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INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE
LINGUAGEM
CUIABÁ-MT
2019
1
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ANA PAOLA DE SOZA LIMA
UFMT
2019
NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS:
NARRATIVAS DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS
SOBRE O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE
LINGUAGEM
CUIABÁ-MT
2019
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ANA PAOLA DE SOUZA LIMA
Cuiabá-MT
2019
4
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.
Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
5
6
Dedico este trabalho a todas as mulheres trans e travestis
que lutam diariamente pela construção de seus corpos
e suas vidas em uma sociedade excludente, que se nega
a entender que anormal é a falta de respeito ao próximo.
7
AGRADECIMENTOS
À minha amiga e irmã, Perla Haydee da Silva, que fez o meu trilhar mais leve, mais
divertido e suave, sempre com dicas, comentários, risadas, conselhos e comida, muita
comida!
Às Profas. Dra. Amara Moira e Dra. Rubra Araujo, aos Profs. Dr. Renilson Ribeiro e Dr.
Luís Mendes pelas importantes e essenciais contribuições em meus exames de
qualificação. Agradeço a vocês também pela disponibilidade em atender às minhas
necessidades e por terem aceito o convite. Vocês foram de uma delicadeza, atenção,
minúcia que só fizeram de mim uma pessoa melhor.
8
Ao Centro de Línguas-CELIG e a todos os seus professores que me apoiaram e
entenderam a minha correria em diversos momentos. A todos os meus alunos do CELIG
pela paciência com uma professora que finalizava a sua tese.
A Ricardo Hakme Romano, meu amigo, meu amante, meu parceiro, meu amor. Minha
gratidão pelo seu apoio incondicional, sua compreensão, seu suporte sem
questionamentos, por me ouvir falar de coisas que são totalmente diferentes da sua
atuação profissional, por participar comigo de coisas que estavam além da sua
compreensão e, principalmente, por ser tão pronto para ouvir, aprender e questionar. Você
está se tornando um doutor junto comigo. Obrigada pelo seu amor, companheirismo e por
ter constituído uma família ao meu lado.
À minha borboleta Eloísa, por me ensinar que nada melhor que um sorriso, um abraço
apertado e um beijo estalado para recomeçar.
Aos meus pais, Regina e José, pelo suporte financeiro. Agradeço também por terem
desaprovado o tema e por me descredibilizarem enquanto sujeita que pensa e toma
decisões. Vocês foram a força mecânica que fez minha máquina trabalhar para chegar até
aqui.
À minha tia Sandra Regina de Araujo, a vó Oca, minha segunda mãe, que foi tão querida
com minha filha nos momentos em que precisei me ausentar e não tinha quem cuidasse
dela. Que sempre nos encheu de pipoca com guaraná, fez todas as minhas vontades e não
mediu esforços para me apresentar todas as travestis que encontrava na rua e falar da
minha pesquisa.
Agradeço também à minha avó Letícia Gonzaga de Araujo (in memorian), falecida
durante a escrita da minha tese, e que tanto me motivou para que eu alcançasse os meus
objetivos.
À minha amada avó Wandi de Lira Lima (in memorian) que também me deixou nos
últimos meses da tese. Obrigada pelo seu amor incondicional e pela fé que tinha em mim.
À minha irmã de alma, Alessandra Calçada Aguiar, e à sua companheira Tatiany Aguiar
Calçada, que tanto me apoiaram, incentivaram, ouviram, sugeriram e me divertiram no
decorrer deste árduo processo. Amo vocês para sempre.
9
Aos melhores amigos que alguém pode ter: Thiago Itacaramby e Alessandra Moreira
Itacaramby, minha gratidão e meu afeto eternos por todos os momentos em que me
acolheram, me serviram “pão seco”, uma cama confortável e me ensinaram tanto sobre a
vida. Não há palavras para expressar o quanto amo vocês.
Minha gratidão à minha grande amiga Jordana Lenhardt por ser sempre tão presente e
espirituosa, com resposta para tudo, olhos nas costas e ouvidos sempre a postos. Penso
que Deus foi muito generoso comigo. Obrigada, amiga.
Meu agradecimento especial a George Santana, a Twigue Vogue, a minha drag favorita
que me acompanhou pela estrada BR 163, sempre me atualizou do mundo trans, com
dicas de vocabulário, sugestões de livros e, acima de tudo, me apresentou algumas das
interlocutoras que fazem parte desta pesquisa.
Várias pessoas contribuíram para que minha ida ao doutorado acontecesse. Meu
agradecimento especial à profa. Ma. Paula Sampaio, do departamento de História da
Universidade Federal de Mato Grosso, Câmpus de Rondonópolis, que me convidou para
participar de seu grupo de estudos Gênero e Cidadania, grupo este que me abriu os olhos
para inúmeras questões sociais e de gênero existentes em Rondonópolis. Agradeço
também ao prof. Dr. Aguinaldo Rodrigues Gomes, do departamento de História, hoje na
Universidade de Uberlândia, que prontamente aceitou ler o meu pré-projeto e tão
carinhosamente ofereceu sugestões de leituras e redação.
Ao atencioso Prof. Dr. Neil Franco pelas valiosas sugestões e por intermediar algumas
entrevistas, sempre muito disposto a me ajudar.
À minha querida colega Profa. Dra. Julma Vilarinho Borelli pelo acolhimento, carinho,
paciência e sorriso estampado no rosto, nos momentos finais e mais difíceis desta tese.
Ao meu querido amigo Jaelyton Campos. Você é indescritível. Meu agradecimento por
todas as sugestões, todos os prints de conversas de grupos do Whatsapp dos quais eu não
podia participar. Muito obrigada por me mostrar caminhos, me indicar pessoas, sugerir
reflexões. Não há como me esquecer de todos os vídeos que você me encaminhava e das
risadas que demos juntos. Você está para sempre no meu coração. Para sempre.
10
A Adriana Liário que desde o início me acolheu e me colocou “dentro da sua casa”. Meu
agradecimento pelo carinho, atenção, respeito e por ter aberto portas para que eu
realizasse minha pesquisa dentro da sua comunidade.
Às travestis Dê Silva e Bruno do Prado Alexandre. Vocês são demais. Não há palavras
para descrever a admiração que tenho por vocês na luta por uma sociedade mais
igualitária.
Uma pesquisa qualitativa acontece a partir do momento em que pessoas estão dispostas a
partilhar. Sendo assim, esta pesquisa não existiria sem aquelas que me cederam suas
histórias, sua atenção e seu tempo no intuito de me auxiliar a entender suas vivências.
Meu eterno agradecimento a todas as mulheres trans e travestis que colaboraram tão
grandemente com o trabalho.
À grande amiga que ganhei de presente no decorrer da pesquisa, Sara Wagner York.
Muito obrigada pelos abraços virtuais, histórias, vivências, carinho.
À Profa. Dra. Simone Ávila pelos insights, relatos, pelas dicas preciosas advindas de
conversas inocentes regadas de muito carinho, respeito e pitadas de cigarro.
11
Bordando a vida
A agulha é o tempo;
Que costurou esta história,
Tão rápida como o vento;
Remendando as memórias.
Da lágrima ao sorriso;
Da dor à esperança;
vou escrevendo o meu livro;
de amor e de lembranças.
Paula Bennet
12
RESUMO
13
ABSTRACT
The experiences of trans women and transvestites trigger a series of analysis about the
gender binarism male/female, since their materialization occurs through the construction
of an image which distorts the image of femininity imposed by the hetero-cis-normative
discourse. Moreover, the age-old generational category, likewise inserts itself in a field
undermined by discourses guided by other binarisms as healthy/harmful;
worthy/unworthy; right/wrong; beautiful/ugly, youth/elderly. This doctoral research,
therefore, aims to analyze narratives about the aging process of trans women and
transvestites, with the objectives of: a) understand how travestites/trans women construct
meanings about themselves, whether they are elderly or not; b) understand how
travestites/trans women perceive/signify their aging process; c) assimilate how
travestites/trans women articulate the notions of gender and aging in their identity
construction. The questions that guided this study were: 1. How do travestites/trans
women mean their aging process? and, 2. In what ways do the violence suffered by
travestites/trans women, in their trajectories, determine the markers of the onset of their
aging process? For that, I used qualitative-interpretative research (FLICK, 2009, KING;
HORROCKS, 2010; DENZIN; LINCOLN, 2006) since it does not constitute another
binarism - right / wrong, but it supports in a given context from the lens of a given
researcher. The narrative interview was the main tool, organized as open questions. The
results show the aging process of trans women and travestities is not based on a
chronological age, and also, it suffers influence of a variety of manners of violence faced
by them.
14
RESUMEN
Las vivencias de mujeres trans y travestis desencadenan una serie de análisis acerca del
binarismo de género hombre / mujer, una vez que su materialización ocurre por medio de
la construcción de una imagen que desentona de la imagen de la feminidad impuesta por
el discurso hetero-cis-normativo. Asimismo, la categoría generacional vejez, igualmente,
se inserta en un campo minado por discursos orientados por binarismos otros como sano
/ perjudicial; digno / indigno; correcto / incorrecto; bonito / feo. Esta investigación de
doctorado, por lo tanto, busca analizar narrativas acerca del proceso de envejecimiento
de mujeres trans y travestis, con los objetivos de a) comprender cómo las travestis /
mujeres trans construyen sentidos acerca de sí, sean ancianas o no; b) entender cómo las
mujeres trans / travestis perciben / significan su proceso de envejecimiento; c) asimilarse
como las mujeres trans /travestis articulan las nociones de género y envejecimiento en su
construcción identitaria. Las preguntas que guiaron este estudio fueron: 1. ¿Cómo las
travestis / mujeres trans significan su proceso de envejecimiento?; y 2. ¿De qué manera
las violencias sufridas por las travestis / mujeres trans en sus trayectorias son
determinantes / marcadores del inicio de su proceso de envejecimiento? Por lo tanto,
renuncié la investigación cualitativa-interpretativista (FLICK, 2009; KING;
HORROCKS, 2010; DENZIN; LINCOLN, 2006), una vez que no se constituye en otro
binarismo, correcto / equivocado, pero se apoya en la lectura de un determinado contexto
a partir de las lentes de un investigador. El cuestionario tuvo por delimitador la entrevista
narrativa, por medio de preguntas abiertas. Los resultados indican que el proceso de
envejecimiento no se fija a una edad cronológica, de igual modo, sufre influencias de las
innumerables formas de violencia enfrentadas por las mujeres trans y travestis en las
calles.
15
SUMÁRIO
Os Primeiros Passos 17
REFERÊNCIAS 133
16
Os Primeiros Passos
Colorir
Faltará tinta
No dia que o céu for livre
Pra todos serem o que são
Cobertos pelo sol, sem nenhum tipo de opressão
Faltará nomes
Pra descrever o mundo sem as misérias
O que sentimos, o que nos tornamos
O novo ser sem medo de viver
Faltará a falta que nos entristece
Que hoje enche o peito de vazio e fumaça
Não faltará amor, não faltará sonhos
O novo mundo se abrirá para o futuro
Onde o presente dominará o passado
E nossos corações enfim serão salvos
Virgínia Guitzel
D
esfile de 7 de setembro de 2017: encostei em uma árvore, para me
proteger do sol ao lado da “Rita Lee”, ou “a vó”, como é
conhecida uma das travestis1 mais velhas da casa da Meire2 –
pouco mais de 50 anos. Trocamos algumas palavras enquanto aguardávamos o restante
do grupo chegar e podermos nos organizar para nossa entrada na avenida. Acendemos
um cigarro e fitei as demais meninas3. Corpos besuntados de sexualidade, seios fartos,
glúteos avantajados, maquiagem retocada, cabelos longos e escovados, unhas feitas,
saltos altos.
1
A Rita Lee é o apelido da vó, uma das travestis mais velhas da casa onde mora. No decorrer da pesquisa,
ela aparece como Jussara, um nome fictício, pois a mesma me pediu que seu nome verdadeiro não
aparecesse por já ter trabalhado com pessoas conhecidas na cidade de Rondonópolis-MT.
2
A casa da Meire, nome fictício, é uma casa localizada em Rondonópolis que abriga aproximadamente
trinta mulheres trans e travestis, oriundas de várias regiões do país, que passam pela cidade em busca de
emprego, tratamento de saúde, ou como visitantes, e acabam ficando por não terem um local seguro para ir
e se fixar. Meire, autodenominada travesti, possui mais de cinquenta anos, porém não aceitou participar da
pesquisa.
3
Percebi que na casa da Meire as travestis e mulheres trans, em alguns momentos, se chamam de meninas.
Embora o termo possa soar infantil, optei por utilizá-lo em alguns momentos, de modo a expressar o meu
carinho por elas.
4
Bichas é um termo pejorativo para definir pessoas gays. Contudo, é recorrente ouvi-las chamar umas às
outras de bichas, para expressar, intimidade, ou para também expressar desgosto. A entonação define o
sentido.
17
ousadia já tinham conseguido a atenção dos erês5 da escola que entraria antes de nós na
avenida. Trocavam olhares, sorrisos, flertes. Mas, o que mais me chamava a atenção era
a satisfação estampada em seus rostos, afinal, não é habitual que elas andem pelas ruas
da cidade em plena luz do dia.
Percebia durante as visitas às escolas que havia um grupo que ficava sempre
passeando por entre os corredores, ou em visitas à direção, por não se adequar às normas
de conduta exigidas pelas escolas (LOURO, 1999). Esse era o grupo LGBT7, naquelas
escolas representadas pelas travestis, trans, gays e lésbicas.
5
Causar, ousadia e erês também são termos do bajubá, que significam chamar a atenção, destemor, garotos
jovens/adolescentes, respectivamente.
6
Tomando a noção foucaultiana de discurso, temos que este consiste em uma interpretação produzida pela
realidade por meio da cultura (FOUCAULT, 2008), de modo a construir conhecimento, incluir/excluir
sujeitos(as), (re)produzir relações de poder e definir sujeitos(as) em uma dada sociedade (FOUCAULT,
2008, 2007, 1996).
7
Antigamente, a sigla comum para se referir à parcela da população não heterossexual era GLS, ou seja,
gays, lésbicas e simpatizantes. Há alguns anos, a sigla passou a ser LGBT, isto é, lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais, com o L maiúsculo no início da sigla de modo a apontar para a desigualdade de
gênero que diferencia homossexuais femininos e masculinos. Muitos movimentos sociais e entidades
governamentais, em todos os âmbitos da federação, fazem uso da sigla LGBT, por isso minha escolha em
adotá-lo neste trabalho. Contudo, vale lembrar que internacionalmente a sigla é LGBTI, para englobar as
pessoas intersex. As variações LGBTT, LGBTTI, LGBT+ e LGBTTQI também são encontradas.
Disponível em: http://desacato.info/lgbt-lgbti-lgbtq-ou-o-que/. Acesso em: 30 jan. 2018.
18
alunos só queriam “chamar a atenção dos demais colegas”. Entendi que os professores
esperavam destes aprendizes o “corpo escolarizado”, disciplinado pela escola de modo a
expressar e se comportar silenciosamente, seguindo um modelo de conduta, de fala e de
gesticulação adestrado para as tarefas intelectuais (LOURO, 2000, p. 21-22).
8
Para Anna Paula Vencato (2002), Drag Queens são homens – não necessariamente homossexuais – que
se transvestem de mulheres, não com o intuito de se parecerem com elas, mas como uma reinvenção caricata
delas, contudo sem o tom de deboche. São feitas de maquiagem, texto, modos de ser e de estar,
performances, dublagens, sonhos, fantasias e desejos.
19
amiga. Ele iria intermediar o primeiro contato. Assim conheci Amanda9, mesmo não
tendo tido o tempo hábil de realizar a entrevista piloto.
Porém, antes de partir, intermediou uma conversa com sua amiga Patrícia10,
a qual seria a primeira informante dessa pesquisa em maio de 2016, após a aprovação de
meu projeto de pesquisa para o doutorado.
9
Nome fictício. Muitos nomes mencionados neste texto não são os nomes reais das participantes que
colaboraram tanto com os meus primeiros passos quanto na construção das narrativas que apresento no
decorrer da pesquisa. Em alguns casos, não obtive a autorização escrita para a divulgação de seus nomes
reais, ou elas mesmas pediram que seus nomes não fossem evidenciados.
10
Nome fictício.
11
O termo “saída do armário” faz referência ao início da transição, da construção da corporeidade, da
identidade que se encontrava aprisionada, escondida. O termo também é utilizado por homossexuais
femininos e masculinos para expressar o momento em que suas orientações são “assumidas” perante a
família, amigos, e/ou sociedade. Vale acrescentar que o termo, por vezes, é reprovado por algumas pessoas
LGBTs.
20
A princípio, isso me fez refletir profundamente acerca da minha própria
identidade, principalmente considerando-se minha impressão inicial de que ser cisgênera
não era uma coisa muito boa, quando expresso por Patrícia.
A esse respeito, a própria Amara Moira argumenta que ser cis é algo tão
naturalizado que sequer pensamos em categorizar (RODOVALHO, 2017). Em adendo, a
autora nos revela que a identidade cisgênera parece estar tão normalizada
discursivamente, que não pensamos sobre a existência concreta do(a) sujeito(a) trans, de
modo a não nos preocuparmos com a categorização do termo cisgênero.
Olhando para os dados deste trabalho e para as notas de campo, ouso discorrer
acerca dessa distinção identitária, que também considero política, visto que a pessoa
cis/cisgênera não precisa legitimar o seu gênero e/ou sua identidade, ao contrário do(a)
sujeito(a) transgênero(a). Apreendi que pessoas cisgêneras já usufruem plenamente de
privilégios na sociedade em que vivemos.
21
De maneira extremamente reducionista, pessoas cisgêneras são aquelas que
se encontram em condições de aceitabilidade com o seu sexo biológico e com o gênero
com o qual foram designadas em seus nascimentos. Para as cisgêneras, a biologia é
responsável pela atribuição dos gêneros, fator que é legitimado pelos discursos psico-bio-
médico, jurídico e social.
