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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

OSWALDO ZAMPIROLI

AMORES SUBTERRÂNEOS: Família e Conjugalidades em


Trajetórias de Prostitutas Trans-Travestis

RIO DE JANEIRO
2017
Oswaldo Zampiroli

AMORES SUBTERRÂNEOS: Família e Conjugalidades em


Trajetórias de Prostitutas Trans-Travestis

Dissertação de mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social

Orientadora: Maria Elvira Díaz-Benítez

Rio de Janeiro
2017
CIP - Catalogação na Publicação

Zampiroli Cerqueira, Oswaldo

Z26a Amores Subterrâneos: Família e Conjugalidade em


Trajetórias de Prostitutas Trans-Travestis / Oswaldo
Zampiroli Cerqueira. -- Rio de Janeiro, 2017.
125 f.

Orientadora: Maria Elvira Díaz-Benítez.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós


Graduação em Antropologia Social, 2017.

1. Transexualidade. 2. Amor. 3. Conjugalidade.


4. Família. 5. Travestilidade. I. Díaz-Benítez, Maria

Elvira, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ


com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Oswaldo Zampiroli

AMORES SUBTERRÂNEOS: Família e Conjugalidades em Trajetórias de Prostitutas Trans-Travestis

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social

Aprovada em 21/02/2017

_________________________________________
Presidente, Profa. Dra. Maria Elvira Díaz-Benítez
(PPGAS/MN/UFRJ)

_________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
(PPGAS/MN/UFRJ)

_________________________________________
Prof. Dr. José Miguel Nieto Olivar
(PAGU/UNICAMP)
_________________________________________
Prof. Dr. John Comerford (suplente)
(PPGAS/MN/UFRJ)

_________________________________________
Prof. Dr. Raphael Bispo (suplente)
(PPGCSO/UFJF)
À minha mãe.
AGRADECIMENTOS:

Essa dissertação é resultado de um pouquinho de toda essa gente:


É difícil pensar em começar diferente. Agradeço fortemente às quatro
mulheres que resolveram compartilhar comigo pedaços de suas vidas. Ana, Alice,
Donatela e Paula, meu carinho por vocês é grande e sou uma pessoa melhor depois
ter aprendido tanto com vocês. Agradeço sobretudo à Donatela, que se tornou uma
grande amiga e grande torcedora desta dissertação, obrigado.
Sou grato também à Maria Elvira Díaz-Benítez, orientadora dessa dissertação,
que esteve sempre ao meu lado apoiando e respondendo com entusiasmo todas as
pequenas vitórias nas investidas etnográficas que fui conquistando. A grande
sensibilidade de Melvi, como carinhosamente a chamo, é fonte de grande inspiração
para mim não só como acadêmico, mas como pessoa.
Numa vida dividida entre três cidades: Rio de Janeiro, Juiz de Fora e
Manhuaçu, acabei acumulando muitos amigos, seja para papear em botecos, seja para
contar fofoca ou para reclamar da vida. Do Rio, agradeço a Lucas Freire, Everton
Rangel, Carolina Maia, Nathalia Gonçales, Camila Bevilaqua, Camila Fernandes,
Ana Lucia Ranna, Francesca Repetto, Bianca Marcossi, Bárbara Pires, Michel
Carvalho, Paula Ivo, Silvia Moneratt, Marlise Rosa, Natânia Lopes, Telma
Bermeguy, Anderson Pereira, Morena Freitas, Lucas Bártolo, Thais Mendes e Cecília
Granato pela companhia. De JF, agradeço a João Pedro Santos, Samantha Ribeiro,
Paula Gall e Paulo Henrique Lopes.
Em Manhuaçu, pequena cidade do interior de minas onde fui criado, ser
criança viada não era lá muito fácil. Então meus profundos agradecimentos a todes os
amigos do “brejo” que desde sempre estiveram presentes na “força tarefa” contra
LGBTfobia e até hoje seguimos nos apoiando: Rafael Mayrinck, Felipe Matthes,
Tuanny Campos, Tallys Windson, Analua Filgueiras, Thais Mendes, Tulio Ab-
Habib, Henrique Rodrigues, Stefanie Ferreira, Marcela Reis, Diogo Spinola, Tânia
Pinheiro, Taisa Gomes, Felipe Dias e – por último, mas não menos importante, João
Paulo Vieira que foi lendo com entusiasmo essa dissertação e me dando apoio nesse
processo agonístico de escrita. Obrigado! Também em Manhuaçu, Nicolas Franklin,
minha amizade mais antiga e que se manteve irremovível mesmo em face à distância.
Gostaria de fazer um agradecimento especial ao meu trio de Freljord, Rafael
Mayrinck e Felipe Matthes. Os dois, além de serem as outras duas pernas do tripé,
são minhas companhias de bruxaria, magia e feitiçaria.
Ao longo da minha formação acadêmica, tive aulas e fui inspirado por
diversos professores e professoras brilhantes. Agradeço assim à Giralda Seyferth,
Edmundo Pereira, Maria Elvira Díaz-Benítez, John Comerford, Olívia Cunha,
Adriana Vianna e Marcio Goldman. Outro feixe fundamental para a minha formação
foi a minha experiência de estagiário no Centro de Estudos Sociais Aplicados, o
CESAP. Lá conheci e me envolvi pela primeira vez com pesquisa, ainda na
graduação. Foram trocas incríveis e agradeço especialmente Maria Isabel Mendes de
Almeida, Raphael Bispo e Fernanda Lima. Finalmente, agradeço especialmente a
Luiz Fernando Dias Duarte e José Miguel Nieto Olivar pela presença e os
comentários indispensáveis na banca de defesa dessa dissertação.
Um muito obrigado também para os funcionários da biblioteca e da secretaria
do PPGAS não apenas pela disponibilidade e atenção, mas também pela paciência e
dedicação. Um agradecimento em especial à Drica e ao Anderson.
Às minhas alunas e alunos, ao GDN, GTN e PreparaNem Niterói que giraram
o paradigma daquele que ensina e daquele que aprende e me deram aulas de vida que
carregarei para sempre comigo. Agredeço especialmente Bruna por aplicar a ideia de
Indianara e conquistar um espaço em Niteroi de resistência para a população
transexual e travesti.
Agradeço ao grupo de estudos de orientação formado por Maria Elvira Diaz-
Benitez, Fátima Lima, Camila Fernandes, Lucas Freire, Carolina Maia, Nathalia
Gonçales, Bárbara Pires, Samara Freire e Everton Rangel que se dispuseram a ler as
primeiras páginas desta dissertação e deram dicas valiosas que fizeram toda a
diferença no resultado final.
A Marcos Carvalho e Christina Dias pelas dicas fundamentais que acabaram
virando eixos analíticos. E a Raphael Bispo pela amizade e pela inspiração. Grande
parte desta dissertação foi feita enquanto eu estava hospedado na casa de Raphael em
Juiz de Fora – lugar que acabou virando meu refúgio de escrita onde eu tinha à
disposição sua biblioteca e sua atenção carinhosa sempre dando bons pitacos. Muito
obrigado mesmo!
A minha família Zampioli e família Cerqueira por proporcionarem a melhor
infância que eu poderia ter mesmo em face da ausência do meu pai. Aos meus irmãos
Fabinho, Junior, Vinicius e Ana Paula: ter vocês na minha vida fizeram de mim uma
pessoa melhor. Obrigado também à minha cunhada Lucimar, que sempre torceu e
acreditou em mim, e ao meu sobrinho Bernardo por me fazer lembrar de às vezes só
parar e respirar.
Ao Hugo Queiroz eu agradeço pela leitura atenta desta dissertação
diminuindo meus problemas com vírgulas e os vícios disléxicos. Mas mais do que
isso, agradeço os diálogos, as trocas das mais prosaicas às mais intensas. É bom saber
que você está sempre do meu lado dividindo o que a vida tem de bom e o que tem de
ruim. E por fim, agradeço a Elenilda que trouxe de suas vidas passadas (como bruxa,
prostituta e guerreira) suas experiência etéreas em forma de criação. Elenilda além de
ser minha deusa do vento é minha mãe e por toda dedicação dada serei eternamente
grato, nesta e em outras vidas.
Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito
roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar.
Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem
que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa
roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei
lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar,
sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui
parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a
cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota
- tá me entendendo, garotão?

(Dama da Noite, Caio Fernando Abreu)


RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo fundamental analisar a maneira


em que mulheres transexuais e travestis – que possuem em comum a
experiência da prostituição – vivem e exercem seus relacionamentos afetivos
tendo em vista que possuem corpos estigmatizados e marginalizados pela
sociedade que as circunscreve. Desse modo, trarei diversos depoimentos
que atestam as dificuldades de habitar relações com homens cisgêneros que
não as assumem publicamente, dando, portanto, um caráter subterrâneo a
seus amores. Por sua vez, a prostituição também existe como um fator
agonístico que ameaça a relação. Assim, temos dois movimentos de tensão
que são negociados cotidianamente pelos casais. Para compreender as
dinâmicas que atravessam a possibilidade de se relacionarem afetivamente
com homens cisgêneros, dividi a dissertação em três tempos: passado,
presente e futuro, ou como chamei: transpassado, transparente e transborar,
que constroem a trajetória de quatro mulheres trans-travestis desde o início
de suas vidas numa nova roupagem de gênero até aquilo que elas
alimentam de expectativas para si mesmas.
ABSTRACT

The main goal of this thesis is to grasp the way in which transsexual and
transvestite women, who have in common the experience as prostitutes, live
their affections and relationships, considering their bodies are stigmatized
and marginalized by the society around them. This work brings several
testimonies that prove the difficulties regarding relationships with cisgender
men, such as the secrecy, which gives love an underground status.
Furthermore, prostitution is also a source of agony, once it threatens the
relationships. The tension of both characteristics is updated on a daily basis
by the couples. To fully understand the dynamics related to dating a
cisgender man, this thesis is separated in three parts that together build the
life story of four trans-transvestite women, from the beginning of their gender
discovery to the expectations they have for the future.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1

CAPÍTULO 1: TRANSPASSADO .................................................................................................... 13


1.1: ESSÊNCIA E DESTINO ............................................................................................................... 14
1.1.1: Donatela e Alice ................................................................................................................ 14
1.1.2: Ana e Paula ....................................................................................................................... 20
1.2: MULHER TRANS OU TRAVESTI? A QUESTÃO DA IDENTIDADE .................................... 24

CAPÍTULO 2: TRANSPARENTE .................................................................................................... 28


2.1: TRAMAS DA CONFISSÃO E O INÍCIO DO “GRANDE AMOR”............................................ 30
2.1.1: Com Alexandre ................................................................................................................. 30
2.1.2: Com Romário .................................................................................................................... 38
2.2: CUIDADO E CONTROLE: AS NEGOCIAÇÕES DA ROTINA ................................................ 41
2.3: O FIM DA RELAÇÃO .................................................................................................................. 51
2.3.1: O “povo da noite”: a ameaça da prostituição .................................................................... 51
2.3.2: O sítio: a ameaça da família .............................................................................................. 57
2.3.3: As Parcas: a marca etérea de ameaça ................................................................................ 62
2.4: À CONQUISTA DA FAMÍLIA .................................................................................................... 66

CAPÍTULO 3: TRANSBORDAR...................................................................................................... 72
3.1: TECENDO ALICE (DO PAÍS DAS MARAVILHAS) ................................................................. 73
3.2: ENTRE LENÇÓIS OU TESSITURAS DA ESPERA ................................................................... 79
3.3: EM RETALHOS: COSTURANDO SONHOS.............................................................................. 87
3.4: FEMINISMOS, AGÊNCIA E O HABITAR A NORMA ............................................................. 90
3.4.1: Paula a fiar......................................................................................................................... 94
3.5: PANO DE FUNDO ........................................................................................................................ 99

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 106

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................ 111


INTRODUÇÃO

Era uma sexta feira quente de abril. Eu me encontrava no GDN1 em Niteroi num dia
particularmente cheio no lugar e não era em decorrência das aulas do PreparaNem2, mas de
uma associação entre o GTN e uma ONG de dentistas para tratar os dentes de pacientes
travestis e transexuais. As aulas estavam acontecendo de forma não usual, no segundo andar
do prédio. No primeiro andar, palco das aulas em dias com menor circulação, várias pessoas
esperavam o atendimento dos dentistas voluntários. O escritório, agora sala de consulta,
tinha sido cuidadosamente preparado, na medida do possível, para receber dezenas de
pacientes que, em vista da oportunidade gratuita de tratamento dentário, se encontravam
enfileiradas em cadeiras num formato circular à espera de atendimento. Enquanto a aula de
física acontecia no segundo andar, eu estava recolhido no primeiro, observando a
movimentação durante o tempo em que aguardava o horário de minha aula. Não havia
cadeiras para todos os presentes. Haviam pessoas sentadas nas escadas que levavam ao outro
nível e outras de pé. O ambiente estava barulhento, lufadas de risadas que partiam de todas
as direções. “Ai mona, para”. Uma voz alta sobressai na sala barulhenta, seguida de risadas
altas. Sentada na escada estava uma mulher muito bonita, branca e loira de cabelos pintados.
Aparentava ter por volta de trinta anos de idade. Ela era o centro daquela roda de amigos.
Todos os olhares estavam voltados para ela - o que ela falava era seguido de calorosas
gargalhadas. Esta, que mais tarde se tornaria minha principal interlocutora, parecia à vontade
na sala de espera da clínica improvisada. Passando rapidamente o olhar de novo pela sala,
percebi que a maior parte dos barulhos estava sendo causada pelo seu grupo de amigos. No
restante do espaço, havia cerca de dez mulheres transexuais e travestis sentadas de forma
mais tímida e silenciosa. Algumas conversavam mais baixo, enquanto outras aparentavam

1
GDN e GTN ou “Grupo Diversidade Niteroi” e “Grupo TRANSdiversidade Niteroi”, respectivamente, foram
criados pela articulação com a Coordenadoria de Defesa dos Direitos Difusos e Enfrentamento à Intolerância
Religiosa da Prefeitura Municipal de Niteroi, CODIR. Os grupos visam atender “as demandas da sociedade
civil trans e travestis” como descrito em sua página no Facebook:
https://www.facebook.com/permalink.php?id=128712683946977&story_fbid=443440332474209 (último
acesso 13/01/2016)
2
PreparaNem é um curso gratuito preparatório para o ENEM voltado para pessoas LGBTI criado no Rio de
Janeiro por Indianara Siqueira que inspirou outros núcleos pelo país todo (não necessariamente com o mesmo
nome). Atualmente sou professor voluntário de Sociologia no grupo PreparaNem Niterói que acontece na
Avenida Rio Branco, na sede do GDN/GTN e é coordenado por Bruna G. Benevides.

1
estar mais tensas. Talvez seja pelo ambiente novo e adaptado, talvez seja por aflição do
dentista.

De repente, a luz de toda Avenida Rio Branco se apaga. Gritos tomam conta da sala
de espera. Todas as pessoas presentes imediatamente pegam seus telefones celulares e
iluminam algo ou alguém a fim de se perceberem no escuro: “Gente, que isso!”, fala alguém
na penumbra. “Viado, que susto! ”, exclama outra pessoa. Aproximo-me de Bruna,
coordenadora do GTN e do PreparaNem de Niterói e falo “espero que a luz volte logo, não
vai ser bacana dar aula assim”. Bruna então se lembra:

Oswaldo, lembra daquela minha amiga que eu comentei com você que
morou no motel? Então, ela tá aqui. Chama ela pra mim pra eu apresentar
vocês dois”.
Onde ela tá?
Não sei, o nome dela é Donatela3. Acho que ela desceu pra fumar. Dá uma
olhada pra mim e chama?

Desci cuidadosamente as escadas de madeira que nos levavam do primeiro andar para
o térreo. As escadas eram bem velhas, a madeira estava corroída e com algumas partes
podres. Pulei um vão que tinha cedido no meio da escada e continuei a descida observando a
porta para reconhecer quem poderia ser Donatela. Julgando que as risadas tinham cessado
devido ao apagão, percebi que, na verdade, elas haviam sido carregadas para a entrada do
prédio. Donatela estava escorada na parede com um Carlton entre os dedos amarelos de
unhas longas e coloridas conversando com os amigos. Ela era a mulher loira que ria alto.

Donatela, tudo bem? Sou Oswaldo. A Bruna tá te chamando lá em cima.


O que ela quer comigo?
Ah, acho melhor você falar com ela.

Respondi timidamente. Então, Donatela ao pé da escada grita a plenos pulmões:

3
Todos os nomes de minhas quatro interlocutoras são fictícios a fim de preservar suas privacidades.

2
Bruna, viado, o que você quer comigo? Tô fumando caralho!
Sobe aqui , Donatela. Tenho que te falar um negócio.
Não dá pra esperar? Deixa eu terminar esse cigarro.
Sobe logo, mulher.

Donatela olha para mim inconformada e diz: - “É foda, né. Abusada.”. Ela joga
metade do cigarro fora e sobe novamente as escadas. Sigo ela sentindo um grande
constrangimento, pois a informação que Bruna revelaria para Donatela dizia respeito ao meu
interesse de pesquisa e eu havia acabado de gerar um deslocamento o qual ela não havia
recebido de bom grado.

Chegando no topo da escada, Donatela se posiciona no meio da sala, procura Bruna


na escuridão e, finalmente, a encontra. Bruna me chama e somos formalmente apresentados:

Então, Donatela. Esse aqui é o Oswaldo. Ele é um dos professores daqui do


Prepara e tá fazendo uma pesquisa. Eu disse pra ele que você seria perfeita!
Você topa?
Ah, claro. Tudo bem, Oswaldo, prazer.

Trocamos número de telefone, conversamos um pouco e fomos interrompidos com


aplausos. A luz voltou e eu tinha que subir, já estava na hora de dar aula.

Na semana seguinte, primeira semana de maio, marcamos a primeira entrevista numa


quinta-feira. Marcamos de nos encontrar no mesmo lugar em que nos conhecemos. Cheguei
pontualmente, mas Donatela já estava lá. Encontrei-a sentada no escritório do GDN
conversando com uma amiga, também travesti, e dois outros amigos, homens gays
funcionários do espaço. A amiga, negra, de cabelo alisado e sobrancelha muito fina pintada
com henna, tirava o esmalte das próprias unhas de maneira desastrosa. Donatela exclama:
“Ai bicha, para. Deixa eu fazer pra você. Você tá me dando agonia”!

Quando eu entro na sala e me faço ser percebido com um sonoro “Boa noite”
desmancho o clima de descontração que pairava no ambiente. A minha presença ali como o
pesquisador trouxe uma seriedade para o lugar que muito me desagradou. Donatela anuncia

3
Oi Oswaldo, tudo bem? Vou só terminar a unha da minha amiga e já
podemos começar.
Tudo bem! Tome o tempo que quiser.
Você prefere fazer a entrevista aqui mesmo ou num bar? A gente poderia ir
num bar.
Num bar me parece uma boa ideia.

A razão de Bruna ter me indicado Donatela como informante foi porque ela morou
um tempo em motéis em cidades do interior de São Paulo e, até aquele momento, meu
intuito era entender a indústria moteleira pelo olhar da prostituição. Sentados na mesa do bar,
Donatela e eu, na grande presença do gravador, começamos a entrevista.

“É melhor no bar porque eu bebo e fico mais soltinha” – disse Donatela.


“É melhor no bar porque eu bebo e fico menos tímido”.

Embora a aparente facilidade de conseguir fazer trabalho de campo tenha encabeçado


o início desta dissertação, a recontagem da cena acima intenta destacar o contrário. Isto é, a
descrição prosaica da apresentação entre duas pessoas acaba por demonstrar, na verdade, um
périplo por objetos e interesses de pesquisa que foram se modificando ao longo do tempo.
De uma simples descrição de duas pessoas que se conhecem e irão tecer uma convivência
mais profunda, é possível desvelar um cotidiano de buscas e mudanças temáticas. Para
recapitular meu trajeto até esse dia e apresentar como o tema de “Amores Subterrâneos” foi
sendo transformado durante o processo de pesquisa, notas do percurso se fazem necessárias.

Parto da afirmação de que minha pesquisa de campo se fez de maneira absolutamente


descontínua. A forma como vim a pesquisar prostituição, focando na experiência de quatro
mulheres transexuais e travestis que possuem em comum a experiência de serem ou terem
sido prostitutas em algum momento de suas vidas4 não foi definitivamente o que eu previra

4
No que diz respeito a Alice, uma de minhas informantes, o subtítulo dessa obra não a contempla exatamente.
Embora ela tenha tido a experiência de se prostituir durante alguns anos de sua vida, ela é enfática ao dizer que
“não sou prostituta, eu estive prostituta”. Pensar em “Família e Conjugalidades em trajetórias de prostitutas
trans-travestis” gera uma identidade estática a qual, infelizmente, por falta de um subtítulo mais abrangente,
não captura a experiência das quatro mulheres como um todo. Optei, portanto, em nomear o texto privilegiando
as outras três que atualmente exercem a profissão. Todavia, tomei essa decisão consciente de que Alice não se
ofende e nem se envergonha do período em que se prostituiu, mas pelo contrário, transforma politicamente este
momento de sua vida em uma plataforma de reivindicação de mais direitos para as mulheres transexuais e
travesti através de seu blog pessoal e de seu atual trabalho como atriz.

4
lá no início de 2016. Tampouco, imaginei, uma vez decidido o recorte da minha pesquisa,
que o que eu acessaria da vida dessas incríveis mulheres fosse algo que julguei tão cotidiano
quanto o amor.

A pesquisa que eu tinha em mente quando entrei no mestrado era de entender o


funcionamento de motéis temáticos no Rio de Janeiro. Nos primeiros meses de 2016,
dediquei-me a entrevistas com funcionários de motéis e, se eu tivesse sorte, conseguir
trabalhar voluntariamente em algum por algum tempo. O curto período de mestrado
impossibilitou que meu investimento para conseguir fazer este campo como funcionário de
um motel fosse prolongado. Nos poucos meses que eu tinha para começar realmente a
pesquisa, visitei e conversei com dezenas de motéis e funcionários no intuito de conseguir ao
menos fazer uma entrevista. Dentre a grande quantidade de lugares que entrei em contato,
obtive êxito apenas com uma camareira de um motel da Avenida Brasil5 e um atendente de
um dos estabelecimentos mais caros do Rio de Janeiro. Nos demais estabelecimentos, minha
presença foi rejeitada sem nenhuma cerimônia. Num motel da Glória, por exemplo, fui
convidado a me retirar pelo segurança do espaço enquanto esperava na antessala o gerente
(eu já havia o contatado por e-mail e ele sabia a razão da minha visita). Em outro, também na
Glória, a atendente me disse com uma voz ríspida: “você não vai conseguir fazer essa
pesquisa não, melhor desistir”. Lembro-me ainda do nome dela.

Uma vez que fui incapaz de rasgar o véu da formalidade e da crença de que eu
desmancharia qualquer forma de anonimato nos motéis que visitei, resolvi deslocar um
pouco meu eixo de pesquisa. Na insistência de continuar meu caminho em busca de
informações sobre a indústria moteleira, resolvi, em seguida, tentar enxergar o motel de fora,
pela visão dos clientes e das prostitutas. Foi então que comecei a fazer outras entrevistas no
intuito de destrinchar o espaço por outros pontos de vista. E, assim, conheci Donatela.

Entretanto, todo meu esforço para a manutenção da temática de motel parecia em


vão. Os entrevistados queriam sempre conversar sobre outros assuntos, sobretudo durante as
entrevistas com mulheres prostitutas. Assim, mais uma vez, decidi fazer uma segunda
mudança de eixo, desistindo do motel como objeto de estudo, e focar na experiência da

5
O contato com a camareira foi dado por Natânia Lopes, uma amiga antropóloga que gentilmente conseguiu
essa entrevista.

5
prostituição, até então um assunto inédito para mim, tentando perceber o que as entrevistas
me contariam.

Ora, a prostituição desperta em muitas pessoas curiosidades de todas as sortes. O


mercado, a violência, a deriva, o sexo. Curiosidades essas que podemos chamar aqui de o
espetaculoso da prostituição. A busca pela “dimensão mais sensacionalista” (Kulick 2008:
25) foi justamente o que me dispus a procurar num primeiro momento. Nas entrevistas que
fazia, sentava frente a frente com minhas interlocutoras e perguntava questões que
transportavam em si as mesmas curiosidades sobre tal prática.

Com segurança, posso afirmar que a relação conflituosa entre expectativa e realidade
foi a tônica até que o tema desta pesquisa finalmente se revelasse. As respostas das perguntas
que eu havia preparado sobre o evento, que eu julgava que encontraria, quase nunca me eram
dadas. A contrapartida às perguntas feitas mostrava-se, na verdade, como introdução a outros
assuntos os quais geralmente diziam respeito a atividades mais triviais do cotidiano daquelas
pessoas. Pensei diversas vezes que talvez a forma como me aproximei de todas elas, ou
talvez, a maneira como eu perguntava no momento preciso da entrevista não fosse
apropriada. A ideia de pesquisar as dimensões da vida afetiva que estas mulheres
compartilharam comigo tornou-se mais clara na terceira entrevista com ninguém menos que
Donatela. Ela constatou: “Eu acho que a mulher (não-trans) que se prostitui procura o
príncipe encantado. Como há várias travestis que também procuram. O maior problema das
pessoas que se prostituem é o afeto”. Perguntei, em seguida, o que ela queria dizer com tal
afirmação. Ela respondeu:

Você já leu o que o Arnaldo Jabor escreveu a respeitos das travestis


prostitutas?6 Eu super me identifiquei com aquilo. Eu não me lembro

6
O trecho que Donatela recorda é o seguinte
“Acho os travestis figuras shakespearianas, de
grande dramaticidade, centauros urbanos, corajosos,
encarnando duas vidas num corpo só.(...)
O homem que se casa com a prostituta é
considerado um 'benfeitor' que humilha um pouco a
mulher amada que salvou. O travesti nunca será grato a
você; você é que terá de lhe agradecer. O travesti não
dá uma boa esposa; você é que poderá virar uma boa
esposa para ele: "Querida, já lavei sua minissaia de
oncinha..." Você não tira um travesti da 'vida'; ele é
que pode te tirar da tua. Ele tem tudo; ele é

6
exatamente as palavras ditas... Lindo, lindo. Sobre os centauros que
caminham pelos carros e procuram alguém pra lavar suas calcinhas, suas
roupas e suas saias. Toda travesti que se prostitui se encaixa um pouco ali.
A gente procura uma pessoa que te entenda. A gente não procura por
alguém que faça os serviços de casa, a gente só procura por alguém que te
compreenda. Entendeu? Eu entendo por esse lado. É uma coisa muito difícil
alguém que compreenda o mundo da prostituição. Nem quem vive perto.
Meu namorado viveu, o Alexandre viveu isso por quatro anos e ele nunca
conseguiu compreender.

Realizei diversas entrevistas, algumas pessoalmente, outras por redes sociais, com
algumas em maior número de ocasiões e com maior intensidade, e com outras menos. O fio
condutor dessas entrevistas foi a revelação de uma grande dimensão emocional em suas
narrativas que eu não estava levando em consideração num primeiro momento, aturdido por
outras expectativas típicas do empreendimento científico. Acredito fortemente que o fato de
eu ser gay facilitou bastante a identificação e a possibilidade de relação com essas mulheres7.
Tive acesso a lembranças muito importantes de suas vidas, lembranças de amores ou
sentimentos, aparentemente, de solidão. No fim, na busca pelo “espetaculoso da
prostituição”, em que agora cabem as aspas, recebi nada mais que aquilo que até então eu
julgava trivial. Sentimentos do dia-a-dia, daqueles que deixamos escapar fugazmente. Quiçá,
para elas, o trivial fosse a própria prostituição e o espetáculo fosse a vida cotidiana, o amor,
o casamento e a família.

Um outro fator que acredito ser fundamental para o estreitamento da minha relação
com três das quatro mulheres aqui pesquisadas foi o fato de que eu gosto e entendo de
astrologia. Donatela, Alice e Ana usam e justificam diversas ações que tomam em suas vidas
em função de seus respectivos signos solares: áries, libra e gêmeos. Isso me motivava a fazer
o mapa astral de cada uma delas e a explicar as características mais detalhadas que outros
elementos para além do signo solar podem revelar sobre a personalidade de cada. De certa
maneira, houve a manutenção do antropólogo como autoridade. Mesmo despido de óculos
ou de um jeito brechtiano8, conhecer um pouco mais sobre os signos do zodíaco me

auto-suficiente.(...)”
Disponível completo em: http://lara-outroladodoespelho.blogspot.com.br/2011/07/arnaldo-jabor-escreve-o-
travesti-esta.html (último acesso em dezembro de 2016).
7
Como a leitora e o leitor perceberá ao longo da leitura desta dissertação, por diversas vezes minhas
interlocutoras se referiam a mim como “bicha”, “viado”, “mona” ou “amiga”. Fato este que demonstra
identificação e aproximação.
8
Sobre o antropólogo, Perlongher (1984) diz “Se a antropologia é, como dissemos, a "ciência do outro", quais
serão as condições de constituição desse "outro" nas "sociedades simples"? Para não dar exemplos etnográficos

7
conferia, justamente, certa autoridade na relação. Todavia, em concomitância, é possível
pensarmos na similitude de experiências que o fato de eu ser gay veio a ocasionar, podendo
assim justificar os depoimentos sobre rechaço e discriminação que sofreram. Ademais, o
interesse mútuo por signos do zodíaco, mesmo em face à autoridade que eu poderia exercer
por “saber mais”, gerava uma abertura para uma simetria na relação. Desse modo, a
astrologia, assuntos de maquiagem e minha orientação sexual me permitiram desmanchar as
assimetrias de classe, formação e capital cultural e investiram casualidade nas conversas. É
mister pontuar isso, pois, como verá a leitora ou o leitor no desenrolar desta dissertação,
diversos aspectos da vida dessas três mulheres apareceram como contrapartida a alguma
informação que eu dava sobre a qualidade de algum signo, casa ou planeta.

Mesmo com o estreitamento da relação pelos fatores apresentados acima, gostaria de


chamar atenção rapidamente ao que diz respeito, sobretudo, às primeiras entrevistas. Ficou
muito claro para mim como o formato das conversas rendeu momentos bastante
“enrijecidos”, algo que em muitos casos contraria o ideário de espontaneidade e “vida
vivida” da pesquisa etnográfica. Se pensarmos na perspectiva de Pierre Bourdieu (2007)
sobre entrevistas e a criação – ilusória – da biografia, poderíamos trazer todas as falas,
discursos e lembranças que me foram confiadas para uma ótica de desvalorização, pela
possibilidade de que tenha havido subnotificações ou exageros. Em outras palavras, as
possibilidades de recontar histórias de vida foram feitas no transformar das expressões da
intimidade em apresentações públicas (Bourdieu 2007). A criação de uma biografia
dependeria, dessa maneira, da possibilidade de comunicação, da capacidade de comunicação
e para quem se está comunicando. Afinal, como afirma o autor:

“[...] através da situação da entrevista que, conforme a distância objetiva


entre entrevistador e entrevistado, e conforme a capacidade do primeiro em

que vocês seguramente conhecem, imaginemos uma cena de um filme que poderia chamar-se algo assim como
"Tempestade no Paraíso": ilha polinésia, vendaval, coqueiros agitando-se, nativos dançando seminus estilo
"Tabu" e uma comitiva ocidental desembarcando no porto: o administrador colonial, de roupa de linho branco e
chapéu Panamá, o soldado de uniforme, às vezes o padre de batina, e, à parte, meio marginal, "quase
brechtiano", um personagem estranho, de óculos: o antropólogo. Nessa situação estritamente imaginária fica
claro de que lado está o antropólogo - do lado da autoridade - e está claro quem são os outros: os nativos
polinésios”. A dúvida que Perlongher traz é de que ao passo que sabemos “descrições exaustivas da
ornamentação dos nativos polinésios: em troca, pouco sabemos acerca de como estava vestida Margaret Mead
em cada uma de suas expedições”. Me pergunto o mesmo no que diz respeito às sociedades ditas “complexas”.

8
“manipular” essa relação, pode variar desde a forma suave de interrogatório
oficial que, sem que o sociólogo perceba, é frequentemente a pesquisa
sociológica, até a confidência e, por último, através da representação mais
ou menos consciente que o entrevistado se faz da situação da entrevista, em
função de sua experiência direta ou medida de situações equivalentes [...]
que orientará todo seu esforço de apresentação de si, ou melhor, de
produção de si.” (Bourdieu 2007: 81).

O que Bourdieu enxerga como problema (a produção de si nas entrevistas) não me


incomoda. Tentei durante a pesquisa me esforçar para captar o que é privilegiado por estas
mulheres quando me contam de suas vidas, como gostam de narrar suas histórias e se
apresentar a mim. Mesmo que eu não tenha acesso ao que me foi subnotificado ou
exacerbado nas falas, possuo interesse, precisamente, na maneira como organizaram e
recriaram suas vidas e assim, tentar entender como esses discursos são expressões da
experiência trans-travesti e da prostituição. Seguindo a proposta de Velho (1986), portanto,
deveríamos “compreender melhor como a gramática social e cultural se expressa ao nível
biográfico” (1986: 56). A produção de si na fala é assim apenas mais um elemento rico para
analisar da trajetória de vida das pessoas. Logo, as “ficções persuasivas” que a antropologia
se põe a apresentar são pautadas aqui segundo a premissa de que a “questão não é
simplesmente como trazer certas cenas à vida, mas como trazer vida a ideias” (Strathern
2014: 175).

Na primeira entrevista com Donatela, ela disse:

A gente vai conversando e eu me perco. Deixa eu só.... É uma barreira que


eu tenho pra falar de tudo isso.

Imagino, se tiver dificuldade e não quiser falar sobre alguma coisa...

Não é dificuldade não. É só uma barreira de chegar ao ponto, de conseguir


se encontrar pela conversa. Mas vou te explicar tudo aos poucos. Mas é que
a vida foi grande, teve muitos obstáculos e... só a preocupação de estar
resumindo aqui pra você, já deixa um pouco tensa a situação.

O trecho que destaquei me trouxe à memória uma forma de pensar o discurso


presente num pequeno texto intitulado “Languages and the politics of emotion” escrito por
Lila Abu-Lughod e Catherine Lutz (1990). As autoras, em momento de grande inspiração
foucaultiana, propõem uma ideia de discurso que não entende a lembrança ou o momento

9
presente como uma referência, mas como uma construção. Isto é, no momento em que o
discurso está sendo proferido passa-se concomitantemente a ser criado um real. Logo, além
do contexto histórico-cultural que envolve o universo daquela que fala, as emoções também
dizem respeito às circunstâncias que formam o discurso. Assim, quando penso em trajetórias
e em discursos é dessa forma que me situo. Por conseguinte, passaremos a analisar as
entrevistas a partir do que é recontado, tendo sempre em vista a importância que as emoções
tomarão ao longo desta dissertação. Para tanto, somo a perspectiva do discurso e emoções à
sua dimensão micropolítica. Isto é, a “micropolítica da emoção” pode “dramatizar, reforçar
ou alterar as macrorrelações sociais que emolduram as relações interpessoais nas quais
emerge a experiência emocional individual”. (Coelho e Rezende 2010: 78).

Perambulei pela cidade realizando um circuito de entrevistas no intuito de realizar a


minha pesquisa de mestrado: da avenida Rio Branco a Niterói, Glória a Lapa, Madureira a
São Conrado. Ao todo, realizei entrevistas com nove pessoas: uma camareira de motel, um
atendente de motel, dois clientes, uma prostituta cisgênero9 e quatro prostitutas trans-
travestis10. Tendo em vista o material que passei – sem querer - a recolher sobre uma certa
“subjetividade da intimidade” da malha do cotidiano, optei finalmente em recortar a pesquisa
para perseguir melhor a trajetória dessas quatro últimas mulheres, Alice, Ana, Paula e
Donatela e, assim, tentar entender como é viver e exercer relacionamentos (entre conflitos e
prazeres) com homens cisgêneros – e vistos como heterossexuais - que não assumem
publicamente as namoradas trans-travestis. Ademais, compreender como a experiência da
prostituição tensiona o cotidiano do casal tendo em vista o ciúme que o namorado pode
apresentar.

