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OSWALDO ZAMPIROLI
RIO DE JANEIRO
2017
Oswaldo Zampiroli
Rio de Janeiro
2017
CIP - Catalogação na Publicação
Aprovada em 21/02/2017
_________________________________________
Presidente, Profa. Dra. Maria Elvira Díaz-Benítez
(PPGAS/MN/UFRJ)
_________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
(PPGAS/MN/UFRJ)
_________________________________________
Prof. Dr. José Miguel Nieto Olivar
(PAGU/UNICAMP)
_________________________________________
Prof. Dr. John Comerford (suplente)
(PPGAS/MN/UFRJ)
_________________________________________
Prof. Dr. Raphael Bispo (suplente)
(PPGCSO/UFJF)
À minha mãe.
AGRADECIMENTOS:
The main goal of this thesis is to grasp the way in which transsexual and
transvestite women, who have in common the experience as prostitutes, live
their affections and relationships, considering their bodies are stigmatized
and marginalized by the society around them. This work brings several
testimonies that prove the difficulties regarding relationships with cisgender
men, such as the secrecy, which gives love an underground status.
Furthermore, prostitution is also a source of agony, once it threatens the
relationships. The tension of both characteristics is updated on a daily basis
by the couples. To fully understand the dynamics related to dating a
cisgender man, this thesis is separated in three parts that together build the
life story of four trans-transvestite women, from the beginning of their gender
discovery to the expectations they have for the future.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1
CAPÍTULO 3: TRANSBORDAR...................................................................................................... 72
3.1: TECENDO ALICE (DO PAÍS DAS MARAVILHAS) ................................................................. 73
3.2: ENTRE LENÇÓIS OU TESSITURAS DA ESPERA ................................................................... 79
3.3: EM RETALHOS: COSTURANDO SONHOS.............................................................................. 87
3.4: FEMINISMOS, AGÊNCIA E O HABITAR A NORMA ............................................................. 90
3.4.1: Paula a fiar......................................................................................................................... 94
3.5: PANO DE FUNDO ........................................................................................................................ 99
Era uma sexta feira quente de abril. Eu me encontrava no GDN1 em Niteroi num dia
particularmente cheio no lugar e não era em decorrência das aulas do PreparaNem2, mas de
uma associação entre o GTN e uma ONG de dentistas para tratar os dentes de pacientes
travestis e transexuais. As aulas estavam acontecendo de forma não usual, no segundo andar
do prédio. No primeiro andar, palco das aulas em dias com menor circulação, várias pessoas
esperavam o atendimento dos dentistas voluntários. O escritório, agora sala de consulta,
tinha sido cuidadosamente preparado, na medida do possível, para receber dezenas de
pacientes que, em vista da oportunidade gratuita de tratamento dentário, se encontravam
enfileiradas em cadeiras num formato circular à espera de atendimento. Enquanto a aula de
física acontecia no segundo andar, eu estava recolhido no primeiro, observando a
movimentação durante o tempo em que aguardava o horário de minha aula. Não havia
cadeiras para todos os presentes. Haviam pessoas sentadas nas escadas que levavam ao outro
nível e outras de pé. O ambiente estava barulhento, lufadas de risadas que partiam de todas
as direções. “Ai mona, para”. Uma voz alta sobressai na sala barulhenta, seguida de risadas
altas. Sentada na escada estava uma mulher muito bonita, branca e loira de cabelos pintados.
Aparentava ter por volta de trinta anos de idade. Ela era o centro daquela roda de amigos.
Todos os olhares estavam voltados para ela - o que ela falava era seguido de calorosas
gargalhadas. Esta, que mais tarde se tornaria minha principal interlocutora, parecia à vontade
na sala de espera da clínica improvisada. Passando rapidamente o olhar de novo pela sala,
percebi que a maior parte dos barulhos estava sendo causada pelo seu grupo de amigos. No
restante do espaço, havia cerca de dez mulheres transexuais e travestis sentadas de forma
mais tímida e silenciosa. Algumas conversavam mais baixo, enquanto outras aparentavam
1
GDN e GTN ou “Grupo Diversidade Niteroi” e “Grupo TRANSdiversidade Niteroi”, respectivamente, foram
criados pela articulação com a Coordenadoria de Defesa dos Direitos Difusos e Enfrentamento à Intolerância
Religiosa da Prefeitura Municipal de Niteroi, CODIR. Os grupos visam atender “as demandas da sociedade
civil trans e travestis” como descrito em sua página no Facebook:
https://www.facebook.com/permalink.php?id=128712683946977&story_fbid=443440332474209 (último
acesso 13/01/2016)
2
PreparaNem é um curso gratuito preparatório para o ENEM voltado para pessoas LGBTI criado no Rio de
Janeiro por Indianara Siqueira que inspirou outros núcleos pelo país todo (não necessariamente com o mesmo
nome). Atualmente sou professor voluntário de Sociologia no grupo PreparaNem Niterói que acontece na
Avenida Rio Branco, na sede do GDN/GTN e é coordenado por Bruna G. Benevides.
1
estar mais tensas. Talvez seja pelo ambiente novo e adaptado, talvez seja por aflição do
dentista.
De repente, a luz de toda Avenida Rio Branco se apaga. Gritos tomam conta da sala
de espera. Todas as pessoas presentes imediatamente pegam seus telefones celulares e
iluminam algo ou alguém a fim de se perceberem no escuro: “Gente, que isso!”, fala alguém
na penumbra. “Viado, que susto! ”, exclama outra pessoa. Aproximo-me de Bruna,
coordenadora do GTN e do PreparaNem de Niterói e falo “espero que a luz volte logo, não
vai ser bacana dar aula assim”. Bruna então se lembra:
Oswaldo, lembra daquela minha amiga que eu comentei com você que
morou no motel? Então, ela tá aqui. Chama ela pra mim pra eu apresentar
vocês dois”.
Onde ela tá?
Não sei, o nome dela é Donatela3. Acho que ela desceu pra fumar. Dá uma
olhada pra mim e chama?
Desci cuidadosamente as escadas de madeira que nos levavam do primeiro andar para
o térreo. As escadas eram bem velhas, a madeira estava corroída e com algumas partes
podres. Pulei um vão que tinha cedido no meio da escada e continuei a descida observando a
porta para reconhecer quem poderia ser Donatela. Julgando que as risadas tinham cessado
devido ao apagão, percebi que, na verdade, elas haviam sido carregadas para a entrada do
prédio. Donatela estava escorada na parede com um Carlton entre os dedos amarelos de
unhas longas e coloridas conversando com os amigos. Ela era a mulher loira que ria alto.
3
Todos os nomes de minhas quatro interlocutoras são fictícios a fim de preservar suas privacidades.
2
Bruna, viado, o que você quer comigo? Tô fumando caralho!
Sobe aqui , Donatela. Tenho que te falar um negócio.
Não dá pra esperar? Deixa eu terminar esse cigarro.
Sobe logo, mulher.
Donatela olha para mim inconformada e diz: - “É foda, né. Abusada.”. Ela joga
metade do cigarro fora e sobe novamente as escadas. Sigo ela sentindo um grande
constrangimento, pois a informação que Bruna revelaria para Donatela dizia respeito ao meu
interesse de pesquisa e eu havia acabado de gerar um deslocamento o qual ela não havia
recebido de bom grado.
Quando eu entro na sala e me faço ser percebido com um sonoro “Boa noite”
desmancho o clima de descontração que pairava no ambiente. A minha presença ali como o
pesquisador trouxe uma seriedade para o lugar que muito me desagradou. Donatela anuncia
3
Oi Oswaldo, tudo bem? Vou só terminar a unha da minha amiga e já
podemos começar.
Tudo bem! Tome o tempo que quiser.
Você prefere fazer a entrevista aqui mesmo ou num bar? A gente poderia ir
num bar.
Num bar me parece uma boa ideia.
A razão de Bruna ter me indicado Donatela como informante foi porque ela morou
um tempo em motéis em cidades do interior de São Paulo e, até aquele momento, meu
intuito era entender a indústria moteleira pelo olhar da prostituição. Sentados na mesa do bar,
Donatela e eu, na grande presença do gravador, começamos a entrevista.
4
No que diz respeito a Alice, uma de minhas informantes, o subtítulo dessa obra não a contempla exatamente.
Embora ela tenha tido a experiência de se prostituir durante alguns anos de sua vida, ela é enfática ao dizer que
“não sou prostituta, eu estive prostituta”. Pensar em “Família e Conjugalidades em trajetórias de prostitutas
trans-travestis” gera uma identidade estática a qual, infelizmente, por falta de um subtítulo mais abrangente,
não captura a experiência das quatro mulheres como um todo. Optei, portanto, em nomear o texto privilegiando
as outras três que atualmente exercem a profissão. Todavia, tomei essa decisão consciente de que Alice não se
ofende e nem se envergonha do período em que se prostituiu, mas pelo contrário, transforma politicamente este
momento de sua vida em uma plataforma de reivindicação de mais direitos para as mulheres transexuais e
travesti através de seu blog pessoal e de seu atual trabalho como atriz.
4
lá no início de 2016. Tampouco, imaginei, uma vez decidido o recorte da minha pesquisa,
que o que eu acessaria da vida dessas incríveis mulheres fosse algo que julguei tão cotidiano
quanto o amor.
Uma vez que fui incapaz de rasgar o véu da formalidade e da crença de que eu
desmancharia qualquer forma de anonimato nos motéis que visitei, resolvi deslocar um
pouco meu eixo de pesquisa. Na insistência de continuar meu caminho em busca de
informações sobre a indústria moteleira, resolvi, em seguida, tentar enxergar o motel de fora,
pela visão dos clientes e das prostitutas. Foi então que comecei a fazer outras entrevistas no
intuito de destrinchar o espaço por outros pontos de vista. E, assim, conheci Donatela.
5
O contato com a camareira foi dado por Natânia Lopes, uma amiga antropóloga que gentilmente conseguiu
essa entrevista.
5
prostituição, até então um assunto inédito para mim, tentando perceber o que as entrevistas
me contariam.
Com segurança, posso afirmar que a relação conflituosa entre expectativa e realidade
foi a tônica até que o tema desta pesquisa finalmente se revelasse. As respostas das perguntas
que eu havia preparado sobre o evento, que eu julgava que encontraria, quase nunca me eram
dadas. A contrapartida às perguntas feitas mostrava-se, na verdade, como introdução a outros
assuntos os quais geralmente diziam respeito a atividades mais triviais do cotidiano daquelas
pessoas. Pensei diversas vezes que talvez a forma como me aproximei de todas elas, ou
talvez, a maneira como eu perguntava no momento preciso da entrevista não fosse
apropriada. A ideia de pesquisar as dimensões da vida afetiva que estas mulheres
compartilharam comigo tornou-se mais clara na terceira entrevista com ninguém menos que
Donatela. Ela constatou: “Eu acho que a mulher (não-trans) que se prostitui procura o
príncipe encantado. Como há várias travestis que também procuram. O maior problema das
pessoas que se prostituem é o afeto”. Perguntei, em seguida, o que ela queria dizer com tal
afirmação. Ela respondeu:
6
O trecho que Donatela recorda é o seguinte
“Acho os travestis figuras shakespearianas, de
grande dramaticidade, centauros urbanos, corajosos,
encarnando duas vidas num corpo só.(...)
O homem que se casa com a prostituta é
considerado um 'benfeitor' que humilha um pouco a
mulher amada que salvou. O travesti nunca será grato a
você; você é que terá de lhe agradecer. O travesti não
dá uma boa esposa; você é que poderá virar uma boa
esposa para ele: "Querida, já lavei sua minissaia de
oncinha..." Você não tira um travesti da 'vida'; ele é
que pode te tirar da tua. Ele tem tudo; ele é
6
exatamente as palavras ditas... Lindo, lindo. Sobre os centauros que
caminham pelos carros e procuram alguém pra lavar suas calcinhas, suas
roupas e suas saias. Toda travesti que se prostitui se encaixa um pouco ali.
A gente procura uma pessoa que te entenda. A gente não procura por
alguém que faça os serviços de casa, a gente só procura por alguém que te
compreenda. Entendeu? Eu entendo por esse lado. É uma coisa muito difícil
alguém que compreenda o mundo da prostituição. Nem quem vive perto.
Meu namorado viveu, o Alexandre viveu isso por quatro anos e ele nunca
conseguiu compreender.
Realizei diversas entrevistas, algumas pessoalmente, outras por redes sociais, com
algumas em maior número de ocasiões e com maior intensidade, e com outras menos. O fio
condutor dessas entrevistas foi a revelação de uma grande dimensão emocional em suas
narrativas que eu não estava levando em consideração num primeiro momento, aturdido por
outras expectativas típicas do empreendimento científico. Acredito fortemente que o fato de
eu ser gay facilitou bastante a identificação e a possibilidade de relação com essas mulheres7.
Tive acesso a lembranças muito importantes de suas vidas, lembranças de amores ou
sentimentos, aparentemente, de solidão. No fim, na busca pelo “espetaculoso da
prostituição”, em que agora cabem as aspas, recebi nada mais que aquilo que até então eu
julgava trivial. Sentimentos do dia-a-dia, daqueles que deixamos escapar fugazmente. Quiçá,
para elas, o trivial fosse a própria prostituição e o espetáculo fosse a vida cotidiana, o amor,
o casamento e a família.
Um outro fator que acredito ser fundamental para o estreitamento da minha relação
com três das quatro mulheres aqui pesquisadas foi o fato de que eu gosto e entendo de
astrologia. Donatela, Alice e Ana usam e justificam diversas ações que tomam em suas vidas
em função de seus respectivos signos solares: áries, libra e gêmeos. Isso me motivava a fazer
o mapa astral de cada uma delas e a explicar as características mais detalhadas que outros
elementos para além do signo solar podem revelar sobre a personalidade de cada. De certa
maneira, houve a manutenção do antropólogo como autoridade. Mesmo despido de óculos
ou de um jeito brechtiano8, conhecer um pouco mais sobre os signos do zodíaco me
auto-suficiente.(...)”
Disponível completo em: http://lara-outroladodoespelho.blogspot.com.br/2011/07/arnaldo-jabor-escreve-o-
travesti-esta.html (último acesso em dezembro de 2016).
7
Como a leitora e o leitor perceberá ao longo da leitura desta dissertação, por diversas vezes minhas
interlocutoras se referiam a mim como “bicha”, “viado”, “mona” ou “amiga”. Fato este que demonstra
identificação e aproximação.
8
Sobre o antropólogo, Perlongher (1984) diz “Se a antropologia é, como dissemos, a "ciência do outro", quais
serão as condições de constituição desse "outro" nas "sociedades simples"? Para não dar exemplos etnográficos
7
conferia, justamente, certa autoridade na relação. Todavia, em concomitância, é possível
pensarmos na similitude de experiências que o fato de eu ser gay veio a ocasionar, podendo
assim justificar os depoimentos sobre rechaço e discriminação que sofreram. Ademais, o
interesse mútuo por signos do zodíaco, mesmo em face à autoridade que eu poderia exercer
por “saber mais”, gerava uma abertura para uma simetria na relação. Desse modo, a
astrologia, assuntos de maquiagem e minha orientação sexual me permitiram desmanchar as
assimetrias de classe, formação e capital cultural e investiram casualidade nas conversas. É
mister pontuar isso, pois, como verá a leitora ou o leitor no desenrolar desta dissertação,
diversos aspectos da vida dessas três mulheres apareceram como contrapartida a alguma
informação que eu dava sobre a qualidade de algum signo, casa ou planeta.
que vocês seguramente conhecem, imaginemos uma cena de um filme que poderia chamar-se algo assim como
"Tempestade no Paraíso": ilha polinésia, vendaval, coqueiros agitando-se, nativos dançando seminus estilo
"Tabu" e uma comitiva ocidental desembarcando no porto: o administrador colonial, de roupa de linho branco e
chapéu Panamá, o soldado de uniforme, às vezes o padre de batina, e, à parte, meio marginal, "quase
brechtiano", um personagem estranho, de óculos: o antropólogo. Nessa situação estritamente imaginária fica
claro de que lado está o antropólogo - do lado da autoridade - e está claro quem são os outros: os nativos
polinésios”. A dúvida que Perlongher traz é de que ao passo que sabemos “descrições exaustivas da
ornamentação dos nativos polinésios: em troca, pouco sabemos acerca de como estava vestida Margaret Mead
em cada uma de suas expedições”. Me pergunto o mesmo no que diz respeito às sociedades ditas “complexas”.
8
“manipular” essa relação, pode variar desde a forma suave de interrogatório
oficial que, sem que o sociólogo perceba, é frequentemente a pesquisa
sociológica, até a confidência e, por último, através da representação mais
ou menos consciente que o entrevistado se faz da situação da entrevista, em
função de sua experiência direta ou medida de situações equivalentes [...]
que orientará todo seu esforço de apresentação de si, ou melhor, de
produção de si.” (Bourdieu 2007: 81).
9
presente como uma referência, mas como uma construção. Isto é, no momento em que o
discurso está sendo proferido passa-se concomitantemente a ser criado um real. Logo, além
do contexto histórico-cultural que envolve o universo daquela que fala, as emoções também
dizem respeito às circunstâncias que formam o discurso. Assim, quando penso em trajetórias
e em discursos é dessa forma que me situo. Por conseguinte, passaremos a analisar as
entrevistas a partir do que é recontado, tendo sempre em vista a importância que as emoções
tomarão ao longo desta dissertação. Para tanto, somo a perspectiva do discurso e emoções à
sua dimensão micropolítica. Isto é, a “micropolítica da emoção” pode “dramatizar, reforçar
ou alterar as macrorrelações sociais que emolduram as relações interpessoais nas quais
emerge a experiência emocional individual”. (Coelho e Rezende 2010: 78).
Dessa maneira, para realizar tal análise, dividirei esta pesquisa em três momentos:
passado, presente e futuro. Minha intenção em categorizar a passagem de tempo em três -
9
No que diz respeito a termo como “cisgênero” ou apenas “cis”, todas as minhas interlocutoras sabem,
reconhecem e usam de vez em quando o termo (umas mais e outras menos). De modo geral, elas identificam os
homens cisgêneros apenas como “homens”. Já as mulheres cisgêneros são chamadas de “mulher”, “mulher de
verdade”, “mulher biológica”, “mulher não-trans”, “amapô” ou “amapoa”, “racha” ou “rachada”. Escolhi
utilizar “cisgênero” em grande parte do texto pois, além de todas o utilizarem em algum momento, ele permite
uma base comum de termos em detrimento de outros.
10
Durante toda a dissertação usarei para falar das quatro meninas a expressão Trans-Travestis, assim como está
presente no subtítulo dessa pesquisa. A escolha de usar os termos dessa maneira é em razão da forma que cada
uma se identifica. As quatro possuem em comum a experiência de nascer num corpo masculino e transmutá-lo
para um corpo feminino, mas isso não diz sobre a forma como se identificam. Nenhuma das quatro se importa
ou se ofende com a palavra travesti, mas duas delas preferem ser identificadas como transexuais. Portanto, o
termo Trans-Travestis é investido de pluralidade ao explicitar as múltiplas identidades possíveis.
10
como numa flecha retilínea - tem como reflexão preliminar a ideia de que tal linearidade não
se configura de maneira tão essencial como parece expressar. É do pressuposto de memória e
tempo de Deleuze (2007) que tomo como ponto de partida a possibilidade de, ao passo que
estipulo segmentos de capítulo por marcas situadas de tempo, construio memórias e
narrativas por suas características descontínuas. Desse modo, a leitora ou o leitor perceberá
que os capítulos podem se emaranhar e parte daquilo que está em sentença num momento,
será recontado em outro. Intitulados de Transpassado, Transparente e Transbordar, os
capítulos irão recontar narrativas que contêm em si mesmas as vicissitudes do processo de
assumir-se para a família, de se tornar prostituta, de ter um relacionamento monogâmico
enquanto prostituta e de expectativas para si mesmas, respectivamente.
11
podermos pensar como estas perspectivas podem ser lidas em trajetórias de mulheres trans-
travestis que se prostituem (ou se prostituíram).
No intuito de revelar de que ficção escolhi utilizar para conduzir esta dissertação
(Strathern 2014) afirmo que houve um esforço para dar um tom antropológico-poético para
as páginas que seguirão. Tomei esta decisão tendo em vista a qualidade com que grande
parte das narrativas foram expressadas nos meandros do campo, revestindo, por conseguinte,
o texto como todo num mesmo véu dramático.
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CAPÍTULO 1: TRANSPASSADO
Neste capítulo, iremos discutir as narrativas sobre o início da vida que tecem minhas
interlocutoras como mulheres transexuais ou travestis e como foi que a prostituição apareceu
como possibilidade para cada uma delas. A quantidade de informação que revelaram a mim
sobre seus passados tanto no que diz respeito às suas relações familiares quanto a suas
percepções de identidades, evidentemente, são desiguais, devido ao grau de intimidade
diferenciado que eu pude criar com elas durante a pesquisa de campo e as suas próprias
vontades para falar de si a respeito de questões da vida íntima. O ponto de partida aqui é
criar um pano de fundo sobre a vida dessas mulheres para podermos conhecê-las um pouco
mais e assim discutirmos seus relacionamentos nos demais capítulos.
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1.1: ESSÊNCIA E DESTINO
Donatela nunca conheceu seu pai. Branca, alta e loira, hoje com 32 anos de idade, me
confessou “minha mãe é muito engraçada, ela jogou com a minha vida”. Nascida e criada
num bairro de periferia em São Gonçalo, só foi ter um contato maior com sua mãe quando,
aos doze anos, saiu da casa da avó – que até aquele momento se encarregou de sua criação.
Sua mãe não tinha um bom relacionamento com ela. Aos quinze anos de idade, a mãe de
Donatela foi obrigada pela sua mãe, descendente de alemães, a casar com um homem muito
violento. Aos dezessete anos, já estava se separando. Donatela afirma que o pai “era porra
louca. Depois de dois anos separados com minha mãe, ele comeu ela na agressão e eu nasci.
Depois sumiu”.
A mãe de Donatela casou-se pela segunda vez – com um homem também violento - e
cuidou da filha por mais alguns anos antes que ela saísse de casa para a Itália. Isso se deu
porque o padastro de Donatela percebeu os inícios da “transformação” corporal da enteada e
a expulsou de casa. O processo de transição foi vagaroso. Encantada com as travestis que
apareciam no programa do Sílvio Santos percebeu que queria ter também cabelos grandes.
Donatela conta:
Eu lembro daquela tintura Márcia que era tipo um rolo de filme, misturava
num potinho e deixava preto. [Era] até minha vizinha que me pintava.
Comecei a deixar meu cabelo crescer. Meu cabelo era muito maior, mais
cheio. O loiro acabou com o meu cabelo, por isso tô abandonando ele agora.
[Donatela pede um cinzeiro].
Essa da TV era alguém especifica?
Eram muitas.
Porque nos anos 90 a Roberta Close foi emblemática pra muita gente...
Mais ou menos. Eu já sabia quem era Roberta Close, mas eram muitas
travestis no Silvio Santos. Tinha Angélica Ravaxi, não sei se já ouviu falar.
Tinha a Schneider, qual o nome dela? Erika Schneider. 11
11
Não encontrei referências a Erika Schneider nas pesquisas que fiz. Mas Angélica Ravaxi possui vários vídeos
de performances artísticas no site Youtube.
14
Entre seus 14 e 15 anos de idade, Donatela começou a trabalhar numa empresa de
telemarketing. Foi então que percebeu que tinha dificuldade de falar seu nome de registro no
telefone:
Sem dinheiro para pagar as modificações caras que o corpo de mulher pedia,
Donatela começou a se prostituir com auxílio de Beatriz (hoje uma cafetina conhecida de
Niteroi).
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e começou a tomar hormônio exageradamente o que provocou a perda de ereção e,
consequentemente, a perda de uma fatia do mercado do sexo – pois não conseguia “fazer a
ativa”. Essa foi sua primeira percepção no universo das práticas de prostituição de
travesties: os homens, em sua maioria, desejavam ser passivos. Ela me diz que isso se
mantém até hoje, pois a cada dez homens que fazem programa com ela, só um quer ser
ativo. Desse modo, seu processo de transição se fez em concomitância ao se lançar na pista
e nos contornos que a vida de garota de programa exigia. Isto é, o corpo de mulher de
Donatela foi ganhando forma na soma entre as expectativas que tinha para si mesma e aos
padrões estéticos que mais faziam sucesso nas pistas.