Creio que o xis da questão encontra-se no fato que pessoas cisgêneras, que se
dizem totalmente confortáveis com seus sexos biológicos e denominações de gênero,
submetem pessoas autodenominadas transgêneras a uma colonização no que diz respeito
aos seus papéis de gênero, como se os corpos transgêneros fossem uma cópia, uma
releitura de corpos cisgêneros, conforme pontuam os discursos médicos, psiquiátricos,
jurídicos e sociais. Ainda para pessoas cisgêneras, os corpos trans precisam encontrar-se
dentro de certa passabilidade12 para que sejam aceitos, construídos em conformidade com
os moldes e contornos dos corpos da matriz cisgênera.
Além disso, todas as definições que havia trazido foram construídas por
pessoas cisgêneras, que, à época, julguei serem pessoas academicamente legitimadas para
discorrer acerca do assunto, mas não percebia como elas objetificavam as pessoas
transgêneras. Sendo assim, minha alternativa foi utilizar definições encontradas em textos
escritos por pessoas transgêneras.
12
O termo passabilidade é por vezes usado para referir-se ao quanto um homem ou uma mulher trans se
passam por um homem ou mulher cis, ou seja, é quando a pessoa trans é lida socialmente como uma pessoa
cis, de maneira a invisibilizar a transgeneridade. Embora o termo passabilidade ainda seja muito utilizado,
ele vem sendo trocado pela expressão “leitura social”.
22
termos cisgeneridade e cisgênero(a), entendo que estes consistem em uma categorização
excludente e que faz uso de um pretenso poder legitimado pelos discursos biomédico,
jurídico e social. O intuito aqui é discutir a transgeneridade não em oposição à
cisgeneridade, mas como uma categoria identitária descrita por pessoas transgêneras. Para
tal, utilizo as definições de transgêneros por transgêneros.
13
Disponível em: http://leticialanz.blogspot.com/. Acesso em: 25 out. 2018.
23
condição de mulher cisgênera e que acreditava no seu próprio discurso de legitimidade,
denominava as minhas interlocutoras com base nas conceituações de discursos de
pesquisadores cisgêneros.
Patrícia foi de suma importância para que eu atentasse para essa questão.
Autodenominar-se transgênera me levou à reflexão de que há inúmeras outras identidades
e que não sou eu quem as denomina ou nomeia. Daí o uso de mulheres trans e travestis14
no título deste trabalho: valorizar e respeitar todas as identidades das mulheres que
gentilmente concordaram em contribuir com esta investigação.
14
Em conformidade com Jesus (2012), mulheres trans e travestis são identidades incluídas em um leque
maior, isto é, são transgêneras. As minhas interlocutoras definiram mulheres trans ou transexuais como
aquelas que não se sentem confortáveis com a sua genitália, embora nem todas sintam o desejo de
submeterem-se ao processo de cirurgia de redesignação sexual. Outras afirmaram que travestis são
mulheres de peito e “pau”, mulheres mais completas. É claro que qualquer generalização pode ser
enquadrada como uma verdade fascista (NEVES, 2015), imposta pelos discursos psicomédicos. Não ousei
incluir definições sobre mulheres trans e travestis aqui também por acreditar que as descrições encontradas
são, de certo modo, perigosas e tendem à generalização e ao reducionismo e apagamento de suas lutas.
24
professoras transexuais e as travestis, diferentemente da imagem da convencional
professora cisgênera, branca, heterossexual, já trazem a sexualidade15 latente em seus
corpos, de modo a causar desconfortos e questionamentos acerca do “real” papel da escola
e do preconceito velado que outros professores insistem em invisibilizar.
Sobre esse tema, Almeida (2014) realizou pesquisa apresentando dados muito
relevantes no tocante à entrada das travestis no mercado de trabalho. O autor fez um
levantamento com as travestis que já se encontravam em sala de aula, atuando como
docentes, e investigou possíveis indícios de desestabilização que estas docentes travestis
e transgêneras provocavam nas escolas em que atuavam, desencadeando,
consequentemente, novas formas de ensino e aprendizagem no que diz respeito à
discussão sobre gênero e sexualidades em seus ambientes de atuação.
15
Durante o exame de qualificação, fui questionada a respeito do sentido utilizado da palavra sexualidade
neste parágrafo. Acredito que Reidel (2013) referia-se à sensualidade impregnada nos corpos das
professoras participantes de sua investigação.
25
do ambiente escolar, bem como atribuir sentidos às alterações subjetivas vivenciadas em
seus corpos. Nesse sentido, observa que os mecanismos de segregação e normatização
permanecem no cotidiano escolar, mesmo havendo indícios de vozes de resistência
ecoando nas escolas e currículos escolares.
Num outro estudo, Megg Rayara Gomes de Oliveira (2017), em sua tese de
doutoramento, averigua as experiências vivenciadas por sujeitos identificados em sua
pesquisa como “gays afeminados, viados e bichas pretas16”, no intuito de discernir os
elementos que, positivamente, se refletem nos processos de subjetivação das
experimentações pretas alheias às normas expressas pela matriz heterossexual e
cisgênera. A autora também observou a agência de tais elementos no interior do âmbito
escolar.
16
Escolhi manter o termo “pretas”, em conformidade com Megg Rayara de Oliveira, que discute em seu
texto a origem etimológica da palavra negros, além de fazer referência aos escravos brasileiros.
26
E é justamente nesse lócus de atuação profissional que elas sofrem os maiores
desafios de sobrevivência. Em conformidade com o site Transgender Europe-TGEU17,
dentre os 2115 casos relatados de violência contra a população LGBTT, em especial
contra pessoas trans e travestis, no período de 1º de janeiro de 2008 a 30 de abril de 2016,
1654 destes casos foram relatados na América Central e do Sul, estando o Brasil em
primeiro lugar no ranking da violência contra esta população: 845 casos relatados no
período supracitado.
17
O Transgender Europe-TGEU consiste em uma organização não governamental surgida na Europa e que
se estabelece como a voz legítima da população trans europeia. O site traz inúmeras reportagens sobre e
para a população trans. Contudo, apresenta um projeto de monitoramento de violências contra a população
trans no mundo todo.
18
Pesquisa publicada no site Extra. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/brasil-segue-no-
primeiro-lugar-em-ranking-de-assassinatos-de-transexuais-23235062.html. Acesso em: 21 nov. 2018.
19
Reportagem: Transfobia: O Brasil já tem 61 transexuais e travestis assassinados em 2017, por Juliana
Baeta. Disponível em: http://www.otempo.com.br/capa/brasil/brasil-j%C3%A1-tem-61-transexuais-e-
travestis-assassinados-em-2017-1.1477509. Acesso em: 11 set. 2017.
27
A mesma reportagem reconhece que a maioria das vítimas travestis e
transexuais encontra-se na prostituição, apontando que esta população corre um risco
maior de ser violentada que os demais sujeitos da comunidade LGBT.
20
Em conformidade com o site da ANTRA. Disponível em: https://antrabrasil.org/. Acesso em: 07 nov.
2018.
21
Conforme página do G1/MATO GROSSO. Disponível em: https://g1.globo.com/mato-
grosso/noticia/travesti-e-assassinada-a-tiros-por-motociclista-em-rondonopolis-mt.ghtml. Acesso em: 30
jan. 2018.
22
Conforme página do G1/MATO GROSSO. Disponível em: https://g1.globo.com/mt/mato-
grosso/noticia/funcionario-publico-e-encontrado-morto-com-maos-e-pes-amarrados-em-mt.ghtml. Acesso
em: 30 jan. 2018.
23
Nome real. A participante da pesquisa manifestou não ter problemas com a aparição de seu nome.
24
Nome de uma rede social lançada em 2004, por estudantes de Harvard, entre eles, Mark Zukerberg, ainda
dono da rede. É um espaço gratuito que oferece aos seus usuários inúmeras ferramentas de comunicação
entre amigos, grupos, bem como de publicidade. O espaço apresenta inúmeras versões para celulares e
computadores, os quais facilitam a visualização e acessibilidade. Adaptado de
https://www.significados.com.br/facebook/. Acesso em: 14 de fev. 2018.
25
Trata-se de um software para smartphones lançado em 2009 pelos veteranos do Yahoo! É considerado
um aplicativo para celulares multiplataforma que possibilita a comunicação entre os seus usuários em forma
de textos, mensagens de áudio, vídeo, além do envio de fotos, atualização de status como um substituto das
mensagens via celular conhecidas como SMS. Adaptado de https://www.significados.com.r/whatsapp/.
Acesso em:14 fev. 2018.
26
A casa funciona como uma pensão. Regularmente, abriga 30 (trinta) mulheres trans e travestis que
pagam aluguel por seus quartos. Os serviços de apoio psicológico, documentação, entre outros, eram de
responsabilidade do GATTRS.
27
Conforme site da ANTRA. Disponível em: https://antrabrasil.org/candidaturas2018/. Acesso em: 21 nov.
2018.
28
pessoas transgêneras no país, na corrida eleitoral de 2018, na disputa pelo cargo de
Deputada Federal pelo Estado de Mato Grosso.
28
Disponível em: http://www.midianews.com.br/cotidiano/marcada-pela-violencia-travesti-cria-grupo-
contra-o-preconceito/276528. Acesso em: 02 fev. 2017.
29
Montagem consiste na adulteração corporal e execução de gestualidades na construção das performances
e identidades de gênero (BENEDETTI, 2005; WEEKS, 2001), ou ainda, na modificação corporal como
uma estratégia que marca a tentativa de aproximação de uma dita “feminilidade” a ser seguida (SANTOS,
2014). É indispensável esclarecer que tais definições foram construídas por pessoas cisgêneras em um
passado próximo. Atualmente, algumas de minhas interlocutoras não apreciam a adoção do termo, uma vez
que passam o dia vestidas como mulheres. São mulheres, são corpos femininos. Algumas usam o termo
para se referenciar a crossdressers e dragqueens. Outras utilizam o termo para referirem-se ao momento
em que estão se preparando para o trabalho.
30
Bombadeira é o termo utilizado para designar a pessoa, geralmente uma travesti/mulher trans mais velha
e/ou mais experiente, e que faz a aplicação do silicone industrial nos corpos das meninas. Geralmente elas
não falam muito sobre quem são tais profissionais, em virtude dos riscos à saúde que tais aplicações podem
propiciar, bem como para preservar/assegurar a segurança das bombadeiras.
29
trabalho que realiza junto às meninas. Muitos dos dados e detalhes da pesquisa foram
obtidos nesses encontros, algumas vezes com a participação de outras moradoras da casa,
e registrados em meu diário de campo.
Penso que a tal higienização mencionada por Adriana ocorre, uma vez que a
sociedade tende a associar as travestis à prostituição e, consequentemente, à
criminalidade. Isso é muito recorrente em suas falas, bem como em inúmeras pesquisas
acadêmicas. Brum (2014), Jesus (2012), Peres; Toledo (2011), Garcia (2008; 2009),
Borba; Ostermann (2008), Benedetti (2000), Kulick (2008), Albuquerque; Janelli (1995)
evidenciam a relação das travestis com a criminalidade31. Dentre os atos de ilegalidade,
observam-se roubos, furtos, (ab)uso de drogas e bebidas alcoólicas (GARCIA, 2008).
31
Mais uma vez, retomo que as pesquisas mencionadas foram realizadas já há um bom tempo e podem não
retratar a realidade de todas as mulheres trans e travestis, em conformidade com os seus relatos.
30
de uma travesti no Brasil (SALES, 2018; SIQUEIRA, 2004; PERES, 2005; KULICK,
2008, entre outros).
Em certa ocasião, Adriana me revelou que até aquele mês – maio de 2017 –
cinquenta e quatro32 mulheres trans e travestis brasileiras tinham sido assassinadas, sendo
que muitas delas não tinham sequer alcançado nem os trinta e cinco anos33.
32
Dados obtidos durante uma de nossas conversas informais, registrados em meu diário de campo e que,
posteriormente, foram consultados e confirmados no site de notícias do Senado Brasileiro. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-
de-35-anos-metade-da-media-nacional. Acesso em: 29 jun. 2017.
33
A expectativa de vida de 35 anos para as mulheres trans/travestis também é afixada, conforme as
estatísticas divulgadas pelo site da Antra. Disponível em: https://antrabrasil.org. Acesso em: 05 nov. 2018.
34
Travesti, no bajubá.
35
Jussara e Kate são nomes fictícios. Ambas me solicitaram que seus nomes reais não aparecessem na
pesquisa.
31
meia noite. Brinquei com ela certa vez que Cinderela existe sim! Ela riu e me explicou
que agia dessa maneira para garantir a sua segurança.
36
Referência à prostituição.
32
de seres que não mais estão aptos a colaborar com o crescimento desta mesma sociedade,
sob a ótica da produção e do lucro, de modo a tratar pessoas idosas como desqualificadas
para a produção e também para o sexo. Beauvoir (1970) ainda usa a qualificação “boca
inútil” para descrever os idosos que se tornam incapazes de batalhar dentro de uma
sociedade, mas acrescenta que tal discurso sofre a intervenção de fatores e valores
culturais.
Encontrei Sara York37, uma mulher fantástica, à época com 41 anos, que se
autointitula trans e, ao mesmo tempo, travesti, por questões políticas e de visibilidade,
militância, ativismo. Sara é também pai, avô, professora de língua inglesa em uma escola
pública no interior do estado do Rio de Janeiro, professora de teatro, Mestranda em um
Programa de Pós-graduação em Educação e administra algumas páginas e comunidades
no Facebook, assim como grupos de discussões políticas no Whatsapp. Procurei, então,
travestis/mulheres trans no Facebook que tivessem mais de quarenta anos. Até aquele
momento, a minha rede estava repleta de travestis/ mulheres trans jovens, a maioria com
menos de 30 anos.
37
Nome real. A participante da pesquisa manifestou não ter problemas com a aparição de seu nome.
38
Nome real. A participante da pesquisa manifestou não ter problemas com a aparição de seu nome.
33
Após o bate-papo, procurei por Gabriela no Facebook e começamos a trocar
mensagens. Passados alguns meses, acabamos nos encontrando em um dos grupos de
discussões por políticas públicas, aberto por Sara no Whatsapp. A partir de então, nossa
comunicação era realizada via mensagens de áudio por esse aplicativo.
Assim como Adriana Liário, Gabriela também foi muito importante para o
meu trabalho, visto que, por estar no meio acadêmico, sempre me encaminhava textos
que remetiam ao meu trabalho e discutíamos a respeito de diversos assuntos, como
travestilidade e sexualidade. Ela também me ajudou com a elaboração do roteiro das
entrevistas que eu realizaria para a materialização deste trabalho. Eu lhe enviava as
perguntas e ela as avaliava, de modo a sugerir mudanças, deixando-as dentro da
inteligibilidade das minhas interlocutoras.
Além de Sara e Gabriela, também pude contar com o valioso auxílio do Prof.
Dr. Neil Franco de Almeida, que por inúmeras vezes discutiu alguns textos e trabalhos,
além de ser o intermediador de algumas participantes, dentre elas Rebeca, a mais
simpática de todas. Muito crítica quanto à elaboração das perguntas, mas também muito
disposta a colaborar, dedicada e presente.
Para Hélio Silva (1993), por exemplo, as participantes de sua pesquisa, na sua
maioria praticantes do trottoir39, eram consideradas velhas após os trinta anos, por
questões de atratividade e jovialidade. Contudo, vale relembrar que a pesquisa de Silva
(1993) foi conduzida nos anos noventa e que talvez aquela realidade retratada não seja
mais a das mulheres trans/travestis desta investigação.
39
Hélio Silva (1993) designa prostituição como sinônimo de trottoir.
34
por meio dos discursos de beleza e do glamour. No momento em que tais marcadores são
suprimidos pela idade, só lhes resta, na maioria das vezes, uma vida permeada de
privações, isolamento e sem referência. Com isso, ponderei a respeito de estudar os
enunciados40 que se evidenciam nas narrativas de travestis/mulheres trans no tocante ao
seu processo de envelhecimento.
Todos têm muito a dizer a respeito dos idosos e inúmeros são os atos
ilocutórios41 que os fazem parecer, sincronicamente, inúteis ou novos guerreiros da
longevidade. No caso das travestis/transgêneras, os enunciados parecem apontar para uma
dupla abjeção: serem travestis/mulheres trans e “velhas”. Para Siqueira (2004), “travestis”
e “velhice” constituem duas categorias altamente excludentes, pois aquelas que
ultrapassam os cinquenta anos enfrentam um duplo processo de marginalização e muitas
encaram condições precárias de sobrevivência.
40
O enunciado é um elemento indecomponível, carregado de “verdades” e formado por um conjunto de
regras para a sua formação, mas que difere da frase ou do ato ilocutório (FOUCAULT, 2008). Constitui
sentido como um elemento em um campo de coexistência, uma materialidade repetível, o átomo do discurso
(idem).
41
Para Foucault (2008), um ato ilocutório diz respeito ao que se produz pelo simples fato de ter sido
enunciado. Em outras palavras, trata-se do ato de fala, da enunciação.
42
Disponível em: http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/. Acesso em: 08 nov. 2018.
35
E mesmo com um número tão significativo de trabalhos produzidos acerca da
temática “travesti”, observei que há uma carência de trabalhos na área de Linguística
Aplicada que discuta a transgeneridade e o processo de envelhecimento.
Intuito maior com esta pesquisa não é de maneira alguma esgotar o tema, mas
desenvolver um estudo acerca de um tópico que tem ganho ampla visibilidade, bem como
ultrapassar limites já demarcados, de modo a compreender os processos de
inclusão/exclusão (FABRÍCIO, 2017) tão presentes em nossa sociedade.
36
Em pouco tempo, ela se levan-tou e entrou na sala da minha mãe. De onde eu
estava, não conseguia mais vê-la. Dirigi-me à porta e continuei a contemplá-la até minha
mãe levantar e fechar a porta e bradar: “Para de ficar olhando. Isso é feio. Nunca viu um
travecão?”
O que fazia destas mulheres tão bonitas um “travecão”? Lindas, altas, magras,
sensuais, famosas, recebiam a atenção e os olhares por onde quer que passassem.
Definitivamente, eu, que à época era gordinha, cabelos e rosto nada atraentes, queria
muito ser um travecão.
Nesse tecido, ser mulher cisgênera pode até ser “aceitável” em uma sociedade
misógina e que considera o gênero um pressuposto biológico nato. Mas isso não me isenta
da responsabilidade de me aliar às semelhantes a mim, por empatia e companheirismo,
de maneira ética e política, mesmo que essas semelhantes sejam tão diferentes.
