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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE
LINGUAGEM

ANA PAOLA DE SOUZA LIMA

NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS:


NARRATIVAS DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS
SOBRE O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

CUIABÁ-MT
2019

1
2
ANA PAOLA DE SOZA LIMA

UFMT
2019
NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS:
NARRATIVAS DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS
SOBRE O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE
LINGUAGEM

ANA PAOLA DE SOUZA LIMA

NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS:


NARRATIVAS DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS
SOBRE O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

CUIABÁ-MT
2019

3
ANA PAOLA DE SOUZA LIMA

NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS: NARRATIVAS


DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS SOBRE O PROCESSO DE
ENVELHECIMENTO

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Linguagem da
Universidade Federal de Mato Grosso como
requisito para a obtenção do título de Doutora em
Estudos de Linguagem na Área de Concentração
de Estudos Linguísticos.

Orientador: Prof. Dr. Dánie Marcelo de Jesus

Cuiabá-MT
2019

4
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

S729n SOUZA LIMA, ANA PAOLA DE.


NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS:
NARRATIVAS DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS SOBRE
O SEU PROCESSO DE ENVELHECIMENTO / ANA PAOLA DE
SOUZA LIMA. -- 2019
145 f. ; 30 cm.

Orientador: DANIE MARCELO DE JESUS.


Tese (doutorado) – Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos
de Linguagens, Cuiabá, 2019.
Inclui bibliografia.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

5
6
Dedico este trabalho a todas as mulheres trans e travestis
que lutam diariamente pela construção de seus corpos
e suas vidas em uma sociedade excludente, que se nega
a entender que anormal é a falta de respeito ao próximo.

7
AGRADECIMENTOS

É humanamente impossível escrever um trabalho acadêmico desta natureza sozinha.


Portanto, nada mais justo que tentar expressar nestas páginas o quanto as pessoas abaixo
listadas foram (e ainda são) importantes para o andamento da minha tese, e para a minha
vida.

Primeiramente, agradeço enormemente ao meu orientador, prof. Dr. Dánie Marcelo de


Jesus, pela sugestão de perscrutar o caminho dos estudos de gênero e linguagem, pela
firme orientação, pelas exigências, cobranças e, acima de tudo, pelo respeito e afeto.
Declaro firmemente que, sem você, Dánie, as presentes páginas não seriam possíveis.
Minha eterna gratidão pela sua atenção, generosidade, preocupação com a tese e com
meus problemas particulares, dicas, leituras críticas e amizade.

Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem-PPGEL, da Universidade


Federal do Mato Grosso, especialmente à profa. Dra. Divanize Carbonieri e ao prof. Dr.
Fernando Zolin Vesz, com os quais tive mais aulas e/ou mais contato.

À minha amiga e irmã, Perla Haydee da Silva, que fez o meu trilhar mais leve, mais
divertido e suave, sempre com dicas, comentários, risadas, conselhos e comida, muita
comida!

A todos os meus colegas do PPGEL pelas conversas e momentos de construção de


conhecimento.

Às Profas. Dra. Amara Moira e Dra. Rubra Araujo, aos Profs. Dr. Renilson Ribeiro e Dr.
Luís Mendes pelas importantes e essenciais contribuições em meus exames de
qualificação. Agradeço a vocês também pela disponibilidade em atender às minhas
necessidades e por terem aceito o convite. Vocês foram de uma delicadeza, atenção,
minúcia que só fizeram de mim uma pessoa melhor.

À Maria Aparecida dos Santos, minha coordenadora geral no Centro de Línguas-CELIG,


que, além de me ouvir nos momentos mais difíceis da tese, foi amiga, parceira,
companheira, paciente e uma chefa maravilhosa. Obrigada pela honestidade, sinceridade,
companheirismo e motivação.

8
Ao Centro de Línguas-CELIG e a todos os seus professores que me apoiaram e
entenderam a minha correria em diversos momentos. A todos os meus alunos do CELIG
pela paciência com uma professora que finalizava a sua tese.

A Ricardo Hakme Romano, meu amigo, meu amante, meu parceiro, meu amor. Minha
gratidão pelo seu apoio incondicional, sua compreensão, seu suporte sem
questionamentos, por me ouvir falar de coisas que são totalmente diferentes da sua
atuação profissional, por participar comigo de coisas que estavam além da sua
compreensão e, principalmente, por ser tão pronto para ouvir, aprender e questionar. Você
está se tornando um doutor junto comigo. Obrigada pelo seu amor, companheirismo e por
ter constituído uma família ao meu lado.

À minha borboleta Eloísa, por me ensinar que nada melhor que um sorriso, um abraço
apertado e um beijo estalado para recomeçar.

Aos meus pais, Regina e José, pelo suporte financeiro. Agradeço também por terem
desaprovado o tema e por me descredibilizarem enquanto sujeita que pensa e toma
decisões. Vocês foram a força mecânica que fez minha máquina trabalhar para chegar até
aqui.

À minha tia Sandra Regina de Araujo, a vó Oca, minha segunda mãe, que foi tão querida
com minha filha nos momentos em que precisei me ausentar e não tinha quem cuidasse
dela. Que sempre nos encheu de pipoca com guaraná, fez todas as minhas vontades e não
mediu esforços para me apresentar todas as travestis que encontrava na rua e falar da
minha pesquisa.

Agradeço também à minha avó Letícia Gonzaga de Araujo (in memorian), falecida
durante a escrita da minha tese, e que tanto me motivou para que eu alcançasse os meus
objetivos.

À minha amada avó Wandi de Lira Lima (in memorian) que também me deixou nos
últimos meses da tese. Obrigada pelo seu amor incondicional e pela fé que tinha em mim.

À minha irmã de alma, Alessandra Calçada Aguiar, e à sua companheira Tatiany Aguiar
Calçada, que tanto me apoiaram, incentivaram, ouviram, sugeriram e me divertiram no
decorrer deste árduo processo. Amo vocês para sempre.

9
Aos melhores amigos que alguém pode ter: Thiago Itacaramby e Alessandra Moreira
Itacaramby, minha gratidão e meu afeto eternos por todos os momentos em que me
acolheram, me serviram “pão seco”, uma cama confortável e me ensinaram tanto sobre a
vida. Não há palavras para expressar o quanto amo vocês.

Minha gratidão à minha grande amiga Jordana Lenhardt por ser sempre tão presente e
espirituosa, com resposta para tudo, olhos nas costas e ouvidos sempre a postos. Penso
que Deus foi muito generoso comigo. Obrigada, amiga.

Meu agradecimento especial a George Santana, a Twigue Vogue, a minha drag favorita
que me acompanhou pela estrada BR 163, sempre me atualizou do mundo trans, com
dicas de vocabulário, sugestões de livros e, acima de tudo, me apresentou algumas das
interlocutoras que fazem parte desta pesquisa.

Várias pessoas contribuíram para que minha ida ao doutorado acontecesse. Meu
agradecimento especial à profa. Ma. Paula Sampaio, do departamento de História da
Universidade Federal de Mato Grosso, Câmpus de Rondonópolis, que me convidou para
participar de seu grupo de estudos Gênero e Cidadania, grupo este que me abriu os olhos
para inúmeras questões sociais e de gênero existentes em Rondonópolis. Agradeço
também ao prof. Dr. Aguinaldo Rodrigues Gomes, do departamento de História, hoje na
Universidade de Uberlândia, que prontamente aceitou ler o meu pré-projeto e tão
carinhosamente ofereceu sugestões de leituras e redação.

Ao atencioso Prof. Dr. Neil Franco pelas valiosas sugestões e por intermediar algumas
entrevistas, sempre muito disposto a me ajudar.

À minha querida colega Profa. Dra. Julma Vilarinho Borelli pelo acolhimento, carinho,
paciência e sorriso estampado no rosto, nos momentos finais e mais difíceis desta tese.

Ao meu querido amigo Jaelyton Campos. Você é indescritível. Meu agradecimento por
todas as sugestões, todos os prints de conversas de grupos do Whatsapp dos quais eu não
podia participar. Muito obrigada por me mostrar caminhos, me indicar pessoas, sugerir
reflexões. Não há como me esquecer de todos os vídeos que você me encaminhava e das
risadas que demos juntos. Você está para sempre no meu coração. Para sempre.

10
A Adriana Liário que desde o início me acolheu e me colocou “dentro da sua casa”. Meu
agradecimento pelo carinho, atenção, respeito e por ter aberto portas para que eu
realizasse minha pesquisa dentro da sua comunidade.

Às travestis Dê Silva e Bruno do Prado Alexandre. Vocês são demais. Não há palavras
para descrever a admiração que tenho por vocês na luta por uma sociedade mais
igualitária.

Uma pesquisa qualitativa acontece a partir do momento em que pessoas estão dispostas a
partilhar. Sendo assim, esta pesquisa não existiria sem aquelas que me cederam suas
histórias, sua atenção e seu tempo no intuito de me auxiliar a entender suas vivências.
Meu eterno agradecimento a todas as mulheres trans e travestis que colaboraram tão
grandemente com o trabalho.

À grande amiga que ganhei de presente no decorrer da pesquisa, Sara Wagner York.
Muito obrigada pelos abraços virtuais, histórias, vivências, carinho.

À Profa. Dra. Simone Ávila pelos insights, relatos, pelas dicas preciosas advindas de
conversas inocentes regadas de muito carinho, respeito e pitadas de cigarro.

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Bordando a vida

A agulha é o tempo;
Que costurou esta história,
Tão rápida como o vento;
Remendando as memórias.

O passado já não volta;


Só me resta a saudade;
Então toque logo a valsa;
Desta tal realidade.

No bailado desta vida;


Eu dancei em verso e prosa;
Com o moço ou a dama mais bonita;
Sob pétalas de rosas.

As linhas da minha pele;


Fizeram a trama mais bela;
A lembrança que remete;
O florescer das primaveras.

Que as rendas da felicidade;


Bordem este lindo sonho;

Tecendo a colcha das amizades


Me afastando do abandono.

Eu ainda tenho medo;


De sofrer injustamente;
Não retirem meus direitos;
De viver dignamente.

Nos meus cabelos a brancura;


Como fios de algodão;
No meu rosto a ternura;
Nos meus braços a paixão.

Meu silêncio, às vezes, é grito


Contra seu preconceito pobre;
Só não julgue meu espírito;
Eternamente jovem.

Da lágrima ao sorriso;
Da dor à esperança;
vou escrevendo o meu livro;
de amor e de lembranças.

Eu sou o reflexo do espelho;


Eu sou o brilho da aurora;
Eu sou quem precisa de respeito;
Eu sou a pessoa idosa

Paula Bennet

12
RESUMO

As vivências de mulheres trans e travestis desencadeiam uma série de análises acerca do


binarismo de gênero homem/mulher, uma vez que sua materialização ocorre por meio da
construção de uma imagem que destoa da imagem da feminilidade imposta pelo discurso
hetero-cis-normativo. Outrossim, a categoria geracional velhice, igualmente, insere-se em
um campo minado por discursos orientados por binarismos outros como
saudável/prejudicial; digno/indigno; certo/errado; belo/feio. Essa pesquisa de doutorado,
portanto, visa analisar narrativas acerca do processo de envelhecimento de mulheres trans
e travestis, com os objetivos de a) compreender como as travestis/mulheres trans
constroem sentidos acerca de si, sejam elas idosas ou não; b) entender como as mulheres
trans/travestis percebem/significam o seu processo de envelhecimento; c) assimilar como
as mulheres trans/travestis articulam as noções de gênero e envelhecimento na sua
construção identitária. As perguntas que nortearam esse estudo foram: 1. Como as
travestis/mulheres trans significam o seu processo de envelhecimento?; e, 2. De que
maneira as violências sofridas pelas travestis/mulheres trans em suas trajetórias são
determinantes/marcadores do início do seu processo de envelhecimento? Para tanto,
lancei mão da pesquisa qualitativa-interpretativista (FLICK, 2009; KING; HORROCKS,
2010; DENZIN; LINCOLN, 2006), uma vez que ela não constitui-se em outro binarismo
– certo/errado, mas apoia-se na leitura de um determinado contexto a partir das lentes de
um dado investigador. A entrevista narrativa foi a principal ferramenta constituída por
meio de perguntas abertas. Os resultados indicam que o processo de envelhecimento das
sujeitas em referência não se fixa em uma idade cronológica, de igual modo, sofre
influências das inúmeras formas de violência enfrentadas pelas mulheres trans e travestis
nas ruas.

Palavras-chave: Mulheres trans e travestis; transgêneras; envelhecimento; velhice;


discurso.

13
ABSTRACT

The experiences of trans women and transvestites trigger a series of analysis about the
gender binarism male/female, since their materialization occurs through the construction
of an image which distorts the image of femininity imposed by the hetero-cis-normative
discourse. Moreover, the age-old generational category, likewise inserts itself in a field
undermined by discourses guided by other binarisms as healthy/harmful;
worthy/unworthy; right/wrong; beautiful/ugly, youth/elderly. This doctoral research,
therefore, aims to analyze narratives about the aging process of trans women and
transvestites, with the objectives of: a) understand how travestites/trans women construct
meanings about themselves, whether they are elderly or not; b) understand how
travestites/trans women perceive/signify their aging process; c) assimilate how
travestites/trans women articulate the notions of gender and aging in their identity
construction. The questions that guided this study were: 1. How do travestites/trans
women mean their aging process? and, 2. In what ways do the violence suffered by
travestites/trans women, in their trajectories, determine the markers of the onset of their
aging process? For that, I used qualitative-interpretative research (FLICK, 2009, KING;
HORROCKS, 2010; DENZIN; LINCOLN, 2006) since it does not constitute another
binarism - right / wrong, but it supports in a given context from the lens of a given
researcher. The narrative interview was the main tool, organized as open questions. The
results show the aging process of trans women and travestities is not based on a
chronological age, and also, it suffers influence of a variety of manners of violence faced
by them.

Key-words: Travestites and trans women; transgenders; aging; elderly; discourse;

14
RESUMEN

Las vivencias de mujeres trans y travestis desencadenan una serie de análisis acerca del
binarismo de género hombre / mujer, una vez que su materialización ocurre por medio de
la construcción de una imagen que desentona de la imagen de la feminidad impuesta por
el discurso hetero-cis-normativo. Asimismo, la categoría generacional vejez, igualmente,
se inserta en un campo minado por discursos orientados por binarismos otros como sano
/ perjudicial; digno / indigno; correcto / incorrecto; bonito / feo. Esta investigación de
doctorado, por lo tanto, busca analizar narrativas acerca del proceso de envejecimiento
de mujeres trans y travestis, con los objetivos de a) comprender cómo las travestis /
mujeres trans construyen sentidos acerca de sí, sean ancianas o no; b) entender cómo las
mujeres trans / travestis perciben / significan su proceso de envejecimiento; c) asimilarse
como las mujeres trans /travestis articulan las nociones de género y envejecimiento en su
construcción identitaria. Las preguntas que guiaron este estudio fueron: 1. ¿Cómo las
travestis / mujeres trans significan su proceso de envejecimiento?; y 2. ¿De qué manera
las violencias sufridas por las travestis / mujeres trans en sus trayectorias son
determinantes / marcadores del inicio de su proceso de envejecimiento? Por lo tanto,
renuncié la investigación cualitativa-interpretativista (FLICK, 2009; KING;
HORROCKS, 2010; DENZIN; LINCOLN, 2006), una vez que no se constituye en otro
binarismo, correcto / equivocado, pero se apoya en la lectura de un determinado contexto
a partir de las lentes de un investigador. El cuestionario tuvo por delimitador la entrevista
narrativa, por medio de preguntas abiertas. Los resultados indican que el proceso de
envejecimiento no se fija a una edad cronológica, de igual modo, sufre influencias de las
innumerables formas de violencia enfrentadas por las mujeres trans y travestis en las
calles.

Palabras clave: Mujeres trans y travestis; transgénero; envejecimiento; vejez; discurso.

15
SUMÁRIO
Os Primeiros Passos 17

CAPÍTULO 1: Considerações acerca do envelhecimento: o babado e a


confusão encontrados nas pesquisas 40

1.1 O envelhecimento biológico nos seres humanos 41

CAPÍTULO 2: O Corpo: Uma Metamorfose Ambulante 61

2.1 O corpo da Grécia Antiga até os tempos atuais 62

2.2 Corpos indisciplináveis, corpos nada dóceis e o diálogo com


Foucault e a Teoria Queer 71

CAPÍTULO 3: Transitando Pelos Preceitos Metodológicos 77

3.1 O caminho bafônico: da escolha da abordagem metodológica


ao tratamento dos dados 79

3.2 As tias, as vós e as novinhas: elas arrasam! 86

CAPÍTULO 4: Corpos em Transformação: os babados contados por


Travestis/Mulheres Trans 99

4.1 Ai que batifum! 100

4.2 Se joga! 117

(IN) CONCLUSÕES 125

REFERÊNCIAS 133

16
Os Primeiros Passos

Colorir

Faltará tinta
No dia que o céu for livre
Pra todos serem o que são
Cobertos pelo sol, sem nenhum tipo de opressão
Faltará nomes
Pra descrever o mundo sem as misérias
O que sentimos, o que nos tornamos
O novo ser sem medo de viver
Faltará a falta que nos entristece
Que hoje enche o peito de vazio e fumaça
Não faltará amor, não faltará sonhos
O novo mundo se abrirá para o futuro
Onde o presente dominará o passado
E nossos corações enfim serão salvos

Virgínia Guitzel

D
esfile de 7 de setembro de 2017: encostei em uma árvore, para me
proteger do sol ao lado da “Rita Lee”, ou “a vó”, como é
conhecida uma das travestis1 mais velhas da casa da Meire2 –
pouco mais de 50 anos. Trocamos algumas palavras enquanto aguardávamos o restante
do grupo chegar e podermos nos organizar para nossa entrada na avenida. Acendemos
um cigarro e fitei as demais meninas3. Corpos besuntados de sexualidade, seios fartos,
glúteos avantajados, maquiagem retocada, cabelos longos e escovados, unhas feitas,
saltos altos.

Algumas gritavam numa alegria contagiante, outras retocavam o batom,


ajeitavam o cabelo, numa sensualidade sem fim. As bichas4 queriam causar. Com toda

1
A Rita Lee é o apelido da vó, uma das travestis mais velhas da casa onde mora. No decorrer da pesquisa,
ela aparece como Jussara, um nome fictício, pois a mesma me pediu que seu nome verdadeiro não
aparecesse por já ter trabalhado com pessoas conhecidas na cidade de Rondonópolis-MT.
2
A casa da Meire, nome fictício, é uma casa localizada em Rondonópolis que abriga aproximadamente
trinta mulheres trans e travestis, oriundas de várias regiões do país, que passam pela cidade em busca de
emprego, tratamento de saúde, ou como visitantes, e acabam ficando por não terem um local seguro para ir
e se fixar. Meire, autodenominada travesti, possui mais de cinquenta anos, porém não aceitou participar da
pesquisa.
3
Percebi que na casa da Meire as travestis e mulheres trans, em alguns momentos, se chamam de meninas.
Embora o termo possa soar infantil, optei por utilizá-lo em alguns momentos, de modo a expressar o meu
carinho por elas.
4
Bichas é um termo pejorativo para definir pessoas gays. Contudo, é recorrente ouvi-las chamar umas às
outras de bichas, para expressar, intimidade, ou para também expressar desgosto. A entonação define o
sentido.

17
ousadia já tinham conseguido a atenção dos erês5 da escola que entraria antes de nós na
avenida. Trocavam olhares, sorrisos, flertes. Mas, o que mais me chamava a atenção era
a satisfação estampada em seus rostos, afinal, não é habitual que elas andem pelas ruas
da cidade em plena luz do dia.

Essas são as sujeitas da minha pesquisa: uma explosão de alegria,


atrevimento, autoconfiança, sexualidade à flor da pele, sensualidade, mas também,
mulheres extremamente criativas, dinâmicas, perseverantes e que carregam em suas
histórias as marcas dos preconceitos, desrespeitos, violências, força, luta e resistência.

Meu interesse acadêmico pelas travestis e mulheres trans despontou em 2014,


quando fui professora substituta no Departamento de Letras/Inglês, na Universidade
Federal de Mato Grosso-UFMT, e desenvolvia atividades junto às escolas públicas da
cidade de Rondonópolis-MT, ao coordenar o estágio supervisionado dos graduandos do
curso. Até então, nunca tinha parado para observá-las ou questionar os discursos6 que as
mantinham à margem da sociedade.

Percebia durante as visitas às escolas que havia um grupo que ficava sempre
passeando por entre os corredores, ou em visitas à direção, por não se adequar às normas
de conduta exigidas pelas escolas (LOURO, 1999). Esse era o grupo LGBT7, naquelas
escolas representadas pelas travestis, trans, gays e lésbicas.

Ao acompanhar as aulas nestas escolas, sentia que tais alunos eram


discriminados, rechaçados, humilhados e excluídos, o que, na maioria das vezes, os
levava a não participar efetivamente das atividades escolares. Muitos de seus docentes,
em conversas informais, durante o recreio na sala dos professores, admitiam que tais

5
Causar, ousadia e erês também são termos do bajubá, que significam chamar a atenção, destemor, garotos
jovens/adolescentes, respectivamente.
6
Tomando a noção foucaultiana de discurso, temos que este consiste em uma interpretação produzida pela
realidade por meio da cultura (FOUCAULT, 2008), de modo a construir conhecimento, incluir/excluir
sujeitos(as), (re)produzir relações de poder e definir sujeitos(as) em uma dada sociedade (FOUCAULT,
2008, 2007, 1996).
7
Antigamente, a sigla comum para se referir à parcela da população não heterossexual era GLS, ou seja,
gays, lésbicas e simpatizantes. Há alguns anos, a sigla passou a ser LGBT, isto é, lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais, com o L maiúsculo no início da sigla de modo a apontar para a desigualdade de
gênero que diferencia homossexuais femininos e masculinos. Muitos movimentos sociais e entidades
governamentais, em todos os âmbitos da federação, fazem uso da sigla LGBT, por isso minha escolha em
adotá-lo neste trabalho. Contudo, vale lembrar que internacionalmente a sigla é LGBTI, para englobar as
pessoas intersex. As variações LGBTT, LGBTTI, LGBT+ e LGBTTQI também são encontradas.
Disponível em: http://desacato.info/lgbt-lgbti-lgbtq-ou-o-que/. Acesso em: 30 jan. 2018.

18
alunos só queriam “chamar a atenção dos demais colegas”. Entendi que os professores
esperavam destes aprendizes o “corpo escolarizado”, disciplinado pela escola de modo a
expressar e se comportar silenciosamente, seguindo um modelo de conduta, de fala e de
gesticulação adestrado para as tarefas intelectuais (LOURO, 2000, p. 21-22).

Desta feita, me empenhei para compreender os mecanismos que ainda as


mantinham na escola. Essa busca me levou a uma palestra de Luma Nogueira, à época
conhecida como a primeira travesti no Brasil a concluir um curso em um programa de
doutorado.

Percebi, então, que inconscientemente reproduzia discursos discriminatórios


e que a partir daquele momento clamavam por problematizações. Além disso, não apenas
notava que as travestis são sujeitas comumente vistas a partir de uma dimensão desumana,
como também observei que eu não as compreendia como variações de gênero e
sexualidade normais nem era capaz de incluí-las na lógica binária que eu acreditava ser a
natural.

Luma foi extremamente atenciosa comigo neste sentido. Respondeu a todas


as minhas perguntas e mencionou aspectos acerca da travestilidade que poderiam ser
observados e estudados na academia. Nasceu ali o meu primeiro projeto de pesquisa para
participação no processo seletivo para o doutorado.

(In)felizmente não fui aprovada naquela seleção, certamente por apresentar


um conhecimento muito raso acerca das teorias essenciais para, pelo menos, iniciar uma
pesquisa deste porte. Passado o período de frustração, me empenhei na elaboração de
outro projeto, bem como me lancei na busca por travestis que pudessem me conceder uma
entrevista que funcionasse como “piloto” para o projeto que almejava apresentar.

Para a entrevista piloto, recebi a ajuda de um colega de trabalho na UFMT,


professor substituto como eu, e Drag Queen8, que comentou ter uma travesti na
universidade que estudava em um curso noturno na área de Ciências Exatas, e que era sua

8
Para Anna Paula Vencato (2002), Drag Queens são homens – não necessariamente homossexuais – que
se transvestem de mulheres, não com o intuito de se parecerem com elas, mas como uma reinvenção caricata
delas, contudo sem o tom de deboche. São feitas de maquiagem, texto, modos de ser e de estar,
performances, dublagens, sonhos, fantasias e desejos.

19
amiga. Ele iria intermediar o primeiro contato. Assim conheci Amanda9, mesmo não
tendo tido o tempo hábil de realizar a entrevista piloto.

Quando Amanda e eu nos encontramos pela primeira vez na universidade,


não conseguia esconder o meu entusiasmo e admiração por aquela mulher tão
deslumbrante. À época, Amanda me disse que estava de mudança para Primavera do
Leste, uma cidade localizada a aproximadamente 150 quilômetros de Rondonópolis.
Amanda tinha conseguido um emprego temporário e ficaria longe por alguns meses.

Porém, antes de partir, intermediou uma conversa com sua amiga Patrícia10,
a qual seria a primeira informante dessa pesquisa em maio de 2016, após a aprovação de
meu projeto de pesquisa para o doutorado.

Patrícia foi fundamental para que eu atentasse para as dificuldades que as


mulheres trans/travestis enfrentam na sociedade como um todo, desde a sua “saída do
armário11”, perpassando pela formação escolar, empregabilidade, utilização de serviços
públicos, em especial serviços de saúde, uso de banheiros em locais públicos, usufruto de
direitos, até a rotulação de que são perigosas, ameaçadoras, abjetas. Do mesmo modo,
Patrícia inconscientemente expôs detalhes acerca da sua identidade de gênero, detalhes
para os quais eu não tinha atentado até aquele momento. Ela autointitula-se transgênera.

No tocante à identidade, Silva (2005) assevera que a identidade é tudo aquilo


que somos, de maneira a expressar positivamente o que pensamos a nosso respeito; é a
materialização do que pensamos que somos diante do outro. Neste tecido, ser transgênera
para Patrícia, além de ser algo positivo, é ao mesmo tempo posicionar-se de maneira a
negar a identidade cisgênera.

9
Nome fictício. Muitos nomes mencionados neste texto não são os nomes reais das participantes que
colaboraram tanto com os meus primeiros passos quanto na construção das narrativas que apresento no
decorrer da pesquisa. Em alguns casos, não obtive a autorização escrita para a divulgação de seus nomes
reais, ou elas mesmas pediram que seus nomes não fossem evidenciados.
10
Nome fictício.
11
O termo “saída do armário” faz referência ao início da transição, da construção da corporeidade, da
identidade que se encontrava aprisionada, escondida. O termo também é utilizado por homossexuais
femininos e masculinos para expressar o momento em que suas orientações são “assumidas” perante a
família, amigos, e/ou sociedade. Vale acrescentar que o termo, por vezes, é reprovado por algumas pessoas
LGBTs.

20
A princípio, isso me fez refletir profundamente acerca da minha própria
identidade, principalmente considerando-se minha impressão inicial de que ser cisgênera
não era uma coisa muito boa, quando expresso por Patrícia.

Essa reflexão foi muito interessante e brilhantemente incitada em outro


momento por Amara Moira. Sempre posicionei-me enquanto mulher cisgênera, contudo,
quando Amara me perguntou o qual a significação que eu atribuía para tal termo, não
soube defini-lo de imediato.

Inúmeras são as definições e conceituações em textos acadêmicos que


discutem a cisgeneridade, sempre em oposição à transgeneridade, mas raríssimos são os
textos que a definem da mesma maneira que fazem ao discutir esta última. Passei a
perceber que a categoria cisgeneridade abarca sujeitos e sujeitas que pressupõem não
precisarem ser categorizados e/ou definidos, por enquadrarem-se em uma classe de
pessoas “normais”, “não-abjetas”.

A esse respeito, a própria Amara Moira argumenta que ser cis é algo tão
naturalizado que sequer pensamos em categorizar (RODOVALHO, 2017). Em adendo, a
autora nos revela que a identidade cisgênera parece estar tão normalizada
discursivamente, que não pensamos sobre a existência concreta do(a) sujeito(a) trans, de
modo a não nos preocuparmos com a categorização do termo cisgênero.

Olhando para os dados deste trabalho e para as notas de campo, ouso discorrer
acerca dessa distinção identitária, que também considero política, visto que a pessoa
cis/cisgênera não precisa legitimar o seu gênero e/ou sua identidade, ao contrário do(a)
sujeito(a) transgênero(a). Apreendi que pessoas cisgêneras já usufruem plenamente de
privilégios na sociedade em que vivemos.

Logo, sujeitos(as) cisgêneros(as) leem seus corpos como corpos normais,


naturais, legítimos, os quais não precisam ser interpretados. Acreditam, então, ser
soberanos e, por isso, acabam impondo seus ideais, discursos, saberes e verdades, sem
consultar as pessoas trans ou transgêneras se o que dizem sobre elas é realmente o que
ocorre com seus corpos, ou seja, suprimem o direito de autodeterminação de gênero que
as pessoas trans/transgêneras tanto almejam. Pessoas cisgêneras impõem a sua
superioridade e acabam objetificando pessoas que não se enquadram em conceitos e
valores que creem ser os únicos possíveis.

21
De maneira extremamente reducionista, pessoas cisgêneras são aquelas que
se encontram em condições de aceitabilidade com o seu sexo biológico e com o gênero
com o qual foram designadas em seus nascimentos. Para as cisgêneras, a biologia é
responsável pela atribuição dos gêneros, fator que é legitimado pelos discursos psico-bio-
médico, jurídico e social.

Creio que o xis da questão encontra-se no fato que pessoas cisgêneras, que se
dizem totalmente confortáveis com seus sexos biológicos e denominações de gênero,
submetem pessoas autodenominadas transgêneras a uma colonização no que diz respeito
aos seus papéis de gênero, como se os corpos transgêneros fossem uma cópia, uma
releitura de corpos cisgêneros, conforme pontuam os discursos médicos, psiquiátricos,
jurídicos e sociais. Ainda para pessoas cisgêneras, os corpos trans precisam encontrar-se
dentro de certa passabilidade12 para que sejam aceitos, construídos em conformidade com
os moldes e contornos dos corpos da matriz cisgênera.

Levando o exposto em linha de conta, confesso que as versões anteriores


deste trabalho de pesquisa traziam uma extensa lista de definições acerca do significado
da palavra transgênera apresentada por Patrícia, o que me incluía em uma lista de pessoas
que também se acreditava enquanto sujeita de uma identidade de gênero que não
precisava de uma definição, problematização, categorização e/ou discussão; e pior, que
se acreditava em uma condição de superioridade (mesmo que inconscientemente).

Além disso, todas as definições que havia trazido foram construídas por
pessoas cisgêneras, que, à época, julguei serem pessoas academicamente legitimadas para
discorrer acerca do assunto, mas não percebia como elas objetificavam as pessoas
transgêneras. Sendo assim, minha alternativa foi utilizar definições encontradas em textos
escritos por pessoas transgêneras.

Rodovalho (2017) pontua que as definições acerca da transgeneridade são


redutoras, visto haver uma insuficiência do conceito, se considerarmos que há mais no
plano do pensamento que no plano das palavras: pessoas não expressam devidamente
suas identidades. Com isso, minha intenção é demonstrar que, ao ponderar acerca dos

12
O termo passabilidade é por vezes usado para referir-se ao quanto um homem ou uma mulher trans se
passam por um homem ou mulher cis, ou seja, é quando a pessoa trans é lida socialmente como uma pessoa
cis, de maneira a invisibilizar a transgeneridade. Embora o termo passabilidade ainda seja muito utilizado,
ele vem sendo trocado pela expressão “leitura social”.

22
termos cisgeneridade e cisgênero(a), entendo que estes consistem em uma categorização
excludente e que faz uso de um pretenso poder legitimado pelos discursos biomédico,
jurídico e social. O intuito aqui é discutir a transgeneridade não em oposição à
cisgeneridade, mas como uma categoria identitária descrita por pessoas transgêneras. Para
tal, utilizo as definições de transgêneros por transgêneros.

Letícia Lanz (2014) afirma, tanto em sua dissertação de Mestrado como em


seu blog13, que transgêneros(as) são os(as) sujeitos(as) que transgridem as normas de
gênero. Ainda, a autora não pensa que transgêneros(as) sejam pessoas em corpos
inadequados que precisam “se refazer” para atender às exigências binárias; são corpos
que representam “a transição entre os gêneros”, conforme a própria Patrícia me ensinou.

Para Jaqueline Gomes de Jesus (2012), o sexo é biológico e o gênero é


cultural, isto é, o gênero não depende do sexo com o qual os(as) sujeitos(as) nascem, mas
da cultura na qual estes estão inseridos. A autopercepção e a maneira com a qual a pessoas
socialmente se expressam é que devem ser levados em consideração, tratando-se,
portanto, de uma questão de identidade, e não de transtorno (JESUS, 2012).

Ademais, Jesus (2012) adiciona que o termo transgênero ou trans engloba


pessoas travestis, transexuais e intersexuais, pessoas que nasceram com um dado sexo
lido historicamente como biológico, mas que não se identificam com o gênero que lhes
foi atribuído. Em suma, a autora complementa que pessoas não cisgêneras são aquelas
que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento, sendo,
portanto, autodenominadas transgêneras (JESUS, 2012).

Em contraposição a Jesus (2012), Rodovalho (2017) discorre que a biologia


não é determinante do gênero, ou seja, a genitália também é um construto tanto quanto o
gênero.

A sucinta discussão acerca dos termos cisgênero e transgênero foi realizada


de modo a esclarecer ao leitor as minhas escolhas no tocante ao título deste trabalho de
pesquisa, bem como das participantes. No início da pesquisa, tinha estabelecido que
entrevistaria sujeitas travestis acerca de suas narrativas sobre a escola e os mecanismos
de resistência que ainda as mantinham lá. Porém, percebi que eu, na minha equivocada

13
Disponível em: http://leticialanz.blogspot.com/. Acesso em: 25 out. 2018.

23
condição de mulher cisgênera e que acreditava no seu próprio discurso de legitimidade,
denominava as minhas interlocutoras com base nas conceituações de discursos de
pesquisadores cisgêneros.

Fazia uso, então, da definição simplicista de que as travestis eram sujeitas


nascidas com o sexo biológico masculino, mas que utilizavam nomes, vestimentas,
maquiagem, hormônios, silicone (por vezes, silicone industrial), com o objetivo de dar-
lhes formas mais femininas (JAYME, 2004; KULICK, 2008).

