquisadores estão expostos de se construir trajetórias cujo efeito é a sensação de se
relacionar com relatos de vidas lineares. Como observa o autor:
Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito”
cuja constância não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto
tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da
rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações
(BOURDIEU, 1998, p.189-190).

A “ilusão biográfica” de que fala o autor reduz as trajetórias a narrativas totalizadoras,


desconsiderando as colocações e deslocamentos possíveis que se relacionam às mesmas. Ao
chamar a atenção sobre essas questões, Bourdieu (1998) alerta para a necessidade de ficar
atento para as tensões existentes no fluxo de vida. Ou seja, os trânsitos entre o vivido e o
desejado, peças fundamentais na construção dos projetos que dão contornos à vida dos
indivíduos.
Outra dimensão significativa que se relaciona aos trabalhos que se utilizam das
trajetórias de vida é a questão da memória. Essa discussão está intimamente ligada aos
escritos de Maurice Halbwachs. Para Halbwachs (2006), a memória não deve ser percebida
apenas como um produto das consciências individuais, mas, principalmente, como um
fenômeno coletivo e social (POLLACK, 1992). Ao atribuir uma dimensão social à memória,
Halbwachs a submete às contingências sociais – às flutuações, mudanças e transformações
que organizam a vida social.
A partir das ideias do citado autor, Pollack (1989) irá chamar a atenção para a forma
como a memória pode ser um componente importante para a coesão e a delimitação de
fronteiras entre diferentes grupos sociais. Esse processo só pode se estabelecer a partir de um
trabalho de “enquadramento” através do qual determinados elementos da história são
selecionados e legitimados para poder representar a história de um dado grupo social. Essas
ideias permitem perceber a memória como um efeito de seleção operada por hierarquias de
prestígio. A memória não pode ser entendida como um processo biológico, mas social e
situacional. É organizado por escolhas conscientes e inconscientes, respeitando uma ordem
social.
À luz dessas ideias, este trabalho não pretende entender essas trajetórias como
totalidades lineares, mas em suas relações com contextos, agentes e, principalmente, com as
relações de poder a que estão submetidas. Para McClintock (2010):
A produção da história oral é uma tecnologia de poder sob contestação e, enquanto
tal, não pode ser isolada do contexto de poder em que surge. A história oral envolve
32

a reprodução tecnológica das memórias das pessoas; a vida instável do inconsciente;


as deformações; evasões e repressões da memória, do desejo, da projeção, trauma,
inveja, raiva, prazer (MCCLINTOCK, 2010, p. 450).

A autora faz pensar sobre o lado obscuro da memória, organizado por sentimentos
confusos, instáveis e até mesmo antissociais. Percebendo essas trajetórias como processos em
fluxos organizados em função de relações de poder, alio essas perspectivas à minha própria
motivação como pesquisador gay: a vontade de lembrar desse passado apagado. Esse “sopro
de vida” que é a memória dos subalternos, como destaca McClintock (2010), se constitui
como um instrumento contra o esquecimento motivado por uma sociedade que legitima uma
história oficial em que nós, gays, somos apagados dos registros. Este trabalho se constitui
então como uma tentativa de lembrar a história desses indivíduos marginalizados por suas
práticas sexuais, que participaram desse processo histórico também como protagonistas de
grandes transformações sociais.
Assim, esta pesquisa faz uso de diferentes fontes de dados: documentais, orais e
fotográficos. A investigação fotográfica foi conduzida a partir do acesso ao acervo
disponibilizado pelos informantes da pesquisa. Sempre que entrava em contato com algum
interlocutor, já pelo telefone procurava saber se o mesmo tinha revistas, jornais ou fotografias
pessoais que pudessem ajudar na construção da tese. Com a autorização dessas pessoas, eu
reproduzia as fotografias com o uso do celular. Assim foi feito com as filhas de Clóvis
Bornay, com o arquivo pessoal de Claudia Celeste e outros. Ter acesso às imagens com a
assistência de seu portador ofereceu outros ganhos. Vendo as fotografias com o meu
interlocutor, era possível relembrar algum dado esquecido durante a entrevista, ou mesmo ter
acesso a alguma fofoca quase involuntariamente revelada, em função do calor da lembrança.
Foi valioso ter acesso a esses registros de imagem, posto que ofereceram um “efeito de
passado”, ou seja, tiveram a capacidade de reconstruir um dado período da história a partir de
vínculo íntimo entre imagem e lembrança.
Outro recurso adotado na coleta de fotografias foi a pesquisa no acervo mantido pelo
Instituto Moreira Sales, o qual pode ser visualizado online. Neste acervo estão disponíveis
fotografias de Augusto Malta, Marcel Gautherot e Thomas Farkas, usadas como evidências
empíricas da visibilidade da transgressão de gênero no carnaval carioca.
Outra fonte fundamental foi o material jornalístico disponível na Biblioteca Nacional e
as leituras de publicações que circularam nos espaços de sociabilidade voltadas para as
“bichas”, como os jornais O Snob e Lampião da Esquina. Esses jornais fizeram, ao longo de
sua existência, algumas matérias importantes, sobretudo com as “travestis” que saíram do
33

Brasil para trabalhar na Europa, as quais se constituem como um importante registro para a
construção dessa tese.
A escolha do material jornalístico – revistas em geral – foi também mediada pela
agência dos meus informantes. Na Biblioteca Nacional, pesquisei as edições antigas da revista
Fatos & Fotos, Manchete, Contigo e O Pasquim. A procura por esses veículos não foi feita ao
acaso: esteve estreitamente ligada ao contexto das entrevistas. Alguns, como Marquesa,
possuíam de forma muito viva em sua memória a sua presença em determinados veículos. Ela
chegou mesmo a lembrar dos títulos das manchetes que estampou. Com esta informação, eu ia
à biblioteca e procurava no acervo a reportagem. No caso de Divina Valéria, esta se recordava
do ano de seu retorno ao Rio de Janeiro. Sabendo o ano preciso, vasculhei o acervo dessas
revistas à procura de informações desse retorno. Com Rogéria e Eloína fiz o mesmo. Clóvis
Bornay, Dener e Roberta Close possuíam mais registros de sua vida em veículos diferentes,
inclusive entrevistas, facilitando o trabalho de pesquisa. O mesmo procedimento foi seguido
para a pesquisa nos jornais.
Sobre a busca em O Globo, Folha de S. Paulo e Última Hora, o acervo dos dois
primeiros jornais está digitalizado em sites mantidos pelos próprios veículos de comunicação,
já o Última Hora tem o acervo digitalizado pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo. A
disposição desse recurso facilitou o trabalho de coleta de dados. Assinei o jornal O Globo,
sendo possível fazer as pesquisas no meu computador pessoal, as quais são facilitadas em
razão dos mecanismos de buscas dispostos eletronicamente no site dedicado a esse propósito e
mantido pelo jornal. Os buscadores podem, inclusive, ordenar a pesquisa por palavras-chave.
Organizei-me a partir desse recurso, adotando expressões como “travesti”, “bicha”, “viado”,
“invertidos sexuais” e os nomes dos meus interlocutores. O mesmo mecanismo também é
mantido pela equipe do veículo Folha de S. Paulo, que vasculhei nos computadores da
Biblioteca Nacional, onde pode ser usado gratuitamente. O site do Arquivo Público do Estado
de São Paulo também oferece a possibilidade de busca, mas com menos recursos que as
publicações anteriormente mencionadas.
A pesquisa documental só foi bem-sucedida pois foi conduzida a partir das entrevistas
que fiz. Foram realizadas entrevistas com indivíduos de uma dada geração que, como
“guardiões da memória”, no sentido atribuído por Lins de Barros (1989), foram agentes nas
transformações sociais que esta tese busca investigar. Essas pessoas foram escolhidas para a
pesquisa por fazerem parte de uma geração que não somente experimentou as mudanças nas
convenções relacionadas às sexualidades não normativas como “lugar social” como foi agente
34

ativa nesses processos. Hoje, muitas delas se identificam como “travestis”, mas nem sempre
foi dessa forma.
A trajetória desses indivíduos registra o fluxo das mudanças nas convenções de gênero
e sexualidade na sociedade brasileira. Pode-se arriscar afirmar que muitas delas possuem uma
“trajetória Forrest Gump”, para mencionar um filme famoso na década de 1990, cujo
personagem, Forrest Gump, sempre estava relacionado de alguma forma com as grandes
transformações sociais que ocorriam na sociedade norte-americana na segunda metade do
século XX, tais como a Guerra do Vietnã, a AIDS e a emergência da contracultura. Outro
traço importante das histórias desse protagonista eram as personalidades influentes que
conhecia ao longo de sua trajetória, como os presidentes norte-americanos John Kennedy e
Lyndon Johnson. Assim como Forrest Gump, parece que minhas interlocutoras estavam no
momento certo, modificando o curso da história em função de uma agência ativa, conhecendo
pessoas influentes, percorrendo o mundo em um momento de importantes mudanças globais.
Algumas dessas trajetórias foram construídas a partir de outras possibilidades, como
livros biográficos, revistas e entrevistas dadas a meios de comunicação, sobretudo coletadas
no site YouTube. Os nomes de todos os interlocutores foram mantidos por se tratar de
indivíduos de reputação pública. Segue uma pequena biografia desses interlocutores e sua
relevância para o estudo:
1) Rogéria – nascida em Cantagalo, município do Rio de Janeiro, em 1943, como
Astolfo Barroso Pinto, nome que ela faz questão de lembrar em inúmeras
entrevistas a veículos de comunicação, Rogéria iniciou a sua carreira como
maquiadora da extinta TV Rio, e essa experiência permitiu que conhecesse atrizes
como Fernanda Montenegro e Bibi Ferreira. Seu nome veio de um concurso de
fantasias de carnaval do qual participara. Ficou famosa, assim como outras
travestis, com o espetáculo “Les Girls”. Fez sucesso na Europa, sobretudo no
Carrossel de Paris, onde foi considerada uma grande vedete. Regressou ao Brasil
em 1973, já com o status de uma diva internacional. Rogéria participou de várias
produções – cinema e televisão –, sendo uma das travestis mais conhecidas no
Brasil;

2) Divina Valéria – nascida no subúrbio do Rio de Janeiro, provavelmente em 1942,


Valéria passou parte de sua vida entre países da Europa e o Brasil. Aos 14 anos, já
frequentava os auditórios das rádios, travando contato com as famosas cantoras do
rádio. Sua inserção no backstage artístico da Rádio Nacional lhe proporcionou um
35

convite para o espetáculo “Les Girls”, por meio do qual viajou para o Uruguai,
para apresentar-se. Valéria se fixou nesse país em função de um romance que teve
com um rapaz. Com o fim do relacionamento, ela retornou ao Rio. Na década de
1970, ela voltou ao Uruguai com um show chamado “Divina Valéria”, nome que
adotou definitivamente;

3) Jane Di Castro – nascida no bairro de Botafogo, em 1948, Jane foi criada em


Cascadura, ambos bairros do Rio de Janeiro. Sua estreia como artista foi no Teatro
Dulcina, na Cinelândia, também com o espetáculo “Les Girls”. Foi levada a Paris
por Eloína, onde atuou em cabarés. Circulou ainda em países como Alemanha e
Espanha. Também participou do espetáculo “Gays Girls”, na Galeria Alaska,
junto com Eloína. Além de artista é cabeleireira: trabalhou durante muito tempo
em um salão no bairro de Ipanema, mas hoje possui o seu próprio;

4) Claudia Celeste – nascida em Vila Isabel, tradicional bairro do Rio de Janeiro, em


1952, Cláudia iniciou a sua vida artística em um espetáculo de Revista de Gugu
Olimecha, no Teatro Rival. Ficou famosa por atuar em muitos filmes e novelas,
como Espelho mágico (1977), da Rede Globo, e Olho por olho (1988), na Rede
Manchete. A sua atuação na novela Espelho mágico despertou grande atenção da
imprensa, uma vez que ela teria driblado a censura da ditadura, aparecendo em
rede nacional;

5) Anuar Farah – antigo presidente da Turma OK. Nascido em Campos dos


Goytacazes, em 1940, Anuar veio para o Rio de Janeiro em 1960. Logo se
familiarizaria com a capital, encontrando aqui outros iguais que o ajudaram a
vivenciar a sua sexualidade. Foi o responsável pela criação e circulação de várias
publicações voltadas para os espaços de sociabilidade “bichal”;

6) Marquesa – nascido no Rio de Janeiro, em 1944, pertenceu a uma família de


classe média-alta de origem francesa. Sua família tinha expectativas que se
formasse em diplomacia, tendo-lhe oferecido uma educação esmerada. Marquesa
iniciou a sua carreira no espetáculo International Set, em 1964, no Stop, na Galeria
Alaska, no Rio de Janeiro. Participou também do elenco de Les Girls, em 1966,
junto com Rogéria e Valéria.
36

Essas entrevistas me ajudaram a resgatar aspectos da vida desses indivíduos. Devo


reconhecer que a tarefa de selecionar informantes para esta pesquisa foi facilitada em função
do trabalho de campo realizado no mestrado. Na ocasião, pude estabelecer relações mais
próximas com indivíduos que conheciam de longa data essas pessoas. Algumas delas, como
Marquesa e Rogéria, são próximas da Turma OK ou têm amigos íntimos que fazem parte do
seu quadro de sócios. Marquesa, por exemplo, frequentou a associação até a data de sua
morte, tendo comemorado lá o seu último aniversário, em 2015.

Entre fragmentos, apagamentos e amizades

Quando comecei a coletar dados para a produção desta tese, vários desafios me foram
colocados, sobretudo associados a essa atividade. A primeira questão que se constituiu como
desafio foi como reunir dados tão dispersos sobre as sexualidades não normativas, dada a
ausência de iniciativas de resgatar e preservar essa memória. Uma das primeiras formas de
reviver esse passado foi solucionada quando fui ao show “Divinas Divas”, um projeto
organizado pela atriz e produtora Leandra Leal, que visa a apresentar às novas gerações o
sucesso e a irreverência dos “show de travestis” das décadas de 1960 e 1970. Fiquei fascinado
de imediato com a apoteótica apresentação. Para mim, que queria entender o lugar do
glamour na trajetória de vida dessas pessoas, o espetáculo era uma vitrine que me conduzia à
memória de um mundo faustoso, glamouroso, de vestidos lindos, maquiagem e performances.
Fiquei extasiado e queria ter acesso a essas artistas, fundamentais para a construção desta tese.
Logo, o êxtase se converteu em perplexidade: na literatura sobre diversidades de gênero e
sexualidade no Brasil, apenas referências básicas faziam menção aos seus nomes; arquivos
pessoais estavam comprometidos em razão de sucessivas mudanças de endereços e outros
motivos; a produção periódica, tais como jornais e revistas, encontra-se dispersa dada a
ausência de iniciativas, tanto por parte de acadêmicos quanto de militantes do movimento
organizado de reunir essa memória para as gerações futuras. Com esses desafios, comecei a
sondar as “Divinas Divas” através do Facebook, dos trechos de reportagens em revistas que
encontrava em suas páginas pessoais, etc. No caso do costureiro Dener, cuja trajetória eu
também utilizo nesta tese, as biografias se constituíram em valiosa fonte de informações. O
encontro com as Divas se fazia necessário e importante para compor este contexto ainda
encoberto do passado da diversidade sexual e de gênero.
37

Meu primeiro contato com Divina Valéria foi pelo Facebook. Havia visto uma
entrevista dela em um veículo de comunicação publicado no YouTube. Essa entrevista me
deixou com vontade de conhecer mais sobre alguns aspectos de sua vida que não foram
contemplados. Encontrei seu perfil e lhe mandei uma mensagem. Fui respondido algumas
horas depois, de forma bem educada. Ela dizia que contribuiria comigo. No dia seguinte a
essa conversa virtual haveria um show na Sala Baden Powell, em Copacabana, o “Divinas
Divas”, espetáculo que agrega várias das travestis que foram famosas nas décadas de 1960 e
1970. Valéria disse que estava muito ocupada com esse show, mas que voltaria ao Rio no
final do mês de setembro de 2014 para um show beneficente que seria realizado no Teatro
João Caetano, Praça Tiradentes, Centro do Rio. Entrei novamente em contato com ela às
vésperas deste show e ela me disse para encontrá-la no teatro quando acabasse o espetáculo.
Não era uma novidade para mim ir aos shows dessas “travestis” mais velhas. Já havia
assistido ao “Divinas Divas” mais de uma vez, como um laboratório para esta tese. Entendo
que observar a performance dessas “travestis” no palco tem a possibilidade de me revelar um
pouco mais sobre esse período em que elas estiveram no auge. No dia combinado, eu estava lá
mais uma vez para apreciar o espetáculo, mas agora com o objetivo de estabelecer um contato
com Divina Valéria. Tratava-se de um show cuja renda seria revertida para o Retiro dos
Artistas, contando com a presença dessas artistas, mas ainda do Dzi Croquettes em sua nova
formação.
Ao fim do evento, Valéria voltou para o camarim e eu fiquei um pouco desesperado.
Acho que a sua trajetória é de valor significativo para entender os processos que analiso na
tese, e não queria mais contar com outra agenda sua no Rio para conseguir um depoimento.
Subi então no palco e caminhei, enquanto os outros artistas se despediam da plateia, em
direção ao camarim. Chegando lá, encontrei Divina Valéria se preparando para sair. Ela me
recebeu de forma muito educada, conversamos brevemente e agendamos um café em
Copacabana, onde ela estava hospedada no apartamento de Jane Di Castro.
Reproduzo o relato do encontro com Divina Valéria porque ele ilustra de forma bem
acabada as dificuldades – que não acreditava encontrar – para entrevistar essas pessoas.
Foram várias as tentativas de contato frustradas em função de alguma agenda artística ou
algum projeto em vias de concretização. Se meus preconceitos pessoais admitiam a ideia de
que essas pessoas eram “artistas aposentadas”, ociosas e de fácil acesso, talvez este tenha sido
o maior equívoco cometido por mim em relação às minhas interlocutoras. Outro dado que me
chamou a atenção a partir da incursão no camarim de Divina Valéria foi a performance dessas
artistas para além do palco.
38

Marquesa, Divina Valéria, Camille K e Rogéria parecem não distinguir entre o que são
no palco e o que são na sua vida cotidiana. Em diferentes momentos da entrevista, Divina
Valéria mexia em seus cabelos em uma performance que se assemelhava a uma cena de
cinema antigo. Fiquei deslumbrado com essa forma de se apresentar, a qual evocava,
simultaneamente, exagero e suavidade. Talvez fossem essas dimensões importantes neste
trabalho. O exagero marca de forma importante a trajetória dessas pessoas ou, poderia
arriscar, é uma característica constitutiva de suas jornadas.
A dificuldade de acesso, contudo, me abriu outras possibilidades. Foi a partir dela que
busquei outros caminhos para construir este trabalho. Um destes foi colher entrevistas
concedidas a veículos de comunicação como jornais, revistas e televisão. No caso de Divina
Valéria, as matérias publicadas no O Globo foram importantes para compreender sua
trajetória. Foi muito produtiva essa decisão, posto que se tornou possível perceber mudanças
nas formas como essas artistas construíam a sua percepção sobre determinados temas em
diferentes entrevistas, a partir dos seus discursos. Rogéria, que possui sua imagem mais
vinculada aos espaços midiáticos, é um bom exemplo dessas mudanças.
Invisibilidade, apagamento, desaparecimento de fotografias, espera de respostas em
vão no chat do Facebook, o inviolável acesso da privacidade dos telefones celulares pelos
amigos próximos, os quais não me eram confiados com facilidade – foram muitos os
percalços para conseguir informações sobre as trajetórias que são construídas nesta tese.
Mesmo me confrontando com esse conjunto de histórias de vida fragmentadas e, às vezes,
apagadas ao longo da pesquisa, não tinha entendido ainda o tamanho do problema até receber
a notícia da morte de Marquesa, minha mais animada e receptiva interlocutora, momento este
que passo a contar na tentativa de lançar luz sobre a questão da falta de memória acerca dos
processos de mudanças relacionados às sexualidades e construções de gênero não normativas
no Brasil.
Havia visto Marquesa em algumas situações quando ainda estava fazendo trabalho de
campo entre os frequentadores da Turma OK. Nessas ocasiões, não conversei com ela: sua
presença era por demais intermitente na associação, não me despertando o interesse para um
contato mais prolongado. Quando comecei a ir às apresentações do “Divinas Divas”, passei a
prestar atenção com mais cuidado naquela figura tão conhecida entre os “okeis”. Meu
encontro com Marquesa foi mediado por Jorge Bharoum, um sócio da Turma OK com quem
fiz amizade. Bharoum é um vínculo com o meu antigo campo de pesquisa, por intermédio do
qual me mantenho informado sobre o que ocorre por lá, mesmo não frequentando
assiduamente as suas atividades. Nossa relação tornou-se tão estreita que ele começou a me
39

apresentar para várias pessoas como seu sobrinho. Foi assim que ele mediou meu contato com
Marquesa.
Foram várias as tentativas de falar com ela pelo celular a mim confiado por Bharoum.
Em várias ocasiões parecia estar desligado. Até que um dia consegui. Coincidentemente, no
fim de semana da semana daquele primeiro contato, haveria, na Turma OK, uma
comemoração de aniversário daquela conhecida por Elaine Parker, personagem popular da
Turma OK. Marquesa disse que iria com certeza prestigiar a amiga, inclusive apresentando
um número musical. Falou ainda que se eu assim quisesse, poderia, horas antes do show,
conversar com ela nas dependências da Turma OK. No dia confirmado, fui ao encontro de
Marquesa. Há muito tempo não ia à Turma OK, mas lá chegando entendi o porquê da
longevidade daquele grupo. Fui recebido como se nunca estivesse tanto tempo fora, alguns
membros do grupo me abraçaram, beijaram, perguntaram da saúde, etc. Fiquei feliz de estar
ali, e minhas lembranças dos meses em que estive com eles foram revigoradas. Depois de
matar as saudades, me dirigi ao camarim – área proibida para os desconhecidos. Lá, sentado
próximo àqueles homens se maquiando, estava Marquesa, sem seus vestidos faustosos e
maquiagem vibrante. Perguntei se não iria fazer uma apresentação, ao que me respondeu
negativamente alegando problemas de saúde.
Descemos as escadas, Marquesa caminhava com muita dificuldade em função de uma
lesão no pé esquerdo. Logo nos sentamos no hall do espaço, composto de uma área ampla e
por sofás confortáveis. Conversamos longamente sobre a sua vida, fofocas, percalços, ciladas,
etc. Quando demos conta, estava para começar o show. Marquesa se levantou e disse que
conversaríamos em outra oportunidade. Nas semanas seguintes, tentei várias vezes uma
agenda com Marquesa. Ela, sempre solícita ao telefone, dizia não estar propensa a uma
entrevista, pois só poderia falar da sua vida com bastante disposição. Minhas tentativas
finalizaram quando recebi, no dia 26 de maio de 2015, a notícia do seu falecimento, ocorrido
no dia anterior. Fiquei profundamente abalado com a notícia, em razão da simpatia que senti
em nossas poucas oportunidades de contato. Achei oportuno, mesmo não a conhecendo de
longa data, ir ao seu sepultamento.
Pelo Facebook, Susy Parker, que havia acompanhado Marquesa nesses últimos dias de
sua vida, notificou amigos e interessados sobre o funeral. Não haveria muito tempo de
velório, somente meia hora, logo depois seguindo-se o enterro. Rumei então para o local
indicado por Susy, o Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, região central do Rio de
Janeiro. Lá encontrei muitos rostos conhecidos da Turma OK e pessoas que eu não conhecia.
Das “Divinas Divas” estavam: Divina Valéria, Rogéria, Fujika de Holliday e a produtora e
40

atriz Leandra Leal. No funeral de Marquesa ocorreram eventos que lançaram luz sobre a
minha dificuldade de reunir esses fragmentos de vida, os quais, sugiro, possuem esse caráter
disperso dado os processos de apagamento que sofrem, mesmo dentro daquilo que
poderíamos chamar de comunidade LGBT.
Logo que cheguei à capela me deparei com o nome “João Roberto” na tabuleta que
identificava o espaço do ritual. Só acertei o local correto pelas pessoas conhecidas que lá já
estavam. Como parte de um catolicismo compulsório diante da morte, uma pequena
celebração oferecida pela capela ocupou a atenção dos presentes. Imediatamente, o
responsável pelo ritual, um ministro da Igreja Católica, iniciou a sua sequência de atos
performáticos frente à morte. Apesar de bem aceito pelos presentes, o ritual foi
desestabilizado em dois momentos de sua regularidade cristã. No primeiro, quando um
membro da Turma OK chamou a atenção para o fato do falecido não ser reconhecido pelo seu
nome de registro, mas sim por Marquesa. No segundo, quando o ministro solicitou alguém da
família biológica, recebendo em coro a resposta de que todos ali eram amigos do falecido,
portanto sua família. Quando o ministro saiu, Rogéria, convocando as amigas da mesma
geração, juntas se colocaram em torno do caixão entoando em coro a música que Marquesa
cantava no espetáculo “Les Girls”. O canto desestabilizou aquele momento rígido anterior,
evocando um outro pertencimento, a reunião de amigos.
Entendi, neste momento, o motivo pelo qual a amizade se constituía como um item
central nas pessoas dessa geração, muitas das quais apagadas das suas “famílias de origem”.
A “família de escolha”, em expressão de Weston (2003), foi a responsável por ressignificar
essa lealdade familiar, que se manifestou de forma tão intensa no velório de Marquesa.
Aquela reunião que cantou em uníssono as realizações da personagem Marquesa pôde me
revelar a resistência com que essas trajetórias lutaram por significado, em meio a uma
sociedade que as apagavam de sua memória oficial.
Mas não foi somente a presença do ministro da igreja e as reações que suscitou que me
fez refletir sobre essas questões. A ausência de qualquer liderança da militância LGBT
carioca, mesmo com a notícia do funeral tendo sido reproduzida inclusive na coluna de um
famoso colunista carioca, Ancelmo Góis, me tocou profundamente. Os silêncios em torno
dessa presença – aquelas “Divinas Divas” outrora tão glamourosas – é um dado concreto com
que tive de me familiarizar como pesquisador. A falta de interesse por essa geração de
pessoas marca uma preocupante relação com a memória desses “desbravadores”, que se não
for contada, pode estar fadada ao desaparecimento.
41

Organização dos capítulos

Esta tese está dividida em quatro capítulos. No primeiro capítulo busco examinar a
importância de diferentes contextos: o carnaval e seus concursos de fantasia, o Teatro de
Revista, a radiofonia e os concursos de miss para a produção de uma percepção pública sobre
as convenções de gênero e sexualidades não normativas no Brasil. A fotografia e os filmes de
viagem, novas tecnologias que começam a construir representações sobre o país, estão
associados a esse processo. Acredito que esses contextos ofereceram condições para a
produção de sensibilidades, performances e formas de sociabilidade relacionadas às
transformações das sexualidades não normativas como “lugar social”. Pretendo compreender
como os dias de folia e a sua contiguidade com o “mundo das vedetes” foram imprescindíveis
para a construção de categorias de pessoas que desafiavam o binarismo sexual e
experimentavam dentro desses espaços uma aceitação parcial ou mesmo plena. Nesse período,
pode-se perceber uma intensa associação entre a recém-inventada “homossexualidade” e a
noção médica de “inversão sexual”. O “fazer travesti”7 como um tipo específico de prática
emerge desses contextos lúdicos, nos quais fazer artístico-profissional e vida cotidiana se
combinam – evidenciando novas possibilidades de existência. Dessa forma, procuro
compreender como a prática de “fazer travesti”, associada ao surgimento do mundo do
entretenimento noturno, foi um momento importante para a construção de formas de
agenciamento referidas às sexualidades não normativas associada a um processo de mudanças
sociais e urbanas mais amplas pelo qual passava a sociedade brasileira.
No segundo capítulo abordo duas dinâmicas. A primeira é o processo de construção da
noção de “travesti profissional”, a qual marca o surgimento de uma reflexividade sobre a
prática de “fazer travesti”, a partir do crescimento da visibilidade e midiatização a que esses
indivíduos são expostos. Analiso os “shows de travesti” como importantes mercadorias
culturais no Brasil e internacionalmente. A segunda é outro dado focalizado, a circulação
internacional dessas “travestis profissionais” – a viagem à Europa – e as implicações desses
deslocamentos na forma como esses indivíduos negociavam sua existência, produzindo
sentidos e convenções sobre gênero e sexualidades não normativas.

7
A expressão “travesti” será grafada entre aspas para evidenciar o uso contestado que essa categoria encerra. Os
problemas de classificação que este trabalho suscita foram discutidos nesta introdução. Vale lembrar da história
dessas categorias e sua não existência em diferentes épocas.
42

No terceiro capítulo, analiso algumas tensões e disputas relacionadas à construção de


representações sobre as convenções de gênero e sexualidades não normativas em um contexto
de florescimento dos programas de auditório no Brasil, item ilustrativo da moderna “cultura
de espetáculo”, instituída pela nova “tecnologia do olho”, a televisão. Analiso como a
trajetória do costureiro Dener e a sua aproximação das elites promoveu a sua entrada no
cotidiano dos brasileiros através de suas aparições em um dado programa de auditório da
televisão brasileira. Dener, ainda que não se identificasse como “bicha”, com seu estilo
extravagante de ser, consolidou significados sobre as sexualidades não normativas associadas
ao “estigma da efeminação”, amplamente reconhecidas e, para o horror da ditadura,
apreciadas pela sociedade brasileira do período. Simultaneamente, assistimos a uma
enxurrada de personagens vistos como “efeminados” habitando a nova tecnologia de
comunicação – a televisão. Busco analisar a relação instável desses tipos com essa nova
tecnologia, a qual, em um contexto de ditadura, contribuía para a produção de uma percepção
pública da diversidade de gênero e sexualidade que era, ao mesmo tempo, exótica, portanto
estimulada pelo mercado de entretenimento, e proibida, em função dos supostos efeitos
tóxicos à moral e aos bons costumes. Por fim, analiso como a construção de significados
sobre dois eventos que marcaram definitivamente o discurso sobre as sexualidades não
normativas no Brasil. Esses eventos foram o fenômeno Roberta Close e a AIDS. A partir
desses dois processos é possível perceber que ao mesmo tempo em que as sexualidades não
normativas entraram na “ordem do discurso”, sentenciou os indivíduos fora da norma
heterossexual, incluindo as “travestis profissionais”, a um lugar de silêncio.
No quarto capítulo, me ocupo das noções de diva e camp. Sugiro que essas categorias
estão relacionadas a um contexto de silenciamento no qual a possibilidade de existir fora da
norma heterossexual era mediada pela clandestinidade. Argumento que as divas – atrizes,
cantoras do rádio e mulheres famosas – ofereciam um “espírito de solidariedade” entre
homens com experiências de vida atomizadas. Tal como um totem, as divas constituíam um
símbolo que agregava homens que as idolatravam, mas que, simultaneamente, buscavam se
reconhecer em outros semelhantes. Busco ainda reconstruir a história dessa categoria, a qual
teria relação com a noção de “mulher fatal”, presente constante na literatura e materializada
nas cocottes e vedetes, sobre as quais recai a reputação de perigosas. A diva, por fim,
contribuiu para a produção de performances, práticas e signos que consolidaram uma relação
das sexualidades não normativas com a noção de camp. Ambas, diva e camp, possuem uma
razão de ser comum – provocar existências – em um processo que este capítulo busca
investigar.
43

Nas considerações finais retomo a discussão sobre a contribuição geral da tese para a
compreensão do problema aludido no início desta introdução. Retorno às “travestis
profissionais” e sua atual relação com a sociedade, ressaltando os impactos que os processos
analisados neste trabalho provocaram nas trajetórias de vida desses indivíduos.
44

CAPÍTULO I

O glamour e a construção de uma “sociedade bichal”8: a produção de significados sobre


as sexualidades não normativas no Brasil e o mercado de bens culturais

Yes, nós temos bananas


Bananas pra dar e vender
Banana menina tem vitamina
Banana engorda e faz crescer

Vai para a França o café, pois é


Para o Japão o algodão, pois não
Pro mundo inteiro, homem ou mulher
Bananas para quem quiser

Mate para o Paraguai, não vai


Ouro do bolso da gente não sai
Somos da crise, se ela vier
Bananas para quem quiser

Braguinha & Alberto Ribeiro, 1937

Neste capítulo examino a importância de quatro contextos para a produção de uma


percepção pública sobre as sexualidades não normativas no Brasil: o carnaval, o Teatro de
Revista, os concursos de miss e a Radiofonia. Acredito que estes ofereceram condições para a
construção de existências, performances e pautas de sociabilidade relacionadas à emergência
de uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008) na qual as “bichas” se constituíam
como sujeitos centrais. O carnaval como um espetáculo de massas, já nos seus inícios,
chamou a atenção de observadores nacionais e internacionais para um de seus mais
destacados fenômenos: os “homens em travesti”9. Tal preocupação foi materializada na
grande variedade de fotografias e filmes de viagem que revelam a variedade desses tipos
humanos carnavalescos brincando nas ruas da então Capital Federal. Essa presença é tão
característica da folia que as autoridades admitiam nos veículos de comunicação da época não
conseguir reprimi-la. Com a modernização da capital no início do século XX e a instituição da

8
A noção de “sociedade bichal” está presente nas publicações do jornal O Snob para se referir a este mundo
onde as “bichas” são protagonistas.
9
Carvalho (2011), em sua dissertação de mestrado, chama a atenção para o uso de expressões como “ter um
travesti” e “estar em travesti” para se referir à prática de se vestir de outro sexo no contexto dos bailes de
“travestis” realizados na Praça Tiradentes.
45

noite como elemento básico do cosmopolitismo moderno, os salões e cafés dançantes


constituíram espaços de sociabilidade da nova elite (SEVCENKO, 1998). Observa-se uma
valorização crescente das “experiências sensoriais novas”, diria Duarte (1999), cujo foco de
interesse era a “exacerbação da sensibilidade, do refinamento ou intensificação do prazer”
(DUARTE, 1999, p. 27). É nesses espaços que proliferaram toda a sorte de indivíduos,
incluindo os já conhecidos “homens em travesti”. Estes ganharam cada vez mais notoriedade
nos shows promovidos nesses modernos estabelecimentos.
O Teatro de Revista surgiu como fruto desse contexto, conectando aquela estética do
carnaval com os novos “recursos da sensibilidade de massa” (DUARTE, 1999) que começam
a se formar entre nós como uma promessa de progresso, um “mito da modernidade”
(SEVCENKO, 1998), tal como vivenciada nos países do norte. Logo, esse tipo de teatro irá
constituir um espaço de escoamento da produção popular brasileira, fazendo com que o samba
e outros ritmos populares fossem convertidos em mercadorias culturais (MORIN, 2007) e,
simultaneamente, instituidores de uma identidade nacional (VIANNA, 1995), processo que
também afetou o próprio carnaval. Se antes este era somente uma festa popular, agora se
tornava um espetáculo exibido para o mundo, sobretudo através dos concursos de fantasias
que, com Clóvis Bornay e suas vestes de reis e soberanos orientais, passam a ser consumido
como produto genuinamente brasileiro.
Mas o carnaval e o mundo das vedetes não seriam os únicos contextos condutores
dessas “novas formas de vida”. Na década de 1950, outros dois espaços concorreram para este
feito: os concursos de miss e os auditórios da Rádio Nacional. Fenômeno importante da
modernidade, a radiofonia e os concursos de miss instituíram mudanças importantes na
sociedade brasileira, sobretudo no que diz respeito ao seu impacto no cotidiano dos
brasileiros. Juntos, a radiofonia e o disputado certame das misses ofereceram um espaço de
convivência que ajudou a consolidar um “sentido de identificação” entre homens que – na
torcida pela miss mais bela ou pela estrela do rádio mais talentosa – passaram a se ver como
partidários de interesses semelhantes, incluindo desejos por outros iguais. Foi afluindo para
esses espaços que esses jovens com interesses e gostos semelhantes começaram a formar uma
rede de amizades que passou a articular sentidos sobre o que era ser “bicha” naquela época.
Considerando esses contextos, darei destaque aqui a dois processos fundamentais para
a compreensão da construção das sexualidades não normativas como “lugar social” no Brasil:
o primeiro diz respeito à noção de “fazer travesti” como um tipo específico de prática que
emerge desses contextos lúdicos, nos quais fazer artístico-profissional e vida cotidiana se
combinam – evidenciando novas possibilidades de existência. Sugiro que com o
46

florescimento do Teatro de Revista no Brasil, o carnaval e esses homens que “faziam travesti”
são catapultados a um público mais ampliado convertendo-se em “espetáculo de consumo”. O
segundo se relaciona ao protagonismo de Clóvis Bornay, ao institucionalizar uma imagem
pública das sexualidades não normativas associada à efeminação no contexto do carnaval e
fora dele. Com o sucesso mundial e turístico dos concursos de fantasia, logo essas “formas de
vida” chegariam a uma tecnologia ainda mais massificadora: a televisão. Ao mesmo tempo
em que esses personagens eram projetados para a vida cotidiana, consolidava-se uma
associação entre as sexualidades não normativas e a imagem da “bicha” – associada ao
estigma da efeminação.

1.1 – O carnaval, a fotografia, os filmes de viagem e o espetáculo dos “homens em


travesti”10

O carnaval foi, incontestavelmente, um complexo ritual importante e através do qual


tornou-se possível vivenciar experiências de vida não conformes às convenções hegemônicas
relacionadas a sexo e gênero. Os dias comandados por Momo11 criaram ainda condições e
contextos favoráveis à aproximação erótica entre pessoas do mesmo sexo. Os trabalhos de
Green (2000), Figari (2007) e Gontijo (2009) revelam que os dias que marcam o carnaval são
eventos únicos no ano, através dos quais era possível vivenciar modos de vida mais
igualitários12. O trabalho de Gontijo (2009) sobre a participação de “homens homossexuais”
em situações ritualizadas do carnaval do Rio de Janeiro lança luz sobre o processo de
construção e reforço de imagens identitárias de “homens que transam com homens” durante
esses festejos. Para ele, os eventos carnavalescos, através do jogo e do gozo, puderam mediar
a reivindicação de direitos iguais e de reconhecimento para as pessoas “homossexuais”. Como

10
“Homens em travestis” e “homens travestidos” são expressões cujo significado é semelhante, do ponto de vista
dos discursos da época. Assim, adotaremos as duas formas para falar desses indivíduos ao longo deste capítulo.
11
Rei do Carnaval, segundo a mitologia carnavalesca. Nos dias de folia, as chaves da cidade são entregues a esse
personagem.
12
Estes trabalhos estão basicamente se referindo ao carnaval ritualizado através dos blocos, ranchos, bailes e
concursos de fantasias. Gontijo, em sua tese de doutorado, analisou a relação das escolas de samba com a
“homossexualidade”. Cabe lembrar que uma das figuras mais importantes do ciclo do desfile das escolas de
samba é o carnavalesco, muitos dos quais assumidamente “homossexuais”. Para Cavalcanti (1994), os desfiles
das escolas de samba no Rio de Janeiro manifestam em formas ritualizadas e dramáticas as contradições e
relações de poder e reciprocidade presentes nessa cidade. Acreditamos que, de igual modo, a relação dessas
escolas com as sexualidades não normativas reflete a forma conflituosa como eram tratados esses indivíduos na
regularidade da vida social – ora respeitados por seus talentos na feitura do carnaval ora rejeitados por suas
práticas sexuais não de acordo com a norma sexual vigente.
47

uma espécie de “caricaturização” dessas demandas políticas, o carnaval permitiu experienciar


certo nível de reconhecimento, que pôde ser, décadas mais tarde, integrado à regularidade da
vida social, para além do comando de Momo (GONTIJO, 2009).
As mulheres também foram beneficiadas pela “inversão momentânea” das regras
estimuladas pela folia carnavalesca. Segundo a historiadora Soihet (2000), nos dias de folia,
as mulheres podiam desfrutar de certa liberdade em relação ao uso dos seus corpos. Essa
liberdade incluía a exibição de partes do corpo que em outros dias do ano seria impossível, e a
aproximação corporal-erótica com homens ou mesmo com outras mulheres, através de danças
sensuais (SOIHET, 2000).
Mais do que oferecer a ambiência propícia para a aproximação afetivo-sexual entre
homens e mulheres do mesmo sexo, o carnaval se constituiu como um evento onde é possível
pôr em evidência, diria McClintock (2010), toda a “parafernália teatral das convenções de
gênero”. Os dias momescos proporcionam uma crise do controle do risco social – a
transgressão das fronteiras entre masculino e feminino – por um conjunto de jovens que se
deleitam com a possibilidade de se vestir do outro sexo. Diferentemente da noção de
descontrole evocada pelas representações populares acerca do carnaval, para esses homens
não havia descontrole algum, pois eles sabiam que somente nesses dias podiam borrar os
limites entre público e privado; ou seja, entre vida real e vida virtual (GOFFMAN, 1976),
exibindo seus corpos em indumentárias não conformes a seu sexo biológico. Esses homens se
beneficiavam do contexto lúdico em que a transgressão era a norma para pôr em prática suas
“formas de vida” não apresentáveis em uma sociedade marcada por normas hetero-
masculinistas.
Para Figari (2007), a relação entre carnaval e “homossexualidades” deveria ser antes
interpretada pela chave da ressignificação, e não da transgressão. Para este autor, os homens
em folia encenavam o feminino pela via do grotesco, e não da mimese do mesmo. A partir do
argumento de Mannoni (1994), o autor afirma que os homens, quando fantasiados, não
confundiam o que eram com o que pareciam. Na verdade, esses homens, de acordo com o
autor, só faziam reafirmar suas identidades pelo contraste com aquilo que não eram.
McClintock (2010), contudo, chama atenção para o fato de que o escândalo provocado pela
evidente exibição da ambiguidade se dá em função de sua “ostentação da identidade como
diferença”. Concordo com Figari (2007) quando este afirma que a ressignificação é que dá o
tom da relação das “homossexualidades” com o carnaval, mas acredito que uma dimensão
desse todo talvez tenha sido ainda mais importante do que a dicotomia
transgressão/ressignificação, a noção durkheimiana de rito. Mais do que transgredir, esses
48

homens podiam se reunir, ritualizar, reafirmar sentimentos comuns que foram fundamentais
para a formatação de relações que extrapolariam aqueles dias.
O carnaval e o espetáculo da confusão de gêneros são temas importantes que estão
intimamente ligados à ideia de ambiguidade, amplamente explorada por Victor Turner, a
partir de suas análises do período liminar em contextos rituais em uma sociedade africana, os
Ndembu. O entendimento da liminaridade se constitui como um importante caminho com o
qual é possível construir entendimentos sobre como as “bonecas”, “enxutos13” e “homens
travestidos”14 ou “em travesti”, formas de classificação que emergem do período carnavalesco
para nomear os homens que borravam as fronteiras de gênero usando roupas não conformes a
seu sexo nos bailes e concursos de fantasias, foram consolidando identidades – materializando
“formas de vida”.
A preocupação de Turner com a liminaridade começa com sua aproximação com a
obra de Van Gennep (1909), conforme explica Cavalcanti (2012). A maior contribuição de
Van Gennep foi a descoberta de uma sequencialidade nos rituais, que possuiriam três fases:
separação, margem (limen) e agregação. Esse mecanismo básico de três fases poderia ser
identificado em quaisquer rituais em diferentes sociedades espalhadas pelo mundo. Contudo,
pouco interesse foi dado pelo autor ao período que se estabelece entre a separação e a
agregação: o período liminar. Este se revelará tão cheio de significados e tão importante para
Turner que uma de suas características mais fundamentais se constituirá como conceito
importante para pensar a dinâmica das relações sociais.
Será em Betwixt and between: o período liminar nos “ritos de passagem”, texto
publicado originalmente em 1964, que Turner (2005) irá refletir sobre algumas características
socioculturais do “período liminar”. Para ele, “se o nosso modelo básico de sociedade é o de
uma ‘estrutura de posições’, deve-se encarar o período de margem ou ‘liminaridade’ como
uma situação interestrutural” (TURNER, 2005, p. 137). Esta concepção tem implicações
importantes na forma como são percebidos os indivíduos que estão na margem,
frequentemente tornados “invisíveis” – indefiníveis em relação à estrutura. Para Turner
(2005), esse “ser-transacional” é determinado, em todas as sociedades observadas pelos
antropólogos, por um nome e um conjunto de símbolos que os representam. Desvendar o

13
Forma como eram chamados pela imprensa da época os “homens travestidos” que frequentavam os bailes de
carnaval nos teatros da região central do Rio de Janeiro.
14
“Homens travestidos” é uma categoria que não deve ser confundida com a moderna noção de “travesti”, que
emerge com uma expressão de gênero e uma identidade política que demanda por direitos na esfera pública. Essa
classificação diz respeito ao contexto carnavalesco e está associada a um momento no qual a identidade
“travesti”, dotada dessa dimensão política e de uma subjetividade específica, ainda não tinha materialidade.
49

poder conceitual desse “estado transacional” – que Turner chama de liminaridade – foi uma
importante contribuição desse autor à teoria antropológica.
Nesse empreendimento, Turner lança luz sobre um dos aspectos fundamentais da
liminaridade: a ambiguidade. Esta não se relaciona a uma contradição estrutural expressa nos
indivíduos liminares, mas antes ao caráter essencialmente não estruturado que os cerca
(TURNER, 2005). Esse estado não estruturado se constitui como um componente básico da
liminaridade. Expressa o que é, simultaneamente, desestruturado e pré-estruturado; o é e o
não é. Daí a dificuldade de situá-lo em relação aos sistemas de classificação que organizam a
vida em sociedade.
Essa imprecisão classificatória é também simbólica. Daí deriva a noção, construída
por Turner (2005), de que o neófito “não tem nada”. Ou seja, ele não está marcado por
nenhum pertencimento estrutural, seja ele status, parentesco, propriedade ou mesmo
distinções sexuais. Ele seria, antes, uma matéria da qual a sociedade pode dispor e esculpir
como lhe couber. Esse estado põe em evidência uma das características fundamentais da
liminaridade: a ambiguidade, ou seja, a possibilidade de ser “isso e aquilo também”. Fazendo
isso, o autor desperta a atenção para um ponto central nos sistemas de classificação social, o
não classificável. Essa problemática o coloca diretamente em contato com as reflexões de
Douglas (1979) acerca das ideias de “poluição” e “perigo”. Esses dois conceitos podem ser
entendidos como atitudes rituais, cujo objetivo seria o de proteger categorias e princípios
estruturais da desordem provocada pela ambiguidade. Um das principais formas de garantir
essa proteção, afirma Turner (2005), é o isolamento do neófito.
É da ideia de liminaridade e de seu caráter potencialmente ambíguo que Victor Turner
retira a noção de “communitas” (CAVALCANTI, 2012). Em função disto, esta última carrega
os atributos essenciais que a opõem à ideia de “estrutura”. É isso que a torna potencialmente
perigosa e anárquica àqueles que defendem a manutenção da “estrutura”. Contudo, para
Turner, a liminaridade – entendida como uma fase dos ritos de passagem – não é a única
expressão cultural da “communitas”. Para o autor, esta pode se manifestar em muitas
sociedades através de áreas facilmente reconhecidas pelos símbolos que englobam, bem como
pelas crenças que vinculam (TURNER, 2013). O que ele chama de “poderes dos fracos” é um
exemplo interessante de como a “communitas” pode se manifestar através de grupos ou
personagens, cujos atributos se relacionam à sua posição social ou status em um dado sistema
de posições. Esses personagens tendem a ser representados por um conjunto de símbolos que
os identificam aos valores da “communitas”, sobretudo a necessidade, presente entre eles, de
preservação dos valores humanos universais.
50

É possível perceber que a “communitas” é plena de representações associadas às ideias


de ambiguidade, confusão, aquilo que ainda não está estruturado. Turner está se referindo a
um “estado da sociedade”, no qual o que é fixo se torna suspenso, abrindo a possibilidade de
inversão e, mais do que isso, de invenção de novas moralidades e sensibilidades que passam a
ser vivenciadas pelos indivíduos. É esse “poder de invenção” que é interessante reter das
ideias de Turner acerca da noção de “communitas”. Sugiro que a confusão de gêneros evocada
pelos “homens travestidos” marca uma adesão ao “estado de communitas”, que, pela
mediação de diferentes grupos sociais – como a imprensa e o saber médico-legal – foi sendo
incorporado como “lugar social” e “simbólico”, ou seja, instituído como estrutura. Isso
implica dizer que a “communitas” é ainda um espaço de resistência no qual se articularam
vidas não passíveis de existir sem esse “poder de invenção”. O uso de novas tecnologias, tais
como a fotografia e o cinema, colaboraram para o processo de produzir essas novas “formas
de vida” – oferecendo visibilidade aos mesmos.
Se na primeira metade do século XX a noção médica de “homossexualidade” e a
“prática de vestir-se do outro sexo” (VENCATO, 2010) seguia sendo percebida como um
misto de perversão e doença – teses tanto advogadas pelas ciências psi, em franco
crescimento, quanto pela medicina praticada no período –, no carnaval, ambas as práticas
ganhavam outros sentidos. Ocorria uma apropriação da ambiguidade de gênero para compor o
efeito lúdico dos dias de folia, no qual o riso era sua marca indelével (BAKHTIN, 1993). Era
mesmo impossível impedir que um indivíduo do sexo masculino se fantasiasse do sexo oposto
no carnaval, argumento adotado inclusive pelas autoridades policiais da época, como será
visto mais adiante. A capacidade de produzir um “segundo mundo”, expressão de Bakhtin
(1993), promovida pelo carnaval, permitia a esses homens se libertarem das convenções
indumentárias, convertendo as mesmas em riso, uma antítese das relações de poder vigentes.
Esse jogo entre transgressão e liberdade logo chegaria ao conhecimento de um número
exponencial de pessoas, sendo constitutivo de uma iconografia do carnaval para o mundo,
através da abundante propaganda produzida sobre a festa com o objetivo de estimular o
turismo na cidade.
A transgressão das convenções de gênero foi um dos temas mais destacados pelos
observadores do carnaval, nacionais e estrangeiros, já no início do século XX.
Aparentemente, foi através do carnaval que indivíduos em não conformidade com as
convenções relacionados a gênero e sexualidade tiveram as suas imagens projetadas para um
51

público mais amplo15. Como mostram Green (2000) e Figari (2007), por meio dessas
oportunidades foi se consolidando uma imagem pública das convenções referidas à
diversidade sexual, associada à confusão de gêneros – a “inversão sexual”, como chamavam
atenção os especialistas – e marcada por uma ambiguidade incômoda, mas, ao mesmo tempo,
sedutora – espetacularizada para o conjunto da sociedade. A espetacularização dessa
ambiguidade de gênero foi constitutiva do carnaval, repercutindo inclusive para fora do
Brasil, sendo uma das imagens mais típicas da paisagem momesca. Esse registro começou a
ser produzido de forma mais sistemática nas primeiras décadas do século XX, sobretudo
articuladas às preocupações da administração municipal em fotografar as transformações
urbanísticas operadas no governo do então prefeito Francisco Pereira Passos.
A fotografia como uma “tecnologia do olho” (BRAH, 2006) foi considerada um arauto
da modernidade. Para Brah (2006), a imagem visual produz poder, posto que se constitui
como uma prática/discurso sobre o que é visto, e nenhuma outra tecnologia foi tão adotada
para pôr em evidência esse poder.
Tal percepção da fotografia também é compartilhada por McClintock (2010), para
quem esta foi fundamental para a empresa imperial. Para a autora, a fotografia estava
diretamente vinculada a outros fenômenos, como a exposição, o museu, a galeria, o circo,
cada um dos quais envolvendo o princípio fetichista da coleção e da exibição como um
espetáculo de variedades (MCCLINTOCK, 2010). Todos esses fenômenos listados por ela
implicavam reconhecer uma hierarquia do olhar instituída a partir de uma relação desigual
entre aquele que olha – pertencendo a uma dada classe privilegiada – e aquele que é olhado,
convertido em artefato cultural, um “espetáculo de consumo”.
A percepção das duas autoras é complementar, no que diz respeito ao lugar da
fotografia na construção da noção de modernidade. Através das lentes das máquinas
fotográficas foi possível captar a vida moderna em um só golpe – com todo o seu movimento
e progresso. Para Sontag (2004), este seria o resultado mais extraordinário da fotografia, posto
que oferecia a sensação de “reter o mundo inteiro em nossa cabeça” (SONTAG, 2004).
De acordo com essas autoras, o poder que tal tecnologia encerra em seus efeitos é o de
fazer existir, evidenciar, constituir-se em linguagem universal. Sontag (2004), ao analisar a
fotografia, ressalta que ela tem a habilidade de oferecer um testemunho sobre algo de que

15
Imagens de indivíduos relacionados à diversidade de gênero e sexualidades são observadas já na imprensa do
século XIX, como pode ser verificado nas gravuras resgatadas por Green (2000) de homens frequentadores do
Largo do Rossio, hoje Praça Tiradentes. Estes homens eram abertamente identificados como “desviantes
sexuais”, em função de um comportamento tido como em não conformidade frente às convenções vigentes sobre
masculinidade.
52

ouvimos falar, mas que ainda não tomamos conhecimento. Tal habilidade logo seria
descoberta por instituições policiais, como a polícia francesa, que começa a adotar a
fotografia em seus processos investigativos, já em 1871 (SONTAG, 2004). A fotografia se
constitui então como uma “tecnologia de vigilância”, como afirma McClintock (2010), para
os estados modernos, cuja população era cada vez mais móvel (SONTAG, 2004). Contudo,
como admite Brah (2006), se a imagem é prática, portanto poder, é através dela que é possível
enfrentar as práticas opressivas de poder. Mais do que a vigilância, a fotografia se prestou a
construir um “mundo de ideias”, artefato indispensável para aqueles que se percebiam como
fora das convenções.
Revelando à sociedade os efeitos positivos das novas tecnologias, a fotografia serviu
como propaganda para os anseios de modernização da administração municipal do Distrito
Federal, hoje cidade do Rio de Janeiro. Os registros da dinâmica da destruição e construção da
nova capital acompanharam o ritmo das gentes que nela viviam. A captação desses fluxos
ocorreu de forma emblemática nos registros do carnaval, através das lentes de diferentes
voyers.
As imagens feitas por Augusto Malta, fotógrafo oficial do prefeito Pereira Passos,
foram fundamentais para esse fim. Nascido em Alagoas, estado do Nordeste, Augusto Cesar
de Malta Campos fixou residência no Rio de Janeiro já em 1888. Em 1903 foi contratado pelo
prefeito Pereira Passos como fotógrafo da Diretoria Geral de Obras e Viação do Distrito
Federal, em um cargo criado para ele. Mesmo depois da saída do prefeito, em 1906, Malta
conservou-se nesse cargo por mais 30 anos, constituindo um acervo impressionante das
transformações urbanísticas operadas na cidade nesta primeira metade do século XX.
Não foram somente os aspectos arquitetônicos da cidade em transformação que
chamaram a atenção de Augusto Malta. A dinâmica da urbanização, com seus fluxos e
interações, também foi registrada por suas lentes. Nessa dinâmica estava incluída nossa mais
importante festa, o carnaval. Em suas fotos aparecem nas principais avenidas da Capital
Federal, mormente na recém-inaugurada Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco), grupos
de homens vestidos com trajes não conformes frente a seu sexo biológico. Homens que se
deixavam fotografar pelas lentes do nosso primeiro fotojornalista, o qual deixaria para a
posteridade aquela celebração pública da transgressão de gênero. Não saberia dizer com
precisão o alcance público das fotografias de Augusto Malta naquele momento histórico, mas
é justo afirmar que o fenômeno registrado por ele já era lugar-comum no carnaval
comemorado naquele período, portanto sendo digno do registro do cronista-fotógrafo.
53

Imagem 01 – “Homens travestidos” durante o carnaval do Rio (Fotografia:


Augusto Malta, 1915)

A prática da fotografia no Rio de Janeiro parece ter sido tão importante quanto as
próprias transformações pelas quais passava a cidade. O ato de fotografar permitiu demonstrar
a um público ampliado os efeitos do novo projeto de cidade que o governo da Capital Federal
levava a cabo. A fotografia se constituiu em propaganda para a cidade, ícone de um projeto de
modernidade para a nação. Não foi por acaso que o autocromo, processo desenvolvido pelos
irmãos Lumière, foi adotado aqui no Brasil já em 1909, apenas dois anos após começar a ser
comercializado na Europa. Tal processo resultou em fotografias que revelaram as cores da
cidade recém-reurbanizada, tal qual Malta exibiu. Esse empreendimento foi o resultado do
esforço do famoso banqueiro e mecenas Albert Kahn, cujo objetivo era documentar “aspectos,
práticas e modos da atividade humana cujo desaparecimento fatal é apenas uma questão de
tempo”16, dizia ele. Seu “pessimismo sentimental”, para adotarmos esta expressão consagrada
por Salhins (1997), talvez decorresse do receio de o projeto urbanístico de Pereira Passos
então em curso destruir as imagens bucólicas do Rio.

16
Informações coletadas na exposição “As primeiras cores do Rio: autocromos da coleção Archives de la
Planète”, de curadoria de Milton Guran e Cristianne Rodrigues (CCBB, 2015).
54

Não apenas Augusto Malta se


interessou por fotografar aqueles homens
trajados com roupas não conformes em
relação às convenções indumentárias
acerca de gênero, Pierre Verger –
consagrado antropólogo e fotógrafo cuja
obra está relacionada aos cultos de
origem africana – também registrou em
suas lentes a desabusada presença desses
indivíduos no carnaval de 1940. Mais até
do que outros fotógrafos-cronistas,
Verger lançou um olhar matizado sobre
esse fenômeno, ao dar destaque a
homens negros no conjunto de suas
fotografias sobre o carnaval, como pode
ser percebido na imagem ao lado. Os
carnavais das décadas de 1940 e 1950 Imagem 02 – Homem negro “em travesti” na Avenida Rio
também evidenciaram a presença Branco, carnaval de 1940 (Fotografia: Pierre Verger. Fonte:
acervo da Fundação Pierre Verger)
inconteste de indivíduos com roupas que
se distanciavam do esperado em relação ao seu sexo biológico. Thomaz Farkas e Marcel
Gautherot17, importantes fotógrafos ligados ao movimento modernista, também manifestaram
em seus negativos a preocupação em captar essa presença nas ruas. Este último esteve
envolvido na instalação do “Musée de l’Homme”, em Paris, e também trabalhou para a
ilustrada revista O Cruzeiro.
Aparentemente, a preocupação desses fotógrafos em retratar nossa mais importante
festa acabou por chamar a atenção sobre outro fenômeno evidente apenas aos olhos dos
foliões, e que talvez não recebesse uma atenção maior de outros setores da sociedade. A folia
das ruas e dos salões tornou oportuno encontrar indivíduos com interesses semelhantes. A
fotografia de Marcel Gautherot, na qual aparece um grupo de homens vestidos do outro sexo,
faz sobressair o poder de agregação que o carnaval estruturou em um contexto onde as
sexualidades não normativas operavam no registro da clandestinidade. Certamente, as
fantasias e o caráter lúdico da festa propiciaram muito mais do que a aproximação sexual,

17
Os negativos desses dois importantes fotógrafos podem ser encontrados no Instituto Moreira Salles, no Rio de
Janeiro.
55

produziram solidariedade entre esses


homens que começariam a desenvolver
um “sentido de comunidade”.
Muito embora as fotografias
tenham sido amplamente adotadas para
revelar a abundância desses “tipos
humanos” em diferentes momentos
históricos, essa tecnologia não foi a
única empregada para esse fim. Os
filmes sobre o Brasil e suas
potencialidades turísticas também
constituíram registros valiosos da
transgressão de gênero durante o
carnaval. Estes foram usados para
compor uma representação sobre o
nosso país e suas potencialidades
turísticas, tanto nacionalmente quanto Imagem 03 – Carnaval, Cinelândia, 1954. (Fotografia: Marcel
internacionalmente. Aparentemente, Gautherot. Fonte: acervo do Instituto Moreira Salles)

filmes produzidos aqui no Brasil e


aqueles estrangeiros que registraram a dinâmica da festa nas ruas não conseguiram esconder,
nem parece que tentaram, a quantidade de homens com os mesmos trajes. Essa presença era
assumida como parte constitutiva da tradição carnavalesca. O carnaval permitia construir um
espaço-tempo para essas expressões.
Esses homens eram compreendidos como “tipos carnavalescos”, como pode ser
observado no filme “Ressurge o esplendor do carnaval carioca”, de Mário Filho, película em
preto e branco filmada durante essa data em 1950. Nesse filme, como nas fotografias, é mais
uma vez reforçada essa presença como parte integrante da festa. Vale ressaltar que o cinema
foi um dos principais responsáveis por construir uma imagem simultaneamente exótica e
cosmopolita do Brasil, a partir do Rio de Janeiro, sobretudo para os nossos vizinhos norte-
americanos (FREIRE-MEDEIROS, 2005). Cumprindo também essa tarefa, os filmes de
viagem se destacam como os responsáveis por criar uma imagem de um país tropical, aberto a
possibilidades eróticas e experiências lúdicas.
O filme de viagem “Carnival in Rio”, de 1955, filmado e dirigido por Andre de
LaVarre, cineasta que produziu dezenas de filmes desse tipo, é um excelente registro da
56

variedade de “homens travestidos” nas ruas da então Capital Federal. Na película é possível
perceber duplas masculinas se abraçando, grupos inteiros de homens vestidos de baianas e
expressões individuais, como o indivíduo vestido de bailarina que se apresenta nas pontas dos
pés para o cineasta. Impossível não prestar atenção na vasta presença desses tipos na
filmagem. Esses homens materializam em seus corpos a ambiguidade, sobretudo pela
coexistência de elementos considerados tanto masculinos quanto femininos para compor suas
performances. Essa junção de elementos e o estilo abusado com que os “homens travestidos”
ocuparam os espaços se aproximam muito da noção norte-americana de camp, que décadas
depois seria fundamental para a construção de representações sobre as sexualidades não
normativas18. Junto à paisagem, esses tipos compõem uma representação estereotipada do
nosso país, muito próxima daquela construída pelos filmes comerciais de Hollywood a partir
da década de 1930.