Dessa maneira, para realizar tal análise, dividirei esta pesquisa em três momentos:
passado, presente e futuro. Minha intenção em categorizar a passagem de tempo em três -

9
No que diz respeito a termo como “cisgênero” ou apenas “cis”, todas as minhas interlocutoras sabem,
reconhecem e usam de vez em quando o termo (umas mais e outras menos). De modo geral, elas identificam os
homens cisgêneros apenas como “homens”. Já as mulheres cisgêneros são chamadas de “mulher”, “mulher de
verdade”, “mulher biológica”, “mulher não-trans”, “amapô” ou “amapoa”, “racha” ou “rachada”. Escolhi
utilizar “cisgênero” em grande parte do texto pois, além de todas o utilizarem em algum momento, ele permite
uma base comum de termos em detrimento de outros.
10
Durante toda a dissertação usarei para falar das quatro meninas a expressão Trans-Travestis, assim como está
presente no subtítulo dessa pesquisa. A escolha de usar os termos dessa maneira é em razão da forma que cada
uma se identifica. As quatro possuem em comum a experiência de nascer num corpo masculino e transmutá-lo
para um corpo feminino, mas isso não diz sobre a forma como se identificam. Nenhuma das quatro se importa
ou se ofende com a palavra travesti, mas duas delas preferem ser identificadas como transexuais. Portanto, o
termo Trans-Travestis é investido de pluralidade ao explicitar as múltiplas identidades possíveis.

10
como numa flecha retilínea - tem como reflexão preliminar a ideia de que tal linearidade não
se configura de maneira tão essencial como parece expressar. É do pressuposto de memória e
tempo de Deleuze (2007) que tomo como ponto de partida a possibilidade de, ao passo que
estipulo segmentos de capítulo por marcas situadas de tempo, construio memórias e
narrativas por suas características descontínuas. Desse modo, a leitora ou o leitor perceberá
que os capítulos podem se emaranhar e parte daquilo que está em sentença num momento,
será recontado em outro. Intitulados de Transpassado, Transparente e Transbordar, os
capítulos irão recontar narrativas que contêm em si mesmas as vicissitudes do processo de
assumir-se para a família, de se tornar prostituta, de ter um relacionamento monogâmico
enquanto prostituta e de expectativas para si mesmas, respectivamente.

Logo, o primeiro capítulo “Transpassado” tem como intuito pontual localizar a


percepção da diferença. Isto é, a “essência” de mulher, que todas as minhas interlocutoras
evocaram possuir, frente ao impacto desta informação em suas redes relacionais. Ademais,
apresentaremos o início de suas vidas como prostitutas. Por fim, discutiremos brevemente a
questão da identidade transexual vs. identidade travesti e veremos que mesmo em face à
multiplicidade de identidades é possível pensarmos numa experiência homogênea no que se
refere ao campo das emoções.

No segundo capítulo “Transparente” trago o início, meio e fim da relação de


Donatela e Alexandre, Ana e Romário. A escolha dos namorados frente a tantos outros –
narrados nas entrevistas - foi por justificarem que ambos são os “grande[s] amor[es]” de suas
vidas. Assim, analisaremos como a prostituição e a experiência trans-travesti surgem como
tensores das relações amorosas. Ou seja, tensionam quando o namorado decide não assumir
a amada ou pelas negociações que a prostituição incita no cotidiano do casal ou pela
transexualidade. As relações que serão apresentadas no capítulo nos possibilitarão pensar,
num momento final, a dimensão que a família toma nas trajetórias das quatro mulheres.

Finalmente, no terceiro capítulo “Transbordar”, com o apoio das prosas e poesias


escritas por Alice em seu blog pessoal e com postagens de Ana no Facebook, discutiremos o
tocante da solidão, face oblíqua do discurso amoroso e a espera. Dessa maneira, poderemos
perceber a centralidade que as emoções têm em vidas tão marcadas por sucessivas rejeições.
Num momento final, teremos uma pequena digressão sobre feminismos e agências para

11
podermos pensar como estas perspectivas podem ser lidas em trajetórias de mulheres trans-
travestis que se prostituem (ou se prostituíram).

No intuito de revelar de que ficção escolhi utilizar para conduzir esta dissertação
(Strathern 2014) afirmo que houve um esforço para dar um tom antropológico-poético para
as páginas que seguirão. Tomei esta decisão tendo em vista a qualidade com que grande
parte das narrativas foram expressadas nos meandros do campo, revestindo, por conseguinte,
o texto como todo num mesmo véu dramático.

12
CAPÍTULO 1: TRANSPASSADO

Ela é amapô de carne, osso, silicone industrial


Navalha na boca,
Calcinha de fio dental.

(Mc Linn da Quebrada, Mulher)

Tão me olhando por cima


Dizendo pra mim o que pode ou não pode,
Testando a minha fé,
Subestimando o quanto eu sou forte
(Mc Xuxu, Desabafo)

Neste capítulo, iremos discutir as narrativas sobre o início da vida que tecem minhas
interlocutoras como mulheres transexuais ou travestis e como foi que a prostituição apareceu
como possibilidade para cada uma delas. A quantidade de informação que revelaram a mim
sobre seus passados tanto no que diz respeito às suas relações familiares quanto a suas
percepções de identidades, evidentemente, são desiguais, devido ao grau de intimidade
diferenciado que eu pude criar com elas durante a pesquisa de campo e as suas próprias
vontades para falar de si a respeito de questões da vida íntima. O ponto de partida aqui é
criar um pano de fundo sobre a vida dessas mulheres para podermos conhecê-las um pouco
mais e assim discutirmos seus relacionamentos nos demais capítulos.

Desse modo, separei o capítulo em dois módulos. No primeiro, iremos conhecer os


modos como cada uma delas se percebeu como diferente frente a suas redes relacionais e
como a prostituição surgiu em suas vidas. No segundo, discutiremos a questão da identidade
transexual e travesti e como esse dado está ligado a diversos marcadores sociais da
diferença. Desse modo separei minhas interlocutoras em dois grupos, Donatela e Alice,
ambas na casa dos trinta anos, e Ana e Paula, na casa dos vinte anos. Cada um dos pares que
designei possui além da proximidade etária, identidade e experiências familiares similares.

13
1.1: ESSÊNCIA E DESTINO

1.1.1: Donatela e Alice

Donatela nunca conheceu seu pai. Branca, alta e loira, hoje com 32 anos de idade, me
confessou “minha mãe é muito engraçada, ela jogou com a minha vida”. Nascida e criada
num bairro de periferia em São Gonçalo, só foi ter um contato maior com sua mãe quando,
aos doze anos, saiu da casa da avó – que até aquele momento se encarregou de sua criação.
Sua mãe não tinha um bom relacionamento com ela. Aos quinze anos de idade, a mãe de
Donatela foi obrigada pela sua mãe, descendente de alemães, a casar com um homem muito
violento. Aos dezessete anos, já estava se separando. Donatela afirma que o pai “era porra
louca. Depois de dois anos separados com minha mãe, ele comeu ela na agressão e eu nasci.
Depois sumiu”.

A mãe de Donatela casou-se pela segunda vez – com um homem também violento - e
cuidou da filha por mais alguns anos antes que ela saísse de casa para a Itália. Isso se deu
porque o padastro de Donatela percebeu os inícios da “transformação” corporal da enteada e
a expulsou de casa. O processo de transição foi vagaroso. Encantada com as travestis que
apareciam no programa do Sílvio Santos percebeu que queria ter também cabelos grandes.
Donatela conta:

Eu lembro daquela tintura Márcia que era tipo um rolo de filme, misturava
num potinho e deixava preto. [Era] até minha vizinha que me pintava.
Comecei a deixar meu cabelo crescer. Meu cabelo era muito maior, mais
cheio. O loiro acabou com o meu cabelo, por isso tô abandonando ele agora.
[Donatela pede um cinzeiro].
Essa da TV era alguém especifica?
Eram muitas.
Porque nos anos 90 a Roberta Close foi emblemática pra muita gente...
Mais ou menos. Eu já sabia quem era Roberta Close, mas eram muitas
travestis no Silvio Santos. Tinha Angélica Ravaxi, não sei se já ouviu falar.
Tinha a Schneider, qual o nome dela? Erika Schneider. 11

11
Não encontrei referências a Erika Schneider nas pesquisas que fiz. Mas Angélica Ravaxi possui vários vídeos
de performances artísticas no site Youtube.

14
Entre seus 14 e 15 anos de idade, Donatela começou a trabalhar numa empresa de
telemarketing. Foi então que percebeu que tinha dificuldade de falar seu nome de registro no
telefone:

Toda vez que eu falava [o nome de registro] a pessoa ria ou desligava a


ligação achando que era um trote. Meus supervisores, que eu trabalhava
com telemarketing ativa, aquele que a gente pede e briga para a
contribuição, meus supervisores autorizaram eu usar meu nome de mulher.
Eu já tinha cabelo grande, me vestia de menino. Eu já tinha cabelo grande,
estilo rockeiro sabe? Unha pintada de preto. Mas assim, para as pessoas não
me classificarem. Aí eu pegava a condução para a minha casa na esquina
que eu moro hoje. Tinha um ponto de vans exatamente ali onde as meninas
trabalhavam. Trabalham até hoje. Uma vez eu esperando a van, vi uma
travesti imensa, corpão, peitão. Aí me bateu uma curiosidade de saber como
ela fez para ficar daquele jeito. E eu perguntei. Foi dali que eu conheci a
Beatriz e comecei a ter mais amizade. Dali fui ser cabelereira.

A empresa de telemarketing que Donatela trabalhava começou a ter grandes


problemas financeiros que levaram a cortes orçamentários e, assim, à demissão de boa parte
dos funcionários. Após um ano e meio de trabalho, Donatela foi mandada embora. Ela
aprendeu com Beatriz como mudar seu corpo, mas, em concomitância ao processo de
hormonização, foi percebendo que as portas no trabalho formal iam se fechando para pessoas
como ela. “Comecei a tomar hormônio. Meu peito começou a crescer, meu rosto começou a
ficar mais feminino e começou a fechar mais portas ainda”, afirma. Por conseguinte,
Donatela resolveu começar um curso de cabeleireira.

Eu tinha experiência de um ano e meio de telemarketing, mas não achava


trabalho nenhum. Foi aí que comecei meu curso de cabeleireiro, trabalhava
no salão com meu professor. Mas não deu resultado, as pessoas sempre
fechavam a porta “travesti aqui não”. Eu sabia meu destino, né. [grifos
meus]

Sem dinheiro para pagar as modificações caras que o corpo de mulher pedia,
Donatela começou a se prostituir com auxílio de Beatriz (hoje uma cafetina conhecida de
Niteroi).

As modificações de corpo por hormonização foram rápidas. Donatela se empolgou

15
e começou a tomar hormônio exageradamente o que provocou a perda de ereção e,
consequentemente, a perda de uma fatia do mercado do sexo – pois não conseguia “fazer a
ativa”. Essa foi sua primeira percepção no universo das práticas de prostituição de
travesties: os homens, em sua maioria, desejavam ser passivos. Ela me diz que isso se
mantém até hoje, pois a cada dez homens que fazem programa com ela, só um quer ser
ativo. Desse modo, seu processo de transição se fez em concomitância ao se lançar na pista
e nos contornos que a vida de garota de programa exigia. Isto é, o corpo de mulher de
Donatela foi ganhando forma na soma entre as expectativas que tinha para si mesma e aos
padrões estéticos que mais faziam sucesso nas pistas.

Ao sair para trabalhar nesta época, Donatela deixava, como menino (ou “de boy”),
sua casa em São Gonçalo, roubava algumas peças de roupa de sua irmã mais nova (filha de
seu padrasto) e se arrumava na casa de Beatriz. Aprendeu a se maquiar, a se vestir e fazer
o “truque”, ou seja, parecer-se mais com uma mulher. Ela relata que tudo era muito mais
difícil naquela época.

Eu falo de 15 anos atrás. Há 15 anos atrás era muito difícil. Não existiam
ONGs, não existia nada. Parada Gay só tinha em Copacabana e a gente
nem sabia como era o processo de organização da Parada Gay. Não
sabia nada. Era tudo muito fechado. Então eu tinha que me prostituir.
Não tinha outra solução. Se eu quisesse ganhar dinheiro e quisesse ser
travesti... não tinha outra opção. Daí eu comecei a descer na rua com 15
ou 16 anos (...) na praça São João, me prostituía de quinta a sábado.
[grifos meus]

Desse modo, o corpo de mulher que Donatela tanto desejava era projetado de
acordo com alguns padrões de feminino que ela almejava para si e padrões que a
prostituição requeria, mas no fim do dia, como a frase em destaque acima aponta, as
modificações corporais só eram possíveis pelo dinheiro dos programas.

Donatela conseguiu se formar no ensino médio. Inclusive fez vestibular para História
na UERJ e foi aprovada. Entretanto, seu padrasto passou a agredi-la constantemente ao
perceber as mudanças em seu corpo. Até que num determinado dia, ele disse “não vou
aceitar viado na minha casa” e a expulsou. Com dezoito anos de idade, Donatela se viu
perdida. Foi então que resolveu ir para a Itália, pois tudo indicava que ela ganharia muito

16
dinheiro lá. Sua mãe, mesmo endossando a decisão do marido, continuou conversando com a
filha.

Ai, quando eu fui pra Europa, minha mãe não sabia que eu me prostituía
aqui em Niteroi. Ai antes de ir pra Europa, no dia que eu fui eu falei pra ela
que eu estava indo pra me prostituir, que a vida ia ser difícil, que eu não
sabia quando eu voltaria. Comecei a contar um pouco, comecei a ser mais
aberta. A falar um pouco e ser mais aberta, mesmo que poderia doer.

E foi. Donatela abandonou tudo e foi “tentar a vida” em outro país do qual ela não
sabia nada, nem o idioma. Pegou dinheiro emprestado com uma cafetina (dívida que a
perseguiu por muito tempo), tirou o passaporte e partiu para o desconhecido.

Alice, assim como Donatela, também foi expulsa de casa pela figura paterna. Alice é
uma mulher negra, alta e de presença forte. Hoje, com 36 anos de idade, afirma com
segurança “tive uma infância infantil”. É assim que Alice descreve seus dias de criança e
adolescência em Quintino, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro. Sempre estudou em
colégios particulares, que os pais batalhavam para pagar. Na infância, Alice era uma grande
atleta e praticava diversos esportes: vôlei, basquete, natação e futebol (este último por
imposição do pai). Ela diz:

Quando adolescente, sempre pratiquei esportes: de segunda a sexta fazia


natação; as segundas, quartas e sextas quando saia da natação ia para aulas
de basquete; e terças e quintas jogar vôlei... eu era um menino apaixonado
por esportes. Todos esportes que fiz foram com meninos/machos da minha
idade, frequentei vestiários masculinos, usei uniformes masculinos,
inclusive nas aulas de natação usava sunga. Sempre estudei em bons
colégios. Meu universo sempre foi totalmente masculino, posso afirmar tal
fato por jogar futebol aos domingos, num campo de terra junto com
meninos, e alguns não podem confirmar isso por perderem a vida devido
envolvimento com o tráfico

Sua percepção disso que chama de “essência de mulher” se revelou, justamente,


nesses grupos masculinos de esportes. A partir de sua convivência mais diária com outros
homens atletas, percebeu que era diferente dos demais. Os colegas de time a caçoavam com
palavras como “viado”, “bicha”. Palavras que machucavam Alice profundamente. Para ela,
grande adoradora de esportes, ir para os treinos era dolorido, pois ao passo que se divertia
jogando vôlei, teria que se relacionar com os meninos que a hostilizavam por tudo aquilo de
feminino que transparecia nos seus gestos.

17
A perseguição a Alice também acontecia na escola. Ela me conta que foi muito difícil
terminar o ensino médio, mas conseguiu:

Eu tive dificuldades para concluir os estudos pelo meu jeito e por me


identificar com o universo que dizem ser somente feminino. Na verdade, eu
só concluí por ter medo de contar para minha mãe o que acontecia, medo de
apanhar e que meus pais descobrissem que eu era uma menina, aguentei
tudo calada.

Pensando hoje sobre esses dias de “infância infantil”, Alice me revela que sempre
teve uma “mente feminina”, uma “essência de mulher” dentro de si. Tanto no que diz
respeito às suas vontades de se vestir, ter cabelo longo e usar maquiagem, tanto na maneira
que ela fala de amor. Isto é, se entendia como feminina porque tinha paixões platônicas e
criava mundos imaginários. Todavia, num primeiro momento, Alice acreditava que era um
rapaz gay e, assim, diz que só entendeu realmente o que é sofrimento quando começou o
processo de transição.

Aos 23 anos, percebeu que sua atração pelo universo feminino era maior do que
apenas encanto. Ela não só gostava de coisas de mulher, ela queria ser mulher. Aqui,
diferentemente de Donatela, a crise e as perguntas que suscitaram sua identidade não foram
respondida pelas ruas, mas em pesquisas na internet. Desse modo, aprendeu maneiras das
quais poderia utilizar-se para moldar seu corpo como queria. Começou a se hormonizar,
deixou o cabelo crescer e a usar pouco a pouco peças da indumentária feminina. Fato que
não passou despercebido nem pelos olhos de seu chefe e nem pelos olhos de seu pai.

Alice trabalhava numa dessas grandes franquias de roupas. Foi demitida assim que
pediu para ser chamada pelo seu nome social. Quando chegou em casa após sua jornada de
trabalho, foi agredida pelo pai e expulsa, tudo ao mesmo tempo. Graças à rescisão de seu
trabalho e um pouco de dinheiro acumulado, conseguiu comprar uma casa própria numa
favela do Rio de Janeiro e lá foi morar. Na época, Alice namorava um homem que se mudou
junto com ela. O homem em questão era um agressor:

Eu não saí da casa dos meus pais porque quis. Quando me transformei
fisicamente tive vários conflitos em casa, virei motivo de vergonha dos
meus pais e acabei indo morar sozinha. Eu não ia nem visitar meus pais, fui
morar sozinha, eu não conhecia ninguém, longe da família, dos amigos, sem
emprego, tendo que me adaptar a morar numa comunidade do Rio de
Janeiro, me senti numa solidão única e o meu grande erro foi depositar toda

18
essa carência em um homem. Eu confundi solidão com amor, aceitei
traição, agressão, extorsão.

Com a saída do namorado de casa e as incessantes tentativas, em vão, de


tentar trabalhar em um emprego formal, Alice decidiu começar a se prostituir. Sua primeira
vez como garota de programa foi em Copacabana, de noite, perto do posto 6. Ela diz, “a
ansiedade era tanta que o meu primeiro programa foi mixaria, dentro de um carro velho,
cheia de medo, mas eu precisava daquilo para tomar coragem”. Foi entre 2005 e 2008 que
Alice trabalhou como prostituta, ocupação de que ela não gostava, mas na qual acabou se
acostumando com o tempo: “eu não fui prostituta, eu estive prostituta”, repete com
frequência. Assim, paralelamente ao tempo em que se prostituía, Alice continuava
procurando algum emprego formal para conseguir largar de vez a noite – não só por não
gostar do trabalho, mas porque nem sempre o ofício lhe rendia muito dinheiro, ela diz:

Durante uma época eu fiz muito sucesso como prostituta, trabalhava pouco
e ganhava muito dinheiro, mas chegou uma hora que comecei a penar, o
mito, a diva Alice tendo dificuldades de ganhar dinheiro, parecia piada, mas
é a mais pura verdade. Na época foi difícil me acostumar com aquilo, eu ia
embora várias e várias noites zerada.

Assim, sua saída da pista se deu num determinado dia, especificamente em “uma
noite difícil” na Rua Augusto Severo. Um homem se aproximou de Alice chamando-a pelo
nome e perguntando o preço do programa. Estabelecido o valor, o homem a levou no motel
mais caro da Glória, num cujo quarto tinha uma vista “linda e iluminada” da Baía de
Guanabara. A experiência não foi ruim, mas ela diz que seria perfeita “se fosse com amor”.

Eu podia comer ou beber o que eu quisesse. Enquanto ele me comia dizia:


“estou comendo meu ídolo!”, eu estava sentindo dor, eu chorei, ele não me
fazia mal, muito pelo contrário, mas eu não aguentava mais aquela vida.
Naquele momento, eu clamei a Deus. Primeiro pedi perdão, eu não sabia se
era a hora certa, mas pedi para sair daquela vida, eu pensava na minha
família, num amor, em ser um ser humano comum como qualquer outro.

Alice não é religiosa. Não vai à igreja e tampouco segue alguma designação
dogmática. Contudo, ela acredita que existe alguma força maior que rege e cuida de todos
nós. Ela afirma que acredita na fé: “se você acredita em Fadas com fé, pode pedir que vai

19
acontecer”. Assim, “com fé”, uma semana após este programa, Alice esbarrou com um
grupo na prefeitura que distribuía camisinhas e lubrificantes. Ela tomou coragem e disse
“não quero camisinha, quero um emprego”. Uma das funcionárias “foi tocada” e resolveu
ajudar Alice. Trocaram e-mail e assim, Alice conseguiu uma vaga e uma bolsa num projeto
da prefeitura do Rio de Janeiro chamado “Projeto Damas” onde descobriu o teatro. Dali
conseguiu uma fonte financeira e, já que não pagava aluguel de casa, o dinheiro da bolsa era
quase o suficiente para subsistir. Por esta razão, se prostituir virou algo fez novamente
apenas em raras ocasiões para completar a renda.

1.1.2: Ana e Paula

Natural de Madureira, filha mais velha de sete irmãos, Ana possui dois anos de
transição e dois anos como prostituta. De todas as minhas interlocutoras, ela é a que possui o
menor espaço entre o período que começou as mudanças corporais e o “batalhar”. “Eu sabia
que eu não ia arrumar nenhum emprego, sabe? Até porque é mais fácil uma transexual com
corpo hoje em dia conseguir emprego do que uma transexual no começo. No começo a gente
fica com uma figura meio aberração, sabe? ”. De estatura média, branca e cabelos loiros,
Ana me encontrou a primeira vez usando um vestido de tubinho preto que marcava bem sua
silhueta. Hoje, com 22 anos, me revela que começou a se prostituir por anúncio em janeiro
de 2015, o mesmo mês em que passou a tomar hormônios. “Você começa meio infantil, faz
anúncio e começa a vir cliente atrás de cliente e depois você tem mil reais na mão num dia e
não tá sabendo o que fazer com o dinheiro. Quando percebe tu já tá viciada nisso”, Ana
constata.

A avó de Ana era cafetina. Prostituição nunca foi exatamente um tabu na sua casa,
nem mesmo transexualidade. Ana me revela que a família foi percebendo seus trejeitos
femininos antes mesmo dela. O processo de transição de Ana, quando ela entendeu que tinha
uma “essência feminina”, foi natural. “Minha família não incentivava, mas apoiou tudo.
Nunca precisei falar que eu era transexual, foi tudo natural”. O processo de hormonização foi
financiado pelo dinheiro que sua avó dava “eu pedia dinheiro pra ir pra balada, mas era pra

20
hormônio. Ela sabia disso”. Assim que começou a ganhar um dinheiro, saiu da casa da avó e
foi morar com algumas amigas em Realengo.

Quando resolveu começar a “batalhar”, Ana tinha uma estratégia para evitar alguma
ameaça: fechava com os clientes apenas no mesmo motel, perto da sua casa. Assim, passou a
ser figura conhecida pelos funcionários do estabelecimento, o que lhe garantia certa
liberdade e a possibilidade de sair do quarto caso o cliente se comportasse de maneira
desagradável. Ela conta:

Até porque eu fecho com o motel porque às vezes quem dá a louca sou eu.
Às vezes o cliente quer conversar, fica querendo saber da minha vida, quer
contar da vida dele eu pego e saio e volto pra casa. Eu não tenho paciência
pros homens pegajosos que ficam no meu pé. Eu vou e dispenso. Eu faço
com esses homens a mesma coisa que eles fazem com a gente. Eles usam a
gente e eu faço a mesma coisa com eles sim.

Assim como Ana, Paula não enfrentou grandes dificuldades em casa. Ela é uma
mulher branca de 26 anos, estatura média, cabelos pretos e lisos, com uma franjinha que
cobre suas sobrancelhas. Nasceu e foi criada em Jacarepaguá na zona oeste carioca. Filha
(até então única) de pais separados, vivia com sua mãe num apartamento próprio. A figura
paterna sempre foi ausente, meio alheia à sua dinâmica de vida. Paula narra, como todas as
outras, que desde a infância se sentia diferente dos demais meninos.

Ela percebia isso pela vestimenta - que se faz sempre presente entre minhas
interlocutoras como expressão marcante da identificação. Todavia, quando a perguntei
quando foi o momento em que ela realmente percebeu que queria ser uma mulher, Paula
respondeu que a identidade trans é desenvolvida num processo. Ela mesma não sabia, num
primeiro momento, o porquê de ela ser diferente. No começo, deixou seu cabelo crescer,
depois começou a se maquiar e dali começou a vestir roupas femininas. Mas ela sente que
seu encantamento por bonecas, por maquiagens e por cabelos longos não foram exatamente
os traços que diziam sobre sua identidade. A sua percepção de diferente surgiu pouco a
pouco, pois para ela identidade é processo que surge pelo entender-se como diferente. Desse
modo, paulatinamente, a diferença foi ganhando voz através da expressão de gestos e das
irremovíveis censuras familiares que os flertes com o universo feminino causavam. Ela me
diz:

21
Foi tudo um processo, sabe? A princípio eu não sabia também. Foi tudo aos
poucos. Primeiro eu descobri que eu sentia desejos por rapazes e não por
mulheres, o que era esperado pra mim. E depois a vestimenta. Eu acho que a
questão da vestimenta deixa tudo mais claro, sabe? Mas sempre teve várias
outras coisas que eu mostrava isso (identidade trans). Mas eu acho que a
questão da vestimenta é que estabelece. As pessoas dão muita importância
pra roupa. Mas existem muitas outras coisas que também pode se ler como
uma identidade trans. É, como eu posso dizer, uma identidade como um
todo (...) As pessoas acham que a partir do momento que você muda a
vestimenta, você muda de identidade. Não é isso. São várias outras coisas, é
um processo. Bem antes de assumir, o processo é você se identificar e se
conhecer, sabe? Eu acho que todo gênero é uma construção.

Aos dezenove anos de idade resolveu contar para sua mãe que era uma mulher
transexual: “No início foi difícil porque eles não levavam a sério, sabe? Achavam que era
uma coisa que eu fazia pra chamar atenção”. Embora não tenham expulsado Paula de casa,
ela afirma que a reação de sua mãe, a princípio, foi de choque. Passado algum tempo e
acostumada com a ideia, a mãe de Paula passou acompanhá-la a suas idas ao médico e
buscou também conhecer o que estava acontecendo com a filha: “até que ela entendeu que
não era uma doença, mas uma mulher presa num corpo de homem”, afirma. Dessa maneira,
foi aceitando, também num processo, a identidade transexual da filha. Passou a chamá-la
pelo nome que escolheu e assim viveu com Paula até que ela completasse 24 anos de idade,
quando saiu de casa por vontade própria devido alguns embates com a mãe. Seu esforço em
entender a filha era ambíguo e por vezes as duas tinham rusgas. Hoje, Paula afirma que sua
mãe aceita, pois ela viu “que não era um bicho de sete cabeças”. Já seu pai, apenas “tolera”.
“É muito fácil perceber a diferença entre aceitação e tolerância. Mas meu pai é ausente,
então não ligo muito”.

Diferentemente de minhas outras interlocutoras, para quem o início da prostituição se


deu por falta de emprego, a relação de Paula com o ofício surgiu, primeiro, a partir da sua
“desconstrução” dos relacionamentos monogâmicos. Ela comenta que sempre acreditou em
“amor”, “casamento” e “príncipes encantados”. Até que começou a perceber que na verdade
a monogamia era uma falácia. Desse modo, achou natural lançar-se no mundo da
prostituição para alcançar autonomia de maneira rápida. “Comecei a querer a lucrar com
uma coisa que eu já fazia, né? Sair com várias pessoas ao mesmo tempo. Isso foi uma coisa

22
que facilitou também”, ela conta. Assim, mudou-se para a casa da avó, em Botafogo, e
começou a trabalhar numa casa de massagem na Barra da Tijuca.

Eu tinha muito medo. Eu não conhecia nada e então comecei agenciada. Eu


não tinha coragem de atender por conta própria em motel porque eu tinha
muito medo, entendeu? Então como era uma casa que tinha estrutura, tinha
secretária, tinha pessoas trabalhando, tinha câmera, então eu não tive medo.

O primeiro programa de Paula foi com um “senhorzinho” de 60 anos – que é cliente


dela até hoje. Tomou algumas doses de whisky para tomar coragem e foi. A casa de
massagem fazia todo o processo de agenciamento. Divulgava as meninas em seu próprio
website e ainda dava um “nome de guerra” para todas elas. “Com o senhorzinho, eu percebi
que era mais fácil do que eu imaginava e comecei a gostar”. Alguns meses já trabalhando na
casa de massagem, Paula resolveu sair. A nova gerência da casa aumentou as taxas de
permanência, o que coincidiu com o fato de ela não se dar muito bem com os novos
funcionários. No período em que trabalhava agenciada, Paula começou a simultaneamente
“descer para a pista” na Barra durante o turno da madrugada e foi conseguindo alguns
clientes fixos. Dessa maneira, não teve grandes problemas quando resolveu definitivamente
“se jogar” de forma autônoma na prostituição.

As pessoas acreditam que a prostituição é um lugar muito difícil. Com o


tempo eu fui percebendo que era tudo muito fácil. As pessoas sempre foram
muito educadas comigo, ninguém me forçava a nada, sabe? E eu no meu
trabalho passei a me sentir com mais liberdade do que nos meus
relacionamentos que eu tive fora. Eu tive um namorado que às vezes me
forçava a fazer certas coisas ou não aceitava ouvir um “não” quando queria
transar, sabe? Fazia essa tortura psicológica e eu tinha muito liberdade no
trabalho. Meus clientes eram muito educados.

Saturada com o deslocamento entre Botafogo e Barra da Tijuca, Paula já tinha


clientes o suficiente para começar a “fazer pista” na zona sul. Tentou inicialmente em
Copacabana, sendo expulsa de lá por outras prostitutas. Dali passou a fazer ponto na
Augusto Severo, na Glória, e alugou uma kitnet no mesmo bairro. Em concomitância, passou
no vestibular numa universidade pública de Niteroi e lá começou a estudar ciências sociais.
Passou a dividir a vida entre Glória e Niteroi, entre universidade e prostituição. A mãe de

23
Paula, que não sabia que a filha se prostituía num primeiro momento, dava-lhe dinheiro para
ajudá-la na universidade. Paula concluiu que a prostituição era o caminho mais rápido para a
autonomia, tendo em vista o dinheiro que passou a ganhar. A prostituição conseguia aliar o
que já gostava de fazer (sair com várias pessoas) com um “enriquecimento” mais rápido.

1.2: MULHER TRANS OU TRAVESTI? A QUESTÃO DA IDENTIDADE

É comum em literaturas sobre transexualidade e travestilidade o aparecimento do


tema da identidade (p.e. Bento 2006, Kulick 2008, Pelúcio 2011). Nesta pesquisa, este tópico
também se fez relevante. Os dois grupos justapostos na seção acima revelam três
proximidades em torno de marcadores sociais da diferença: faixa etária, relação familiar e
identificação de gênero. Donatela e Alice se consideram travestis. Ana e Paula se
consideram mulheres transexuais. Desse modo, temos experiências de vida parecidas no que
toca à transição de um corpo masculino para um corpo feminino, mas implicações
identitárias diversas. Alice se referiu a si mesma tanto como “trans” ou “mulher trans”,
quanto travesti. Mas quando perguntei para ela como ela preferiria ser identificada neste
texto, ela disse “travesti”. Já Donatela é enfática ao dizer que é travesti, inclusive se
incomoda com as mulheres transexuais que fingem que são mulheres, “eu sou travesti. Não
me vejo como uma mulher, eu nem tento”. Num determinado dia, Donatela foi colocada
numa situação “humilhante” quando sua amiga pediu que ela não revelasse para o seu affair
que ambas eram travestis. Ela conta o caso – que revelo na íntegra:

Eu sou travesti. Eu sou muito ativa. Elas gostam muito de se classificar.


Hoje eu entendendo a palavra travesti e eu gosto muito mais [do que
transexual]. Eu não tenho vergonha de ser o que sou. Há um mês atrás eu
passei por uma situação muito desagradável. Muito triste. Eu estava com
uma amiga operada, lá em Presidente Prudente e ela não fala para ninguém
que é operada. Ela fala que é uma mulher. Ela realmente é uma mulher.
Sabe aquela mulher jogada, meio masculinizada. Ela tem esse estilo. Dá
soquinho no braço do homem... E ela é totalmente mulher. Mesmo com
estes atos, ela não fica masculina. Ela fica uma mulher mesmo com essas
atitudes mais masculinazinha. Mas ela não tem ato de veado [travesti], de
falar gírias de veado. Ela fala o pajubá12, mas ela se poda. Ela se poda

12
Pajubá é o conjunto de expressões de inspiração nagô e iorubá, muito utilizado entre transexuais e travestis e
tem se popularizado por entre outros LGBT. Donatela me conta que as expressões são usadas como forma de

24
muito. Aí um dia, no posto de gasolina, paramos para comprar água, tinha
um menino que não sabia que ela era travesti. Transa com ela. A gente
desceu no posto de gasolina para comprar água, estava um dia muito quente,
virei pro menino e falei assim “quer beber alguma coisa?”, aí ele respondeu
“qualquer coisa”, ai eu falei “qualquer coisa não tem, tem água, Gatorade,
eu vou tomar um Gatorade, você quer uma coisa parecida?”. Aí fui e
busquei pra ele um suco. Quando eu fui entrar no carro, ela entrou na minha
frente e depois de dois minutos eu entrei no carro, ainda estava na fila do
caixa. Ela virou pra mim e falou assim ‘”fala Igor o que você estava
falando”, ai ele “não po, qual é” coisa de bofe. Aí eu falei “fala menino, o
que que houve?” Aí ele “Não nada não”. Ela foi e falou “Quando ele
desceu do carro, os dois meninos ali fora falou pra ele que a gente era dois
travecos gostosos, fala pra ele Donatela”. Olha, ter que negar que eu era
travesti naquela hora. Mesmo sabendo que ele cogitava que eu era travesti,
foi humilhante. Só que na mesma hora eu falei assim “me leva em casa que
eu tenho um cliente pra fazer”, eu estava num motel, né. Hospedada. Isso
em Presidente Prudente, interior de São Paulo. Aí ela me deixou no motel,
fiquei angustiada o dia todo. Não tinha cliente nenhum pra fazer. No mesmo
dia, ele [Igor] foi me procurar. A gente transou maravilhosamente. Ele sabia
que eu era travesti, só que pra não prejudicá-la eu neguei que era travesti.
Foi humilhante pra mim, humilhante. O erro não foi dele, o erro foi dela.
Ele tava afim, ele já sabia desde o princípio. Ela que se negava que era
travesti operada. Ele sem graça porque não me conhecia e não sabia a minha
reação de ouvir aquilo. Se fosse um cara que eu conheço eu falaria que o
cara achou a gente dois travesti bonito, eu ia achar graça. Eu ia falar
“porque você não deu meu telefone pra ele”. Eu não ia ligar, eu não ligo.
Mas só a situação de falar que eu não era travesti pra não prejudicar ela
porque ela conta uma mentira, eu me senti mal. Eu acho horrível as
transexuais que se operam e se dizem mulher. Eu acho ridículo. Você não
vai ser nunca uma mulher. E não é ruim isso [ser travesti]. Você tem que se
identificar com o que você é. Você tem que se aceitar. A operação é um
passo a mais pra aceitação. Não é um passo necessário, mas se você
continua depois da operação não se aceitando... Eu falo que são os homens
bucetas. Esses loucos são realmente homens de circo. Não tem a mulher
barbada? Tinha que botar no circo os veados de buceta. Se você continua
não se aceitando, amiga, continua numa mentira de que é uma mulher, você
não vai ser feliz. Você vai tentar se encaixar num lugar que não é seu. Você
devia tentar levantar outra bandeira que é sua, que é das transexuais. Você é
uma transexual, não há o que negar. Enquanto você se assumir como mulher
você não será feliz. Você vai encontrar com uma mulher que não pode
engravidar e vai ver que dentro ali não tem nada de mulher, só fora que tem
uma bucetinha costurada. Você ser obrigada a viver essas coisas.
Honestamente...