Patrícia foi de suma importância para que eu atentasse para essa questão.
Autodenominar-se transgênera me levou à reflexão de que há inúmeras outras identidades
e que não sou eu quem as denomina ou nomeia. Daí o uso de mulheres trans e travestis14
no título deste trabalho: valorizar e respeitar todas as identidades das mulheres que
gentilmente concordaram em contribuir com esta investigação.

A priori, o foco deste estudo estava voltado para a permanência/evasão na


escola das meninas autointituladas travestis. Ouvi Patrícia narrar inúmeras vezes as
dificuldades que as pessoas trans e travestis enfrentam para se manterem na escola.
Entretanto, já é possível perceber sinais de resistência. E muitos são os trabalhos na seara
acadêmica nacional que tratam da questão das transgêneras/travestis no âmbito escolar.

A pesquisa de Luma Nogueira de Andrade (2012), por exemplo, indica que


as travestis, mesmo que rechaçadas pela comunidade escolar como um todo, já
demonstram mudanças no que diz respeito a sua permanência na escola, criando
mecanismos de sobrevivência, resistência e de luta para se desvencilharem do modelo de
prostituição que lhes é imposto socialmente e atingirem a formação escolar.

O estudo de Marina Reidel (2013) traz histórias de vidas de docentes


transexuais e travestis atuantes na educação brasileira, mas que, por muito tempo, se
mantiveram clandestinas ou à margem, “em silêncio”. Essa autora aponta que as

14
Em conformidade com Jesus (2012), mulheres trans e travestis são identidades incluídas em um leque
maior, isto é, são transgêneras. As minhas interlocutoras definiram mulheres trans ou transexuais como
aquelas que não se sentem confortáveis com a sua genitália, embora nem todas sintam o desejo de
submeterem-se ao processo de cirurgia de redesignação sexual. Outras afirmaram que travestis são
mulheres de peito e “pau”, mulheres mais completas. É claro que qualquer generalização pode ser
enquadrada como uma verdade fascista (NEVES, 2015), imposta pelos discursos psicomédicos. Não ousei
incluir definições sobre mulheres trans e travestis aqui também por acreditar que as descrições encontradas
são, de certo modo, perigosas e tendem à generalização e ao reducionismo e apagamento de suas lutas.

24
professoras transexuais e as travestis, diferentemente da imagem da convencional
professora cisgênera, branca, heterossexual, já trazem a sexualidade15 latente em seus
corpos, de modo a causar desconfortos e questionamentos acerca do “real” papel da escola
e do preconceito velado que outros professores insistem em invisibilizar.

As sujeitas colaboradoras da investigação de Reidel (2013) alertam sobre as


dificuldades em mesclar as identidades transexuais/travestis e professoras. Ainda
declaram que não basta serem professoras, precisam ser as melhores, mais que um corpo
diferente que forma alunos. A autora cunhou o termo “Pedagogia do Salto Alto”, de modo
a revelar a atuação destas docentes na educação brasileira.

Sobre esse tema, Almeida (2014) realizou pesquisa apresentando dados muito
relevantes no tocante à entrada das travestis no mercado de trabalho. O autor fez um
levantamento com as travestis que já se encontravam em sala de aula, atuando como
docentes, e investigou possíveis indícios de desestabilização que estas docentes travestis
e transgêneras provocavam nas escolas em que atuavam, desencadeando,
consequentemente, novas formas de ensino e aprendizagem no que diz respeito à
discussão sobre gênero e sexualidades em seus ambientes de atuação.

Já a pesquisa de Gabriela da Silva (2015), uma grande colaboradora para este


estudo, lidou diretamente com as autoridades escolares, em especial, as diretoras das
escolas públicas no município de Tubarão-SC, acerca do preconceito e da discriminação
relacionados a sujeitos vistos como ininteligíveis – sexo biológico, identidade de gênero
e expressão da sexualidade não correspondentes ao socialmente imposto. Essa
pesquisadora confirma que não há um trabalho adequado de combate a discriminações e
atos preconceituosos no ambiente escolar, assim como não há formação inicial e/ou
continuada propícia para estas profissionais no que diz respeito à temática.

Na mesma direção, Alexandre (2017) intentou, em sua investigação,


compreender o modo pelo qual as travestis (re)significam as suas experiências escolares,
em especial, as vivências concernentes ao corpo, às relações de gênero e sexualidade,
como uma maneira de problematizar, no tempo presente, todos os discursos institucionais

15
Durante o exame de qualificação, fui questionada a respeito do sentido utilizado da palavra sexualidade
neste parágrafo. Acredito que Reidel (2013) referia-se à sensualidade impregnada nos corpos das
professoras participantes de sua investigação.

25
do ambiente escolar, bem como atribuir sentidos às alterações subjetivas vivenciadas em
seus corpos. Nesse sentido, observa que os mecanismos de segregação e normatização
permanecem no cotidiano escolar, mesmo havendo indícios de vozes de resistência
ecoando nas escolas e currículos escolares.

Num outro estudo, Megg Rayara Gomes de Oliveira (2017), em sua tese de
doutoramento, averigua as experiências vivenciadas por sujeitos identificados em sua
pesquisa como “gays afeminados, viados e bichas pretas16”, no intuito de discernir os
elementos que, positivamente, se refletem nos processos de subjetivação das
experimentações pretas alheias às normas expressas pela matriz heterossexual e
cisgênera. A autora também observou a agência de tais elementos no interior do âmbito
escolar.

Oliveira (2017) investigou quatro docentes pretos em escolas públicas no


Paraná e no Rio de Janeiro que, mesmo escapando das práticas heterossexuais normativas,
foram sujeitos que trouxeram à baila dispositivos de poder presentes no racismo e na
homofobia. Trata-se de um trabalho inovador, considerando-se a interseccionalidade dos
temas homofobia e racismo, fato que a própria autora explica ser decorrente da quantidade
reduzida de pesquisadores pretos homossexuais, gays afeminados, viados e bichas na
academia.

Todavia, a escola e a ascensão social para a maioria das travestis ainda


consistem em uma fantasia, ao passo que a esquina, com os “fregueses”, conserva o seu
local de pertencimento (KULICK, 2008; ANDRADE, 2012).

Contudo, diante da enorme variedade de leituras trazidas acerca do espaço


escolar, mulheres trans e travestis, percebi que a violência velada, simbólica,
invisibilizada nos corredores escolares não era a única forma de violência que as
assustava. De acordo com os relatos de Amanda e Patrícia, a violência física e até
atentados contra as suas vidas as preocupavam, em especial, contra aquelas que atuam
nas ruas como profissionais do sexo.

16
Escolhi manter o termo “pretas”, em conformidade com Megg Rayara de Oliveira, que discute em seu
texto a origem etimológica da palavra negros, além de fazer referência aos escravos brasileiros.

26
E é justamente nesse lócus de atuação profissional que elas sofrem os maiores
desafios de sobrevivência. Em conformidade com o site Transgender Europe-TGEU17,
dentre os 2115 casos relatados de violência contra a população LGBTT, em especial
contra pessoas trans e travestis, no período de 1º de janeiro de 2008 a 30 de abril de 2016,
1654 destes casos foram relatados na América Central e do Sul, estando o Brasil em
primeiro lugar no ranking da violência contra esta população: 845 casos relatados no
período supracitado.

Uma pesquisa mais atualizada, publicada em 16 de novembro de 201818,


também conduzida pelo grupo Transgender Europe-TGEU, comprova que o Brasil
continua em primeiro lugar no quesito assassinatos de pessoas trans e travestis no mundo,
com 167 (cento e sessenta e sete) mortes registradas no período de 01 de outubro de 2017
a 30 de setembro de 2018, estando o México em segundo lugar com 72 vítimas
registradas.

Em conformidade com a mesma notícia, o Brasil contabilizou 171 mortes de


transexuais e travestis no ano de 2017, e outras 136 no ano de 2016, embora o mesmo site
informe a impossibilidade de estimativa real, considerando-se a falta de informações e
identificações acerca dos assassinatos. Já segundo o site de notícias on-line O Tempo19,
até o mês de maio/2017, o Brasil posicionava-se, pelo sexto ano consecutivo, como o país
que mais mata travestis e transexuais no mundo, com um registro de 61 assassinatos
cometidos contra a população de travestis e transexuais, até a data de publicação da
notícia – 23 de maio de 2017. Dentre os casos de assassinato, os mais comuns são por
tiros e/ou espancamento, seguidos de asfixia, apedrejamento, facadas ou
estrangulamento.

17
O Transgender Europe-TGEU consiste em uma organização não governamental surgida na Europa e que
se estabelece como a voz legítima da população trans europeia. O site traz inúmeras reportagens sobre e
para a população trans. Contudo, apresenta um projeto de monitoramento de violências contra a população
trans no mundo todo.
18
Pesquisa publicada no site Extra. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/brasil-segue-no-
primeiro-lugar-em-ranking-de-assassinatos-de-transexuais-23235062.html. Acesso em: 21 nov. 2018.
19
Reportagem: Transfobia: O Brasil já tem 61 transexuais e travestis assassinados em 2017, por Juliana
Baeta. Disponível em: http://www.otempo.com.br/capa/brasil/brasil-j%C3%A1-tem-61-transexuais-e-
travestis-assassinados-em-2017-1.1477509. Acesso em: 11 set. 2017.

27
A mesma reportagem reconhece que a maioria das vítimas travestis e
transexuais encontra-se na prostituição, apontando que esta população corre um risco
maior de ser violentada que os demais sujeitos da comunidade LGBT.

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA – divulga


regularmente um mapa de assassinatos de pessoas trans no Brasil. De 1º de janeiro a 05
de novembro de 2018 foi contabilizado um total de 141 assassinatos de travestis, mulheres
transexuais e homens trans20. Os dados do Estado de Mato Grosso registram 6 mortes,
sendo duas travestis de Rondonópolis-MT, uma habitante da casa da Meire, a Tábata
Brandão21, e a Tyetta Prazer22, funcionária pública encontrada morta em sua casa na
primeira semana de janeiro/2018.

Tais dados também são registrados e informados por Adriana Liário23 em


diversos grupos que discutem o assunto, tanto no Facebook24, como também no
Whatsapp25. Adriana, autointitulada travesti, é profissional do sexo; auxilia a Meire em
uma casa de acolhimento de mulheres trans e travestis em Rondonópolis-MT, auxilia na
organização de documentos, apoio psicológico e de saúde, bem como oferecem um local
para morar26. Adriana também foi uma entre as 53 (cinquenta e três) candidaturas27 de

20
Em conformidade com o site da ANTRA. Disponível em: https://antrabrasil.org/. Acesso em: 07 nov.
2018.
21
Conforme página do G1/MATO GROSSO. Disponível em: https://g1.globo.com/mato-
grosso/noticia/travesti-e-assassinada-a-tiros-por-motociclista-em-rondonopolis-mt.ghtml. Acesso em: 30
jan. 2018.
22
Conforme página do G1/MATO GROSSO. Disponível em: https://g1.globo.com/mt/mato-
grosso/noticia/funcionario-publico-e-encontrado-morto-com-maos-e-pes-amarrados-em-mt.ghtml. Acesso
em: 30 jan. 2018.
23
Nome real. A participante da pesquisa manifestou não ter problemas com a aparição de seu nome.
24
Nome de uma rede social lançada em 2004, por estudantes de Harvard, entre eles, Mark Zukerberg, ainda
dono da rede. É um espaço gratuito que oferece aos seus usuários inúmeras ferramentas de comunicação
entre amigos, grupos, bem como de publicidade. O espaço apresenta inúmeras versões para celulares e
computadores, os quais facilitam a visualização e acessibilidade. Adaptado de
https://www.significados.com.br/facebook/. Acesso em: 14 de fev. 2018.
25
Trata-se de um software para smartphones lançado em 2009 pelos veteranos do Yahoo! É considerado
um aplicativo para celulares multiplataforma que possibilita a comunicação entre os seus usuários em forma
de textos, mensagens de áudio, vídeo, além do envio de fotos, atualização de status como um substituto das
mensagens via celular conhecidas como SMS. Adaptado de https://www.significados.com.r/whatsapp/.
Acesso em:14 fev. 2018.
26
A casa funciona como uma pensão. Regularmente, abriga 30 (trinta) mulheres trans e travestis que
pagam aluguel por seus quartos. Os serviços de apoio psicológico, documentação, entre outros, eram de
responsabilidade do GATTRS.
27
Conforme site da ANTRA. Disponível em: https://antrabrasil.org/candidaturas2018/. Acesso em: 21 nov.
2018.

28
pessoas transgêneras no país, na corrida eleitoral de 2018, na disputa pelo cargo de
Deputada Federal pelo Estado de Mato Grosso.

Tomei conhecimento de Adriana por meio de uma reportagem em um site


local28 a respeito do grupo de apoio a travestis e transexuais em Rondonópolis. Fiquei
muito curiosa em conhecê-la, visto que, até então, as mulheres trans/travestis às quais eu
tinha acesso não mencionaram nenhum grupo de apoio que operasse em Rondonópolis.
De imediato, procurei seu nome no Facebook e lhe encaminhei uma mensagem
explicando a minha pesquisa e demonstrando o meu interesse em encontrá-la
pessoalmente.

Adriana me convidou à casa da Meire para que nos conhecêssemos melhor e


também pudesse saber mais sobre o seu trabalho realizado junto às mulheres
trans/travestis que moravam lá. Seus relatos consistiam na descrição de sujeitas que
conhecem a exclusão, sofrimentos e a rejeição desde tenra idade, por expressarem o
feminino em espaços escolares e cotidianos (SALES, 2018). De acordo com Antunes
(2010), a exclusão já tem início dentro da família, por serem vistas como sujeitas que não
se adequam às regras socialmente impostas: são consideradas transgressoras, aberrações,
sujeitas que necessitam de tratamento. E com as mulheres trans e travestis da casa da
Meire não foi diferente.

Passei a visitar a casa todos os sábados e/ou domingos. Ficava horas


conversando, conhecendo um pouco mais sobre elas. Adriana me contava os seus
relacionamentos, as violências, os problemas com a Câmara Municipal e com as questões
de saúde, a montagem29, as injeções de silicone e as bombadeiras30, a pista, detalhes do

28
Disponível em: http://www.midianews.com.br/cotidiano/marcada-pela-violencia-travesti-cria-grupo-
contra-o-preconceito/276528. Acesso em: 02 fev. 2017.
29
Montagem consiste na adulteração corporal e execução de gestualidades na construção das performances
e identidades de gênero (BENEDETTI, 2005; WEEKS, 2001), ou ainda, na modificação corporal como
uma estratégia que marca a tentativa de aproximação de uma dita “feminilidade” a ser seguida (SANTOS,
2014). É indispensável esclarecer que tais definições foram construídas por pessoas cisgêneras em um
passado próximo. Atualmente, algumas de minhas interlocutoras não apreciam a adoção do termo, uma vez
que passam o dia vestidas como mulheres. São mulheres, são corpos femininos. Algumas usam o termo
para se referenciar a crossdressers e dragqueens. Outras utilizam o termo para referirem-se ao momento
em que estão se preparando para o trabalho.
30
Bombadeira é o termo utilizado para designar a pessoa, geralmente uma travesti/mulher trans mais velha
e/ou mais experiente, e que faz a aplicação do silicone industrial nos corpos das meninas. Geralmente elas
não falam muito sobre quem são tais profissionais, em virtude dos riscos à saúde que tais aplicações podem
propiciar, bem como para preservar/assegurar a segurança das bombadeiras.

29
trabalho que realiza junto às meninas. Muitos dos dados e detalhes da pesquisa foram
obtidos nesses encontros, algumas vezes com a participação de outras moradoras da casa,
e registrados em meu diário de campo.

Adriana, então, me inseriu no grupo do Whatsapp do GATTRS e o


estreitamento de nossa relação a fez nomear-me, em 16 de julho de 2017, vice-secretária
do grupo de apoio. As discussões do grupo dizem respeito à visibilidade das travestis e a
criação de políticas públicas municipais que assegurem direitos de cidadãs a todas as
travestis, um termo que, conforme Adriana, tem sido “higienizado” não só pela sociedade,
mas também pelas próprias transgêneras/travestis (SALES, 2018).

Penso que a tal higienização mencionada por Adriana ocorre, uma vez que a
sociedade tende a associar as travestis à prostituição e, consequentemente, à
criminalidade. Isso é muito recorrente em suas falas, bem como em inúmeras pesquisas
acadêmicas. Brum (2014), Jesus (2012), Peres; Toledo (2011), Garcia (2008; 2009),
Borba; Ostermann (2008), Benedetti (2000), Kulick (2008), Albuquerque; Janelli (1995)
evidenciam a relação das travestis com a criminalidade31. Dentre os atos de ilegalidade,
observam-se roubos, furtos, (ab)uso de drogas e bebidas alcoólicas (GARCIA, 2008).

De outra via, o termo também reflete um ato ético-político e de


empoderamento, ou seja, de expressão de uma identidade política, de expressão de
gênero e de uma estilística de existência muito válida (SALES, 2018). Este é outro
motivo que me levou a usar os termos mulheres trans e travestis no título, de modo a
evitar o apagamento dessas lutas, usando um termo mais genérico como transgênero, por
exemplo.

Todavia, ao me relacionar com as travestis/mulheres trans, tanto de modo


presencial na casa da Meire e nas reuniões do GATTRS, como nos bate-papos
estabelecidos online, principalmente por meio do Facebook, percebi o tempo de vida
curto que elas têm. Adriana brinca o tempo todo, dizendo que tem apenas dois anos de
vida, ou seja, sua morte está prevista para os trinta e cinco anos, média estimada de vida

31
Mais uma vez, retomo que as pesquisas mencionadas foram realizadas já há um bom tempo e podem não
retratar a realidade de todas as mulheres trans e travestis, em conformidade com os seus relatos.

30
de uma travesti no Brasil (SALES, 2018; SIQUEIRA, 2004; PERES, 2005; KULICK,
2008, entre outros).

Em certa ocasião, Adriana me revelou que até aquele mês – maio de 2017 –
cinquenta e quatro32 mulheres trans e travestis brasileiras tinham sido assassinadas, sendo
que muitas delas não tinham sequer alcançado nem os trinta e cinco anos33.

Com esses números em mente, e tomada pela curiosidade, arrisquei: “Então


não existe mona34 velha?”, perguntei à Adriana. Ela riu afirmando, que sim, mas que eram
pouquíssimas. Ela me explicou que muitas delas morriam cedo, vítimas da violência
praticada contra elas nas ruas. Aquelas que conseguiam milagrosamente ultrapassar os
cinquenta anos e que não tivessem recursos para ter sua própria casa de
acolhimento/pensão passavam a trabalhar dentro dessas casas com a limpeza,
manutenção, serviços de cozinha, num sentimento de pertencimento familiar, de modo a
fixar morada e não retornar para as casas de seus parentes consanguíneos.

Adriana também me alertou que a velhice entre mulheres travestis é um


fenômeno precoce em relação às pessoas cisgêneras, filiando-se a Antunes (2010), ao
explanar que tal envelhecimento ocorre se considerarmos as trajetórias de vida dessas
sujeitas sinalizadas por quadros de violência das mais variadas espécies. Quanto à questão
da idade de envelhecimento, Casteleira (2014) assegura que a fronteira entre a idade
jovem e o envelhecimento não é traçada pela idade cronológica, mas, antes, de maneira a
concordar com os relatos de Adriana.

Procurei por mulheres trans/travestis que aparentassem ser mais velhas na


casa da Meire. Conheci Jussara – a vó – e a Kate35. Jussara sempre a mais sapeca, como
ela mesmo se rotula, entrava no seu quarto no final do dia, passava uma base, um
pouquinho de blush e vestia uma roupa bonita. Só não passava sombra pra não parecer
muito velha, como me confessou certa vez. Saía ao por do sol e retornava para casa até a

32
Dados obtidos durante uma de nossas conversas informais, registrados em meu diário de campo e que,
posteriormente, foram consultados e confirmados no site de notícias do Senado Brasileiro. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-
de-35-anos-metade-da-media-nacional. Acesso em: 29 jun. 2017.
33
A expectativa de vida de 35 anos para as mulheres trans/travestis também é afixada, conforme as
estatísticas divulgadas pelo site da Antra. Disponível em: https://antrabrasil.org. Acesso em: 05 nov. 2018.
34
Travesti, no bajubá.
35
Jussara e Kate são nomes fictícios. Ambas me solicitaram que seus nomes reais não aparecessem na
pesquisa.

31
meia noite. Brinquei com ela certa vez que Cinderela existe sim! Ela riu e me explicou
que agia dessa maneira para garantir a sua segurança.

Jussara então me contou que trabalha na pista36, embora tenha a alimentação


e a moradia garantidas na casa da Meire em virtude dos trabalhos de cozinheira que realiza
lá.

O envelhecimento físico para elas é diferente do envelhecimento da alma.


Antunes (2010) afirma que as travestis são consideradas velhas se não conseguem
desempenhar o trabalho como profissionais do sexo, na pista. Nesse sentido, Mountian
(2015), em sua pesquisa acerca de travestitilidade e envelhecimento, assevera que a
travestilidade no contexto brasileiro é marcada por inúmeras formas de violência,
oprimindo essas sujeitas e as agredindo de modo a ser um aspecto, talvez determinante,
para o seu envelhecimento precoce.

As interlocutoras de Casteleira (2014) também confirmam que uma pessoa


trans envelhece antes que uma pessoa cis, principalmente em virtude do uso excessivo de
hormônios, silicone e, principalmente, por causa das violências a que são expostas no
trabalho enquanto profissionais do sexo. Para elas, uma travesti aos 40 anos pode ser
comparada a uma mulher cisgênera aos 60 anos.

Indagações como: o que os discursos afirmam sobre a velhice de mulheres


trans/travestis? O que fazem as travestis/mulheres trans mais velhas e que não mais estão
na pista? Todas encontram-se como a Jussara e a Kate?

Estas e outras questões foram determinantes para o trabalho de pesquisa que


apresento a seguir. No intuito de desvendar alguns dos meus questionamentos, passei a
procurar em bibliotecas online e em redes sociais pesquisas que falassem acerca da
velhice, em especial de pessoas transgêneras.

Sempre enxerguei a velhice enquanto um estágio de sofrimento, solidão,


perda da beleza e da jovialidade e, acima de tudo, perda da sexualidade e sensualidade. A
esse respeito, Simone de Beauvoir (1970), em sua célebre obra ‘A Velhice: a realidade
incômoda’, garante que o processo de envelhecimento é considerado não apenas uma
mazela fisiológica para os indivíduos de uma dada sociedade, mas uma desqualificação

36
Referência à prostituição.

32
de seres que não mais estão aptos a colaborar com o crescimento desta mesma sociedade,
sob a ótica da produção e do lucro, de modo a tratar pessoas idosas como desqualificadas
para a produção e também para o sexo. Beauvoir (1970) ainda usa a qualificação “boca
inútil” para descrever os idosos que se tornam incapazes de batalhar dentro de uma
sociedade, mas acrescenta que tal discurso sofre a intervenção de fatores e valores
culturais.

Se é difícil para a categoria identitária que se julga a dominante – cisgênera –


como será o processo de envelhecimento de pessoas transgêneras, alvos constantes de
preconceitos, discriminações e violências? Como é ser duplamente estigmatizado:
transgêneras e idosas?

Investiguei a existência de mulheres trans/travestis que tivessem conseguido


sobreviver às inúmeras violências e adversidades impostas pelo discurso cisgênero
normativo, contudo – e felizmente – fui presenteada com Sara Wagner York.

Encontrei Sara York37, uma mulher fantástica, à época com 41 anos, que se
autointitula trans e, ao mesmo tempo, travesti, por questões políticas e de visibilidade,
militância, ativismo. Sara é também pai, avô, professora de língua inglesa em uma escola
pública no interior do estado do Rio de Janeiro, professora de teatro, Mestranda em um
Programa de Pós-graduação em Educação e administra algumas páginas e comunidades
no Facebook, assim como grupos de discussões políticas no Whatsapp. Procurei, então,
travestis/mulheres trans no Facebook que tivessem mais de quarenta anos. Até aquele
momento, a minha rede estava repleta de travestis/ mulheres trans jovens, a maioria com
menos de 30 anos.

Em 29 de janeiro de 2017, Sara organizou um bate-papo por meio do


Facebook, ao vivo, com pesquisadores e acadêmicos renomados no país, como parte das
celebrações do dia da Visibilidade Trans. Entre os participantes, Gabriela da Silva38,
professora na rede pública na região Sul do país, travesti, doutoranda em um Programa
de Pós-Graduação em Educação, à época, com cinquenta anos.

37
Nome real. A participante da pesquisa manifestou não ter problemas com a aparição de seu nome.
38
Nome real. A participante da pesquisa manifestou não ter problemas com a aparição de seu nome.

33
Após o bate-papo, procurei por Gabriela no Facebook e começamos a trocar
mensagens. Passados alguns meses, acabamos nos encontrando em um dos grupos de
discussões por políticas públicas, aberto por Sara no Whatsapp. A partir de então, nossa
comunicação era realizada via mensagens de áudio por esse aplicativo.

Assim como Adriana Liário, Gabriela também foi muito importante para o
meu trabalho, visto que, por estar no meio acadêmico, sempre me encaminhava textos
que remetiam ao meu trabalho e discutíamos a respeito de diversos assuntos, como
travestilidade e sexualidade. Ela também me ajudou com a elaboração do roteiro das
entrevistas que eu realizaria para a materialização deste trabalho. Eu lhe enviava as
perguntas e ela as avaliava, de modo a sugerir mudanças, deixando-as dentro da
inteligibilidade das minhas interlocutoras.

Além de Sara e Gabriela, também pude contar com o valioso auxílio do Prof.
Dr. Neil Franco de Almeida, que por inúmeras vezes discutiu alguns textos e trabalhos,
além de ser o intermediador de algumas participantes, dentre elas Rebeca, a mais
simpática de todas. Muito crítica quanto à elaboração das perguntas, mas também muito
disposta a colaborar, dedicada e presente.

Sabendo que o Estatuto do Idoso (BRASIL, 2013) considera idosa toda


pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos e que as mulheres trans/travestis têm
uma expectativa de vida de trinta e cinco anos, tentei calcular a partir de que idade uma
travesti/mulher trans poderia ser considerada idosa, de modo a direcionar as participantes
do estudo.

Para Hélio Silva (1993), por exemplo, as participantes de sua pesquisa, na sua
maioria praticantes do trottoir39, eram consideradas velhas após os trinta anos, por
questões de atratividade e jovialidade. Contudo, vale relembrar que a pesquisa de Silva
(1993) foi conduzida nos anos noventa e que talvez aquela realidade retratada não seja
mais a das mulheres trans/travestis desta investigação.

Ao conversar a respeito da questão do envelhecimento das mulheres


trans/travestis com a Gabriela pelo Whatsapp, ela comentou que por muito tempo as
travestis e pessoas transgêneras, em geral, têm convivido com os estereótipos impostos

39
Hélio Silva (1993) designa prostituição como sinônimo de trottoir.

34
por meio dos discursos de beleza e do glamour. No momento em que tais marcadores são
suprimidos pela idade, só lhes resta, na maioria das vezes, uma vida permeada de
privações, isolamento e sem referência. Com isso, ponderei a respeito de estudar os
enunciados40 que se evidenciam nas narrativas de travestis/mulheres trans no tocante ao
seu processo de envelhecimento.

Todos têm muito a dizer a respeito dos idosos e inúmeros são os atos
ilocutórios41 que os fazem parecer, sincronicamente, inúteis ou novos guerreiros da
longevidade. No caso das travestis/transgêneras, os enunciados parecem apontar para uma
dupla abjeção: serem travestis/mulheres trans e “velhas”. Para Siqueira (2004), “travestis”
e “velhice” constituem duas categorias altamente excludentes, pois aquelas que
ultrapassam os cinquenta anos enfrentam um duplo processo de marginalização e muitas
encaram condições precárias de sobrevivência.

Considerando o exposto, o corpus desta investigação contará com os


enunciados reproduzidos pelas travestis/mulheres trans, obtidos de suas narrativas por
meio de entrevistas, retomando que enunciados consistem em um conjunto de regras que
ditam os limites e as maneiras com que algo é expresso, só definíveis em sua
individualidade no interior de um sistema linguístico, definidos em conformidade com
uma determinada época ou sociedade (FOUCAULT, 2008).

Inúmeros são os trabalhos acadêmicos nacionais nas áreas de Gerontologia,


Enfermagem, Medicina, Psicologia, Sociologia, Educação e Antropologia que lidam com
a questão das travestis/transgêneras. Uma breve e despretensiosa pesquisa na página de
Catálogo de Teses e Dissertações da Capes42 nos mostra essa produção. Se usarmos como
entrada as palavras-chave travestis e envelhecimento, encontramos 1.088.674 pesquisas
de mestrado e doutorado concluídas, mas não há pesquisas na área de linguagem que
analisem as narrativas de mulheres trans e travestis quanto ao seu processo de
envelhecimento.

40
O enunciado é um elemento indecomponível, carregado de “verdades” e formado por um conjunto de
regras para a sua formação, mas que difere da frase ou do ato ilocutório (FOUCAULT, 2008). Constitui
sentido como um elemento em um campo de coexistência, uma materialidade repetível, o átomo do discurso
(idem).
41
Para Foucault (2008), um ato ilocutório diz respeito ao que se produz pelo simples fato de ter sido
enunciado. Em outras palavras, trata-se do ato de fala, da enunciação.
42
Disponível em: http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/. Acesso em: 08 nov. 2018.

35
E mesmo com um número tão significativo de trabalhos produzidos acerca da
temática “travesti”, observei que há uma carência de trabalhos na área de Linguística
Aplicada que discuta a transgeneridade e o processo de envelhecimento.

É de extrema relevância trazer à baila que a vertente da Linguística Aplicada


na qual este trabalho se inscreve é de ordem transgressora e crítica (MOITA LOPES,
2006), uma vez que as discussões aqui apresentadas se afastam da Linguística Aplicada
convencional, do século passado, e que tinha foco apenas nas abordagens de ensino de
línguas.

O viés da Linguística Aplicada que abarca esta pesquisa tem caráter


multi/inter/in-disciplinar (MOITA LOPES, 2006; FABRÍCIO, 2017) de modo a
promover práticas transaberes (FABRÍCIO, 2017), observando as fronteiras normativas
relativas a gêneros, sexualidades, classes sociais e raças, questionando crenças arraigadas,
comunidades coesas e corporeidades idealizadas (FABRÍCIO, 2017) para ultrapassar
fronteiras estabelecidas discursivamente.

Intuito maior com esta pesquisa não é de maneira alguma esgotar o tema, mas
desenvolver um estudo acerca de um tópico que tem ganho ampla visibilidade, bem como
ultrapassar limites já demarcados, de modo a compreender os processos de
inclusão/exclusão (FABRÍCIO, 2017) tão presentes em nossa sociedade.

Como se não bastasse, o corpo travesti sempre esteve muito evidente em


minha vida e memória. Às vezes se escondia e por outras, se exibia. Lembro-me
claramente de uma vez, quando criança, minha mãe era a Assistente Social responsável
pelo programa de combate e prevenção à AIDS, programa este financiado pelo SUS. Fui
ao posto de saúde e fiquei aguardando o final do expediente para que pudéssemos ir para
casa.

Naquele vai-e-vem de pessoas, de repente, observo a entrada de uma moça


extremamente alta, brincos de resina verdes em forma de argolas, saia de um tecido que
me remetia ao coro, pernas esguias, longas e torneadas, cílios longos, unhas compridas e
vermelhas, sombra rosa e marcante nos olhos expressivos e o blush desenhado nas
bochechas em forma de círculos, remetendo à moda da época. Ela foi à mesa da recepção
e disse o nome da minha mãe. Fiquei atenta àquela moça tão diferente de todas as moças
que eu conhecia.

36
Em pouco tempo, ela se levan-tou e entrou na sala da minha mãe. De onde eu
estava, não conseguia mais vê-la. Dirigi-me à porta e continuei a contemplá-la até minha
mãe levantar e fechar a porta e bradar: “Para de ficar olhando. Isso é feio. Nunca viu um
travecão?”

Depois disso, lá pelos anos de 1990, lembro-me de ver um rosto lindo na


televisão, mulher delicada, de movimentos cronometrados, fina, elegante e que aparecia
em todos os programas da telinha. Seu nome era Roberta Close. Um dia, ao dizer na
escola que eu a achava linda, as colegas riram de mim e disseram “Mas ela é um
travecão”.

O que fazia destas mulheres tão bonitas um “travecão”? Lindas, altas, magras,
sensuais, famosas, recebiam a atenção e os olhares por onde quer que passassem.
Definitivamente, eu, que à época era gordinha, cabelos e rosto nada atraentes, queria
muito ser um travecão.

Além da Roberta Close e da moça do posto de saúde, me recordo da imagem


de Rogéria, travesti famosa na mídia por ser cantora, atriz, transformista, coreógrafa e
que exibia graça e elegância em programas como o programa do Chacrinha. Mas foi na
novela de Tieta, da emissora de televisão Rede Globo, por meio de sua atuação como
Ninete, em 1989, que comecei a entender que haviam identidades as quais eu não
conhecia e nem sequer entendia. -

Ademais, a escolha pelo tema deste estudo ultrapassa a curiosidade de


infância e as justificativas acadêmicas. Nos dias de hoje, reconhecer que mulheres trans
e travestis enriquecem a pauta feminista com novas experimentações e debates me leva a
refletir acerca da minha própria existência e a respeito do que realmente significa ser
mulher. A luta cotidiana, a diversidade e a resistência de mulheres trans e travestis fazem
com que o sentimento de sororidade transborde em mim e eu reconheça que, embora
nossos lugares de fala sejam diferentes, compomos juntas essa colcha de retalhos cheia
de feminilidades.

Nesse tecido, ser mulher cisgênera pode até ser “aceitável” em uma sociedade
misógina e que considera o gênero um pressuposto biológico nato. Mas isso não me isenta
da responsabilidade de me aliar às semelhantes a mim, por empatia e companheirismo,
de maneira ética e política, mesmo que essas semelhantes sejam tão diferentes.

37
A meu ver, a constituição da identidade das travestis/mulheres trans em
processo de envelhecimento vem se concebendo há muito tempo em uma seara de lutas,
exigências, oposições, resistências, de modo a fomentar desacordos e discussões
constantes. Sinto, então, a inevitabilidade de problematizar discursos naturalizados,
rotineiros, acerca das travestis/mulheres transgêneras e, com vista a isso, considero os
objetivos desta pesquisa:

a. Compreender como as travestis/mulheres trans constroem sentidos acerca


de si, sejam elas idosas ou não.

b. Entender como as mulheres trans/travestis percebem/significam o seu


processo de envelhecimento.

c. Assimilar como as mulheres trans/travestis articulam as noções de gênero


e envelhecimento na sua construção identitária.