Imagem 04 – Abertura do filme de viagem “Carnival in Rio”, de


Andre de LaVarre, de 1955 (Fonte: Disponível em:
<http://www.travelfilmarchive.com>)

De acordo com o trabalho de Freire-Medeiros (2005) sobre a invenção do Rio de


Janeiro pelo cinema hollywoodiano, o interesse audiovisual dos Estados Unidos pelos países
latino-americanos está associado ao contexto da “política de boa vizinhança”, atitude
desenvolvida pelos americanos do norte a partir da década de 1920, aprofundada pelo
presidente Franklin D. Roosevelt. Para esse fim, foi aclamada toda a indústria cultural norte-
americana, a qual estimulou um clima de valorização das culturas ibero-americanas ao mesmo

18
No Capítulo III, a questão é vista mais detidamente.
57

tempo em que alinhava essas nações com os interesses políticos desse país na conjuntura da
Segunda Guerra Mundial (FREIRE-MEDEIROS, 2005). Antes desse período, o interesse dos
norte-americanos pelos seus vizinhos do sul era residual e marcado por chavões culturais que
percebiam o resto da América como um misto de atraso e decadência.
Um dos filmes que ilustram a análise da autora, “Voando para o Rio”, de 1933,
apresenta uma imagem “menos selvagem” da cidade do Rio de Janeiro, porém, não menos
estereotipada. Nele, estão os elementos responsáveis pela produção de uma representação da
cidade como cosmopolita e moderna, mas, ao mesmo tempo, detentora de paisagens
paradisíacas, como analisa Freire-Medeiros (2005). Cenas aéreas do Rio evidenciam suas
potencialidades naturais associadas à sua já acentuada quantidade de prédios, avenidas largas
e carros. É possível verificar que o intuito de promover a cidade do Rio de Janeiro ao posto de
capital moderna dos trópicos encontra tanto nos filmes comerciais hollywoodianos quanto nos
filmes de viagem um importante mediador. É interessante destacar que esse é o momento no
qual o turismo passa por um crescimento expressivo, refletido pelo aumento do número de
companhias aéreas no país. Voltando ao filme de LaVarre, as imagens dos “homens em
travestis” parecem compor essa atmosfera cosmopolita e exótica – convidativa ao turismo –
que serve de propaganda sobre o Rio de Janeiro no exterior e mesmo aqui.
Ainda que as imagens de “homens em travesti” tenham o seu reconhecimento
garantido nas fotografias e filmes de viagem, nas práticas cotidianas elas despertavam outras
atenções19. O crescimento da preocupação das autoridades com esses “tipos carnavalescos”
foi um elemento importante na conformação de um “lugar social” para esse grupo, processo
que fica ainda mais evidente pela profusão de categorias classificatórias que começaram a
emergir na imprensa para nomear essas pessoas, tais como “enxutos” e “bonecas”20.
Em nenhum outro espaço, porém, essa preocupação ganhou mais destaque do que nos
bailes dos teatros da Praça Tiradentes. Divina Valéria diz que a presença de “homens
travestidos”, como eram chamados de acordo com ela, era uma realidade nos bailes dos
teatros João Caetano, República e Recreio, espaços conhecidos por suas famosas festas de
carnaval frequentadas por um público mais popular. Já Eloína afirma que ia aos bailes do
Teatro República “vestida de mulher”, mesmo antes de se tornar, como ela afirma, uma

19
No Código de 1890, o “travestismo” já é identificado como uma preocupação para as autoridades policiais. O
castigo previsto para quem fosse “disfarçar o sexo, tomando trajos impróprios seus e trazê-los publicamente para
enganar” eram 15 a 60 dias de prisão (FIGARI, 2007, p. 261).
20
A partir desse momento, “homens travestidos” e “homens em travesti” são usados sem distinção. Nas
reportagens analisadas, essas categorias aparecem tanto para falar dos homens que se vestem de outro sexo
durante o carnaval quanto para aqueles que se apresentam nos espetáculos do Teatro de Revista.
58

“travesti profissional”21. O relato de Eloína sobre essa questão é muito próximo ao de Susy
Parker. Esta última me disse que o Baile dos Enxutos, na Praça Tiradentes, ofereceu as
condições perfeitas para o seu début “em travesti”. Segundo ela, quando ainda jovem, foi
aconselhada por amigos a ir ao baile vestida a caráter, para saber se era aquilo mesmo que
desejava para si.
As trajetórias de vida dessas pessoas mostram que os bailes da Tiradentes
proporcionavam-lhes um aprendizado, mesmo que fosse a partir do lúdico das festas
carnavalescas. Os bailes traziam, através do espaço da festa, a possibilidade de esses
indivíduos se verem como um “outro”, uma mulher. A propaganda gerada sobre esses bailes
não causava somente rechaço da sociedade contra aquelas “criaturas bizarras” que para lá
afluíam, ela criava, ainda, fascinação e atração a um conjunto de rapazes que via nesse espaço
um “poder de criação” para modificar as suas vidas.
Se na virada do século XIX para o XX a noção de “homossexualidade” estava atrelada
a um tipo de indivíduo do sexo masculino que ostentava uma feminilidade discreta, a qual se
tornava evidente nos trejeitos e no ar refinado, com os dias de folia essa noção promoveu a
existência de uma nova ordem de pessoas. Ainda que o gênero se constitua como um
marcador importante para materializar o “fresco” nos corpos, a figura do dândi – aquele
homem de modos afetados que instituía sentidos sobre as sexualidades não normativas no
nascer do novo século – não se confundia com os “homens em travesti”. Os frequentadores do
Largo do Rossio (agora Praça Tiradentes), como bem descreve Green (2000), eram homens
bem vestidos e elegantes, que não adotavam vestimentas do outro sexo para compor a sua
indumentária.
Apesar da presença desses “homens travestidos” ser já notória no carnaval, esta foi
construída como um problema pelas autoridades, com o auxílio da imprensa, sobretudo nos
bailes de carnaval onde começaram a ganhar importância os concursos de fantasia. A
presença de “homens travestidos” nos bailes de carnaval começou a ter destaque ainda na
década de 1930. Em 1938, Madame Satã, ainda João Francisco dos Santos Sant’Anna, venceu
o concurso de fantasias organizado pelo bloco dos Caçadores de Veados, no Teatro
República, Praça Tiradentes (GREEN, 2000). A composição ocupou um lugar de tanta
projeção em sua trajetória de vida que seria escolhida por ele para dar nome ao personagem
ainda tão vivo na percepção pública sobre a boemia carioca. De acordo com Green (2000),
com o progressivo aumento da presença de “homens travestidos” nos carnavais, foi se

21
A noção de “travesti profissional” será discutida no próximo capítulo.
59

consolidando uma representação das sexualidades não normativas como potencialmente


perigosas às convenções sociais e ao decoro público. Essa representação foi sendo constituída,
sobretudo, pela ação da imprensa escrita, que publicava no período carnavalesco pequenas
tiras alertando sobre os perigos e excessos desses bailes, inclusive do impedimento do acesso
de fotógrafos, os quais tornariam evidente, através de suas lentes, toda a “imoralidade” que lá
ocorria.
Os jornais de grande circulação no período, como O Globo e Última Hora produziam
curtas informações sobre esses bailes. Um exemplo está na edição de 07 de fevereiro de 1959
do jornal O Globo, na qual o chefe de polícia, Sr. Ari Couto, depõe contra a sua existência:
Uma nódoa que todos os anos acontece no carnaval é o já famoso baile dos
anormais, no João Caetano. Milhares de reclamações chegam à polícia contra a
realização de tais bailes. No entanto, quase nada podemos fazer, pois o que impede
um indivíduo de se fantasiar de mulher, no carnaval? Se fechássemos o baile, outro
local seria escolhido, talvez mais chocante ainda. O máximo que conseguimos foi
evitar o concurso de fantasias, quando os infelizes desfilavam na passarela exibindo
a sua doença a par com suas luxuosas roupagens. Como não poderia deixar de ser, a
entrada de fotógrafos é vedada. A polícia não aprova essa proibição, mas nada pode
fazer. Creio que a imprensa devia protestar, pois é um direito seu testemunhar todos
os acontecimentos do carnaval (O GLOBO, 1959, p.2).

É possível perceber, no relato do chefe de polícia, que a existência desses bailes


frequentados por “homens travestidos” era uma realidade, evidenciando a sua integração
íntima aos festejos carnavalescos. Em função disso, pouco se podia fazer para censurá-los. O
mesmo chefe de polícia alerta para o fato de que, se essas celebrações não acontecessem nos
teatros, os chamados “anormais” poderiam começar a ocupar outros espaços, como aqueles
frequentados pelas “famílias de bem”. O chefe de polícia afirma, em tom desolador, que esse,
sim, seria um problema ainda maior, posto que colocaria tal parte da sociedade sob o risco de
tão despudorado espetáculo.
As estratégias policiais para coibir essas transgressões se concentravam,
principalmente, nos concursos de fantasias. Proibindo a sua existência, esses agentes
buscavam controlar a espetacularização da transgressão de gênero e evitavam mais alardes
acerca da existência dessas “novas formas de vida” – principalmente, a atração de outros
iguais. Impedir a ocorrência dos concursos de fantasias desencorajava celebrações públicas
das sexualidades não normativas e, sobretudo, a possibilidade de gerar relações de
solidariedade entre os transgressores envolvidos nesse empreendimento. Parece que a
vibração coletiva emanada da aclamação da plateia que aplaudia um igual “vestido de outro
sexo” em cima do palco constituía um perigo às convenções sociais, logo, algo que deveria
ser evitado.
60

Porém, não eram somente os jornais como O Globo, que chamavam atenção para os
perigos que esses bailes representavam. A revista Manchete, como afirma Green (2000),
produziu matérias no início dos anos 1950 depondo contra a existência desses espaços.
Entretanto, diferente dos jornais que apenas publicavam a opinião das autoridades, essa
revista produzia matérias que estimulavam preconceitos sobre esses bailes. A postura da
Manchete mudaria pouco tempo depois, quando os indivíduos classificados como “travesti”
se tornaram objeto de consumo importante do carnaval, garantindo a venda da publicação.
Contudo, mesmo com o acirrado veto das autoridades, os concursos continuaram
existindo: a escolha da melhor fantasia era realizada em residências particulares para que logo
em seguida esses homens partissem para o baile. Já no evento, até mesmo cadeiras e mesas
eram obrigatoriamente retiradas por pedido policial, para impedir que uma passarela fosse
artesanalmente construída e que o “homem travestido” consagrado vencedor se pusesse a
desfilar, para horror da sociedade.
Em fins da década de 1950 e início da de 1960, os concursos de fantasias não são os
únicos itens proibidos no carnaval. O veto se expande para o uso de determinados trajes que
promovam confusão – como fantasias imitando uniformes das forças armadas, roupas
religiosas, etc. – e, principalmente, homens em “travesti”. Um outro exemplo de proibição
teve a ver com o rock and roll. Em matéria do jornal O Globo de 11 de fevereiro de 1957
sobre o policiamento nos clubes durante o carnaval, as autoridades de costumes alertaram
para a proibição de executar esse ritmo nos salões, com a justificativa de que seus adeptos
cometiam excessos sob o efeito das músicas. As autoridades pareciam alardeadas por dois
motivos. O primeiro trata-se da então franca associação do rock and roll com a rebeldia,
materializada nas telas pelo clássico “Juventude transviada”, de 1955, filme que consagrou
James Dean como ícone cultural de uma geração que valorizava a juventude como operadora
de mudanças sociais. Já o segundo motivo dizia respeito à relação entre o novo ritmo e o
exercício da sexualidade, que tinham em Elvis Presley e os seus rebolados sensuais um
verdadeiro risco às convenções sociais.
Outra prática que ganhava destaque no conjunto das interdições policiais era o strip-
tease, quase sempre aparecendo ao lado do “fazer travesti” nas listas de proibições. Todos os
anos, os jornais publicavam a lista de restrições aos festejos, como em fevereiro de 1960,
quando o chefe de polícia, Coronel Luís Inácio Jaques Júnior, anunciou o impedimento da
prática de “travesti” nas ruas e nos bailes de carnaval. Essas proibições constituíam
importante registro de como esses “tipos carnavalescos” foram sendo construídos como um
problema social que punha em risco a sociedade e as suas regras de conduta. Esse processo foi
61

mediado pela imprensa e pelos especialistas sobre o sexo, convocados para explicar os
perigos desses bailes.
Assim, além das proibições formais da Polícia de Costumes, as interdições eram
acompanhadas de justificativas especializadas, alertando sobre os riscos do “travestismo” nos
jornais, adotando análises de especialistas em medicina legal, como a de Leonídio Ribeiro. Na
edição de O Globo de 11 de dezembro de 1968, Ribeiro cita os problemas do “travestismo”
para a segurança pública. Ele destaca não somente o chamado “travestismo masculino” como
ainda a presença de mulheres que se apresentam, em bairros como Copacabana, de cabelos
cortados e calças. De acordo com a matéria, o problema do “travestismo” reside na confusão
que este gera, uma vez que dificultaria discriminar adequadamente as “verdadeiras
identidades” dessas pessoas, impedindo a tarefa da polícia de assegurar a ordem e a segurança
social. A aliança entre a medicina legal e a Polícia de Costumes se fazia evidente nesse
período quando ainda estavam em voga teses lombrosianas acerca da origem e terapêutica
adequada para resolver o problema do “travestismo”, mas, sobretudo, do “homossexualismo”.
O “homossexualismo” segue sendo aqui uma categoria elástica, embutindo conceitos
de sexo e gênero simultaneamente (BARBOSA, 2015). De acordo com Barbosa (2015), o
“homossexualismo” e o seu correlato, a “inversão sexual”, seriam uma variante de gênero22.
Argumentos psiquiátricos e endocrinológicos marcam os discursos desses profissionais, que
começaram a ser chamados pelos veículos de comunicação de massa para oferecerem uma
explicação especializada sobre as causas e efeitos desses fenômenos. Leonídio Ribeiro evoca
as categorias psiquiátricas de Richard von Krafft-Ebing23 para analisar os riscos que esses
tipos sociais representam para a “normalidade”. Para ele, o chamado “travestismo” tratava-se
de uma anormalidade psíquica sobre a qual a Polícia de Costumes deveria intervir
energicamente, sob pena de perder sua capacidade de controle das massas.
Cabe destacar, contudo, que a presença das opiniões de Leonídio Ribeiro na imprensa
não deve ser compreendida de forma separada do seu alcance e aproximação com a elite
carioca. Ribeiro, nesse período, gozava de amplo prestígio como médico, reconhecimento
obtido, principalmente, em função de seus estudos sobre o “homossexualismo” (GUTMAN,
2010). Em 1935, ele publicou “Homossexualismo e endocrinologia”, estudo produzido a
partir de 195 casos de indivíduos classificados como “invertidos sexuais”, no âmbito do

22
Hirschfeld foi o primeiro desse conjunto de sexólogos a diferenciar as categorias de “inversão sexual” e
“homossexualismo” (BARBOSA, 2015).
23
Importante psiquiatra alemão que conformou as bases do que ficaria conhecido como sexologia. Sua obra
principal, “Psychopathia sexuallis” (1886), foi a responsável por introduzir categorias médicas – as parafilias –
que assimilavam sujeitos com práticas sexuais e expressões de gênero não convencionais a doenças.
62

Laboratório de Antropologia Criminal, no Rio de Janeiro. Nesse estudo, o médico organiza


um conjunto de saberes acerca desses “seres sexuais”, assimilando-os a características
psíquicas e somáticas.
Para Leonídio Ribeiro, a endocrinologia ofereceria o caminho adequado para explicar
o “homossexualismo”, que, conforme ele, em questão de tempo seria passível de cura, em
função da expectativa da descoberta de um hormônio responsável por provocar a “inversão
sexual”, logo se elaborando uma terapêutica a partir do mesmo, tal como ocorreu com o
controle do diabetes associado ao advento da insulina (FIGARI, 2007). Suas preocupações
com o “travestismo” e o “homossexualismo” refletem também uma mudança na forma como
as sexualidades não normativas vinham sendo percebidas pelo conjunto da sociedade,
sobretudo entre as elites. Este processo realça um esforço cada vez maior de cientificização
desse tema, retirando-o definitivamente do campo religioso. A busca por respostas científicas
às chamadas “perversões sexuais” assimiladas a corpos e a psiques específicas reflete um
processo de mudanças ocorridas na sociedade brasileira. Nisso estão incluídas aquelas
operadas na mentalidade das elites, as quais veem no discurso científico um importante
suporte para adentrar na era da modernidade, associando outras formas de saber, incluindo o
religioso, à tradição e ao atraso.
Dessa forma, a bem-sucedida “escolha” de Leonídio Ribeiro pelos “pervertidos” de
seu tempo foi responsável por proporcionar uma carreira de prestígio ao médico, que se
beneficiou do contexto onde o “homossexualismo” começou a ser percebida como doença. O
crescimento do interesse da população pelos manuais médicos realçou ainda mais essa
dinâmica. Muitos reproduziam de forma direta as ideias dos médicos da época acerca do
“homossexualismo”, o qual era equiparado, simultaneamente, às noções de crime e de
loucura. O caso Febrônio talvez seja o mais ilustrativo para analisar a atitude presente nesse
intervalo histórico sobre os chamados “pervertidos sexuais”.
O trabalho de Fry (1982) sobre o caso Febrônio Índio do Brasil, o primeiro prisioneiro
do Manicômio Judiciário da Capital Federal, traz importantes contribuições ao processo de
construção da psiquiatria como saber hegemônico e o seu poder de regulação na sociedade
brasileira daquele período. Em sua análise, Fry destaca a disputa de discursos em torno da
suposta loucura ou potencial criminoso de Febrônio pelos “empreendedores morais”
(BECKER, 2008) atuantes na época. Esse personagem ocupou as páginas de jornais da década
de 1920 por ter sido acusado da morte por estrangulamento do menor Alamiro José Ribeiro,
encontrado sem vida no dia 13 de agosto de 1927. Febrônio foi responsabilizado em função
63

dos seus antecedentes criminais. Depois de preso em Petrópolis, foi trazido à capital, onde
confessou o crime.
A prisão de Febrônio desencadeou uma disputa de sentidos em torno de sua suposta
loucura. O processo aberto para investigar a morte de Alamiro reconstrói toda a vida
pregressa do autor, evidenciando fatos que desafiam as leis e a moralidade da época, tais
como a criação de uma religião própria, relações homossexuais e assassinatos – eventos que
se cruzam na trajetória de Febrônio. Desse caso, os laudos psiquiátricos constituem
importantes instrumentos da construção da verdade sobre a culpa de Febrônio. Para Fry
(1982), muito mais do que a vitória da psiquiatria, o Caso Febrônio evidenciou o papel
didático da imprensa em converter os “loucos morais”, constantes na literatura médica, em
“monstros” dos jornais (FRY, 1982). As ideias de Leonídio Ribeiro nos jornais a respeito dos
“homens em travestis” e os próprios argumentos da polícia acerca do alcance pernicioso dos
bailes para a sociedade revelam esse processo de construção de “monstros”, que vai produzir
uma percepção estereotipada das sexualidades não normativas, associada à inversão e
assimilada ao crime e à loucura.
É possível perceber que os argumentos de Ribeiro acerca dos perigos que o
“travestismo” acarreta guardam uma nítida relação com as preocupações dos criminologistas
da Capital Federal com as novas técnicas de identificação, e que ganharam ainda mais força
após a revolução de 1930. Nesse período, um determinado órgão, o Gabinete de Identificação,
assumiu uma importância fundamental no conjunto das instituições estatais, ficando
subordinado diretamente à Presidência da República (CARRARA, 1984). Dessas novas
técnicas de identificação despontou a datiloscopia, da qual se ocupou amplamente Leonídio
Ribeiro. Essa técnica aliava a polícia e a medicina, como admite Carrara (1984), em um
esforço pioneiro para identificar e classificar a população, na perspectiva de construir um
inventário geral da sociedade, tendo em vista vigiá-la mas, ao mesmo tempo, docilizá-la, nos
termos de Foucault (1988).
Dados esses objetivos, percebe-se que as ansiedades da polícia acerca dos bailes com a
presença de “homens em travesti” correspondiam às orientações do Gabinete de Identificação,
que na figura de Leonídio Ribeiro percebia no “travestismo” uma ameaça às modernas
técnicas de identificação baseadas nas recém-descobertas papilas digitais. Como analisa
Carrara (1984), o conjunto das características que tornaria essa técnica de identificação
absolutamente confiável junto aos identificadores eram a variabilidade, a imutabilidade e a
inalterabilidade, que reduziriam os cidadãos a um único dactilograma, sobre o qual se
assentava sua identidade individual (CARRARA, 1984). Dessa forma, vestir-se com trajes
64

não compatíveis com o seu sexo ameaçava não apenas a moral da época, mas também os
princípios da ordem e da coesão – que o Estado deveria assegurar.
Se os jornais dedicavam um espaço delimitado aos “homens de travesti”, assimilados
às páginas policiais, o crescimento do interesse pelas revistas ilustradas entre a população
registrava um outro movimento. Os “homens de travesti” estimulavam a curiosidade coletiva,
e atentas a essa demanda, as revistas trataram de promover mais imagens dos bailes e do seu
espetáculo da transgressão de gênero. Essas publicações mostravam a dinâmica de entradas e
saídas das “bonecas”24 e “enxutos” nos bailes, criando uma atmosfera tal qual um freak show.
Cabe aqui uma reflexão sobre esse tipo de show e o que ele representa na construção de uma
espetacular exibição dos chamados “anormais”, assumida pela cultura de massas no Brasil e
em outros países, sobretudo os Estados Unidos (LEITE JÚNIOR, 2006).
Leite Júnior (2006), em seu trabalho sobre a pornografia “bizarra”, se debruçou sobre
as origens dos freak shows e o processo de construção da noção de “freak”, ressignificada
pelo mercado de cultura de massas. Para o autor, os freaks podem ser compreendidos como
aqueles indivíduos cuja existência encontra-se mediada entre os monstros da cultura popular e
os doentes teratológicos, “descobertas” da ciência erudita. É nos freak shows que são
apresentadas variedades de tipos considerados bizarros, característica quase sempre reputada a
alguma anomalia corporal ou a alguma capacidade extraordinária dos corpos, quase não
humana. Apesar de serem populares em várias partes da Europa, legados do contexto
medieval, foi nos Estados Unidos, afirma Leite Júnior (2006), que esse tipo de exibição
ganhou forte impulso, sobretudo na virada do século XIX, indo até a década de 1960 e
oferecendo as bases para aquilo que o autor chama de “cultura da anormalidade”.
Esses shows encontram adequação na noção de “anormal” evocada pelo discurso
policial da época para se referir aos bailes com a presença de “homens em travesti”. É
possível acreditar que a percepção popular sobre esses bailes era muito semelhante àquela que
despertavam os “espetáculos de aberrações” (LEITE JÚNIOR, 2006). Parece, contudo, que
essa representação como freak dos frequentadores desses bailes tenha gerado mais curiosidade
do que repulsa, tendo em vista o esforço editorial das revistas ilustradas da época para retratar
esses eventos. A construção de imagens relacionadas à noção de freak ligada a essas pessoas,
item da cultura de massas, tal como sugere Leite Júnior (2006), produziu muita fascinação
sobre as mesmas. Tais imagens foram levadas ao interior das “casas de respeito” pela
imprensa, que tratava de adotá-las como mercadorias culturais.

24
“Bonecas” e “enxutos” se referem ao nome adotado para classificar homens que transgrediam as regras do
vestuário, usando roupas do outro sexo.
65

Uma das principais revistas que motivava essa fascinação era a Manchete, que
começou a circular na década de 1950 e veiculava muitas informações sobre o carnaval
carioca, sobretudo a partir do ano de 1953 (GREEN, 2000). De acordo com Green (2000), o
repertório de imagens de “homens em travesti” nas páginas dessas publicações logo faria com
que a percepção popular visse em toda pessoa situada fora da norma heterossexual um
praticante do “travesti”. A emergente imprensa brasileira da virada do século contribuiu,
sobremaneira, para a produção de uma percepção pública sobre as sexualidades não
normativas, convocando sempre que podia, como observado na matéria com Leonídio
Ribeiro, o saber médico para formular entendimentos acerca do fenômeno.
Logo, os “homens travestidos” ou “em travesti” e seus bailes se fixaram como parte
integrante da paisagem carnavalesca. Mais do que isso, eles se converteram em “mercadorias
culturais”, ou seja, em elementos constitutivos desse mercado de bens culturais e de
entretenimento, que vinha se inaugurando no Brasil, adotando o carnaval como principal
contexto de produção e consumo de bens simbólicos. Sensível a essa presença, Dercy
Gonçalves despontou como pioneira, organizando a primeira versão do concurso de fantasias
com homens “em travesti” nos teatros da Praça Tiradentes, em 1948. Para Green (2000), os
concursos de fantasia no carnaval começaram de forma concomitante à apropriação dos
espaços carnavalescos pelas “bichas”. Acredito que esse processo não tenha sido de
apropriação, mas de ressignificação, uma vez que tais eventos só se materializaram a partir da
agência desses indivíduos. O sucesso da iniciativa foi estrondoso, fazendo com que fosse
reproduzida nos anos seguintes. O nome dessa grande vedete emprestou prestígio ao evento,
tornando-o prática integrante dos salões de bailes carnavalescos.
A aproximação entre o “mundo das vedetes” e aquele que vinha sendo constituído
pelos homens que “faziam travesti” se acentuaria, a contragosto das autoridades que
intensificavam a proibição nos bailes. Em pesquisa nos arquivos do Jornal O Globo e do
Última Hora, pude observar que a categoria “travesti” aparece, quando fora do período
carnavalesco, quase sempre vinculada às seções dedicadas às notícias de teatro. No caso de O
Globo, desde a década de 1920, a Coluna de Teatro publicava informações de peças com
homens e mulheres “em travesti”.
A presença de homens “em travesti” certamente não é uma novidade na história do
teatro. Ela remonta aos primórdios do teatro grego, se intensificando no teatro elisabetano,
66

quando os personagens femininos eram todos encenados por pessoas do sexo masculino25.
Acredito, contudo, que a ligação entre os homens “em travesti” e a percepção pública sobre a
“homossexualidade” tenha se estreitado à medida que o Teatro de Revista ganhou projeção,
constituindo o principal veículo de circulação de objetos culturais, tais como as marchinhas,
para além dos dias momescos.
Esses processos históricos sugerem que o espetáculo26 da transgressão de gênero no
carnaval foi fenômeno constitutivo do mercado de bens culturais e de entretenimento no
Brasil. Os bailes e concursos dos “enxutos” e das “bonecas” realizados em grandes teatros no
centro da cidade do Rio de Janeiro não só consolidavam uma imagem pública das
sexualidades não-normativas associadas ao feminino (GREEN, 2000) como também
contribuíam para a formação de um papel social e, junto com os fã-clubes das estrelas do
rádio na década de 1950, instituíram sentidos sobre essas novas “formas de vida”, abrangendo
de forma intensa nessa categoria noções de sexo e gênero como dimensões imiscuídas.
Newton (1979), em seu trabalho sobre os profissionais de impersonals female nos
Estados Unidos, chegou à conclusão de que o processo de estigmatização a que estes estão
expostos se relaciona à emergência da cultura de massa no contexto norte-americano, algo
que acredito ter ocorrido ao contrário no Brasil. Através da trajetória, sobretudo de Rogéria,
percebo que o mundo identificado por Newton (1979) como de show business foi um vetor de
ascensão social e simbólica, através do qual as “travestis” brasileiras experienciaram uma
realidade menos violenta e até um considerável reconhecimento, tendo em vista o assédio que
sofreram da imprensa.
Aparentemente, os “homens em travesti” só ganharam inteligibilidade a partir de sua
relação com o imaginário carnavalesco. Uma das consequências desse processo foi a
consolidação de um “lugar social” previsto para essas pessoas: os dias de folia e o palco.
Nesses espaços, era possível desfrutar da transgressão de gênero com relativa liberdade, posto
que era esperado esse tipo de comportamento somente ali. Essa existência liminar sugere uma
relação com a ideia de “paródia” presente em Butler (2003). Para essa autora, a noção de
paródia não se estabelece a partir de um gênero original ao qual se recorre para imitação. A
paródia, para ela, já é um original: uma vez que não existe uma identidade de gênero a priori,
esta é construída performaticamente. Daí a importância política, para Butler, das “travestis”,

25
Jorge Leite Junior (2008) ressalta que a palavra “travesti” possivelmente surgiu na França do século XVI,
adotada pelo campo teatral com uma acepção de disfarce. Sua recepção no Brasil seguiu o mesmo princípio de
sua congênere francesa, daí a forte presença dessa expressão nas colunas dedicadas à programação teatral nos
jornais do Rio de Janeiro.
26
Adoto aqui a noção de espetáculo presente em Anne McClintock (2010), que a percebe como um olhar
privilegiado que um determinado grupo social tem sobre determinados eventos e grupos.
67

drag queens e das práticas de crossdressing, posto que desestabilizariam a noção de uma
legítima identidade de gênero. No carnaval, a “paródia de gênero” é integrada à lógica da
desordem carnavalesca. Quando acabavam os dias de carnaval e as coisas voltavam aos seus
lugares é que a “paródia de gênero” incomodava, uma vez que expunha a artificialidade das
identidades de gênero.
As consequências em se perceber os “homens travestidos” no registro da “paródia” se
manifestam nas situações de violência e de discriminação a que esse grupo estava exposto nos
outros dias do ano, e mesmo nesses dias, como mostra Kullick (2008). Como destaca Green
(2000), nem no carnaval a violência contra estes diminuía. Muitos eram alvejados por uma
plateia buliçosa que os aguardava nas portas dos teatros João Caetano e República. A
recepção era feita com latas e outros materiais que eram jogados em suas roupas e corpos
adornados luxuosamente.
Esses eventos evidenciam a existência de duas imagens concorrentes dos “homens
travestidos” no período. Uma imagem era projetada, sobretudo pelos “empreendedores
morais” (BECKER, 2008) – médicos, juristas, imprensa, etc. –, os quais entendiam esses
“homens travestidos” como portadores da desordem, posto que associados ao crime e à
confusão de gêneros. A outra imagem ganhava sentidos pela mediação dos espaços teatrais,
pela chave do glamour, que começava a ser mais forte à medida que esses “homens em
travesti” se inseriam nos espetáculos, sobretudo nas revistas, cada vez mais numerosas no
mercado cultural brasileiro em formação.

1.2 – Concursos de Fantasia

A virada do século XIX para o XX imprimiu mudanças significativas na forma como o


carnaval era comemorado no Rio de Janeiro. Esse processo está relacionado ao conjunto das
transformações urbanísticas cujo objetivo era elevar a cidade aos moldes citadinos de Paris.
Os carnavais de Nice e Veneza passaram a ser referência de festas nas quais o caos das ruas –
principalmente aquele instituído pelo entrudo – cedia lugar aos salões bem decorados,
sobretudo aqueles do Baile de Gala do Theatro Municipal. Nesses salões foram dramatizados
os símbolos de distinção relacionados à classe, os quais ganhavam materialidade não somente
no vestuário, que imitava reis e rainhas, mas na riqueza da decoração e mesmo da escolha dos
68

pratos do buffet. Tal comemoração estimulava um seleto grupo de pessoas oriundas das
classes mais abastadas da cidade do Rio de Janeiro.
A mudança de postura em relação à celebração do carnaval incidiu ainda sobre os
concursos de fantasia realizados nos animados bailes de salão que se abriam para um conjunto
de pessoas não tão endinheiradas assim. Se no Theatro Municipal os concursos de fantasia
ganhavam cada vez mais projeção, aqueles realizados nos teatros da Praça Tiradentes não
tinham a mesma sorte. Enquanto os veículos de comunicação exaltavam o fausto dos bailes de
gala, chamavam a atenção para a perniciosa libertinagem dos bailes da Tiradentes. Os
concursos de fantasia nesses teatros constituía, na opinião das autoridades da época, uma
ameaça à moral e aos bons costumes – pilares da sociedade. Enquanto esses espaços eram
cerceados, o concurso de fantasias do Baile de Gala do Theatro Municipal, instituído em 1937
por iniciativa de Clóvis Bornay, começava a ganhar autonomia em relação ao conjunto dos
festejos carnavalescos, a ponto de se tornar um evento à parte anos mais tarde, consolidando-
se como atração turística da cidade.
A fama dos concursos de fantasias no carnaval carioca teve o seu apogeu com a figura
de Clóvis Bornay, cujas fantasias emprestaram luxo e glamour aos salões lotados de foliões.
A trajetória de Clóvis Bornay se cruza com a própria história do carnaval no Rio de
Janeiro. Filho caçula de uma família de 12 irmãos, de mãe espanhola e pai suíço, foi morar
ainda muito cedo no município de Nova Friburgo, Região Serrana do estado do Rio de
Janeiro. Aos 14 anos, ele teve a sua vida íntima descoberta pelo pai, que o expulsou de casa.
Como me contou sua filha mais velha, tratava-se de uma família abastada, cujo patriarca,
dono de uma joalheria, possuía grande poder sobre o núcleo familiar. Aparentemente, a
vergonha de uma possível corrosão do nome da família foi o desencadeador dessa expulsão.
Uma vez fora de casa, Bornay chegou a morar uns dias na rua, trabalhando de
engraxate. Ao solicitar uma oportunidade de emprego a um amigo da família, esta lhe foi
negada. Diante da rejeição, ele escreveu uma carta a esse amigo do pai, dizendo que iria se
matar caso não conseguisse o emprego. O amigo resolveu então atender ao pedido,
oferecendo uma vaga na redação de um jornal. Clóvis Bornay conseguiu se formar em
museologia, profissão que lhe serviu de base para compor o que mais tarde vai ser a sua
marca registrada: as fantasias de luxo.
Sua história de vida se cruza com a história do carnaval quando assume a diretoria do
Museu Histórico Nacional. Já nesse cargo, conseguiu convencer o diretor do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, Silvio Piergilli, a realizar um baile de gala nos moldes do
carnaval de Veneza na Itália, no qual fantasias receberiam prêmios em uma competição. Os
699

concursos de faantasias nãoo eram noviidades nos salões de baile


b durantte o carnav
val, mas elee
conseguiu uma proeza:
p a suua inserção no Baile dee Gala do Thheatro Munnicipal, um dos
d eventoss
mais tradicionaiis no calenddário carnavvalesco, ag
gregando inddivíduos innfluentes em
m diferentess
camppos como políticos,
p arrtísticos e culturais.
c De
D acordo com
c propaggandas veicculadas porr
jornaais na épocaa da criaçãoo do concursso de fantassias por Clóóvis Bornay – década de
d 1930 –, o
bailee se constituuía como o principal
p poonto de enco
ontro de um
ma elite ávidda por cosm
mopolitismo..
Muittos trechos de jornal erram dedicaddos a revelaar o luxo e a elegânciaa do evento, com peçass
decorativas vindas de Parris e serviçço de
buffeet – com mais de 500 garççons,
auxilliares e pesssoal de coopa – execuutado
pela prestigiossa Confeittaria Coloombo
(dadoos de O Gllobo, em 077 fev.1937)). Os
perióódicos desttacavam ainda o caaráter
cosm
mopolita do baile, frequuentado porr uma
elite internaccional, exxcedendo em
impoortância, d
de acordoo com e
essas
publiicações, os bailes de Nice
N e Venezza.
A inserrção dos concursoss de
fantaasias em um
m baile parra a “socieedade
elegaante” evidenncia outras implicaçõess que
extraapolam oss “rituais de distinnção”
prom
movidos pela elite daa época. Nesse
N
sentiido, o protagonismo dee Clóvis Boornay
mereece reconhecimento. Esstar no carggo de Imaggem 05 – O Príncipe Hiindu: fantasiaa com que
Clóviis Bornay vennceu o primeiro concurso de
d fantasias
diretor do Muuseu Históórico Naciional do Theatro
T Muniicipal, em 19937 (Fotograffia: acervo
pesso
oal das filhas de
d Clóvis Borrnay).
faciliitou a suua articulaçção com uma
parceela da socieedade detenntora de cappital cultura
al, incluindoo o diretor ddo Theatro Municipal,,
sem a qual não seria
s possívvel a produçção de tão faamoso concurso.
Os conccursos de fantasia
f eraam vistos com
c grandee reserva ppelas autoriidades, quee
impeediam a suaa realizaçãoo como form
ma de contter o espetááculo da transgressão de gênero..
Coloocar tal evvento na agenda
a do mais fam
moso baile contribuiu,, certamen
nte, para o
reconnhecimentoo das sexuallidades não normativass através doo espetáculoo do consum
mo da “nataa
da soociedade”, que
q começoou a incluí-laa nos marco
os de seus “rituais
“ de distinção”.
70

Em 1937, no primeiro Baile de Gala do Theatro Municipal, Bornay arrebatou o júri


com a fantasia de Príncipe Hindu, ganhando o primeiro lugar. Logo, os Bailes de Gala do
Municipal se tornaram um evento à parte na agenda do carnaval do Rio de Janeiro, agregando
personalidades como a atriz Wilza Carla. A elite se reunia para prestigiar as fantasias que,
anualmente, ficavam ainda mais luxuosas. Não somente o público carioca aguardava com
expectativa os concursos de fantasia. Eles também despertavam a atenção de turistas que
vinham de diferentes partes do mundo e do Brasil para ver de perto as invenções criativas e
esplendorosas dos concorrentes. Os participantes concorriam em três categorias: “fantasia de
luxo mais interessante”, “fantasia de luxo baseada em motivo nacional” e “fantasia mais
excêntrica”. Os prêmios consistiam em pulseiras de brilhantes (conforme O Globo, em 07
fev.1937).
As fantasias de luxo de Bornay causavam inquietação entre a sociedade carioca, pela
grandiosidade de seus elementos. Sua grande preocupação ao construir as fantasias era causar
um “efeito sobre o público”, afirma uma edição do jornal O Globo, de 03 de janeiro de 1982.
Uma de suas filhas me contou que ele chegou a desmontar um lustre que encontrara em sua
casa, a fim de produzir uma de suas indumentárias. Sua saída de casa nos dias de concurso, na
rua Prado Júnior, em Copacabana, era um verdadeiro acontecimento. Para deleite da plateia
numerosa, desfilava pela rua antes de entrar na Kombi e partir para o Theatro Municipal,
antecipando o luxo de suas vestimentas para os vizinhos e curiosos que se avolumavam na
frente de seu apartamento.
Mas não era somente pela riqueza dos materiais que ele surpreendia. Suas fantasias,
diferentes dos concursos cujo centro das atenções eram os “homens travestidos”, não
adotavam o universo feminino como fonte de inspiração, mas se apoiavam em representações
de grandes baluartes masculinos da história e das mitologias. Foi Clóvis Bornay quem fez
ressurgir a glamourização dessas imagens masculinas, reproduzidas em fantasias com grande
luxo, como pode ser observado na fotografia do Príncipe Hindu. Tal iniciativa certamente
abrandou o alarde que as autoridades tinham de que tais concursos se aproximassem do
espetáculo do excêntrico, como eram aqueles realizados na Praça Tiradentes. O grande
conhecimento histórico de Clóvis Bornay foi um importante instrumento de mediação para
que esses concursos, antes combatidos veementemente pelas autoridades, fossem convertidos
em símbolos do carnaval, consumidos dentro e fora do Brasil como tal.
A trajetória de vida de Clóvis Bornay mereceria uma análise à parte, o que não é o
objetivo desta tese. Entretanto, o que mais chama a atenção para este trabalho é a relação de
contiguidade entre esses personagens que somente surgiam no carnaval e os meios de
71

comunicação, quando aqueles começam a deixar os dias de folia e a habitar a vida ordeira –
aparecendo frequentemente na televisão e em outros veículos de comunicação, como as
revistas ilustradas –, promovendo uma espetacularização da “bichice”. Sugiro que as
representações da masculinidade nas fantasias de Clóvis Bornay foram importantes para esse
processo. Não se tratava de um homem “em travesti”, mas de um homem representando reis,
deuses, elementos da realeza, etc. Ainda que mantivesse a ambiguidade de gênero – pelo uso
de unhas postiças, perucas e sapatos de saltos alto estilo Luís XV para compor a indumentária
–, não era um homem se vestindo de mulher. Esses elementos compunham um personagem
masculino, facilitando a sua apropriação pelas mídias sem ameaçar a moral da época.
Entretanto, a ambiguidade de gênero materializada nesses homens logo seria
denunciada, como se percebe em matéria da revista Fatos & Fotos, de 21 de dezembro de
1974. Nessa edição era noticiada a proibição dos concorrentes masculinos desfilarem no Baile
de Gala do Theatro Municipal, o que gerou intensos debates entre os organizadores dos
concursos, que já contavam com uma equipe especializada composta pelos empresários
Belino Melo e Armando Montel, as companhias de turismo e o presidente da RioTur à época,
Cel. Aníbal Uzeda de Oliveira. A essa altura, tais certames eram conhecidos mundialmente,
sobretudo pela agência das personalidades masculinas que neles concorriam. As companhias
de turismo mostravam-se preocupadas com os rumos de tal evento, dada a proibição de seus
principais baluartes, como Evandro de Castro Lima, Clóvis Bornay e Mauro Rosas. Por sua
vez, os empresários especializados na produção do concurso ameaçavam recuar em seus
preparativos caso persistisse a reprovação dos concorrentes masculinos no Municipal. A
tensão entre esses diferentes interesses evidencia a importância que os concursos tinham na
construção do carnaval, não somente como uma festa local, mas como um evento mundial.
Essa importância só foi conquistada em função da presença desses homens, que provocavam
perplexidade com suas fantasias luxuosas nos 30 segundos em que desfilavam.
A agência desses indivíduos não se esgotava nas passarelas. Basta um olhar nas
revistas de grande circulação nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil, tais como a Fatos &
Fotos e Manchete, para perceber a recorrência de imagens e reportagens que cobriam os
concursos, mas, sobretudo, os seus mais destacados participantes. Todos queriam saber as
novidades de Clóvis Bornay para o carnaval: em qual escola ele iria desfilar e com que
fantasia. Existia uma relação entre esses homens e o tradicional desfile das escolas de samba.
Bornay, por exemplo, chegou a ser carnavalesco de importantes agremiações, como o
Salgueiro, a Unidos da Tijuca e a Portela, para a qual conquistou o campeonato em 1970. A
72

figura do destaque, pessoas com fantasias luxuosas que geralmente são colocadas no topo dos
carros alegóricos, foi uma das inovações criadas por esses homens.
Os concursos, as fantasias e as esplendorosas inovações nos desfiles das escolas de
samba foram convertidos em símbolos do carnaval do Rio de Janeiro. Os turistas acorriam ao
Rio para ver esse espetáculo da exibição que as fotografias levavam aos cantos mais afastados
do planeta. Afastar homens como Clóvis Bornay do carnaval implicava uma tarefa quase
impossível para instituições como a RioTur, a qual dependia da equação turismo/propaganda.
É possível afirmar que a esses sujeitos está intrinsecamente associada à definição moderna do
carnaval e à sua apropriação pela crescente indústria do turismo, que projetava
internacionalmente imagens da folia nas quais essa presença era parte integrante.
Apesar da tentativa de silenciamento operada pelo presidente da RioTur, os concursos
de fantasia continuariam sendo amplamente cobertos pelos meios de comunicação do período.
Eles recebiam grande atenção de determinadas camadas da sociedade, preocupadas em se
distinguir do conjunto da massa. Com a proibição do Municipal, a realização se expandiu para
outros clubes e hotéis do Rio de Janeiro.
Como pode ser observado na figura a seguir, o principal palco onde eram realizados
esses concursos passou a ser o Hotel Glória, famoso por ser o primeiro cinco estrelas do
Brasil. Seus salões foram abertos para um público seleto composto, sobretudo de turistas, cuja
principal exigência era o uso do traje black-tie. O certame ganhou vasta cobertura de
emissoras de televisão e algumas revistas da época dedicaram muitas páginas ao evento. O
júri era formado por personalidades, incluindo as famosas misses, que capitalizavam ainda
mais repercussão midiática. Sugiro que existia uma relação de proximidade entre esse
universo e aquele das misses, cujo componente agregador era o glamour. Contando com essa
estrutura, às 18 horas do sábado de carnaval, abrindo os festejos, começava o concurso de
fantasias do Hotel Glória, sendo transmitido a milhares de brasileiros por diferentes emissoras
de televisão.
73

Imagem 06 – Concurso de fantasias no Hotel Glória – 1975


(Fotografia: acervo pessoal das filhas de Clóvis Bornay).

Foi nos bailes de salões elegantes, como os do Municipal e Hotel Glória que Clóvis
Bornay e Evandro de Castro Lima, seu famoso concorrente, consagraram-se como grandes
vencedores dos concursos de fantasias. Durante algum tempo, os dois até foram amigos, mas
a disputa nos concursos de fantasias despertou uma rivalidade sem precedentes, que se tornou
ainda mais dramática quando, coincidentemente, as fantasias que produziram mostraram-se
idênticas, como no caso do pavão que desfilaram na 9ª Edição do Concurso de Fantasias
Inéditas do Baile Oficial da Cidade. Na imprensa, Clóvis Bornay acusava Evandro de Castro
Lima de ter um pacto com o diabo e um olho mágico em casa, para observar tudo que ele
fazia para depois reproduzir.
Acredito que o protagonismo desses homens nesses concursos instituiu uma “ponte”
entre esse universo e aquele da televisão, que ia se ampliando. Esses concursos e os seus
personagens se constituíram em objeto de consumo da população que, anualmente,
acompanhava as brigas, fofocas e os desfiles através dos jornais, revistas e televisão. Logo,
esses homens progressivamente entraram definitivamente no mundo televisivo como jurados
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dos famosos programas de calouros – como o Programa Sílvio Santos e a Discoteca do


Chacrinha –, com uma audiência marcadamente popular. Dessa entrada resultou uma
apropriação das sexualidades não-normativas pelos meios de comunicação de massa, a qual
teria provocado a consolidação de determinadas ideias acerca dessas sexualidades. Um dessas
ideias era a associação entre o “comportamento homossexual” e uma dada sensibilidade ou
mesmo predisposição para habilidades artísticas.
Com a repercussão midiática dos concursos de fantasias do Hotel Glória há um
deslocamento desses personagens do plano do carnaval – aqueles dias de folia nos quais se
tornavam momentaneamente famosos – para o plano da vida cotidiana. Personagens como
Clóvis Bornay começaram a habitar o lar da “família brasileira”, ajudando a consolidar
determinados significados sobre as sexualidades não-normativas de forma concomitante ao
consumo desse tipo de produção. Suas aparições na mídia deixaram de ser realizadas apenas
durante o período momesco.
A performance desses indivíduos ganhava assim o público, sendo progressivamente
identificada com um tipo social: a “bicha”. Essa associação ficou evidente no crescimento dos
personagens identificados como “bichas” na televisão brasileira. De acordo com Jô Soares,
em entrevista sobre a relação entre “homossexualidade” e televisão, o Capitão Gay,
personagem vivido por ele no programa Viva o Gordo, apresentado pela TV Globo na década
de 1980, teve Clóvis Bornay como principal influência para a concepção de personagem.
Conforme o apresentador, seus ares afetados de dândi foram fundamentais para dar vida ao
Capitão Gay, oferecendo à performance do personagem significados relacionados ao “estigma
da efeminação”. No terceiro capítulo será dada continuidade a essa reflexão, quando se
analisará a presença de pessoas identificadas como “bichas” e “bonecas” nos programas de
auditório exibidos na televisão brasileira.

1.3 – O Teatro de Revista

Apesar da proibição das autoridades policiais sobre a realização dos concursos de


fantasias nos bailes dos teatros da região da Praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro, a
prática de “fazer travesti” nos teatros de Revista crescia. Esse crescimento foi registrado pela
imprensa da época que, em tom de fofoca, noticiou na edição de O Globo de 29 de outubro de
1965, uma tira alertando sobre um suposto movimento das vedetes contra as “travestis”, que
75

estariam roubando o emprego das moças no teatro. A matéria falava ainda da “travesti” como
uma “moda” que vinha dominando o cenário cultural no Rio de Janeiro e em São Paulo,
inclusive com algumas boates se especializando nesse tipo de elenco. Nessa ocasião, o Teatro
de Revista passara a se chamar Teatro Rebolado, alcunha atribuída ao escritor e radialista
Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, ainda na década de 1950, para falar de um momento na
trajetória desse gênero teatral marcado por sua decadência. A história do Teatro de Revista,
porém, tem muito mais a oferecer para a compreensão das sexualidades não normativas e
daqueles indivíduos começavam a transformar um gênero diferente daquele atribuído ao
nascer. A emergência e decadência desse gênero teatral produziram um mundo de
significados, o qual serviu como ponto de partida nas trajetórias de vida de “travestis” como
Divina Valéria, Marquesa, Jane Di Castro e Rogéria.
A relação entre o Teatro de Revista e a produção das sexualidades não-normativas
como “lugar social” parece ser ainda mais estreita do que a vinculação desta produção com o
carnaval, e isto se deu por várias razões. O Teatro de Revista conformou um modelo de
experiência moderna única – a vida noturna, cuja mais expressiva instituição era o cabaré,
lugar onde afluíam homens em busca de prazeres, mas também onde mulheres construíam
carreiras alternativas ao seu itinerário de gênero. Tal mudança de percepção da noite como
momento de derives e prazeres, e não como momento de descanso, conforme até então era
vista, foi fundamental para a produção de um mercado de consumo do lazer ao qual se
conectaram compositores populares, empresários, atores, figurinistas, cenógrafos, etc. Esse
mercado produziu seus próprios objetos culturais – como as vedetes, as marchinhas, os atores
bufões, etc. –, responsáveis por uma nova gramática da cidade moderna.
Dessa forma, este tipo de linguagem teatral criou condições específicas para que esses
homens inventassem sentimentos de identificação, associando vida cotidiana com fazer
artístico. O “sentimento de communitas” vivenciado pelos artistas do Teatro de Revista teria
atraído, como “um imã”, toda sorte de homens e mulheres que não se identificavam com as
convenções vigentes acerca de gênero e sexualidade.
O Teatro de Revista surgiu no Brasil ainda na virada do século XIX para o XX. Desde
a sua origem esteve vinculado aos acontecimentos histórico-sociais que movimentaram a
sociedade brasileira nesse período. Mais do que isso, o Teatro de Revista exerceu papel
fundamental no desenvolvimento do gosto estético das camadas populares, na organização
espacial do lazer na cidade do Rio de Janeiro e, sobretudo, na propagação de valores e
sensibilidades associadas ao estilo de vida moderno, tal como aquele que vinha sendo
difundido nos países da Europa e nos Estados Unidos.
76

De acordo com Paiva (1991), a primeira Revista de que se tem notícia data de 9 de
janeiro de 1859. Seu título foi As surpresas do Sr. José da Piedade. A Revista ficou apenas
três dias em cartaz, sendo proibida pela polícia por ofender a moral e os bons costumes
vigentes na época. Contudo, nela já se percebem elementos em voga nos teatros parisienses,
principalmente em relação ao seu escopo principal: comentar de forma bem-humorada
acontecimentos do ano anterior e também os costumes que se materializavam em moda. A
chamada Revista do Ano se constituía em uma crônica – uma retrospectiva – que abusava da
linguagem do humor para evidenciar de forma crítica problemas vivenciados pelo conjunto da
sociedade brasileira. O cenário político associado aos seus bastidores serviu de matéria-prima
para a construção de peças que riam com desdém da recém-renascida República brasileira, a
qual havia sido proclamada sem que a população tivesse tomado conhecimento.
Apesar do pouco tempo em cartaz da primeira Revista, esse gênero de teatro teria
tomado projeção entre nós com a inauguração, no centro do Rio de Janeiro, na Rua da Vala
(hoje Rua Uruguaiana), do café cantante Alcázar Lyrique, em 1859. Este estabelecimento logo
abriu as suas portas para artistas individuais e trupes radicadas em Paris. No repertório
constavam operetas, romanças, cançonetas, duetos e outros estilos. Logo, o lugar passaria a
ser ocupado por um grupo variado de tipos sociais formado por boêmios, literatos e a média
burguesia ávida por novidades (PAIVA, 1991). Nas adjacências do novo estabelecimento se
fixou uma exuberante vida noturna, que se irradiava pelas ruas do Sabão (hoje, lado par da
Avenida Presidente Vargas), São Jorge (hoje, Senhor dos Passos) e Ouvidor. Nessas vias
interagiam toda a sorte de mulheres que, aproveitando o crescente fluxo de pedestres na área
em tão avançada hora, exploravam o negócio da prostituição.
O Alcázar Lyrique conseguiu muito mais do que consolidar um gênero de teatro já
estabelecido na capital francesa. Esse espaço instituiu a vida noturna na então capital da
República, cidade que passou a contar com uma noite cada vez mais cosmopolita, na qual a
circulação de diferentes pessoas em estabelecimentos notívagos passou a ser um hábito
urbano. Esse processo provocou implicações não somente no comportamento dos moradores
da cidade, mas ainda promoveu a existência de modos de vida até então não inteligíveis. Para
Calmon (1967):
A nova cidade elaborou tipos sociais observados com surpresa e escândalo, curiosa e
ironicamente pelos cronistas de costumes. A urbanização da vida, o
desenvolvimento do Estado, a democratização da lavoura, a prosperidade das classes
liberais, a vasta democracia entretida pela política, que faz do emprego público um
dos seus esteios partidários, subvertem a antiga estrutura pacata, hierárquica,
definida, da sociedade brasileira (CALMON apud PAIVA, 1991).
77

Essa nova cidade tomava Paris como modelo, valorizando em seu novo desenho não
somente os artistas vindos de lá, mas também seu estilo de vida urbano. Desse primeiro
momento do Teatro de Revista destacam-se as obras do teatrólogo brasileiro Artur de
Azevedo, que escreveu peças que marcaram a história desse gênero, tais como O bilontra; Há
alguma novidade? – partitura da maestrina Chiquinha Gonzaga –; Comeu! e a Capital
Federal. O conjunto dessas peças expressava críticas e opiniões sobre os acontecimentos do
ano, principalmente aqueles relacionados à vida política.
Além das críticas mordazes evocadas nos textos, o Teatro de Revista instituiu modas e
operou mudanças nas convenções sociais, sobretudo no que se relaciona a gênero e
sexualidade. Um importante registro desse processo pode ser observado no sucesso do
penteado à la garçonne, que triunfou entre as coristas e instituiu uma tendência entre as
mulheres, que começaram a cortar seus cabelos à altura da nuca, verdadeiro escândalo em
uma época em que os cabelos longos eram um importante marcador de gênero.
O Teatro de Revista se constituiu como um vivaz catalisador de sentimentos coletivos
em um período no qual a cidade do Rio de Janeiro, já representada como centro irradiador
cultural e político brasileiro, passava por transformações estruturais que afetavam seu traçado
urbano e a sua percepção de uma recente cidadania cosmopolita. Esse encontro entre o
tradicional e o moderno se manifestou de forma exemplar na transformação do carnaval
operada neste momento. A buliçosa festa popular começava a tomar ares mais comportados,
demonstrando a adesão aos modelos dos carnavais festejados em Nice e Veneza – banhos de
mar à fantasia, bailes de máscaras e desfiles mais comedidos. Esses novos hábitos
carnavalescos ganharam uma camada da sociedade que possuía dinheiro e prestígio e que
passou a frequentar os cafés cantantes, como o Alcázar Lyrique, evidenciando a ascensão
burguesa pari passu ao vertiginoso crescimento urbano (PAIVA, 1991).
Essas transformações foram retratadas em diferentes peças desse gênero teatral. A
invenção da Revista pré-carnavalesca, ainda na mudança do século XIX para o XX, marcou a
aproximação definitiva entre o Teatro de Revista e os festejos dessa festa. Disso resultaram
imagens que se fixaram na imaginação popular e que são, ainda hoje, enaltecidas como
símbolos de brasilidade, como a baiana branca, tão presente nos festejos momescos. O Teatro
de Revista foi grande propagandista dos inventos populares da festa de momo. Se em sua
origem esse teatro demandava o gênio criativo de artistas estrangeiros, ao travar intimidade
com o carnaval passou a ser palco de ritmos como os maxixes, lundus, toadas, xotes, polcas,
das famosas marchinhas e do tão aclamado samba. Mas a afinidade do Teatro de Revista com
o carnaval ia muito além. Acredito que esse gênero de teatro foi um impulsionador do que iria
78

ocorrer décadas depois com o carnaval, ou seja, o desfile das escolas de samba. Foi nos
bastidores das Revistas que se iniciaram nomes como Fernando Pamplona, carnavalesco que
revolucionou o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro nas décadas posteriores.
Os sucessos aclamados pela audiência popular que embalaram os salões de bailes de
carnaval tinham o seu prelúdio nas Revistas pré-carnavalescas. Temas imortalizados, como
Linda Flor (ai, yoyo); Taí; O teu cabelo não nega; Pastorinhas; Yes, nós temos bananas,
entre muitos outros de importância para a formação do nosso cancioneiro e gosto popular,
surgiram no contexto desse tipo de teatro. Simultaneamente, ganharam projeção os
compositores e intérpretes vindos das classes populares que singularizaram a sua presença na
cena musical, tais como Sinhô, Ismael Silva, Lamartine Babo, Ary Barroso, Mário Lago, etc.
Ao mesmo tempo, esse teatro tornara-se moda entre a jeunesse doreé intelectual que,
associada aos cantores populares, consolidou esse gênero como nacional, resistente ao assédio
estrangeiro (PAIVA, 1991). Em suma, o Teatro de Revista constituiu-se como o primeiro
canal de comunicação em massa, antes mesmo do rádio, ao divulgar os sons que se
conformariam em moda nos salões lotados de foliões. Com o advento do rádio, que alcançou
a sua época áurea nas décadas de 1940 e 1950 (AVANCINI, 1996), o Teatro de Revista
manteve conexões íntimas com a radiofonia, oferecendo espaço para os cantores da Rádio
Nacional, como Herivelto Martins, Dalva de Oliveira e Emilinha.
Ainda que a aproximação com o carnaval tenha sido decisiva, o Teatro de Revista
sofreu grande influência das companhias francesas e italianas que vinham para cá se
apresentar. Essas turnês revestiam ainda mais a capital da República de “brilhos
civilizatórios”, inserindo definitivamente o Rio de Janeiro no circuito cultural internacional.
Esse prestígio marcou uma mudança no formato das Revistas até então encenadas. A chamada
“época de ouro” do Teatro de Revista data de 1922 a 1940, a partir da chegada, de Paris, da
companhia de Revistas Ba-ta-clan, conduzida por Madame Rasimi. A companhia
resplandecia de novidades e engenhosas técnicas de apresentação corporal no palco, sendo o
nu feminino uma de suas mais importantes contribuições ao nosso Teatro de Revista.
Combinada a essa inovação, a companhia trazia novidades na iluminação, cenários grandiosos
e técnicas de movimentação que ampliavam o efeito lúdico dos espetáculos (PAIVA, 1991).
A nudez de mulheres com corpos marcantes foi ainda influenciada em função da cada vez
maior atração que se tinha do cinema, uma nova arte que arrebataria multidões fascinadas pela
mistura de movimento e fantasia.
É atribuída ainda à formação do Teatro de Revista a profissionalização do mercado de
produção de shows e entretenimento no Brasil, promovendo, mormente, a figura do
79

empresário como profissional que passou a ganhar cada vez mais fama com as produções. O
italiano Pascoal Segreto foi um precursor, ao comprar o Teatro Santana, incrementando a sua
presença no mundo dos espetáculos. Porém, Walter Pinto, com seus espetáculos adornados
pelo luxo e estilo broadwayano, marcou a história desse gênero teatral e, mais do que isso, as
imagens que evocamos dele. Filho mais novo de Manoel Pinto, também empresário destacado
do Teatro de Revista no estilo Ba-ta-clan, Walter Pinto assumiu os negócios da família após a
morte de seu pai e do irmão mais velho (PAIVA, 1991).
Além da nova estética que estabeleceu para o gênero, Pinto iniciou um processo de
vinculação do nome dos produtores às companhias de revistas. Ele tinha o hábito de fixar seu
nome em letras ainda maiores do que as dos artistas presentes no show na entrada dos teatros,
fazendo-se reconhecer entre as plateias. Esse produtor inaugurou uma nova fase no Teatro de
Revista, conhecida como féerie, um tipo de espetáculo trazido da França que misturava
diferentes linguagens artísticas, tais como canto, dança, acrobacias, iluminação cênica,
movimentos, etc.
Foi pelas mãos de Walter Pinto, sempre ávido por novidades, que, em 1953, Ivaná, o
primeiro artista “em travesti” midiatizado no Brasil, estreou nos palcos do Teatro Recreio.
Ivaná atuou e dançou na Revista É fogo na jaca, sendo celebrizada por sua execução da
canção Cherchez le milionaire. A revista Manchete, em seu número 75, de 26 de setembro de
1953, trazia sua foto estampada na capa. Dentro da revista, na matéria intitulada Ivaná – a
grande dúvida, o jornalista Ivo Serra chamava a atenção para aspectos pessoais da vida da
artista. Nascido Ivan Monteiro Damião, de pais portugueses, veio ao Brasil com outros
artistas franceses importados por Walter Pinto. A participação de homens “em travesti” não
era novidade no Teatro de Revista, mas Ivaná despertava o interesse pela perfeita imitação do
feminino que materializava. Já na publicidade do espetáculo, Pinto noticiou que uma das
artistas que o compunham era uma “transformista”, mas sem revelar quem. Foi a Manchete,
no citado número, que cumpriu a tarefa de revelar o segredo de Ivaná. Escreveu Ivo Serra que
era hábito comum no Teatro de Revista usar o “gênero travesti”, popularizado nas
personagens vividas por atores como Oscarito, Grande Otelo e Carlos Gil, mas, afirmou,
Ivaná surpreendia por “viver mesmo uma atriz famosa”.
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Tal perfeição foi encarada pelo público com certo desconforto. Na revista Ronda da
Noite, número 03, data desconhecida (acervo do CEDOC-FUNARTE)27, periódico que
dedicava muitas de suas páginas às vedetes do Teatro de Revista, na matéria intitulada Êle,
traz um esclarecimento ao leitor sobre o “gênero travesti”. Ao se referir sobre essa prática, o
autor destaca Ivaná com uma das artistas mais experientes nesse métier, fazendo-o conhecido
em diferentes regiões do Brasil. “Fazer travesti” aparece na matéria como uma arte, no
sentido estrito do termo. Ao afirmá-lo como tal, a matéria ressalta que a “arte de Ivaná” é
produzida sem os “atributos condenáveis, sem o auxílio do homossexualismo”. Tal defesa do
gênero se justifica em função das reações negativas da plateia que, como salienta a revista,
vaiava Ivaná em suas apresentações. As vaias direcionadas são percebidas pela matéria como
manifestações grosseiras da falta de espírito do público brasileiro para esse tipo de espetáculo.
Ao finalizar, o crítico chama a atenção para a necessidade de aprimoramento do senso
artístico das plateias brasileiras que, mesmo pagando caro para ter acesso ao espetáculo, não
possuíam ainda capital cultural acumulado
para apreciar o conjunto das linguagens da arte
ali exibidas. Acredito que o Teatro de Revista,
ao mesmo tempo que ofereceu um importante
espaço de exibição desses novos tipos sociais,
criou condições para que estes fossem
assimilados pela sociedade, através da
formação de um público que afluía aos
espetáculos.
Outro grande empresário reconhecido
pelo nome que emprestava às Revistas foi
Carlos Machado, o chamado “Rei da noite”.
Esse indivíduo foi um mediador importante no
período de transição entre o Teatro de Revista
no estilo féerie e o período de surgimento das
Imagem 07 – Ivaná (Revista Manchete, nº 75, 26
grandes boates no Rio de Janeiro. Carlos Set. 1953. Fonte: acervo pessoal de Rita Colaço).
Machado foi entusiasta do estilo burlesque
típico do Moulin Rouge, de Paris, que virou moda nessa cidade e passou a ser reproduzido no
Brasil. Sua carreira de empresário nas boates se deu na proibição dos cassinos no Brasil, em

27
Agradeço a Rita Colaço pela disponibilização dessa revista, bem como da revista Manchete que possuía Ivaná
na capa.
81

1946, estabelecimentos onde costumava apresentar a sua orquestra. Logo, Machado seria
convidado para ser diretor artístico da boate Night and day, na Cinelândia, local que marcou a
noite carioca com a presença de personalidades de grande valor artístico, como Amália
Rodrigues. Em 1948, ele criou a própria boate, a Monte Carlo. Em 1953, inaugurou, na Praia
Vermelha, a boate Casablanca. Os shows organizados por Machado ganharam audiências
mundiais, nas quais se fazia reconhecer o valor do cancioneiro popular brasileiro, como no
espetáculo Brasil, apresentado no Radio City Music Hall, em Nova York. Suas boates
ofereciam empregos às “novatas” que decidiam se aventurar na arte de “fazer travesti”.
Além da herança musical deixada pelo teatro de Carlos Machado, outro traço
característico deste revisteiro, como eram conhecidos esses empresários, eram as vedetes
consideradas as mais belas mulheres da época. Segundo Marquesa, só chegavam a ser vedete
de Machado aquelas mulheres que reuniam um conjunto de atributos quase que inalcançáveis
pelas mulheres comuns, como medidas invejáveis de pernas, cintura, quadril e bumbum.
Segundo esse empresário, para ser vedete a mulher teria que ser milimetricamente perfeita,
dotada de uma quase extraordinária beleza, sem a qual não obteria êxito profissional. O
revisteiro selecionava minuciosamente as moças, chamando para ser vedete somente aquelas
dotadas desses atributos. As outras eram aproveitadas como girls, ou seja, serviam de
figurantes, sendo dispostas nas bordas do espetáculo – uma espécie de moldura.
Acredito que as vedetes do Teatro de Revista contribuíram para a construção de um
imaginário acerca do “feminino glamouroso”, pois em nenhum outro espaço o glamour foi tão
abertamente dramatizado quanto nesse mundo, e as figuras que o materializaram de forma
mais bem-acabada foram certamente essas mulheres. Nenhum outro corpo e performance
também foram tão representativos do savoir-faire do Teatro de Revista quanto o dessas moças
que, sobretudo na fase féerie, foram retratadas com trajes sensuais e acessórios que
acentuariam ainda mais as curvas dos seus corpos. Nomes como Virgínia Lane, Mara Rúbia,
Íris Bruzzi, Brigitte Blair, Eva Todor, entre outras, alimentaram a imaginação de muitos
homens que convergiam aos teatros da Praça Tiradentes para apreciar seus dotes sinuosos.
A aparição dessas mulheres constituiu um momento importante na construção de um
erotismo à brasileira, que algumas décadas depois ganhou sua versão mais bem acabada nos
programas de auditório. A tese de Bispo (2013) sobre a trajetória de vida das chacretes da
primeira geração dos programas do Chacrinha evidencia a relação de contiguidade entre essas
mulheres e aquelas do Teatro de Revista. Essa relação refletiu-se na formulação dos projetos
82

de vida das chacretes analisadas pelo autor28. Algumas delas chegaram a revelar que o seu
“aprendizado da sensualidade” teria se dado justamente com as vedetes ainda quando jovens,
como afirmou Ivone, ex-chacrete entrevistada por Bispo (2013), que atribui a Mara Rúbia sua
desenvoltura corporal, uma vez que foi com esta vedete que aprendeu que: “Uma verdadeira
mulher deve ser sensual até mesmo descendo escadas” (BISPO, 2013, p. 82).
Mas essas mulheres não serviam apenas aos anseios de uma geração de homens que
aprendiam a ser machos a partir do erotismo emanado de seus corpos e performances. Elas
nutriam a imaginação de outro conjunto de homens, que viam em sua performance um
“mundo de ideias” (BAKHTIN, 1993) para inventar sua própria existência. As vedetes
constituíram muito mais do que um fenômeno erótico, elas marcaram a trajetória de vida de
muitos indivíduos que, como as chacretes da primeira geração, circulavam em meio ao
rebuliço da Praça Tiradentes e da Cinelândia, a exemplo de Divina Valéria, Marquesa e
Rogéria. Marquesa disse que o seu primeiro contato com um “homem em travesti” para além
do carnaval foi no Teatro de Revista. Ao ver Sophia Loren, “homem em travesti” assim
nomeado em função de sua semelhança com a atriz italiana, Marquesa percebeu em si mesma
uma espécie de atração para aquele universo no qual o glamour era um valor central e
articulador.
Considerando essas relações, é possível inferir que as vedetes possibilitaram a
construção de um repertório de performances, técnicas corporais e imagens que foram
cristalizadas na memória coletiva de toda uma geração de homens e mulheres. Elas
consolidaram uma representação hiperfeminilizada de si, muito semelhante àquela observada
por Bispo (2013) entre as chacretes que pesquisou. A noção de superfêmea é elaborada por
este autor, à luz do conceito de performatividade de Butler (2003), para explicar a produção
performática de um modelo de feminilidade convencional dramatizado ao exagero pelo uso
dos corpos, dança e performance em cena – sempre motivando uma apresentação de si
extremamente sensual e sexualmente disponível (BISPO, 2013).
A noção de superfêmea adotada por Bispo (2013) está intimamente relacionada com o
desenvolvimento dos veículos de comunicação de massa e a produção de imagens para um
público cada vez mais interessado na vida dessas personagens. As vedetes do Teatro de
Revista estamparam as capas dos principais veículos de comunicação da época, tais como a
Revista do Rádio e O Cruzeiro, atraindo um público variado que ambicionava penetrar na
intimidade dessas mulheres poderosas.