Donatela e Alice se aproximam mais das informantes de Don Kulick (2008) e Larissa
Pelúcio (2006). Isto é, em determinadas situações referem a si mesmas no masculino – fato

ocultar o que se está dizendo perto de pessoas que não participam de seu universo. Isto é, podem se comunicar
perto da polícia, transeuntes ou clientes sem que estes saibam quais informações estão sendo trocadas. Aqué
(dinheiro), ocó ou bofe (homem), guanto (camisinha), edy (orifício anal), neca (pênis), truque (esconder o
pênis), alibã (polícia), erê (criança), amapô ou amapoa (mulher), aquendar (esconder), carimbar (transmitir
HIV), chuca (lavagem do reto), cheque (resto de fezes que podem surgir no sexo anal), dar ou fazer a Elza
(roubar), fazer um vício (transar com um homem bonito), taba (maconha), etc. são algumas das expressões que
mais ouvi no período em que fiz campo e que surgirão ocasionalmente nessa dissertação.

25
que presenciei raríssimas vezes -, em outras evocam “o homem que tenho em mim” para se
referirem a alguma atitude agressiva que tomaram e, ademais, utilizam o termo transexual
mais “frouxamente”. Digo frouxamente, porque para Ana e Paula a palavra “transexual” é
recheada de significados muito diversos da palavra “travesti”. Assim, acredito que ambas
discordariam da maneira como Donatela percebe as travestis ou transexuais que “fingem” ser
mulheres. Temos, portanto, uma forte marca geracional orientando tanto as implicações de
identidade quanto suas relações mais estreitas ou frouxas com os termos “travesti” e
“transexual”. Paula, em entrevista, constata que:

Isso depende da percepção que cada um tem de mulher, né. Anos atrás,
antes de conhecer o movimento transfeminista, antes de pensar no gênero
como construção, eu não reivindicava a identidade de mulher pra mim.
Porque antes pra mim mulheres era ter aquele corpo biológico, entendeu?
Eu não podia reivindicar essa identidade pra mim por acreditar que eu não
tinha aquele órgão. Só que dai eu fui ver algumas leituras sobre isso e isso
mudou. Agora eu reivindico que sou mulher.

Ana, que não possui nenhuma leitura transfeminista, tem uma impressão sobre sua
própria identidade semelhante à de Paula:

Amiga, eu prefiro a palavra transexual. Eu não gosto muito da palavra


travesti porque na minha cabeça a palavra travesti remete àquela figura que
a sociedade tem de travesti, sabe? Que trabalha em pista, toda siliconada
dos pés à cabeça, marginal, sabe? (...) Mas isso vai da pessoa. Cabe à pessoa
se classificar como travesti ou transexual. Tá dentro dela e ela quem tem
que dizer. Eu tenho uma amiga chamada Juliana. Ela mesma fala que não se
considera transexual, ela é travesti. Dentro dela, na cabeça dela, dentro dela
o espírito masculino. Ela fala que é um homem que gosta de se vestir como
mulher porque atrai os olhares masculinos, ela consegue dinheiro fácil com
isso e ela sempre gostou de maquiagem e de cabelo. Mas ela não se sente
uma mulher, ela fala isso. Eu já não me visto assim porque eu quero ou
porque eu gosto. Eu me visto assim porque não tem outra opção, sabe? Não
existe no meu mundo, eu botar uma roupa masculina, sabe? A minha alma é
uma alma feminina. Sou uma mulher de espírito, entendeu?

Ana tenta se afastar do estereótipo que a palavra “travesti” sugere enquanto Paula
passa a reivindicar sua condição de mulher a partir da compreensão de que gênero é algo
construído socialmente. Berenice Bento em “A Reinvenção do Corpo” (2006) revela
justamente a pluralidade de identidades que coexistem com as mesmas experiências. A

26
experiência de campo da autora se deu no Hospital das Clínicas em Goiana, onde
acompanhou pessoas transexuais na fila de espera para a realização de cirurgias de
redesignação sexual. Um fato de contraste entre minhas interlocutoras e parte das
interlocutoras de Bento é que nenhuma delas nesta pesquisa manifestou interesse de realizar
tal cirurgia. Pelo contrário, Donatela, Paula e Ana afirmam que parte do dinheiro do mercado
do sexo está em “fazer a ativa” – embora as duas últimas tenham afirmado que são poucas as
ocasiões que precisam em comparação a Donatela. Assim, Bento sugere que “não há uma
identidade transexual, mas posições de identidade, pontos de apego temporários que,
simultaneamente, fixam e deslocam os sujeitos que vivem a experiência transexual” (Bento
2006: 25).

Para entender as fixações provisórias dos sujeitos, a autora se inspira na ideia de


identificação de Stuart Hall (2000) e assim compreender como a identidade está sempre
posicionada em determinada situação de maneira instável. Bento (2006) atesta:

“Falar de identificação impõe a tarefa de refletir sobre os jogos de negação e


afirmação, de repulsa pelo “outro”, pelos que habitam as margens, e de
atração por modelos idealizados. Ao mesmo tempo que se identificar
envolve um trabalho discursivo de fechamento e de demarcação de
fronteiras simbólicas, simultaneamente significa o reconhecimento de
características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ainda que
idealmente. São identificações que revelam o processe mesmo de
organização de identidade”. (Bento 2006: 205)

O fato de Dontela se identificar como travesti, ter aceitado e aprendido a amar o


termo, fez com que ela tivesse grande indisposição com mulheres transexuais que querem se
afirmar apenas como mulheres, justamente pelo processo de similitude de experiências, mas
de diferentes designações de identidades. Para ela, fingir que não era travesti significa
romper com tudo aquilo que acreditava enquanto ser.

Tendo em vista este fenômeno, Bento percebe que mais do que pensar num coletivo
de identidades transexuais, temos que pensar em “comunidades de emoções”, pois assim,
temos a possibilidade de estimular a capacidade de criação de fissuras que estas vivências
têm nas normas de gêneros hegemônicas. Com esta inspiração, proponho a ampliação da
ideia de comunidades de emoções para pensar num grupo de pessoas que - além de perfurar
e evidenciar as performatividades de gênero - possuem percursos comuns que homogenizam

27
até certo ponto as experiências afetivas, relacionais e sentimentais num determinado espectro
do viver na margem, portanto, atuam de determinada forma na vida dos sujeitos. Os
capítulos que seguirão irão desenvolver melhor essa ampliação da ideia de “comunidade de
emoções”.

28
CAPÍTULO 2: TRANSPARENTE

Matemática arriscada:
dois
(Ulisses Belleigoli)

Rótulos não vão me definir,


O que me define sou eu!
(Alice em postagem no Facebook)

Vimos no capítulo 1 um pouco da trajetória de Ana, Donatela, Alice e Paula no que


diz respeito ao início de suas vidas como prostitutas e como pessoas trans e travestis. Neste
capítulo, decidi abordar melhor os relacionamentos que estas mulheres tiveram na vida e
quiseram compartilhar comigo.

Numa entrevista para um canal do site de vídeos Youtube13, Marcela, uma mulher
transexual, quando perguntada “Tem uma hora certa para contar que é Trans ou Travesti? ”,
responde “Se eu te conhecer hoje e for me interessar por você, eu tenho que te contar na
hora. Eu acho que transparência é tudo no relacionamento. É base”. A ideia do nome
“Transparente” reflete, assim, na prevalência da ambiguidade presente no “ser transparente”
e a real possibilidade que algo me seja confiado. Isto é, uma brincadeira com a questão
metodológica de pensar nas trajetórias das minhas interlocutoras a partir de seus discursos no
momento das entrevistas e as prováveis subnotificações ou exageros de cenas trazidos à tona
na fala. Desse modo, levo em conta a crença de que é possível atingir uma compreensão e
conhecimento profundo de si mesmo. Esse "eu mesmo", nesse ponto de vista, seria uma
categoria indivisível, descritível, apreensível e verdadeira.

Por conseguinte, gostaria de chamar atenção, muito rapidamente, sobre transparência


e a possível aproximação dessa palavra com as discussões sobre individualismo. Tanto
Donatela quanto Ana me afirmaram que as entrevistas estavam funcionando como terapia

13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CyR2DD5UH4I (último acesso: dezembro de 2016).

29
para elas – o que me levou a crer na possibilidade da experiência de psicologização dos
sujeitos. Conforme fui conhecendo-as melhor, percebi que ao mesmo tempo que se
aproximavam fortemente das grandes chaves do individualismo, isto é, crença no sujeito
como medida fundamental de todas as coisas (Dumont 1985), não se aproximavam das
categorias médicas do “conhecer a si mesmo”. Gilberto Velho (2006), em suas pesquisas
sobre as camadas médias cariocas, mostra que há maneiras alternativas de pensar o “si
mesmo” (Velho 2006). Donatela é adepta do candomblé e gosta de astrologia. Por diversas
vezes compreendeu a expressão energética de suas ações pela sua qualidade ariana ou de
filha de Oxum. Na crença da possibilidade de conhecer “eu mesmo”, Ana, Donatela, Paula e
Alice repetem expressões como “ser fiel consigo mesma”, “ser mais eu”, “me valorizar”,
“cuidar de mim”, que caracterizam, portanto, transparência.

Por outro lado, etimologicamente, a palavra transparente está conformada por


“Trans” e “Parente”, podendo significar “para além da parentalidade”. Mais precisamente
neste capítulo, serão evocados os conceitos de família, e, também, “transexualidade” e
“parentes”, que inauguram em sentença seus caráteres relacionais que as duas categorias
vêm travando e travarão ao longo desta dissertação.

A primeira cena que trarei neste capítulo nos revelará melhor sobre o “grande amor”
de Donatela. A relação dela com Alexandre já havia sido contada parcialmente para mim
desde nossas primeiras conversas. Curiosamemente, Donatela começou contando a história
de seu fim e foi revelando, conforme nossas conversas foram se intensificando, mais sobre o
início da relação. Em seguida, apresentarei a história de Ana com Romário. As duas cenas
têm em comum o fato de terem sido contadas para mim como relações nas quais elas
“amaram de verdade”. Somarei os relatos de minha outra interlocutora, Paula, para pensar
no nível do cotidiano, como é vivido um relacionamento entre uma mulher trans-travesti que
se prostitui e um homem. Desse modo, aparecerão as discussões dos casais como lugar de
disputa, imposições e concessões para a preservação do próprio casal através de uma relação
estreita entre os sentimentos de cuidado e de controle. Por fim, veremos como aconteceu o
fim destes relacionamentos tão importantes para Ana e Donatela e como a ideia de família é
central, mesmo em face à sua aparente natureza oblíqua, durante todo o espectro dos
discursos amorosos.

30
2.1: TRAMAS DA CONFISSÃO E O INÍCIO DO “GRANDE AMOR”

2.1.1: Com Alexandre

Como vimos no capítulo anterior, Donatela foi expulsa de casa pelo padrasto e, logo
depois, em 2004, mudou-se do Brasil para a Itália em busca de sanar uma dívida. Atleta
durante grande parte da sua infância e adolescência, Donatela sempre gostou de assistir a
esportes, sejam eles quais forem. Era novembro, uma terça-feira (ou domingo) cerca de dois
meses já na Itália, vivendo em um quarto de república de menos de vinte metros quadrados
com mais dezesseis travestis, quando Donatela foi para um bar brasileiro sozinha a fim de
assistir a um jogo de futebol do campeonato italiano.

Donatela avista, sentada, um homem num outro lado do balcão. O homem em


questão é Alexandre. Moreno e muito bonito, “Ele parecia o Bruno Gagliasso. Minto, ele
parece mais esse ator que faz anjo-mau, sabe? O filho da Luíza Brunet”, ela diz. Começaram
a trocar olhares que logo escorregaram para conversas. Donatela ariana14 que é, desmanchou
a distância dos assentos e se acomodou do lado de Alexandre. “A gente começou a trocar
uma ideia, a gente começou a beber e tal”. Depois de muito conversarem, Alexandre, já
completamente enfeitiçado por Donatela, paga a conta e se propõe a levá-la em casa. Ela,
ébria, aceita. No caminho para casa Donatela já sabendo o que poderia suceder desse
encontro é tomada por certa ansiedade. Interessada em Alexandre, toma a decisão de contar a
ele que é travesti.

Chegando perto de casa, eu morava com algumas amigas, aí ele começou a


querer me beijar e eu falei com ele “olha gato, você sabe minha situação.
Sou travesti” e ele ficou todo assustado.

É necessário pontuar a unanimidade em minhas entrevistas de que o momento de


“confessar” que se é travesti aparece como delicado. Digo “confessar” não por acaso. Há

14
Como foi explicado na introdução, os signos do zodíaco dizem respeito à maneira que elas mesmas se
identificam para justificar seus comportamentos.

31
uma dimensão de culpa inerente a expressar sua identidade de gênero em alto e bom tom.
“Sou travesti” pode soar como traição. É preciso cuidado, alertariam minhas informantes,
pois nunca se sabe como o homem cisgênero poderá reagir. Insegurança em revelar sua
identidade de gênero raramente aparece nas conversas que dizem respeito às avenidas onde
se prostituem ou aos clientes que as procuram por anúncios. Estes “sabem” ou procuram
precisamente por mulheres travestis-transexuais nas regiões morais15. Todavia em bares,
festas, boates, todo flerte seguido por conversa contém a apresentação como uma tensão,
uma revelação por vir que antecede necessariamente todas as relações que podem vir. Assim,
a dimensão da traição e da culpa surge, de maneira abrupta, no exato momento em que a
identidade de gênero é revelada. O homem cisgênero heterossexual poderia pensar que foi
ludibriado ou que todos os momentos e as trocas (de conversas a beijos e substâncias) foram
inoportunos, maculadores ou heresias. Dessa forma, na margem da cautela residiria a
constante questão: quando é uma boa hora para contar quem sou? A esfera da “passabilidade
cis”, isto é, a possibilidade da mulher trans-travesti se passar por uma mulher cisgênero,
reflete constantemente sua luz na dimensão achatada de situações com estas. A mulher
travesti-transexual, não consegue garantir de fato se o homem cisgênero sabe que ela não é
uma “mulher biológica”. O receio de revelar-se está para além da imprevisibilidade da
reação do objeto de interesse, mas diz respeito a possibilidade latente de rejeição. Por
conseguinte, a passabilidade cis poderia ser justamente o que evitaria ou amenizaria a
rejeição16. Ou, também, o contrário. “Confundir” poderia funcionar como plataforma para a
violência. Não tenho materiais suficientes para levantar aqui uma discussão mais
contundente sobre passabilidade cis e entender tanto do ponto de vista do cliente quanto da

15
Conceito de “regiões morais” presente no clássico artigo de Robert Ezra Park (1967) é uma das poucas ideias
que sobrevivem ao tempo veloz da ciência e se reproduz e se atualiza de uma maneira quase irremovível.
Assumo que talvez seja um dos conceitos mais citados em Antropologia Urbana. O autor afirma que algumas
zonas da cidade são aglutinadoras, como mostra: “(...) é inevitável que indivíduos que buscam as mesmas
formas de diversão, quer sejam proporcionadas por corridas de cavalos ou pela ópera, devam de tempos em
tempos se encontrar nos mesmos lugares. O resultado disso é que dentro da organização que a vida citadina
assume espontaneamente, a população tende a se segregar não apenas de acordo com seus interesses, mas de
acordo com seus gostos e temperamentos.” (Park 1967: 63)
A região moral é fruto justamente da reunião de uma profusão de sujeitos diversos com interesses
compartilhados (Park 1967: 63). Isto é, a convergência de interesses no mesmo local, que caracteriza a região
moral, desenha, neste caso, usos ligados à esbórnia ou a todo desejo não-convencional, dissidente. Ele diz “as
causas que fazem surgir o que aqui descrevemos como ‘regiões morais’ são devidas em parte às restrições que
a vida urbana impõe; e em parte à permissibilidade que essas mesmas condições oferecem. ” (Park 1967: 64).
16
Ana Paula Vencato (2013) também constata o termo “passabilidade” entre homens que praticam
crossdressing. A autora mostra como os mais velhos que “se montam” admiram os mais novos, pois estes
conseguem passar-se como mulheres mais facilmente – ou seja, possuem mais beleza e mais feminilidade.
(2013: 208).

32
mulher trans-travesti o que seria essa categoria afinal. Acredito que uma teoria nativa de
passabilidade poderia ser muito rentável para aprofundar, realmente, essa análise da
dimensão da confissão. Reconheço também que as estratégias são das mais variáveis:
quando estas mulheres só querem “fazer um vício” e “beijar na boca” ou “pagar boquete”, a
confissão não é necessária. Entretanto, julguei importante trazer essa dimensão dessa
maneira pois é a tônica das minhas interlocutoras e nos revela uma entrelinha importante da
história de Donatela. Outra importante marcação no que diz respeito à passabilidade é que
ela evidencia ainda mais o caráter performativo e o marco regulatório do gênero17.

Na mesma entrevista que citei no início deste capítulo, Luisa Marilac, travesti
bastante conhecida na internet18 diz: “Tenho amigas que deram a sorte de nascerem bem
femininas e na hora H tomaram um pau porque não contaram o que eram, confundiram o
gato com lebre e ó [junta o dedo polegar com o dedo do meio e bate repetidamente com o
indicador. Sinal que indica agressão]”. Aqui, a passabilidade adquire um caráter duplo de
causa-consequência. Ao mesmo tempo que “esconderia” a identidade de gênero da mulher
travesti-transexual, ela produziria este tipo de conflito caso esta mesma mulher tenha
interesses mais profundos no homem cisgênero heterossexual. Dessa maneira, essa espécie
de “trama da confissão” transforma corpos desviantes e desejados no mercado do sexo em
corpos perigosos no mercado do afeto.

A ideia de confissão nos leva para veredas foucautianas. A confissão parte de uma
identidade, em alguma medida, secreta e que deve ser revelada. Nos casos que acompanhei,
a necessidade da revelação da identidade é obrigação sempre das mulheres e nunca dos
homens. A revelação da identidade travesti-transexual produz verdades sobre o corpo dessas
mulheres e modifica em grau a relação que elas tiveram com estes homens. Por conseguinte,
a confissão fica a cargo destas mulheres justamente pela potência de abjeção que seus corpos
representam no contexto da relação. Como nos mostra Foucault (2006), a confissão tem a
mesma qualidade de um tribunal de acusação ou uma inquisição, evidentemente, neste caso,
atualizada, e remontada numa escala menorizada e pontual da relação, pelo rito ocidental de
produção de verdade (Foucault 68:2006) no qual, mais uma vez, sexo e sexualidade são

17
(Ver Butler 2003, McClintock 2010)
18
Luisa Marilac ficou conhecida na internet por um vídeo no qual ela aparece de biquíni, com os mamilos
escapando pelas laterais da peça, bebendo numa taça de champanhe dentro de uma piscina numa cobertura de
um prédio na Itália. Ela diz “E teve boatos de que eu estava na pior. Se isto é estar na pior, porra, o que quer
dizer tá bem, né? ”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=HKIrZs2FfwY (último acesso Janeiro
de 2017)

33
protagonistas do caráter coercitivo da confissão. Podemos, portanto, nos perguntar: por que e
quem é o sujeito que confessa e por que a “verdade” aparece pelo caráter da confissão?
Quem é a instância que requer confissão? Na cena narrada acima, os imperativos na
produção de verdade da confissão são prerrogativas do homem cisgênero heterossexual. Na
porta da casa de Donatela, Alexandre aguarda o momento do beijo e ela, a melhor
oportunidade para se confessar. A troca de informação que sucede é necessariamente um
turning point da relação, um momento crítico que pode servir para o bem ou para o mal: é da
mulher travesti-transexual a necessidade de confissão e do homem cisgênero heterossexual o
poder de transformar a relação. Isto é, cabe a ele dar a resposta igualmente nos termos da
confissão. Punir, rejeitar, vigiar, consolar, aceitar e /ou redimir a mulher que confessa. Cenas
como essa se repetem todas as vezes que minhas interlocutoras conhecem um homem fora
do contexto da prostituição. São Evas que repetem e revivem o pecado original dia-a-dia ao
revelarem seu fruto proibido-abjeto. É um constante sair do armário19. “O que ela [a
confissão] supõe como segredo não está ligado ao alto preço do que tem a dizer, nem ao
pequeno número dos que dele merecem beneficiar-se, mas à sua obscura familiaridade e à
sua abjeção geral” (Foucault 2006: 76).

Donatela entra em casa sozinha. Para ela, poderia ser mais um caso em que um
homem interessante desaparece depois de ela dizer “sou travesti”, entretanto, ambos haviam
trocado números de telefone e ainda havia a possibilidade de que ele ligasse.

E ele ligou.

Passado algum tempo, Alexandre torna a procurar Donatela e a convida novamente


para se encontrarem no mesmo bar. Ele deixa claro para ela que quer apenas amizade, mas
que achou injusta sua reação e injusto tratá-la com diferença, uma vez que Donatela havia
sido muito agradável com ele naquela noite. “Ele falou se eu me importaria de ser só seu
amigo. Aí eu falei ‘Claro que não. Quando eu conversei só com você, eu não tinha intenção
de transar com você’”.

Nesse trecho, Donatela expressa um ponto importante que se repete nas minhas
entrevistas: a impressão de que todos os homens cisgêneros heterossexuais têm de que toda
travesti ou mulher transexual possui interesses sexuais por todos eles. As queixas partem da
19
Sedgwick (1998) afirma que o ato de sair do armário sempre carrega inexoravelmente a dimensão do cálculo
de benefícios e riscos. Ademais, aparece como algo que se repete diante de uma nova situação ou perante
outros sujeitos.

34
frequência em que são associadas ao mercado do sexo, mesmo pertencendo a ele. Isto é,
reclamam não da associação por si mesma, mas da associação como automática e necessária,
assim, descaracterizando-as e impessoalizando-as num mesmo lugar marginal e
estigmatizado que não dá conta das idiossincrasias de cada uma (Goffman 1988) (Gaspar
1985).

Mais informações sobre as condições de moradia de Donatela são necessárias para o


desenrolar da história com Alexandre. Em 2004, ano em que ela se mudou para Itália,
Donatela morava numa pequenina casa com mais quinze travestis. “Era um colchão
humano”, ela me disse. O apartamento contava com três cômodos: quarto, cozinha e
banheiro. Isto é, dormiam todas no mesmo cômodo. O quarto continha duas camas de casal
beliche, nas quais dormiam quatro mulheres em cada, mais uma cama de solteiro beliche,
onde dormiam duas. Havia um colchonete de casal debaixo de uma das camas, onde
dormiam mais duas. Finalmente, em cima do banheiro, havia uma espécie de laje onde
dormiam as restantes. Todas as travestis eram brasileiras e viviam de maneira pouco
harmônica. Era um cenário de extrema competitividade, roubos, rixas e conflitos. “Era um
horror morar lá, um horror”. Entretanto, esta era a melhor condição para acumular dinheiro e
criar uma poupança em euros para voltar ao Brasil e conseguir ajudar suas famílias. É
comum nas etnografias sobre prostituição, tanto de mulheres cisgêneros e mulheres trans-
travestis, o aparecimento da “ajuda” como categoria chave (Piscitelli 2011, Gaspar 1985,
Silva 2007, Olivar 2013, Pelúcio 2011). A ajuda ganha um duplo caráter aqui. Clientes que
ajudam as prostitutas e prostitutas que ajudam suas famílias. Larissa Pelúcio (2011) nos
apresenta condições de ajuda semelhantes no campo que ela fez na Espanha, onde mulheres
travestis brasileiras acumulavam dinheiro e enviavam para suas famílias no Brasil.

No dia 31 de dezembro de 2004, festa de Réveillon, Donatela e Alexandre se


encontram no mesmo bar. Ela, acompanhada de um homem marroquino e ele, de sua
namorada Manuela. Diferentemente do Brasil, na Itália, não se comemora o ano novo na rua.
O evento acontece em bares e boates, os quais ficam abarrotados de gente. Segundo
Donatela é relativamente barato participar de tal evento. É necessário pagar apenas a entrada.
No meio das celebrações, Donatela recebe uma ligação de uma das travestis que
compartilhava casa com ela. O lugar havia pegado fogo! Aparentemente, o namorado de
uma das mulheres havia ficado com ciúmes e ateado fogo na casa “o cara abriu a janela,
tacou gasolina e fogo”, ela conta.

35
Alexandre deixou Manuela no bar e levou Donatela imediatamente para o lugar onde
ela morava. O cenário era entristecedor. A casa inteira havia sido destruída, cômodos,
roupas, dinheiro, etc. Nessa paisagem desesperadora, Donatela encontra sua maleta de
maquiagem intacta.

Tinha queimado tudo menos a minha maleta de maquiagem. Tudo tinha


queimado, fiquei com a roupa do corpo. Esse meu amigo [Alexandre] ele
pegou as roupas dele todinha e me deu. Naquele momento ali de
dificuldade, surgiu um afeto. Um outro nível (de afeto). Nesse momento de
dificuldade ele me levou em casa, a gente só via a porta igual uma lata de
sardinha. A porta subiu, ficou desse tamanhozinho. O bombeiro levantou a
porta pra poder abrir. Ele foi pra casa e eu fui dormir com o flerte que eu
tinha, o marroquino. Ai no outro dia, ele apareceu, me ligou e falou “tenho
algumas coisas pra te dar, um tênis”. Eu não tinha roupa, não tinha dinheiro
porque o meu dinheiro foi queimado junto. Eu tinha o dinheiro que eu tinha
no dia na bolsa e só tinha meu passaporte e minhas maquiagens. Meu
passaporte estava dentro da minha maleta de maquiagem que sobreviveu ao
incêndio20.

Depois do incêndio, Donatela pegou as roupas doadas por Alexandre e foi morar um
tempo com um amigo taxista. Durante o primeiro mês na nova casa só usou roupas
masculinas. Ela não podia gastar com roupas para o dia-a-dia, só para trabalho. Afinal, ela
foi para a Itália para pagar uma dívida e, portanto, precisava continuar juntando dinheiro. Ela
me diz “Mona, foi muito engraçado, porque eu tinha que pagar uma dívida, né. Eu fui pra
Itália com uma dívida. Eu tinha que pagar uma dívida e não sobrava dinheiro para pagar a
dívida pra mim. Eu fiquei quase um mês usando a roupa dele e era dele”. Se o fato de
Alexandre ter dado suas roupas para Donatela num momento em que ela muito precisou fez
surgir um nível maior de afeto, o mês que se seguiria consolidou ainda mais esse sentimento.
Para Donatela, tudo era

(...) muito estranho, eu travesti voltar a vestir roupa de homem. Foi muito
estranho. Mas foi muito legal porque ele me confortou. Foi menos difícil
porque ele me confortou muito. Era quase humilhante, mas ele deixava tão
natural aquilo.

20
Muito felizmente, Donatela não perdeu seu passaporte. Todas as suas colegas não tiverem a mesma sorte. Ela
me explica que para tirar outro passaporte lá na Itália, sendo travesti, era um processo complicado, quando
possível. A grande maioria destas mulheres tiveram que fazer um laissez-passer e voltar para o Brasil, pois não
tinham a quem confiar para mandarem do Brasil documentos que comprovassem suas identidades.

36
Na primeira noite do bar Donatela teve um pequeno interesse por Alexandre, mas
depois de toda aquela demonstração de cuidado e sensibilidade num momento de grande
delicadeza, Donatela foi se apaixonando e o vínculo dos dois fortaleceu ainda mais. É
curioso perceber como a relação e a consolidação de Donatela e Alexandre não aparece
como os clássicos relatos de paixão. Isto é, sentimento intenso e efêmero que é dotado de
grande irracionalidade, imanência e efervescência21. De novembro a fevereiro, ela manteve
contatos semanais com Alexandre neste mesmo bar brasileiro. Ambos seguiam
rotineiramente o campeonato italiano de futebol. Donatela chegou inclusive a conhecer, se
tornar amiga e ver o fim do namoro de Alexandre com Manuela, uma mulher cisgênero
italiana. No dia catorze de fevereiro de 2005, dia de São Valentino na Itália, como sou
lembrado diversas vezes por ela, Donatela e Alexandre fazem o inevitável e transam. “Ele
não tinha mais namorada (...). Os dois bêbados. Eu não tinha ninguém mesmo, não tinha
família, imagina namorado? E ele sozinho. Bebemos à beça, aí na hora de me levar pra
casa...”. Era o início de “um amor tão grande”. Um relacionamento que duraria quatro anos.

Durante os primeiros meses em que Donatela estava na casa do amigo taxista,


comprando pouco a pouco novas peças de roupa, ela ajudou uma antiga amiga de Niteroi que
estava morando na rua, consequência do incêndio. Ela convenceu o taxista a hospedar a
amiga de Niteroi por um curto período de tempo na casa em que moravam. Após alguns
meses de convivência, Donatela e o taxista se desentenderam, por motivos que não me foram
confiados, e ela volta a morar na casa que havia pegado fogo, agora restaurada. A colega que
fora ajudada por Donatela permaneceu por mais algum tempo com o antigo amigo. Ela, em
seguida, consegue alugar uma outra casa e chama Donatela para compartilhar o lugar. A
nova casa era muito mais confortável e ela tinha um quarto só para si.

Em agosto, chegado o verão, Donatela e Alexandre, com seis meses de namoro,


decidem passar dez dias juntos. A família de Alexandre possui uma casa de praia na Calábria
e ele leva a namorada para passar um tempo lá sem a presença de seus pais. O casal sai de
férias e Donatela não avisa sua amiga que ficará fora por dez dias.

Não avisei nem nada, não dei satisfação. Eu estava com meu aluguel pago.
Quando eu cheguei na casa dela, ela colocou outra pessoa no meu lugar. Eu
falei “Como você colocou outra pessoa no meu lugar se meu aluguel tá
pago? Não estou te devendo nada. Minhas coisas estão aí e eu vou voltar. Aí
ela falou pra eu ficar até arrumar outra coisa. No outro dia, ela falou assim

21
ver Velho 2006

37
pra mim. Eu acordei falei “Bom dia” e ela estava tomando banho na
banheira, ela pegou aquele chuveirinho e molhou o banheiro inteiro e falou
“Bom dia não. Está aí o banheiro para você lavar. Você ficou dez dias
longe, suas obrigações de casa você não fez”. Bicha, eu arrumei uma
confusão. Quebrei cadeira, joguei cadeira na parede. Peguei essas cadeiras
de madeira e joguei na parede. Todo mundo dormindo. Eu tenho mania de
acordar cedo. Todo mundo dormindo, quebrei a cozinha toda. Juntei minhas
coisas e fui pra rua. No dia seguinte a polícia bateu e prendeu todo mundo.
Porque o dono era egípcio e é contra homossexual, descobriu quem morava
lá, ligou pra polícia e falou que foi enganado e que tinha pessoas
desconhecidas morando na casa dele. No dia seguinte a polícia bateu lá e
levou todo mundo. Olha que coisa? Não foi nem porque eu quebrei nada.
Foi porque o dono já estava tramando pra fazer isso.

A forma como a amiga manifesta descontentamento com Donatela exemplifica um


pouco as crueldades que as mulheres praticavam entre si, segundo os relatos de minha
interlocutora. Na casa que havia pegado fogo, houve caso de agiotagem, cortar o cabelo de
outra mulher durante a madrugada ou, até mais sério, colocar cloro no lugar de colírio no
porta-lentes. Donatela, embora ela proclame, não foi literalmente para a rua. Assim que saiu
da casa que morava, ela ligou para Alexandre. Ele colocou-a para dormir escondida no carro
dele, na garagem da casa de seus pais, por três ou quatro dias. Neste tempo, Alexandre
alugou uma casa para Donatela em seu nome. Ambos moraram nessa casa por um ano.

Depois de seis meses (de namoro), era um amor tão grande. Ele estava se
formando em literatura internacional. Bicha intelectual, libriano, né.
Imagina um libriano... O que você tem a dizer de libra?

Libra é oposto de áries, né [Donatela é ariana]. Tem uma relação com


estética. É em cima do muro, não sabe decidir as coisas direito.

Ele era meio indeciso mesmo.

O libriano sabe agradar...

É verdade, quer sempre agradar. Ele foi maravilhoso pra mim. (...) Eu
lembro que eu trabalhava de seis da noite até meia noite ou onze horas, daí
ele vinha me buscar. Daí a gente ficava, ele tinha prova no outro dia, a gente
ficava dentro do carro. Ele tinha uma Peugeot 206 e a gente ficava
estudando. Então eu aprendi o italiano com ele. Eu estudava, eu lia, eu
perguntava. Eu estudava com ele pra faculdade. Assim ele passou da
faculdade. Assim que ele passou da faculdade e que ele pegou a láurea
(diploma), ele ficou tão grato a mim que ele pegou uma casa pra mim no
nome dele. Ele alugou uma casa pra mim no nome dele. Foi o melhor tempo
da minha vida, foi quando eu vivi apaixonada. Eu vivi pra ele.

38
Cheguei a indagar se Donatela havia sido apresentada para a família de Alexandre e
por que ela ficou escondida no carro. Donatela me conta que só foi apresentada para a
família depois de muito tempo de namoro e os pais do italiano não reagiram muito bem com
a confissão. Isto é, não aprovaram a relação, mas também não a impediram. Mas a
desaprovação não coercitiva constrangeu o suficiente Alexandre para impedir que ele
recebesse Donatela na casa em que morava com os pais. Desse modo, mesmo que o namoro
tenha durado quatro anos, Donatela nunca conseguiu manter uma relação estreita com a
família de Alexandre.

2.1.2: Com Romário

Diferentemente de Donatela, Ana não trabalha há muitos anos na prostituição. São


dois anos que coincidiram, como vimos, com o início de seu processo de transição. Logo no
primeiro mês como prostituta, Ana conheceu Pedro, uma “maricona” de 50 anos que lhe
dava nojo, como ela afirma. Pouco tempo depois, Ana conhece Romário ou, como ela
prefere, “um filho da puta que eu amo”.

Durante um ano, o namoro de Ana com Romário aconteceu paralelamente com o


“namoro” de Ana com Pedro. Coloco aspas neste último, pois Ana reconhece que se tratou
de um relacionamento, mas entende que não se equiparara ao namoro com Romário, pois
com este havia afeto e com aquele, interesse. Parte deste tempo, um não sabia do outro e Ana
tinha que gerir informações para os dois. Ana ficava com Pedro, pois ele a ajudava
financeiramente, embora ela alimentasse um profundo asco dele, ao mesmo tempo em que
ficava com Romário, pois o amava. Entretanto, Ana devia lidar com uma sensível questão: a
possibilidade de um saber do outro poderia desmanchar as duas relações a qualquer
momento. Voltaremos a essa gestão de informações mais adiante.

Ana, quando conheceu Romário, já estava com Pedro, que foi um de seus primeiros
clientes. “Maricona carente” que é, logo caiu nos encantos de Ana. “Maricona assim carente
e sozinha na minha mão tá fodida. Eu faço apaixonar mesmo”. Ela conheceu Romário, como
cliente, na mesma época., um pouco depois.

39
O Romário, conheci ele no comecinho, sabe? Ele foi fazer programa comigo
e ele tinha uma mulher. Um relacionamento de sete anos. Aí, o que
acontece. Ele veio fazer programa comigo em Janeiro, logo quando comecei
a me prostituir. Aí, em Janeiro, fizemos só um programa. Nosso programa
de sexo foi só uns cinco minutos e o resto foi tudo conversa. Eu até deixei
passar a hora sem cobrar nada porque foi um cara super legal. Rolou uma
química babado. Um cara super oposto de mim, ele é um nerd pacato.
Professor de matemática. Ele está se formando agora em Engenharia Civil.

Na forma como Ana fala, é possível perceber o quanto ela valoriza o fato do tempo
de sexo ter sido reduzido em detrimento do tempo conversando. “Uma química babado”, que
resultou no início de um namoro em abril de 2014. É bastante recorrente entre minhas
interlocutoras a valorização de clientes que têm um “bom papo” e preferem gastar o tempo
do programa conversando ao invés de transando.

De janeiro a abril, período em que Ana saía com Pedro e Romário simultaneamente,
ela quase não se prostituiu. Pedro, havia pedido que Ana largasse essa vida sob o argumento
de que ela “não tinha nascido para isso” e merecia “coisa melhor”. Visando oferecer uma
fonte financeira perene para sua amada, Pedro dá para ela um cartão de crédito que ela
poderia usar da maneira que quisesse, além de prometer-lhe pagar pela cirurgia de implante
de silicone que ela tanto sonhava. Ana tinha retirado seus anúncios de sites de acompanhante
e “fazia” um cliente ou outro às escondidas, por indicações de amigas, ou clientes repetidos
que tinham seu número. Neste tempo em que quase não trabalhou, o seu relacionamento com
Romário foi se intensificando. “Ele era quase meu marido, sabe? Dormia lá em casa todo
dia”.