37
A meu ver, a constituição da identidade das travestis/mulheres trans em
processo de envelhecimento vem se concebendo há muito tempo em uma seara de lutas,
exigências, oposições, resistências, de modo a fomentar desacordos e discussões
constantes. Sinto, então, a inevitabilidade de problematizar discursos naturalizados,
rotineiros, acerca das travestis/mulheres transgêneras e, com vista a isso, considero os
objetivos desta pesquisa:
38
No primeiro capítulo, Considerações acerca do envelhecimento, exibo
discussão respeitante ao envelhecimento, de modo a apresentar pesquisadores e seus
estudos quanto às características desse processo, assim como as diferenças de
envelhecimento para os gêneros masculino e feminino. Trago também alguns autores que
discutem o envelhecimento que envolve as homossexualidades feminina e masculina.
Encerro o capítulo com alguns dos poucos estudos, fora da área de Linguística Aplicada,
que tratam da velhice de travestis/mulheres trans.
39
CAPÍTULO 1
Autoria coletiva
I
númeras pesquisas nacionais (CUNHA, 2016, SIQUEIRA; BOTELHO;
COELHO, 2002) e estatísticas realizadas pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE (2010) e pela Organização das Nações
Unidas – ONU (2002) apontam para o crescimento desgovernado da população com 60
(sessenta) anos ou mais no país.
43
Penso ser conveniente definir alguns termos aqui. O primeiro deles, o envelhecimento, em conformidade
com o Dicionário Informal, consiste na ação ou efeito de envelhecer, de modo a apontar para o processo da
40
No intuito de responder a essas e outras questões, este capítulo examina
concisamente os modos de envelhecer em termos biológico, físico e psicossocial dos
seres humanos, na primeira subseção. Em seguida, aponto algumas características sociais
a respeito do processo de envelhecimento de homossexuais masculinos e femininos. A
subseção seguinte mostra algumas poucas considerações acerca de estudos acadêmicos
que tratam do envelhecimento de pessoas trans e travestis, relacionados com alguns dos
dados que obtive durante a minha investigação. Finalizo o capítulo com um breve resumo
acerca das discussões levantadas até então.
perda da juventude. Já o termo velhice corresponde à fase avançada da vida dos seres, apontando um
período de decadência, perda de viço e/ou deterioração. A palavra idoso refere-se a uma pessoa que esteja
com muita idade, contudo, pode ser trocada pela palavra velho, embora seja um termo desrespeitoso e
pejorativo. Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/. Acesso em: 21 nov. 2018.
41
cumprir as exigências do discurso patriarcal, cisgênero, heteronormativo44, cristão e de
geração de produção. Em seguida, espera-se que nos preparemos para a velhice. E se
nada disso der certo, somos responsabilizados por esse fracasso.
44
Heteronormativo refere-se ao discurso que impõe a atração física por pessoas do sexo oposto como a
regra, a norma natural a ser seguida.
45
Retomando, homens cisgêneros são aqueles que se identificam com o sexo biológico – pênis – e com o
gênero que lhes foi atribuído desde o nascimento – masculino – em concordância com a genitália. Em
oposição a homens cisgêneros, temos os homens trans, transexuais masculinos (dentre outras
42
é a lentidão das ereções, ou seja, as possibilidades de ejaculação e ereção desaparecem
com a idade, embora nem sempre haja extinção da libido, como afirma Beuavoir (1970).
De outra via, Santos (2010) aponta que a diminuição do poder físico acarreta
a queda da produtividade dos(as) indivíduos(as), o que pode diminuir o poder aquisitivo
e alterar a posição social ocupada por aqueles(as) indivíduos(as), em sociedades
denominações, que são autodenominações, e nunca rotulação). Ávila (2014) explica que são sujeitos
identificados como meninas no nascimento, mas que se identificam enquanto sujeitos do gênero masculino.
46
Faço uma diferenciação entre o envelhecimento em homens e mulheres cisgêneros de homens e mulheres
transgêneros, visto que, embora esse fenômeno afete todos os indivíduos vivos, cisgêneros ou transgêneros,
as necessidades de cada categoria identitária são diferentes; daí a inevitabilidade de políticas públicas
específicas que atendam a cada um desses grupos. Além disso, os modos de vida de pessoas cis muito
diverge do modo de vida de pessoas trans, se levarmos em linha de conta que as pessoas cisgêneras são
detentoras das forças de poder e privilégios que tornam suas vidas mais fáceis. E finalmente, mulheres
transgêneras não apresentam as mesmas questões citadas no texto quanto ao envelhecimento, uma vez que
sua formação biológica – órgãos – difere da de mulheres cisgêneras.
43
capitalistas. A sociedade, de um modo geral, tende a enxergar a velhice como um período
de dificuldades físicas, biológicas e de baixa produção econômica (BEAUVOIR, 1970),
além de representar um período de descrédito para tais sujeitos(as).
Afinal de contas, o que é ser velho? E o que é ser idoso? Marques (2004)
explica que, historicamente, o vocábulo velho relaciona-se a princípios depreciativos, tais
como preguiçoso, infrutífero, inútil, maldoso, entre outros. A autora complementa que o
termo idoso já é recomendável, visto que incorpora perceptibilidades e credulidades,
transformando o(a) sujeito(a) em alguém merecedor(a) de respeito (MARQUES, 2004).
47
Medicamento que tem por ingrediente ativo o sildenafil, composto que facilita a ereção e age juntamente
com o desejo e a libido, ou seja, depende das preliminares para que seja efetivo, foi sintetizado
originalmente pelo laboratório Pfizer, patenteada em 1996 e aprovada para o uso em março de 1998.
Disponível em https://guiadocorpo.com/viagra-masculino/; https://pt.wikipedia.org/wiki/Sildenafila.
Acesso em 20 de fevereiro de 2018.
44
velhice. Nessa relação envelhecimento e sexualidade, percebemos que o corpo saudável
é o sexualmente ativo, o que explica a valorização de medicamentos e recursos para a
melhoria do desempenho sexual (ROHDEN, 2012), de maneira a evitar que os corpos
dos homens idosos possam ser comparados aos corpos de mulheres idosas em termos de
vulnerabilidade, intervenções de saúde e tratamentos (PAZZINI; MIGUEL, 2016;
ROHDEN, 2012).
Logo, envelhecer nos dias de hoje não pode ser comparado ao processo de
envelhecimento do século passado (CUNHA, 2016), uma vez que, por mais que as
possibilidades sociais se apresentem de modo bastante desigual, já é possível contar com
uma multiplicidade de mecanismos que propiciam longevidade aos idosos e às idosas e,
oferecem acepções diversificadas para as suas vidas.
48
A sociedade de controle consiste em um modelo de gestão social “invisível” que tem suas raízes na
sociedade disciplinar, em que os sujeitos sociais não mais sofrem a violência física como forma de punição
por não enquadramento aos estilos de vida, porém, observa-se um controle ideológico e vigia de corpos
pelos meios de comunicação em massa e por todos os indivíduos desta mesma sociedade (FOUCAULT,
2008). A menção à sociedade de controle ocorreu aqui de modo a reforçar a ideia da necessidade da
adequação dos indivíduos a essa norma de uma vida jovial, longe das mazelas da velhice, sob a pena da
vigia e controle dos demais indivíduos da sociedade.
45
os(as) indivíduos(as) envelheçam, dizimando os estigmas de doença e decadência tão
comuns na descrição dessa população (ANTUNES, 2010).
Siqueira; Botelho; Coelho (2002) apontam que entre os anos de 1970 e 2000
os países em desenvolvimento demonstraram um aumento de 123% da população idosa,
contra 54% de aumento da população idosa em países desenvolvidos. De outra via, um
documento elaborado pela ONU (WHO, 2002) considera o período entre os anos 1975 e
2025 como a Era do Envelhecimento justamente em concordância com o crescimento
demográfico da população idosa que temos observado.
46
Em adendo, Marques (2004) rotula como a “feminilização do
envelhecimento” o movimento caracterizado por uma maior participação das mulheres
cisgêneras idosas nos espaços de sociabilidade. Além disso, as mulheres cis vivem mais
que os homens cisgêneros (IBGE, 2010; LIMA, 2006; MARQUES, 2004) e se ocupam
mais na busca de opções de longevidade que eles (MARQUES, 2004), chegando à
velhice em vantagem (MARQUES, 2004), mesmo tendo sido mencionadas por Beauvoir
(1970) como sujeitas com problemas de saúde mais recorrentes.
Debert (1994) comenta que a taxa de idosos(as) no Brasil tem sido oito vezes
superior às taxas de crescimento da população total, caracterizando uma trágica situação
que desafia as sociedades civil e política. A esse respeito, percebe-se, por meio da
pirâmide etária publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
referente ao censo de 2010, a diferença no número entre homens e mulheres em todas as
faixas etárias (IBGE, 2010), levando-nos a crer que há mais mulheres idosas que homens
idosos.
47
Vivemos em uma sociedade regida por valores da heterossexualidade
compulsória. O termo foi cunhado por Adrienne Rich ([1980] 2010), em seu texto
Heterossexualidade compulsória e existência lésbica, o que nos leva a considerar que o
discurso social normativo elege a heterossexualidade como a orientação sexual
natural/normal esperada para homens e mulheres. Para ela, homens e mulheres são
compulsoriamente obrigados a serem heterossexuais (RICH ([1980] 2010). Todo aquele
que foge a tal regra é considerado abjeto.
Até certo tempo atrás, essa era a realidade das pessoas idosas: os homens
idosos cisgêneros deveriam estar sempre bem, auxiliar as esposas e continuar sendo os
cabeças de suas famílias, enquanto que às mulheres idosas cabia o papel de cuidadoras
de suas casas, de suas famílias, da saúde de seus familiares e da sua, bem como se
comportar como idosas (MAGALHÃES; SOBRINHO, 2006).
48
Contrariando tal divisão comportamental e de tarefas, Debert (1994) garante
que valores e tarefas considerados femininos ou masculinos tendem a se misturar na
velhice, gerando o que ela concebe por “normalidade unissex da idade avançada”. Porém,
a autora afirma que o processo melancólico e solitário das pessoas idosas de hoje já se
torna constatável.
Marques (2004) afirma que o interesse pela velhice tem crescido e com isso
a contribuição científica na efetivação de políticas públicas para essa parcela da
população. Além disso, ele revela que, especialmente nos últimos 20 anos, inúmeros
projetos e ações têm se ocupado com o processo de envelhecimento, colaborando não
apenas na implementação e legitimação das políticas públicas que lhes confiram
cidadania e dignidade. Em tais políticas públicas, podemos incluir ações como a criação
e a proliferação de Programas para a Terceira Idade no contexto brasileiro, que têm como
maior público as mulheres idosas (DEBERT, 1994).
49
vez, que o processo de envelhecimento é, além de biológico, uma construção social
manipulada pelo discurso.
50
(MOTTA, 2002), marcando a tal “permissão” como u-m abrandamento do controle sobre
os corpos femininos idosos.
51
2017). Além disso, Mota (2009) assegura que pesquisas acerca da velhice e da
homossexualidade, juntas, encontram-se em fase embrionária, fator que explica o
silêncio que permeia a temática, principalmente no que concerne à sexualidade dos
idosos.
52
Neste sentido, Mota (2009) sustenta que o exame alegórico acerca do corpo
enquanto cronológico, a caminho do envelhecimento, suscita o medo da decadência da
apresentação física, seguido do fim do erotismo e, consequentemente, perda da
atratividade, confirmando a visão de que o corpo belo e ativo é o corpo jovem.
53
A propósito desse assunto, Alves (2010) esclarece que os estudos acerca da
homossexualidade feminina no Brasil são escassos, porém têm aumentado. Para a autora,
grande parte dos estudos existentes em relação ao tema acumula-se na faixa etária jovem
(vinte anos ou mais) ou na faixa etária dos trinta aos quarenta anos (ALVES, 2010).
Santos e Carmo (2013) descrevem uma pesquisa realizada com oito senhoras
homossexuais, com idades entre 52 e 67 anos. Em conformidade com os autores, há certo
incômodo por parte das senhoras entrevistadas quanto ao processo de envelhecimento.
Vemos que a homossexualidade feminina está ligada à precarização da saúde, perda da
libido e queda da autoestima, confirmando que não há diferenças entre a velhice
homossexual e heterossexual, se compararmos estes dados com os dados apresentados
na seção anterior.
Em uma pesquisa realizada por Santos e Carmo (2013) com mulheres a partir
dos cinquenta anos, no intuito de entender como estas pensam o envelhecimento,
considerando-se a sociedade misógina e etarista – que considera a velhice feminina abjeta
– descobriu-se que essa fase costuma ser silenciada entre as feministas lésbicas, visto que
a nossa sociedade idolatra a juventude e condena a velhice.
54
A esse respeito, Wolf (1992) elucida que o envelhecimento da mulher é feio:
o mito da beleza aleija o percurso de vida de todas as mulheres, confirmando que, mesmo
em idade avançada, as identidades das mulheres têm por princípio essencial a beleza,
sendo vulneráveis à aprovação externa.
Desta feita, inauguro aqui com o clássico trabalho de Siqueira (2004), que
objetivou mostrar que as travestis envelhecem, sim, embora nem todas tenham essa
“sorte’ de alcançar o período da velhice. Falo de sorte, entre aspas, uma vez que a própria
autora declara que, de modo geral, resta aos velhos a depreciação e a estigmatização
situações as quais podem, inclusive, influenciar no tempo de vida dessas pessoas.
55
social, tendo escapado da AIDS, dos vícios, e podendo transitar e ser respeitadas por
diferentes segmentos sociais.
No que diz respeito à sexualidade, Siqueira (2004) constatou que esta ainda
encontra-se ativa para as participantes de sua pesquisa, mesmo que as relações sexuais
ocorram com frequência menor. Tal fato também se confirma por meio das minhas
interlocutoras, as quais alegam que a chegada da velhice não representa a diminuição de
seu apetite sexual.
56
Assim como para as colaboradoras da pesquisa de Siqueira (2004), para as
travestis investigadas no estudo de Antunes (2010) alcançar a terceira idade representa
ser um referencial relevante, um exemplo a ser seguido e também um alerta para as
meninas mais jovens. São consideradas velhas no momento em que seus corpos não mais
podem ser vinculados à prostituição, embora nem todas tenham uma ocupação/profissão
paralela que as livrem de doenças e violências (ANTUNES, 2010).
57
Embora o autor tenha percebido a dificuldade em envelhecer enfrentada pelas
meninas investigadas em seu estudo, ele relata as resistências e adequações a que elas se
submetem para poderem ressignificar suas vidas e construir suas histórias em contextos
considerados possíveis. Também notou que muitos preconceitos e estigmas que
circundavam as travestis no tocante a drogas, prostituição e escândalos já começam a ser
problematizados junto à sociedade, porém o olhar da academia ainda persiste na exclusão
e patologização (LEITE JR., 2017).
O autor também aponta que a ideia do corpo jovem relaciona-se com a beleza,
isto é, um corpo velho é um corpo feio (CASTELEIRA, 2014), de maneira a corroborar
o depoimento de uma de minhas interlocutoras, Gabriela da Silva.
58
expectativa do ingresso em atividades nas quais o corpo jovial não seja uma exigência
(CASTELEIRA, 2014), como é o caso das minhas colaboradoras Jussara e Kate.
Neste ínterim, saliento que há uma escassez de trabalhos que lidem com o
envelhecimento de mulheres transexuais ou mulheres trans. Muitos dos trabalhos
encontrados, embora façam menção a velhice e/ou ao processo de envelhecimento, não
tratam a temática como foco. Registro aqui tal fato não para justificar o meu
envolvimento com o tema, mas para expressar o motivo da falta de dados para serem
discutidos nesta seção.
49
O livro Antologia Trans reúne 30 poetas trans, travestis e pessoas não-binárias que escreveram o poema
sob a coordenação da poetisa e mulher trans Danyelle Cavalcante, durante as oficinas de poesia do Cursinho
Popular Transformação, o qual prepara meninos e meninas trans para o ENEM. O livro traz como prefácio
A Língua Como Nossos Corpos, de Amara Moira Rodovalho, assim como o poema Açaí.
Pessoas não-binárias, termo encontrado aqui nesta nota de rodapé, diz respeito a pessoas que não se
identificam com o binarismo expresso por sexo/gênero como um todo, ou se identificam ligeiramente em
ambos os sexos/gêneros, concomitantemente, ou ainda, com a predominância de um dos sexos/gêneros a
maior parte do tempo (BONASSI, 2017).
59
Falar em envelhecimento de pessoas transgêneras é ainda mais doloroso. Não
é fácil suportar o estigma, o preconceito e a discriminação sendo uma pessoa transgênera,
o que dirá sendo uma pessoa transgênera e idosa. Um duplo processo de estigmatização
e violências se instala.
60
CAPÍTULO 2
Corpo: Uma Metamorfose Ambulante
Foda-se?
Virgínia Guitzel
J
as mais diversas ingerências prescritas pelos discursos midiáticos,
médicos e da moda. Nesse enredo, corpos sarados são traduzidos como
corpos saudáveis (KEHL, 1926, 1927; TONELI, 2012).
Diferentemente da antiga e conhecida citação latina “mente sã em
corpo são”, os corpos do século XXI estão extremamente predispostos
à determinação social do padrão de beleza esculpido por cirurgias
estéticas, spas, clínicas, e academias de ginástica (PAIM; STREY, 2004).
A incessante apreciação do corpo belo e atraente tem como maior alvo (e
vítima) o gênero feminino, de modo a reeditar situações de subalternidade e obediência,
manipulação e controle às mulheres (PAIM; STREY, 2004) reiterando poderes, saberes,
verdades e discursos de outros momentos históricos sobre os corpos humanos.
61
Contudo, o corpo simboliza um dos enormes intervalos da história,
principalmente pois os estudos pouco revelam sobre a história dos corpos femininos – o
interesse estava nos homens, mas não em seus corpos (ROIZ, 2009).
Assim, o intuito maior deste capítulo é revisitar alguns aspectos históricos
que circundam a história do corpo humano na sociedade em geral. Partindo-se do
pressuposto que o corpo é uma matéria ágil estruturada pela e na cultura, farei uma
concisa descrição de sua trajetória no tempo, de maneira a evidenciar algumas das
múltiplas possibilidades de referenciarmo-nos à ele e à elementos muitas vezes que se
fundem, como o gênero e a sexualidade.