Para me auxiliar no alcance dos objetivos traçados, faço as seguintes


perguntas de pesquisa:

1. Como as travestis/mulheres trans significam o seu processo de


envelhecimento?

2. De que maneira as violências sofridas pelas travestis/mulheres trans em suas


trajetórias são determinantes/marcadores do início do seu processo de
envelhecimento?

Avaliando alguns dados isolados e pensando a partir dos primeiros contatos


que tive junto às interlocutoras da minha pesquisa, a hipótese que a direciona é justamente
a de que as travestis/mulheres trans – sobreviventes nessa sociedade cisnormativa e
excludente em que estamos todos inseridos – já começam a encontrar meios de resistência
e conseguem, de acordo com as condições de vida a que são submetidas, chegar à velhice,
encontrar um lar e se dizer satisfeitas com a vida que levam.

Estas palavras introdutórias tiveram o intuito de mostrar os motivos que me


levaram à escolha desta pesquisa. Por igual, objetivaram apresentar o tema e a finalidade
desta tese. Além desta introdução, a tese compreende quatro capítulos e a seção final.

38
No primeiro capítulo, Considerações acerca do envelhecimento, exibo
discussão respeitante ao envelhecimento, de modo a apresentar pesquisadores e seus
estudos quanto às características desse processo, assim como as diferenças de
envelhecimento para os gêneros masculino e feminino. Trago também alguns autores que
discutem o envelhecimento que envolve as homossexualidades feminina e masculina.
Encerro o capítulo com alguns dos poucos estudos, fora da área de Linguística Aplicada,
que tratam da velhice de travestis/mulheres trans.

No capítulo seguinte, intitulado Corpo: Uma Metamorfose Ambulante,


traço uma sucinta discussão acerca da História do Corpo, com dois objetivos: interpretar
como os corpos masculinos e femininos foram construídos desde a Antiguidade até a
Contemporaneidade, visto retratarem a sociedade, seus valores e seus discursos, e
também entender de onde vêm o estigma, o preconceito e a discriminação contra os
corpos femininos.

No terceiro capítulo, intitulado Transitando pelos preceitos metodológicos,


apresento a abordagem metodológica, os pressupostos teóricos da pesquisa qualitativa, os
instrumentos de geração de dados, o tratamento dos dados e a apresentação das
participantes da pesquisa.

No capítulo seguinte – Corpos em transformação: narrativas de


travestis/mulheres trans – discuto com o leitor os temas que se evidenciaram na análise
das narrativas, relacionando-os às questões de pesquisa.

Por último, em (In)Conclusões, evidencio as limitações deste estudo e aponto


algumas implicações para a pesquisa em torno do envelhecimento e a sua relação com a
temática de gênero.

Acrescento, ainda, que todas as epígrafes que aparecem neste trabalho de


pesquisa são trechos de textos e/ou poemas e poesias redigidos por pessoas transgêneras.

39
CAPÍTULO 1

Considerações Acerca do Envelhecimento: o babado e a confusão


encontrados nas pesquisas

Voluptuosa dor extraterrestre

Voluptuosa dor extraterreste


do movimento do vai
e vem sem querer.
Saber o segredo da saliva da tua boca,
explorar múltiplos sabores
e morrer sozinha de fome.
Laricada,
escancarada,
de aura aberta.
Quero me afogar num mar de sensações.
Saudade de Plutão!
Ah, saudade!
De ser planeta.
De ser sideral, extra.
De ser terrestre, besta.
Estrada no céu da sua boca.

Autoria coletiva

I
númeras pesquisas nacionais (CUNHA, 2016, SIQUEIRA; BOTELHO;
COELHO, 2002) e estatísticas realizadas pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE (2010) e pela Organização das Nações
Unidas – ONU (2002) apontam para o crescimento desgovernado da população com 60
(sessenta) anos ou mais no país.

Nesse grupo, as mulheres trans e travestis são dignas de menção precisamente


por experimentarem o poder da exclusão em todas as faixas etárias, poder este advindo
de um processo de sistematização social que elege o que é normal e o que não é.

Contudo, como ocorre o processo de envelhecimento43 das mulheres trans e


travestis? A partir de que momento esse processo de envelhecimento diverge do
envelhecimento dos demais atores sociais?

43
Penso ser conveniente definir alguns termos aqui. O primeiro deles, o envelhecimento, em conformidade
com o Dicionário Informal, consiste na ação ou efeito de envelhecer, de modo a apontar para o processo da

40
No intuito de responder a essas e outras questões, este capítulo examina
concisamente os modos de envelhecer em termos biológico, físico e psicossocial dos
seres humanos, na primeira subseção. Em seguida, aponto algumas características sociais
a respeito do processo de envelhecimento de homossexuais masculinos e femininos. A
subseção seguinte mostra algumas poucas considerações acerca de estudos acadêmicos
que tratam do envelhecimento de pessoas trans e travestis, relacionados com alguns dos
dados que obtive durante a minha investigação. Finalizo o capítulo com um breve resumo
acerca das discussões levantadas até então.

1.1 O envelhecimento biológico nos seres humanos

A velhice é um período que me chama muito a atenção, talvez em virtude de


hoje acompanhar de perto o envelhecimento dos meus pais e tios, e todas as dificuldades
– em termos de saúde –, que essa nova fase carrega. Como se não bastasse, sinto-me
envelhecer e os fios de cabelos brancos que começam a surgir, as rugas e a perda de
elasticidade na pele e músculos tiram-me alguns minutos assombrosos todos os dias. É
como se o adulto nunca pudesse perder a jovialidade (BEAUVOIR, 1970).

Tais incursões pessoais e familiares me levam a refletir acerca do constante


gerenciamento a que somos (impostos e) expostos diariamente: quando crianças,
aprendemos a brincar, a ler e a escrever; apreendemos valores familiares e sociais.
Enquanto adolescentes, sentimos a obrigatoriedade de escolher um curso universitário,
ser aprovados em algum exame vestibular e/ou ENEM e iniciar a carreira universitária.
Na sequência, ao tornarmo-nos jovens adultos, o cerne da vida volta-se para a entrada no
mercado de trabalho, a constituição de uma família, a construção de patrimônio e a
colaboração para o crescimento da sociedade e da economia. Tudo isso de maneira a

perda da juventude. Já o termo velhice corresponde à fase avançada da vida dos seres, apontando um
período de decadência, perda de viço e/ou deterioração. A palavra idoso refere-se a uma pessoa que esteja
com muita idade, contudo, pode ser trocada pela palavra velho, embora seja um termo desrespeitoso e
pejorativo. Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/. Acesso em: 21 nov. 2018.

41
cumprir as exigências do discurso patriarcal, cisgênero, heteronormativo44, cristão e de
geração de produção. Em seguida, espera-se que nos preparemos para a velhice. E se
nada disso der certo, somos responsabilizados por esse fracasso.

Mas o envelhecimento, na verdade, não passa de uma circunstância que


acomete a todos os indivíduos vivos, mesmo que em cadências diferentes. É um processo
infalível, dinâmico e progressivo (ESCOBAR et al., 2017), o qual caracteriza um
encadeamento constante de transformações físicas, psicológicas e sociais, que ocorre
com as pessoas, mas em ritmos e momentos diferentes.

Simone de Beauvoir (1970), ao se referir ao momento em que tal processo se


inicia, declara que se trata de um período mal definido e que varia de acordo com as
épocas e os lugares. Em países europeus, por exemplo, a velhice é o período da vida
considerado a partir dos 65 anos (WHO, 2002). No Brasil, a idade inicial considerada
para a velhice é 60 anos (WHO, 2002). O Estatuto do Idoso traz em seu corpo normativas
para assegurar os direitos às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos (BRASIL,
2013). E, mesmo sendo um momento que apresenta variações no tocante ao seu início,
as alterações corporais percebidas são praticamente as mesmas para todas as pessoas,
independentemente de raça, status, formação, localidade. Trata-se de um momento
irreversível e que se dirige para a degradação do organismo “da mesma forma como se
desgasta uma máquina após longo uso” (BEAUVOIR, 1970, p. 19).

Ainda segundo a autora, os cabelos começam a embranquecer e se tornam


ralos; os órgãos começam a sua involução; o metabolismo corporal sofre certa
desaceleração e se percebe um grande desgaste energético; a pele desidrata e perde a sua
elasticidade. Em alguns casos, homens e mulheres perdem medidas, diminuem as
capacidades de visão e audição, podendo chegar até mesmo à surdez; sentidos como
paladar, tato, olfato perdem a acuidade.

Em homens cisgêneros45, não observamos anomalias na produção de


espermatozoides, o que lhes permite a fecundação de um óvulo. O que transcorre, porém,

44
Heteronormativo refere-se ao discurso que impõe a atração física por pessoas do sexo oposto como a
regra, a norma natural a ser seguida.
45
Retomando, homens cisgêneros são aqueles que se identificam com o sexo biológico – pênis – e com o
gênero que lhes foi atribuído desde o nascimento – masculino – em concordância com a genitália. Em
oposição a homens cisgêneros, temos os homens trans, transexuais masculinos (dentre outras

42
é a lentidão das ereções, ou seja, as possibilidades de ejaculação e ereção desaparecem
com a idade, embora nem sempre haja extinção da libido, como afirma Beuavoir (1970).

Na mulher cisgênera46, há a interrupção da função reprodutora por volta dos


50 anos com a chegada da menopausa, cessando também o ciclo ovariano, a menstruação,
e provocando, consequentemente, a involução dos órgãos sexuais, acrescenta a autora,
que não adentrou na questão da libido e sexualidade femininas. Cunha (2016), entretanto,
mostrou que a sexualidade na velhice é um tema descuidado, uma vez que se trata de
algo não compreendido em sua totalidade pela sociedade, nem pelos profissionais da
saúde e próprios idosos, além de ser um tema discursivamente desautorizado.

Além das transformações físicas, o processo de envelhecimento pode ser


influenciado pelo estado de espírito do(a) indivíduo(a) (ESCOBAR et al., 2017), o qual
depende do quanto o cérebro é estimulado intelectualmente (ESCOBAR et al., 2017;
BEAUVOIR, 1970), o que nos leva a concluir que o processo e envelhecimento nem
sempre se inicia com base na idade cronológica, conforme vimos anteriormente.

Em termos sociais, uma vez que o processo de envelhecimento dos seres


humanos vem acompanhado da involução de órgãos, respostas mais lentas a estímulos e
outros problemas biológicos, nota-se que há outros fenômenos que silenciosamente se
instauram. Beauvoir (1970) explica que algumas culturas exaltam os (as) idosos (as)
pelos seus conhecimentos e experiências, e outras, os(as) excluem por representarem um
fardo, um corpo improdutivo, por não estarem mais aptos a colaborar com o
desenvolvimento da sociedade, no tocante ao seu crescimento e à produção do lucro.

De outra via, Santos (2010) aponta que a diminuição do poder físico acarreta
a queda da produtividade dos(as) indivíduos(as), o que pode diminuir o poder aquisitivo
e alterar a posição social ocupada por aqueles(as) indivíduos(as), em sociedades

denominações, que são autodenominações, e nunca rotulação). Ávila (2014) explica que são sujeitos
identificados como meninas no nascimento, mas que se identificam enquanto sujeitos do gênero masculino.
46
Faço uma diferenciação entre o envelhecimento em homens e mulheres cisgêneros de homens e mulheres
transgêneros, visto que, embora esse fenômeno afete todos os indivíduos vivos, cisgêneros ou transgêneros,
as necessidades de cada categoria identitária são diferentes; daí a inevitabilidade de políticas públicas
específicas que atendam a cada um desses grupos. Além disso, os modos de vida de pessoas cis muito
diverge do modo de vida de pessoas trans, se levarmos em linha de conta que as pessoas cisgêneras são
detentoras das forças de poder e privilégios que tornam suas vidas mais fáceis. E finalmente, mulheres
transgêneras não apresentam as mesmas questões citadas no texto quanto ao envelhecimento, uma vez que
sua formação biológica – órgãos – difere da de mulheres cisgêneras.

43
capitalistas. A sociedade, de um modo geral, tende a enxergar a velhice como um período
de dificuldades físicas, biológicas e de baixa produção econômica (BEAUVOIR, 1970),
além de representar um período de descrédito para tais sujeitos(as).

Já para Antunes (2010), a velhice consiste em uma série de enunciados que


estabelecem a maneira como este segmento da população deve se comportar, nos levando
a crer que os discursos médicos, estéticos e midiáticos, em geral, impõem
discursivamente práticas sociais de como as pessoas devem viver. Assim, o processo de
envelhecimento pode variar de acordo com a cultura, o local e a época em questão
(SANTOS et al., 2014; ANTUNES, 2010; BEAUVOIR, 1970).

Afinal de contas, o que é ser velho? E o que é ser idoso? Marques (2004)
explica que, historicamente, o vocábulo velho relaciona-se a princípios depreciativos, tais
como preguiçoso, infrutífero, inútil, maldoso, entre outros. A autora complementa que o
termo idoso já é recomendável, visto que incorpora perceptibilidades e credulidades,
transformando o(a) sujeito(a) em alguém merecedor(a) de respeito (MARQUES, 2004).

Para alguns/algumas idosos(as), a velhice consiste em um período de


diversão, liberdade, entretenimento, descanso e devido usufruto das conquistas
alcançadas na vida adulta (SILVA, 2008; PESTANA; ESPÍRITO SANTO, 2008)
enquanto que para outros(as) representa um período difícil não apenas no tocante aos
impedimentos físicos, mas também por representar um período de solidão (WEEKS,
1983), pobreza, estigma, sofrimento.

Em virtude do desenvolvimento da medicina, a nova geração de pessoas


idosas percebe um upgrade em seu processo. O corpo já pode ser reconstruído e
revitalizado por meio de inúmeras intervenções estéticas, tratado com medicamentos que
retardam o envelhecimento do corpo e o rejuvenescimento é garantido pelas tecnologias
de cosméticos (MARQUES, 2004).

Além disso, muitos homens cisgêneros já usufruem de medicamentos como


o Viagra47 para combater a disfunção erétil e a impotência sexual, observadas durante a

47
Medicamento que tem por ingrediente ativo o sildenafil, composto que facilita a ereção e age juntamente
com o desejo e a libido, ou seja, depende das preliminares para que seja efetivo, foi sintetizado
originalmente pelo laboratório Pfizer, patenteada em 1996 e aprovada para o uso em março de 1998.
Disponível em https://guiadocorpo.com/viagra-masculino/; https://pt.wikipedia.org/wiki/Sildenafila.
Acesso em 20 de fevereiro de 2018.

44
velhice. Nessa relação envelhecimento e sexualidade, percebemos que o corpo saudável
é o sexualmente ativo, o que explica a valorização de medicamentos e recursos para a
melhoria do desempenho sexual (ROHDEN, 2012), de maneira a evitar que os corpos
dos homens idosos possam ser comparados aos corpos de mulheres idosas em termos de
vulnerabilidade, intervenções de saúde e tratamentos (PAZZINI; MIGUEL, 2016;
ROHDEN, 2012).

A velhice, então, tem se afastado dos traços de fragilidade física


(MARQUES, 2004) muito comuns no passado; o número de idosos(as) no país aumenta
(BRASIL, 2013; WHO, 2002), sendo contabilizadas inúmeras pessoas com 80 anos ou
mais (MARQUES, 2004). E, apesar de ouvirmos tantos discursos acerca da velhice,
Marques (2004) assevera que ela nunca foi tão positivada e estendida como tem sido
neste século. Para a autora, o movimento da longevidade é tão bem-sucedido que a 3ª
idade, período até pouco tempo considerado a reta final na vida dos seres humanos, agora
é substituído pela 4ª idade, ou seja, há um aumento no número de pessoas com idade
igual ou superior a 80 anos.

Logo, envelhecer nos dias de hoje não pode ser comparado ao processo de
envelhecimento do século passado (CUNHA, 2016), uma vez que, por mais que as
possibilidades sociais se apresentem de modo bastante desigual, já é possível contar com
uma multiplicidade de mecanismos que propiciam longevidade aos idosos e às idosas e,
oferecem acepções diversificadas para as suas vidas.

A esse respeito, podemos inferir que os comportamentos ordenados para a


população idosa vêm sofrendo uma remodelagem, de modo a impor-lhes um
comportamento semelhante ao dos(as) jovens (ANTUNES, 2010). A sociedade de
controle48 (FOUCAULT, 2008) compele uma dita “qualidade de vida” que “impede” que

48
A sociedade de controle consiste em um modelo de gestão social “invisível” que tem suas raízes na
sociedade disciplinar, em que os sujeitos sociais não mais sofrem a violência física como forma de punição
por não enquadramento aos estilos de vida, porém, observa-se um controle ideológico e vigia de corpos
pelos meios de comunicação em massa e por todos os indivíduos desta mesma sociedade (FOUCAULT,
2008). A menção à sociedade de controle ocorreu aqui de modo a reforçar a ideia da necessidade da
adequação dos indivíduos a essa norma de uma vida jovial, longe das mazelas da velhice, sob a pena da
vigia e controle dos demais indivíduos da sociedade.

45
os(as) indivíduos(as) envelheçam, dizimando os estigmas de doença e decadência tão
comuns na descrição dessa população (ANTUNES, 2010).

Os(as) idosos (as) têm se remodelado a novos costumes e hábitos do mundo


moderno, e neles se ambientado, extinguindo a ideia de que sejam sujeitos(as)
solitários(as) e decadentes (MOTA, 2009). Alonso (2005) acrescenta que as ações sociais
que se referem à velhice são tão distintas, que chegam a expressar inúmeras maneiras de
envelhecer.

Diante de tantas soluções e imposições de hábitos e costumes para uma


longevidade saudável, nota-se um aumento considerável no número de pessoas idosas no
país. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
no período entre 2000 e 2010, aponta que o número de brasileiros com idade a partir de
60 anos teve um aumento considerável: de 15,5 milhões para 23,5 milhões de pessoas
(CUNHA, 2016).

Siqueira; Botelho; Coelho (2002) apontam que entre os anos de 1970 e 2000
os países em desenvolvimento demonstraram um aumento de 123% da população idosa,
contra 54% de aumento da população idosa em países desenvolvidos. De outra via, um
documento elaborado pela ONU (WHO, 2002) considera o período entre os anos 1975 e
2025 como a Era do Envelhecimento justamente em concordância com o crescimento
demográfico da população idosa que temos observado.

Neste tecido, começamos a perceber que há um crescimento feroz da


população idosa versus a taxa de natalidade, indicando uma tremenda defasagem no que
diz respeito ao sistema previdenciário, se comparado ao sistema de produção
(ANTUNES, 2010). No Brasil, por exemplo, o aumento da expectativa de vida e o
declínio da taxa de fecundidade têm sido determinantes nas alterações da sua faixa etária,
desde o final da década de 1960 (SANTOS et al., 2014).

Soma-se a tal fato o aparecimento de inúmeras instruções acerca do que


consiste “envelhecer com dignidade” em contraposição ao descaso na criação de políticas
públicas cidadãs e que sejam especificamente voltadas para as diferenças. Em outras
palavras, a velhice caracteriza mais um ingrediente que atenua a fragilidade de pessoas
pertencentes a minorias sexuais, de gênero, de raça, classe social, status econômico,
orientação sexual (MAGALHÃES; SOBRINHO, 2006; ANTUNES, 2010).

46
Em adendo, Marques (2004) rotula como a “feminilização do
envelhecimento” o movimento caracterizado por uma maior participação das mulheres
cisgêneras idosas nos espaços de sociabilidade. Além disso, as mulheres cis vivem mais
que os homens cisgêneros (IBGE, 2010; LIMA, 2006; MARQUES, 2004) e se ocupam
mais na busca de opções de longevidade que eles (MARQUES, 2004), chegando à
velhice em vantagem (MARQUES, 2004), mesmo tendo sido mencionadas por Beauvoir
(1970) como sujeitas com problemas de saúde mais recorrentes.

Ainda sobre a feminilização do processo de envelhecimento, um documento


elaborado pela Secretaria dos Direitos Humanos (BRASIL, 2012) aponta que a população
feminina é superior à população masculina. De acordo com tal documento, em 2020 a
estimativa é que tenhamos 15.005.250 mulheres contra 11.328.144 homens, com idades
entre 60 anos e 80 anos (ou mais). Nesse sentido, Lima (2006) complementa que quanto
maior a faixa etária da população, maior a proporção de mulheres.

Para Paschoal (2004), o Brasil encontra-se em um movimento no qual


abraçará um número de 8,2 milhões de mulheres a mais que o número de homens até o
ano de 2050. Surpreendentemente, nos dias atuais, as mulheres correspondem a
aproximadamente dois terços (2/3) da população com 75 anos ou mais em países como
o Brasil e alguns países do continente africano (OMS, 2005).

Debert (1994) comenta que a taxa de idosos(as) no Brasil tem sido oito vezes
superior às taxas de crescimento da população total, caracterizando uma trágica situação
que desafia as sociedades civil e política. A esse respeito, percebe-se, por meio da
pirâmide etária publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
referente ao censo de 2010, a diferença no número entre homens e mulheres em todas as
faixas etárias (IBGE, 2010), levando-nos a crer que há mais mulheres idosas que homens
idosos.

Diante do exposto, assevero que, em se tratando de pessoas cisgêneras, as


pesquisas apontam que homens e mulheres apresentam, basicamente, as mesmas
características quanto ao processo de envelhecimento físico, mas que também podem
contar com inúmeros recursos da medicina e da estética os quais podem amenizar as
dificuldades vivenciadas no processo de envelhecimento. Ainda vimos que há um
número gritante de mulheres idosas no país, que tende a crescer.

47
Vivemos em uma sociedade regida por valores da heterossexualidade
compulsória. O termo foi cunhado por Adrienne Rich ([1980] 2010), em seu texto
Heterossexualidade compulsória e existência lésbica, o que nos leva a considerar que o
discurso social normativo elege a heterossexualidade como a orientação sexual
natural/normal esperada para homens e mulheres. Para ela, homens e mulheres são
compulsoriamente obrigados a serem heterossexuais (RICH ([1980] 2010). Todo aquele
que foge a tal regra é considerado abjeto.

A esse respeito, Santos e Carmo (2013) asseguram que há uma


heterossexualização das pesquisas, principalmente no que diz respeito às mulheres
idosas. Daí o número expressivo de pesquisas que falam da velhice de homens e mulheres
como sendo, via de regra, todos(as) sujeitos(as) heterossexuais, inscrevendo os(as)
idosos(as) na moral heterossexual (MOTA, 2009).

Assim, como o decurso da vida mudou se compararmos o século passado


com o momento atual, as pesquisas apontam diferenças entre as maneiras de envelhecer
no que diz respeito a tempo histórico, cultura, classe social, educação, estilo de vida,
gênero, profissão, etnia (ESCOBAR et al., 2017; ANTUNES, 2010; LIMA, 2006;
BEAUVOIR, 1970), principalmente se levarmos em linha de conta as diferenças sociais
e de gênero (MAGALHÃES; SOBRINHO, 2006).

Em conformidade com a pesquisa realizada por Magalhães e Sobrinho


(2006), os(as) idosos(as) com melhor poder aquisitivo encaram a velhice como um dos
melhores momentos de suas vidas, visto ser a fase em que usufruem de uma maior
liberdade e podem gastar o que passaram a vida juntando, sem se preocuparem com o
sustento de suas famílias. Contudo, esses autores também explicitam que os(as)
idosos(as) com pouco ou nenhum poder aquisitivo, dentre eles(as) moradores(as) em
asilos, alegam ser a velhice um período de solidão, abandono e morte.

Até certo tempo atrás, essa era a realidade das pessoas idosas: os homens
idosos cisgêneros deveriam estar sempre bem, auxiliar as esposas e continuar sendo os
cabeças de suas famílias, enquanto que às mulheres idosas cabia o papel de cuidadoras
de suas casas, de suas famílias, da saúde de seus familiares e da sua, bem como se
comportar como idosas (MAGALHÃES; SOBRINHO, 2006).

48
Contrariando tal divisão comportamental e de tarefas, Debert (1994) garante
que valores e tarefas considerados femininos ou masculinos tendem a se misturar na
velhice, gerando o que ela concebe por “normalidade unissex da idade avançada”. Porém,
a autora afirma que o processo melancólico e solitário das pessoas idosas de hoje já se
torna constatável.

Marques (2004) afirma que o interesse pela velhice tem crescido e com isso
a contribuição científica na efetivação de políticas públicas para essa parcela da
população. Além disso, ele revela que, especialmente nos últimos 20 anos, inúmeros
projetos e ações têm se ocupado com o processo de envelhecimento, colaborando não
apenas na implementação e legitimação das políticas públicas que lhes confiram
cidadania e dignidade. Em tais políticas públicas, podemos incluir ações como a criação
e a proliferação de Programas para a Terceira Idade no contexto brasileiro, que têm como
maior público as mulheres idosas (DEBERT, 1994).

Debert (1994) complementa que a criação desses Programas para a Terceira


Idade representa movimentos de luta contra os preconceitos e estereótipos vivenciados
nessa idade, de modo a expressar um momento privilegiado dessa população, em que a
realização pessoal, a satisfação e o prazer encontram o seu auge e são vividos de maneira
mais madura e proveitosa. Tais programas têm por objetivo oferecer aos idosos atividades
que incluam conferências, aulas, desenvolvimento de trabalhos manuais, passeios e
excursões, bailes, de modo a permitir-lhes um reencontro com o seu espaço no meio
social e consequente recuperação da autoestima (DEBERT, 1994).

A autora considera que muitos desses programas de socialização para as


pessoas idosas trazem em seu bojo uma participação massiva de mulheres, conforme já
discutido em outro passo, acerca da feminilização da velhice (MARQUES, 2004), o que
pode ser entendido em virtude da busca de longevidade expressa pelas mulheres e/ou
reserva/indiferença por parte dos homens idosos (DEBERT, 1994).

Em adendo, Motta (1998) leva em conta que as mulheres na velhice passam


a experimentar uma liberdade nunca antes experimentada, outrora reprimidas e cheias de
restrições. Já Mota (2009) chama a nossa atenção para tais questões, asseverando que a
velhice é um período variável e que tem sofrido mudanças e inovações culturais, sendo
os(as) idosos(as) agentes constituidores de novos estilos de vida, apontando, mais uma

49
vez, que o processo de envelhecimento é, além de biológico, uma construção social
manipulada pelo discurso.

Percebe-se com tais transformações que o dito declínio irreversível (LEMOS,


2015), bem como as perdas e limitações decorrentes da velhice (LIMA, 2006) são
discursos que não mais se sustentam, conforme vimos com os espaços de sociabilidade
propostos pelos Programas para a Terceira Idade. Outro aspecto que considero de enorme
relevância diz respeito à sexualidade na velhice, aspecto digno de um olhar cuidadoso
principalmente, pois nesta seção são apresentados os moldes de envelhecer de homens e
mulheres, como sujeitos heterossexuais.

Assim, a heterossexualidade é considerada um pressuposto em grande parte


das pesquisas e discursos biomédicos que dialogam com a temática do envelhecimento
(COVOLAN, 2005), bem como a valorização dos corpos jovens, sarados, belos e ágeis
(LIMA, 2006). Logo, as pessoas idosas fogem dos parâmetros tidos como esteticamente
normais/naturais por representarem um corpo fisicamente debilitado e cheio de rugas
(LIMA, 2006).

Em outras palavras, o mundo heteronormativo dita as regras sociais de modo


a supervalorizar a altivez e um determinado parâmetro de beleza corporal com bases na
representação jovem (MOTA, 2009). Daí a compreensão de onde surgem os discursos
controlados pelo biopoder e pela biopolítica (FOUCAULT, 2008, 2007, 1987), os quais
impõem a busca por uma vida mais saudável, alimentação natural e que propicia a
longevidade, uso de cosméticos – ao corpo dos(as) idosos(as) é dada a busca da saúde e
prazer infinitos (MARQUES, 2004).

Historicamente, ao homem é imposta a ideia de virilidade, produtividade


econômica durante a vida adulta e inatividade na velhice (MARQUES, 2004). Por isso,
a preocupação com a manutenção dos corpos jovens e saudáveis. Além disso, corpo
jovem é presságio de corpo sexualmente ativo (BEAUVOIR, 1970), conforme discutido
previamente.

Já às mulheres envelhecidas é permitido saírem sozinhas com as amigas,


passear mais que durante a juventude, o que lhes é possível por não serem mais tão
atraentes, não se reproduzirem e não serem passíveis de preservação como outrora

50
(MOTTA, 2002), marcando a tal “permissão” como u-m abrandamento do controle sobre
os corpos femininos idosos.

Falar acerca da sexualidade, mesmo que de homens e mulheres cisgêneros e


heterossexuais, é considerado tabu: o corpo por si revela não apenas questões
relacionadas ao preconceito, mas também à estigmatização, de modo a criar inquietações
sobre ser idoso(a), por se acreditar que durante a velhice não haja desejo e a libido seja
limitada (MARQUES, 2004).

Tal pressuposto entende esse momento da vida como um momento de


assexualidade, fato sustentando desde a Idade Média que o poder tanto se empenha em
controlar (FOUCAULT, 2007, 1970,1988). É por isso que Lemos (2015) sugere uma
transformação na vivência da sexualidade, de maneira a extinguir inúmeros mitos,
atitudes sociais e estereótipos atribuídos aos idosos, especialmente os que dizem respeito
à sexualidade (COVEY 1989).

Finalmente, tendo ciência de que há uma supremacia cisgênera e


heteronormativa em ação na realidade social, o pensamento heterossexual tende a
desenvolver uma interpretação generalizante da história, da linguagem, da cultura e da
realidade. Assim, as trajetórias de envelhecimento de sujeitos(as) que não se adequam às
regras normatizadoras tornam-se apagadas, invisibilizadas. Pensando nisso, o
subcapítulo seguinte tem por meta exibir algumas pesquisas realizadas acerca do
processo de envelhecimento de homossexuais femininos e masculinos.

1.2 Velhice e homossexualidade masculina e feminina

Conforme o expresso na seção anterior, os processos de envelhecimento são


distintos para os gêneros masculino e feminino. Embora tais procedimentos evolutivos
sejam acompanhados de uma mudança significativa, se comparados ao século anterior,
ainda representam uma ocorrência extremamente aflitiva para alguns sujeitos.

O cenário é exacerbado no tocante aos idosos e às idosas LGBT, visto


prevalecer uma perspectiva heteronormativa acerca do envelhecimento (HENNING,

51
2017). Além disso, Mota (2009) assegura que pesquisas acerca da velhice e da
homossexualidade, juntas, encontram-se em fase embrionária, fator que explica o
silêncio que permeia a temática, principalmente no que concerne à sexualidade dos
idosos.

Em concordância com o discutido, um dos problemas que acompanham o


envelhecimento é o declínio do desejo, levando muitos a pensar que durante a velhice
não há desejo, não há libido e não há relações sexuais. Neste contexto, a sexualidade na
velhice direciona o pensamento para a inexistência de experiências relacionadas a
práticas sexuais tanto de ordem heterossexual como de ordem homossexual (NERI,
2007).

Apesar do aumento no número de idosos, bem como a extensão em vinte anos


da expectativa de vida do brasileiro, o envelhecimento não ocorre da mesma maneira
para todos os grupos sociais. O processo cultural que envolve principalmente pessoas
idosas gays induz o seu enclausuramento ao preconceito da idade, isto é, o
envelhecimento consiste em um processo extremamente penoso, um vilão a ser
combatido para evitar que aquele corpo se torne abjeto (CUNHA, 2016).

No que diz respeito aos homossexuais masculinos idosos, Mota (2009)


acredita que estes se encontram, em sua maioria, assinalados pelo seu mutismo e pelo
peso de dois estigmas: velhice e homossexualidade, o que parece influenciar a
constituição de sua identidade social.

Contudo, Simões (2004) complementa que faz parte do discurso fantasioso


caracterizar a velhice como um período de solidão, isolamento, depressão e perturbação
psicológica, de maneira a contrastar a juventude radiante e a velhice soturna, exacerbando
o preconceito acerca da velhice e da homossexualidade.

Ainda pode-se reconhecer que o estereótipo homossexual masculino traz


consigo enunciados como “bicha velha”, “coroa assanhado” (CUNHA, 2016;
CARDOSO; CHAVES, 2014; MOTA, 2009), assinalando que, assim como a velhice
heteronormativa, os homossexuais masculinos idosos persistem na manutenção do
parâmetro corpóreo jovem, consumista e patriarcal (CUNHA, 2016; CARDOSO;
CHAVES, 2014; MOTA, 2009).

52
Neste sentido, Mota (2009) sustenta que o exame alegórico acerca do corpo
enquanto cronológico, a caminho do envelhecimento, suscita o medo da decadência da
apresentação física, seguido do fim do erotismo e, consequentemente, perda da
atratividade, confirmando a visão de que o corpo belo e ativo é o corpo jovem.

Com isso, nota-se que, por via de regra, a prática sexual na


contemporaneidade alcança uma maior visibilidade em virtude dos novos critérios de
civilidade na arena de inúmeras identidades. No tocante à homossexualidade masculina,
uma enorme adequação começa a se estabelecer, apontando a legitimação de formas de
expressão próprias, bem como hábitos de vida referentes a essa população.

Mota (2009) chama de “hipótese do velho solitário e decadente” os discursos


acerca dos idosos. Para o autor, esses discursos nem sempre coincidem com o contexto
concreto, considerando-se que os sujeitos experimentam práticas muito distintas,
levando-os a transformar ou se adequar a novos procedimentos e rotinas (MOTA, 2009).

Perpassando pela velhice homossexual feminina, um fator que me chamou


muito a atenção foi a carência de estudos acerca da temática. Santos (2002), por exemplo,
afirma que os tópicos envelhecimento e lesbiandade são examinados de maneira
acanhada, sendo evidente a ausência de dados com relação à orientação afetivo-social
nas pesquisas sobre o tema.

Ademais, concordo com Covolan (2005) ao asseverar que a escassez de


trabalhos acerca da temática se dá uma vez que a mulher, na maior parte das pesquisas,
é vista como uma sujeita inserida em um relacionamento heterossexual. Não se
consideram nas pesquisas as sujeitas jovens, de meia idade ou idosas, que se encontram
em um relacionamento homoafetivo (COVOLAN, 2005).

Observa-se também que mulheres jovens e de meia idade apresentam certa


dificuldade em desenvolver o seu direito à sexualidade, considerando-se que o machismo
é o comportamento preponderante nas relações de gênero (RIOS, 2007). Soma-se a esse
fato o protagonismo masculino prolongado nos espaços públicos e privados, de maneira
a colocar a mulher sempre em segundo plano e exprimir que a performance sexual é de
soberania masculina (LIMA, 2013).