Ao sair para trabalhar nesta época, Donatela deixava, como menino (ou “de boy”),
sua casa em São Gonçalo, roubava algumas peças de roupa de sua irmã mais nova (filha de
seu padrasto) e se arrumava na casa de Beatriz. Aprendeu a se maquiar, a se vestir e fazer
o “truque”, ou seja, parecer-se mais com uma mulher. Ela relata que tudo era muito mais
difícil naquela época.
Eu falo de 15 anos atrás. Há 15 anos atrás era muito difícil. Não existiam
ONGs, não existia nada. Parada Gay só tinha em Copacabana e a gente
nem sabia como era o processo de organização da Parada Gay. Não
sabia nada. Era tudo muito fechado. Então eu tinha que me prostituir.
Não tinha outra solução. Se eu quisesse ganhar dinheiro e quisesse ser
travesti... não tinha outra opção. Daí eu comecei a descer na rua com 15
ou 16 anos (...) na praça São João, me prostituía de quinta a sábado.
[grifos meus]
Desse modo, o corpo de mulher que Donatela tanto desejava era projetado de
acordo com alguns padrões de feminino que ela almejava para si e padrões que a
prostituição requeria, mas no fim do dia, como a frase em destaque acima aponta, as
modificações corporais só eram possíveis pelo dinheiro dos programas.
Donatela conseguiu se formar no ensino médio. Inclusive fez vestibular para História
na UERJ e foi aprovada. Entretanto, seu padrasto passou a agredi-la constantemente ao
perceber as mudanças em seu corpo. Até que num determinado dia, ele disse “não vou
aceitar viado na minha casa” e a expulsou. Com dezoito anos de idade, Donatela se viu
perdida. Foi então que resolveu ir para a Itália, pois tudo indicava que ela ganharia muito
16
dinheiro lá. Sua mãe, mesmo endossando a decisão do marido, continuou conversando com a
filha.
Ai, quando eu fui pra Europa, minha mãe não sabia que eu me prostituía
aqui em Niteroi. Ai antes de ir pra Europa, no dia que eu fui eu falei pra ela
que eu estava indo pra me prostituir, que a vida ia ser difícil, que eu não
sabia quando eu voltaria. Comecei a contar um pouco, comecei a ser mais
aberta. A falar um pouco e ser mais aberta, mesmo que poderia doer.
E foi. Donatela abandonou tudo e foi “tentar a vida” em outro país do qual ela não
sabia nada, nem o idioma. Pegou dinheiro emprestado com uma cafetina (dívida que a
perseguiu por muito tempo), tirou o passaporte e partiu para o desconhecido.
Alice, assim como Donatela, também foi expulsa de casa pela figura paterna. Alice é
uma mulher negra, alta e de presença forte. Hoje, com 36 anos de idade, afirma com
segurança “tive uma infância infantil”. É assim que Alice descreve seus dias de criança e
adolescência em Quintino, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro. Sempre estudou em
colégios particulares, que os pais batalhavam para pagar. Na infância, Alice era uma grande
atleta e praticava diversos esportes: vôlei, basquete, natação e futebol (este último por
imposição do pai). Ela diz:
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A perseguição a Alice também acontecia na escola. Ela me conta que foi muito difícil
terminar o ensino médio, mas conseguiu:
Pensando hoje sobre esses dias de “infância infantil”, Alice me revela que sempre
teve uma “mente feminina”, uma “essência de mulher” dentro de si. Tanto no que diz
respeito às suas vontades de se vestir, ter cabelo longo e usar maquiagem, tanto na maneira
que ela fala de amor. Isto é, se entendia como feminina porque tinha paixões platônicas e
criava mundos imaginários. Todavia, num primeiro momento, Alice acreditava que era um
rapaz gay e, assim, diz que só entendeu realmente o que é sofrimento quando começou o
processo de transição.
Aos 23 anos, percebeu que sua atração pelo universo feminino era maior do que
apenas encanto. Ela não só gostava de coisas de mulher, ela queria ser mulher. Aqui,
diferentemente de Donatela, a crise e as perguntas que suscitaram sua identidade não foram
respondida pelas ruas, mas em pesquisas na internet. Desse modo, aprendeu maneiras das
quais poderia utilizar-se para moldar seu corpo como queria. Começou a se hormonizar,
deixou o cabelo crescer e a usar pouco a pouco peças da indumentária feminina. Fato que
não passou despercebido nem pelos olhos de seu chefe e nem pelos olhos de seu pai.
Alice trabalhava numa dessas grandes franquias de roupas. Foi demitida assim que
pediu para ser chamada pelo seu nome social. Quando chegou em casa após sua jornada de
trabalho, foi agredida pelo pai e expulsa, tudo ao mesmo tempo. Graças à rescisão de seu
trabalho e um pouco de dinheiro acumulado, conseguiu comprar uma casa própria numa
favela do Rio de Janeiro e lá foi morar. Na época, Alice namorava um homem que se mudou
junto com ela. O homem em questão era um agressor:
Eu não saí da casa dos meus pais porque quis. Quando me transformei
fisicamente tive vários conflitos em casa, virei motivo de vergonha dos
meus pais e acabei indo morar sozinha. Eu não ia nem visitar meus pais, fui
morar sozinha, eu não conhecia ninguém, longe da família, dos amigos, sem
emprego, tendo que me adaptar a morar numa comunidade do Rio de
Janeiro, me senti numa solidão única e o meu grande erro foi depositar toda
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essa carência em um homem. Eu confundi solidão com amor, aceitei
traição, agressão, extorsão.
Durante uma época eu fiz muito sucesso como prostituta, trabalhava pouco
e ganhava muito dinheiro, mas chegou uma hora que comecei a penar, o
mito, a diva Alice tendo dificuldades de ganhar dinheiro, parecia piada, mas
é a mais pura verdade. Na época foi difícil me acostumar com aquilo, eu ia
embora várias e várias noites zerada.
Assim, sua saída da pista se deu num determinado dia, especificamente em “uma
noite difícil” na Rua Augusto Severo. Um homem se aproximou de Alice chamando-a pelo
nome e perguntando o preço do programa. Estabelecido o valor, o homem a levou no motel
mais caro da Glória, num cujo quarto tinha uma vista “linda e iluminada” da Baía de
Guanabara. A experiência não foi ruim, mas ela diz que seria perfeita “se fosse com amor”.
Alice não é religiosa. Não vai à igreja e tampouco segue alguma designação
dogmática. Contudo, ela acredita que existe alguma força maior que rege e cuida de todos
nós. Ela afirma que acredita na fé: “se você acredita em Fadas com fé, pode pedir que vai
19
acontecer”. Assim, “com fé”, uma semana após este programa, Alice esbarrou com um
grupo na prefeitura que distribuía camisinhas e lubrificantes. Ela tomou coragem e disse
“não quero camisinha, quero um emprego”. Uma das funcionárias “foi tocada” e resolveu
ajudar Alice. Trocaram e-mail e assim, Alice conseguiu uma vaga e uma bolsa num projeto
da prefeitura do Rio de Janeiro chamado “Projeto Damas” onde descobriu o teatro. Dali
conseguiu uma fonte financeira e, já que não pagava aluguel de casa, o dinheiro da bolsa era
quase o suficiente para subsistir. Por esta razão, se prostituir virou algo fez novamente
apenas em raras ocasiões para completar a renda.
Natural de Madureira, filha mais velha de sete irmãos, Ana possui dois anos de
transição e dois anos como prostituta. De todas as minhas interlocutoras, ela é a que possui o
menor espaço entre o período que começou as mudanças corporais e o “batalhar”. “Eu sabia
que eu não ia arrumar nenhum emprego, sabe? Até porque é mais fácil uma transexual com
corpo hoje em dia conseguir emprego do que uma transexual no começo. No começo a gente
fica com uma figura meio aberração, sabe? ”. De estatura média, branca e cabelos loiros,
Ana me encontrou a primeira vez usando um vestido de tubinho preto que marcava bem sua
silhueta. Hoje, com 22 anos, me revela que começou a se prostituir por anúncio em janeiro
de 2015, o mesmo mês em que passou a tomar hormônios. “Você começa meio infantil, faz
anúncio e começa a vir cliente atrás de cliente e depois você tem mil reais na mão num dia e
não tá sabendo o que fazer com o dinheiro. Quando percebe tu já tá viciada nisso”, Ana
constata.
A avó de Ana era cafetina. Prostituição nunca foi exatamente um tabu na sua casa,
nem mesmo transexualidade. Ana me revela que a família foi percebendo seus trejeitos
femininos antes mesmo dela. O processo de transição de Ana, quando ela entendeu que tinha
uma “essência feminina”, foi natural. “Minha família não incentivava, mas apoiou tudo.
Nunca precisei falar que eu era transexual, foi tudo natural”. O processo de hormonização foi
financiado pelo dinheiro que sua avó dava “eu pedia dinheiro pra ir pra balada, mas era pra
20
hormônio. Ela sabia disso”. Assim que começou a ganhar um dinheiro, saiu da casa da avó e
foi morar com algumas amigas em Realengo.
Quando resolveu começar a “batalhar”, Ana tinha uma estratégia para evitar alguma
ameaça: fechava com os clientes apenas no mesmo motel, perto da sua casa. Assim, passou a
ser figura conhecida pelos funcionários do estabelecimento, o que lhe garantia certa
liberdade e a possibilidade de sair do quarto caso o cliente se comportasse de maneira
desagradável. Ela conta:
Até porque eu fecho com o motel porque às vezes quem dá a louca sou eu.
Às vezes o cliente quer conversar, fica querendo saber da minha vida, quer
contar da vida dele eu pego e saio e volto pra casa. Eu não tenho paciência
pros homens pegajosos que ficam no meu pé. Eu vou e dispenso. Eu faço
com esses homens a mesma coisa que eles fazem com a gente. Eles usam a
gente e eu faço a mesma coisa com eles sim.
Assim como Ana, Paula não enfrentou grandes dificuldades em casa. Ela é uma
mulher branca de 26 anos, estatura média, cabelos pretos e lisos, com uma franjinha que
cobre suas sobrancelhas. Nasceu e foi criada em Jacarepaguá na zona oeste carioca. Filha
(até então única) de pais separados, vivia com sua mãe num apartamento próprio. A figura
paterna sempre foi ausente, meio alheia à sua dinâmica de vida. Paula narra, como todas as
outras, que desde a infância se sentia diferente dos demais meninos.
Ela percebia isso pela vestimenta - que se faz sempre presente entre minhas
interlocutoras como expressão marcante da identificação. Todavia, quando a perguntei
quando foi o momento em que ela realmente percebeu que queria ser uma mulher, Paula
respondeu que a identidade trans é desenvolvida num processo. Ela mesma não sabia, num
primeiro momento, o porquê de ela ser diferente. No começo, deixou seu cabelo crescer,
depois começou a se maquiar e dali começou a vestir roupas femininas. Mas ela sente que
seu encantamento por bonecas, por maquiagens e por cabelos longos não foram exatamente
os traços que diziam sobre sua identidade. A sua percepção de diferente surgiu pouco a
pouco, pois para ela identidade é processo que surge pelo entender-se como diferente. Desse
modo, paulatinamente, a diferença foi ganhando voz através da expressão de gestos e das
irremovíveis censuras familiares que os flertes com o universo feminino causavam. Ela me
diz:
21
Foi tudo um processo, sabe? A princípio eu não sabia também. Foi tudo aos
poucos. Primeiro eu descobri que eu sentia desejos por rapazes e não por
mulheres, o que era esperado pra mim. E depois a vestimenta. Eu acho que a
questão da vestimenta deixa tudo mais claro, sabe? Mas sempre teve várias
outras coisas que eu mostrava isso (identidade trans). Mas eu acho que a
questão da vestimenta é que estabelece. As pessoas dão muita importância
pra roupa. Mas existem muitas outras coisas que também pode se ler como
uma identidade trans. É, como eu posso dizer, uma identidade como um
todo (...) As pessoas acham que a partir do momento que você muda a
vestimenta, você muda de identidade. Não é isso. São várias outras coisas, é
um processo. Bem antes de assumir, o processo é você se identificar e se
conhecer, sabe? Eu acho que todo gênero é uma construção.
Aos dezenove anos de idade resolveu contar para sua mãe que era uma mulher
transexual: “No início foi difícil porque eles não levavam a sério, sabe? Achavam que era
uma coisa que eu fazia pra chamar atenção”. Embora não tenham expulsado Paula de casa,
ela afirma que a reação de sua mãe, a princípio, foi de choque. Passado algum tempo e
acostumada com a ideia, a mãe de Paula passou acompanhá-la a suas idas ao médico e
buscou também conhecer o que estava acontecendo com a filha: “até que ela entendeu que
não era uma doença, mas uma mulher presa num corpo de homem”, afirma. Dessa maneira,
foi aceitando, também num processo, a identidade transexual da filha. Passou a chamá-la
pelo nome que escolheu e assim viveu com Paula até que ela completasse 24 anos de idade,
quando saiu de casa por vontade própria devido alguns embates com a mãe. Seu esforço em
entender a filha era ambíguo e por vezes as duas tinham rusgas. Hoje, Paula afirma que sua
mãe aceita, pois ela viu “que não era um bicho de sete cabeças”. Já seu pai, apenas “tolera”.
“É muito fácil perceber a diferença entre aceitação e tolerância. Mas meu pai é ausente,
então não ligo muito”.
22
que facilitou também”, ela conta. Assim, mudou-se para a casa da avó, em Botafogo, e
começou a trabalhar numa casa de massagem na Barra da Tijuca.
23
Paula, que não sabia que a filha se prostituía num primeiro momento, dava-lhe dinheiro para
ajudá-la na universidade. Paula concluiu que a prostituição era o caminho mais rápido para a
autonomia, tendo em vista o dinheiro que passou a ganhar. A prostituição conseguia aliar o
que já gostava de fazer (sair com várias pessoas) com um “enriquecimento” mais rápido.
12
Pajubá é o conjunto de expressões de inspiração nagô e iorubá, muito utilizado entre transexuais e travestis e
tem se popularizado por entre outros LGBT. Donatela me conta que as expressões são usadas como forma de
24
muito. Aí um dia, no posto de gasolina, paramos para comprar água, tinha
um menino que não sabia que ela era travesti. Transa com ela. A gente
desceu no posto de gasolina para comprar água, estava um dia muito quente,
virei pro menino e falei assim “quer beber alguma coisa?”, aí ele respondeu
“qualquer coisa”, ai eu falei “qualquer coisa não tem, tem água, Gatorade,
eu vou tomar um Gatorade, você quer uma coisa parecida?”. Aí fui e
busquei pra ele um suco. Quando eu fui entrar no carro, ela entrou na minha
frente e depois de dois minutos eu entrei no carro, ainda estava na fila do
caixa. Ela virou pra mim e falou assim ‘”fala Igor o que você estava
falando”, ai ele “não po, qual é” coisa de bofe. Aí eu falei “fala menino, o
que que houve?” Aí ele “Não nada não”. Ela foi e falou “Quando ele
desceu do carro, os dois meninos ali fora falou pra ele que a gente era dois
travecos gostosos, fala pra ele Donatela”. Olha, ter que negar que eu era
travesti naquela hora. Mesmo sabendo que ele cogitava que eu era travesti,
foi humilhante. Só que na mesma hora eu falei assim “me leva em casa que
eu tenho um cliente pra fazer”, eu estava num motel, né. Hospedada. Isso
em Presidente Prudente, interior de São Paulo. Aí ela me deixou no motel,
fiquei angustiada o dia todo. Não tinha cliente nenhum pra fazer. No mesmo
dia, ele [Igor] foi me procurar. A gente transou maravilhosamente. Ele sabia
que eu era travesti, só que pra não prejudicá-la eu neguei que era travesti.
Foi humilhante pra mim, humilhante. O erro não foi dele, o erro foi dela.
Ele tava afim, ele já sabia desde o princípio. Ela que se negava que era
travesti operada. Ele sem graça porque não me conhecia e não sabia a minha
reação de ouvir aquilo. Se fosse um cara que eu conheço eu falaria que o
cara achou a gente dois travesti bonito, eu ia achar graça. Eu ia falar
“porque você não deu meu telefone pra ele”. Eu não ia ligar, eu não ligo.
Mas só a situação de falar que eu não era travesti pra não prejudicar ela
porque ela conta uma mentira, eu me senti mal. Eu acho horrível as
transexuais que se operam e se dizem mulher. Eu acho ridículo. Você não
vai ser nunca uma mulher. E não é ruim isso [ser travesti]. Você tem que se
identificar com o que você é. Você tem que se aceitar. A operação é um
passo a mais pra aceitação. Não é um passo necessário, mas se você
continua depois da operação não se aceitando... Eu falo que são os homens
bucetas. Esses loucos são realmente homens de circo. Não tem a mulher
barbada? Tinha que botar no circo os veados de buceta. Se você continua
não se aceitando, amiga, continua numa mentira de que é uma mulher, você
não vai ser feliz. Você vai tentar se encaixar num lugar que não é seu. Você
devia tentar levantar outra bandeira que é sua, que é das transexuais. Você é
uma transexual, não há o que negar. Enquanto você se assumir como mulher
você não será feliz. Você vai encontrar com uma mulher que não pode
engravidar e vai ver que dentro ali não tem nada de mulher, só fora que tem
uma bucetinha costurada. Você ser obrigada a viver essas coisas.
Honestamente...
Donatela e Alice se aproximam mais das informantes de Don Kulick (2008) e Larissa
Pelúcio (2006). Isto é, em determinadas situações referem a si mesmas no masculino – fato
ocultar o que se está dizendo perto de pessoas que não participam de seu universo. Isto é, podem se comunicar
perto da polícia, transeuntes ou clientes sem que estes saibam quais informações estão sendo trocadas. Aqué
(dinheiro), ocó ou bofe (homem), guanto (camisinha), edy (orifício anal), neca (pênis), truque (esconder o
pênis), alibã (polícia), erê (criança), amapô ou amapoa (mulher), aquendar (esconder), carimbar (transmitir
HIV), chuca (lavagem do reto), cheque (resto de fezes que podem surgir no sexo anal), dar ou fazer a Elza
(roubar), fazer um vício (transar com um homem bonito), taba (maconha), etc. são algumas das expressões que
mais ouvi no período em que fiz campo e que surgirão ocasionalmente nessa dissertação.
25
que presenciei raríssimas vezes -, em outras evocam “o homem que tenho em mim” para se
referirem a alguma atitude agressiva que tomaram e, ademais, utilizam o termo transexual
mais “frouxamente”. Digo frouxamente, porque para Ana e Paula a palavra “transexual” é
recheada de significados muito diversos da palavra “travesti”. Assim, acredito que ambas
discordariam da maneira como Donatela percebe as travestis ou transexuais que “fingem” ser
mulheres. Temos, portanto, uma forte marca geracional orientando tanto as implicações de
identidade quanto suas relações mais estreitas ou frouxas com os termos “travesti” e
“transexual”. Paula, em entrevista, constata que:
Isso depende da percepção que cada um tem de mulher, né. Anos atrás,
antes de conhecer o movimento transfeminista, antes de pensar no gênero
como construção, eu não reivindicava a identidade de mulher pra mim.
Porque antes pra mim mulheres era ter aquele corpo biológico, entendeu?
Eu não podia reivindicar essa identidade pra mim por acreditar que eu não
tinha aquele órgão. Só que dai eu fui ver algumas leituras sobre isso e isso
mudou. Agora eu reivindico que sou mulher.
Ana, que não possui nenhuma leitura transfeminista, tem uma impressão sobre sua
própria identidade semelhante à de Paula:
Ana tenta se afastar do estereótipo que a palavra “travesti” sugere enquanto Paula
passa a reivindicar sua condição de mulher a partir da compreensão de que gênero é algo
construído socialmente. Berenice Bento em “A Reinvenção do Corpo” (2006) revela
justamente a pluralidade de identidades que coexistem com as mesmas experiências. A
26
experiência de campo da autora se deu no Hospital das Clínicas em Goiana, onde
acompanhou pessoas transexuais na fila de espera para a realização de cirurgias de
redesignação sexual. Um fato de contraste entre minhas interlocutoras e parte das
interlocutoras de Bento é que nenhuma delas nesta pesquisa manifestou interesse de realizar
tal cirurgia. Pelo contrário, Donatela, Paula e Ana afirmam que parte do dinheiro do mercado
do sexo está em “fazer a ativa” – embora as duas últimas tenham afirmado que são poucas as
ocasiões que precisam em comparação a Donatela. Assim, Bento sugere que “não há uma
identidade transexual, mas posições de identidade, pontos de apego temporários que,
simultaneamente, fixam e deslocam os sujeitos que vivem a experiência transexual” (Bento
2006: 25).
Tendo em vista este fenômeno, Bento percebe que mais do que pensar num coletivo
de identidades transexuais, temos que pensar em “comunidades de emoções”, pois assim,
temos a possibilidade de estimular a capacidade de criação de fissuras que estas vivências
têm nas normas de gêneros hegemônicas. Com esta inspiração, proponho a ampliação da
ideia de comunidades de emoções para pensar num grupo de pessoas que - além de perfurar
e evidenciar as performatividades de gênero - possuem percursos comuns que homogenizam
27
até certo ponto as experiências afetivas, relacionais e sentimentais num determinado espectro
do viver na margem, portanto, atuam de determinada forma na vida dos sujeitos. Os
capítulos que seguirão irão desenvolver melhor essa ampliação da ideia de “comunidade de
emoções”.
28
CAPÍTULO 2: TRANSPARENTE
Matemática arriscada:
dois
(Ulisses Belleigoli)
Numa entrevista para um canal do site de vídeos Youtube13, Marcela, uma mulher
transexual, quando perguntada “Tem uma hora certa para contar que é Trans ou Travesti? ”,
responde “Se eu te conhecer hoje e for me interessar por você, eu tenho que te contar na
hora. Eu acho que transparência é tudo no relacionamento. É base”. A ideia do nome
“Transparente” reflete, assim, na prevalência da ambiguidade presente no “ser transparente”
e a real possibilidade que algo me seja confiado. Isto é, uma brincadeira com a questão
metodológica de pensar nas trajetórias das minhas interlocutoras a partir de seus discursos no
momento das entrevistas e as prováveis subnotificações ou exageros de cenas trazidos à tona
na fala. Desse modo, levo em conta a crença de que é possível atingir uma compreensão e
conhecimento profundo de si mesmo. Esse "eu mesmo", nesse ponto de vista, seria uma
categoria indivisível, descritível, apreensível e verdadeira.
13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CyR2DD5UH4I (último acesso: dezembro de 2016).
29
para elas – o que me levou a crer na possibilidade da experiência de psicologização dos
sujeitos. Conforme fui conhecendo-as melhor, percebi que ao mesmo tempo que se
aproximavam fortemente das grandes chaves do individualismo, isto é, crença no sujeito
como medida fundamental de todas as coisas (Dumont 1985), não se aproximavam das
categorias médicas do “conhecer a si mesmo”. Gilberto Velho (2006), em suas pesquisas
sobre as camadas médias cariocas, mostra que há maneiras alternativas de pensar o “si
mesmo” (Velho 2006). Donatela é adepta do candomblé e gosta de astrologia. Por diversas
vezes compreendeu a expressão energética de suas ações pela sua qualidade ariana ou de
filha de Oxum. Na crença da possibilidade de conhecer “eu mesmo”, Ana, Donatela, Paula e
Alice repetem expressões como “ser fiel consigo mesma”, “ser mais eu”, “me valorizar”,
“cuidar de mim”, que caracterizam, portanto, transparência.