Meu propósito com tal feito é discutir como os corpos masculinos e
femininos são pensados e visualizados com diferenças as quais afetam (e são afetados
pela) a cultura, o discurso e as vidas das pessoas, até os tempos atuais, intentando
compreender de que modo a inferiorização do corpo feminino foi estruturada até o
surgimento de outros corpos femininos, construídos a partir de uma matriz masculina.
Desta maneira, no primeiro item tratarei da experiência do corpo na Grécia e
em Roma, até a contemporaneidade Na segunda seção discuto a questão do corpo atrelada
ao discurso, visto que parto da premissa que os corpos apoderam-se de ambientes os
quais o discurso se refere, de maneira a problematizar a (des) construção destes corpos
pelo viés dos preceitos foucaultianos.
Em seguida, trago algumas considerações de autores que abordam a Teoria
Queer, evidenciando a constituição de corpos socialmente lidos como desviantes.
Encerro o capítulo com uma síntese dessa construção corporal no decorrer dos tempos.
62
Grécia Antiga foi popularmente conhecida e representada por corpos robustos,
musculosos e perfeitos.
Além disso, é no percorrer do discurso filosófico grego que encontramos a
preocupação com as questões da origem de homens e mulheres e das suas diferenças
anatômica e sexual, com teorias que grandemente influenciaram a Filosofia, a Medicina,
a Biologia, dentre outras áreas, tendo como exemplos os pensadores Platão, Hipócrates
e Aristóteles.
De fato, na Grécia Antiga os corpos eram treinados no esforço incessante de
alcançar a excelência, longe de representarem um povo que tivesse culpa ou sentisse que
seu corpo fosse pecaminoso (CORBIN;COURTINE;VIAGRELLO, 2012/2017). O
corpo era notado e enaltecido pela sua beleza.
Os homens exercitavam-se para modelar seus corpos, fossem como atletas
treinando para os jogos Olímpicos ou enquanto soldados preparando-se para a guerra
(DOMINGUES, 2015). Logo, a imagem concebida adequa-se à concepção de cidadão
que tinha por objetivo maior alcançá-la, de modo a tornear e gerar o seu corpo com a
prática constante de atividades físicas e de reflexão/meditação (BARBOSA; MATOS;
COSTA, 2011). O corpo não passava de um objeto de consagração e de relevância para
o próprio Estado (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011).
Para os gregos, o corpo masculino nu, em especial, representava um
instrumento de saúde, beleza50 e fertilidade (ROSÁRIO, 2004). Cada idade era
representada por uma harmonia diferente, harmonia esta que primava o equilíbrio entre
o físico e a intelecção (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Ainda neste período, não existiam princípios morais no que concerne o corpo
e o sexo (PAIM & STREY, 2004), contudo, algumas regras de conduta eram presentes
de maneira a colaborar com o controle dos excessos, isto é, algumas restrições eram
impostas no intuito de receitar o “bom uso” dos prazeres, tais como a comida, a bebida,
e é claro, o sexo (ROSÁRIO, 2004), remetendo-nos aos princípios elencados por
Foucault (1994) em sua obra História da Sexualidade: Os cuidados de si.
Foucault (1994), assim como as restrições observadas na Grécia Antiga,
assevera que os séculos I e II recomendam uma vida de cuidados de maneira a levar os
50
O corpo belo e perfeito da Grécia Antiga era justamente aquele que apresentava harmonia e proporção
entre todas as suas partes (DOMINGUES, 2015).
63
cidadãos a alcançarem a plenitude por meio de atividades tais como a meditação, a
leitura, a prática de exercícios físicos e cuidado com uma dieta balanceada.
Interessante observar que tais regras e receitas eram designadas apenas para
os homens livres, sendo as mulheres e os escravos excluídos das “recomendações”
(BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004). Daí o fato de não vermos
estátuas de mulheres nuas que retratem a época da Grécia antiga em questão.
Acreditava-se na visão unissexuada do corpo, isto é, homens e mulheres eram
lidos como seres da mesma natureza biológica, estando o corpo feminino em uma posição
de inferioridade (PAIM; STREY, 2004). Respeitando essa “lógica” o corpo masculino
era considerado um corpo quente, e à época, quanto mais quente, mais perfeito se era, e
os órgãos eram “mais desenvolvidos” que os das mulheres, que tinham os órgãos pouco
desenvolvidos em virtude da frieza de seus corpos (PAIM; STREY, 2004).
De acordo com Joaquim (1997), a inferioridade do corpo feminino também
se expressa por meio do pensamento de Hipócrates e de Platão, uma vez que a mulher é
portadora de uma “semente fraca”, o receptáculo da semente mais forte (a semente
masculina). Há, ainda, a menção ao formato fisiológico das mulheres, que apresentam
cérebro menor que o dos homens e corpo físico menos musculoso (JOAQUIM, 1997).
Às mulheres, de outra via, competia exercer atribuições tais como submissão,
honradez e integridade aos seus pais e aos seus maridos (ROSÁRIO, 2004).
Diferentemente do que o senso comum prega, a procriação e os prazeres eram de estrita
responsabilidade masculina (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Domingues (2015) assevera que as mulheres eram confinadas nos espaços
domésticos e eram obrigadas a cobrir seus corpos com túnicas até os joelhos em casa, e
até os tornozelos sempre que fossem sair. A autora ainda complementa que pessoas de
renome na época, como Hesíodo51, afirmavam que as mulheres eram bonitas mas
perversas, pois levavam os homens à loucura.
Soma-se a isto o fato que as mulheres eram extremamente excluídas da
imposição da construção do corpo livre de imperfeições. Para o homem, tudo era
permitido, não haviam regras rígidas, e a homossexualidade e a bigamia eram atividades
vistas como legítimas- (ROSÁRIO, 2004).
51
Hesíodo foi um dos maiores poetas da Grécia Antiga, e juntamente com Homero – outro poeta conhecido
ator de poemas épicos como Ilíada e Odisseia –, é considerado um dos pilares da cultura do período.
Disponível em: infoescola.com/biografias/hesiodo/. Acesso em 2 de dezembro de 2018.
64
As leis tinham aplicabilidades diferenciadas para homens e mulheres; os
homens podiam andar totalmente nus, enquanto as mulheres deviam utilizar roupas de
modo a cobrir seus corpos ao sair às ruas (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011;
ROSÁRIO, 2004; TUCHERMAN, 2004). Nesse contexto, pode-se afirmar que o
adjetivo belo era associado apenas aos homens e à atributos considerados masculinos: os
corpos masculinos eram os únicos que tinham direito à cidadania (DOMINGUES, 2015).
O corpo, além de símbolo de perfeição, também era visto como um elemento
indicador de juventude, saúde e beleza. Os gregos que atingiam os corpos tidos como
ideais, deveriam exibi-los para que fossem admirados pelos pobres mortais: haviam
chegado perto da aparência divina (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO,
2004). Entretanto, toda essa admiração em torno do corpo esbelto pode ser interpretada
como um dado interessante para a representação da superação de impedimentos e
dificuldades, um dom glorioso e olímpico (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011).
Já para os Romanos, Rosário (2004) assegura que essa mesma rede de
cuidado de si destacada por Foucault (1994), propiciou o estabelecimento do que pode
ser chamada de um individualismo romano, visto que, em Roma, passou-se a prezar
normas de comportamentos pessoais que tinham por meta alcançar interesse próprio,
fazendo com que as pessoas fossem mais independentes. É na sociedade romana que
institui-se o que Foucault (1994) nomeia como cultura de si.
Em oposição aos gregos, os romanos não expunham o seu corpo. De outra
via, percebe-se uma tremenda exibição de monumentos do poder, visto que o poder do
imperador era evidenciado por meio destes grandiosos monumentos (BARBOSA;
MATOS; COSTA, 2011).
Para os romanos, a adoração do corpo humano tinha um valor pagão e
politeísta, explicando-se, assim, as exibições artísticas enquanto dramas de gladiadores
(BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). Contudo, em um dado momento, o império
romano passou a ter o pensamento filosófico florescido, e, consequentemente, todas as
intepretações relativas ao corpo passaram a modificar-se (ROSÁRIO, 2004),
especialmente de modo a fomentar questões religiosas (BARBOSA; MATOS; COSTA,
2011).
Os corpos femininos romanos, ao saírem de casa, precisavam ser cobertos
com um xale conhecido por palla, e deviam ser discretas, sem exagerar na maquiagem
65
para não serem lidas como prostitutas ou adúlteras (DOMINGUES, 2015).
Considerando-se que a igreja passou a ter controle sobre os corpos nesta sociedade
(BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011), até o uso de maquiagem era condenado pois
dizia-se que esta era um ensaio para remodelar a criação divina (DOMINGUES, 2015).
Já a Idade Média consiste em um longo período histórico que compreende
desde o século V até, aproximadamente, o século XV, período marcado pelos anos de
476 – Queda do Império Romano –, ao ano de 1453 – Queda do Império Bizantino.
Neste período, nota-se grande influência de ideias da Igreja Católica, estando
o cristianismo no centro do poder. O corpo passa a ter uma nova apreensão e significação:
de exteriorização da beleza para origem do pecado (BARBOSA; MATOS; COSTA,
2011). A fé cristã materializa-se na veneração da imagem, do corpo de Cristo
(CORBIN;COURTINE;VIAGRELLO, 2012/2017). A Igreja Medieval, então, condena
a vaidade e rotula de paganismo o uso das termas (DOMINGUES, 2015).
Foucault (1988, 1994) nos ensina que foi justamente tal visão do corpo como
procedência do pecado a força motriz para a efetivação de um controle austero sobre este
corpo de maneira a preservar a sua produtividade.
Uma vez que a Igreja Católica detinha o poder, percebe-se no período uma
série de tensões acerca do corpo. Com a justificativa no livro Gênesis, da Bíblia Sagrada,
o corpo feminino era diabolizado enquanto o masculino era endeusado. Eva, no livro de
Gênesis, era já colocada na posição de subalternidade ao ser gerada a partir de uma das
costelas de Adão.
Em seguida, com a leitura do livro de Gênesis, nota-se que a mulher entende
a sua exclusão a partir de sua natureza biológica ao ter sua ovulação ignorada em
exaltação à virilidade e fecundação restritas ao sexo masculino.
Roiz (2009), comentando o livro bíblico Gênesis, aponta que foi Eva com
toda a sua curiosidade e orgulho que convenceu Adão a experimentar do fruto proibído,
na busca do conhecimento de Deus.
Com isso, o corpo feminino era visto a partir de dois prismas distintos: o da
Virgem Maria, casta submissa, voltado para a procriação, à família, versus o corpo de
Eva, mulher pecadora, suscetível ao vício, à fraqueza, à sexualidade, prostituição,
luxúria, perversão da alma (DOMINGUES, 2015; ROIZ, 2009). Era, portanto, um corpo
tido como inferior e submisso (DOMINGUES, 2015).
66
Em conformidade com Barbosa, Matos e Costa (2011), o corpo é
constantemente reprimido, mas concomitantemente é exaltado por meio do corpo
sofredor de Jesus Cristo (CORBIN;COURTINE;VIAGRELLO, 2017; BARBOSA;
MATOS; COSTA, 2011). Para Barbosa, Matos e Costa (2011), o corpo do cristianismo
tem que saber lidar com a dor assim como sabe lidar com os prazeres. A sexualidade
feminina era rigorosamente inspecionada, tendo, inclusive, os gestos, práticas e
comportamentos monitorados e medidos pela Igreja e depois acatados pela sociedade
(ROIZ, 2009).
Distingue-se, então, a partição entre alma e corpo, de maneira que a força da
alma age sobre o corpo: ao homem competia ter forças para lutar contra todos os desejos
da carne/corpo para esquivar-se da morte, e como recompensa, alcançar a imortalidade
(nos reinos dos céus) e a redenção (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO, 2017;
BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). O corpo nada mais era que o cárcere da alma e
jamais poderia imperar sobre ela.
No período, testemunhamos o corpo ser coberto (DOMINGUES, 2015),
submetido à longos períodos de jejuns como maneira encontrada para renunciar o
concreto e atingir o sobrenatural (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO, 2012/2017;
BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). O corpo era um instrumento de fortalecimento da
convivência social, sendo justificável pelas características que este corpo apresentava em
relação ao laço que o sujeito sustentava com a terra (BARBOSA; MATOS; COSTA,
2011).
O sujeito da época teve toda as suas criações e expressões restritas pela Igreja
Católica: valores morais e códigos de conduta foram impostos, e a prescrição da
purificação almejando a purificação (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO, 2012/2017;
BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Diferentemente do tratamento dado ao corpo na antiga Grécia, este novo
período histórico é marcado pela proibição da adoração do corpo humano – exceto o
corpo de Cristo – de maneira e enfatizar que a alma era superior ao corpo (CORBIN;
COURTINE; VIAGRELLO, 2012/2017; ROSÁRIO, 2004).
Para o cristianismo, o corpo sempre seria o instrumento de consolidaçao da fé,
sendo o período assinalado por estratégias repressivas sobre o corpo, tais como os
castigos, as penas de morte, o autoflagelo, a fogueira, todos de ordem pública para
67
inculcar a ideia da obediência e da reprimenda co mo atitudes de correção (CORBIN;
COURTINE; VIAGRELLO, 2012/2017; ROSÁRIO, 2004). Vê-se uma dita
remodelagem nos conceitos e práticas corporais e comportamentais da sociedade da
Idade Média (ROIZ, 2009).
Uma transgressão para a Igreja Católica era a bruxaria visto que esta ocorria
no âmbito da sexualidade por meio do corpo (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO,
2017; BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). A partir de então surge a campanha de
prevenção e punição contra as mulheres, por inúmeras razões, a saber: a) mulheres foram
feitas da costela de Adão; b) não eram corretas; c) são seres que nascem ligados à
sexualidade (tida como um pecado imundo); d) eram agentes do diabo (BARBOSA;
MATOS; COSTA, 2011).
Inicia-se a conhecida “caça às bruxas” (ROIZ, 2009; PAIM; STREY, 2004),
período esse em que era muito perigoso ser mulher: toda e qualquer mulher poderia ser
julgada e submetida às regras religiosas de punição e extermínio das condenadas (ROIZ,
2009; PAIM; STREY, 2004) caracterizando um dos maiores e mais violentos genocídios
da época (PAIM; STREY, 2004).
É interessante notar com o acompanhamento histórico como os discursos
acerca dos corpos masculinos e femininos foram se modelando, constituindo as
sociedades e os sujeitos, embora a mulher tenha sempre sido colocada em uma posição
de inferioridade, menosprezo, perigo, prejudicial à coletividade.
Roiz (2009) manifesta que as representatividades de poder eram todas
masculinas, a começar por Deus, seguido de seus embaixadores aqui na terra, também
materializados na figura do homem: o Papa, os Reis, etc. A mulher com poder era
desprezada, humilhada e condenada (ROIZ, 2009).
Foi também na Idade Média que surgiu uma concepção distinta acerca do
corpo e as suas correspondências: passaram a acreditar que um ser humano era composto
de carne e espírito, concepção atrelada principalmente ao corpo feminino correção
(CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO, 2017). Às mulheres competia uma vida
espiritual de modo a sobrepujar o corpo carnal.
Viajando até o Renascimento, o corpo humano enquanto uma criação de
Deus, foi exaltado e se tornou grande fonte de inspiração para os pintores e escultores
(DOMINGUES, 2015).
68
Neste período, o corpo masculino permanece com o benefício de ser o ideal
de beleza e perfeição – o que nos remete aos modelos praticados na Grécia Antiga – ,
imitação da natureza, preocupação com a forma perfeita, proporção e harmonia, enquanto
o corpo feminino é invisibilizado por influência religiosa, a qual coloca a mulher como
apenas um corpo inferior originado a partir da costela de um homem (DOMINGUES,
2015). A beleza feminina só era contemplada por meio das imagens inspiradas nas deusas
clássicas, com a repetição de um padrão supostamento reverenciado pelos homens
(DOMINGUES, 2015).
O método científico emerge norteando as condutas humanas de maneira a
suscitar os ideais de liberdade dos seres humanos bem como o parecer de que o corpo é
decorrência de tais ideais (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). Desta feita, o
crescimento na esfera científica e técnica geraram dilecção pelo exercício da razão
científica como exclusiva forma de conhecimento (BARBOSA; MATOS; COSTA,
2011).
Diante desta “evolução” o corpo passou a ser um objeto de avaliações,
estudos e experimentos, transformando a crença teocentrisma em doutrina
antropocentrista (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011). O corpo, então, passa a ser
investigado, analisado, avaliado, descrito, redescoberto, e passa a ser retratado em
inúmeras obras de arte, como as de Michelangelo e Da Vinci (BARBOSA; MATOS;
COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
É claro que ainda observavam-se a disciplina e o controle sobre os corpos,
com a indicação de atividades físicas regulares mas com a ênfase na saúde corporal
(BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004; FOUCAULT, 1994, 1988).
A carne torna-se, logo, soberana sobre a alma, e a ânsia por um corpo sadio
discursivamente tiranizava os sujeitos, que se rendiam à prática física numa servidão ao
Estado (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Sincronicamente, os(as) sujeitos(as) passaram a ser percebidos enquanto
corpos controláveis e delineáveis, aptos à exploração e a serviço da razão (BARBOSA;
MATOS; COSTA, 2011).
A indústria moderna se desenvolve, ocorre uma expansão comercial e,
consequentemente, a promoção do sistema capitalista, modificando consideravelmente
as relações com os trabalhadores, que empenhavam-se na produção em série e não mais
69
era exigida a sua criatividade (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011), caracterizando o
surgimento de corpos manipuláveis subordinados ao poder disciplinar com o propósito
de subalternar estes corpos, controlá-los de modo coercitivo (FOUCAULT, 2007).
A produção em série do recente capitalismo e a “docilização” dos corpos
(FOUCAULT, 1994, 1988) faz com que os(as) sujeitos(as) sejam postos à disposição da
economia da produção de bens, diante de corpos produtores, saudáveis e dispostos à
consumir (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011; ROSÁRIO, 2004).
Todas essas transformações propiciaram o avanço tecnológico e de saberes,
de modo a refletir diretamente na expectativa de vida e condições sociais e de interação
entre os(as) sujeitos(as) (PAIM; STREY, 2004).