53
A propósito desse assunto, Alves (2010) esclarece que os estudos acerca da
homossexualidade feminina no Brasil são escassos, porém têm aumentado. Para a autora,
grande parte dos estudos existentes em relação ao tema acumula-se na faixa etária jovem
(vinte anos ou mais) ou na faixa etária dos trinta aos quarenta anos (ALVES, 2010).

Em pesquisa desenvolvida com dois grupos de homossexuais femininas: um


com idades entre 37 e 49 anos e outro com idades iguais ou superiores a 60 anos, Alves
(2010) atesta que à proporção que as mulheres envelhecem, elas se enxergam e são
enxergadas como pessoas pouco atrativas sexualmente, o que atesta a desvalorização
estética do corpo, valorizado apenas na juventude.

Santos e Carmo (2013) descrevem uma pesquisa realizada com oito senhoras
homossexuais, com idades entre 52 e 67 anos. Em conformidade com os autores, há certo
incômodo por parte das senhoras entrevistadas quanto ao processo de envelhecimento.
Vemos que a homossexualidade feminina está ligada à precarização da saúde, perda da
libido e queda da autoestima, confirmando que não há diferenças entre a velhice
homossexual e heterossexual, se compararmos estes dados com os dados apresentados
na seção anterior.

Em outro estudo, mulheres com sessenta anos ou mais não perceberam


impedimentos em suas vidas amorosas e de maneira alguma se referem à velhice como
um período que dificulte os seus relacionamentos amorosos (ALVES, 2010). O que o
estudo comprovou foi que estas mulheres idosas hoje se relacionam com outras parceiras
de 10 a 15 anos mais novas que elas, com meios sociais mais modestos, pouca
escolaridade e nível de renda mais baixo (ALVES, 2010). Um aspecto interessante
mencionado pela autora é que não há espaços de sociabilidade voltados para o público
lésbico da terceira idade. As atividades de sociabilidade se resumem a encontros nas
casas umas das outras ou de familiares e vizinhos.

Em uma pesquisa realizada por Santos e Carmo (2013) com mulheres a partir
dos cinquenta anos, no intuito de entender como estas pensam o envelhecimento,
considerando-se a sociedade misógina e etarista – que considera a velhice feminina abjeta
– descobriu-se que essa fase costuma ser silenciada entre as feministas lésbicas, visto que
a nossa sociedade idolatra a juventude e condena a velhice.

54
A esse respeito, Wolf (1992) elucida que o envelhecimento da mulher é feio:
o mito da beleza aleija o percurso de vida de todas as mulheres, confirmando que, mesmo
em idade avançada, as identidades das mulheres têm por princípio essencial a beleza,
sendo vulneráveis à aprovação externa.

Na próxima seção, evidencio algumas pesquisas de áreas como a


Gerontologia, Saúde e Antropologia que tratam do tema do envelhecimento de mulheres
trans e travestis.

1.3 Mulheres trans e travestis envelhecem?

Apresentei nas seções anteriores certas características acerca do processo de


envelhecimento de homens e mulheres cisgêneros(as), sendo a feminilização do processo
um evento crescente em termos sociais. Apontei algumas pesquisas sobre o
envelhecimento de pessoas homossexuais femininas e masculinas, sendo notável a
carência de pesquisas acerca das condições do envelhecimento de homossexuais
femininos.

Intento, a partir de então, esboçar algumas contemplações sobre o


envelhecimento de pessoas trans e travestis nesta seção, retomando que, de maneira
alguma, pretendo esgotar o tema, porém, anseio mostrar algumas das pesquisas que
orientaram este trabalho.

Desta feita, inauguro aqui com o clássico trabalho de Siqueira (2004), que
objetivou mostrar que as travestis envelhecem, sim, embora nem todas tenham essa
“sorte’ de alcançar o período da velhice. Falo de sorte, entre aspas, uma vez que a própria
autora declara que, de modo geral, resta aos velhos a depreciação e a estigmatização
situações as quais podem, inclusive, influenciar no tempo de vida dessas pessoas.

As participantes da pesquisa de Siqueira (2004) alegam ter satisfação em


viver a velhice e, concomitantemente, apontam as dificuldades por elas enfrentadas nesse
período. Suas interlocutoras enxergam o fato de chegarem à velhice como um status

55
social, tendo escapado da AIDS, dos vícios, e podendo transitar e ser respeitadas por
diferentes segmentos sociais.

Interessante observar que no decorrer da minha pesquisa também constatei


tal satisfação acerca da velhice identificada por Siqueira (2004). Rebeca, Jussara e Kate,
colaboradoras da minha pesquisa, se posicionam da mesma maneira que as travestis da
pesquisa de Siqueira (2004), principalmente no tocante à sobrevivência nas ruas e drible
na AIDS. Jussara afirma que, embora existam inúmeras dificuldades no tocante à
igualdade de oportunidades, se considera uma pessoa afortunada e feliz com a vida que
leva na casa da Meire.

Siqueira (2004) também percebeu que as travestis da sua pesquisa tendem a


se voltar mais para a esfera da casa para usufruírem de uma velhice mais tranquila,
participando mais efetivamente de atividades políticas e de militância e socializando-se
com familiares e amigos (SIQUEIRA, 2004), o que se confirma com os relatos de Jussara,
Kate e Rebeca. Essas colaboradoras informaram que com o processo de envelhecimento
há uma busca maior pelo sentimento de família.

No que diz respeito à sexualidade, Siqueira (2004) constatou que esta ainda
encontra-se ativa para as participantes de sua pesquisa, mesmo que as relações sexuais
ocorram com frequência menor. Tal fato também se confirma por meio das minhas
interlocutoras, as quais alegam que a chegada da velhice não representa a diminuição de
seu apetite sexual.

Finalmente, as participantes da pesquisa de Siqueira (2004) confessam que,


embora sejam oriundas de uma classe social um pouco mais abastada, se prepararam para
chegarem “bem” neste momento, o que contradiz a realidade apresentada pelas minhas
colaboradoras. Rebeca é funcionária pública e tem sua aposentadoria garantida. Contudo,
Kate e Jussara dizem viver um dia de cada vez e não se preocupar com o futuro.

A pesquisa de Antunes (2010) almejou investigar o impacto das normas de


gênero sobre as travestis que atravessam a vida e atingem a velhice, de modo a observar
que estas não vivem da maneira que querem, mas em concordância com o que os saberes
lhes permitem. Para o autor, é muito difícil generalizar os modos de lidar com as
adversidades da vida, mesmo as participantes de seu estudo tendo externado enfrentarem
a exclusão desde a infância por não se adequarem às regras sociais.

56
Assim como para as colaboradoras da pesquisa de Siqueira (2004), para as
travestis investigadas no estudo de Antunes (2010) alcançar a terceira idade representa
ser um referencial relevante, um exemplo a ser seguido e também um alerta para as
meninas mais jovens. São consideradas velhas no momento em que seus corpos não mais
podem ser vinculados à prostituição, embora nem todas tenham uma ocupação/profissão
paralela que as livrem de doenças e violências (ANTUNES, 2010).

Esse é outro fato mencionado pelas minhas informantes. Gabriela, Kate,


Jussara, Patrícia e Rebeca alegam que depois de certa idade aquelas que encontram-se
envolvidas na prostituição não conseguem mais o número de clientes que possuíam antes.
Jussara e Kate, que são as participantes com mais idade no universo da minha pesquisa e
que ainda trabalham enquanto profissionais do sexo, asseguram que não pretendem “se
aposentar” tão cedo, por sentirem estar longe da terceira idade e também por gostarem
de exercer tal profissão.

Em sua tese de doutoramento, Siqueira (2012) apresenta algumas das


entrevistadas na sua dissertação de mestrado e realiza um trabalho comparativo e de
preenchimento de algumas questões que surgiram acerca das memórias das “travestis das
antigas”, como ela própria nomeia. A autora propôs-se a investigar as narrativas
biográficas e formas de sociabilidade de sujeitas – que não estão na linha da pobreza, são
brancas/morenas claras e têm residência própria – que se autodenominam “travestis das
antigas”, com a intenção de compreender como as participantes construíram suas formas
de sociabilidade no que diz respeito às suas vivências no Rio de Janeiro. E, é claro, por
meio do comparecimento de suas memórias, as participantes da investigação
compartilharam histórias de preconceitos, discriminações constrangedoras de seus
processos de subjetivação, bem como as estratégias de resistências, entendidas por elas
como astúcias na tentativa de impor seus diferentes estilos de vidas.

Leite Jr (2017) realizou um estudo com três interlocutoras que se intitulavam


travestis e tinham mais de cinquenta anos de idade, da região metropolitana de
Fortaleza/CE. Tinha por objetivo compreender a produção das performatividades de
gênero e a experimentação da sexualidade na intersecção de travestilidade e
envelhecimento.

57
Embora o autor tenha percebido a dificuldade em envelhecer enfrentada pelas
meninas investigadas em seu estudo, ele relata as resistências e adequações a que elas se
submetem para poderem ressignificar suas vidas e construir suas histórias em contextos
considerados possíveis. Também notou que muitos preconceitos e estigmas que
circundavam as travestis no tocante a drogas, prostituição e escândalos já começam a ser
problematizados junto à sociedade, porém o olhar da academia ainda persiste na exclusão
e patologização (LEITE JR., 2017).

Ao concluir, Leite Jr (2017) relata que não é possível generalizar o


envelhecimento travesti, visto que as travestis se encontram em situações diferentes,
apontando para modos de existência diversificados, o que é perceptível diante dos dados
da minha pesquisa. As suas trajetórias de vidas são marcadas por violências, lutas,
resistências, mas, infelizmente, em alguns momentos, acabam silenciando frente às
exigências das normas heteronormativas pela sua sobrevivência (LEITE JR, 2017).

A pesquisa de Casteleira (2014) é interessante por tratar do envelhecimento


e da travestilidade a partir das narrativas de 4 (quatro) trans jovens – participantes com
idades entre 20 e 29 anos – com o objetivo de descrever como elas constroem a velhice
a partir de suas falas, no intuito de desvendar o modo no qual pessoas trans envelhecem,
sob quais perspectivas e as soluções que estas sujeitas encontram para retardar o temeroso
envelhecimento.

Essas participantes asseveram que sofrem um sistema duplo de invisibilidade


– o do gênero e o da juventude – conforme nota-se em outras pesquisas que envolvem a
população LGBT, e revelaram subverter não apenas as normativas de gênero e
corporeidades, mas também a fronteira que demarca o início do envelhecimento. Para
elas, a idade cronológica não é determinante para o marco do envelhecimento, mas as
situações a que são submetidas enquanto profissionais do sexo.

O autor também aponta que a ideia do corpo jovem relaciona-se com a beleza,
isto é, um corpo velho é um corpo feio (CASTELEIRA, 2014), de maneira a corroborar
o depoimento de uma de minhas interlocutoras, Gabriela da Silva.

A chegada da velhice é identificada por meio do pouco rendimento de seus


corpos, em consequência da perda da jovialidade, ficando as trans da pesquisa na

58
expectativa do ingresso em atividades nas quais o corpo jovial não seja uma exigência
(CASTELEIRA, 2014), como é o caso das minhas colaboradoras Jussara e Kate.

É curioso notar que os poucos trabalhos trazidos até aqui, no tocante ao


envelhecimento de pessoas transgêneras, tratam quase que exclusivamente de travestis.
Casteleira (2014) explica que no decorrer de sua pesquisa suas interlocutoras se
autodenominaram mulheres, transgêneras ou travestis, contudo ele decidiu utilizar o
termo trans por uma questão de unicidade entre tais denominações.

Neste ínterim, saliento que há uma escassez de trabalhos que lidem com o
envelhecimento de mulheres transexuais ou mulheres trans. Muitos dos trabalhos
encontrados, embora façam menção a velhice e/ou ao processo de envelhecimento, não
tratam a temática como foco. Registro aqui tal fato não para justificar o meu
envolvimento com o tema, mas para expressar o motivo da falta de dados para serem
discutidos nesta seção.

A proposta desse capítulo foi apresentar ao(a) leitor(a) um panorama geral


relativo ao processo de envelhecimento em conformidade com as pesquisas exploradas
para a construção dessa tese, e que teoricamente embasaram algumas questões que
referem-se ao envelhecimento biológico, psicológico, físico e social dos seres humanos.

Contudo, penso ser significativo comentar acerca da escolha da epígrafe


deste capítulo, um poema de autoria coletiva cujo título é Voluptuosa dor
extraterrestre, e encontra-se no livro Antologia Trans49. A dor sentida pelas pessoas
transgêneras é tão grande - em virtude das pressões hetero-cisnormativas - que a comparei
com as dificuldades que as pessoas, em geral, acreditam enfrentar quando em seu
processo de envelhecimento, é uma dor sem precedentes, uma dor extraterrestre,
possivelmente graças às imposições dos discursos sociais de que o belo é o jovem, e que
a velhice relaciona-se com a doença.

49
O livro Antologia Trans reúne 30 poetas trans, travestis e pessoas não-binárias que escreveram o poema
sob a coordenação da poetisa e mulher trans Danyelle Cavalcante, durante as oficinas de poesia do Cursinho
Popular Transformação, o qual prepara meninos e meninas trans para o ENEM. O livro traz como prefácio
A Língua Como Nossos Corpos, de Amara Moira Rodovalho, assim como o poema Açaí.
Pessoas não-binárias, termo encontrado aqui nesta nota de rodapé, diz respeito a pessoas que não se
identificam com o binarismo expresso por sexo/gênero como um todo, ou se identificam ligeiramente em
ambos os sexos/gêneros, concomitantemente, ou ainda, com a predominância de um dos sexos/gêneros a
maior parte do tempo (BONASSI, 2017).

59
Falar em envelhecimento de pessoas transgêneras é ainda mais doloroso. Não
é fácil suportar o estigma, o preconceito e a discriminação sendo uma pessoa transgênera,
o que dirá sendo uma pessoa transgênera e idosa. Um duplo processo de estigmatização
e violências se instala.

No próximo capítulo, discuto sucintamente a questão do corpo, de modo a


interpretar como os corpos masculinos e femininos foram construídos desde a
Antiguidade até a contemporaneidade, visto retratarem a sociedade, seus valores e seus
discursos. Também é meu objetivo entender a origem do estigma, do preconceito e da
discriminação contra aqueles corpos transgêneros que nasceram masculinos e
construíram o feminino, assim como o processo de envelhecimento desses corpos.

60
CAPÍTULO 2
Corpo: Uma Metamorfose Ambulante

Foda-se?

Pare de procurar em mim outro corpo


É este que me fiz pra mim
Senão agradas meu ser
Aceitemos que é o fim
Foda-se?
Não fala, não se importa, não sente
Foda-se
Não vê além dos seus próprios interesses
Encarar a vida e as relações de frente
Desafia a coragem, o sentimento e a mente
Mas se quero me impor como independente
Sua escolha já se entende
Nenhum passo a mais de humilhação
Não me reduza pra caber neste formato
Não se esforce pra ser gentil
A corrente seguirá em silêncio
Nenhuma palavra, suspiro ou tabaco
Está é a escolha que fizemos
Viver sem ter um diálogo
Triste é saber que dos amores
O meu é sempre o mais raso

Virgínia Guitzel

á se tornou senso comum na sociedade de hoje que o corpo físico sofre

J
as mais diversas ingerências prescritas pelos discursos midiáticos,
médicos e da moda. Nesse enredo, corpos sarados são traduzidos como
corpos saudáveis (KEHL, 1926, 1927; TONELI, 2012).
Diferentemente da antiga e conhecida citação latina “mente sã em
corpo são”, os corpos do século XXI estão extremamente predispostos
à determinação social do padrão de beleza esculpido por cirurgias
estéticas, spas, clínicas, e academias de ginástica (PAIM; STREY, 2004).
A incessante apreciação do corpo belo e atraente tem como maior alvo (e
vítima) o gênero feminino, de modo a reeditar situações de subalternidade e obediência,
manipulação e controle às mulheres (PAIM; STREY, 2004) reiterando poderes, saberes,
verdades e discursos de outros momentos históricos sobre os corpos humanos.

61
Contudo, o corpo simboliza um dos enormes intervalos da história,
principalmente pois os estudos pouco revelam sobre a história dos corpos femininos – o
interesse estava nos homens, mas não em seus corpos (ROIZ, 2009).
Assim, o intuito maior deste capítulo é revisitar alguns aspectos históricos
que circundam a história do corpo humano na sociedade em geral. Partindo-se do
pressuposto que o corpo é uma matéria ágil estruturada pela e na cultura, farei uma
concisa descrição de sua trajetória no tempo, de maneira a evidenciar algumas das
múltiplas possibilidades de referenciarmo-nos à ele e à elementos muitas vezes que se
fundem, como o gênero e a sexualidade.
Meu propósito com tal feito é discutir como os corpos masculinos e
femininos são pensados e visualizados com diferenças as quais afetam (e são afetados
pela) a cultura, o discurso e as vidas das pessoas, até os tempos atuais, intentando
compreender de que modo a inferiorização do corpo feminino foi estruturada até o
surgimento de outros corpos femininos, construídos a partir de uma matriz masculina.
Desta maneira, no primeiro item tratarei da experiência do corpo na Grécia e
em Roma, até a contemporaneidade Na segunda seção discuto a questão do corpo atrelada
ao discurso, visto que parto da premissa que os corpos apoderam-se de ambientes os
quais o discurso se refere, de maneira a problematizar a (des) construção destes corpos
pelo viés dos preceitos foucaultianos.
Em seguida, trago algumas considerações de autores que abordam a Teoria
Queer, evidenciando a constituição de corpos socialmente lidos como desviantes.
Encerro o capítulo com uma síntese dessa construção corporal no decorrer dos tempos.

2.1. O corpo da Grécia Antiga até os tempos atuais

O culto ao corpo é uma das características que mais aproxima a sociedade


contemporânea à Grecia Antiga. Em ambos os tempos históricos, Grécia Antiga e
atualidade, nota-se a valorização da aparência sempre bela e jovem, e o corpo sempre
esbelto, o que explica a atração que sentimos por todos aqueles atributos estéticos
estampados e tão bem delineados nas imagens de estátuas da Grécia Antiga, afinal, a

62
Grécia Antiga foi popularmente conhecida e representada por corpos robustos,
musculosos e perfeitos.
Além disso, é no percorrer do discurso filosófico grego que encontramos a
preocupação com as questões da origem de homens e mulheres e das suas diferenças
anatômica e sexual, com teorias que grandemente influenciaram a Filosofia, a Medicina,
a Biologia, dentre outras áreas, tendo como exemplos os pensadores Platão, Hipócrates
e Aristóteles.
De fato, na Grécia Antiga os corpos eram treinados no esforço incessante de
alcançar a excelência, longe de representarem um povo que tivesse culpa ou sentisse que
seu corpo fosse pecaminoso (CORBIN;COURTINE;VIAGRELLO, 2012/2017). O
corpo era notado e enaltecido pela sua beleza.
Os homens exercitavam-se para modelar seus corpos, fossem como atletas
treinando para os jogos Olímpicos ou enquanto soldados preparando-se para a guerra
(DOMINGUES, 2015). Logo, a imagem concebida adequa-se à concepção de cidadão
que tinha por objetivo maior alcançá-la, de modo a tornear e gerar o seu corpo com a
prática constante de atividades físicas e de reflexão/meditação (BARBOSA; MATOS;
COSTA, 2011). O corpo não passava de um objeto de consagração e de relevância para
o próprio Estado (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011).
Para os gregos, o corpo masculino nu, em especial, representava um
instrumento de saúde, beleza50 e fertilidade (ROSÁRIO, 2004). Cada idade era
representada por uma harmonia diferente, harmonia esta que primava o equilíbrio entre
o físico e a intelecção (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Ainda neste período, não existiam princípios morais no que concerne o corpo
e o sexo (PAIM & STREY, 2004), contudo, algumas regras de conduta eram presentes
de maneira a colaborar com o controle dos excessos, isto é, algumas restrições eram
impostas no intuito de receitar o “bom uso” dos prazeres, tais como a comida, a bebida,
e é claro, o sexo (ROSÁRIO, 2004), remetendo-nos aos princípios elencados por
Foucault (1994) em sua obra História da Sexualidade: Os cuidados de si.
Foucault (1994), assim como as restrições observadas na Grécia Antiga,
assevera que os séculos I e II recomendam uma vida de cuidados de maneira a levar os

50
O corpo belo e perfeito da Grécia Antiga era justamente aquele que apresentava harmonia e proporção
entre todas as suas partes (DOMINGUES, 2015).

63
cidadãos a alcançarem a plenitude por meio de atividades tais como a meditação, a
leitura, a prática de exercícios físicos e cuidado com uma dieta balanceada.
Interessante observar que tais regras e receitas eram designadas apenas para
os homens livres, sendo as mulheres e os escravos excluídos das “recomendações”
(BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004). Daí o fato de não vermos
estátuas de mulheres nuas que retratem a época da Grécia antiga em questão.
Acreditava-se na visão unissexuada do corpo, isto é, homens e mulheres eram
lidos como seres da mesma natureza biológica, estando o corpo feminino em uma posição
de inferioridade (PAIM; STREY, 2004). Respeitando essa “lógica” o corpo masculino
era considerado um corpo quente, e à época, quanto mais quente, mais perfeito se era, e
os órgãos eram “mais desenvolvidos” que os das mulheres, que tinham os órgãos pouco
desenvolvidos em virtude da frieza de seus corpos (PAIM; STREY, 2004).
De acordo com Joaquim (1997), a inferioridade do corpo feminino também
se expressa por meio do pensamento de Hipócrates e de Platão, uma vez que a mulher é
portadora de uma “semente fraca”, o receptáculo da semente mais forte (a semente
masculina). Há, ainda, a menção ao formato fisiológico das mulheres, que apresentam
cérebro menor que o dos homens e corpo físico menos musculoso (JOAQUIM, 1997).
Às mulheres, de outra via, competia exercer atribuições tais como submissão,
honradez e integridade aos seus pais e aos seus maridos (ROSÁRIO, 2004).
Diferentemente do que o senso comum prega, a procriação e os prazeres eram de estrita
responsabilidade masculina (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Domingues (2015) assevera que as mulheres eram confinadas nos espaços
domésticos e eram obrigadas a cobrir seus corpos com túnicas até os joelhos em casa, e
até os tornozelos sempre que fossem sair. A autora ainda complementa que pessoas de
renome na época, como Hesíodo51, afirmavam que as mulheres eram bonitas mas
perversas, pois levavam os homens à loucura.
Soma-se a isto o fato que as mulheres eram extremamente excluídas da
imposição da construção do corpo livre de imperfeições. Para o homem, tudo era
permitido, não haviam regras rígidas, e a homossexualidade e a bigamia eram atividades
vistas como legítimas- (ROSÁRIO, 2004).

51
Hesíodo foi um dos maiores poetas da Grécia Antiga, e juntamente com Homero – outro poeta conhecido
ator de poemas épicos como Ilíada e Odisseia –, é considerado um dos pilares da cultura do período.
Disponível em: infoescola.com/biografias/hesiodo/. Acesso em 2 de dezembro de 2018.

64
As leis tinham aplicabilidades diferenciadas para homens e mulheres; os
homens podiam andar totalmente nus, enquanto as mulheres deviam utilizar roupas de
modo a cobrir seus corpos ao sair às ruas (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011;
ROSÁRIO, 2004; TUCHERMAN, 2004). Nesse contexto, pode-se afirmar que o
adjetivo belo era associado apenas aos homens e à atributos considerados masculinos: os
corpos masculinos eram os únicos que tinham direito à cidadania (DOMINGUES, 2015).
O corpo, além de símbolo de perfeição, também era visto como um elemento
indicador de juventude, saúde e beleza. Os gregos que atingiam os corpos tidos como
ideais, deveriam exibi-los para que fossem admirados pelos pobres mortais: haviam
chegado perto da aparência divina (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO,
2004). Entretanto, toda essa admiração em torno do corpo esbelto pode ser interpretada
como um dado interessante para a representação da superação de impedimentos e
dificuldades, um dom glorioso e olímpico (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011).
Já para os Romanos, Rosário (2004) assegura que essa mesma rede de
cuidado de si destacada por Foucault (1994), propiciou o estabelecimento do que pode
ser chamada de um individualismo romano, visto que, em Roma, passou-se a prezar
normas de comportamentos pessoais que tinham por meta alcançar interesse próprio,
fazendo com que as pessoas fossem mais independentes. É na sociedade romana que
institui-se o que Foucault (1994) nomeia como cultura de si.
Em oposição aos gregos, os romanos não expunham o seu corpo. De outra
via, percebe-se uma tremenda exibição de monumentos do poder, visto que o poder do
imperador era evidenciado por meio destes grandiosos monumentos (BARBOSA;
MATOS; COSTA, 2011).
Para os romanos, a adoração do corpo humano tinha um valor pagão e
politeísta, explicando-se, assim, as exibições artísticas enquanto dramas de gladiadores
(BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). Contudo, em um dado momento, o império
romano passou a ter o pensamento filosófico florescido, e, consequentemente, todas as
intepretações relativas ao corpo passaram a modificar-se (ROSÁRIO, 2004),
especialmente de modo a fomentar questões religiosas (BARBOSA; MATOS; COSTA,
2011).
Os corpos femininos romanos, ao saírem de casa, precisavam ser cobertos
com um xale conhecido por palla, e deviam ser discretas, sem exagerar na maquiagem

65
para não serem lidas como prostitutas ou adúlteras (DOMINGUES, 2015).
Considerando-se que a igreja passou a ter controle sobre os corpos nesta sociedade
(BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011), até o uso de maquiagem era condenado pois
dizia-se que esta era um ensaio para remodelar a criação divina (DOMINGUES, 2015).
Já a Idade Média consiste em um longo período histórico que compreende
desde o século V até, aproximadamente, o século XV, período marcado pelos anos de
476 – Queda do Império Romano –, ao ano de 1453 – Queda do Império Bizantino.
Neste período, nota-se grande influência de ideias da Igreja Católica, estando
o cristianismo no centro do poder. O corpo passa a ter uma nova apreensão e significação:
de exteriorização da beleza para origem do pecado (BARBOSA; MATOS; COSTA,
2011). A fé cristã materializa-se na veneração da imagem, do corpo de Cristo
(CORBIN;COURTINE;VIAGRELLO, 2012/2017). A Igreja Medieval, então, condena
a vaidade e rotula de paganismo o uso das termas (DOMINGUES, 2015).
Foucault (1988, 1994) nos ensina que foi justamente tal visão do corpo como
procedência do pecado a força motriz para a efetivação de um controle austero sobre este
corpo de maneira a preservar a sua produtividade.
Uma vez que a Igreja Católica detinha o poder, percebe-se no período uma
série de tensões acerca do corpo. Com a justificativa no livro Gênesis, da Bíblia Sagrada,
o corpo feminino era diabolizado enquanto o masculino era endeusado. Eva, no livro de
Gênesis, era já colocada na posição de subalternidade ao ser gerada a partir de uma das
costelas de Adão.
Em seguida, com a leitura do livro de Gênesis, nota-se que a mulher entende
a sua exclusão a partir de sua natureza biológica ao ter sua ovulação ignorada em
exaltação à virilidade e fecundação restritas ao sexo masculino.
Roiz (2009), comentando o livro bíblico Gênesis, aponta que foi Eva com
toda a sua curiosidade e orgulho que convenceu Adão a experimentar do fruto proibído,
na busca do conhecimento de Deus.
Com isso, o corpo feminino era visto a partir de dois prismas distintos: o da
Virgem Maria, casta submissa, voltado para a procriação, à família, versus o corpo de
Eva, mulher pecadora, suscetível ao vício, à fraqueza, à sexualidade, prostituição,
luxúria, perversão da alma (DOMINGUES, 2015; ROIZ, 2009). Era, portanto, um corpo
tido como inferior e submisso (DOMINGUES, 2015).

66
Em conformidade com Barbosa, Matos e Costa (2011), o corpo é
constantemente reprimido, mas concomitantemente é exaltado por meio do corpo
sofredor de Jesus Cristo (CORBIN;COURTINE;VIAGRELLO, 2017; BARBOSA;
MATOS; COSTA, 2011). Para Barbosa, Matos e Costa (2011), o corpo do cristianismo
tem que saber lidar com a dor assim como sabe lidar com os prazeres. A sexualidade
feminina era rigorosamente inspecionada, tendo, inclusive, os gestos, práticas e
comportamentos monitorados e medidos pela Igreja e depois acatados pela sociedade
(ROIZ, 2009).
Distingue-se, então, a partição entre alma e corpo, de maneira que a força da
alma age sobre o corpo: ao homem competia ter forças para lutar contra todos os desejos
da carne/corpo para esquivar-se da morte, e como recompensa, alcançar a imortalidade
(nos reinos dos céus) e a redenção (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO, 2017;
BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). O corpo nada mais era que o cárcere da alma e
jamais poderia imperar sobre ela.
No período, testemunhamos o corpo ser coberto (DOMINGUES, 2015),
submetido à longos períodos de jejuns como maneira encontrada para renunciar o
concreto e atingir o sobrenatural (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO, 2012/2017;
BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). O corpo era um instrumento de fortalecimento da
convivência social, sendo justificável pelas características que este corpo apresentava em
relação ao laço que o sujeito sustentava com a terra (BARBOSA; MATOS; COSTA,
2011).
O sujeito da época teve toda as suas criações e expressões restritas pela Igreja
Católica: valores morais e códigos de conduta foram impostos, e a prescrição da
purificação almejando a purificação (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO, 2012/2017;
BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Diferentemente do tratamento dado ao corpo na antiga Grécia, este novo
período histórico é marcado pela proibição da adoração do corpo humano – exceto o
corpo de Cristo – de maneira e enfatizar que a alma era superior ao corpo (CORBIN;
COURTINE; VIAGRELLO, 2012/2017; ROSÁRIO, 2004).
Para o cristianismo, o corpo sempre seria o instrumento de consolidaçao da fé,
sendo o período assinalado por estratégias repressivas sobre o corpo, tais como os
castigos, as penas de morte, o autoflagelo, a fogueira, todos de ordem pública para

67
inculcar a ideia da obediência e da reprimenda co mo atitudes de correção (CORBIN;
COURTINE; VIAGRELLO, 2012/2017; ROSÁRIO, 2004). Vê-se uma dita
remodelagem nos conceitos e práticas corporais e comportamentais da sociedade da
Idade Média (ROIZ, 2009).
Uma transgressão para a Igreja Católica era a bruxaria visto que esta ocorria
no âmbito da sexualidade por meio do corpo (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO,
2017; BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). A partir de então surge a campanha de
prevenção e punição contra as mulheres, por inúmeras razões, a saber: a) mulheres foram
feitas da costela de Adão; b) não eram corretas; c) são seres que nascem ligados à
sexualidade (tida como um pecado imundo); d) eram agentes do diabo (BARBOSA;
MATOS; COSTA, 2011).
Inicia-se a conhecida “caça às bruxas” (ROIZ, 2009; PAIM; STREY, 2004),
período esse em que era muito perigoso ser mulher: toda e qualquer mulher poderia ser
julgada e submetida às regras religiosas de punição e extermínio das condenadas (ROIZ,
2009; PAIM; STREY, 2004) caracterizando um dos maiores e mais violentos genocídios
da época (PAIM; STREY, 2004).
É interessante notar com o acompanhamento histórico como os discursos
acerca dos corpos masculinos e femininos foram se modelando, constituindo as
sociedades e os sujeitos, embora a mulher tenha sempre sido colocada em uma posição
de inferioridade, menosprezo, perigo, prejudicial à coletividade.
Roiz (2009) manifesta que as representatividades de poder eram todas
masculinas, a começar por Deus, seguido de seus embaixadores aqui na terra, também
materializados na figura do homem: o Papa, os Reis, etc. A mulher com poder era
desprezada, humilhada e condenada (ROIZ, 2009).
Foi também na Idade Média que surgiu uma concepção distinta acerca do
corpo e as suas correspondências: passaram a acreditar que um ser humano era composto
de carne e espírito, concepção atrelada principalmente ao corpo feminino correção
(CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO, 2017). Às mulheres competia uma vida
espiritual de modo a sobrepujar o corpo carnal.
Viajando até o Renascimento, o corpo humano enquanto uma criação de
Deus, foi exaltado e se tornou grande fonte de inspiração para os pintores e escultores
(DOMINGUES, 2015).

68
Neste período, o corpo masculino permanece com o benefício de ser o ideal
de beleza e perfeição – o que nos remete aos modelos praticados na Grécia Antiga – ,
imitação da natureza, preocupação com a forma perfeita, proporção e harmonia, enquanto
o corpo feminino é invisibilizado por influência religiosa, a qual coloca a mulher como
apenas um corpo inferior originado a partir da costela de um homem (DOMINGUES,
2015). A beleza feminina só era contemplada por meio das imagens inspiradas nas deusas
clássicas, com a repetição de um padrão supostamento reverenciado pelos homens
(DOMINGUES, 2015).
O método científico emerge norteando as condutas humanas de maneira a
suscitar os ideais de liberdade dos seres humanos bem como o parecer de que o corpo é
decorrência de tais ideais (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). Desta feita, o
crescimento na esfera científica e técnica geraram dilecção pelo exercício da razão
científica como exclusiva forma de conhecimento (BARBOSA; MATOS; COSTA,
2011).
Diante desta “evolução” o corpo passou a ser um objeto de avaliações,
estudos e experimentos, transformando a crença teocentrisma em doutrina
antropocentrista (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). O corpo, então, passa a ser
investigado, analisado, avaliado, descrito, redescoberto, e passa a ser retratado em
inúmeras obras de arte, como as de Michelangelo e Da Vinci (BARBOSA; MATOS;
COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
É claro que ainda observavam-se a disciplina e o controle sobre os corpos,
com a indicação de atividades físicas regulares mas com a ênfase na saúde corporal
(BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004; FOUCAULT, 1994, 1988).
A carne torna-se, logo, soberana sobre a alma, e a ânsia por um corpo sadio
discursivamente tiranizava os sujeitos, que se rendiam à prática física numa servidão ao
Estado (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Sincronicamente, os(as) sujeitos(as) passaram a ser percebidos enquanto
corpos controláveis e delineáveis, aptos à exploração e a serviço da razão (BARBOSA;
MATOS; COSTA, 2011).
A indústria moderna se desenvolve, ocorre uma expansão comercial e,
consequentemente, a promoção do sistema capitalista, modificando consideravelmente
as relações com os trabalhadores, que empenhavam-se na produção em série e não mais

69
era exigida a sua criatividade (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011), caracterizando o
surgimento de corpos manipuláveis subordinados ao poder disciplinar com o propósito
de subalternar estes corpos, controlá-los de modo coercitivo (FOUCAULT, 2007).
A produção em série do recente capitalismo e a “docilização” dos corpos
(FOUCAULT, 1994, 1988) faz com que os(as) sujeitos(as) sejam postos à disposição da
economia da produção de bens, diante de corpos produtores, saudáveis e dispostos à
consumir (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Todas essas transformações propiciaram o avanço tecnológico e de saberes,
de modo a refletir diretamente na expectativa de vida e condições sociais e de interação
entre os(as) sujeitos(as) (PAIM; STREY, 2004).
Com isso, os corpos belos, perfeitos e saudáveis das pinturas e esculturas de
tempos muito remotos, já passam a se tornar uma realidade entre um número considerável
de pessoas no mundo contemporâneo.
É notável a quantidade de pessoas investindo em seus corpos na atualidade,
todas na constante vontade de obtenção não apenas de um corpo saudável e bonito, mas
sensualmente prazeroso e que lhes ofereça status social de poder.
Diante deste breve percurso histórico no tocante à contrução de corpos
masculinos e femininos desde a Grécia Antiga, meu objetivo foi apontar como os corpos
femininos tem sido vistos e tratatados como inferiores há muito tempo, o que nos leva a
crer que nossos corpos, sejam eles masculinos ou femininos são construtos carregados
de significados e que se (re) constroem pela(o)/na(o) linguagem/discurso.
Os atos discursivos que se referem aos corpos não apenas produzem normas
mas também colaboram com o advento de novas ocorrências que geram uma série de
efeitos de mudanças. Assim, os corpos apropriam-se de espaços os quais o discurso se
refere, de maneira a interpretar a a sua justificativa. Vejamos, portanto, no subcapítulo a
seguir, a (des) construção de corpos (nada) dóceis a partir da perspectiva foucaultiana.