A primeira cena que trarei neste capítulo nos revelará melhor sobre o “grande amor”
de Donatela. A relação dela com Alexandre já havia sido contada parcialmente para mim
desde nossas primeiras conversas. Curiosamemente, Donatela começou contando a história
de seu fim e foi revelando, conforme nossas conversas foram se intensificando, mais sobre o
início da relação. Em seguida, apresentarei a história de Ana com Romário. As duas cenas
têm em comum o fato de terem sido contadas para mim como relações nas quais elas
“amaram de verdade”. Somarei os relatos de minha outra interlocutora, Paula, para pensar
no nível do cotidiano, como é vivido um relacionamento entre uma mulher trans-travesti que
se prostitui e um homem. Desse modo, aparecerão as discussões dos casais como lugar de
disputa, imposições e concessões para a preservação do próprio casal através de uma relação
estreita entre os sentimentos de cuidado e de controle. Por fim, veremos como aconteceu o
fim destes relacionamentos tão importantes para Ana e Donatela e como a ideia de família é
central, mesmo em face à sua aparente natureza oblíqua, durante todo o espectro dos
discursos amorosos.
30
2.1: TRAMAS DA CONFISSÃO E O INÍCIO DO “GRANDE AMOR”
Como vimos no capítulo anterior, Donatela foi expulsa de casa pelo padrasto e, logo
depois, em 2004, mudou-se do Brasil para a Itália em busca de sanar uma dívida. Atleta
durante grande parte da sua infância e adolescência, Donatela sempre gostou de assistir a
esportes, sejam eles quais forem. Era novembro, uma terça-feira (ou domingo) cerca de dois
meses já na Itália, vivendo em um quarto de república de menos de vinte metros quadrados
com mais dezesseis travestis, quando Donatela foi para um bar brasileiro sozinha a fim de
assistir a um jogo de futebol do campeonato italiano.
14
Como foi explicado na introdução, os signos do zodíaco dizem respeito à maneira que elas mesmas se
identificam para justificar seus comportamentos.
31
uma dimensão de culpa inerente a expressar sua identidade de gênero em alto e bom tom.
“Sou travesti” pode soar como traição. É preciso cuidado, alertariam minhas informantes,
pois nunca se sabe como o homem cisgênero poderá reagir. Insegurança em revelar sua
identidade de gênero raramente aparece nas conversas que dizem respeito às avenidas onde
se prostituem ou aos clientes que as procuram por anúncios. Estes “sabem” ou procuram
precisamente por mulheres travestis-transexuais nas regiões morais15. Todavia em bares,
festas, boates, todo flerte seguido por conversa contém a apresentação como uma tensão,
uma revelação por vir que antecede necessariamente todas as relações que podem vir. Assim,
a dimensão da traição e da culpa surge, de maneira abrupta, no exato momento em que a
identidade de gênero é revelada. O homem cisgênero heterossexual poderia pensar que foi
ludibriado ou que todos os momentos e as trocas (de conversas a beijos e substâncias) foram
inoportunos, maculadores ou heresias. Dessa forma, na margem da cautela residiria a
constante questão: quando é uma boa hora para contar quem sou? A esfera da “passabilidade
cis”, isto é, a possibilidade da mulher trans-travesti se passar por uma mulher cisgênero,
reflete constantemente sua luz na dimensão achatada de situações com estas. A mulher
travesti-transexual, não consegue garantir de fato se o homem cisgênero sabe que ela não é
uma “mulher biológica”. O receio de revelar-se está para além da imprevisibilidade da
reação do objeto de interesse, mas diz respeito a possibilidade latente de rejeição. Por
conseguinte, a passabilidade cis poderia ser justamente o que evitaria ou amenizaria a
rejeição16. Ou, também, o contrário. “Confundir” poderia funcionar como plataforma para a
violência. Não tenho materiais suficientes para levantar aqui uma discussão mais
contundente sobre passabilidade cis e entender tanto do ponto de vista do cliente quanto da
15
Conceito de “regiões morais” presente no clássico artigo de Robert Ezra Park (1967) é uma das poucas ideias
que sobrevivem ao tempo veloz da ciência e se reproduz e se atualiza de uma maneira quase irremovível.
Assumo que talvez seja um dos conceitos mais citados em Antropologia Urbana. O autor afirma que algumas
zonas da cidade são aglutinadoras, como mostra: “(...) é inevitável que indivíduos que buscam as mesmas
formas de diversão, quer sejam proporcionadas por corridas de cavalos ou pela ópera, devam de tempos em
tempos se encontrar nos mesmos lugares. O resultado disso é que dentro da organização que a vida citadina
assume espontaneamente, a população tende a se segregar não apenas de acordo com seus interesses, mas de
acordo com seus gostos e temperamentos.” (Park 1967: 63)
A região moral é fruto justamente da reunião de uma profusão de sujeitos diversos com interesses
compartilhados (Park 1967: 63). Isto é, a convergência de interesses no mesmo local, que caracteriza a região
moral, desenha, neste caso, usos ligados à esbórnia ou a todo desejo não-convencional, dissidente. Ele diz “as
causas que fazem surgir o que aqui descrevemos como ‘regiões morais’ são devidas em parte às restrições que
a vida urbana impõe; e em parte à permissibilidade que essas mesmas condições oferecem. ” (Park 1967: 64).
16
Ana Paula Vencato (2013) também constata o termo “passabilidade” entre homens que praticam
crossdressing. A autora mostra como os mais velhos que “se montam” admiram os mais novos, pois estes
conseguem passar-se como mulheres mais facilmente – ou seja, possuem mais beleza e mais feminilidade.
(2013: 208).
32
mulher trans-travesti o que seria essa categoria afinal. Acredito que uma teoria nativa de
passabilidade poderia ser muito rentável para aprofundar, realmente, essa análise da
dimensão da confissão. Reconheço também que as estratégias são das mais variáveis:
quando estas mulheres só querem “fazer um vício” e “beijar na boca” ou “pagar boquete”, a
confissão não é necessária. Entretanto, julguei importante trazer essa dimensão dessa
maneira pois é a tônica das minhas interlocutoras e nos revela uma entrelinha importante da
história de Donatela. Outra importante marcação no que diz respeito à passabilidade é que
ela evidencia ainda mais o caráter performativo e o marco regulatório do gênero17.
Na mesma entrevista que citei no início deste capítulo, Luisa Marilac, travesti
bastante conhecida na internet18 diz: “Tenho amigas que deram a sorte de nascerem bem
femininas e na hora H tomaram um pau porque não contaram o que eram, confundiram o
gato com lebre e ó [junta o dedo polegar com o dedo do meio e bate repetidamente com o
indicador. Sinal que indica agressão]”. Aqui, a passabilidade adquire um caráter duplo de
causa-consequência. Ao mesmo tempo que “esconderia” a identidade de gênero da mulher
travesti-transexual, ela produziria este tipo de conflito caso esta mesma mulher tenha
interesses mais profundos no homem cisgênero heterossexual. Dessa maneira, essa espécie
de “trama da confissão” transforma corpos desviantes e desejados no mercado do sexo em
corpos perigosos no mercado do afeto.
A ideia de confissão nos leva para veredas foucautianas. A confissão parte de uma
identidade, em alguma medida, secreta e que deve ser revelada. Nos casos que acompanhei,
a necessidade da revelação da identidade é obrigação sempre das mulheres e nunca dos
homens. A revelação da identidade travesti-transexual produz verdades sobre o corpo dessas
mulheres e modifica em grau a relação que elas tiveram com estes homens. Por conseguinte,
a confissão fica a cargo destas mulheres justamente pela potência de abjeção que seus corpos
representam no contexto da relação. Como nos mostra Foucault (2006), a confissão tem a
mesma qualidade de um tribunal de acusação ou uma inquisição, evidentemente, neste caso,
atualizada, e remontada numa escala menorizada e pontual da relação, pelo rito ocidental de
produção de verdade (Foucault 68:2006) no qual, mais uma vez, sexo e sexualidade são
17
(Ver Butler 2003, McClintock 2010)
18
Luisa Marilac ficou conhecida na internet por um vídeo no qual ela aparece de biquíni, com os mamilos
escapando pelas laterais da peça, bebendo numa taça de champanhe dentro de uma piscina numa cobertura de
um prédio na Itália. Ela diz “E teve boatos de que eu estava na pior. Se isto é estar na pior, porra, o que quer
dizer tá bem, né? ”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=HKIrZs2FfwY (último acesso Janeiro
de 2017)
33
protagonistas do caráter coercitivo da confissão. Podemos, portanto, nos perguntar: por que e
quem é o sujeito que confessa e por que a “verdade” aparece pelo caráter da confissão?
Quem é a instância que requer confissão? Na cena narrada acima, os imperativos na
produção de verdade da confissão são prerrogativas do homem cisgênero heterossexual. Na
porta da casa de Donatela, Alexandre aguarda o momento do beijo e ela, a melhor
oportunidade para se confessar. A troca de informação que sucede é necessariamente um
turning point da relação, um momento crítico que pode servir para o bem ou para o mal: é da
mulher travesti-transexual a necessidade de confissão e do homem cisgênero heterossexual o
poder de transformar a relação. Isto é, cabe a ele dar a resposta igualmente nos termos da
confissão. Punir, rejeitar, vigiar, consolar, aceitar e /ou redimir a mulher que confessa. Cenas
como essa se repetem todas as vezes que minhas interlocutoras conhecem um homem fora
do contexto da prostituição. São Evas que repetem e revivem o pecado original dia-a-dia ao
revelarem seu fruto proibido-abjeto. É um constante sair do armário19. “O que ela [a
confissão] supõe como segredo não está ligado ao alto preço do que tem a dizer, nem ao
pequeno número dos que dele merecem beneficiar-se, mas à sua obscura familiaridade e à
sua abjeção geral” (Foucault 2006: 76).
Donatela entra em casa sozinha. Para ela, poderia ser mais um caso em que um
homem interessante desaparece depois de ela dizer “sou travesti”, entretanto, ambos haviam
trocado números de telefone e ainda havia a possibilidade de que ele ligasse.
E ele ligou.
Nesse trecho, Donatela expressa um ponto importante que se repete nas minhas
entrevistas: a impressão de que todos os homens cisgêneros heterossexuais têm de que toda
travesti ou mulher transexual possui interesses sexuais por todos eles. As queixas partem da
19
Sedgwick (1998) afirma que o ato de sair do armário sempre carrega inexoravelmente a dimensão do cálculo
de benefícios e riscos. Ademais, aparece como algo que se repete diante de uma nova situação ou perante
outros sujeitos.
34
frequência em que são associadas ao mercado do sexo, mesmo pertencendo a ele. Isto é,
reclamam não da associação por si mesma, mas da associação como automática e necessária,
assim, descaracterizando-as e impessoalizando-as num mesmo lugar marginal e
estigmatizado que não dá conta das idiossincrasias de cada uma (Goffman 1988) (Gaspar
1985).
35
Alexandre deixou Manuela no bar e levou Donatela imediatamente para o lugar onde
ela morava. O cenário era entristecedor. A casa inteira havia sido destruída, cômodos,
roupas, dinheiro, etc. Nessa paisagem desesperadora, Donatela encontra sua maleta de
maquiagem intacta.
Depois do incêndio, Donatela pegou as roupas doadas por Alexandre e foi morar um
tempo com um amigo taxista. Durante o primeiro mês na nova casa só usou roupas
masculinas. Ela não podia gastar com roupas para o dia-a-dia, só para trabalho. Afinal, ela
foi para a Itália para pagar uma dívida e, portanto, precisava continuar juntando dinheiro. Ela
me diz “Mona, foi muito engraçado, porque eu tinha que pagar uma dívida, né. Eu fui pra
Itália com uma dívida. Eu tinha que pagar uma dívida e não sobrava dinheiro para pagar a
dívida pra mim. Eu fiquei quase um mês usando a roupa dele e era dele”. Se o fato de
Alexandre ter dado suas roupas para Donatela num momento em que ela muito precisou fez
surgir um nível maior de afeto, o mês que se seguiria consolidou ainda mais esse sentimento.
Para Donatela, tudo era
(...) muito estranho, eu travesti voltar a vestir roupa de homem. Foi muito
estranho. Mas foi muito legal porque ele me confortou. Foi menos difícil
porque ele me confortou muito. Era quase humilhante, mas ele deixava tão
natural aquilo.
20
Muito felizmente, Donatela não perdeu seu passaporte. Todas as suas colegas não tiverem a mesma sorte. Ela
me explica que para tirar outro passaporte lá na Itália, sendo travesti, era um processo complicado, quando
possível. A grande maioria destas mulheres tiveram que fazer um laissez-passer e voltar para o Brasil, pois não
tinham a quem confiar para mandarem do Brasil documentos que comprovassem suas identidades.
36
Na primeira noite do bar Donatela teve um pequeno interesse por Alexandre, mas
depois de toda aquela demonstração de cuidado e sensibilidade num momento de grande
delicadeza, Donatela foi se apaixonando e o vínculo dos dois fortaleceu ainda mais. É
curioso perceber como a relação e a consolidação de Donatela e Alexandre não aparece
como os clássicos relatos de paixão. Isto é, sentimento intenso e efêmero que é dotado de
grande irracionalidade, imanência e efervescência21. De novembro a fevereiro, ela manteve
contatos semanais com Alexandre neste mesmo bar brasileiro. Ambos seguiam
rotineiramente o campeonato italiano de futebol. Donatela chegou inclusive a conhecer, se
tornar amiga e ver o fim do namoro de Alexandre com Manuela, uma mulher cisgênero
italiana. No dia catorze de fevereiro de 2005, dia de São Valentino na Itália, como sou
lembrado diversas vezes por ela, Donatela e Alexandre fazem o inevitável e transam. “Ele
não tinha mais namorada (...). Os dois bêbados. Eu não tinha ninguém mesmo, não tinha
família, imagina namorado? E ele sozinho. Bebemos à beça, aí na hora de me levar pra
casa...”. Era o início de “um amor tão grande”. Um relacionamento que duraria quatro anos.
Não avisei nem nada, não dei satisfação. Eu estava com meu aluguel pago.
Quando eu cheguei na casa dela, ela colocou outra pessoa no meu lugar. Eu
falei “Como você colocou outra pessoa no meu lugar se meu aluguel tá
pago? Não estou te devendo nada. Minhas coisas estão aí e eu vou voltar. Aí
ela falou pra eu ficar até arrumar outra coisa. No outro dia, ela falou assim
21
ver Velho 2006
37
pra mim. Eu acordei falei “Bom dia” e ela estava tomando banho na
banheira, ela pegou aquele chuveirinho e molhou o banheiro inteiro e falou
“Bom dia não. Está aí o banheiro para você lavar. Você ficou dez dias
longe, suas obrigações de casa você não fez”. Bicha, eu arrumei uma
confusão. Quebrei cadeira, joguei cadeira na parede. Peguei essas cadeiras
de madeira e joguei na parede. Todo mundo dormindo. Eu tenho mania de
acordar cedo. Todo mundo dormindo, quebrei a cozinha toda. Juntei minhas
coisas e fui pra rua. No dia seguinte a polícia bateu e prendeu todo mundo.
Porque o dono era egípcio e é contra homossexual, descobriu quem morava
lá, ligou pra polícia e falou que foi enganado e que tinha pessoas
desconhecidas morando na casa dele. No dia seguinte a polícia bateu lá e
levou todo mundo. Olha que coisa? Não foi nem porque eu quebrei nada.
Foi porque o dono já estava tramando pra fazer isso.
Depois de seis meses (de namoro), era um amor tão grande. Ele estava se
formando em literatura internacional. Bicha intelectual, libriano, né.
Imagina um libriano... O que você tem a dizer de libra?
É verdade, quer sempre agradar. Ele foi maravilhoso pra mim. (...) Eu
lembro que eu trabalhava de seis da noite até meia noite ou onze horas, daí
ele vinha me buscar. Daí a gente ficava, ele tinha prova no outro dia, a gente
ficava dentro do carro. Ele tinha uma Peugeot 206 e a gente ficava
estudando. Então eu aprendi o italiano com ele. Eu estudava, eu lia, eu
perguntava. Eu estudava com ele pra faculdade. Assim ele passou da
faculdade. Assim que ele passou da faculdade e que ele pegou a láurea
(diploma), ele ficou tão grato a mim que ele pegou uma casa pra mim no
nome dele. Ele alugou uma casa pra mim no nome dele. Foi o melhor tempo
da minha vida, foi quando eu vivi apaixonada. Eu vivi pra ele.
38
Cheguei a indagar se Donatela havia sido apresentada para a família de Alexandre e
por que ela ficou escondida no carro. Donatela me conta que só foi apresentada para a
família depois de muito tempo de namoro e os pais do italiano não reagiram muito bem com
a confissão. Isto é, não aprovaram a relação, mas também não a impediram. Mas a
desaprovação não coercitiva constrangeu o suficiente Alexandre para impedir que ele
recebesse Donatela na casa em que morava com os pais. Desse modo, mesmo que o namoro
tenha durado quatro anos, Donatela nunca conseguiu manter uma relação estreita com a
família de Alexandre.
Ana, quando conheceu Romário, já estava com Pedro, que foi um de seus primeiros
clientes. “Maricona carente” que é, logo caiu nos encantos de Ana. “Maricona assim carente
e sozinha na minha mão tá fodida. Eu faço apaixonar mesmo”. Ela conheceu Romário, como
cliente, na mesma época., um pouco depois.
39
O Romário, conheci ele no comecinho, sabe? Ele foi fazer programa comigo
e ele tinha uma mulher. Um relacionamento de sete anos. Aí, o que
acontece. Ele veio fazer programa comigo em Janeiro, logo quando comecei
a me prostituir. Aí, em Janeiro, fizemos só um programa. Nosso programa
de sexo foi só uns cinco minutos e o resto foi tudo conversa. Eu até deixei
passar a hora sem cobrar nada porque foi um cara super legal. Rolou uma
química babado. Um cara super oposto de mim, ele é um nerd pacato.
Professor de matemática. Ele está se formando agora em Engenharia Civil.
Na forma como Ana fala, é possível perceber o quanto ela valoriza o fato do tempo
de sexo ter sido reduzido em detrimento do tempo conversando. “Uma química babado”, que
resultou no início de um namoro em abril de 2014. É bastante recorrente entre minhas
interlocutoras a valorização de clientes que têm um “bom papo” e preferem gastar o tempo
do programa conversando ao invés de transando.
De janeiro a abril, período em que Ana saía com Pedro e Romário simultaneamente,
ela quase não se prostituiu. Pedro, havia pedido que Ana largasse essa vida sob o argumento
de que ela “não tinha nascido para isso” e merecia “coisa melhor”. Visando oferecer uma
fonte financeira perene para sua amada, Pedro dá para ela um cartão de crédito que ela
poderia usar da maneira que quisesse, além de prometer-lhe pagar pela cirurgia de implante
de silicone que ela tanto sonhava. Ana tinha retirado seus anúncios de sites de acompanhante
e “fazia” um cliente ou outro às escondidas, por indicações de amigas, ou clientes repetidos
que tinham seu número. Neste tempo em que quase não trabalhou, o seu relacionamento com
Romário foi se intensificando. “Ele era quase meu marido, sabe? Dormia lá em casa todo
dia”.
Finalmente em abril, Romário termina com a namorada e pede Ana em namoro. Fato
que Ana não só aceita, mas publiciza imediatamente em seu Facebook, deixando Romário
numa situação complicada. Ele configura sua privacidade da rede social e autoriza apenas
amigos mais próximos, sua irmã e amigos da Ana para verem e curtirem a alteração do status
do relacionamento na rede social. No que diz respeito a Pedro, Ana não havia se preocupado
muito, pois “ele é velho e não tem face”.
40
Paulo. Apesar da empolgação de finalmente poder colocar a prótese de silicone com que
tanto sonhou, contar para Romário que um cliente havia desembolsado um valor tão alto
para um investimento em seu corpo seria difícil. “Eu cheguei pro meu namorado e falei
assim” [Ana faz uma pequena pausa e respira profundamente simulando como contou para
seu namorado] “‘Romário, um cliente meu quer me dar o peito de presente, e aí?’. Aí ele foi,
fechou a cara, ficou puto e perguntou ‘esse cara está querendo te dar o peito por quê?
Ninguém dá nada assim pros outros não!’”. Numa tentativa de recuperar o bom humor de
Romário, Ana começa a situar para o namorado o que o cliente significa para ela. “Ele é meu
cliente de tempo, coroa”, “ele me dá nojo”, “ele quer me dar, ele gosta de mim, ele sabe que
é meu sonho”. Na conversa com Romário, Ana desloca-se com cuidado pelas palavras como
quem caminha na corda bamba. Ela sabe que deve despertar ciúmes na medida certa, pois
assim, aciona a honra masculina de Romário e pode conseguir que ele mesmo pague a
cirurgia de implante de silicone. Entretanto, não pode exagerar, pois assim Romário poderia
obrigá-la a sair da prostituição e, assim, perderia sua autonomia, caso quisesse continuar o
relacionamento. Então, Ana joga com valores, enfatiza que o cliente é freguês fixo,
positivando o fato de que Pedro gosta e cuida dela, afinal dar a cirurgia de implante de
silicone é uma forma de cuidado. Mas, antes de tudo, ele é coroa e desperta nojo. “Então
tá!”, disse Romário decidido “eu mesmo vou pagar seus peitos”. Mal sabia Romário que Ana
já estava com o dinheiro de Pedro. Ela responde para o namorado:
Eu falei “não precisa pagar, deixa que ele pague”, porque o dinheiro, na
verdade, já tava comigo. “Deixa que eu vou pegar o dinheiro com ele”. O
que eu pensei... Eu não vou usar o dinheiro do meu namorado, porque eu
gasto depois, sabe? Vou usar logo o do cliente, porque eu não sei quando
ele vai embora. Se ele for embora depois, o dinheiro já está aqui. O Romário
eu sei que vai ficar.
41
2.2: CUIDADO E CONTROLE: AS NEGOCIAÇÕES DE ROTINA
“Eu entendo por esse lado. É uma coisa muito difícil alguém que compreenda o
mundo da prostituição. Nem quem vive perto. Meu namorado viveu, o Alexandre viveu isso
por quatro anos e ele nunca conseguiu compreender”. O trecho que selecionei para compor a
Introdução desta dissertação me foi dito por Donatela em uma de nossas conversas,
revelando, finalmente, a necessidade de pôr em evidência as dinâmicas afetivas das relações
de mulheres prostituitas trans-travestis com homens heterossexuais cisgêneros. A fala de
Donatela vai ao encontro das diferentes concepções de sexo, amor e intimidade dos dois
sujeitos da relação: aquela que se prostitui e aquele que não se prostitui. Dessa maneira, a
incessante negociação de fronteiras simbólicas e corporais é um locus agonístico na malha
do dia-a-dia do casal. Tal sentimento de incompreensão aparece como tônica trivial entre
sujeitos que participam do mercado do sexo. Maria Elvira Díaz-Benítez no seu livro “Nas
redes do sexo” (2011), que traz os bastidores da indústria pornográfica brasileira, nos mostra
que é comum entre atores e atrizes pornô “namorar alguém do circuito”, pois é “um meio
mais viável para a formação de um casal por conta da afinidade nas visões de mundo, nas
rotinas de trabalho, nos hábitos e nas expectativas de vida” (Diaz-Benítez 211: 2011). A
autora argumenta que:
No meu campo, as discussões que os casais travaram caminharam por veredas muito
semelhantes às reclamações que as interlocutoras e interlocutores de Díaz-Benítez fizeram.
Quando questionadas por mim se os namorados eram ciumentos ou aceitavam o trabalho de
prostituta, a resposta era geralmente “aceitavam, mas...” e o que se seguia eram as diferentes
condições e concessões que os namorados estabeleciam para o reencontro do casal.
Donatela era proibida por Alexandre de sentar-se na cama com a roupa de trabalho.
“Ele me buscava todos os dias meia noite ou uma hora da manhã e não me beijava. Eu tinha
42
que chegar em casa, escovar os dentes, tomar banho. Eu tinha que botar uma roupa limpa.