28
De acordo com Raphael Bispo (2013), as chacretes podem ser divididas em duas gerações: as da década de
1970 e de 1980.
83

A repercussão midiática de personagens que encarnavam a superfêmea seria ainda


mais estreita com a emergência de uma tecnologia que explodiria com toda a força nas
décadas de 1940 e 1950: o rádio, trazendo com ele o aparecimento das cantoras do rádio,
consagrados fenômenos da cultura de massa que marcaram a sociedade brasileira. As vedetes
não possuíram o mesmo poder de atração exercido pelas cantoras do rádio sobre o seu
público, mas já conseguimos observar nas formas como eram representadas pelos veículos da
época a produção de uma feminilidade prestigiosa, para adotarmos expressão de Mauss
(2003). Tal feminilidade foi explorada ainda mais pelas cantoras do rádio na construção de
personas midiáticas, como fica evidente na rixa entre Emilinha e Marlene que ganhava as
manchetes da Revista do Rádio (AVANCINI, 1996). Ambas encarnavam faces da superfêmea
em suas aparições públicas que faziam com que a audiência se identificasse com uma ou
outra.
Acredito que a espetacularização da superfêmea através dos veículos de comunicação
da época, também logo depois celebrada nos auditórios da Rádio Nacional (AVANCINI,
1996), foi fundamental para a produção de sensibilidades com as quais se identificariam as
“bichas”. Tal performance, ao mesmo tempo que valorizava elementos que impunham sobre
as mulheres estereótipos de gênero, revelava a artificialidade das convenções de gênero e
evidenciava uma “performance de poder” – poder de sedução, de conquista, de domínio, de
glamour. Foi essa “performance de poder” que atraiu a idolatria de tantos indivíduos que
cobiçavam a existência para além dos dias de carnaval. Essa atração, mais do que isso, gerou
solidariedade entre os mesmos, o que será analisado nos próximos capítulos desta tese.
Paiva (1991) afirma que a decadência do Teatro de Revista no Brasil se explica por
vários fatores, dentre os quais talvez o mais representativo tenha sido a massificação do nu
feminino, o que implicou um recuo das “famílias de bem” ao teatro e o seu progressivo
descarte. Acredito que esse momento final da era do Teatro de Revista foi essencial para a
emergência de uma categoria de pessoas que, ainda que estivessem presentes desde a origem
desse teatro, como fica evidente no elenco das montagens29, assumiriam a ribalta: as
“travestis”. Foi no Teatro de Revista que aqueles jovens que aproveitavam a atmosfera lúdica
do carnaval para celebrar solidariedades a partir da aproximação com outros que
compartilhavam desejos sexuais semelhantes encontraram permissão para “serem eles

29
No livro Viva do rebolado, Salvyano Cavalcanti de Paiva (1991) traz informações valiosas sobre o elenco e
equipe técnica de diferentes espetáculos de Revista ao longo de sua trajetória. Em muitas ocasiões, era possível
observar os nomes de “travestis” que estavam presentes nos shows, sobretudo Ivaná, que aparece no elenco de
várias revistas. Paulo Varelli também é apresentado como “um travesti” nas revistas. Infelizmente, o autor dá
pouco destaque à presença dessas pessoas na sua história de Revista. Aparentemente, o aumento das “travestis”
nas Revistas é identificado por ele como um sintoma da decadência desse gênero no Brasil.
84

mesmos”, sem os riscos de perseguição ou demissões sumárias. Foi no Teatro de Revista que
se experimentou a personagem etérea do carnaval na vida cotidiana. O Teatro de Revista se
constituiu como uma possibilidade de agência na qual era possível remodelar projetos de vida
de que as diversidades de gênero e sexualidade passaram a ser parte constitutiva.
É possível acreditar que foi nesses teatros da Praça Tiradentes que muitos desses
homens começaram a redesenhar suas trajetórias de vida, reunindo fragmentos de outras vidas
em um processo de agenciamento. Esse mundo inventado pelas vedetes e performatizado
pelas “travestis” que se profissionalizariam30 desestabilizava as convenções sociais
relacionadas a gênero, uma vez que mostra como o feminino – ou o hiperfeminino – não
corresponde a uma biologia específica, mas antes é o resultado da repetição contínua de “atos
performativos” (BUTLER, 2003). Um exemplo significativo dessa artificialidade das
convenções sociais referenciadas à produção do feminino é dado por Bispo (2003) a partir da
análise da trajetória de algumas chacretes da década de 1970. Bispo (2013) revela que, em um
dado momento, não são apenas as vedetes que oferecem inspiração para essas mulheres no
processo de construção das suas performances de superfêmea, as “travestis” passaram a ser
celebradas pelas chacretes como exemplos de feminilidade a ser seguida e copiada.
Em sua tese, Bispo (2013) analisa o depoimento de Rita Cadillac em um documentário
sobre a sua trajetória de vida, no qual fica evidente o quanto Rogéria foi fundamental para
compor a sua performance de superfêmea. Essa tese me aguçou a curiosidade sobre tal
depoimento. Ao assistir à película, pude constatar a vedete afirmando ser Rogéria o exemplo
de feminilidade que adotou para desenvolver a sua performance, tanto nas aparições que fazia
na televisão quanto em outros trabalhos, como em fotografias para revistas. Foi com Rogéria
que Rita aprendeu a se comportar, a se maquiar, a usar roupas que realçavam a sua
hiperfeminilidade, enfim, a ser uma “mulher fatal”.
As “travestis” ressignificaram a noção de superfêmea. Foram essas personagens que
começaram a originar sentidos não somente acerca das sexualidades não-normativas, mas
também sobre a produção de sensibilidades femininas que contribuíram para a formação da
cultura de massas. Não se está mais abordando aqueles “homens em travesti” que faziam da
prática de se vestir do outro gênero uma rotina carnavalesca: nesse período começou a
emergir um conjunto de indivíduos que, como “desbravadores”, ganhariam a cena pública,
despertando para si não o horror dos jornais que demarcavam os “perigos” dos bailes
carnavalescos com “homens em travesti”, mas a curiosidade dos que queriam conhecer o seu

30
Falaremos sobre esse processo no Capítulo II.
85

cotidiano, seus projetos e anseios – reconhecendo uma mudança operada nas convenções de
gênero e sexualidade que estruturavam a sociedade brasileira, associados a uma “vontade de
civilização”, evocada, principalmente, por uma elite que tornara a cidade seu teatro.

1.4 – Concursos de miss

Importantes estudos sobre a construção das sexualidades não-normativas no Brasil


marcam a década de 1960 como um momento de eclosão de espaços dedicados à
“sociabilidade bichal”31 nas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, Salvador e São
Paulo (GREEN, 2000; TREVISAN, 2000; FACCHINI, 2005; FIGARI, 2007; FACCHINI e
SIMÕES, 2009). Esses trabalhos caracterizam essa “movimentação”32 inicial como
particularmente marcada pela clandestinidade, mas, também, pela intimidade dos encontros
que se beneficiaram das redes de relações, sobretudo estabelecidas entre as “bichas”33, os
quais consolidaram fortes laços de amizade.
Na literatura especializada sobre a construção das sexualidades não-normativas no
Brasil são abundantes os dados acerca da importância dos concursos de Miss na forma como
as “bichas”34 das décadas de 1950 e 1960 construíram suas pautas de sociabilidade. Esses
concursos ofereciam uma oportunidade única para essas “bichas” interagirem e negociarem
pertencimentos identitários em um contexto de invisibilidade marcado pela experiência da
clandestinidade. O interesse pelos concursos de Miss está intimamente ligado à consolidação

31
Apesar de não ser uma categoria nativa, acredito que a noção de “sociabilidade bichal” é mais apropriada para
se referir a esses espaços e grupos dos quais as “bichas” faziam parte.
32
A noção de “movimentação” está presente nas análises de Regina Facchini e Júlio Simões (2009) sobre o
surgimento do movimento homossexual no Brasil. Segundo os autores, essa dinâmica de “homens
homossexuais” em redes de amizades nas décadas de 1950 e 1960 foi fundamental para a constituição do
movimento que surgiria na década de 1970.
33
São muitos os trabalhos sobre sociabilidade de “bichas”, se comparados à exiguidade de estudos sobre a
sociabilidade de “mulheres lésbicas”. Os estudos que se dedicaram a estudar a história social dessa sociabilidade
não deram atenção às formas encontradas pelas “mulheres lésbicas” para se encontrarem e se relacionarem
afetivo-sexualmente. Acredito que a invisibilidade dessa sociabilidade se deu em função das contingências a que
estavam submetidas essas mulheres: muitas não possuíam apartamentos próprios, não tinham uma vida
financeira estável, etc., elementos que limitavam os seus acessos ao espaço público. A etnografia de MacRae
(1990) sobre o grupo Somos oferece valiosas informações sobre as “mulheres lésbicas” participantes desse
movimento. Os trabalhos de Andrea Lacombe (2010) e de Nádia Meinerz (2011) apresentam-se também como
importantes referências em meio a essa escassez de estudos.
34
Divina Valéria, Marquesa e Anuar adotam a categoria “bicha” para falar desses jovens identificados como
“homossexuais” que frequentavam os bastidores do Rádio e os Concursos de Miss. Adoto a noção de “bicha” a
partir de agora como categoria nativa que emerge dos discursos desses interlocutores.
86

da sociabilidade “bichal” no país. Esse interesse, assim como o carnaval, possibilitou a


ocupação de espaços e a materialização de sexualidades não normativas.
A escolha da Miss Brasil, o famoso concurso realizado no Maracanãzinho, estádio do
Rio de Janeiro, que tinha por objetivo selecionar a mulher mais bela do Brasil, foi o primeiro
espaço público apropriado pelas “bichas” para além do período de carnaval. Tal apropriação
permitia a esses homens, em um espaço público compartilhado inclusive por “pessoas de
família”, vivenciar algumas liberdades, como, por exemplo, dar “pinta”35 e “fechar”36, sem se
preocuparem com o rígido controle moral a que eram submetidos em outros locais.
Anuar esteve nos concursos de Miss Brasil realizados no Maracanãzinho. Ele já
morava no Rio de Janeiro quando o certame acontecia, com toda a opulência daquele período.
De acordo com o seu relato, os concursos eram momentos únicos na vida de uma “bicha”.
Eram, portanto, aguardados com grandes expectativas por essas pessoas. Neles, podia-se usar
toda a criatividade e artifícios para dar vazão a uma vida controlada por moralidades bem
rígidas. Conforme o depoimento de Anuar para a minha dissertação de mestrado, defendida
em 2012:
O chique, o maravilhoso, era você sentar-se na arquibancada, no último lance da
arquibancada... No último lance, as “deslumbradas”, aquelas “bichas”... aquelas
louquinhas, elas desfilavam lá em cima, e cá embaixo nós todas lindas,
maravilhosas, modelos lindas. Cada uma fazia a sua roupa para ir no coisa, tinha
gente lá... de estola de pele, mil coisas (SOLIVA, 2012, 35).

Essa experiência também aparece na trajetória de Divina Valéria, que desde muito
jovem ocupou a região da Cinelândia com outras “bichas” da mesma idade. Essas mesmas
pessoas tomavam as arquibancadas do Maracanãzinho e, em um espetáculo à parte daquele
que ocorria no palco, promoviam um concurso paralelo onde eram os principais protagonistas.
No intervalo, a gente ficava na arquibancada do Maracanãzinho, e no intervalo tinha
sempre um intervalo assim: para contar os pontos, não sei o que, para depois vir as
finalistas. Nesse intervalo, nós, eu e minhas amigas, que era um grupo mais ou
menos grande, nós fazíamos, em cima na arquibancada, o desfile. E o
Maracanãzinho vinha abaixo! Nós desfilando. Cada um íamos... era frio, era junho
sempre, com pulôver, gola rulê enorme, cada um, e nós desfilávamos. Dávamos
mais show do que elas lá em baixo. E elas mesmo, não elas, por que elas tudo pelo
camarim, mas todo mundo que estava passando, os convidados, o júri, tudo lá
embaixo, assim, ficavam tudo olhando e aplaudia (Divina Valéria).

Anuar Farah e Divina Valéria fazem parte dessa primeira geração de “bichas” que
viam nesses eventos uma oportunidade de espetacularizar a “bichice”, rompendo

35
Exibir de forma exagerada a “homossexualidade”.
36
Segundo Costa (2002), a “fechação” seria uma forma abrasileirada da estética e linguagem camp. Discuto de
forma mais detida o camp a seguir.
87

momentaneamente com o silêncio da experiência de vivenciar uma sexualidade não


normativa. De forma concomitante a essa espetacularização, com os concursos se promovia
uma oportunidade de “estar junto”, no sentido proposto por Simmel (1983) acerca da
condição plena da sociabilidade, não somente no evento, mas nos dias que o antecediam. Com
essa aproximação espacial motivada pela sintonia de interesses, acredito que esses indivíduos
tinham a oportunidade de perceber que possuíam muito mais coisas em comum do que
somente torcer pelas misses na fila indiana. Valéria conta como os concursos de miss
agregavam, na porta do Hotel Serrador, na Cinelândia, centro do Rio, um contingente
expressivo de “bichas” (expressão adotada por ela), que formavam filas para ver de perto as
candidatas.
A gente ia ao Maracanãzinho! Antes nós escolhíamos a nossa favorita, miss, que
agente quisesse torcer. A gente escolhia olhando elas pessoalmente todo o dia
quando elas viam de ensaiar ou de algum jantar, por que todas ficavam na
Cinelândia, no Hotel Serrador, elas ficavam ali, todas as misses, anos após anos. Aí
a gente já sabia qual era a hora que elas chegavam mais ou menos, aí a gente ficava
tudo ali. Aí fazia aquela fila indiana na porta do hotel, elas iam soltando do ônibus e
passando na fila indiana entrando no hotel e o pessoal aplaudia. Ih a do Rio Grande
do Sul é a mais bonita! Ah não, gostei mais a da Paraíba! E olha aquela...E isso era
durante uns dez dias que elas estavam ensaiando, elas estavam todas reunidas ali
(Divina Valéria).

Acredito que essa convivência prolongada instigou reconhecer gostos semelhantes


capazes de estruturar redes de amizades que não se esgotavam no evento. Os concursos de
miss não eram somente frequentados pelas “bichas”: eles marcaram todo um período da
história brasileira mais recente, sendo um dos mais destacados eventos do ano, recebendo
ampla cobertura das mídias da época. Entretanto, para as “bichas”, se constituíam como um
calendário pleno de sentidos, através do qual se podia celebrar publicamente a “bichice”,
serem “elas mesmas”, sem que com isso fossem rejeitadas. Foi um período de suspensão
provisória das convenções sociais que beneficiou esses jovens e, ainda, um momento de dar
vazão, através do gozo e do lúdico, à imaginação
Acredito que os concursos contribuíram significativamente para a consolidação de
uma sociabilidade entre esses jovens que possuíam interesses semelhantes. Essa sociabilidade
ganhou forma nas “turmas de bichas e bofes”, grupos que se reuniam em festinhas íntimas
realizadas em apartamentos na década de 1950. As “turmas de bichas e bofes” foram
fundamentais para a construção de um “espírito de coletividade”, agregando homens
identificados como “bichas” que se reconheciam não somente pelas preferências sexuais, mas
também pelos gostos em comum. Emergiram dessas interações diferentes identidades que
produziram sentidos sobre as sexualidades não normativas.
88

A existência desses espaços possibilitou a esses homens não somente o deleite com a
liberdade confinada, mas também “colher vestígios” para depois reproduzir esse espetáculo
nos apartamentos em que eram oferecidas as festas entre amigos. Os famosos concursos de
miss foram elementos centrais na forma como organizavam a sua sociabilidade e forjavam
uma identidade grupal. Quando a Turma OK, a única “turma de bichas” da década de 1960
que se mantém até hoje, se instalou em um casarão na Lapa, na década de 1980, esses
concursos começaram a ter projeção ainda maior. Quando entrevistei Anuar Farah, antigo
presidente da associação, para a minha dissertação, ele disse que os concursos de miss
ocuparam grande parte de sua energia como presidente. O mais importante desses concursos
era a escolha da Miss OK, para a qual Anuar teria tentado, inclusive, alugar o próprio
Maracanãzinho, sem obter sucesso.
Na intimidade dos apartamentos ocorria uma movimentada vida social que conferia
contornos a essa sociabilidade. Lá se organizavam encontros, festinhas de amigos, rodas de
conversa e os esperados concursos de Miss, que exigiam muita organização e eram
aguardados com expectativa pelos envolvidos nessas redes. Vestir-se de outro sexo era prática
lúdica que se constituía como um elemento central na composição desses encontros. Em
minha pesquisa de mestrado sobre a Turma OK, alguns homens que participaram da primeira
formação desse grupo disseram que os concursos de miss eram os momentos mais
importantes dos encontros nos apartamentos. Em um contexto de ditadura militar, que
impedia que muitas pessoas se encontrassem em um mesmo espaço, era prática comum
aplaudir as candidatas (as “bichas”) com o estalar de dedos (FIGARI, 2007; SOLIVA, 2012),
para assim evitar o alarde de vizinhos que poderiam recorrer à polícia.
Os concursos de miss foram eventos que singularizaram trajetórias individuais e,
simultaneamente, impulsionaram a produção de identidades grupais pelo convívio entre
homens que se agregavam em função do certame. Lá ganhavam reconhecimento os símbolos
de distinção – elegância, beleza e luxo – pela plateia e jurados. Esse conjunto de valores
sociais deveria estar evidente não somente nas roupas luxuosas, mas também na hexis
corporal das concorrentes. Ou seja, deveria estar inscrito em seus corpos, produzindo um tipo
de corporalidade específica, capaz de materializar o glamour, tão importante nesse universo.
Essa corporalidade foi ressignificada por esses homens nos encontros de amigos, na praia de
Copacabana e na ocupação de outros espaços da cidade, como a Cinelândia e a Praça
Tiradentes.
89

1.5 – Nos bastidores da Rádio Nacional

Os concursos de miss e o carnaval foram importantes espaços ocupados pelas “bichas”


em um momento marcado pela clandestinidade. Porém, aqueles não foram somente os objetos
de interesse dessa sociabilidade que começava a se complexificar. Os fã-clubes das cantoras
do rádio, ainda na década de 1950, já conectavam esses homens em torno da idolatria a
figuras femininas, as grandes divas do rádio. Lembrados por Green (2000) e Figari (2007) em
seus estudos sobre a construção de sexualidades não normativas no Brasil, esses fã-clubes
mobilizavam milhares de jovens “bichas” em todo o Brasil, em um contexto de expansão dos
meios de comunicação de massa. Green (2000) afirma que:
O hábito de comparecer às representações na estação de rádio ou aos eventos
organizados pelo fã-clube colocava os homossexuais em contato próximo com
outros que compartilhavam as mesmas paixões e interesses. Amizades eram
estabelecidas, e aqueles que desconheciam a topografia homossexual do Rio de
Janeiro ou de São Paulo eram iniciados numa subcultura por meio desses contatos
(GREEN, 2000, p. 272).

Nos bastidores dessas rádios, seguindo ícones como Emilinha Borba, Marlene, Dalva
de Oliveira, entre outras, estavam aquelas que se tornariam mais tarde personalidades
importantes para uma geração de “bichas”, como Divina Valéria e Marquesa. Divina Valéria
disse que começou a frequentar o mundo artístico ainda muito cedo, sendo essa inserção
fundamental na sua vida.
Eu devia ter o quê?... 13, 14 anos, no máximo. Eu já frequentava a rádio, né? Porque
naquela época não tinha televisão. Eu frequentava a rádio, ia ver os meus grandes
ídolos, que depois passei a ser amiga de todas elas, de todos os ídolos. Era Emilinha
Borba, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Elizete Cardoso, eram os grandes ícones da
época, e Marlene. Então, eu frequentava muito a rádio e fazia no meu bairro, tinha
um clube em frente a minha casa, onde eu mesma organizava, com as menininhas da
rua shows onde nós nos apresentávamos domingo à tarde – e eu sempre era a pessoa
mais desembaraçada para se apresentar, para se organizar e já cantava, sempre
cantava (Divina Valéria, em entrevista concedida ao programa Perfil & Opinião, 12
ago. 2012).

Pode-se perceber, na sua fala, que a inserção nos bastidores da Rádio permitiu que
esses indivíduos construíssem um mundo alternativo àquele em que estavam estabelecidos.
Esse “mundo de sonhos” não era apenas compartilhado por pessoas como ela, mas também
por muitas mulheres que afluíam aos auditórios para recreação. Divina Valéria afirma que se
descobriu artista e também “travesti profissional” através dessa aproximação com o universo
material e simbólico das rádios e o acesso às celebridades. Tendo uma experiência familiar
hostil – sua mãe ficara viúva com dois filhos, ainda quando grávida dela, e casara-se
90

novamente com um homem com quem teve mais dois filhos, o qual lhe infligiu maus-tratos,
obrigando-a a trabalhar desde muito cedo apesar de seu pai ter deixado a família em uma boa
situação financeira –, Divina Valéria encontrou no glamour dos auditórios das rádios a
matéria-prima para se isolar desse universo doméstico.
Através de brincadeiras nas quais encenava a dinâmica de programas de auditório e
concursos de miss com as amigas do bairro forjou não somente uma carreira, mas também
contribuiu para a construção de um “lugar social” para si. Ainda morando com os pais no
bairro de Piedade, subúrbio do Rio de Janeiro, Divina Valéria começou a se dedicar ainda
mais aos bastidores do rádio. Segundo ela, seus irmãos foram saindo aos poucos de casa, em
função da pouca sensibilidade do padrasto. Quando tinha entre 17 e 18 anos, este descobriu o
seu “segredo”, expulsando-a de casa e impedindo-a de voltar. Diante desse episódio, Divina
Valéria foi viver sozinha, quando uma amiga, Fabete, que se tornou logo depois “travesti
profissional” e trabalhava na TV Rio, a levou para morar consigo no bairro de Botafogo, Zona
Sul do Rio de Janeiro. Lá, Divina Valéria conseguiu emprego como boy em uma empresa de
engenharia, a Cosmo Engenharia, mas continuou frequentando a Rádio Nacional e, logo
depois, a TV Rio.
Da mesma forma que na trajetória de Divina Valéria, o auditório da Rádio Nacional
foi um espaço de suspensão da vida ordinária para Susy Parker. Nascida no bairro de Vila
Isabel, Zona Norte carioca, Susy Parker é a filha única de uma família de classe média. Desde
muito cedo, ela disse que percebeu que não tinha aptidão para a carreira escolar. Sempre
“matava” aulas para circular pelos cinemas da região da Cinelândia à procura de diversão com
rapazes. As ondas radiofônicas foram sua primeira aproximação com o mundo do
entretenimento. As cantoras Emilinha e Marlene despertavam-lhe uma atração desmedida.
Descobriu, então, que o endereço da Rádio Nacional era a Praça Mauá. A partir daí suas
rotinas de cabular aulas somente aumentariam, gerando a fúria da mãe, que chegou mesmo a
conseguir uma agenda com Emilinha, através de uma amiga importante, para fazer com que a
cantora censurasse as desventuras do filho no horário escolar. A bronca de Emilinha adiantou
pouca coisa, admitiu Susy Parker. O auditório da Nacional forneceu as repostas para as suas
inquietações pessoais. Era aquela vida que queria para si, logo, tratou de investir em uma
carreira.
As trajetórias de Divina Valéria e Susy Parker revelam que a aproximação dessas
pessoas com as cantoras da antiga Rádio Nacional era muito mais íntima do que se supõe.
Divina Valéria chegou a secretariar Emilinha Borba, não como uma funcionária formalmente
91

registrada, mas como uma amiga responsável até mesmo pela organização de sua vida nos
bastidores, como pode ser observado no relato a seguir:
Foi secretariando com a amizade, adoração, que eu a acompanhava em tudo que era
lugar. Então eu que ficava com ela. Acabava na Rádio Nacional, ela com o Paulo
Gracindo, que era aos domingos de tarde. Aí ela fazia com o Paulo Gracindo,
terminava às 15 horas e aí tinha que vir para a TV Rio que às 18, 19 horas tinha
ODD Show, que ela era estrela também. E aí eu saia da Rádio Nacional, vinha para a
televisão com as partituras dela, entregava para os músicos para eles irem ensaiando
para quando ela chegar já estava adiantado, porque ela ia aqui para a Rodolfo Dantas
[rua de Copacabana], onde tinha um grande cabeleireiro que era o Augusto Silva,
que abria o salão exclusivamente para pentear ela para ela ir para a televisão (Divina
Valéria).

A inserção dessas pessoas nos bastidores da Rádio Nacional foi profundamente


marcada por essa aproximação afetiva com as cantoras, que se transformaram em amigas
pessoais e confidentes. Divina Valéria contou que nesse período essas cantoras exerciam
grande fascínio sobre ela e em outras pessoas que circulavam nos bastidores da Rádio, posto
que tinham a capacidade de corporificar aquela voz apreciada através do aparelho de
radiofusão. Como ela relata, nos dias de hoje é muito fácil ter acesso aos artistas. Naquela
época, afirma, era uma coisa mais distante. Acredito que Divina Valéria esteja se referindo
mais à imagem dos artistas do que à sua presença física. A televisão – ou seja, a imagem em
movimento – ainda não tinha uma presença destacada nos lares brasileiros. O rádio permitia
uma intimidade distante, e com a televisão essa intimidade tornou-se mais próxima. Nesse
contexto, somente a ida aos auditórios da Rádio proporcionava essa aproximação.
O impacto dos bastidores do rádio na trajetória de Divina Valéria não é um fenômeno
isolado. De acordo com estudos sobre a força do rádio no cotidiano dos brasileiros
(CALABRE, 2002; AVANCINI, 2006), essa nova tecnologia foi responsável por constituir
um poder de mobilização muito maior que qualquer outro já conhecido até então. O rádio
propiciou um circuito cultural dotado de práticas, tipos de sociabilidade e estéticas próprias
cuja centralidade foi ocupada por suas estrelas, cantoras femininas que começam a emergir
com força total entre os fins da década de 1940 e meados da de 1950 (CALABRE, 2002;
AVANCINI, 2006). Dessa realidade, os fã-clubes e os programas de auditório surgiram como
fenômenos do mercado de bens culturais, que têm na Capital Federal, o Rio de Janeiro, seu
centro irradiador.
Os fã-clubes e a sociabilidade que instituíam merecem uma atenção especial. De
acordo com Avancini (2006), as moças e as senhoras eram as principais agenciadoras desse
universo, mas a autora não esquece a presença de “alguns rapazes” nas fileiras da Rádio. De
acordo com as publicações especializadas sobre o rádio do período, material adotado por
92

Avancini (2006), essas pessoas que frequentavam a Rádio Nacional derivavam dos estratos
sociais menos abastados da população, mas a emergência dos fã-clubes não pode ser analisada
sem compreender a sua articulação aos programas de auditório e à produção de uma noção de
uma radiofonia popular. Foi por meio dos auditórios que esses indivíduos que amavam as
cantoras começaram a forjar uma sociabilidade específica, que ia além daqueles espaços. No
caso dos rapazes, essa sociabilidade gerou ainda outros sentidos e possibilidades de
agenciamento.
Os programas de auditório passaram a fazer parte das transmissões radiofônicas entre
fins dos anos 1930 e início dos anos 194037 (AVANCINI, 2006). Sua inclusão na grade das
rádios segue uma transformação mais ampla na programação radiofônica, que passou a
perseguir uma dimensão mais lúdica em suas irradiações. Dentro dessa perspectiva ganharam
espaço, além dos programas de auditório, os programas humorísticos, as radionovelas e os
programas de calouros. Esse último gênero, cuja lógica se aproxima dos programas de
auditório, foi o responsável pelo imediato sucesso das rádios no cenário brasileiro.
Um dos pioneiros desse gênero foi o programa Calouros em desfile, conduzido por
Ary Barroso na Tupi, em fins da década de 1930. O sucesso desse programa fez com que as
outras rádios colocassem em suas grades de programação os concursos como itens
obrigatórios (AVANCINI, 2006). Esse gênero conseguia promover a participação imediata do
público na dinâmica do programa, enquanto nos programas de auditório o público tinha
somente uma participação passiva. O conjunto dessas inovações imprimidas pelo rádio vai ser
transportado para a televisão alguns anos mais tarde. Nessa nova tecnologia, os programas de
auditório e de calouros encontrarão seu apogeu, consolidando representações estereotipadas
sobre as sexualidades não normativas. Essas representações foram tão bem-sucedidas quanto
perigosas, uma vez que causavam atração em um público cada vez mais usuário da televisão
como mecanismo de entretenimento38.
Nos auditórios das rádios, os fã-clubes protagonizavam manifestações apaixonadas
direcionadas às estrelas do rádio. Todavia, o que interessa depreender desses fã-clubes é o seu
poder de agregação. Tendo a vontade de “estar junto” de sua estrela como propósito comum,
sugiro que eles acabaram por descobrir que possuíam outras “famílias de interesses”, e

37
A tecnologia do rádio foi oficialmente introduzida no Brasil em 07 de setembro de 1922, com a irradiação do
discurso do presidente Epitácio Pessoa como parte da abertura da Exposição Internacional do Rio de Janeiro,
realizada durante as comemorações pelo centenário da Independência. Em sua gênese, o rádio perseguia uma
perspectiva educativa, sobretudo pela agência de Roquete Pinto e Henrique Moritze, fundadores da primeira
emissora brasileira, a Rádio Sociedade, em 1923. Somente entre finais da década de 1940 e início da década de
1950 essa perspectiva ganhou outros contornos, principalmente pela necessidade de conseguir anunciantes.
38
No Capítulo III analisarei de forma mais detida essas questões.
93

também experiências de exclusão e violência familiar muito semelhantes, como Divina


Valéria percebeu. Susy Parker também reconhece que nos auditórios das rádios se tornou
possível fazer amizades que iam além daquele espaço. Esta vontade de estar junto à estrela se
transmutou em uma vontade de estar junto com outros iguais, sendo a cantora um mediador
nesse processo. O gosto desses rapazes por esse universo lúdico das cantoras do rádio, e
também das misses, criava um espaço de comunicação simbólica entre eles que começava a
dar sentido a trajetórias e “modos de ser” não convencionais à norma sexual hegemônica.
Este capítulo se dedicou a analisar a produção de uma percepção pública sobre as
sexualidades não normativas a partir de diferentes contextos relacionados à emergência de
uma cultura do “refinamento do prazer” no Brasil. Foi sugerido que tal processo estimulou a
espetacularização da efeminação associada às sexualidades não normativas, que é convertida
em “espetáculo de consumo”. O argumento principal desta seção é que esses espaços
ofereceram condições para provocar a visibilidade de “formas de ser” relacionadas às
sexualidades não normativas. A fotografia e os filmes de viagens produzidos sobre o Brasil,
principalmente sobre o carnaval, foram “tecnologias do olho” que colaboraram para esse
processo.
Foi através dos registros produzidos por essas tecnologias que o espetáculo da
transgressão de gênero ganhou o resto do país e do mundo, encorajando homens com
vontades semelhantes a caírem na folia trajando roupas não conformes em relação ao sexo de
nascimento. Esses homens ocuparam as ruas e bailes de carnaval, ressignificando a sua forma
de se ver no mundo e experimentando um reconhecimento que não era possível em dias
comuns. Simultaneamente, outro evento carnavalesco, os concursos de fantasia, ajudava a
construir uma imagem do carnaval consumida mundialmente, na qual homens considerados
efeminados, como Clóvis Bornay, eram figuras emblemáticas da festa. De forma contígua ao
carnaval, o Teatro de Revista, os concursos de miss e a radiofonia proporcionam uma solução
de continuidade a essas “formas de ser”, que passaram a ter nas vedetes, misses e cantoras do
rádio exemplos pedagógicos de vida, convertidos em projetos nas suas trajetórias individuais.
É através desses espaços que o glamour se constitui como uma tecnologia do
“refinamento do prazer” (DUARTE, 1999), operada a partir de uma equação que marca a
experiência moderna: a associação entre tecnologias e a cultura. A combinação entre cultura e
desenvolvimento tecnológico (INGLIS, 2012) – decorrente do advento do rádio, do cinema,
da televisão e do mercado editorial – ofereceu outros modelos de regulação da vida social,
capazes de produzir discursos e novas subjetividades relacionadas às dimensões consideradas
mais íntimas, tais como a sexualidade. Para o historiador Inglis (2012), analisando esse
94

processo na Europa, o nexo entre cultura e tecnologia foi constitutivo de um fenômeno sem o
qual não seria possível entender a modernidade: o aparecimento da noção de “celebridade”.
Entretanto, o surgimento da “celebridade” não é um fenômeno isolado de outros
processos de distinção que operaram mudanças nos grandes centros urbanos europeus do
primeiro pós-guerra. Segundo Inglis (2012), diferentes fatores correlacionados facultaram a
emergência da “celebridade”. São eles: a espetacularização do lazer, o surgimento da indústria
da moda e a instituição das colunas de fofocas nos veículos de comunicação (INGLIS, 2012).
Novas convenções sociais foram instituídas a partir desses processos que, articulados,
promoveram o glamour com um valor. A iconografia do glamour, ou seja, a produção de
imagens de uma vida de sonhos, é um processo constitutivo da moderna sociedade capitalista,
cosmopolita e urbana. Foi em busca dessa iconografia que uma dada elite se consolidou, a
partir do consumo e acesso a determinados bens, mas, sobretudo, das imagens que esse
consumo poderia gerar para outras pessoas – distinguindo-a como uma classe exclusiva de
indivíduos.
A consolidação de uma cultura do “refinamento do prazer” (DUARTE, 1999),
associada à promessa da chegada de uma modernidade no Brasil, expandiu possibilidades de
existência não convencionais à norma sexual hegemônica. Foram nesses territórios que as
“bichas” encontraram espaços de resistência, exercício de criatividade e agência ativa, uma
vez que era ali que podiam ser “elas mesmas” sem as ansiedades de ter seus “segredos” ou sua
“vida dupla” revelados. Contudo, ao mesmo tempo que se realizavam para fora das
convenções, esses indivíduos iam construindo trajetórias nas quais vida e arte se combinavam,
muito semelhantemente ao que ocorria com os bufões analisados por Bakhtin (1993) nas
origens da cultura popular. A imagem do bufão será uma importante metáfora na construção
de representações sobre as sexualidades não normativas, sobretudo quando esses indivíduos
abandonam o “mundo das ideias” para habitarem a realidade da vida cotidiana. Será através
desse “mundo de ideias” que novas “formas de vida” relacionadas às sexualidades não
normativas serão instituídas, incluindo as chamadas “travestis profissionais”, cujo processo
será analisado no próximo capítulo.
95

CAPÍTULO II

Internacionais e glamourosas: a invenção da “travesti profissional” como “espetáculo de


consumo”

Esta é a Praça Onze tão querida


Do carnaval a própria vida
Tudo é sempre carnaval
Vamos ver desta Praça a poesia
E sempre em tom de alegria
Fazê-la internacional
A Praça existe alegre ou triste
Em nossa imaginação
A Praça é nossa e como é nossa
No Rio quatrocentão
Este é o meu Rio boa praça
Simbolizando nesta Praça
Tantas praças que ele tem
Vamos da Zona Norte à Zona Sul
Deixar a vida toda azul
Mostrar da vida o que faz bem
Praça Onze, Praça Onze.

João Roberto Kelly39

No capítulo anterior focalizou-se a importância de diferentes contextos relacionados à


emergência de uma indústria de consumo do “espetacular” e do “moderno” para a construção
de sentidos sobre as sexualidades não normativas no Brasil. Esses contextos combinados
ofereceram condições para a irrupção de “novas formas de vida”, como no caso dos “homens
em travesti”. Afetadas por esses processos, duas dinâmicas serão aqui examinadas. Uma delas
é o processo de construção da noção de “travesti profissional” conectado ao surgimento de um
interesse cada vez maior do público brasileiro e internacional para os “shows de travestis”.
São aqui analisados os espetáculos – International Set e Les Girls –, pioneiros nesse gênero, e
os seus impactos nas trajetórias de vida de uma geração de pessoas que hoje se identificam
como “travestis”.
O segundo item a ser analisado são as circulações internacionais dessas “travestis”,
eventos significativos para a noção de “travesti profissional”. Esse mercado de entretenimento

39
Canção Rancho da Praça Onze, interpretada por Divina Valéria no espetáculo Les Girls, cuja parte musical foi
produzida por João Roberto Kelly.
96

envolvendo as “travestis profissionais” consolidou redes de interlocução entre indivíduos que


começam a perceber a prática de “fazer travesti” como central em suas trajetórias de vida e
construção de carreiras. Neste contexto, o Brasil constitui um ponto central nessa rede de
deslocamentos e derives, que incluem países sul-americanos, africanos e europeus. As
“travestis” são convertidas em produtos genuinamente nacionais, exportadas para outros
países e motivo de orgulho, disseminado pelas mídias da época. Essas dinâmicas marcam o
surgimento de uma reflexividade sobre a prática de “fazer travesti”, assentada na indistinta
relação entre “ser travesti” e “ser bicha”.

2.1 – Sobre o talento de ser fabulosa40: os “shows de travestis” e a invenção da “travesti


profissional”

Os eventos carnavalescos, o Teatro de Revista, os concursos de miss e os bastidores do


rádio ofereceram muito mais do que recreação aos “poucos rapazes” que acompanhavam
essas estrelas radiofônicas, vedetes e misses. Pela mediação desses espaços, jovens com
experiências de vida semelhantes se agregaram e se reconheceram como amigos. Acompanhar
a carreira de misses e estrelas do rádio consolidou uma experiência coletiva entre esses
rapazes que, até então, possuíam trajetórias atomizadas – marcadas quase sempre por histórias
de conflito com a família de origem em razão de sua aparente “desajuste” às convenções de
gênero e sexualidade. Foi assim que Rogéria, Divina Valéria, Marquesa, Jane Di Castro e
outras dessa geração iniciaram suas carreiras.
A narrativa de Rogéria acerca de sua trajetória realça essa estreita relação com o
backstage artístico e a importância que teve para a sua carreira. Ainda muito jovem, tendo que
trabalhar como maquiadora da extinta TV Rio41 para ajudar em casa, Rogéria teve contato
com muitas artistas conhecidas, como Fernanda Montenegro que, segundo ela, foi uma das
principais estimuladoras da sua entrada no mundo artístico. Ela diz42: “Eu não era apenas um
gay maquiador, era um artista que cantava. Fernanda me dizia que era preciso talento e
vocação. E eu, preocupada: ‘Mas vestida de homem?’. E ela: ‘Pode ser como você quiser’”. A
afinidade com a imagem de atrizes renomadas se constitui como um “mito de origem” da

40
Expressão de Marcia Ochoa (2008).
41
Emissora de televisão que existiu entre 1955 e 1977.
42
Entrevista concedida ao repórter Valmir Moratelli (Portal IG), em 23 de outubro de 2012.
97

própria Rogéria como atriz. A invenção de seu nome artístico foi o reflexo dessa
aproximação, já que a atriz Zélia Hoffman teria julgado mais fácil chamar aquele jovem
maquiador de Rogério, ao invés de Astolfo. A feminilização do nome veio com sua
participação no concurso de fantasias do Teatro República, em 1964. Assim como Madame
Satã no passado, foi sob o reinado de Momo que Rogéria foi batizada. Estava completa a
história de sua entrada na vida artística. Logo, ela abandonaria a profissão de maquiadora para
participar de peças de teatro e, mais tarde, programas de televisão.
Com essa frequência assídua aos bastidores desses espaços, incluindo as
perambulações pela Praça Tiradentes e Cinelândia, surgiu a ideia de construir um show
exclusivamente com “travestis”, em 1964. Marquesa, uma das “travestis” que participaram
dessa primeira tentativa de montagem de espetáculos, conta como foi realizado, em uma boate
da Galeria Alaska, reduto boêmio da Zona Sul do Rio de Janeiro, o primeiro “show de
travesti”: International Set.
O Stop, na Galeria Alaska, era uma boate que o dono estava falindo. Ele tinha 15
dias para pagar uma dívida séria ao governo se não ele ia à falência. Aí ele pensou e
disse assim: a única solução... Ele resolveu montar um show de travesti. Aí foi aí
que reunimos Rogéria, eu, Brigitte de Búzios, Biju Blanche, Gigi Sancir, Jerry di
Marco e Manon. Éramos sete, e montamos um show chamado International Set.
Coisinha rapidinha, o que você faz, o que você faz... e final. Em uma semana, esse
homem tinha pago todas as dívidas e estava entrando em lucro. A fila na Avenida
Atlântica, saia da Galeria Alaska e foi parar na Avenida Atlântica, entrava na Souza
Lima e seguia. Era madame fulana de tal, fulano de tal, não sei o que, tudo
esperando para ver. O homem ficou louco, quando ele viu (...) quando eles
começaram a entrar dinheiro e tudo, aí o homem ficou louco. O que ele fez:
primeiro, neste ponto tem que se dizer que ele foi extraordinário, ele duplicou o
nosso salário, que nós estávamos ganhando na época o salário que Dercy Gonçalves
ganhava na Excelsior, era o mesmo. E as segundas-feiras, que era a nossa folga, ele
fazia a gente trabalhar e ganhávamos em dobro. Aí passou um ano, o show durou
um ano, um sucesso, um sucesso, um sucesso! Aí ele resolveu fazer um outro show,
foi quando ele montou Les Girls. Aí Les Girls era um show com... Por que foi assim,
Silveira Guimarães, o Luiz Haroldo e o João Roberto Kelly trabalhavam na extinta
TV Rio, aqui no posto 6, no antigo Cassino, e eles faziam um show musicado,
naquela época tinha Times Square, não sei o que... Eram shows musicados, com as
vedetes do Carlos Machado, com atrizes como Norma Bengell, estrelas: Elizabeth
Casper. Era um escândalo, o show! E a Rogéria era maquiador da TV Rio, e um dia
ela disse: ai vocês não gostariam de fazer um show para travesti... Aí a Rogéria vira-
se e convida eles para nos assistir. Eles ficaram loucos, loucos com a gente. Eles
nunca imaginaram que tinha talento, que existia talento. E nós botávamos aquele
público de pé. Então, ele ficou tão entusiasmado que topou a ideia e montamos Les
Girls (Marquesa).

O show International Set afetou profundamente a trajetória de vida de uma geração de


indivíduos que passaram a vivenciar o “fazer travesti” como parte integrante de suas vidas,
não mais como prática lúdica associada ao carnaval, conforme evidenciado no capítulo
anterior. Essa transição não foi apenas vivenciada do ponto de vista artístico-profissional: ela
implicou o surgimento de uma identidade coletiva entre essas pessoas, que começaram a
98

produzir uma reflexividade acerca do lugar ocupado pela prática de “fazer travesti” nas suas
trajetórias. Esses shows constituíram um “divisor de águas” nas vidas desses indivíduos, que
passariam gradativamente a não mais “fazer travesti”, mas “ser travesti”. O “ser travesti”
tornou-se um elemento central na forma como interagiam com a sociedade e consigo mesmos.
Constituía-se uma identidade. Jane Di Castro chamou atenção para essa mudança: “Ah, as
pessoas só viam homens vestidos de mulher nos grandes bailes de carnaval. Na rua não via,
daí nosso grande sucesso. O público vinha nos ver mais pela curiosidade do que pela arte. Eu,
Rogéria e Veruska fomos as primeiras a fazer esse tipo de espetáculo no Brasil”. A
curiosidade do público, segundo Jane, foi um sentimento valioso neste processo.
Ao elenco original de International Set juntaram-se outros sujeitos com trajetórias
semelhantes, como Divina Valéria:
Aí aconteceu que eu sempre frequentando a TV Rio, o meio artístico, os bastidores e
tudo mais...Surgiu a ideia de grandes produtores da época montarem Les Girls, que
foi um espetáculo de grande sucesso onde eu fui trabalhar, que ai que eu comecei a
fazer travesti profissionalmente. Que até então, eu só fazia nos carnavais, em
festas... Então aí que eu comecei a fazer em Les Girls profissionalmente, que foi um
espetáculo profissional belíssimo onde estava eu, Rogéria, Marquesa, Brigitte de
Búzios, Carlos Gill, Jerry Di Marco, Carmem, Jean Jacques, éramos onze. E aí, eu
fiquei como boy de dia e girl de noite, porque eu continuei na companhia de
engenharia também trabalhando como boy, e à noite fazendo o espetáculo. Só que
saiu uma reportagem muito grande na Manchete com todas nós, de mulheres e de
homem também e eu não apareci mais na companhia de engenharia nem para dar
baixa na carteira, porque fiquei envergonhada que todo mundo ia descobrir que eu
estava fazendo travesti (Divina Valéria).

A estreia de Les Girls foi um sucesso nacional, mesmo em um contexto de ditadura,


no qual a indústria de entretenimento brasileira passou a ser objeto de censura e controle. Já
na abertura do espetáculo, o elenco vestia négligée e espartilho, em uma alusão direta aos
shows do Teatro de Revista no estilo burlesco. Tratava-se de uma comédia musical no melhor
estilo, que misturava a estética da Broadway com o Teatro de Revista brasileiro. Eram onze
“travestis” que acorriam a um médico para resolver seus “problemas de cabeça”. Cada uma
delas era responsável por um esquete. Cabia ao doutor solucionar o “problema” das moças.
Ao fim do show, a famosa canção, que tanto marcou a vida de toda essa geração, era entoada
em coro.
Les girls, oh Les Girls
Oooh Les Girls
Les Girls é ter charme, touché!
Ser podre de bem todo o dia
Les Girls é esnobar, é beber
É ter sexy, sexy mania
Sou Les Girls, sou Les Girls, sou Les Girls...
99

O show não foi apenas sucesso no Rio de Janeiro. Marquesa contou que a boate Oásis,
uma das casas noturnas mais elegantes de São Paulo, decidiu chamá-las para a sua
reinauguração. Ao chegar a São Paulo, Marquesa disse que ficaram espantadas com a pouca
quantidade de pessoas na plateia, uma vez que no Rio de Janeiro a bilheteria mantinha um
volume considerável de frequentadores. Mesmo com a casa vazia, fizeram a estreia. Para a
surpresa de todas, estava presente uma das mais destacadas figuras das altas rodas paulistanas.
No dia seguinte, segundo Marquesa, a casa foi ocupada pelas famílias mais importantes da
capital paulista. A entrevistada afirmou que o sucesso da trupe não ficou circunscrito à boate:
elas foram chamadas a fazer outros eventos, incluindo o aniversário do então governador de
São Paulo, Ademar de Barros. Assim, Les Girls que ficaria um mês em cartaz na boate Oásis,
ficou por três meses.
Ao fim da tournée em São Paulo, a trupe retornou ao Rio, resultando novamente em
bons números de bilheteria. Marquesa disse que ao final desse período de sucessos, já se
falava em outro espetáculo, que se chamaria Mulheres, baseado na peça The women, de Clare
Boothe Luce, diplomata e escritora norte-americana. Mas ela se recusou conceder os direitos
autorais de sua peça. Diante da negativa, ficou acordada a produção de uma nova peça, que se
chamaria Nunca vi mulheres tão mulheres, com cada uma desempenhando o papel de uma
mulher famosa. Marquesa contou que seria Maria Antonieta no palco. Nesse ínterim, o dono
do Stop decidiu mandá-las para Londrina, onde fariam uma tournée contratada pelo Teatro de
Londrina.
Marquesa contou que o “patrão”, o dono do Stop, ficou muito rico com os shows feitos
pela trupe, e que gastava uma fortuna com mulheres. Hospedadas no melhor hotel da cidade,
elas foram surpreendidas com o desaparecimento repentino do “patrão”, que voltou para o
Rio, deixando-as para trás, fugindo com o dinheiro e sem ter pagado as diárias vultosas do
estabelecimento. A saída, revelou Marquesa, foi fazer show na zona de meretrício da cidade
para juntar dinheiro, com o objetivo de voltar para São Paulo. Do hotel luxuoso foram elas
para um hotel de beira de estrada. O grupo se dividiu para fazer show nos diferentes bordéis
da região. De Londrina a São Paulo, elas foram fazendo shows nas zonas de prostituição até
chegar ao seu destino final. Marquesa disse que fazer prostituição não foi cogitado como
possibilidade para elas conseguirem pagar as contas, mas que essa vivência nos bordéis dispôs
para elas uma imensa quantidade de amantes. Já em São Paulo, a trupe de Les Girls fez mais
uma temporada em algumas boates, mas não com a pompa de antes. Nesse momento, meados
da década de 1970, o grupo começou a se dissolver: Rogéria regressou ao Rio. Divina
100

Valéria, apesar de ter participado de algumas montagens, partiu para o Uruguai. Saíram
também Brigitte de Búzios e Jean Jacques.
Nesse contexto de reestruturação da companhia, Susy Parker foi convidada a compor o
grupo. A possibilidade de estar do lado das “pioneiras” foi o motivo principal para seu aceite
imediato, afirma a própria. Ela conta que ganhava muito dinheiro e também amantes fazendo
shows em casas noturnas do Rio de Janeiro nesse período, sobretudo na Alcatraz, em
Copacabana, mas decidiu ir para São Paulo com Les Girls em função do prestígio que a
companhia detinha junto às “travestis” de sua geração. Como todos os quadros do espetáculo
estavam completos, Susy Parker entrou como stand-by, sendo obrigada a conhecer todos os
esquetes para que, na falta de alguma das suas colegas, pudesse desempenhar adequadamente
aquele papel. Essa situação, contudo, foi logo deixada de lado quando Calos Gill, percebendo
a sua desenvoltura teatral, decidiu incorporá-la definitivamente ao elenco principal.
Susy Parker pertenceu a esta que poderíamos chamar de “segunda geração” do elenco
de Les Girls. O impresso da revista Alta Tensão (Imagem 08), feita pela companhia no Teatro
das Nações, em São Paulo, mostra as alterações no elenco original. Alguns artistas, como
Marquesa, Divina Valéria, Manon e Jerry Di Marco permaneceram no elenco. Outras artistas
passaram a compor o staff dos shows de Les Girls, como Susy Parker, Yeda Brown e Akiko,
as quais fariam muito sucesso em capitais da América do Sul, como Buenos Aires, na
Argentina, e Montevidéu, no Uruguai. Susy Parker, Yeda Brown e Akiko também se fixaram
em Barcelona, construindo carreiras internacionalmente conhecidas nos nightclubs desta
cidade.
101

Imagem 08 – Impresso do espetáculo Alta Tensão, realizado pela trupe de Les Girls, no Teatro das
Nações, São Paulo (Fonte: acervo pessoal de Susy Parker).

Além do Les Girls em Alta Tensão, a companhia estreou em São Paulo mais dois
espetáculos: Les Girls em Times Square e Tem Boneca na Folia. Apesar das tentativas de
Carlos Gill, um dos integrantes do grupo e detentor dos direitos autorais do espetáculo, a
equipe não alcançaria mais o êxito dos anos anteriores. Jerry Di Marco acabou por comprar os
direitos autorais de Carlos Gill e levou o espetáculo para Belo Horizonte. Na capital mineira,
Les Girls sofreu severas críticas das Mulheres da Liga Católica. Susy Parker conta que
mesmo assim o show foi aprovado pelas autoridades locais. Após a aprovação, teria ficado a
indecisão sobre onde alocá-las. Ficou acordado, então, que o grupo ocuparia um hotel de
estudantes, iniciativa glorificada pela trupe. Susy Parker relata que ficarem hospedadas em
um estabelecimento dedicado a jovens estudantes fez surgir muitas histórias de romance e
aventuras entre elas e os rapazes. As portas dos seus quartos nem eram trancadas, afirmou,
tamanho era o movimento de entrada e saída nos mesmos. Foi ainda em Belo Horizonte que
Jerry Di Marco, lendo um jornal local, encontra Yeda Brown, que se apresentava em uma
boate de classe média-alta chamada Sukata. Tratava-se de uma “travesti” de formas
exuberantes. O jornal local destacava o ponto alto do espetáculo de Yeda Brown na Sukata, o
102

strip-tease. Impressionados com a beleza de Yeda Brown, a qual se assemelhava com a atriz
norte-americana Raquel Welch, sex symbol da década de 1960, Jerry Di Marco decide
convidá-la a entrar na companhia, pedido que foi aceito de imediato. Com Yeda Brown já
fazendo parte da trupe, Les Girls faz espetáculos primeiramente no Cine México, e logo
depois no Teatro Francisco Nunes, importante equipamento cultural da capital mineira.
No Rio de Janeiro, o Teatro Rival tentava fazer ressurgir os tempos áureos do Teatro
de Revista e trazia Rogéria como estrela de Vem quente que eu estou fervendo. Marquesa, que
não acompanhou Les Girls em sua temporada mineira, foi convidada por Rogéria a completar
o elenco, o que foi aprovado de imediato por Gomes Leal, dono do teatro, que passaria a ser
grande estimulador dos “shows de travesti”. A parceria entre Marquesa e Rogéria se estendeu
por três anos, quando esta última iniciou a sua carreira internacional, indo para Angola, na
África. Neste período, os “shows de travesti” fizeram parte
integrante da programação dos teatros do Rio de Janeiro.
Susy Parker conta que, nesse período, era um sucesso
absoluto de público esse tipo de show. Dois donos de
teatros se estabeleceram como os principais promotores
desse tipo de espetáculo: Gomes Leal, no Teatro Rival, e
Brigitte Blair, no teatro que leva o seu nome. Blair foi uma
antiga vedete do Teatro de Revista que comprou um teatro
com a ajuda de um dos seus admiradores, contou-me
Marquesa. Para Marquesa, as montagens posteriores a Les
Girls não investiram muito no luxo, o que tornou esses
espetáculos menos extravagantes e atraentes. Além desse
fato, Marquesa disse que os produtores como Brigitte Blair
eram extremamente grosseiros, diferentes daqueles dos
Imagem 09 – Trecho d’O Globo
tempos áureos de Les Girls. sobre o show Les Girls, na boate
Stop (Fonte: arquivos do jornal O
O espetáculo Les Girls constitui um “mito de Globo, 05/12/1964)

origem” dos “shows de travesti” no Brasil, dado o seu


alcance e o seu tempo de duração em cartaz. A importância de Les Girls, em particular para
essa geração de pessoas, pode ser avaliada em função da memória permanentemente acionada
por elas quando falam de suas carreiras. Aparentemente, esse show está intimamente
associado ao seu reconhecimento público como artistas, o que teria oferecido uma espécie de
portfólio para que as mesmas se apresentassem nas casas noturnas latino-americanas e
europeias. Entretanto, mais do que a carreira artística, o espetáculo propiciou construir uma
103

rede de amizades e cooperação. Essa colaboração foi fundamental quando elas deram
continuidade às suas carreiras na tão sonhada Europa.
O uso de “travestis” em shows não era exatamente uma novidade no Brasil. O Teatro
de Revista foi um precursor desse tipo de espetáculo, mas a consolidação da “travesti
profissional”, como afirma Divina Valéria, só ocorreu na década de 1960, quando
determinados produtores começaram a investir nesse tipo de linguagem teatral, atentos ao que
já vinha ocorrendo em grandes centros urbanos no mundo. Desta forma, as “travestis” deixam
de compor os shows para serem o próprio espetáculo. Em um levantamento nos arquivos do
jornal O Globo, pode-se constatar o aumento expressivo de propaganda dedicada a esse tipo
de evento, como é evidenciado no trecho de jornal com o banner de divulgação do show.
Um dos idealizadores pioneiros desse tipo de espetáculo foi Luís Haroldo. Na ocasião
da estreia de Les Girls, em 1966, Luís Haroldo tinha dez anos de carreira, sendo já
reconhecido por suas produções. Em matéria publicada em 27 de maio de 1966 no jornal O
Globo, ele é apresentado como o único produtor e diretor de espetáculos “à base de
‘travestis’”. Quando perguntado acerca desse tipo de espetáculo e a sua produção, ele
respondeu:
Eu produzo e dirijo “shows de travestis” para civilizar uma cidade, e não precisar ir
a Paris para tomar banho de civilização, se aqui mesmo é possível. Acontece que no
Brasil já se pode fazer algo de válido nesse gênero, tão ingrato em outras épocas (O
GLOBO, 1966).

Ao que parece, o argumento que o produtor evoca sobre os “shows de travestis” no


Brasil se relaciona à suposta necessidade de trazer um “verniz civilizador” para a nossa
sociedade quando comparada a algumas cidades da Europa Ocidental, onde esses espetáculos
são parte integrante dos guias turísticos. A fala de Luís Haroldo perfaz uma percepção do
Brasil e, claro, dos seus habitantes como um país estacionado na história, uma espécie de
“espaço anacrônico”, expressão cunhada por McClintock (2010) para se referir àqueles
“humanos anacrônicos” – ou seja, aquelas pessoas que, mesmo dentro da metrópole, tais
como as mulheres trabalhadoras, são percebidas como fora da história, manifestação acabada
do arcaico, do primitivo.
Tal estratégia de divulgação parece ser orientada diretamente às classes mais abastadas
da sociedade brasileira, as quais tradicionalmente veem na europeização dos hábitos de
consumo um mecanismo de distinção social. Balieiro (2014), em seu estudo sobre a
construção da identidade nacional a partir da imagem de Carmem Miranda, oferece um
panorama muito semelhante do uso de determinados hábitos de consumo para produzir
104

distinção social. Para esse autor, a cultura nacional forjada à época de Carmem Miranda pelo
mercado de entretenimento carioca era nutrida pela ideia básica de um “ideal moderno”, com
o qual se esperava um alinhamento das elites brasileiras com as “nações civilizadas”. É a
partir desse “ideal moderno” que toda a publicidade de Luiz Haroldo, e também de outros
depois dele, foi construída em relação aos “shows de travesti”. Transitar nesses shows era
uma forma de vincular esses indivíduos a uma concepção de modernidade, uma estratégia de
compressão tempo-espacial (HALL, 2006) com os países da Europa Ocidental e dos Estados
Unidos. As “travestis profissionais” constituíram uma forma de negociar a modernidade.
Acredito que a estratégia de Luiz Haroldo em adotar a noção de “falta de civilização”
para falar de uma característica de nós, brasileiros, que precisava ser ultrapassada teve um
desfecho bem-sucedido, uma vez que os shows produzidos por ele não apenas lotaram de uma
audiência variada – principalmente a elite – como também ajudaram a organizar
sensibilidades menos nocivas às “travestis”. Preocupado em se aproximar das convenções
europeias, um público crescente afluía aos “shows de travestis”, tornando o gênero um
sucesso e projetando suas protagonistas em diferentes veículos de comunicação. Acredito que
conforme a elite buscava distinção – tentando se aproximar dos países europeus que já
constituam tradição nesse tipo de apresentação –, ela promovia reconhecimento às
sexualidades não normativas, aproximando-a das noções de cosmopolitismo e modernidade.
A elite foi uma importante mediadora na mudança do regime de visibilidade das sexualidades
não normativas, uma vez que, consumindo esses espetáculos e os indivíduos que dele faziam
parte – através da busca do refinamento dos seus prazeres (DUARTE, 1999) –, reconhecia a
existência dessas pessoas.
A aclamada “falta de civilização” no Brasil para esse gênero de show não era um
argumento somente adotado por Haroldo para garantir público aos seus projetos. A
propaganda que circulava nos jornais e revistas populares na época revela a preocupação em
associar esse tipo de exibição a referências internacionais, dotando de “civilização” esse tipo
de empreendimento. Daí os nomes dos shows serem sempre em outros idiomas: Very, Very
Sexy; The International Set e Les Girls, para citar os mais importantes. Essas referências
também eram realçadas na caracterização do elenco, quase sempre identificado como formado
por artistas “internacionais”, como é observado na peça publicitária veiculada em O Globo de
17 de julho de 1965.
105

Imagem 10 – Trecho de O Globo sobre o show Very, Very Sexy


realizado no Top Club, Rio de Janeiro, em 1965 (Fonte: arquivo do
Jornal O Globo, 17 jul. 1965).