70
2.2 Corpos indisciplináveis, corpos nada dóceis e o diálogo com Michel
Foucault e a Teoria Queer

O corpo é o elemento central d1a obra de Michel Foucault, uma vez que é
sempre evidenciado enquanto uma existência bio-política-histórica (FOUCAULT, 1926-
1984). Contudo, o filósofo nos ensina que o corpo só tem significado dentro de uma
relação de poder (FOUCAULT, 2007), e seu significado (ou interpretação) é marcado
pela cultura, crenças, saberes científicos e, principalmente, pelo olhar do outro que ocupa
uma posição de poder em relação ao nosso corpo (FOUCAULT, 2007, 1987).
Em miúdos, não há um trabalho específico que trate apenas da descrição de
corpo em Foucault, mas inúmeros trabalhos que dissecam a questão do poder que incide
sobre o corpo. Diferentemente de Nietzsche52, Foucault desvincula o poder do corpo,
apontando que este atua historicamente sobre o corpo de maneira a constituir formas de
subjetividade, sendo, logo, inserido em um campo político, obrigando a produzir formas
de manisfestação (FOUCAULT, 1987).
O corpo, conforme o filósofo em sua obra Vigiar e Punir (FOUCAULT,
1987), consiste em uma composição de carne, uma cápsula que se preserva ao longo da
história, composta de órgãos e que está sujeito ao molde, à transformação, ao desenho de
acordo com as técnicas disciplinares e biopolítica à que é submetido.
Ainda, o autor assevera que trata-se de uma criação embasada nos discursos
e relações de poder-saber, é uma superfície (FOUCAULT, 1987); sofre intervenções de
diversas tecnologias historicamente ordenadas, o alicerce para os processos de
subjetivação (FOUCAULT, 2007, 1987).
Para Foucault (2007), o corpo está intimamente conectado à história e é
instituido a partir de uma ordem fisiológica/biológica, mas acima de tudo – e acredito que
de maneira mais marcante – tece resistências às imposições políticas, biológicas e
culturais eleitas como as normais, naturais. E é na materizalição deste corpo que
percebemos vestígios de diversas transformações, que, concomitantemente, nos revelam

52
Friedrich Wilhelm Nietzsche foi um alemão considerado um dos grandes pensadores do século XIX e
que substancialmente influenciou a sociedade no que diz respeito aos temas de filosofia, ciência, religião e
moral. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Nietzsche. Acesso em 18 de dezembro de
2018.

71
marcas corpóreas que registram as lutas travadas pelo controle deste mesmo corpo
(FOUCAULT, 2007, 1996).
Foucault (2007) defende que o corpo consiste em um território no qual os
efeitos de poder são manifestados, assim como representa um local em que se travam as
lutas para resistir à esse mesmo poder. Nesse contexto, Foucault (2007) assevera que os
corpos são moldados e adestrados pelas relações de poder no mundo moderno. O corpo
passa a ser a materialização do sujeito no mundo.
É sobre o corpo que recaem as estratégias de poder, transformando-o em um
ambiente de investimentos de saberes (FOUCAULT, 2007, 1996), que de sua vez,
permitem a geração das diferenças, pelo enaltecimento de valores como qualidade de
vida, jovialidade, beleza e felicidade, embaraçados com espetáculos de moldes físicos
humanos que passam a definir as demandas doutrinadoras de autogestão dos indivíduos
dentro de indicadores regulamentários.
A criação das subjetividades modernas confia no ajuste dos sujeitos aos
modelos de manifestação corporal e associa expectativas de prazer, liberdade, felicidade,
subalternizando os corpos aos fundamentos que projetam a (falsa) sensação de promoção
pessoal tão profícuos para os dispositivos de poder (FOUCAULT, 1988).
Àqueles que não se rendem às premissas disciplinares rumo a uma excelente
orientação de suas vidas são agraciados com os estigmas53 e preconceitos que os tornam
mira de diversos processos de patologização. Com isso, o corpo é submetido à técnicas
de correção/reparos/repreensão.
Neste ínterim, os (as) sujeitos (as) acabam se deparando com possibilidades
de ajustamento corporal às imposições das regras de disciplina e controle, propiciando
que participem da sociedade e sejam reconhecidos. Qualificados ou não à tais imposições,
os (as) sujeitos (as) conscientizam-se das posições que ocupam nesta sociedade e passam
a observar a normalização/conformação de suas posições e suas práticas.

53
Estigma é um termo que advém dos gregos e representava os sinais feitos por cortes ou por fogo de modo
a evidenciar que o (s) indivíduo (s) que os possuíam deveriam ser evitados em locais públicos e de
convivência social. Atualmente, o termo é utilizado para fazer referência ao diferente, àquele que possui
um atributo profundamente depreciativo (GOFFMAN, 1981), como no caso das travestis/mulheres trans,
seres que burlam a norma heteronormativa do binarismo homem/mulher.

72
O cuidado com o corpo e o controle das anomalias vigoram como preceitos
de gestão das vidas, sendo o corpo, vigiado agora pelo saber científico, subjugado a uma
infinidade de investigações (FOUCAULT, 2006).
Como nos é sabido, o poder não é repressivo, é, na verdade, produtivo,
criativo (FOUCAULT, 2007). Diante disso, a obstinação da força do poder sobre o
condicionamento do corpo não age de maneira a violentar os pressupostos dos prazeres
no intuito de se desprender (FOUCAULT, 2007). O poder desloca discursos acerca dos
deleites considerados aberrações para que possa condená-los e transformá-los,
efetivamente, em objetos do poder.
Um exemplo notório disso é o discurso sobre as feminilidades, ou seja, o que
deve um corpo feminino representar, possuir, ostentar. As mulheres cisgêneras – aqui em
posição de poder pois ocupam um lugar de legitimidade que caminha juntamente com os
discursos bio-científicos – são interpretadas pelo discurso social-médico-farmacêutico
como belas e completas se apresentam seios fartos, corpos modelados pelas cirurgias
estéticas e outras maravilhas da indústria farmacêutica, gesticulação e atitudes impostas
socialmente.
De outra via, os corpos das mulheres trans e travestis são massacrados por
não estarem em concordância com os discursos bio-médicos, e logo sentem o poder sobre
seus corpos em forma de patologização. Ainda, para serem aceitas em suas comunidades,
precisam se sujeitar aos discursos socialmente impostos dos padrões de beleza e acabam
submetendo-se a aplicações de silicone industrial para modelar os seios, quadris, glúteos,
algumas submetem-se a cirurgias plásticas, e o consumo de hormônios, de maneira a
beneficiar a indústria farmacêutica.
Conforme Foucault (2007, 1987) nos mostra, o corpo é avaliado pelo olhar
do outro que irá aprová-lo ou não, em concordância com o discurso vigente. Caso o corpo
não passe pelo crivo daquele olhar, precisa se submeter às transformações sociais que
fazem com que aquele corpo interpretado seja adequado e melhorado para o bem de seu
possuidor – é bom para quem o transforma, mas melhor para a indústria médica,
farmacêutica, etc. Vemos, então, a relação do poder enquanto uma força produtiva e
criativa – não só pune, mas cria (FOUCAULT, 2007, 1987).
Percebemos, desta maneira, que o corpo sofre os efeitos das técnicas de
poder, que se mostram por meio dos discursos e práticas sociais que influenciam e

73
configuram o corpo. Ora, então, podemos concluir que diante de tantas técnicas e
discursos corporais, os corpos não tem mais nada de natural.
Saindo das teorias de Foucault e adentrando algumas discussões pertinentes
à Teoria Queer, temos que a expressão queer consiste em um termo de valor pejorativo
que assinala a abjeção daquele que recebe tal denominação. Porém, atualmente, o termo
tem sido orgulhosamente enunciado para expressar a diferença, de maneira a determinar
territórios e espaços de corpos que insistem em resistir.
A chamada Teoria Queer tem sido reconhecida como uma coleção de ideias
que questionam os construtos discursivamente considerados como os naturais e que
amparam as distinções de sujeito e identidade. A teoria traz em seu bojo inúmeros
pensadores que a defendem, embora alguns divirjam em suas teses.
Judith Butler, por exemplo, considerada uma de suas fundadoras, sinaliza que
o corpo consiste em uma superfície na qual a performatividade do gênero é vista e
percebida, existindo a partir de sua generificação e do discurso que o intitula (BUTLER,
2003). Como a filósofa pontua, os corpos não apresentam presença significativa antes da
definição de seu gênero (BUTLER, 2003).
Assim como defende Foucault (2007; 1987), Butler (2003) acredita na
existência de um corpo material, mas que é atravessado pelos efeitos do poder, discursos
e forças ordenadoras. Ela não crê na existência de um sujeito que seja um performatizador
na retaguarda de feitos, um sujeito anterior à obra, mas a obra em si (BUTLER, 2003). O
corpo, então, passa a ter uma materialidade como um palco de transformações realizadas
ou a se realizar.
De outra via, Paul Preciado (2014) faz uma crítica aos pressupostos de Butler
(2003) e assevera que o dito “corpo dócil” (FOUCAULT, 1987) conhecido no discurso e
por meio da performatividade (BUTLER, 2003) são incriminados. Em sua obra Manifesto
Contrassexual, Preciado (2014) defende o termo contrassexualidade como uma teoria do
corpo como um lócus tanto de opressão como de resistência, entendendo o corpo
enquanto um local de estruturações e exteriorizações subversivas da sexualidade,
identidade e gênero, um espaço de criação.
Tradicionalmente, o sexo e a sexualidade são elementos sempre traduzidos a
partir de sua biologicidade, o fundamento instrínseco, não-histórico, fixo e binário do
corpo humano. São tais definições que a Teoria Queer se encarrega de desestruturar, de

74
maneira a levar em linha de conta as constituições culturais e históricas que se fazem no
corpo.
Butler (2003, 1993) entende que o sexo e a sexualidade não são
naturais/biológicos, bem como complementa que o gênero é um construto cultural, sendo
constituídas em virtude de relações de poder e pela força do discurso. Deste modo, são
perspectivas que não podem ser enxergadas como circunstâncias biológicas anatômicas,
preexistentes, e sujeitas à categorizações.
Com isso, considerando-se que a sexualidade não é algo prontamente
qualificável em virtude de sua natureza nada substancial, ouso inferir que o termo queer
propicia ampliar os conceitos de orientação sexual e sexualidade para adiante de uma
imprescindibilidade de categorização ou de escolha de um só sentido conduzido por um
desejo único na separação sexual.
A Teoria Queer, então, assente pensarmos a orientação sexual como inúmeras
formas de conquistar locais enquanto corpos sexuados fixados em um lócus também
sexuado. A sexualidade, é, portanto, uma correspondência do corpo com o mundo e com
os outros, ou seja, é cultural, longe de ser oriunda de uma prática biológica/natural.
Assim, o sustentáculo da sexualidade, em conformidade com a Teoria Queer,
é a elaboração política e histórica no cerne da cultura.
O segundo capítulo intitulado Corpo: Uma Metamorfose Ambulante teve
por objetivo entender a construção de corpos masculinos e femininos no decorrer da
história, tendo como força motriz a cultura e os costumes de cada época histórica, desde
a Grécia Antiga até os tempos atuais.
A escolha por iniciar a discussão a partir da Grécia Antiga se deu por ser um
período histórico que muito se assemelha com os preceitos de construção corporal da
atualidade, ou seja, tanto na Grécia Antiga como na contemporaneidade nota-se a
valorização dos corpos belos, musculosos, perfeitos e saudáveis, moldados segundo o
discurso hetero-cisnormativo hegemônico imposto por instituições legitimadas e
detentoras do binômio poder-saber (FOUCAULT, 2007, 1996, 1987).
Ainda, a metamorfose desse corpo ambulante é observada no decorrer dos
períodos históricos, mas elucidada por meio dos debates promovidos com a visita à
Foucault e aos teóricos da Teoria Queer, que lindamente nos provam como inúmeros
corpos e grupos encerram enclausurados às margens da sociedade simplesmente por

75
serem corpos que foram construídos dentro de uma riqueza significativa para além do
binarismo homem/mulher cis.
Por isso da escolha do poema de Virgínia Guitzel na epígrafe, por concordar
com o desabafo da autora contra todo o discurso heterocisnormativo que insiste em
determinar, produzir, adequar o corpo – e também o sexo e o gênero – que é legítimo para
ela, se negando, dessa maneira, a se reduzir a um formato discursivamente lido como o
apropriado.
No próximo capítulo, discuterei os principais pressupostos da pesquisa
interpretativista. Em seguida, são apresentados as participantes deste estudo: o contexto
e os instrumentos de geração de dados e os passos analíticos.

76
CAPÍTULO 3
Transitando pelos preceitos metodológicos

Transfobia

Risadas sem graça


Incômodo próprio
Imagina ou entende?
Riem dele
Porque riram de mim
Disseram algo,
Mais ou menos assim
Onde já se viu
Rapaz tão bonito
Com aquele traveco ali?
Se ouviu
Não sei, também não importa
A coragem que lhe faltou
Eu não tive escolha
Sempre por conta
Sei
Ha que resistir

Virgínia Guitzel

U
ma vez que o cerne desta tese é suscitar na seara de estudos as
expressões de gêneros, as transgeneridades, as travestilidades e os
sentidos que as mulheres trans/ travestis atribuem ao seu processo
de envelhecimento, faz-se imprescindível ilustrar algumas proposições metodológicas
bem como apontar as escolhas que respaldaram o percurso e a conclusão deste trabalho.

Todavia, é imperativo que eu relembre os objetivos que propus alcançar com


esta pesquisa:

a. compreender como as travestis/mulheres trans constroem sentidos acerca


de si, sejam elas idosas ou não;

b. entender como as mulheres trans/travestis percebem/significam o seu


processo de envelhecimento;

c. assimilar como as mulheres trans/travestis articulam as noções de gênero e


envelhecimento na sua construção identitária;

77
Para me auxiliar no alcance dos objetivos traçados, faço as seguintes
perguntas de pesquisa:

1. Como as travestis/mulheres trans significam o seu processo de envelhecimento?

2. De que maneira as violências sofridas pelas travestis/mulheres trans em suas


trajetórias são determinantes/marcadores do início do seu processo de
envelhecimento?

Falar, então, acerca de transgeneridades, travestilidades e do processo de


envelhecimento de mulheres trans e travestis nos coloca diante de posicionamentos
distintos que foram gerados (e geram) uma imensidade de acepções as quais variam em
conformidade com o contexto no qual foram originadas e das lentes do observador.

Considerando-se que a vivência humana se estabelece em conformidade com


uma temporalidade e uma espacialidade particulares, o conhecimento produzido por meio
da pesquisa subordina-se ao contexto estudado, bem como à perspectiva do pesquisador.
Daí a impraticabilidade de generalizações. Melhor dizendo, os dados apresentados não
podem ser considerados universais se levarmos em conta que as sujeitas envolvidas nesse
estudo são diferentes entre si e perante o discurso social de normalidade, e se inserem em
contextos, crenças, culturas e epaços distintos, tanto no que diz respeito às participantes
como à pesquisadora.

Soma-se a tal fato a compreensão de que as participantes desta pesquisa são


sujeitas que criam estratégias de sobrevivência a todo amanhecer, não se enquadrando em
normas e regras sociais e discursivas. São sujeitas de resistência e de persistência diárias.

Isto posto, elegi a abordagem qualitativa-interpretativista como parceira


fidedigna nesta empreitada por representar uma abordagem de rigor teórico e que permite
o diálogo e problematizações necessários.

Discuto, então, neste capítulo, os pressupostos teórico-metodológicos na


primeira seção, juntamente com os instrumentos utilizados para a geração dos dados, e o
tratamento conferido ao material empírico. Na segunda seção, apresento cada um das
participantes desste trabalho com um panorama geral de suas trajetórias, confome os seus
relatos.

78
3.1 O caminho bafônico54: da escolha da abordagem metodológica ao
tratamento dos dados

Realizar um trabalho dessa natureza me fez examinar por diversas vezes qual
era o meu verdadeiro papel aqui. Primeiramente, me sentia deslocada por “invadir” as
vidas de pessoas as quais eu não conhecia, não tinha a mínima proximidade ou afinidade,
e depois publicar estórias e histórias que pudessem ser vistas como julgamentos e
avaliações generalizantes e redutoras de minha parte.

Igualmente, temi expor uma considerável quantidade de textos polifônicos e


polissêmicos e ser interpretada como alguém que arrogantemente se sente no direito de
dar voz a um grupo socialmente marginalizado. Ainda, cogitei a possibilidade de
apresentar interpretações que pudessem ser lidas como indevidas ou incorretas.

Porém, no decorrer da pesquisa, entendi que meu trabalho era dar a minha
compreensão acerca do entrelaçamento de significações produzidas pelas travestis e
mulheres trans que tão gentilmente concordaram em colaborar com a minha construção
de conhecimento, no tocante ao seu processo de envelhecimento.

Deste modo, presumo que a prática da pesquisa consiste em uma análise de


certo fenômeno social agregado a um determinado contexto. Com isso, intuito maior é
compreender o emaranhado de significações produzidas por/sobre as
travestis/transgêneras no tocante ao seu processo de envelhecimento.

O produto concebido ao final da pesquisa pode experimentar uma infinidade


de outras interpretações que se diferenciam de acordo com o contexto e com a postura do
observador (KING; HORROCKS, 2010), o que implica na interpretação diferenciada se
o pesquisador que se debruçar sobre aqueles dados for outro.

Com isso, as diversas interpretações não podem ser classificadas como


verdadeiras ou falsas, certas ou erradas, visto que expressam a verdade do ponto de vista
de uma determinada pesquisadora, em um dado tempo, de um espaço fixado, e de um
contexto sóciohistórico estipulado (MUYLAERT et al, 2014).

54
Do bajubá, bafônico significa espalhafatoso, que chama a atenção.

79
Nesse encadeamento, Denzin & Lincoln (2006) garantem que a abordagem
qualitativa-interpretativista se constitui em uma alternativa investigativa que propicia
proximidade e harmonização eficazes entre os envolvidos: as atrizes sociais – as
travestis/mulheres trans – e a pesquisadora. Percebe-se, portanto, a característica
colaborativa de interação, troca, diálogo, engajamento e respeito entre as interlocutoras
(MUYLAERT et al, 2014).

De outra via, a pesquisa qualitativa baseia-se na escolha adequada de métodos


e teorias para a sua prática (FLICK, 2009). Em adendo, ancora-se nas perspectivas e na
reflexividade tanto das participantes da pesquisa como da pesquisadora (FLICK, 2009),
ou seja, é estritamente simpática à subjetividade dos envolvidos. Essa abordagem
metodológica tem por objetivo compreender o desconhecido e aprimorar as teorias
empiricamente fundadas, tendo a comunicação da pesquisadora em campo como parte
explícita da produção do conhecimento (FLICK, 2009) e autotransformação.

Concordando com Denzin e Lincoln (2006), e King e Horrocks (2010), ao


analisar e apresentar a entrevista como parte das minhas descobertas, tendo a gerar nova
visão do todo (FLICK, 2009). Assim, o estudo qualitativo-interpretativista é conveniente
para este trabalho visto que busco pontos de vista subjetivos na descrição de situações
sociais (FLICK, 2009).

Respeitando tal proposta, meu intuito foi trabalhar com entrevistas narrativas
combinadas com a entrevista semipadronizada para a geração dos dados os quais fora
interpretados com o auxilio das concepções de corpo e poder de Foucault 2008, 2007,
1996, 1994, 1987, 1988), bem como de alguns preceitos da Teoria Queer (BUTLER,
2003, 1993), e definições de pesquisadores que se debruçaram sobre o tema (SIQUEIRA,
2004, 2012; SILVA, 1993; Antunes, 2010; Leite Jr (2017; Casteleira, 2014; Costa, 2013,
entre outros).

A entrevista semipadronizada (ou semiestruturada) foi desenvolvida entre os


anos de 1980 e 1990 por psicólogos que almejavam a análise de fenômenos em ambientes
escolares, entre outros (FLICK, 2009). A ideia dos psicólogos era desenvolver um método
diferenciado de entrevistar sujeitos e sujeitas e alcançar as suas subjetividades (FLICK,

80
2009). Com isso, os(as) entrevistados(as) participam da entrevista de maneira espontânea
tendo perguntas abertas55 complementadas por suposições implícitas (FLICK, 2009).

O intuito é reconstruir a teoria subjetiva das participantes a respeito da


problemática levantada. Esse modelo de entrevista apresenta três variações: a. Questões
abertas as quais são respondidas com o conhecimento imediato do(a) participante, sem a
necessidade de uma reflexão mais profunda; b. Perguntas Controladas geralmente são
feitas com opções e voltam-se para a literatura científica do tópico, de modo a explicitar
o conhecimento do(a) participante. Nesses tipos de perguntas, suposições/opções são
ofertadas; c. Questões confrontativas são as que são postas de modo a contrapor a opinião
expressa do (a) participante (FLICK, 2009).

Já a entrevista narrativa caracteriza-se pela condução do (a) participante à


apresentação de uma narrativa improvisada a respeito de um dado tema (FLICK, 2009).
A ideia é que o (a) pesquisador (a) faça o (a) informante contar uma história que será
compreendida por meio de detalhes contextuais e relações oferecidas pela narrativa
(FLICK, 2009).

Para tanto, o (a) pesquisador (a) precisa ter a consciência de que a narrativa
não seja obstruída e/ou interrompida, de maneira a estimular o participante a persistir na
sua narrativa até o final (FLICK, 2009). Muylaert et al (2014) reforçam que a influência
do pesquisador (a) é mínima, contudo, este (a) deve utilizar a mesma linguagem do (a)
entrevistado (a) de modo a criar um ambiente de comunicação mais real.
Además, as entrevistas narrativas56 permitem o aprofundamento das
investigações, guiando os (as) participantes para o relato de eventos que evidenciem
aspectos não explícitos para os (as) entrevistados (as) (MUYLAERT et al, 2014).

55
A perguntas abertas são aquelas que exigem do(a) entrevistado(a) respostas completas as quais requerem
o uso de conhecimentos e a expressão de sentimentos dos(as) envolvidos(as). São objetivas, diretas e de
maneira alguma inferem as respostas das pessoas entrevistadas.
56
Há certa confusão recorrente entre “entrevista narrativa” e “pesquisa narrativa”. A entrevista narrativa
tem por intuito conduzir o entrevistado à construção de uma narrativa acerca do tema abordado
(MUYLAERT et al, 2014; FLICK, 2009), enquanto que a pesquisa narrativa, que não é o caso desta
pesquisa, baseia-se em narrativas enquanto investigação, tendo o processo de formação relacionado nas
histórias contadas pelos sujeitos, de maneira a reconfigurá-los. Desta forma, a narrativa constitui-se num
meio para compreendermos a experiência e para a efetivação da aprendizagem humana (CLANDININ &
CONNELLY, 2011; CLANDININ & ROSIEK, 2007).

81
Ainda, fiz uso de ferramentas digitais como Facebook, Whatsapp e e-mail,
ferramentas estas que me permitiram uma proximidade ainda maior com as sujeitas:
trocamos mensagens, atualizamos informações, enviamos fotos e documentos, bem
como, às vezes, nos falávamos apenas para saber como uma ou outra estavam, e/ou ter
acesso à outras participantes da pesquisa.
Notei, então, que utilizei inúmeros recursos além dos dispostos pelas
entrevistas narrativa e semipadronizada. Me detive a fatos e relatos contidos em meu
diário de campo, comentários realizados em postagens do Facebook, trocas de mensagens
via Whatsapp realizadas, às vezes, sem intenção nenhuma de gerar dados.
Mas compreendi que as interações nestes contextos eram essenciais para que
eu conseguisse compreender as minhas interlocutoras com os fragmentos faltantes,
entender um pouco mais sobre suas constituições e identidades. Paraíso (2012) e Caldeira
& Paraíso (2016) defendem o uso desta técnica – que elas identificam como bricolagem
metodológica – e que tem por intuito utilizar uma miscelânea de metodologias e
ferramentas na realização da pesquisa. É como se cada pesquisador(a) construísse o seu
percurso metodológico de modo a (re) significar a pesquisa (CALDEIRA; PARAÍSO,
2016).
A temporalidade da pesquisa se limitou entre março de 2016 a setembro de
2018. A princípio, levantei informações junto às participantes no tocante ao nome social,
idade, cor, origem, escolarização, formação e profissão, conforme exposto mais adiante.
A maioria das entrevistas foi realizada individualmente, mas nem todas foram
presenciais e/ou contínuas. Uma vez que algumas das participantes moravam em outras
regiões do país, que não a região Centro-Oeste, usufruí dos recursos tecnológicos e de
rede para poder me comunicar com as meninas. As entrevistas presenciais foram
registradas por meio de gravador de voz, conforme explicado e autorizado pelas
participantes. As entrevistas via webcam do Facebook Messenger também foram
gravadas, mas infelizmente, não consegui otimizar os audios a ponto de transcrevê-los na
íntegra. Sendo assim, os dados foram de imediato lançados no diário de campo57.

57
Chamei de Diário de Campo o meu caderno de notas acerca das coisas que considerava interessantes
quando encontrava com as interlocutoras, ou no momento em que realizava as entrevistas, de modo a
registrar gestualidades, expressões faciais, gírias e comentários que pudessem facilitar a compreensão dos
áudios.

82
Ainda, em determinados momentos em que realizava as entrevistas
presenciais, a entrevistada precisava interrompê-la por motivo de outros compromissos.
Retornávamos em outro dia e horário, no modo presencial, ou via video chamada do
Facebook ou Whatsapp, como ocorreu com Dê Silva, Adriana Liário, Rebeca e Jéssica
mais de uma vez. A ideia era garantir a construção de um espaço em que as narrativas
acerca de suas emergissem e os sentidos acerca do processo de envelhecimento fossem
se construindo, sem comprometer as atividades regulares de cada uma das colaboradoras.
Não houve uma linearidade na realização das entrevistas. Explico: mesmo
tendo um roteiro de questões previamente estabelecido, conversei com as interlocutoras
inúmeras vezes, não apenas acerca do previsto no roteiro mas também acerca de dúvidas
que surgiam quando eu ouvia as suas entrevistas.
Meu primeiro contato foi com Amanda, indicada por um amigo professor que
a conhecia. Como à época ela estava viajando, me indicou Patrícia para a primeira
entrevista, caracterizando um método conhecido por “bola de neve”, na abordagem
qualitativa, no qual uma entrevistada indica outra. Vinuto (2014) assegura que este
método é muito útil quando a pesquisa debruça-se sobre assuntos de âmbito privado e/ou
seus(suas) participantes são de difícil acesso.
Adriana Liário, por exemplo, que estabeleci contato on-line pela primeira vez,
também foi outra intermediadora de entrevistas. Ela sugeria nomes, comentava com
possíveis interlocutoras que eu as procuraria, e, em determinados momentos, consegui as
entrevistas, como foi o caso com Kate, Jussara e Dê Silva, todas conhecidas de Adriana.
Assim que comecei a analisar o material coletado percebi a necessidade de
“confirmar” algumas informações com as participantes pois me via perdida entre a teoria
e a prática real, ou seja, os autores que eu tinha lido até então, eram na sua maioria homens
cisgêneros, retratando realidades que divergiam de alguns fatos que me eram relatados.
Entretanto, comecei a perceber que havia muito mais mulheres trans/travestis
acadêmicas do que eu poderia sequer imaginar. Logo, ao realizar uma busca rápida pela
internet, encontrei nomes como os de Luma Nogueira, Gabriela da Silva, Adriana Sales,
Sayonara Nogueira, Marina Heidel, Bruna Raysa, Megg Rayara, Amara Moira, entre
outras ativistas, militantes, professoras, acadêmicas tão importantes para a construção
teórica e prática acerca desta temática no país. Nada mais justo que fazer menção a todas

83
elas na minha pesquisa de modo a ratificar as entrevistas com as pesquisas desenvolvidas
por estas estudiosas.
A minha intenção era a de ter na pesquisa participantes de todas as regiões do
país, o que justifica a minha busca desmedida pelas redes sociais. O maior desafio se
configurou como sendo conseguir que as interlocutoras aceitassem participar da pesquisa,
considerando-se que não queria ser vista como a mulher cisgênera que tenta analisar os
relatos de mulheres transgêneras como se estivessem em um “laboratório”. As pessoas
tem muitas coisas para fazer, são ocupadas e não são todas que conseguem dispor de um
tempo em suas vidas atribuladas para colaborar com uma estranha que adentrará em suas
particularidades.
Infelizmente não consegui convencer todas as mulheres que interpelei a
participar do meu estudo. Como se não bastasse, algumas possíveis participantes
responderam à minha solicitação quando eu já tinha encerrado o período de geração dos
dados (setembro de 2018).
Com o material todo registrado e arquivado por gravador ou em arquivos de
áudio e textos, como nos casos das conversas ocorridas por intermédio do Facebook
Messenger, fragmentei o material empírico em partes distintas. Ouvi inúmeras vezes os
áudios, li as transcrições e comparei com as informações/anotações do diário de campo.
Organizei, então, o quadro que identificava as participantes deste estudo, como veremos
na próxima subseção.
Seguidamente, reli todas as transcrições das entrevistas e anotações do diário
de campo em busca dos temas que se faziam recorrentes em suas narrativas. Identificados
os temas recorrentes, parti para a incidência de falas de cada uma das participantes, acerca
dos temas identificados, conforme exemplificado abaixo:

84
QUADRO I: SISTEMATIZAÇÃO DAS NARRATIVAS DE ACORDO COM OS TEMAS

Dentre os temas recorrentes constatei como sendo o primeiro a violência


verbal, física ou psicológica, além das visões e definições acerca do processo de
envelhecimento, o que remete-nos à observação de outros temas como futuro, beleza,
posições de destaque nas comunidades, prostituição. Após a divisão por temas e a
evidenciação dos relatos, iniciei a seleção para a análise dos dados.
É relevante registrar que fiz uso de uma ferramento do Google Docs chamada
Cloud Speech-to-text58, a qual compila em forma de texto escrito os textos sonoros, isto
é, transforma em textos escrito os textos gravados em áudio. Infelizmente esta ferramenta
não se mostrou extremamente eficaz na transcrição das narrativas gravadas em locais
públicos e cheios de sons alheios às entrevistas. Trata-se de uma ferramenta gratuita
disponível em inúmeros sites que discutem tecnologia.
Determinadas entrevistas realizadas em locais os quais havia muito
ruído/barulho foram transcritas aos moldes convencionais, isso é, ouvindo-as frase por
frase, interrompendo o áudio, fazendo a transcrição e depois, ao final da transcrição,
conferência, visto que o aplicativo Speech se torna ineficaz quando a gravaçao apresenta
interferências. Quatro entrevistas foram assim transcritas sem o auxilio do aplicativo.

Na subseção subsequente, mostro um pouco mais acerca das interlocutoras


da pesquisa.

58
Aplicativo gratuito disponível em https://cloud.google.com/speech-to-text/?hl=pt-br. Acesso em 07 de
julho de 2018.

85
3.2 As tias, as vós e as novinhas: Elas arrasam59!

Onze participantes, de todas as regiões do país, formaram o universo da


pesquisa investigado, sendo uma da Região Norte (Kate), uma da Região Nordeste
(Rebeca), sete da Região Centro-Oeste (Jessica, Amanda, Jussara, Fabiula, Dê Silva,
Adriana Liário e Patrícia), uma da Região Sudeste (Sara Wagner) e uma da Região Sul
(Gabriela da Silva). É relevante dizer que, embora Kate seja oriunda da Região Norte, a
entrevista foi realizada na casa da Meire, na Região Centro-Oeste, onde ela vive
atualmente.

Diante dos objetivos preliminarmente listados estabeleci como requisito para


as sujeitas comporem os domínios da pesquisa terem a partir de 25 (vinte e cinco) anos.
A princípio, ao redigir o projeto de pesquisa dessa tese, estabeleci a idade de 40 (quarenta)
anos para a participação das sujeitas na pesquisa por acreditar que, considerando-se o
número de violências contra as pessoas trans e que a expectativa de vida desta população
gira em torno dos 35 (trinta e cinco) anos, o processo de envelhecimento desta população,
provavelmente, as acomete mais cedo que à população cisgênera (CASTELEIRA, 2014).
Na época ainda não tinha me comunicado com nenhuma das participantes e meu
conhecimento era extremamente raso acerca das realidades das interlocutoras,
principalmente no tocante ao possível marco para o início de seu processo de
envelhecimento.

Entretanto, percebi com as leituras e entrevistas que existem poucas pessoas


com a faixa etária estabelecida dispostas a colaborar com a minha pesquisa. Das 50
(cinquenta) pessoas abordadas, apenas 15 (quinze) concordaram em colaborar, e dentre
estas quinze, concluí as entrevistas com apenas 11 (onze) interlocutoras. Em alguns
momentos, trago alguns dados e obsevações de meu diário de campo que são oriundos de
reflexões e comentários tecidos por estas 4 (quatro) participantes que não concluíram as
entrevistas, ou não autorizaram que eu utilizassem seus dados na pesquisa antes da data
estipulada para o término da geração dos dados. Contudo, são informações e dados que

59
Arrasar é outro termo do bajubá muito utilizado por entre as mulheres da minha pesquisa. As variações
“arrasou” ou “fechou” são muito comuns e significam abalar, causar, ser um sucesso.