Com isso, os corpos belos, perfeitos e saudáveis das pinturas e esculturas de
tempos muito remotos, já passam a se tornar uma realidade entre um número considerável
de pessoas no mundo contemporâneo.
É notável a quantidade de pessoas investindo em seus corpos na atualidade,
todas na constante vontade de obtenção não apenas de um corpo saudável e bonito, mas
sensualmente prazeroso e que lhes ofereça status social de poder.
Diante deste breve percurso histórico no tocante à contrução de corpos
masculinos e femininos desde a Grécia Antiga, meu objetivo foi apontar como os corpos
femininos tem sido vistos e tratatados como inferiores há muito tempo, o que nos leva a
crer que nossos corpos, sejam eles masculinos ou femininos são construtos carregados
de significados e que se (re) constroem pela(o)/na(o) linguagem/discurso.
Os atos discursivos que se referem aos corpos não apenas produzem normas
mas também colaboram com o advento de novas ocorrências que geram uma série de
efeitos de mudanças. Assim, os corpos apropriam-se de espaços os quais o discurso se
refere, de maneira a interpretar a a sua justificativa. Vejamos, portanto, no subcapítulo a
seguir, a (des) construção de corpos (nada) dóceis a partir da perspectiva foucaultiana.
70
2.2 Corpos indisciplináveis, corpos nada dóceis e o diálogo com Michel
Foucault e a Teoria Queer
O corpo é o elemento central d1a obra de Michel Foucault, uma vez que é
sempre evidenciado enquanto uma existência bio-política-histórica (FOUCAULT, 1926-
1984). Contudo, o filósofo nos ensina que o corpo só tem significado dentro de uma
relação de poder (FOUCAULT, 2007), e seu significado (ou interpretação) é marcado
pela cultura, crenças, saberes científicos e, principalmente, pelo olhar do outro que ocupa
uma posição de poder em relação ao nosso corpo (FOUCAULT, 2007, 1987).
Em miúdos, não há um trabalho específico que trate apenas da descrição de
corpo em Foucault, mas inúmeros trabalhos que dissecam a questão do poder que incide
sobre o corpo. Diferentemente de Nietzsche52, Foucault desvincula o poder do corpo,
apontando que este atua historicamente sobre o corpo de maneira a constituir formas de
subjetividade, sendo, logo, inserido em um campo político, obrigando a produzir formas
de manisfestação (FOUCAULT, 1987).
O corpo, conforme o filósofo em sua obra Vigiar e Punir (FOUCAULT,
1987), consiste em uma composição de carne, uma cápsula que se preserva ao longo da
história, composta de órgãos e que está sujeito ao molde, à transformação, ao desenho de
acordo com as técnicas disciplinares e biopolítica à que é submetido.
Ainda, o autor assevera que trata-se de uma criação embasada nos discursos
e relações de poder-saber, é uma superfície (FOUCAULT, 1987); sofre intervenções de
diversas tecnologias historicamente ordenadas, o alicerce para os processos de
subjetivação (FOUCAULT, 2007, 1987).
Para Foucault (2007), o corpo está intimamente conectado à história e é
instituido a partir de uma ordem fisiológica/biológica, mas acima de tudo – e acredito que
de maneira mais marcante – tece resistências às imposições políticas, biológicas e
culturais eleitas como as normais, naturais. E é na materizalição deste corpo que
percebemos vestígios de diversas transformações, que, concomitantemente, nos revelam
52
Friedrich Wilhelm Nietzsche foi um alemão considerado um dos grandes pensadores do século XIX e
que substancialmente influenciou a sociedade no que diz respeito aos temas de filosofia, ciência, religião e
moral. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Nietzsche. Acesso em 18 de dezembro de
2018.
71
marcas corpóreas que registram as lutas travadas pelo controle deste mesmo corpo
(FOUCAULT, 2007, 1996).
Foucault (2007) defende que o corpo consiste em um território no qual os
efeitos de poder são manifestados, assim como representa um local em que se travam as
lutas para resistir à esse mesmo poder. Nesse contexto, Foucault (2007) assevera que os
corpos são moldados e adestrados pelas relações de poder no mundo moderno. O corpo
passa a ser a materialização do sujeito no mundo.
É sobre o corpo que recaem as estratégias de poder, transformando-o em um
ambiente de investimentos de saberes (FOUCAULT, 2007, 1996), que de sua vez,
permitem a geração das diferenças, pelo enaltecimento de valores como qualidade de
vida, jovialidade, beleza e felicidade, embaraçados com espetáculos de moldes físicos
humanos que passam a definir as demandas doutrinadoras de autogestão dos indivíduos
dentro de indicadores regulamentários.
A criação das subjetividades modernas confia no ajuste dos sujeitos aos
modelos de manifestação corporal e associa expectativas de prazer, liberdade, felicidade,
subalternizando os corpos aos fundamentos que projetam a (falsa) sensação de promoção
pessoal tão profícuos para os dispositivos de poder (FOUCAULT, 1988).
Àqueles que não se rendem às premissas disciplinares rumo a uma excelente
orientação de suas vidas são agraciados com os estigmas53 e preconceitos que os tornam
mira de diversos processos de patologização. Com isso, o corpo é submetido à técnicas
de correção/reparos/repreensão.
Neste ínterim, os (as) sujeitos (as) acabam se deparando com possibilidades
de ajustamento corporal às imposições das regras de disciplina e controle, propiciando
que participem da sociedade e sejam reconhecidos. Qualificados ou não à tais imposições,
os (as) sujeitos (as) conscientizam-se das posições que ocupam nesta sociedade e passam
a observar a normalização/conformação de suas posições e suas práticas.
53
Estigma é um termo que advém dos gregos e representava os sinais feitos por cortes ou por fogo de modo
a evidenciar que o (s) indivíduo (s) que os possuíam deveriam ser evitados em locais públicos e de
convivência social. Atualmente, o termo é utilizado para fazer referência ao diferente, àquele que possui
um atributo profundamente depreciativo (GOFFMAN, 1981), como no caso das travestis/mulheres trans,
seres que burlam a norma heteronormativa do binarismo homem/mulher.
72
O cuidado com o corpo e o controle das anomalias vigoram como preceitos
de gestão das vidas, sendo o corpo, vigiado agora pelo saber científico, subjugado a uma
infinidade de investigações (FOUCAULT, 2006).
Como nos é sabido, o poder não é repressivo, é, na verdade, produtivo,
criativo (FOUCAULT, 2007). Diante disso, a obstinação da força do poder sobre o
condicionamento do corpo não age de maneira a violentar os pressupostos dos prazeres
no intuito de se desprender (FOUCAULT, 2007). O poder desloca discursos acerca dos
deleites considerados aberrações para que possa condená-los e transformá-los,
efetivamente, em objetos do poder.
Um exemplo notório disso é o discurso sobre as feminilidades, ou seja, o que
deve um corpo feminino representar, possuir, ostentar. As mulheres cisgêneras – aqui em
posição de poder pois ocupam um lugar de legitimidade que caminha juntamente com os
discursos bio-científicos – são interpretadas pelo discurso social-médico-farmacêutico
como belas e completas se apresentam seios fartos, corpos modelados pelas cirurgias
estéticas e outras maravilhas da indústria farmacêutica, gesticulação e atitudes impostas
socialmente.
De outra via, os corpos das mulheres trans e travestis são massacrados por
não estarem em concordância com os discursos bio-médicos, e logo sentem o poder sobre
seus corpos em forma de patologização. Ainda, para serem aceitas em suas comunidades,
precisam se sujeitar aos discursos socialmente impostos dos padrões de beleza e acabam
submetendo-se a aplicações de silicone industrial para modelar os seios, quadris, glúteos,
algumas submetem-se a cirurgias plásticas, e o consumo de hormônios, de maneira a
beneficiar a indústria farmacêutica.
Conforme Foucault (2007, 1987) nos mostra, o corpo é avaliado pelo olhar
do outro que irá aprová-lo ou não, em concordância com o discurso vigente. Caso o corpo
não passe pelo crivo daquele olhar, precisa se submeter às transformações sociais que
fazem com que aquele corpo interpretado seja adequado e melhorado para o bem de seu
possuidor – é bom para quem o transforma, mas melhor para a indústria médica,
farmacêutica, etc. Vemos, então, a relação do poder enquanto uma força produtiva e
criativa – não só pune, mas cria (FOUCAULT, 2007, 1987).
Percebemos, desta maneira, que o corpo sofre os efeitos das técnicas de
poder, que se mostram por meio dos discursos e práticas sociais que influenciam e
73
configuram o corpo. Ora, então, podemos concluir que diante de tantas técnicas e
discursos corporais, os corpos não tem mais nada de natural.
Saindo das teorias de Foucault e adentrando algumas discussões pertinentes
à Teoria Queer, temos que a expressão queer consiste em um termo de valor pejorativo
que assinala a abjeção daquele que recebe tal denominação. Porém, atualmente, o termo
tem sido orgulhosamente enunciado para expressar a diferença, de maneira a determinar
territórios e espaços de corpos que insistem em resistir.
A chamada Teoria Queer tem sido reconhecida como uma coleção de ideias
que questionam os construtos discursivamente considerados como os naturais e que
amparam as distinções de sujeito e identidade. A teoria traz em seu bojo inúmeros
pensadores que a defendem, embora alguns divirjam em suas teses.
Judith Butler, por exemplo, considerada uma de suas fundadoras, sinaliza que
o corpo consiste em uma superfície na qual a performatividade do gênero é vista e
percebida, existindo a partir de sua generificação e do discurso que o intitula (BUTLER,
2003). Como a filósofa pontua, os corpos não apresentam presença significativa antes da
definição de seu gênero (BUTLER, 2003).
Assim como defende Foucault (2007; 1987), Butler (2003) acredita na
existência de um corpo material, mas que é atravessado pelos efeitos do poder, discursos
e forças ordenadoras. Ela não crê na existência de um sujeito que seja um performatizador
na retaguarda de feitos, um sujeito anterior à obra, mas a obra em si (BUTLER, 2003). O
corpo, então, passa a ter uma materialidade como um palco de transformações realizadas
ou a se realizar.
De outra via, Paul Preciado (2014) faz uma crítica aos pressupostos de Butler
(2003) e assevera que o dito “corpo dócil” (FOUCAULT, 1987) conhecido no discurso e
por meio da performatividade (BUTLER, 2003) são incriminados. Em sua obra Manifesto
Contrassexual, Preciado (2014) defende o termo contrassexualidade como uma teoria do
corpo como um lócus tanto de opressão como de resistência, entendendo o corpo
enquanto um local de estruturações e exteriorizações subversivas da sexualidade,
identidade e gênero, um espaço de criação.
Tradicionalmente, o sexo e a sexualidade são elementos sempre traduzidos a
partir de sua biologicidade, o fundamento instrínseco, não-histórico, fixo e binário do
corpo humano. São tais definições que a Teoria Queer se encarrega de desestruturar, de
74
maneira a levar em linha de conta as constituições culturais e históricas que se fazem no
corpo.
Butler (2003, 1993) entende que o sexo e a sexualidade não são
naturais/biológicos, bem como complementa que o gênero é um construto cultural, sendo
constituídas em virtude de relações de poder e pela força do discurso. Deste modo, são
perspectivas que não podem ser enxergadas como circunstâncias biológicas anatômicas,
preexistentes, e sujeitas à categorizações.
Com isso, considerando-se que a sexualidade não é algo prontamente
qualificável em virtude de sua natureza nada substancial, ouso inferir que o termo queer
propicia ampliar os conceitos de orientação sexual e sexualidade para adiante de uma
imprescindibilidade de categorização ou de escolha de um só sentido conduzido por um
desejo único na separação sexual.
A Teoria Queer, então, assente pensarmos a orientação sexual como inúmeras
formas de conquistar locais enquanto corpos sexuados fixados em um lócus também
sexuado. A sexualidade, é, portanto, uma correspondência do corpo com o mundo e com
os outros, ou seja, é cultural, longe de ser oriunda de uma prática biológica/natural.
Assim, o sustentáculo da sexualidade, em conformidade com a Teoria Queer,
é a elaboração política e histórica no cerne da cultura.
O segundo capítulo intitulado Corpo: Uma Metamorfose Ambulante teve
por objetivo entender a construção de corpos masculinos e femininos no decorrer da
história, tendo como força motriz a cultura e os costumes de cada época histórica, desde
a Grécia Antiga até os tempos atuais.
A escolha por iniciar a discussão a partir da Grécia Antiga se deu por ser um
período histórico que muito se assemelha com os preceitos de construção corporal da
atualidade, ou seja, tanto na Grécia Antiga como na contemporaneidade nota-se a
valorização dos corpos belos, musculosos, perfeitos e saudáveis, moldados segundo o
discurso hetero-cisnormativo hegemônico imposto por instituições legitimadas e
detentoras do binômio poder-saber (FOUCAULT, 2007, 1996, 1987).
Ainda, a metamorfose desse corpo ambulante é observada no decorrer dos
períodos históricos, mas elucidada por meio dos debates promovidos com a visita à
Foucault e aos teóricos da Teoria Queer, que lindamente nos provam como inúmeros
corpos e grupos encerram enclausurados às margens da sociedade simplesmente por
75
serem corpos que foram construídos dentro de uma riqueza significativa para além do
binarismo homem/mulher cis.
Por isso da escolha do poema de Virgínia Guitzel na epígrafe, por concordar
com o desabafo da autora contra todo o discurso heterocisnormativo que insiste em
determinar, produzir, adequar o corpo – e também o sexo e o gênero – que é legítimo para
ela, se negando, dessa maneira, a se reduzir a um formato discursivamente lido como o
apropriado.
No próximo capítulo, discuterei os principais pressupostos da pesquisa
interpretativista. Em seguida, são apresentados as participantes deste estudo: o contexto
e os instrumentos de geração de dados e os passos analíticos.
76
CAPÍTULO 3
Transitando pelos preceitos metodológicos
Transfobia
Virgínia Guitzel
U
ma vez que o cerne desta tese é suscitar na seara de estudos as
expressões de gêneros, as transgeneridades, as travestilidades e os
sentidos que as mulheres trans/ travestis atribuem ao seu processo
de envelhecimento, faz-se imprescindível ilustrar algumas proposições metodológicas
bem como apontar as escolhas que respaldaram o percurso e a conclusão deste trabalho.
77
Para me auxiliar no alcance dos objetivos traçados, faço as seguintes
perguntas de pesquisa:
78
3.1 O caminho bafônico54: da escolha da abordagem metodológica ao
tratamento dos dados
Realizar um trabalho dessa natureza me fez examinar por diversas vezes qual
era o meu verdadeiro papel aqui. Primeiramente, me sentia deslocada por “invadir” as
vidas de pessoas as quais eu não conhecia, não tinha a mínima proximidade ou afinidade,
e depois publicar estórias e histórias que pudessem ser vistas como julgamentos e
avaliações generalizantes e redutoras de minha parte.
Porém, no decorrer da pesquisa, entendi que meu trabalho era dar a minha
compreensão acerca do entrelaçamento de significações produzidas pelas travestis e
mulheres trans que tão gentilmente concordaram em colaborar com a minha construção
de conhecimento, no tocante ao seu processo de envelhecimento.
54
Do bajubá, bafônico significa espalhafatoso, que chama a atenção.
79
Nesse encadeamento, Denzin & Lincoln (2006) garantem que a abordagem
qualitativa-interpretativista se constitui em uma alternativa investigativa que propicia
proximidade e harmonização eficazes entre os envolvidos: as atrizes sociais – as
travestis/mulheres trans – e a pesquisadora. Percebe-se, portanto, a característica
colaborativa de interação, troca, diálogo, engajamento e respeito entre as interlocutoras
(MUYLAERT et al, 2014).
Respeitando tal proposta, meu intuito foi trabalhar com entrevistas narrativas
combinadas com a entrevista semipadronizada para a geração dos dados os quais fora
interpretados com o auxilio das concepções de corpo e poder de Foucault 2008, 2007,
1996, 1994, 1987, 1988), bem como de alguns preceitos da Teoria Queer (BUTLER,
2003, 1993), e definições de pesquisadores que se debruçaram sobre o tema (SIQUEIRA,
2004, 2012; SILVA, 1993; Antunes, 2010; Leite Jr (2017; Casteleira, 2014; Costa, 2013,
entre outros).
80
2009). Com isso, os(as) entrevistados(as) participam da entrevista de maneira espontânea
tendo perguntas abertas55 complementadas por suposições implícitas (FLICK, 2009).
Para tanto, o (a) pesquisador (a) precisa ter a consciência de que a narrativa
não seja obstruída e/ou interrompida, de maneira a estimular o participante a persistir na
sua narrativa até o final (FLICK, 2009). Muylaert et al (2014) reforçam que a influência
do pesquisador (a) é mínima, contudo, este (a) deve utilizar a mesma linguagem do (a)
entrevistado (a) de modo a criar um ambiente de comunicação mais real.
Además, as entrevistas narrativas56 permitem o aprofundamento das
investigações, guiando os (as) participantes para o relato de eventos que evidenciem
aspectos não explícitos para os (as) entrevistados (as) (MUYLAERT et al, 2014).
55
A perguntas abertas são aquelas que exigem do(a) entrevistado(a) respostas completas as quais requerem
o uso de conhecimentos e a expressão de sentimentos dos(as) envolvidos(as). São objetivas, diretas e de
maneira alguma inferem as respostas das pessoas entrevistadas.
56
Há certa confusão recorrente entre “entrevista narrativa” e “pesquisa narrativa”. A entrevista narrativa
tem por intuito conduzir o entrevistado à construção de uma narrativa acerca do tema abordado
(MUYLAERT et al, 2014; FLICK, 2009), enquanto que a pesquisa narrativa, que não é o caso desta
pesquisa, baseia-se em narrativas enquanto investigação, tendo o processo de formação relacionado nas
histórias contadas pelos sujeitos, de maneira a reconfigurá-los. Desta forma, a narrativa constitui-se num
meio para compreendermos a experiência e para a efetivação da aprendizagem humana (CLANDININ &
CONNELLY, 2011; CLANDININ & ROSIEK, 2007).