O discurso de Luís Haroldo acerca de nosso “atraso cultural” em relação à Europa


ganhou eco na imprensa da época, que noticiava entusiasmada o novo empreendimento, o
qual, de acordo com o veículo Correio da Manhã, de 20 de dezembro de 1964, não era tão
novo assim entre nós, mas antes carecia de “uma certa dignidade”. O jornal destaca que as
iniciativas anteriores a Les Girls de se fazer “show de travestis” eram sempre consideradas
pouco profissionais, caindo na esparrela da “gratuidade exótica”. Tal entusiasmo da imprensa
pode ser observado no trecho do Correio da Manhã, que destaca o caráter internacional desse
gênero de espetáculo.
O travesti é um fato internacionalmente aceito como uma das atrações noturnas das
grandes cidades onde há boates e teatros especializados na exploração e cultivo do
gênero. O travesti é a arte de transformar homens em mulheres e vice-versa. Muito
mais versa do que vice, é a arte transformista por excelência. Em Paris, Nova York,
Londres, Berlim e Hamburgo há espetáculos deslumbrantes neste sentido e
sentimento, onde todo um mundo plural de celebridades se reúne e diverte com o
equívoco natural, provocado ou artístico (CORREIO DA MANHÃ, 1964).

O legado de Haroldo foi além da publicidade positiva a esses shows nos veículos de
comunicação brasileiros. Foi ele, de acordo com Marquesa, que ajudou a profissionalizar
essas “travestis” na etiqueta do show business. De acordo com ela, o produtor as ensinou
106

sobre o apreço pela pontualidade, a respeitar a disciplina do teatro, a se antecipar nos


bastidores no que se relaciona a maquiagem, cabelo, etc. Para Marquesa, esse repertório de
aprendizagens iria possibilitar que, quando elas saíssem do Brasil, realizassem sua adequação
aos palcos internacionais com relativa facilidade, produzindo uma percepção positiva das
“travestis” brasileiras no exterior.
A associação entre as “travestis”, transformações corporais e o glamour internacional
ficou ainda mais evidente com a vinda de Coccinelle, a famosa transexual francesa, ao Brasil.
O “desembarque-surpresa” (como alertaram as manchetes dos jornais) de Coccinelle no Rio
de Janeiro despertou grande interesse da imprensa na época. Os veículos de comunicação
fizeram diferentes reportagens com a corista, fotografando-a na pérgula do hotel Copacabana
Palace e publicando falas suas acerca da suposta vontade de ser mãe, como foi o caso do
periódico Última Hora, em 13 de março de 1963. Nos jornais, Coccinelle foi apresentada
como o “ex-travesti” Jacques Charles Dufresnoy43, recruta do exército francês que se tornou
Jacqueline Charlotte Dufresnoy. Coccinelle, ao chegar ao Brasil, já havia construído uma
sólida e polêmica carreira na França, sobretudo nos famosos cabarés Chez Madame Arthur e
Carrousel de Paris, ainda na primeira metade dos anos 1950. Em 1958, a corista fez a cirurgia
de “mudança de sexo” – conforme era chamada na época – em Casablanca44, no Marrocos,
tornando-se a primeira pessoa francesa a se submeter a esse tipo de procedimento. Apesar do
ineditismo de sua iniciativa, o dado de sua vida que causou maior comoção popular foi o seu
primeiro casamento, em 10 de março de 1960, com o jornalista esportivo Francis Paul
Bonnet45, em uma igreja. Tal informação só fez aumentar a sua reputação, consolidando sua
fama internacional.
Em O Globo de 11 de março de 1963, uma foto ao lado do bailarino Mário Heynes
ilustra a informação sobre a sua estadia de três dias na cidade enquanto estava à espera da
passagem de avião para conduzi-la novamente à Paris, onde iria se apresentar no Olympia, ao
lado de Edith Piaf e Frank Sinatra. Elementos sedutores não faltavam na publicação, os quais
causaram grande comoção a um conjunto de pessoas que começavam a construir suas
trajetórias a partir da mediação do mundo artístico com a vida cotidiana.

43
Na década de 1950, George Jorgensen escandalizou os Estados Unidos chegando de avião ao país após ter
realizado na Dinamarca aquela que ficou conhecida como a primeira experiência midiatizada de operação de
“mudança de sexo” (PRECIADO, 2008; PELÚCIO, 2009). Tal feito incidiu diretamente no interesse da
medicina norte-americana, que passou a estimular pesquisas nessa área.
44
Barbosa (2015) chama a atenção para alguns países que se tornaram atraentes para o que ele chama de
“turismo cirúrgico”, dentre os quais o Marrocos e a Dinamarca. Muitas pessoas iguais a Coccinelle afluíam a
esses países para procedimentos cirúrgicos visando à transformação corporal.
45
INDEPENDENT. Obituaries: Coccinelle, transexual entertainer. Disponível em:<
http://www.independent.co.uk/news/obituaries/coccinelle-6230828.html>. Acesso em: 17 abr. 2016.
107

Acredito que a passagem de Coccinelle pelo Brasil, mais do que despertar o interesse
da imprensa ávida por notícias sensacionalistas, encorajou um conjunto de pessoas que via na
“ex-travesti” fotografada no Copacabana Palace um projeto de vida. As notícias destacavam a
hiperfeminilidade de Coccinelle, seu marido perfeito, seu corpo e, sobretudo, a sua carreira de
sucesso internacional. Associadas aos seus já propalados feitos extraordinários, essas notícias
serviram de dínamo para esses indivíduos começarem a reconstruir seus projetos de vida,
fascinados que estavam com a possibilidade de serem iguais à corista. A fala de Jane Di
Castro ao jornal O Pasquim, em 1983, informa com bastante precisão os efeitos que esta
presença causou na sua imaginação e nas suas escolhas:
Ela me entusiasmou muito, porque senti os recursos que podia usar. Li tudo sobre
ela, vi suas fotos de homem, as de mulher, soube que ela serviu o exército. Um dia
faltei a aula e fui ao Copacabana Palace assistir Coccinelle tomar banho de piscina,
pensando: “ainda vou ficar igual a ela” (Jane Di Castro em entrevista para O
Pasquim).

Coccinelle revela-se como uma mediadora entre essas pessoas e a “moderna Europa”,
onde as “travestis” já faziam parte da paisagem e eram inclusive assumidas como atrações nos
guias turísticos, associadas aos shows de entretenimento noturno. Mais à frente, pode-se ver
como ela foi importante para as trajetórias de vida de Divina Valéria, Marquesa e Rogéria
quando estas iniciam as suas carreiras na Europa.

Imagem 11 – Valéria, Coccinelle e Rogéria (Fotografia: acervo


pessoal de Divina Valéria).
108

Não somente a presença física de Coccinelle encorajou essas pessoas a construírem


projetos de vida cujo “fazer travesti” possuía centralidade. As informações que circulavam
acerca da transexual francesa acentuavam o clima de fascinação e atração acerca dessas
inovações associadas à possibilidade de mudar o corpo. O seu casamento ganhou projeção
internacional, chegando ao Brasil através de diferentes veículos de comunicação. O “efeito
Coccinelle” foi importante também para a trajetória de vida de Marquesa, que ficou conhecida
pela reprodução que fez do casamento da famosa transexual em um nightclub carioca cuja
frequência começava a ser marcadamente “bichal”: o Alfredão46.
O Alfredão resolveu reabrir a boate, aumentar, comprou do lado.... E ele quis então
formular uma peça de publicidade para a abertura dessa casa, publicidade. Naquela
época, a Coccinelle, que foi a primeira a operar, tinha casado, tinha sido um
escândalo! Então, ele queria uma noiva. Aí ele precisava de uma noiva pra boate, pra
festa. Como eu vivia sempre lá, ele disse: “Ah, Marquesa, você não quer fazer a
noiva?” Eu na hora: “É claro!”;“Pois bem, eu te monto, e tudo, dou tudo”. Na época,
o maior cabeleireiro era o cabeleireiro da Maria Teresa Goulart, que era a primeira-
dama na época. Modelo da Casa Canadá, enfim, de noiva. Eu estava impecável,
impecável! E casei. Só que esta festa foi o maior escândalo que aconteceu no Brasil
na época (Marquesa).

O escândalo provocado pelo “casamento de mentira” gerou imensa comoção popular,


sobretudo pela visibilidade promovida pela revista Fatos & Fotos, que estampou em sua capa
da edição de 22 de dezembro de 1962 o seguinte título: As bodas do diabo. Marquesa ganhou
quatro folhas inteiras nas quais o jornalista João Luiz de Albuquerque noticiou o que
considerava a “solenidade mais espantosa do século”. Os registros da solenidade incluíam
fotos de Marquesa ganhando conselhos de suas amigas “travestis” sobre os deveres da noiva,
sua felicidade diante dos presentes de casamento que ganhou de amigos e o famoso brinde
com os noivos cruzando os braços diante da plateia. Marquesa, então com 17 anos, disse que,
ao sair da boate naquela noite, foi cercada por uma legião de jornalistas que queriam registrar
o feito: o primeiro casamento de “anormais” realizado no Brasil. Muito embora tenha
conseguido sair ilesa do episódio, foi presa dias depois, durante o carnaval. Em um baile do
Teatro República, foi interpelada por dois agentes que julgara interessados nos seus dotes
corporais, mas que, no fim das contas, prenderam-na sob a acusação de atentado ao pudor.
De acordo com Alfredão (o dono do bar, um empresário português cujo pai era
proprietário de um botequim na Rua do Lavradio, centro do Rio de Janeiro), em entrevista ao
jornal O Globo de 12 de dezembro de 1983, o que deveria ter sido “uma noite engraçada”
acabou se constituindo em escândalo de tamanha proporção que o governador Carlos Lacerda

46
O Alfredão foi assim batizado por Stanislaw Ponte Preta, o Sérgio Porto. O bar, de acordo com entrevista feita
pelo jornal O Globo, publicada em 12 de dezembro de 1983, foi reduto da boemia de Copacabana, sendo
frequentado pelas “travestis” que serviam de coristas nos shows de Carlos Machado nas boates da região.
109

mandou fechar a casa. Alfredão foi trabalhar na casa Fred’s, onde, depois de um tempo,
conseguiu recuperar o dinheiro perdido para reabrir, em 1964, o Barman Club, na Praça do
Lido, Copacabana. O casamento não incomodou somente o governador. Dom Hélder Câmara,
um dos líderes mais destacados da Igreja Católica no Brasil, se manifestou contrário em seu
programa no rádio sobre a possibilidade de se fazer uma cerimônia religiosa entre dois
homens. Da noite para o dia, Marquesa tornou-se conhecida em todo o Brasil como a
“Marquesa do Casamento”. Em meio a todo esse alarde, foi convidada a integrar a equipe de
International Set.
Até o fim da década de 1960, os “shows de travesti” se constituiriam como um lugar-
comum, sendo frequentados por diferentes setores da sociedade. O Les Girls, certamente, foi
o mais importante, por ter revelado um conjunto de indivíduos que, é possível afirmar, foram
precursores na produção de sentidos e performances relacionadas às convenções acerca da
diversidade sexual e de gênero. Rogéria, Divina Valéria, Marquesa, Eloína e Jane Di Castro
saíram desses shows – elas marcaram uma geração de “travestis” que transitaram dos
bastidores dos espaços de entretenimento para os holofotes da vida cotidiana.
É interessante destacar que o florescimento dos “shows de travestis” no cenário
cultural brasileiro se deu ao mesmo tempo que houve a instituição, em 1964, da ditadura
militar, fato que manifesta a atitude ambígua do governo brasileiro face às sexualidades não
normativas. De acordo com Jane Di Castro:
Os militares não se metiam com a gente não, viu? A censura... tinha aquele
problema de assistir [a]o espetáculo, e como nosso espetáculo não tinha nenhuma
conotação política, então, nós nunca tivemos problemas com a polícia, com os
militares. Por que eles sabiam que o nosso show era um show muito de frescura. E
quando tinha censura, porque tinha aquelas três ou quatro cadeiras da censura, o
empresário avisava: oh tem o censor aí! Aí nós tirávamos todos os cacos, porque a
gente brincava, claro, também em cima. Mas como tinha sempre um censor no
teatro, um olheiro vinha avisar no camarim para todo mundo cortar aquele texto
assim e ficava uma coisa mais suave. Então, nós nunca tivemos esse problema. Nós
tivemos problema com um delegado, que se chamava Padilha, que num certo dia
veio proibir o show de travesti, mas tinha uma censora com o nome de Dona Marina
que adorava... que ela adorava os travestis, né? E sempre tem um anjo bom, né? E
ele falava: não, não vai não! Eles vão continuar. O senhor não vai fechar o Rival,
porque elas são artistas. Ela vinha ao censor, e lutava contra esse delegado (LADO
BI, 2014).

Pode-se perceber, através do relato mencionado, que os “shows de travestis” não


constituíam preocupação primeira dos governos militares. A inquietação com esse tipo de
show era antes residual e moldada pela subjetividade do censor responsável pela autorização
ou não do espetáculo. Aparentemente, a preocupação dos órgãos de repressão era com
indivíduos identificados como potencialmente perigosos à manutenção do sistema, tais como
110

os adeptos do regime comunista. A noção de “show muito de frescura” evocada por Jane Di
Castro revela o lugar de menor prestígio ocupado por esse tipo de espetáculo no conjunto das
programações culturais consideradas transgressoras pelos militares. Diante dessa quase
ausência de preocupações, Jane Di Castro e as outras podiam realizar com relativa liberdade
seus shows, contando com uma audiência cativa. A ideia de que a ditadura percebia as
diversidades de gênero e sexualidade como algo de menor peso diante do conjunto de
supostas ameaças ao sistema começou a ser modificada quando essas pessoas passaram a se
infiltrar em uma nova tecnologia, mais abrangente que os palcos cariosas e paulistas, a
televisão47.
O sucesso dos “shows de travestis” continuaria nas décadas posteriores à de 1960.
Luiz Haroldo abriu um espaço importante para esse gênero teatral no Brasil, provocando a
existência de um mercado para as “travestis” que se consolidaria entre fins da década de 1970
e início da década de 1980. O reconhecimento desse gênero, de certa forma, amoleceu alguns
veículos de comunicação, como o Jornal do Brasil que, conforme diz Adão Acosta, colunista
do Lampião da Esquina, era famoso por suas páginas preconceituosas, não oferecendo espaço
aos temas relacionados às diversidades de gênero e sexualidade. O sucesso desses shows,
inclusive internacionalmente, gerou visibilidade a essas pessoas, que foram retiradas
momentaneamente das sombras das casas noturnas em que se apresentavam. Tal
reconhecimento não foi obtido de forma automática. Para que assim ocorresse concorreram
diferentes ações coletivas da própria indústria cultural, que começava a mobilizar esforços no
sentido de construir um público e uma estética própria a esse tipo de espetáculo.
Tal ação coletiva contou com a preciosa atenção de indivíduos com carreiras
consolidadas na indústria cultural brasileira, como as atrizes/cantoras e diretoras: Marlene,
Bibi Ferreira e Berta Loran. Não somente essas diretoras emprestaram prestígio a esses
shows, mas ainda mobilizavam uma equipe de reputação, que ficava responsável por outros
momentos da produção, como cenografia e figurino. O resultado de todo esse investimento foi
uma adesão crescente de uma certa elite a esse tipo de espetáculo, incluindo muitos turistas,
que afluíram aos teatros. Tamanho sucesso foi registrado na crítica de Aguinaldo Silva, no
jornal Lampião da Esquina, de 1981, ao espetáculo Gay Fantasy.
Gay Fantasy, como estava na primeira semana, sem os cacos que os artistas
certamente vão acrescentar ao texto pobre de Arnaud, já é espetáculo pare ficar dois
anos em cartaz. Eu, por exemplo, pretendo vê-lo muitas vezes ainda. Mesmo que,
para isso, tenha que fazer como fiz da primeira vez: disputar um ingresso, a socos e
pontapés, com a legião de heterossexuais, principalmente argentinos e

47
No Capítulo IV será discutida mais detalhadamente a relação entre a televisão e as sexualidades não
normativas.
111

assemelhados, que para lá acorrem todas as noites. E incrível, mas, por causa deste
show, até na Galeria Alaska as bichas agora também são minoria... (LAMPIÃO DA
ESQUINA, 1981).

O envolvimento desse staff tão prestigiado no campo artístico brasileiro nos “shows de
travestis” investiu de autoridade esse gênero teatral, bem como as “travestis” que dele faziam
parte. Através da agência desse conjunto de diretores – Luiz Haroldo, Marlene, Bibi Ferreira,
Lennie Dale e Berta Loran – as “travestis” foram convertidas em mercadorias culturais
(MORIN, 2007), passando, via mercado de bens culturais, a fazer parte do quadro de atrações
turísticas da cidade do Rio de Janeiro. Esse envolvimento não se deu exclusivamente a partir
dessa elite artística: ele atingiu, sobretudo, uma outra elite, esta formada por “damas da alta
sociedade”: mulheres bem-nascidas e consagradas pelos veículos de comunicação por sua
reputação nos círculos sociais. Este era o caso da ex-primeira-dama D. Yolanda Costa e Silva
que, em entrevista à revista O Cruzeiro48 de 15 de outubro de 1979, dizia adorar “shows de
travestis”, informação estampada na capa da referida revista. Dando continuidade à entrevista,
Yolanda afirmou que frequentava esse gênero de espetáculo pois “os considero pessoas como
nós e nos shows deles me sinto perfeitamente à vontade”. O tom que ela assume na entrevista
d’O Cruzeiro parece tentar produzir uma imagem de si leve e arrojada, talvez na tentativa de
desconstruir uma associação com o período da ditadura, perto do fim. Ao adotar os “shows de
travesti” para construir essa imagem moderna, Yolanda Costa e Silva consolida uma
percepção entre as elites de que esses shows são modernos e, portanto, espaços que devem ser
ocupados por essas pessoas e, mais do que isso, pelas chamadas “famílias de bem”.
Mas não era apenas D. Yolanda Costa e Silva que circulava nestes shows. Todo um
grupo de “damas da alta sociedade” também o fazia. Essa frequência é evidenciada na fala das
“travestis” que faziam shows, as quais destacam as presenças ilustres que compunham o seu
público. Mais do que assistir, essas “damas da alta sociedade” tinham alguma agência no que
diz respeito à manutenção desses espetáculos durante o período mais duro da ditadura, uma
vez que, como afirma Jane Di Castro, eram estas que intervinham diretamente nos órgãos
censores para que os shows pudessem ocorrer. É válido destacar a importância dessa elite
cultural e política para o desenvolvimento de uma sensibilidade para esses shows e, por
conseguinte, para a produção de percepções menos hostis sobre as diversidades de gênero e
sexualidade. Tal lógica muito se aproxima daquela analisada por Fry (1982) no processo de
construção do candomblé e do samba como mercadorias culturais.

48
Agradeço a Milton Ribeiro por essa referência.
112

No pequeno artigo Feijoada e Soul Food, o autor destaca o quanto o pacto com as
elites foi fundamental para “fazer existir” tanto o candomblé quanto o samba, ainda que estes
tenham sido produzidos pelos negros em situação de dominação. Tal infiltração das elites
implicou a conversão desses símbolos, antes circunscritos a espaços de resistência étnica, em
“instituições nacionais lucrativas” (FRY, 1982, p. 52). Para o autor, essa conversão por meio
da cultura de massas trouxe consequências funestas, entre as quais a mais nociva: a difícil
tarefa de denunciar a situação de dominação racial, invisibilizada pelo sentido de nação
produzido a partir desses símbolos.
Processo muito semelhante foi analisado por Vianna (1995) em seu estudo sobre a
transformação do samba, indo de ritmo execrado a símbolo da identidade nacional, item
constitutivo da brasilidade. Para Vianna (1995), a relação entre cultura erudita e cultura
popular nunca foi propriamente estanque, a história dos ritmos populares pré-samba, como as
modinhas, são exemplos importantes desse argumento. De acordo com suas análises, os
saraus e outros eventos protagonizados pela elite carioca desde sempre convocaram
instrumentos, artistas e ritmos populares. A construção do samba como ritmo autenticamente
brasileiro foi facilitada por essa elite intelectual, econômica e mesmo política que mediou o
processo de ressignificação do ritmo em questão, afastando-o das percepções racistas que a
ele se associavam.
No caso das “travestis”, a relação com uma elite também fez existir outros sentidos
acerca das diversidades de gênero e sexualidade. Sem a agência dessa elite cultural
certamente este grupo não passaria a existir além dos limites dados pelo Teatro de Revista e
pelo carnaval. Ainda que Fry (1982) e Vianna (1995) estejam se referindo a produtos culturais
distintos, sua reflexão acerca dos impactos da cultura de massas sobre símbolos étnicos
oferece pistas para compreender como tipos sociais considerados tão perigosos e corruptores
aos olhos das autoridades, como eram os “homens em travesti”, foram convertidos em
mercadorias culturais – representantes legítimos de nossa adesão a uma concepção de
modernidade.
113

Logo, o lucrativo mercado dos “shows de


travestis” chamaria as atenções de espectadores de
todas as partes do país e do mundo, chegando a
despertar até mesmo sentimentos nacionalistas
acerca das “nossas travestis”, produto
genuinamente nacional. Matérias de revistas de
ampla circulação no Brasil, como a Manchete e a
Fatos & Fotos, que documentaram o período
áureo dos “shows de travestis”, adotavam no título
de suas matérias, em letras garrafais, chamadas
que destacavam o bem-sucedido “negócio
travesti”. Tais matérias atentam para o
crescimento desse mercado e dos indivíduos que a

Imagem 12 – Jane Di Castro na revista Fatos & partir dele construíam suas carreiras. Na matéria
Fotos, 1981. (Fonte: acervo pessoal de Jane Di
Escola de Bonecas, da revista Fatos & Fotos, de
Castro).
1981, o veículo afirmaria que o “negócio travesti”
estava superando em renovação de valores até
mesmo uma das instituições brasileiras mais
consolidadas, o futebol.
Tal associação com o símbolo máximo de
brasilidade também foi verificada na capa da
edição 32 de o Lampião da Esquina, de janeiro de
1981. Nela, é possível ver onze “travestis”, dentre
as quais Jane Di Castro, na pose tradicional
adotada pelos jogadores de futebol em fotografias
de divulgação do time. Todas elas trajavam blusas
do clube carioca Vasco da Gama. Na chamada da
matéria destacam-se as cinco páginas dedicadas às
chamadas “bichas biônicas”, como a equipe do
Lampião se referia às “travestis”, e ainda
ressaltava uma entrevista exclusiva com a “Zico”
dessa seleção: Rogéria. Já em uma revista
Imagem 13 – Matéria da revista Manchete, 1981. Manchete de 1981, o título Travestis S.A., uma
(Fonte: acervo pessoal de Jane Di Castro).
114

sociedade nada anônima (nem limitada) realça o caráter internacional desses espetáculos,
chamando a atenção para a “graça” das “travestis” cariocas como um traço superior das
“nossas travestis” quando comparadas com aquelas de origem internacional. Aparentemente,
essas matérias – associadas àquelas sobre o retorno dessas “travestis” da Europa – ajudaram a
amolecer a opinião pública acerca dessa presença até então incômoda.
A construção do orgulho associado à produção de sentimentos nacionalistas é um
ponto interessante a ser analisado a partir dessa publicidade dirigida às “travestis”. Vianna
(1995) chamou atenção para essa construção no processo de consolidação do samba como
símbolo nacional. Esse material sobre o “boom travesti” sugere uma tentativa de produzir
orgulho nacional a partir das “travestis” brasileiras que circulavam internacionalmente. É
interessante destacar que o orgulho nacional era produzido concomitantemente às iniciativas
hostis da ditadura a essas pessoas. Simultaneamente, a “institucionalização das travestis” via
ideiais nacionalistas produziu um
modelo domesticado de ser “travesti”,
controlado desde o palco.
É possível inferir que a
aproximação das “travestis” com
símbolos de brasilidade – como a
“mulata”, o “samba” e o “carnaval”-,
Imagem 14 – Divulgação da boate Sucata no Correio da não somente ajudou a compor a
Manhã, 18 jan. 1974. (Fonte: Biblioteca Nacional).
imagem de um Brasil liberal e
moderno, mas favoreceu a visibilidade desse grupo de pessoas junto à sociedade. A entrada de
Rogéria na condução do espetáculo com “mulatas” da boate Sucata49, no Rio de Janeiro, papel
ocupado antes por Rosemary, constiuiu outro exemplo valioso desse processo. Rogéria
confundia-se definitivamente com a brasilidade patrocinada por esse espaço, cujo produto
principal era a “mulata”. Este foi um dos primeiros trabalhos dela recém-chegada da Europa,
logo após a sua experiência com a peça dirigida por Agildo Ribeiro.
Outro dado que sugere a conversão das “travestis” em mercadorias culturais é a
estreita relação dos “shows de travesti” com o calendário turístico do Rio de Janeiro, como já
era conhecido em alguns países europeus. A publicidade construída para dar visibilidade a
esses eventos sempre os associava ao período de verão, época do ano marcado pelas altas
temperaturas que, combinadas às praias, resultam em representações sobre os corpos e os

49
A Sucata era de propriedade de Osvaldo Sargentelli, um dos grandes responsáveis pela popularização dos
“shows de mulata” na noite carioca.
115

desejos que evocam. Esses elementos são responsáveis pela construção de representações
sobre a cidade, consumida pelos turistas que aqui desembarcam. Shows como o Vídeo Gay,
em 1985, dirigido por Berta Loran e com concepção visual de Joãozinho Trinta, e Adorável
Rogéria, do mesmo ano, fazem suas estreias adotando o verão como pano de fundo, talvez na
tentativa de associar as “travestis” a noções de tropicalidade, portanto, de brasilidade. Tal
conexão fica evidente nos impressos jornalísticos deste último espetáculo: “Muita arte, muito
visual e muito alto astral para receber os turistas que desembarcam no Brasil, mais
precisamente no Rio de Janeiro, no verão de muito sol e calor” (CORREIO DO BRASIL,
1986). Mesmo aquelas que iam trabalhar em outros estados regressavam ao Rio de Janeiro
para temporadas de verão em casas noturnas
e teatros de menor dimensão, como afirmou
Susy Parker.
Rogéria protagonizou momentos
importantes de sua carreira nesse contexto de
valorização dos “shows de travesti”, como
pode ser ressaltado no sucesso de bilheteria
do acima comentado Gay Fantasy e do
espetáculo Gay Girls, em que ambas as
montagens compartilhavam o formato do
antigo Les Girls. Sua estreia brasileira após a
temporada europeia foi em 03 de outubro de Imagem 15 – Impresso do espetáculo Misto Quente
no Correio da Manhã, 20 jul. 1972. (Fonte: acervo
1973, com o espetáculo Por vias das dúvidas
Biblioteca Nacional).
ou por dúvidas das vias, dirigido por Agildo
Ribeiro, no teatro Princesa Isabel, em Copacabana. Foi Agildo Ribeiro também que, em 1972,
afiançou a primeira aparição de Divina Valéria nos palcos brasileiros depois do seu regresso
da Europa. A peça Misto Quente tinha direção de Augusto César Vannucci, e estreou em julho
de 1972, no teatro Princesa Isabel. A publicidade da peça recaía, sobretudo, na imagem de
Valéria, apresentada na imprensa como a mais perfeita transformação. A crítica feita por Moli
Ferreira, no Correio da Manhã, de 28 de julho de 1972, destacou a sua perfeição como atriz e
cantora. Segundo a especialista, a sua potência vocal lhe permitia cantar sem fazer uso do
microfone.
A importância de Rogéria e Valéria para essa geração de “travestis” não se deve
apenas as suas participações neste conjunto de espetáculos tidos como específicos – “shows
de travesti” –: elas fizeram papéis destacados na cena teatral. Rogéria atuou em dois
116

importantes espetáculos: o Alta Rotatividade, em parceria com Agildo Ribeiro, em 1976; e


Roque Santeiro, dirigido por Bibi Ferreira, em 1987. Sua atuação no teatro lhe rendeu o
prêmio Mambembe, em 1979. Os trânsitos por esse universo cultural mainstream foram
convertidos em capital simbólico na trajetória de vida de Rogéria, sendo sempre lembrados
em diferentes entrevistas que ela oferece a veículos de comunicação com o objetivo de
agregar valor à sua vida artística e pessoal.
O espetáculo Alta Rotatividade foi um sucesso de audiência nacional. Agildo Ribeiro,
em uma revisão de sua trajetória de vida organizada pela Imprensa Oficial de São Paulo,
afirma que este espetáculo foi o maior sucesso de sua carreira. O espetáculo rodou todo o
Brasil, entre 1979 a 1984. Agildo Ribeiro disse que o show só teve seu final porque não havia
mais teatros para ir. Sobre a forma como o espetáculo foi concebido, ele disse:
O espetáculo seria comigo, a Rogéria, o Ary Fontoura e a Leila Cravo. Ia ser tipo
uma entrevista de televisão. Começava com o cara sentado no palco respondendo:
Seu nome? Que ano você nasceu? É verdade que aconteceu isso e aquilo quando
você era garoto? E por aí continuaria. Algo meio Tudo é Verdade, aqueles
programas do Flávio Cavalcanti, tipo Essa é Sua Vida. O Machado olhou, pensou e
disse: Muito bom, mas quem escreve? Nós, ora. Cada um monta o que gostaria de
falar a partir das perguntas do outro. O Ary Fontoura entrava como se fosse um
apresentador. Era uma abertura. Música alta. E depois entrava a Rogéria toda vestida
de gala como se fosse a primeira entrevistada da noite. O Ary dizia: Boa noite,
senhora, qual o seu nome? Astolfo Pinto, respondia a Rogéria. E daí pode-se
imaginar como a coisa engrenava. A Rogéria contava histórias homéricas. Desde
como sua primeira vez até a última vez. Sem censuras. Descia o verbo mesmo. As
pessoas se acabavam de rir. Era uma revelação ter aquele artista com nome e voz de
homem, jeito de mulher, histórias femininas, masculinas, uma festa só. (Agildo
Ribeiro).

Em 1985, com o espetáculo Adorável Rogéria, ela desponta como produtora e diretora
teatral. O show recebeu atenção midiática em diferentes veículos, sendo o único do gênero
que possui material disponível para consulta nos arquivos da Fundação Nacional de Artes–
FUNARTE, no Rio de Janeiro. Adorável Rogéria foi considerado um show de variedades,
cujo objetivo era fazer ressurgir os tempo áureos dos “shows de travesti” no Teatro Alaska.
Além de Rogéria, atuaram Elaine, Desirée e Andréa Gasparelli. Nas tiras jornalísticas, o
espetáculo era propagandeado como voltado, sobretudo, aos turistas, que procuravam
entretenimento de alta qualidade quando de férias no verão carioca. A montagem não ficou
restrita ao Rio de Janeiro, tendo viajado por Brasília, Recife e Belo Horizonte.
Adorável Rogéria constituiu ainda a primeira iniciativa de retirar a expressão “gay”
dos letreiros dos espetáculos cujo foco eram as “travestis”. Rogéria, em entrevista ao Jornal
de Brasília, na ocasião de sua estreia na capital, explica suas opções por retirar a palavra
“gay” dos títulos dos espetáculos.
117

Resolvi tirar o nome gay da fachada dos espetáculos. Travesti não precisa ser uma
coisa vulgar, pode e deve fazer shows alinhados. Não tenho preconceitos em relação
ao homossexualismo e acho que demonstro isso no palco. Trabalho com
honestidade, dedicação. Por isso, recebo constantemente o reconhecimento do
público (Rogéria).

Aparentemente, as etiquetas “travesti” e “gay” passaram a provocar incômodo em


Rogéria, o qual parece estar associado às mudanças da percepção pública sobre as “travestis”.
Em nota de imprensa veiculada no jornal O Dia de 18 de dezembro de 1985, Rogéria dizia
que o espetáculo seria encenado por atores transformistas de talento, não por “travestis”
estereotipados. Aparentemente, a adoção da noção de “travesti” para descrever um estereótipo
supostamente negativo visava a distinguir a “arte de Rogéria”, como sublinhava a matéria, da
população de “travestis” que crescia nas ruas da cidade, aumento também evidente no
exterior.
Entretanto, o apelo midiático às “travestis” gerou outros sentidos. O palco, de certa
forma, estabilizava a presença das “travestis” na sociedade – a domesticava –, situando essas
pessoas dentro de um espaço demarcado e controlado. Enquanto estivessem no palco, esses
seres teriam assegurada a sua existência. O problema foi quando elas começaram a penetrar
em outro espaço, mais perigoso em função de seu alcance mais global: a televisão. Tal
ingresso evidenciou as fronteiras simbólicas que as “travestis” deveriam respeitar para que
pudessem preservar a sua existência50. O aparecimento cada vez mais frequente das
“travestis” na televisão gerou agitação de setores da sociedade brasileira preocupados com os
ditos valores morais. Essa preocupação ficara ainda mais expressiva quando da descoberta de
uma doença que supostamente só acometia pessoas com “comportamento homossexual”, a
AIDS. Tais questões serão analisadas de forma mais detida no próximo capítulo.
A conversão das “travestis profissionais” em mercadorias culturais foi um processo
importante para a construção de um lugar simbólico para essas pessoas. Tal processo esteve
conectado à circulação internacional dessa primeira geração de “travestis”. Foi através desses
espaços e do fazer artístico produzido para o consumo das massas que encontraram o
ambiente propício para inventar uma identidade. Essa conexão com o fazer artístico mediou
uma mudança vivenciada por elas na percepção acerca da prática de se “fazer travesti”. O
surgimento da chamada “travesti profissional”, categoria que emerge do relato de vida de
Divina Valéria, considerada uma pioneira dessa geração, é um desdobramento desse processo.
Na trajetória de vida de Rogéria, noções de “profissional” e “artista” também foram
fundamentais no processo de construção de si. No próximo tópico passaremos a analisar a

50
Discutirei no Capítulo III as relações das “travestis” com o mundo televisivo.
118

circulação internacional, sobretudo pela Europa, dessa primeira geração, bem como seu
retorno ao Brasil, atentando para os impactos desse trânsito na invenção da noção de “travesti
profissional”.

2.2 – Deslocamentos latinos

Ao mesmo tempo em que as “travestis” surgiam como profissionais e


profissionalizavam os “shows de travestis” no Brasil, constituía-se um mercado para elas em
outros países da América do Sul. Aproveitando esse momento, muitas como Divina Valéria
acabaram por se fixar durante algum tempo em países como Uruguai e Argentina. Susy Parker
e Yeda Brown também fizeram carreiras nesses países. O fascínio pelas “travestis” não era
um fenômeno somente brasileiro, mas antes internacional. Logo, o Brasil ficou conhecido
como um grande exportador de “travestis” para o mundo.
Após o longo período brasileiro, Montevidéu, no Uruguai, foi a primeira cidade a
receber a companhia de Les Girls. A trupe não era mais a mesma daquela que estreou no Rio
de Janeiro. De acordo com Yeda Brown e Susy Parker, muitas adaptações haviam sido feitas
no elenco, mas o enredo da peça continuou o mesmo. Nessa cidade, o grupo fez shows no
Cabaré Bonanza, uma casa de shows famosa da região. Susy Parker e Yeda Brown falaram
pouco dessa experiência no Uruguai, o mesmo ocorrendo com Divina Valéria. Os fatos que
mais marcaram a trajetória de Yeda Brown e Susy Parker parecem ter ocorrido em Buenos
Aires, capital argentina. As duas me contaram que a passagem pelo Uruguai foi pouco
alardeada pelos uruguaios, uma vez que os mesmos já conheciam os “shows de travesti” nas
casas noturnas da cidade. Em Buenos Aires, falaram as duas, é que as “travestis” se
constituíam em uma novidade, pois ainda não havia registros de shows envolvendo-as no
elenco, nem mesmo no Teatro de Revista argentino. Foi nesse contexto de ansiedades que o
grupo chegou a Buenos Aires.
Apesar da inquietude dos argentinos para conhecer as “travestis” brasileiras, a entrada
no país não foi tão fácil como havia sido no Uruguai. Elas chegaram em 1972, durante o
governo de Alejandro Agustín Lanusse, ditador que ocupou o cargo de presidente de 1971 a
1973. Para receberem o permiso, como Yeda Brown e Susy Parker se referem à autorização
para trabalhar no país, foram submetidas a um exaustivo escrutínio de suas capacidades
artísticas. Segundo contaram as duas, elas foram obrigadas a fazer um show para um público
119

formado pelos altos cargos militares daquele país. Ao fim do espetáculo, o grupo recebeu a
autorização para atuar nos teatros de toda a Argentina.
O primeiro teatro a receber o grupo foi o El Nacional, localizado na Avenida
Corrientes, no coração cultural de Buenos Aires. Como nesse teatro já estava em cartaz um
espetáculo produzido com vedetes argentinas, a trupe de Les Girls foi encaixada dentro do
referido show, com um período de tempo de 45 minutos, uma espécie de atração especial do
espetáculo. Yeda Brown e Susy Parker contam que este curto período de tempo foi o
suficiente para lotar o teatro com uma plateia que
parecia estar ali unicamente para ver a trupe de
“travestis”. A Revista era Neron vuelve. Trata-se de
uma espécie de paródia saudosista do governo do
antigo presidente da República Argentina, Juan
Domingo Péron, cujo nome na peça foi transformado
em “Neron”. A montagem contou com a atuação de
Adolfo Stray, prestigiado ator argentino reconhecido
por sua participação em Revistas. Além do teatro El
Nacional, Susy Parker, assim como outras que
acompanhavam a trupe, transitaram por diferentes
boates de Buenos Aires, tais com a Casa de Lince e
o Rugantino51.
Imagem 16 – Impresso do espetáculo Les
A circulação das “travestis” não ficou Girls, no Teatro Nacional, em Buenos
circunscrita à capital: as cidades costeiras de Mar del Aires, em 1972. (Fonte: acervo pessoal de
Susy Parker).
Plata e Bahía Blanca também constituíram
importantes mercados pelos quais o fenômeno “travesti” foi entendido como “espetáculo de
consumo”. Nessas cidades elas fixavam residência temporária, até serem convidadas para
irem para outro local. Como afirmaram Yeda Brown e Susy Parker, onde quer que elas se
apresentassem, conseguiam encher as cadeiras dos teatros ou das boates.
A experiência dessas “travestis” nesses países latino-americanos serviu de trampolim
para algumas delas partirem para países da Europa. Foi o caso de Yeda Brown, que viajou de
Buenos Aires para Barcelona, lá fixando residência. Susy Parker seguiu o mesmo itinerário. A
viagem para a Europa provocou rupturas definitivas na trajetória de vida de muitas das

51
Muitos dos impressos contendo a propaganda dos shows de Yeda Brown e Susy Parker foram guardados por
elas, o que facilitou o exercício de lembrar durante a condução das entrevistas. Parte desse material foi
fotografado por amigos das duas e publicado em álbuns de fotos virtuais no Facebook. Agradeço a Rita Colaço
pelas fotografias a mim disponibilizadas para a construção da trajetória de vida de Susy Parker e Yeda Brown.
120

“travestis” dessa geração. Algumas como Yeda Brown optariam pela cirurgia de “mudança de
sexo”. Muitas outras fariam uso de técnicas corporais diversas, sem passarem pela famosa
cirurgia acima aludida. Mais do que as transformações cirúrgicas, a viagem para a Europa
implicaria uma mudança no self dessas pessoas. Passarei a uma análise dessas mudanças nas
linhas que se seguem.

2.3 – A viagem e o seu retorno: o début das “travestis profissionais” na Europa

O furacão que tira Dorothy Gale do Kansas e a leva para um mundo maravilhoso, onde
os sonhos da jovem menina ganham materialidade: esse é o início de uma das mais famosas
histórias infantis do século XX. O Mágico de Oz52, filme de 1939, traz consigo uma metáfora
interessante que ajuda a pensar o deslocamento espacial e subjetivo de indivíduos que se
sentem “fora do lugar”. Na narrativa do filme, esse deslocamento é provocado pelo profundo
descontentamento promovido pela incompatibilidade entre as expectativas da menina e a
realidade na qual estava inserida. Essa incompatibilidade entre projetos de vida e expectativas
sociais se manifestava na trajetória de vida de muitos homens e mulheres que não se
ajustavam aos padrões sociossexuais hegemônicos na virada do século XIX para o XX.
Sugada por um turbilhão que a transporta para fora desse universo em tons sépia,
Dorothy se vê em um mundo colorido, cercada de seres diferentes e fantásticos. Saída das
pradarias do Kansas, encontra o Mundo de Oz que, para além de sua dimensão onírica, é um
mundo cosmopolita onde diferentes povos se cruzam. A busca pela Cidade das Esmeraldas e
pelo Grande Mágico de Oz – o desafio infligido a Dorothy para voltar ao Kansas – são uma
alegoria que ajuda a pensar acerca da procura de jovens não adequados à norma heterossexual
pela “grande cidade”, que, além do arco-íris, promete uma vivência mais adequada aos seus
modos de vida não sancionados pelas regras sociais. Essa busca não apenas implicava um
desejo de sair do profundo silêncio imposto a suas sexualidades não apresentáveis por grupos
de convívio, como a família e a vizinhança, mas também um encontro de si mesmo através da
aproximação com semelhantes que se encontravam dispersos.
Muitos autores brasileiros (GREEN, 2000; GUIMARÃES, 2005; FIGARI, 2007) e
estrangeiros (CHAUNCEY, 1994, HUMPHREYS, 1979; WESTON, 2003) chamam a

52
Filme baseado no livro do escritor norte-americano L. Frank Baum. O livro tornou-se peça da Broadway e em
1939 ganhou uma versão cinematográfica, protagonizada por Judy Garland.
121

atenção para a migração de homens e mulheres que compartilhavam o desejo sexual por
outros iguais para cidades grandes. O sociólogo norte-americano Humphreys (1979) classifica
de “êxodo homossexual” esse deslocamento de pessoas “homossexuais” de cidades com
menos densidade populacional – e também comandadas por uma moral mais fechada – para
os grandes centros urbanos. Eribon (2008) afirma que esse afluxo se constitui como uma
mitologia no imaginário coletivo da “homossexualidade”, provocando uma fantasmagoria do
“outro lugar” entre as pessoas que se identificam como “homossexuais”. Esse fenômeno pode
ser identificado, sobretudo, através das trajetórias individuais dessas pessoas, evidenciadas
por pesquisas que identificavam que elas quase sempre não eram nascidas nesses grandes
centros urbanos (WESTON, 2003).
A literatura antropológica sobre a vida nas grandes cidades chama atenção para esses
fluxos populacionais que possibilitaram a constituição de diferentes existências culturais em
uma mesma área geográfica. A cidade aparece nesse tipo de literatura como uma “unidade
simbólica”, expressão consagrada por Simmel (1973), cuja extensão funcional extrapola
fronteiras físicas determinadas pela geografia e pela demografia. Sua capacidade globalizante
ofereceria espaços e situações privilegiados para a realização de uma dada liberdade, cujos
reflexos se expressariam em uma ampliação das possibilidades de movimentos,
deslocamentos, encontros, trânsitos, fixações e derivas (PERLONGHER, 1987).
A “grande cidade” – como uma construção analítica – ligaria mundos distintos, às
vezes até opostos entre si. Contudo, também ofereceria a possibilidade de “trânsito entre
mundos”, uma vez que proporcionaria aos seus habitantes “passar rápida e facilmente de um
meio moral a outro, e encoraja a experiência fascinante, mas perigosa, de viver ao mesmo
tempo em vários mundos diferentes e contíguos, mas de outras formas amplamente
separados” (PARK, 1973, p. 62). Por acolher essa diversidade de mundos, é uma
característica da cidade oferecer de forma relativamente fácil aos seus habitantes um mundo
no qual se sintam à vontade, pelo qual se sentem atraídos. A “atração da metrópole”, como
definiu Park (1973), encontra explicação nessa possibilidade de acolhimentos, de encontros,
de identificações com outros indivíduos que compartilham de um mesmo “código moral
divergente” (PARK, 1973).
Um componente que acentua essa atração é o “anonimato relativo” (VELHO, 2003)
atribuído aos grandes centros urbanos. Atraídos por essas e outras possibilidades que a cidade
propicia saíram muitos jovens – como no turbilhão que levara Dorothy do Kansas – de suas
realidades em tons sépia, abandonando suas famílias de origem e antigas redes de relações
para integrarem novas redes de convívio e afeto. Diferentes símbolos associados à cultura
122

urbana contribuíram para a construção desse imaginário acerca da relação das sexualidades
não normativas com as grandes cidades. O cinema foi certamente um deles, sobretudo em
razão de seu mais marcante produto cultural: as divas. Aqui no Brasil, os jornaizinhos que
circulavam nas turmas de “bichas” e “bofes” cumpriram um papel importante na construção
desse imaginário, fazendo circular informações das “liberdades” permitidas nas nossas duas
maiores capitais: Rio de Janeiro e São Paulo.
Em um dado momento, a cidade tornou-se ponto central de uma sociabilidade que
articulava pessoas de diferentes regiões que se associavam em função de um marcador
específico – o amor por iguais. Essa sociabilidade fazia circular informações, pessoas,
símbolos e objetos que dotavam de sentido as sexualidades não normativas. Certo imaginário
foi se constituindo em torno de cidades onde supostamente viviam-se mais abertamente as
relações eróticas entre iguais, e uma dessas cidades era Paris.
Paris era, certamente, a cidade mais procurada e cobiçada por esses indivíduos que
viam no glamour da Cidade-Luz o contexto favorável para vivenciar o seu momento de
glória. Jane Di Castro foi uma das muitas “travestis” que realizaram o sonho da viagem
internacional. Ela, assim como Rogéria, Marquesa e Divina Valéria, conheceram o fausto do
Carrossel de Paris, do Madame Arthur e do Moulin Rouge, casas de shows disputadas por
artistas de diferentes partes do mundo. Jane Di Castro53 conta:
O maior mercado de trabalho para o travesti é Paris, em termos de tudo, pois lá é a
cidade maravilhosa das bonecas. Infelizmente este mercado vai acabar, pois existe
em Paris travestis que não têm a cabeça feita para enfrentar a barra diária da Cidade-
Luz (Jane Di Castro).

Se durante o carnaval o “fazer travesti” era integrada ao contexto lúdico dos bailes e
das festas de rua, essa prática se transforma com a ida de algumas dessas pessoas para a
Europa. Apesar do relativo sucesso dos “shows de travestis” materializado por Les Girls,
essas pessoas continuavam dividindo as suas vidas entre a diva do palco e o “boyzinho”
cotidiano. Foi somente quando começaram a circular pela Europa que essa relação se
modificou. Divina Valéria contou que só começou a se vestir regularmente com roupas
convencionados como do outro sexo quando chegou à Europa. Sua primeira experiência fora
do Brasil foi no Uruguai, após já ter estreado Les Girls, onde teria se apaixonado por um
rapaz, lá fixando residência por um período. O primeiro país que visitou fora da América
Latina foi a Espanha, chegando à cidade de Barcelona em meados de 1969.

53
BITTENCOURT, Francisco. Brasil: campeão mundial de travestis. Lampião da esquina, Rio de Janeiro, a.03,
n. 32, jan. 1981.
123

Lá foi surpreendida pela ditadura de Francisco Franco, a qual, segundo ela, proibia
shows com “homens vestidos de outro sexo” nos palcos espanhóis. Divina Valéria conta que
chegou a fazer show “desmontada”54 nesse período, pois tinha que sobreviver de alguma
forma. Ela afirma que conseguiu uma autorização especial para “fazer travesti” em uma casa
de espetáculos chamada Sena. Ela conta que obteve grande projeção, sendo, em um dos shows
que fez, assistida por Coccinelle, a famosa transexual francesa que ganhou notoriedade por ser
a primeira a ser “operada”. Coccinelle ficou curiosa ao saber que existia “uma bicha não
operada fazendo travesti” nessa casa. Ao assistir à sua apresentação, Divina Valéria afirma
que a famosa transexual gostou e logo ficaram amigas. Na ocasião, Coccinelle a aconselhou a
partir para Paris, posto que, segundo ela, lá poderia se apresentar como quisesse, sem que
sofresse a intervenção das forças policiais franquistas. Assim, a famosa Coccinelle fez uma
carta de apresentação para Divina Valéria performar no Carrousel de Paris, onde foi recebida.
Lá, Divina Valéria entrou em contato com um mundo cosmopolita povoado de personalidades
importantes que ampliaram o seu “campo de possibilidades”, mas, principalmente, começou a
se relacionar com outras iguais que “se transformaram”.
O Carrousel era glorioso, né, porque no Carrousel frequentava les tout Paris. O
Carrousel era lotado todo dia, com as pessoas mais importantes, fosse brasileiro ou
de toda a parte do mundo. É como se fosse o Lido, o Moulin Rouge, né? Então, era
um espetáculo só de travestis, todas muito maravilhosas, ali você tinha holandesa,
espanhola, grega, alemã, brasileira era pouca. Tava eu, no momento estava eu.
Depois chegou Rogéria, é porque eu cheguei no Carrousel, aí a Rogéria que estava
na África, em Moçambique, por aí, veio para a Espanha. A Rogéria, ao vir para a
Espanha, eu já estava em Paris. E aí parece que a Espanha foi liberando o que eu não
pude fazer já estava podendo fazer. Aí a Rogéria aproveitou essa fase, e aí eu me
comunicando com Rogéria fiz contato para ela vir para Paris. Aí ela veio para Paris,
também para o Carrousel. E aí... Mas no Carrousel eu e Rogéria trabalhamos pouco
juntas, porque ela ia em tournée para um lado e eu ia em tournée para o outro.
Porque o Carrousel eram mais de trinta artistas e sempre tinha tournée viajando pelo
mundo. Eu fui pro... Ah, eu fui para tanta parte, eu viajei, eu fui até o Japão, Teerã,
Beirute, Istambul, Jacarta, Hong Kong, ah, muitos lugares e toda a Europa. Por que
tinha tournée para todo o lado. Então foram aqueles anos que eu vivi lá, que eram os
anos 70 e que eu fazia isso e o Carrousel divino, porque ali também conheci muitas
personalidades: Maria Callas, Jane Monroe, Jean Seberg, tanta gente... (Divina
Valéria).

Já Rogéria experimentou o début internacional na África portuguesa, tendo passado


uma temporada de um ano e dois meses em Luanda, em Angola. Ela foi para a África
seguindo a Companhia de Dinis Duarte, após uma temporada bem-sucedida no Teatro Rival,
no Rio de Janeiro. De acordo com entrevista concedida ao jornal O Pasquim, em 1973,
Rogéria confidenciou que em Luanda sua arte não fez o sucesso que tinha feito no Brasil. De
acordo com ela, o “transformismo” não foi bem recepcionado pela plateia, posto que “a

54
Categoria nativa para se referir ao fato de estar usando roupas consideradas em conformidade ao sexo
designado no nascimento.
124

África portuguesa não é Lisboa”, destacou taxativa. Nesta entrevista, Rogéria afirma que a
Companhia de Dinis Duarte buscava conectar o seu espetáculo a um certo imaginário do que
era o Brasil. A música popular brasileira, as “mulatas” e ela, a “travesti”, eram itens que
faziam parte desse “negócio de Brasil”, expressão que ela mesma adota.
Para Rogéria, a Europa se abriu através da cidade de Barcelona. Foi lá que ela viveu
seis meses e meio na casa de Coccinelle, trabalhando como “ator transformista” na noite. O
embarque para Paris se deu com o apoio de Coccinelle, que lhe entregou uma carta de
apresentação endereçada ao Monsieur Marcel, dono do Carrousel de Paris. Rogéria afirmou
que jamais usou esta carta, uma vez que acreditava que o seu talento era o suficiente para
conseguir penetrar no staff da casa de espetáculos. Diferentes de outras iniciantes que, como
ela, começavam no Madame Arthur, Rogéria revela ao jornal O Pasquim que estreou de
imediato no Carrousel, pois havia se destacado nas audições pelo fato de saber cantar. Assim
como Divina Valéria, Rogéria interage com um mundo novo, repleto de informações,
indivíduos e possibilidades.
A Paris da década de 1970 fervilhava de novas tendências que impulsionavam
mudanças nas convenções sociais. Após maio de 1968, a juventude passou a dominar a cena
cultural, deslocando a política para outras dimensões da vida social, tais como o corpo, a
sexualidade, a música e a moda. Simultaneamente, a cidade convivia com as novas ideias
importadas dos Estados Unidos, que via eclodir movimentos identitários, tais como o
feminista, negro e gay. Todas essas mudanças afetavam de formas distintas as vidas dos
indivíduos que lá conviviam. Localizado na Rue Vavin55, Montparnasse56, o Carrousel de
Paris ocupa um lugar de destaque no imaginário de uma geração de pessoas que hoje se
conhece como “travestis”. Naquele espaço, entre um show e outro, essas pessoas iam
construindo uma percepção de si que transbordava os homens “em travesti” do carnaval
brasileiro.
O Carrousel constituiu um epicentro onde se podia obter informações sobre
transformações corporais e até mesmo conquistar um posto de trabalho nas inúmeras tournées
realizadas pelo cabaré (BARBOSA, 2015). Era lá também que se conhecia a rota do “turismo

55
O Carrousel de Paris conhecido por Divina Valéria, Rogéria, Marquesa e demais “travestis” dessa geração
permaneceu na Rue Vavin de 1962 a 1985, ano em que fez vez a sua última apresentação, na qual estava
presente Divina Valéria. Antes de 1962, o cabaré situava-se no 40 da Rue du Colisée, no 8e arrondissement. A
partir de 2000, o Carrousel se transformou em um moderno musichall, agora situado no 40 da Rue Pierre
Fontaine, no 9e arrondissement, mantendo a decoração dos tempos de outrora. Fonte: CARROUSEL DE PARIS.
Site. Disponível em: < http://www.carrouseldeparis.fr.>. Acesso em: 14 de março de 2014.
56
Divina Valéria afirmou que a Rue Vavin estaria localizada em Montparnasse, famoso bairro parisiense.
Contudo, a sua localização no mapa de Paris é no Quartier Notre-Dame-des-Champs, no 6e arrondissement.
125

cirúrgico” (BARBOSA, 2015), ou seja, os locais e especialistas médicos que ofereciam


cirurgias que promoviam a mudança corporal. Mais do que um nicho de mercado para as
“travestis”, os cabarés como o Carrousel e o Madame Arthur constituíam uma rede de
solidariedade entre essas pessoas. Eram nesses espaços que muitas encontravam uma “família
de escolha” (WESTON, 2003), composta por indivíduos com histórias de vida semelhantes,
na qual era possível depositar expectativas de cooperação e lealdade.

Imagem 17 – Impressos do Carrousel de Paris e do Madame Arthur, data não identificada (Fonte: J. D. Doyle
Collection).

Mais do que o Madame Arthur, o Carrousel de Paris era o ponto cardeal de uma rede
de circulação na qual se movimentavam essas “travestis” pela Europa. Essa rede envolvia
outras casas noturnas de Paris, como o próprio Madame Arthur e também o Trafalgar, mas se
expandia e ramificava para cidades como Berlim, Barcelona, Madrid, Sevilha, Valença, Nice,
etc. As tournées do Carrousel também se ampliavam para cidades fora do eixo europeu, tais
como Jacarta, Hong Kong, Casablanca e Teerã. Os shows da casa eram produzidos a partir da
combinação de diferentes estilos, tais como o Music Hall, o Burlesco e o Vaudeville. Havia
strip-tease, dublagens, música ao vivo acompanhada de orquestra57, esquetes e danças

57
Divina Valéria apresentava-se cantando ao vivo no cabaré. Além de músicas francesas, ela interpretava
criações do cancioneiro popular brasileiro, como O que será (À flor da pele), de Chico Buarque. Tal habilidade a
fez ser conhecida no Carrousel como a “cantante”. Uma das únicas apresentações que consegui coletar de
126

individuais. As atrações que despertavam mais o interesse dos seus frequentadores, e


distinguia a casa de outras que evocavam a boemia estilo Belle Èpoque, como o famoso
Moulin Rouge, eram as suas famosas vedettes, todas “travestis”. As “travestis” eram o ponto
alto do local, sendo inclusive retratadas no material produzido para sua divulgação, como é
observado nas imagens dedicadas a Coccinelle e Tracy-Lee, coristas no Carrousel na década
de 1960, no programa de apresentação elaborado pela casa (Imagem 18).

Imagem 18 – Coccinelle e Tracy-Lee, primeira geração do Carrousel de Paris (Fotografia: Marti. Acervo: J.
Doyle).

As fotografias exibidas pelo Carrousel para divulgar a sua principal atração


ressaltavam a metamorfose de rapazes de aparência comum em mulheres elegantes e
portadoras de uma beleza excepcional. Tal jogo de contrastes atendia ao objetivo de atrair um
público curioso em saber como tais transformações eram possíveis, mais até do que as
habilidades artísticas dessas pessoas no palco. A “metamorfose de gênero” desses rapazes era
então percebida como um “prodígio” a ser exibido, uma “maravilha”, como na expressão de
Leite Júnior (2006). A propaganda do Carrousel assumia esse jogo de contrastes como

Valéria no período em que esteve trabalhando no Carrousel encontra-se neste canal do YouTube:
<https://www.youtube.com/watch?v=ynFZkVKJ5Wg>.
127

matéria-prima de seus shows, semelhante à lógica


dos freak shows norte-americanos (LEITE
JÚNIOR, 2006).
Era justamente na habilidade de confundir
o público que essa propaganda era organizada.
Aparentemente, a geração posterior ao Carrousel
da década de 1960 já não foi mais divulgada a
partir desse jogo de contrastes. Foi antes
privilegiado o resultado perfeito dessa
metamorfose, sem nenhuma alusão visual à sua
performance de “boy”. Só se sabia que era uma
“travesti” por conta da fama do cabaré nesse tipo
de mister. A divulgação das artistas da geração de
Jane, por exemplo, que chegou um pouco depois
Imagem 19 – Jane Di Castro para o Carrousel
de Paris. (Fotografia: acervo pessoal de Jane Di de Divina Valéria e Rogéria ao Carrousel, já na
Castro).
década de 1970, parece fazer uso mais intenso da
exibição do corpo, sobretudo nu, talvez para mostrar ao público não mais o contraste entre
antes e depois, responsável por provocar espanto, mas o corpo com um resultado final, sem
marcas visíveis de ambiguidades. Outro sentido sobre a adoção do nu nessas fotografias é
oferecido por Jane Di Castro. Em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1983, ela afirma que o
Carrousel que conheceu havia sido convertido em uma vitrine de prostituição. Segundo ela,
ficar nua era um critério de elegibilidade da casa, aquelas que apenas queriam cantar não
conseguiam mais fazer carreira por lá. Em função disso, ela conseguiu emprego no Trafalgar,
outra casa que reunia as características dos antigos shows do Carrousel.
Tal exibição parece se relacionar com o contexto de intensa divulgação popular
daquilo que Leite Júnior (2008) chamou de “milagres da tecnologia médica”: a ideia de que é
possível “trocar o sexo”. A partir das análises de Meyerowitz (apud LEITE JÚNIOR, 2008)
no contexto norte-americano, o autor ressalta o surgimento de uma nova categoria de
“maravilhas”, agora não mais assimiladas às aberrações, mas antes a seres plenamente
modificados pelas modernas técnicas médicas que vinham se desenvolvendo na Europa e nos
Estados Unidos. Diante desses “milagres”, as formas de exibição desse corpo não mais
recorriam ao contraste masculino/feminino para aguçar a curiosidade da plateia, mas
começam a ser informadas pelo jogo de revelação e dissimulação, como sugere Williams
(2012), provocando a imaginação do espectador, sobretudo para uma região específica: a
1288

genittália. Analissarei esse joogo mais à frente, mass é interessaante observaar como as fotografiass
de Jaane Di Casttro e Yeda Brown paraa o Carroussel de Pariis são exem
mplos ilustraativos dessaa
novaa forma de exibição
e desste corpo “pprodígio” (L
LEITE JÚNIIOR, 2006).
Com essaas
fotoggrafias do Carrousel
C d
de
Pariss, as “travestiss”
consttituíam um portfólio, a
que o carimbbo da cassa
confe
feria prestíígio, como
podee ser vistoo ainda naas
Imaggens 19 e 20,
2 nas quaiis
Jane e Yeda Brrown posam
m
para uma das muitas
m fotoos
publiicitárias do local. Atuaar Imagem 20 – Yeda Brown
B para o Carrousel dde Paris (Fon
nte: acervo
pessoal de
d Yeda Brown
n).
no Carrousel
C im
mplicava seer
reconnhecida com
mo artista competente.
c . Todos os artistas quee compunhaam a equipe possuíam
m
fotoss carimbadaas pela cassa, as quaiss ilustravam
m os progrramas dos espetáculoss. As fotoss
ressaaltavam a hiiperfeminiliidade das “ttravestis”, produzida
p soobre um corrpo erotizad
do. Acreditoo
que em função de uma auusência de formalizaçã
f ão desse meercado de eespetáculos,, as fotos e
progrramas do Carrousel
C e do Madam
me Arthur possibilitara
p am a constrrução de um
m currículoo
docuumentado paara essas peessoas58.
As circuulações mottivadas peloo Carrouseel ganharam
m materialiddade em um
m conjuntoo
diverrsificado dee agendas cujos
c comprromissos see deslocavaam de um ppolo consid
derado maiss
glam
mourizado, como
c os evventos ondee estavam presentes o jet set intternacional em festas,,
jantaares, locais da moda, etc.,
e enquannto no outro
o polo se concentrava
c am aquelas circulaçõess
menoos divulgaddas, mas quue marcaram
m profundam
mente a traj
ajetória de vvida das meesmas. Noss
dadoos a que tivve acesso, as
a circulações dessa geeração de “ttravestis” ppor esse uniiverso “nãoo
oficial” foram tratadas coom certa reeserva. O conjunto
c deesse materiial – jornaiis, revistas,,
entreevistas à impprensa, etc. – permite inferir
i que existia
e um silenciamen
s nto tácito accerca dessass
práticas, talvezz em funçãão de umaa preocupaação de see distanciarrem do “eestigma daa
prosttituição”. Os
O deslocam
mentos e aquuisições desssas “travesttis” dentro dessa rede de relaçõess

58
Alggumas “travesstis” chegaramm a receber uma
u espécie de
d aposentadoria por conta de sua estadiia na Europa..
Marquuesa, por exemmplo, recebiaa do governo alemão uma pequena
p rendda mensal, acrredito que frutto do períodoo
n Alemanha, tendo contribuuído com o sistema de proteção social alemão.
em quue trabalhou na
129

é um exercício importante para compreender a forma como elas construíram a sua trajetória
artística e de vida.
A experiência no Carrousel transcendia Paris, e um exemplo disto foram as tournées
internacionais a que elas eram solicitadas a participar. Marquesa, apesar de não ter iniciado
sua carreira na Europa, pois foi primeiro para Nova York59, é um exemplo da circulação do
Carrousel de Paris pelo mundo, sobretudo na própria Europa Ocidental. A tournée de Gay
International Show marcou a presença de Marquesa nos palcos espanhóis. Lá, ela esteve,
inclusive, na companhia de Coccinelle fazendo shows. Os impressos promocionais de suas
participações em diferentes casas noturnas europeias ilustram essa circulação.

Imagem 21 – Impressos jornalísticos


veiculados na imprensa espanhola
divulgando o Gay International Show,
espetáculo do Carrousel de Paris com
Marquesa (Fonte: acervo pessoal de
David Vilches).