86
depois se confirmaram com os dados obtidos com as entrevistas realizadas com as demais
meninas.

Vejamos cada uma delas, em detalhe:

Amanda, 32 anos, cor autodeclarada branca, mulher trans, heterossexual,


solteira. Possui Ensino Superior Incompleto. No momento do primeiro contato, Amanda
trabalhava como cabeleireira no salão de beleza de uma amiga. Dia desses ela me contou
que estava trabalhando como auxiliar de cozinha em um restaurante universitário. Foi a
primeira colaboradora do meu trabalho de pesquisa. Embora não tenha sido a primeira
participante a ser entrevistada.

Amanda é uma mulher linda, alta, de um sorriso marcante, olhos profundos e


claros, cabelos pretos lisos e compridos, corpo orgulhosamente esculpido por meio de
várias intervenções plásticas e uma elegância de dar inveja a qualquer mulher. Quando
nos reencontramos alguns meses depois em uma pizzaria para podermos realizar a nossa
entrevista, ela me revelou aspectos da sua infância, sua transição, sua família, trabalho,
romance, formação e velhice. Em seu relato, Amanda, inconscientemente, ao discorrer
sobre o processo de envelhecimento demonstrou que mesmo tendo sofrido muita
discriminação e preconceito desde a época escolar, não expressa preocupação com o
tema. É como se a temática estivesse muito longe de sua realidade, mesmo tendo forte
proximidade com sua mãe, já idosa. Conversamos várias outras vezes pessoalmente, via
Facebook e também via Whatsapp e Amanda afirmou em todas essas vezes que não havia
problema com a divulgação de seu nome verdadeiro neste trabalho. Contudo, por termos
nos desencontrado diversas outras vezes, acabei não obtendo a sua autorização por escrito
para tal.

Patrícia, nome fictício, 32 anos, cor autodeclarada parda, transgênera,


heterossexual, solteira. Possui Ensino Superior Completo, com duas graduações:
Recursos Humanos, em uma Faculdade particular e, História pela UFMT. É secretária
escolar em uma instituição pública de ensino fundamental e médio. É residente e
domiciliada na cidade de Rondonópolis-MT. Meu primeiro contato com Patrícia foi via
o aplicativo Whatsapp. Consegui seu contato com sua amiga, Amanda, que também
compõe o quadro de informantes desta pesquisa.

87
Patrícia demorou um pouco a me responder, o que me levou a pensar que ela
talvez não tivesse interesse em participar da entrevista. Depois de certo tempo, respondeu
as minhas mensagens de maneira muito receptiva, e marcou a nossa primeira conversa na
escola em que trabalha. Na escola, Patrícia estava bem ocupada, e tive a impressão de que
ela era o braço direito do diretor, o que depois se confirmou pelo próprio diretor que
afirmou tê-la nomeado por uma questão política, de ativismo, “pra incomodar muita gente
mesmo”. Todavia, andando pelos corredores da escola com Patrícia, percebi que os alunos
a chamavam pelo nome de registro masculino, mesmo ela sendo toda uma construção
feminina. Perguntei a ela se tal fato não a incomodava ou porque ela não exigia que eles
a chamassem pelo seu nome social, contudo, ela expressou não ligar muito pra isso, mas
que exigia muito respeito por parte deles. Para ela, ser respeitada e valorizada enquanto
uma profissional competente era muito mais importante do que ser chamada pelo seu
nome social.

Patrícia é uma mulher muito bonita: as pernas bem torneadas, marcadas pelos
jeans, cabelos e unhas bem feitos, maquiagem delicada, saltinhos, andava pela escola e
era interpelada por todos. Sempre tinha uma aluna que a parava e lhe dava um abraço, ou
queria ver o seu cabelo, suas unhas.

Ela também me contou que tinha acabado de sair de um relacionamento


abusivo. Ela tem casa própria, e à época, morava sozinha, sem relacionamento sério,
porém alertou que nada a impedia de dar uma namorada. Me confessou que também
participou de movimentos como o centro acadêmico e diretório central dos estudantes
quando estava na graduação em História.

Patrícia comenta já ter trabalhado como profissional do sexo por ser uma
profissão que a permite receber “um dinheiro fácil”. Como ela mesma alega, é
extremamente difícil conseguir um emprego se você é uma pessoa transgênera. Os
empregadores negam a existência de vagas em suas empresas para pessoas transgêneras,
pois, em conformidade com Patrícia, tais empregadores pensam que a contratação de
pessoas transgêneras pode afastar clientes de seus negócios, além de não quererem
vincular a sua marca a uma imagem abjeta e subversiva.

Pensando nisso, Patrícia se dedicou à formação escolar, tendo concluído dois


cursos universitários: Graduação em Recursos Humanos em uma faculdade particular, e

88
Licenciatura Plena em História, pela Universidade Federal de Mato Grosso.
Posteriormente, realizou inúmeros concursos para que pudesse ter a tão sonhada
estabilidade e não precisse sobreviver da prostituição.

Sobre esse assunto, Patrícia garante que a prostituição não oferece garantias
a pessoas transgêneras durante a velhice, visto que “somos pecinhas de supermercado (...)
a serem trocadas quando pecinhas mais novas e mais bonitas aparecem”. Patrícia expressa
que transgeneridade, profissional do sexo e velhice são marcadores que não combinam, e
podem levar uma mulher à fome.

Jessica, nome fictício, 32 anos, é originária de Guiratinga-MT, mas


atualmente é residente e domiciliada em Rondonópolis-MT. É autodeclarada parda, e
durante suas entrevistas se interpretou como pessoa trans e também como gay afeminado.
É heterossexual, e solteira. Acabou de se libertar de um relacionamento traumático e
abusivo. Iniciou o curso de Biblioteconomia em uma universidade federal, contudo, não
se identificou com o curso, como ela mesma descreve, por acreditar que o curso de
Serviço Social tinha mais relação com a sua identidade. É agente de segurança em uma
instituição de ensino superior, e chegou a confessar, em nosso primeiro encontro, que
tentou trabalhar como profissional do sexo, mas desistiu por medo da violência
experienciada nas ruas.

Jéssica é a participante com quem mais encontro pessoalmente. É alta, de


postura imponente (talvez em virtude de sua ocupação profissional), cabelos de um tom
castanho claro, quase achocolatado, cacheados, olhos verdes e muita delicadeza e leveza
ao falar e se articular. Ao chegar em Rondonópolis, foi indicada para trabalhar na pista
como profissional do sexo, mas já na sua primeira noite, uma travesti foi assassinada. Por
medo resolveu desistir. Hoje, mesmo tendo passado muito tempo desde o triste episódio,
ela assevera que para ter uma vida digna na velhice, quer abrir uma loja de conveniência
e ser “sua própria patroa (...), nada de ficar trabalhando pra ninguém”. Ela tem certeza de
que o seu negócio próprio irá garantir uma vida tranquila na velhice.

Adriana Liário, nome real, 34 anos, negra, travesti. Nasceu em Tangará da


Serra-MT, e mudou-se para Rondonópolis-MT para trabalhar. É presidente do GATTRS-
Grupo de Apoio a Travestis e Transexuais de Rondonópolis, foi candidata a Deputada
Federal na corrida eleitoral de 2018, pelo partido polítco PSOL. Quando conheci Adriana,

89
ela tinha o Ensino Médio incompleto, juntamente com a maioria das moradoras da casa
da Meire, contra a minoria que não sabia ler nem escrever. Mas a situação mudou para
Adriana. Ela conseguiu concluir o Ensino Médio e se matriculou num curso de Direito
em uma faculdade particular.

Adriana é uma mullher do tipo “boazuda”. Tem os quadris bem largos, seios
fartos, maçãs do rosto marcantes. Toda construída com o uso de anticoncepcionais e
silicone industrial. Saiu de casa cedo pois sua família não aceitava a sua identidade de
gênero. Chegou a morar no Kilômetro Zero, em Várzea Grande-MT antes de se mudar
para Rondonópolis-MT para morar na casa da Meire.

É uma guerreira nata, sempre disposta a uma briga pela melhoria das
condições das mulheres trans e travestis da casa da Meire. Ela conta que sofreu inúmeras
violências nas ruas, mas não se deixou abater. Adriana não tem um dos braços em virtude
de negligência nos serviços de atendimento de saúde, conforme ela comenta, após um
acidente de trabalho. Mas isso não a impede de fazer as coisas que ela acredita serem
corretas e justas.

Diferentemente das demais interlocutoras, Adriana não se declara


heterossexual. Algumas vezes conversamos acerca de sua orientação sexual e ela se
declarou homossexual, outras vezes lésbica. Ela sempre ri e diz que não tem muita
paciência pra gente indecisa e que não sabe o que quer, mas que também gosta de
meninas. Me explicou que nem todas as meninas de quem ela gosta são mulheres
cisgêneras. Mas também me revelou que já foi casada com um homem cisgênero, com
quem teve um relacionamento longo e feliz até ele ser assassinado.

Sara Wagner Pimenta Jr, nome real, 42 anos, de cor parda, travesti e mulher
trans, heterossexual, solteira. Por vezes, Sara se declarou travesti e em outros momentos
alegou ser uma mulher trans. A escolha por ambos os termos se dá em função de questões
políticas, de militância e ativismo. É graduada em Letras, é professora de língua inglesa
em uma escola pública de educação básica no interior do Rio de Janeiro, e é Mestranda
em Educação na UERJ.

Algo muito interessante a respeito de Sara é que tanto pessoalmente como nas
redes sociais ela se autointitula mulher trans, travesti, mas também pai e avô: ela tem um

90
filho e um neto, o que nos remete à discussão da importância da valorização e alteração
do nome de batismo perante a justiça.

É alta, cabelos loiros, compridos, sempre amarrados no alto, o que nos remete
à personagem Jeannie é um gênio60. Tem o corpo todo definido em virtude da intensa
malhação a que se submete. É “Sarada”, conforme brinquei inúmeras vezes. É uma
mulher de grande força física, mas também que transborda emoção. Suas falas são todas
carregadas de tamanha expressividade e luta. Antes de conhecê-la pessoalmente já nos
falávamos tanto todos os dias, via Facebook, que quando nos vimos pessoalmente pela
primeira vez, a impressão que tivemos era que éramos amigas há séculos.

Gabriela da Silva, nome real, 50 anos, autodeclarada branca, travesti,


graduada em Letras pela UNISUL, Mestra em Educação pela UFSC, Doutoranda em
Educação pela UFSC, é originária de Lauro Muller/SC, mas é residente e domiciliada em
Tubarão/SC onde exerce a docência na rede estadual de ensino no Estado de Santa
Catarina, na modalidade EJA. É ativista e militante LGBT em sua região.

Gabriela e eu nunca nos encontramos pessoalmente, apenas por meio das


midias digitais: Facebook e Whatsapp. No dia da visibilidade trans, em janeiro de 2017,
Sara organizou um bate-papo virtual, ao vivo, pelo Facebook e convidou várias pessoas
trans e cis, envolvidas com as pesquisas e discussões acerca de políticas públicas para a
comunidade LGBT, e, Gabriela e eu estávamos neste grupo.

Após as discussões, chamei Gabriela pra conversar comigo e a convidei para


participar enquanto interlocutora da minha pesquisa. Ela foi um pouco relutante e me
explicou que, por ser ativista, responderia de maneira a não acrescentar na minha
pesquisa. Mas comprometeu-se a auxiliar-me com a elaboração do roteiro de perguntas,
envio de material de leitura e discussões. E assim o fez.

Em seu perfil do Facebook, Gabriela se denomina atéia por defender a


Ciência e acreditar que a religião consiste em uma invenção para controlar o homem. Suas
postagens são carregadas de ativismo e clamores pela construção de um movimento social

60
Jeannie é um gênio, em inglês I dream of Jeannie, é um famoso seriado americano, composto de 139
episódios, apresentado pela primeira vez em1965, criado e produzido por Sidney Sheldon. Relata a estória
de uma gênio, Jeannie que coloca o Major Nelson em inúmeras trapalhadas. No final da série, Major Nelson
se rende às peripécias de Jeannie e eles se casam. Disponível em
https://pt.wikipedia.org/wiki/I_Dream_of_Jeannie. Acesso em 05 de novembro de 2018.

91
coletivo, de maneira a mesclar todos os movimentos sociais do país: de raça, gênero,
etnia, entre outros.

Dê Silva, nome real, 28 anos, mulher trans, de cor parda, Ensino Superior
incompleto, e heterossexual. Quando a conheci, Dê era professora na rede pública
municipal e militante do Movimento Sem Terra-MST, movimento este que a formou
enquanto cidadã, visto que foi nascida e criada em um assentamento. Dê assevera que foi
o MST que a ensinou a militância e que este foi o primeiro grupo a entender a sua
identidade, talvez por serem todos considerados diferentes na sociedade. Atualmente, Dê
é aluna no curso de Engenharia Agrícola ém uma universidade pública, onde também
participa de inúmeros coletivos e atividades políticas, tanto pela causa LGBT como
também pelo Movimento Sem Terra.

Dê é uma pessoa muito alegre e comunicativa. A primeira vez que


conversamos foi durante o desfile de 7 de setembro de 2017, em que entramos juntas com
cartazes com dizeres que clamavam por respeito à comunidade LGBT. Dê é alta, magra,
muito esguia, com o corpo que remete aos corpos das modelos internacionais. Dê usa
vestidos ou saias longas, sempre em sintonia com as últimas tendências da moda. Os
cabelos de comprimento médio, muito finos, de cor castanho escuro, levemente
iluminados com luzes são o maior charme.

Assim como Adriana, Dê também casou-se nova com um homem do


movimento MST, e viveram muitos anos juntos, mas ele veio a falecer jovem ainda. Dê
atualmente é solteira, mas as vezes arruma um namorado, como conta.

Algumas de nossas entrevistas aconteceram em minha casa, e também dentro


do carro. Explico: Dê veio à minha casa algumas vezes para que pudessemos organizar
as pautas e falas da audiência pública organizada pelo GATTRS em 29 de janeiro de
2018. Outras vezes a entrevistava quando ia buscá-la para alguma reunião no GATTRS
ou visita à casa da Meire. Numa dessas caronas, Dê me contou que Jéssica e Amanda,
coincidentemente, moram em sua rua.

Kate, nome fictício, 54 anos, travesti, se reconhece como sujeita


heterossexual, natural de Caxias/MA, mas é residente e domiciliada em Rondonópolis-
MT por mais de 30 (trinta) anos. É profissional do sexo, mas também realiza trabalhos de
limpeza e cuidados domésticos na casa de cafetinagem em que mora.

92
Conheci a Kate durante as minhas visitas na casa da Meire. Sempre muito
calada, não é de “dar conversa” para todo mundo, conforme me confessou certa vez. “Sou
muito séria. Não gosto de bagunça, não”. Sempre que ia à casa, pedia à Adriana que
falasse com ela para que pudéssemos bater um papo. Kate nunca se mostrava à vontade.
Um dia, após uma conversa com a Jussara, ela concordou em falar comigo usando o
gravador de voz.

Kate é uma travesti de estatura mediana, cabelos pretos e cacheados, mas que
não me revelou muito sobre o seu passado. Disse que prefere deixá-lo onde está. Para ela
o futuro é o que lhe interessa. É muito limpa e organizada. Sempre que a via na casa da
Meire estava com um pano e um balde limpando os cantos, arrastando as coisas. Nunca
parava. Disse-me que nada melhor que um lugar limpo para morar.

Kate me contou que nunca gostou muito de estudar, mas também não deu
muitos detalhes acerca de sua formação escolar. Em conformidade com os seus relatos,
percebi que ela não tem o Ensino Médio completo.

Jussara, nome fictício, 50 anos, travesti, heterossexual, residente em


Rondonópolis-MT. Ensino Médio completo. É formada no antigo Magistério. Gostaria
de ter feito o curso de Ciências Contábeis, mas a universidade não ofertava este curso à
época em que concluiu o Magistério. Ela se realiza enquanto profissional do sexo, embora
também tenha manifestado uma paixão pela cozinha. Adora trabalhar na pista, mas
também realiza a função de cozinheira na casa onde mora.

Conheci Jussara na casa da Meire também, mas pelo que me recordo, nossa
primeira conversa pra valer aconteceu embaixo de uma árvore, fumando um cigarro, antes
do desfile de 07 de setembro de 2017 – cena que abre a introdução deste trabalho. Jussara
é o tipo mignon. Tem aproximadamente 1,70m, baixa comparada às demais interlocutoras
deste trabalho. Olhos castanhos e sempre sorridentes, cabelos bem finos de um tom
castanho claro, quase alourados.

Jussara está sempre na cozinha da casa da Meire. Por já ter trabalhado por
muitos anos na casa de uma turca bem conhecida na cidade, especialmente na cozinha,
ela conta que este é o seu espaço. Ela é ótima de papo e café. Mas também não gosta de
confusão. Evita todo e qualquer problema para não se indispor com ninguém. Ela afirma
com toda força que a casa da Meire é o seu lar, e que lá ela tem uma família. Embora

93
tenha expressado mais de uma vez que tem grande vontade de abrir seu próprio
restaurante, ser dona de seu negócio, nunca expressou sair da casa. É lá que ela mora, se
diverte, e aconselha as mulheres que vivem com ela na casa.

Ela me revelou que conhece a Meire “desde os tempos da brilhantina”, que


iam para a pista juntas, enquanto mais novas. Aí um dia foi morar com a Meire e nunca
mais saiu de lá.

Rebeca, 51 anos, de cor parda, travesti, heterossexual, e professora. É


formada em Pedagogia, mas tem os cursos de Teologia e Direito incompletos. É
especialista na área de Direito Educacional, e aguarda o título de Mestra em Educação, o
qual alega não possuir ainda por uma questão de homofobia. É residente e domiciliada
em Aracaju/SE onde trabalha em uma escola estadual no período noturno. Também
trabalha como professora em um município vizinho durante o dia, três vezes na semana.

Conheci a Rebeca por intermédio do prof. Neil Franco. Disse a ele que estava
pensando em abordá-la para fazer uma entrevista para a minha pesquisa, e como ele já a
conhecia, sugeriu que eu a procurasse em seu nome, explicando meu estudo e sua
intencionalidade. Rebeca foi a mais sensacional e divertida de todas as meninas. De um
ótimo humor, tiradas inteligentes e sarcásticas, ela ganhou o meu coração.

Confesso que ao falar desta maneira dela passo a impressão de termos nos
conhecido pessoalmente, mas não tive essa alegria. Nossos contatos ocorreram apenas
via o Messenger61 do Facebook. Conversamos via vídeo duas vezes e as demais, fizemos
trocas de mensagens pela mesma rede social.

Sempre muito crítica, tinha a todo tempo uma correção, sugestão ou adição
às minhas perguntas de pesquisa. Rebeca foi uma professora no meu percurso. Apontou
inúmeras falhas no meu discurso no tocante às escolhas lexicais que eu fazia.

Fabiula, 33 anos, negra, residente em São Félix do Araguaia-MT,


autodenomina-se transexual. Conta que já foi profissional do sexo, mas atualmente

61
O Messenger do Facebook, ou o Facebook Messenger, como o aplicativo é conhecido na internet, é um
aplicativo de mensagens instantâneas do Facebook. Ele tem uma série de recursos que vão muito além do
bate-papo com os contatos da rede social. É possível trocar arquivos multimídia, realizar ligações de voz,
fazer chamadas de vídeo, entre outras aplicações. Disponível em https://www.techtudo.com.br/dicas-e-
tutoriais/noticia/2014/08/como-usar-o-facebook-messenger-veja-como-aproveitar-ao-maximo-o-
chat.html. Acesso em 14 de novembro de 2018.

94
trabalha como cabeleireira e designer de sobrancelha. É casada. Possui Ensino Superior
Incompleto. Já começou a fazer o curso de Letras e de Direito, mas interrompeu ambos.
Ela alega que gostaria mesmo de fazer um curso voltado para a estética corporal e beleza.

Conheci Fabiula por intermédio de uma conhecida que mora em São Félix do
Araguaia-MT, e me contou que Fabiula é muito popular na cidade por causa das suas
atividades de beleza e estética no salão em que trabalha. Obtive seu contato e passamos a
nos falar diariamente via Whatsapp e também pelo Facebook, via Messenger – mensagens
de vídeo e texto – .

Ela é alta, bem magra, cabelos lisos e pretos. Me contou que desde criança
percebia a sua diferença, quando comparada a outros garotos. Embora sua mãe tenha
insistido na ideia de que Fabiula era um menino, dado um certo momento de sua transição,
sua mãe se convenceu que Fabiula era do gênero feminino. Ela é bem enfática ao afirmar
que a família não a discrimina por ser uma pessoa trans.

De acordo com as descrições, todas as participantes encontravam-se na faixa


etária de 28 (vinte e oito) a 54 (cinquenta e quatro) anos de idade.

Em relação à orientação sexual, com exceção de Adriana Liário, todas


afirmaram ser heterossexuais, ou seja, todas as participantes da pesquisa são mulheres
que se sentem atraídas por homens (JESUS, 2012), embora tenha percebido que, por
vezes, elas usavam o termo heterossexual se realmente compreende-lo.

Outro fator que acredito ser notável é a questão da cor da pele. A cor
autodeclarada que prevaleceu nos relatos foi a cor parda, com seis sujeitas que se
interpretam enquanto pessoas pardas, três brancas e duas negras. Talvez, tal fato tenha
ocorrido pois algumas das interlocutoras desejem escapar do estigma e da discriminação
que a cor da pele lhes impõe. A esse respeito, Megg Rayara de Oliveira (2017) afirma
que a cor preta pode ser interpretada como a cor do Diabo, do mal, em contraposição à
brancura e beleza dos anjos.

A área de formação que predominou no grupo foi a das Ciências Humanas,


considerando-se os cursos de graduação incompletos e os programas de pós-graduação
no qual declararam estar inscritas. Assim, três alegam ter o Ensino Superior incompleto,
uma Especialista aguardando a validação de seu título de Mestra em Educação, uma

95
participante com o Ensino Médio Completo (Magistério), uma com dois cursos de
graduação completos, uma Mestranda em Educação e uma Doutoranda em Educação.

No quesito profissão, apenas três se autodeclararam profissionais do sexo,


embora eu tenha registrado em meu diário de campo que a maioria, embora exerça
profissão assalariada e com carteira assinada, também seja profissional do sexo em
momentos de dificuldade financeira, ou por uma questão identitária. Delicadamente
insisti na temática, visto que foi notório o esforço de algumas das mulheres entrevistadas
em esconder a profissão.

Mesmo negando a prostituição como profissão, até como um trabalho


complementar ou “bico”, algumas mencionaram os riscos da pista, as violências, as
dificuldades e problemas com tanta riqueza de detalhes que me concluí que todas ainda
emcontram-se exercendo a prostituição, mesmo que esporadicamente.

Bento (2006, 2008), Kullick (2008), Benedetti (2005), Pelúcio (2009) e


Teixeira (2013) concordam que a prostituição é uma premissa afiliada à construção
identitária de travestis e mulheres trans, bem como à violência e à criminalidade, mas
ainda, é uma das escassas opções de sustento de suas vidas.

Contudo, senti, por inúmeras vezes, que ao falar a respeito de ser ou não ser
profissional do sexo, algumas participantes da pesquisa se sentiam incomodadas,
principalmente em nossos primeiros contatos, como foi o caso de Fabíula. Mesmo tendo
diversas discussões acerca da temática, no sentido da regulamentação trabalhista da
prostituição, tendo como exemplo o projeto de Lei n. 4211/2012 proposto pelo deputado
Jean Wyllys, ou, inclusive, as discussões propostas pelo “putafeminismo”, lideradas por
Amara Moira e Monique Prada.

Considerando-se as onze participantes da pesquisa, é de se notar que, uma vez


que Gabriela (50), Kate (54), Jussara (50) e Rebeca (51) são as interlocutoras com
cinquenta anos ou mais, elas se colocam em uma posição de experientes, por já terem
enfrentado inúmeras adversidades; são sobreviventes. As quatro também são as únicas
que demonstram um cuidado e atenção maiores, em seus relatos, quando o assunto é a
velhice e como proceder para que esta seja tranquila.

Como resultado das descrições acima, temos o seguinte quadro:

96
QUADRO I: IDENTIFICAÇÃO DAS SUJEITAS DA PESQUISA

Fonte: própria pesquisadora.

Además, no grupo de interlocutoras quatro se declararam professoras (Sara,


Gabriela, De Silva e Rebeca) e quatro participantes afirmaram ser funcionárias públicas
concursadas (Sara, Gabriela, Rebeca e Patrícia), o que pode indicar um movimento de
resistência de mulheres trans/travestis contra a marginalização, violência, estigma e
preconceito: elas estão ocupando espaços outros que até pouco tempo atrás não lhes eram
transitáveis.

Amanda é cabeleireia e auxiliar de cozinha, juntamente com Fabíula, também


cabeleireira e designer de sobrancelha. Em concordância com o relato de Patrícia,
mulheres trans e travestis exercem profissões relacionadas à beleza pelo fato de ser um
assunto tão importante para elas. Em complemento, Patrícia, que também já foi
cozinheira, expressa que trabalhar na cozinha é uma profissão do gênero feminino.

Neste capítulo apresentei os pressupostos metodológicos em que a pesquisa


está ancorada, bem como os contextos da geraçao de dados, e as particpantes envolvidas.

97
Essa discussão se fez necessária para compreender a visão de pesquisa desenvolvida ao
longo deste estudo.

No próximo capítulo, descrevo os resultados com base na análise dos excertos


selecionados para as discussões propostas nas perguntas de pesquisa e objetivos, com a
finalidade de compreender os sentidos que minhas sujeitas dão processo de
envelhecimento.

98
CAPÍTULO 4
Corpos em Transformação: os babados contados por
Travestis/Mulheres Trans

Poema Trans

"O falo é um fardo, o corpo, a farda da


farsa, e eu sou o grito, o berro, o urro,
o erro minh’alma é uma menina e meu
corpo uma mentira, não sou homem
nem mulher, um ser que sobra e falta e
desencontra num mundo diferente de
todos os mundos, o que me conduz é a
impossibilidade o que me reduz é a
incompreensão olham-me como se eu
fosse um bicho de outra espécie e riem
e criticam e excluem e odeiam como se
eu fosse um pecado, um errado, doente
ou sacana. Pobre de nós, mulheres
encarceradas em corpo que não é o
nosso como uma alma penada sapato
apertado que não nos pertence assim eu
me sinto cheio de calos, sufocado,
asfixiado, apaixonado e o espelho me
nega e eu me acho um bicho de outra
espécie, pecado, errado doente ou
sacana...”

Vyvi62

m concordância com os objetivos de a. compreender como as

E
travestis/mulheres trans constroem sentidos acerca de si, sejam
elas idosas ou não; b. entender como as mulheres trans/travestis
percebem/significam o seu processo de envelhecimento; c.
assimilar como as mulheres trans/travestis articulam as noções de
gênero e envelhecimento na sua construção identitária; retomo as
perguntas que nortearam essa pesquisa:

1. Como as travestis/mulheres trans significam o seu processo de


envelhecimento?

62
Poema escrito por Vyvi, mulher trans, redatora e mantenedora da página Amino LGBT+, que tem mais
de 399 mil seguidores/membros. Disponível em https://aminoapps.com/c/comunidade-
lgbt/page/blog/poema-trans/j0q1_z6lhKuJLqlYbEE3RvzjBkZYardRMr3. Acesso e, 20 de outubro de
2018.

99
2. De que maneira as violências sofridas pelas travestis/mulheres trans em
suas trajetórias são determinantes/marcadores do início do seu processo de
envelhecimento?

Enfatizo, neste capítulo, então, a análise dos excertos retirados das narrativas
acerca das trajetórias de vida das 11 (onze) colaboradoras desta pesquisa, delimitando os
tópicos que manifestaram-se nos subcapítulos que nomeei Ai que batifum! ao apresentar
as narrativas acerca de fatos que envolvem o seu presente, e Se joga! para fazer menção
às narrativas que dizem respeito às expectativas das interlocutoras no tocante ao futuro.
É imprescindível mencionar aqui que diante de uma infinidade de histórias de
si a escolha dos trechos abaixo não se deu de maneira aleatória, mas pautada na
observância daqueles excertos que melhor alcançavam os objetivos traçados e
respondiam as perguntas de pesquisa propostas ainda na introdução dessa tese.

4.1 Ai que batifum!

Antes de mais nada, penso ser conveniente explicar a construção do título


desta subseção. Batifum é um termo oriundo do bajubá, mais especificamente de origem
Nagô e que tem um sentido negativo, ou seja, sempre que a referência é para algo que não
vai bem, usa-se o termo batifum. Adriana Liário o utiliza em inúmeras situações. Ao
relatar como se deu sua transição e das dificuldades de aceitação da sua família no
respeitante à sua transição, ela me contou que “foi o maior batifum!”, expressando que
enfrentou inúmeras adversidades.
Ao mencionar certa vez que a Câmara Municipal de Rondonópolis-MT exigia
dela e da Meire que recolhessem o lixo e os dejetos produzidos e deixados nos pontos
onde os programas aconteciam, como por exemplo, camisinhas usadas, fezes, etc,
Adriana usou o termo batifum. “Ai que batifum que é ter que voltar nos pontos e juntar
aquelas camisinhas e lavar ...... ‘cê sabe que as vezes tem cocô pra tudo que é lado, né?”
Entendi que ela quis dizer que tratava-se de algo muitíssimo desagradável de ser feito.
Em outra ocasião, Adriana estava demasiado triste com os impedimentos que
se formavam sempre que decidia estudar, como problemas a serem resolvidos na casa da

100
Meire, os assassinatos da Tábata Brandão e da Tyetta Prazer, a falta de ônibus coletivos
em horários variados, falta de respeito no ambiente escolar, etc, e acabou me confessando
que estava pensando em ir ao terreiro para tirar o batifum. “Eu não tenho religião certa
não. Às vezes eu vou na igreja. Mas hoje eu quero ir no terreiro pra tirar o batifum”.
Entendi que a intenção de Adriana era simplesmente receber boas energias e afastar as
ruins.
Diante dos três exemplos trazidos, todos com Adriana Liário usando o termo
batifum, penso que seria apropriado utilizá-lo no título dessa subseção considerando-se
as adversidades enfrentadas pelas mulheres trans e travestis no tocante ao seu presente.
Ao narrarem acerca de suas ações atuais, pedi que elas evidenciassem o que
elas achavam mais difícil para as suas vivências, o que mais as incomodava enquanto
mulheres trans/travestis. Observemos alguns excertos:

Excerto 1
“Ah! É claro que o mais difícil pra nós é sair na rua de dia né? Eles xinga, faz
cara feia, joga pedra...” (Kate, 2 set. 2018).

Excerto 2
“A hostilização de nossos corpos ocorre pelo simples fato de respirarmos”
(Gabriela da Silva, 14 jan. 2018).

Excerto 3
“Eles fica olhando e cochichando. As vezes eles solta que a gente precisa de
um corretivo.... sabe né? Eles acha que se dão uma lição na gente a gente vai
virar homem...” (Fabiula, 13 jul. 2018).

Nos chama atenção na leitura dos três excertos acima que a maior
preocupação que paira sobre as mentes das mulheres trans/travestis tem relação com a
violência vivenciada, em especial nos exemplos trazidos, a violência verbal materializada
em forma de ameaças, independente da faixa etária das entrevistadas.
As narrativas elencadas acima nos apontam que corpos trans e travestis são
corpos femininos que encontram-se longe da imagem casta e submissa defendida pelo
discurso normativo vigente desde a Idade Média, período em que o corpo era marcado
por reprimendas e atitudes de correção (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO;
2012/2017; ROSÁRIO, 2004).
Esse discurso parece rotular os corpos trans como pagãos, errantes pecadores
e suscetíveis ao vício, à fraqueza, à sexualidade, à prostituição, à luxúria, à perversão da

101
alma, ou seja, a um estatuto de deteriorização social dos sujeitos (DOMINGUES, 2015;
ROIZ, 2009).
Essas designações acabam por construir uma percepção não-humana para os
corpos trans (JESUS, 2018), portanto, torna-se natural a violência contra seus corpos.
Particularmente, neste momento em nosso país, em que observa-se uma ampliação do
discurso de ódio contra pessoas vistas como abjetas, penso como essa percepção
direcionada aos corpos trans e travestis criam cadeias discursivas que procuram anular a
existência desses corpos lidos como permiciosos para a sociedade. E constantemente a
sociedade vincula a transgeneridade aos conceitos de impureza, ameaça, contaminação,
rancor (PAZZINI; MIGUEL, 2016; PELUCIO, 2007; BENEDETTI, 2005).
Travestis e mulheres trans, então, são vistas como ininteligíveis (BUTLER,
2003) isto é, seu sexo biológico, sua identidade de gênero e sua orientação sexual não
condizem com o discurso socialmente imposto, gerando preconceito e discriminações de
toda ordem contra essas mulheres.
Larissa Pelúcio (2007) pondera que, conforme apontam as colaboradoras da
sua pesquisa, em concordância com as minhas interlocutoras, “sair de casa é como ir à
guerra”, uma vez que é extremamente fatigante para as mulheres trans/travestis se
salvaguardarem dos olhares, falas e violências a que são acometidas diariamente (“...Eles
xinga, faz cara feia, joga pedra...”; “Eles fica olhando, cochichando...”).
Jussara tem vários relatos que confirmam os dicursos e as práticas sociais que
violentamente atacam as mulheres trans e travestis pelo simples fato de saírem de casa.
A impressão que tive foi que Jussara e as demais mulheres trans e travestis são pessoas
que devem ser mantidas em cárcere, isoladas da sociedade, em conformidade com os
excertos:

Excerto 4
“Só tando aqui mesmo [na avenida durante o desfile de 7 de setembro] pra
ninguém fazer nada com nós. Se fosse outro dia, eles ficava olhando, jogando
pedra...” (Jussara, 7 set. 2017).

Excerto 5
“A gente não pode nem sentar aqui na frente [de casa] que as doida crente lá
da frente fica jogando pedra, ovo, tomate. Elas acha que a gente quer aqueles
macho delas” (Jussara, 10 dez. 2017).

102
Excerto 6
“A gente quer sair mas não é qualquer lugar que a gente pode. As vezes as
pessoas quer bater, pegar a gente” (Jussara, 14 jan. 2018).