Não podia sentar suja na cama”. Já Romário preferia encontrar Ana depois que houvessem
transcorridas várias horas depois do fim de sua jornada de trabalho. Ele pedia que ela
trabalhasse no período da manhã para poder vê-la a noite como se o tempo de não-trabalho
ou de ócio realizasse nela uma espécie de purificação vitoriana. Além do mais, quando os
dois estivessem juntos, ela não poderia atender o celular em sua frente e nem falar sobre seu
trabalho quando ele não perguntava. Caso Romário perguntasse, era devido a algum fundo
de desconfiança e curiosidade e então “era uma perguntação sem fim. Trabalhou hoje? Sim.
De tarde? Eu falava de manhã. Quantos Clientes? Poucos. Era feio? Eu falava que era feio e
velho. Repetido? Eu falava que não. Beijou na boca? Não. Chupou sem camisinha? Não.
Tinha que falar isso tudo pra ele, tadinho”.
Paula teve apenas um namoro, de curta duração. Assim como Donatela, não o
conheceu fazendo programa. O namoro acabou, justamente, porque Paula não aceitou se
submeter às restrições excessivas do seu então namorado. O rapaz que “apenas tolerava” a
profissão de Paula e trazia condições para relação muito parecidas com as de Romário. Ela
diz:
Por exemplo, no dia que a gente ia se encontrar, ele queria que eu não
tivesse trabalhado. Sabe? Às vezes, tem dia que ninguém liga pra gente e
quando liga, a gente tem que aproveitar. Ele ia lá pra casa no final de
semana e eu falava "se me ligarem, me deixa sair. Até porque é atendimento
de uma hora, é rápido e eu volto, entendeu? E eu preciso muito do
dinheiro”. Ele não deixava. Queria me ver sempre quando eu estava
trabalhando e eu deixava de trabalhar por causa disso. Foram cinco meses
de namoro.
43
Romário sabiam, antes de iniciar suas relações com Donatela e Ana, que elas trabalhavam
como prostitutas. Logo, ambas as mulheres conseguiram pleitear seus trabalhos como
garotas de programa já no início da relação. Perguntada, após o meu espanto, sobre o
processo de convencimento de Romário a embarcar neste modelo de conjugalidade, Ana me
responde com certa tranquilidade “exigia sim, sempre [a monogamia sexual e afetiva]. Até
porque ele era meu namorado, né? E eu sou mega agressiva. Geminiana com ascendente em
câncer... Eu era doida naquele homem”. A não-equidade que os casais estabeleciam para si
em relação ao comportamento sexual do homem versus o da mulher era a ponte fundamental
de embate e negociações dos pares. É importante salientar que a tolerância à profissão de
prostituta das duas mulheres não é um investimento único e primeiro no início da relação.
Mas, com efeito, um processo no qual se joga com realidades ficcionais no intuito de não
frustrar os companheiros, e, assim, construir um processo de aceitação mais sólido. A gestão
de informação de Ana com Romário deixa este ponto bem explícito.
Anne McClintock no seu belo trabalho “Couro Imperial” (2010), analisa no capítulo
“Raça, travestismo e o culto da domesticidade” os diários escritos por Hannah Cullwick,
uma criada e Arthur Munby, um advogado. Do mesmo modo que acontece com minhas
interlocutoras, o relacionamento dos dois foi mantido em segredo durante todo o tempo em
que ficaram juntos, dezenove anos. O círculo vitoriano do século XIX que conviveu com
Cullwick e Munby acreditava que eles se relacionavam apenas como patrão e empregada.
Entretanto, a verdade é que viviam um tórrido amor subterrâneo. Ambos gostavam de
realizar jogos de fetiche ao redor dos marcadores de classe, raça e gênero. Cullwick por
vezes se vestia de dama, camponesa, escrava (usava uma pulseira de couro que sinalizava
seu pertencimento simbólico a Munby, o couro imperial), de homem, de negra etc. em busca
de explorar as possibilidades e prazeres ao lado de seu companheiro. Evitou durante muitos
anos se casar com Munby, pois gostava da liberdade de poder tomar as próprias decisões
(tendo em vista que o contrato de casamento a submeteria a Munby formalmente) e ganhar o
próprio dinheiro com o trabalho (uma vez que cobrava até mesmo de seu parceiro pelos
serviços doméstico que prestava). Ao contrário das damas de seu tempo, ela não enxergava o
trabalho como algo que deveria se sentir envergonhada e ocultar, mas o extremo oposto. Ela
se sentia à vontade em expor a sujeira e o suor do seu corpo calejado da labuta desafiando,
assim, a separação entre público e privado da modernidade que se desenhava na Inglaterra
deste período (McClintock 1995). Tendo em vista o caso narrado por McClintock, atualizo
44
sua pergunta central para o nosso assunto em questão: que tipo de relação é possível em
situações de desigualdade social extrema?22 Ademais, pensando num contexto onde há uma
moral imperiosa da monogamia afetiva e das restrições de prazer sexual no âmbito do casal,
vale perguntar: como recai a prostituição na trama do dia-a-dia de cada uma das partes da
relação?
Avtar Brah tenta pensar a diferença como uma categoria plural na crença de que
tratar um grande espectro de casos como apenas “diferença” reduz a possibilidade de
capturar a multiplicidade de experiências que são sentidas e exercidas na vida de um grupo
analisado. Dessa maneira a autora divide diferença em quatro categorias: diferença como
experiência, diferença como relação social, diferença como subjetividade e diferença como
identidade (Brah: 2006). Me inspiro no modelo de diferença da autora para aproximar
daquilo que ela afasta: diferença não é sinônimo de desigualdade. Para mim, quando
pensamos em desigualdade é igualmente salutar a marcação da heterogeneidade que este
conceito pode assumir nas diversas experiências dispostas, assim como diferença para Brah.
Desse modo, para entender a natureza da desigualdade entre Ana, Donatela, Alexandre e
Romário trago: desigualdade de experiências, desigualdade de identidades, desigualdade de
relações sociais, desigualdade de subjetividades e, também, desigualdade de projetos e
desigualdade de possibilidades. Toda juntas compõem a atualização da pergunta de
McClintock para efeito retórico.
22
A pergunta original “Que tipo de atuação é possível em situações de desigualdade social extrema?” (2010:
211) também é possível. Optei por deslocar “atuação” para “relação”, pois acredito que a discussão que
acompanha a palavra relação passa também pelas categorias de subordinação e relação de gênero além de abrir
portas para discutir família com mais força.
45
Já entre as mulheres cisgêneros apresentadas na obra de José Miguel Nieto Olivar
(2013), os maridos necessariamente compunham o universo da esposa puta. A figura do
gigolô ou do marido-cafetão não apareceu em nenhum momento nas entrevistas que fiz.
Assim, o ponto chave para entendermos a composição dessas relações se revela na mulher
trans-travestis e prostituta de classe popular (com exceção de Paula) e o homem de classe
média autônomo ligados por uma ideia de amor-romântico em benefício de uma vida
conjugal a dois. Há, em casos bem pontuais, vezes em que as mulheres dão dinheiros para
seus namorados. Entretanto, situações como essas são isoladas do contexto geral onde os
homens desejam fortemente que suas namoradas abandonem a prostituição e elas se
recusam, ou fingem que aceitam, objetivando a conservação de suas autonomias financeiras
(o que configura outra aproximação com Hannah Cullwick).
23
Poderia a leitora ou o leitor argumentar que a separação da monogamia em duas modalidades, sexual e
afetiva, nos traria um modelo cartesiano de corpo e alma no qual o primeiro seja templo dos prazeres e o
segundo, dos afetos. Vale lembrar que, nos casos que me foram confiados por Ana e Donatela, no que
concerne aos “grandes amores”, era aos homens imposta a restrição da monogamia sexual e às mulheres, do
prazer no trabalho. Isto é, o prazer da mulher, que poderíamos pensar como gozo corporal, é exclusivo de seu
parceiro, redesenhando, por sua vez, os limites de corpo e alma no que diz respeito às afetividades e aos
prazeres.
24
Junção das palavras “namorado” com “marido”.
46
fora da formalidade do contrato de casamento, como casamento e, mais importante, como
família. Formas muito semelhantes de se pensar família e casamento aparecem também nas
pesquisas de Gilberto Velho que tratam de relações entre membros da classe média carioca
(Velho 2002, 2009, 1998) nos aproximando, novamente, da ideia de individualismo, assim
como da casa como âmbito privado.
Pra uma pessoa pedir pra você tomar um banho “vai se lavar”. Eu era
obrigada. Mas enquanto eu estava me lavando, ele estava preparando meu
lanche antes de dormir. Tá entendendo? Era uma pessoa que me obrigava a
tomar um banho, mas se preocupava de ir lá na cozinha preparar um lanche.
Ele adorava fazer sanduíche e preparava sanduíches de todas as formas. Ele
fazia um lanche pra mim. Ele não gostava que eu comesse na rua. Quando
eu falava “vem me buscar no Polinario” que é onde vende lanche, tipo um
foodtruck, ele não gostava porque ele sabia que eu não iria comer em casa.
É complexo.
Se Donatela quisesse provocar Alexandre por algum motivo, ela sentava na cama dos
dois. Sentar na cama “suja”, nos termos mais basilares de pureza e perigo (Douglas 1991),
era um dos maiores atos transgressores que ela poderia fazer. Seu corpo sujo era público e
poderia poluir toda a qualidade do privado no espaço mais íntimo do casal, a cama na qual se
entregam um para o outro, trocam amores e substâncias, descansam e, assim, configurando-
se no templo sagrado do par. No entendimento de Alexandre, este corpo deve imediatamente
se limpar para tirar tudo aquilo que não pertence a Donatela nem a ele. Isto é, todo caráter
público, todo resquício de outros homens, de outros corpos, de outros prazeres, de outros
sofrimentos.
47
intimidades que tramam estes relacionamentos. Olivar nos mostra em “Devir Puta” (2013)
como programa não é sexo para suas interlocutoras. Isto é, o sexo diz respeito a uma entrega
que não é dada no programa (Olivar 2013). Entre minhas interlocutoras, por mais que o
“nojo”, a apatia e o automático tenham surgido em diversas ocasiões quando se tratava do
sexo comercial, ouvi diversas vezes o termo “fazer um vício”, que quer dizer se relacionar
com um cliente que é “bofe odara”, “boy magia”, “cliente que vira crush”, um homem muito
bonito que dispensaria a relação intermediada pela troca de dinheiro. Como vimos no
primeiro capítulo - e aqui se diferencia profundamente das interlocutoras de Olivar, o qual
narra o fazer-se puta como expressão concomitante a fazer-se esposa - Ana, Alice, Donatela
e Paula entenderam em algum momento de suas vidas que não havia outra alternativa a não
ser, “ser puta”, pois é este o “lugar de travesti”. Desse modo, a experiência da prostituição
antecede necessariamente a possibilidade difusa e imprevisível de se tornarem esposas de um
homem.
48
diversos momentos, prazer para elas é muito mais sutil. Donatela revelou-me que se sentia
“assexuada”. Ela diz que “se aparecer um bofe aqui e oferecer uma bebida, eu vou preferir
estar conversando com você. Eu não tenho mais esse apetite sexual, no caso [sexo] hoje é
trabalho”. Num outro momento, uma de nossas entrevistas fora interrompida por um homem
que Donatela apresentou como “este aqui é o carequinha25 que me acompanha vendo
Netflix26”. Já Romário é “minha companhia para ver Game of Thrones27” diz Ana. Mais uma
vez temos sexo e prazer sexual como protagonistas das discussões e criações de sujeitos
morais (Foucault 2003) para o par. Enquanto o locus agonístico do cotidiano dos homens é o
controle de sexo e prazer que suas namoradas podem eventualmente ter no trabalho, para
elas prazer, por tantas vezes, é a expressão da intimidade mais prosaica no olhar, como ver
séries televisivas.
Outro ponto interessante que podemos notar nas dobras do cuidado-controle, são as
formas que os papeis sexuais assumem nas tramas destas dinâmicas. Como vimos
anteriormente com Ana, a quantidade de informação que se revela para o namorado é de
suma importância para o sucesso da manutenção do trabalho como prostituta e do
relacionamento com Romário. Logo, qualquer posição de subalterna que Ana possa ter em
determinados momentos da relação (mesmo em face de sua “agressividade” geminiana em
exigir exclusividade sexual), não suprime sua capacidade de agência. Ademais, este é o lugar
que Ana prefere estar na relação. Quando ela manipula as informações trazendo o marcador
social da velhice para negativizar a experiência com Pedro, ela também positiva o cliente ao
25
Donatela não namora atualmente este homem. Embora ele tenha a pedido em namoro em diferentes
oportunidades, ela, que nutre um grande carinho por ele e o encontra regularmente, não quer uma relação, pois
não está apaixonada.
26
Netflix é uma empresa que funciona como TV por demanda. Em outro momento ela me disse “o que eu
procuro de um namorado.... É alguém para ver Netflix”.
27
Famigerada série televisiva de fantasia baseada num livro best-seller de George R. R. Marin
49
colocá-lo como cuidador. Dessa maneira, aciona um lugar masculino na figura do cuidador
no intuito de despertar este mesmo lugar masculino em Romário. Ana o faz numa dupla
intenção que se complementam: a de fazer com que seu parceiro tome uma atitude mais
coerciva, demonstrando ciúmes, e que ele pague a cirurgia estética. Dessa forma, o Romário
ciumento toma Ana como um território de reivindicação, pois oferece financiar a prótese de
silicone da companheira ao mesmo tempo em que ganha o direito de promover alguma
sanção em relação a Pedro. Ana conquista a sensação de se sentir parte de uma relação onde
ela é realmente amada, sentimento que ela lê pela demonstração de ciúmes, e também,
consegue o dinheiro tanto do cliente quanto do quase-marido.
28
Muitas autoras feministas defendem que a ideia de que patriarcado cria um inimigo indiviso e abstrato. Além
de dificultar a criação de medidas claras de combate, reduz a possibilidade de compreender a maneira, digamos,
rizomática, que este conceito tem de atuar ao achatar as miríades de experiências de opressão masculina num
marcador só. Quando não discutem propriamente com a ideia de patriarcado, nos mostram as diversas
identidades e possibilidades que “ser mulher” possui em diferentes contextos e culturas. (ver Butler 2006,
Mahmood 2012, Piscitelli 2002, Brah 2006, hook 1990, Davis 2005)
50
Pedro a fim de estar numa trama onde seu parceiro se posicionaria de maneira possessiva.
Na cena que segue o fim da sessão anterior, Romário obriga Ana a destruir o cartão de
crédito que o cliente tinha dado e a proíbe de encontrá-lo novamente. Ana quebra o cartão
desgostosa, mas neste lugar de submissão, se sente mulher, amada e pertencida por alguém
que a valoriza. Já Romário, sente que mesmo que sua namorada transe com outros homens,
ele ainda exerce algum controle sobre ela.
29
Boate carioca localizada na Sacadura Cabral voltada ao público LGBT.
51
assim como o estigma da prostituta, energias fantasmagóricas que ameaçam perenemente a
relação. A família e os amigos ameaçam pelas suas proximidades afetivas e, a sociedade,
pela sua qualidade amorfa, mas normativa e, decerto, imprevisível
Na convivência com Alexandre, Donatela parou aos poucos de se drogar. Por vezes
no mundo da prostituição, ela me conta, é necessário o consumo de drogas sendo que
cocaína é a principal delas. Diversos homens contratam os serviços de garotas de programa,
não pelas atividades sexuais, mas pela companhia no uso de substâncias entorpecentes
“ninguém gosta de cheirar sozinho”, ela diz. O processo de desintoxicação de Donatela
aconteceu paralelamente à intoxicação de Alexandre.
52
horas da manhã. Por esta razão, Donatela acordava às seis, preparava o café da manhã para
ele e, depois que ele saia, dormia novamente. Às oito horas o celular de Donatela despertava,
ela ligava a televisão e tomava café da manhã assistindo ao programa até o fim. Ela me diz
que “era tão feliz (...) bem coisa de mulher mesmo. Eu assistia a ele de oito até meio dia.
Uma paixão, mona”. Neste período, Donatela e Alexandre tinham acabado de se mudar de
casa para morar num bairro recém planejado e mais afastado de Roma. Com o alto fluxo de
clientes de Donatela, o início da vida na nova casa e o novo trabalho na televisão, Alexandre
pediu para que ela parasse de se prostituir em prol de uma vida nova, o que ela fez
prontamente. Como o casal havia se conhecido num contexto em que a amizade despertou
antes do real interesse de estabelecerem uma relação duradoura, Alexandre sabia muitas
informações da vida profissional de uma prostituta. Este fato, na verdade, é causa de grande
dor para Donatela, pois ela acredita que isso a torna responsável por todo sofrimento que
Alexandre passou a acumular ao longo do namoro: “eu contava a minha intimidade como
amigo. Isso foi ruim para ele”.
Só que esse entorno, você imagina. Não é igual aqui que é um pé de chinelo
[os bares das áreas de prostituição]. Eram barzinhos clean que nem esse
aqui que a gente tá, mas não longe de um ponto de prostituição. O que dá
nesse lugar? Cliente, traficante, né? Vai rolar isso. Ele começou a conhecer
muita gente desse naipe. Ele começou a se envolver com o povo da noite.
Foi quando ele começou a usar drogas. [grifos meus]
A ameaça do “povo da noite” (que ela chama também de “gente errada” em outro
momento) foi percebida por Donatela pela maneira como Alexandre passou a agir. Ele
começou a se atrasar para buscá-la, fato este que foi logo notado. Não tardou que ela
53
percebesse que ele, além de atrasado, estava colocado30. Ela narra que “ele começou a usar
drogas e eu já sabia. Eu percebia, tinha acabado de me desintoxicar por exigência dele. Por
exigência dele”. Conforme o uso de drogas foi se intensificando, se acentuaram também as
discussões entre o casal. Assim como Alexandre exigiu que Donatela parasse de se drogar,
ela fez o mesmo.
Eu brigando com ele, eu não fui compreensiva. Eu não tentei ajudar ele da
maneira fácil, eu tentei pela forma que me ensinaram: eu impus a ele, eu
fui muito agressiva. Exigi que ele parasse de se drogar. Um dia eu falei
assim “você quer se drogar? Vai se drogar comigo, hoje”. Eu fui de cheirar
três, quatro dias direto. “Vamos no traficante agora”. Amiga, eu peguei 800
euros de cocaína. [grifos meus]
Donatela “sabia cheirar”. Com uma carreira de prostituta há mais de dez anos, ela
tinha aprendido a manipular a cocaína “como ninguém”. Sabia transformar até mesmo
cocaína de pouca qualidade em uma razoável. “Amacei, esquentei, deixei ela quente, deixei
ela virar uma pedra, esquentei ela de novo, moí ela de novo”. A alquimia dos oitocentos
euros de “padê” rendeu uma noite de dez horas. Donatela e Alexandre cheiraram das duas da
manhã até o meio dia. Ela me conta que “se é pra cheirar, pra mim não é listrinha assim, é
um dedo. Vai dar um dedo”. Quando a cocaína acabou, Donatela acendeu um baseado
(haxixe no caso, Donatela não fuma maconha) e foi dar para o parceiro a fim de “cortar a
onda”. Alexandre estava caído, ele teve uma overdose “mona, o bofe quase morreu”.
Imediatamente, Donatela agiu como aprendeu: arrastou Alexandre para o banheiro e jogou
água fria sobre o corpo do amado. Alexandre reagiu e foi dormir em seguida. No dia
seguinte, algo tinha mudado. O marido não era mais o mesmo.
30
Sob efeitos da cocaína.
54
Donatela no aeroporto, os dois se despediram e ela partiu para seu destino na esperança de
conseguir voltar com uma poupança mais abastada.
No jornal local, nos classificados, em 2008, você poderia encontrar “Lolita, 19 anos.
Massagem Naturale”.
Donatela me conta que no Brasil, nos classificados, “chupar sem guanto” pode
aparecer como “Massagem com finalização” também. Como ela previra, uma semana na ilha
lhe rendeu bons resultados. Donatela voltou para Roma com cerca de dez mil euros na conta
bancária. Como de costume, ela chegou de viagem e foi direto para o banco. Sua intenção
era depositar dez mil euros por mês em sua poupança pessoal para que no fim do ano viesse
a juntar 120 mil euros. Depositou o limite diário no caixa automático de três mil e ficou com
o restante. Chegando em casa
Bicha... (...) tinha uma varanda do lado de fora [do prédio]. O prédio do lado
sabia quem entrava no seu apartamento. Botei minha chave, minha chave
não abria. Ai eu “Gente, que isso. A porta está emperrada?” Aí comecei a
forçar pra tentar abrir e nada. E tentando ligar pra ele pra dizer que a porta
estava emperrada. A vizinha da porta do lado chegou pra mim, ela me
adorava, sapatão. Ela me adorava fazia bolo, fazia comida, fofoqueira
minha filha! Sabia da vida de todo mundo. Ela abriu a porta e falou assim
“Donatela, sinto muito, mas eu vi ele trocando a fechadura”. Bicha, eu virei
um demônio. Eu falei pra ela e disse “Me desculpa, mas você vai conhecer
alguém que você nunca viu na vida”. Eu dava cada chute na porta, batia
com tudo. Quebrei a janela, quebrei tudo. Virei um demônio. Aí, quando eu
quebrei a janela eu vi o pé dele dentro do apartamento. Eu falei assim “abre
essa porta porque eu quero pegar pelo menos as minhas coisas”, ele não
abria. Eu estava tirando meu documento italiano esse ano. Eu estava
pagando INSS, estava com tudo. Falei assim “não vai abrir a porta? Eu vou
chamar a polícia”.
31
Mais um espectro de passabilidade surge neste trecho, a passabilidade etária (ver Capítulo 3 para mais
informações).
55
Donatela ligou para a polícia no intuito de causar tumulto. Alertou que tinha um
estranho na sua casa e que ele estava armado. “Um cutelo, me ajude um cutelo. [Donatela
simulou sons de respiração] e fingia que tava correndo”. Atuou prevendo que, desse modo, a
polícia chegaria mais rapidamente. Sua intenção não era de tomar a casa de volta, mas de
conseguir pegar todos os seus pertences como joias, roupas, perfumes, perucas e documentos
para então achar um lugar para ficar. Ela sabia que a polícia italiana não iria se sensibilizar
com uma prostituta, imigrante, brasileira e travesti, mas julgava que o tumulto seria uma
forma de acessar a casa novamente. “Até provar que o lugar não era dele eu já tinha pegado
minhas coisas”. O documento da casa estava em posse do pai de Alexandre. O sogro, que ela
diz ser organizado porque trabalhava no Ministério da Educação da Itália, sabia do
relacionamento dos dois e, por mais que não desse um apoio entusiasmado ao namoro,
tolerava a relação, contanto que ela se mantivesse em segredo para o restante da família.
Quando Alexandre percebeu que Donatela realmente estava ligando para a polícia, ele abriu
a porta.
Quando ele abriu a porta e me olhou, ele virou pra vizinha e disse assim “ta
vendo o tipo de pessoa que eu to lidando”. Minha vizinha virou e ia dar na
cara dele. Aí eu desliguei o telefone. Já tinha dado o endereço e tudo. Eu
tava fingindo que tava correndo, que tava sem fôlego e deliguei o telefone
quando minha vizinha ia dar nele. Segurei ela e botei ela no apartamento
dela. Bicha, a polícia chegou em cinco minutos com uma arma desse
tamanho, parecia uma escopeta. A polícia “cadê, cadê”. Bicha, ele tava com
outra travesti dentro do apartamento. A polícia entrou e falou “pega o que é
teu”. Só que bicha, não tinha mais nada meu, nada. Eu tinha três, quatro
malas. A minha caixa de joias sumiu, computador. Vendeu pra droga,
cheirou tudo (...)Até as peruca foram vendidas.
Donatela já não tinha mais quase nada além de suas roupas e alguns documentos. A
polícia disse para ela que só iria embora quando ela estivesse fora do prédio. E assim, ela
saiu. Na porta do prédio, Donatela estava sozinha com o que restou das suas coisas. A
vizinha do prédio do lado viu tudo. Morgana era uma cantora de música pop italiana que
fazia um razoável sucesso nos bares de Roma. Tinha uma filha, Luz, de doze anos de idade,
a qual criava sozinha. Aproximou-se de Donatela e ofereceu sua casa para que ela ficasse por
um tempo.