A publicidade produzida sobre os “shows de travestis” a partir desses cartazes é


marcada pela espetacularização da ambiguidade de gênero, situação não muito diferente do

59
Marquesa trabalhou no Club 82 quando passou uma temporada em Nova York. Trata-se de um bar
underground frequentado por drags aberto em 1958. Funcionou até 1978 na 4th Street, em Nova York.
130

que ocorria nos shows brasileiros. Como o show International Set alguns anos antes no Brasil,
o Gay International Show, do Carrousel de Paris, continuaria vinculando esse tipo de
entretenimento a uma experiência moderna e cosmopolita, tal como sugere ainda o destaque
dado à ascendência internacional de algumas de suas artistas. Nesses shows, a ambiguidade de
gênero é percebida com um negócio lucrativo, como pode ser visto nas figuras presentes em
dois desses cartazes: uma possui um sinal de interrogação na região da genitália e a outra
possui metade do corpo caracterizado com elementos femininos e o outro masculino. O
próprio “corpo travesti” é o espetáculo. É sobre esse corpo que recai a curiosidade do
expectador, assentada nessa ambiguidade, uma “maravilha” (LEITE JUNIOR, 2008). Tais
imagens sugerem ainda um jogo entre revelação e dissimulação, semelhante ao que Williams
(2012) chamou de screening sex ao analisar a história da exibição do sexo nos Estados
Unidos. Para a autora, o verbo exibir, examinar (screen), possui um duplo sentido. Ao mesmo
tempo que implica revelar algo, ele também possui um significado relacionado ao esconder.
Essa dissimulação presente nos filmes pornográficos abre um espaço, segundo Williams
(2012), a ser preenchido pela imaginação do expectador. Este é um ponto que é de interesse
reter. As imagens provocadoras dos impressos parecem brincar com o público de revelar e
esconder, estimulando a imaginação sobre esse corpo indecifrável. Talvez fosse por acionar
essa imaginação que esse tipo de shows se tornou tão bem-sucedido entre as décadas de 1960
e 1970.
Outro dado importante no conjunto desses impressos é a associação estabelecida entre
as noções de luxo, sexy, humor e a ideia de frivolidade. Tais características sugerem uma
“estética do deboche”, através da qual os “corpos travestis” são produzidos como itens de
exibição da ambiguidade de gênero: são corpos exotizados com vias a comercialização. Essa
exotização produz um corpo para venda através do humor e do riso que evoca. Associados a
esses elementos, acredito que a curiosidade também foi um sentimento que fez com que as
plateias afluíssem a estes shows.
Nenhum destaque internacional é dado à Marquesa, talvez em função de sua dupla
nacionalidade, já que seus pais eram franceses. Em um dos materiais de divulgação da sua
estadia em Barcelona, ela é identificada como carioca, mas também europeia. Outro dado que
chama atenção é o uso da categoria “gay” exibida no título do show, marcando assim uma
indistinção de sentidos entre “travestis” e “gays”, uma nova categoria que emergia no
contexto europeu, importada dos Estados Unidos.
A noção de “internacional” é recorrente nas formas de exibição dos “shows de
travesti” nos diferentes impressos com que tive contato. Sugiro que tal exibição seja um
131

recurso adotado pelo empresariado do entretenimento na tentativa de provocar a sensação de


uma diversidade de artistas. Mesmo divulgando a ideia de um show internacional, nenhum
dos impressos que recolhi associava a imagem das “travestis” a estereótipos nacionalistas. No
caso das “travestis” brasileiras, não pude observar, em imagens ou discursos, ideias que
reforçavam representações desses indivíduos como potencialmente mais sensuais, tal como a
literatura sobre o tema tem chamado a atenção (PISCITELLI, 2013). A ideia de uma
“brasilidade” com seus conteúdos de exotização é abandonada, assim como ocorre com outras
nacionalidades, em favor de uma percepção de que o exótico, nesse contexto, é menos a
singularidade étnica do que o próprio corpo metamorfoseado. Um dado, contudo, merece
destaque: a predominância de Carmem Miranda nas escolhas feitas por essas “travestis” em
seus repertórios de shows. Rogéria, em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1973, disse que no
período em que estava no Carrousel todas as brasileiras que lá faziam show tinham algum
número de Carmem Miranda em suas composições, talvez na tentativa de acionar uma
“brasilidade” a partir da imagem da famosa cantora.
Além das cidades espanholas, Marquesa fez temporadas no Cabaret Chez Nous e no
Chez Romy Haag, ambos em Berlim. Esta última foi uma importante casa noturna da capital
alemã, aberta em 1974 por Romy Haag, famosa transexual holandesa que fixou residência na
Alemanha. O Chez Romy Haag era, na década de 1970, um reduto dos apreciadores da disco
music na capital alemã. Haag ficou conhecida mundialmente em função de seu romance com
David Bowie, que se mudou para Berlim, em 1976, por causa dessa relação. Haag foi musa
inspiradora de Bowie nos anos em que durou o romance. As produções60 do Chez Romy Haag
eram bem elaboradas e contavam com figurinos luxuosos. As performances incluíam
dublagem e danças coreografadas, assim como esquetes curtas, nas quais o humor e a ironia
marcavam a interação das artistas com o público, muito semelhantes às modernas boates
dedicadas ao público LGBT. Havia ainda espetáculos mais longos, como o Las Estupidas, do
qual participou Marquesa, em 1983. O conjunto desses shows conjugava performances de
“travestis” com homens adotando um visual ambíguo, muito semelhante ao da trupe brasileira
Dzi Croquettes. Cintas-liga, meia-calças, maquiagem, sungas cavadas e bigodes marcavam as
aparições desses homens no palco. A nudez masculina também era outra característica
marcante das produções do Chez Romy Haag.
A vida noturna em espaços como o Carrousel, o Madame Arthur e o Chez Romy Haag
proporcionou a essas “travestis” conviver com um cardápio diversificado de pessoas –

60
Alguns dos shows produzidos no Chez Romy Haag, incluindo aqueles nos quais Marquesa trabalhou, podem
ser vistos pelo YouTube: <https://www.youtube.com/results?search_query=chez+romy+haag&page=3>.
132

sobretudo o jet set internacional. Considerados espaços underground, essas casas noturnas
tinham como fregueses artistas e indivíduos ricos, alguns vinculados a importantes famílias da
Europa. Tal presença produzia reconhecimento a esse gênero de espetáculo e às artistas que o
comandavam. Simultaneamente, conhecer pessoas ilustres proporcionava construir um capital
social que, compondo suas narrativas sobre sua temporada europeia, ajudaria a consolidar
uma imagem de glamour sobre si mesma quando elas voltaram ao Brasil.
Outro dado marcante da circulação proporcionada pelas redes da vida noturna europeia
é aquela que se relaciona ao bas-fond. De acordo com Bispo (2013), a expressão francesa bas-
fond se relaciona ao “submundo, ao não oficial, às práticas que eclodem por baixo dos olhares
reguladores, que castram comportamentos indesejáveis” (BISPO, 2013, p. 99). Tal
formulação permite vislumbrar um campo de deslocamento tensionado por valores e lógicas
próprias, posto que relacionado a regiões fronteiriças, perigosas e contagiosas. Kullick (2008),
em seu livro sobre as “travestis” da cidade de Salvador, Bahia, destaca essa dimensão, que
considera sensacionalista, das histórias de vida das suas interlocutoras. Por outro lado, tal
incursão ao bas-fond dos nightclubs europeus daquele período pode, seguindo as formulações
de Díaz Benítez (2010) acerca da noção de redes sociais, ajudar a compreender o cruzamento
entre esse mundo e outros contíguos – espaços porosos através dos quais essas “travestis
profissionais” construíram para si uma carreira considerada de sucesso na Europa.
Foi através da circulação no bas-fond, por exemplo, que foi possível se conectar a
personalidades, como foi a relação de Yeda Brown com o pintor espanhol Salvador Dalí. Tal
conexão foi instituída por um sistema de trocas no qual o que estava em jogo era o valor
simbólico da imagem do pintor para Yeda, que construía a sua carreira na Espanha. Yeda
chegou a pertencer a entourage de Dalí circulando com o pintor por diferentes espaços,
deixando-se fotografar ao lado dele para veículos espanhóis. Yeda conquistou com esta tarefa
não somente a confiança de Dalí, mas, principalmente, conseguiu projetar para si a sua
influente imagem – consolidando sua carreira como a “última musa de Salvador Dalí”, título
que ainda hoje lhe confere notoriedade.
Mas o bas-fond proporcionou também trocas simbólicas de outros gêneros.
Compartilhar o glamour dos espaços considerados impenetráveis por simples mortais era um
momento singular na trajetória de vida dessas “travestis”. Divina Valéria falou das muitas
vezes que, ao final dos shows do Carrousel, foi convidada por diferentes cavalheiros para
acompanhá-los aos seus hotéis, sempre de cinco estrelas, destaca. Curtos passeios a
localidades destacadas pelo luxo, como a Riviera Francesa, também faziam parte desses
itinerários de glamour. Foi assim que Divina Valéria conheceu homens ricos e perdulários
133

que ofereceram a ela não somente um estilo de vida faustoso, mas também bens materiais
como joias, roupas caras e os tão desejados casacos de pele. Mais do que os valores
monetários investidos nesses objetos, as relações delas com esses homens e o seu círculo
social se destacam como o bem simbólico mais valioso.
São essas conexões, mais do que os bens materiais que conquistaram, que ganham
importância quando elas falam de suas trajetórias. Tal infiltração do simbólico no conjunto
dessas trocas atualiza as contribuições de Mauss (2003) acerca da natureza das trocas nas
sociedades. Quando falam de si, essas “travestis” não destacam as conquistas materiais que
tiveram ao longo da vida, mas antes as relações que construíam. Os “cavalheiros”, como
destaca Divina Valéria, proporcionaram uma circulação de bens materiais e simbólicos em
torno delas, agregando valores e sentidos às suas trajetórias e carreiras.
Quanto à associação ao imaginário da prostituição, essa categoria faz pouco ou
nenhum sentido para algumas “travestis” dessa geração, sobretudo para Divina Valéria e
Rogéria, consideradas pioneiras. O ingresso nos mercados do sexo era mais uma possibilidade
em meio a outras que se colocavam durante suas estadias na Europa. A experiência com os
“cavalheiros” era mais vivenciada na chave da corte amorosa à La Traviata61, do que do sexo
pago no sentido estrito. Tal experiência remete menos a uma ideia de mercantilização do sexo
do que a uma lógica da dádiva e da reciprocidade, semelhante àquelas formas de intercâmbios
de serviços sexuais analisadas por Piscitelli (2013) em relação às brasileiras envolvidas nos
mercados transnacionais do sexo. Para essa autora, as noções correntes de prostituição não
contribuem satisfatoriamente para a compreensão das diferentes formas de inserção nos jogos
que envolvem sexo e dinheiro. Muitas dessas inserções não assumem a forma contratual do
sexo pago, são antes abertas à interpretação dos agentes que participam desses jogos.
No caso das “travestis” dessa geração, tais relações eram antes o resultado de uma
carreira bem-sucedida do que um recurso para conquistar esta carreira. Os “cavalheiros”, no
sentido narrado por Divina Valéria, se interessavam por aquelas que reuniam atributos físicos
e que conseguiam se destacar nas apresentações do Carrousel. A lógica do cortejo incluía
oferecer-lhes joias, vestidos da haute couture e passeios exclusivos – presentes – com os
quais eles podiam negociar sua companhia conjugando uma dinâmica de conquista.

61
Ópera de Giuseppe Verdi, baseada no livro A dama das camélias, de Alexandre Dumas. O livro conta a
história de amor entre um jovem estudante, Armand, com a cortesã mais procurada de Paris, Marguerite
Gaultier. Na ópera de Verdi, estes personagens são convertidos em Alfredo e Violetta. A comparação dos
romances dessas “travestis” com La Traviata aqui é oportuna no sentido de que a personagem da cortesã evoca
para si uma incapacidade de poder amar, o seu amor é única e exclusivamente pelos bens materiais. Tal
característica faz com que seus amantes lhe ofereçam toda a sorte de presentes para dela obter atenção.
134

O Carrousel proporcionava ainda outro tipo de circulação, aquela relativa ao recém-


criado mundo das transformações corporais. Divina Valéria revela que no Carrousel era
possível ter acesso a informações sobre formas de se “transformar”. Com as outras “travestis
profissionais” que já tinham carreira consolidada, elas puderam ter contato com diferentes
estratégias e “tecnologias de gênero” (DE LAURETS, 1994) para construir seu corpo e sua
performance: processos de hormonização, cirurgias para corrigir imperfeições, formas de
apresentação de si, etiqueta, etc. Eloína, em entrevista ao jornal Lampião da Esquina, revela
as mais variadas possibilidades abertas a elas para transformarem o corpo quando ainda no
Carrousel. Ela diz que tomou hormônio e injetou silicone para produzir seu corpo. Fala ainda
de uma droga que era moda entre as “travestis profissionais” chamada Amplan. Em entrevista
ao jornal Lampião da Esquina de fevereiro de 1980 diz Eloína:
O Amplan só é vendido na Europa e nos Estados Unidos. Você consegue a receita
com um médico, são umas pílulas. Aí você procura um cirurgião plástico que faz um
corte nas duas virilhas e coloca duas dessas pílulas em cada. Aí vem toda a reação.
Os cabelos crescem mais, a voz afina, os músculos somem, os seios crescem. Mas
isso enfraquece muito o organismo. E não é em todas as pessoas que faz efeito.
Depende do organismo de cada um (Eloína).

Uma das primeiras transformações que operavam em seu corpo era abandonar as
perucas com as quais trabalhavam nos shows no Brasil, e se permitiam deixar crescer os
cabelos, sobretudo resultado da ingestão de hormônios. O uso de hormônio, entretanto, era
cercado de histórias, muitas das quais com desfechos tristes. Yeda Brown, por exemplo,
afirma que no período em que começou a se hormonizar, com 18 anos, ouvia relatos de
colegas nos quais a morte aparecia como o resultado do uso descomedido de hormônios no
corpo. Ela me disse que, quando as pessoas de sua época começavam o processo de
hormonização, eram tomadas por uma “ansiedade de ser mulher” tão acentuada que algumas
tinham como destino a morte. Rogéria também aciona lembranças bastante dolorosas do
período em que começou a operar transformações no seu corpo. Para ela, transformar um
homem em mulher no palco é tarefa fácil, na realidade que é fogo, revelou ao jornal O
Pasquim, em 1973. Ela disse ter chorado muito durante todo o processo.
Apesar de atentas ao exemplo de Coccinelle, “operar” ou “mudar de sexo” era a única
transformação que foi unanimemente rejeitada por essas pessoas dessa geração com quem tive
contato, com exceção de Yeda Brown. Eloína e Rogéria, por exemplo, nunca disseram pensar
em passar por essa intervenção. Eloína, quando perguntada pelo jornal Lampião da Esquina
sobre essa possibilidade, disse que jamais faria, posto que, para uma pessoa realizar o
procedimento, é necessário ser muito “preparado de cuca”, afirmou taxativa. Na mesma
135

matéria, ela cita exemplos de outras que fizeram a operação e tiveram desfechos infelizes, tais
como morte por infecção no hospital durante o pós-operatório e o suicídio. Eloína mobiliza
representações correntes acerca desse tipo de intervenção cirúrgica naquele período e ainda
hoje. Dentre essas representações, a mais marcante é aquela que se cruza à ideia de loucura62,
fazendo com que as candidatas à operação sejam indivíduos suspeitos de uma demência
latente, com o suicídio se tornando sempre uma possibilidade. Rogéria, em entrevista ao
jornal O Pasquim, em 1973, caracteriza Coccinelle como uma pessoa frustrada, uma pessoa
com muitos problemas cujos motivos ela atribui serem originados na cirurgia de “mudança de
sexo”. Marquesa, em entrevista a um veículo espanhol, afirma que somente tomava
hormônios para fazer crescer os seios, mas os produtos também deixavam o seu rosto mais
liso. Já Jane Di Castro diz ter pensado operar, mas que foi em função da “má orientação” de
uma “operada” que tentou fazer a sua cabeça. As mudanças corporais de Jane foram feitas em
Nova York, onde trabalhou uma temporada para conseguir pagar as cirurgias de aplicação de
silicone no quadril, nos seios e no rosto.
Jane revela, além disso, o lado obscuro desse período de experimentações corporais,
no qual, segundo ela, elas serviam de cobaias. Ela explica essa questão falando de uma
situação pela qual passou, quando injetou silicone líquido nas pernas, orientação de uma
amiga, cujas consequências são até hoje refletidas na sua saúde. Após estes procedimentos,
muitas voltavam da Europa com um equipamento corporal totalmente modificado, chegando
mesmo a desestabilizar em exuberância muitos símbolos nacionais forjados na “matriz
heterossexual” (BUTLER, 2003), tais como a “mulata do carnaval”. Eloína, antes de ser a
Eloína dos Leopardos, era a “mulata” que, em 1976, levantou a Sapucaí quando desfilou na
frente da bateria pela campeã daquele carnaval, a Beija-Flor de Nilópolis.
As experiências dessas “travestis” na Europa podem ser condensadas em dois tipos de
aprendizados-saberes que, associados ao fazer artístico, começam a ganhar materialidade nas
suas práticas e técnicas corporais. Esses aprendizados implicam uma nova forma de gestão do
corpo na qual as cirurgias plásticas e terapias hormonais são as responsáveis por um sex
design (PRECIADO, 2008). Preciado, em Testo Yonqui (2008), fala de uma “era
farmacopornográfica”, um momento da modernidade capitalista na qual os índices que aferem
a produtividade não são mais aqueles da economia fordista, ainda que lá encontre suas raízes,
mas sim os relacionados a “todo aquel complejo material-virtual que puede ayudar a la
producción de estados mentales y psicosomáticos de excitación, relajación y descarga, de

62
A ideia de loucura associada à cirurgia hoje nomeada de “resignação sexual” ainda é recorrente na visão de
mundo de muitas “travestis”, tal como mostram os estudos de Kullick (2008) e Pelúcio (2009).
136

omnipotencia y de total control” (PRECIADO, 2008, p. 31). Neste complexo é que se situam
os hormônios, medicamentos, terapias, cirurgias, etc. – itens que implicam uma nova forma
de governo da subjetividade. Os sucessos das “travestis profissionais” no Carrousel e cá no
Brasil são exemplos paradigmáticos do imperialismo “farmacopornográfico”. Aparentemente,
esses “sujeitos silicone”, nos termos de Preciado (2008), passam a ser um item iconográfico
desse regime, estando a meio caminho entre o Amplan, de que fala Eloína, e a ideia de
loucura, da nosografia médica.
Porém, essas experimentações não passavam apenas pelo conhecimento das técnicas
cirúrgicas e dos novos fármacos para hormonização adotadas pelas “travestis profissionais”
europeias, mas também incluíam a adesão a um comportamento elaborado, sobretudo esnobe,
que articulava um rico repertório cultural, que englobava arte, teatro, cinema, etc. Mais do que
esses elementos, esse repertório cultural compreendia, sobretudo, conhecer pessoas ilustres
que pertenciam ao jet set internacional. Isso fica muito evidente nas narrativas de vida de
Divina Valéria, Marquesa e Rogéria. Todas elas se reportam a uma constelação de atores,
atrizes, cantores, socialites, magnatas e até nobres que conheceram, ou mesmo de que se
tornaram amigas ou amantes. Acessar essa rede social permitia a elas operar um “travestismo
de classe”, nos termos de Mcclintock (2010), evidenciando os mecanismos simbólicos dessas
convenções. Ao mesmo tempo, permitia com que elas habitassem as normas (MAHMOOD,
2006) a partir da incorporação das convenções de classe e gênero, resistindo, dentro destas,
aos estigmas a ela associados. Aparentemente, esse capital social tende a atrair sobre elas
reconhecimento, invisibilizando a estigmatização aliada à sua experiência social marcada pela
injúria.
Esse repertório de capitais materializava um “corpo exibível” (RANGEL, 2015), cuja
manutenção era feita por uma gestão cotidiana de gestos, atos de fala e de uma performance
milimetricamente elaborada. Sobre esse “corpo exibível”, acho interessante destacar um
pouco de minhas impressões pessoais sobre a performance dessas pessoas quando tive a
oportunidade de realizar entrevistas com algumas delas. Era inevitável perceber o quanto o
corpo dessas “travestis” evocava glamour nos gestos mais básicos, como nos movimentos das
mãos e no ajeitar dos cabelos. Fascinou-me ver como Divina Valéria fazia uso de um
repertório corporal que capitaneava para si uma imagem hiperfeminina e espetacular. Parecia
que estava sendo fotografada a todo o momento.
Tais observações sugerem que os corpos criados por Divina Valéria, Rogéria e outras
dessa geração possui uma memória associada ao contexto onde foram produzidos: o mundo
dos espetáculos. Tais processos estão assentados em um treinamento constante da memória,
137

desejo e intelecto, como sugere Mahmood (2006), provocando uma relação constitutiva entre
aprendizagem corporal e sentido corporal. A mútua interação entre esses dois componentes é
analisada por Mahmood (2006) através da concepção aristotélica de habitus. A autora alerta
para que não confunda essa noção com aquela elaborada por Bourdieu (2013), uma vez que se
trata de uma disposição consciente de reorientação da vontade, a qual provoca o alinhamento
entre comportamentos externos e disposições internas (MAHMOOD, 2006). Esses
aprendizados, continuando nas linhas da autora, sugerem uma modalidade de ação que se
relaciona à forma como as normas são incorporadas e performadas por esses agentes em um
dado contexto. Considerando essas referências, é possível afirmar que a ideia de glamour e a
performance a ela associada foram importantes itens para o processo pelo qual essas
“travestis” performaram a norma e, simultaneamente, a subverteram.
Refletindo sobre essas questões, argumento que a aquisição de técnicas corporais
associada à formação de capital social foi o principal critério que instituiu fronteiras entre as
modernas “travestis profissionais” e aquela prática, considerada grotesca e que ficou no
passado, de “fazer travesti”.
Outro dado importante relacionado à circulação europeia é a noção de
profissionalização contida na expressão “travestis profissionais”. À “travesti profissional” se
impõem certos atributos, que passam pelo corpo, comportamento e relações sociais. Mas esses
atributos só faziam sentido dentro de uma lógica na qual essas pessoas começam a ganhar
existência a partir do discurso produzido por diferentes agentes. Ao analisar um curso no Rio
de Janeiro dedicado a formar “mulatas profissionais”, Giacomini (2006) chega à conclusão
que a marca e prova da profissionalização como “mulata” estava condicionada à aquisição de
certos atributos que não eram inatos, mesmo em se tratando de mulheres negras. Os atributos
de que fala Giacomini (2006) são estruturados por um conjunto ordenado de valores e
sentidos que oferecem significados ao “ser mulata” – uma “identidade idealizada” que não se
completa, segundo ela. Articulando as análises de Giacomini (2006) com aquelas de Corrêa
(1996) é possível afirmar que tal “identidade idealizada” é uma invenção construída por
discursos médicos, literários e carnavalescos, responsáveis pela produção dessa figura de
forma tão singular na sociedade brasileira (CORRÊA, 1996).
A ideia de profissionalização se insere nesse processo como um mediador que faz com
que corpos sejam materializados como “mulatas”, algo que não depende exclusivamente da
cor da pele das envolvidas no curso, mas antes é o resultado de um aprendizado vinculado aos
efeitos desses discursos. A profissionalização buscada no curso sugere um aprendizado da
138

forma como deve ser uma “mulata estilizada”, cuja brasilidade materializada no corpo será
objeto de consumo “tipo exportação”, sobretudo de turistas que para cá afluem.
Para as “travestis profissionais”, a ideia de profissionalização se aproxima da lógica do
curso para formar mulatas. Construir um corpo cirurgicamente era um momento importante
no processo de construção da “travesti profissional”, mas não as profissionalizava. Era
necessário um investimento simbólico ainda maior, que se relaciona diretamente à viagem
para a Europa e à incorporação de etiquetas relacionadas à classe social e gênero. Reunindo
esses atributos que não eram naturais, elas operavam diferentes “travestismos”
(MCCLINTOCK, 2010) que as tornavam exibíveis. Tornar-se exibível implicava ser
profissional, algo diametralmente diferente das grosseiras exibições de feminilidade que
representavam os “homens em travesti”. Para esse fim, o glamour se constituía em um bem
simbólico valioso, adquirido a duras penas em função de uma incorporação constante das
regras de gênero e classe. Neste sentido, ser profissional era adequar-se a Coccinelle, cuja
performance materializava os discursos que a inventaram.
Para a geração de Divina Valéria e Rogéria, a noção de “travesti profissional” está
intimamente relacionada aos seus processos de construção de si. Na verdade, na trajetória de
vida de Rogéria, a noção de “travesti” aparece mais tardiamente, posto que, para ela, a
dualidade Astolfo/Rogéria foi constitutiva. Em muitas de suas aparições públicas, Rogéria
permite transparecer pouca preocupação em ser definida como “travesti” ou mesmo
“homossexual”. De acordo com esses relatos, sua carreira e apresentação de si são dimensões
que se imiscuem em uma síntese, que gerou Rogéria: uma “forma de vida” e um artista.
Acionando essas duas categorias, Rogéria acredita que teria driblado as situações de
preconceito em função do respeito que teria adquirido no palco63. Em entrevista ao programa
Canal Livre, da TV Bandeirantes, de 1983, a fala de Rogéria ilustra bem essa percepção de si:
“Quando você é artista, realmente, a palavra homossexual, bicha, fica inferiorizada, lá
embaixo, porque não me atinge!”. Nessa entrevista, ela ressalta o caráter fluido com que se
constrói como indivíduo: transitando entre Rogéria e Astolfo. A circularidade de gênero
marca a forma como ela se percebe como um sujeito dotado de agência.
Apesar da estadia europeia proporcionar capital simbólico indispensável à construção
das “travestis profissionais”, para algumas delas, a viagem implicou pouca ou quase nenhuma
ascensão econômica. Rogéria, em entrevista ao Lampião da Esquina, afirma que foi o

63
As implicações desse processo no cenário político do moderno movimento LGBT serão problematizadas no
Capítulo V.
139

regresso ao Brasil, combinado ao capital simbólico conquistado na Europa, que a fez


acumular algum recurso material.
Não ganhei dinheiro nenhum na Europa. Consegui fazer uma boca maravilhosa,
porque eu botei jaqueta na boca inteira, mas foi aqui, com o Dr. Hamilton Mourão,
um mineiro divino. Comprei um triplex, mas foi tudo com o dinheiro do Brasil.
Mesmo com essa inflação, com esse dinheiro horroroso, que não dá para nada, tudo
o que eu consegui foi com dinheiro brasileiro. Mas eu precisei ir antes pra Europa,
pra depois voltar e começar a ganhá-lo, tá? (Rogéria)64.

Ao que parece, a riqueza disponível na Europa correspondia aos recursos tecnológicos


de transformação corporal e ao capital simbólico, nos termos de Bourdieu (2004; 2013),
relacionados à montagem de um corpo-glamour. É possível sugerir que na Europa elas
ganhavam dinheiro, mas, ao mesmo tempo, tinham que investir na construção de seus corpos,
seja na aplicação de silicone ou outros recursos cirúrgicos, seja na aquisição de um guarda-
roupa faustoso e requintado, para que assim pudessem dar continuidade às suas carreiras. Era
na Europa que elas adquiriam o “talento de ser fabulosa” (OCHOA, 2004).
Quando voltou ao Brasil, Divina Valéria assumiu uma apresentação de si totalmente
feminina, provocando grande alarde entre diferentes setores da sociedade brasileira da época,
principalmente motivado pela imprensa.
Eu voltei em 72, eu voltei. Eu voltei, mas eu vim para passear, por que eu já tinha
rodado um pouco pelo mundo, eu já estava em uma situação financeira legal, porque
eu tinha, inclusive, encontrado um homem – um milionário, um conde – que me deu
a possibilidade de me vestir com os grandes modistas, usar brilhantes, peles, tudo
era... Eu estava rica com este homem que me proporcionava tudo isso: viajando
pelos melhores hotéis do mundo, frequentando os melhores restaurantes... Bem, eu
estava com tudo isso já algum tempo, então bem, eu estava... mas já acostumada até
com isso e vim ao Brasil passear. Aí vim ao Brasil passear e até então, naquela
época, nenhuma amiga minha, as travestis da época e tudo, nenhuma estava de
mulher ainda, nenhuma ousava viver de mulher, a não ser quando fizesse show. E eu
para mim já vivia no meu cotidiano, diariamente, normalmente, já estava
acostumada... pra mim era natural! E quando eu vim ao Brasil, algumas amigas
minha diziam assim: você não vai conseguir desembarcar no Brasil, porque não vão
deixar. Eu, pensei, eu vou ao Brasil, eu viajo para todo o mundo sem ter problema,
não vou ter problema, é elas que não estão acostumadas e estão pensando que não
pode, porque não é possível que isso vá acontecer no Brasil, todo lugar do mundo
nenhum me aconteceu, vai me acontecer no meu país? Aí, eu vim e pensando se não
deixam eu entrar, me barram a minha entrada, eu não vou ter que me vestir de
homem para passar, eu volto do aeroporto! Mas não aconteceu nada, inclusive
quando eu desembarquei, estava muitas delas, estavam tudo de homem, tudo me
esperando porque queria ver a reação, o que iria acontecer. Porque todos já estavam
me acompanhando minha trajetória lá, tudo que eu estava fazendo, que saia aqui nas
revistas. A Nina Chaves65, que na época era a cronista mais importante do Rio, deu
meia página do Globo comunicando a minha volta ao Brasil. Uma foto de Antonio

64
Entrevista para o Lampião da Esquina, ano 3, nº 32, janeiro de 1981.
65
Nina Chaves foi criadora e editora do Caderno Ela, coluna do jornal O Globo cujo principal objetivo era
introduzir no periódico um tipo de colunismo de fofoca, moda e entrevistas sintonizado às tendências norte-
americanas. A coluna chegou até mesmo a publicar uma parte dedicada ao público gay, chamada “Rapazes da
Banda”. Através da iniciativa, Nina fazia circular entra as mulheres das camadas médias cariocas noções de
estilo e “bom gosto”.
140

Guerreiro maravilhosa. Aí as pessoas, não é possível! Sabe? Não estão acostumadas.


Eu cheguei, não houve problema! Elas ficaram tudo surpresas. Eu tinha que ir para
algum lugar para me hospedar, fui direto para o Hotel Glória, que era um hotel que
tinha uma história que me encantava. Fui para o Glória. Todas achando que eu ia ter
problema, que não ia... com o passaporte de homem não iam me deixar eu estar de
mulher. Não teve nenhum problema! Imagina! Foi como se fosse na Europa ou em
qualquer lugar do mundo. O problema era elas que não estavam acostumadas e não
tinham esse hábito, né? E para mim já era uma coisa normal. Então, fui muito bem
tratada e cheguei no hotel e aí começaram... saiu no repórter Esso, no jornal de
televisão uma notícia que chegou Divina Valéria, desembarcou de mulher. Detalhe:
em determinado momento se dirigiu ao toalete feminino, como isso fosse uma
coisa... saiu como notícia. Bem, eu no Hotel Glória, eu sei que eu não tive mais
tempo nem para sentar numa mesa para comer, porque a imprensa era o dia inteiro
me procurando, me fotografando. Eu, encantada também com tudo aquilo, no fundo
era também, pra qualquer artista, era também o que a gente está esperando que
chegue esse momento – de poder divulgar o seu trabalho e tudo – eu não estava
vindo com essa intenção, mas aproveitei aquele momento. (Divina Valéria).

O longo relato de sua chegada ao Brasil, depois de sua primeira temporada na Europa,
permite inferir um conjunto de questões importantes. Divina Valéria fala de um momento no
qual o que se entende hoje como “travesti” tinha outros sentidos. Sua ida à França e o contato
estabelecido com as “meninas” do Carrousel lhe proporcionaram a possibilidade de adquirir
um “capital travesti” ainda não disponível no Brasil. O desafio lançado por suas amigas –
chegar ao aeroporto “montada” – foi um marco importante na construção da noção de
“travesti” com uma forma de se apresentar no mundo. Acredito que toda a movimentação da
imprensa contribuiu decididamente para projetar uma representação dessa nova “forma de
vida” para milhares de brasileiros, transformando a sua vida em uma “vida fetiche”
(MCCLINTOCK, 2010), alvo preferido das ansiedades da imprensa que, simultaneamente,
escandalizava e fascinava a sociedade brasileira do período. A “travesti profissional”
converteu-se definitivamente em “espetáculo de consumo” (MCCLINTOCK, 2010). Divina
Valéria ganhou muito espaço em vários veículos de comunicação importantes ao desembarcar
trajando roupas femininas e usando o banheiro adequado à sua apresentação corporal.
No Brasil, Divina Valéria projetou a imagem de uma mulher hiperfeminilizada, cuja
existência, como colocado pela mídia da época, parecia ameaçada pelo suposto
“endurecimento do feminino”, motivado pela emergência dos movimentos feministas nos
países ocidentais. É possível sugerir que a imprensa via na imagem de Divina Valéria uma
tentativa de restaurar a essência dessa “mulher glamourosa” que ocupou o imaginário coletivo
nas décadas anteriores à emergência daquele movimento. Quando entrevistada pela colunista
Nina Chaves acerca do Ano Internacional da Mulher, essa mensagem fica bem evidente:
Acho feminista, de maneira geral, feia e frustrada. Jamais entraria nem participaria
de nenhum movimento dela, visando [a] ter os mesmos direitos que o homem.
Direitos existem e a inteligência, a astúcia é que podem fazer a mulher “dobrar” o
homem e com isso superá-lo. Jamais agrediria um homem. Nada existe de mais
141

maravilhoso que ele acendendo cigarro, abrindo a porta do carro, colocando um


“mink” sobre suas costas num bistrô. Tenho amigas feministas no Brasil, mas acho
que deveriam usar sua inteligência para conquistar o macho e não brigar com ele
(Divina Valéria).

Ao que parece, a preocupação que a imprensa carioca dedicou à Divina Valéria


possuía outros contornos para além da curiosidade despertada pela “novidade” de ver “o
homem que virou mulher”. Ela implica tensões nas camadas médias acerca da recepção das
mudanças nas convenções sociais emanadas dos grandes centros mundiais. Se para Fry (1982)
o surgimento da categoria “entendido” estava associado à emergência dos valores igualitários
constitutivos das camadas médias dos grandes centros urbanos brasileiros, acredito que essas
ideias não eram recebidas de forma tão homogênea como se supõe. O Caderno Ela nasce
justamente para incentivar a produção de uma “nova mulher”, a qual deveria ter estilo, se
vestir com roupas da moda e possuir um comportamento adequado. Interessante realçar que o
tipo de “mulher ideal” que a coluna tenta alcançar adota Divina Valéria como um exemplo
pedagógico. Divina Valéria constituía o modelo-fetiche de uma “feminilidade burguesa”,
adotando a expressão de Leite Júnior (2008), posto que materializava no seu corpo e
performance uma imagem própria à domesticidade.
Simultaneamente, a coluna dirigida para um público feminino oriundo das camadas
médias e altas da sociedade brasileira oferecia a oportunidade de conferir existência a essas
pessoas, até então não apresentáveis ou parcialmente apresentáveis durante os dias de
carnaval. Divina Valéria e Rogéria evocariam uma iconografia perfeita da domesticidade,
contribuindo de forma paradoxal com o projeto feminista, já que ao mesmo tempo em que
reforçavam as convenções de gênero, elas lembravam que essas mesmas convenções eram
artificiais, visto que sua feminilidade não se baseava em um corpo biologicamente
determinado, mas era antes materializada por discursos (BUTLER, 2003). Essa iconografia da
domesticidade tinha na interface com o glamour um eixo estruturante. Foi através do
glamour66 que essas “travestis profissionais” puderam incorporar as normas de classe e
gênero hegemônicas, performando, assim, a norma (MAHMOOD, 2006).
O glamour acabou se constituindo como uma forma de agência, através da qual esses
corpos, visibilizados na chave do exótico, puderam resistir à heteronormatividade,
conseguindo penetrar em espaços restritos dentro da sociedade. Porém, a penetração nesses
espaços só era possível através da sujeição às normas de gênero e classe. Talvez por isso essas

66
Carvalho (2011), em sua dissertação sobre a constituição do movimento social organizado de “travestis” e
“transexuais”, chama a atenção sobre o glamour como uma forma de “purificação” da poluição de gênero
relacionado a esses sujeitos.
142

“travestis” incomodavam tanto as feministas, que as viam com profundo desdém por
acreditarem que elas representavam a imagem da “mulher perfeita” que estava sendo revista
pelo nascente feminismo. O trânsito pela norma não implica afirmar que elas eram destituídas
de agência, como sugere (MAHMOOD, 2006). Ao habitar a norma heterossexual, essas
“travestis” evidenciavam a sua artificialidade, uma vez que só performavam essas normas
através dos “travestismos de gênero e classe” (MCCLINTOCK, 2010) que operavam.
É possível inferir que, a partir desse conjunto de dados, a viagem à Europa implicava
muito mais que um deslocamento espacial: promovia uma transformação subjetiva e uma
ampliação da visão de mundo dessas “travestis” – as tornavam internacionais e cosmopolitas,
logo glamourizadas. Velho (2010), escrevendo sobre o cosmopolitismo, “supõe que a
experiência cosmopolita amplie o universo de experiências e o acesso a visões de mundo
diferenciadas” (VELHO, 2010, p. 17). Essa ampliação e acesso de que fala o autor, teve duas
consequências nas trajetórias dessas “travestis”, uma externa e outra interna. Ao mesmo
tempo que contribuiu para uma mudança na forma como a opinião pública construía
representações sobre a imagem da “travesti”, promoveu um empoderamento desse grupo, o
qual acabou por se constituir em um projeto de vida para outras, que assim como essas
“travestis” se identificavam com esse universo e viam na vida delas uma ampliação do seu
“campo de possibilidades”.
Os trânsitos pela Europa figuravam como um importante episódio na trajetória de vida
de qualquer “travesti”. Foi através dessas viagens, semelhante ao processo de formação de
grupos étnicos no Nordeste analisado por Oliveira (1998), que esses indivíduos começaram a
instituir mecanismos de representação de si, começaram a elaborar e a divulgar projetos de
futuro e, sobretudo, fizeram florescer uma unidade identitária antes não existente. A viagem é
parte constitutiva do currículo daquelas que procuram se destacar nesse universo e na
sociedade mais abrangente. Ter passado uma temporada em Paris, agregava capitais social,
cultural e, principalmente, simbólico a essas pessoas, as quais negociavam essa informação de
forma intensa em suas trajetórias. Ter passado uma temporada em Paris oferecia uma
oportunidade de distinção em diferentes situações. Adotar expressões em idioma estrangeiro
constituía-se como um emblema de distinção importante, mas, simultaneamente, promovia
convenções sobre como ser uma “travesti profissional”.
Ainda mais importante do que estar em Paris era o regresso dessas pessoas ao Brasil.
Esse retorno era, como é possível observar na narrativa de Claudia Celeste sobre Divina
Valéria, triunfal, obedecendo ao script de uma entrada da diva em cena em um musical da
Broadway. Essa chegada era sempre acompanhada de muito alarde aqui no Brasil, sobretudo
143

da imprensa, que alimentava uma representação exótica dessas personagens. Com o regresso
vinham os segredos de uma transformação bem-sucedida. A viagem implicava uma mudança
dramática na forma como essas “travestis” negociavam sua existência com o mundo hostil
que as cercava. Essa negociação só era possível quando elas articulavam um discurso que
realçava o glamour de suas histórias pela Europa – o cortejo de “cavalheiros”, as joias, os
shows, os lugares de luxo –, narrativas fundamentais para uma construção de si.

2.4 – Impactos duradouros

Acredito que a invenção da “travesti profissional” constituiu momento importante na


produção de convenções sobre as diversidades de gênero e sexualidade. Tal categoria
abrangia um conjunto de pessoas que começavam a construir suas subjetividades a partir da
prática de transformar o corpo masculino em feminino– mas não era qualquer feminino,
tratava-se de uma hiperfeminilidade, uma performance glamourosa, que passou a ser
reproduzida inclusive por mulheres como Rita Cadilac, a famosa chacrete. A “travesti
profissional” não foi convertida apenas em mercadoria cultural, ela passou a conformar um
destino, um projeto, ampliando assim o “campo de possibilidades” (VELHO, 2003)
relacionado às expressões de gênero.
A experiência de circulação internacional foi parte constitutiva dessas trajetórias, a
qual, com o passar do tempo, foi se conformando como projeto de vida para outras iguais. A
noção de projeto, tal como conceituada por Velho (2003), está relacionada diretamente a
experiência moderna e cosmopolita evocada pelas sociedades modernas contemporâneas. Para
esse autor, o projeto consiste em uma ação orientada para um dado fim. A bem-sucedida
carreira na Europa associada às transformações corporais fez com que a “travesti profissional”
fosse convertida em um projeto de vida para muitas que aqui no Brasil as percebiam como
possibilidade de fuga de vidas marcadas pelo silenciamento e clandestinidade. Em curto
prazo, toda a publicidade dedicada a essas “travestis” bem-sucedidas encorajou o début de
muitas outras, mesmo aquelas que não tinham o mundo artístico como parte de seu horizonte
de vida.
Se para Rogéria e Divina Valéria a famosa Coccinelle constituíra um elo com as redes
de circulação dos nightclubs europeus, a ida dessas duas para a Europa e, sobretudo, a sua
permanência bem-sucedida em Paris foram episódios que encorajaram outras com as quais
144

mantinham alguma relação de amizade. Foi o que ocorreu com Eloína, que partiu para Paris
com o auxílio oferecido por Rogéria e Divina Valéria. Eloína começou a sua vida artística
como camareira da vedete Nélia Paula, logo após passando a trabalhar na boate Pigalle, no
Rio de Janeiro. Possivelmente, foi nesses espaços que travou contato com Divina Valéria e
Rogéria. Diz Eloína ao jornal Lampião da Esquina, em fevereiro de 1980
Eu mantinha correspondência com Rogéria e Valéria que já moravam lá e me
incentivaram muito. Nessa época eu morava com um rapaz, que foi quem me
financiou a viagem. Tudo. Eu cheguei em Paris em 72 sem falar nem boa noite em
francês. E nessa época não tinha nenhuma brasileira lá. Fui para o Hotel Perrot, na
Place Pigalle, e minha sorte foi que a mulher que me atendeu era espanhola (Eloína).

A fixação dessas “travestis” em cidades da Europa e dos Estados Unidos possibilitou


formar uma rede de ajuda mútua, através da qual outras como elas podiam migrar com mais
segurança para os países sobre os quais tanto ouviam histórias de sucesso. Não somente
Eloína foi beneficiada com essa rede, mas também Jane Di Castro e Marquesa. Todas elas
migraram para o exterior, seguindo a trilha deixada por “travestis” que já trabalhavam em
algum estabelecimento por lá. A migração tornava-se mais fácil, posto que na cidade ainda
desconhecida elas garantiam hospedagem, um rede de confiança e o tão sonhado emprego em
algum dos cabarés.
No Brasil, o impacto das carreiras de Divina Valéria e Rogéria, para citar as mais
conhecidas, estimulou outras que assim como elas viam na “travesti profissional” um projeto
de vida. Divina Valéria, Rogéria e Jane Di Castro não somente chamaram a atenção da mídia:
elas conseguiram ser aceitas e até admiradas por diferentes setores da sociedade, incluindo
intelectuais e artistas. Nas entrevistas concedidas à imprensa, as “travestis profissionais”
falam de sua experiência como algo que existiu desde a infância. Sempre se acharam
diferentes, sempre buscaram brincadeiras identificadas como do outro gênero. Tal êxito
encorajou muitos que se identificavam com a história de vida dessas “travestis”, os quais se
sentiam fortalecidos com a imagem de sucesso correntemente vinculada na imprensa sobre
elas. Vislumbrando o “mudar dos tempos” a partir dessas trajetórias, alguns jovens rapazes
decidiram romper com o silêncio, investindo em “formas de vida” alternativas à “matriz
heterossexual” (BUTLER, 2003).
A trajetória de Weluma Brown é um exemplo interessante das mudanças que estavam
ocorrendo na sociedade brasileira no que se relaciona aos usos da noção de “travesti”. Ela
conta que, quando ainda muito jovem, não existia o nome “travesti”. Diferente de Divina
Valéria, Weluma Brown foi ter consciência dessa categoria através do mundo da prostituição
que ocorria na Central do Brasil, região central do Rio de Janeiro. Já como “travesti”, pôde
145

experimentar o mundo dos programas de auditório, fundamentais para a sua trajetória. Ela
revela como se tornou a única “chacrete travesti” depois de ter transitado no mundo da
prostituição de rua.
Eu comecei a frequentar a Jovem Guarda, que até então no auge era a TV Record, na
Avenida Consolação [São Paulo] e me tornei a presidente do fã-clube da cantora
Wanderléia. Eu tinha 14 anos, 14 para 15 anos. Aí andando para cima e para baixo
com Wanderléia. Isso eu fiquei muitos e muitos anos, muitos e muitos anos com
Wanderléia. Fui voltei para o Rio de Janeiro, porque a minha vida era entre o Rio e
São Paulo, o que aconteceu: eu, muito feminina, frequentava o Programa do
Chacrinha, como eu frequentava vários programas de auditório. E quero frisar
também heim, que fui uma das primeiras do Programa do Édson “Bolinha” Cury
onde concorri com 50 travestis e fiquei em terceiro lugar. [...] O que aconteceu? Eu
já estava com os meus 19 anos, o programa [Chacrinha] entrava ao ar, a Discoteca
do Chacrinha entrava ao ar pela TV Globo todas as quartas-feiras, começava no
horário nobre das 21:00 às 23 horas da noite e havia a Buzina do Chacrinha, que era
aos domingos, das 21:00 às 23 horas. Bom, como o programa era ao vivo, não havia
playback, não havia videotape na época, o que aconteceu: ele só olhou para mim –
faltava meia hora para começar o programa – ele olhou para mim “Não, não, ela!”,
até então, eu era conhecida como Cláudia, foi Elke Maravilha que me batizou. A
Elke Maravilha, 42 anos atrás, me batizou com o nome de “Weluma” (Weluma
Brown).

Assim como na trajetória de Weluma Brown, outras “travestis” desse período também
encontraram no mundo artístico uma possibilidade real de ascensão social e construção de
uma identidade, mesmo que este acesso tenha se dado de outras formas, como em seu caso. O
acesso a esse mundo não somente propiciava a formação de uma rede social – na qual
circulavam pessoas, objetos e símbolos –, mas também contribuía para a construção de um
“lugar social” para as “travestis” na sociedade brasileira. Há alguma controvérsia envolvendo
o fato de Weluma Brown ter sido chacrete. Conversando com uma amiga pessoal sua, que
acompanhou Weluma nos seus últimos dias de vida, foi possível perceber que a verdade sobre
essa história era muito menos importante do que os sentidos em disputa em torno dela.
Essa amiga se recusou a me conceder uma entrevista pessoal sobre a trajetória de vida
de Weluma, mas via Facebook me explicou os motivos pelos quais não poderia fazê-lo.
Weluma supostamente havia pedido em vida para que, após a sua morte, nada fosse dito sobre
ela, incluindo homenagens. Tal argumento não se sustenta na fala de outras pessoas da rede
social da artista com as quais tive contato, uma vez que, como afirmam, em vida, ela nunca
deixou de falar sobre sua trajetória e nada sabiam de seus desejos após a morte. Diante do fato
de que não era unânime o argumento dessa amiga, decidi colocar na tese o motivo de tal
negação. A amiga disse que havia uma outra razão para este silenciamento postmortem, que
envolvia a construção da trajetória da artista como chacrete. De acordo com ela, Weluma teria
sido uma tiete de Chacrinha, chegando a ajudá-lo em algumas turnês. Teria morado em um
apartamento junto com algumas chacretes, mas nunca teria sido de fato uma destas. A
146

proximidade desse universo possibilitou a Weluma vivenciar uma realidade que, acredito, não
pôde se efetivar em função das restrições à presença dessas pessoas na televisão. Mesmo não
ocorrendo no plano da realidade, a invenção de Weluma como chacrete lhe rendeu
possibilidades que não seriam reveladas sem esse evento em sua trajetória. Aparentemente,
ela construiu um mito em torno de sua própria imagem, isso só foi possível em função do
espaço, via mercado de bens culturais, que as “travestis” começaram a ocupar dentro da
sociedade brasileira.

Imagem 22 – Weluma Brown entre outras Chacretes


no Programa do Chacrinha (Fotografia: Internet).

O impacto duradouro das imagens de Rogéria e Divina Valéria foi fundamental para
toda uma geração que estaria por vir. A trajetória de Claudia Celeste também é um exemplo
emblemático da forma como a noção de “travesti” foi sendo significada através do discurso
do glamour. Nascida em uma família do subúrbio carioca, Irajá, Claudia Celeste começa a ter
contato com os espaços de sociabilidade “bichal” carioca através de um amigo, o Pereira,
quando ainda era cabo do Exército Brasileiro. Esse primeiro contato foi feito através de suas
idas às diferentes casas de santo frequentadas por Pereira na Baixada Fluminense e subúrbio
do Rio de Janeiro. Com 19 anos, já fora do exército, Claudia decide abandonar os estudos
para fazer um curso de maquiagem. Após esse curso, ela consegue um emprego em um salão
147

em Copacabana, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Sua trajetória está diretamente
relacionada à ascensão de algumas travestis ao imaginário da diva: muitas delas saíram do
Brasil e regressaram logo em seguida aclamadas pela audiência popular, como foi o caso de
Divina Valéria.
Eu estava trabalhando em um salão em Copacabana, Valéria volta para o Brasil. Já
era famosa, já tinha saído daqui, foi para a Europa, voltou em 1972. Em 1972, ela
voltou por cima, então foi um escândalo! Saiu na capa da Manchete [revista] vestida
por Clodovil, Guilherme Guimarães – grandes costureiros, entendeu? De Paris e não
sei o que... De Givenchy e não sei o que... E aquela bicha alta e coisa: Valter ou
Valéria? [...] Aí eu estava trabalhando no salão, quando eu vejo aquela revista:
Valter ou Valéria? Aquilo me intrigou, porque eu nunca tinha visto aquilo na minha
vida, eu estava com 20 anos, mas naquela época a gente era inocente. [...] Aí quando
eu vi aquela mulher belíssima, dizendo que era Valter Fernando Gonzalez, eu fiquei
louca, fiquei nervosa, fiquei atacada – era aquilo que eu queria, que eu estava
buscando e não sabia. Desde criança eu não ficava botando os batons de mamãe
escondido no banheiro, botando toalha na cabeça para dizer que era mulher,
brincava com as bonecas da minha irmã e não sei o que [...]. Quando eu vi a Valéria
assumida, que chegou de Paris e dentro de um vestido que eu olhei aquele peito,
como é que ela conseguiu aquilo? Aquelas reportagens enormes, comprei e li todas
as reportagens e tudo. Ela no Teatro Princesa Isabel, ela ia fazer um show com
Miéli, e aí montaram aquele show e tudo, e aí a primeira coisa que eu fiz: eu
comprei ingresso para eu assistir. Eu queria assistir. Fui lá para trás assim para...
nervosa para ninguém me ver, aquelas coisas toda. Então, quando eu vi a bicha, que
abriu a cortina e ela começa a cantar e aquelas coisas. Que eu vi aquela mulher
belíssima, sob aqueles holofotes, aquele glamour, aquela coisa toda – eu fiquei
alucinada, eu falei: “Ah, não, é isso que eu quero para a minha vida!” Pronto, aí
comecei (Claudia Celeste).

Divina Valéria aparece na narrativa de Claudia Celeste como um marco importante na


descoberta de seus projetos de vida e construção de si. Ainda que tivesse percebido desde
muito jovem que era muito feminina, Claudia não sabia nomear, tampouco o que fazer com
essa feminilidade. O glamour manifestado pela imagem de Divina Valéria no palco se
constituiu como uma referência pedagógica para Claudia. A diva encarnada por Divina
Valéria encorajou Claudia a assumir definitivamente outros projetos de vida, ela começou
então a se hormonizar e a dançar em diferentes boates da Zona Sul do Rio de Janeiro,
abandonando o trabalho de cabeleireiro. Foram esses espaços que a levariam mais tarde para a
televisão.
Claudia Celeste fala um pouco das transformações corporais que se deram a partir dos
trânsitos dessas travestis pela Europa nesse período.
Por que na época delas, da Valéria, Rogéria, porque elas vieram antes de mim, nos
anos 1960, né? Então, elas eram todas transformistas, não tinha assim, peito! Veio
depois. Tinham algumas, que eram mais malucas na época, entendeu? Como a
Jaqueline de Poir, que começou a tomar aquelas pílulas, porque ninguém sabia,
porque era pílula anticoncepcional – foi nos anos 1960 que apareceu a pílula
anticoncepcional. Por consequência, o travesti [sic] de peito começou aí [...]. No
homem nascia peito, crescia os peitos, entendeu? Em alguns, em outros não. Mas a
maioria tomava, começou a tomar, os peitos cresciam. [...] Mas muitas tinha medo,
148

né? Rogéria, Valéria e tudo, tanto que elas foram para a Europa, na Europa que, em
Paris é que elas aprenderam, entendeu? Porque lá, já tinham até operadas!

A consolidação das “travestis” produziu outros sentidos sobre as diversidades de


gênero e sexualidade. A existência dessas pessoas marca rupturas no processo de construção
da “bicha” como uma categoria englobante marcada pela fluidez entre gênero e sexualidade.
As “travestis profissionais” emergem em um contexto onde as noções de “homossexualismo”
e “travestismo” começam a ser diferenciadas, tendo como pano de fundo as novas técnicas
cirúrgicas que materializam definitivamente o feminino no corpo.
Esses processos de distinção geraram tensões importantes na forma como os
indivíduos dessa geração elaboraram percepções de si relacionadas às mudanças nas
convenções sobre as diversidades de gênero e sexualidade. Na entrevista realizada com Jane
Di Castro no jornal O Pasquim, de 1983, ela afirma taxativa: “Esse negócio de gay é uma
tentativa de imitar a cabeça dos americanos, não tem como dar certo”. Na mesma entrevista,
ela afirma que “nós travestis é que fomos um avanço”, para se referir ao lugar delas na
diminuição da repressão associada às diversidades de gênero e sexualidade na sociedade
brasileira. O desabafo de Jane está vinculado ao avanço da visibilidade do movimento
homossexual norte-americano pós-Stonewall e a exportação de um “estilo de
homossexualidade” cujo foco de irradiação é a cultura Leather, tal como elaborada nas
cidades de Nova York e São Francisco. Tal cultura via na imagem do macho man67 um
repertório de performances e símbolos que deveria reorientar as escolhas, a sociabilidade e até
mesmo o erotismo de homens com “condutas homossexuais”.
Continuando com a crítica de Jane, ela via estas mudanças como um modismo, uma
cópia sem crítica do que vinha ocorrendo nos Estados Unidos. Para ela, “o brasileiro copia
tudo, até a roupa de couro igual usam em Nova Iorque. Na minha época, era viado mesmo, era
bicha louca, não era moda não. Eu andava na rua e levava tapa na cara, só porque era bicha.
Tudo mudou, querido” (Jane Di Castro para O Pasquim). Apesar da percepção de que a
repressão diminuíra, Jane parece sugerir que essa diminuição se deu em função de uma perda
fundamental relacionada à sua experiência e a de sua geração, a possibilidade de ser “bicha”,

67
Referência a famosa música do grupo norte-americano Village People. Na minha dissertação, já havia
analisado, a partir de Pollack (1987), como essa imagem de homens másculos e relacionada a personagens que
remetem ao masculino: como o policial, o índio, o operário e o cowboy; promoveu uma redefinição da
“identidade homossexual”. No último capítulo desta tese, ao analisar o espaço de ressignificação promovido pelo
jornal O Snob, é possível perceber como a masculinização da “homossexualidade” foi vivenciada pelas turmas
de “bichas” e “bofes”.
149

de ser você mesmo, sem ter que se adequar ao um modelo de masculinidade hegemônico,
considerado convencional.
Este capítulo se ocupou do processo de construção da noção de “travesti profissional”.
A categoria “travesti profissional” aparece como categoria nativa na fala dessas pessoas que
viveram nesse período, como uma forma de marcar uma ruptura definitiva com aquele
personagem do carnaval, “os homens em travesti”. A noção de profissionalização implica
reconhecer todo um repertório corporal e performativo necessário para produzir estas
“travestis profissional” em corpos. Simultaneamente, a existência dessas pessoas marca
rupturas no processo de construção do “ser bicha” e do “ser travesti” como experiências
distintas. As “travestis profissionais” emergem em um contexto onde as categorias
“homossexualismo” e “travestismo” começam a ser diferenciadas, tendo como pano de fundo
as novas técnicas cirúrgicas que materializam definitivamente o feminino no corpo.
O afluxo dessas pessoas para a Europa cresce com o passar do tempo, todas seguindo
as trilhas abertas pelas “pioneiras” que se estabeleceram por lá na década de 1960 e voltaram
para o Brasil glamourizadas. Com o tempo, as “travestis” passam a fazer parte da paisagem
das ruas e não apenas dos cabarés. Rogéria menciona este processo em uma entrevista que
concedeu ao jornal Lampião da Esquina, no qual fala do crescimento da presença “travesti”
na Europa e da sua associação com o negócio da prostituição. Em sua narrativa, a noção de
profissional não é agregada à expressão “travesti”. Não por acaso, Rogéria chama a atenção
para um outro personagem, que acaba se tornando parte integrante da geografia dos grandes
centros urbanos – a “travesti” que se prostitui. A constituição dessa nova “forma de vida” será
adotada para marcar uma profunda diferença – fundamental para a formação do moderno
movimento homossexual, que começa a se desenhar em fins da década de 1970.
Na década de 1960, as “travestis” se consolidaram como personalidades cujas vidas
recebiam atenção de revistas e jornais da época. Até mesmo Chacrinha, que tomaria o lugar
de Flávio Cavalcanti como líder de audiência nos famosos programas de auditório das
décadas de 1970 e 1980, supostamente tinha uma “travesti” como uma de suas assistentes de
palco. Até a década de 1960, essas “formas de vida” tinham uma existência muito
intermitente, vinculada ao calendário carnavalesco.
Com a emergência do mercado de bens culturais e da crescente espetacularização da
vida social nos meios de comunicação, esses indivíduos tomaram uma existência própria,
recebendo o reconhecimento através de sua vinculação ao lazer e ao entretenimento – os
“shows de travestis” são bons exemplos disso. Acredito que a busca por distinção de uma elite
que afluía aos teatros para ver esses shows foi fundamental para a construção das diversidades
150

de gênero e sexualidade dentro do registro da normalidade, e as “travestis” foram


fundamentais para esse processo, uma vez que eram identificadas com as modernas
convenções europeias. A “travesti” converteu-se definitivamente em uma mercadoria cultural,
cobiçada em shows e por publicações de luxo que a estampavam em suas capas e miolos.
Ao mesmo tempo que tal visibilidade recai sobre essas pessoas, a prática de “fazer
travesti” vai se constituindo como componente agregador da sociabilidade “bichal” que se
consolidava nos grandes centros urbanos, como se percebe na importância da reprodução dos
concursos de miss nas “turmas” que foram se avolumando em cidades como Rio de Janeiro e
São Paulo. Acredito que foram as “travestis” as responsáveis pelo primeiro rompimento do
“armário”, para adotar uma metáfora famosa entre nós, gays, para caracterizar o processo de
visibilização de uma identidade sexual marcada pela injúria, antes mesmo da emergência do
movimento homossexual organizado.
151

CAPÍTULO III

Sobre trejeitos e faceirices: o espetáculo das afetações e extravagâncias entre interdições


e insurgências

Diz que vai dar, meu bem


Seu coração pra mim
Eu deixei aquela vida de lado
E não sou mais um transviado
(ref.)

Telma, eu não sou gay


O que falam de mim são calúnias, meu bem
Eu parei . . ..

Não me maltrate assim, não posso mais sofrer


Vamos ser um casal moderno
Você de bobes e eu de terno (ref.)

Eu sou introvertido até no futebol


Isso tudo não faz sentido
E não é meu esse baby doll (ref.)

Telma, ô Telminha, não faz assim comigo


Não me puna por essas manchas no meu passado
Já passou, esses rapazes são apenas meus amigos
Agora eu sou somente seu, meu amor

Ney Matogrosso68

A partir da noção de “guerras sexuais” presente em Rubin (2011), analiso neste


capítulo algumas tensões e disputas relacionados à construção de representações sobre as
diversidades de gênero e sexualidade em um contexto de florescimento dos programas de
auditório no Brasil, item ilustrativo do mercado de bens culturais instituído pela nova
“tecnologia do olho”, a televisão. Examino como a trajetória do costureiro Dener e a sua
aproximação das elites promoveu a sua entrada no cotidiano dos brasileiros através de suas
aparições em um programa de auditório da televisão brasileira. Dener, ainda que não se
identificasse publicamente como “bicha”, com seu estilo extravagante de ser, consolidou

68
Música Calúnias, presente no LP Pois é, de 1983. Trata-se de uma versão parodiada da música Tell me once
again, do grupo Light Reflections.
152

imagens sobre as diversidades de gênero e sexualidade associadas ao “estigma da


efeminação”, amplamente reconhecidas e, para o horror da ditadura, apreciadas pela
sociedade brasileira consumidora dos produtos televisivos. Sua performance evocava a ideia
de um glamour masculino relacionada ao dandismo, com o qual abria-se um espaço de
reconhecimento da experiência daqueles indivíduos fora da norma heterossexual para além do
homem “em travesti”. Sua presença na televisão gerou uma intensa “cruzada moral”, na qual
diferentes agentes interagiram no processo que desencadeou a proibição expressa do governo
federal sobre a exibição pública de sua imagem.
Outro dado significativo da carreira de Dener diz respeito à sua rixa pública com outro
costureiro, Clodovil Hernandes. As manifestações de rechaço de Dener sobre Clodovil
realçam a fronteira moral na qual as “travestis” começam a ser colocadas na sociedade
brasileira. A briga entre os dois costureiros é mais um registro do processo de construção das
sexualidades não normativas como um “espetáculo de consumo”, aprofundado entre fins da
década de 1970 e início de 1980. Nesse período assiste-se a uma enxurrada de “formas de
vida” não heterossexuais habitando a nova “tecnologia do olho” – a televisão. Busco analisar
a relação instável desses indivíduos com esta nova tecnologia, a qual, em um contexto de
ditadura, contribuía para a produção de uma percepção pública das diversidades de gênero e
sexualidade que era, ao mesmo tempo, exótica, portanto estimulada pelo mercado de bens
culturais e de entretenimento, e proibida, em função dos supostos efeitos tóxicos à moral e aos
bons costumes que poderia acarretar.
Por fim, examino o impacto de dois contextos que revigoram essas “guerras sexuais”
em torno das diversidades de gênero e sexualidade, atualizando “pânicos morais”
relacionados às “formas de vida” não heterossexuais. O fenômeno Roberta Close e o advento
da AIDS são abordados como dispositivos discursivos cujas implicações transformaram a
dinâmica das sexualidades não normativas como “lugar social” na sociedade brasileira. Esses
dois processos incitaram uma discussão mais ampla sobre os destinos da nação, considerada
ameaçada pela infiltração dessas novas “formas de vida”.