Os excertos 4, 5 e 6 corroboram com a ideia de que os corpos das mulheres


trans e travestis são hostilizados pelo simples fato de exibirem uma estilística feminina
que diverge dos padrões discursivamente lidos socialmente como os adequados e
normais.
Se compararmos os relatos demonstrados nos excertos de números 4, 5 e 6
com os relatos dos excertos de números 1, 2 e 3, percebemos a evidenciação de um mundo
o qual mulheres trans e travestis não podem macular, no qual não tem permissão para
fazer parte. A sua entrada é impedida pelas constantes agressões e violências a que são
submetidas (“...Eles xinga, faz cara feia, joga pedra...”; “...Se fosse outro dia, eles ficava
olhando, jogando pedra...”; “Eles fica olhando e cochichando. As vezes eles solta que a
gente precisa de um corretivo.... sabe né? Eles acha que se dão uma lição na gente a
gente vai virar homem...” “... “A gente não pode nem sentar aqui na frente [de casa] que
as doida crente lá da frente fica jogando pedra, ovo, tomate...”; “A gente quer sair mas
não é qualquer lugar que a gente pode. As vezes as pessoas quer bater, pegar a gente”).
Essas sujeitas se deparam com a exclusão e as violências desde muito novas
por expressarem o feminino em espaços cotidianos (SALES, 2018). Antunes (2010)
também concorda que são vistas como pessoas que transgridem as regras sociais
impostas: são aberrações, sujeitas que precisam de tratamento, em conformidade com os
discursos médico-psicosocial.
Amanda afirma que já sofreu muito com esse tipo de violência mas sente que
hoje é mais respeitada graças às inúmeras intervenções cirúrgicas a que se submeteu. “As
pessoas olham pra gente e nos veem como mulheres que somos, né?”. Para ela, quanto
mais proxima ela estiver dos traços sociais normativos de feminilidade, menor a
discriminação e a violência sofridas.
Fabíula, mesmo expressando que ao ser vista muitas pessoas ficam
cochichando, olhando ou até ameaçando lhe aplicar um corretivo, conforme o excerto de
número 3, também me confessou que quanto mais se assemelha ao feminino considerado
o ideal, normal, tanto por meio das vestimentas, gestualidade como também por meio das

103
intervenções hormonais, menos violências sofria, principalmente a partir de pessoas que
não sabiam de sua identidade transgênera.
Jéssica, que se autodenomina gay afeminado, não dispensa os cuidados com
os cabelos, com o corpo, com a gestualidade, modo de falar e vestir, visto que ela acredita
que para “ser vista como mulher eu preciso estar parecida como uma né?”.
A esse respeito, Almeida & Vasconcellos (2018) asseguram que quanto
melhor travestis e mulheres trans conseguirem performar o seu gênero de maneira mais
próxima possível da performance de pessoas cisgêneras, maior será a sua aceitabilidade,
acessibilidade e facilidade no meio social. Essa afirmação das autoras traz implícita a
noção de que as pessoas transgêneras devem ser uma cópia das pessoas cisgêneras.
A premissa ignora que os corpos transgêneros têm uma potência
questionadora do discurso heteronormativo compulsivo que por si já é extremamente
violento. E não é necessariamente o desejo de muitas das minhas interlocutoras serem
apenas uma fotocópia de uma mulher cisgênera. Pensar nisso é ler as mulheres trans ou
travestis como irreais e artificiais.
Vale acrescentar que essa leitura social que interpreta corpos transgêneros
como uma cópia de corpos cisgêneros não é apenas equivocada, mas uma criação dos
discursos médicos, psiquiátricos e sociais cis-normativos. Uma vez que os corpos
transgêneros transgridem as normas de gênero, estes não precisam se “refazer” para se
transformarem em corpos semelhantes aos corpos cis e alcançarem uma “validação”
(LANZ, 2014).
Amanda é a primeira a se expressar nesse sentido. Embora tenha uma
preocupação em ser socialmente lida como mulher – que de fato o é – não exprime o
mínimo desejo em se submeter à cirurgia de redesignação de gênero: “Bicha, ‘cê tá
louca? Tirar a neca63? Nunca! Sou uma mulher muito mais completa!”.
Patrícia, Jéssica e Rebeca, do mesmo modo, não acreditam que precisam se
submeter à retirada do pênis, por meio da cirurgia de redesignação de sexo, para que suas
feminilidades sejam confirmadas, nos apontando que elas são “mulheres de pau”
(PELÚCIO, 2004). Em outras palavras, mulheres trans e travestis não são pessoas que
querem se “passar” por mulheres, mas querem questionar o discurso hetero-cisnormativo
que lhes é imposto desde o nascimento: “é menino!” (BUTLER, 2003).

63
Do bajubá, significa pênis.

104
Embora os dados mostrem a vontade das minhas interlocutoras em serem um
modelo de feminilidade, os mesmos dados mostram que a sociedade é implacável quando
a leitura social empreendida sobre seus corpos diverge ou se afasta do feminino tido como
discursivamente ideal.
O que está em jogo não é a teatralização de uma determinada identidade
normatizada, mas os direitos de simplesmente existir de inúmeras outras formas de
feminilidades, sejam elas mais próximas ou não da expressa pela cisgeneridade como
natural, numa busca constante de vencer a violência que encontra-se implícita em todos
os detalhes das normas de gênero, para que sejam assim, incluídas na sociedade como
sujeitas além de simples alegorias carnavalescas (FLEMING, 2005).
Silva et al (2016) concordam que a população de mulheres trans/travestis
sente severamente os efeitos do preconceito e da discriminação em diversos ambientes,
em especial nos que requerem a aceitabilidade, discutida acima. Tais atos de preconceito
e de discriminação são naturalizados, relegando estas sujeitas a uma subsistência oculta,
transformando-as em vítimas da violência fortificada pela (hetero) normatização social
(SILVA et al, 2016).
Foucault (2007, 1996, 1988) nos ensina que o corpo é o território onde as
batalhas relativas ao poder são estabelecidas, no intuito maior de moldar e adestrar esse
corpo, ajustando-o em conformidade com as expectativas do discurso de poder. Logo, os
corpos trans/travestis que não se adequam à esta lógica de ajuste e adestramento sentem
os efeitos da violência, mesmo que apenas pelo julgamento do olhar, conforme os
excertos de números 1, 2, 3, 4, 5 e 6.
E é claro que essa vivência de tensão acentuada por episódios de violência
verbal pode afetar consideravelmente o seu processo de envelhecimento. Costa (2013)
revela que as sujeitas de sua pesquisa – todas autodenominadas travestis – vivem tanta
apreensão em seus cotidianos em termos de violência verbal que passam a desacreditar
em seus futuros, investindo todas as suas perspectivas no presente.
A esse respeito, minhas informantes concordam que suas vivências negativas
aceleram o seu processo de envelhecimento. As entrevistadas expressam que os ataques
contínuos colaboram para a eclosão de estresse psicológico de modo a incidir sobre a
corporalidade, degradando-o.

105
Jéssica é um dos exemplos. Ela conta que os comentários e olhares são tão
inconvenientes que chegam “até a causar desânimo (...). A gente nem acredita às vezes
que um dia vai ficar velha”. Ela teme não viver a sua velhice porque não sabe se será
sucedida em alcançar tal fase em virtude do estresse psicológico a que é regularmente
exposta.
Patrícia também tece comentários semelhantes aos de Jéssica e concorda que
em alguns momentos elas passam por tantas circunstâncias de violência verbal que
“chega a ficar de cabelo branco”, de maneira a inferir que as violências verbais e gestuais
sofridas aceleram o seu processo de envelhecimento.
A esse respeito, Beauvoir (1970) entende a velhice como degradação do
organismo, utilizando-se da metáfora da máquina que se desgasta depois de longo período
de uso para referir-se ao corpo humano. Essa degradação corporal descrita por Beauvoir
(1970) não leva em consideração o processo de violência enfrentado por mulheres trans
e travestis, e que produz efeito psicológico tamanho a ponto de afetar o processo de
envelhecimento de tais sujeitas.
Uma vez que vimos que cada uma das etapas da vida nos inferem
determinadas condutas e que o envelhecimento é uma construção cultural baseada no
discurso social, podemos deduzir que as experiências vivenciadas pelas mulheres trans e
travestis desta tese afetam diretamente o seu processo de envelhecimento, e
consequentemente, o curso de suas vidas.
Além da agressão verbal e simbólica sofrida, as narrativas obtidas indicam
considerável incidência de violências sofridas pelas mulheres trans e travestis no centro
de situações sociais sublinhadas por relações de poder (FOUCAULT, 2007, 1987), de
modo a salientar que as ofensas não são sofridas apenas nas ruas e nos locais de
prostituição, mas perpassam as inúmeras esferas de suas vidas. Uma dessas esferas diz
respeito ao atendimento à saúde nas unidades públicas.

Excerto 7
“... Aí a menina foi violentada e nós levou ela pra UPA né.... Depois de uma
tarde inteira é que foram fazer a profilaxia nela. Só porque era travesti
deixaram a menina esperando o dia todo. (Anotação no Diário de Campo.
Adriana me contava como foi o atendimento a uma menina que tinha sido
recentemente violentada no horário de trabalho. Violentada sexualmente,
espancada e teve os objetos pessoais roubados. 22 jan. 2018).

Excerto 8

106
“... aí toda vez que a gente precisa do serviço daquela enfermeira, ela fica
zombando da gente, deixa a gente nessa situação. Acredita que ela chegou e
ficou falando que hoje não era dia de prevenção da AIDS? (Anotação no Diário
de Campo. Adriana e Jussara me contavam a respeito do atendimento de uma
enfermeira em um posto de saúde da família que atende as mulheres trans e
travestis da casa da Meire. 20 fev. 2018).

Os excertos 7 e 8 delineiam o tratamento vivenciado pelas interlocutoras ao


necessitar de atendimento na rede pública de saúde. O excerto de número 7 diz respeito a
um episódio em que uma das moradoras da casa da Meire foi violentada em seu horário
de trabalho, estuprada e roubada. Ao procurar os serviços oferecidos na Unidade de
Pronto Atendimento Municipal, elas alegam terem esperado a tarde inteira por
atendimento, bem como afirmam que viram diversas outras pessoas, que tinham chegado
depois delas, serem passadas à sua frente. Conforme as mesmas alegaram, o atraso no
atendimento poderia ter causado danos à saúde da travesti que necessitava de atendimento
urgente.
É como se os corpos dessas mulheres precisassem ficar expostos para a
apreciação pública, julgamento, acareação, humilhação, antes de serem atendidas de
maneira a lhes apontar quem encontra-se no topo das relações de poder.
Uma vez que é sobre o corpo que recaem as estratégias de poder
(FOUCAULT, 2007), ele também se torna um ambiente de nomeação de saberes
(FOUCAULT, 2007, 1989), saberes os quais determinam o padrão de corpo a ser seguido
e a patologização daqueles considerados desviantes. Os desviantes, deste modo, sofrem
as punições, como a exposição à avaliação pública, riscos à saúde, humilhações.
Embora a travesti descrita no excerto 7 tenha sofrido violência sexual, física
e ainda tenha sido roubada, ela precisa ser castigada e aguardar mais que os demais
pacientes da unidade de saúde para “aprender”, ser “docilizada”, entender que há um
poder que domina e controla o seu corpo (FOUCAULT, 2007, 1987). O corpo anuncia o
que a cultura lhe autoriza falar, mas, concomitantemente, torna-se alvo das manipulações
simbólicas no interior das sociedades (PAIM; STREY, 2004).
Soma-se a tal problemática o fato de os corpos trans e travestis representarem
um aglomerado de carne e ossos que não possuem um gênero socialmente definido
(BUTLER, 2003) e aceitável pelo discurso hetero-cisnormativo, o que justifica a falta de
respeito por parte dos servidores na unidade de atendimento de saúde pública.

107
No excerto 8, Adriana e Jussara, referem-se ao tratamento dispensado por
uma enfermeira encarregada pelo posto de saúde da família, localizado próximo à casa
da Meire, e que, de acordo com elas, tal enfermeira tem satisfação em ofendê-las e inferir
que elas procuram o posto de saúde por serem portadoras do vírus HIV/AIDS,
principalmente, quando o posto encontra-se cheio. A queixa é que a enfermeira fala alto,
de modo a constrangê-las e a ferir os seus direitos e privacidade.
Algumas mulheres trans e travestis afirmam que preferem enfrentar os
problemas clínicos e/ou situações de dor para não serem mal-tratadas nas unidades de
atendimento de saúde pública, mesmo conscientes de que tal postura pode trazer danos à
sua saúde. Adriana, expressou, em algumas ocasiões, optar resolver seus problemas de
saúde sozinha a ir ao posto de saúde da família localizado próximo à sua casa. Ela sempre
conta com as dicas e sugestões das travestis/mulheres trans mais experientes que vivem
em sua casa.
Patrícia e Jéssica igualmente confirmam já terem sido indevidamente tratadas
em postos de atendimento de saúde pública. As interlocutoras concordam que seus
direitos à saúde e à dignidade são reiteradamente violados, o que as desencoraja a procurar
tais serviços.
Com isso, percebo dois fatores criados como uma resposta inconsciente à
violência verbal sofrida por travestis/mulheres trans quando buscam o atendimento nas
redes públicas de saúde, e que se confirmam por meio dos relatos. O primeiro destes
fatores diz respeito a vulnerabilidade em que se encontra a população LGBT ao
necessitarem acessar os serviços de ordem pública, de direitos de todos(as) os(as)
cidadãos e cidadãs brasileiros(as).
Tal fragilidade no que se refere a proteção de seus direitos enquanto cidadãos
e cidadãs agravou-se após a posse do novo presidente do Brasil em 2019. Em seu primeiro
dia de mandato, o presidente Jair Bolsonaro, do PSL, assinou a medida provisória
870/1964 que omite a população LGBT da lista de políticas e diretrizes destinadas à

64
A medida provisória 870/19, assinada em 01 de janeiro de 2019 pelo novo presidente da República
Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro, visa reduzir o número de ministérios de 29 para 22 órgãos com status
ministerial, de modo a acoplar umas pastas às outras, mas nenhuma que garantisse o direito da população
LGBT. A medida ainda não tinha sido votada pela Câmara de Deputados e Senado até a entrega da versão
final desta tese.

108
promoção dos Direitos Humanos, colaborando para a desconstrução de serviços não
discriminatórios65 por parte do governo.
Além disso, as transformações no atendimento às mulheres trans/travestis e
população LGBT, em geral, dependem em grande parte da renovação no modo de pensar
e atuar dos profissionais de saúde envolvidos com tal atendimento (CARDOSO; FERRO,
2012). Tal modo de pensar e atuar é afetado por valores culturais moldados pela estrutura
heterossexual normativa que também toca a subjetividade de cada profissional da saúde
(CARDOSO; FERRO, 2012), de maneira a conduzir a sua atuação. Consequentemente,
o modo como efetivam o seu fazer profissional acaba por produzir preconceitos e
violências, o que dificulta ou impede o acesso desta população aos serviços de saúde
pública.
O segundo dos fatores tem relação com a procura por ajuda junto as mulheres
trans/travestis mais velhas ou mais experientes. Uma vez que nos locais de atendimento
de saúde as travestis e mulheres trans não recebem o tratamento que consideram digno e
respeitoso, elas recorrem às “tias” ou “vós”.
Jussara e Kate são dois exemplos de travestis que são constantemente
procuradas por travestis/mulheres trans da casa onde moram para oferecer conselhos de
toda ordem, não apenas no tocante à saúde. “Elas sabem que nós já passou por muita
coisa né?”, como Jussara expressa. Kate revela que mesmo algumas das meninas sendo
mais “ousadas” e não levando tudo em consideração “quando é sobre a saúde delas elas
pede ajuda... assim, eu sou mais experiente...”.
Alguns trabalhos como os de Sander e Oliveira (2016), Nogueira (2013) e
Pelúcio (2007) indicam que as travestis e mulheres trans “novinhas” inúmeras vezes
procuram as “tias” ou “vós” para serem aconselhadas nos quesitos saúde, transição e
construção corporal, sociabilidade.
Igualmente, ter chegado aos 50 anos (ou mais), além de representar uma
vitória contra as inúmeras violências e opressões, pode transformar essas mulheres em

65
Dentre todos os serviços considerados não discriminatórios, cito o exemplo da retirada de circulação da
cartilha de prevenção do vírus HIV/AIDS dos postos de saúde, por autorização do Ministério da Saúde,
documento que continha instruções para a população LGBT, em especial para a população de homens trans,
em 02 de janeiro de 2019. Disponível em https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-saude-
retira-do-ar-cartilha-para-populacao-trans,70002667359. Acesso em 7 jan. 2019.

109
referências para as demais meninas que estão começando as suas vidas enquanto mulheres
trans/travestis.
Jussara conta que “elas procura pra saber de alguma coisa, pedir uma
ajuda”, por entenderem que Jussara está no grupo que já abriu muitas portas e venceu
muitas batalhas para a geração que está “fazendo pista hoje”. Kate, por outro lado, não se
acha velha no seus mais de 50 anos, mas se sente experiente, e mesmo assim “eu ensino
as menina”.
A esse respeito, Beauvoir (1970) explicitou que em algumas culturas ocorre
a exaltação dos(as) idosos(as) em virtude de seus conhecimentos e suas experiências. A
autora complementa que, de outra via, há culturas que excluem os(as) seus(suas)
idosos(as) por representarem um fardo, um corpo improdutivo, e não estarem mais aptos
a colaborar com o desenvolvimento daquele grupo social.
Os dados nos mostram que ambas as situações citadas por Beauvoir (1970)
são recorrentes nas trajetórias de algumas de minhas interlocutoras. Kate, por exemplo,
conta que as meninas da casa da Meire a procuram quando querem algum conselho, mas
quando é pra falar sobre segurança e violência “elas não gosta do que nois fala não. Aí
eu falo pra elas que tem que se cuidar elas acha ruim, fica rebelde... chama nois de bicha
velha, bicha doida, exagerada...”. Kate chegou a soltar que “...as vezes elas é cabeça
dura, num qué escuta a gente, nem aceita...”.
A frustração de Kate pode ser percebida, pois ela faz parte de uma geração
que desafiou valores e discursos para as futuras gerações, as “novinhas”. E na verdade, o
que a entristece é o fato das mais jovens não reconhecerem que são inexperientes e
menosprezarem aquelas que abriram os caminhos para elas, em concordância com
Pelúcio (2007) e Costa (2013).
Concomitantemente ocorrem as trocas positivas e também as situações
atravessadas por tensões. Rebeca complementou que são as mais velhas que “guiam as
mais novas, mostram por onde trilhar”, visto que são elas que já passaram pelas
dificuldades, mas que “essa nova geração também é fogo, chegou cheia de razão e
ousadia”. Esse fato é observado por entre as interlocutoras das pesquisas de Siqueira
(2004), Antunes (2010), Costa (2013) e Nogueira (2013).
Quando o assunto é HIV/AIDS é unanime por entre as travestis/mulheres
trans mais velhas a ofensa que impõe um rótulo que não lhes pertence. De outra via, ser

110
uma travesti/mulher trans que alcançou os cinquenta anos sem ter contraído a doença é
ostentar um status social por entre as demais meninas de suas comunidades.
Ao adentrar no assunto com Jussara, ela de pronto já exclamou: “Vixi, Maria!
Estar com a tia66? Graças a Deus tenho esse negócio aí não!”. Em concordância com
Siqueira (2004) é certificado um status às mulheres trans e travestis que alcançaram a
maturidade e escaparam da onda da AIDS. Jessica, Kate e Rebeca são exemplos67.
Tal fato se repete com a pesquisa de Nogueira (2013) que notou o lugar de
destaque ocupado por travestis que chegam à velhice sem terem contraído AIDS. De
acordo com a pesquisa desse autor, contrair HIV/AIDS posiciona a pessoa transgênera
em um lugar ainda mais estigmatizante.
Siqueira (2004) afirma que as transgêneras mais velhas, além de serem
exemplos para as novinhas, e se tornam suas orientadoras contra o surgimento de doenças,
principalmente a AIDS, reforçando a ideia discutida anteriormente que as mulheres trans
e travestis são as pessoas as quais as mais novas buscam quando precisam de uma
referência, aconselhamento, em situações adversas, tanto nas pesquisas supracitadas
como na minha.
Retomando a temática da violência, as participantes ponderam que enfrentam,
além dos problemas de agressões verbais, psicológicas, e de tratamento inadequado nos
locais de atendimento à saúde, encaram a falta de atenção e disponibilidade para a solução
de seus casos, julgamentos e chacotas, descrédito diante de suas dores e reinvindicações,
e o que elas consideram ser o pior de todas as questões elencadas: serem chamadas
publicamente pelo nome masculino de registro, ao invés de seu nome social.
O nome social indica o nome pelo qual as sujeitas travestis e pessoas trans,
em geral, preferem ser chamadas cotidianamente, considerando-se que o nome de registro
não condiz com a sua identidade de gênero. Sua escolha sinaliza o meio de subjetivação
experimentado pelos sujeitos em seus cenários históricos, assim como incorpora valores
identitários provindos das vivências familiar, social, cultural e política.

66
“Estar com a tia” é uma expressão muito comum por entre a comunidade LGBT para se referir à
contaminação pelo vírus HIV/AIDS.
67
Penso ser relevante explicar aqui que nenhuma das entrevistadas de minha pesquisa relatou ser portadora
do vírus HIV/AIDS. Fiz menção à Rebeca, Kate e Jussara pois foram as únicas que falaram a respeito da
temática. Adriana comentou certa vez que acolheram na casa da Meire uma menina portadora do vírus
HIV/AIDS e que enfrentava problemas com o vício em drogas e bebidas, mas não me revelou a identidade
dessa menina, muito menos me informou a sua idade. Não sei dizer se ainda vive na casa.

111
Em âmbito nacional, o decreto 8.727 de 28 de abril de 2016 (BRASIL, 2016),
dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas
transsexuais e travestis, de modo a evitar situações de humilhações e discriminações, bem
como situações de violência contra essa população. Nota-se com os relatos apresentados,
clara violação do direito à dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 5º da
Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988).
A título de exemplo, certa vez eu estava na Unidade de Pronto Atendimento
Municipal por problemas de saúde e vi, ao longe, Amanda aguardando na recepção para
ser atendida. Tínhamos acabado de nos conhecer e eu estava aguardando a sua
disponibilidade para a nossa primeira entrevista. Mas aproveitei aquele momento de
espera para tecer comentários em meu Diário de Campo, enquanto a observava. Pouco
mais tarde, ouvi um nome masculino ser chamado três vezes consecutivas, e eis que
Amanda, com o olhar meio contrariado, levanta e entra no consultório médico.
Algum tempo depois, quando conseguimos marcar nossa primeira entrevista,
contei a ela que estava presente no dia em que ela estava na Unidade de Pronto
Atendimento Municipal. Ela me confessou que ser chamada pelo nome de
batismo/registro é o mais frequente dos tratamentos. Mesmo ela deixando claro que
gostaria de ser chamada por Amanda, os atendentes raramente chamam as travestis e
mulheres trans pelo seu nome social.
Ao discorrer acerca do assunto com Rebeca, ela expressou que “a violência
sofrida pelas travestis nas ruas não é o fator determinante para o envelhecimento precoce
das meninas”, mas é acentuado pelas outras formas de violência enfrentadas
cotidianamente, como a “falta de respeito da sociedade, falta de moradia fixa e própria,
situação financeira precária, noites sem dormir e desgaste emocional”, colocando
travestis e mulheres trans em posição de defesa e tensão em tempo integral.
Em complemento, a fala de Rebeca nos remete à discussão de que nem
sempre o processo de envelhecimento depende do estado físico de uma pessoa, mas é
influenciado pelo seu estado de espírito (ESCOBAR et al, 2017), reforçando a ideia de
que o envelhecimento nem sempre é cronológico (CASTELEIRA, 2013).
Com isso, a velhice parece intensificar a vulnerabilidade das pessoas
pertencentes às minorias sexuais, de gênero, de raça, classe social, status econômico e
ainda, orientação sexual (ANTUNES, 2010, MAGALHÃES; SOBRINHO, 2006).

112
Infelizmente, essas não são as únicas formas de violência contra as mulheres
trans e travestis. As narrativas obtidas no decorrer desta pesquisa desvelam situações de
violência física extremas, as quais podem, inclusive, ocasionar a morte:

Excerto 9
“Uma vez eu tava na pista, lá na (Av.) Médici, sabe? Um carro parou pra
perguntar quanto era o programa. Eu achei que era né...aí o disgramado jogou
aquela espuma de extintor em mim, sabe? Uma vez eles correu atrás de mim
de pau, pra bater, sabe? (Jussara, 7 set. 2017).

Excerto 10
Jussara: Sou freguês, né? Já levei tiro, facada... já bateram na minha cara.
Pesquisadora: Muitas vezes?
Jussara: Ixiii... até perdi as conta... minha e das menina do ponto...fiquei tanto
tempo em coma que nem gosto de passar na (Av.) Médici. (Jussara, 2 set.
2018).

Excerto11
“Na minha primeira noite na rua, fazendo pista, né?... eu tava com muito medo
das coisas que as menina contava...mas fui....e foi nessa noite que uma bicha
foi morta la na (Av.) Kennedy...pensei que eu podia ser a proxima...não fiz
mais pista não...” (Jésssica, 20 nov. 2017)

A violência física constitui uma ocorrência de causa multifacetada que abarca


inúmeras dimensões humanas, de maneira a obter um desenho mais marcante na
atualidade ao expor causas emergentes e as situar no debate público.
No caso específico, a violência ocorre contra as mulheres trans e travestis
abordadas nesta pesquisa pelo simples fato de elas serem uma construção que diverge
daquela que se espera de seres humanos, em conformidade com o discurso
heteronormativo cisgênero; são abjetas, logo, precisam sofrer, literalmente, na pele os
efeitos do poder.
E o que preocupa é que, conforme pesquisa publicada em novembro de 2018
pelo grupo Transgender Europe-TGEU, o Brasil permanece em primeiro lugar no que
diz respeito a assassinato de pessoas trans e travestis no mundo, com quase 100 vítimas a
mais que o México, segundo colocado na pesquisa em questão.
Os relatos de Jussara, expressos nos excertos de números 9 e 10, nos mostram
a descrição da violência física guardada em sua memória (...jogou aquela espuma de
extintor em mim/Uma vez eles correu atrás de mim de pau/Já levei tiro, facada, já
bateram na minha cara, “fiquei tanto tempo em coma q nem gosto de passar na (Av.)

113
Médici), de maneira a apontar que a vivência de situações de opressão e discriminação a
partir do momento em que suas estilísticas corporais femininas são exibidas.
Ser agredida com extintor ou ter alguém correndo atrás de Jussara (conforme
excerto de número 9) pode ter soado engraçado para um adolescente ou jovem que
intentava ter um pouco de diversão às suas custas. Mas o que nota-se com tal relato é que
pouco ou nada se tem de respeito para com as pessoas transgêneras pelo simples fato de
serem sujeitas que subvertem a binariedade discursiva homem/mulher, pactuando com a
percepção de que “o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito” (BUTLER, 2003, p. 24).
Logo, transformam-se na base dos mais variados tipos de opressão e violência.
Ao retomar a fala de Rebeca acerca da violência a que são acometidas todos
os dias, reflito acerca da situação de Jussara assim como das demais mulheres trans e
travestis que são profissionais do sexo e tem a prostituição como o meio de substistência.
Para Rebeca, as travestis e mulheres trans são vítimas de violências diárias, e a rua torna-
se um fator determinante para o envelhecimento precoce dessas mulheres por colocá-las
em desgaste emocional e psicológico.
Um corpo exposto a tais violências, dificilmente consegue sucumbir e gozar
de um processo de envelhecimento ditado pelo Estatuto do Idoso – documento com
normativas que abarcam apenas o envelhecimento de pessoas cisgêneras e que exclui o
processo de envelhecer de pessoas trnasgêneras.
Na fala de Jéssica, percebe-se que há inquietação quanto a trabalhar com a
prostituição e ser uma possível próxima vítima, principalmente considerando-se que uma
de suas colegas foi assassinada durante o seu turno. A prostituição não é necessariamente
o único meio de subsistência das travestis, mas torna-se um dos meios constitutivos de
sua identidade (NOGUEIRA, 2013; PELÚCIO, 2007; BENEDETTI, 2005; SIQUEIRA,
2004). Contudo trabalhar nas ruas pode ser inseguro e também mais um elemento
acelerador do processo de envelhecimento, em virtude das tensões que pode causar.
Levando-se em linha de conta as ameaças, os ataques fisicos, as agressões
psicológicas e em ambientes de uso comum de todos os cidadãos e cidadãs do país, não
é possível que travestis e mulheres trans alcancem um envelhecimento saudável e digno.
Assim, indago a cada uma delas se o fato de terem vivenciado tanta opressão e truculência
no decorrer de suas vidas pode ser um fator marcante e acelerador de seus processos de
envelhecimento:

114
Excerto 12
“O trabalho nas ruas não é nada fácil. Diante de todos os riscos a que são
submetidas, posso sim afirmar que elas envelhecem mais cedo” (Sara Wagner,
12 abr. 2018).

Excerto 13
“...eu já sou uma idosa (risos)... cheguei aos 34 anos. A gente só vive até os
35... tenho um ano de vida” (Adriana Liário, 14 abr. 2018).

Excerto 14
“Elas fazem uso de muita bebida e drogas para aguentar as dificuldades nas
ruas, na pista. Isso somado à todo tipo de violência física que elas enfrentam
contribui para o seu envelhecimento” (Gabriela da Silva, 16 jan. 2018).

Os excertos de números 12, 13 e 14 explicitam que mulheres trans e travestis


não tem uma perspectiva de envelhecimento semelhante à perspectiva de pessoas hetero-
cissexuais. Em média, de acordo com os dados do IBGE, em relação ao ano de 2015, a
expectativa de vida de um brasileiro é de 75,2 anos (FUHRMANN; LONGO, 2016).
Em outro passo, comentei acerca do curto tempo de vida das mulheres
trans/travestis, expresso pela própria Adriana. Casteleira (2014) confirma que a fronteira
entre a idade jovem e o envelhecimento não se constrói por meio da idade cronológica,
mas em conformidade com vivências de cada uma dessas mulheres, o que poder variar,
conforme é reforçado por Adriana, que tem 34 anos e se sente uma pessoa idosa, no
excerto de número 13.
Assim, considerando-se o exposto, ouso inferir que as travestis e mulheres
trans encontram-se nesse ciclo de vida reduzido, e um processo de envelhecimento
precoce, em virtude das dificuldades experimentadas no decorrer de suas vidas.
Como vimos, essas sujeitas enfrentam violências verbais pelo simples fato de
saírem de casa. Tais violências, advindas da sociedade como um todo e prestadores de
serviços públicos também as coloca em situações de extremo estresse e tensão,
colaborando para uma possível depressão.
Kulick (2008) observou tal fato em sua pesquisa etnográfica realizada em
Salvador (BA) nos anos 90. Estarem em depressão pode levá-las ao consumo (e comércio)
de drogas68 e bebidas como uma alternativa de suportar as adversidades, o que comprova

68
Incluí o comércio de drogas por parte das travestis e mulheres trans aqui em parênteses pois, conforme
depoimento de Adriana Liário, não é permitida a entrada de drogas na casa da Meire. Quanto às demais

115
o depoimento de Gabriela da Silva, no excerto 14. Para Gabriela, as mulheres trans e
travestis que conhece fazem uso de substancias nocivas e alucinógenas de modo a
conseguirem enfrentar as batalhas que são travadas sempre que vão trabalhar.
Ao mesmo tempo que Escobar et al (2017) expõem que o envelhecimento
pode ser sobremaneira influenciado pelo estado de espírito dos(as) sujeitos(as), as
mulheres trans e travestis, em virtude do excesso de violências que experimento no
decorrer de suas vidas, podem sim recorrer ao uso de substancias químicas ilegais para
amenizar as suas dores, de modo a contribuir com seu envelhecimento e podendo levá-
las, inclusive, à morte.
Diante de todos os excertos apresentados e discutidos até então, se
observarmos que todos são oriundos de narrativas produzidas por travestis e mulheres
trans ao evidenciar o que elas consideravam mais incômodo em suas vivências, posso
inferir que, seguramente, a violência é uma das mais recorrentes situações que
diretamente afetam as suas condições de vida, e consequentemente, um de seus efeitos
mais devastadores é a antecipação do processo de envelhecimento.
Ao conversar com Rebeca acerca dessa constatação, já no final do período de
geração dos dados desse estudo, ela confirmou:

Excerto 15
(...) a violência sofrida pelas travestis na rua não é o fator determinante para o
envelhecimento precoce, mas é um dos fatores. Existem outros fatores como a
falta de moradia fixa e a própria situação financeira, noites sem dormir,
desgaste emocional (...) as células não se renovam com o passar do tempo,
assim o envelhecimento acontece mais cedo e mais rápido devido as noites
perdidas de sono, alimentação que não é rica em fibras e proteínas, uso de
maquiagem e sem a devida retirada da maquiagem (...) (Rebeca 13 de setembro
-de 2018, via Facebook Messenger).

Rebeca considera como violência não apenas as investidas e abusos tolerados


pelas travestis e mulheres trans em seus locais de trabalho – as ruas – , mas entende como
violências os maus tratos, noites mal dormidas, alimentação precária, falta de cuidado

sujeitas entrevistadas e que não fazem parte da casa, não houve menção ao comércio de drogas em suas
atividades.

116
com seus corpos, desgaste emocional por não terem moradia fixa e/ou condições
financeiras que lhes propicie uma vida digna.
Desse modo, finalizo esse subcapítulo apontando que as diversas violências
que afligem as mulheres trans e travestis advém de uma interpretação social que não as
enxerga como pessoas de um gênero inteligível, em uma sociedade de prática moralista
assegurada por relações de poder (FOUCAULT, 2007, 1996, 1988) que age de maneira a
estraçalhar vidas lidas como abjetas, pecadoras e subversivas.
Na próxima subseção examinarei o sentido atribuido pelas interlocutoras ao
seu processo de envelhecimento e acerca de seus planos para o futuro.