56
Morgana já acompanhava a história de Donatela da sacada de seu apartamento. Ela
também se prostituía para ajudar no sustento de Luz. Diferentemente de Donatela, ela era
viúva de um cantor também razoavelmente conhecido, mas, com a morte do marido,
Morgana perdeu toda a herança para a família do homem. Com a rápida identificação com a
história de Donatela, Morgana resolveu prestar imediata ajuda. “Mona, com três dias na casa
da amapoa, eu só sabia chorar. Ela ia me consolar e só chorava também”. A vizinha
Se “o povo da noite” é o entorno dos pontos de prostituição, Donatela entende que foi
justamente o seu trabalho e as consequências do convívio mais aproximado com ele, os
responsáveis pelo fim de seu relacionamento com Alexandre, e não a não-aprovação
“silenciosa” de seus pais. Oito meses depois do término, morando com a agora amiga,
Morgana, Donatela volta para o Brasil. Chegando aqui, compra uma casa para sua mãe em
São Gonçalo e um apartamento para si em Niterói.
57
de quem iria pagar a prótese, resolveu atualizar seu status do Facebook “ai, dorzinha chata
assistindo a um filme com esse frio de São Paulo”, postou em sua rede social. Uma das
amigas que compartilhava apartamento com Ana, vendo a mensagem pública de sua página
pessoal resolveu ligar para Pedro.
Ana me diz que sempre foi precavida. Sabendo da possibilidade de ser assaltada
numa cidade tão perigosa como o Rio de Janeiro costuma deixar anotado num caderno em
seu apartamento os números de todas as pessoas e clientes fixos para que, caso tenha o
celular furtado, possa avisar os membros de sua rede de relação que ela está incomunicável.
O intuito central é não perder o contato de clientes generosos e conseguir se manter fazendo
programa mesmo sem o telefone celular. A amiga “maliciosa” verifica no caderno o número
de Pedro com o propósito de revelar para o cliente que Ana não só estava em São Paulo
fazendo cirurgia com outro dinheiro que não o dele, mas como o dinheiro era de um
namorado. Pedro não sabia (e nem poderia saber) que Ana mantinha uma relação afetiva
com um outro homem. “A maricona era apaixonada por mim e não podia nem sonhar que eu
tava com o Romário”.
Aí uma amiga, não sei até hoje quem foi, ligou pro meu cliente e falou
assim “você já viu o Facebook da Ana? Vê o Facebook dela. Não olha só o
Facebook não, vê o Instagram também”. Mandou meu Facebook pra ele e
mandou o link. Ele foi e viu que eu namorava e estava com meu namorado
em São Paulo. Aí ele foi e me ligou chorando. Chorando muito, de soluçar.
Eu nem estava entendendo o que ele estava falando na ligação. “No Rio a
gente conversa”.
Ana havia ido para São Paulo numa quinta-feira à noite e sua cirurgia foi realizada na
sexta-feira de manhã. Para ser mais preciso, às cinco da manhã. Já no domingo, Ana volta
para o Rio de Janeiro ainda com o dreno da cirurgia e liga para Pedro. No telefonema, ela
esclarece que já tem Romário em sua vida há alguns anos. Ela mente o tempo de
relacionamento no intuito de dramatizar sua história e dar intensidade a sua relação com seu
amado. Ela diz para Pedro que ama Romário e que o sentimento é recíproco e que, assim
como ele, o namorado também a ajuda e se importa com o bem-estar dela.
58
“Ele [Romário] é muito apaixonado por mim também, sabe? Conhece
minha família, é padrinho da minha irmãzinha”. Inventei um monte de
coisa, né? Aí eu falei “o melhor que a gente tem pra fazer é você seguir sua
vida e eu seguir a minha, sabe? Eu gosto muito de você, eu não queria te
tirar da minha vida. Você é uma pessoa muito boa, um ser humano muito
bom e me faz muito bem. Mas se é isso que você quer, eu acho que essa
situação não dá pra você, então cada um segue sua vida sem ressentimento.
Obrigada por tudo. Ele ficou chorando, chorando e falou “Não, eu não
aceito essa situação”.
Para terminar com Pedro, Ana inventa, justamente, uma intimidade forte com a
família de Romário – fato este que mais uma vez chama nossa atenção para a centralidade
que a família possuí nas construções de alianças para estas mulheres. No que diz respeito ao
tempo que passou da cirurgia, que aconteceu em meados de 2015, até o início de dezembro,
Ana teve que esconder Pedro novamente de Romário. Ambos agora sabiam da existência um
do outro, mas para o namorado Ana havia terminado definitivamente com o cliente,
enquanto Pedro passou a aceitar a situação por estar apaixonado e preso nos encantamentos
de Ana. “Um belo dia”, em dezembro, Romário decide vasculhar o celular da namorada por
ciúmes a fim de encontrar alguma conversa que indicasse que Ana estava saindo com os
mesmos clientes ou de que Ana tivesse namorando mais alguém. O que ele encontrou foram
conversas, justamente, com Pedro. Romário ficou irado, obrigou Ana a jogar a maricona
definitivamente “para escanteio” e Ana, “louca apaixonada por esse homem”, o fez. Dia 25
de dezembro, Pedro liga para Ana e diz que ela foi a responsável pelo pior natal de sua vida
e alerta que ela havia destruído a data para ele.
Eu fiquei com o coração assim. O meu namorado viu que não era uma
relação de cliente, era um relacionamento. Por mais que fosse só na cabeça
de Pedro, era um relacionamento que eu fingia estar. Então pelo Romário eu
tive que terminar de vez com o meu cliente.
No dia 30 de dezembro de 2015, nas férias de fim de ano, Romário resolve levar Ana
para a praia da reserva na Barra da Tijuca. Praia discreta e esvaziada, Romário poderia
circular com mais tranquilidade com sua namorada transexual. Ana esticou sua canga
colorida na areia e sentou. Já Romário foi buscar água de coco para o casal. Ana, que não
sabia a senha do celular de Romário, ensaiou alguns movimentos e conseguiu destravar o
telefone. Ela, assim como Romário o fez no início daquele mês de dezembro, com o intuito
59
conferir se o namorado estava de “conversinha” com outra mulher. Para a surpresa de Ana,
havia uma mensagem de Cassiane, ex-namorada de Romário.
Li aquilo tudo. Com aquilo virei o bicho(...). Ele perguntou “O que foi?” e
eu falei “vi seu celular, seu viado.” e comecei a xingar ele. Eu botando
roupa ele perguntou “a gente terminou?” e eu respondi “cara, não precisa
nem falar comigo”. Botei minha roupa e fui em direção ao carro dele. Ele
foi atrás de mim. Chegando no carro a gente entrou e saímos. Da praia até a
Estrada do Catonho a viagem seguiu em silêncio. E ali ele começou a falar
comigo, tentou conversar, começou a chorar dirigindo, pedindo desculpa.
Disse que chamava ela de vida porque eles ficaram oito anos juntos e era
costume. Eu não acreditei, né. Falei “por que você tava mentindo pra ela
que estava no trabalho? Vai tomar no seu cu. Você me esquece?”.
Ana chegou em seu apartamento aos prantos. Romário tentou conversar, mas ela não
estava disposta a falar, sua energia era muito mais agressiva. Ana bateu em Romário
32
A compreensão de “longo período” não é minha, mas de Ana.
60
enquanto chorava e ele aceitou a agressão passivamente. Depois que as energias haviam
abaixado, Ana pediu para que Romário saísse do apartamento em que ela morava. Ele se
recusou. Pediu-lhe que eles ficassem juntos só mais uma noite fato que ela aceitou resignada.
Durante a madrugada, Ana que não conseguia dormir, teve uma ideia. Pegou o
telefone celular de Romário e salvou o número de Cassiane. O intuito dela era no dia
seguinte avisar a amante de seu namorado que Romário ainda era seu parceiro, jugando que
Romário estava a enganar ambas. Ana salvou o número não apenas no seu celular, mas o
enviou para todas as amigas e para sua mãe a fim de garantir que não perderia o contato da
amante. Deitou-se novamente ao lado de Romário e tentou dormir por um tempo em vão. As
sete horas da manhã, Ana o acorda.
Quando clareou eu acordei ele. Quase não dormi, né? Eu falei assim “Olha,
amanheceu, vai pra casa” ai ele “Não” e eu gritei “VAI PARA SUA
CASA”. Aí ele foi. Isso já era no dia 31. Ele foi embora e quando deu meio-
dia eu liguei pra ela. “Cassiane” “Quem ta falando? ” “Aqui é a Ana”. Ela
sabia que eu e ele tinha um relacionamento. Eu falei “O que você e o
Romário têm? ” “Ah, a gente tá juntos. Inclusive ele tá vindo aqui pra casa”
“Quando ele vai chegar ai? ” “Daqui uns quinze minutos”. Aí eu, “faz o
seguinte, não avisa que eu te liguei. Eu vou ligar e você passa pra ele”. Daí
deu quinze minutos e eu liguei “Oi, Cassiane” “Peraí que ele está aqui” e
passou pra ele. Ele não imaginava. Ele pegou o telefone e eu falei “Você é
muito cara de pau, né” e comecei a arrasar ele. Daí ela pegou e bateu nele
do outro lado (risos). Ela botou no viva-voz e ficamos nós duas arrasando
ele. Acabou que nesse dia 31, eu falei “quero conversar com vocês duas
pessoalmente”. Ele pegou e levou ela pra minha porta de carro. Chegou na
minha porta, nós três. Eu, ela e ele. Na minha porta, eu à flor da pele. Ele
começou a falar que amava as duas, que não sabia viver sem as duas, que
tava perdido, que não sabia o que seria da vida dele, que do mesmo jeito que
ele amava uma ele amava a outra. Isso falando pras duas. Surreal. Aí foi, eu
terminei com ele e ela também terminou com ele. Ele levou ela pra casa e
conversou com os pais dela que não dava e foi. Isso eu fiquei a virada em
casa, trancada e depressiva. Uma amiga teve que esconder uma faca e
remédio. Eu ia me matar no desespero.
61
Ana e Cassiane para ficar com Romário, ambas se uniram contra ele por causa da traição, o
que as torna mulheres valentes (Fonseca 2000)
De janeiro a março, a relação fluía muito bem. Ana viveu com Romário como nos
primeiros meses de namoro. O amado dormia na casa dela todos os dias, fato que Ana lê
como uma relação de quase-marido. Saíam juntos com regularidade. Romário começou a
expor mais Ana para seu círculo íntimo de amigos e começou a estreitar relações com as
amizades de sua namorada. Num determinado final de semana de fevereiro, Romário
planejou uma festa de aniversário para um grande amigo de Ana no sítio que sua família
tinha em Magé. Ele não fez nenhuma questão de esconder sua namorada do caseiro e isto
rendeu consequências terríveis para o relacionamento dos dois. O caseiro, além de
funcionário, era amigo do sogro de Ana. Quando Romário voltou para sua casa, seus pais já
sabiam quem acompanhou o filho no passeio. O Caseiro tinha ligado e falado “o Romário tá
aqui com um traveco no sítio. Os dois ficaram agarrados o dia todo”. A briga estava
instalada, o pai agredia Romário enquanto gritava “tu é viado? Ta se envolvendo com
traveco? Ta dando seu cu viado? Se tu não acabar com essa palhaçada tu vai sair da minha
casa agora”.
Ansiosa para que chegasse o dia 30 de março, aniversário de Cassiane, Ana esperou.
Foram duas semanas de “muita fossa”. No dia do aniversário, Ana entrou nas redes sociais
33
Verbo abrasileirada do palavra inglesa Stalk, isto é, perseguir – vigiar.
62
de Cassiane e viu que ela estava no Jóquei. Ela postou uma foto com a legenda “Noite
maravilhosa com pessoas maravilhosas que tanto amo”. Romário estava na foto abraçando
Cassiane e ela com a boca na bochecha de seu ex-namorado, olhando para a câmera e rindo.
Desde lá eles tão juntos. Ele anda me procurando, a gente chegou a transar
ainda. Ele tava dormindo comigo. Até que depois da foto foi o fim pra mim,
sabe? Esses dias entrei no Instagram dela e vi uma foto dos dois se
batizando nas águas da igreja cristã. Ele não era batizado, ela era. Se batizou
com ela, aquilo foi o fim pra mim.
Eu e Ana nos encontramos pela primeira vez na escadaria Selaron na lapa para
entrevista. Era maio e havia duas semanas que Ana não conversava mais com Romário. Para
ela, a maior dificuldade da separação é olhar para o lado da cama vazia todos os dias e não
ver Romário. “É bem complicado. Acordar, olhar meu celular e não ter uma mensagem dele.
É complicado ter que viver sem ele”, ela lamenta. Se o fim do namoro de Donatela com
Alexandre foi percebido em razão, principalmente, das consequências da vida ao lado de
uma mulher prostituta, para Ana o corte do fio que unia o casal foi o fato de que Romário
não quis assumir seu amor por uma mulher transexual.
63
Digo isso, porque todas as vezes que ouvi minhas interlocutoras falando em
sociedade, prestei atenção para compreender a maneira como usavam o termo. Neste caso,
notei que todas elas usam a expressão “sociedade” para falar de um inimigo em comum. “A
sociedade é preconceituosa”, “a sociedade é intolerante”, “a sociedade é careta”. Embora
seus corpos sejam vítimas de censura, desde os olhares em espaço público, à luz do dia,
violências simbólicas, agressões até a maneira como circulam na “boca do povo” em espaços
privados, a compreensão daquilo que as marginaliza é cristalizada grande parte das vezes na
ideia de “sociedade”, ou melhor, na qualidade desta sociedade. “Cristianismo” ou “sociedade
cristã”, “sociedade brasileira”, “o povo da noite”, “a família” etc. Desse modo, a compressão
da qualidade da sociedade como aquilo que deve ser evitado e/ou combatido assemelha-se
justamente àquilo que Strathern acredita estar obsoleto como um modo científico de
pesquisar. Se a sociedade funciona como entidade para minhas interlocutoras, é como
entidade que escolhi recortá-la. Logo, para pensar a qualidade daquilo que é interpretado
como inimigo – o que eu havia chamado de fantasmas ou fantasmagórico até aqui -,
encontrei na figura mitológica das Parcas a marca igualmente etérea da ameaça.
As Parcas são figuras romanas mitológicas (“moiras” na mitologia grega) que detêm
em mãos os fios da vida de todos os mortais. Nona, Décima e Morta cuidam dos fios do
nascimento, da continuidade e do fim da vida, respectivamente. Se pensarmos no início,
meio e fim dos relacionamentos descritos neste capítulo como uma sucessão de ordens
coesas e lineares (justaposta para fins narrativos e não necessariamente causais), perderíamos
de vista as idas e vindas dos casais, as mudanças, os sentimentos que se mantêm com a perda
ou as empolgações dos novos começos. Cada momento que é vivido, revivido e recontado,
por mais que haja reconhecimento do que se revive, tem em si algum aspecto de mudança. É
no tempo descontínuo que pulsam as emoções. No que diz respeito às paixões, Gilberto
Velho afirma que ela “(...) tem justamente, essa propriedade de acentuar a uniqueness da
experiência individual. Por mais que se saiba que outros contemporâneos, amigos, parentes,
conhecidos, possam ter se apaixonado, a paixão traz sempre algo de idiossincrático” (Velho
1986: 92). O que chamou minha atenção nos discursos amorosos de três das minhas
interlocutoras é justamente o que Velho afirma. Mesmo aquelas que viveram mais de um
forte relacionamento (ver Capítulo 3) se encontravam rendidas a outro homem de novo e de
novo. Neste caso, tendo a experiência de amar e se apaixonar tomada com tal intensidade por
minhas interlocutoras (com exceção de Paula) somada à compressão de inimigos como
64
entidades – a partir das quais evoco a figura das Parcas –, podemos compreender o
sentimento de solidão que as toma em muitos momentos. Quando revelei para Ana o título
que estava pensando em dar para este trabalho, “Amores Subterrâneos”, ela respondeu
prontamente
A leitora ou o leitor poderia argumentar que a resposta de Ana foi dada nos termos
em que eu provoquei, o de “subterrâneo”. Sim, mas embora o adjetivo não seja aquele que
possivelmente ela usaria, a informação que Ana nos revela é mister no tocante ao habitar um
corpo entendido como desviante em relação à sexualidade e ao gênero. Por conseguinte, tudo
aquilo que ameaça a manutenção de relacionamentos é atribuído a uma espécie de entidade
difícil de identificar, imprecisa, mas eficaz, o que fica evidente na indeterminação do sujeito
do verbo “vão” em seu depoimento. A qualidade subterrânea dos relacionamentos nos
permite identificar, assim, certa “fixidez na imprecisão” da construção de ameaças, além de
nos impossibilitar de enxergar medidas mais tangíveis para combatê-las - o que pode resultar
na sensação de isolamento. Se as Parcas espreitam para cortar o fio da relação, elas o fazem
através da família, através do estigma e através da sociedade. Podemos nos perguntar então:
o que sustenta alguns fios? Ademais, será que “apenas” a revelação das namoradas trans-
travestis para a família do homem ou a revelação da carreira de prostitutas tem potência
combativa?
65
assumida para as redes que compõem as relações familiares e amizades do casal, gera
deslocamentos e obriga à elaboração de redesenhos das concepções de família e
conjugalidades, de modo geral, ao reivindicarem de seus namorados a figura de esposos
(quase-esposos, namoridos) e habitarem num modelo aparentemente hegemônico de
relacionamento monogâmico heterossexual. A prostituição cria sentido social nas relações
afetivas não organizando a ordem da desordem, o puro do impuro ou o sujo do limpo (como
o trabalho doméstico para Cullwick em McClintock 1995), mas forçando fronteiras
simbólicas nas “tolerâncias” caóticas e no ir e vir das negociações com o namorado em prol
da manutenção da autonomia e do relacionamento. Além do mais, tem papel central no
redesenho de família como sujeito moral.
Retomando a trama da confissão como eixo analítico, podemos pensar sua re-
existência deitada em linhas descontínuas, nas quais o ato de confissão é passado de sujeito
para sujeito na relação. Isto é, primeiro a mulher deve confessar para família sua identidade
travesti-transexual; segundo, quando necessário, ela deve confessar ao namorado; e, por fim,
o namorado deve confessar a sua família. Embora as linhas possam ser cortadas pelas
diferentes situações e relações, quando sobrevivem, terminam na família. Numa ponta está
família da mulher travesti-transexual e as implicações que a confissão toma (como as redes
de fofoca a que cada uma está sujeita). Na outra ponta, caso o relacionamento saia do
subterrâneo, a família do homem e, naturalmente, as implicações da decisão de revelar sua
parceira afetiva. De forma semelhante, se desloca a figura do inquisidor que agora fica nas
mãos da família. Dessa forma, a família pode punir, vigiar, rejeitar, perdoar, consolar e/ou
reconciliar. Duas de minhas interlocutoras foram expulsas de casa depois que revelaram suas
identidades de gênero. Isso se dá, pois, a pecha da confissão passa para a família frente à sua
rede relacional (amigos, vizinhos, círculos sociais religiosos, etc.) e desta para uma
sociedade mais geral e difusa através das redes de fofoca34.
A trama de confissões pode não parar por aí. Se tomarmos a casa do casal como
espaço mais privado, a informação para a família passa a ser espaço mais púbico. Uma vez
que a família detém a informação da existência do casal, ela passa a ser esfera privada e pode
ter que lidar com “os vizinhos”, “o povo da rua”, etc. como os novos inquisidores. Desse
34
Acho que a arquitetura de estrutura-relacional dos Nuer de Evans-Pritchard nos traz um bom exemplo desta
cartografia das tramas da confissão. Isto é, para um “sujeito” Nuer, quanto mais perto dos aldeiamentos e da
casa (aqui família) maior a solidariedade (e o impacto da potência des-solidária, evidentemente) e quanto mais
longe, menor. (Evans-Prtichard 2011).
66
modo, é possível notar a miríade de camadas de público e privado que vão sendo acionadas
conforme a trama da confissão avança e, em concomitância, a mudança da figura da
autoridade punitiva ou reconciliadora. Quanto mais fora da camada da casa do casal, mais
etérea é ameaça. Assim, a família tem a capacidade de ao mesmo tempo ser espaço privado e
espaço público o que confere às parcas as pontas quase-intangíveis do fio. No caso desta
etnografia, o que toca todos os relacionamentos duradouros que minhas interlocutoras
compartilharam comigo, apenas Alexandre contou para sua família sobre seu namoro estável
com Donatela. Em todos os outros casos, apesar das desaprovações (grande parte das vezes
silenciosas como “eu entendo, é difícil”) das mulheres, os homens se recusaram a contar para
suas famílias e isto foi, justamente, o ocaso dos casais.
Ele me procurou por telefone quando eu voltei pra lá. Ele me ligou “sou eu
fulano”. Ai chamei ele, estava ficando na casa da cafetina [que a agenciara]. A
cafetina tinha vindo para o Brasil e deixado a casa comigo. Uma casa bem central
mesmo, um bairro zona sul. Quando ele chegou, ele queria ficar na porta mesmo.
Eu falei assim “vamos lá dentro, fiz umas coisas pra gente comer e tal. Pra gente
tomar um drink pra ficar mais relaxado”. Comprei um vinho branco bom. Comprei
umas três garrafas desse vinho porque a gente tinha muita história pra falar. Eu
fiquei dois anos no Brasil (depois do término) queimando ele, né. Queimei ele e a
bicha [travesti] que estava com ele (...) Aí, chegamos. Fiz aquela recepção
maravilhosa na casa da bicha [a cafetina]. A casa maravilhosa, mona. A casa de
boneca que a luz acendia do lado da cama. Cama maravilhosa com lençóis nem sei
quantos fios tinham. Toda casa maravilhosa num bairro de zona sul. Trouxe meu
computador pra gravar. Eu tinha um Sony Vaio e quando você gravava, desligava
o display dele e ficava todo escuro. Peguei um negócio de papel, colei na luz da
câmera e botei pra gravar. Eu tenho essa gravação até hoje: cinco horas de
conversa. Terminou numa transa. Eu transei com ele feroz, feroz. Eu perdoei ele e
entendo que foi a loucura (do momento). Tudo que eu perdi eu recuperei, claro. Eu
perdoei, mas eu gravei tudo, tudo bicha. Cinco horas. Cinco horas de vídeo. A
67
partir de 3h30 é só transa. Às vezes eu boto pra bater um bolo [se masturbar].
Transando com ele como eu nunca tinha transado. Usando... Não era sexo de
reconciliação. Tinha tudo. Eu transei com ele com raiva, com nojo. Usei ele, usei
como esses homens me usam. Mas eu usei ele. Mona, foi uma hora de transa. Uma
hora e pouco, sei lá. Quando eu terminei de transar eu fiz assim, peguei o
computador e pá, bati [sinal de fechamento] e ele foi embora. Tem tudo filmando,
quando eu gozo em cima dele. Gozo na cara. Mona uma cachorrada. Fecho o
computador e já tenho tudo o que eu quero. Mas eu realmente perdoei ele.
Você entendeu isso como vingança?
Me vinguei, amiga. Nunca mostrei isso pra ninguém. Tem uma parte que a gente
está sentado na cama ai a gente começa a falar do gostar um do outro que eu me
emociono. Eu lembro da hora, a gente estava um pouco alto do vinho. Muito vinho,
muito vinho. Ele lembra que fui a primeira, como nos conhecemos, de todo o
trajeto até a gente transar a primeira vez... Por isso a gente transa. Eu choro por
lembrar, por raiva, não sei o que estava passando na minha cabeça e ele me
consola. Ai eu transo. Mas ai quando eu vou transar, vem o bicho. Bicha, foi uma
coisa incrível. Eu lembro até a roupa que eu estava. Bicha, eu fui tão maliciosa...