3.1 – Dener é um luxo! Dandismo e as parafernálias de classe e gênero

A “ponte” entre o interesse da imprensa pelos luxuosos concursos de fantasia e a


emergência de homens como Clóvis Bornay como um personagem singular na televisão
153

brasileira é um exercício de reflexão que ajuda a entender como as sexualidades não


normativas foram sendo construídas como um “lugar simbólico” na sociedade brasileira via
mercado de bens culturais e de entretenimento. Com Clóvis Bornay, a televisão passou a
exibir muito mais que apenas as fantasias de luxo. Começou a espetacularizar performances
relacionadas às sexualidades não normativas, através de sua inserção neste espaço. Porém,
não foram apenas homens do carnaval, como Bornay, que exerceram o papel de “mediadores”
nesse processo. A trajetória do costureiro Dener, conhecido como o primeiro estilista
brasileiro, pode ser considerada um importante registro da construção das sexualidades não
normativas como “espetáculo de consumo” associado à consolidação de determinadas
representações sobre tal prática na sociedade do Brasil. Mais do que isso: esse estilista foi
peça fundamental para operar importantes processos de distinção na elite paulistana, e mesmo
brasileira. Nascido em Soure, Ilha de Marajó, no estado do Pará, região Norte, Dener
Pamplona de Abreu, ainda muito jovem, migrou para o Rio de Janeiro. Sua mãe, Dona Lolita,
decidiu morar nessa cidade após a morte prematura de seu pai, Alfredo, um trabalhador da
Companhia Docas do Pará, levando consigo Dener e a sua irmã, nove anos mais velha. No
Rio, Dona Lolita e seus filhos moraram em uma pensão em Copacabana por quatro anos,
quando então conseguiu emprego como secretária da diretoria da presidência da Panair69,
graças ao fato de falar muito bem inglês, mudando-se para um apartamento.
A carreira de Dener como estilista profissional se iniciou aos treze anos de idade
quando foi convidado a ingressar como desenhista no ateliê da Casa Canadá70, conhecido
estabelecimento de moda no Rio de Janeiro, responsável por vestir as “mulheres da
sociedade” na década de 1950. Na biografia de Dener, escrita pelo sociólogo Carlos Dória, o
autor diz que a descoberta de suas aptidões para a moda ocorreu como que por acidente, uma
vez que um de seus desenhos teria parado na mesa da gerente da Casa Canadá, que era avó de
duas colegas suas da escola onde estudava. Ao conhecer os desenhos do jovem rapaz, a
diretora da maison imediatamente o convidou para participar de sua equipe. Dener foi
considerado um fenômeno, sendo convidado a viajar para a Europa para se aplicar ainda mais
nos estudos de desenho. Sua mãe, Dona Lolita, resistiu, uma vez que temia a associação
mecânica entre moda e “homossexualismo”.
A Casa Canadá, contudo, produzia um tipo de moda por demais tradicional para as
pretensões de Dener. A modelo Danuza Leão alertou o costureiro sobre o fato de que uma

69
Panair do Brasil S.A. foi uma empresa aérea que operou no Brasil até meados da década de 1960.
70
A mesma casa de moda que fez o vestido de Marquesa no evento popularizado pela imprensa como “Bodas do
Diabo”.
154

amiga sua ambicionava abrir uma maison que ditaria a moda no Brasil. A maison que
pretendia ser a grande atração da moda brasileira era de propriedade de Ruth Silveira. Entre
suas clientes figuravam nomes de peso da alta sociedade, como Carmem Mayrink Veiga e a
própria Danuza Leão. Dener começou a acompanhar Ruth Silveira em viagens a São Paulo,
onde descobre um mercado formado por mulheres que apreciavam seus vestidos. Aos 18
anos, já percebendo que sua moda estava cada vez mais inclinada à capital paulistana, Dener
conheceu Maria Augusta Dias Teixeira, dona da Boutique Scarlett, que lhe fez um convite de
trabalho. Em São Paulo, ele descobriu uma elite que via nas roupas de grandes estilistas
internacionais “objetos de distinção” que marcavam a sua posição de classe. As casas de
moda copiavam as tendências internacionais, sem produzir um tipo de moda própria. A
mulher da alta sociedade era aquela dotada de recursos suficientes para ter o seu guarda-roupa
montado com peças da moda internacional, sobretudo vindas de Paris. A moda brasileira não
tinha existência própria antes da emergência de Dener como um fenômeno do consumo.
Nesse mesmo período, a empresa de tecidos Rhodia começou a produzir fios
sintéticos, obrigando as empresas Matarazzo a tomar medidas para assumir a liderança do
mercado de tecidos. Como resultado dessa concorrência, a moda produzida no Brasil tomou
vulto com a produção de desfiles que atraíam a atenção da imprensa. Aproveitando-se desse
contexto, Dener abriu a sua primeira loja na Praça da República, região central de São Paulo.
Pouco tempo depois, se associou ao dono do curso de idiomas Yázigi, abrindo o seu ateliê na
Avenida Paulista, esquina com a Rua Joaquim Eugênio de Lima, lado a lado com a loja de
Henri Matarazzo. A partir desse momento, Dener promoveu mudanças significativas na moda
e no comportamento no Brasil.
Entretanto, mais do que a “moda brasileira”, Dener foi responsável pela propagação de
um estilo de vida perseguido e sonhado pela grande maioria da população, o qual tinha no
luxo um elemento essencial que conferia sentidos a esse universo. Dener foi o impulsionador
de um tipo de performance muito próximo àquela que se desenvolveu em Londres no século
XIX (INGLIS, 2013), período no qual o lazer deixou de ser vivenciado como algo de foro
íntimo para ocupar os parques e bulevares da cidade – a espetacularização do lazer. O sair
para ver e ser visto se constituiu em uma rotina de distinção de uma classe que enriqueceu em
um contexto de crescimento econômico que marcou a sociedade brasileira no período
imediato ao golpe militar. A vida social de Dener evidenciava de forma bem acabada essa
dinâmica. Em sua casa ele recebia artistas, políticos, cantores e o jet set da sociedade
brasileira. A chegada de sua limusine, que pertenceu ao embaixador Lincoln Gordon, sempre
acompanhada de sua entourage, composta de sua mulher e amigos ilustres, era um
155

acontecimento nos lugares que instituía como “lugares da moda” na região central de São
Paulo.
É nesse momento que o colunismo social ganhou vulto, se constituindo como uma
tecnologia motivadora da construção e de mudanças nas convenções sociais. Nesse contexto
Dener se constrói em algo mais que um costureiro, ele adentra a cena pública – chocando e
seduzindo – com uma vida marcada por excentricidades e espetacularizações. Ele soube
projetar-se a partir de uma elite que via em suas roupas elementos de ascensão social. Nessa
mesma época emergiram outras personalidades que ficaram conhecidas por sua inserção nos
meios de comunicação e também por uma performance de gênero não conforme o sexo
biológico, como Clodovil.

Imagem 23 – Dener na porta de sua boutique, em São


Paulo (Fonte: acervo jornal O Globo).

A trajetória de vida de Dener foi profundamente transformada quando ele passou a ser
o estilista oficial da primeira-dama, dona Maria Teresa Goulart, esposa do então presidente
João Goulart. Dener soube usar muito bem a projeção da primeira-dama a seu favor. Afinal,
Maria Teresa era objeto de atenção de quase todos os veículos de comunicação da época. Sua
intimidade era invadida por várias revistas e jornais que se preocupavam com o que fazia em
sua vida cotidiana, o que vestia e como se comportava. Essa atenção incluía peças exclusivas,
156

elaboradas por Dener para adornar Maria Teresa nos mais diferentes eventos sociais, muitos
dos quais ele mesmo se fazia presente.
A relação entre os dois teria se iniciado com a notícia da visita da família Kennedy ao
Brasil. Diante de momento tão oportuno das duas das primeiras-damas mais bonitas do
mundo se encontrarem, a imprensa logo tratou de especular o que Maria Teresa usaria. O
colunista social Alik Kostakis alertou que Jackie Kennedy adotara em seu guarda-roupa
somente peças de um estilista norte-americano: Oleg Cassini. A mensagem parece ter sido
acatada pela primeira-dama, que em um rompante nacionalista tratou de convidar três
estilistas brasileiros para a empreitada – dois do Rio, José Ronaldo e Joãozinho Miranda, e
um de São Paulo, Dener. A visita dos Kennedy não ocorreu, em função de problemas externos
envolvendo os Estados Unidos e a União Soviética, mas Maria Teresa vestida por Dener
figurou entre as dez mulheres mais elegantes do país naquele ano de 1963, título conferido
pelo colunista Jacinto de Thormes, Maneco Miller, um dos precursores desse tipo de
ranking71 (DÓRIA, 1998).
Com a ditadura e a deportação da família Goulart, Dener foi observado de perto pelos
militares, que não lhe deram sossego. Foram os militares os responsáveis pelo momento, de
acordo com sua biografia produzida por Carlos Dória, mais nebuloso e desgastante de sua
vida: o período que ele deixou as revistas e jornais e passou a ocupar a televisão. Sua
participação no Programa Flávio Cavalcanti teve uma repercussão estrondosa, chamando a
atenção dos militares que viam nele a representação de um perigo que ameaçava a nação por
sua “falta de virilidade”72.
O estilo afetado de Dener entrou definitivamente na vida cotidiana dos brasileiros.
Claro que a sua importância artística foi uma significativa característica sem a qual ele não
obteria todo esse reconhecimento. O estilo de vida que levava o costureiro foi, certamente, um
dos principais motivos que faziam a imprensa a buscar tantos assuntos envolvendo-o. De
acordo com José Gayegos, o único ajudante de Dener em seu ateliê, o estilista vivia em um
“ambiente barroco”, sua casa permanecia fechada com cortinas em todos os horários do dia, e
era mantida uma iluminação permanente de velas.
O ambiente em que Dener vivia não era considerado mais excêntrico do que a forma
como ele mesmo se relacionava com as rotinas domésticas e de trabalho. O estilista tinha o

71
As “dez mais” foi uma das pautas de assuntos mais recorrentes no jornal O Snob, publicação artesanal voltada
para as “bichas”, produzida por Agildo Guimarães. Acredito que o ranking “as dez mais”, tratado pelo colunismo
produzido pelos jornais e, sobretudo, pela revista Manchete, foi uma referência fundamental na construção de
performances entre as “bichas”, que ressignificavam esses certames promovendo a celebração da diversidade de
gênero e sexualidades em suas reuniões clandestinas.
72
Essa parte da trajetória de Dener será problematizada no Capítulo IV.
157

hábito de acordar muito tarde, conta Gayegos. Quando voltava do seu ateliê, era rotina ligar
para o seu mordomo ordenando que as velas, assegurando a penumbra, e uma ópera, sempre
cadenciada por Maria Callas, lhe recebessem já na entrada. Acordar, segundo Gayegos, algo
tão simples para os simples mortais, era para Dener um ritual elaborado, que envolvia ser
higienizado com bolas de algodão embebidas em licor de Hoffman, uma combinação de éter e
álcool, cuja função era retirar a oleosidade da pele. No café, ovo quente e cerveja eram sua
quase única refeição diária. O contorno dos olhos, sempre enegrecidos por fortes olheiras,
ganhava ainda mais destaque, posto que tinha o hábito de colocar vaselina nos mesmos.
Nenhuma outra personalidade materializou com tanta teatralidade a vida cotidiana da
elite e evidenciou a sua artificialidade. Observando os bastidores da vida de Dener é possível
perceber a construção de uma personagem – um lorde – profundamente marcada por gostos
refinados e ares soberbos. A história de seu mordomo, Pierre, é um bom exemplo de como
Dener produzia sua trajetória trazendo à baila o quão artificiais são as hierarquias do gosto.
Pierre, seu mordomo francês, nasceu Pedro Vila, em Uruguaiana, Rio Grande do Sul. Ele foi
rebatizado por Dener em uma estratégia de construir para si uma personagem emoldurada por
uma atmosfera de luxo e ostentação, para a qual a figura do mordomo estrangeiro era
fundamental. Uma figura cênica que enaltecia sua teatralidade de classe, realizando suas
manias excêntricas relacionadas às suas técnicas corporais. Pierre constituía um elemento
importante para a exibição da “parafernália de classe” que se construía ao redor de Dener.
A teatralidade de Dener não seria considerada tão perturbadora se não estivesse
associada a outra dimensão profundamente marcante em sua trajetória de vida, o “estigma da
efeminação”. Enquanto suas excentricidades ocupavam apenas o lazer da elite paulistana
estava assegurado seu espetáculo da vida. O problema foi quando esse espetáculo chegou,
através da televisão, às massas. Sua presença destacada no Programa Flávio Cavalcanti lhe
proporcionou reconhecimento público imediato. Mais do que isso, conformou entre os
brasileiros uma percepção das sexualidades não normativas que seria reproduzida por outros
programas da televisão, sobretudo nos programas humorísticos e de auditório. A teatralidade
de Dener logo seria copiada, redesenhada e colocada ao público mais amplo, através de
personagens forjados na linha do exagero. Uma persona televisiva seria produzida a partir de
Dener. Tal construção deu publicidade à associação oitocentista do estigma da efeminação
com a figura do dândi, ou seja, aquele homem com modos afetados cuja característica
distintiva é ser esnobe, acionando uma atitude blasé em relação a tudo e a todos que o cercam.
Esta performance baseada na combinação entre exagero e esnobismo foi fundamental para a
criação de personagens pela televisão que vinha se desenvolvendo no Brasil.
158

A construção de uma persona “bicha” na TV encontrou em Dener e em outros que,


assim como ele, possuíam uma performance identificada como efeminada a sua expressão
mais bem-acabada. Esses homens certamente não inventaram a imagem do dândi, que já
existia na paisagem urbana desde o século XIX, mas certamente consolidaram uma associação
entre essa figura e a “bicha” para um público muito mais amplo do que aquele que lia os
periódicos e publicações especializados na virada do século. Assim, o “Efeito Dener” seria
sentido na produção de personagens identificados como fora da norma sexual vigente, cujos
ares afetados seria a marca característica dos mesmos. Essa percepção cristalizou uma
imagem de todas as sexualidades não normativas como algo perturbadoramente feminino,
refletindo na vida cotidiana de milhares de indivíduos que foram assimilados a esses
personagens.

3.2 – A guerra das tesouras: distinção e mudança social

Em 1987, João Antonio Mascarenhas, advogado, importante ativista histórico do


nascente Movimento Homossexual Brasileiro– MHB, foi ao púlpito da Câmara dos
Deputados, durante os eventos que marcaram o processo constituinte, para defender a
inclusão da “homossexualidade” no rol dos direitos fundamentais – parágrafo 1º da
Constituição. Em seu discurso, o militante defendeu a incorporação da “orientação sexual” no
conjunto dos direitos que deveriam ser assegurados pela Constituição. Ao fazer essa defesa,
Mascarenhas explicou a diferença entre os “homossexuais” e as “travestis”.
Apesar de não ter conseguido a tão esperada inclusão, os efeitos de tal ato foram
irreversíveis, por dois motivos. Ele marcou definitivamente a inclusão da “homossexualidade”
na agenda pública e, simultaneamente, contribuiu para a construção de uma fronteira
definitiva entre os “homossexuais” e as “travestis”. De acordo com Câmara (2002), a
produção das “travestis” como persona non grata desse recém-criado movimento implicou
reconhecer um redimensionamento estratégico desse sujeito político, no qual foram
selecionados os novos rostos da militância. As “travestis” estariam fora da questão, por sua
associação ao negócio da prostituição e por reificarem a imagem estereotipada da
“homossexualidade” como associada à inversão sexual.
Sugiro, contudo, que esse processo de distinção não começou com o pronunciamento
público de João Antonio Mascarenhas na Constituinte: este já vinha sendo delineado em
159

outros eventos, como na rixa entre Dener e Clodovil, que despertava a atenção dos veículos de
comunicação. Um dos principais dramas que emergiam desse intenso clima de competição
entre os dois costureiros eram as acusações públicas que Dener fazia a Clodovil, chamando-o
de “travesti” ou adotando as expressões pejorativas “Nega Vina” ou “Nêga Jupira”.
A difícil relação entre Dener e Clodovil ganhou repercussão pública em diferentes
veículos de comunicação, sobretudo no programa A grande chance, apresentado por Flávio
Cavalcanti, na TV Tupi. As intensas desavenças entre os dois costureiros foram apelidadas em
um dos números da revista Fatos & Fotos, de 1962, de A guerra das tesouras, dadas as
fofocas e intrigas que os cercavam e aos seus ofícios de costureiros. De acordo com Pedro
Diniz, jornalista que entrevistou Matteo Amalfi, costureiro que vivenciou esse período, a
chamada Guerra das tesouras foi tão amplamente conhecida entre os brasileiros que inspirou
a construção, em 1985, dos dois principais personagens da telenovela Ti-ti-ti: Jacques Leclair
e Victor Valentin, vividos pelos atores Reginaldo Faria e Luis Gustavo, respectivamente.
O conteúdo dessas rixas quase sempre não passava pelas aptidões de costureiro de um
ou do outro, mas sim por seus repertórios de “capitais”, no sentido atribuído a Bourdieu
(2004; 2013). De acordo com o relato de Gayegos sobre a trajetória de vida de Dener, as
relações sociais e o dinheiro foram elementos que distinguiam efetivamente um do outro. Para
esse estilista, Clodovil nunca possuiu dinheiro suficiente para fazer frente aos luxos de Dener,
tampouco nutria relações íntimas com o jet set paulistano. Pelo contrário, Clodovil sempre
orbitava em torno de Dener nas festas e demais eventos sociais nos quais apareciam. As
relações com o jet set implicavam ter uma habilidade de circulação por espaços marcados por
um tipo de consumo excepcionalmente custoso, dado que, para Gayegos, foi fundamental para
traçar diferenças entre os dois costureiros. Outra marca de distinção era a casa de Dener, uma
mansão na região dos Jardins, área nobre da cidade de São Paulo, preparada para receber
pessoas abastadas, o que Clodovil não possuía, alegava Gayegos.
A suposta falta de dinheiro de Clodovil se materializava de diferentes formas no
discurso de Dener, que adotava categorias de acusação como “Nêga Vina” ou “Nêga Júpira”
para falar de Clodovil em diferentes veículos de comunicação. Gayegos afirma que Clodovil,
diferente de Dener, possuía um “pé na cozinha”, ou seja, era marcado por um pertencimento
de classe e cor que conspiravam contra a sua reputação social. Era lugar-comum ainda chamar
Clodovil de “travesti”, evidenciando assim um uso dessa categoria carregado de estereótipos
relacionados a outros marcadores sociais da diferença, tais como cor e classe social. Ao
convocar esse conjunto de marcadores para produzir uma distinção sobre Clodovil, Dener
contribuía para a construção e disseminação de imagens negativas sobre a noção de “travesti”
160

a partir da racialização dessa categoria. O que chama atenção é o uso da categoria “travesti”
para produzir distinção de classe e cor/raça sobre Clodovil. Ao que parece, para Dener, “ser
travesti” implicava ser mais preta e mais pobre, ou seja, significava ser um indivíduo
destituído de habilidades para transitar entre a elite paulistana da qual se sentia parte.
Apesar de nunca ter assumido abertamente que possuía “condutas homossexuais” nos
veículos em que aparecia, Dener, como um dândi oitocentista, possuía um comportamento
marcado pelo exagero e identificado como feminino, fato que o teria tirado da televisão. Sua
vida sexual nunca foi diretamente relatada por ele em nenhum lugar, ficando somente a
menção de que tinha um comportamento livre e que valorizava a beleza. Sua participação no
Programa Flávio Cavalcanti foi decisiva no sentido de torná-lo uma celebridade nacional,
projetando-o para fora da elite que o cercava. O ponto alto dessa idolatria nacional era
justamente o comportamento exagerado e efeminado, pelo qual também ficou famoso seu
rival, Clodovil, quando começou a participar de diferentes programas de televisão entre fins
da década de 1970 e na década posterior.
Apesar de não se identificar como “bicha”, Dener mantinha uma circulação intensa
nos espaços de sociabilidade “bichal” da noite paulistana, muitos dos quais ajudou inclusive a
criar a reputação. Mais do que isto, Dener exercia a função de um taste marker, em expressão
consagrada por Bourdieu (2013), do universo “bichal” paulistano, inventando tendências que
eram seguidas pelas “bichas” frequentadoras desses espaços. Isso fica evidente no episódio
narrado por Dória (2008): chegando a uma boate do centro de São Paulo, Dener tira seus
sapatos e coloca em um dos dedos do pé um anel que tirara da mão. Tal ato foi o suficiente
para ser divulgado nas colunas sociais e para, no dia seguinte, fazer os frequentadores daquele
espaço repetir o uso dos anéis daquela forma.
Portanto, não estavam em disputa entre esses costureiros estereótipos relacionados à
efeminação, mas antes noções de classe e cor/raça que eram materializadas na categoria
“travesti”, esses indivíduos que para Dener queriam ser mulher, e que afluíam cada vez mais
para a Europa para realizarem esse sonho. A “Nêga Vina” / “Nêga Jupira” só fazia realçar as
associações já tradicionais na sociedade brasileira entre raça/cor, gênero e classe social. Essas
categorias perfaziam estereótipos vinculados à suposta origem étnica e social de Clodovil, o
que ficava ainda mais evidente em suas fotografias nas quais, a exemplo de Yves Saint
Laurent, está nu em meio a muita natureza, como que em uma representação nativa de si
mesmo.
Com a acusação de Dener contra Clodovil pode-se perceber um processo de
contaminação da noção de “travesti” por um outro campo de percepção no qual as noções de
161

raça/cor e classe ganhavam materialidade. Dener já antecipava essa associação na década de


1970. Imagens de “travestis” racializadas começam novamente a ocupar a atenção dos
veículos de comunicação de forma mais sistemática na década de 1980. Daí em diante, a
geração de Divina Valéria perde o seu poder de simbolizar o glamour em função do
crescimento constante dessa nova forma de vida no cenário urbano, sobretudo constituindo
outras sendas no negócio da prostituição. Percebendo os processos de acusação como capazes
de revelar mais sobre as sociedades em que são produzidos do que sobre uma possível
natureza daqueles que são acusados, é possível sugerir que o processo de rotulação operado
contra as “travestis” foi revelador da forma como a sociedade brasileira constrói esquemas
evitativos sobre indivíduos a partir da associação entre cor/raça e classe social.
Enquanto faziam parte do lazer da “família brasileira”, ocupando o espaço controlado
do palco, esses seres podiam até gozar de reputação e reconhecimento. O problema surge
quando estes começaram a reivindicar existência fora do palco. A consequência mais imediata
do crescimento da visibilidade das “travestis” na sociedade brasileira foi torná-las objeto de
escárnio de pessoas, que, assim como Dener, associavam essas “formas de vida” às margens
da sociedade. Essa acusação se relaciona diretamente ao processo de mudança na percepção
pública acerca desses indivíduos.

3.3 – Insurgências na televisão: a “bichice” entre a proibição e o freak show

Percebe-se que os veículos de comunicação de massa foram um dos principais


responsáveis por produzir imagens das sexualidades não normativas que transbordavam as
publicações médicas (FRY, 1982). Com a emergência da televisão como “tecnologia do olho”
(BRAH, 2006), essa produção ganha projeções nacionais, constituindo-se como um problema
para as autoridades, as quais logo tomariam medidas radicais para sua redução. Por outro
lado, a construção das sexualidades não normativas como “espetáculo de consumo” foi
constitutiva do mercado de bens culturais e de entretenimento no Brasil, como pode ser
percebido no sucesso das apresentações dos chamados “transformistas”, como Erick Barreto,
em programas de calouros de grande adesão popular, como os programas de auditório. Foi a
partir desse movimento pendular, entre a proibição e o freak show, que as sexualidades não
normativas passaram a ser consumidas pelos lares brasileiros. A reflexão sobre esse
162

movimento pendular é um exercício importante para compreender a inscrição das


sexualidades não normativas no cotidiano nacional.
A proibição foi certamente a primeira relação instituída entre as sexualidades não
normativas e a televisão. O dramático desfecho de Dener no Programa Flávio Cavalcanti foi
um episódio emblemático para se compreender a dinâmica dessas interdições e os interesses
conectados a esta. O programa ficou conhecido nacionalmente pela irreverência de seu
apresentador, o jornalista Flávio Cavalcanti. Iniciando a sua carreira em 1954, na rádio
Mayrink Veiga, Cavalcanti passou pela Rádio Nacional e, logo depois, pela TV Rio. Na
década de 1970, ele começou a apresentar na TV Tupi carioca o Programa Flávio Cavalcanti,
uma exibição de variedades que ia ao ar aos domingos, às 20 horas. O show se tornou líder de
audiência, sendo o primeiro desse formato a ser exibido via Embratel para todo o Brasil.
A audiência se sustentava pela ousadia do seu apresentador, que ficou conhecido pelas
entrevistas polêmicas consideradas nocivas às convenções morais da época. Foi Flávio
Cavalcanti que instituiu o júri nos programas de auditório, um conjunto de pessoas formado
por personalidades que eram consultadas sobre um dado tema. Esse tipo de formato – baseado
na espontaneidade da resposta – gerou muitos problemas ao programa e ao seu apresentador
em função da censura aos meios de comunicação operada em tempos de ditadura. Um dos
mais famosos episódios foi reputado à presença da atriz Leila Diniz em seu júri. Considerada
por demais transgressora, Leila chegou a sair disfarçada em uma das gravações quando a
Polícia Federal apareceu ao estúdio para levá-la presa.
Não somente Leila Diniz foi perseguida e teve a sua imagem cortada do programa:a
presença de Dener era entendida como perigosa às noções correntes de moral e bons
costumes. Sua atuação no júri tornou-se ainda mais nociva à medida que a audiência crescia –
cada vez mais interessada nas opiniões do estilista sobre os calouros que se apresentavam no
palco do programa. Os bordões “É um luuuxo!”, “É um liiixo!” e “É uma glóóória!” se
constituíam como hinos que seduziam uma plateia que via em Dener uma celebridade.
Para Dória (1998), o Programa Flávio Cavalcanti produziu nos seus jurados
personagens – etiquetas – que seriam reproduzidos em outros programas com o mesmo
formato, como a Buzina do Chacrinha. Essas etiquetas serviam como referências acerca do
comportamento dessas personalidades – o “bonzinho”, o “exibido”, o “malvado”, etc.
Simultaneamente, o formato ao vivo oferecia uma oportunidade para essas pessoas falarem
abertamente, sem censura, sobre diferentes temas, muitos dos quais proibidos pelos órgãos de
repressão. Aparentemente, Dener ameaçava a censura não por suas opiniões nada ortodoxas,
tais como as de Leila Diniz acerca da sexualidade das mulheres, mas antes pelo que
163

representava. Seus trejeitos evidenciavam “uma ausência de virilidade” que começava a


incomodar os censores. Esse incômodo foi incentivado por correspondências de pessoas
comuns que exigiam que o estilista fosse retirado da televisão.
Entretanto, o sucesso de Dener na televisão foi incontestável. Evidentemente, esse
sucesso estava associado às transformações pelas quais passaram a televisão no início da
década de 1970, tal como a instituição da TV em cores e a busca por altos índices de
audiência, que fizeram com que cada vez mais pessoas famosas, em diferentes ramos da
sociedade, fossem convidadas a aparecer no vídeo. Após estrear no Programa Flávio
Cavalcanti, o estilista foi convidado pela TV Itacolomi, de Belo Horizonte, para ser o
apresentador de um programa de variedades, o primeiro em cores da televisão mineira, a ser
reproduzido pela TV Tupi pelo resto do país (conforme edição do Estado de Minas, de 13 de
abril de 1972). A TV Bandeirantes, de São Paulo, também lhe fez uma proposta, um programa
de duração diária de dez minutos – Repórter indiscreto – no qual opinaria sobre moda,
costumes, comportamento, etc. Ambas as emissoras só destacaram uma exigência: que Dener
reproduzisse nos novos programas o ar afetado que lhe era característico no Programa Flávio
Cavalcanti (DÓRIA, 1998).
O desfecho não foi tão bem-sucedido como foi lucrativo. Um grupo de jornalistas de
São Paulo logo se manifestou contrário ao Repórter indiscreto, alegando “total falta de
masculinidade”, e ainda acusaram Dener de não possuir registro profissional (DÓRIA, 1998).
Em Minas Gerais, a TV Itacolomi, que começou a transmitir Dener é um luxo, se viu impelida
por entidades femininas do estado, sobretudo a Liga das Senhoras Católicas, a cancelar o
programa, apesar dos índices de audiência terem alcançado picos na sua primeira e última
apresentação. A essas senhoras juntou-se o comissário de menores de Belo Horizonte, Anael
Pereira, o qual alertava para os riscos que os jovens corriam se o programa fosse mantido no
ar. O comissário requereu junto ao Juizado de Menores medida de censura contra as aparições
de Dener em emissoras de televisão em Minas Gerais (conforme O Jornal de Minas, em 27 de
abril de 1972). Nesse contexto nada favorável, a censura começou a agir, retirando não
somente Dener, mas também outros que assim como ele eram considerados tóxicos aos
costumes por sua performance caracterizada por uma “total falta de masculinidade”.
Sugiro que Dener começou a representar um problema quando sua imagem fugiu ao
controle, momento em que as diversidades de gênero e sexualidade passaram a transbordar, a
partir da televisão, para outros setores da vida social, sobretudo aqueles dotados de grande
prestígio, como a academia. Na edição da Folha de S. Paulo de 29 de abril de 1972, Dener
recebeu críticas dos deputados da Assembleia Legislativa de Pernambuco em função de um
164

convite feito pelos alunos do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco


para ser patrono dos formandos daquela turma. A matéria dá destaque à fala eloquente e
apaixonada do deputado Severino Cavalcanti, da ARENA, no sentido de retirar da TV a
figura de Dener e todos aqueles que se assemelhavam a ele em comportamento. O político
ressalta o quão perigoso era aquela presença para preservação moral da sociedade. A fala foi
aplaudida por outros colegas, como Monsenhor Ferreira Lima, João Guilherme de Pontes e
Manoel Gilberto. O jornal reporta que Monsenhor Ferreira Lima teria recorrido ao ministro da
Justiça para que este expulsasse tal presença da televisão.
Toda essa polêmica teria começado quando um dos professores da Universidade
Católica de Pernambuco, Rafael de Meneses, renunciou à cátedra como forma de repúdio ao
convite feito pelos alunos. Tal fato provocou o alarde dos parlamentares, sendo mencionado
por Severino Cavalcanti na referida matéria d’A Folha. O professor reforçava, em seus
argumentos para abandonar a cátedra, o desrespeito dos universitários que fizeram o convite
pela universidade e pelo ensino superior lecionado naquele estado. De acordo com ele, “Dener
é um criador de deformações em nossos costumes e exorta o homem brasileiro a uma atitude
demissionária” (DÓRIA, 1998, p. 139). O apelo ao ministro da Justiça surtiu o efeito
esperado.
Ao analisar os episódios finais da vida de Oscar Wilde, Didier Eribon (2008) destaca
os eventos que levaram Wilde a ser preso naquele início do século XX. Semelhante ao que
ocorreu com Dener, Wilde teve a sua vida íntima devassada diante da alegada suspeita de
“homossexualidade” que o levou aos tribunais. Os episódios que marcaram o processo e
posterior condenação de Wilde suscitaram debates acirrados acerca da “homossexualidade”
naquela sociedade. No Brasil, já na década de 1970, Dener sofreu a condenação simbólica por
sua performance não conforme em relação às convenções de masculinidade vigentes. Sofreu o
peso da injúria de ser assimilado à “homossexualidade”. Seguindo o raciocínio de Eribon
(2003), para quem a morte de Wilde converteu-se em um momento de mudanças no “papel
homossexual” naquele país, Dener de algum modo fez o mesmo. Sua audiência, o triunfo de
sua performance na televisão, promoveu uma consciência coletiva sobre as diversidades de
gênero e sexualidade e ainda uma consciência de si entre as pessoas que o viam como
exemplo pedagógico. Como afirma Eribon (2008), “toda palavra contra a homossexualidade
é, ao mesmo tempo, uma palavra sobre a homossexualidade” (ERIBON, 2008, p. 181), assim
essa palavra é encarada com inquietação por indivíduos que, através do caso Dener, ouviam
falar de si e do seu “jeito de ser”, rompendo o indizível de sua experiência.
165

Da mesma forma que Dener, Clóvis Bornay, Mauro Rosas, Clodovil e as “travestis
profissionais” foram proibidos de ter suas imagens vinculadas à televisão. Clodovil foi
desligado do programa Hora da buzina e Clóvis Bornay, do Programa Sílvio Santos. Ao vetar
a aparição dessas pessoas, os censores acreditavam na eliminação dos perigos associados ao
estigma da efeminação, sobretudo pela suposta ameaça à juventude73. A censura tornara-se
ainda mais severa a qualquer artista ou personalidade que, aparecendo na televisão,
comunicasse exemplos considerados negativos ao espectador. O ministro das Comunicações,
Hygino Corsetti, acreditava na existência de uma televisão cuja programação estivesse livre
de demonstrações de alcoolismo, erotismo e, sobretudo, das inversões sexuais (conforme a
revista Veja de 17 de maio de 1972). Dessas orientações compartilhavam os ministros da
Educação, Jarbas Passarinho, e da Justiça, Alfredo Buzaid (DÓRIA, 1998).
Dessas determinações resultaram iniciativas mais rígidas de controle da programação
televisiva, as chamadas Normas de Conduta da TV. Essas normas obrigavam os veículos a
gravarem toda a sua programação, incluindo os programas de auditório, para submeterem à
censura prévia. O vídeotape74 constitui a principal tecnologia de supervisão nesse período.
Através dele era possível assistir previamente o conteúdo dos programas e retê-los antes de
irem ao ar. Das transformações ocorridas nos programas de auditório, destacam-se as
mudanças no Programa Flávio Cavalcanti, que saiu do ar no dia 11 de junho de 1972,
retornando em 23 de agosto do mesmo ano totalmente reformulado, mais curto, atendendo às
ideias do ministro das Comunicações. Já na rede Globo, dois programas sofreriam
intervenção. O Programa Sílvio Santos passaria a ser mais curto, e o apresentador Chacrinha
perderia um dos seus programas, possivelmente, afirmava a Veja, a Discoteca do Chacrinha,
televisionado às quartas-feiras (Veja, 17 de maio de 1972). Também estavam fora os “tipos
perigosos” da televisão brasileira.
A revista Veja, em sua edição 180, de 26 de abril de 1972, tratou de registrar os
episódios das demissões desses “tipos sem masculinidade” nas emissoras brasileiras, em
matéria intitulada Veto ao trejeito:

73
Gayle Rubin (2011) tece comentários muito próximos sobre a suposta ameaça que a “homossexualidade”
proporciona aos jovens quando se debruça sobre a sociedade norte-americana. A autora utiliza a noção de
“pânico moral” para analisar os jogos políticos que instituem controle sobre a sexualidade. A ameaça de
corrupção da juventude é um dos principais argumentos adotados quando se quer exercer o controle sobre um
dado comportamento sexual considerado transgressor das convenções sexuais.
74
Quem se beneficiou com a proibição expressa dos mecanismos de censura aos “tipos efeminados” foi a Rede
Globo, através do seu mais destacado executivo, Boni. Com o pretexto de identificar e bloquear o conteúdo
transgressor antes de ir ao ar, ele fez o governo federal investir na compra de custosos equipamentos de
gravação, os quais foram cedidos à emissora.
166

A guerra está declarada e já fez a primeira vítima: Clóvis Bornay atingido por um
fulminante bilhetinho da direção da rede Globo e afastado do Programa Sílvio
Santos, na mesma semana. A ordem, atendendo “sugestão” da censura, era apenas
desarmá-lo dos “trejeitos e das faceirices”, mas, como sem essas armas Bornay não
tinha função no júri, a solução foi mandá-lo embora. E, agora, um cerrado
bombardeio moralista visa a desalojar dos programas de auditório (onde se tornaram
figuras obrigatórias ultimamente) todos os militantes dos “trejeitos” (VEJA, 1972).

A matéria destacava ainda o “beco sem saída” em que essas pessoas eram colocadas,
uma vez que o autopoliciamento dos “trejeitos” não era suficiente para mantê-los na televisão,
já que eram os mesmos gestos que construíam o interesse da plateia sobre eles. A matéria diz
que Dener tentava contornar a situação controlando mais o corpo e tecendo elogios ao
Mobral75, mas não obteve êxito. Clóvis Bornay constituía um escândalo ainda maior, posto
que costumava aparecer no Programa Sílvio Santos com salto alto, bolsa e peruca, como
podemos ver em uma foto pessoal logo abaixo (Imagem 24).

Imagem 24 – Clóvis Bornay participando do


Programa Sílvio Santos (Fonte: acervo pessoal das
filhas de Clóvis Bornay).

A TV Itacolomi, diante do novo cenário, logo desfez o contrato com Dener, assumindo
os altos custos de tal feito. O episódio com as senhoras mineiras foi descrito por David
Nasser, da revista O Cruzeiro, em matéria intitulada O sexo dos anjos, na qual criticava o

75
Movimento Brasileiro de Alfabetização. Trata-se de um projeto social do governo militar brasileiro cujo
objetivo era promover a alfabetização para indivíduos acima da idade escolar convencional.
167

pendor dos mineiros por tudo aquilo que era sólido no que se relaciona à vida social. O
assunto ganhou muita projeção, demandando de Nasser um outro artigo que ele intitulou de
Go home, bicharada!, no qual debate, em forma de novela, a situação dos excluídos da tela
naqueles episódios. Os personagens Clóvis Bornay, Clodovil e Dener estão comentando, na
matéria, as suas exclusões do vídeo, evidenciando uma crítica ácida às atitudes da ditadura
contra um tipo de comportamento que, querendo ou não, estava consolidado, ficando a cargo
da “natureza de cada um”, afirmava Nasser, revelar-se.
Se a censura de hábitos teme a nossa presença no vídeo e receia o nascimento de
inúmeros clodovis, bornays e deners pela semeadura das micro-ondas, respeitemos o
zelo da censura. Voltemos aos nossos ateliês, às nossas passarelas, aos nossos
teatros, aos nossos livros, às nossas canções, e deixemos que a natureza de cada um
se manifeste livremente, antes que exploda nas ruas, numa estúpida marcha de
protesto da família, as tabuletas mandando voltar para casa a bicharada, entre a qual,
diga-se de passagem, não me coloco (NASSER, 1972).

A crítica de Nasser não ficou solitária entre a imprensa brasileira do período. O humor
foi uma linguagem corrente adotada pelos veículos de comunicação para noticiar os episódios
das demissões dessas pessoas das emissoras de televisão. O Estado de Minas, em 27 de abril
de 1972, noticiava que uma gripe apelidada “Dener” afligiu Fortaleza em decorrência do
tempo frio que chegou à região. O jornal destacou que as crianças eram as maiores vítimas da
gripe, que assolou a capital e o interior
cearenses. Tal notícia evidencia a
habilidade com que a cultura popular
assimilou as informações produzidas
pelo governo em relação a essa
presença na TV. O cartum do então
iniciante Nani (Imagem 25), em O
Jornal de Minas de 05 de maio de
1972, mostra com muito humor a
interrupção dos trabalhos de Clodovil

de Dener na televisão. Fica evidente na Imagem 25 – Cartum de Nani sobre as demissões de Dener e
Clodovil. (Fonte: O Jornal de Minas, 05 mai. 1972. Acervo
charge o quanto os “trejeitos”, pessoal de Luiz Morando).
materializados no “ui” emitido por um
dos personagens, foram o principal responsável pelo violento pontapé, ao mesmo tempo
súbito, que extirpou as imagens dessas personalidades da televisão brasileira.
As reações, contudo, não foram somente da imprensa especializada. O público,
apaixonado pelos bordões e jeito de ser dessas personalidades, protagonizou tentativas de
168

resistência às censuras dos gestores públicos. O Jornal de Minas, em 07 de maio de 1972,


noticiou a organização de uma passeata por um grupo de jovens em frente ao Canal 4, em São
Paulo, solicitando o retorno do estilista Dener às telas. De acordo com Marcos Souza Lima,
repórter responsável pela matéria, os jovens confeccionaram faixas com os dizeres: “Nós
somos do Bloco do Luxo, exigimos a volta de Denner” (O JORNAL DE MINAS, 1972). O
apresentador Chacrinha também chegou a se pronunciar contra o veto das autoridades,
segundo ele, na época, “o povo está ávido de gargalhar, de brincar e eles proporcionam isso”
(VEJA, 1972).
O conjunto desses eventos mostra evidências da ainda pouco explorada relação entre
sexualidades não normativas e ditadura. É possível perceber que essa conexão é cercada de
silêncios que carecem de pesquisas mais intensas sobre o período. Colaço (2014), no artigo
De Denner à Chrysóstomo, a repressão invisibilizada: as homossexualidades na ditadura
(1972 a 1983), afirma que a repressão contra as “homossexualidades” pelo estado autoritário,
apesar de não contar com um dispositivo jurídico específico, não deixou de ser intensa,
atuando, sobretudo, na proibição desses indivíduos nos grandes veículos de comunicação e no
controle exercido sobre os eventos de entretenimento envolvendo as “travestis”.
Porém, ao contrário do que queriam os censores, as sexualidades não normativas já
ocupavam a cena pública. Mais do que a afetação que animava a plateia dos auditórios, a
presença desses homens nesses programas de grande popularidade implicava uma insurgência
das sexualidades não normativas nos lares brasileiros, contribuindo para a construção de um
“papel não heterossexual” na nossa sociedade. O público não apenas gostava dessa presença
como exigia os trejeitos, gritinhos, bordões e afetações característicos de Dener, o que
representava não apenas um risco à moral e aos bons costumes da “família brasileira”, mas,
sobretudo, à autoridade militar – cujo poder foi conquistado graças ao apoio desses setores
mais conservadores da sociedade.
A performance desses indivíduos foi produzida a partir do contato com esse público. O
que era considerado pior pelos militares, o público reproduzia, em seus bordões. Essa
recepção da audiência encorajava uma aceitação parcial das sexualidades não normativas.
Parcial no sentido de que essa visibilidade era produzida na chave do grotesco, provocando,
simultaneamente, risos e estranhamento. Mesmo que aprisionada a estereótipos, as
sexualidades não normativas passam a fazer parte do cotidiano dos lares brasileiros.
Visualizada por centenas de aparelhos de televisão, especialmente em horários familiares,
como o domingo, aqueles seres que antes habitavam o carnaval passaram a integrar a
169

regularidade da vida cotidiana, sendo capturados por sentidos associados ao excêntrico e ao


exótico.
Não somente a proibição marcou a relação da televisão com essas novas “formas de
vida”. Os programas de auditório promoveram ainda uma verdadeira espetacularização das
sexualidades não normativas através de estratégias que muito se assemelhavam aos freak
shows, como ocorria na cobertura pelos jornais e revistas dos bailes dos teatros da região da
Praça Tiradentes. Os programas Show de Calouros, do apresentador Sílvio Santos, e o famoso
Clube do Bolinha, apresentado por Édson Cury (Bolinha), se destacaram por essa presença
“excêntrica” que promovia sentidos em torno da noção de “bichice”, revelando personagens
que se consolidaram na vida cotidiana dos brasileiros.
Dos programas que mais contribuíram para a promoção de imagens sobre as
sexualidades não normativas, o Clube do Bolinha é o mais representativo. Capitaneado por
Édson Cury, o Bolinha, esse show televisivo, através do seu quadro Eles e Elas, foi o
responsável por produzir performances relacionadas à “bichice” que seriam consolidadas na
memória coletiva dos brasileiros. Édson Cury começou a sua carreira como animador de um
programa chamado Chuveiro Lorenzetti, no segundo canal da Tupi76. Tratava-se de um
programa de calouros, no qual os cantores desafinados eram parados de cantar com um banho
de ducha. Ganhou fama como locutor de campo na rádio Excelsior. Começou a fazer o Clube
do Bolinha em 1974, ficando até 1994, sendo considerado um dos programas-líderes da TV
Bandeirantes.
Tamanha era a repercussão do quadro em nível nacional que se refletia na vida do seu
apresentador. De acordo com ele, em entrevista ao programa Jô Soares, em 1997, esse quadro
teria despertado para si uma “fama”, a qual, segundo ele, era de “viado”. Chegaram mesmo a
produzir rumores de que estaria casado com Telma Lipp, famosa “travesti” que compunha o
seu corpo de jurados. O caso ganhou projeção pública quando uma jornalista do veículo
Notícias Populares teria investido na notícia de que Bolinha e Telma iriam se casar. Bolinha
foi entrevistado por diferentes veículos, chegando a ser sabatinado publicamente na Rádio
Capital, quando muitas ouvintes manifestaram sua condenação ao caso.
O Eles e Elas foi criado em 1979, diante de um clima de intensa repressão instituído
pela ditadura. De acordo com Bolinha, para que o quadro fosse ao ar, ele não podia nomear as
calouras com a categoria “travesti”. Deveria apenas dizer o nome da concorrente, ficando ao
público a compreensão do conteúdo das apresentações. A dinâmica do quadro consistia em

76
A TV Tupi possuía dois canais.
170

um concurso no qual as competidoras se apresentavam no palco, geralmente dublando


cantoras ou músicas famosas. Quando Bolinha começava a apresentar o Eles e Elas, a música-
tema Calúnia (Telma eu não sou gay) ganhava o auditório, demarcando o campo simbólico
sobre o qual as calouras se inseriam.
Coincidentemente, a Telma aclamada por Ney Matogrosso na música-tema tinha o
mesmo nome da famosa Telma Lipp, a “travesti” que compunha o corpo de jurados do
programa, com quem Bolinha, de acordo com a mídia, teria um “caso”. Além dessa
aproximação simbólica, a música é plena de outros simbolismos relacionados às sexualidades
não normativas, começando com o título, Calúnia. A noção de calúnia se aproxima da ideia
de injúria, com a qual Eribon (2008) analisa a construção da subjetividade das pessoas
identificadas como “homossexuais”. O fio condutor da canção é um pedido para reatar uma
relação amorosa estremecida pela suposta “homossexualidade” do rapaz, ressaltando a
redenção do ator de suas experiências passadas, assumidamente “homossexuais”. O
personagem da canção afirma serem calúnias as acusações de que não teria se redimido do
comportamento considerado moralmente reprovável. Nesse pedido fica implícita a percepção
da “homossexualidade” como, simultaneamente, vergonhosa e anormal.
O pedido para reatar a relação é acompanhado da certeza de uma redenção dos atos
que ficaram no passado, reabilitando o personagem às convenções sociais associadas a
estereótipos de gênero: bobes para ela, terno para ele, elementos formadores da felicidade do
casal. O tom melancólico da música afirma ainda mais o seu potencial de deboche dessas
convenções, uma vez que era o caluniado quem, narrando o seu drama, expunha o dilema da
vida dupla vivida por muitos “homens homossexuais”, muitos dos quais mantêm mulher e
família associados a uma outra vida na qual se entregam ao deleite sexual com iguais. A
injúria envolvendo “travestis” famosas, tais como Telma Lipp, foi recorrente na década de
1980, não apenas Bolinha fora envolvido nessa teia, mas também o cantor Erasmo Carlos.
Tais processos de acusação revelam o suposto potencial contagioso que as sexualidades não
normativas tendem a atrair para aqueles que ousam exibi-las.
O Show de Calouros do apresentador Sílvio Santos foi outro exemplo de programa de
auditório no qual as sexualidades não normativas ganhavam ares de “espetáculo de consumo”.
O Show de Calouros começou a ser televisionado em 1973 pelos veículos TV Record e TV
Tupi, em São Paulo, e TVS, no Rio de Janeiro. Em 1981, com o início das atividades do
Sistema Brasileiro de Televisão – SBT, o programa ganhou mais projeção, sendo a marca de
Sílvio Santos. Neste momento, a bancada do júri começou a ser formada por outros artistas da
emissora convocadas pelo “patrão”. Foi ainda na década de 1980 que os chamados
171

“transformistas” começaram a ser destaque no programa, aguçando a curiosidade popular a


esse respeito. Sugiro que essa presença foi um dos motivos da manutenção da audiência e da
longevidade desse programa no ar.
O Show de Calouros consistia em um concurso de variedades no qual os calouros
apresentavam os seus prodígios no palco para concorrer a prêmios. Aquele que conseguisse ir
para grande final – contabilizando cinco apresentações – se estabelecia como grande
vencedor. No júri, nomes como Consuelo Leandro, Aracy de Almeida, Pedro de Lara, Elke
Maravilha, entre outros, revelavam a sua opinião acerca das apresentações. Algumas dessas
manifestações eram marcadas pelo deboche e pelo desdém ao personagem freak que se
encontrava no palco. Eram várias as modalidades de participação, sobretudo dos chamados
“transformistas”, os quais se notabilizaram como principais atrações do Show de Calouros.
Um desses “transformistas” que mais despertou a atenção do público foi Erick Barreto, que
ficou conhecido por suas reproduções da performance de Carmem Miranda. Erick ficou
conhecido do público mais amplo, assim como nos espaços dedicados à sociabilidade
“bichal”, tais como a Turma OK. Nesse espaço, o célebre “transformista” ainda hoje é
lembrado como uma das figuras de destaque da arte do “transformismo”. Erick é uma espécie
de ícone recordado quando se quer realçar as personalidades importantes que passaram pela
Turma OK.
Ser consumido como freak implicava algumas reações no plano da vida cotidiana. Em
um dado momento, parece que todas as pessoas que eram identificadas como fora da norma
sexual vigente deveriam agir conforme os moldes de comportamento daqueles que apareciam
na televisão. A imagem das sexualidades não normativas como associada aos papéis de
gênero foi uma construção tão bem-sucedida quanto perigosa para as gerações que viriam
depois. Essa construção ofereceu uma moldura de significados erguida pelo mundo televisivo
que consolidou expectativas sociais relacionadas às pessoas identificadas como fora da norma
sexual.
A percepção das sexualidades não normativas como freak foi consolidada de forma
ainda mais acabada nas transmissões do Baile Gala Gay, importante baile de carnaval
dedicado às “bichas” e “bonecas” realizado no Scalla – famosa casa de shows do Rio de
Janeiro. Essas coberturas muito se assemelhavam àquelas realizadas nos bailes de “enxutos” e
“bonecas” da Praça Tiradentes. A entrada e saída das pessoas que o frequentavam se
constituía em “espetáculo de consumo”, onde o que estava sendo consumido era o excesso –
homens vestidos de mulher, silicone, frescura, erotismo, etc. –, elementos que foram
172

responsáveis por consolidar um imaginário coletivo sobre as sexualidades não normativas nos
marcos do estranhamento e do estigma.
Aparentemente, a noção de “transformista” parece ter sido adotada pela linguagem
televisiva como um recurso para não mencionar a expressão “travesti”. Interessante destacar
que a linguagem grotesca dos programas de auditório autorizava a presença desses indivíduos
que vivenciavam o feminino no registro da paródia, mas, ao mesmo tempo, a presença das
“travestis”, como Rogéria e Divina Valéria, era silenciosamente negligenciada. Na revista
Amiga de dezembro de 1972, o apresentador Chacrinha chama a atenção para o sucesso de
Rogéria, a quem chama de “nossa Rogéria”, em sua tournée pelo exterior, lamentando os
problemas enfrentados pelas emissoras com a censura quando resolviam trazê-la ao ar. Tal
proibição parece estar circunscrita à televisão, quando considerado o alarde protagonizado
pela imprensa na época de retorno dessas “travestis” de suas estadias pela Europa.
Profissionais importantes de veículos de comunicação, tais como Nina Chaves e Ibrahim
Sued, noticiaram com entusiasmo essa chegada, dedicando páginas inteiras de revistas e
jornais para divulgar especificidades da vida dessas “travestis”.

3.4 – A breve conquista do horário nobre

Não foi somente nos programas de auditório que as sexualidades não normativas se
converteriam em “espetáculo de consumo”. As novelas foram ainda um palco de tensões
referentes as diversidades de gênero e sexualidade que merece um exercício de reflexão.
Diferentes trabalhos têm se debruçado sobre a presença de personagens não heterossexuais
nas tramas brasileiras. Não busco aqui revisar essa literatura, tampouco compreender a forma
como essas personagens são construídas no curso das tramas. Procuro, antes, através da
trajetória de Claudia Celeste, a primeira “travesti” a fazer novela no Brasil77, compreender
como a proibição marcou a sua experiência de vida, ao mesmo tempo que delineava um
espaço restrito para essas pessoas.

77
Rogéria fez, ao longo da sua carreira, participações em diferentes novelas da TV Globo. Algumas de suas
personagens ficaram famosas, como foi o caso da Ninete, em Tieta, de 1989 e Alzira Celeste, em Lado a Lado,
de 2012. Esta última personagem foi celebrada por Rogéria em diferentes entrevistas que concedeu a veículos de
comunicação: ela foi percebida como o coroamento de sua carreira, já que se tratava de uma “travesti” atuando
como uma mulher da sociedade, e não fazendo o papel de si mesma. Tal feito foi considerado por Rogéria como
um dos momentos mais importantes de sua longa carreira, uma vez que teria definitivamente sido reconhecida
como atriz.
173

A primeira atuação de Claudia Celeste em uma novela foi em 1977, em Espelho


Mágico. O contexto da trama era o próprio meio artístico, que servia de fio condutor para a
personagem de Sonia Braga, a qual fazia de tudo para ser reconhecida como artista, não se
furtando, inclusive, a praticar sexo com pessoas que a ajudassem neste processo. Claudia já
participava do bas-fond noturno carioca há algum tempo, dançando em boates e fazendo
“shows de travesti” no Teatro Brigitte Blair quando foi surpreendida pelo convite feito pela
equipe da novela.
Aí foram no Teatro da Brigitte Blair, que ela estava com uma peça de mulheres lá
que tinha, que era com as chacretes na época, entendeu? E eu era uma das atrações
também, Claudia Celeste. Não dizia a travesti Claudia Celeste, eu era apresentada
Claudia Celeste, acabou, entendeu? Quem soubesse que eu era travesti, sabe, quem
não sabe ficava por ali mesmo. Eu era um artista que estava em cena. Aí eles
contrataram algumas cenas no teatro dela para levar para a novela. E numa dessas
cenas, o diretor Daniel Filho, gostou do número que eu fazia, que era Big Spender,
eu fazia um balé que eu cantava Big Spender: “Hey, big spender!
Spend a little time with me...”, trum na cadeira com umas perucas tudo Black Power
coloridas, umas coisas assim de puta, com umas sainhas curta e tudo, balé de cadeira
que tinha com as bailarinas. E aí ele gostou desse balé, e queria que fosse o número
pra Sonia Braga entrar nesse balé, dentro do balé, e tal e coisa. E aí foi feita assim a
cena com esse balé. E aí eu fui contratada também porque eu estava lá no meio
disso. Ninguém estava sabendo de nada que eu era travesti. Não foi comentado.
Daniel Filho nem imaginava. Ninguém imaginou nada! (Claudia Celeste)

De acordo com Claudia, ninguém suspeitou que ela era “travesti” até que um jornal de
Copacabana, o qual, de acordo com ela, tinha uma coluna dedicada a temas de interesse das
“bichas”, fez uma nota, assinada por Glorinha Pereira, usando uma foto e noticiando a sua
participação na novela. Instantaneamente, Claudia Celeste ficou conhecida pelo público mais
amplo como a “travesti” que estava na novela. A Gazeta de Notícias de 07 de agosto de 1977
noticiou em letras garrafais Cláudia (ou melhor, Cláudio), o travesti que enganou todo
mundo, e revelou aspectos da trajetória de vida de Claudia, como a sua precoce ingestão de
hormônio, com 17 anos, e a afirmação de que ela não escondeu de ninguém sua real
“condição de travesti”. A matéria finalizava destacando a incerteza do futuro de Claudia na
Rede Globo. Diante do falatório motivado pela aparição de Claudia na televisão, a direção da
telenovela optou por retirá-la dos capítulos que tinha gravado, restando somente quatro
capítulos que contaram com a sua presença.
Claudia afirma que foi por causa dos militares que a sua participação não teve
continuidade na novela. Entretanto, de acordo com reportagem da Contigo, revista de
amenidades especializada na vida de famosos, na época da novela Olho por Olho, foi Daniel
Filho que teria feito um escândalo quando descobriu que Claudia era “travesti”, antes mesmo
de qualquer investida dos censores federais, impedindo imediatamente que as cenas que já
174

tinham sido gravadas fossem ao ar. A reação de Daniel Filho tinha uma razão de ser, já que,
de acordo com a Gazeta de Notícias, de 07 de agosto de 1977, havia uma proibição federal
que impedia que “travestis” como Valéria e Rogéria aparecessem no programa Fantástico.
Apesar de Claudia Celeste não ter um personagem considerado importante para o conjunto da
trama, sua presença em si era considerada perigosa em função da conhecida proibição dessas
pessoas na TV.
Mesmo tendo sido retirada da trama, a aparição pública em dimensões como aquela
estimulou a carreira de Claudia, que começou a participar de outras produções, sobretudo em
boates do Rio de Janeiro. Nessas apresentações, Claudia quase sempre chocava a plateia com
um strip-tease cuja função era borrar definitivamente as convenções relacionadas a sexo e
gênero, uma vez que a informação de Claudia ser uma “travesti” era acompanhada da retirada
completa da roupa, deixando todos os presentes com a marca da dúvida.
Foi somente em 1988 que Claudia Celeste retornou ao ar, com a novela Olho por Olho
da Rede Manchete. Essa novela fazia parte de um conjunto de mudanças operadas na grade de
programação desta emissora. A Rede Manchete iniciou as suas transmissões oficialmente em
05 de junho de 1983, às 19 horas, com um pronunciamento de Adolpho Bloch78, que
destacava que a nova emissora seria responsável por uma programação de alto nível
(FRANCFORT, 2008).
Em 1988, então comemorando um lustro, a emissora revia seu objetivo inicial, dada a
enorme dívida associada à baixa audiência de muitos de seus produtos. A grade de
programação composta de programas de entrevista, documentários e jornalismo não
conseguia competir com uma programação de feição mais popular, tal como a Globo e o SBT
produziam. Diante desse contexto, a novela Olho por Olho buscou repetir o êxito de Corpo
Santo e Carmem, lançamentos anteriores que combinavam elementos polêmicos em seus
enredos, que iam desde a prostituição até a participação de seus personagens em religiões
afro-brasileiras. Tais elementos eram enredados em tramas com forte inspiração nos romances
policiais. Essa mistura de marginalidades parecia atrair o público, fazendo a Rede Manchete
liderar a audiência em relação a sua concorrente no negócio das novelas, a Rede Globo
(FRANCFORT, 2008).
A dimensão policialesca não fugia ao enredo de Olho por Olho, que tinha como ponto
alto da história a vingança de três irmãos que tiveram o pai assassinado. A exemplo de Corpo

78
O pronunciamento de Adolph Bloch na ocasião da inauguração da rede Manchete foi subitamente
interrompido por uma chamada publicitária da Lubrax (óleo lubrificante da Petrobras). Retornando após o
incidente, ele justificou a falha afirmando se tratar de “coisas eletrônicas” (FRANCFORT, 2008).
175

Santo, a dimensão marginal da cidade do Rio de Janeiro com seus “tipos humanos” e “zonas
morais” constitui o pano de fundo para os dramas e histórias dos personagens. Foi nessa teia
de relações morais que Dinorá foi concebida. A personagem Dinorá foi pensada para ser
vivida por uma “travesti”, admite Claudia. Os autores, José Louzeiro e Geraldo Carneiro79,
queriam oferecer autenticidade a este personagem, uma “travesti” que morava com Paula,
prostituta interpretada por Beth Goulart. Claudia disse que para o personagem foram feitos
vários testes, sem que tivesse sido escolhida a atriz. Aproveitando a sua expertise conquistada
em sua outra experiência com novelas, Claudia fez um teste considerado adequado aos
objetivos do papel de Dinorá.
Foram 157 capítulos dos quais Claudia Celeste participou profissionalmente como
atriz do elenco fixo ao longo da trama, não apenas fazendo uma “ponta”, ela ressalta. Além de
atuar, Claudia prestava uma espécie de consultoria sobre o “mundo dos inferninhos” do Rio
de Janeiro para os escritores da novela e para a atriz Beth Goulart. Mesmo tendo feito uma
participação que pode ser considerada histórica como a primeira “travesti” a entrar no espaço
mais cobiçado da televisão na época, as novelas, Claudia acredita que a projeção que sua
personagem poderia ter conquistado foi prejudicada por dois motivos: 1) o fato de a novela
não ter sido produzida pela Rede Globo, mas sim por uma emissora em processo de formação
de público, como a Manchete; e 2) a intensa visibilidade dedicada a Roberta Close no período,
a qual impedia que os refletores fossem virados para outro personagem com as mesmas
características.
Ainda que a participação na novela seja vista como um evento importante na sua
trajetória, Claudia afirma que essa participação teria limitado profundamente o seu “campo de
possibilidades” como artista. Segundo ela, depois da experiência como Dinorá, todos
passaram a vê-la como apenas uma “travesti”, que teria vivido o seu próprio drama particular
– enredado nas tramas da prostituição – na novela. Claudia conta que ficou desapontada com
a falta de oportunidades que encontrou pela frente depois da novela, o que a levou para a
Europa, como fez a geração anterior de “travestis”.