Finalmente em abril, Romário termina com a namorada e pede Ana em namoro. Fato
que Ana não só aceita, mas publiciza imediatamente em seu Facebook, deixando Romário
numa situação complicada. Ele configura sua privacidade da rede social e autoriza apenas
amigos mais próximos, sua irmã e amigos da Ana para verem e curtirem a alteração do status
do relacionamento na rede social. No que diz respeito a Pedro, Ana não havia se preocupado
muito, pois “ele é velho e não tem face”.

Em setembro, Pedro e Ana se encontram no shopping Guadalupe e ele entrega para


ela sete mil reais em suas mãos. “Toma, pro seu peito”. Eles já haviam combinado o valor e
Ana, geminiana ansiosa, já tinha marcado sua cirurgia para aquele mesmo mês em São

40
Paulo. Apesar da empolgação de finalmente poder colocar a prótese de silicone com que
tanto sonhou, contar para Romário que um cliente havia desembolsado um valor tão alto
para um investimento em seu corpo seria difícil. “Eu cheguei pro meu namorado e falei
assim” [Ana faz uma pequena pausa e respira profundamente simulando como contou para
seu namorado] “‘Romário, um cliente meu quer me dar o peito de presente, e aí?’. Aí ele foi,
fechou a cara, ficou puto e perguntou ‘esse cara está querendo te dar o peito por quê?
Ninguém dá nada assim pros outros não!’”. Numa tentativa de recuperar o bom humor de
Romário, Ana começa a situar para o namorado o que o cliente significa para ela. “Ele é meu
cliente de tempo, coroa”, “ele me dá nojo”, “ele quer me dar, ele gosta de mim, ele sabe que
é meu sonho”. Na conversa com Romário, Ana desloca-se com cuidado pelas palavras como
quem caminha na corda bamba. Ela sabe que deve despertar ciúmes na medida certa, pois
assim, aciona a honra masculina de Romário e pode conseguir que ele mesmo pague a
cirurgia de implante de silicone. Entretanto, não pode exagerar, pois assim Romário poderia
obrigá-la a sair da prostituição e, assim, perderia sua autonomia, caso quisesse continuar o
relacionamento. Então, Ana joga com valores, enfatiza que o cliente é freguês fixo,
positivando o fato de que Pedro gosta e cuida dela, afinal dar a cirurgia de implante de
silicone é uma forma de cuidado. Mas, antes de tudo, ele é coroa e desperta nojo. “Então
tá!”, disse Romário decidido “eu mesmo vou pagar seus peitos”. Mal sabia Romário que Ana
já estava com o dinheiro de Pedro. Ela responde para o namorado:

Eu falei “não precisa pagar, deixa que ele pague”, porque o dinheiro, na
verdade, já tava comigo. “Deixa que eu vou pegar o dinheiro com ele”. O
que eu pensei... Eu não vou usar o dinheiro do meu namorado, porque eu
gasto depois, sabe? Vou usar logo o do cliente, porque eu não sei quando
ele vai embora. Se ele for embora depois, o dinheiro já está aqui. O Romário
eu sei que vai ficar.

Alguns meses depois o namoro chegaria ao seu fim.

41
2.2: CUIDADO E CONTROLE: AS NEGOCIAÇÕES DE ROTINA

“Eu entendo por esse lado. É uma coisa muito difícil alguém que compreenda o
mundo da prostituição. Nem quem vive perto. Meu namorado viveu, o Alexandre viveu isso
por quatro anos e ele nunca conseguiu compreender”. O trecho que selecionei para compor a
Introdução desta dissertação me foi dito por Donatela em uma de nossas conversas,
revelando, finalmente, a necessidade de pôr em evidência as dinâmicas afetivas das relações
de mulheres prostituitas trans-travestis com homens heterossexuais cisgêneros. A fala de
Donatela vai ao encontro das diferentes concepções de sexo, amor e intimidade dos dois
sujeitos da relação: aquela que se prostitui e aquele que não se prostitui. Dessa maneira, a
incessante negociação de fronteiras simbólicas e corporais é um locus agonístico na malha
do dia-a-dia do casal. Tal sentimento de incompreensão aparece como tônica trivial entre
sujeitos que participam do mercado do sexo. Maria Elvira Díaz-Benítez no seu livro “Nas
redes do sexo” (2011), que traz os bastidores da indústria pornográfica brasileira, nos mostra
que é comum entre atores e atrizes pornô “namorar alguém do circuito”, pois é “um meio
mais viável para a formação de um casal por conta da afinidade nas visões de mundo, nas
rotinas de trabalho, nos hábitos e nas expectativas de vida” (Diaz-Benítez 211: 2011). A
autora argumenta que:

“[Há] (...) dificuldade de encontrar alguém que os ame sinceramente, para


além do desejo físico, e que não utilize o trabalho sexual como motivo para
manipulá-los ou torná-los alvo de constantes reclamações. Alegam, ainda, a
dificuldade de encontrar alguém que seja compreensivo e não os obrigue
nem estimule a se afastarem de um mundo que muitos não querem, ao
menos no momento, abandonar.” (Ibidem)

No meu campo, as discussões que os casais travaram caminharam por veredas muito
semelhantes às reclamações que as interlocutoras e interlocutores de Díaz-Benítez fizeram.
Quando questionadas por mim se os namorados eram ciumentos ou aceitavam o trabalho de
prostituta, a resposta era geralmente “aceitavam, mas...” e o que se seguia eram as diferentes
condições e concessões que os namorados estabeleciam para o reencontro do casal.

Donatela era proibida por Alexandre de sentar-se na cama com a roupa de trabalho.
“Ele me buscava todos os dias meia noite ou uma hora da manhã e não me beijava. Eu tinha

42
que chegar em casa, escovar os dentes, tomar banho. Eu tinha que botar uma roupa limpa.
Não podia sentar suja na cama”. Já Romário preferia encontrar Ana depois que houvessem
transcorridas várias horas depois do fim de sua jornada de trabalho. Ele pedia que ela
trabalhasse no período da manhã para poder vê-la a noite como se o tempo de não-trabalho
ou de ócio realizasse nela uma espécie de purificação vitoriana. Além do mais, quando os
dois estivessem juntos, ela não poderia atender o celular em sua frente e nem falar sobre seu
trabalho quando ele não perguntava. Caso Romário perguntasse, era devido a algum fundo
de desconfiança e curiosidade e então “era uma perguntação sem fim. Trabalhou hoje? Sim.
De tarde? Eu falava de manhã. Quantos Clientes? Poucos. Era feio? Eu falava que era feio e
velho. Repetido? Eu falava que não. Beijou na boca? Não. Chupou sem camisinha? Não.
Tinha que falar isso tudo pra ele, tadinho”.

Paula teve apenas um namoro, de curta duração. Assim como Donatela, não o
conheceu fazendo programa. O namoro acabou, justamente, porque Paula não aceitou se
submeter às restrições excessivas do seu então namorado. O rapaz que “apenas tolerava” a
profissão de Paula e trazia condições para relação muito parecidas com as de Romário. Ela
diz:

Por exemplo, no dia que a gente ia se encontrar, ele queria que eu não
tivesse trabalhado. Sabe? Às vezes, tem dia que ninguém liga pra gente e
quando liga, a gente tem que aproveitar. Ele ia lá pra casa no final de
semana e eu falava "se me ligarem, me deixa sair. Até porque é atendimento
de uma hora, é rápido e eu volto, entendeu? E eu preciso muito do
dinheiro”. Ele não deixava. Queria me ver sempre quando eu estava
trabalhando e eu deixava de trabalhar por causa disso. Foram cinco meses
de namoro.

Paula encerrou o relacionamento no momento em que percebeu que estava deixando


de trabalhar e ganhar seu dinheiro para passar tempo com o namorado. Diferentemente de
Ana e Donatela, Paula não faz questão de manter uma relação monogâmica, sendo ela adepta
de relações livres. Veremos mais sobre Paula no terceiro capítulo.
No que diz respeito a Ana e Donatela, elas estabeleceram com seus namorados uma
dinâmica conjugal na qual detinham o direito de fazer sexo com clientes, pela contrapartida
de manterem a exclusividade afetiva na relação. Ao passo que os homens deveriam não
apenas manter exclusividade afetiva, como elas, mas exclusividade sexual. Alexandre e

43
Romário sabiam, antes de iniciar suas relações com Donatela e Ana, que elas trabalhavam
como prostitutas. Logo, ambas as mulheres conseguiram pleitear seus trabalhos como
garotas de programa já no início da relação. Perguntada, após o meu espanto, sobre o
processo de convencimento de Romário a embarcar neste modelo de conjugalidade, Ana me
responde com certa tranquilidade “exigia sim, sempre [a monogamia sexual e afetiva]. Até
porque ele era meu namorado, né? E eu sou mega agressiva. Geminiana com ascendente em
câncer... Eu era doida naquele homem”. A não-equidade que os casais estabeleciam para si
em relação ao comportamento sexual do homem versus o da mulher era a ponte fundamental
de embate e negociações dos pares. É importante salientar que a tolerância à profissão de
prostituta das duas mulheres não é um investimento único e primeiro no início da relação.
Mas, com efeito, um processo no qual se joga com realidades ficcionais no intuito de não
frustrar os companheiros, e, assim, construir um processo de aceitação mais sólido. A gestão
de informação de Ana com Romário deixa este ponto bem explícito.

Anne McClintock no seu belo trabalho “Couro Imperial” (2010), analisa no capítulo
“Raça, travestismo e o culto da domesticidade” os diários escritos por Hannah Cullwick,
uma criada e Arthur Munby, um advogado. Do mesmo modo que acontece com minhas
interlocutoras, o relacionamento dos dois foi mantido em segredo durante todo o tempo em
que ficaram juntos, dezenove anos. O círculo vitoriano do século XIX que conviveu com
Cullwick e Munby acreditava que eles se relacionavam apenas como patrão e empregada.
Entretanto, a verdade é que viviam um tórrido amor subterrâneo. Ambos gostavam de
realizar jogos de fetiche ao redor dos marcadores de classe, raça e gênero. Cullwick por
vezes se vestia de dama, camponesa, escrava (usava uma pulseira de couro que sinalizava
seu pertencimento simbólico a Munby, o couro imperial), de homem, de negra etc. em busca
de explorar as possibilidades e prazeres ao lado de seu companheiro. Evitou durante muitos
anos se casar com Munby, pois gostava da liberdade de poder tomar as próprias decisões
(tendo em vista que o contrato de casamento a submeteria a Munby formalmente) e ganhar o
próprio dinheiro com o trabalho (uma vez que cobrava até mesmo de seu parceiro pelos
serviços doméstico que prestava). Ao contrário das damas de seu tempo, ela não enxergava o
trabalho como algo que deveria se sentir envergonhada e ocultar, mas o extremo oposto. Ela
se sentia à vontade em expor a sujeira e o suor do seu corpo calejado da labuta desafiando,
assim, a separação entre público e privado da modernidade que se desenhava na Inglaterra
deste período (McClintock 1995). Tendo em vista o caso narrado por McClintock, atualizo

44
sua pergunta central para o nosso assunto em questão: que tipo de relação é possível em
situações de desigualdade social extrema?22 Ademais, pensando num contexto onde há uma
moral imperiosa da monogamia afetiva e das restrições de prazer sexual no âmbito do casal,
vale perguntar: como recai a prostituição na trama do dia-a-dia de cada uma das partes da
relação?

Avtar Brah tenta pensar a diferença como uma categoria plural na crença de que
tratar um grande espectro de casos como apenas “diferença” reduz a possibilidade de
capturar a multiplicidade de experiências que são sentidas e exercidas na vida de um grupo
analisado. Dessa maneira a autora divide diferença em quatro categorias: diferença como
experiência, diferença como relação social, diferença como subjetividade e diferença como
identidade (Brah: 2006). Me inspiro no modelo de diferença da autora para aproximar
daquilo que ela afasta: diferença não é sinônimo de desigualdade. Para mim, quando
pensamos em desigualdade é igualmente salutar a marcação da heterogeneidade que este
conceito pode assumir nas diversas experiências dispostas, assim como diferença para Brah.
Desse modo, para entender a natureza da desigualdade entre Ana, Donatela, Alexandre e
Romário trago: desigualdade de experiências, desigualdade de identidades, desigualdade de
relações sociais, desigualdade de subjetividades e, também, desigualdade de projetos e
desigualdade de possibilidades. Toda juntas compõem a atualização da pergunta de
McClintock para efeito retórico.

Em diversas etnografias sobre prostituição, as relações com os maridos são dadas em


termos nos quais eles ou participam de alguma forma do mercado do sexo ou se beneficiam
dele (Kulick 2008, Silva 2007, Fonseca 2000, Olivar 2013). Don Kulick (2008), em
“Travesti”, apresenta as redes de disputas e intrigas entre as travestis com quem conviveu
nos anos 90 e os homens de determinado perfil que as namoravam. Estes circulavam e
permaneciam no relacionamento com a travesti que mais lhes beneficiaria financeiramente
(Kulick 2008). Estes homens não eram cafetões, eles “tampouco mantêm um controle sobre
suas namoradas travestis enquanto elas trabalham na rua. [...] Desde que elas continuem a
pagar as contas, os namorados se contentam em deixar o lado profissional inteiramente a
cargo de suas namoradas travestis” (2008: 128).

22
A pergunta original “Que tipo de atuação é possível em situações de desigualdade social extrema?” (2010:
211) também é possível. Optei por deslocar “atuação” para “relação”, pois acredito que a discussão que
acompanha a palavra relação passa também pelas categorias de subordinação e relação de gênero além de abrir
portas para discutir família com mais força.

45
Já entre as mulheres cisgêneros apresentadas na obra de José Miguel Nieto Olivar
(2013), os maridos necessariamente compunham o universo da esposa puta. A figura do
gigolô ou do marido-cafetão não apareceu em nenhum momento nas entrevistas que fiz.
Assim, o ponto chave para entendermos a composição dessas relações se revela na mulher
trans-travestis e prostituta de classe popular (com exceção de Paula) e o homem de classe
média autônomo ligados por uma ideia de amor-romântico em benefício de uma vida
conjugal a dois. Há, em casos bem pontuais, vezes em que as mulheres dão dinheiros para
seus namorados. Entretanto, situações como essas são isoladas do contexto geral onde os
homens desejam fortemente que suas namoradas abandonem a prostituição e elas se
recusam, ou fingem que aceitam, objetivando a conservação de suas autonomias financeiras
(o que configura outra aproximação com Hannah Cullwick).

O poder na relação é disputado nos diferentes significados atribuídos ao amor, ao


sexo e ao prazer no ir e vir das discussões. Há a manutenção de maneiras não-análogas de se
conduzir na relação (Heilborn 2004 e 1995), todavia os termos dos casais são diferentes
daqueles que a clássica literatura dos anos 80 sobre família e conjugalidade costuma abordar
(Velho 1998 e 2009; Fonseca 1995; Heilborn 1995; Duarte 1999). Estamos diante de um
outro modelo de conjugalidade no qual, embora concebido e idealizado pelo típico
imaginário de relacionamentos monogâmicos de camadas médias, seguindo a literatura
mencionada, é praticado de forma diferente. Há continuidade na monogamia que está
transmutada em monogamia afetiva23. O que une os exemplos etnográficos que trago à baila
a essa literatura antropológica são os pontos fundamentais para a formação de um casal.
Como pontua Claudia Fonseca, a união do casal acontece e depende da livre escolha dos
pares, do amor romântico e da criação do lar como refúgio do público (Fonseca 1995).
Também podemos trazer o sistema de expectativas que minhas interlocutoras vocalizaram
sobre suas próprias relações (ponto que estará mais presente no capítulo 3) e a maneira que
se referiam aos até então namorados como “namoridos”24 ou “quase-esposos” com certa
regularidade. É mister salientar também que construíam suas éticas do viver junto, mesmo

23
Poderia a leitora ou o leitor argumentar que a separação da monogamia em duas modalidades, sexual e
afetiva, nos traria um modelo cartesiano de corpo e alma no qual o primeiro seja templo dos prazeres e o
segundo, dos afetos. Vale lembrar que, nos casos que me foram confiados por Ana e Donatela, no que
concerne aos “grandes amores”, era aos homens imposta a restrição da monogamia sexual e às mulheres, do
prazer no trabalho. Isto é, o prazer da mulher, que poderíamos pensar como gozo corporal, é exclusivo de seu
parceiro, redesenhando, por sua vez, os limites de corpo e alma no que diz respeito às afetividades e aos
prazeres.
24
Junção das palavras “namorado” com “marido”.

46
fora da formalidade do contrato de casamento, como casamento e, mais importante, como
família. Formas muito semelhantes de se pensar família e casamento aparecem também nas
pesquisas de Gilberto Velho que tratam de relações entre membros da classe média carioca
(Velho 2002, 2009, 1998) nos aproximando, novamente, da ideia de individualismo, assim
como da casa como âmbito privado.

As mulheres exigem exclusividade sexual e afetiva e os homens tentam lidar (como


diz Paula, “toleram”) com a exclusividade sexual, exigindo a afetiva. A estabilidade do casal
aparece nas diversas regulações internas, no fluxo das tênues fronteiras de cuidado e
controle. Essa dobra do cuidado-controle “é complexa”, como diz Donatela:

Pra uma pessoa pedir pra você tomar um banho “vai se lavar”. Eu era
obrigada. Mas enquanto eu estava me lavando, ele estava preparando meu
lanche antes de dormir. Tá entendendo? Era uma pessoa que me obrigava a
tomar um banho, mas se preocupava de ir lá na cozinha preparar um lanche.
Ele adorava fazer sanduíche e preparava sanduíches de todas as formas. Ele
fazia um lanche pra mim. Ele não gostava que eu comesse na rua. Quando
eu falava “vem me buscar no Polinario” que é onde vende lanche, tipo um
foodtruck, ele não gostava porque ele sabia que eu não iria comer em casa.
É complexo.

Se Donatela quisesse provocar Alexandre por algum motivo, ela sentava na cama dos
dois. Sentar na cama “suja”, nos termos mais basilares de pureza e perigo (Douglas 1991),
era um dos maiores atos transgressores que ela poderia fazer. Seu corpo sujo era público e
poderia poluir toda a qualidade do privado no espaço mais íntimo do casal, a cama na qual se
entregam um para o outro, trocam amores e substâncias, descansam e, assim, configurando-
se no templo sagrado do par. No entendimento de Alexandre, este corpo deve imediatamente
se limpar para tirar tudo aquilo que não pertence a Donatela nem a ele. Isto é, todo caráter
público, todo resquício de outros homens, de outros corpos, de outros prazeres, de outros
sofrimentos.

Diferentemente das mãos sujas e da pulseira de couro de Cullwick que evidenciam o


trabalho da mulher, o corpo de Donatela não possui sinais aparentes de poluição. É a
compreensão de sua circulação que o transforma em sujo para Alexandre.

A possibilidade de Donatela circular pela sua casa e a possibilidade de encontrarem


seus namorados pelo tempo de ócio, para Ana e Paula, atestam as diferentes concepções de

47
intimidades que tramam estes relacionamentos. Olivar nos mostra em “Devir Puta” (2013)
como programa não é sexo para suas interlocutoras. Isto é, o sexo diz respeito a uma entrega
que não é dada no programa (Olivar 2013). Entre minhas interlocutoras, por mais que o
“nojo”, a apatia e o automático tenham surgido em diversas ocasiões quando se tratava do
sexo comercial, ouvi diversas vezes o termo “fazer um vício”, que quer dizer se relacionar
com um cliente que é “bofe odara”, “boy magia”, “cliente que vira crush”, um homem muito
bonito que dispensaria a relação intermediada pela troca de dinheiro. Como vimos no
primeiro capítulo - e aqui se diferencia profundamente das interlocutoras de Olivar, o qual
narra o fazer-se puta como expressão concomitante a fazer-se esposa - Ana, Alice, Donatela
e Paula entenderam em algum momento de suas vidas que não havia outra alternativa a não
ser, “ser puta”, pois é este o “lugar de travesti”. Desse modo, a experiência da prostituição
antecede necessariamente a possibilidade difusa e imprevisível de se tornarem esposas de um
homem.

Nos tecidos das subjetividades da intimidade, deitam-se os diferentes significados


atribuídos a sexo e prazer. Os homens sentem ciúmes e então estabelecem limites para suas
mulheres que são pensados em três diferentes tipos, 1. Por qualquer forma de contato sexual;
2. Pela possibilidade que elas sintam prazer no programa; 3. Pela possibilidade que surja
alguma forma de afeto com o cliente. Evidentemente os três pontos são tipos ideais que se
confundem na realidade. No que diz respeito ao primeiro ponto, este é o que testa o maior
nível de tolerância dos homens em relação ao trabalho de suas mulheres. Nos casos narrados
acima, podemos notar um fio condutor, seja pelo banho ou por horas transcorridas, da
necessidade de purificação. O segundo item e o terceiro são os mais difíceis de serem
controlados pelos parceiros ficando, portanto, a cargo da confiança que eles nutrem por elas.
Não há nenhuma interlocutora minha que não tenha mentido para seus parceiros sobre os
detalhes de seus encontros, como as eventuais repetições de clientes, a beleza e idade deles,
ou o que sentem, mesmo sendo amizade. “Ele não aceitava [clientes fixos]. Eu tinha que
mentir. Se ele descobrisse, ele ficava puto”, me revela Ana. Assim, é repetido por elas, de
maneira incessante nas discussões do casal, que com o parceiro o sexo é por prazer (ars
erotica) e com os clientes, “industrial” (Olivar 2013). Os vícios são segredos revelados
apenas para os mais próximos.

Embora o processo de convencimento à tolerância seja inesgotável e Ana, Paula e


Donatela tenham que negar qualquer forma de prazer sexual nas relações de trabalho em

48
diversos momentos, prazer para elas é muito mais sutil. Donatela revelou-me que se sentia
“assexuada”. Ela diz que “se aparecer um bofe aqui e oferecer uma bebida, eu vou preferir
estar conversando com você. Eu não tenho mais esse apetite sexual, no caso [sexo] hoje é
trabalho”. Num outro momento, uma de nossas entrevistas fora interrompida por um homem
que Donatela apresentou como “este aqui é o carequinha25 que me acompanha vendo
Netflix26”. Já Romário é “minha companhia para ver Game of Thrones27” diz Ana. Mais uma
vez temos sexo e prazer sexual como protagonistas das discussões e criações de sujeitos
morais (Foucault 2003) para o par. Enquanto o locus agonístico do cotidiano dos homens é o
controle de sexo e prazer que suas namoradas podem eventualmente ter no trabalho, para
elas prazer, por tantas vezes, é a expressão da intimidade mais prosaica no olhar, como ver
séries televisivas.

Se no caso dos homens há desconfiança na possibilidade de que sua mulher sinta


prazer nas relações sexuais do trabalho, para a mulher, o homem deve fidelidade pela
monogamia sexual e afetiva, como dito anteriormente. Dessa forma, para o casal, a
prostituição surge como força interna fantasmagórica e onipresente, pois poderia justificar
possíveis adultérios dos homens ou possíveis afetos para as mulheres, uma vez que a
prostituição é um ponto de encontro com outros, ou “predação” (Olivar 2013). A arte de
viver na relação passa, portanto, pelo estabelecimento de normas do casal e diversos
controles (ou cuidados) de si para evitar excessos que possam pôr fim à relação.

Outro ponto interessante que podemos notar nas dobras do cuidado-controle, são as
formas que os papeis sexuais assumem nas tramas destas dinâmicas. Como vimos
anteriormente com Ana, a quantidade de informação que se revela para o namorado é de
suma importância para o sucesso da manutenção do trabalho como prostituta e do
relacionamento com Romário. Logo, qualquer posição de subalterna que Ana possa ter em
determinados momentos da relação (mesmo em face de sua “agressividade” geminiana em
exigir exclusividade sexual), não suprime sua capacidade de agência. Ademais, este é o lugar
que Ana prefere estar na relação. Quando ela manipula as informações trazendo o marcador
social da velhice para negativizar a experiência com Pedro, ela também positiva o cliente ao

25
Donatela não namora atualmente este homem. Embora ele tenha a pedido em namoro em diferentes
oportunidades, ela, que nutre um grande carinho por ele e o encontra regularmente, não quer uma relação, pois
não está apaixonada.
26
Netflix é uma empresa que funciona como TV por demanda. Em outro momento ela me disse “o que eu
procuro de um namorado.... É alguém para ver Netflix”.
27
Famigerada série televisiva de fantasia baseada num livro best-seller de George R. R. Marin

49
colocá-lo como cuidador. Dessa maneira, aciona um lugar masculino na figura do cuidador
no intuito de despertar este mesmo lugar masculino em Romário. Ana o faz numa dupla
intenção que se complementam: a de fazer com que seu parceiro tome uma atitude mais
coerciva, demonstrando ciúmes, e que ele pague a cirurgia estética. Dessa forma, o Romário
ciumento toma Ana como um território de reivindicação, pois oferece financiar a prótese de
silicone da companheira ao mesmo tempo em que ganha o direito de promover alguma
sanção em relação a Pedro. Ana conquista a sensação de se sentir parte de uma relação onde
ela é realmente amada, sentimento que ela lê pela demonstração de ciúmes, e também,
consegue o dinheiro tanto do cliente quanto do quase-marido.

Amor, ciúmes, cuidado e controle são afetos generificados, expressos, praticados e


atualizados de acordo com papeis de gêneros já estabelecidos. Ora cada um deles é expresso
como energia masculina e ora como energia feminina. O cuidado, por exemplo, de pagar a
prótese de silicone é um cuidado masculino. A limpeza e a purificação são cuidados de
responsabilidade feminina. E assim por diante. A noção de cuidado vem ganhando cada vez
mais destaque na Antropologia. Camila Fernandes num artigo intitulado “Apego e Jeitos de
cuidar” (2013) nos dá pistas de como é generificado o ato de care. Nas casas de cuidadoras
que acompanhou numa favela carioca, ela apresenta como e quando o cuidado é
responsabilidade das mulheres e dos homens, o que, em suma, é pensado para aquelas nos
termos de afeto e carinho e para estes numa autoridade mais fria. Os novos peitos de Ana são
expressão do cuidado masculino, pois dizem respeito ao corpo de uma mulher, ao sonho de
uma mulher e de um investimento financeiro para uma mulher. Desse modo, atualiza-se a
figura fria e racional (e masculina) do dinheiro (Zelizer 2007, Pelúcio 2011, Piscitelli 2011)
e a posse do corpo sonhador, sensível, emocional (e feminino) pelo homem. Isto é, renovam-
se os papeis de gênero estabelecidos da trama da confissão às técnicas corporais de um corpo
“siliconado”, “turbinado”, hormonizado e prostituído. Poderíamos seguir daqui a uma
discussão sobre a negativação da experiência de Ana pelas amarras estreitas do
“patriarcado”28. Todavia, como foi visto anteriormente, ela não foi posta nesta situação
passivamente. Para Ana “pessoa que ama é ciumenta”. Ela provoca Romário ao contar de

28
Muitas autoras feministas defendem que a ideia de que patriarcado cria um inimigo indiviso e abstrato. Além
de dificultar a criação de medidas claras de combate, reduz a possibilidade de compreender a maneira, digamos,
rizomática, que este conceito tem de atuar ao achatar as miríades de experiências de opressão masculina num
marcador só. Quando não discutem propriamente com a ideia de patriarcado, nos mostram as diversas
identidades e possibilidades que “ser mulher” possui em diferentes contextos e culturas. (ver Butler 2006,
Mahmood 2012, Piscitelli 2002, Brah 2006, hook 1990, Davis 2005)

50
Pedro a fim de estar numa trama onde seu parceiro se posicionaria de maneira possessiva.
Na cena que segue o fim da sessão anterior, Romário obriga Ana a destruir o cartão de
crédito que o cliente tinha dado e a proíbe de encontrá-lo novamente. Ana quebra o cartão
desgostosa, mas neste lugar de submissão, se sente mulher, amada e pertencida por alguém
que a valoriza. Já Romário, sente que mesmo que sua namorada transe com outros homens,
ele ainda exerce algum controle sobre ela.

Podemos perceber que o casamento é uma forma de vida pela existência


compartilhada. Ambos os pares estabelecem um vínculo pessoal e intenso por posições de
reciprocidade afetiva. Temos, portanto um modelo de relação que se aproxima da
modernidade no que toca, como já foi dito, a livre escolha dos cônjunges pelo amor
romântico, o lar como refúgio do público e, ademais, a presença do individualismo. Isto é,
este modelo de relação acontece na maioria dos casos que apareceram para mim
independente do seu status mais geral em outras redes e diz respeito somente à decisão do
casal de querer estar junto e compartilhar uma vida cotidiana. Decisão esta que está
circunscrita na qualidade subterrânea para a sobrevivência do relacionamento. Subterrâneo
como o apagamento da prostituição como profissão da parceira ou de sua existência na vida
afetiva dos homens para a suas respectivas famílias. Não quero dizer com isso que não haja
outros fatores determinantes para a consolidação de uma relação. A ideia é pontuar como a
escolha aparece como salutar nos discursos de minhas interlocutoras. Esta decisão, por uma
vida conjunta, por parte do seu homem, é percebida por Ana na manutenção de seu lugar
subterrâneo, pois, para ela, Romário dizia que revelá-la poderia impossibilitar
completamente a existência cotidiana do relacionamento em detrimento das possíveis
censuras familiares. “Ele nunca fez questão de me apresentar. Só fazia quando era obrigado
pela situação. Tipo quando eu estava na The Week29 com ele e encontramos um antigo amigo
de escola dele. Ele me apresentou como namorada, não teve escolha, né? Mas eu entendo, é
difícil”, contou Ana. Já para Donatela, mesmo com a demora de ser revelada para os pais de
Alexandre (não tenho informações de quando exatamente), houve o apagamento de sua
carreira como prostituta e o apagamento de sua existência para níveis mais macro da família,
como avós e tios. A experiência da transexualidade e travestilidade aparece, por conseguinte,
na força que as pressões externas têm em constranger os pares ao serem exercidas por grupos
próximos, como a família-amigos e grupos mais difusos, a sociedade mais geral. Estes são,

29
Boate carioca localizada na Sacadura Cabral voltada ao público LGBT.

51
assim como o estigma da prostituta, energias fantasmagóricas que ameaçam perenemente a
relação. A família e os amigos ameaçam pelas suas proximidades afetivas e, a sociedade,
pela sua qualidade amorfa, mas normativa e, decerto, imprevisível

2.3: O FIM DA RELAÇÃO:

2.3.1: O “Povo da noite”: a prostituição como ameaça.

Da tragédia do incêndio da pequena república de travestis até morar no carro do


namorado, Donatela foi sempre assistida. Alexandre providenciou roupas novas, lhe ensinou
a gramática da língua italiana, alugou uma casa para ela e ainda a levava de carro para os
pontos em que ela costumava trabalhar. E não eram poucos. Donatela fazia um considerável
sucesso entre os homens italianos. Ela diz:

Eu trabalhava em todos os pontos de Roma. Os pontos de Roma são:


Caracala, Bulin, Fungo, Piramide, Cristoforo Colombo, Matadoido,
Colatina e Carrefour. Todos os pontos de prostituição de brasileiras. Eu era
a única que conseguia trabalhar em todas. E ainda trabalhava em um que só
tinha colombianas. Cada dia eu estava em um (...) As colombianas não têm
cafetinas. A colombiana é respeito. Se é uma bicha que rouba, ela é
respeitada. Entendeu?

Na convivência com Alexandre, Donatela parou aos poucos de se drogar. Por vezes
no mundo da prostituição, ela me conta, é necessário o consumo de drogas sendo que
cocaína é a principal delas. Diversos homens contratam os serviços de garotas de programa,
não pelas atividades sexuais, mas pela companhia no uso de substâncias entorpecentes
“ninguém gosta de cheirar sozinho”, ela diz. O processo de desintoxicação de Donatela
aconteceu paralelamente à intoxicação de Alexandre.

O cotidiano do casal se estabelecia de seguinte forma: Donatela e Alexandre


acordavam cedo. Ele começou a trabalhar em um programa matutino na Itália chamado
Piazza “que é tipo o programa da Fátima Bernardes”. Ele começava o expediente às oito

52
horas da manhã. Por esta razão, Donatela acordava às seis, preparava o café da manhã para
ele e, depois que ele saia, dormia novamente. Às oito horas o celular de Donatela despertava,
ela ligava a televisão e tomava café da manhã assistindo ao programa até o fim. Ela me diz
que “era tão feliz (...) bem coisa de mulher mesmo. Eu assistia a ele de oito até meio dia.
Uma paixão, mona”. Neste período, Donatela e Alexandre tinham acabado de se mudar de
casa para morar num bairro recém planejado e mais afastado de Roma. Com o alto fluxo de
clientes de Donatela, o início da vida na nova casa e o novo trabalho na televisão, Alexandre
pediu para que ela parasse de se prostituir em prol de uma vida nova, o que ela fez
prontamente. Como o casal havia se conhecido num contexto em que a amizade despertou
antes do real interesse de estabelecerem uma relação duradoura, Alexandre sabia muitas
informações da vida profissional de uma prostituta. Este fato, na verdade, é causa de grande
dor para Donatela, pois ela acredita que isso a torna responsável por todo sofrimento que
Alexandre passou a acumular ao longo do namoro: “eu contava a minha intimidade como
amigo. Isso foi ruim para ele”.

Em decorrência dos compromissos financeiros que tinha assumido no Brasil (dar


dinheiro para a mãe, pagar uma dívida e acumular renda para financiar uma casa própria)
Donatela voltou a se prostituir pouco tempo depois de se mudar para o bairro novo. Foi
então que Alexandre, no período da noite em que não trabalhava, começou a levar a amada
para os diversos pontos da cidade onde ela costumava atuar. Donatela não trabalhava mais
de quatro ou cinco horas por dia. Chegava às 19h no ponto e a meia noite voltava para casa.
Como a casa era distante dos pontos, Alexandre esperava Donatela no entorno do lugar a fim
de evitar gastos com combustível.

Só que esse entorno, você imagina. Não é igual aqui que é um pé de chinelo
[os bares das áreas de prostituição]. Eram barzinhos clean que nem esse
aqui que a gente tá, mas não longe de um ponto de prostituição. O que dá
nesse lugar? Cliente, traficante, né? Vai rolar isso. Ele começou a conhecer
muita gente desse naipe. Ele começou a se envolver com o povo da noite.
Foi quando ele começou a usar drogas. [grifos meus]

A ameaça do “povo da noite” (que ela chama também de “gente errada” em outro
momento) foi percebida por Donatela pela maneira como Alexandre passou a agir. Ele
começou a se atrasar para buscá-la, fato este que foi logo notado. Não tardou que ela

53
percebesse que ele, além de atrasado, estava colocado30. Ela narra que “ele começou a usar
drogas e eu já sabia. Eu percebia, tinha acabado de me desintoxicar por exigência dele. Por
exigência dele”. Conforme o uso de drogas foi se intensificando, se acentuaram também as
discussões entre o casal. Assim como Alexandre exigiu que Donatela parasse de se drogar,
ela fez o mesmo.

Eu brigando com ele, eu não fui compreensiva. Eu não tentei ajudar ele da
maneira fácil, eu tentei pela forma que me ensinaram: eu impus a ele, eu
fui muito agressiva. Exigi que ele parasse de se drogar. Um dia eu falei
assim “você quer se drogar? Vai se drogar comigo, hoje”. Eu fui de cheirar
três, quatro dias direto. “Vamos no traficante agora”. Amiga, eu peguei 800
euros de cocaína. [grifos meus]

Donatela “sabia cheirar”. Com uma carreira de prostituta há mais de dez anos, ela
tinha aprendido a manipular a cocaína “como ninguém”. Sabia transformar até mesmo
cocaína de pouca qualidade em uma razoável. “Amacei, esquentei, deixei ela quente, deixei
ela virar uma pedra, esquentei ela de novo, moí ela de novo”. A alquimia dos oitocentos
euros de “padê” rendeu uma noite de dez horas. Donatela e Alexandre cheiraram das duas da
manhã até o meio dia. Ela me conta que “se é pra cheirar, pra mim não é listrinha assim, é
um dedo. Vai dar um dedo”. Quando a cocaína acabou, Donatela acendeu um baseado
(haxixe no caso, Donatela não fuma maconha) e foi dar para o parceiro a fim de “cortar a
onda”. Alexandre estava caído, ele teve uma overdose “mona, o bofe quase morreu”.
Imediatamente, Donatela agiu como aprendeu: arrastou Alexandre para o banheiro e jogou
água fria sobre o corpo do amado. Alexandre reagiu e foi dormir em seguida. No dia
seguinte, algo tinha mudado. O marido não era mais o mesmo.