Tava um frio do caralho, era janeiro. Eu estava com um moletom azul bebe,
embaixo um macacão de tela, de meia arrastão toda por baixo. Eu já estava na
intenção de arrasar com ele. Por isso eu falo que fui maliciosa, eu queria mostrar
pra ele que eu era muito melhor. Foi um amor que me machucou. Às vezes eu
lembro dele e ainda me acho apaixonada. Às vezes. Eu fui feliz com ele, não tem
como negar. Ele me apresentou pra família dele.
35
(Ver também Kullick 2008, Silva 2007, Bento 2006)
68
sociedade “mente fechada” e apresentar suas namoradas trans-travestis para amigos e
família. A impressão geral de Donatela sobre homens brasileiros em contraposição aos
homens europeus é muito similar à adotada pelas interlocutoras da autora. “Mente aberta”,
“evoluídos”, “têm cultura” são expressões que ouvi comumente tanto por Ana quanto por
Donatela acerca de suas impressões dos homens europeus. Assim, sair do Brasil para ambas
não foi apenas uma busca por melhores rendas, mas também a procura por uma vida
cosmopolita, de consumo, viagens e de alguém que possa ajudá-las a ter tudo isso (ibidem).
69
para o casamento e simultaneamente creem no laço do matrimônio como único e para a vida
toda. Assim, Saba e Kuldip provocaram grandes rearranjos nos dois grupos familiares ao
reivindicarem seu status como casal apesar da dissonância dogmática religiosa de suas
famílias. Num determinado dia, depois de algum tempo não harmônico, a autora diz que o
avô de Kuldip “had a dream in wich a new basti (settlement) was being formed (...) he
informed me that the dream was a good omen” (Das 2010: 393). Desse modo, a atenção
cuidadosa da autora à potência do cotidiano percebe pequenas mudanças e esforços diários
de aceitação da família frente a uma dada situação imprevista. Esforço este que veio como
presságio onírico e gerou aceitação de Saba na família de Kuldip.
70
sofre com o fim da relação pensando-se culpada por levar até Alexandre o universo que a
acompanha. Já Ana decide definitivamente se desafeiçoar de Romário quando o vê numa
foto batizando. Mesmo que afirme até hoje que o ama profundamente, sua aversão à
moralidade cristã gera uma contra-moralidade e uma indisposição. Temos a confecção de
duplas morais sempre relativas às experiências subjetivas das duas mulheres.
O impacto que uma informação revelada tem em pequenos contextos sociais e o quão
disposta está a família moldam a frequência e intensidade de transformações morais. Do
ponto de vista do casal, vimos como se estabelecem no tecido do cotidiano e como a longa
duração da relação trabalha com o “si mesmo” das partes. No caso da mulher, poder sair do
subterrâneo, em certo grau, a conforma na sociedade, gera um papel social desejado e se
torna uma plataforma nas redes de relações do casal para impor seu papel de esposa e mulher
trans-travesti na sociedade. O papel de esposa tem potência de torná-las mulheres. Trata-se
do gênero sendo construído não apenas através das mudanças de seus corpos, mas,
especialmente, pelo lugar social que o casamento introduz. O casamento atravessa a ordem
do privado para o público. Público e casamento aqui devem ser entendidos não em termos
jurídicos ou pela “benção” (e sua irremovível captura por-vir) do Estado, mas pela forma que
estas noções são entendidas e aplicadas pelos sujeitos. Ou seja, o caráter público dessas
relações é subversivo pelo simples fato de incorporar corpos que podem ser vistos como
abjetos numa instituição hegemônica que é a família, deslocando o paradigma do casamento
ao obrigar as redes que participam da trama da confissão a se rearranjarem segundo a
prerrogativa de escolha do casal que passa estreitamente pela autonomização dos sujeitos
que o compõe: a mulher travesti puta é autônoma, o homem da relação também. Esse é o
quadro favorável para vocacionar para a família do último a existência e a identidade de
gênero de sua parceira36. A relação do casamento, como disse Gilberto Velho (2006) é
propulsora de encontros e afastamentos de grupos como a família e amigos de cada um dos
cônjuges. Neste caso, teríamos então, mais uma vez, o provocar de deslocamentos
necessários para reavaliações morais pessoais e, assim, transformações de sujeitos morais.
Infelizmente, nem a relação de Ana ou Donatela sobreviveram tempo o suficiente para gerar
um impacto grandioso nas redes de seus até então parceiros. No caso de Ana, apenas a
fofoca de sua presença no sítio dos pais de Romário foi o suficiente para desarmonizar a
36
Eu conheci na minha pesquisa de campo uma mulher travesti, professora de matemática, que mora com o
namorado na casa dos pais dele sem que estes saibam da identidade de gênero dela. Ela me confiou que a
situação e a possibilidade de que descubram é fonte de grande angústia para ela.
71
relação. Retidos numa discussão mais filosófica, pensar empiricamente os efeitos da
consequência do assumir a relação nos possibilitaria entender com mais densidade como a
novidade ecoa no mundo público das redes relacionais. Conhecemos as Parcas, mas, no que
diz respeito a processos de longo prazo, é assim, e somente assim, pela imposição sólida do
casal que será possível visar à conquista da família.
72
CAPÍTULO 3: TRANSBORDAR
73
conectam, mas dizem respeito necessariamente a seu constructo como coisa. A malha que
envolve aquilo que se quer olhar possui então infinitas linhas de ações como pontos de fuga,
garantindo que possamos pensar sobre a descontinuidade e os improvisos em seu processo
de “coisificação” (Ibidem). Portanto, se temos no ato de confessar, para Foucault, a
formação final de uma verdade sobre si, observamos em Ingold os meandros da agência
nessa confecção. A trama de confissão nos mostra justamente como impasses das relações
que são travadas em seus circuitos dizem respeito a uma escolha que pode ou não ser tolhida
pela presença, em espreita, disso que nomeei de Parcas.
Transbordar nos remete necessariamente àquilo que excede a si mesmo. Bordar para
além das bordas, além dos limites que foram impostos. Neste capítulo trarei depoimentos e
textos de minhas interlocutoras (tanto em entrevistas quando em redes sociais ou blog
pessoal) no que diz respeito às esperas e expectativas sobre suas próprias vidas como
mulheres trans-travestis. Num primeiro momento confrontaremos, a partir da história de
Alice, a dificuldade em se falar de “solidão” quando este não é um tema central naquilo que
se conta. Partiremos daí para pensar a sensação de “vazio” que as acomete em respeito à vida
sexual de uma mulher prostituta e assim, poderemos pensar sobre amores, paixões e espera.
Logo depois, trarei as possibilidades de pensarmos na criatividade, sonhos e projetos em
trajetórias de vida tão marcados pela marginalização. A penúltima sessão se dedicará a
avaliar algumas discussões feministas, para pensar os limites e possibilidades de se pensar
submissão no dia-a-dia nos relacionamentos amorosos e somado ao olhar militante de Paula,
tanto sobre amor quanto o feminismo radical. E, finalmente, um panorama geral sobre este
capítulo que encerra “Amores Subterrâneos”.
Alice, nome fictício da interlocutora que se fará presente a seguir, não se chama
assim por acaso. Foram diversas vezes que ela referiu a si mesma como Alice. Toda
narrativa de desilusão amorosa ou início de uma nova relação, sempre continha uma
expressão como “olha eu no país das maravilhas de novo”. O nome, Alice, nos remete a
74
famigerada história de Lewis Carrol “Alice nos país das maravilhas”. A aventura nonsense
de Carrol, na verdade, sintetiza de maneira fantástica o processo de puberdade e de
transformação da personagem. Na história em questão, a protagonista redescobre seu próprio
corpo e seu próprio caráter numa aventura surrealista quando, tomada de curiosidade, resolve
perseguir um coelho apressado que desaparece numa toca mágica. Num dado momento da
conhecida obra, Alice se depara com uma lagarta. Esta, pousada confortavelmente em cima
de um largo cogumelo, dispara baforadas de fumaça entre uma tragada e outra de um
narguilé. “Quem é você? ”, pergunta a misteriosa e sonolenta criatura. Alice responde
timidamente “Eu, eu não sei muito bem, Senhora, no presente momento – pelo menos eu sei
quem eu era quando levantei essa manhã, mas acho que tenho mudado muitas vezes desde
então” (Carroll 2002).
37
O blog em questão possuí textos antigos recuperados de seu antigo blog cujo domínio já não mais existe.
Portando as datas de postagem não correspondem necessariamente ao período que os textos foram escritos.
As experiências de 2014 podem estar falando de uma história que aconteceu entre 2005 e 2013 – período
que a outra página estava ativa.
75
“Meu nome é Alice, verdadeiramente tenho 32 anos, do signo de libra, sonhadora,
impulsiva, exagerada, faço o que vem a minha mente e minha busca diária é pela
felicidade, sei ser mulher, mas também tenho meu lado menina. Minha vida
profissional divido entre ser atriz e assistente administrativo. Acredito que toda
mulher tem um pouquinho de mim”. (Alice. Junho de 2013)
Como vimos no capítulo Transpassado, Alice foi expulsa de casa quando começou
seu processo de transformação aos vinte anos. Conseguiu um emprego formal do qual foi
demitida e, em seguida, comprou uma casa na favela com o dinheiro da rescisão. Ademais,
saiu de um dos empregos que teve por não conseguir atender inteiramente as demandas do
cargo: “eu não consigo fazer nada pela metade. Sou intensa. Ou me entrego totalmente ou
não faço nada”, diz. Logo começou a se prostituir (entre 2005 e 2008). Essa ética da
intensidade é um dos grandes norteadores de Alice em relação à maneira como distribui seus
afetos pela sua vida. “sou intensa” é o mantra que sucede ou antecede todas as justificativas
de suas ações mais práticas e sua maneira de se relacionar.
Sobre o amor, Alice também se localiza o tempo todo pela intensidade de como ama.
Numa postagem em junho de 2016 em seu blog, Alice publiciza um longo texto, escrito no
final do ano de 2005, que encontrou quando estava a revirar seu e-mail:
“Eu o conheci no dia 06/11/2005, numa boate chamada 1140. Ele pegou na
minha mão e disse pra mim: “Posso ir com você?” e eu abri um sorriso e
apenas fiz “sim” com a cabeça, ele veio comigo, ainda segurando minha
mão e logo nos beijamos nem trocamos uma palavra sequer. Quando ele me
pergunta: “Qual o seu nome?” e eu disse: “Alice”, ele se assustou, porque
até então ele não sabia que eu era travesti... Não ficamos a noite toda, na
verdade a gente só ficava quando se esbarrava, na hora de ir embora ele me
disse: “Não sorria pra mim porque senão vou me apaixonar, seu sorriso é
lindo!”, nossa, eu fiquei gamada desde o primeiro beijo. Era um domingo...
Marcamos de nos encontrar no próximo domingo no mesmo lugar... MEU
DEUS, os dias não passavam, foi a semana mais longa que eu tive... Até que
o domingo chegou, como eu tremi quando vi aquele menino, senti até dor de
barriga e assim era toda vez que eu o encontrava, pois a gente estava saindo,
mas eu não o tinha, ele tinha suas barreiras por eu ser um travesti. Meu
amor crescia a cada encontro e ele se afastava, até que terminou comigo, me
disse que ficar com travestis era normal, mas namorar não era. Meu
mundo caiu! Me lembro que eu tinha ido pra boate somente para encontrá-
lo, pois no dia seguinte eu ia trabalhar às 9 da manhã, fui um caco pro
trabalho, morrendo de sono e sofrendo, POIS JÁ ESTAVA
COMPLETAMENTE APAIXONADA POR AQUELE HOMEM... Para
minha surpresa ele me ligou por volta das 23:30h, até então ele nunca havia
me ligado e já tinha meu telefone desde o primeiro encontro quando
76
coloquei meu telefone num guardanapo, escrito: “Liga pra mim! Adorei
vc!”... Quando ele me ligou eu estava vesga de sono, pois não havia
dormido e ido direto trabalhar e eu não sabia como agir, pois pra mim ele
estava me ligando por pena, porque ele viu o quanto fiquei mau com aquele
fim, acabou que ele achou que eu fui fria e desligou o telefone. Me ligou no
dia seguinte e conversamos bastante e marcamos de nos ver no dia seguinte.
Me arrumei toda, estava toda feliz, ele atrasou 1h, fiquei puta, mas nem
reclamei, depois de um tempo ele me disse que atrasou porque estava em
dúvida. Chegou atrasado mas foi e pasmem ficamos 3 dias juntos, sem
irmos pra casa, foi mágico, mas na hora de ir embora senti um vazio, pois
achava que nunca mais ia tê-lo e a partir desse dia ele passou a me ligar
todos os dias, sempre teve suas dúvidas, suas barreiras, até mesmo
preconceito, mas a cada dia que passava ele ia ficando mais carinhoso,
demonstrava mais seu sentimento, passamos a conviver muito e ele foi até
aceitando meus defeitos, hoje não tenho dúvidas de que eu necessito dele e
ele necessita de mim, acho que teremos um namoro longo, mas não creio
que ficaremos juntos para sempre. O amor, as lembranças, os carinhos, as
nossas músicas iremos carregar para sempre, mas o relacionamento não será
eterno, posso estar enganada, mas a verdade é que ele é um jovem de 24
anos, um dia vai querer ter filhos, vai querer formar uma família “normal” e
infelizmente, por mais que vocês escrevam pra mim dizendo que não, mas a
REALIDADE é que ao meu lado ele nunca terá uma vida normal, pois
sou uma semente morta e não posso dar um filho pra ele e não quero
que as pessoas da rua dele ou da família o discriminem, pois nossa
sociedade é hipócrita e vocês sabem que rola isso... Mas ele sempre será
eterno, pois ele até lutou contra, mas ele me viu por dentro, sempre ouviu,
como quase todo mundo, que travesti não presta, mas ligou o foda-se e a
cima de tudo viu o ser humano que existe em mim e o amor que sinto por
ele... EU AMO ESSE HOMEM!!! Vou parar por aqui, pois confesso que
estou com os olhos cheios de lágrimas, lutando para não chorar, pois me
emocionei escrevendo esse texto”. [os momentos em caixa alta são de Alice,
mas os grifos em negrito são meus]:
Refletindo sobre o trecho que acabamos de ler, em prantos, Alice informa que sente
uma grande vontade de voltar ao tempo para fazer diferente. A partir do reviver deste amor,
ela lembra que, assim como ela previra, a relação teve uma curta duração. Para ela, este foi o
verdadeiro amor de sua vida. Ela diz: “eu sou intensa em minhas relações e isso muito se
confunde com amor, nem todos foi amor. Foi puro, verdadeiro, mas amor como foi por esse
nenhum outro foi”. Voltar no tempo para ela é um desejo singelo de apenas poder abraçá-lo.
Roland Barthes afirma que “o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema
solidão” (Barthes 1995). Se tomarmos a sentença como verdadeira tendo como pano de
fundo o texto de Alice, a solidão seria a face oblíqua do discurso amoroso e não uma
categoria eixo-central. A palavra “solidão” propriamente, nas entrevistas, nunca apareceu. O
que consegui captar da experiência do sentir-se só sempre surgiu na fala, justamente, “nas
periferias do dizível” (Bispo 2016: 228). Dessa maneira, a análise de material de blog e de
77
Facebook foi se fazendo tão importante para a pesquisa, uma vez que nestes espaços a
“solidão” apareceu em sentença, mesmo que de forma reduzida em comparação a outros
assuntos. Isso nos faz pensar na qualidade dos espaços que são apropriados para a narração
de determinados assuntos sendo a “solidão” um sentimento afastado dos discursos face-a-
face. Catharine Lutz e Lila Abu-Lughod chamam a nossa atenção precisamente para a forma
como o espectro de sentimentos narrado aparece no discurso. Para as autoras, devemos
prestar atenção à maneira que os discursos são formulados e, assim, percebermos como as
emoções aparecem criadas na fala. Essa constatação das autoras parte do questionamento da
crença de que os afetos seriam moldados pelo discurso e não frutos dele (Abu-Lughod e Lutz
1990). Pensando então na possibilidade de construção das emoções nos textos
autobiográficos, a solidão é igualmente revivida e recriada ao ser escrita. Em pesquisa
anterior no Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESAP) (Iuperj-UCam), da qual participei
juntamente com os pesquisadores Maria Isabel Mendes de Almeida, Fernanda Eugênio e
Raphael Bispo, nos empanhamos a perseguir, num primeiro momento, o surgimento de uma
nova modalidade de solidão entre os jovens do tempo presente. Neste caso, notamos a
emergência de um modelo de ação, a qual nomeamos de solitude, pela solidão deliberada
(em oposição a uma “solidão acontecida”, a qual permeia o imaginário popular em forma de
reclusão, de se estar sorumbático). Deste modo, mostramos como nossos jovens
interlocutores se dispunham a uma gama de afastamentos (subjetivos e físicos) em prol de
uma espécie de reclusão a fim de “recarregar as baterias”. A experiência de solitude moldou
a cara da pesquisa para outros rumos. Se num primeiro momento avisávamos buscar o
impacto da solidão entre os jovens de hoje, acabamos mapeando as disposições, as filosofias
e as consequências dos distanciamentos através de uma solidão-ação. Nomeamos então esse
processo de se pôr no mundo de desmobilizações como uma contraparte resiliente ao
processo de “mobilização infinita”, isto é, a energia frenética capitalista do consumo,
racional, insensível, pragmática e incansável (Sloterdijik 2002: 04). Nossa etnografia
resultou, portanto, em “cartografias da paragem” ou o mapear de decisões situadas de
questionamentos que redesenham formas de vida tanto no que diz respeito ao trabalho
(Almeida 2016), bem-viver ou projetos de vida (Almeida 2016; Almeida e Eugênio 2016;
Bispo 2016a) e disposições às relações amorosas (Zampiroli e Bispo 2016). Trago esta
pesquisa à baila, pois, assim como na presente análise, em um nicho etnográfico distinto, a
solidão não surgiu como óbvia no discurso. A dificuldade de capturar essa temática reside
78
justamente em sua natureza ambígua. Na busca de jovens solitários, encontramos, na
verdade, a vontade de isolar-se mesmo quando ocorriam em concomitância à “solidão
acontecida” nas veredas dos distanciamentos táticos.
79
apaixonando rapidamente pelo homem da 1140 e sinaliza a tristeza ao premeditar seu
irremovível fim em razão da sua identidade travesti. Isto é, Alice entende as dificuldades do
enfrentamento da “sociedade hipócrita” e da “discriminação” pela “família” e pelo “pessoal
da rua”. Ademais, atesta que a pouca idade do rapaz se voltaria contra a relação quando este,
movido pelo desejo (de valor imanente e inexorável) de constituir família, a abandonaria em
detrimento de alguém que não fosse “uma semente morta”. Tanta Joana quanto Alice
reclamam que mesmo em face à quantidade de homens com quem já se relacionaram, faltam
afetos masculinos que permaneçam. Podem justificar por vezes também que não conseguem
amores duradouros, justamente, em razão da quantidade de homens com quem já se
relacionaram. Corpos dissidentes “safados”, “anormais” e “excessivos” são tomados pelo
constante escrutínio do público por não se adequarem ao padrão hegemônico (Diaz-Benitez
2011). Desse modo, Joana e Alice criam uma aura de culpa em torno de si mesmas para
justificar seus fracassos, na qual a chacrete aponta para seu jeito (imanente) “independente”,
“vontade de ser livre” e “não apego” (Bispo 2016b) e Alice adjudica ao externo, à sociedade
– questão que distancia a experiência diária de ambas. Uma vez que Alice assume uma
identidade travesti, um sujeito moral da margem, ela passa a ver a vida da borda. Contudo,
embora Alice não culpe seu próprio corpo pelos percalços que ladrilham seu caminho,
acredito existir uma dimensão de auto avaliação constante – fruto do estigma38 - que pode
gerar um acionamento de culpa mais próximo ao que Joana sente em consequência da perene
máquina de escrutínio do mundo público. O acionamento da identidade travesti e o
apagamento da culpa na fala e na escrita dela é uma reivindicação de sua dignidade humana,
da sua digna existência. Culpar-se poderia render resignação ou ressentimento, mas ao
distribuir as culpas para a “sociedade”, para a “família” e para o “pessoal da rua”, Alice
trasborda sua experiência enquanto indivíduo para uma experiência enquanto coletivo,
recuperando assim seu fôlego.
38
Em sua pesquisa sobre prostituição feminina, Olivar (2013), argumenta que o estigma pode traçar
subjetividades combativas ao mesmo tempo em que incorre a possibilidade de auto depreciação. Isso o autor
apresenta ao falar de prostituição em diálogo com as políticas do Estado, e das “guerras” (ou “predações
multidimensionais”) travadas entre as suas interlocutoras e a “sociedade”. Em “Outsiders”, Howard Becker
(2008) argumenta que o estigma tem, nos sujeitos, uma capacidade ou efeito autoconfirmatório, isto é, o sujeito
bem pode contradizer o lugar que lhes é imputado ou pode, quase que inevitavelmente, assumir os rótulos e
desencadear uma apreciação de si mesmo decorrente deles.
80
3.2: ENTRE LENÇOIS OU TESSITURAS DA ESPERA
Alice, numa postagem recente (Abril de 2015), confessa sua angústia acerca das
efemeridades das relações no contemporâneo e seu grande desejo de “viver uma história de
amor”:
Ai você sai para curtir a balada, disposta a viver o que vier e ser feliz, com
responsabilidade. E você reúne bons amigos, bebe, dança, e quando pinta
aquele gatinho, dá uma fugidinha para curtir, até rola uma boa química, mas
vocês não ficam a noite toda, acaba rolando outro, e outro... A verdade,
que na balada é isso que a grande maioria quer: curtição e quantidade. E
confesso que ficar com alguns meninos é gostoso, dá uma sensação gostosa
de liberdade, levanta seu ego, e não vou ser hipócrita em negar que
variar é bom. Porém, ao mesmo tempo bate um vazio. Tudo isso divide
as emoções. Parando agora, friamente, posso dizer que me fez bem e me fez
mal. Sensação estranha de que peguei os sentimentos e bati tudo no
liquidificador. Eu vivo o momento sim, sou inconsequente e impulsiva,
acredito que não posso me anular na vida, já que o “amor” ainda não veio,
ao menos preciso curtir. Confesso que sou uma eterna inimiga do jeito dos
homens, porém refém da necessidade deles. E nessa noite, eu sorri para
depois chorar, e só confirmou a certeza de que largaria tudo para viver uma
história de amor! [grifos meus]
81
Em outro texto, mais antigo (dezembro de 2014), Alice repete a frase “largaria tudo
para viver uma história de amor”
Eu entendo que nem tudo é amor, mas queria que o sexo viesse com uma
amizade, e não apenas um descarregar de necessidade. Atualmente estou
há mais de um ano sem namorar, e confesso que quando eu era jovem, eu
tinha muito mais facilidade, era raro eu não estar namorando. Hoje em dia a
realidade é outra. De duas uma: ou eu estou velha e gorda e não desperto
desejo nos homens, ou por eu ser uma mulher poderosa39, isso acaba
assustando e afastando os homens.
Eu de verdade não sou de amargar foça, mas é bem verdade que tenho
sentimento. E por muitas vezes eu me sinto sozinha, por mais que a cada
dia eu tenha um homem diferente em minha cama. Eu amo fazer sexo,
mas isso não me completa como realmente eu gosto.
Eu não vou deixar de curtir a vida, mas confesso que largaria tudo para
viver uma verdadeira história de amor.
Estou escrevendo isso com a solidão e uma garrafa de tequila como
companheiras! [grifos meus]
Este segundo texto de Alice nos é ainda mais revelador. Aqui, ela expressa cinco
pontos chaves para entendermos sua visão sobre o assunto: 1. A marcação da diferença entre
o sexo com afeto (amizade), sexo instintivo (um descarregar da necessidade) e o sexo
comercial que aparece entre linhas “homem diferente em minha cama”; 2. A passagem de
tempo pelos anos que já não namora “estou a mais de um ano sem namorar”; 3. Juventude e
magreza como marcadores importantes para a conquista; 4. O empoderamento como
afugentador de pretendentes; 5. O gregarismo como oposto ao sexo por prazer, ou seja, só
existe com afeto.