3.5 – Do glamour à abjeção

79
Leila Miccolis, escritora e importante militante do movimento homossexual que surgia na época, participou do
processo de confecção do texto da novela posteriormente (FRANCFORT, 2008).
176

A televisão, junto a outras “tecnologias do olho” (BRAH, 2006), como as revistas de


grande circulação, tiveram imenso protagonismo no processo de consolidação das
sexualidades não normativas como um “lugar simbólico e social” na sociedade brasileira.
Ainda que esse lugar tenha sido forjado em imagens estereotipadas do que vinha a ser esse
indivíduo, as sexualidades não normativas haviam definitivamente deixado as sombras da
vida social para se apresentar na ordem do discurso (ERIBON, 2008). Entre fins da década de
1970 e início da década de 1980, as “travestis profissionais” eram reconhecidas e até mesmo
celebradas como produtos genuinamente brasileiros. Mas não parava por aí, os barulhentos
programas de auditório, que se avolumavam na televisão brasileira, sempre garantiam, no júri
ou no palco, uma persona televisiva que fosse relacionado a uma performance “bicha” –
espectros de Dener.
Apesar do êxito das carreiras das “travestis profissionais” que foram para a Europa e
do sucesso de personalidades como Dener e Clóvis Bornay, toda essa visibilidade, contudo,
não foi convertida em mais liberdade de trânsito pelos espaços sociais. O impedimento de
serem exibidas na televisão é um exemplo importante dessa dinâmica. Claudia Celeste
experimentou essa proibição intensamente em sua curta carreira como atriz de novelas.
Retornando às ideias de Foucault (1988) sobre a proliferação dos discursos sobre o sexo, é
possível perceber que não é falando sobre ele que se pode superar as suas proibições e
afiançar sua liberdade. É mais fecundo, segundo o autor, ficar atento a quem fala e de onde se
fala para compreender a lógica desses discursos. Se, pelo filtro do mercado de bens culturais,
esses indivíduos foram ressignificados pela lógica do glamour, através da incorporação de
discursos relacionados a gênero e classe social, dois processos que ocorreram na década de
1980 mudaram esse foco: o fenômeno Roberta Close e o consumo espetacular da AIDS nos
veículos de comunicação de massa. Ambos os fenômenos foram tomados como ameaças a
ideia de nação, estimulando políticas de abjeção dirigidas às sexualidades não normativas.
Juntos, esses processos desencadearam uma proliferação dos discursos acerca das
sexualidades não normativas no Brasil, ao mesmo tempo em que acentuaram as “guerras
sexuais” em torno da regulação da mesma. Essas mudanças tiveram muitas implicações, mas
creio que a principal delas gira em torno do paradoxo que causou sobre a exibição das
sexualidades não normativas na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo que esses eventos
aprofundaram o debate sobre as sexualidades não normativas de forma sistemática e
exponencial, eles evocaram antigos e novos “pânicos morais” que tinham sido serenados
durante o período em que as sexualidades não normativas foram tidas como objeto de
fascínio. Dessa forma, a entrada na norma através do glamour passou a ceder lugar a uma
177

severa política de abjeção, através da qual os discursos sobre as sexualidades não normativas
começaram a produzir seus novos sujeitos.
Existe no Brasil ampla literatura dedicada a entender os impactos da AIDS na
construção de representações sobre as sexualidades não normativas (TERTO JR,
GUIMARÃES E PARKER, 1992; TREVISAN, 2000; PARKER, 2002). Sobre Roberta Close
há também alguma literatura, mais volumosa do que aquela dedicada a “travestis” como
Rogéria, Divina Valéria, Marquesa e outras dessa primeira geração. Roberta Close tem,
inclusive, uma biografia dedicada à sua vida.
Não se busca aqui detalhar esses processos de maneira pormenorizada, mas
compreender os impactos que as iconografias relacionadas a tais fenômenos em dois
momentos pontuais tiveram na exibição das sexualidades não normativas para o conjunto da
sociedade. Para tanto, o campo de análise será delimitado a dois momentos específicos: o
primeiro diz respeito à emergência de Roberta Close como mito erótico, em 1984, com a
publicação da Playboy e as implicações nos debates que surgiram naquele ano em diferentes
setores da sociedade brasileira. Já o segundo se relaciona à história do surgimento da AIDS no
Brasil, destacando a publicidade em torno das mortes do estilista Markito e do ator Rock
Hudson, ambos em decorrência dessa síndrome, no curto período de dois anos, entre 1983 e
1985. Esses eventos reacenderam “pânicos morais” originados da associação das sexualidades
não normativas com uma combinação de doença e pecado – nociva à família e à sociedade – e
impactaram na percepção pública dessa prática e dos seus sujeitos, mas consolidaram essas
sexualidades como um enunciado público. Sobre esses pontos é que quero me deter.
No início da década de 1980, a sociedade brasileira se viu abalada pela emergência de
uma figura que entraria, mesmo que a contragosto, para a história: Roberta Close. Ela
estampou, em maio de 1984, a capa de uma revista dedicada quase que exclusivamente ao
erotismo heterossexual masculino, a Playboy. Mesmo não figurando como modelo principal
daquela capa, que era ocupada por Lídia Bizzocchi, ganhou destaque em uma chamada
lateral, em que, abaixo de sua foto, lia-se: “Incrível: as fotos revelam por que Roberta Close
confunde tanta gente!” (PLAYBOY, 1984). Famosa por levar às bancas modelos de curvas
sinuosas, muito das quais famosas da televisão, a Playboy daquele maio de 1984 esgotou em
três dias uma tiragem de 200 mil exemplares. Tal façanha, em meio ao que Ruy Castro,
jornalista da Folha de S. Paulo, chamou de momento de decadência da indústria pornográfica,
com a queda substancial do número de revistas do gênero vendidas, exerceu uma repercussão
sem precedentes na vida da jovem modelo. Do dia para noite, Roberta Close foi catapultada à
principal celebridade brasileira, aparecendo diariamente em diferentes veículos de
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comunicação. Dado o sucesso de vendas, a Playboy lhe dedicou um número especial,


trazendo novas fotos, incluindo a capa principal, e reunindo informações sobre a carreira do
chamado “fenômeno nacional”.
Ao aparecer em uma revista de consumo erótico masculino de tão grande circulação,
Roberta Close foi convertida em símbolo do desejo erótico do homem brasileiro, o que
desencadeou diferentes discursos sobre os rumos da sociedade brasileira. Tais discursos
partiram de antropólogos renomados, passando por psicanalistas, até jornalistas e políticos.
Roberta Close colocou definitivamente as sexualidades não normativas na “ordem do
discurso”, em expressão consagrada por Foucault (1999). Essa proliferação discursiva
expunha as diferentes formas com que a sociedade brasileira construía e consumia
representações sobre as diversidades de gênero e sexualidade que iam ganhando visibilidade.
Uma nova personagem surge com Roberta Close, a “transexual”, ainda que a mídia da época
adotasse a categoria “travesti” para falar dela.
Roberta Close reatualizava uma imprecisão classificatória, muito semelhante àquela
dos “homens em travesti” do passado. Mas esta imprecisão agora era reforçada pelas novas
descobertas científicas e sua atuação nos corpos, dotando-os de uma perfeição grega. Todas
essas dimensões fizeram com que Roberta Close fosse saudada pela mídia como um
“enigma”. A repórter Junia Nogueira de Sá começava a matéria intitulada Roberta Close, a
bela esfinge para o jornal Folha de S. Paulo, de 31 de maio de 1985, da seguinte forma: “A
mulher da moda no Brasil, hoje, a mais cobiçada, a mais sensual, a mais fotografada,
perseguida e até beliscada em suas aparições públicas é...um homem” (SÁ, 1985). A matéria
destacava pontos importantes da trajetória de vida de Roberta Close, ressaltando a sua
infância, momento identificado como crítico para a construção de sua identidade. A modelo
afirmou na reportagem que sua mãe identificara, ainda quando criança, características
femininas em seu corpo e personalidade. Recorrendo a um médico para avaliar essas
“diferenças” sob a autoridade de sua mãe, ela disse que começou a tomar hormônios
femininos. Com 14 anos, ela alegou que ninguém notava suas transformações, uma vez que
todos nessa época usavam cabelos compridos, jeans e tênis. Aos 17 anos, ela foi convidada a
ingressar no mundo das passarelas.
O que mais chamava a atenção sobre Roberta Close era a naturalidade de seu corpo e
performance. Ela “passava por uma garota comum”. A imagem da “mulher fatal” não se
aplicava à sua performance nesta primeira aparição pública. Diferente das “travestis” da
geração de Divina Valéria, ela não tinha relação com o mundo do show business, o que a
encaixava ainda mais em uma iconografia da normalidade. A inserção da geração de Divina
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Valéria no mundo dos espetáculos consolidava uma percepção de artificialidade sobre essas
“travestis”. Ainda que parecessem “mulheres de verdade”, elas eram reconhecidas como
“travestis” e ganhavam a vida a partir desse reconhecimento. Com o crescimento do número
de “travestis” que migraram para a Europa e aquelas que ficaram por aqui associado ao pouco
espaço nos meios artísticos, muitas construíram as suas trajetórias relacionadas à prostituição.
Já no início da década de 1980, as reportagens sobre Roberta Close realçavam sua diferença
em relação a essas “travestis”.
A “diferença” de Roberta Close era construída em contraste com essas “travestis”,
assimiladas ao exagero. A iconografia da normalidade evidenciada na performance de
Roberta Close punha em risco a própria normalidade, posto que desafiava as fronteiras
simbólicas impostas como naturalmente dadas sobre o que era ser homem e mulher na
sociedade brasileira. Se, até então, as “travestis” eram consideradas seres que não se
confundiam com as mulheres biológicas, com a construção de Roberta Close como mito
erótico no Brasil essa relação é desfeita. Divina Valéria, Rogéria e outras podiam até mesmo
ser erotizadas em revistas e outros veículos, mas jamais foram assumidas como veículos do
desejo sexual masculino, nunca foram consumidas como ícones do imaginário pornográfico.
Roberta Close colocou em xeque a naturalização da relação sexo-gênero-desejo, nos termos
de Butler (2003), afirmando a possibilidade de o homem brasileiro ter desejos por uma mulher
cujo corpo, ainda que feminino, preservava a marca distintiva do corpo masculino, o pênis.
Tal crise logo seria reconhecida, sobretudo, por determinados especialistas vinculados
aos meios de comunicação, como o psicanalista Guilherme W. Machado, que em seu artigo ao
jornal Folha de S. Paulo, de 24 de junho de 1984, intitulado Roberta Close, por que tão
próxima?, chama atenção, a partir de uma interpretação psicanalítica de cunho lacaniano
sobre esse desejo que tomou de assalto grande parte da população masculina brasileira. O
ponto alto da preocupação do psicanalista era o assombroso sucesso de vendas de Roberta
Close, mesmo tendo sido de conhecimento público o fato de que ela possuía um pênis, como
bem fez questão de ressaltar na matéria. De acordo com o psicanalista:
A teoria psicanalítica ensina que um ser torna-se desejável na medida em que se
confunde com uma imagem que trazemos conosco, imagem que se estrutura desde
nosso nascimento como sujeito e que, segundo as circunstâncias de nossa formação,
é mais ou menos neurótica ou perversa. Essa imagem é, de fato, uma acumulação de
restos de experiências eróticas – orais, anais, fálicas, do ver e do ouvir – que é
variável e individual tal como uma combinação matemática complexa. Aquilo que
encontramos no ser amado é algo de pessoal e o outro é o seu suporte imaginário
(MACHADO, 1984).
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Ele afirma que o pênis de Roberta Close constituiria, no pensamento lacaniano, uma
“atração à parte”, reputando uma grande vantagem de Roberta Close sobre as mulheres, posto
que ela teria a habilidade de despertar “desejos diferentes”. Marta Suplicy, em reportagem no
jornal Folha de S. Paulo de 09 de julho de 1984, sobre a publicação de seu livro Condição da
mulher, também traz argumentos que se coadunam com os do psicanalista Guilherme W.
Machado. Para ela, Roberta Close, a “nova namoradinha do Brasil”, afirmava ela, refletiria de
forma acabada a situação de nosso subdesenvolvimento, uma vez que representaria “a
sublimação do desejo homossexual latente nos homens” (SUPLICY, 1984). Continuando sua
análise, Marta Suplicy afirma que muito do sucesso de Roberta Close decorre de sua
ambiguidade sexual, colocando em dúvida se este teria solução de contiguidade caso ela
fizesse a cirurgia e ganhasse uma “vagina artificial”.
Tais percepções foram vivenciadas de forma ambígua pelas mulheres da época,
sobretudo por aquelas ligadas aos debates feministas. Muitas feministas, como afirma Ruy
Castro, em matéria da Folha de S. Paulo, achavam engraçado o fato de Roberta Close ter
provocado a libido dos machos brasileiros. Outras encaravam o “fenômeno” como uma
ameaça. A atriz Dercy Gonçalves, que foi uma impulsionadora dos concursos de fantasias de
homens “em travesti”, expressou opinião contrária ao sucesso de Roberta Close nos veículos
de comunicação. No programa da apresentadora Hebe Camargo, televisionado pela rede de
TV Bandeirantes, em um ato controvertido, colocou os seios para fora e perguntou se Roberta
Close tinha o que ela tem, sendo respondida por um silêncio constrangedor da plateia,
afirmava a matéria da Folha de S. Paulo de 03 de julho de 1984. Outras ainda acreditavam
que o sucesso de Roberta Close só fazia acentuar o compromisso nacional de organizar a
sexualidade a partir da instituição do “jeitinho brasileiro”, uma vez que afirmava a
impossibilidade de um homem “homossexual” vivenciar sua sexualidade sem ter que se vestir
de mulher. Em outras palavras, só atualizou o compromisso brasileiro com o machismo
(FOLHA DE S. PAULO, 1984).
Mas não foram somente os especialistas psi e as feministas que opinaram sobre a
presença de Roberta Close na mídia. Colegas antropólogos também realçaram as
consequências de tamanha repercussão na sociedade brasileira. Em matéria publicada pela
Folha de S. Paulo de 10 de julho de 1984 sobre a mesa redonda Antropologia das sociedades
complexas, realizada durante a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência –
SBPC, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Peter Fry chama a
atenção para um traço característico da sociedade brasileira: o desrespeito às regras. Para Fry,
a noção de “adiantar” se constitui como uma categoria analítica significativa que ajuda a
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entender este desrespeito como uma forma de obter algum benefício para si e para o seu
círculo pessoal. Adotando o caso Roberta Close como emblemático, por se tratar de uma
pessoa que alcançou fama e riqueza, o antropólogo afirma que a “aceitação” dela pelo grupo
familiar é sempre mediada por compensações financeiras, que “adiantam” sua vida.
As análises da antropologia também ocuparam a atenção na matéria intitulada A
exceção virou regra, de Ruy Castro, publicada na Folha de S. Paulo de 16 de junho de 1984,
na qual o jornalista expõe algumas ideias do antropólogo Roberto DaMatta sobre o fenômeno
Roberta Close. Na matéria, o autor destaca o livro Carnaval, malandros e heróis, de DaMatta,
colocando em relevo os argumentos do antropólogo acerca das noções de transgressão e
estrutura. O ponto central do argumento do texto do jornal é que existe a possibilidade de a
exceção – ou seja, a transgressão – se converter em regra. Reproduzindo os argumentos do
antropólogo, o jornalista acredita que o êxito de Roberta Close se justifica em função do
estado atual da sociedade brasileira naquele período, no qual a mulher assumia a condição de
“índice da crise” dada a sua situação de ambiguidade. Esta ambiguidade ofereceu condições
para que um indivíduo que fizesse a síntese masculino/feminino de forma plena, como
Roberta Close, se convertesse em um símbolo. Acredito que Ruy Castro estivesse querendo
realçar as mudanças nos códigos de comportamento e nas convenções de gênero levadas a
cabo pelo aprofundamento do feminismo. Ao finalizar a matéria, ele mostra uma visão
melancólica das consequências do “fenômeno Roberta Close”.
Se Roberto DaMatta estiver certo, Roberta Close veio para ficar. Fatalmente acabará
na Globo – se não for capturada antes por um nobre europeu ou um fazendeiro de
Marajó. Até lá, Carmem Miranda volta para a prateleira, Rogéria entra na
compulsória, Ney Matogrosso vai ter de reformar todo o seu guarda-plumas, porque
outro valor mais alto se alevantou. E com justiça, porque esses três eram simples
representantes de tal ambiguidade. Como tal, nunca nos enganaram, nem
pretenderam. Foi fácil para Roberta Close pô-los no chinelo. O que me preocupa é o
futuro das moças citadas no começo e que, até há pouco, embalavam as nossas
fantasias. E agora, vão embalar o quê?Stanislaw Ponte Preta dizia há anos que,
daquele jeito, o terceiro sexo ainda acabaria em segundo. Errou.Agora que a exceção
virou regra, o terceiro sexo, correndo por fora, atropela e cruza o disco final
(CASTRO, 1984).

O que esse conjunto de argumentos tem em comum é a visão fatalista, mesmo


apocalíptica, que a exibição de Roberta Close nos veículos de comunicação representa para os
rumos da sociedade brasileira. Sugiro que Roberta Close desestabilizou de vez as convenções
de gênero sendo catapultada a símbolo erótico no imaginário masculino brasileiro. Gagnon
(2006) ressalta a ideia de que a sexualidade é construída por meio de roteiros sexuais. Para
este autor, as noções de instinto e natureza não fazem sentido algum, dado o caráter produzido
das convenções relacionadas a sexo e gênero. Mesmo as fantasias sexuais, algo tão
182

comumente associado ao psiquismo, são para Gagnon (2006) construídos por esses roteiros. A
pornografia, para este autor, exerce papel fundamental neste processo, oferecendo artefatos
para a construção da sexualidade e dos roteiros eróticos. Considerando essas questões, sugiro
que o consumo de Roberta Close pela pornografia, espaço de construção da masculinidade,
afetou profundamente o campo de percepção sobre gênero e sexualidade na sociedade
brasileira. Ao ser reconhecida como objeto de desejo do homem brasileiro, Roberta Close se
infiltrou nos processos pedagógicos da construção da “matriz heterossexual” constituindo um
perigo para a normalidade materializada na equação sexo-gênero-desejo.
As consequências de tal infiltração foram objeto de ansiedade dos “empresários
morais”, incluindo as mulheres, preocupadas com a manutenção do seu papel. Isto fica
evidente não somente com o ato espetacular de Dercy Gonçalves, mas também em outras
tensões, como nas desavenças com outras modelos de sucesso na época, a exemplo de
Monique Evans, que alegava que Roberta Close não deveria receber pagamento como
modelo, posto que não tinha formação para tal. Em um momento em que o mercado de
modelos no Brasil não tinha o grau de formalização de hoje, essa alegação parece ser um tanto
quanto vazia, em função da quantidade de mulheres que transitavam no espaço das revistas
sem terem feito qualquer curso. Acredito que o que estava em jogo era a equidade no
tratamento dado a Roberta Close, mesmo se tratando de uma “mulher diferente”.
As tensões não param por aí. Naquele ano de 1984, Roberta Close foi convidada a
compor o júri do concurso Miss Brasil. Tal certame tem o objetivo de escolher a mulher mais
bela do país. A presença de Roberta Close em tal evento sugere muitos sentidos, o mais
importante deles, talvez, seja o reconhecimento dela como taste maker da beleza feminina.
Essa afirmação foi consubstanciada quando Sílvio Santos a convidou para o palco e disse que
ela poderia concorrer com qualquer das meninas no concurso.
Mas a chancela definitiva da ideia de que a “exceção virara regra”, como anunciado na
matéria de Ruy Castro, foi o boato que correu na imprensa de que Roberta Close e Erasmo
Carlos estariam tendo um romance. Este famoso cantor teria inclusive se inspirado em
Roberta Close para compor a música Close, da qual ela mesma participou do clipe (conforme
a Folha de S. Paulo de 29 mai. 1984). Era o golpe definitivo nos sentidos e valores atribuídas
a masculinidade no contexto brasileiro. O Tremendão, apelido que a Jovem Guarda consagrou
a Erasmo Carlos, constituía um exemplo pedagógico de homem a ser copiado. Tratava-se de
um ícone da masculinidade produzida pelos veículos de comunicação cuja masculinidade
hegemônica era nesse ato colocada à prova por uma suposta relação afetiva com Roberta
Close.
183

O ponto alto desse drama foi a suposta tentativa de suicídio de sua mulher, Narinha, na
noite de 04 de junho de 1984. A imprensa noticiou que Narinha teria cometido tal ato-limite
em função dos indícios da relação de Erasmo Carlos com Roberta Close. Erasmo Carlos, na
tentativa de afastar a hipótese de suicídio da mulher, deu uma entrevista nas dependências da
Polygram, na qual narrou os eventos que ocorreram naquela noite (segundo a Folha de S.
Paulo de 12 jun.1984). Conforme narrou, ele estava assistindo televisão quando ouviu o
disparo. Seguindo para o quarto, encontrou Narinha na cama ensanguentada. De acordo com
essa reportagem, o motivo de Erasmo Carlos ter mentido sobre a real causa da internação da
esposa no momento imediato ao acidente foi para preservar os familiares das afirmações
maliciosas acerca do ocorrido. Ele afirmara, nesse primeiro momento, que a esposa estava
internada para uma operação de peritonite aguda, o que talvez tenha aumentado as alegações
da imprensa de que a fonte de todo esse imbróglio era o suposto romance com Roberta Close.
Esses eventos causaram grande comoção popular dada a reputação de Erasmo Carlos
manchada pela suposta traição cometida com uma “não mulher”, associada à ameaça
simbólica representada por Roberta Close contra a ideia de família, expressa na imagem de
Narinha e seu drama particular. Tal enredo preencheu as páginas de diferentes veículos de
comunicação, produzindo imagens controversas das sexualidades não normativas, posto que,
ao mesmo tempo que oferecia uma visibilidade sem precedentes a esse tema, reforçava
antigos preconceitos contra o mesmo, como, por exemplo, a ideia de que tal prática
desestabilizaria a família tradicional brasileira.
A esfinge Roberta Close estava longe de ser decifrada, posto que implicava decifrar a
própria forma como a sociedade brasileira organizava suas convenções de gênero e
sexualidade. O caso Narinha ofereceu a oportunidade perfeita para restituir as fraturas que
Roberta Close provocou no processo de formação da masculinidade do brasileiro. O ato de
Narinha constituiu um sacrifício. Mas já era tarde para silenciar as vozes acerca da existência
dessas pessoas. Essa amplificação dos discursos relacionados às sexualidades não normativas
foi importante para situar um lugar de existência para essas sexualidades, ainda que estivesse
imerso neste conjunto de tensões. Outro evento daquela década de 1980 acentuaria os
discursos acerca das sexualidades não normativas na sociedade brasileira: a AIDS.
As primeiras informações sobre a AIDS no Brasil foram divulgadas por revistas e
jornais de grande circulação no Rio de Janeiro e São Paulo. A revista Veja, por exemplo, foi
um dos principais veículos a começar a abordar o aparecimento de uma doença considerada
restrita a um grupo específico de pessoas, os “homossexuais” masculinos. Duas
representações foram conjugadas nessas primeiras aparições públicas da AIDS no Brasil: 1) a
184

ideia de que a doença era um mal particular, restrito aos “homens homossexuais” e 2) a
percepção de que a doença teria surgido nos Estados Unidos, mais especificamente entre os
“homens homossexuais” norte-americanos. Até então, o espaço de confinamento da doença
permitiu certo conforto entre outros setores da sociedade, já que se tratava de uma doença que
somente podia acometer o “corpo homossexual”. Aqueles que adotavam um comportamento
heterossexual, mesmo que com várias parceiras, estavam seguros de que tal doença não os
afetaria, em função da particularidade da escolha do agente patogênico.
Várias hipóteses foram cogitadas acerca das origens desse “mal particular”. Todas,
sem exceção, davam como verdade absoluta a noção de que a AIDS era “coisa de
homossexual”. Logo, todos os veículos declaravam em uníssono a inseparável associação
entre AIDS e “homossexualidade”. Tal associação ficou ainda mais evidente quando da morte
do estilista mineiro Markito, reconhecido por vestir atrizes e mulheres do jet set nacional e
internacional. Este estilista foi uma grande vitrine da moda brasileira para o exterior, sendo
objeto de cobiça de mulheres aqui e lá fora em função de seus vestidos cobertos de paetês,
uma marca distintiva de suas roupas. O brilho de seus vestidos parecia ser feito
exclusivamente para as discotecas, então produtos básicos da cena disco da década de 1970.
Esta cena era intensamente conhecida por Markito, habitué das boates mais badaladas deste
cenário, como a Gallery e Hippopotamus, em São Paulo, e o Studio 54, em Nova York. Tal
reputação fez com que Markito ganhasse fama e riqueza, fixando residência em Nova York.
A morte de Markito não chegou a ocupar matérias muito longas nos veículos de
comunicação brasileiros, mas acredito que exerceram um significativo impacto na percepção
coletiva sobre essas primeiras visões sobre a AIDS. Até então nenhum nome nacional, muito
menos famoso, havia sido noticiado como vítima da doença. Markito foi certamente o
primeiro. O estilista estava morando em Nova York quando faleceu, em 04 de junho de 1983.
De forma geral, as informações sobre a morte do estilista reforçavam as duas noções que
supostamente caracterizavam a transmissão da doença. Markito era assumidamente
“homossexual” e habitué do nightworld nova-iorquino, incluindo o polêmico e igualmente
famoso Studio 54. Em matéria veiculada na Folha de S. Paulo de 07 de junho de 1983, os
antropólogos Peter Fry e Edward MacRae refletiam, a partir da morte de Markito, sobre os
rumos dos debates acerca da AIDS no Brasil. Para Peter Fry, apesar de nada ainda ter sido
provado no que dizia respeito à doença naquele momento, a morte de Markito trazia ao Brasil
a atualidade de um assunto que já vinha sendo abraçado pela opinião pública no exterior.
Ambos os antropólogos revelaram-se preocupados com a possibilidade desses debates serem
tragados por uma moral conservadora, o que não tardou a ocorrer.
185

A mesma Folha noticiava no dia seguinte, 08 de junho de 1983matéria alarmante,


agora não mais convocando antropólogos para expor suas opiniões, mas sim médicos ligados
a universidades paulistanas, como os especialistas Nelson Figueiredo Mendes e Ricardo
Veronesi. Ambos reforçavam pânicos em relação aos “homens homossexuais” norte-
americanos e sobre aqueles que permaneceram durante um período de tempo nos Estados
Unidos, tal como Markito (Folha de S. Paulo, 08 jun. 1983). Os médicos exaltavam para uma
suposta predileção do vírus pelos homens, sobretudo os “homossexuais”, em função daquilo
que chamavam de “promiscuidade sexual” marcante nesse grupo. O esquema perceptivo
sobre a AIDS estava plenamente formado a esta altura graças à agência desses especialistas.
Como temiam os antropólogos, a moral brasileira só arranhou a discussão,
reproduzindo as noções norte-americanas sobre a doença assentadas nas noções de “peste
gay”, “síndrome gay” ou “doença dos homossexuais”. A morte de Markito serviu de exemplo
inconteste para esses médicos de que a doença só se desenvolvia combinando dois aspectos
biossocioestruturantes: um corpo e um contexto específicos. Esse corpo era o dos
“homossexuais” masculinos, cujo ânus, analisavam os médicos, não possuía anticorpos para
barrar o vírus adquirido em uma rotina de intensa atividade sexual (Folha de S. Paulo, 08 de
junho de 1983); e o contexto era o seu habitat, portanto os bathroons, os sexyclubs e os
nigthclubs – instituições consideradas de frequência “homossexual”.
Essa associação ganhou eco em todos os veículos de comunicação, provocando uma
verdadeira devassa na vida de pessoas publicamente reconhecidas como não heterossexuais,
como as “travestis”. Como exemplo, O Pasquim de número 371, de 30 de junho a 06 de julho
de 1983, no qual Jane Di Castro é figura de capa da matéria Como se tornar um travesti
super-star. A informação do pequeno ratinho Sig, símbolo do jornal, alerta a “verdade” sobre
ela: “Sem AIDS!”. Nas páginas dedicadas a entrevista com Jane, a AIDS é retratada com o
“câncer gay”, sendo associada aos “homens homossexuais” norte-americanos. Para Jane, a
doença nada mais era do que um retorno à repressão tal qual vivenciada nos anos anteriores a
década de 1980.
186

Imagem 26 – Jane Di Castro para O Pasquim, 1983.


Fonte: acervo pessoal de Jane Di Castro.

A segurança da sociedade estava garantida, pois o vírus não ultrapassaria a fronteira


do “corpo homossexual”, logo, a fronteira moral entre uma “boa” e uma “má sexualidade”.
Tal afirmação foi abruptamente desconstruída com a notícia da morte de Rock Hudson, o ator
hollywoodiano, proprietário de uma masculinidade supostamente imune a qualquer traço de
“homossexualidade”, logo, à AIDS. O impacto da morte de Hudson foi avassalador para o
conjunto da sociedade, uma vez que, com ele, as informações sobre a AIDS se avolumaram
ainda mais, provocando quase sempre alarde entre a população.
A invenção de Rock Hudson como astro de Hollywood foi, desde suas primeiras
aparições no cinema, associada a uma imagem hipermasculinizada. Seu próprio nome foi
inventado para conseguir captar em apenas uma equação de palavras as sensações que sua
persona midiática deveria evocar: Rock, de Rocha de Gibraltar, e Hudson, do Rio Hudson
(PEOPLE, 12 ago. 1985). Assim evidenciavam em um só corpo a dureza de uma rocha e a
suavidade de um rio. Apesar de não ser celebrado como um ator de grandes potencialidades
dramáticas, como afirmara Ruy Castro na ocasião de sua morte, na Folha de S. Paulo de 03
de outubro de 1985, o ator foi adotado pela Universal como um exemplo bem-acabado de
masculinidade a ser comercializado nas telas do cinema norte-americano. Tal imagem foi
instituída com certa facilidade, em função da performance exibida pelo ator. Com uma altura
de 1,93 cm distribuídos em um corpo torneado, Rock Hudson conseguiu administrar de forma
187

bem-sucedida na tela a imagem que Hollywood propunha tornar “espetáculo de consumo”: o


straight-man.
Essa gestão, contudo, nem sempre era refletida em sua vida particular. Os rumores
sobre a suposta “homossexualidade” de Rock Hudson já vinham desde a década de 1950,
quando a Universal, em busca de uma solução para estas especulações, estimulou o seu
casamento com Phyllis Gates, a secretária de seu empresário, que durou menos de dois anos
(Folha de S. Paulo, 03 out. 1985). Logo Rock Hudson retornaria ao seu ritmo de vida, do qual
casamentos e relações afetivas com mulheres não faziam parte. Apesar das especulações
acerca da sua sexualidade, Rock Hudson conseguiu manter uma reputação ilibada junto à
Universal até aquele ano de 1985, quando adoeceu em Paris e foi internado. Seu estado de
saúde era tão delicado que o ator teve que retornar aos Estados Unidos fretando um voo
particular, levando consigo apenas seus médicos (PEOPLE, 1985). Rock Hudson morreu em
sua casa em Beverly Hills na manhã de 02 de outubro de 1985, noticiavam os veículos de
comunicação.
Logo após o anúncio de sua morte, uma verdadeira devassa foi operada na vida do
ator, buscando os reais motivos que levaram Rock Hudson a morrer em consequência daquele
vírus considerado quase inteiramente circunscrito aos “homens homossexuais”. A People,
importante revista norte-americana, levou às bancas em 12 de agosto de 1985 uma edição que
ostentava os seguintes dizeres: A outra vida de Rock Hudson, em uma flagrante tentativa de
chamar atenção para a “verdade” de sua doença, ou seja, a sua “homossexualidade”. Tais
manchetes pareciam refletir o estado de espírito do cidadão norte-americano, perplexo pelas
informações de que o ícone supostamente incólume a algo insidioso pudesse ter morrido em
decorrência do mesmo.
O anúncio público da doença e morte de Rock Hudson deflagrou ainda uma guerra em
Hollywood cujo alvo principal era o elemento básico do amor romântico imortalizado nos
filmes do cinema norte-americano: o beijo. De acordo com a People de 23 de dezembro de
1985, que oferecia uma visão panorâmica dos Estados Unidos após a morte de Rock Hudson,
o beijo havia se constituído em um perigo para a saúde entre os artistas, principalmente
porque as pesquisas científicas revelaram que o vírus causador da AIDS também estava
presente na saliva humana. O fio condutor de tal dilema foram os beijos que Rock Hudson
deu na atriz Linda Evans durante a filmagem da soap opera Dynasty. Os debates em torno do
beijo ocuparam a atenção dos sindicatos de atores e também de produtores, os quais
enfatizavam os perigos a que as atrizes estavam expostas, uma vez que era sabido que muitos
lover-boys do cinema eram “homossexuais” em suas vidas particulares. Os inflamados
188

debates estabelecidos pelas instituições do backstage do cinema produzido por Hollywood


acabaram por assumir abertamente a existência das sexualidades não normativas entre os seus
mais celebrados artistas, sobretudo entre aqueles que ofereciam modelos de masculinidade a
serem seguidos.
A morte de Rock Hudson estava, com um golpe único, evidenciando a artificialidade
do sistema de produção de modelos hollywoodiano, o star system. Este sistema ele conhecia
muito bem, informava a People, já que ao longo de sua carreira ele conseguiu de forma
exitosa separar sua vida pública da vida privada. A fronteira rígida entre essas duas dimensões
foi dramatizada pelo ator ao longo de toda a sua vida, sendo rompida somente em episódios
que antecederam a sua morte.
Contudo, a morte de Rock Hudson também produziu outros planos de discussão. O
mesmo número da revista People de dezembro de 1985 chamava a atenção para a mudança na
percepção da opinião pública norte-americana acerca da doença. Vários artistas iniciaram uma
peregrinação para coletar donativos para a pesquisa e tratamento da AIDS nos Estados
Unidos. A atriz Elizabeth Taylor foi uma das pioneiras nesse processo. Tendo atuado com
Rock Hudson, ela sensibilizou outros artistas a usarem a sua imagem para ajudar a reunir
dinheiro para produzir ações contra o avanço da doença. De acordo com matéria, em 1985,
ano em que a doença e morte do ator foram anunciados, as contribuições privadas com o
objetivo de apoiar a investigação científica e cuidar das vítimas da AIDS dobraram, se
comparadas ao ano de 1984. A construção da solidariedade não ficou circunscrita a apoios
individuais. O congresso norte-americano destinou, naquele ano de 1985, um orçamento
significativo para desenvolver uma cura.
Esse conjunto de ações coletivas estava associado ao impacto que a morte de Rock
Hudson provocou na sociedade americana, mas não ficou circunscrito somente àquela
sociedade. Aqui no Brasil, a opinião pública norte-americana também modificou o campo de
percepções acerca da doença, afinal, a morte de Rock Hudson não havia apenas sido um
evento norte-americano, mas teria mostrado a artificialidade de um ícone constitutivo da
normalidade heterossexual – o straight-man ou galã dos filmes de Hollywood. Esse
personagem que povoa a memória coletiva, responsável que é por uma pedagogia da
heterossexualidade, havia sofrido uma derrota incalculável. O martírio de Rock Hudson
revelou que a AIDS, como mostrou a People, de 23 de dezembro de 1985, era mais próxima
do que de imediato se imaginava. Enquanto o número de vítimas aumentava entre os “homens
homossexuais”, mantinha-se a percepção de que era um mal – consequência de um pecado
consubstanciado em doença – afeto somente àqueles que comungavam de uma prática sexual
189

considerada degradante. Tal percepção impedia que os governos, incluindo o brasileiro,


destinassem recursos para cuidar das vítimas da doença. No Brasil, mesmo quando o Estado
buscou fazer algo contra a doença tinha que lidar com críticas de setores da sociedade
preocupados com os chamados assuntos prioritários, como a pobreza, considerados mais
urgentes que o “mal que atacava os homossexuais”. Jece Valadão, um dos ícones da
masculinidade brasileira, pronunciou-se abertamente contra a destinação de recursos públicos
para o cuidado com a doença (TREVISAN, 2000).
A morte de Markito conferiu materialidade à AIDS, que até então não tinha atingido
nenhuma figura conhecida por um público maior. Simultaneamente, tal morte confirmava as
percepções correntes sobre a doença, posto que se tratava de um homem reconhecido por suas
perambulações nos espaços de frequência “homossexual” paulistanos e nova-iorquinos, como
bem fez questão de lembrar a imprensa. Mas Rock Hudson era próximo demais de todos, era
um homem que habitava os lares, entrando sala adentro de milhares de famílias tradicionais
que consumiam sua masculinidade. Rock Hudson materializava em sua performance um
membro da família – um pai, um namorado, um amigo –, que se via naquele momento
morrendo, em decorrência da atuação de uma doença tão destrutiva do ponto de vista moral
quanto o era para o corpo na acepção dos médicos. O destaque dado à sua morte havia
definitivamente confirmado que não somente a AIDS poderia afetar qualquer um, mas que a
“homossexualidade” não poderia ser mais reduzida a um não discurso. A “homossexualidade”
era, dessa forma, colocada definitivamente na “ordem do discurso”.
Este capítulo analisou como os homens não conformes às convenções relacionadas a
gênero e sexualidade conquistaram o feito de colocar as sexualidades não normativas na
“ordem do discurso”, processo que só ficou evidente para os “empresários morais” quando a
visibilidade desses seres ultrapassou o esperado, assediando a televisão, veículo de
comunicação com alcance quase incalculável. Na década de 1980, dois eventos aprofundaram
a exibição das sexualidades não normativas, causando irrupções definitivas na visibilidade
desse grupo: a erotização do corpo de Roberta Close e a construção da AIDS como uma
“doença de homossexuais” atualizou a “perigosa” relação dessas pessoas com o sexo dito não
natural. Ficou evidente que a sexualidade era um espaço de exercício de poder sobre o qual se
movimentam diferentes atores sociais, como o Estado, a imprensa, a família, etc.
Considerando, porém, a máxima de Foucault (1988), “onde há poder, há resistência”, esses
dois eventos revelaram possibilidades antes inimagináveis para a construção das sexualidades
não normativas como “lugar social” no Brasil. Uma dessas possibilidades foi a visibilidade
sem precedentes que as sexualidade não normativas, sobretudo a “homossexualidade”
190

masculina, tiveram no espaço público, a qual seria convertida, na década de 1990, em ações
políticas concretas. O surgimento do movimento homossexual talvez seja o efeito mais
substancial dessas ações.
191

CAPÍTULO IV

Imaginando comunidades, parodiando convenções: diva, imaginação, resistência e


agenciamentos

Camp is to gay what soul is to black.


Dennis Altman

A possibilidade de existir foi, certamente, uma das lutas mais importantes travadas por
aqueles indivíduos que, assim como Divina Valéria, Marquesa, Rogéria e outras dessa
geração, tiveram suas trajetórias de vida marcadas pelos efeitos da diferença em relação à
norma. Essa tarefa contou com estratégias simbólicas sem as quais essa possibilidade não se
efetivaria. A criatividade, a invenção, a imaginação e a ressignificação foram aliadas neste
processo. Tais elementos remetem ao bricoleur levi-straussiano. Ao definir a bricolagem
como um mecanismo através do qual a sociedade se reinventa com elementos que já existem,
Lévi-Strauss (2005) está chamando a atenção para este “lugar de criação” presente em todo o
pensamento humano. Para existir, as pessoas marcadas pelo “destino da homossexualidade”,
nos termos de Pollack (1987), foram levadas a criar um outro universo de signos, um outro
sistema de comunicação, um “segundo mundo”, nos termos de Bakhtin (1993). A reinvenção
de universos simbólicos por essas pessoas se assentou em dois itens centrais da “cultura do
entretenimento” (LEITE JÚNIOR, 2010), a ideia de diva e o glamour.
Este capítulo é um esforço teórico cujo foco recai sobre esses processos de reinvenção
e subjetivação. Sugiro que a importância da ideia de diva está relacionada a um contexto de
silenciamento no qual a possibilidade de existir fora da norma heterossexual era vivenciada
por estratégias de clandestinidade. Argumento que as divas – materializadas nas atrizes do
cinema, cantoras do rádio e nas mulheres famosas do jet set – foram responsáveis por
construir um self e, ao mesmo tempo, um “espírito de solidariedade” entre homens que, por
suas preferências sexuais, possuíam experiências de vida atomizadas. Simultaneamente, elas
permitiam que esses indivíduos habitassem o mundo incorporando normas de gênero e classe
social vinculadas a noção de glamour. Tal como um totem, as divas constituíam uma
“comunidade imaginada”, que agregava homens que as idolatravam, mas que,
simultaneamente, se buscavam e se reconheciam pelas semelhanças que nutriam. Pretendo
ainda historicizar essa categoria, a qual teria relação com a noção de “mulher fatal”, figura
192

constante na literatura, no teatro e no cinema e materializada nas cocottes e vedetes sobre as


quais recai a acusação de perigosas. A diva, por fim, contribuiu para a reinvenção de
performances, práticas e significados que consolidaram uma relação das sexualidades não
normativas com aquilo que a tradição de estudos sobre gays e lésbicas norte-americanos vem
chamando de camp. Ambas, diva e camp, possuem um efeito comum – provocar existências –
em um processo que este capítulo busca investigar. Por fim, encerro este capítulo
evidenciando a forma como a diva foi convertida em performance, não apenas pela agência
das “travestis” que foram para a Europa, mas também por aqueles homens que por aqui
ficaram e consolidaram uma sociabilidade manifestadamente “bichal”: as turmas.

4.1 – Uma arqueologia da diva: o mito da “mulher fatal”

Discursos sobre a “mulher fatal” estão presentes em diferentes culturas. Esses


discursos, de forma geral, conjugam imagens de uma mulher devoradora de homens, dotada
de uma sensualidade aflorada e de um comportamento sádico não compatível com as
convenções sociais relacionadas a gênero e sexualidade, um feminino abjeto. Buscar
reconstruir a historicidade dessa personagem implica reconhecer a sua dimensão dispersiva,
de transbordamento de sentidos. A noção de arqueologia, consagrada por Foucault (1995),
não é adotada aqui por acaso. É através dela que busco reconhecer uma “regularidade na
dispersão”, um “acaso nos começos”, uma irrupção com a qual os discursos sobre essa
construção do feminino foram sedimentando significados sobre a noção de diva central para
agregar “formas de vida” relacionadas às sexualidades não normativas. Esse recurso pretende
mostrar que a diva é o resultado de uma constelação de enunciados acerca do feminino
relacionados às suas condições de produção.
A construção dessas imagens acerca do feminino instituiu, nos termos de Douglas
(1976), fronteiras simbólicas responsáveis por demarcar espaços estanques relacionados ao
masculino e ao feminino. Este último foi assimilado ao perigo, inclusive de contaminação e
morte. A Bíblia oferece valiosos exemplos dessa presença nefasta das mulheres corruptoras,
tais como Eva, Dalila e a famosa Salomé. Ambas estão associadas à desestabilização das
normas, inclusive aquelas instituídas por Deus, como é o caso de Eva. Traição e vingança são
sentimentos que também marcam a aparição dessas personagens nesse livro. O conjunto
193

desses sentimentos negativos, ou mesmo antissociais, é responsável pela produção de


representações sobre o feminino associadas à abjeção.
As imagens bíblicas do feminino no registro da abjeção foi central em nosso processo
civilizador. Mas a “mulher fatal” não se expressou somente nas narrativas bíblicas. Ela se
consolida como mitologia entre diferentes culturas no tempo e no espaço, tendo em vista as
distintas lendas que narram a presença de mulheres guerreiras, tais como as amazonas na
Grécia Antiga, ou entre algumas tribos ameríndias; ou as Candaces, rainhas guerreiras que
exerciam o poder no reino de Meroé, região sul do Egito Antigo. A própria construção
histórica e literária de Cleópatra, rainha do Egito, evoca essas representações que associam o
feminino à sedução e à usurpação do poder masculino. Todos esses registros relacionam a
presença dessas mulheres ao exercício do poder e à evidente inversão das engrenagens que
regem a sociedade, as quais preveem a coesão social a partir de um desequilíbrio de poder em
benefício do masculino.
No Medievo, em função da alta ingerência da Igreja Católica na vida social e na
produção das formas de pensamento e sensibilidades, as “mulheres fatais” são assimiladas às
bruxas. Esses personagens conformam um elemento importante na construção de mitologias
associadas ao abjeto feminino e adotadas, inclusive, para o processo pedagógico das crianças,
tal como registrado nos contos dos Irmãos Grimm – constitutivos do folclore alemão. O que
essas narrativas têm em comum é a percepção do empoderamento feminino como algo
potencialmente abjeto, sendo o erotismo um recurso quase sempre adotado para fazer valer
esse poder. A associação entre erotismo, insurgência e perigo são conjugados na “mulher
fatal”.
No contexto colonial, os mitos e lendas acerca da “mulher fatal” converteram-se em
narrativas sobre o “outro”. As imagens do feminino como abjeto proporcionaram acentuar o
corte provocado pelo contato cultural, assimilando as culturas não europeias ao feminino. Em
outras palavras, o exótico convertera-se em feminino. A “feminilização do exótico” foi um
dos recursos mais bem adotados na construção de narrativas sobre o “outro”, os quais foram
quase sempre assimilados a uma natureza perversa, posto que não celebravam das mesmas
convenções sociais, portanto identificadas ao feminino – esses seres perigosos cuja ligação
com a natureza desestabilizava os feitos da civilização.
Tais imagens são recorrentes na literatura de viagem, entre os cronistas e mesmo entre
os modernos antropólogos. Nessa literatura pode-se perceber a produção do feminino como
constitutivo do exótico. Said (2007), em seu clássico Orientalismo,abordou como a noção de
Oriente foi instituída por oposição à ideia de Ocidente. Um das implicações desse processo foi
194

a feminização do Oriente, dotando as mulheres que lá viviam de representações associadas a


uma sensualidade e sexualidade afloradas, ou seja, não compatível às convenções sociais
adotadas na Europa. O Oriente produzido pelos discursos dos chamados ocidentais é
assimilado por uma percepção do feminino como, simultaneamente, sedutor e perigoso.
A obra de Gilberto Freyre, sobretudo seu clássico Casa grande e senzala, também
destaca essa “feminilização do exótico” relacionado ao encontro cultural nas terras brasileiras
pós-descobrimento. O autor chama atenção para a transposição de sentidos entre as
representações da “moura encantada”, resultado dos contatos entre os ibéricos e os sarracenos,
e a indígena de terras brasileiras. Ambas conjugavam imagens de “um tipo delicioso de
mulher morena e olhos pretos, envolta em misticismo sexual” (FREYRE, 2002, p.38). Figura
considerada perigosa, mas, ao mesmo tempo, fundamental para a empresa colonizadora dada
a sua sexualidade descontrolada que, associada à plasticidade sexual do colonizador
português, possibilitou povoar tão vastas terras. As representações relacionadas à “moura
encantada” sugerem um feminino exótico, porque sensual e perigoso. No processo
colonizador construído por Freyre (2002), a erotização foi um recurso adotado não somente
para dotar as mulheres indígenas de qualidades excepcionalmente sensuais, mas também as
terras colonizadas foram assimiladas a esse feminino.
O conjunto dessas imagens foi objeto de ansiedades de uma sociedade marcada por
uma moral vitoriana, mas, ao mesmo tempo, serviu de inspiração para artistas de diferentes
campos de criação produzirem personagens que se identificavam com esse mito. Na área
artística, essa personagem ganha uma dimensão ainda mais marcada pela combinação de
sadismo e sedução. Na literatura, no cinema e no teatro, a “mulher fatal” é uma personagem
que assombra a trama dificultando a vida dos heróis, mas também acentua a atmosfera de
desejo e atração. A literatura, principalmente, buscou nesta personagem inspiração para
modelar personagens que retratariam a difícil tensão entre os vícios e a virtude.
A “mulher fatal” é construída em oposição à “mulher romântica”, cuja vida é marcada
por amores impossíveis e episódios dramáticos. Tal tensão entre esses dois tipos é celebrada
de forma bem-acabada na obra do Marquês de Sade através de suas personagens, as irmãs
Justine e Juliette. A Justine de Sade encarna os ideais da virtude que somente são possíveis,
na obra sadiana, em função dos vícios que a atormentam. Os vícios e a crueldade,
materializados em sua irmã Juliette, são constitutivos da virtude que emana de Justine – a qual
é sempre desestabilizada por episódios que marcam de forma negativa a sua trajetória. A
tensão e simultânea reciprocidade entre as duas irmãs oferecem a simetria perfeita para a
195

construção do universo de Sade, marcado por perversidades e deboches acerca das


convenções sociais relacionadas à sexualidade.
Assim como a Juliette de Sade é particularizada por experiências de abjeção,
mostrando um evidente desdém pelas instituições mais consolidadas de sua época, tais como a
Igreja Católica, as narrativas envilecimento sobre o feminino são plenas de imagens que
revelam mulheres perigosas, portadoras do mal e estimuladoras do pecado. Essa mulher que
traz consigo o perigo também serviu de inspiração a Oscar Wilde em Salomé. Nesse texto
teatral, Wilde reconstrói o drama bíblico de Salomé, mulher misteriosa e de excepcional
beleza, cujo desejo era beijar os lábios de Iokanaan (João Batista). A Salomé construída por
Wilde é extremamente sensual, cujo corpo e a dança são os condutores de um erotismo fatal.
A concretização do seu desejo combina prazer e morte, uma vez que só se realiza através da
decapitação de Iokanaan, seu pedido ao tetrarca após ter lhe oferecido uma dança inebriante
em um banquete no palácio. Com sua cabeça nas mãos Salomé finaliza a sua vontade,
beijando-lhe os lábios frios e sem vida, causando repulsa em Herodes Antipas, o tetrarca, que
manda executá-la. Sugiro que a Salomé de Wilde, assim como em outros momentos de sua
obra, cumpria o papel de libertá-lo das convenções que literalmente o aprisionaram em função
de sua predileção por pessoas do mesmo sexo80. Wilde expressava em Salomé as
transformações ocorridas no que se relaciona à mulher na sociedade vitoriana, as quais já
estavam em curso desde a Revolução Francesa. Salomé institui uma nova mulher, que no
texto de Wilde implica uma ruptura com os rígidos padrões morais da época.
A noção de “mulher fatal” é um tema com o qual a diva do século XX se institui e se
modela. As Juliettes e Salomés ganharam, por intervenção do mercado de bens culturais, uma
existência renovada. Certamente, foram personagens como estas que tornaram possível a
construção da noção de diva, tal como é concebida ainda hoje. A “mulher fatal” sai das
páginas dos livros e ganha espaço em outras “tecnologias do olho” (BRAH, 2006), como o
cinema, que conjugando sedução e perigo produziram as divas consumidas como espetáculo.
Na década de 1940, o film noir, expressão francesa adotada para descrever um gênero
de filmes policiais em estética preto e branco que fizeram muito sucesso nos Estados Unidos,
consolidaram a “mulher fatal” como personagem fundamental da indústria cinematográfica.
Corpo, performance, erotismo e perigo eram características que se fundiam nessa personagem
para qual o filme Gilda, representada pela atriz norte-americana Rita Hayworth, em 1946, foi
peça essencial. O longa narra a história de um triângulo amoroso vivenciado pelos

80
Coincidentemente, a tradução brasileira de Salomé foi feita por João do Rio, nosso cronista e dândi mais
famoso, reputado como “pederasta” assumido por diferentes documentos históricos.
196

personagens Johnny Farrell, Ballin Mundson e Gilda. Ambientada em Buenos Aires, o fio
condutor da história é a relação de amizade entre Johnny, um vigarista jogador de cartas, e
Ballin, dono de um famoso clube noturno na capital portenha, o qual mantém um cassino
clandestino. Ao salvar a vida de Johnny, os dois se tornam grandes amigos. Ballin celebra esta
amizade convidando Johnny para se tornar o gerente do seu negócio. A relação se
desestabiliza quando Ballin regressa de uma viagem casado com Gilda, com quem Johnny
teve um romance no passado. A partir de então, Gilda dedica sua vida a destruir aquela
amizade usando subterfúgios que a inscreveram na memória de gerações.
Gilda materializa os ideais mais bem-acabados da “mulher fatal”, ou, em expressão
consagrada pelo cinema, femme fatale. Ela manifesta em sua performance, capaz de erotizar
tudo que toca, o triunfo do mal. De acordo com Castro (2006), Rita Hayworth foi a primeira
atriz a ser classificada como “superstar” pelo crítico do New York Times, Bosley Crowther.

Imagem 27 – Cartaz promocional do filme


Gilda, Columbia Pictures, 1946.

Todo esse repertório de imagens é materializado no slogan do filme, como pode ser
observado na imagem acima, “Nunca houve uma mulher como Gilda!”, o qual demarca o
lugar de destaque exercido por essa personagem na construção de uma memória coletiva
197

compartilhada por mulheres e homens de várias gerações, como analisa Castro (2006) no
trecho que segue.
De 1946 pra cá, todas as vezes em que Gilda foi exibido em cinema ou TV, legiões
de mulheres, ao fim do filme, juraram não descansar enquanto não se parecessem
com Gilda. Legiões de rapazes também. Note bem: os representantes de uma e de
outra categoria não queriam parecer-se com Rita Hayworth – mas com a Gilda de
Rita Hayworth. E não se tratava apenas de imitar o seu jeito quase imoral de jogar o
cabelo, de transformar inocentes saboneteiras numa tentação erótica ou de fumar
como se cada lenta baforada quisesse dizer alguma coisa. Era algo mais profundo e
complexo: tentar apossar-se do seu fogo gelado, só se pode chamá-lo assim – a
capacidade de inflamar uma paixão e, ao mesmo tempo, esnobar o ser inflamado a
ponto de reduzi-lo à servidão total, ao nada. Não devia ser fácil. Tanto que, em
nenhum outro filme, antes ou depois, e muito menos na vida real, nem a própria atriz
conseguiu. Nem é preciso repetir a sua triste e batida frase, de que os homens
dormiam com Gilda e acordavam com ela, Rita (CASTRO, 2006, p. 22).

Castro (2006) enfatiza o quanto a performance de Gilda foi responsável por modelar
trajetórias de vida, muitas das quais de “jovens rapazes”. Gilda dilatou essas trajetórias, sendo
consumida por quem recriava sua própria performance a partir da incorporação dos traços
desta personagens a sua personalidade. Essa personagem foi dramatizada e ritualizada por
milhares de mulheres e homens cujo desejo era insurgir contra as convenções sociais como
Gilda o fez – e fazia sempre que era vista e revista por seus admiradores.
O film noir foi estruturante para a construção desse universo do qual Gilda foi um
expoente. Mas esta linguagem também aprofundou a noção de “mulher fatal” acentuando a
relação entre erotismo e perigo através da invenção de outros tipos cinematográficos, tais
como a “loura fatal”, cuja melhor versão seria conjugada não mais em uma personagem, mas
na atriz Marilyn Monroe. O desenvolvimento do film noir se deu para fora de Hollywood,
tendo em vista que as produções organizadas sobre essa etiqueta foram feitas em um contexto
de perseguição e censura no campo cultural norte-americano atribuído ao macarthismo. Tais
produções contrastavam com aquelas de Hollywood por apresentarem personagens
moralmente reprováveis, como a femme fatale, e enredos marcados por um senso de
fatalismo, obsessões, vinganças e corrupção, enquanto em Hollywood eram privilegiados os
filmes com mensagens consideradas mais positivas.
Ainda que a Gilda de Rita Hayworth tenha espetacularizado a “mulher fatal” a um
público incalculável, sugiro que foi Marilyn Monroe que, ligada a Hollywood, consolidou na
cultura popular um imaginário acerca dessa personagem, ainda que seus maiores sucessos não
se encaixem nas características do film noir. Argumento que a “mulher fatal” converteu-se em
diva com Marilyn Monroe, sobretudo em sua histórica performance em Gentlemen Prefer
Blondes (1953), cantando e dançando o clássico Diamonds Are Girl’s Best Friend. A
198

performance dessa atriz celebrava o universo moral dos cabarés e cafés dançantes, espaço
social das cocottes, vedetes, coristas e atrizes, personagens que inauguram a vida noturna em
fins do século XIX e, o que era considerado pior, tinham o poder de retirar da ficção as
Juliettes e Salomés e materializá-las na vida cotidiana. O que há de comum no conjunto
dessas mulheres é o sentimento de não conformidade com a situação de domesticidade a que
são submetidas.
A presença da “mulher fatal” em narrativas, lendas e mitologias constitui um tema
simbólico importante em diferentes sociedades, mas foi somente nas nossas sociedades que
esta personagem, por mediação do mercado de bens culturais, converteu-se em emblema
agregador sobre a qual recaem sentimentos de idolatria e de pertencimento. A combinação da
diva com as imagens da “mulher fatal” serviu muito mais do que produzir um personagem
consumido pela literatura, pelo teatro e pelo cinema, ela converteu-se em um emblema através
do qual mulheres e homens, sobretudo aqueles fora da norma heterossexual, puderam
construir reflexividade sobre si mesmos. Desta forma, compreender a diva como um símbolo
é um exercício importante para entender aspectos reveladores da forma como indivíduos fora
da norma heterossexual construíram para si todo um sistema simbólico capaz de ressignificar
sua experiência silenciada.

4.2 – As divas como totens

A noção de diva se constitui em um emblema simbólico cuja matriz de significados se


encontra na noção de “mulher fatal”. Essas imagens foram centrais para estruturar
performances, sensibilidades e, mais do que isto, instituir pautas de sociabilidade entre
pessoas que passaram a se relacionar a partir do efeito agregador que as divas produziam.
Como afirmou Castro (2006) em sua análise sobre o filme Gilda, essa personagem foi
procurada por mulheres e homens nas partes mais encobertas de suas personalidades. Todos
queriam ser Gilda, todos queiram se reconhecer como ela. Esta atração e afetividade,
responsáveis por modelar sensibilidades e performances e, principalmente, instituir
sociabilidades entre grupos silenciados, foi fundamental para produzir insurgências, instituir
mudanças nas sexualidades não normativas como “lugar social”.
Dada essa importância, busco compreender como a idolatria às divas foi um
componente central na trajetória de vida de indivíduos como as “travestis profissionais” ou os
199

homens da Turma OK, para quem essas mulheres possibilitaram a construção de um “mundo
de ideias”, segundo Bakhtin (1993), capaz de retirá-los de uma vida marcada pelo
silenciamento para outra onde eram ressignificadas a partir da incorporação de marcadores
sociais como classe social e gênero. A diva pôde fazer com que esses indivíduos habitassem a
norma (MAHMOOD, 2006), tornando o glamour uma forma de agência, através da qual
negociavam sua existência dentro das convenções sociais vigentes.
Toda uma geração de pessoas que viveram nos marcos daquilo que Meccia (2011)
chama de “regime de homossexualidade” teve suas vidas marcadas por experiências de vida
para as quais a diva teve importância fundamental. Foi através das divas que indivíduos cuja
sexualidade era vivenciada na chave do segredo podiam viver “por procuração”, segundo
expressão de Eribon (2008), outras vidas, geralmente vistas como mais glamourosas e tecidas
em enredos menos hostis.
Na trajetória de vida de Divina Valéria, as grandes divas do rádio ofereciam o modelo
de estar no mundo a ser seguido. Foi através da frequência assídua aos bastidores da Rádio
Nacional, atraída pela imagem de Emilinha Borba, que o rapaz Valter adquiriu o capital
simbólico indispensável para a materialização de Divina Valéria. Para Rogéria, foi o cinema
que ajudou a forjar esse imaginário sobre o qual a sua própria trajetória foi construída. Para
ela, a feminilidade fatal de Marilyn Monroe foi um elemento importante para a construção de
Rogéria. A atriz norte-americana apareceu em sua vida quando ela ainda era muito jovem.
Segundo ela, em entrevista para o Portal IG, em 23 de outubro de 2012:
Eu tinha 12 anos quando botei um maiô catalina e uma saia amarela, eu não tinha
peruca coloquei um chapeuzinho. Minha tia viu, foi contar para minha mãe, ela me
deu um soco, falou “mas porque você deixou sua tia ver isso? Vai para o cinema!” O
que eu fui ver? How to marry a millionaire81, entrei duas horas saí meia-noite. Se já
era viado, fiquei mais ainda e feliz da vida porque Marilyn [Monroe] eu considero a
mulher mais feminina do cinema, fêmea! (Rogéria)

Não somente Rogéria e Divina Valéria, personagens emblemáticos dessa geração,


encontraram nesses símbolos do mercado de bens culturais os elementos para construir suas
carreiras artísticas e trajetórias de vida. Quando pesquisei na Turma OK, percebi que muitos
homens que frequentavam aquele espaço tinham sempre uma atriz ou cantora como objeto de
veneração. Esses homens incorporavam essas divas para si, promovendo aproximações
possíveis com a sua performance e história de vida. Ao que parece, essas divas exerciam o
papel semelhante àquele dos santos padroeiros, ao mesmo tempo íntimos e distantes, aos

81
Traduzido por Como agarrar um milionário. Trata-se de um filme de 1953, estrelado por Marilyn Monroe,
Betty Grable e Lauren Bacall.
200

quais são atribuídos poderes especiais e uma intimidade devocional. Muitos shows da Turma
OK eram dedicados a homenagear essas mulheres – os projetos82 especiais da casa. É possível
sugerir que era através dessas divas que esses homens recolhiam fragmentos de outras vidas,
em um processo pedagógico que ao mesmo tempo em que produzia sentidos sobre as
sexualidades não normativas construía os códigos simbólicos necessários para a comunicação
desse grupo. Mas afinal de contas, porque essas cantoras, atrizes e, até mesmo socialites, eram
convertidas em divas?
Em sua pesquisa sobre a relação entre fãs “homossexuais” e cantoras da MPB, Noleto
(2012) chegou à conclusão de que a influência dessas mulheres sobre esse público era bem
maior do que apenas a de contemplação passiva. As demonstrações de afeto a essas cantoras
iam muito além de ouvir e cantar suas músicas, conhecer sua biografia e discografia e
acompanhar os seus shows. Para o autor,
Essas demonstrações se refletiam em suas escolhas cotidianas, nas palavras que
escolhiam para discorrer sobre algum assunto, nas suas formas de perceber o mundo
ao seu redor. Todos eles apresentaram uma consciência muito clara acerca do grau
de inserção e de relevância dessas cantoras em suas vidas, mostrando que as utilizam
em suas rotinas como uma forma de compreenderem a si mesmos (NOLETO, 2012,
p. 68).

As análises de Noleto (2012) sugerem um tipo de relação de contiguidade – poderia


arriscar uma forma de possessão – entre essas cantoras e os fãs “homossexuais” que nutrem
sentimentos por elas. Esse processo envolve um complexo intercâmbio de vidas, muito
semelhante àquele observado por Maggie (2001) em seu estudo em um terreiro de umbanda
da Zona Norte do Rio de Janeiro. Para essa autora, o fenômeno da possessão estreitaria os
laços entre indivíduo e sociedade, posto que, ao mesmo tempo em que é um processo
socialmente aceito no qual as entidades integram um dado sistema de crenças, ele é ainda uma
“individualização do coletivo”, pois cada indivíduo possuído confere uma interpretação
pessoal ao conjunto das entidades que o tomam como “cavalo”, uma identidade. Essa
identidade é construída na estreita ou mesmo íntima relação entre o “cavalo” (fiéis) e a
“entidade” (deuses). Como afirma a autora, “o médium é uma pessoa que se transforma em
deus, mas esse deus é exclusivamente o seu deus” (MAGGIE, 2001, p. 84), assim como a
diva interfere diretamente na forma como esses que a idolatram elaboram suas vidas.
Essa relação de contato entre homens e deuses é análoga àquela entre cantoras e seus
fãs. A interação entre esses dois entes produz algo diferente: uma identidade singular,
organizada em torno de valores sociais que estes adotam para caracterizar as suas “deusas”,

82
Projetos é o nome dado aos programas de shows conduzidos pelos sócios da Turma OK.
201

como glamour, luxo, carisma e beleza. Ocorre uma espécie de mimetismo operado no
encontro entre esses homens e essas cantoras, fenômeno muito semelhante àquele analisado
por Harris (1997) em relação aos jovens gays norte-americanos de cidades do interior e as
grandes estrelas de Hollywood. Harris (1997) se coloca como um dos jovens que, no passado,
sofreram influência do que ele chama de “ventriloquismo”. Criado em uma pequena cidade do
estado norte-americano da Carolina do Norte, esse autor via nas divas do cinema a
possibilidade de experienciar outro universo simbólico diferente daquele marcado pela lógica
rural onde ele estava inserido, como pode ser percebido no seu relato.
The influence of Hollywood films was so pervasive among young homosexuals that it
insinuated itself into our voices, weakening the grip of our regional accents, which
were gradually overridden by the artificial language of this imaginary elite. Even
today I have never succeeded in exorcising Joan, Bette, Grace, and Kate from my
vocal cords, where they are still speaking, having left the indelible mark of
Hollywood's spurious interpretation of classiness, culture, and gentility branded
into my personality (HARRIS, 1997, p. 09).

O “ventriloquismo” a que se referiu Harris (1997) foi um mediador importante na


“movimentação” iniciada por esses “homens homossexuais” entre as décadas de 1950 e 1960.
Os sentimentos de idolatria às divas foi parte constitutiva de um universo simbólico que
organizou e deu sentido não somente aos espaços apropriados pelos “homens homossexuais”,
mais ainda às vidas desses indivíduos. As razões pelas quais esses homens despendiam suas
energias no culto às divas são interpretadas de formas distintas por diferentes autores. Green
(2000), a partir da leitura do livro de Lenharo sobre as cantoras do rádio, chega à conclusão de
que no Brasil a síntese diva/“bichas” não correspondia à mesma lógica que aquela dos
Estados Unidos, onde divas como Judy Garland, por exemplo, eram idolatradas em função da
identificação dos “homens homossexuais” com histórias de vida marcadas pelo sofrimento,
muito semelhante às suas próprias histórias, as quais eram elaboradas a partir da injúria
(ERIBON, 2008). Noleto (2012) argumenta que a aproximação desses homens com as
cantoras da MPB ocorre em razão de um “encontro de marginalidades”, ou seja, uma
identificação de aspectos marginais presentes nessas cantoras que se associam à sexualidade
considerada periférica vivenciada pelos seus fãs “homossexuais”.
Não estou muito certo sobre até que ponto esses dois argumentos explicam o culto às
divas. No caso de Green (2000), as suas próprias leituras sobre as cantoras do rádio brasileiras
desconstruíram a sua hipótese baseada na experiência melancólica norte-americana. Sobre a
ideia de “encontro de marginalidades” adotada por Noleto (2012), não consigo perceber em
que sentido essa idolatria difere daqueles sentimentos coletivos que animavam a geração pós-
1964 – um momento político no qual a ideia de marginalidade era compartilhada por vários
202

segmentos sociais como contraponto a um Estado ditatorial e em um contexto de emergência


de movimentos contraculturais. Aparentemente, a própria emergência da diva como elemento
constitutivo da sociabilidade “bichal” se beneficiou desse contexto de grandes transformações
ideológicas – a chamada contracultura – ambas diretamente relacionadas à consolidação do
mercado de bens culturais.
No meu entender, faz mais sentido o argumento de Harris (1997), para quem a
idolatria às divas se relaciona a uma forma de resistência diante de um profundo
descontentamento social experienciado pelos “homens homossexuais”, que proporcionou um
deslocamento desses indivíduos de suas realidades hostis, ressignificadas a partir da
incorporação de elementos relacionados à classe e gênero.
In my unconscious imitation of the voices of the great film stars, I was seeking to
demonstrate my separateness, to show others how out of place I felt, and, moreover,
to fight back against the hostility I sensed from homophobic rednecks by belittling
their crudeness through unremitting displays of my own polish and sophistication. I
was not attracted to Hollywood stars because of their femininity, nor did my
admiration of them reflect any burning desire to be a woman, as the homosexual's
fascination with actresses is usually explained, as if diva worship were simply a
ridiculous side effect of gender conflicts. Instead, it was their world, not their
femininity, that appealed to me, the irrepressibly madcap in-crowd of Antie Mame,
of high spirits and unconventional "characters," of nudists and Freudians,
symphony conductors and Broadway prima donnas, who lived in a protective
enclave that promised immunity from shame and judgment, beckoning me with its
broadmindedness and indulgence of sexual eccentricities(HARRIS, 1997, p. 09-10).