81
Ainda, fiz uso de ferramentas digitais como Facebook, Whatsapp e e-mail,
ferramentas estas que me permitiram uma proximidade ainda maior com as sujeitas:
trocamos mensagens, atualizamos informações, enviamos fotos e documentos, bem
como, às vezes, nos falávamos apenas para saber como uma ou outra estavam, e/ou ter
acesso à outras participantes da pesquisa.
Notei, então, que utilizei inúmeros recursos além dos dispostos pelas
entrevistas narrativa e semipadronizada. Me detive a fatos e relatos contidos em meu
diário de campo, comentários realizados em postagens do Facebook, trocas de mensagens
via Whatsapp realizadas, às vezes, sem intenção nenhuma de gerar dados.
Mas compreendi que as interações nestes contextos eram essenciais para que
eu conseguisse compreender as minhas interlocutoras com os fragmentos faltantes,
entender um pouco mais sobre suas constituições e identidades. Paraíso (2012) e Caldeira
& Paraíso (2016) defendem o uso desta técnica – que elas identificam como bricolagem
metodológica – e que tem por intuito utilizar uma miscelânea de metodologias e
ferramentas na realização da pesquisa. É como se cada pesquisador(a) construísse o seu
percurso metodológico de modo a (re) significar a pesquisa (CALDEIRA; PARAÍSO,
2016).
A temporalidade da pesquisa se limitou entre março de 2016 a setembro de
2018. A princípio, levantei informações junto às participantes no tocante ao nome social,
idade, cor, origem, escolarização, formação e profissão, conforme exposto mais adiante.
A maioria das entrevistas foi realizada individualmente, mas nem todas foram
presenciais e/ou contínuas. Uma vez que algumas das participantes moravam em outras
regiões do país, que não a região Centro-Oeste, usufruí dos recursos tecnológicos e de
rede para poder me comunicar com as meninas. As entrevistas presenciais foram
registradas por meio de gravador de voz, conforme explicado e autorizado pelas
participantes. As entrevistas via webcam do Facebook Messenger também foram
gravadas, mas infelizmente, não consegui otimizar os audios a ponto de transcrevê-los na
íntegra. Sendo assim, os dados foram de imediato lançados no diário de campo57.
57
Chamei de Diário de Campo o meu caderno de notas acerca das coisas que considerava interessantes
quando encontrava com as interlocutoras, ou no momento em que realizava as entrevistas, de modo a
registrar gestualidades, expressões faciais, gírias e comentários que pudessem facilitar a compreensão dos
áudios.
82
Ainda, em determinados momentos em que realizava as entrevistas
presenciais, a entrevistada precisava interrompê-la por motivo de outros compromissos.
Retornávamos em outro dia e horário, no modo presencial, ou via video chamada do
Facebook ou Whatsapp, como ocorreu com Dê Silva, Adriana Liário, Rebeca e Jéssica
mais de uma vez. A ideia era garantir a construção de um espaço em que as narrativas
acerca de suas emergissem e os sentidos acerca do processo de envelhecimento fossem
se construindo, sem comprometer as atividades regulares de cada uma das colaboradoras.
Não houve uma linearidade na realização das entrevistas. Explico: mesmo
tendo um roteiro de questões previamente estabelecido, conversei com as interlocutoras
inúmeras vezes, não apenas acerca do previsto no roteiro mas também acerca de dúvidas
que surgiam quando eu ouvia as suas entrevistas.
Meu primeiro contato foi com Amanda, indicada por um amigo professor que
a conhecia. Como à época ela estava viajando, me indicou Patrícia para a primeira
entrevista, caracterizando um método conhecido por “bola de neve”, na abordagem
qualitativa, no qual uma entrevistada indica outra. Vinuto (2014) assegura que este
método é muito útil quando a pesquisa debruça-se sobre assuntos de âmbito privado e/ou
seus(suas) participantes são de difícil acesso.
Adriana Liário, por exemplo, que estabeleci contato on-line pela primeira vez,
também foi outra intermediadora de entrevistas. Ela sugeria nomes, comentava com
possíveis interlocutoras que eu as procuraria, e, em determinados momentos, consegui as
entrevistas, como foi o caso com Kate, Jussara e Dê Silva, todas conhecidas de Adriana.
Assim que comecei a analisar o material coletado percebi a necessidade de
“confirmar” algumas informações com as participantes pois me via perdida entre a teoria
e a prática real, ou seja, os autores que eu tinha lido até então, eram na sua maioria homens
cisgêneros, retratando realidades que divergiam de alguns fatos que me eram relatados.
Entretanto, comecei a perceber que havia muito mais mulheres trans/travestis
acadêmicas do que eu poderia sequer imaginar. Logo, ao realizar uma busca rápida pela
internet, encontrei nomes como os de Luma Nogueira, Gabriela da Silva, Adriana Sales,
Sayonara Nogueira, Marina Heidel, Bruna Raysa, Megg Rayara, Amara Moira, entre
outras ativistas, militantes, professoras, acadêmicas tão importantes para a construção
teórica e prática acerca desta temática no país. Nada mais justo que fazer menção a todas
83
elas na minha pesquisa de modo a ratificar as entrevistas com as pesquisas desenvolvidas
por estas estudiosas.
A minha intenção era a de ter na pesquisa participantes de todas as regiões do
país, o que justifica a minha busca desmedida pelas redes sociais. O maior desafio se
configurou como sendo conseguir que as interlocutoras aceitassem participar da pesquisa,
considerando-se que não queria ser vista como a mulher cisgênera que tenta analisar os
relatos de mulheres transgêneras como se estivessem em um “laboratório”. As pessoas
tem muitas coisas para fazer, são ocupadas e não são todas que conseguem dispor de um
tempo em suas vidas atribuladas para colaborar com uma estranha que adentrará em suas
particularidades.
Infelizmente não consegui convencer todas as mulheres que interpelei a
participar do meu estudo. Como se não bastasse, algumas possíveis participantes
responderam à minha solicitação quando eu já tinha encerrado o período de geração dos
dados (setembro de 2018).
Com o material todo registrado e arquivado por gravador ou em arquivos de
áudio e textos, como nos casos das conversas ocorridas por intermédio do Facebook
Messenger, fragmentei o material empírico em partes distintas. Ouvi inúmeras vezes os
áudios, li as transcrições e comparei com as informações/anotações do diário de campo.
Organizei, então, o quadro que identificava as participantes deste estudo, como veremos
na próxima subseção.
Seguidamente, reli todas as transcrições das entrevistas e anotações do diário
de campo em busca dos temas que se faziam recorrentes em suas narrativas. Identificados
os temas recorrentes, parti para a incidência de falas de cada uma das participantes, acerca
dos temas identificados, conforme exemplificado abaixo:
84
QUADRO I: SISTEMATIZAÇÃO DAS NARRATIVAS DE ACORDO COM OS TEMAS
58
Aplicativo gratuito disponível em https://cloud.google.com/speech-to-text/?hl=pt-br. Acesso em 07 de
julho de 2018.
85
3.2 As tias, as vós e as novinhas: Elas arrasam59!
59
Arrasar é outro termo do bajubá muito utilizado por entre as mulheres da minha pesquisa. As variações
“arrasou” ou “fechou” são muito comuns e significam abalar, causar, ser um sucesso.
86
depois se confirmaram com os dados obtidos com as entrevistas realizadas com as demais
meninas.
87
Patrícia demorou um pouco a me responder, o que me levou a pensar que ela
talvez não tivesse interesse em participar da entrevista. Depois de certo tempo, respondeu
as minhas mensagens de maneira muito receptiva, e marcou a nossa primeira conversa na
escola em que trabalha. Na escola, Patrícia estava bem ocupada, e tive a impressão de que
ela era o braço direito do diretor, o que depois se confirmou pelo próprio diretor que
afirmou tê-la nomeado por uma questão política, de ativismo, “pra incomodar muita gente
mesmo”. Todavia, andando pelos corredores da escola com Patrícia, percebi que os alunos
a chamavam pelo nome de registro masculino, mesmo ela sendo toda uma construção
feminina. Perguntei a ela se tal fato não a incomodava ou porque ela não exigia que eles
a chamassem pelo seu nome social, contudo, ela expressou não ligar muito pra isso, mas
que exigia muito respeito por parte deles. Para ela, ser respeitada e valorizada enquanto
uma profissional competente era muito mais importante do que ser chamada pelo seu
nome social.
Patrícia é uma mulher muito bonita: as pernas bem torneadas, marcadas pelos
jeans, cabelos e unhas bem feitos, maquiagem delicada, saltinhos, andava pela escola e
era interpelada por todos. Sempre tinha uma aluna que a parava e lhe dava um abraço, ou
queria ver o seu cabelo, suas unhas.
Patrícia comenta já ter trabalhado como profissional do sexo por ser uma
profissão que a permite receber “um dinheiro fácil”. Como ela mesma alega, é
extremamente difícil conseguir um emprego se você é uma pessoa transgênera. Os
empregadores negam a existência de vagas em suas empresas para pessoas transgêneras,
pois, em conformidade com Patrícia, tais empregadores pensam que a contratação de
pessoas transgêneras pode afastar clientes de seus negócios, além de não quererem
vincular a sua marca a uma imagem abjeta e subversiva.
88
Licenciatura Plena em História, pela Universidade Federal de Mato Grosso.
Posteriormente, realizou inúmeros concursos para que pudesse ter a tão sonhada
estabilidade e não precisse sobreviver da prostituição.
Sobre esse assunto, Patrícia garante que a prostituição não oferece garantias
a pessoas transgêneras durante a velhice, visto que “somos pecinhas de supermercado (...)
a serem trocadas quando pecinhas mais novas e mais bonitas aparecem”. Patrícia expressa
que transgeneridade, profissional do sexo e velhice são marcadores que não combinam, e
podem levar uma mulher à fome.
89
ela tinha o Ensino Médio incompleto, juntamente com a maioria das moradoras da casa
da Meire, contra a minoria que não sabia ler nem escrever. Mas a situação mudou para
Adriana. Ela conseguiu concluir o Ensino Médio e se matriculou num curso de Direito
em uma faculdade particular.
Adriana é uma mullher do tipo “boazuda”. Tem os quadris bem largos, seios
fartos, maçãs do rosto marcantes. Toda construída com o uso de anticoncepcionais e
silicone industrial. Saiu de casa cedo pois sua família não aceitava a sua identidade de
gênero. Chegou a morar no Kilômetro Zero, em Várzea Grande-MT antes de se mudar
para Rondonópolis-MT para morar na casa da Meire.
É uma guerreira nata, sempre disposta a uma briga pela melhoria das
condições das mulheres trans e travestis da casa da Meire. Ela conta que sofreu inúmeras
violências nas ruas, mas não se deixou abater. Adriana não tem um dos braços em virtude
de negligência nos serviços de atendimento de saúde, conforme ela comenta, após um
acidente de trabalho. Mas isso não a impede de fazer as coisas que ela acredita serem
corretas e justas.
Sara Wagner Pimenta Jr, nome real, 42 anos, de cor parda, travesti e mulher
trans, heterossexual, solteira. Por vezes, Sara se declarou travesti e em outros momentos
alegou ser uma mulher trans. A escolha por ambos os termos se dá em função de questões
políticas, de militância e ativismo. É graduada em Letras, é professora de língua inglesa
em uma escola pública de educação básica no interior do Rio de Janeiro, e é Mestranda
em Educação na UERJ.
Algo muito interessante a respeito de Sara é que tanto pessoalmente como nas
redes sociais ela se autointitula mulher trans, travesti, mas também pai e avô: ela tem um
90
filho e um neto, o que nos remete à discussão da importância da valorização e alteração
do nome de batismo perante a justiça.
É alta, cabelos loiros, compridos, sempre amarrados no alto, o que nos remete
à personagem Jeannie é um gênio60. Tem o corpo todo definido em virtude da intensa
malhação a que se submete. É “Sarada”, conforme brinquei inúmeras vezes. É uma
mulher de grande força física, mas também que transborda emoção. Suas falas são todas
carregadas de tamanha expressividade e luta. Antes de conhecê-la pessoalmente já nos
falávamos tanto todos os dias, via Facebook, que quando nos vimos pessoalmente pela
primeira vez, a impressão que tivemos era que éramos amigas há séculos.
60
Jeannie é um gênio, em inglês I dream of Jeannie, é um famoso seriado americano, composto de 139
episódios, apresentado pela primeira vez em1965, criado e produzido por Sidney Sheldon. Relata a estória
de uma gênio, Jeannie que coloca o Major Nelson em inúmeras trapalhadas. No final da série, Major Nelson
se rende às peripécias de Jeannie e eles se casam. Disponível em
https://pt.wikipedia.org/wiki/I_Dream_of_Jeannie. Acesso em 05 de novembro de 2018.
91
coletivo, de maneira a mesclar todos os movimentos sociais do país: de raça, gênero,
etnia, entre outros.
Dê Silva, nome real, 28 anos, mulher trans, de cor parda, Ensino Superior
incompleto, e heterossexual. Quando a conheci, Dê era professora na rede pública
municipal e militante do Movimento Sem Terra-MST, movimento este que a formou
enquanto cidadã, visto que foi nascida e criada em um assentamento. Dê assevera que foi
o MST que a ensinou a militância e que este foi o primeiro grupo a entender a sua
identidade, talvez por serem todos considerados diferentes na sociedade. Atualmente, Dê
é aluna no curso de Engenharia Agrícola ém uma universidade pública, onde também
participa de inúmeros coletivos e atividades políticas, tanto pela causa LGBT como
também pelo Movimento Sem Terra.
92
Conheci a Kate durante as minhas visitas na casa da Meire. Sempre muito
calada, não é de “dar conversa” para todo mundo, conforme me confessou certa vez. “Sou
muito séria. Não gosto de bagunça, não”. Sempre que ia à casa, pedia à Adriana que
falasse com ela para que pudéssemos bater um papo. Kate nunca se mostrava à vontade.
Um dia, após uma conversa com a Jussara, ela concordou em falar comigo usando o
gravador de voz.
Kate é uma travesti de estatura mediana, cabelos pretos e cacheados, mas que
não me revelou muito sobre o seu passado. Disse que prefere deixá-lo onde está. Para ela
o futuro é o que lhe interessa. É muito limpa e organizada. Sempre que a via na casa da
Meire estava com um pano e um balde limpando os cantos, arrastando as coisas. Nunca
parava. Disse-me que nada melhor que um lugar limpo para morar.
Kate me contou que nunca gostou muito de estudar, mas também não deu
muitos detalhes acerca de sua formação escolar. Em conformidade com os seus relatos,
percebi que ela não tem o Ensino Médio completo.
Conheci Jussara na casa da Meire também, mas pelo que me recordo, nossa
primeira conversa pra valer aconteceu embaixo de uma árvore, fumando um cigarro, antes
do desfile de 07 de setembro de 2017 – cena que abre a introdução deste trabalho. Jussara
é o tipo mignon. Tem aproximadamente 1,70m, baixa comparada às demais interlocutoras
deste trabalho. Olhos castanhos e sempre sorridentes, cabelos bem finos de um tom
castanho claro, quase alourados.
Jussara está sempre na cozinha da casa da Meire. Por já ter trabalhado por
muitos anos na casa de uma turca bem conhecida na cidade, especialmente na cozinha,
ela conta que este é o seu espaço. Ela é ótima de papo e café. Mas também não gosta de
confusão. Evita todo e qualquer problema para não se indispor com ninguém. Ela afirma
com toda força que a casa da Meire é o seu lar, e que lá ela tem uma família. Embora
93
tenha expressado mais de uma vez que tem grande vontade de abrir seu próprio
restaurante, ser dona de seu negócio, nunca expressou sair da casa. É lá que ela mora, se
diverte, e aconselha as mulheres que vivem com ela na casa.
Conheci a Rebeca por intermédio do prof. Neil Franco. Disse a ele que estava
pensando em abordá-la para fazer uma entrevista para a minha pesquisa, e como ele já a
conhecia, sugeriu que eu a procurasse em seu nome, explicando meu estudo e sua
intencionalidade. Rebeca foi a mais sensacional e divertida de todas as meninas. De um
ótimo humor, tiradas inteligentes e sarcásticas, ela ganhou o meu coração.
Confesso que ao falar desta maneira dela passo a impressão de termos nos
conhecido pessoalmente, mas não tive essa alegria. Nossos contatos ocorreram apenas
via o Messenger61 do Facebook. Conversamos via vídeo duas vezes e as demais, fizemos
trocas de mensagens pela mesma rede social.
Sempre muito crítica, tinha a todo tempo uma correção, sugestão ou adição
às minhas perguntas de pesquisa. Rebeca foi uma professora no meu percurso. Apontou
inúmeras falhas no meu discurso no tocante às escolhas lexicais que eu fazia.
61
O Messenger do Facebook, ou o Facebook Messenger, como o aplicativo é conhecido na internet, é um
aplicativo de mensagens instantâneas do Facebook. Ele tem uma série de recursos que vão muito além do
bate-papo com os contatos da rede social. É possível trocar arquivos multimídia, realizar ligações de voz,
fazer chamadas de vídeo, entre outras aplicações. Disponível em https://www.techtudo.com.br/dicas-e-
tutoriais/noticia/2014/08/como-usar-o-facebook-messenger-veja-como-aproveitar-ao-maximo-o-
chat.html. Acesso em 14 de novembro de 2018.
94
trabalha como cabeleireira e designer de sobrancelha. É casada. Possui Ensino Superior
Incompleto. Já começou a fazer o curso de Letras e de Direito, mas interrompeu ambos.
Ela alega que gostaria mesmo de fazer um curso voltado para a estética corporal e beleza.
Conheci Fabiula por intermédio de uma conhecida que mora em São Félix do
Araguaia-MT, e me contou que Fabiula é muito popular na cidade por causa das suas
atividades de beleza e estética no salão em que trabalha. Obtive seu contato e passamos a
nos falar diariamente via Whatsapp e também pelo Facebook, via Messenger – mensagens
de vídeo e texto – .
Ela é alta, bem magra, cabelos lisos e pretos. Me contou que desde criança
percebia a sua diferença, quando comparada a outros garotos. Embora sua mãe tenha
insistido na ideia de que Fabiula era um menino, dado um certo momento de sua transição,
sua mãe se convenceu que Fabiula era do gênero feminino. Ela é bem enfática ao afirmar
que a família não a discrimina por ser uma pessoa trans.