Naquela mesma semana, Donatela tinha assumido um compromisso na ilha italiana


de Sardenha. Aparentemente, o programa na ilha estava sendo muito valorizado. Ela
conseguiria, por exemplo, cobrar em torno de cem euros por hora do programa. Mas, em
contrapartida, Sardenha era um local muito caro. O valor do aluguel de um quarto, anúncio
em jornal e a diária para a cafetina de um dos pontos em Sardenha era um gasto grande por
dia. Então, fazer apenas um programa por dia não a renderia lucro algum. Alexandre levou

30
Sob efeitos da cocaína.

54
Donatela no aeroporto, os dois se despediram e ela partiu para seu destino na esperança de
conseguir voltar com uma poupança mais abastada.

No jornal local, nos classificados, em 2008, você poderia encontrar “Lolita, 19 anos.
Massagem Naturale”.

Colocava meu nome Lolita, eu tinha cara de novinha 31 e colocava 19 anos.


A gente inventa o que a gente quer (...) Massagem Naturale é chupar sem
camisinha e acrescentava ‘tenho um beijo natural’. Bastava falar isso. Os
clientes vinham correndo porque sabiam que ia levar uma chupada sem
camisinha.

Donatela me conta que no Brasil, nos classificados, “chupar sem guanto” pode
aparecer como “Massagem com finalização” também. Como ela previra, uma semana na ilha
lhe rendeu bons resultados. Donatela voltou para Roma com cerca de dez mil euros na conta
bancária. Como de costume, ela chegou de viagem e foi direto para o banco. Sua intenção
era depositar dez mil euros por mês em sua poupança pessoal para que no fim do ano viesse
a juntar 120 mil euros. Depositou o limite diário no caixa automático de três mil e ficou com
o restante. Chegando em casa

Bicha... (...) tinha uma varanda do lado de fora [do prédio]. O prédio do lado
sabia quem entrava no seu apartamento. Botei minha chave, minha chave
não abria. Ai eu “Gente, que isso. A porta está emperrada?” Aí comecei a
forçar pra tentar abrir e nada. E tentando ligar pra ele pra dizer que a porta
estava emperrada. A vizinha da porta do lado chegou pra mim, ela me
adorava, sapatão. Ela me adorava fazia bolo, fazia comida, fofoqueira
minha filha! Sabia da vida de todo mundo. Ela abriu a porta e falou assim
“Donatela, sinto muito, mas eu vi ele trocando a fechadura”. Bicha, eu virei
um demônio. Eu falei pra ela e disse “Me desculpa, mas você vai conhecer
alguém que você nunca viu na vida”. Eu dava cada chute na porta, batia
com tudo. Quebrei a janela, quebrei tudo. Virei um demônio. Aí, quando eu
quebrei a janela eu vi o pé dele dentro do apartamento. Eu falei assim “abre
essa porta porque eu quero pegar pelo menos as minhas coisas”, ele não
abria. Eu estava tirando meu documento italiano esse ano. Eu estava
pagando INSS, estava com tudo. Falei assim “não vai abrir a porta? Eu vou
chamar a polícia”.

31
Mais um espectro de passabilidade surge neste trecho, a passabilidade etária (ver Capítulo 3 para mais
informações).

55
Donatela ligou para a polícia no intuito de causar tumulto. Alertou que tinha um
estranho na sua casa e que ele estava armado. “Um cutelo, me ajude um cutelo. [Donatela
simulou sons de respiração] e fingia que tava correndo”. Atuou prevendo que, desse modo, a
polícia chegaria mais rapidamente. Sua intenção não era de tomar a casa de volta, mas de
conseguir pegar todos os seus pertences como joias, roupas, perfumes, perucas e documentos
para então achar um lugar para ficar. Ela sabia que a polícia italiana não iria se sensibilizar
com uma prostituta, imigrante, brasileira e travesti, mas julgava que o tumulto seria uma
forma de acessar a casa novamente. “Até provar que o lugar não era dele eu já tinha pegado
minhas coisas”. O documento da casa estava em posse do pai de Alexandre. O sogro, que ela
diz ser organizado porque trabalhava no Ministério da Educação da Itália, sabia do
relacionamento dos dois e, por mais que não desse um apoio entusiasmado ao namoro,
tolerava a relação, contanto que ela se mantivesse em segredo para o restante da família.
Quando Alexandre percebeu que Donatela realmente estava ligando para a polícia, ele abriu
a porta.

Quando ele abriu a porta e me olhou, ele virou pra vizinha e disse assim “ta
vendo o tipo de pessoa que eu to lidando”. Minha vizinha virou e ia dar na
cara dele. Aí eu desliguei o telefone. Já tinha dado o endereço e tudo. Eu
tava fingindo que tava correndo, que tava sem fôlego e deliguei o telefone
quando minha vizinha ia dar nele. Segurei ela e botei ela no apartamento
dela. Bicha, a polícia chegou em cinco minutos com uma arma desse
tamanho, parecia uma escopeta. A polícia “cadê, cadê”. Bicha, ele tava com
outra travesti dentro do apartamento. A polícia entrou e falou “pega o que é
teu”. Só que bicha, não tinha mais nada meu, nada. Eu tinha três, quatro
malas. A minha caixa de joias sumiu, computador. Vendeu pra droga,
cheirou tudo (...)Até as peruca foram vendidas.

Donatela já não tinha mais quase nada além de suas roupas e alguns documentos. A
polícia disse para ela que só iria embora quando ela estivesse fora do prédio. E assim, ela
saiu. Na porta do prédio, Donatela estava sozinha com o que restou das suas coisas. A
vizinha do prédio do lado viu tudo. Morgana era uma cantora de música pop italiana que
fazia um razoável sucesso nos bares de Roma. Tinha uma filha, Luz, de doze anos de idade,
a qual criava sozinha. Aproximou-se de Donatela e ofereceu sua casa para que ela ficasse por
um tempo.

56
Morgana já acompanhava a história de Donatela da sacada de seu apartamento. Ela
também se prostituía para ajudar no sustento de Luz. Diferentemente de Donatela, ela era
viúva de um cantor também razoavelmente conhecido, mas, com a morte do marido,
Morgana perdeu toda a herança para a família do homem. Com a rápida identificação com a
história de Donatela, Morgana resolveu prestar imediata ajuda. “Mona, com três dias na casa
da amapoa, eu só sabia chorar. Ela ia me consolar e só chorava também”. A vizinha

Tinha um apartamento debaixo do apartamento dela. Tava reformando. Ela


tava sem dinheiro, ficou penosa e não conseguiu reformar. Era um prédio
de três andares o dela, o meu era de quatro. Eu morava no quarto e meu
apartamento dava de cima pro dela, onde ela morava com a filha. Ela
acompanhou tudo como a vizinha sapatão também acompanhava. No prédio
dela no apartamento do térreo, ela me botou lá. Ela me botou em um.
Você deu muita sorte de ter conseguido ser ajudada assim tão prontamente.
Muita sorte, muita sorte. Eu sou do candomblé, né miga. A gente liga muito
pra isso. Eu sou de Oxum (...)E a mulher que me ajudou, assim como a
minha mãe, era de Iemanjá pelo histórico, né. Ela era de Iemanjá. Essa coisa
mãe, ela me acolheu, ela me pegou, ela chorou comigo. Quando eu morava
na casa dela do térreo, eu reformei a casa dela, deixei entregue quando fui-
me embora. Quando eu saí, ela podia alugar o apartamento, fiz isso porque
queria dar tanto um presente pra ela. Ela era linda, loira desse tamanhozim.
Pegava minhas roupas pra se vestir, pra cantar e era um escândalo.

Se “o povo da noite” é o entorno dos pontos de prostituição, Donatela entende que foi
justamente o seu trabalho e as consequências do convívio mais aproximado com ele, os
responsáveis pelo fim de seu relacionamento com Alexandre, e não a não-aprovação
“silenciosa” de seus pais. Oito meses depois do término, morando com a agora amiga,
Morgana, Donatela volta para o Brasil. Chegando aqui, compra uma casa para sua mãe em
São Gonçalo e um apartamento para si em Niterói.

2.3.2: O sítio: a família como ameaça.

No hotel Flat, no bairro de Liberdade em São Paulo, Ana estava se recuperando da


cirurgia de implante da prótese de silicone. Acompanhada de Romário, após todo o “babado”

57
de quem iria pagar a prótese, resolveu atualizar seu status do Facebook “ai, dorzinha chata
assistindo a um filme com esse frio de São Paulo”, postou em sua rede social. Uma das
amigas que compartilhava apartamento com Ana, vendo a mensagem pública de sua página
pessoal resolveu ligar para Pedro.

Ana me diz que sempre foi precavida. Sabendo da possibilidade de ser assaltada
numa cidade tão perigosa como o Rio de Janeiro costuma deixar anotado num caderno em
seu apartamento os números de todas as pessoas e clientes fixos para que, caso tenha o
celular furtado, possa avisar os membros de sua rede de relação que ela está incomunicável.
O intuito central é não perder o contato de clientes generosos e conseguir se manter fazendo
programa mesmo sem o telefone celular. A amiga “maliciosa” verifica no caderno o número
de Pedro com o propósito de revelar para o cliente que Ana não só estava em São Paulo
fazendo cirurgia com outro dinheiro que não o dele, mas como o dinheiro era de um
namorado. Pedro não sabia (e nem poderia saber) que Ana mantinha uma relação afetiva
com um outro homem. “A maricona era apaixonada por mim e não podia nem sonhar que eu
tava com o Romário”.

Aí uma amiga, não sei até hoje quem foi, ligou pro meu cliente e falou
assim “você já viu o Facebook da Ana? Vê o Facebook dela. Não olha só o
Facebook não, vê o Instagram também”. Mandou meu Facebook pra ele e
mandou o link. Ele foi e viu que eu namorava e estava com meu namorado
em São Paulo. Aí ele foi e me ligou chorando. Chorando muito, de soluçar.
Eu nem estava entendendo o que ele estava falando na ligação. “No Rio a
gente conversa”.

Ana havia ido para São Paulo numa quinta-feira à noite e sua cirurgia foi realizada na
sexta-feira de manhã. Para ser mais preciso, às cinco da manhã. Já no domingo, Ana volta
para o Rio de Janeiro ainda com o dreno da cirurgia e liga para Pedro. No telefonema, ela
esclarece que já tem Romário em sua vida há alguns anos. Ela mente o tempo de
relacionamento no intuito de dramatizar sua história e dar intensidade a sua relação com seu
amado. Ela diz para Pedro que ama Romário e que o sentimento é recíproco e que, assim
como ele, o namorado também a ajuda e se importa com o bem-estar dela.

58
“Ele [Romário] é muito apaixonado por mim também, sabe? Conhece
minha família, é padrinho da minha irmãzinha”. Inventei um monte de
coisa, né? Aí eu falei “o melhor que a gente tem pra fazer é você seguir sua
vida e eu seguir a minha, sabe? Eu gosto muito de você, eu não queria te
tirar da minha vida. Você é uma pessoa muito boa, um ser humano muito
bom e me faz muito bem. Mas se é isso que você quer, eu acho que essa
situação não dá pra você, então cada um segue sua vida sem ressentimento.
Obrigada por tudo. Ele ficou chorando, chorando e falou “Não, eu não
aceito essa situação”.

Para terminar com Pedro, Ana inventa, justamente, uma intimidade forte com a
família de Romário – fato este que mais uma vez chama nossa atenção para a centralidade
que a família possuí nas construções de alianças para estas mulheres. No que diz respeito ao
tempo que passou da cirurgia, que aconteceu em meados de 2015, até o início de dezembro,
Ana teve que esconder Pedro novamente de Romário. Ambos agora sabiam da existência um
do outro, mas para o namorado Ana havia terminado definitivamente com o cliente,
enquanto Pedro passou a aceitar a situação por estar apaixonado e preso nos encantamentos
de Ana. “Um belo dia”, em dezembro, Romário decide vasculhar o celular da namorada por
ciúmes a fim de encontrar alguma conversa que indicasse que Ana estava saindo com os
mesmos clientes ou de que Ana tivesse namorando mais alguém. O que ele encontrou foram
conversas, justamente, com Pedro. Romário ficou irado, obrigou Ana a jogar a maricona
definitivamente “para escanteio” e Ana, “louca apaixonada por esse homem”, o fez. Dia 25
de dezembro, Pedro liga para Ana e diz que ela foi a responsável pelo pior natal de sua vida
e alerta que ela havia destruído a data para ele.

Eu fiquei com o coração assim. O meu namorado viu que não era uma
relação de cliente, era um relacionamento. Por mais que fosse só na cabeça
de Pedro, era um relacionamento que eu fingia estar. Então pelo Romário eu
tive que terminar de vez com o meu cliente.

No dia 30 de dezembro de 2015, nas férias de fim de ano, Romário resolve levar Ana
para a praia da reserva na Barra da Tijuca. Praia discreta e esvaziada, Romário poderia
circular com mais tranquilidade com sua namorada transexual. Ana esticou sua canga
colorida na areia e sentou. Já Romário foi buscar água de coco para o casal. Ana, que não
sabia a senha do celular de Romário, ensaiou alguns movimentos e conseguiu destravar o
telefone. Ela, assim como Romário o fez no início daquele mês de dezembro, com o intuito

59
conferir se o namorado estava de “conversinha” com outra mulher. Para a surpresa de Ana,
havia uma mensagem de Cassiane, ex-namorada de Romário.

O longo namoro32 de Cassiane e Romário, cerca de oito anos, fora interrompido


quando ele conhece Ana num programa que fez com ela e resolve pedi-la em namoro alguns
meses depois. Cassiane, que é evangélica “batizada nas águas do senhor”, é querida pela
família de Romário. Desse modo, ele termina com a então mulher alegando não estar mais
apaixonado por ela, o que causa grande desaprovação na sua família, também de
evangélicos. Em detrimento dos anos que passou ao lado de Cassiane, Romário revela para a
ex que sua namorada é transexual. Sentada na areia da praia, Ana vasculhava diversas
mensagens de texto. Em uma, Cassiane dizia “Bom dia, vida!” e Romário respondia “vida,
depois eu falo com você porque tenho uma reunião agora”. Verificando ainda mais a fundo o
histórico de troca de mensagens, Ana percebeu que eles já estavam conversando – de forma
carinhosa – há algum tempo. Naquele 30 de dezembro, quinta-feira, Romário tinha enviado
para Cassiane “que essa quinta-feira seja abençoada para todos nós, vou para uma reunião
agora”. A reunião de que ele falava era, na verdade, o dia de folga na praia deserta com a
namorada transexual. Ana estava enfurecida. Cassiane não era uma ameaça na relação dela
com Romário apenas pelo fato de que já tinha se relacionado com ele por um longo período
de tempo, mas por ser amapoa, evangélica e querida pela família do parceiro. Quando
Romário voltou com um coco em cada uma de suas mãos, Ana já estava de pé colocando
suas roupas e penteando os cabelos.

Li aquilo tudo. Com aquilo virei o bicho(...). Ele perguntou “O que foi?” e
eu falei “vi seu celular, seu viado.” e comecei a xingar ele. Eu botando
roupa ele perguntou “a gente terminou?” e eu respondi “cara, não precisa
nem falar comigo”. Botei minha roupa e fui em direção ao carro dele. Ele
foi atrás de mim. Chegando no carro a gente entrou e saímos. Da praia até a
Estrada do Catonho a viagem seguiu em silêncio. E ali ele começou a falar
comigo, tentou conversar, começou a chorar dirigindo, pedindo desculpa.
Disse que chamava ela de vida porque eles ficaram oito anos juntos e era
costume. Eu não acreditei, né. Falei “por que você tava mentindo pra ela
que estava no trabalho? Vai tomar no seu cu. Você me esquece?”.

Ana chegou em seu apartamento aos prantos. Romário tentou conversar, mas ela não
estava disposta a falar, sua energia era muito mais agressiva. Ana bateu em Romário

32
A compreensão de “longo período” não é minha, mas de Ana.

60
enquanto chorava e ele aceitou a agressão passivamente. Depois que as energias haviam
abaixado, Ana pediu para que Romário saísse do apartamento em que ela morava. Ele se
recusou. Pediu-lhe que eles ficassem juntos só mais uma noite fato que ela aceitou resignada.

Durante a madrugada, Ana que não conseguia dormir, teve uma ideia. Pegou o
telefone celular de Romário e salvou o número de Cassiane. O intuito dela era no dia
seguinte avisar a amante de seu namorado que Romário ainda era seu parceiro, jugando que
Romário estava a enganar ambas. Ana salvou o número não apenas no seu celular, mas o
enviou para todas as amigas e para sua mãe a fim de garantir que não perderia o contato da
amante. Deitou-se novamente ao lado de Romário e tentou dormir por um tempo em vão. As
sete horas da manhã, Ana o acorda.

Quando clareou eu acordei ele. Quase não dormi, né? Eu falei assim “Olha,
amanheceu, vai pra casa” ai ele “Não” e eu gritei “VAI PARA SUA
CASA”. Aí ele foi. Isso já era no dia 31. Ele foi embora e quando deu meio-
dia eu liguei pra ela. “Cassiane” “Quem ta falando? ” “Aqui é a Ana”. Ela
sabia que eu e ele tinha um relacionamento. Eu falei “O que você e o
Romário têm? ” “Ah, a gente tá juntos. Inclusive ele tá vindo aqui pra casa”
“Quando ele vai chegar ai? ” “Daqui uns quinze minutos”. Aí eu, “faz o
seguinte, não avisa que eu te liguei. Eu vou ligar e você passa pra ele”. Daí
deu quinze minutos e eu liguei “Oi, Cassiane” “Peraí que ele está aqui” e
passou pra ele. Ele não imaginava. Ele pegou o telefone e eu falei “Você é
muito cara de pau, né” e comecei a arrasar ele. Daí ela pegou e bateu nele
do outro lado (risos). Ela botou no viva-voz e ficamos nós duas arrasando
ele. Acabou que nesse dia 31, eu falei “quero conversar com vocês duas
pessoalmente”. Ele pegou e levou ela pra minha porta de carro. Chegou na
minha porta, nós três. Eu, ela e ele. Na minha porta, eu à flor da pele. Ele
começou a falar que amava as duas, que não sabia viver sem as duas, que
tava perdido, que não sabia o que seria da vida dele, que do mesmo jeito que
ele amava uma ele amava a outra. Isso falando pras duas. Surreal. Aí foi, eu
terminei com ele e ela também terminou com ele. Ele levou ela pra casa e
conversou com os pais dela que não dava e foi. Isso eu fiquei a virada em
casa, trancada e depressiva. Uma amiga teve que esconder uma faca e
remédio. Eu ia me matar no desespero.

O término do relacionamento de Ana e Romário não durou muito tempo. Fragilizada


com a perda do namorado, Ana se trancou em casa nas primeiras semanas de janeiro e lá
ficou “na fossa”. Romário foi vê-la. Depois de muito conversarem, Ana aceitou voltar para o
amado na condição de que ele cortasse definitivamente os vínculos com Cassiane. É
interessante perceber a “guerra de mulheres”. Mas, apesar de haver uma competição entre

61
Ana e Cassiane para ficar com Romário, ambas se uniram contra ele por causa da traição, o
que as torna mulheres valentes (Fonseca 2000)

De janeiro a março, a relação fluía muito bem. Ana viveu com Romário como nos
primeiros meses de namoro. O amado dormia na casa dela todos os dias, fato que Ana lê
como uma relação de quase-marido. Saíam juntos com regularidade. Romário começou a
expor mais Ana para seu círculo íntimo de amigos e começou a estreitar relações com as
amizades de sua namorada. Num determinado final de semana de fevereiro, Romário
planejou uma festa de aniversário para um grande amigo de Ana no sítio que sua família
tinha em Magé. Ele não fez nenhuma questão de esconder sua namorada do caseiro e isto
rendeu consequências terríveis para o relacionamento dos dois. O caseiro, além de
funcionário, era amigo do sogro de Ana. Quando Romário voltou para sua casa, seus pais já
sabiam quem acompanhou o filho no passeio. O Caseiro tinha ligado e falado “o Romário tá
aqui com um traveco no sítio. Os dois ficaram agarrados o dia todo”. A briga estava
instalada, o pai agredia Romário enquanto gritava “tu é viado? Ta se envolvendo com
traveco? Ta dando seu cu viado? Se tu não acabar com essa palhaçada tu vai sair da minha
casa agora”.

Embora o relacionamento tenha durado mais algumas semanas de forma harmoniosa


no âmbito do casal, a casa de Romário estava um verdadeiro caos. No dia 13 de março
Romário acordou Ana com um café da manhã na cama. Passaram o dia juntos, transaram,
dormiram e viram Game of Thrones. Por volta de sete horas da noite, Romário sentou
pensativo na cama. Chamou Ana para conversar e decidiu que era melhor terminar o
namoro. O clima em sua casa estava pesado e ele, que respeitava e tinha o pai como grande
referência, não conseguiria mais estar nesta relação. Mesmo que Romário tenha negado
todas as “acusações” de que era viado e que não namorava um traveco, nada realmente
adiantou. Ana desconfia que seu então sogro “stalkeava”33 o relacionamento dos dois por
fotos nas redes sociais de Ana. “Em nenhum momento eu pedi pra voltar, em nenhum
momento eu derramei nenhuma lágrima, sabe? Mas até o último momento dele lá, eu não
deixei nenhuma lágrima cair. Aí ele foi embora e então eu chorei”.

Ansiosa para que chegasse o dia 30 de março, aniversário de Cassiane, Ana esperou.
Foram duas semanas de “muita fossa”. No dia do aniversário, Ana entrou nas redes sociais

33
Verbo abrasileirada do palavra inglesa Stalk, isto é, perseguir – vigiar.

62
de Cassiane e viu que ela estava no Jóquei. Ela postou uma foto com a legenda “Noite
maravilhosa com pessoas maravilhosas que tanto amo”. Romário estava na foto abraçando
Cassiane e ela com a boca na bochecha de seu ex-namorado, olhando para a câmera e rindo.

Desde lá eles tão juntos. Ele anda me procurando, a gente chegou a transar
ainda. Ele tava dormindo comigo. Até que depois da foto foi o fim pra mim,
sabe? Esses dias entrei no Instagram dela e vi uma foto dos dois se
batizando nas águas da igreja cristã. Ele não era batizado, ela era. Se batizou
com ela, aquilo foi o fim pra mim.

Eu e Ana nos encontramos pela primeira vez na escadaria Selaron na lapa para
entrevista. Era maio e havia duas semanas que Ana não conversava mais com Romário. Para
ela, a maior dificuldade da separação é olhar para o lado da cama vazia todos os dias e não
ver Romário. “É bem complicado. Acordar, olhar meu celular e não ter uma mensagem dele.
É complicado ter que viver sem ele”, ela lamenta. Se o fim do namoro de Donatela com
Alexandre foi percebido em razão, principalmente, das consequências da vida ao lado de
uma mulher prostituta, para Ana o corte do fio que unia o casal foi o fato de que Romário
não quis assumir seu amor por uma mulher transexual.

2.3.3: As Parcas: a marca etérea de ameaça

A noção de sociedade, conceito caro paras as Ciências Humanas, é tema de bastantes


discussões na atualizade. Marylin Strathern, num famigerado debate organizado por Tim
Ingold no Grupo de Debates de Teoria Antropológica em 1989, juntamente com Christina
Toren, argumentam em favor do fim do conceito em detrimento da ideia de socialidade. Para
Strathern, a ideia de “socialidade” invocaria melhor o caráter relacional intrínseco em todos
os indivíduos versus o caráter extrínseco que a relação assume quando pensamos em
“sociedade”. Isto é, para ela a ideia de sociedade afasta as relações que cada sujeito trava
com a diversidade que ele encontra. Dessa maneira, sociedade funcionaria como uma
entidade a qual se oporia, de maneira polar, a seus membros, os indivíduos (Strathern 2014).

63
Digo isso, porque todas as vezes que ouvi minhas interlocutoras falando em
sociedade, prestei atenção para compreender a maneira como usavam o termo. Neste caso,
notei que todas elas usam a expressão “sociedade” para falar de um inimigo em comum. “A
sociedade é preconceituosa”, “a sociedade é intolerante”, “a sociedade é careta”. Embora
seus corpos sejam vítimas de censura, desde os olhares em espaço público, à luz do dia,
violências simbólicas, agressões até a maneira como circulam na “boca do povo” em espaços
privados, a compreensão daquilo que as marginaliza é cristalizada grande parte das vezes na
ideia de “sociedade”, ou melhor, na qualidade desta sociedade. “Cristianismo” ou “sociedade
cristã”, “sociedade brasileira”, “o povo da noite”, “a família” etc. Desse modo, a compressão
da qualidade da sociedade como aquilo que deve ser evitado e/ou combatido assemelha-se
justamente àquilo que Strathern acredita estar obsoleto como um modo científico de
pesquisar. Se a sociedade funciona como entidade para minhas interlocutoras, é como
entidade que escolhi recortá-la. Logo, para pensar a qualidade daquilo que é interpretado
como inimigo – o que eu havia chamado de fantasmas ou fantasmagórico até aqui -,
encontrei na figura mitológica das Parcas a marca igualmente etérea da ameaça.

As Parcas são figuras romanas mitológicas (“moiras” na mitologia grega) que detêm
em mãos os fios da vida de todos os mortais. Nona, Décima e Morta cuidam dos fios do
nascimento, da continuidade e do fim da vida, respectivamente. Se pensarmos no início,
meio e fim dos relacionamentos descritos neste capítulo como uma sucessão de ordens
coesas e lineares (justaposta para fins narrativos e não necessariamente causais), perderíamos
de vista as idas e vindas dos casais, as mudanças, os sentimentos que se mantêm com a perda
ou as empolgações dos novos começos. Cada momento que é vivido, revivido e recontado,
por mais que haja reconhecimento do que se revive, tem em si algum aspecto de mudança. É
no tempo descontínuo que pulsam as emoções. No que diz respeito às paixões, Gilberto
Velho afirma que ela “(...) tem justamente, essa propriedade de acentuar a uniqueness da
experiência individual. Por mais que se saiba que outros contemporâneos, amigos, parentes,
conhecidos, possam ter se apaixonado, a paixão traz sempre algo de idiossincrático” (Velho
1986: 92). O que chamou minha atenção nos discursos amorosos de três das minhas
interlocutoras é justamente o que Velho afirma. Mesmo aquelas que viveram mais de um
forte relacionamento (ver Capítulo 3) se encontravam rendidas a outro homem de novo e de
novo. Neste caso, tendo a experiência de amar e se apaixonar tomada com tal intensidade por
minhas interlocutoras (com exceção de Paula) somada à compressão de inimigos como

64
entidades – a partir das quais evoco a figura das Parcas –, podemos compreender o
sentimento de solidão que as toma em muitos momentos. Quando revelei para Ana o título
que estava pensando em dar para este trabalho, “Amores Subterrâneos”, ela respondeu
prontamente

Miga, tipo assim, não é só amores subterrâneos, sabe? Tudo é subterrâneo.


A convivência é subterrânea. Um hétero não faz amizade com uma trans,
não pode, é proibido. Ou o homem tá comendo a trans ou tá dando pra trans.
Tem todo esse peso. A minha classe é a que mais sofre(...) Você vê um gay
trabalhando no shopping, você vê um gay trabalhando em restaurante, você
vê um gay tendo filhos, família. Você vê um gay em todos os lugares. Uma
travesti você não vê. Quando você vê é só pra fazer média, porque na
primeira oportunidade vão chutar ela dali. Por isso que minha classe são as
pessoas que mais admiro, sabe? São as que eu mais admiro na vida. É
minha classe. Por passar por tudo o que passa e mesmo assim não desistir,
botando a cara no sol, matando um leão por hora. Não é nem por dia, é por
hora. E está ali sorrindo, de bom humor, forte e linda. [grifos meus]

A leitora ou o leitor poderia argumentar que a resposta de Ana foi dada nos termos
em que eu provoquei, o de “subterrâneo”. Sim, mas embora o adjetivo não seja aquele que
possivelmente ela usaria, a informação que Ana nos revela é mister no tocante ao habitar um
corpo entendido como desviante em relação à sexualidade e ao gênero. Por conseguinte, tudo
aquilo que ameaça a manutenção de relacionamentos é atribuído a uma espécie de entidade
difícil de identificar, imprecisa, mas eficaz, o que fica evidente na indeterminação do sujeito
do verbo “vão” em seu depoimento. A qualidade subterrânea dos relacionamentos nos
permite identificar, assim, certa “fixidez na imprecisão” da construção de ameaças, além de
nos impossibilitar de enxergar medidas mais tangíveis para combatê-las - o que pode resultar
na sensação de isolamento. Se as Parcas espreitam para cortar o fio da relação, elas o fazem
através da família, através do estigma e através da sociedade. Podemos nos perguntar então:
o que sustenta alguns fios? Ademais, será que “apenas” a revelação das namoradas trans-
travestis para a família do homem ou a revelação da carreira de prostitutas tem potência
combativa?

O amor é a cola fundamental do vínculo expressado nas formas de cuidado e


controle. A manutenção da vida conjugal pode ser um enfrentamento dos velhos modelos por
si só. A dupla carreira da mulher trans-travesti e prostituta como figura abjeta do submundo
do sexo é uma força viva e perene de embate como esposa. Isto é, quando a mulher é

65
assumida para as redes que compõem as relações familiares e amizades do casal, gera
deslocamentos e obriga à elaboração de redesenhos das concepções de família e
conjugalidades, de modo geral, ao reivindicarem de seus namorados a figura de esposos
(quase-esposos, namoridos) e habitarem num modelo aparentemente hegemônico de
relacionamento monogâmico heterossexual. A prostituição cria sentido social nas relações
afetivas não organizando a ordem da desordem, o puro do impuro ou o sujo do limpo (como
o trabalho doméstico para Cullwick em McClintock 1995), mas forçando fronteiras
simbólicas nas “tolerâncias” caóticas e no ir e vir das negociações com o namorado em prol
da manutenção da autonomia e do relacionamento. Além do mais, tem papel central no
redesenho de família como sujeito moral.

Retomando a trama da confissão como eixo analítico, podemos pensar sua re-
existência deitada em linhas descontínuas, nas quais o ato de confissão é passado de sujeito
para sujeito na relação. Isto é, primeiro a mulher deve confessar para família sua identidade
travesti-transexual; segundo, quando necessário, ela deve confessar ao namorado; e, por fim,
o namorado deve confessar a sua família. Embora as linhas possam ser cortadas pelas
diferentes situações e relações, quando sobrevivem, terminam na família. Numa ponta está
família da mulher travesti-transexual e as implicações que a confissão toma (como as redes
de fofoca a que cada uma está sujeita). Na outra ponta, caso o relacionamento saia do
subterrâneo, a família do homem e, naturalmente, as implicações da decisão de revelar sua
parceira afetiva. De forma semelhante, se desloca a figura do inquisidor que agora fica nas
mãos da família. Dessa forma, a família pode punir, vigiar, rejeitar, perdoar, consolar e/ou
reconciliar. Duas de minhas interlocutoras foram expulsas de casa depois que revelaram suas
identidades de gênero. Isso se dá, pois, a pecha da confissão passa para a família frente à sua
rede relacional (amigos, vizinhos, círculos sociais religiosos, etc.) e desta para uma
sociedade mais geral e difusa através das redes de fofoca34.

A trama de confissões pode não parar por aí. Se tomarmos a casa do casal como
espaço mais privado, a informação para a família passa a ser espaço mais púbico. Uma vez
que a família detém a informação da existência do casal, ela passa a ser esfera privada e pode
ter que lidar com “os vizinhos”, “o povo da rua”, etc. como os novos inquisidores. Desse

34
Acho que a arquitetura de estrutura-relacional dos Nuer de Evans-Pritchard nos traz um bom exemplo desta
cartografia das tramas da confissão. Isto é, para um “sujeito” Nuer, quanto mais perto dos aldeiamentos e da
casa (aqui família) maior a solidariedade (e o impacto da potência des-solidária, evidentemente) e quanto mais
longe, menor. (Evans-Prtichard 2011).

66
modo, é possível notar a miríade de camadas de público e privado que vão sendo acionadas
conforme a trama da confissão avança e, em concomitância, a mudança da figura da
autoridade punitiva ou reconciliadora. Quanto mais fora da camada da casa do casal, mais
etérea é ameaça. Assim, a família tem a capacidade de ao mesmo tempo ser espaço privado e
espaço público o que confere às parcas as pontas quase-intangíveis do fio. No caso desta
etnografia, o que toca todos os relacionamentos duradouros que minhas interlocutoras
compartilharam comigo, apenas Alexandre contou para sua família sobre seu namoro estável
com Donatela. Em todos os outros casos, apesar das desaprovações (grande parte das vezes
silenciosas como “eu entendo, é difícil”) das mulheres, os homens se recusaram a contar para
suas famílias e isto foi, justamente, o ocaso dos casais.

2.4: À CONQUISTA DA FAMÍLIA

O final do relacionamento de Donatela e Alexandre foi muito doloroso. Os dois


viveram um relacionamento de quatros anos e num dia, como vimos, voltando para casa após
um programa, ela encontra o namorado com outra travesti no apartamento. Donatela retorna
ao Brasil oito meses depois e fica em seu país por dois anos. Mais uma vez se vê obrigada a
voltar à Itália para “resolver um problema de dívida”. Sabendo da volta de Donatela,
Alexandre a procura

Ele me procurou por telefone quando eu voltei pra lá. Ele me ligou “sou eu
fulano”. Ai chamei ele, estava ficando na casa da cafetina [que a agenciara]. A
cafetina tinha vindo para o Brasil e deixado a casa comigo. Uma casa bem central
mesmo, um bairro zona sul. Quando ele chegou, ele queria ficar na porta mesmo.
Eu falei assim “vamos lá dentro, fiz umas coisas pra gente comer e tal. Pra gente
tomar um drink pra ficar mais relaxado”. Comprei um vinho branco bom. Comprei
umas três garrafas desse vinho porque a gente tinha muita história pra falar. Eu
fiquei dois anos no Brasil (depois do término) queimando ele, né. Queimei ele e a
bicha [travesti] que estava com ele (...) Aí, chegamos. Fiz aquela recepção
maravilhosa na casa da bicha [a cafetina]. A casa maravilhosa, mona. A casa de
boneca que a luz acendia do lado da cama. Cama maravilhosa com lençóis nem sei
quantos fios tinham. Toda casa maravilhosa num bairro de zona sul. Trouxe meu
computador pra gravar. Eu tinha um Sony Vaio e quando você gravava, desligava
o display dele e ficava todo escuro. Peguei um negócio de papel, colei na luz da
câmera e botei pra gravar. Eu tenho essa gravação até hoje: cinco horas de
conversa. Terminou numa transa. Eu transei com ele feroz, feroz. Eu perdoei ele e
entendo que foi a loucura (do momento). Tudo que eu perdi eu recuperei, claro. Eu
perdoei, mas eu gravei tudo, tudo bicha. Cinco horas. Cinco horas de vídeo. A

67
partir de 3h30 é só transa. Às vezes eu boto pra bater um bolo [se masturbar].
Transando com ele como eu nunca tinha transado. Usando... Não era sexo de
reconciliação. Tinha tudo. Eu transei com ele com raiva, com nojo. Usei ele, usei
como esses homens me usam. Mas eu usei ele. Mona, foi uma hora de transa. Uma
hora e pouco, sei lá. Quando eu terminei de transar eu fiz assim, peguei o
computador e pá, bati [sinal de fechamento] e ele foi embora. Tem tudo filmando,
quando eu gozo em cima dele. Gozo na cara. Mona uma cachorrada. Fecho o
computador e já tenho tudo o que eu quero. Mas eu realmente perdoei ele.
Você entendeu isso como vingança?
Me vinguei, amiga. Nunca mostrei isso pra ninguém. Tem uma parte que a gente
está sentado na cama ai a gente começa a falar do gostar um do outro que eu me
emociono. Eu lembro da hora, a gente estava um pouco alto do vinho. Muito vinho,
muito vinho. Ele lembra que fui a primeira, como nos conhecemos, de todo o
trajeto até a gente transar a primeira vez... Por isso a gente transa. Eu choro por
lembrar, por raiva, não sei o que estava passando na minha cabeça e ele me
consola. Ai eu transo. Mas ai quando eu vou transar, vem o bicho. Bicha, foi uma
coisa incrível. Eu lembro até a roupa que eu estava. Bicha, eu fui tão maliciosa...
Tava um frio do caralho, era janeiro. Eu estava com um moletom azul bebe,
embaixo um macacão de tela, de meia arrastão toda por baixo. Eu já estava na
intenção de arrasar com ele. Por isso eu falo que fui maliciosa, eu queria mostrar
pra ele que eu era muito melhor. Foi um amor que me machucou. Às vezes eu
lembro dele e ainda me acho apaixonada. Às vezes. Eu fui feliz com ele, não tem
como negar. Ele me apresentou pra família dele.