As divas eram menos importantes pelo que materialmente eram. Interessavam, sim,
pelo que representavam. Elas serviam para “pensar”, parafraseando Lévi-Strauss (1980),
posto que, ligando esses homens por laços de solidariedade através da idolatria, acabavam por
estimular uma reflexividade acerca da situação de silenciamento a que suas sexualidades eram
submetidas, produzindo um compartilhamento de experiências comuns. Portanto, esses
homens não se aproximavam desses ídolos femininos porque, no fundo, desejavam ser uma
mulher, mas tão somente porque essas divas os articulavam, possibilitando a existência de
uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008). Para Harris (1997), elas forneceram uma
espécie de imã, “cujo glamour emprestou uma centralidade sem precedentes para a natureza
anteriormente desconexa e atomizada da vida gay83” (HARRIS, 1997, p. 17). Diferente de
outras minorias que se organizam em função do compartilhamento de sinais evidentes que
significam a sua exclusão social – como a cor da pele, o idioma, a ascendência familiar ou
algumas deficiências físicas –, as “pessoas homossexuais” se constituem como uma minoria
invisível (HARRIS, 1997). Essa invisibilidade, contudo, tornou-se evidente por meio do

83
Tradução livre de “Whose glamor lent an unprecedented centrality to the previously disjointed and atomized
nature of gay life” (HARRIS, 1997, p. 17).
203

reconhecimento de gostos e símbolos específicos, os quais esses homens começaram a


compartilhar quando se ligavam a fã-clubes ou frequentavam aos espetáculos dessas divas.
A partir dessas ideias, é possível sugerir que a noção de diva, tal como elaborada por
Harris (1994), constituía-se em uma espécie de totem, um emblema simbólico, nos termos de
Durkheim (2003), sobre o qual eram depositados sentimentos coletivos. Nas análises de
Durkheim (2003), ritual e símbolo são elementos indissociáveis. O emblema totêmico
expressa de uma forma única toda a coletividade, a qual celebra através da idolatria sua
própria condição associativa. Evocando as ideias de Durkheim (2003), é possível inferir que a
diva constituiu um símbolo que comunicava a ideia de uma “comunidade imaginada”
(ANDERSON, 2008), depositária de expectativas, anseios e sentimentos de identificação,
sobre os quais, mais tarde, se assentou a “identidade homossexual moderna”.
Semelhante lógica é observada por Dyer (2004) em sua análise sobre a construção de
Judy Garland como um mito do público “gay” masculino norte-americano através de sua
produção fílmica. Para esse autor, “homens homossexuais” adotaram imagens da mídia
dominante como um veículo de comunicação de suas próprias experiências dado o contexto
de silenciamento a que estavam submetidos, sobretudo nos Estados Unidos do período
marcarthista, no qual ser “homossexual” implicava um conjunto de suspensões jurídicas e
sociais (RUBIN, 2011). Para Dyer (2004), as estrelas de cinema são intertextuais, no sentido
de que suas imagens são produzidas a partir de uma íntima relação com o seu público.
O caso de Judy Garland é ilustrativo sobre esses argumentos. Mesmo não sendo
considerada uma femme fatale nos termos discutidos mais acima, Judy Garland se constituiu
como símbolo máximo de uma geração de “homens homossexuais”84. Ela possuía a “força de
um imã”, oferecendo, em seus shows, o pretexto para uma celebração pública das
sexualidades não normativas, retirando, momentaneamente, essas sexualidades do lugar social
não apresentável que ocupavam. Judy Garland está atrelada, inclusive, aos mitos de origem do
surgimento do movimento homossexual organizado. Isso porque se consolidou uma memória
de que os indivíduos presentes naquela noite de 28 de junho de 1969 no bar Stonewall Inn, em
Nova York, estavam lastimando a sua morte, ocorrida em 22 de junho do mesmo ano, quando
foram alvejados por uma batida de policiais, algo muito comum naquele estabelecimento. O
sentimento de perda associado à impossibilidade de prantear a morte da diva se constituiu em
dínamo para a revolta.

84
Entre muitos homens da Turma OK, Judy Garland ainda é um ícone.
204

A veracidade histórica dessa memória não é um dado importante aqui, mas sim a
centralidade desse símbolo para organizar as narrativas sobre aquela que seria a revolta que
deu início ao processo de construção desses homens como sujeitos de direitos. Stonewall Inn
ainda está lá como “lugar de memória”, preservando com ele o legado de Judy Garland.
Quando fui à Nova York, em março de 2013, visitei o bar e pude presenciar essa memória ser
materializada no vestido quadriculado azul e branco afixado na vitrine que se projeta para a
Christopher Street, Greenwich Village. O vestido parece estar lá para lembrar aquele
personagem que foi o mais reconhecido da carreira de Judy Garland, a Dorothy de O Mágico
de Oz, filme de 1939. Lá pendurado, ele faz todos que passam ou entram recordarem que
Stonewall Inn é mais do que somente um bar para gays, é um espaço de resistência e
memória, componentes construídos a partir da mobilização desses símbolos.
A dimensão reflexiva atribuída à relação diva/“bichas” foi, de uma forma ou de outra,
objeto de debates entre diferentes pesquisadores, principalmente norte-americanos (HARRIS,
1991; BABUSCIO, 1999; HALPERIN, 2002; DYER, 2004). O conjunto desses estudos
consolida a ideia de que a diva foi fundamental para o estabelecimento de laços de
solidariedade entre esses indivíduos, produzindo sociabilidade e sentimentos de identificação.
Contudo, outra dimensão dessa discussão cabe ser lembrada, aquela que se liga aos motivos
que levaram essas personalidades a exercerem a “força de um imã” sobre essas pessoas.
A melancólica frase de Rita Hayworth acerca de Gilda, sua mais importante
personagem, “A maioria dos homens se apaixona por Gilda, mas acorda comigo!”, é
ilustrativa da tensão inscrita entre persona cinematográfica e trajetória individual, um
caminho para se pensar a construção dessa idolatria de indivíduos fora da norma
heterossexual a estas que foram promovidas a divas. Tal tensão foi sublinhada por Dyer
(2004) em sua análise da trajetória e carreira de Judy Garland. De acordo com esse autor, as
leituras que homens e mulheres “homossexuais” efetuam das divas são distintas. Garland teve
uma outra recepção, menos impactante, entre mulheres lésbicas, afirma ele. O autor,
analisando a construção de sua persona cinematográfica antes da década de 1950, destaca
como a performance da atriz era construída em função da ideia de uma garota comum – girl
next door –, imagens que a enquadravam dentro de um modelo de família heterossexual, uma
iconografia da normalidade, como aquela com que são obrigados a se relacionar
cotidianamente indivíduos fora da norma heterossexual. Tal iconografia, afirma o autor,
encontrou em Dorothy, de O Mágico de Oz, sua forma mais plena. Uma garota simples
morando em uma pequena fazenda com os tios, elementos carregados de normalidade
205

heterossexual. Porém, a própria Dorothy mostra-se insatisfeita com as condições de sua vida
e, através de sua rebeldia, é lançada ao Mundo de Oz.
Essa “iconografia da normalidade” associada à carreira de Judy Garland foi rompida
após a década de 1950, quando ela tenta o suicídio. Tal episódio redimensiona o regime de
representação associado à artista, evidenciando uma ruptura significativa entre esta
iconografia que a MGM85 evocava sobre ela e os episódios de sua vida, marcados pelo
sofrimento e uso compulsivo de medicamentos. Para Balieiro (2014), esse evento rompeu
com a retórica que tende a estabelecer relações de complementaridade entre a diva e o seu
público, provocando assim uma percepção de que a sua normalidade de “garota comum” era
produzida na tela, ficando a sugestão de que Garland se autoparodiava nos filmes. Dyer
(2014) acredita que este evento crítico na sua trajetória tenha oferecido a razão para Judy
Garland ter se convertido em “ícone gay”, expressão adotada por ele.
Trabalhando com fã-clubes virtuais dedicados a idolatria de Judy Garland no Brasil
atualmente, Patrícia Coralis (2014) chega a conclusões semelhantes acerca da vida da artista.
Para ela, a biografia de Judy Garland, principalmente após o contrato com a MGM, foi
fundamental para atrair a atenção dos fãs que viam na artista um exemplo de resistência e
perseverança. Para Coralis (2014), o item principal que agrega os fãs de Judy Garland em
torno de sua biografia é a noção de que a artista era “ela mesma”, ela reproduzia em sua voz e
canções a verdade de seus sentimentos: dor, sofrimento e frustrações. Ao que parece, a artista
passa a ser “ela mesma” após a tentativa de suicídio midiatizada por vários veículos de
comunicação, que passam a dar extrema atenção a vida íntima da mesma.
Tal interpretação, de certa forma, remete à discussão empreendida logo acima acerca
da aproximação pelo sofrimento, a qual Green (2000) adere. Mas, seguindo a interpretação de
Dyer (2004), é possível afirmar que o nó do problema está na contradição. Ao tentar o
suicídio, sugiro que Judy Garland estava “saindo do armário”, revelando a artificialidade e a
superfície da “iconografia da normalidade”. A atriz acabou por evidenciar a paródia com que
as convenções relacionadas à normalidade eram concebidas em suas atuações e entrelaçadas à
sua vida particular. Tal motim gerou sentimentos de identificação com aqueles homens que
também experimentavam a contradição entre a iconografia da normalidade e o seu desejo de
insurgência em suas vidas.
Esse exemplo permite afirmar que as divas são construídas a partir de uma relação que
conjuga simultaneamente glamour e abjeção, poder e vulnerabilidade, força e sofrimento – tal

85
Metro-Goldwyn-Mayer é uma empresa norte-americana de comunicação, cuja fundação data de 1924.
206

como Halperin (2012) já havia sugerido quando analisou esse problema a partir da atriz Joan
Crawford. A relação de Rita Hayworth com Gilda pode ser interpretada a partir dessa
contradição. A trajetória de vida e a carreira artística de Marilyn Monroe também estão
articuladas a essas duas dimensões. Objetos culturais como as divas, sugere Balieiro (2014),
não articularam explicitamente representações sobre as sexualidades não normativas, seu
poder de representação sobre e entre este grupo residiu antes na potencialidade com que
instituíram desafios à normalidade. É no trânsito entre esses termos – glamour e abjeção – que
se fundou a aliança entre a diva e aqueles homens que vivenciaram um profundo sentimento
de descontentamento associado à sua inserção em uma sociedade marcada por iconografias
heterossexuais.
Sugiro que essa potencialidade subversiva só tenha se cumprido em função do
desenvolvimento de um delicado mecanismo de comunicação – uma linguagem codificada –,
cuja chave de interpretação encontra-se na performatividade construída entre as divas e sua
audiência formada de indivíduos percebidos como fora da norma heterossexual. Tal
performatividade foi responsável pela criação de uma intimidade entre elas e sua audiência
constituída por homens que se percebiam como fora da norma. A leitura desses homens sobre
a performance dessas artistas produzia outros sentidos acerca da piscadinha maliciosa de
Marilyn Monroe ou da piscadela estilizada de Carmem Miranda; ou mesmo do levantar de
cabelos acompanhado do strip-tease de luvas da Gilda de Rita Hayworth. Mais do que
intimidade, essas performances sugeriam uma cumplicidade entre os dois agentes da relação,
como se ela, a diva, soubesse do “segredo” guardado por aquele fã do outro lado da tela,
adotando a piscadinha para comunicar tal fato. Um “segredo” compartilhado pelos dois. Para
este fim, a imaginação foi um aliado significativo, já que, como salienta Balieiro (2014), “em
vez de lutar por uma identidade mais aceita socialmente, os produtos fílmicos, em especial
relacionados a estrelas de cinema, têm como norte utópico um outro mundo” (BALIEIRO,
2014, p. 265).
A produção deste “outro mundo” proporcionou uma releitura da norma, convertida em
objeto de ironia e humor. Retornando novamente a Harris (1994), foi essa sensação de
“desajuste” que possibilitou que indivíduos fora da norma heterossexual construíssem um
mundo de utopia – realizado em potência e não em realidade. Ao analisar o lugar ocupado
pelos musicais no imaginário de “homens homossexuais”, Halperin (2012) chegou às mesmas
conclusões que Harris (1994), ao falar dos musicais de Hollywood, ou seja, a estética
provocativa desses objetos culturais proporcionou uma evasão momentânea das realidades
inóspitas vivenciadas por essas pessoas, um deslocamento, levando-as para uma outra
207

realidade algo imaginada. Halperin (2012) elucida de forma interessante este processo. Para
ele, os musicais da indústria de Hollywood obtiveram efeitos inesperados nesses indivíduos
cujos desejos eram marcados pelo indizível. Através do consumo desses objetos culturais era
viável ser catapultado de seus universos familiares e lançados a um ambiente mais lírico e
lúdico:
Of a magical Technicolor world somewhere over the rainbow, “theatrical rather
than realistic”, where normal people (even major-league baseball teams)
unexpectedly burst into song and dance, the lyrical ethos of the Broadway Musical –
its interruptive, reality suspending, mode-shifting form – expresses gay desire, and
answers to what gay men want, far better than anyone who literally denotes or
embodies gay-ness (HALPERIN, 2012, p 104).

A diva constituía-se, então, em um ensaio – uma micropolítica – com a qual se abria


um “campo de possibilidades” (VELHO, 2003) mais ampliado para as demonstrações
públicas das sexualidades não normativas em uma sociedade marcada por registros
homofóbicos. Se, para Sedgwick (2007), o “armário” é uma metáfora importante para se
pensar a construção das subjetividades “homossexuais” estruturadas em um rígido regime de
opressão, a diva se constituiu como uma resistência possível e criativa em um período de
originação de subjetividades marcadas pelo silenciamento das práticas sexuais entre iguais –
características que compunham o “regime de homossexualidade” (MECCIA, 2011). A diva
permitiu, nos termos de Foucault (1988), a produção de “formas de vida” não inteligíveis pelo
registro da normalidade ocidental. Esses processos de subjetivação contaram com um agudo
senso de invenção para o qual a ironia e o humor tiveram importância crucial.
Mas as divas não estimulavam somente a imaginação. Foi ainda através das divas que
se estruturou um universo de significados que ofereceu aos indivíduos fora da norma
heterossexual um repertório de sentidos, performances e ações que canalizavam as frustrações
do apagamento de suas relações e vivências não apresentáveis em uma linguagem que
traduzia o seu descontentamento social, o camp. A relação celebrada entre o camp e as divas
vem sendo explorada amplamente por diferentes estudos, sobretudo anglófonos, os quais se
concentraram na contribuição do cinema e suas estrelas para a produção de uma
“sensibilidade gay” (DYER, 2004; BABUSCIO, 1999).
Tal questão já se encontra presente nas reflexões de Susan Sontag na década de 1960.
Para Sontag (1987), o universo inclassificável a que o camp se liga possui características que
fogem à ordem regular das coisas. Em função disso, a tarefa de definir o camp é quase
impossível. Contudo, algumas “notas” fundamentais podem ser extraídas da noção de camp,
uma das quais é o seu “esteticismo extravagante”, o exagero e a artificialidade – elementos
208

associados à postura de desdém, características que completam a visão cômica a que o camp
se propõe (SONTAG, 1987).
A autora estabelece uma relação de correspondência entre a estética camp e a figura do
dândi, aquele personagem da paisagem urbana excessivamente cultivado, cujo objetivo era a
busca por sensações raras, aquelas ainda não experienciadas pela turba popular. Para Sontag
(1987), a história do gosto camp se entrelaça com a própria história do gosto esnobe – ou seja,
a própria essência da distinção. Com a decadência da velha aristocracia, os gostos especiais
ou raros, que distinguiam essa classe das outras, foram sendo revelados por outros grupos,
especialmente os “homossexuais”, chamados pela autora de “aristocratas do gosto”. Em
função disso, desenvolve-se nesse grupo uma agência criativa, capaz de produzir novas
sensibilidades. Para ela, foi através dessa agência criativa que esse grupo pôde articular a sua
integração na sociedade. Harris (1991), contudo, não percebe o desenvolvimento do camp
entre os “homens homossexuais” como uma possibilidade de integração à sociedade, mas sim
de alienação da mesma – uma espécie de fuga a partir da construção de uma utopia.
Ainda que discordem nesse ponto, as ideias de Sontag (1987) se aproximam das de
Harris (1991) acerca de uma característica fundamental do camp: o deslocamento simbólico.
Tanto Sontag (1987) quanto Harris (1991) veem no distanciamento uma característica
constitutiva do camp, o qual produziria uma sensibilidade particular nos indivíduos que
compartilham dessa estética. O espírito elitista teria surgido entre eles como uma
possibilidade de se distanciar psiquicamente e simbolicamente do contexto hostil estabelecido
contra as suas sexualidades não apresentáveis. Essa experiência é vivenciada com uma dose
intensa de ironia, uma vez que nem todos pertenciam de fato a uma elite econômica, mas se
percebiam, como mostra Harris (1991), deslocados de seus contextos sociais. Tal consciência
fez com que esses indivíduos construíssem um mundo imaginado, um mundo onde as
convenções seriam ressignificadas a favor deles mesmos.
Como afirma Babuscio (1999), são quatro os elementos que caracterizam o camp:
ironia, esteticismo, teatralidade e humor. Essas características se entrelaçam na construção
daquilo que o autor chama de uma “sensibilidade gay”. Ao falar dessas características de
forma isolada, o autor põe em relevo algumas possibilidades de interpretação dessa
“sensibilidade gay” a partir do camp. De forma geral, o autor ressalta que essas quatro
dimensões estão articuladas na noção de “contrastes incongruentes”, sobretudo acerca do
masculino/feminino. A linguagem fílmica seria um veículo importante do camp,
principalmente por evidenciar personagens e estrelas com qualidades andróginas, a femme
fatele seria um bom exemplo disso. Para Babuscio (1999), o ponto central dessa percepção de
209

incongruência é a ideia de que as sexualidades não normativas são um desvio moral, portanto
ela representa uma ruptura com a ordem heterossexual das coisas. Babuscio (1999) define o
que chama “sensibilidade gay” como uma “energia criativa”, a qual reflete uma consciência
elevada acerca da diferença em relação a aquilo que é considerado convencional. Em outras
palavras, indivíduos fora da norma heterossexual reuniriam mais condições de identificar a
artificialidade das convenções sociais, dada a sua habilidade em se passar – passing – por
heterossexuais. Estes últimos não desenvolveriam tal habilidade, em razão da naturalização
internalizada de sua experiência. O desenvolvimento dessa energia criativa se relaciona
diretamente ao camp.
A incorporação das normas de gênero e classe, bem como a aproximação estética do
“gosto esnobe” foram certamente uma estratégia de insurgência possível que, quando
teatralizada por esses indivíduos, refletia as suas contradições – tanto subjetivas quanto
sociais. Nisso o camp se aproxima das análises de Lopes (2011), a quem essa noção parece
ser uma “força gerativa”, que assimila o problema e o transforma em outra coisa. Essa força
gerativa estaria relacionada a uma habilidade comportamental através da qual o camp seria
uma forma encontrada por indivíduos fora da norma heterossexual de lidarem com situações
de preconceito e discriminação – o que, em contexto brasileiro, receberia o nome de
“fechação” (COSTA, 1992), ou, mais contemporaneamente, a “lacração”.
Dessa forma, o camp poderia ser percebido como uma experiência de “communitas”,
termo consagrado por Turner (2005) para se referir ao deslocamento para um outro “estado da
sociedade”. Daí a percepção de Sontag (1987) de que o camp é um “solvente moral”, uma vez
que tem a capacidade de deixar as coisas fora do lugar. Foi através da teatralidade camp que
esses indivíduos fora da norma heterossexual puderam negociar sentidos entre eles mesmos e
com o mundo que os rodeava. Acredito que o camp evoca um jogo entre aproximações e
distanciamentos que se relaciona a uma luta simbólica por reconhecimento. Nessa luta, a
aproximação com as noções de luxo, glamour e “gosto cultivado” marcam a vontade de
reconhecimento de um grupo alijado de bens simbólicos que construíram uma sensação de
pertencimento através da incorporação dos “símbolos distintivos” de uma elite dominante.
No Brasil, as produções hollywoodianas se articularam a outros universos simbólicos
na construção dessa expressão da “sensibilidade gay”, o camp. A apropriação dos concursos
de miss, das cantoras de rádio, dos bailes e concursos de Carnaval e, logo depois, da televisão
foram elementos constitutivos dessa estética e estilo camp, como visto nos capítulos
anteriores. Foi dentro desse universo simbólico que ocorreram as apropriações mais diversas
das contradições sociais – gênero, classe, cor/raça e sexualidade – e sua tradução pela lógica
210

do riso e da galhofa. A figura que acredito materializava de um só golpe todos esses universos
simbólicos e também evidencia um conjunto de contradições fundamentais que organizam a
sociedade brasileira foi Carmen Miranda.
A menina dos balangandãs, pulseiras e sandálias altas representa o espírito do camp de
forma mais acabada por evidenciar em sua estética espalhafatosa e eclética grandes
antagonismos fundantes da sociedade brasileira: preto/branco, nacional/internacional,
popular/erudito, etc. Para além das discussões que os usos da imagem de Carmen Miranda
envolve na construção da ideia de nação no Brasil e fora dele, essa personagem se constituiu
como uma mediadora na construção da ideia de cultura popular brasileira – herdeira das
culturas africanas representada, sobretudo, pela imagem da baiana que tanto evocou –, mas
também à confusão e à ambiguidade – energias gerativas do camp. Carmen Miranda reúne de
uma só vez a confusão, a mistura e o excesso, performatizando em gestos e indumentárias
elementos considerados característicos da cultura brasileira.
O conjunto de significados associados a Carmen Miranda foi absorvido por uma
audiência formada por indivíduos fora da norma heterossexual que viam em seus filmes,
aparições em revistas e no rádio as respostas para sua sensação de desajuste. Logo, a
parafernália de significados diferentes ilustrados por Carmen Miranda se constituiria como
elemento estruturante de uma sociabilidade “bichal” vibrante que ganhava as ruas por meio de
linguagens, símbolos e apropriação de espaços próprios. A “pequena notável” se constituiria
como grande diva, oferecendo uma fundação para esse universo camp.
Carmen Miranda representava, simultaneamente, o glamour de Hollywood e a
confusão da estética carnavalesca. Sua vida e obra foram entrelaçadas às vidas desses
indivíduos que se identificavam com a estética que ela propunha. O simbolismo que se
constituiu sobre as sexualidades não normativas girava em torno dessas grandes divas,
sobretudo, popularizadas pelo rádio e pela televisão – tecnologias que passaram a se tornar
cada vez mais populares na década de 1960 (FIGARI, 2007). Foi a partir da difusão do rádio,
e depois da televisão, que essas figuras surgiram como polos agregadores de indivíduos fora
da norma heterossexual responsáveis por torná-las populares, singularizando,
simultaneamente, uma experiência comunitária em torno de símbolos que davam sustentação
a esse universo.
Na introdução desta tese discuti alguns pontos da minha experiência de pesquisa com
a Turma OK que me colocavam questões a serem aprofundadas, dentre as quais estavam a
idolatria daqueles indivíduos com mais de 50 anos a atrizes e cantoras das décadas de 1950
em diante. Quando comecei a interpretar esse material associado àquele que obtive junto às
211

“travestis profissionais” que entrevistei, percebi o quanto a diva foi e continua sendo um
símbolo importante na memória desse grupo e, mais do que isso, foi constitutivo da noção
moderna de “homossexualidade”.

4.3 – Parodiando a sociedade, ritualizando a diva: o Snob, as turmas e a invenção de


uma “sociedade bichal”

Como foi analisado, a diva se constituiu como um totem através do qual experiências
de vida atomizadas foram ganhando sentido graças à aproximação física que a idolatria dessas
mulheres proporcionava aos indivíduos fora da norma heterossexual. Uma parte importante
desse processo se relaciona à dimensão da sociabilidade, terreno sobre o qual a diva foi
convertida em performance. Em nenhum outro espaço a diva e o seu universo simbólico
ganharam tanto destaque quanto na dinâmica das turmas de “bichas” e “bofes” que se
instituíram em razão desse símbolo. Foi através da mediação dessas turmas que se negociou
uma possibilidade de insurgência, de fuga das convenções rígidas da vida social, sobretudo
aquelas relacionadas ao plano da sexualidade.
Esta sociabilidade não seria possível sem aquele “poder de invenção”, característica do
“estado de communitas” (TURNER, 2013) com a qual esses homens ressignificavam toda a
sociedade projetando suas aspirações de reconhecimento e existência. Uma das manifestações
mais significativas desse “poder de invenção” deu-se certamente com jornais artesanais, como
O Snob – principal canal de articulação e resistência das “bichas” na década de 1960. Esse
veículo constituiu-se em um espaço social através do qual esses símbolos ganhavam vida, nos
quais a diva era ritualizada. Foi também através deste universo que esses homens
incorporavam a norma através do glamour e, simultaneamente, a parodiavam.
O trabalho de Costa (2010) sobre o jornal O Snob revela aspectos interessantes da
dinâmica da sociabilidade das turmas de “bichas” que se constituíram no Rio de Janeiro entre
as décadas de 1960 e 1970. De acordo com esse autor, esses grupos tinham uma forma bem
específica de ordenar seu mundo, considerando-se participantes de uma “sociedade bichal”
(COSTA, 2010), da qual eram uma espécie de crème de la crème. O clima de “alta sociedade”
estruturava a forma pela qual esses homens se relacionavam entre si e com o meio social que
os rodeava. A noção de “sociedade bichal” é reveladora das dinâmicas de ressignificação que
O Snob e as turmas de “bichas” protagonizavam.
212

Através das relações e fluxos produzidos a partir desses jornais e das turmas, a
sociedade era percebida como uma “paródia”, nos termos adotados por Butler (2003), cujo
objetivo é denunciar o essencialismo das relações sociais. Para esses homens, a própria
sociedade e suas hierarquias de pessoas era uma “paródia”. A chamada “alta sociedade” era o
fio condutor através do qual toda essa parafernália social ganhava efeito. As “bichas” se
colocavam como o ponto principal dessa pirâmide, rejeitando e ressignificando o não lugar a
que estavam restritas.
Nos jornais e nos encontros íntimos promovidos pelas turmas, as “bichas” podiam ser
rainhas, divas, princesas e, principalmente, misses. As capas do Snob, as quais reproduziam as
fotografias da revista Manchete, são um bom exemplo desse processo, como já havia
identificado Costa (2010). Com os jornais era possível inverter o jogo de exclusão, assumindo
simbolicamente o topo da pirâmide, evidenciando o quão artificial eram essas relações. Esses
homens, ao operarem “travestismos de gênero e classe” (MCCLINTOCK, 2010), transitavam
pela norma, evidenciando o caráter não essencialista da mesma.

Imagem 28 – Capa do número 08 d’O Snob, na qual


Gilka Dantas (Agildo Bezerra Guimarães) aparece
coroada (Fonte: acervo pessoal).
213

O mundo construído pelo Snob revelou muito mais do que a artificialidade das
hierarquias sociais: ele produziu sentidos sobre as sexualidades não normativas e como estes
eram percebidos pelos participantes das turmas, reconhecendo diferenças entre os mesmos.
Nas páginas desse jornal era possível encontrar indícios importantes da forma como as
“bichas” desse período produziam reflexão acerca de diferentes aspectos da vida social, como
relações sexuais, política, ditadura e cotidiano. As ideias presentes no jornal expunham ainda
determinadas estruturas daquela “comunidade de interesses”, revelando hierarquias, tensões e
mudanças na percepção em torno da experiência de “ser bicha”. A divisão dualista entre
“bichas” e “bofes” era um dos principais pontos dessas inquietações.
O mundo inventado pelo Snob se dividia entre “bichas” e “bofes”, personagens que
negociavam sentidos a partir das diferenças inscritas, sobretudo, na articulação entre gênero e
classe social. A “bicha” ocupava um lugar de destaque na economia dessas relações. Ainda
que reproduzisse o imaginário de que era a “sola do pé do macho” (FRY, 1985), era ela a
principal agenciadora desse mundo. A “bicha” era responsável pela organização das festas,
das recepções, pela feitura e distribuição dos pequenos jornais, entre outras atividades. Além
dessas incumbências, elas possuíam uma vida financeira mais estável, que incluía ter um
apartamento próprio, e um rico repertório cultural. O “bofe” era uma espécie de corpo celeste
que orbitava ao redor do astro principal, a “bicha”, limitando sua participação apenas aos
eventos sociais – as festas –, nas quais podia ser visto ao lado da “bicha” com quem mantinha
um “caso”86 (SOLIVA, 2012).Eles eram ainda menos eruditos e não possuíam uma vida
financeira consolidada.
Essa peculiar interpretação do mundo era refletida diretamente na dinâmica das
relações afetivo-sexuais. A relação bicha/bofe tinha que ser uma relação obrigatoriamente
instável. De acordo com Anuar Farah, o “bofe” era aquele que desprezava a “bicha”, batia
nela, pegava o seu dinheiro e, no fim, acabava se casando com uma mulher, roteiro muito
próximo daquele dos romances naturalistas, tal qual ocorrera em Bom Criolo87, de Adolfo

86
Expressão utilizada pelos “entendidos” da década de 1970 para caracterizar uma relação sexual e amorosa
duradoura entre dois parceiros do mesmo sexo. Trata-se de uma tentativa de dissociação da ideia de
“casamento”, empregada por parceiros heterossexuais em suas relações amorosas. O “caso” seria o oposto da
“pegação”, esta uma relação sem vínculo amoroso, uma relação sexual furtiva, episódica e ocasional
(GUIMARÃES, 1984). É interessante notar que ainda hoje os sócios da Turma OK usam essa expressão quando
estão falando sobre as suas relações amorosas.
87
Livro de Adolfo Caminha que narra a história de Amaro, um marinheiro, e Aleixo, um grumete, por quem o
primeiro se apaixona perdidamente. O desfecho da história é trágico, posto que a dona da pensão onde os dois
amantes foram morar acaba se relacionando com o jovem amante de Amaro. Atordoado pelos ciúmes, o
marinheiro mata o amante. A história reproduz a ideia de que as relações “homossexuais” são necessariamente
instáveis, nas quais a felicidade é sempre inacabada em função do evidente desajuste da relação. O amor, nesses
214

Caminha. A existência de uma relação mais duradoura com uma “bicha” poderia fazer cair
sobre o “bofe” o estigma de não ser de fato um “homem de verdade”. Na cama, essa divisão
se expressava de forma ainda mais imperativa. A posição no coito demarcaria os limites
físicos e simbólicos entre os “verdadeiros homossexuais”, “bichas”, e os “não homossexuais”,
“bofes”. À “bicha” estaria reservado o papel de sexualmente passiva, sendo penetrada pelo
“bofe”, submetida ao poder de um macho. Este último seria assim um “homem de verdade”,
posto que “come” a “bicha” e a submete pelo “pau”. Nessa relação, cabe à “bicha” a
autoridade moral sobre o “bofe”, visto que é ela quem dita a masculinidade mais legítima. A
alegada passividade sexual dela afirma a masculinidade do outro, posto que desvaloriza a sua
própria masculinidade (PARKER, 2002).
As análises de Peter Fry sobre a “construção histórica da homossexualidade” no Brasil
oferecem pistas elucidativas para compreender a lógica das relações entre as “bichas” e os
“bofes”, tal como foram vivenciadas pelas turmas desse período. Fry (1982) sugere dois
“modelos ideais” utilizados no Brasil para se organizar as “homossexualidades”. No primeiro
modelo, a que o autor chama de “hierárquico”, o comportamento sexual e os papéis de gênero
ocupariam importância crucial na forma com alguns brasileiros organizam a sua sexualidade.
Nesse modelo, a divisão dos gêneros é rígida e se expressa nos binômios homem/ativo sexual
e mulher e bicha/passivos sexuais. Assim, o papel da “bicha” é reservado àquele que “dá”,
excluindo aquele que “come”, entendido com um homem sem quaisquer perdas substanciais
de seu status sociossexual (CARRARA; SIMÕES, 2007).
Na virada do século XIX para o XX, o crescimento do interesse médico em relação à
“homossexualidade masculina” teve como reflexo a construção de uma nova taxionomia para
as relações sexuais entre homens. Para Fry (1982), essas classificações teriam sido operadas
pelos médicos que em um dado momento retiraram a “homossexualidade” do campo religioso
e a colocaram no campo científico. As preocupações de Leonídio Ribeiro sobre o
“homossexualismo” marcaram de forma definitiva esse processo, como analisado. No modelo
adotado pelos médicos para classificar o “homossexual”, pouco importava a posição ocupada
no coito, já que a “condição homossexual” era atribuída a ambos os praticantes do mesmo
sexo envolvidos em uma relação sexual. Essa divisão punha em evidência a orientação sexual
dos parceiros, dividindo o mundo entre “sexualidade normal” e “pervertidos sexuais”.
Essa dinâmica guarda relação com a emergência daquilo que Fry (1982) chama de
segundo modelo: o “igualitário”, que teve sua origem no pensamento médico fartamente

contextos, é percebido como algo impossível de ocorrer por se tratar de duas pessoas do mesmo sexo. O
resultado desta tensão é sempre a tragédia.
215

disseminado no século XIX. Fry (1982) argumenta que o surgimento desse modelo está
relacionado com o processo de transformação social das classes médias e altas das grandes
cidades brasileiras, ou mesmo com o próprio processo de constituição dessas classes (FRY,
1982). Nesse modelo, surgem novas concepções sobre a “homossexualidade”, livres do signo
da anormalidade e animadas por uma valorização da “identidade homossexual” influenciada
pelo surgimento do movimento homossexual internacional. Tem-se a gradativa substituição
do termo “homossexual” por “gay”, compatível com as concepções que marcaram o
surgimento do gay power. É possível perceber o quanto a categoria “gay” foi adotada para
pelos produtores de “shows de travestis” para construir seus letreiros, identificando a essa
expressão concepções de modernidade.
A transição do que o autor chama de “modelo hierárquico” para o “modelo igualitário”
foi tratada nas páginas dos pequenos jornais quando da emergência da categoria “entendido”.
A categoria “entendido” ganhou visibilidade nos trabalhos de Guimarães (1977) quando
estudou uma rede de amigos “homossexuais” moradores da Zona Sul carioca que se
encontravam para diversão e lazer. Segundo a autora, esses homens não mais se interessavam
pela organização da “experiência homossexual” na díade “bicha/bofe88”. Eles estariam em
busca de parceiros que valorizariam uma postura igualitária em relação à organização dos
papéis sexuais. No tocante às técnicas sexuais, a dicotomia ativo/passivo cederia lugar a
formas menos fixas de se organizar o prazer.
Contudo, a categoria “entendido” nem sempre foi usada pelos indivíduos que
compunham esses grupos com essa perspectiva igualitária. De acordo com Costa (2010), entre
os anos de 1963 e 1964 essa expressão fazia referência à totalidade dos indivíduos que se
ligavam de alguma forma à rede do Snob. Com as mudanças de comportamento
protagonizadas por esses homens, o “entendido” assume um novo significado, agora em
sintonia com concepções que criticavam a centralidade do gênero na essencialização dos
indivíduos. As disputas em torno dessa nova identidade não foram pacíficas. Entre as
“bichas”, o aparecimento dessas novas identidades era percebido como ameaçador ao mundo
constituído por elas. Assim, a reação das “bichas” era a de rejeição e desqualificação dos
indivíduos que se identificavam com essas novas formas de vir-a-ser. Um exemplo desse
processo é o uso da expressão “entendido passado a ferro”, adotada pelas “bichas” para se

88
Os inquéritos dos médicos que escreveram sobre a “homossexualidade” no século XIX já haviam revelado que
os homens que se relacionavam sexualmente com outros homens nem sempre eram exclusivamente “ativos” ou
“passivos” sexuais (GREEN, 2000; FIGARI, 2007).
216

referirem ao caráter desestabilizador que essas práticas e identidades geravam nos indivíduos
que as assumiam (COSTA, 2010).
Não somente a dinâmica sexual diferenciava as “bichas” dos “bofes”, um outro
componente organizava essa distinção – as “bichas” eram detentoras de um “capital cultural”
mais ampliado, que incluía uma vasta gama de conhecimentos. Elas falavam de peças de
teatro, livros, revistas, viagens – elementos através dos quais se distanciavam não somente
dos “bofes” como de grande parte da sociedade brasileira. A percepção de que faziam parte de
um “crème de la crème” não estava tão dissociada da realidade quanto se imagina. Muitos já
possuíam seu próprio apartamento, trabalhavam como funcionários públicos e estavam
antenados com as inovações trazidas dos grandes centros urbanos internacionais, como Nova
York, Londres e Paris. Essas características os atrelavam a um determinado tipo de
experiência de classe que começara a ganhar contornos entre as décadas de 1960 e 1970 no
Rio de Janeiro, as classes médias.
Foi através de um imaginário sobre o glamour que as “bichas” escolheram a moderna
Copacabana para ritualizar seu universo simbólico. Neste bairro, a privacidade das casas se
misturava ao alvoroço das ruas, o lazer diurno e familiar da praia coexistia com os prazeres
noturnos dos bares, cinemas e casas noturnas que começaram a consolidar uma presença
exclusivamente de “bichas” já na década de 1960, com bares como o Alfredão. Copacabana se
constitui como símbolo da modernidade e do cosmopolitismo ao mesmo tempo em que se
intensifica a sua procura pelas camadas médias da sociedade brasileira.
O jornal O Snob refletia esse imaginário sobre o glamour. A escolha do nome do
jornal foi certamente uma coincidência significativa dos rituais de distinção constitutivos
dessas turmas. De acordo com Agildo Bezerra Guimarães – criador d’O Snob – em entrevista
a Costa (2010), o nome teria vindo de um antiquário localizado na Avenida Nossa Senhora de
Copacabana. Contudo, o simbolismo desse título remete diretamente a um tipo específico de
experiência social no qual a solidariedade do grupo está associada à posse de um capital
simbólico que o distingue de outrem: um exclusivismo social. Aparentemente, este é
relacionado à própria experiência do “ser bicha” que o destacaria em relação ao conjunto da
população. Aparentemente, a evocação desse exclusivismo articulava uma agência ativa
dessas pessoas, as quais incorporavam esses símbolos relacionados ao glamour para
reelaborar de forma camp toda a sociedade.
O glamour, nesses termos, era uma chave para habitar o mundo hostil que os
circundava. A solução foi performar a norma, incorporando as etiquetas sociais e de gênero
articuladas a um imaginário sobre o glamour. O interesse pelos concursos de miss, pelas
217

“listas dos 10 mais do ano” e pelas fofocas do grupo foram traços característicos que davam
forma a essa “sociedade bichal”. A “lista dos 10 mais”, principalmente, era o grande destaque
no conjunto de eventos que marcavam o calendário dessas turmas. As “escolhidas” eram
objeto de prestígio e admiração pelas demais. Esse interesse, contudo, não foi exclusivo das
“turmas de bichas” do Rio de Janeiro: está ligado ao crescimento do interesse público pela
vida social da chamada “alta sociedade” e das celebridades que organizavam um “mundo de
sonhos” veiculado pelas publicações brasileiras, principalmente a partir da década de 195089.
As características editorias e comunicacionais de O Snob o aproximam de um tipo de
jornalismo que ganhou vulto no Brasil a partir da década de 1950, o colunismo social. Esse
tipo de linguagem editorial, que surgiu nos Estados Unidos ainda na década de 192090,
implicou não só mudanças na forma como a imprensa começou a produzir o seu material, mas
também uma ampliação na noção de high society91 (MARIA, 2008). Foi através do
colunismo, principalmente da atuação dos colunistas sociais, que começaram a ter destaque
nos impressos não somente aqueles sujeitos que possuíam algum vínculo familiar reconhecido
– uma “boa família” – nos círculos sociais, mas ainda outros indivíduos e grupos. Não apenas
os “novos ricos” se beneficiaram dessa ampliação da cobertura pelos colunistas sociais, mas
também toda aquelas pessoas que não necessariamente possuíam recursos materiais e uma
“boa família”.
Maneco Muller e Ibrahim Sued foram os representantes mais destacados desse tipo de
fazer jornalístico. Ambos, principalmente este último, tiveram uma longa trajetória
profissional em jornais de grande circulação. Em 1951, Ibrahim Sued começou a sua carreira
como colunista, escrevendo para uma coluna diária chamada Zum Zum no jornal Vanguarda.
Desde então, teve suas ideias veiculadas no jornal O Globo até 1995, ano de sua morte. Sua
popularidade lhe rendeu décadas de inserção em veículos de comunicação, através dos quais
apresentava suas opiniões pessoais e seus julgamentos, no que se relacionava às “altas rodas
sociais” e também à política brasileira (TRAVANCAS, 2001). Ibrahim Sued desenvolveu um
tipo de jornalismo atravessado por sua subjetividade moldada em uma dada experiência de
classe – associada às elites econômicas e culturais. Isso implicou o uso de linguagens e

89
As crônicas sociais são anteriores a esse período. Elas veiculavam um conjunto de informações concernentes a
rituais que marcavam a vida da “alta sociedade”, tais como funerais, batizados, casamentos, etc.
90
Maria (2008) vai argumentar que a diferença entre os colunismos que se desenvolveram no Brasil e nos EUA
reside na acidez política com que este último se inseriu na realidade daquele país, onde os colunistas tiveram
grande inserção nos debates políticos, modificando amplamente determinadas dinâmicas estatais.
91
Antes da atuação dos colunistas sociais, a noção de “altas rodas”, termo consagrado por Mill para se referir ao
círculo íntimo das elites sociais, era basicamente organizada pela linhagem e descendência, as “boas famílias”. A
partir desses personagens, novos grupos passaram a ter acesso às “altas rodas”, passando a acessar, portanto, os
bens simbólicos a que estas eram privilegiadas (MARIA, 2008).
218

ostentação de “objetos de distinção” – viagens, repertório de consumo, comportamento, etc. –


que eram observados atentamente por determinadas classes sociais que não podiam ter acesso
a esses bens.
Sugiro que esse tipo de linguagem foi profundamente apropriado pelos grupos de
amigos que faziam circular os jornaizinhos das turmas de “bichas” e “bofes”. Essa linguagem
exercia atração entre estes homens por apresentar o “mundo de sonhos” das elites, o qual era
parodiado pelas turmas e veiculado nos pequenos jornais. Essa paródia, ou “inversão do
mundo”, tinha uma dupla função: celebrar reconhecimento entre eles mesmos através da
agência coletiva e criar um espaço de resistência possível no qual a rejeição poderia ser
momentaneamente esquecida graças ao glamour, ao lúdico e ao criativo. De certa forma, eles
reelaboravam na experiência das turmas aquele “sentimento de communitas” que, como visto,
o carnaval proporcionava.
Aparentemente, os jornaizinhos das turmas não somente fizeram circular novas formas
de classificação sobre as sexualidades não normativas – como mostrou a polêmica em torno
das classificações “bicha/bofe” e “entendidos” –: como ainda imprimiam estilos e gostos que
informavam sobre o “mundo bichal”. Através desses jornais, principalmente O Snob, era
possível penetrar no universo simbólico das turmas, oferecendo a quem não fazia parte delas,
sobretudo em função da distância geográfica, uma sensação de pertencimento. Como aponta
Costa (2010), através dos jornais esses homens fundaram uma densa rede de relações, mas
também, acredito, faziam circular significados sobre o que era ser “bicha”. O sentido sobre as
sexualidades não normativas era orientado por gostos sofisticados, que eram divulgados por
esses jornais.
Esses jornais não escoavam apenas fofocas e informações do “mundo bichal”, faziam
também circular “objetos de distinção”. Assim como no colunismo de Ibrahim Sued, Agildo,
Anuar e outros colaboradores dessa publicação reproduziam nas matérias que escreviam
estilos e gostos que foram sendo consolidados por essas pessoas. Os textos eram
extremamente personalistas, ganhando destaque as viagens, festas, fofocas e outras
informações sobre o estilo de vida de Copacabana. Ser “bicha” implicava reconhecer esse
universo simbólico, cuja leitura dos jornais permitia que fosse compartilhado por indivíduos
em diferentes regiões do país. Aparentemente, os jornais passaram a assumir a função social
dos fã-clubes das cantoras do rádio, estreitando os laços desses homens, apesar das distâncias.
Essas publicações chegavam a esses homens de fora do Rio de Janeiro através dos
correios ou, principalmente, por meio das viagens que aqueles que moravam no Rio de
Janeiro e São Paulo faziam em outras regiões brasileiras. Como percebeu Newton (1979) nos
219

dois anos de pesquisa em que participou ativamente da sociabilidade “homossexual” de


grandes cidades americanas, um dos principais meios de circulação das informações acerca
desse tipo de sociabilidade era através da agência individual – ou seja, por meio das viagens e
dos itinerários feitos por esses indivíduos em diferentes contextos. Essa percepção implica
reconhecer a circularidade da sociabilidade “homossexual”.
As divas eram símbolos através dos quais essa sociabilidade se organizava para fora
de um espaço específico. Através das divas, esses homens tinham acesso a fragmentos
simbólicos com os quais construíam sua performance, incorporando normas de classe e
gênero. Elas ofereciam a eles acesso a um mundo de glamour, como o qual ressignificavam
suas próprias trajetórias e escolhas individuais.
Ao mesmo tempo que as turmas se mobilizavam através dos jornais artesanais, as
“travestis profissionais” se projetavam na Europa. A imagem delas foi fundamental para o
universo dessas turmas. Elas eram vistas como exemplo de profissionalismo e arautos dos
novos tempos. Rogéria chegou a oferecer duas entrevistas ao Snob ao longo da existência
desse veículo. A faustosa temporada europeia dessas “travestis” oferecia ainda mais material
simbólico para a dinâmica dessas turmas. Ver o sucesso dessas “travestis” encoraja ainda
mais o début dessas turmas na sociedade.
As “travestis” criaram o ambiente propício para que eventos realizados no silêncio dos
apartamentos, como eram os concursos de miss, fossem realizados em clubes da cidade,
contando com a presença de diferentes segmentos sociais. É possível sugerir que com as
“travestis profissionais” as divas passam da imaginação à realidade, materializada em
trajetórias de vida e carreiras de fundamental importância para esses homens cuja experiência
era marcada pela clandestinidade.
Este capítulo se dedicou a analisar a ideia de diva e sua relação com as sexualidades
não normativas. Foi possível perceber que a diva está diretamente conectada a um
personagem ainda mais antigo, a “mulher fatal”, presente na literatura e na mitologia em
diferentes contextos. A “mulher fatal” foi reelaborada pelo mercado de bens culturais,
convertendo-se na diva moderna. A importância dessa personagem na trajetória de vida de
indivíduos fora da norma heterossexual ganhou centralidade nesta análise. Foi através das
divas que indivíduos com trajetórias de vidas atomizadas em função de sua experiência não
heterossexual puderam se reconhecer e se agregar.
Sugeri que as divas possuíam a força de um imã para essas trajetórias, configurando
um totem animado por relações de sociabilidade e solidariedade. As divas e seu mundo de
glamour foram o material simbólico central na construção de pautas de sociabilidade e
220

também por um tipo de agência capaz de fazer com que esses indivíduos penetrassem na
sociedade. O jornal O Snob foi um exemplo importante da forma como essa imaginação sobre
a diva e o glamour operou um universo simbólico que, incorporando normas relacionadas a
classe social e gênero, pôde resistir à norma sexual hegemônica.
221

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando comecei esta tese, meu objetivo era dar continuidade aos achados da pesquisa
que realizei no mestrado entre os frequentadores de um espaço de sociabilidade
“homossexual” que existe desde a década de 1960, a Turma OK. Neste espaço tive vários
insights interessantes acerca desse grupo e de sua lógica de funcionamento, mas, dentre todas
as observações que fiz, nenhuma me chamou mais atenção do que o apreço dessas pessoas
pela ideia de glamour. Foi a partir dessa percepção que comecei a esboçar uma tentativa de
compreensão desse universo que oferecia sentidos, significados e valores às sexualidades não
normativas tal como vivenciada por esses sujeitos. Logo, pude perceber que o glamour era
muito mais que um valor ou modo de vida a ser perseguido por essas pessoas hoje tidas como
mais velhas: ele estava inscrito em suas trajetórias e memórias, era parte indelével de uma
identidade coletiva. Tal identidade havia sido forjada em um passado não tão distante, mas
articulada a diferentes eventos impulsionadores de transformações sociais importantes. Dada
essa motivação de analisar essas questões, comecei a perceber a necessidade de pesquisar as
conexões entre as sexualidades não normativas e um mundo novo para mim, um mundo
povoado de vedetes, “mulheres fatais”, misses e divas. Foi a partir desse mundo de sonhos e
imagens (MORIN, 2007) da “cultura do entretenimento” que busquei compreender os
agenciamentos sociais e políticos, a produção de sujeitos, as “comunidades imaginadas” e as
mudanças nas convenções relacionadas à produção social das sexualidades não normativas no
Brasil.
Estudos envolvendo a relação entre as sexualidades não normativas e o mercado de
bens culturais e de entretenimento são ainda escassos na academia brasileira. Associada a esta
insuficiência, a literatura antropológica sobre as “homossexualidades” também não possui
muitas iniciativas de pesquisa sobre as décadas anteriores ao surgimento do movimento
homossexual no Brasil. Considerando essas lacunas, pensava poder contribuir tanto para o
campo antropológico de estudos de gênero e sexualidade quanto para a história das “formas
de vida” relacionadas às sexualidades não normativas no país, um campo marcado por fontes
de dados fragmentadas ou sentenciadas ao apagamento. Essa última ambição parte de um
interesse individual e político, que é pautado pela necessidade de melhor conhecer nossos
antecedentes históricos.
Com essas ideias como desafio, comecei a reunir fontes que convergiam, sobretudo,
para um grupo específico de pessoas quando associadas à ideia de glamour: as “travestis
222

profissionais”. Esse grupo conformava um conjunto de sujeitos considerados pioneiros na


carreira, legitimada por viagens e estadias em outros países, e pelas primeiras iniciativas de
transformação corporal registradas no Brasil e no mundo. A documentação histórica e as
trajetórias de vida que ia reunindo foram evidenciando para mim que, em um período não
muito longe, década de 1960 até meados de 1980, essas “travestis profissionais” foram sendo
transformadas: antes objeto de escárnio nos bailes da Praça Tiradentes, tornaram-se objeto de
fascínio de um público que afluía aos teatros para vê-las e celebrá-las.
Foi a celebração deste “corpo travesti” o responsável por levar um público cada vez
mais amplo aos teatros para prestigiar aquela agora considerada “maravilha” da modernidade.
O conjunto dos dados apresentados possibilita perceber a intensa negociação de espaço, tendo
como foco o nascente mercado de bens culturais, entre estas “travestis profissionais” e uma
sociedade cuja elite foi um importante mecanismo de ressignificação e reconhecimento das
mesmas. Foi através do consumo dessa elite – composta por artistas consagrados, damas da
sociedade e até mesmo uma ex-primeira-dama de um presidente da ditadura – que essas
trajetórias exemplares foram recriando um outro lugar na sociedade. Ressignificadas pela
chave do moderno e cosmopolita, as “travestis profissionais” inverteram o jogo a seu favor,
convertendo o desprestígio social associado aos seus estigmas em valores centralizados em
um simbolismo corporal específico.
Comecei a perceber que por trás dessas “travestis profissionais” confluíam diferentes
contextos responsáveis por provocar existências alternativas à heteronormatividade. Esses
contextos ofereciam o material simbólico indispensável à imaginação de sujeitos que se viam
“fora da norma”. Tais contextos estavam relacionados ao mercado de bens culturais e de
entretenimento que se formava no Brasil. Com ele, crescia o interesse por cantoras do rádio,
pelas misses e também pelos concursos de fantasias nos bailes de carnaval. Nesses espaços
que celebravam o glamour, sujeitos tidos como fora da norma heterossexual puderam
constituir uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008), um espaço de cooperação e
compartilhamento de interesses comuns, onde podia negociar sentidos e significados
associados ao seu estigma.
Fui levado a crer que o glamour foi uma forma vista por esses indivíduos para habitar
um mundo hostil às suas sexualidades não convencionais. Ofereceu ainda um “mundo de
ideias” (BAKHTIN, 1993) para que essas pessoas organizassem sua experiência individual e
coletiva através de símbolos que de modo mais pleno o dramatizaram: as divas. Pelo que pude
perceber, o glamour era a única linguagem através da qual essas pessoas podiam elaborar as
suas trajetórias de vida, seus projetos de futuro e ampliar seu “campo de possibilidades”
223

(VELHO, 2003). Não é sem motivo que as narrativas e performances desses indivíduos
incorporam de forma tão plena essa performance de glamour. Parece que esta ficou retida em
suas memórias e em seus corpos, sendo ainda hoje vivenciada como resistência através de
performances materializadas nas noções de “close”, “fechação” e “lacração”.
Mas não foram somente as “travestis profissionais” que agenciaram essas mudanças
através do espectro do glamour. No capítulo 3 é possível perceber o quanto a trajetória do
costureiro Dener e o seu edulcorado mundo povoado pelo Jet Set paulistano favoreceu a
construção de sentidos e significados sobre as sexualidades não normativas. Tido com um
dândi por seus modos considerados afetados e hábitos excêntricos, Dener foi objeto de
consumo de uma elite em plena ascensão que via em suas roupas uma forma de acesso ao
cosmopolitismo. Sua fama o levaria a um dos programas de auditório mais vistos naquele
contexto, o Programa Flávio Cavalcanti. Tal presença em um veículo tão massificado
converteria a imagem e performance de Dener, e outros como ele, em um “pânico moral”
dada a sedução que seus “trejeitos” e “faceirices” exerciam sobre este imenso público. Nunca
se falaria tanto sobre estes “tipos efeminados” como a partir de Dener.
Tanto as “travestis profissionais” quanto Dener promoveram rupturas no sentido de
clandestinidade relacionado às sexualidades não normativas. Mesmo sendo assimilados a um
lugar-comum, a “bicha”, esses sujeitos possibilitaram ressignificar aquele lugar de
desprestígio relacionado a essas formas de sexualidade. Tal lugar é revisitado por antigos
“pânicos morais” quando diante de dois processos analisados nesta tese: o fenômeno Roberta
Close e o advento da AIDS. Pensados a partir de seus impactos nos sentidos e valores
relacionados às sexualidades não normativas, esses eventos tiveram dois resultados imediatos:
a abrupta tentativa de recolocar essas sexualidades naquele lugar simbólico de desprestígio e a
acentuação dos discursos referidos às sexualidades não convencionais.
Atualmente, o mundo em que essas pessoas consolidaram suas trajetórias de vida é
parte de um passado ainda pouco explorado pelos estudiosos do tema. Os concursos de miss,
a radiofonia, os concursos de fantasia carnavalesca e os “shows de travestis” são itens de um
passado cada vez mais menosprezado por uma geração de pessoas, incluindo os modernos
“gays”. Seria oportuno, para encerrar esta tese, perguntar onde se situam, nos dias atuais,
essas a quem reputamos de “pioneiras” e “desbravadoras”.
Daquele conjunto de pessoas restaram algumas poucas que continuam organizando as
suas vidas aliadas à lógica do show business. Divina Valéria, hoje septuagenária, segue
viajando e morando nas cidades onde faz apresentações. As poucas joias que sobraram, ela
pôs à venda. Disse que não mais as usava, pois os tempos não são mais como aqueles de
224

antes. São tempos sem glamour, afirmou. Quando a entrevistei, em uma tarde em
Copacabana, seu discurso era nostálgico daquelas épocas áureas em que transitava na Riviera
Francesa. Contudo, essa nostalgia não parecia se relacionar aos bens materiais à sua
disposição naquele momento de sua vida, mas antes à forma como habitava os espaços,
daquele “lugar social” que não é mais o mesmo. O apagamento desse lugar é um ponto
importante a ser ressaltado.
O glamour permitiu que essas pessoas penetrassem na norma, dotando-as de um
“privilégio de exibição”. Ou seja: constituiu uma forma de gestão da visibilidade, agenciando
o estigma associado aos pânicos morais relacionados às sexualidades não normativas.
Entretanto, em algum momento, pessoas como Dener, Clóvis Bornay, as “travestis
profissionais” e mesmo a Turma OK foram sentenciadas a um lugar de silêncio. O conjunto
dos dados analisados ajudou a compreender como essas pessoas passaram de “espetáculos de
consumo” (MCCLINTOCK, 2010) a ocupar um lugar de silêncios e apagamentos. Poucas
estratégias têm sido construídas para restituir esse lugar de fala dessas pessoas. A atriz
Leandra Leal é uma das raras pessoas que vêm contribuindo neste sentido. Seu protagonismo
no projeto Divinas Divas vem cooperando para revelar à sociedade brasileira o protagonismo
dessas “travestis profissionais”, no tocante a suas contribuições para a história do teatro
musicado.
Não somente o projeto Divinas Divas busca restituir esse “privilégio de exibição”
apagado dessas pessoas, outras dessa geração, como Yeda Brown, Susy Parker e Claudia
Celeste, também intendem, através de uma agência ativa, contribuir com esse processo. Yeda
Brown e Susy Parker moram juntas em um pequeno apartamento na Tijuca, bairro da Zona
Norte do Rio de Janeiro. As duas e Claudia Celeste também mantêm uma agenda de
apresentações em diferentes locais que se abrem para elas. A idolatria à cantora Marlene
segue viva em um programa de shows cujo objetivo é reviver as cantoras do rádio. Dessa
forma, elas são seguidas pelos “marlenistas”, fãs de Marlene que buscam nas três estratégias
para reviver o estrelato daquela diva. Somente em 2016 Yeda conseguiu a documentação civil
com o seu nome feminino, uma importante celebração dessa geração com os ganhos da
política pró-LGBT moderna.
Rogéria, a mais midiatizada atualmente, segue também fazendo pequenas
participações na televisão. Sua imagem, junto à de Roberta Close, é a mais lembrada quando é
referida a participação das “travestis” na mídia. Essa lembrança gera ansiedades entre as
demais dessa geração, posto que, afirmam, parece que no Brasil existiram e existem apenas as
duas. As posições de Rogéria sobre a “homossexualidade” são motivo de grande desprezo
225

pelo movimento LGBT moderno. Contudo, o coroamento de sua carreira ocorreu bem
recentemente, segundo seus relatos. Foi quando ela viveu uma mulher biológica na novela da
Rede Globo, Lado a Lado.
Tal feito é digno de reflexão, uma vez que aponta para valores e sentidos articulados à
sua trajetória de vida e carreira artística. Rogéria sempre tratou de construir a sua carreira
associando-a à ideia de “família brasileira”. O slogan que persiste em acionar em diferentes
veículos de comunicação em que aparece só faz ratificar esse compromisso: “a travesti da
família brasileira”. O esforço de Rogéria pode parecer aos militantes modernos extremamente
conservador e inútil ao ativismo LGBT, mas ele comunica muito acerca dessa geração de
pessoas que viram no glamour um mecanismo simbólico importante. A atuação como uma
personagem feminina, não “travesti”, implicou para Rogéria a sua adesão plena pelas normas.
Mais do que abrilhantar a sua carreira de atriz, ela estava habitando definitivamente a
sociedade.
O conjunto dessas trajetórias de vida ainda é uma fonte inesgotável de informações
sobre a construção histórica das sexualidades não normativas no Brasil. Já havia destacado tal
questão na dissertação de mestrado. Considerando a relevância dessas trajetórias, retomo aqui
o problema que identifiquei logo no começo dessa tese, quando narrei minhas impressões
sobre o velório de Marquesa: o perigoso desaparecimento dessas pessoas. Por fim, não quero
afirmar com isso que exista um “pessimismo sentimental”, em expressão de Salhins (1997),
envolvendo a pesquisa sobre sexualidades não normativas. Quero, antes, alertar para o quão
fragmentadas ainda se encontram essas informações, que sem a agência desses interlocutores
privilegiados torna-se tarefa quase impossível acessar.
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BITTENCOURT, Francisco. Brasil: campeão mundial de travestis. Lampião da esquina, Rio


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BUENO, Tati. D. Yolanda desabafa: faltam homens com H. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, a. I,
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CANIVELLO, Mario Fernando. Mulheres declaram guerra ao travesti que está fazendo a
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ELOÍNA dá o serviço: operação, implantes, silicone etc. Lampião da Esquina, Rio de


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GAY Fantasy: um sonho de verão empolga o Rio. Fatos & Fotos, Rio de Janeiro, 1981.

MAYNART, Marcos. Manchete contrata travesti para estrelar novela. Contigo, Rio de
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NASSER, David. Go home, bicharada! O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 12 jun. 1972, p.12.

ROCK Hudson: his name stood for Hollywood's golden age of wholesome heroics and light
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ROGÉRIA super star. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, a. 03, n. 32, jan. 1981.

TRAVESTI S.A. Uma sociedade nada anônima (nem limitada). Revista Manchete, Rio de
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RÁDIO E TELEVISÃO

ROGÉRIA. Rogéria sem mágoas: “Meus tios me bolinavam sob meu consentimento”. Portal
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DIVINA Valéria. Perfil & Opinião, Salvador, 15 ago. 2012. Programa de TV. Entrevista
concedida a Denny Fingergut.

ROGÉRIA. Canal Livre, Rio de Janeiro, Rede Bandeirantes, 1980. Programa de TV.
Entrevista concedida a Roberto D’Ávila.

LEANDRA Leal, Rogéria, Eloína e Jane Di Castro. Lado Bi. Rádio UOL, São Paulo, 25 set.
2014. Entrevista concedida a Marcio Caparica e James Cimino.
241

ANEXO I – Capa do disco gravado por Divina Valéria em 1966


242

ANEXO II – Capa do jornal O Pasquim, 1973.


243

ANEXO III – Programa do espetáculo O planeta é das bonecas


244

ANEXO IV – Capa da revista Fatos & Fotos com o elenco do espetáculo Gay Fantasy
245

ANEXO V – Capa do jornal Lampião da Esquina com as “travestis” da geração de Rogéria,


1981.
246

ANEXO VI – Marquesa no Chez Romy Haag


247

ANEXO VII – Entrevistas de Marquesa a veículos decomunicação em países da Europa


248

ANEXO VIII – Fotografias do espetáculo Misto Quente, com Valéria e Agildo Ribeiro
249

ANEXO IX – Divina Valéria fotografada por Antonio Guerreiro


250

ANEXO X – Capas da revista Playboy com Roberta Close

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