Outro fator que acredito ser notável é a questão da cor da pele. A cor
autodeclarada que prevaleceu nos relatos foi a cor parda, com seis sujeitas que se
interpretam enquanto pessoas pardas, três brancas e duas negras. Talvez, tal fato tenha
ocorrido pois algumas das interlocutoras desejem escapar do estigma e da discriminação
que a cor da pele lhes impõe. A esse respeito, Megg Rayara de Oliveira (2017) afirma
que a cor preta pode ser interpretada como a cor do Diabo, do mal, em contraposição à
brancura e beleza dos anjos.
95
participante com o Ensino Médio Completo (Magistério), uma com dois cursos de
graduação completos, uma Mestranda em Educação e uma Doutoranda em Educação.
Contudo, senti, por inúmeras vezes, que ao falar a respeito de ser ou não ser
profissional do sexo, algumas participantes da pesquisa se sentiam incomodadas,
principalmente em nossos primeiros contatos, como foi o caso de Fabíula. Mesmo tendo
diversas discussões acerca da temática, no sentido da regulamentação trabalhista da
prostituição, tendo como exemplo o projeto de Lei n. 4211/2012 proposto pelo deputado
Jean Wyllys, ou, inclusive, as discussões propostas pelo “putafeminismo”, lideradas por
Amara Moira e Monique Prada.
96
QUADRO I: IDENTIFICAÇÃO DAS SUJEITAS DA PESQUISA
97
Essa discussão se fez necessária para compreender a visão de pesquisa desenvolvida ao
longo deste estudo.
98
CAPÍTULO 4
Corpos em Transformação: os babados contados por
Travestis/Mulheres Trans
Poema Trans
Vyvi62
E
travestis/mulheres trans constroem sentidos acerca de si, sejam
elas idosas ou não; b. entender como as mulheres trans/travestis
percebem/significam o seu processo de envelhecimento; c.
assimilar como as mulheres trans/travestis articulam as noções de
gênero e envelhecimento na sua construção identitária; retomo as
perguntas que nortearam essa pesquisa:
62
Poema escrito por Vyvi, mulher trans, redatora e mantenedora da página Amino LGBT+, que tem mais
de 399 mil seguidores/membros. Disponível em https://aminoapps.com/c/comunidade-
lgbt/page/blog/poema-trans/j0q1_z6lhKuJLqlYbEE3RvzjBkZYardRMr3. Acesso e, 20 de outubro de
2018.
99
2. De que maneira as violências sofridas pelas travestis/mulheres trans em
suas trajetórias são determinantes/marcadores do início do seu processo de
envelhecimento?
Enfatizo, neste capítulo, então, a análise dos excertos retirados das narrativas
acerca das trajetórias de vida das 11 (onze) colaboradoras desta pesquisa, delimitando os
tópicos que manifestaram-se nos subcapítulos que nomeei Ai que batifum! ao apresentar
as narrativas acerca de fatos que envolvem o seu presente, e Se joga! para fazer menção
às narrativas que dizem respeito às expectativas das interlocutoras no tocante ao futuro.
É imprescindível mencionar aqui que diante de uma infinidade de histórias de
si a escolha dos trechos abaixo não se deu de maneira aleatória, mas pautada na
observância daqueles excertos que melhor alcançavam os objetivos traçados e
respondiam as perguntas de pesquisa propostas ainda na introdução dessa tese.
100
Meire, os assassinatos da Tábata Brandão e da Tyetta Prazer, a falta de ônibus coletivos
em horários variados, falta de respeito no ambiente escolar, etc, e acabou me confessando
que estava pensando em ir ao terreiro para tirar o batifum. “Eu não tenho religião certa
não. Às vezes eu vou na igreja. Mas hoje eu quero ir no terreiro pra tirar o batifum”.
Entendi que a intenção de Adriana era simplesmente receber boas energias e afastar as
ruins.
Diante dos três exemplos trazidos, todos com Adriana Liário usando o termo
batifum, penso que seria apropriado utilizá-lo no título dessa subseção considerando-se
as adversidades enfrentadas pelas mulheres trans e travestis no tocante ao seu presente.
Ao narrarem acerca de suas ações atuais, pedi que elas evidenciassem o que
elas achavam mais difícil para as suas vivências, o que mais as incomodava enquanto
mulheres trans/travestis. Observemos alguns excertos:
Excerto 1
“Ah! É claro que o mais difícil pra nós é sair na rua de dia né? Eles xinga, faz
cara feia, joga pedra...” (Kate, 2 set. 2018).
Excerto 2
“A hostilização de nossos corpos ocorre pelo simples fato de respirarmos”
(Gabriela da Silva, 14 jan. 2018).
Excerto 3
“Eles fica olhando e cochichando. As vezes eles solta que a gente precisa de
um corretivo.... sabe né? Eles acha que se dão uma lição na gente a gente vai
virar homem...” (Fabiula, 13 jul. 2018).
Nos chama atenção na leitura dos três excertos acima que a maior
preocupação que paira sobre as mentes das mulheres trans/travestis tem relação com a
violência vivenciada, em especial nos exemplos trazidos, a violência verbal materializada
em forma de ameaças, independente da faixa etária das entrevistadas.
As narrativas elencadas acima nos apontam que corpos trans e travestis são
corpos femininos que encontram-se longe da imagem casta e submissa defendida pelo
discurso normativo vigente desde a Idade Média, período em que o corpo era marcado
por reprimendas e atitudes de correção (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO;
2012/2017; ROSÁRIO, 2004).
Esse discurso parece rotular os corpos trans como pagãos, errantes pecadores
e suscetíveis ao vício, à fraqueza, à sexualidade, à prostituição, à luxúria, à perversão da
101
alma, ou seja, a um estatuto de deteriorização social dos sujeitos (DOMINGUES, 2015;
ROIZ, 2009).
Essas designações acabam por construir uma percepção não-humana para os
corpos trans (JESUS, 2018), portanto, torna-se natural a violência contra seus corpos.
Particularmente, neste momento em nosso país, em que observa-se uma ampliação do
discurso de ódio contra pessoas vistas como abjetas, penso como essa percepção
direcionada aos corpos trans e travestis criam cadeias discursivas que procuram anular a
existência desses corpos lidos como permiciosos para a sociedade. E constantemente a
sociedade vincula a transgeneridade aos conceitos de impureza, ameaça, contaminação,
rancor (PAZZINI; MIGUEL, 2016; PELUCIO, 2007; BENEDETTI, 2005).
Travestis e mulheres trans, então, são vistas como ininteligíveis (BUTLER,
2003) isto é, seu sexo biológico, sua identidade de gênero e sua orientação sexual não
condizem com o discurso socialmente imposto, gerando preconceito e discriminações de
toda ordem contra essas mulheres.
Larissa Pelúcio (2007) pondera que, conforme apontam as colaboradoras da
sua pesquisa, em concordância com as minhas interlocutoras, “sair de casa é como ir à
guerra”, uma vez que é extremamente fatigante para as mulheres trans/travestis se
salvaguardarem dos olhares, falas e violências a que são acometidas diariamente (“...Eles
xinga, faz cara feia, joga pedra...”; “Eles fica olhando, cochichando...”).
Jussara tem vários relatos que confirmam os dicursos e as práticas sociais que
violentamente atacam as mulheres trans e travestis pelo simples fato de saírem de casa.
A impressão que tive foi que Jussara e as demais mulheres trans e travestis são pessoas
que devem ser mantidas em cárcere, isoladas da sociedade, em conformidade com os
excertos:
Excerto 4
“Só tando aqui mesmo [na avenida durante o desfile de 7 de setembro] pra
ninguém fazer nada com nós. Se fosse outro dia, eles ficava olhando, jogando
pedra...” (Jussara, 7 set. 2017).
Excerto 5
“A gente não pode nem sentar aqui na frente [de casa] que as doida crente lá
da frente fica jogando pedra, ovo, tomate. Elas acha que a gente quer aqueles
macho delas” (Jussara, 10 dez. 2017).
102
Excerto 6
“A gente quer sair mas não é qualquer lugar que a gente pode. As vezes as
pessoas quer bater, pegar a gente” (Jussara, 14 jan. 2018).
103
intervenções hormonais, menos violências sofria, principalmente a partir de pessoas que
não sabiam de sua identidade transgênera.
Jéssica, que se autodenomina gay afeminado, não dispensa os cuidados com
os cabelos, com o corpo, com a gestualidade, modo de falar e vestir, visto que ela acredita
que para “ser vista como mulher eu preciso estar parecida como uma né?”.
A esse respeito, Almeida & Vasconcellos (2018) asseguram que quanto
melhor travestis e mulheres trans conseguirem performar o seu gênero de maneira mais
próxima possível da performance de pessoas cisgêneras, maior será a sua aceitabilidade,
acessibilidade e facilidade no meio social. Essa afirmação das autoras traz implícita a
noção de que as pessoas transgêneras devem ser uma cópia das pessoas cisgêneras.
A premissa ignora que os corpos transgêneros têm uma potência
questionadora do discurso heteronormativo compulsivo que por si já é extremamente
violento. E não é necessariamente o desejo de muitas das minhas interlocutoras serem
apenas uma fotocópia de uma mulher cisgênera. Pensar nisso é ler as mulheres trans ou
travestis como irreais e artificiais.
Vale acrescentar que essa leitura social que interpreta corpos transgêneros
como uma cópia de corpos cisgêneros não é apenas equivocada, mas uma criação dos
discursos médicos, psiquiátricos e sociais cis-normativos. Uma vez que os corpos
transgêneros transgridem as normas de gênero, estes não precisam se “refazer” para se
transformarem em corpos semelhantes aos corpos cis e alcançarem uma “validação”
(LANZ, 2014).
Amanda é a primeira a se expressar nesse sentido. Embora tenha uma
preocupação em ser socialmente lida como mulher – que de fato o é – não exprime o
mínimo desejo em se submeter à cirurgia de redesignação de gênero: “Bicha, ‘cê tá
louca? Tirar a neca63? Nunca! Sou uma mulher muito mais completa!”.
Patrícia, Jéssica e Rebeca, do mesmo modo, não acreditam que precisam se
submeter à retirada do pênis, por meio da cirurgia de redesignação de sexo, para que suas
feminilidades sejam confirmadas, nos apontando que elas são “mulheres de pau”
(PELÚCIO, 2004). Em outras palavras, mulheres trans e travestis não são pessoas que
querem se “passar” por mulheres, mas querem questionar o discurso hetero-cisnormativo
que lhes é imposto desde o nascimento: “é menino!” (BUTLER, 2003).
63
Do bajubá, significa pênis.
104
Embora os dados mostrem a vontade das minhas interlocutoras em serem um
modelo de feminilidade, os mesmos dados mostram que a sociedade é implacável quando
a leitura social empreendida sobre seus corpos diverge ou se afasta do feminino tido como
discursivamente ideal.
O que está em jogo não é a teatralização de uma determinada identidade
normatizada, mas os direitos de simplesmente existir de inúmeras outras formas de
feminilidades, sejam elas mais próximas ou não da expressa pela cisgeneridade como
natural, numa busca constante de vencer a violência que encontra-se implícita em todos
os detalhes das normas de gênero, para que sejam assim, incluídas na sociedade como
sujeitas além de simples alegorias carnavalescas (FLEMING, 2005).
Silva et al (2016) concordam que a população de mulheres trans/travestis
sente severamente os efeitos do preconceito e da discriminação em diversos ambientes,
em especial nos que requerem a aceitabilidade, discutida acima. Tais atos de preconceito
e de discriminação são naturalizados, relegando estas sujeitas a uma subsistência oculta,
transformando-as em vítimas da violência fortificada pela (hetero) normatização social
(SILVA et al, 2016).
Foucault (2007, 1996, 1988) nos ensina que o corpo é o território onde as
batalhas relativas ao poder são estabelecidas, no intuito maior de moldar e adestrar esse
corpo, ajustando-o em conformidade com as expectativas do discurso de poder. Logo, os
corpos trans/travestis que não se adequam à esta lógica de ajuste e adestramento sentem
os efeitos da violência, mesmo que apenas pelo julgamento do olhar, conforme os
excertos de números 1, 2, 3, 4, 5 e 6.
E é claro que essa vivência de tensão acentuada por episódios de violência
verbal pode afetar consideravelmente o seu processo de envelhecimento. Costa (2013)
revela que as sujeitas de sua pesquisa – todas autodenominadas travestis – vivem tanta
apreensão em seus cotidianos em termos de violência verbal que passam a desacreditar
em seus futuros, investindo todas as suas perspectivas no presente.
A esse respeito, minhas informantes concordam que suas vivências negativas
aceleram o seu processo de envelhecimento. As entrevistadas expressam que os ataques
contínuos colaboram para a eclosão de estresse psicológico de modo a incidir sobre a
corporalidade, degradando-o.
105
Jéssica é um dos exemplos. Ela conta que os comentários e olhares são tão
inconvenientes que chegam “até a causar desânimo (...). A gente nem acredita às vezes
que um dia vai ficar velha”. Ela teme não viver a sua velhice porque não sabe se será
sucedida em alcançar tal fase em virtude do estresse psicológico a que é regularmente
exposta.
Patrícia também tece comentários semelhantes aos de Jéssica e concorda que
em alguns momentos elas passam por tantas circunstâncias de violência verbal que
“chega a ficar de cabelo branco”, de maneira a inferir que as violências verbais e gestuais
sofridas aceleram o seu processo de envelhecimento.
A esse respeito, Beauvoir (1970) entende a velhice como degradação do
organismo, utilizando-se da metáfora da máquina que se desgasta depois de longo período
de uso para referir-se ao corpo humano. Essa degradação corporal descrita por Beauvoir
(1970) não leva em consideração o processo de violência enfrentado por mulheres trans
e travestis, e que produz efeito psicológico tamanho a ponto de afetar o processo de
envelhecimento de tais sujeitas.
Uma vez que vimos que cada uma das etapas da vida nos inferem
determinadas condutas e que o envelhecimento é uma construção cultural baseada no
discurso social, podemos deduzir que as experiências vivenciadas pelas mulheres trans e
travestis desta tese afetam diretamente o seu processo de envelhecimento, e
consequentemente, o curso de suas vidas.
Além da agressão verbal e simbólica sofrida, as narrativas obtidas indicam
considerável incidência de violências sofridas pelas mulheres trans e travestis no centro
de situações sociais sublinhadas por relações de poder (FOUCAULT, 2007, 1987), de
modo a salientar que as ofensas não são sofridas apenas nas ruas e nos locais de
prostituição, mas perpassam as inúmeras esferas de suas vidas. Uma dessas esferas diz
respeito ao atendimento à saúde nas unidades públicas.
Excerto 7
“... Aí a menina foi violentada e nós levou ela pra UPA né.... Depois de uma
tarde inteira é que foram fazer a profilaxia nela. Só porque era travesti
deixaram a menina esperando o dia todo. (Anotação no Diário de Campo.
Adriana me contava como foi o atendimento a uma menina que tinha sido
recentemente violentada no horário de trabalho. Violentada sexualmente,
espancada e teve os objetos pessoais roubados. 22 jan. 2018).
Excerto 8
106
“... aí toda vez que a gente precisa do serviço daquela enfermeira, ela fica
zombando da gente, deixa a gente nessa situação. Acredita que ela chegou e
ficou falando que hoje não era dia de prevenção da AIDS? (Anotação no Diário
de Campo. Adriana e Jussara me contavam a respeito do atendimento de uma
enfermeira em um posto de saúde da família que atende as mulheres trans e
travestis da casa da Meire. 20 fev. 2018).
107
No excerto 8, Adriana e Jussara, referem-se ao tratamento dispensado por
uma enfermeira encarregada pelo posto de saúde da família, localizado próximo à casa
da Meire, e que, de acordo com elas, tal enfermeira tem satisfação em ofendê-las e inferir
que elas procuram o posto de saúde por serem portadoras do vírus HIV/AIDS,
principalmente, quando o posto encontra-se cheio. A queixa é que a enfermeira fala alto,
de modo a constrangê-las e a ferir os seus direitos e privacidade.
Algumas mulheres trans e travestis afirmam que preferem enfrentar os
problemas clínicos e/ou situações de dor para não serem mal-tratadas nas unidades de
atendimento de saúde pública, mesmo conscientes de que tal postura pode trazer danos à
sua saúde. Adriana, expressou, em algumas ocasiões, optar resolver seus problemas de
saúde sozinha a ir ao posto de saúde da família localizado próximo à sua casa. Ela sempre
conta com as dicas e sugestões das travestis/mulheres trans mais experientes que vivem
em sua casa.
Patrícia e Jéssica igualmente confirmam já terem sido indevidamente tratadas
em postos de atendimento de saúde pública. As interlocutoras concordam que seus
direitos à saúde e à dignidade são reiteradamente violados, o que as desencoraja a procurar
tais serviços.
Com isso, percebo dois fatores criados como uma resposta inconsciente à
violência verbal sofrida por travestis/mulheres trans quando buscam o atendimento nas
redes públicas de saúde, e que se confirmam por meio dos relatos. O primeiro destes
fatores diz respeito a vulnerabilidade em que se encontra a população LGBT ao
necessitarem acessar os serviços de ordem pública, de direitos de todos(as) os(as)
cidadãos e cidadãs brasileiros(as).
Tal fragilidade no que se refere a proteção de seus direitos enquanto cidadãos
e cidadãs agravou-se após a posse do novo presidente do Brasil em 2019. Em seu primeiro
dia de mandato, o presidente Jair Bolsonaro, do PSL, assinou a medida provisória
870/1964 que omite a população LGBT da lista de políticas e diretrizes destinadas à
64
A medida provisória 870/19, assinada em 01 de janeiro de 2019 pelo novo presidente da República
Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro, visa reduzir o número de ministérios de 29 para 22 órgãos com status
ministerial, de modo a acoplar umas pastas às outras, mas nenhuma que garantisse o direito da população
LGBT. A medida ainda não tinha sido votada pela Câmara de Deputados e Senado até a entrega da versão
final desta tese.
108
promoção dos Direitos Humanos, colaborando para a desconstrução de serviços não
discriminatórios65 por parte do governo.