A força desse depoimento é gigantesca. Donatela imprime no sexo com Alexandre


diversos afetos que dizem respeito não apenas ao relacionamento dos dois, mas a marcadores
da mulher trans-travesti como um todo. Entendo o fato de Alexandre, um professor de
literatura e apresentador de televisão, ter apresentado Donatela para a sua família é causa-
consequência da atualização desse amor oito anos depois de seu término. Donatela foi feliz
com ele. Com Alexandre, Donatela conquistou um espaço que pouquíssimas mulheres
transvestis conquistam: a família. Em tempos em que se observa em diversos circuitos um
profundo desinvestimento do conceito de família, aqui, esta instituição é reduto último e
idílico de conquista. Fazer parte de família, algo muitas vezes negado para essas mulheres
desde a tenra infância35 é a cristalização de seu pertencimento a uma rede maior e
hegemônica de afetos positivos. Parafraeando Larissa Pelúcio, a prostituição vista como
oposta à família é muitas vezes, na verdade, a ponte que possibilita sua construção (Pelúcio
2011)

Diferentemente de Ana, Donatela namorou um homem que a assumiu. Pelúcio (2011)


nos mostra como há grandes dificuldades para os homens brasileiros em “encarar” a

35
(Ver também Kullick 2008, Silva 2007, Bento 2006)

68
sociedade “mente fechada” e apresentar suas namoradas trans-travestis para amigos e
família. A impressão geral de Donatela sobre homens brasileiros em contraposição aos
homens europeus é muito similar à adotada pelas interlocutoras da autora. “Mente aberta”,
“evoluídos”, “têm cultura” são expressões que ouvi comumente tanto por Ana quanto por
Donatela acerca de suas impressões dos homens europeus. Assim, sair do Brasil para ambas
não foi apenas uma busca por melhores rendas, mas também a procura por uma vida
cosmopolita, de consumo, viagens e de alguém que possa ajudá-las a ter tudo isso (ibidem).

Ana e Donatela creditam na família e no amor romântico-monogâmico um ideal de


amor sublime, capaz de torná-las felizes e plenas. Embora ambas possuem diferentes
nomeações para suas identidades de gênero, pensar na faixa etária como um marcador social
chave para entender os diferentes sentidos de amor não faz muito sentido neste caso. O que
atravessa as duas mulheres é a vontade de viver um relacionamento segundo o estereótipo do
que é ser mulher.

As Parcas - encarnadas pelas famílias, pela sociedade e estigmas diários – ameaçam


cortar o fio que une um casal caso este relacionamento saia das muitas camadas do
subterrâneo. A trama dramática da confissão deve ser entendida pelo duplo significado de
“trama”, isto é, tanto como intriga quanto por rede composta por um emaranhado de fios que
tecem de uma forma específica os nós das relações. A proposta de pensar moralidades não
pelo que há de julgamento, mas pelas criações de selfs morais adjacentes (eu diria
teleológico) de Veena Das (2010) pode nos ajudar a pensar melhor o olhar do cotidiano para
entendermos os papeis sociais que o amor pode assumir. Ela nos propõe dois afastamentos:
do foco dos julgamentos morais nos locais que algum pesquisador trabalha e da
compreensão da vida moral como um valor absoluto. Das argumenta que ambas as
possibilidades são igualmente prejudiciais para uma análise fina da delicadeza do dia-a-dia.
A autora afirma que tais visões macro das pequenas relações sociais não capturam a essência
das mudanças sutis que determinados contextos sofrem (mudanças de normas e
moralidades). Neste caso, a adoção de uma ideia de self-adjacente nos permitiria pensar em
sujeitos de identidade fixa e capturar as mudanças que são projetadas e atuadas
vagarosamente (Das 2010). A proposta da autora parte de uma situação que viveu em campo.
A família que acompanhava estava em polvorosa. O filho mais velho de um casal hindu,
Kuldip tinha se casado secretamente com uma mulher mulçumana, Saba, e o relacionamento
de ambos tinha se tornado público. Ambas as religiões possuem valores muito específicos

69
para o casamento e simultaneamente creem no laço do matrimônio como único e para a vida
toda. Assim, Saba e Kuldip provocaram grandes rearranjos nos dois grupos familiares ao
reivindicarem seu status como casal apesar da dissonância dogmática religiosa de suas
famílias. Num determinado dia, depois de algum tempo não harmônico, a autora diz que o
avô de Kuldip “had a dream in wich a new basti (settlement) was being formed (...) he
informed me that the dream was a good omen” (Das 2010: 393). Desse modo, a atenção
cuidadosa da autora à potência do cotidiano percebe pequenas mudanças e esforços diários
de aceitação da família frente a uma dada situação imprevista. Esforço este que veio como
presságio onírico e gerou aceitação de Saba na família de Kuldip.

Em outro caso, pensando no contexto de “classes populares”, Luiz Fernando Dias


Duarte (2009) apresenta como a possibilidade de entranhamento, desentranhamento ou
reentranamento dos indivíduos destacados de contextos locais religiosos não parte de um
suposto confronto entre o moderno e o tradicional, mas da moralidade do “ethos privado”
nos encontros com o campo da sexualidade (sempre passível de ser transformada). A aposta
em pensar a possibilidade de entranhamento e reentranhamento das mulheres trans-travestis
em suas famílias e nas casas de seus parceiros se deita na centralidade das pequenas escolhas
que ecoam na potência de relação. Se pensarmos no ethos privado como um local de sujeitos
sexualmente dissidentes à moralidade em vigência e como um espaço propício para a
individualização pelo subjetivismo, teremos, justamente, a escolha como uma ação maior
daquilo que gera mudanças (Duarte 2009). Desse modo, possuímos, na composição da
análise, a riqueza que a complexidade dos conformes e contraditórios aparecem em situações
de intimidade. Como nos alerta Duarte, mesmo pensando em grandes categorias (como é o
caso precisamente deste trabalho) é “necessário, assim, atravessar continuamente as
referências a esse horizonte complexo e contraditório de valores para compreender situações
empíricas que não correspondem jamais a meros avatares de suas macroconfigurações”
(2009: 22). Conhecemos a história dos “grande[s] amor[es]” de Ana e Donatela. É
interessante observar como o estabelecimento de normas para a compreensão da experiência
sensível dos afetos está presente nas duas trajetórias. O “povo da noite” ou “gente errada”
que Donatela aponta como os responsáveis pelo modo de vida que Alexandre passou a levar
poderiam ser os mesmos que os pais do italiano usavam para se referir a Donatela. Isto não
diz necessariamente que Donatela se vê como não membra do “povo da noite”. As normas
morais que utiliza são ambíguas, ao passo que conhece os mitos e verdades da vida noturna,

70
sofre com o fim da relação pensando-se culpada por levar até Alexandre o universo que a
acompanha. Já Ana decide definitivamente se desafeiçoar de Romário quando o vê numa
foto batizando. Mesmo que afirme até hoje que o ama profundamente, sua aversão à
moralidade cristã gera uma contra-moralidade e uma indisposição. Temos a confecção de
duplas morais sempre relativas às experiências subjetivas das duas mulheres.

O impacto que uma informação revelada tem em pequenos contextos sociais e o quão
disposta está a família moldam a frequência e intensidade de transformações morais. Do
ponto de vista do casal, vimos como se estabelecem no tecido do cotidiano e como a longa
duração da relação trabalha com o “si mesmo” das partes. No caso da mulher, poder sair do
subterrâneo, em certo grau, a conforma na sociedade, gera um papel social desejado e se
torna uma plataforma nas redes de relações do casal para impor seu papel de esposa e mulher
trans-travesti na sociedade. O papel de esposa tem potência de torná-las mulheres. Trata-se
do gênero sendo construído não apenas através das mudanças de seus corpos, mas,
especialmente, pelo lugar social que o casamento introduz. O casamento atravessa a ordem
do privado para o público. Público e casamento aqui devem ser entendidos não em termos
jurídicos ou pela “benção” (e sua irremovível captura por-vir) do Estado, mas pela forma que
estas noções são entendidas e aplicadas pelos sujeitos. Ou seja, o caráter público dessas
relações é subversivo pelo simples fato de incorporar corpos que podem ser vistos como
abjetos numa instituição hegemônica que é a família, deslocando o paradigma do casamento
ao obrigar as redes que participam da trama da confissão a se rearranjarem segundo a
prerrogativa de escolha do casal que passa estreitamente pela autonomização dos sujeitos
que o compõe: a mulher travesti puta é autônoma, o homem da relação também. Esse é o
quadro favorável para vocacionar para a família do último a existência e a identidade de
gênero de sua parceira36. A relação do casamento, como disse Gilberto Velho (2006) é
propulsora de encontros e afastamentos de grupos como a família e amigos de cada um dos
cônjuges. Neste caso, teríamos então, mais uma vez, o provocar de deslocamentos
necessários para reavaliações morais pessoais e, assim, transformações de sujeitos morais.
Infelizmente, nem a relação de Ana ou Donatela sobreviveram tempo o suficiente para gerar
um impacto grandioso nas redes de seus até então parceiros. No caso de Ana, apenas a
fofoca de sua presença no sítio dos pais de Romário foi o suficiente para desarmonizar a

36
Eu conheci na minha pesquisa de campo uma mulher travesti, professora de matemática, que mora com o
namorado na casa dos pais dele sem que estes saibam da identidade de gênero dela. Ela me confiou que a
situação e a possibilidade de que descubram é fonte de grande angústia para ela.

71
relação. Retidos numa discussão mais filosófica, pensar empiricamente os efeitos da
consequência do assumir a relação nos possibilitaria entender com mais densidade como a
novidade ecoa no mundo público das redes relacionais. Conhecemos as Parcas, mas, no que
diz respeito a processos de longo prazo, é assim, e somente assim, pela imposição sólida do
casal que será possível visar à conquista da família.

72
CAPÍTULO 3: TRANSBORDAR

Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face


Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
(Vinicius de Moraes, Ausência)

Eu não quero ficar pulando de galho em galho,


eu não quero ser sozinha, ser vazia de sentimentos,
quero me apaixonar loucamente todos os dias, de repente pela mesma pessoa, mas se não der certo,
não quero perder a esperança no amor,
nunca.
(Alice)

Das metáforas de tecido e seus correspondentes no campo semântico da trama


apresentada no final do capítulo 2, volto a persegui-las como metáforas suplementares em
Transbordar. A dimensão que a família foi tomando ao longo desta dissertação foi nos
mostrando como essa instituição se faz numa seara daquilo que se deve conquistar. Mesmo
na parte de minhas interlocutoras que não se associa ativamente a nenhuma organização de
militância, percebo que a força presentificada de suas vidas e identidades nos lugares que
circulam menifestam ensejos de resistência por reivindicarem constantemente relações que
nós pessoas cisgêneros tomamos em muitas situações como dadas.

A ideia de trama das confissões fortemente inspirada nos intercursos epistemológicos


de Foucault, sob a categoria precisamente de “confissão”, possui uma outra inspiração até
agora oculta. Tim Ingold, na busca de dar novamente vida “às coisas”, chama atenção não
para o resultado final daquilo que se produz, mas ao processo de confecção dos objetos, a
malha (ou aqui a “trama”) (Ingold 2012). Ele destaca que todo objeto possui agência e
“vida”, que são entrecortadas por um emaranho de fios que não necessariamente se

73
conectam, mas dizem respeito necessariamente a seu constructo como coisa. A malha que
envolve aquilo que se quer olhar possui então infinitas linhas de ações como pontos de fuga,
garantindo que possamos pensar sobre a descontinuidade e os improvisos em seu processo
de “coisificação” (Ibidem). Portanto, se temos no ato de confessar, para Foucault, a
formação final de uma verdade sobre si, observamos em Ingold os meandros da agência
nessa confecção. A trama de confissão nos mostra justamente como impasses das relações
que são travadas em seus circuitos dizem respeito a uma escolha que pode ou não ser tolhida
pela presença, em espreita, disso que nomeei de Parcas.

Transbordar nos remete necessariamente àquilo que excede a si mesmo. Bordar para
além das bordas, além dos limites que foram impostos. Neste capítulo trarei depoimentos e
textos de minhas interlocutoras (tanto em entrevistas quando em redes sociais ou blog
pessoal) no que diz respeito às esperas e expectativas sobre suas próprias vidas como
mulheres trans-travestis. Num primeiro momento confrontaremos, a partir da história de
Alice, a dificuldade em se falar de “solidão” quando este não é um tema central naquilo que
se conta. Partiremos daí para pensar a sensação de “vazio” que as acomete em respeito à vida
sexual de uma mulher prostituta e assim, poderemos pensar sobre amores, paixões e espera.
Logo depois, trarei as possibilidades de pensarmos na criatividade, sonhos e projetos em
trajetórias de vida tão marcados pela marginalização. A penúltima sessão se dedicará a
avaliar algumas discussões feministas, para pensar os limites e possibilidades de se pensar
submissão no dia-a-dia nos relacionamentos amorosos e somado ao olhar militante de Paula,
tanto sobre amor quanto o feminismo radical. E, finalmente, um panorama geral sobre este
capítulo que encerra “Amores Subterrâneos”.

3.1: TECENDO ALICE (DO PAÍS DAS MARAVILHAS)

Alice, nome fictício da interlocutora que se fará presente a seguir, não se chama
assim por acaso. Foram diversas vezes que ela referiu a si mesma como Alice. Toda
narrativa de desilusão amorosa ou início de uma nova relação, sempre continha uma
expressão como “olha eu no país das maravilhas de novo”. O nome, Alice, nos remete a

74
famigerada história de Lewis Carrol “Alice nos país das maravilhas”. A aventura nonsense
de Carrol, na verdade, sintetiza de maneira fantástica o processo de puberdade e de
transformação da personagem. Na história em questão, a protagonista redescobre seu próprio
corpo e seu próprio caráter numa aventura surrealista quando, tomada de curiosidade, resolve
perseguir um coelho apressado que desaparece numa toca mágica. Num dado momento da
conhecida obra, Alice se depara com uma lagarta. Esta, pousada confortavelmente em cima
de um largo cogumelo, dispara baforadas de fumaça entre uma tragada e outra de um
narguilé. “Quem é você? ”, pergunta a misteriosa e sonolenta criatura. Alice responde
timidamente “Eu, eu não sei muito bem, Senhora, no presente momento – pelo menos eu sei
quem eu era quando levantei essa manhã, mas acho que tenho mudado muitas vezes desde
então” (Carroll 2002).

A personagem Alice segue o fluxo das descobertas na terra das maravilhas,


atendendo a diversos conselhos de criaturas mágicas e desconhecidas. Inspirada na história, a
expressão “fazer a Alice” muito comum entre as mulheres trans-travestis (e em alguns
nichos lésbico-gays-bissexuais) surge na intenção de qualificar alguém como inocente.
Como dito anteriormente, a quantidade de informação sobre a maneira como procedem as
relações amorosas (e as reclamações da dificuldade de se ter um namoro duradouro) estava
num primeiro momento, oblíqua em meu olhar. Dessa maneira, senti necessidade de explorar
formas de expressão e narração de trajetória para além das entrevistas. Assim, coletei
material de postagens em redes sociais e também, no caso de Alice, um blog no qual ela
narra suas desventuras amorosas não-ficcionais.

Intitulado “Diário de uma boneca” Alice resolveu criar em meados de 2013 um


blog37, assim que foi demitida de um emprego formal. O intuito inicial era narrar as
dificuldades que uma travesti tem em se lançar no mercado de trabalho. Todavia, a
plataforma acabou se tornando uma oportunidade para que ela falasse também sobre seu
cotidiano e, principalmente, sobre seu assunto preferido: amor. Assim ela se apresenta:

37
O blog em questão possuí textos antigos recuperados de seu antigo blog cujo domínio já não mais existe.
Portando as datas de postagem não correspondem necessariamente ao período que os textos foram escritos.
As experiências de 2014 podem estar falando de uma história que aconteceu entre 2005 e 2013 – período
que a outra página estava ativa.

75
“Meu nome é Alice, verdadeiramente tenho 32 anos, do signo de libra, sonhadora,
impulsiva, exagerada, faço o que vem a minha mente e minha busca diária é pela
felicidade, sei ser mulher, mas também tenho meu lado menina. Minha vida
profissional divido entre ser atriz e assistente administrativo. Acredito que toda
mulher tem um pouquinho de mim”. (Alice. Junho de 2013)

Como vimos no capítulo Transpassado, Alice foi expulsa de casa quando começou
seu processo de transformação aos vinte anos. Conseguiu um emprego formal do qual foi
demitida e, em seguida, comprou uma casa na favela com o dinheiro da rescisão. Ademais,
saiu de um dos empregos que teve por não conseguir atender inteiramente as demandas do
cargo: “eu não consigo fazer nada pela metade. Sou intensa. Ou me entrego totalmente ou
não faço nada”, diz. Logo começou a se prostituir (entre 2005 e 2008). Essa ética da
intensidade é um dos grandes norteadores de Alice em relação à maneira como distribui seus
afetos pela sua vida. “sou intensa” é o mantra que sucede ou antecede todas as justificativas
de suas ações mais práticas e sua maneira de se relacionar.

Sobre o amor, Alice também se localiza o tempo todo pela intensidade de como ama.
Numa postagem em junho de 2016 em seu blog, Alice publiciza um longo texto, escrito no
final do ano de 2005, que encontrou quando estava a revirar seu e-mail:

“Eu o conheci no dia 06/11/2005, numa boate chamada 1140. Ele pegou na
minha mão e disse pra mim: “Posso ir com você?” e eu abri um sorriso e
apenas fiz “sim” com a cabeça, ele veio comigo, ainda segurando minha
mão e logo nos beijamos nem trocamos uma palavra sequer. Quando ele me
pergunta: “Qual o seu nome?” e eu disse: “Alice”, ele se assustou, porque
até então ele não sabia que eu era travesti... Não ficamos a noite toda, na
verdade a gente só ficava quando se esbarrava, na hora de ir embora ele me
disse: “Não sorria pra mim porque senão vou me apaixonar, seu sorriso é
lindo!”, nossa, eu fiquei gamada desde o primeiro beijo. Era um domingo...
Marcamos de nos encontrar no próximo domingo no mesmo lugar... MEU
DEUS, os dias não passavam, foi a semana mais longa que eu tive... Até que
o domingo chegou, como eu tremi quando vi aquele menino, senti até dor de
barriga e assim era toda vez que eu o encontrava, pois a gente estava saindo,
mas eu não o tinha, ele tinha suas barreiras por eu ser um travesti. Meu
amor crescia a cada encontro e ele se afastava, até que terminou comigo, me
disse que ficar com travestis era normal, mas namorar não era. Meu
mundo caiu! Me lembro que eu tinha ido pra boate somente para encontrá-
lo, pois no dia seguinte eu ia trabalhar às 9 da manhã, fui um caco pro
trabalho, morrendo de sono e sofrendo, POIS JÁ ESTAVA
COMPLETAMENTE APAIXONADA POR AQUELE HOMEM... Para
minha surpresa ele me ligou por volta das 23:30h, até então ele nunca havia
me ligado e já tinha meu telefone desde o primeiro encontro quando

76
coloquei meu telefone num guardanapo, escrito: “Liga pra mim! Adorei
vc!”... Quando ele me ligou eu estava vesga de sono, pois não havia
dormido e ido direto trabalhar e eu não sabia como agir, pois pra mim ele
estava me ligando por pena, porque ele viu o quanto fiquei mau com aquele
fim, acabou que ele achou que eu fui fria e desligou o telefone. Me ligou no
dia seguinte e conversamos bastante e marcamos de nos ver no dia seguinte.
Me arrumei toda, estava toda feliz, ele atrasou 1h, fiquei puta, mas nem
reclamei, depois de um tempo ele me disse que atrasou porque estava em
dúvida. Chegou atrasado mas foi e pasmem ficamos 3 dias juntos, sem
irmos pra casa, foi mágico, mas na hora de ir embora senti um vazio, pois
achava que nunca mais ia tê-lo e a partir desse dia ele passou a me ligar
todos os dias, sempre teve suas dúvidas, suas barreiras, até mesmo
preconceito, mas a cada dia que passava ele ia ficando mais carinhoso,
demonstrava mais seu sentimento, passamos a conviver muito e ele foi até
aceitando meus defeitos, hoje não tenho dúvidas de que eu necessito dele e
ele necessita de mim, acho que teremos um namoro longo, mas não creio
que ficaremos juntos para sempre. O amor, as lembranças, os carinhos, as
nossas músicas iremos carregar para sempre, mas o relacionamento não será
eterno, posso estar enganada, mas a verdade é que ele é um jovem de 24
anos, um dia vai querer ter filhos, vai querer formar uma família “normal” e
infelizmente, por mais que vocês escrevam pra mim dizendo que não, mas a
REALIDADE é que ao meu lado ele nunca terá uma vida normal, pois
sou uma semente morta e não posso dar um filho pra ele e não quero
que as pessoas da rua dele ou da família o discriminem, pois nossa
sociedade é hipócrita e vocês sabem que rola isso... Mas ele sempre será
eterno, pois ele até lutou contra, mas ele me viu por dentro, sempre ouviu,
como quase todo mundo, que travesti não presta, mas ligou o foda-se e a
cima de tudo viu o ser humano que existe em mim e o amor que sinto por
ele... EU AMO ESSE HOMEM!!! Vou parar por aqui, pois confesso que
estou com os olhos cheios de lágrimas, lutando para não chorar, pois me
emocionei escrevendo esse texto”. [os momentos em caixa alta são de Alice,
mas os grifos em negrito são meus]:

Refletindo sobre o trecho que acabamos de ler, em prantos, Alice informa que sente
uma grande vontade de voltar ao tempo para fazer diferente. A partir do reviver deste amor,
ela lembra que, assim como ela previra, a relação teve uma curta duração. Para ela, este foi o
verdadeiro amor de sua vida. Ela diz: “eu sou intensa em minhas relações e isso muito se
confunde com amor, nem todos foi amor. Foi puro, verdadeiro, mas amor como foi por esse
nenhum outro foi”. Voltar no tempo para ela é um desejo singelo de apenas poder abraçá-lo.

Roland Barthes afirma que “o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema
solidão” (Barthes 1995). Se tomarmos a sentença como verdadeira tendo como pano de
fundo o texto de Alice, a solidão seria a face oblíqua do discurso amoroso e não uma
categoria eixo-central. A palavra “solidão” propriamente, nas entrevistas, nunca apareceu. O
que consegui captar da experiência do sentir-se só sempre surgiu na fala, justamente, “nas
periferias do dizível” (Bispo 2016: 228). Dessa maneira, a análise de material de blog e de

77
Facebook foi se fazendo tão importante para a pesquisa, uma vez que nestes espaços a
“solidão” apareceu em sentença, mesmo que de forma reduzida em comparação a outros
assuntos. Isso nos faz pensar na qualidade dos espaços que são apropriados para a narração
de determinados assuntos sendo a “solidão” um sentimento afastado dos discursos face-a-
face. Catharine Lutz e Lila Abu-Lughod chamam a nossa atenção precisamente para a forma
como o espectro de sentimentos narrado aparece no discurso. Para as autoras, devemos
prestar atenção à maneira que os discursos são formulados e, assim, percebermos como as
emoções aparecem criadas na fala. Essa constatação das autoras parte do questionamento da
crença de que os afetos seriam moldados pelo discurso e não frutos dele (Abu-Lughod e Lutz
1990). Pensando então na possibilidade de construção das emoções nos textos
autobiográficos, a solidão é igualmente revivida e recriada ao ser escrita. Em pesquisa
anterior no Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESAP) (Iuperj-UCam), da qual participei
juntamente com os pesquisadores Maria Isabel Mendes de Almeida, Fernanda Eugênio e
Raphael Bispo, nos empanhamos a perseguir, num primeiro momento, o surgimento de uma
nova modalidade de solidão entre os jovens do tempo presente. Neste caso, notamos a
emergência de um modelo de ação, a qual nomeamos de solitude, pela solidão deliberada
(em oposição a uma “solidão acontecida”, a qual permeia o imaginário popular em forma de
reclusão, de se estar sorumbático). Deste modo, mostramos como nossos jovens
interlocutores se dispunham a uma gama de afastamentos (subjetivos e físicos) em prol de
uma espécie de reclusão a fim de “recarregar as baterias”. A experiência de solitude moldou
a cara da pesquisa para outros rumos. Se num primeiro momento avisávamos buscar o
impacto da solidão entre os jovens de hoje, acabamos mapeando as disposições, as filosofias
e as consequências dos distanciamentos através de uma solidão-ação. Nomeamos então esse
processo de se pôr no mundo de desmobilizações como uma contraparte resiliente ao
processo de “mobilização infinita”, isto é, a energia frenética capitalista do consumo,
racional, insensível, pragmática e incansável (Sloterdijik 2002: 04). Nossa etnografia
resultou, portanto, em “cartografias da paragem” ou o mapear de decisões situadas de
questionamentos que redesenham formas de vida tanto no que diz respeito ao trabalho
(Almeida 2016), bem-viver ou projetos de vida (Almeida 2016; Almeida e Eugênio 2016;
Bispo 2016a) e disposições às relações amorosas (Zampiroli e Bispo 2016). Trago esta
pesquisa à baila, pois, assim como na presente análise, em um nicho etnográfico distinto, a
solidão não surgiu como óbvia no discurso. A dificuldade de capturar essa temática reside

78
justamente em sua natureza ambígua. Na busca de jovens solitários, encontramos, na
verdade, a vontade de isolar-se mesmo quando ocorriam em concomitância à “solidão
acontecida” nas veredas dos distanciamentos táticos.

Raphael Bispo (2016b) também viu-se enfrentando a mesma dificuldade em sua


pesquisa de doutorado em antropologia que resultou no sensível livro “Rainhas do
Rebolado”. Ao perseguir as trajetórias de vida da primeira geração de chacretes, antigas
dançarinas do famoso programa dominical de Abelardo Barbosa, o Chacrinha, deparou-se,
com a pluralidade de solidões que envolviam senhoras cujos corpos foram erotizados e
sexualizados não apenas por suas qualidades femininas, mas, também, pela fama (Bispo
2016b). Joana, uma de suas interlocutoras, em diversos momentos se aproxima de Alice. Isso
porque Joana sempre teve muitos amores. Seu corpo famoso fez com que fosse altamente
valorizada no mercado amoroso (e no mercado do sexo). A chacrete nunca saiu do bairro em
que morava, onde ainda reside, numa periferia carioca. Embora com o passar dos anos e o
processo de envelhecimento tenha lhe tornado anônima para a grande maioria das pessoas,
em seu bairro, Joana ainda é a grande celebridade. Contudo, a fama no bairro por muitas
vezes é cruel, principalmente entre as mulheres com as quais Joana evita fortemente se
relacionar. “Velha maluca”, “Velha esclerosada” ou “velha safada” são alguns dos adjetivos
de que comumente é acusada pela vizinhança (ibidem: 237). Joana vive sozinha num
puxadinho, tem poucas amizades e dentre as poucas atividades que faz, tomar sol e
permanecer num sofá-cama prostrada está entre as que mais realiza. A sensação de solidão
de Joana parte de diversos lugares. A mãe da chacrete havia falecido há pouco e o filho, em
decorrência de um matrimônio, tinha mudado de casa. Mas é sobre os amores de sua vida
que Joana fala mais. Sente que não atraí os olhares masculinos como antes atraía e o fato de
ter sido abandonada pelo marido e hoje estar sozinha a coloca ainda em outra posição: ela
que conquistou tantos amores se vê sozinha, sem ter um velhinho ao lado “como uma pessoa
normal” (ibidem: 234).

A vida de Joana se assemelha a de Alice em pontos precisos. Ambas possuem corpos


sexualizados seja pela experiência da fama ou pela travestilidade. A fama e a experiência
trans-travesti constrói corpos que são submetidos à avaliação pública 24 horas por dia.
Mesmo quando esses escrutínios não surgem de maneira óbvia, Alice e Joana sentem os
olhares difamatórios. São corpos afeitos para as relações efêmeras, mas insuficientes para
serem amados. Alice diz “ficar com travesti era normal, mas namorar não era”. Ela se vê se

79
apaixonando rapidamente pelo homem da 1140 e sinaliza a tristeza ao premeditar seu
irremovível fim em razão da sua identidade travesti. Isto é, Alice entende as dificuldades do
enfrentamento da “sociedade hipócrita” e da “discriminação” pela “família” e pelo “pessoal
da rua”. Ademais, atesta que a pouca idade do rapaz se voltaria contra a relação quando este,
movido pelo desejo (de valor imanente e inexorável) de constituir família, a abandonaria em
detrimento de alguém que não fosse “uma semente morta”. Tanta Joana quanto Alice
reclamam que mesmo em face à quantidade de homens com quem já se relacionaram, faltam
afetos masculinos que permaneçam. Podem justificar por vezes também que não conseguem
amores duradouros, justamente, em razão da quantidade de homens com quem já se
relacionaram. Corpos dissidentes “safados”, “anormais” e “excessivos” são tomados pelo
constante escrutínio do público por não se adequarem ao padrão hegemônico (Diaz-Benitez
2011). Desse modo, Joana e Alice criam uma aura de culpa em torno de si mesmas para
justificar seus fracassos, na qual a chacrete aponta para seu jeito (imanente) “independente”,
“vontade de ser livre” e “não apego” (Bispo 2016b) e Alice adjudica ao externo, à sociedade
– questão que distancia a experiência diária de ambas. Uma vez que Alice assume uma
identidade travesti, um sujeito moral da margem, ela passa a ver a vida da borda. Contudo,
embora Alice não culpe seu próprio corpo pelos percalços que ladrilham seu caminho,
acredito existir uma dimensão de auto avaliação constante – fruto do estigma38 - que pode
gerar um acionamento de culpa mais próximo ao que Joana sente em consequência da perene
máquina de escrutínio do mundo público. O acionamento da identidade travesti e o
apagamento da culpa na fala e na escrita dela é uma reivindicação de sua dignidade humana,
da sua digna existência. Culpar-se poderia render resignação ou ressentimento, mas ao
distribuir as culpas para a “sociedade”, para a “família” e para o “pessoal da rua”, Alice
trasborda sua experiência enquanto indivíduo para uma experiência enquanto coletivo,
recuperando assim seu fôlego.

38
Em sua pesquisa sobre prostituição feminina, Olivar (2013), argumenta que o estigma pode traçar
subjetividades combativas ao mesmo tempo em que incorre a possibilidade de auto depreciação. Isso o autor
apresenta ao falar de prostituição em diálogo com as políticas do Estado, e das “guerras” (ou “predações
multidimensionais”) travadas entre as suas interlocutoras e a “sociedade”. Em “Outsiders”, Howard Becker
(2008) argumenta que o estigma tem, nos sujeitos, uma capacidade ou efeito autoconfirmatório, isto é, o sujeito
bem pode contradizer o lugar que lhes é imputado ou pode, quase que inevitavelmente, assumir os rótulos e
desencadear uma apreciação de si mesmo decorrente deles.

80
3.2: ENTRE LENÇOIS OU TESSITURAS DA ESPERA

Alice, numa postagem recente (Abril de 2015), confessa sua angústia acerca das
efemeridades das relações no contemporâneo e seu grande desejo de “viver uma história de
amor”:

Ai você sai para curtir a balada, disposta a viver o que vier e ser feliz, com
responsabilidade. E você reúne bons amigos, bebe, dança, e quando pinta
aquele gatinho, dá uma fugidinha para curtir, até rola uma boa química, mas
vocês não ficam a noite toda, acaba rolando outro, e outro... A verdade,
que na balada é isso que a grande maioria quer: curtição e quantidade. E
confesso que ficar com alguns meninos é gostoso, dá uma sensação gostosa
de liberdade, levanta seu ego, e não vou ser hipócrita em negar que
variar é bom. Porém, ao mesmo tempo bate um vazio. Tudo isso divide
as emoções. Parando agora, friamente, posso dizer que me fez bem e me fez
mal. Sensação estranha de que peguei os sentimentos e bati tudo no
liquidificador. Eu vivo o momento sim, sou inconsequente e impulsiva,
acredito que não posso me anular na vida, já que o “amor” ainda não veio,
ao menos preciso curtir. Confesso que sou uma eterna inimiga do jeito dos
homens, porém refém da necessidade deles. E nessa noite, eu sorri para
depois chorar, e só confirmou a certeza de que largaria tudo para viver uma
história de amor! [grifos meus]

A visão pessimista de minha interlocutora que aparece em relação aos


“relacionamentos de bolso” configura fonte de grande angústia. Alice expressa ao dizer
“peguei os sentimentos e bati tudo no liquidificador” um sentimento paradoxal onde ela
percebe a fortuidades nas relações (e as entende como superficiais) ao mesmo tempo em que
ela reconhece algo imanente que demanda duração. A angustia expressa na análise de Alice
aparece já há algum tempo na tônica de alguns sociólogos e antropólogos sobre coqueteria,
“pegação”, “zoar” e “ficar” (Almeida 2006; Almeida e Tracy 2003; Bispo 2016a e 2012;
Bauman 2005; Coelho 2006; Eugênio 2006;). Ela não é a única. Na verdade, a interpretação
dos relacionamentos efêmeros, ou táticos, pela ideia de mercado e consumo já é o tom de
uma “impressão geral”, por assim dizer, da juventude contemporânea sobre relacionamentos
(Zampiroli e Bispo 2016). Isto gera um inverso paradoxal no qual ao passo que é “gostoso”
ficar com “alguns meninos”, pois “levanta o ego”, no fim da noite prevalece o “vazio”.
Como ela diz, “me fez bem e me fez mal”. Dessa maneira, a forma de se relacionar que não
findaria em alguma angústia seria pela manutenção do amor romântico, ou “amor [que]
ainda não veio”, monogâmico, nos revelando, portanto, o mister da relação ideal para ela.

81
Em outro texto, mais antigo (dezembro de 2014), Alice repete a frase “largaria tudo
para viver uma história de amor”

Eu entendo que nem tudo é amor, mas queria que o sexo viesse com uma
amizade, e não apenas um descarregar de necessidade. Atualmente estou
há mais de um ano sem namorar, e confesso que quando eu era jovem, eu
tinha muito mais facilidade, era raro eu não estar namorando. Hoje em dia a
realidade é outra. De duas uma: ou eu estou velha e gorda e não desperto
desejo nos homens, ou por eu ser uma mulher poderosa39, isso acaba
assustando e afastando os homens.
Eu de verdade não sou de amargar foça, mas é bem verdade que tenho
sentimento. E por muitas vezes eu me sinto sozinha, por mais que a cada
dia eu tenha um homem diferente em minha cama. Eu amo fazer sexo,
mas isso não me completa como realmente eu gosto.
Eu não vou deixar de curtir a vida, mas confesso que largaria tudo para
viver uma verdadeira história de amor.
Estou escrevendo isso com a solidão e uma garrafa de tequila como
companheiras! [grifos meus]

Este segundo texto de Alice nos é ainda mais revelador. Aqui, ela expressa cinco
pontos chaves para entendermos sua visão sobre o assunto: 1. A marcação da diferença entre
o sexo com afeto (amizade), sexo instintivo (um descarregar da necessidade) e o sexo
comercial que aparece entre linhas “homem diferente em minha cama”; 2. A passagem de
tempo pelos anos que já não namora “estou a mais de um ano sem namorar”; 3. Juventude e
magreza como marcadores importantes para a conquista; 4. O empoderamento como
afugentador de pretendentes; 5. O gregarismo como oposto ao sexo por prazer, ou seja, só
existe com afeto.