Podemos perceber no primeiro ponto como Alice entende diferentes sentidos para o
sexo. Haveria o sexo instintivo, o sexo afetivo e o sexo comercial. Este último teria em si
mesmo a potência de borrar as fronteiras entre o sexo instintivo e o sexo afetivo, uma vez
que o sexo comercial funcionaria como um ponto de encontro de relações que são em sua
maioria fortuitas, mas também são devir amor. Este fato se relaciona estreitamente com o
ponto cinco, no qual o sexo instintivo passa a funcionar como alavanca reflexiva da
superficialidade das relações efêmeras. Isso se deve ao fato de que a extensa maioria das
relações sexuais, para Alice, são pontuais e raramente ganharam o nome de amor.
Diferentemente de Ana e Donatela que, como foi apresentado no capítulo 2, “fazem um
vício” e, dessa maneira, sentem prazer em relações sem afeto, Alice, afirma que ama fazer
39
No sentido de empoderada e não de rica como ela mesma marca no Blog.
82
sexo, mas que “isso não me completa como realmente gosto”. Portanto, o devir-amor do
sexo comercial ou das fortuidades do “ficar” nas boates são percebidas como possibilidade
remota, alimentando assim a impressão de “vazio” que este tipo de relação proporciona para
ela. Para Alice, o amor é um sentimento intenso e imanente, “é bem verdade que tenho
sentimento”, ou como vimos no texto sobre o rapaz da 1140 “ele me viu por dentro”. Isto é,
ele conheceu Alice de verdade, toda curva e todo âmago de intensidades que compõe a
libriana. Alice valoriza a experiência com o rapaz, pois este ousou transbordar a fronteira do
estigma de travesti e insistiu, mesmo que por pouco tempo, numa relação. Alice quer ser
conhecida por dentro, quer mostrar para o parceiro que seu corpo é muito mais do que um
corpo de travesti. Assim, o amor para ela é tanto uma necessidade existencial quanto uma
espera.
83
vazio gigante. No fundo as pessoas sabem que não existe nada melhor do
que amar e ser amado, dividir sorrisos, compartilhar a mesma cama, o
mesmo coração. O amor é lindo, as pessoas que se corrompem. [grifos
meus]
A lamentação final de Ana quando afirma que “as pessoas que se corrompem”,
acredito ser uma resposta a Romário que há poucas semanas da gravação do depoimento
tinha rompido com ela. Como vimos, Romário não era, nas palavras de Ana, “um qualquer”.
Ele cursava engenharia, carreira de bastante prestígio no Brasil, e possui uma família de
classe média tradicional. O término aconteceu pois Romário se recusou a assumir Ana como
namorada para a família. Insurgiu o medo de ser expulso de casa ou sofrer uma sanção dos
pais por assumir namoro com uma mulher transexual. No fim, voltou para sua ex namorada,
evangélica e conhecida da família.
De forma muito semelhante a Alice, Ana entende a pessoa solitária não como aquela
que está socialmente isolada, mas pelo contrário. Os solitários estão aos montes
perambulando entre as multidões. Outra similaridade entre as duas é a experiência retroativa
negativa das relações fortuitas. Ela diz: “as pessoas preferem a putaria porque é mais fácil,
dá menos problema, cansa menos e não da dor de cabeça”. Curiosamente, Ana é a mais nova
das minhas interlocutoras e Alice, a mais velha. A visão de amor de Ana e Alice é bastante
semelhante. Ambas esperam “um grande amor”, demonstrando acreditar na potência
transcendente do amor. Ana me deu uma resposta muito elucidativa sobre isso que nos ajuda
a pensar a relação entre a negativação da experiência da prostituição e a do viver na espera
de ter um namoro sério e duradouro
Meu plano pra daqui há.... meu futuro é estar morando na Europa,
sabe? Na Itália. Se Deus quiser, casar, ter uma vida normal e estabilizada.
Se Deus quiser, estar formada em algum curso, uma faculdade. Eu penso em
casar, em ter uma vida normal. Sou muito sonhadora. Eu sonho muito em
poder adotar uma criança, ter uma casa, um marido. Poder cuidar de um
marido, de um filho. Muito muito. Sendo que também sou pé no chão, sabe?
Eu não me iludo mais, já me iludi. Porque homem, hoje em dia, para
levar travesti a sério a esse ponto é raridade. [grifos meus]
84
possibilitariam, também, mudar toda a conjuntura na qual vivem. Ana revela “penso(...)em
ter uma vida normal”. O paradigma da normalidade que Ana evoca aqui não é uma oposição
à anormalidade. Tanto Ana quanto Alice acreditam que a prostituição é uma profissão digna
e que deve ser respeitada. Entretanto, elas não conseguem se ver trabalhando como
prostitutas por toda a vida. Alice, já pensa na experiência da prostituição como passado “Eu
não fui prostituta, eu estava prostituta. Hoje sou atriz”. Ana, embora goste da profissão (e
consiga ter prazer nela pelos vícios), credita na vida “normal” de casamento monogâmico-
tradicional um ideal de vida para si. Portanto “normal”, na verdade, se opõe a “marginal”.
Nem Ana e nem Alice querem viver na beirada. Elas querem ser protagonistas das relações
que travam com as pessoas e isto começaria com o fim da vida como prostituta. Isso se dá
pelo outro ponto central que Ana traz em sua fala: como o fato de ser trans-travesti cria uma
outra relação com a espera. É uma espera, em alguma medida desacreditada, mas ainda
assim, espera.
Dessa maneira, podemos pensar na face oblíqua do amor na experiência dessas duas
mulheres como espera. O sentimento de solidão seria uma consequência do esperar. A
possibilidade de confrontar a espera com escolha dá contornos ainda mais perversos. Ana
afirma que “homem, hoje em dia, para levar travesti a sério a esse ponto é raridade”. Isto é,
mesmo que se apaixonem e se envolvam com os homens, a duração da relação dependeria
muito de como estes irão se conduzir no namoro, sendo que não são muitos que estão
realmente dispostos. Ademais, caso entrassem num modelo de relação com o qual sonham,
seria complicado levá-la adiante, pois a família do homem poderia funcionar como Parca
(ver capítulo 2). A facilidade com que se apaixonam pode ser evocada pelo sentimento de
“carência” e a resistência delas a isso, pelo esforço de “suficiência”. Podemos perceber,
portanto, que vem se travando um sentimento de auto-estima amarrados no passo dos
homens amados. Numa postagem de agosto de 2016 no Facebook, Ana constata
“Eu juro que achei que isso fosse demorar meses para acontecer, mas
aprendi a ser o SUFICIENTE pra mim mesma e não preciso de mais nada.
Não preciso de ninguém pra dizer que me ama. Não preciso de ninguém pra
dizer que sente saudades. Não preciso de ninguém pra dizer que sou linda.
Só preciso de um espelho, para que assim eu possa me olhar todos os dias e
dizer essas coisas olhando nos meus próprios olhos”.
85
Já Alice percebe a manutenção da sua forma intensa de amar, agora com mais
maturidade, mesmo em vista de tantas desilusões amorosas (maio de 2016):
(...) Muitas vezes essas situações da vida nos fragilizam e nos fazem aceitar
migalhas. Posso estar exagerando, mas hoje em dia, em matéria de rejeição,
preconceito, ninguém sente a dor que uma trans sente. No dia que eu
descobri que travesti é ser um fetiche, amada e idolatrada sim, desde que
ninguém saiba, tudo tem que ser bem escondido entre 4 paredes, me doeu
muito. Mas hoje posso dizer que tenho amantes, pois não me anulei, e
aprendi a jogar, as vezes perdendo, confesso, e chamo a brincadeira de
“idem”. Eu poderia estar “casada” com algum deles, mas a forma deles de
“casar” está longe de ser a que quero, e olha que nem espero a perfeição
hein... Mas confesso que ainda acredito no amor, acredito que um dos
sentidos da vida é amar, mas não acredito naquele amor puro que eu criava
todas as noites antes de dormir. Mas acredito que em algum momento vai
acontecer, de forma calma, verdadeira e sem estar apegada a uma carência.
E mesmo o meu acreditar hoje em dia ser mais consciente, ainda assim a
maioria das minhas amigas trans me chamam de Alice no país das
maravilhas...
86
binário de emoção vs. razão, enseja outras duplas, tais quais (dentre muitas): natureza vs.
cultura, dentro vs. fora, quente vs. frio, morte vs. vida, conexão vs. alienação, coração vs.
cabeça, objetivo vs. subjetivo, autêntico vs. forçado, moralidade vs. amoralidade,
comprometimento vs. niilismo, privado vs. público e feminino vs. masculino (Lutz 1998:
56). Embora a tônica do binarismo venha a prevalecer na maneira que Lutz se propõe pensar
as emoções, mesmo que em primeiro vislumbre soe simplista, temos uma relação elaborada
onde as emoções trafegam de acordo com o contexto e com as normas morais ou de poder
vigentes.
Pudemos perceber no que toca às dobras de cuidado e controle (ver Capítulo 2),
como essas categorias vão sendo movimentadas ora como energia masculina e ora como
feminina. A paixão percebida por Velho (2006) ganhou sentido neste texto por estar
igualmente investida de irracionalidade: emoção como algo “sem intenção”. Percebi
também, assim como Lutz atesta, que muitas emoções são adjudicadas ao corpo. Expressões
como “um só coração”, “pé no chão” ou “vazio por dentro” nos direcionam para
experimentações corporais das emoções40. Mas no que toca o amor, temos na construção do
amor-romântico seu ideal sublime. Dessa maneira o amor, além de generificado, aciona
sempre em duplo caráter e dupla moral: tem algo de fisicalidade (ao ser percebido no corpo)
e de transcendental (quando pensado como sonho ou como irracional), tem algo de natureza
(“amor não se define, se sente”) e algo de cultura (“acredito no amor...”), tem algo de
feminino (“mulher ama de verdade”) e algo de masculino (“homem gosta de variar”), etc.
Essas categorias, de forma alguma são estáticas, sendo forças cinéticas revestidas de sentido
e que estabelecem percepções sinestésicas de mundo.
Nos fragmentos de discursos amorosos que privilegiei citar até aqui, temos o
sentimento “amor” preso na sentença, mas estourado de significados. As constatações dos
relacionamentos que Ana e Alice fizeram em suas redes sociais nos mostram como este amor
está investido concomitantemente de contemplação e sentido prático em suas vidas
amorosas. Tanto as ações dadas para as superações dos amores fortuitos, quanto as carências
situadas em contexto de falta de escolha no mercado dos afetos pautam o caleidoscópio de
sentidos de amar como possibilidade de reflexão e compreensão destes mesmos contextos.
“Eu fui fiel com ele”, “fui fiel com o meu coração” são os mantras da superação e “sou mais
40
Michelle Rosaldo (1980) fala de emoções como “pensamentos corporificados”
87
eu” o mantra da suficiência. Assim, para elas, ser romântica é entender a natureza profunda e
sensível dos seres. É pescar afeto num mar de desamores.
Ana, Alice, Paula e Donatela possuem vidas perseguidas por caminhos descontínuos.
A carreira da prostituição não é exercida de maneira linear (Diaz-Benitez 2011). Penso em
retalhos não como sinônimo de sorumbático – como explicado anteriormente –, mas em
vidas moldadas por diversas frentes: um todo formado de partes das mais diversas sortes.
Relações travadas sempre em consonância ao que se pode ser feito, “se virar”41. Vida
criativa e arte de viver na margem.
Durante as minhas primeiras incursões para fazer entrevistas, pouco antes das
Olimpíadas no Rio 2016, Ana, Paula e Donatela já se mostravam animadas. “A copa não me
rendeu muito, mas as olimpíadas tão aí! Vamos ver”, disse Paula. Donatela já estava atenta
aos circuitos que teria que fazer para capturar o grande volume de turistas que
desembarcariam no Rio no período do evento. Sites internacionais de acompanhantes, pontos
41
Discutir precisamente o “se virar” poderia nos enveredar à temática de “profissionalização” a qual não é meu
intuito. Para mais ver Almeida 2012 e Eugênio 2012.
88
específicos de prostituição, tudo isso já estava sendo catalogado para que garantissem uma
conta bancária mais abastada no fim do ano.
A atenção à movimentação aos altos e baixos do mercado do sexo é que pode garantir
uma maior conquista financeira. Relembrando novamente o capítulo dois, vimos como
Donatela saiu de Roma para a ilha de Sardenha, pois lá o mercado estava mais valorizado.
“Quando não sai nada por anúncio eu desço pro ponto”, me diz Paula. A capacidade de
moldar o sucesso está intrinsicamente ligada, para além dos padrões corporais de maior
apreciação, à percepção do mercado e a capacidade de “se jogar”. Donatela não faz
programa somente no Rio de Janeiro. Ela vai pra São Paulo ou vai para o interior: “minha
amiga falou que o motel tava bombando lá em Ribeirão Preto, daí eu fui”.
Gilberto Velho (1987) constata que projeto é uma categoria que se revela mais
facilmente em contextos de camadas médias. Todavia, ele aponta também para a necessidade
de compreensão do lugar em que se desponta este ideário. O autor afirma que
Alice, perseguindo sua carreira de atriz, nos revela numa postagem no seu Facebook
de agosto de 2016 como estava feliz com a presença da mãe numa peça de que participou
“Qd [quando] comecei a estudar teatro o meu sonho era fazer uma novela
pq [porque] eu sabia que minha avó amava e que aquela seria uma forma
dela me assistir. A arte me tornou uma pessoa melhor e sempre vem me
surpreendendo, nem precisava disso tudo para eu amar cada vez mais o
teatro. Minhas noites dos últimos finais de semana tem sido incríveis e essa
89
passada foi mais que especial, pela primeira vez minha mãe foi me assistir
no teatro, ela está ao meu lado, me parabenizou e disse estar cheia de
orgulho de mim”.
Alice anda fazendo circuito de peças pelo Rio de Janeiro. Mas a presença de sua mãe,
pela relação tensa que fora construída após sua expulsão de casa (ver Capítulo 1), auxiliou o
reestabelecimento de vínculos. Mas Alice almeja conquistas maiores. Numa conversa ela me
diz “meu sonho é fazer novela na rede globo”.
Como a leitora ou o leitor pode ter percebido até aqui, vim costurando os sonhos de
minhas interlocutoras como uma perspectiva de projeto. No trecho que destaquei numa das
sessões anteriores, Ana é mais enfática nessa aproximação. “Meu plano pra daqui há.... meu
futuro é estar morando na Europa”, “casada”, “com filhos”, “sou muito sonhadora”. A
possibilidade de se pensar os investimentos futuros a partir dos sonhos é uma tentativa de
levar a sério essa experiência como projeto. Acredito que o uso da palavra sonhar em
detrimento de planejar, na grande maioria dos casos, é a expressão das dificuldades que
realizá-los pode ter numa vida marcada por tantas rejeições. Mas a manutenção do caráter de
“sonhadora” e as realizações (ou certezas de realizações) como a presença da mãe de Alice
em sua peça ou a constatação pelo reflexo de psicóloga no espelho elaboram formas de agir
90
que podem emergir e se tornarem novos modos de vida. Sonhos funcionam como “fios de
Ariadne”, como plataforma de esperança na busca por realidades mais amenas. Sonhar é
transbordar.
42
(ver Olivar 2013, Piscitelli 2002, Blanchette e DaSilva 2009 para ao entrave entre prostituição e feminismo
radical).
43
O movimento no Egito começou nos anos 70 e a etnografia da autora foi feita nos anos 90.
91
Entretanto, dizer que Mahmood estava apenas atraída pela expansão do número de
mesquitas, seria minimizar seu interesse de análise. A autora foca seu trabalho no que
aconteceu cerca de vinte anos depois do início do Islamic Revival, isto é, quando
progressivamente as mulheres foram se tornando figuras fortes e presentes nos cotidianos
destes espaços. Primeiramente dentro de suas próprias casas e depois chegando nas
mesquitas, elas começaram a organizar semanalmente atividades religiosas com o intuito de
ler, ensinar e aprender mais sobre o Corão. Isso se deu por dois motivos que se
retroalimentavam: a reação à sombra do ocidente, que crescia nos países mulçumanos, e a
busca por uma vida piedosa, pura e sem pecados (ibidem).
O dia-a-dia no Egito foi se modificando fortemente depois do progressivo aumento
de popularidade do movimento de mesquitas. O chamado para piedade (da’wa)
“Have affected within Egyptian society. This includes changes in styles of dress
and speech, standards regarding what is deemed proper entertainment for adults
and children, patterns of financial and household management, the provision of
care for the poor, and the terms by which pubic debates are conducted.” (2012: 04).
44
A autora usa em inglês “feminist scholarship”, aqui traduzi para escola. Entretanto, o significado que a
palavra scholarship possui não é tão fechado. Ele diz respeito a uma corrente de pensadores não
necessariamente ligados pela mesma instituição.
92
transformação deve ter como plano de fundo uma análise de práticas específicas de
subjetivação que fazem os sujeitos de uma determinada situação, possíveis. Dessa forma, a
autora apresenta uma dupla negação do humanismo ao “recusar recuperar as membras do
movimento de mosteiro tanto como “feministas subalternas” ou como, de certa forma,
“fundamentalistas” na agenda progressiva do feminismo (2012: 154). Assim, a etnografia de
Mahmood intenta mostrar a profunda inabilidade da atual política feminista de entender
outras formas de crescimento humano para fora do escopo do pensamento liberal. Na
verdade, a negação do entendimento humanista é anterior a sua crítica ao feminismo. Ela
rejeita que os sujeitos são soberanos e este fato tonaliza todas as páginas de Politics of Piety.
Os casos que Mahmood traz em sua rica etnografia claramente apontam para o que
seria tipicamente entendido como relatos da submissão da mulher pelo olhar feminista. Mas
Mahmood dá um foco especial na capacidade de moldar o próprio corpo para alcançar
sentimentos almejados. Então agência aqui, aparece desligada de resistência às normas,
aparece como uma modalidade de ação.
Foucault inspirou Mahmood para pensar a noção de agência ou a possibilidade de
agência, uma vez que esta está sempre circunscrita pelo contexto histórico. E é justamente
por este motivo, que Mahmood não tem intenção alguma de propor uma teoria geral da
agência. Devemos entendê-la sempre como algo aberto que precisa de uma análise mais
aproximada com a realidade observada. Um viés central na etnografia de Mahmood, talvez a
principal contribuição de seu trabalho, é a ideia de agência não como disruptiva à norma,
mas como aquilo que habita na norma. Essa possibilidade se abre, justamente, na ênfase que
a autora dá para o corpo. O papel do corpo é de convergir as possibilidades de criação de
sujeitos virtuosos, os quais são cristalizados pela ação moral. Dessa forma, as agências que
habitam a norma passam a ser agências incorporadas. Isto é, sujeitos que transitam bem entre
as normas e utilizam-se de seus respetivos corpos para projetar, de forma teleológica, a si
mesmos.
As “turbinadas” e “siliconas” interlocutoras com quem muito conversei, vieram se
colocando como “sonhadoras” em muitos momentos (com exceção de Paula). Pensar tanto
na projeção teleológica – a partir dos sonhos – e nas confecções de si pelo uso de hormônio e
silicones (de todas as sortes), temos uma aproximação considerável da experiência das
mulheres que Mahmood conheceu no Egito dos anos 90. Os papeis masculinos dos
namorados e companheiros das travestis costumam aparecer de forma mais clara em outras
93
etnografias45, relacionados à virilidade, masculinidade dominadora, provedora ou
exploradora, o que não surgiu aqui com tal intensidade. Os homens que possuem, sim,
marcas fortes de masculinidade, foram revestidos também de certa docilidade. Mas é a partir
da construção de um corpo feminino e uma agência pelo corpo que minhas interlocutoras
lançam mão de seus sonhos de se casarem e habitarem uma relação “normal”.
O feminismo negro também tem contribuído com o debate se contrapondo, em
grande medida, a postulados de um feminismo liberal que observa agência apenas (ou mais
significativamente) na resistência. Angela Davis (2005) investiga o mito da matrilinearidade
das famílias negras do período da escravidão e o mito da mulher escrava como doméstica.
Davis intenta mostrar que, enquanto as feministas brancas se movimentaram em prol de um
mercado de trabalho para as mulheres e oportunidades laborais igualitárias em relação aos
homens, a mulher negra nunca deixou de trabalhar.
Davis, como bell hooks (1990), defende a importância do lar para as mulheres negras
e fazem rememorações chaves das condições familiares no período da escravidão. Naquele
momento, comenta Davis, as mulheres negras sofriam também das mesmas punições que os
escravos, mesmo quando grávidas, mesmo enquanto amamentavam (Davis 2005). Este fato
recebe contornos ainda mais cruéis com a abolição do tráfico internacional de escravos. Os
senhores começaram a mercantilizar os corpos de mulheres negras como “breed”,
reprodutoras, cuja ação é vista pela autora como igual à maneira que se comercializavam
animais. Havia um alto nível de exigência de corpos que, além das muitas horas de trabalho,
tinham que cuidar e amamentar seus filhos. Além disso, essas mulheres não possuíam
qualquer direito legal sobre suas crias, que poderiam ser a qualquer momento vendidas para
outro senhor. No pouco tempo que as escravas tinham para si, gostavam de cuidar de seus
espaços e de realizar afazeres domésticos, signos que eram vistos como marca da
inferioridade feminina do movimento de libertação das mulheres que atuava no século XIX.
Ademais, contrariando as pesquisas desenvolvidas até então, mesmo que muitas
famílias negras tenham se desfeito de maneira forçosa pela experiência da escravidão,
haviam resistências, explica a autora. Resistências essas que encontravam eco nos afazeres
domésticos e cuidado do lar, nas distribuições igualitárias de trabalho entre os maridos e suas
mulheres (Davis 2005). Isto é, para a autora, falar que a mulher negra submetia ou era
45
Sobre virilidade e masculinidades como tônica central de desejo ver Pelúcio 2011, Kulick 2008, Silva 2007
para o diálogo com travestis e Perlongher 2008 em relação ao mercado do sexo de michês.
94
submetida pelos seus maridos é distorcer uma realidade de vida em escravidão (idem: 18). A
valorização do trabalho doméstico residia, portanto na sua utilidade na vida dessas mulheres,
pois a sua contrapartida, o trabalho no campo, era realizado para os senhores e, portanto,
inútil. Dessa forma, tendo em vista as marcas da escravidão e a dificuldade de
estabelecimento de família, ser esposa era um lugar que valia a pena lutar para conquistar.
(Davis 2005).
bell hooks pensa da mesma perspectiva a partir de sua experiência em seu bairro de
infância, um gueto negro. Quando ia visitar seus avós num bairro branco pobre, sentia-se
fortemente insegura, tendo em vista os olhares de desconfiança da população branca que
envolvia a casa dos avós. Quando finalmente chegava, sentia-se aliviada e dali poderia
restaurar suas energias (hooks 1990). O espaço privado da casa funciona para a autora como
um espaço catártico, como um refúgio, onde não há nenhuma forma de segregação racial e
configura-se, portanto, num espaço de resistência. Pensar o espaço doméstico como
opressão, segundo a perspectiva das duas autoras, é aliar a ideia de casa a uma perspectiva da
burguesia branca, o que impossibilitaria uma compressão desse espaço como uma plataforma
política e, simultaneamente, como um espaço para o fortalecimento das emoções.
Quando tomamos a dimensão da conquista da família (ver capítulo 2) como uma
possibilidade política de confrontamento das disposições morais vigentes temos em vista o
este embate na existência do dia-a-dia. Isto é, o tecido do cotidiano que molda os afetos e as
catarses desenha resiliências aos processos de opressão, mesmo habitando a norma da casa e
afazeres domésticos. Tanto no caso de Davis, hooks e Mahmood quanto na minha etnografia,
a família aparece com um reduto idílico de conquista, pois vem sendo negado para essas
mulheres compulsoriamente através das moralidades vigentes e atestam uma reação – pelas
vontades, pelos sonhos – dos requerimentos dos mesmos espaços.