4.2 Se joga!

Certa vez, quando mostrei à Dê Silva um trecho do texto a ser lido na


audiência pública realizada na Câmara Municipal de Rondonópolis, em 29 de janeiro de
2018, após avaliá-lo, ela sorriu e disse: Se Joga! No final de uma das reuniões do
GATTRS em julho de 2017, disse a ela que precisava organizar os registros das atas do
grupo, sendo, então, motivada com a expressão Se joga!
Em outra ocasião, no final de mais uma das reuniões do GATTRS realizada
na casa da Meire em janeiro de 2018, fomos para um bar para comemorar as realizações
que programamos para o ano que se iniciava. Ao confessar que estava sozinha, com o
marido viajando e minha filha sendo cuidada pelos meus pais, ela me deu um copo de
cerveja acenando um Se Joga!
Identifiquei o uso da expressão por Jussara ao me contar acerca de seus
sonhos futuros: “a gente começa a sonhar, junta o dinheiro e depois a gente se joga”, ao
expressar o que pretende fazer em alguns anos para ter sua renda fixa.
A frase-título me remete a sonhos e futuras possibilidades, considerando-se
a compreensão de algo motivador: vá lá e faça!, e que me remeteu ao que as mulheres
trans e travestis dessa pesquisa fazem tão plenamente em seus cotidianos.
Contudo, antes de entrar na discussão acerca de seus planos para o futuro,
pensei ser conveniente perguntar-lhes o que cada uma delas entendia por envelhecimento
e o sentido que atribuiam para a velhice. As respostas pareceram apontar para uma dúvida

117
ao defini-los ou uma dificuldade em expressá-los. Vejamos, então, os relatos nos excertos
de números 16, 17 e 18, abaixo:

Excerto 16
“é ficar mais madura, né? (risos) não sei explicar direito. Quase nunca penso
nisso.” (Fabíula, 13 jul. 2018).

Excerto 17
“Cada um tem sua própria maneira de envelhecer” (Dê Silva, 15 jul. 2018).

Excerto 18
“Menina, sai pra lá com isso. Nem quero pensar nisso!” (Patrícia,23 mai.2016)

Inicio a discussão do significado de envelhecimento a partir das falas de


Fabíula, Dê Silva e Patrícia, especialmente porque essas informantes encontram-se na
faixa etária entre os 25 e 35 anos, de modo a representar o grupo geracional mais jovem
dentre as interlocutoras desse estudo.
Os relatos indicam a incerteza, a insegurança das informantes em expressar o
significado do termo velhice e do processo de envelhecimento, possivelmente por não
terem experimentado fisicamente nenhum dos efeitos do envelhecimento biológico
(BEAUVOIR, 1970).
Além disso, essas colaboradoras fazem parte de uma geração que é apoiada
por recursos tecnológicos e estéticos que não existiam à disposição de gerações passadas
(OLIVEIRA; MEIRA, 2016), o que explica o fato de ser comum nesse grupo geracional
a falta de compromisso em refletir acerca da temática.
Amanda, uma interlocutora do mesmo grupo geracional também nos
esclarece que, acerca do envelhecimento “... acho que não parei pra pensar nisso ainda
não... tá longe né?”, elucidando que não é hora de se pensar a respeito, possivelmente
está muito nova pra esse tipo de preocupação.
Já Adriana me contou que nunca parou pra pensar acerca do processo de
envelhecimento em si, uma vez que “...minha ficha não caiu pra essa vibe de velhice...
nem sei se vou passar dos 35”.
Adriana, Amanda, Fabíula e Dê Silva, a geração das mulheres trans e travestis
novinhas nesta pesquisa, deixam bem claro que preferem não se debruçar sobre o tema
envelhecimento, talvez por não terem sentido em seus corpos as marcas do tempo se

118
instalarem ou por não conseguirem enxergar uma possibilidade de futuro após os 35 anos
de idade (OLIVEIRA; MEIRA, 2016).
Como a própria Adriana já informou em outro momento, pessoas trans e
travestis vivem até aproximadamente os 35 anos, sendo essa a idade média estimada de
vida de uma transgênera no Brasil (SALES, 2018; SIQUEIRA, 2004; PERES, 2005;
KULICK, 2008; entre outros), constituindo-se a velhice por entre as mulheres trans e
travestis um fenômeno que as acomete de modo precoce se comparado às pessoas
cisgêneras, principalmente se levarmos em conta as trajetórias de vida delineadas por
quadros de violências dos mais variados tipos (ANTUNES, 2010), como discutido na
seção anterior.
Contudo, o tema envelhecimento não se mostra de difícil debate apenas para
travestis e mulheres trans mais jovens, mas de igual modo entre as informantes que
encontram-se com mais de 35 anos:

Excerto 19
“As pessoas fica velha depois dos cinquenta, eu acho. Num é? Elas não
consegue mais fazer as coisa. Eu num fico velha não. Mentira. As pessoas fica
velha depois dos 60. Tem aquele negócio das filas preferencial. Pra mim, num
sei...... é difícil” (Kate, 2 set. 2018).

Excerto 20
“Cada uma envelhece de um jeito, né? Não tem como ser igual pra todo
mundo. Eu já sinto umas dores no joelho, nas costas. Quando era novinha não.
Mas mesmo assim ainda faço pista. Ruim vai ser quando eu não for mais [pra
pista]...” (Jussara, 7 set. 2017).

Os excertos de números 19 e 20 colocam Kate e Jussara em uma posição de


desconforto no tocante ao sentido por elas atribuído ao envelhecimento.
Kate aponta que tem dúvidas quanto ao início do processo de envelhecimento:
50 ou 60 anos? Provavelmente sua dúvida surge por já ter chegado aos 54 anos de idade
e vivido muito mais que muitas de suas amigas de sua geração. Concomitantemente,
parece comparar o seu processo de envelhecimento com o processo de pessoas cisgêneras,
as quais são ditas envelhecer por volta dos 60 anos. Isso se confirma ao afirmar: “As
pessoas fica velha depois dos 60. Tem aquele negócio das fila preferencial...”

119
Mas Kate expressa não acreditar que tinha chegado tão longe “Eu num fico
velha não. Mentira!” ou até mesmo possa ter intentado inferir surpresa ao ter chegado
aos 54 anos.
A respeito do início do processo de envelhecimento, há uma convenção de
que este inicia aos 65 anos em países europeus e por volta dos 60 anos no Brasil, de
acordo com o Estatuto do Idoso. Porém, Adriana me contou que o envelhecimento das
travestis e mulheres trans inicia-se mais cedo que para as mulheres cisgêneras, sem o
marco da idade cronológica, como Casteleira (2014) completa, especialmente ao
avaliarmos as trajetórias de vidas dessas sujeitas (ANTUNES, 2010).
Oliveira e Meira (2016) revelam que uma de suas interlocutoras acredita que
o envelhecimento inicia-se no momento em que saem de casa, perdem o vínculo com suas
famílias, o que não posso afirmar que se aplica a alguma de minhas interlocutoras.
Jussara, de outra via, expressa não saber definir o que vem a ser o processo
de envelhecimento, uma vez que “cada um envelhece de um jeito, né? Não tem como ser
igual para todo mundo”. Os modos de envelhecer, de acordo com Jussara, podem variar
de pessoa pra pessoa (como também já vimos no excerto de número 17, de Dê Silva),
corroborando com a falta de homogeneidade nos modos de envelhecer entre sujeitas de
um mesmo grupo geracional (OLIVEIRA; MEIRA, 2016). Ainda, envelhecer continua
sendo um processo relacionado à solidão (WEEKS, 1983), pobreza, sofrimento, estigma.
As pesquisas apontam diferenças nos modos de envelhecer no tocante ao
tempo histórico, classe, educação estilo de vida, gênero, profissão, etnia (ESCOBAR et
al, 2017; ANTUNES, 2010; LIMA, 2006; BEAUVOIR, 1970), especialmente gênero e
as diferenças sociais consideradas (MAGALHÃES; SOBRINHO, 2006).
Em adendo, Cunha (2016) informa que mesmo as possibilidades sociais
sendo tão discrepantes, o processo de envelhecimento vivenciado na atualidade muito
difere do mesmo processo se este for comparado ao século passado, levando-nos a
concordar com Jussara ao asseverar que cada pessoa tem uma maneira de envelhecer, e
tais maneiras propiciam maior longevidade à medida que tenhamos recursos financeiros
disponíveis para tal.
Además, mesmo não tendo uma definição na ponta da língua, Jussara associa
a velhice e o processo de envelhecimento à deterioração corporal, descrita por Beauvoir

120
(1970) e assume que seu próprio corpo já sente as dificuldades físicas da idade (“Eu já
sinto umas dores no joelho, nas costas...”)
Essa passagem de tempo, e consequentemente, essa transformação
geracional, é marcada nos corpos das travestis e mulheres trans por meio de dores e outras
limitações em termos de saúde que tornam as vidas mais difíceis (OLIVEIRA; MEIRA,
2016).
Patrícia afirma que “...já é difícil chegar lá, se tiver doença é ainda pior...”,
de maneira a concordar com a premissa que o processo de envelhecimento é precoce,
somado à baixa expectativa de vida (“...já é difícil chegar lá...”), além de associar o
envelhecimento à obtenção de doenças. Jéssica também teme ficar velha e “...ter um
monte de problema de saúde”.
De acordo com Foucault (2008), a sociedade de controle encoraja o discurso
da “qualidade de vida” o qual interdita o envelhecimento. O discurso é tão categórico que
age de modo a dizimar os estigmas de doença e decadência tão comuns por entre os(as)
idosos(as) (ANTUNES, 2010). Com isso, é possível entender porque as pessoas tendem
a associar a velhice às mazelas, dores e outras limitações biológicas.
É relevante acrescentar que as informantes mais novas expressam grande
pavor em ficarem velhas. Jéssica explica que ao envelhecermos “...fica tudo esbagaçado,
cheio de ruga. Perde o glamour, o charme...”, enquanto as colaboradoras mais velhas
enxergam o processo de envelhecimento como natural, mais uma experiência.
Porém, envelhecer e adoecer não é o pior de todos os males. Para algumas
informantes, como Jussara, “...ruim vai ser quando eu não for mais pra pista”.
Mesmo o envelhecimento sendo encarado como um processo que atribui o
troféu de bem afortunada àquelas que conseguem alcança-lo (SIQUEIRA, 2004;
ANTUNES, 2010; OLIVEIRA; MEIRA, 2016), ele também desqualifica mulheres trans
e travestis para o exercício da prostituição, daí o medo que elas tem de envelhecer.

Excerto 21
“Ficar velho é não querer ir pra pista ne? (risos). Não tem vontade de sair. De
fazer nada. Eu gosto de passear. De ir pra pista todo dia... sou bem sapeca... e
num tô velha não”(Jussara, 7 set. 2017).

Excerto 22
“A idade chega, as menina não ganha mais o que ganhava. Ta velha né? As
novinha ganha mais... até a hora que as mais velha para de fazer pista. Aí cê
sabe que elas tá velha” (Jéssica, 20 nov. 2017).

121
Excerto 23
“...eu sempre tive consciência ... e na convivência você vê que algumas peças
do supermercado vão perdendo valor, vão passar a... ser trocada... vai
chegando pecinhas nova...” (Patrícia, 23 mai. 2016 ).

Relação interessante traçada com a velhice e o processo de envelhecimento


de a profissão, principalmente se essa profissão for a prostituição. Antunes (2010)
reconhece que as travestis que não mais conseguem desempenhar o seu papel nas pistas,
já são consideradas velhas, em uniformidade com os relatos percebidos nos excertos 21 e
22 (“Ficar velho é não querer ir pra pista ne? (risos). Não tem vontade de sair. De fazer
nada...”/“A idade chega, as menina não ganha mais o que ganhava. Ta velha né? As
novinha ganha mais... até a hora que as mais velha para de fazer pista. Aí cê sabe que
elas tá velha”).
Em concordância com o exposto, Oliveira e Meira (2016) revelam que
mulheres trans/travestis que chegam a uma idade mais avançada, tornam-se obsoletas e
são eliminadas do mercado sexual, abrindo caminhos para as mais novas ocuparem seus
espaços na prostituição. Primeiro pois as pessoas com mais idade já são cultural, social e
discursivamente desacreditadas (BEAUVOIR, 1970). Segundo pois o corpo velho é visto
como um corpo não mais saudável e, consequentemente, um corpo não sexualmente ativo
(ROHDEN, 2012), daí a relação discursiva do corpo velho como um corpo não favorável
para o trabalho na pista.
E mesmo a população idosa vivendo uma remodelagem em seu
comportamento e modos de vida, rumo à semelhança com atitudes jovens (ANTUNES,
2010), para as interlocutoras da pesquisa o envelhecimento parece estar atrelado à uma
desaceleração no trabalho enquanto profissionais do sexo, conforme os excertos 21, 22 e
23.
Embora Patrícia esteja no grupo geracional das “novinhas” parece entender
bem como ocorre essa substituição de uma mais velha por mais nova (“...e na convivência
você vê que algumas peças do supermercado vão perdendo valor, vão passar a... ser
trocada... vai chegando pecinhas nova...”).
Mas as próprias informantes explicam o porquê de toda essa desvalorização
das mais velhas pelas mais novas. Patrícia faz a metáfora das peças de supermercado para
se referir às travestis e mulheres trans novas e velhas. Ao fixar que as pecinhas novas

122
ganham valor e substituem as pecinhas mais velhas, podemos inferir que isso ocorre em
função dos padrões de beleza e jovialidade carregados pelas mais novas.
Explico: como já vimos anteriormente, a vivência nas ruas é assolada pelas
inúmeras formas de violência que as mulheres trans e travestis são acometidas, fora as
demais violências enfrentadas em seus cotidianos, como por exemplo o afastamento das
famílias, os maus tratos experimentados nos mais diversos contextos sociais, problemas
emocionais acarretados por falta de respeito, alimentação e sono inadequados, falta de
cuidados com o próprio corpo e preocupações quanto a moradia.
Esses e outros fatores são responsáveis por colocarem nossas informantes em
situação de degradação corporal e logo, envelhecimento. Todas essas mudanças
influenciam na jovialidade (envelhecimento precoce, como citei) e na perpetuação da
beleza das meninas.
Oliveira e Meira (2016) garantem que as informantes mais velhas de sua
pesquisa tendem a associar o processo de envelhecimento a decadência física. Contudo,
percebi por entre as minhas interlocutoras que não há diferença se são mais velhas ou
mais novas, todas tendem a entender a velhice enquanto um processo de decadência que
muito influencia na aparência bela.
As autoras supracitadas também asseguram que atualmente as travestis e
mulheres trans têm ao seu dispor inúmeras tecnologias no ramo da estética e beleza,
facilidades as quais não eram acessíveis para as gerações anteriores, o que faz com que
as meninas de hoje sejam muito mais belas e atraentes (OLIVEIRA; MEIRA, 2016).
Sobre o exposto, analisemos os excertos de números 24, 25 e 26, a seguir:

Excerto 24
“Não tem coisa mais feia que ficar velha. Afff. Nem quero olhar no espelho. A
gente fica toda enrugada, feia, nada fica bom. Toda cagada (risos).” (Fabíula,
13 jul. 2018).

Excerto 25
“A velhice chega pra quem deixa chegar. Eu já fiz cinco cirurgias plásticas pra
melhorar a minha aparência, sabe, pra ser uma mulher mais bonita..... vou fazer
de novo. Faço sempre que achar que devo ..... vou ser uma velha linda...
ninguém vai nem dizer que sou velhinha quando chegar a hora.....” (Amanda,
3 out. 2017).

Excerto 26
“Quando a velhice chega a gente não é mais bonita que nem as novinha, né? A
gente não é mais como elas, né? Assim, não fica mais tão bonita...” (Kate, 2
set. 2018).

123
Excerto 27
“...velho começa a ter um monte de problema de saúde. E fica tudo esbagaçado,
cheio de ruga. Perde o glamour, o charme.” (Jéssica, 20 nov. 2017).

Fabíula e Amanda parecem concordar que a velhice lhes causa embaraço. A


diferença entre ambas é que Fabiula pronuncia não querer olhar no espelho quando a
velhice chegar (excerto 24), ao passo que Amanda evidencia que a perda da imagem da
jovialidade só ocorre se não houver o devido cuidado com o corpo, o que nos remete aos
discursos proferidos na Grécia Antiga e Foucault, em Historia da Sexualidade (1988).
Fabíula e Kate também falam a respeito do binarismo feia/bonita ao se
referirem à velhice, dando a entender que o(a) jovem é belo(a) e o(a) idoso(a) é feio.
Jéssica acredita que além de questões de saúde, a velhice está associada a ficar “tudo
esbagaçado, cheio de ruga, feio”, se vinculando a crença de Fabíula e Kate.
O envelhecimento na mulher é discursivamente tido como algo feio, de modo
a atrelar a beleza feminina à jovialidade. Wolf (1992) ilustra que o mito da beleza aleija
o percurso de vida de todas as mulheres, mostrando que as identidades femininas
encontram-se suscetíveis à aprovação de outros. E isso se confirma pelos excertos de
números 24, 26 e 27.
Amanda associa a beleza à jovialidade, mas também confirma que fará o
possível para ser uma “velha linda” de modo quebrar o paradigma da pessoa idosa e feia.
É como se envelhecimento rompesse com a feminilidade (COSTA, 2013) e logo também
rompesse com a atratividade, o glamour e a sedução.
Assim como Costa (2013) percebeu entre as suas informantes, as
colaboradoras deste estudo explicitam que há uma obstinação por atributos físicos que
fomentem a atração e o desejo, especialmente no tocante ao mercado sexual.
Amanda, em seu empenho em disfarçar a velhice por meio de procedimentos
cirúrgicos infere que, diferentemente das demais informantes, a aparência bela faz parte
do envelhecimento, concordando com os preceitos dos cuidados de si expressos por
Foucault (1994, 1988).

124
(IN) CONCLUSÕES

Cheguei à casa da Meire em 2 de setembro de 2018. Eram aproximadamente


16 horas de um domingo extremamente ensolarado. Falei por um tempo com Adriana.
Avistei a Meire e nos cumprimentamos brevemente, e fui para o fundo da casa para
aguardar a “vó”, que estava na cozinha fazendo o “meu café”.
Sentei na grande mesa de madeira com dois bancos compridos no fundo da
casa, de frente para a televisão. Fiquei um tempo observando o peixe que elas colocaram
em um aquário, ao lado da imagem de Iemanjá. “Tem alguma coisa errada com esse
peixe”, soltei. Alguém disse que ele tinha sido pescado na cachoeira no dia anterior e não
ia aguentar mais um dia naquele aquário.
Enquanto isso, quatro meninas brigavam pelo espaço no sofá em frente à
televisão para poderem assistir ao programa do Faustão. Mais adiante estava Kate
arrastando um vaso de plantas grande e limpando o pátio.
De repente uma delas grita: “Bicha! Tá pensando que travesti é bagunça?
Travesti não é bagunça não!”, e todas caíram na gargalhada. Em um sofá que cabiam
quatro pessoas, duas estavam deitadas, impedindo que as outras sentassem.
Ri junto, e, embora o contexto fosse totalmente diferente, lembrei da travesti
Luana Muniz, entrevistada pelo programa Profissão Repórter69, a qual cunhou a frase.
A vó chegou com o meu café e perguntou: “Você acaba hoje?”. Balancei a
cabeça confirmando que sim, e ela soltou: “Então nunca vamos tomar aquela cerveja?”.
Acenei positivamente, e combinei de nos vermos quando entregasse o meu trabalho para
comemorarmos.
Revendo esses e muitos outros dados, registrados no diário de campo e na
minha memória, resgato também os fatos que me colocaram diante de pessoas como a
“vó”, a Adriana e as demais participantes da minha pesquisa.
Em função das minhas atividades enquanto professora universitária de uma
cidade no interior do interior, passei a notar essas mulheres tão fortes, sofridas e

69
O programa Profissão Repórter apresenta reportagens com a aparição de repórteres jovens sob a
supervisão do jornalista Caco Barcelos, na Rede Globo de Televisão. O programa que discute a prostituição
tanto de mulheres cis como de mulheres trans, teve como participante a travesti Luana Muniz que se tornou
conhecida desde então, por ter agredido um de seus clientes. O programa foi ao ar em 25 de maio de 2010.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=G0DVl1Ae5Hw. Acesso em 29 dezembro de 2018.
Luana Muniz faleceu em 06 de maio de 2017, aos 59 anos, em virtude de complicações de uma pneumonia.

125
resistentes no que diz respeito às suas vivências. E ao me aproximar delas, era tanta
informação que um dia acabei percebendo que quase não tinham travestis e mulheres
trans idosas por entre elas.
Desse modo, meu interesse revelou-se em estudar essas sujeitas que
encontravam-se em ambas as categorizações: mulheres trans/travestis e idosas. Os
objetivos com a pesquisa foram: a. compreender como as travestis/mulheres trans
constroem sentidos acerca de si, sejam elas idosas ou não; b. entender como as
travestis/mulheres trans percebem/significam o seu processo de envelhecimento; c.
assimilar como as travestis/mulheres trans articulam as noções de gênero e
envelhecimento na sua construção identitária;
Nesse ínterim, as perguntas de pesquisa que auxiliaram no alcance dos
objetivos foram:
1. Como as travestis/mulheres trans significam o seu processo de
envelhecimento?

2. De que maneira as violências sofridas pelas travestis/mulheres trans em


suas trajetórias são determinantes/marcadores do início do seu processo
de envelhecimento?

Portanto, aqui nas (in) conclusões, procuro responder as perguntas de


pesquisa que motivaram o estudo de maneira a elaborar um balanço dessa jornada de
aproximadamente três anos de duração. Discuto também a minha aprendizagem enquanto
pesquisadora e ser humano, as limitações da pesquisa, e as possíveis contribuições para
pesquisas futuras.
A princípio, por ser simpatizante das discussões transcorridas pelo viés da
análise do discurso, em especial por Michel Foucault, imaginei em realizar esse trabalho
com o auxilio da análise arque-genealógica desse filósofo, mas me dei conta de que não
dispunha de tempo hábil para realizar as entrevistas e desenvolver a análise por esse
ponto de vista, bem como seria necessário um número maior de participantes.
Além disso, ao observar as pesquisas, videos, sites, blogs e até mesmo
conversando com as meninas da minha pesquisa notei que estava lidando com uma
geração de travestis um pouco diferente da geração das travestis dos shows, do carnaval

126
do Rio de Janeiro, as consideradas travestis das 1ª e 2ª gerações, como nos trabalhos de
Siqueira (2004) e Costa (2013).
Entendi também que não estava tendo acesso apenas a travestis, mas a
sujeitas que se autodenominavam mulheres trans, contrariando fatos que eu havia lido e
aprendido com autores como Hélio Silva (1993), Don Kulick (2008), Monica Siqueira
(2004), Benedetti (2005), entre outros. Compreendi que seria muito mais relevante e mais
digno valorizar a visão das mulheres trans e travestis que encontram-se na academia,
como Rodovalho (2017), Lanz (2017), Oliveira (2017), Alexadre (2017), Silva (2015),
entre outras, ao abordar temas recorrentes em suas vidas, definir termos e realizar as
análises.
É claro, contei com o suporte de Foucault (2008, 2007, 1996, 1994, 1988,
1987) em alguns momentos, e de igual modo com algumas discussões de Butler (2003,
1993) no tocante à Teoria Queer, para me auxiliarem a compreender as narrativas das
minhas informantes, construídas no decorrer dessa caminhada, em comparação com os
trabalhos de Leite Jr. (2017), Casteleira (2014), Costa (2013), Nogueira (2013), Antunes
(2010), Siqueira (2004, 2012), entre outros.
Todo esse direcionamento contribuiu para me guiar pela investigação quanto
a possibilidade de entender as formas de envelhecimento das travestis e mulheres trans
que se dispuseram a participar da pesquisa.
Como categorias encontradas nas narrativas das informantes, decidi por
dividi-las em dois grupos maiores com subcategorias oriundas de seus relatos. A primeira
categoria foi a violência e a segunda envelhecimento;
Em violência, notei que, independente das idades das informantes, todas
estão cotidianamente expostas a situações de violência física, verbal, psicológica, não
apenas nas ruas – seu lócus de atuação profissional – mas também em locais públicos,
especialmente os de atendimento à saúde pública.
E diante de uma infinidade de violências e adversidades, observei que é
humanamente impossível gozar de um processo de envelhecimento semelhante ao
processo experimentado por pessoas cisgêneras. Seu processo de envelhecimento, ao
contrário do que muitos pensam, não é marcado pela idade cronológica, ou pelos anos
vividos por elas, mas sim pelas barreiras vencidas.

127
Envelhecer na condição de pessoa transgênera consiste em uma dupla
marginalização e estigmatização (SIQUEIRA, 2004), visto que, primeiramente, não são
todas que conseguem envelhecer. Segundo, estar na velhice já implica sofrer
preconceitos e discriminações, tanto da sociedade como por parte das travestis/mulheres
trans mais jovens. As categorias velhice e gênero, juntas, tornam-se implacáveis uma vez
que o discurso social infere que a pessoa velha, é feia, inútil, ultrapassada, o que ocasiona
algumas disputas e rixas por entre as gerações mais novas e mais velhas.
Em outras palavras, essa pesquisa mostra um contraste entre duas categorias
geracionais – construídas em conformidade com a cultura e com os discursos e práticas
sociais – “as tias ou vós” versus as mais “novinhas”. As primeiras tem seus relatos
delineados estritamente pelas violências enfrentadas em um passado, compartilhado com
as mais novas, o fato de chegarem à maturidade, sobrevivido às violências e dificuldades
de sua época, ostentando, assim uma posição de privilégio, status e respeito. As novinhas
não ostentam status nenhum de respeito e destaque em seus grupos, mas menosprezam
as mais velhas por não serem tão belas quanto elas. A velhice é encarada como um fator
que além de degradar o corpo e torná-lo feio, é um fator que seleciona as oportunidades
de trabalho na pista.
A menção à pista, ou à prostituição em si, é recorrente, mesmo tendo muitas
delas afirmado que exercem outras profissões. A prostituição configura-se, conforme os
relatos, como parte essencial da construção identitária de muitas delas e se torna uma
alternativa palpável de subsistência, diante de uma sociedade que se nega formalmente
empregar essa parcela da população. E, possivelmente o empenho das interlocutoras em
outras profissões pode sinalizar o quanto elas se almejam chegar à velhice, mudando as
estatisticas.
Notei que, por mais que em suas narrativas brevemente mencionem o medo
que elas tem do vírus HIV/AIDS, essa temática não toma uma projeção tão ampliada
como nos trabalhos de Antunes (2010), Siqueira (2004), Costa (2013), Pelúcio (2007),
provavelmente pois o universo da minha pesquisa foi composto, em sua maioria, por
mulheres trans e travestis mais jovens, pertencentes a uma geração em que as
informações chegam de modo muito mais fácil e rápido, além dos programas de
distribuição de preservativos gratuitamente, que não só distribui mas também informa
sobre os riscos de contaminação e como previni-la.

128
Ainda, ao contrário do que muitos podem imaginar, o fato de não
mencionarem a temática não implica em aversão ou temor da estigmatização, mas um
reconhecimento da importancia de se cuidarem por meio do uso de preservativos e
conhecimento de alternativas de cuidado com a saúde, como a profilaxia quando em
casos de estupro.
Diante do exposto, no tocante a primeira pergunta de pesquisa, penso que as
travestis/mulheres trans dessa investigação entendem o processo de envelhecimento a
partir de dois vieses opostos. O primeiro deles aponta o envelhecimento como um período
de dor, carregado de dificuldades provenientes das limitações físicas que a fase lhes
impõe, especialmente pois há associação da velhice com a falta de beleza. É nesse
momento em que aquelas que subsistem da prostituição começam a perceber que os
espaços de trabalho que ocupam são outros, a frequência e o número de clientes é
reduzido, e a remuneração recebida é inferior, visto que não são mais mulheres tão
atraentes como outrora, em concordância com pesquisas como a de Siqueira (2004),
Costa (2013), Castaleira (2014), Oliveira e Meira (2016), entre outros.
O segundo viés entende a categorização geracional velhice enquanto o
período em que elas vão se aproximar de suas famílias, ou se engajar em suas
comunidades com o sentimento de família, cuidado de si, realização de atividades mais
domésticas, como Adriana já havia anunciado no início da investigação. Além de ser um
período em que elas desejam colocar em prática todos os seus sonhos, como abrir o
próprio negócio.
Quanto a segunda pergunta de pesquisa, definitivamente posso declarar que
as inúmeras violências sofridas pelas mulheres trans/travestis são determinantes para o
início de seu processo de envelhecimento. Como a maioria delas é profissional do sexo,
ou pelo menos já teve uma breve experiência na protituição, o aprendizado nas ruas é
acentuado pelas diversas formas de violência em seus cotidianos, como os maus tratos
em vários contextos de vivência social e de saúde, problemas emocionais, financeiros,
de moradia, de maneira a coloca-las em situação de degradação corporal e consequente,
envelhecimento. Todas essas mudanças influenciam na jovialidade (envelhecimento
precoce, como citei) e na perpetuação da beleza das informantes.
Entretanto, devo confessar que a dificuldade inicial para a realização desta
pesquisa foi encontrar sujeitas dispostas a participar. É claro que entendo que as pessoas

129
no mundo atribulado em que vivemos são ocupadas e nem todas podem dispor de tempo
para participar. Mas também entendi que a questão da idade é um fator extremamente
flutuante entre as travestis e mulheres trans.
No início da pesquisa, estipulei que entrevistaria mulheres trans e travestis
com quarenta anos ou mais, contudo, percebi que meu campo de opções se tornava muito
restrito pois pouquíssimas sujeitas assumiam ter a idade mínima de quarenta anos.
Gabriela da Silva, por exemplo, tem cinquenta anos desde janeiro de 2017,
quando nos falamos pela primeira vez. A própria Gabriela me explicou que falar de
velhice e envelhecimento afasta algumas informantes principalmente pois os conceitos
de velhice e envelhecimento se contrapoem ao glamour, luxo e jovialidade que as
mulheres trans e travestis tanto prezam. (as categorias etárias são cultural e
discursivamente definidas de acordo com a aparencia ou com a idade, como já discutido
anteriormente).
Contudo, acredito poder, com este trabalho, contribuir para as discussões
acerca de gênero e velhice, especialmente no tocante às políticas públicas que favoreçam
essa população em processo de envelhecimento. Soma-se a tal propósito a necessidade
de combatermos a violência por elas vivenciada, por meio de ações positivas em nossos
locais de atuação, como a escola e a família, especialmente em tempos tão sombrios como
os que vivemos, tempos fortalecidos por um dito grupo político “renovado” e um governo
federal que pouco se preocupa com o bem-estar e direitos de sujeitas que rompem com a
lógica binária de homem/mulher, masculino/feminino.
Aliás, a atual conjuntura política do país parece estruturar-se de maneira a
combater e exterminar todo e qualquer grupo social que se constitua ideologicamente e
discursivamente diferente dos preceitos impostos como os únicos normais.

Ainda, acredito que esse trabalho pode agregar algumas implicações para a
área dos Estudos da Linguagem e gênero uma vez que se inscreve em uma vertente de
ordem transgressora e crítica (MOITA LOPES, 2006), de caráter multi/inter-in-
disciplinar de maneira a promover práticas transaberes (FABRÍCIO, 2017), observando
as fronteiras normativas relativas a gêneros, sexualidades, classes sociais e raças,
questionando crenças arraigadas, comunidades coesas e corporeidades idealizadas
(FABRÍCIO, 2017) para ultrapassar fronteiras estabelecidas discursivamente.

130
Precisamos enfocar mais plenamente nas mulheres trans e travestis, ouvi-las
com mais atenção, não apenas no que diz respeito às questões de saúde. Em várias
conversas informais com Adriana, ela mencionou que das trinta mulheres trans e travestis
que vivem na casa da Meire, todas – com exceção de Adriana – não possuem o ensino
médio completo, o que nos remete para a importância de discutirmos mais sobre a
formação escolar das minorias, em especial, das minorias LGBT.
O término de uma tese não deixa de ser angustiante. Foram intensas guerras
travadas para que eu chegasse até esse ultimo capítulo. A primeira dessas guerras diz
respeito ao tema estudado o que por si já representa um desafio muito grande. Ser uma
pessoa cisgênera que pesquisa uma população transgênera não é fácil, visto de quaisquer
um dos pontos de vista: transgênero ou cisgênero.
Do ponto de vista cisgênero, gastei muito tempo tentando convencer algumas
pessoas, cis e trans, de eu estava observando cuidadosamente sujeitas as quais tem seus
direitos surpimidos por serem a materialização de um grito de liberdade contra um
discurso hetero-cisnormativo que tanto as violenta e oprime.
Recebi olhares e comentários desconfortáveis por parte pessoas trans por ser
uma sujeita que falava de um local de aprendiz e, igualmente, mais uma mulher nesse
tecido feminino que sofre o machismo, o preconceito, a discriminação, a violência.
Nunca foi minha intenção falar em nome da população trans ou dar voz a essa população.
Sempre posicionei-me como mais uma voz que se une à luta e almeja ecoar por lugares
ainda mais distantes.
Perdi pessoas que acreditava serem meus amigos e minhas amigas pela
escolha do tema, principalmente pois, ao me posicionar enquanto pesquisadora foi
impossível concordar com as crenças políticas e conceitos morais que eles e elas tanto
defendiam. Não há como conviver e apoiar um grupo de pessoas que apoia o extermínio
de seres humanos, ou que sente que a opressão sofrida por mulheres trans e travestis não
passa de um “mimimi”.
As críticas à escolha do tema também foram diversas. Algumas pessoas não
conseguiam enxergar a cientificidade do assunto, enquanto outras o consideravam
superficial. Mas penso que uma pesquisa dessa natureza tem sua importânci fundamental
na transformação que causa nos pesquisadores. E é essa a minha maior conquista.

131
Não tenho a mínima intenção em militar como muitas mulheres trans e
travestis admiráveis pois creio que a minha militância se dá diariamente nos espaços que
ocupo: na minha comunidade familiar, com meus amigos e, principalmente, em sala de
aula, junto aos inúmeros estudantes que encontro semanalmente.
A corrida para finalizar o trabalho foi outro aspecto que me consumiu. Uma
vez que soube que seria nomeada para o concurso que tanto almejava, e que para tomar
posse precisava do título de doutora, passei a trabalhar de modo exaustivo sobre a
pesquisa, tendo que conciliar a minha atuação profissional, o meu papel de esposa, de
mãe e ainda, o papel de filha que teve o pai por 80 dias na UTI. Foi humanamente
impossível ter foco em muitos momentos.
Mas diante de alguns percalços, o trabalho foi demasiado estimulante. O ato
de desenvolver uma pesquisa qualitativo-interpretativista tem como mérito deixar
interlocutoras e pesquisadora em uma relação mais confortável e mais próxima, na qual
não há interpretações idealizadas, certas ou erradas, mas expressões diferentes sobre um
mesmo tópico. Há uma aproximação de cumplicidade, entre seres humanos. Passamos a
ver umas com os olhos das outras.
E, finalmente, testemunhar o cotidiano das meninas me tornou uma pessoa
muito mais empática, mais paciente e observadora. Percebi que, inconscientemente, antes
da pesquisa, reproduzia discursos discriminatórios, bem como notei que não
compreendia mulheres trans e travestis, no início da pesquisa, como variações de gênero
e sexualidade normais, o que me impedia de ser capaz de incluí-las na lógica binária que
eu acreditava ser a natural.

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