Podemos perceber no primeiro ponto como Alice entende diferentes sentidos para o
sexo. Haveria o sexo instintivo, o sexo afetivo e o sexo comercial. Este último teria em si
mesmo a potência de borrar as fronteiras entre o sexo instintivo e o sexo afetivo, uma vez
que o sexo comercial funcionaria como um ponto de encontro de relações que são em sua
maioria fortuitas, mas também são devir amor. Este fato se relaciona estreitamente com o
ponto cinco, no qual o sexo instintivo passa a funcionar como alavanca reflexiva da
superficialidade das relações efêmeras. Isso se deve ao fato de que a extensa maioria das
relações sexuais, para Alice, são pontuais e raramente ganharam o nome de amor.
Diferentemente de Ana e Donatela que, como foi apresentado no capítulo 2, “fazem um
vício” e, dessa maneira, sentem prazer em relações sem afeto, Alice, afirma que ama fazer

39
No sentido de empoderada e não de rica como ela mesma marca no Blog.

82
sexo, mas que “isso não me completa como realmente gosto”. Portanto, o devir-amor do
sexo comercial ou das fortuidades do “ficar” nas boates são percebidas como possibilidade
remota, alimentando assim a impressão de “vazio” que este tipo de relação proporciona para
ela. Para Alice, o amor é um sentimento intenso e imanente, “é bem verdade que tenho
sentimento”, ou como vimos no texto sobre o rapaz da 1140 “ele me viu por dentro”. Isto é,
ele conheceu Alice de verdade, toda curva e todo âmago de intensidades que compõe a
libriana. Alice valoriza a experiência com o rapaz, pois este ousou transbordar a fronteira do
estigma de travesti e insistiu, mesmo que por pouco tempo, numa relação. Alice quer ser
conhecida por dentro, quer mostrar para o parceiro que seu corpo é muito mais do que um
corpo de travesti. Assim, o amor para ela é tanto uma necessidade existencial quanto uma
espera.

O ponto quatro insurge na urgência. Alice, que já atravessou os 30 e poucos anos, vê


como o marcador etário tem atingido sua circulação no mercado do afeto somado à sua
experiência como mulher empoderada. Ao passo que urge em seu espírito a vontade de viver
“uma grande história de amor”, o tempo passa e afugenta os pretendentes com as marcas que
vincam no seu corpo, seja por ser “velho” e “gordo”, seja por estar mais indisposto ao
efêmero, ao sexo fácil. Neste caso, os enlaces da solidão vão se revelando na qualidade
transcende do que ela entende como amor ao se fazer em espera. Me pergunto, por
conseguinte, o que revela essa espera para se relacionar? Espera essa explícita no ponto dois
- na maneira que Alice marca a passagem de tempo através dos anos de não-namoro, ou seja,
por aquilo que não se tem em detrimento daquilo que se tem.

Em Transparente, acompanhamos o término da Relação de Ana com seu “grande


amor”. A revelação do término me foi confessada logo nos primeiros dez minutos da
primeira entrevista. Chegando em casa depois da entrevista, vi uma postagem de Ana no
Facebook que fora publicada algumas horas antes do nosso encontro.

A gente pensa em solidão e logo vem na cabeça a imagem de uma pessoa


isolada, que não sai do quarto e não faz questão de qualquer contato social.
Que besteira! A solidão está em qualquer lugar, escondida nos maiores
sorrisos, nos abraços mais apertados. O irônico é que ela se esconde nas
multidões, quem se sente sozinho nunca está, de fato, só. Cada um é dono
do seu próprio vazio. As pessoas preferem a putaria porque é mais fácil, da
menos problema, cansa menos e não da dor de cabeça. O amor além de
complicado, geralmente perde uma das bases. A verdade é que, não
preferem o amor por ter medo, a zona não da dor de cabeça, mas traz um

83
vazio gigante. No fundo as pessoas sabem que não existe nada melhor do
que amar e ser amado, dividir sorrisos, compartilhar a mesma cama, o
mesmo coração. O amor é lindo, as pessoas que se corrompem. [grifos
meus]

A lamentação final de Ana quando afirma que “as pessoas que se corrompem”,
acredito ser uma resposta a Romário que há poucas semanas da gravação do depoimento
tinha rompido com ela. Como vimos, Romário não era, nas palavras de Ana, “um qualquer”.
Ele cursava engenharia, carreira de bastante prestígio no Brasil, e possui uma família de
classe média tradicional. O término aconteceu pois Romário se recusou a assumir Ana como
namorada para a família. Insurgiu o medo de ser expulso de casa ou sofrer uma sanção dos
pais por assumir namoro com uma mulher transexual. No fim, voltou para sua ex namorada,
evangélica e conhecida da família.

De forma muito semelhante a Alice, Ana entende a pessoa solitária não como aquela
que está socialmente isolada, mas pelo contrário. Os solitários estão aos montes
perambulando entre as multidões. Outra similaridade entre as duas é a experiência retroativa
negativa das relações fortuitas. Ela diz: “as pessoas preferem a putaria porque é mais fácil,
dá menos problema, cansa menos e não da dor de cabeça”. Curiosamente, Ana é a mais nova
das minhas interlocutoras e Alice, a mais velha. A visão de amor de Ana e Alice é bastante
semelhante. Ambas esperam “um grande amor”, demonstrando acreditar na potência
transcendente do amor. Ana me deu uma resposta muito elucidativa sobre isso que nos ajuda
a pensar a relação entre a negativação da experiência da prostituição e a do viver na espera
de ter um namoro sério e duradouro

Meu plano pra daqui há.... meu futuro é estar morando na Europa,
sabe? Na Itália. Se Deus quiser, casar, ter uma vida normal e estabilizada.
Se Deus quiser, estar formada em algum curso, uma faculdade. Eu penso em
casar, em ter uma vida normal. Sou muito sonhadora. Eu sonho muito em
poder adotar uma criança, ter uma casa, um marido. Poder cuidar de um
marido, de um filho. Muito muito. Sendo que também sou pé no chão, sabe?
Eu não me iludo mais, já me iludi. Porque homem, hoje em dia, para
levar travesti a sério a esse ponto é raridade. [grifos meus]

A capacidade transcendente do amor é a capacidade de transbordar-se para além da


prostituição. Os namorados seriam aqueles que as auxiliaram a largar a prostituição e que

84
possibilitariam, também, mudar toda a conjuntura na qual vivem. Ana revela “penso(...)em
ter uma vida normal”. O paradigma da normalidade que Ana evoca aqui não é uma oposição
à anormalidade. Tanto Ana quanto Alice acreditam que a prostituição é uma profissão digna
e que deve ser respeitada. Entretanto, elas não conseguem se ver trabalhando como
prostitutas por toda a vida. Alice, já pensa na experiência da prostituição como passado “Eu
não fui prostituta, eu estava prostituta. Hoje sou atriz”. Ana, embora goste da profissão (e
consiga ter prazer nela pelos vícios), credita na vida “normal” de casamento monogâmico-
tradicional um ideal de vida para si. Portanto “normal”, na verdade, se opõe a “marginal”.
Nem Ana e nem Alice querem viver na beirada. Elas querem ser protagonistas das relações
que travam com as pessoas e isto começaria com o fim da vida como prostituta. Isso se dá
pelo outro ponto central que Ana traz em sua fala: como o fato de ser trans-travesti cria uma
outra relação com a espera. É uma espera, em alguma medida desacreditada, mas ainda
assim, espera.

Dessa maneira, podemos pensar na face oblíqua do amor na experiência dessas duas
mulheres como espera. O sentimento de solidão seria uma consequência do esperar. A
possibilidade de confrontar a espera com escolha dá contornos ainda mais perversos. Ana
afirma que “homem, hoje em dia, para levar travesti a sério a esse ponto é raridade”. Isto é,
mesmo que se apaixonem e se envolvam com os homens, a duração da relação dependeria
muito de como estes irão se conduzir no namoro, sendo que não são muitos que estão
realmente dispostos. Ademais, caso entrassem num modelo de relação com o qual sonham,
seria complicado levá-la adiante, pois a família do homem poderia funcionar como Parca
(ver capítulo 2). A facilidade com que se apaixonam pode ser evocada pelo sentimento de
“carência” e a resistência delas a isso, pelo esforço de “suficiência”. Podemos perceber,
portanto, que vem se travando um sentimento de auto-estima amarrados no passo dos
homens amados. Numa postagem de agosto de 2016 no Facebook, Ana constata

“Eu juro que achei que isso fosse demorar meses para acontecer, mas
aprendi a ser o SUFICIENTE pra mim mesma e não preciso de mais nada.
Não preciso de ninguém pra dizer que me ama. Não preciso de ninguém pra
dizer que sente saudades. Não preciso de ninguém pra dizer que sou linda.
Só preciso de um espelho, para que assim eu possa me olhar todos os dias e
dizer essas coisas olhando nos meus próprios olhos”.

85
Já Alice percebe a manutenção da sua forma intensa de amar, agora com mais
maturidade, mesmo em vista de tantas desilusões amorosas (maio de 2016):

(...) Muitas vezes essas situações da vida nos fragilizam e nos fazem aceitar
migalhas. Posso estar exagerando, mas hoje em dia, em matéria de rejeição,
preconceito, ninguém sente a dor que uma trans sente. No dia que eu
descobri que travesti é ser um fetiche, amada e idolatrada sim, desde que
ninguém saiba, tudo tem que ser bem escondido entre 4 paredes, me doeu
muito. Mas hoje posso dizer que tenho amantes, pois não me anulei, e
aprendi a jogar, as vezes perdendo, confesso, e chamo a brincadeira de
“idem”. Eu poderia estar “casada” com algum deles, mas a forma deles de
“casar” está longe de ser a que quero, e olha que nem espero a perfeição
hein... Mas confesso que ainda acredito no amor, acredito que um dos
sentidos da vida é amar, mas não acredito naquele amor puro que eu criava
todas as noites antes de dormir. Mas acredito que em algum momento vai
acontecer, de forma calma, verdadeira e sem estar apegada a uma carência.
E mesmo o meu acreditar hoje em dia ser mais consciente, ainda assim a
maioria das minhas amigas trans me chamam de Alice no país das
maravilhas...

A “carência” (versada da solidão) e a “suficiência” aparecem como paradigmas


femininos de pensar suas experiências amorosas com os homens. O processo de superação
da espera acaba escoando pelos caminhos do individualismo. Ana constata que “só precisa
de um espelho” para saber que é linda e digna de ser amada. Alice “não se anulou”. Mesmo
em face da grande quantidade de amores não correspondidos, tendo em vista sua intensidade
ao se relacionar, ela aprendeu a jogar. Conseguiu distanciar-se de suas experiências
amorosas e perceber que não estava sendo correspondida como merece. Deixou de aceitar
migalhas como ela mesma afirma. Ainda assim, mesmo em face à toda maturidade que a
experiência de seus amores lhe deu, Alice ainda é vista como inocente por entre suas amigas.
A relação entre carência e suficiência é complexa e descontínua. Ambas intercalam suas
postagens de “sou mais eu”, “aprendi a me amar”, com textos de solidão.

Catherine Lutz em “Unnatural Emotions” (1998) busca distanciar-se das categorias


essencialistas que as emoções tomam nas filosofias estoicas e platônicas. A autora intenta
mostrar justamente o papel social que as emoções tramam nos emaranhados da vida dos
sujeitos tanto no que diz respeito ao gênero das emoções como as irremovíveis
hierarquizações e jogos de poder que podem enredar. Dessa maneira, emoção surge como
contraponto polar da razão e vai sendo desenhada no ir e vir das projeções e discursos que
surgem de muitas formas de interação entre minhas interlocutoras. Não obstante, o caráter

86
binário de emoção vs. razão, enseja outras duplas, tais quais (dentre muitas): natureza vs.
cultura, dentro vs. fora, quente vs. frio, morte vs. vida, conexão vs. alienação, coração vs.
cabeça, objetivo vs. subjetivo, autêntico vs. forçado, moralidade vs. amoralidade,
comprometimento vs. niilismo, privado vs. público e feminino vs. masculino (Lutz 1998:
56). Embora a tônica do binarismo venha a prevalecer na maneira que Lutz se propõe pensar
as emoções, mesmo que em primeiro vislumbre soe simplista, temos uma relação elaborada
onde as emoções trafegam de acordo com o contexto e com as normas morais ou de poder
vigentes.

Pudemos perceber no que toca às dobras de cuidado e controle (ver Capítulo 2),
como essas categorias vão sendo movimentadas ora como energia masculina e ora como
feminina. A paixão percebida por Velho (2006) ganhou sentido neste texto por estar
igualmente investida de irracionalidade: emoção como algo “sem intenção”. Percebi
também, assim como Lutz atesta, que muitas emoções são adjudicadas ao corpo. Expressões
como “um só coração”, “pé no chão” ou “vazio por dentro” nos direcionam para
experimentações corporais das emoções40. Mas no que toca o amor, temos na construção do
amor-romântico seu ideal sublime. Dessa maneira o amor, além de generificado, aciona
sempre em duplo caráter e dupla moral: tem algo de fisicalidade (ao ser percebido no corpo)
e de transcendental (quando pensado como sonho ou como irracional), tem algo de natureza
(“amor não se define, se sente”) e algo de cultura (“acredito no amor...”), tem algo de
feminino (“mulher ama de verdade”) e algo de masculino (“homem gosta de variar”), etc.
Essas categorias, de forma alguma são estáticas, sendo forças cinéticas revestidas de sentido
e que estabelecem percepções sinestésicas de mundo.

Nos fragmentos de discursos amorosos que privilegiei citar até aqui, temos o
sentimento “amor” preso na sentença, mas estourado de significados. As constatações dos
relacionamentos que Ana e Alice fizeram em suas redes sociais nos mostram como este amor
está investido concomitantemente de contemplação e sentido prático em suas vidas
amorosas. Tanto as ações dadas para as superações dos amores fortuitos, quanto as carências
situadas em contexto de falta de escolha no mercado dos afetos pautam o caleidoscópio de
sentidos de amar como possibilidade de reflexão e compreensão destes mesmos contextos.
“Eu fui fiel com ele”, “fui fiel com o meu coração” são os mantras da superação e “sou mais

40
Michelle Rosaldo (1980) fala de emoções como “pensamentos corporificados”

87
eu” o mantra da suficiência. Assim, para elas, ser romântica é entender a natureza profunda e
sensível dos seres. É pescar afeto num mar de desamores.

3.3: EM RETALHOS: COSTURANDO SONHOS

Ana, Alice, Paula e Donatela possuem vidas perseguidas por caminhos descontínuos.
A carreira da prostituição não é exercida de maneira linear (Diaz-Benitez 2011). Penso em
retalhos não como sinônimo de sorumbático – como explicado anteriormente –, mas em
vidas moldadas por diversas frentes: um todo formado de partes das mais diversas sortes.
Relações travadas sempre em consonância ao que se pode ser feito, “se virar”41. Vida
criativa e arte de viver na margem.

Vimos no capítulo dois as condições de moradia de Donatela na pequena casa que


morou com mais quinze travestis na Itália. Durante uma conversa surgida a partir do meu
espanto com o tamanho do apartamento e pela quantidade de moradoras, dali fiz minha
observação à Donatela de que na Europa é relativamente fácil mobiliar uma casa, pois é
comum encontrarmos móveis usados dispensados pela classe média europeia nas portas de
suas casas. Diante disso, ela me revelou o cálculo: “pra gente que se prostituía, era barato.
Essa cama de casal beliche, eu lembro que a gente pagou 200 euros. Não saía caro, pra
dezesseis pessoas você dividir 200 euros, pagava cada uma quinze ou vinte euros”. Dessa
forma, Donatela e suas quinze companheiras de quarto se submetiam a uma situação de
moradia precária para poderem atingir a razão final de viverem num cômodo só que era
acumular bens materiais.

Durante as minhas primeiras incursões para fazer entrevistas, pouco antes das
Olimpíadas no Rio 2016, Ana, Paula e Donatela já se mostravam animadas. “A copa não me
rendeu muito, mas as olimpíadas tão aí! Vamos ver”, disse Paula. Donatela já estava atenta
aos circuitos que teria que fazer para capturar o grande volume de turistas que
desembarcariam no Rio no período do evento. Sites internacionais de acompanhantes, pontos

41
Discutir precisamente o “se virar” poderia nos enveredar à temática de “profissionalização” a qual não é meu
intuito. Para mais ver Almeida 2012 e Eugênio 2012.

88
específicos de prostituição, tudo isso já estava sendo catalogado para que garantissem uma
conta bancária mais abastada no fim do ano.

A atenção à movimentação aos altos e baixos do mercado do sexo é que pode garantir
uma maior conquista financeira. Relembrando novamente o capítulo dois, vimos como
Donatela saiu de Roma para a ilha de Sardenha, pois lá o mercado estava mais valorizado.
“Quando não sai nada por anúncio eu desço pro ponto”, me diz Paula. A capacidade de
moldar o sucesso está intrinsicamente ligada, para além dos padrões corporais de maior
apreciação, à percepção do mercado e a capacidade de “se jogar”. Donatela não faz
programa somente no Rio de Janeiro. Ela vai pra São Paulo ou vai para o interior: “minha
amiga falou que o motel tava bombando lá em Ribeirão Preto, daí eu fui”.

A percepção de mercado aponta para o sucesso mais imediato, o lucro rápido.


Entretanto, esta é uma percepção igualmente imediata e não diz respeito a um planejamento
maior, mas a um mergulho na oportunidade. Dessa forma, é possível falarmos de projetos a
longo prazo a partir do que me disseram?

Gilberto Velho (1987) constata que projeto é uma categoria que se revela mais
facilmente em contextos de camadas médias. Todavia, ele aponta também para a necessidade
de compreensão do lugar em que se desponta este ideário. O autor afirma que

“Quanto mais exposto estiver o ator a experiências diversificadas, quanto


mais tiver de dar conta de ethos e visões de mundos contrastantes, quanto
menos fechada por sua rede de relação ao nível do seu cotidiano, mais
marcada será a sua auto percepção de individualidade singular. Por sua vez,
a essa consciência de individualidade – fabricada dentro de uma experiência
cultural específica – corresponderá uma maior elaboração de um projeto.
Este será estimulado e encontrará uma linguagem própria para expressá-lo”.
(Velho 1987: 32)

Alice, perseguindo sua carreira de atriz, nos revela numa postagem no seu Facebook
de agosto de 2016 como estava feliz com a presença da mãe numa peça de que participou

“Qd [quando] comecei a estudar teatro o meu sonho era fazer uma novela
pq [porque] eu sabia que minha avó amava e que aquela seria uma forma
dela me assistir. A arte me tornou uma pessoa melhor e sempre vem me
surpreendendo, nem precisava disso tudo para eu amar cada vez mais o
teatro. Minhas noites dos últimos finais de semana tem sido incríveis e essa

89
passada foi mais que especial, pela primeira vez minha mãe foi me assistir
no teatro, ela está ao meu lado, me parabenizou e disse estar cheia de
orgulho de mim”.

Alice anda fazendo circuito de peças pelo Rio de Janeiro. Mas a presença de sua mãe,
pela relação tensa que fora construída após sua expulsão de casa (ver Capítulo 1), auxiliou o
reestabelecimento de vínculos. Mas Alice almeja conquistas maiores. Numa conversa ela me
diz “meu sonho é fazer novela na rede globo”.

Ana, no dia do seu aniversário em Junho de 2016, escreveu

“Agora me veio um misto de felicidade e de tristeza... Felicidade por estar


completando 21 anos e por estar viva. Tristeza por ver que muitas
transexuais e travestis são impedidas de chegar a essa idade, porque a falta
de amor a nossa classe não permite que elas tenham o direito de vida delas.
Só quem é transexual sabe o quanto essa vida é dolorosa e de muita
pedrada. Eu me sinto orgulhosa por me manter sempre com um sorriso no
rosto, mesmo com todas as dificuldades que a vida já me pregou. Sou grata
a vida pela maturidade que hoje me pertence. Sou grata a vida por ter se
mostrado quem ela realmente é. É com os olhos transbordando de orgulho,
que eu me olho todos os dias no espelho e admiro a mulher maravilhosa que
me tornei. É com os olhos cheio de orgulho que eu me olho no espelho e
vejo uma futura psicóloga...
Que todos os meus sonhos continuem se realizando, e que todas as
transexuais e travestis tenham o mesmo direito que eu. O direito de viver.
Eu sei que é difícil aceitar as diferenças do próximo, porém é louvável
respeitá-las sempre. Desejo muito amor no coração da humanidade e que
meu sonho de viver em um mundo melhor se realize. PARABÉNS PRA
MIM!!”

Como a leitora ou o leitor pode ter percebido até aqui, vim costurando os sonhos de
minhas interlocutoras como uma perspectiva de projeto. No trecho que destaquei numa das
sessões anteriores, Ana é mais enfática nessa aproximação. “Meu plano pra daqui há.... meu
futuro é estar morando na Europa”, “casada”, “com filhos”, “sou muito sonhadora”. A
possibilidade de se pensar os investimentos futuros a partir dos sonhos é uma tentativa de
levar a sério essa experiência como projeto. Acredito que o uso da palavra sonhar em
detrimento de planejar, na grande maioria dos casos, é a expressão das dificuldades que
realizá-los pode ter numa vida marcada por tantas rejeições. Mas a manutenção do caráter de
“sonhadora” e as realizações (ou certezas de realizações) como a presença da mãe de Alice
em sua peça ou a constatação pelo reflexo de psicóloga no espelho elaboram formas de agir

90
que podem emergir e se tornarem novos modos de vida. Sonhos funcionam como “fios de
Ariadne”, como plataforma de esperança na busca por realidades mais amenas. Sonhar é
transbordar.

3.4: FEMINISMOS, AGÊNCIA E O HABITAR A NORMA

Falar sobre feminismo em contextos de transexualidade e travestilidade pode ser


para muitas pessoas um tema um tanto quanto sensível. Por duas razões, pela prostituição e
pela experiência trans-travestis, que são deixadas de lado (ou até mesmo atacadas) pelos
discursos de algumas vertentes do feminismo42. No tocante a essa temática, gostaria de fazer
uma pequena digressão no texto em busca de avaliar como esse tema pode ser enveredado
nas narrativas que foram construídas até aqui. Para tal, trarei a bela etnografia de Saba
Mahmood entre mulheres egípcias e as discussões do feminismo negro que dizem respeito à
conquista da família.
Como reação à forte expansão do pensamento liberal no contexto pós segunda
guerra mundial, países mulçumanos, começaram um movimento de reavivamento do islã ou
Islamic Revival. Este termo, como nos mostra Saba Mahmood no livro resultado de sua tese
“Politics of Piety” (2012), “refers not only to the activities of state-oriented political groups
but more broadly to a religious ethos or sensibility that has developed whithin contemporary
Muslim societies” (Mahmood 2012: 3). O Movimento foi estudado pela autora por volta de
vinte e cinco anos depois do seu início no Egito43, onde encontrou no início considerável
apoio e participação da população. Para se ter uma ideia da dimensão que o movimento foi
ganhando com o tempo, o número de mesquitas no país entre 1975 e 1995 aumentou mais de
quatro vezes (de 28 mil para 120 mil) (ibidem). Isso se deve, dentre outros fatores, ao grande
comprometimento das pessoas que colaboravam com a criação, manutenção e ampliação das
novas mesquitas.

42
(ver Olivar 2013, Piscitelli 2002, Blanchette e DaSilva 2009 para ao entrave entre prostituição e feminismo
radical).
43
O movimento no Egito começou nos anos 70 e a etnografia da autora foi feita nos anos 90.

91
Entretanto, dizer que Mahmood estava apenas atraída pela expansão do número de
mesquitas, seria minimizar seu interesse de análise. A autora foca seu trabalho no que
aconteceu cerca de vinte anos depois do início do Islamic Revival, isto é, quando
progressivamente as mulheres foram se tornando figuras fortes e presentes nos cotidianos
destes espaços. Primeiramente dentro de suas próprias casas e depois chegando nas
mesquitas, elas começaram a organizar semanalmente atividades religiosas com o intuito de
ler, ensinar e aprender mais sobre o Corão. Isso se deu por dois motivos que se
retroalimentavam: a reação à sombra do ocidente, que crescia nos países mulçumanos, e a
busca por uma vida piedosa, pura e sem pecados (ibidem).
O dia-a-dia no Egito foi se modificando fortemente depois do progressivo aumento
de popularidade do movimento de mesquitas. O chamado para piedade (da’wa)

“Have affected within Egyptian society. This includes changes in styles of dress
and speech, standards regarding what is deemed proper entertainment for adults
and children, patterns of financial and household management, the provision of
care for the poor, and the terms by which pubic debates are conducted.” (2012: 04).

O impacto do movimento é tal que este passou a receber diversas regulações e


tentativas de regulações do governo (ibidem). Outro locus incomodado pelo movimento foi a
“escola”44 feminista no ocidente. O feminismo, indicado pela autora como intimamente
ligado ao pensamento liberal, entendia a busca por piedade entre estas mulheres mulçumanas
como uma confirmação maior da força do patriarcado em subordinar mulheres. Isto é, a
escolha por uma vida piedosa, pelo uso do véu, pela submissão ao marido, etc. não era
encarada pelo olhar feminista como uma escolha deliberada das mulheres mulçumanas, mas
uma escolha inerte e sem reflexão pelos paradigmas morais da tradição ortodoxa islã. Esta
compreensão se apresenta, pois o feminismo tende, na crítica da autora, a valorizar as
operações de poder que somente subvertem e resignificam a ordem dos discursos
hegemônicos (2012: 153).
Para Mahmood, este pensamento liberal ignora outras formas de agência que não
foram capturadas pela lógica de subversão. Ela argumenta que qualquer discussão de

44
A autora usa em inglês “feminist scholarship”, aqui traduzi para escola. Entretanto, o significado que a
palavra scholarship possui não é tão fechado. Ele diz respeito a uma corrente de pensadores não
necessariamente ligados pela mesma instituição.

92
transformação deve ter como plano de fundo uma análise de práticas específicas de
subjetivação que fazem os sujeitos de uma determinada situação, possíveis. Dessa forma, a
autora apresenta uma dupla negação do humanismo ao “recusar recuperar as membras do
movimento de mosteiro tanto como “feministas subalternas” ou como, de certa forma,
“fundamentalistas” na agenda progressiva do feminismo (2012: 154). Assim, a etnografia de
Mahmood intenta mostrar a profunda inabilidade da atual política feminista de entender
outras formas de crescimento humano para fora do escopo do pensamento liberal. Na
verdade, a negação do entendimento humanista é anterior a sua crítica ao feminismo. Ela
rejeita que os sujeitos são soberanos e este fato tonaliza todas as páginas de Politics of Piety.
Os casos que Mahmood traz em sua rica etnografia claramente apontam para o que
seria tipicamente entendido como relatos da submissão da mulher pelo olhar feminista. Mas
Mahmood dá um foco especial na capacidade de moldar o próprio corpo para alcançar
sentimentos almejados. Então agência aqui, aparece desligada de resistência às normas,
aparece como uma modalidade de ação.
Foucault inspirou Mahmood para pensar a noção de agência ou a possibilidade de
agência, uma vez que esta está sempre circunscrita pelo contexto histórico. E é justamente
por este motivo, que Mahmood não tem intenção alguma de propor uma teoria geral da
agência. Devemos entendê-la sempre como algo aberto que precisa de uma análise mais
aproximada com a realidade observada. Um viés central na etnografia de Mahmood, talvez a
principal contribuição de seu trabalho, é a ideia de agência não como disruptiva à norma,
mas como aquilo que habita na norma. Essa possibilidade se abre, justamente, na ênfase que
a autora dá para o corpo. O papel do corpo é de convergir as possibilidades de criação de
sujeitos virtuosos, os quais são cristalizados pela ação moral. Dessa forma, as agências que
habitam a norma passam a ser agências incorporadas. Isto é, sujeitos que transitam bem entre
as normas e utilizam-se de seus respetivos corpos para projetar, de forma teleológica, a si
mesmos.
As “turbinadas” e “siliconas” interlocutoras com quem muito conversei, vieram se
colocando como “sonhadoras” em muitos momentos (com exceção de Paula). Pensar tanto
na projeção teleológica – a partir dos sonhos – e nas confecções de si pelo uso de hormônio e
silicones (de todas as sortes), temos uma aproximação considerável da experiência das
mulheres que Mahmood conheceu no Egito dos anos 90. Os papeis masculinos dos
namorados e companheiros das travestis costumam aparecer de forma mais clara em outras

93
etnografias45, relacionados à virilidade, masculinidade dominadora, provedora ou
exploradora, o que não surgiu aqui com tal intensidade. Os homens que possuem, sim,
marcas fortes de masculinidade, foram revestidos também de certa docilidade. Mas é a partir
da construção de um corpo feminino e uma agência pelo corpo que minhas interlocutoras
lançam mão de seus sonhos de se casarem e habitarem uma relação “normal”.
O feminismo negro também tem contribuído com o debate se contrapondo, em
grande medida, a postulados de um feminismo liberal que observa agência apenas (ou mais
significativamente) na resistência. Angela Davis (2005) investiga o mito da matrilinearidade
das famílias negras do período da escravidão e o mito da mulher escrava como doméstica.
Davis intenta mostrar que, enquanto as feministas brancas se movimentaram em prol de um
mercado de trabalho para as mulheres e oportunidades laborais igualitárias em relação aos
homens, a mulher negra nunca deixou de trabalhar.
Davis, como bell hooks (1990), defende a importância do lar para as mulheres negras
e fazem rememorações chaves das condições familiares no período da escravidão. Naquele
momento, comenta Davis, as mulheres negras sofriam também das mesmas punições que os
escravos, mesmo quando grávidas, mesmo enquanto amamentavam (Davis 2005). Este fato
recebe contornos ainda mais cruéis com a abolição do tráfico internacional de escravos. Os
senhores começaram a mercantilizar os corpos de mulheres negras como “breed”,
reprodutoras, cuja ação é vista pela autora como igual à maneira que se comercializavam
animais. Havia um alto nível de exigência de corpos que, além das muitas horas de trabalho,
tinham que cuidar e amamentar seus filhos. Além disso, essas mulheres não possuíam
qualquer direito legal sobre suas crias, que poderiam ser a qualquer momento vendidas para
outro senhor. No pouco tempo que as escravas tinham para si, gostavam de cuidar de seus
espaços e de realizar afazeres domésticos, signos que eram vistos como marca da
inferioridade feminina do movimento de libertação das mulheres que atuava no século XIX.
Ademais, contrariando as pesquisas desenvolvidas até então, mesmo que muitas
famílias negras tenham se desfeito de maneira forçosa pela experiência da escravidão,
haviam resistências, explica a autora. Resistências essas que encontravam eco nos afazeres
domésticos e cuidado do lar, nas distribuições igualitárias de trabalho entre os maridos e suas
mulheres (Davis 2005). Isto é, para a autora, falar que a mulher negra submetia ou era

45
Sobre virilidade e masculinidades como tônica central de desejo ver Pelúcio 2011, Kulick 2008, Silva 2007
para o diálogo com travestis e Perlongher 2008 em relação ao mercado do sexo de michês.

94
submetida pelos seus maridos é distorcer uma realidade de vida em escravidão (idem: 18). A
valorização do trabalho doméstico residia, portanto na sua utilidade na vida dessas mulheres,
pois a sua contrapartida, o trabalho no campo, era realizado para os senhores e, portanto,
inútil. Dessa forma, tendo em vista as marcas da escravidão e a dificuldade de
estabelecimento de família, ser esposa era um lugar que valia a pena lutar para conquistar.
(Davis 2005).
bell hooks pensa da mesma perspectiva a partir de sua experiência em seu bairro de
infância, um gueto negro. Quando ia visitar seus avós num bairro branco pobre, sentia-se
fortemente insegura, tendo em vista os olhares de desconfiança da população branca que
envolvia a casa dos avós. Quando finalmente chegava, sentia-se aliviada e dali poderia
restaurar suas energias (hooks 1990). O espaço privado da casa funciona para a autora como
um espaço catártico, como um refúgio, onde não há nenhuma forma de segregação racial e
configura-se, portanto, num espaço de resistência. Pensar o espaço doméstico como
opressão, segundo a perspectiva das duas autoras, é aliar a ideia de casa a uma perspectiva da
burguesia branca, o que impossibilitaria uma compressão desse espaço como uma plataforma
política e, simultaneamente, como um espaço para o fortalecimento das emoções.
Quando tomamos a dimensão da conquista da família (ver capítulo 2) como uma
possibilidade política de confrontamento das disposições morais vigentes temos em vista o
este embate na existência do dia-a-dia. Isto é, o tecido do cotidiano que molda os afetos e as
catarses desenha resiliências aos processos de opressão, mesmo habitando a norma da casa e
afazeres domésticos. Tanto no caso de Davis, hooks e Mahmood quanto na minha etnografia,
a família aparece com um reduto idílico de conquista, pois vem sendo negado para essas
mulheres compulsoriamente através das moralidades vigentes e atestam uma reação – pelas
vontades, pelos sonhos – dos requerimentos dos mesmos espaços.

3.3.1: Paula a fiar

Como a leitora ou o leitor devem ter percebido no decorrer desta dissertação, Paula
aparece sempre como exceção àquilo que estou afirmando. Como vimos no capítulo 1, o
suporte da família é “mais ou menos”, mas mesmo assim Paula consegue ajuda financeira da

95
mãe para se apoiar na universidade em que estuda. Advinda de uma família de classe média
da zona oeste carioca, Paula tem percepções um tanto quanto destoantes de minhas outras
interlocutoras. Grande parte disso é devido ao seu envolvimento com grupos militantes
feministas e transfeministas na sua universidade e seu discurso moldado também pelos
conhecimentos que adquiriu no curso de Ciências Sociais.

Na segunda entrevista que fiz com Paula, ela reconhece que sua trajetória é
privilegiada em relação a outras experiências de transexualidade e travestilidade. Ela me diz,
“Eu tenho sim [privilégios]. Principalmente por estar no nível superior. A maioria das
profissionais não chegaram lá. Todo mundo tem opção de ter outro trabalho, só que a renda
seria inferior. Geralmente”. Sua página do Facebook é recheada de “textões” transfeministas
– que adora fazer – os quais pensam a carreira das mulheres prostitutas e a experiência de ser
transexual como empoderadora:

“Pela minha experiência e depoimento de colegas de profissão eu pude


observar que a prostituição é um lugar de empoderamento principalmente
para mulheres que se encontram fora dos padrões. Mulheres negras,
mulheres trans e mulheres gordas são muito desejadas nesse meio. Mulheres
que são desvalorizadas pela sociedade e muitas vezes encontram dificuldade
em ter um relacionamento assumido publicamente. Sentir-se desejada é
empoderador e gera um impacto sobre nossa auto-estima. Mesmo que esse
desejo seja escondido, isso aponta para o fato de que o problema não está
em nós e sim nessa sociedade hipócrita. O que eu ganhei com a prostituição
não foi apenas independência financeira, foi empoderamento também”.

Seus textos são sempre regados de muitas discussões nos comentários e recebem
dezenas (por vezes centenas) de curtidas. Abaixo reproduzo um debate, entre Paula e homem
(que nomeei A) gerado pelo texto acima:

A: Não conheço sua história, mas particularmente não concordo. No seu


caso me parece uma opção pessoal, pq és linda, e tem aparência p ter a
possibilidade de estar inserida no mercado de trb [trabalho] em outra
função. Sugiro q vc leia as páginas da internet onde os homens "avaliam" o
desempenho das profissionais do ramo com detalhes sórdidos. Fora
experiências negativas principalmente de agressões no ofício. Não consigo
considerar essa experiência constrangedora no mínimo como
"empoderamento". Para o homem, continua sendo a mulher tratada como
mera mercadoria.
Paula: Eu sempre fui tratada como mercadoria, só que agora eu ganho
dinheiro pra isso. E sinceramente não me importo. Vc acha q eu espero q o
cliente se ajoelhe e me peça em casamento? Essa ideia de que mulher quer

96
amor e homem quer sexo é bem sexista. Eu só quero fazer meu trabalho e
ganhar meu dinheiro. Foda-se como eles me veem.
A: Então darling, mas onde está o empoderamento? Ganhar dinheiro é outra
questão, e q permeia longe desse argumento.
A: Não estou em nenhum momento criticando o ofício, mas o termo
empregado, não me entenda mal.
Paula: Eu já expliquei no post. Socialmente eu era aquela mina que ninguém
queria ficar e que faziam piada. Se um cara me beija na balada "por engano"
os amigos ficam zuando. Hoje eu vejo q eu sou desejada e a sociedade é
hipócrita. Tenho mais auto-estima e inclusive me tornei mais exigente com
relações fora do trabalho. Hoje tenho liberdade sexual e não preciso sair de
graça com nenhum cara q me desvaloriza pq eu ja faço no trabalho como
uma relação comercial e não me sinto mal por isso.
Paula: duas reflexões: A gente tem o direito de criticar o que outra pessoa
considera um canal de empoderamento pessoal? Principalmente pessoas que
vivem realidades que não conhecemos? Uma pessoa se prostituindo está
sendo mais tratada como mercadoria/objeto/engrenagem do que alguém
num trabalho insalubre e extenuante, mas socialmente aceito?
A: eu critiquei quem? Só não concordo c o termo, mas se a pessoa em
questão se sente dessa forma, quem realmente sou eu p questionar algo.
Acho q te faltou interpretação ao texto q escrevi, não critiquei o ofício em
questão.
A: E segundo dados do IBGE, a maioria esmagadora das profissionais do
ramo se declararam infelizes ou insatisfeitas c o trb executado. Aí te
pergunto, onde está o empoderamento? Só acontece em situações muito
específicas...
Paula: acordar cedo, pegar ônibus lotado, pegar uma carga horária extensa,
ouvir esporro do patrão e nem ganhar um salário digno. Antes de falar da
minha profissão tem que olhar mais a sua volta pra vc não cair na
parcialidade.