Como a leitora ou o leitor devem ter percebido no decorrer desta dissertação, Paula
aparece sempre como exceção àquilo que estou afirmando. Como vimos no capítulo 1, o
suporte da família é “mais ou menos”, mas mesmo assim Paula consegue ajuda financeira da
95
mãe para se apoiar na universidade em que estuda. Advinda de uma família de classe média
da zona oeste carioca, Paula tem percepções um tanto quanto destoantes de minhas outras
interlocutoras. Grande parte disso é devido ao seu envolvimento com grupos militantes
feministas e transfeministas na sua universidade e seu discurso moldado também pelos
conhecimentos que adquiriu no curso de Ciências Sociais.
Na segunda entrevista que fiz com Paula, ela reconhece que sua trajetória é
privilegiada em relação a outras experiências de transexualidade e travestilidade. Ela me diz,
“Eu tenho sim [privilégios]. Principalmente por estar no nível superior. A maioria das
profissionais não chegaram lá. Todo mundo tem opção de ter outro trabalho, só que a renda
seria inferior. Geralmente”. Sua página do Facebook é recheada de “textões” transfeministas
– que adora fazer – os quais pensam a carreira das mulheres prostitutas e a experiência de ser
transexual como empoderadora:
Seus textos são sempre regados de muitas discussões nos comentários e recebem
dezenas (por vezes centenas) de curtidas. Abaixo reproduzo um debate, entre Paula e homem
(que nomeei A) gerado pelo texto acima:
96
amor e homem quer sexo é bem sexista. Eu só quero fazer meu trabalho e
ganhar meu dinheiro. Foda-se como eles me veem.
A: Então darling, mas onde está o empoderamento? Ganhar dinheiro é outra
questão, e q permeia longe desse argumento.
A: Não estou em nenhum momento criticando o ofício, mas o termo
empregado, não me entenda mal.
Paula: Eu já expliquei no post. Socialmente eu era aquela mina que ninguém
queria ficar e que faziam piada. Se um cara me beija na balada "por engano"
os amigos ficam zuando. Hoje eu vejo q eu sou desejada e a sociedade é
hipócrita. Tenho mais auto-estima e inclusive me tornei mais exigente com
relações fora do trabalho. Hoje tenho liberdade sexual e não preciso sair de
graça com nenhum cara q me desvaloriza pq eu ja faço no trabalho como
uma relação comercial e não me sinto mal por isso.
Paula: duas reflexões: A gente tem o direito de criticar o que outra pessoa
considera um canal de empoderamento pessoal? Principalmente pessoas que
vivem realidades que não conhecemos? Uma pessoa se prostituindo está
sendo mais tratada como mercadoria/objeto/engrenagem do que alguém
num trabalho insalubre e extenuante, mas socialmente aceito?
A: eu critiquei quem? Só não concordo c o termo, mas se a pessoa em
questão se sente dessa forma, quem realmente sou eu p questionar algo.
Acho q te faltou interpretação ao texto q escrevi, não critiquei o ofício em
questão.
A: E segundo dados do IBGE, a maioria esmagadora das profissionais do
ramo se declararam infelizes ou insatisfeitas c o trb executado. Aí te
pergunto, onde está o empoderamento? Só acontece em situações muito
específicas...
Paula: acordar cedo, pegar ônibus lotado, pegar uma carga horária extensa,
ouvir esporro do patrão e nem ganhar um salário digno. Antes de falar da
minha profissão tem que olhar mais a sua volta pra vc não cair na
parcialidade.
Assim como Ana, Alice e Donatela, Paula se sente desejada no mercado do sexo.
Entretanto, diferentemente das duas primeiras, uma sensação de “vazio” parece não
acometê-la na pluralidade de relações fortuitas e comerciais que estabelece na sua vida.
Acredito que Paula, embora tenha razão na sua percepção de que situação marginal que a
prostituição se encontra acaba atraindo prazeres marginais – o que ela localiza como
“mulheres negras”, “gordas” e “trans” peca por não compreender que há margens nas
margens. Isto é, o mercado do sexo, principalmente entre as mulheres trans-travestis, é um
espaço de disputas, manipulações do corpo, hormonizações, cirurgias de todas as sortes em
busca de moldar um corpo cada vez mais “boazuda” para o sucesso entre os clientes e que
determinados marcadores sociais da diferença como ser negra ou gorda fazem sim diferença.
Mas no que diz respeito à sua ideia de “empoderamento”, presente no longo debate com A,
97
Paula encontra a voz nas comparações com trabalhos formais menos valorizados “acordar
cedo, pegar ônibus lotado (...) e nem ganhar um salário digno” como referência às
moralidades vigentes quando o assunto é prostituição. Assim cria um paradigma no qual a
grande maioria dos ofícios são explorados tanto quanto o da mulher que se prostitui. A
diferença é que trabalhar como prostituta lhe rende valorização na auto-estima. Em outra
postagem, Paula deixa mais claro quais são os outros benefícios da prostituição.
98
militância podem ou não aparecer. Essas duas formas de falar não implicam nenhum juízo de
valor por minha parte, apenas ajudam na compreensão de por que Paula destoa de minhas
outras interlocutoras. Isso fica mais evidente na segunda entrevista que fiz com ela, quando
perguntei sobre a discussão, em sua página pessoal do Facebook, que destaquei acima e ela
respondeu direcionando às radfem (feministas radicais)
Já no que diz respeito aos relacionamentos, para Paula as mulheres trans e travestis,
de modo geral, “fazem muito a Alice”, pois todas querem viver uma relação nos moldes da
norma monogâmica. Se sua forma de relembrar sua própria trajetória é marcada por grandes
chaves do discurso militante LGBT e Transfeminista, Paula traça, também, seu próprio
presente e suas expectativas de futuro, por linhas que passam pela vida na militância. Isso
46
Este discurso é recorrente na fala de Indianara Siqueira, conhecida travesti, puta e militante: “Sinceramente,
nós putas não temos culpa porra nenhuma da exploração da mulher na sociedade patriarcal e machista. A culpa
é da sociedade patriarcal e machista. Quem diz que se acabam as putas acaba o patriarcado?”. Em outros
termos, se os abolicionistas e os reformistas acreditam que a causa da prostituição é a pobreza, então porque
não estão combatendo a pobreza?
99
fica bem claro na maneira como ela se estabelece nas relações afetivas. O discurso de Paula
sobre a sua descrença no amor monogâmico se aproxima muito da tônica de certa parte da
juventude de hoje das ditas “camadas médias” sobre relacionamento. Ela diz
Mas eu sou adepta de relações livres (...). Eu não sei se cheguei a falar isso
com você na nossa outra conversa, mas foi isso que mais me estimulou a
virar garota de programa. Porque antes, quando eu acreditava no namoro no
casamento, a ideia de trabalhar como garota de programa não passava na
minha cabeça, entendeu? Porque eu realmente acreditava no casamento
como ideal.
Você fala relacionamento livre como poliamor?
Relacionamento livre mesmo, livre, livre. É assim, as pessoas acham que
não tem compromisso, mas isso não significa que não haja alguma coisa
séria, entendeu? Mas assim, prefiro deixar as coisas acontecerem sem forçar
alguma coisa. Gosto do meu espaço.
Mas estar em um relacionamento com uma ou mais pessoas é uma ambição
sua ou não é algo que te preocupa?
Eu acho que todo mundo precisa de afeto pra estar bem. A questão é como
você vai construir isso. Eu penso em construir de uma forma livre. É algo
que me faz bem e que eu busco, sabe?
100
3.5: PANO DE FUNDO
Neste momento final, gostaria de pensar tudo aquilo que tem atravessado essa
dissertação até aqui. A maneira que Paula manifesta seus descontentamentos me pôs a pensar
nessa relação com minhas outras três interlocutoras. Alice se prostituiu por três anos, entre
2005 e 2008. Ela disse que depois disso foram em raras ocasiões que precisou recorrer à
prostituição para conseguir renda. Donatela se prostitui há mais de dez anos, uma das
primeiras coisas que me disse foi que não gostava de ser prostituta. Ana se prostitui há dois
anos e também diz que preferiria fazer outra coisa. Acontece que, de forma concomitante,
todas as três valorizam a profissão em vários momentos. Se sentem desejadas (nisso que
Paula traz sobre empoderamento), “fazem” muitos homens feios, mas fazem muitos vícios.
Por diversas ocasiões, seja nas entrevistas ou por Facebook, elas afirmavam “nossa, esse eu
chupava até o ‘edy’47”, “tem cliente que vira crush”, “conheci um ‘ocó’48 tão fofo, mona”,
“ganhei tanto dinheiro essa semana”, “fiz mil num dia, não sei nem o que fazer com o
‘aqué’49”. As efervescências da profissão são costuradas por meio de ideias de uma
sexualidade intensa, mas todas as vezes que assumiram posturas contemplativas de suas
vidas, afirmaram preferir uma vida “normal”. Desse modo, o desafio de analisar os pontos
negativos das experiências da prostituição se travou ao longo do campo por receio de que
estes discursos pudessem ser tomados como exemplos de ofício que deplora (ou constrange,
extenua e é insalubre como afirmou A) a mulher que o exerce. Por esta razão, acredito ser
indispensável a marcação de que nenhuma de minhas interlocutoras vê a prostituição como
não-digna. Todas elas exercem ou exerceram a profissão em buscas de ascensão social
rápida, em busca de sobreviver fora de casa, autonomia, consumo, lazer, cuidar do próprio
corpo conforme suas “essências femininas” ditam, viajar50... (ver Capítulo 1). Desde esse
ponto de vista, todas elas valorizam a prostituição e o que a profissão tem possibilitado em
suas vidas. No entanto, nenhuma delas nega que a profissão em face do estigma social que a
rodeia, também coloca empecilhos para alguns sonhos. Paula faz uma crítica fundamental,
ao meu ver, quando “devolve a injúria” para outras profissões mal pagas, que requerem
enormes esforços, que exploram seus empregados e assim por diante, mas que ninguém
47
Ânus.
48
Ou bofe, boy magia, homem.
49
Dinheiro.
50
Ver Pelúcio,
101
pretende abolir ou levar para a ilegalidade. Ana, Donatela e Alice até concordariam nisso
com Paula (em que outras profissões podem ser exploratórias), mas o estigma social e os
efeitos da vida no subterrâneo têm maior peso nas suas subjetividades
Donatela estabeleceu com Alexandre um vínculo muito forte que a fez “desistir” do
amor “pelo menos por enquanto”. O “carequinha” que conheci, mesmo sendo alguém que
ela tem alimentado profundo afeto e compartilhado seu cotidiano não despertou nenhum
interesse amoroso, principalmente porque ele demanda uma vida sexual – coisa que
102
Donatela não quer. Diferentemente de Ana e Alice, ela se diz calejada com as desilusões e
não quer enfrentar um término de novo. Sobre se sentir assexuada, no capítulo 2 destaquei
uma frase da conversa que apresento agora na íntegra
Nas primeiras conversas que a gente teve, você falou comigo que se sentia
assexuada. O que isso significa pra você?
Eu ainda me sinto assim. Porque num relacionamento eu não procuro sexo, eu
não procuro o homem bom de cama. Porque assim, eu faço isso vinte e quatro
horas. É um egoísmo meu, mas eu nem espero que meu namorado, meu
companheiro, espere de mim uma porn star, porque ele não vai encontrar,
entendeu? Raramente eu me sinto uma porn star com um companheiro. Por isso
as vezes eu me sinto muito assexuada. O que eu procuro de um namorado... é
alguém pra ver Netflix. Na verdade, eu nem procuro um namorado no momento.
Eu acho que é por isso que eu não consigo gostar do carequinha. Eu gosto dele,
mas não consigo ter um relacionamento por ele porque eu não consigo ter apetite
sexual com o namorado. Eu acho que talvez se eu não trabalhasse, eu teria uma
vida sexual. Porque eu não tenho uma vida sexual, eu realizo as fantasias alheias.
A minha vida sexual é comprada. Por isso eu me sinto assexuada. Prefiro passar
três, quatro dias com minha mãe ou viajar um final de semana inteira com você,
falando besteira e vendo filme do que ficar transando.
Donatela pensa em seguir na prostituição, pois nela consegue comprar as coisas que
gosta e viajar quando bem entender. No momento em que escrevo essas linhas, ela está na
Europa tirando fotos em Roma, Veneza, Pisa, Paris “no melhor estilo ostentação”. Hoje, ela
pode se dar “ao luxo” de escolher os melhores clientes, pois já é figura conhecida nos sites
de acompanhante. Paula também segue querendo perseguir a carreira de prostituta. Não se vê
no futuro fazendo outra profissão, mas reconhece que o título de cientista social pode ser
algo a que ela recorra quando não estiver fazendo mais sucesso no mercado do sexo. Hoje
também sonha em ir trabalhar na Europa.
Tendo em vista as quatro experiências construídas até agora, pergunto portanto, como
a prostituição e a trans-travestilidade costuram um pano de fundo para compreendermos a
qualidade de seus amores?
Larissa Pelúcio (2006) no seu artigo “Três Casamentos e algumas reflexões”, nos
apresenta três diferentes configurações conjugais: entre uma travesti e um homem de classe
média, entre duas travestis e entre uma travesti e um homem de classe popular (Pelúcio
2006). A autora apresenta tanto os desejos entre suas interlocutoras de constituir
conjugalidades sólidas e perenes quanto as inexoráveis dificuldades que o assumir e a
103
prostituição entrecortam os três casos por ela narrados (ibidem). Pelúcio, pensa na qualidade
desta forma de relação como o que configura não-lugar para Butler. Ela afirma
104
Pelúcio, que frequentou diversos encontros de T-Lovers51, pode argumentar segundo
o ponto de vida de seus interlocutores, que não foram privilegiados neste trabalho. Paula
possivelmente concordaria com estes termos. Mas no que diz respeito ao que pude apreender
da experiência trans-travesti de Ana, Alice e Donatela, transbordar-se está para além de ser
pautas revestidas de conteúdo político situado e direcionado. É, na verdade, na e pela
insistência de permanecer no modelo heteronormativo de conjugalidade no qual a mulher
assume o papel típico de esposa e o homem de marido (habitar a norma). Papeis estes que
temos que pôr em perspectiva aos contornos de autonomização dos sujeitos que nos
direcionam para um patamar mais claro de relações conjugais de classe média pensadas no
modelo igualitário somados a manutenção dos binarismos de gênero, os quais nos remetem
ao lugar que estas mulheres trans-travestis preferem estar. Logo, são díades praticadas
segundo às experiências dissidentes das mulheres (e suas carreiras) e do homem (e o amor
que alimenta por elas) - um modelo de relação paradoxal e um tanto quanto deslocado
daqueles que são concebidos como classe média, mas, mesmo assim, perseguidos de maneira
teleológica pelos sujeitos que compõem o casal. Desse modo, podemos pensar que o mister
da escolha e a cola fundamental do amor-romântico aparece por cima daquilo que faz de
minhas interlocutoras “sonhadoras”. Sonhar não deve ser tolhido, pois é campo político
espiritual que intenta erguer-se do subterrâneo através dos mesmos códigos conjugais
legitimados pelo senso comum. Estas relações não estão necessariamente fadadas ao fim. A
sugestão de Larissa Pelúcio de que os vínculos serão fortalecidos pelo investimento político
de questionamento à heteronormativade não se apresenta como a maneira que minhas
interlocutoras se movimentam. Investimentos políticos são revestimentos de ação por forças
extrínsecas acumuladas pelas experiências e leituras de militância que constroem pautas
claras sobre aquilo que se deve combater52. A compreensão de sociedade como forma etérea
de discriminação confrontada a vontade de viver um relacionamento como qualquer outro,
51
T-Lovers é a maneira que se auto-intitulam os homens que sentem desejo por mulheres transexuais e
travestis. (ver Pelúcio 2006).
52
Como Pelúcio coloca o investimento político num lugar privilegiado de ação, interpretei que a autora
estivesse sugerindo uma cinética coesa e situada tendo em vista a maneira que ela constrói o argumento – por
isto somo a possibilidade da militância estar presente, mesmo esta sendo uma potência não dita. Caso não seja
essa a intenção da autora, o investimento político mesmo que privilegiado, seria, portanto, exercido de maneira
que mais se assemelharia com as movimentações de minhas interlocutoras (com exceções de Paula). Assim,
mantenho minha sugestão de que há duas possibilidades – de exercer ação pelo que podemos entender como
discurso militante ou exercer ação pelas experiências e a maneira mais ou menos clara da reprodução desses
discursos que chegam, de forma difusa, até estas mulheres. Todavia, seja por pautas claras ou difusas, não
compreendi, durante minha experiência de campo, que esta é uma postura que queiram pôr em voga e, por essa
razão, mantenho minha crítica nestes contornos.
105
nos mostra que a capacidade de deslocamento dos paradigmas heteronormativos não é pelo
questionamento de seu status nas macro configurações, mas na sua conquista pela
(re)existência do cotidiano de suas relações tidas como heterossexuais. Ou seja, mais do que
agirem por forças combativas maiores do que os pequenos passos da unidade do casal, elas
querem apenas exercer amores nas micro configurações de suas vidas relacionais. O desafio
de lograr na mesma norma aquilo que se pretende exercer como casal não exclui a
possibilidade que esta mesma norma sofra pequenos deslocamentos (vide o fenômeno de
reentranhamento que Donatela e Alice provocaram). Dessa maneira, o engajamento político
se configura como segundo plano (que é percebido “sem querer querendo”). Já o amor pode
não ser tão acidental assim na sua insurgência, mas o é como possibilidade política e, assim,
amar é o primeiro plano do discurso de embate às configurações hegemônicas de família e
conjugalidade.
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
107
Estas outras possibilidades se mantêm como temáticas de meu interesse, mas serão
privilegiadas em futuras oportunidades. De forma semelhante, a discussão sobre os
confrontos da identidade transexual em relação a identidade travesti, vividas e expressadas
de modos bem diferentes (grupos etários e trajetórias políticas), foi trazida à baila de maneira
limitada funcionando como um norteador para as discussões que viriam.
A ideia de essência (ou espírito) que apareceu como uma verdade de si presa no
corpo errado é um paradigma que transpassa todas as minhas interlocutoras. Isto nos mostrou
que é possível pensarmos numa “comunidade de emoções” onde existem as vicissitudes de
vidas marcadas por rejeições, confrontos e desafios tanto em suas redes relacionais quanto
em se lançarem para o mercado de trabalho. Desse modo, pudemos perceber também como a
prostituição apareceu diversas vezes como “destino” ou como a única alternativa viável em
momentos em que precisaram perseguir uma vida autônoma com urgência, seja por não ter
casa ou para sair de casa. Mais uma vez, temos uma dupla que conferiu ao marcador etário
uma consonância analítica. Duas das minhas interlocutoras mais velhas tiveram das suas
figuras paternas o despejo que as fez encontrar na prostituição o caminho parar suas
independências.
Outro ponto que atravessa a experiência das quatro mulheres são as reclamações de
confissão. Os sucessivos acontecimentos que antecedem ou sucedem o momento vocativo do
revelar-se, que nomeei “tramas da confissão”, são turning points das relações podendo
exercer força positiva ou negativa a julgar pela reação de quem recebe a informação. A ideia
de trama das confissões se expande para todas as esferas da vida da mulher trans-travesti –
desde o momento em que se confessa para a família suas respectivas identidades de gênero
até as confissões com qualquer desconhecido potente-amigo, potente-amante, etc. As pontas
soltas das tramas sempre acabam nas forças etéreas discriminatórias, as Parcas, que são
manifestações da “família”, dos “vizinhos”, do “povo da noite”, das “pessoas da rua” até a
“sociedade”. São justamente as Parcas as responsáveis por puxar os fios da trama das
confissões e rearranjar as normas que as produções de verdades sobre pessoas e casais
causam como deslocamento. Dessa maneira, a ética de confessar sempre carrega em si a
possibilidade de redenção (ou reentranhamentos Duarte 2009 e 2008). Assim, carrega
também a potência de confecção de duplas morais, novas normas ou contra moralidades. A
expressão “trama das confissões” foi escolhida em detrimento a “trama de confissões”
justamente por compreender que as intrigas são consequências cinéticas do ato de confessar
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e não feitas por confissões. Isto é, só surge em efeito a ação de falar: logo “das” e não “de”
privilegia o dinamismo e imprevisibilidade inexorável da trama.
No que toca ao “grande amor” de Donatela e Ana, temos a revelação do modo tanto
da experiência da prostituição quanto da trans-travestilidade e a capacidade de tensionar o
cotidiano do casal. Isso foi possível de ser vislumbrado pela maneira que a dobradiça do
Cuidado e do Controle foi ganhando forma em sua expressão de ciúmes. Para Ana, o tempo
de ócio após o programa purificava seu corpo. Para Donatela a purificação vinha do banho.
Tomar banho, se limpar, não comer fora de casa, esperar o namorido, não sentar na cama –
além das manipulações de informações sobre os programas e os clientes – desenham as
negociações de rotina e as subjetividades relativas às intimidades. Desse modo, colocamos
em perspectiva os tensores agonísticos que habitam uma relação afetivamente monogâmica
tida como heterossexual e vivida no subterrâneo.
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Isso nos mostra o quanto a dissidência é relativa: Alice, Ana, Donatela e Paula são
dissidentes em suas práticas, suas carreiras e estilo de vida, mas a norma aparece como
horizonte, de modo que simultaneamente há anseios, sonhos ou projetos normativos. Assim,
elas nos mostram que é possível ser um dissidente sexual e, em concomitância, seguir as
normas de gênero, conjugalidade e família (e vice-versa). Deste modo, este trabalho intenta
habitar o marco de estudos em gênero, sexualidade e queer que se preocupa pela dimensão
afetiva dos sujeitos. Isto é, os impactos e efeitos no plano afetivo e psicológico da
discriminação e exclusão causada por ser o que são: corpos inadequados em sexo e gênero e
para os quais o sexo que vendem macula a possibilidade do amor. A experiência da
transexualidade é absoluta, pois toma toda as esferas da vida do sujeito. Logo, a manutenção
dos relacionamentos é diferente entre mulheres trans e mulheres cis de modo que o corpo
trans-travesti está mais fadado à solidão, pois ser prostituta é uma carreira que se pode
abandonar (vide Alice), mas ser trans-travesti é uma marca perene e irremovível no corpo,
mesmo quando “passáveis”, uma vez que à expectativa de confissão dá a tônica de suas
vidas afetivas.
Por fim, reproduzo aqui na íntegra o sensível texto de Alice, publicado em dezembro
de 2016, tanto em sua página no Facebook quanto em seu blog, intitulado “A solidão da
mulher trans” o qual aqui cito sem recuo:
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“Está todo mundo olhando a travesti passar, ou seria o “traveco”? Falam do seu corpo, dizem até que parece
mulher, falam de sua personalidade baseado no que ouvem falar por ai de travestis. Mas se a moça olha, poucos
mudam de assunto, ela vê deboche, humilhação, homens apertando o pau, mas se pede ajuda, ninguém escuta e
se quiser companhia, coitada da moça! É assunto onde mora, não apenas na rua, mas no bairro todo, não
consegue um emprego formal, mas todos estão preocupados em falar como ela ganha a vida, atrai olhares,
principalmente à noite. Mas ela dorme sozinha e tem um vazio no peito que ninguém tem coragem de ocupar.
A Moça traz consigo uma cruz que ninguém quer carregar.
Quem olha de longe não percebe e quem não se aproximar nunca vai saber: a Moça gosta de livros,
principalmente romance, e ouvir Sharon Jones, Madeleine Peyroux, Norah Jones, Nina Simone e Billie
Holiday. Queria ser bailarina, por isso troca uma boa balada para assistir uma apresentação de Ballet. Adora
vôlei, mas tem preguiça de malhar, e de outras coisas também, como filme cult e vê pequenos detalhes onde os
outros enxergam cotidiano. E, acima de tudo, está cansada de tanto assustar e afastar as pessoas, cansada de
esperar vidas se resolverem por uma promessa de futuro e ficar pra trás mais uma vez.
Quem vai cuidar da Moça triste? Quem vai levar de prêmio seu amor? Quem tem coragem de assumir o desafio
e o coração pesado? Apostem suas moedas, esperem o próximo capítulo. Enquanto isso, a Menina também
espera, e esperar dói”
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