Assim como Ana, Alice e Donatela, Paula se sente desejada no mercado do sexo.
Entretanto, diferentemente das duas primeiras, uma sensação de “vazio” parece não
acometê-la na pluralidade de relações fortuitas e comerciais que estabelece na sua vida.
Acredito que Paula, embora tenha razão na sua percepção de que situação marginal que a
prostituição se encontra acaba atraindo prazeres marginais – o que ela localiza como
“mulheres negras”, “gordas” e “trans” peca por não compreender que há margens nas
margens. Isto é, o mercado do sexo, principalmente entre as mulheres trans-travestis, é um
espaço de disputas, manipulações do corpo, hormonizações, cirurgias de todas as sortes em
busca de moldar um corpo cada vez mais “boazuda” para o sucesso entre os clientes e que
determinados marcadores sociais da diferença como ser negra ou gorda fazem sim diferença.
Mas no que diz respeito à sua ideia de “empoderamento”, presente no longo debate com A,

97
Paula encontra a voz nas comparações com trabalhos formais menos valorizados “acordar
cedo, pegar ônibus lotado (...) e nem ganhar um salário digno” como referência às
moralidades vigentes quando o assunto é prostituição. Assim cria um paradigma no qual a
grande maioria dos ofícios são explorados tanto quanto o da mulher que se prostitui. A
diferença é que trabalhar como prostituta lhe rende valorização na auto-estima. Em outra
postagem, Paula deixa mais claro quais são os outros benefícios da prostituição.

“Estou farta dessas publicações tendenciosas que colocam a mulher que se


prostiui como vítima explorada e induzem o leitor a pensar que a
prostiuicao é algo ruim que deve ser combatido. Exploração existe em todos
os setores. Se as costureiras são exploradas devemos colocar a indústria
têxtil na ilegalidade? Ou se o trabalhador rural é explorado devemos colocar
a agricultura na ilegalidade? Onde tá a lógica desse pensamento? Será que
vocês nao percebem que tudo isso não passa de um moralismo travestido de
preocupação social? Quem é contra a exploração deveria justamente ser a
favor da regulamentação que é a única maneira de evitar os excessos
cometidos pelos patrões. A questão não é ser a favor ou contra a atividade.
A prostituição vai continuar existindo como sempre existiu desde que o
mundo é mundo. A questão é se vamos dar direitos a esses profissionais
para que eles possam trabalhar com dignidade ou não”.

Se no trecho anterior vimos Paula se referindo a ideia difusa de “sociedade


hipócrita”, já aqui é possível notar um apelo diretamente ao Estado pela regulamentação da
profissão.

Como vemos, o discurso de Paula em muitas ocasiões é diferente do discurso das


minhas outras três interlocutoras. Ana, Donatela e Alice não possuem nenhum vínculo direto
com alguma organização de militância trans ou feminista, mas possuem muitas amigas que
são. Seus discursos são entrecortados por partes das coisas que leem e ouvem, parte deles
provém de suas próprias experiências. Dessa maneira, moldam suas críticas em termos mais
indiretos, difusos e também mais focadas em suas próprias experiências. O blog de Alice é
um exemplo vivo disso. É a partir do que vive que cria uma plataforma de fala e denúncia.
Donatela é a mais avessa à militância “quem quer saber de política? Coisa chata, gente à toa,
eu hem” me disse uma vez. Paula, ao contrário, possui o discurso mais carregado de bordões
da militância ou bordões acadêmicos. Em suas postagens no Facebook, cita Marx, Beauvoir,
Butler, etc. Assim, estabeleço aqui duas formas de expressão das reclamações que falam
também de classe e escolaridade destas mulheres. A primeira como uma forma mais situada
e coesa, mais aproximada de questões de aplicabilidade coletiva e, a segunda, pelo discurso
de impressões e experiências mais próximas da vivência cotidiana – aqui bordões da

98
militância podem ou não aparecer. Essas duas formas de falar não implicam nenhum juízo de
valor por minha parte, apenas ajudam na compreensão de por que Paula destoa de minhas
outras interlocutoras. Isso fica mais evidente na segunda entrevista que fiz com ela, quando
perguntei sobre a discussão, em sua página pessoal do Facebook, que destaquei acima e ela
respondeu direcionando às radfem (feministas radicais)

“(...)as radfem nem nos reconhecem enquanto mulheres, então a prostituição


trans para elas não importa. Quanto a prostituição da mulher cis, elas tem
essa visão da mulher ser tratada como objeto, como fetiche. Eu discordo.
Isso parte um pouco duma visão sexista de que a mulher sempre está
buscando um relacionamento ou está sempre buscando romantismo, sabe?
Mas as vezes a mulher só que transar de modo objetivo, entendeu? Então
não vejo porque. Eu acho empoderador se ela está usando o corpo dela ao
seu benefício. Elas [radfem] assumem o mesmo papel que os homens de
controle do corpo da mulher falando o que é ou não ser mulher e o que é um
corpo de mulher e como deve ser usado. Se você for parar pra pensar, eu até
postei isso recentemente, a prostituição em si não tem nada a ver com
sexismo. Homens também se prostituem, sabe? Se hoje tem mais mulheres
do que homens na prostituição é porque a gente vive numa sociedade
patriarcal. Então elas apontam esse fato como se isso fosse uma profissão
de mulher, mas isso é uma consequência dessa sociedade patriarcal. Por isso
a predominância do sexo feminino. Eu dei um exemplo da doméstica. A
maioria das pessoas que trabalham limpando casa, são mulheres. Isso não
significa que a profissão de doméstica seja opressora da mulher, entendeu?
Nem a gente pode acreditar que tirando os direitos das trabalhadoras
domésticas colocando a profissão delas na ilegalidade que a gente vai
conseguir combater o patriarcado. As pessoas vão dar o jeito delas de
fazerem o que elas querem, na ilegalidade ou não. É uma profissão que
sempre existiu, sempre existiu em toda história. Seria uma ingenuidade ou
má fé a pessoa acreditar que agora vão abolir. Você é contra a
regulamentação (da prostituição) e vai achar que a profissão vai ser abolida,
é pura ignorância.46

Já no que diz respeito aos relacionamentos, para Paula as mulheres trans e travestis,
de modo geral, “fazem muito a Alice”, pois todas querem viver uma relação nos moldes da
norma monogâmica. Se sua forma de relembrar sua própria trajetória é marcada por grandes
chaves do discurso militante LGBT e Transfeminista, Paula traça, também, seu próprio
presente e suas expectativas de futuro, por linhas que passam pela vida na militância. Isso

46
Este discurso é recorrente na fala de Indianara Siqueira, conhecida travesti, puta e militante: “Sinceramente,
nós putas não temos culpa porra nenhuma da exploração da mulher na sociedade patriarcal e machista. A culpa
é da sociedade patriarcal e machista. Quem diz que se acabam as putas acaba o patriarcado?”. Em outros
termos, se os abolicionistas e os reformistas acreditam que a causa da prostituição é a pobreza, então porque
não estão combatendo a pobreza?

99
fica bem claro na maneira como ela se estabelece nas relações afetivas. O discurso de Paula
sobre a sua descrença no amor monogâmico se aproxima muito da tônica de certa parte da
juventude de hoje das ditas “camadas médias” sobre relacionamento. Ela diz

Mas eu sou adepta de relações livres (...). Eu não sei se cheguei a falar isso
com você na nossa outra conversa, mas foi isso que mais me estimulou a
virar garota de programa. Porque antes, quando eu acreditava no namoro no
casamento, a ideia de trabalhar como garota de programa não passava na
minha cabeça, entendeu? Porque eu realmente acreditava no casamento
como ideal.
Você fala relacionamento livre como poliamor?
Relacionamento livre mesmo, livre, livre. É assim, as pessoas acham que
não tem compromisso, mas isso não significa que não haja alguma coisa
séria, entendeu? Mas assim, prefiro deixar as coisas acontecerem sem forçar
alguma coisa. Gosto do meu espaço.
Mas estar em um relacionamento com uma ou mais pessoas é uma ambição
sua ou não é algo que te preocupa?
Eu acho que todo mundo precisa de afeto pra estar bem. A questão é como
você vai construir isso. Eu penso em construir de uma forma livre. É algo
que me faz bem e que eu busco, sabe?

Em pesquisa conjunta com o antropólogo Raphael Bispo (Zampiroli e Bispo 2016),


analisamos, através do conceito bartheano de erótica das distâncias, como um grupo de
jovens cariocas tem hoje gerido relações não-monogâmicas através de uma solidão
positivada. Isto é, a crença de que só é possível viver bem com um(a) ou mais parceiros(as)
quando se vive bem primeiro consigo mesmo e, também, de que é importante ter um tempo
só para si (idem). O sentido que Paula atribui às relações livres e ao amor passeia por
veredas semelhantes. Mas se formos pensar a experiência pontual da prostituição, há
possibilidade de relação muito maior. Como vimos no capítulo 2, este fato foi de suma
importância para o fim do relacionamento de Paula com seu antigo namorado o que se
mostra salutar para entender a força que os marcadores sociais possuem na construção da
experiência. Tanto o fato de Paula não ter grandes desafetos na família e ser relativamente
bem aceita como transexual somado ao fato de ter crescido num contexto de classe média e
ser hoje estudante de graduação, moldam fortemente o sentido em que ela enxerga o amor,
transexualidade e prostituição. Das quatro, apenas Paula não fala mal do trabalho como
prostituta.

100
3.5: PANO DE FUNDO

Neste momento final, gostaria de pensar tudo aquilo que tem atravessado essa
dissertação até aqui. A maneira que Paula manifesta seus descontentamentos me pôs a pensar
nessa relação com minhas outras três interlocutoras. Alice se prostituiu por três anos, entre
2005 e 2008. Ela disse que depois disso foram em raras ocasiões que precisou recorrer à
prostituição para conseguir renda. Donatela se prostitui há mais de dez anos, uma das
primeiras coisas que me disse foi que não gostava de ser prostituta. Ana se prostitui há dois
anos e também diz que preferiria fazer outra coisa. Acontece que, de forma concomitante,
todas as três valorizam a profissão em vários momentos. Se sentem desejadas (nisso que
Paula traz sobre empoderamento), “fazem” muitos homens feios, mas fazem muitos vícios.
Por diversas ocasiões, seja nas entrevistas ou por Facebook, elas afirmavam “nossa, esse eu
chupava até o ‘edy’47”, “tem cliente que vira crush”, “conheci um ‘ocó’48 tão fofo, mona”,
“ganhei tanto dinheiro essa semana”, “fiz mil num dia, não sei nem o que fazer com o
‘aqué’49”. As efervescências da profissão são costuradas por meio de ideias de uma
sexualidade intensa, mas todas as vezes que assumiram posturas contemplativas de suas
vidas, afirmaram preferir uma vida “normal”. Desse modo, o desafio de analisar os pontos
negativos das experiências da prostituição se travou ao longo do campo por receio de que
estes discursos pudessem ser tomados como exemplos de ofício que deplora (ou constrange,
extenua e é insalubre como afirmou A) a mulher que o exerce. Por esta razão, acredito ser
indispensável a marcação de que nenhuma de minhas interlocutoras vê a prostituição como
não-digna. Todas elas exercem ou exerceram a profissão em buscas de ascensão social
rápida, em busca de sobreviver fora de casa, autonomia, consumo, lazer, cuidar do próprio
corpo conforme suas “essências femininas” ditam, viajar50... (ver Capítulo 1). Desde esse
ponto de vista, todas elas valorizam a prostituição e o que a profissão tem possibilitado em
suas vidas. No entanto, nenhuma delas nega que a profissão em face do estigma social que a
rodeia, também coloca empecilhos para alguns sonhos. Paula faz uma crítica fundamental,
ao meu ver, quando “devolve a injúria” para outras profissões mal pagas, que requerem
enormes esforços, que exploram seus empregados e assim por diante, mas que ninguém

47
Ânus.
48
Ou bofe, boy magia, homem.
49
Dinheiro.
50
Ver Pelúcio,

101
pretende abolir ou levar para a ilegalidade. Ana, Donatela e Alice até concordariam nisso
com Paula (em que outras profissões podem ser exploratórias), mas o estigma social e os
efeitos da vida no subterrâneo têm maior peso nas suas subjetividades

Ana e Alice negativizaram suas experiências no tocante às relações efêmeras com os


homens e o “vazio” que sentem depois. Mesmo que grande parte dessa sensação seja
causada pela experiência de se prostituir, o fato de serem transexual e travesti,
respectivamente, dá outro contorno para estas vivências. Grande parte está na maneira que
são objetos de fetiche dos homens, mas nunca de amores permanentes. Isto é, contradizem o
que Paula afirma que é empoderador. Ao mesmo tempo, afirmam que “amam fazer sexo” e
“amam a pegação”. Estabelecendo uma difícil ambiguidade. Outro ponto que têm em
comum é, entre todas as quatro, são as que mais falam sobre a vontade de constituírem
família. Negativizar a fortuidade das relações na profissão se encontra diretamente no
mesmo caminho da maneira que estas mulheres percebem a prostituição como avessa à
família, numa dupla moral. Para Ana (ver capítulo 2), a prostituição entra em negociação
direta com o então namorado em prol da manutenção da autonomia. Em algum momento da
relação, Ana finge parar de se prostituir e, em tantos outros, promete que quando passasse no
vestibular pararia definitivamente. Hoje sem Romário, Ana possui dois sonhos: ir para Itália
e se tornar psicóloga. Ela pretende seguir na prostituição para poder realizá-los e, caso surja
um novo amor, quem sabe, parar de fazer programa. Alice encontra voz no teatro. Estreou,
no ano de 2016, em diversas peças além de uma autoral onde narra suas muitas vidas e
muitos amores, plataforma artística-política que sensibiliza sua audiência sobre às
dificuldades de ser travesti no país. Alice me disse que muitos dos seus sonhos se realizaram.
Muito recentemente começou a namorar um homem transexual e encontrou em seu parceiro
a compreensão que nunca havia experimentado. Ela me disse que “além de eu estar com um
cara lindo, carinhoso, que tem orgulho de mim, não quer me esconder da sociedade e da sua
família... Ele ainda é trans, ou seja, me entende como nenhum homem cis me entendeu”. Seu
namoro inaugura um novo ponto de partida para se pensar às experiências de conjugalidade
pautados por transcentralidade.

Donatela estabeleceu com Alexandre um vínculo muito forte que a fez “desistir” do
amor “pelo menos por enquanto”. O “carequinha” que conheci, mesmo sendo alguém que
ela tem alimentado profundo afeto e compartilhado seu cotidiano não despertou nenhum
interesse amoroso, principalmente porque ele demanda uma vida sexual – coisa que

102
Donatela não quer. Diferentemente de Ana e Alice, ela se diz calejada com as desilusões e
não quer enfrentar um término de novo. Sobre se sentir assexuada, no capítulo 2 destaquei
uma frase da conversa que apresento agora na íntegra

Nas primeiras conversas que a gente teve, você falou comigo que se sentia
assexuada. O que isso significa pra você?
Eu ainda me sinto assim. Porque num relacionamento eu não procuro sexo, eu
não procuro o homem bom de cama. Porque assim, eu faço isso vinte e quatro
horas. É um egoísmo meu, mas eu nem espero que meu namorado, meu
companheiro, espere de mim uma porn star, porque ele não vai encontrar,
entendeu? Raramente eu me sinto uma porn star com um companheiro. Por isso
as vezes eu me sinto muito assexuada. O que eu procuro de um namorado... é
alguém pra ver Netflix. Na verdade, eu nem procuro um namorado no momento.
Eu acho que é por isso que eu não consigo gostar do carequinha. Eu gosto dele,
mas não consigo ter um relacionamento por ele porque eu não consigo ter apetite
sexual com o namorado. Eu acho que talvez se eu não trabalhasse, eu teria uma
vida sexual. Porque eu não tenho uma vida sexual, eu realizo as fantasias alheias.
A minha vida sexual é comprada. Por isso eu me sinto assexuada. Prefiro passar
três, quatro dias com minha mãe ou viajar um final de semana inteira com você,
falando besteira e vendo filme do que ficar transando.

Donatela pensa em seguir na prostituição, pois nela consegue comprar as coisas que
gosta e viajar quando bem entender. No momento em que escrevo essas linhas, ela está na
Europa tirando fotos em Roma, Veneza, Pisa, Paris “no melhor estilo ostentação”. Hoje, ela
pode se dar “ao luxo” de escolher os melhores clientes, pois já é figura conhecida nos sites
de acompanhante. Paula também segue querendo perseguir a carreira de prostituta. Não se vê
no futuro fazendo outra profissão, mas reconhece que o título de cientista social pode ser
algo a que ela recorra quando não estiver fazendo mais sucesso no mercado do sexo. Hoje
também sonha em ir trabalhar na Europa.

Tendo em vista as quatro experiências construídas até agora, pergunto portanto, como
a prostituição e a trans-travestilidade costuram um pano de fundo para compreendermos a
qualidade de seus amores?

Larissa Pelúcio (2006) no seu artigo “Três Casamentos e algumas reflexões”, nos
apresenta três diferentes configurações conjugais: entre uma travesti e um homem de classe
média, entre duas travestis e entre uma travesti e um homem de classe popular (Pelúcio
2006). A autora apresenta tanto os desejos entre suas interlocutoras de constituir
conjugalidades sólidas e perenes quanto as inexoráveis dificuldades que o assumir e a

103
prostituição entrecortam os três casos por ela narrados (ibidem). Pelúcio, pensa na qualidade
desta forma de relação como o que configura não-lugar para Butler. Ela afirma

“Duda e Wild, Fabyanna e Verônica, Fran e Tiago têm desejos típicos de


relações tradicionais e normatizadas, e que soam socialmente inteligíveis.
Porém, por mais que busquem nas suas relações práticas legitimadoras,
estas não ‘aparecem imediatamente como coerentes no léxico da
legitimação disponível’. Por isso, são alocados em um espaço social
indefinido, em não-lugares, ‘onde o reconhecimento, inclusive o auto-
reconhecimento, demonstra ser precário ou mesmo evasivo, apesar dos
nossos melhores esforços de ser um sujeito reconhecível de alguma
maneira’”. (Pelúcio 2006: 532)

O que no trecho destacado é reconhecido como não-lugar, nesta dissertação qualifico


como subterrâneo. Entender “subterrâneo” como não-lugar não apareceu como rentável
epistemologicamente no que venho desenvolvendo até aqui. Na minha interpretação, a
palavra “subterrâneo” ultrapassa seu caráter adjetivo. Isto é, não diz respeito apenas ao fato
dos relacionamentos conjugais se encontrarem ocultos àqueles que habitam a superfície de
privilégios de poder exercer livremente suas sexualidades e relações. Mais do que isso,
subterrâneo é também um substantivo, uma substância, uma forma de viver, estar e exercer-
se na relação (vide a dobradiça Cuidado-Controle apresentada no Capítulo 2). A qualidade
substantiva constrói papeis sociais específicos que, mesmo atuados na sombra, versam
sempre uma vida conjunta. Em outro momento, Pelúcio sugere que para que este não-lugar
se torne “um novo topo” é preciso

“que estes casais estivessem dispostos a romper seus sonhos de


legitimação dentro dos padrões heteronormativos, e se arriscassem em
outros modelos de parceria. É um desafio que exige mais do que amor:
pede engajamento político. Para tanto, essas parelhas teriam que se propor
arranjos conjugais, parcerias, laços, vínculos para além do binarismo de
gênero instituído, da família nuclear burguesa e das relações sexuais
procriadoras. Trata-se de tarefa difícil quando, na base dessas relações, o
que se tem e se quer consolidar é, justamente, a busca pela aceitação social.
Consegui-la negando a norma parece tão difícil e desafiador quanto lográ-la
dentro desta mesma norma. Eis o paradoxo em que se enredam as travestis e
seus cônjuges”. (Pelúcio 2006: 532 e 533) [grifos meus]

104
Pelúcio, que frequentou diversos encontros de T-Lovers51, pode argumentar segundo
o ponto de vida de seus interlocutores, que não foram privilegiados neste trabalho. Paula
possivelmente concordaria com estes termos. Mas no que diz respeito ao que pude apreender
da experiência trans-travesti de Ana, Alice e Donatela, transbordar-se está para além de ser
pautas revestidas de conteúdo político situado e direcionado. É, na verdade, na e pela
insistência de permanecer no modelo heteronormativo de conjugalidade no qual a mulher
assume o papel típico de esposa e o homem de marido (habitar a norma). Papeis estes que
temos que pôr em perspectiva aos contornos de autonomização dos sujeitos que nos
direcionam para um patamar mais claro de relações conjugais de classe média pensadas no
modelo igualitário somados a manutenção dos binarismos de gênero, os quais nos remetem
ao lugar que estas mulheres trans-travestis preferem estar. Logo, são díades praticadas
segundo às experiências dissidentes das mulheres (e suas carreiras) e do homem (e o amor
que alimenta por elas) - um modelo de relação paradoxal e um tanto quanto deslocado
daqueles que são concebidos como classe média, mas, mesmo assim, perseguidos de maneira
teleológica pelos sujeitos que compõem o casal. Desse modo, podemos pensar que o mister
da escolha e a cola fundamental do amor-romântico aparece por cima daquilo que faz de
minhas interlocutoras “sonhadoras”. Sonhar não deve ser tolhido, pois é campo político
espiritual que intenta erguer-se do subterrâneo através dos mesmos códigos conjugais
legitimados pelo senso comum. Estas relações não estão necessariamente fadadas ao fim. A
sugestão de Larissa Pelúcio de que os vínculos serão fortalecidos pelo investimento político
de questionamento à heteronormativade não se apresenta como a maneira que minhas
interlocutoras se movimentam. Investimentos políticos são revestimentos de ação por forças
extrínsecas acumuladas pelas experiências e leituras de militância que constroem pautas
claras sobre aquilo que se deve combater52. A compreensão de sociedade como forma etérea
de discriminação confrontada a vontade de viver um relacionamento como qualquer outro,

51
T-Lovers é a maneira que se auto-intitulam os homens que sentem desejo por mulheres transexuais e
travestis. (ver Pelúcio 2006).
52
Como Pelúcio coloca o investimento político num lugar privilegiado de ação, interpretei que a autora
estivesse sugerindo uma cinética coesa e situada tendo em vista a maneira que ela constrói o argumento – por
isto somo a possibilidade da militância estar presente, mesmo esta sendo uma potência não dita. Caso não seja
essa a intenção da autora, o investimento político mesmo que privilegiado, seria, portanto, exercido de maneira
que mais se assemelharia com as movimentações de minhas interlocutoras (com exceções de Paula). Assim,
mantenho minha sugestão de que há duas possibilidades – de exercer ação pelo que podemos entender como
discurso militante ou exercer ação pelas experiências e a maneira mais ou menos clara da reprodução desses
discursos que chegam, de forma difusa, até estas mulheres. Todavia, seja por pautas claras ou difusas, não
compreendi, durante minha experiência de campo, que esta é uma postura que queiram pôr em voga e, por essa
razão, mantenho minha crítica nestes contornos.

105
nos mostra que a capacidade de deslocamento dos paradigmas heteronormativos não é pelo
questionamento de seu status nas macro configurações, mas na sua conquista pela
(re)existência do cotidiano de suas relações tidas como heterossexuais. Ou seja, mais do que
agirem por forças combativas maiores do que os pequenos passos da unidade do casal, elas
querem apenas exercer amores nas micro configurações de suas vidas relacionais. O desafio
de lograr na mesma norma aquilo que se pretende exercer como casal não exclui a
possibilidade que esta mesma norma sofra pequenos deslocamentos (vide o fenômeno de
reentranhamento que Donatela e Alice provocaram). Dessa maneira, o engajamento político
se configura como segundo plano (que é percebido “sem querer querendo”). Já o amor pode
não ser tão acidental assim na sua insurgência, mas o é como possibilidade política e, assim,
amar é o primeiro plano do discurso de embate às configurações hegemônicas de família e
conjugalidade.

106
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre março e outubro de 2016, minha ideia original de pesquisar a indústria


moteleira foi se desfazendo pouco a pouco enquanto as entrevistas com as garotas de
programa ganhavam viço e carne. Todavia, a razão primeira das entrevistas, que era entender
o motel visto por essas mulheres, foi se desmanchando quando elas passaram a responder
minhas perguntas de maneira resenhada e, na verdade, se utilizavam das situações que eu
trazia para falar de suas próprias trajetórias, seus relacionamentos e, por vezes, seus
sentimentos. Desse modo, a ideia de falar sobre relações amorosas surgiu tardiamente.
Grande parte daquilo que julguei importante ser perguntado nas primeiras entrevistas, na
verdade, acabou ficando de lado na escrita dessa dissertação. Quando realmente entendi que
a riqueza do meu material residia nas tessituras amorosas do cotidiano, já me encontrava em
um momento avançado no campo. Assim, dos processos necessários para a retomada de tudo
aquilo que discutimos nesta dissertação, pontuo a necessidade, de antemão, de identificar as
limitações deste trabalho.

Ao privilegiar os tracejos de vida de Alice, Ana, Donatela e Paula a partir daquilo


que é revivido nos discursos amorosos, deixo de lado a observação participante de suas
interações e circulações por entre os pontos de prostituição, festas, baladas ou outros
circuitos – os quais vivi com algumas delas para além das entrevistas. Esta outra maneira de
fazer pesquisa poderia nos revelar aspectos de suas vidas e personalidades que não ecoam
em entrevistas, pois o modo de operar neste modelo de conversa é bem diferente em relação
a lugares voltados para outra forma de interação. Outro ponto importante que preciso pôr em
relevo é todas as pontas de assuntos que foram tratados nas conversas comigo, mas não
ganharam espaço (ou aparecem en passant) nesta dissertação. Temas como: a relação com a
cafetinagem, prevenção, saúde, nome social, armas de sedução, estratégias para arranjar
clientes, estratégias para se livrar do cliente, estratégias para dar prazer, estratégias contra a
possibilidade de violência, usos e circulações dos espaços públicos, opinião sobre o uso de
silicones industriais, cuidados com o corpo, formas de anunciar em classificados e sites de
acompanhantes, a relação com o dinheiro, etc., não ganharam destaque em detrimento dos
assuntos “do coração” que foram o cerne do que minhas interlocutoras quiserem contar.

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Estas outras possibilidades se mantêm como temáticas de meu interesse, mas serão
privilegiadas em futuras oportunidades. De forma semelhante, a discussão sobre os
confrontos da identidade transexual em relação a identidade travesti, vividas e expressadas
de modos bem diferentes (grupos etários e trajetórias políticas), foi trazida à baila de maneira
limitada funcionando como um norteador para as discussões que viriam.

A ideia de essência (ou espírito) que apareceu como uma verdade de si presa no
corpo errado é um paradigma que transpassa todas as minhas interlocutoras. Isto nos mostrou
que é possível pensarmos numa “comunidade de emoções” onde existem as vicissitudes de
vidas marcadas por rejeições, confrontos e desafios tanto em suas redes relacionais quanto
em se lançarem para o mercado de trabalho. Desse modo, pudemos perceber também como a
prostituição apareceu diversas vezes como “destino” ou como a única alternativa viável em
momentos em que precisaram perseguir uma vida autônoma com urgência, seja por não ter
casa ou para sair de casa. Mais uma vez, temos uma dupla que conferiu ao marcador etário
uma consonância analítica. Duas das minhas interlocutoras mais velhas tiveram das suas
figuras paternas o despejo que as fez encontrar na prostituição o caminho parar suas
independências.

Outro ponto que atravessa a experiência das quatro mulheres são as reclamações de
confissão. Os sucessivos acontecimentos que antecedem ou sucedem o momento vocativo do
revelar-se, que nomeei “tramas da confissão”, são turning points das relações podendo
exercer força positiva ou negativa a julgar pela reação de quem recebe a informação. A ideia
de trama das confissões se expande para todas as esferas da vida da mulher trans-travesti –
desde o momento em que se confessa para a família suas respectivas identidades de gênero
até as confissões com qualquer desconhecido potente-amigo, potente-amante, etc. As pontas
soltas das tramas sempre acabam nas forças etéreas discriminatórias, as Parcas, que são
manifestações da “família”, dos “vizinhos”, do “povo da noite”, das “pessoas da rua” até a
“sociedade”. São justamente as Parcas as responsáveis por puxar os fios da trama das
confissões e rearranjar as normas que as produções de verdades sobre pessoas e casais
causam como deslocamento. Dessa maneira, a ética de confessar sempre carrega em si a
possibilidade de redenção (ou reentranhamentos Duarte 2009 e 2008). Assim, carrega
também a potência de confecção de duplas morais, novas normas ou contra moralidades. A
expressão “trama das confissões” foi escolhida em detrimento a “trama de confissões”
justamente por compreender que as intrigas são consequências cinéticas do ato de confessar

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e não feitas por confissões. Isto é, só surge em efeito a ação de falar: logo “das” e não “de”
privilegia o dinamismo e imprevisibilidade inexorável da trama.

No que toca ao “grande amor” de Donatela e Ana, temos a revelação do modo tanto
da experiência da prostituição quanto da trans-travestilidade e a capacidade de tensionar o
cotidiano do casal. Isso foi possível de ser vislumbrado pela maneira que a dobradiça do
Cuidado e do Controle foi ganhando forma em sua expressão de ciúmes. Para Ana, o tempo
de ócio após o programa purificava seu corpo. Para Donatela a purificação vinha do banho.
Tomar banho, se limpar, não comer fora de casa, esperar o namorido, não sentar na cama –
além das manipulações de informações sobre os programas e os clientes – desenham as
negociações de rotina e as subjetividades relativas às intimidades. Desse modo, colocamos
em perspectiva os tensores agonísticos que habitam uma relação afetivamente monogâmica
tida como heterossexual e vivida no subterrâneo.

À guisa de perseguir um fio condutor nas análises, partimos da comunidade de


emoções, tramas das confissões, negociações de intimidade até sonhos como projeto. Todos
estes momentos são revestidos por uma maneira filigranada de conhecer. Desse modo,
percebemos a necessidade de estabelecer não uma pedra sólida, mas um véu fino e
translúcido de possibilidades epistemológicas. Isto é, levei a sério o impacto que forças
etéreas – expressadas pelas minhas interlocutoras - têm nas construções tanto de ação como
reação a constrangimentos, embates e discursos, memórias e trajetórias de vida que contam o
cotidiano como seu espetáculo. Dessa maneira, é possível vislumbrarmos o que Veena Das e
Luís Fernando Dias Duarte apresentam no que diz respeito à construção de deslocamentos, à
contra moralidade, a dupla moral e reentranhamentos que passam a despontar em contextos
onde amores e sexualidade desafiam as normas vigentes. Logo, se as entrevistas passaram a
transformar o privado da intimidade em público pelo texto, da mesma maneira as relações
amorosas subterrâneas esperaram transformar o privado de suas qualidades em público pelo
ato de assumir. Isto é, estas relações visam, pelo ponto de vista destas mulheres, sair do
excesso de privado (subterrâneo) e habitar o nível prosaico de público (e não o excesso
expresso na “tirania do olhar público”. Fonseca 2000). Vendo do ponto de vista do cotidiano
é possível vislumbrar as camadas de público e privado que vão se formando para o as minhas
interlocutoras e como circulam ou desejam circular por entre elas.

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Isso nos mostra o quanto a dissidência é relativa: Alice, Ana, Donatela e Paula são
dissidentes em suas práticas, suas carreiras e estilo de vida, mas a norma aparece como
horizonte, de modo que simultaneamente há anseios, sonhos ou projetos normativos. Assim,
elas nos mostram que é possível ser um dissidente sexual e, em concomitância, seguir as
normas de gênero, conjugalidade e família (e vice-versa). Deste modo, este trabalho intenta
habitar o marco de estudos em gênero, sexualidade e queer que se preocupa pela dimensão
afetiva dos sujeitos. Isto é, os impactos e efeitos no plano afetivo e psicológico da
discriminação e exclusão causada por ser o que são: corpos inadequados em sexo e gênero e
para os quais o sexo que vendem macula a possibilidade do amor. A experiência da
transexualidade é absoluta, pois toma toda as esferas da vida do sujeito. Logo, a manutenção
dos relacionamentos é diferente entre mulheres trans e mulheres cis de modo que o corpo
trans-travesti está mais fadado à solidão, pois ser prostituta é uma carreira que se pode
abandonar (vide Alice), mas ser trans-travesti é uma marca perene e irremovível no corpo,
mesmo quando “passáveis”, uma vez que à expectativa de confissão dá a tônica de suas
vidas afetivas.

Entender a experiência da prostituição e da transexualidade e travestilidade pelas


emoções e principalmente aquelas que aparecem no nível do cotidiano mostrou-se bem
proveitoso epistemologicamente. Pudemos perceber a complexidade instalada na vida dessas
mulheres no que diz respeito aos múltiplos sentidos que alguns afetos recebem. A
cristalização dessa complexidade somada ao olhar mais “baixo” da vida diária e das
lembranças perfuradoras pode nos afetar não pelo que é comumente percebido como
pitoresco em suas vidas, mas pelos conflitos com potência relacionável com a experiência da
leitora ou do leitor. Entretanto, a dimensão da conquista da família nos traz mais uma vez à
realidade ao sermos confrontados por algumas com o lugar marginal em que são diariamente
colocadas. Querer ter família, longe de ser uma conformação aos moldes cristão-capitalista-
tradicional é, na verdade, uma recusa de viver no subterrâneo. É a reivindicação de suas
humanidades (Bento 2008: 240). É querer viver o mesmo amor.

Por fim, reproduzo aqui na íntegra o sensível texto de Alice, publicado em dezembro
de 2016, tanto em sua página no Facebook quanto em seu blog, intitulado “A solidão da
mulher trans” o qual aqui cito sem recuo:

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“Está todo mundo olhando a travesti passar, ou seria o “traveco”? Falam do seu corpo, dizem até que parece
mulher, falam de sua personalidade baseado no que ouvem falar por ai de travestis. Mas se a moça olha, poucos
mudam de assunto, ela vê deboche, humilhação, homens apertando o pau, mas se pede ajuda, ninguém escuta e
se quiser companhia, coitada da moça! É assunto onde mora, não apenas na rua, mas no bairro todo, não
consegue um emprego formal, mas todos estão preocupados em falar como ela ganha a vida, atrai olhares,
principalmente à noite. Mas ela dorme sozinha e tem um vazio no peito que ninguém tem coragem de ocupar.
A Moça traz consigo uma cruz que ninguém quer carregar.

Quem olha de longe não percebe e quem não se aproximar nunca vai saber: a Moça gosta de livros,
principalmente romance, e ouvir Sharon Jones, Madeleine Peyroux, Norah Jones, Nina Simone e Billie
Holiday. Queria ser bailarina, por isso troca uma boa balada para assistir uma apresentação de Ballet. Adora
vôlei, mas tem preguiça de malhar, e de outras coisas também, como filme cult e vê pequenos detalhes onde os
outros enxergam cotidiano. E, acima de tudo, está cansada de tanto assustar e afastar as pessoas, cansada de
esperar vidas se resolverem por uma promessa de futuro e ficar pra trás mais uma vez.

Quem vai cuidar da Moça triste? Quem vai levar de prêmio seu amor? Quem tem coragem de assumir o desafio
e o coração pesado? Apostem suas moedas, esperem o próximo capítulo. Enquanto isso, a Menina também
espera, e esperar dói”

(Alice, dezembro de 2016)

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