Além disso, as transformações no atendimento às mulheres trans/travestis e
população LGBT, em geral, dependem em grande parte da renovação no modo de pensar
e atuar dos profissionais de saúde envolvidos com tal atendimento (CARDOSO; FERRO,
2012). Tal modo de pensar e atuar é afetado por valores culturais moldados pela estrutura
heterossexual normativa que também toca a subjetividade de cada profissional da saúde
(CARDOSO; FERRO, 2012), de maneira a conduzir a sua atuação. Consequentemente,
o modo como efetivam o seu fazer profissional acaba por produzir preconceitos e
violências, o que dificulta ou impede o acesso desta população aos serviços de saúde
pública.
O segundo dos fatores tem relação com a procura por ajuda junto as mulheres
trans/travestis mais velhas ou mais experientes. Uma vez que nos locais de atendimento
de saúde as travestis e mulheres trans não recebem o tratamento que consideram digno e
respeitoso, elas recorrem às “tias” ou “vós”.
Jussara e Kate são dois exemplos de travestis que são constantemente
procuradas por travestis/mulheres trans da casa onde moram para oferecer conselhos de
toda ordem, não apenas no tocante à saúde. “Elas sabem que nós já passou por muita
coisa né?”, como Jussara expressa. Kate revela que mesmo algumas das meninas sendo
mais “ousadas” e não levando tudo em consideração “quando é sobre a saúde delas elas
pede ajuda... assim, eu sou mais experiente...”.
Alguns trabalhos como os de Sander e Oliveira (2016), Nogueira (2013) e
Pelúcio (2007) indicam que as travestis e mulheres trans “novinhas” inúmeras vezes
procuram as “tias” ou “vós” para serem aconselhadas nos quesitos saúde, transição e
construção corporal, sociabilidade.
Igualmente, ter chegado aos 50 anos (ou mais), além de representar uma
vitória contra as inúmeras violências e opressões, pode transformar essas mulheres em
65
Dentre todos os serviços considerados não discriminatórios, cito o exemplo da retirada de circulação da
cartilha de prevenção do vírus HIV/AIDS dos postos de saúde, por autorização do Ministério da Saúde,
documento que continha instruções para a população LGBT, em especial para a população de homens trans,
em 02 de janeiro de 2019. Disponível em https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-saude-
retira-do-ar-cartilha-para-populacao-trans,70002667359. Acesso em 7 jan. 2019.
109
referências para as demais meninas que estão começando as suas vidas enquanto mulheres
trans/travestis.
Jussara conta que “elas procura pra saber de alguma coisa, pedir uma
ajuda”, por entenderem que Jussara está no grupo que já abriu muitas portas e venceu
muitas batalhas para a geração que está “fazendo pista hoje”. Kate, por outro lado, não se
acha velha no seus mais de 50 anos, mas se sente experiente, e mesmo assim “eu ensino
as menina”.
A esse respeito, Beauvoir (1970) explicitou que em algumas culturas ocorre
a exaltação dos(as) idosos(as) em virtude de seus conhecimentos e suas experiências. A
autora complementa que, de outra via, há culturas que excluem os(as) seus(suas)
idosos(as) por representarem um fardo, um corpo improdutivo, e não estarem mais aptos
a colaborar com o desenvolvimento daquele grupo social.
Os dados nos mostram que ambas as situações citadas por Beauvoir (1970)
são recorrentes nas trajetórias de algumas de minhas interlocutoras. Kate, por exemplo,
conta que as meninas da casa da Meire a procuram quando querem algum conselho, mas
quando é pra falar sobre segurança e violência “elas não gosta do que nois fala não. Aí
eu falo pra elas que tem que se cuidar elas acha ruim, fica rebelde... chama nois de bicha
velha, bicha doida, exagerada...”. Kate chegou a soltar que “...as vezes elas é cabeça
dura, num qué escuta a gente, nem aceita...”.
A frustração de Kate pode ser percebida, pois ela faz parte de uma geração
que desafiou valores e discursos para as futuras gerações, as “novinhas”. E na verdade, o
que a entristece é o fato das mais jovens não reconhecerem que são inexperientes e
menosprezarem aquelas que abriram os caminhos para elas, em concordância com
Pelúcio (2007) e Costa (2013).
Concomitantemente ocorrem as trocas positivas e também as situações
atravessadas por tensões. Rebeca complementou que são as mais velhas que “guiam as
mais novas, mostram por onde trilhar”, visto que são elas que já passaram pelas
dificuldades, mas que “essa nova geração também é fogo, chegou cheia de razão e
ousadia”. Esse fato é observado por entre as interlocutoras das pesquisas de Siqueira
(2004), Antunes (2010), Costa (2013) e Nogueira (2013).
Quando o assunto é HIV/AIDS é unanime por entre as travestis/mulheres
trans mais velhas a ofensa que impõe um rótulo que não lhes pertence. De outra via, ser
110
uma travesti/mulher trans que alcançou os cinquenta anos sem ter contraído a doença é
ostentar um status social por entre as demais meninas de suas comunidades.
Ao adentrar no assunto com Jussara, ela de pronto já exclamou: “Vixi, Maria!
Estar com a tia66? Graças a Deus tenho esse negócio aí não!”. Em concordância com
Siqueira (2004) é certificado um status às mulheres trans e travestis que alcançaram a
maturidade e escaparam da onda da AIDS. Jessica, Kate e Rebeca são exemplos67.
Tal fato se repete com a pesquisa de Nogueira (2013) que notou o lugar de
destaque ocupado por travestis que chegam à velhice sem terem contraído AIDS. De
acordo com a pesquisa desse autor, contrair HIV/AIDS posiciona a pessoa transgênera
em um lugar ainda mais estigmatizante.
Siqueira (2004) afirma que as transgêneras mais velhas, além de serem
exemplos para as novinhas, e se tornam suas orientadoras contra o surgimento de doenças,
principalmente a AIDS, reforçando a ideia discutida anteriormente que as mulheres trans
e travestis são as pessoas as quais as mais novas buscam quando precisam de uma
referência, aconselhamento, em situações adversas, tanto nas pesquisas supracitadas
como na minha.
Retomando a temática da violência, as participantes ponderam que enfrentam,
além dos problemas de agressões verbais, psicológicas, e de tratamento inadequado nos
locais de atendimento à saúde, encaram a falta de atenção e disponibilidade para a solução
de seus casos, julgamentos e chacotas, descrédito diante de suas dores e reinvindicações,
e o que elas consideram ser o pior de todas as questões elencadas: serem chamadas
publicamente pelo nome masculino de registro, ao invés de seu nome social.
O nome social indica o nome pelo qual as sujeitas travestis e pessoas trans,
em geral, preferem ser chamadas cotidianamente, considerando-se que o nome de registro
não condiz com a sua identidade de gênero. Sua escolha sinaliza o meio de subjetivação
experimentado pelos sujeitos em seus cenários históricos, assim como incorpora valores
identitários provindos das vivências familiar, social, cultural e política.
66
“Estar com a tia” é uma expressão muito comum por entre a comunidade LGBT para se referir à
contaminação pelo vírus HIV/AIDS.
67
Penso ser relevante explicar aqui que nenhuma das entrevistadas de minha pesquisa relatou ser portadora
do vírus HIV/AIDS. Fiz menção à Rebeca, Kate e Jussara pois foram as únicas que falaram a respeito da
temática. Adriana comentou certa vez que acolheram na casa da Meire uma menina portadora do vírus
HIV/AIDS e que enfrentava problemas com o vício em drogas e bebidas, mas não me revelou a identidade
dessa menina, muito menos me informou a sua idade. Não sei dizer se ainda vive na casa.
111
Em âmbito nacional, o decreto 8.727 de 28 de abril de 2016 (BRASIL, 2016),
dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas
transsexuais e travestis, de modo a evitar situações de humilhações e discriminações, bem
como situações de violência contra essa população. Nota-se com os relatos apresentados,
clara violação do direito à dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 5º da
Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988).
A título de exemplo, certa vez eu estava na Unidade de Pronto Atendimento
Municipal por problemas de saúde e vi, ao longe, Amanda aguardando na recepção para
ser atendida. Tínhamos acabado de nos conhecer e eu estava aguardando a sua
disponibilidade para a nossa primeira entrevista. Mas aproveitei aquele momento de
espera para tecer comentários em meu Diário de Campo, enquanto a observava. Pouco
mais tarde, ouvi um nome masculino ser chamado três vezes consecutivas, e eis que
Amanda, com o olhar meio contrariado, levanta e entra no consultório médico.
Algum tempo depois, quando conseguimos marcar nossa primeira entrevista,
contei a ela que estava presente no dia em que ela estava na Unidade de Pronto
Atendimento Municipal. Ela me confessou que ser chamada pelo nome de
batismo/registro é o mais frequente dos tratamentos. Mesmo ela deixando claro que
gostaria de ser chamada por Amanda, os atendentes raramente chamam as travestis e
mulheres trans pelo seu nome social.
Ao discorrer acerca do assunto com Rebeca, ela expressou que “a violência
sofrida pelas travestis nas ruas não é o fator determinante para o envelhecimento precoce
das meninas”, mas é acentuado pelas outras formas de violência enfrentadas
cotidianamente, como a “falta de respeito da sociedade, falta de moradia fixa e própria,
situação financeira precária, noites sem dormir e desgaste emocional”, colocando
travestis e mulheres trans em posição de defesa e tensão em tempo integral.
Em complemento, a fala de Rebeca nos remete à discussão de que nem
sempre o processo de envelhecimento depende do estado físico de uma pessoa, mas é
influenciado pelo seu estado de espírito (ESCOBAR et al, 2017), reforçando a ideia de
que o envelhecimento nem sempre é cronológico (CASTELEIRA, 2013).
Com isso, a velhice parece intensificar a vulnerabilidade das pessoas
pertencentes às minorias sexuais, de gênero, de raça, classe social, status econômico e
ainda, orientação sexual (ANTUNES, 2010, MAGALHÃES; SOBRINHO, 2006).
112
Infelizmente, essas não são as únicas formas de violência contra as mulheres
trans e travestis. As narrativas obtidas no decorrer desta pesquisa desvelam situações de
violência física extremas, as quais podem, inclusive, ocasionar a morte:
Excerto 9
“Uma vez eu tava na pista, lá na (Av.) Médici, sabe? Um carro parou pra
perguntar quanto era o programa. Eu achei que era né...aí o disgramado jogou
aquela espuma de extintor em mim, sabe? Uma vez eles correu atrás de mim
de pau, pra bater, sabe? (Jussara, 7 set. 2017).
Excerto 10
Jussara: Sou freguês, né? Já levei tiro, facada... já bateram na minha cara.
Pesquisadora: Muitas vezes?
Jussara: Ixiii... até perdi as conta... minha e das menina do ponto...fiquei tanto
tempo em coma que nem gosto de passar na (Av.) Médici. (Jussara, 2 set.
2018).
Excerto11
“Na minha primeira noite na rua, fazendo pista, né?... eu tava com muito medo
das coisas que as menina contava...mas fui....e foi nessa noite que uma bicha
foi morta la na (Av.) Kennedy...pensei que eu podia ser a proxima...não fiz
mais pista não...” (Jésssica, 20 nov. 2017)
113
Médici), de maneira a apontar que a vivência de situações de opressão e discriminação a
partir do momento em que suas estilísticas corporais femininas são exibidas.
Ser agredida com extintor ou ter alguém correndo atrás de Jussara (conforme
excerto de número 9) pode ter soado engraçado para um adolescente ou jovem que
intentava ter um pouco de diversão às suas custas. Mas o que nota-se com tal relato é que
pouco ou nada se tem de respeito para com as pessoas transgêneras pelo simples fato de
serem sujeitas que subvertem a binariedade discursiva homem/mulher, pactuando com a
percepção de que “o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito” (BUTLER, 2003, p. 24).
Logo, transformam-se na base dos mais variados tipos de opressão e violência.
Ao retomar a fala de Rebeca acerca da violência a que são acometidas todos
os dias, reflito acerca da situação de Jussara assim como das demais mulheres trans e
travestis que são profissionais do sexo e tem a prostituição como o meio de substistência.
Para Rebeca, as travestis e mulheres trans são vítimas de violências diárias, e a rua torna-
se um fator determinante para o envelhecimento precoce dessas mulheres por colocá-las
em desgaste emocional e psicológico.
Um corpo exposto a tais violências, dificilmente consegue sucumbir e gozar
de um processo de envelhecimento ditado pelo Estatuto do Idoso – documento com
normativas que abarcam apenas o envelhecimento de pessoas cisgêneras e que exclui o
processo de envelhecer de pessoas trnasgêneras.
Na fala de Jéssica, percebe-se que há inquietação quanto a trabalhar com a
prostituição e ser uma possível próxima vítima, principalmente considerando-se que uma
de suas colegas foi assassinada durante o seu turno. A prostituição não é necessariamente
o único meio de subsistência das travestis, mas torna-se um dos meios constitutivos de
sua identidade (NOGUEIRA, 2013; PELÚCIO, 2007; BENEDETTI, 2005; SIQUEIRA,
2004). Contudo trabalhar nas ruas pode ser inseguro e também mais um elemento
acelerador do processo de envelhecimento, em virtude das tensões que pode causar.
Levando-se em linha de conta as ameaças, os ataques fisicos, as agressões
psicológicas e em ambientes de uso comum de todos os cidadãos e cidadãs do país, não
é possível que travestis e mulheres trans alcancem um envelhecimento saudável e digno.
Assim, indago a cada uma delas se o fato de terem vivenciado tanta opressão e truculência
no decorrer de suas vidas pode ser um fator marcante e acelerador de seus processos de
envelhecimento:
114
Excerto 12
“O trabalho nas ruas não é nada fácil. Diante de todos os riscos a que são
submetidas, posso sim afirmar que elas envelhecem mais cedo” (Sara Wagner,
12 abr. 2018).
Excerto 13
“...eu já sou uma idosa (risos)... cheguei aos 34 anos. A gente só vive até os
35... tenho um ano de vida” (Adriana Liário, 14 abr. 2018).
Excerto 14
“Elas fazem uso de muita bebida e drogas para aguentar as dificuldades nas
ruas, na pista. Isso somado à todo tipo de violência física que elas enfrentam
contribui para o seu envelhecimento” (Gabriela da Silva, 16 jan. 2018).
68
Incluí o comércio de drogas por parte das travestis e mulheres trans aqui em parênteses pois, conforme
depoimento de Adriana Liário, não é permitida a entrada de drogas na casa da Meire. Quanto às demais
115
o depoimento de Gabriela da Silva, no excerto 14. Para Gabriela, as mulheres trans e
travestis que conhece fazem uso de substancias nocivas e alucinógenas de modo a
conseguirem enfrentar as batalhas que são travadas sempre que vão trabalhar.
Ao mesmo tempo que Escobar et al (2017) expõem que o envelhecimento
pode ser sobremaneira influenciado pelo estado de espírito dos(as) sujeitos(as), as
mulheres trans e travestis, em virtude do excesso de violências que experimento no
decorrer de suas vidas, podem sim recorrer ao uso de substancias químicas ilegais para
amenizar as suas dores, de modo a contribuir com seu envelhecimento e podendo levá-
las, inclusive, à morte.
Diante de todos os excertos apresentados e discutidos até então, se
observarmos que todos são oriundos de narrativas produzidas por travestis e mulheres
trans ao evidenciar o que elas consideravam mais incômodo em suas vivências, posso
inferir que, seguramente, a violência é uma das mais recorrentes situações que
diretamente afetam as suas condições de vida, e consequentemente, um de seus efeitos
mais devastadores é a antecipação do processo de envelhecimento.
Ao conversar com Rebeca acerca dessa constatação, já no final do período de
geração dos dados desse estudo, ela confirmou:
Excerto 15
(...) a violência sofrida pelas travestis na rua não é o fator determinante para o
envelhecimento precoce, mas é um dos fatores. Existem outros fatores como a
falta de moradia fixa e a própria situação financeira, noites sem dormir,
desgaste emocional (...) as células não se renovam com o passar do tempo,
assim o envelhecimento acontece mais cedo e mais rápido devido as noites
perdidas de sono, alimentação que não é rica em fibras e proteínas, uso de
maquiagem e sem a devida retirada da maquiagem (...) (Rebeca 13 de setembro
-de 2018, via Facebook Messenger).
sujeitas entrevistadas e que não fazem parte da casa, não houve menção ao comércio de drogas em suas
atividades.
116
com seus corpos, desgaste emocional por não terem moradia fixa e/ou condições
financeiras que lhes propicie uma vida digna.
Desse modo, finalizo esse subcapítulo apontando que as diversas violências
que afligem as mulheres trans e travestis advém de uma interpretação social que não as
enxerga como pessoas de um gênero inteligível, em uma sociedade de prática moralista
assegurada por relações de poder (FOUCAULT, 2007, 1996, 1988) que age de maneira a
estraçalhar vidas lidas como abjetas, pecadoras e subversivas.
Na próxima subseção examinarei o sentido atribuido pelas interlocutoras ao
seu processo de envelhecimento e acerca de seus planos para o futuro.
4.2 Se joga!
117
ao defini-los ou uma dificuldade em expressá-los. Vejamos, então, os relatos nos excertos
de números 16, 17 e 18, abaixo:
Excerto 16
“é ficar mais madura, né? (risos) não sei explicar direito. Quase nunca penso
nisso.” (Fabíula, 13 jul. 2018).
Excerto 17
“Cada um tem sua própria maneira de envelhecer” (Dê Silva, 15 jul. 2018).
Excerto 18
“Menina, sai pra lá com isso. Nem quero pensar nisso!” (Patrícia,23 mai.2016)
118
instalarem ou por não conseguirem enxergar uma possibilidade de futuro após os 35 anos
de idade (OLIVEIRA; MEIRA, 2016).
Como a própria Adriana já informou em outro momento, pessoas trans e
travestis vivem até aproximadamente os 35 anos, sendo essa a idade média estimada de
vida de uma transgênera no Brasil (SALES, 2018; SIQUEIRA, 2004; PERES, 2005;
KULICK, 2008; entre outros), constituindo-se a velhice por entre as mulheres trans e
travestis um fenômeno que as acomete de modo precoce se comparado às pessoas
cisgêneras, principalmente se levarmos em conta as trajetórias de vida delineadas por
quadros de violências dos mais variados tipos (ANTUNES, 2010), como discutido na
seção anterior.
Contudo, o tema envelhecimento não se mostra de difícil debate apenas para
travestis e mulheres trans mais jovens, mas de igual modo entre as informantes que
encontram-se com mais de 35 anos:
Excerto 19
“As pessoas fica velha depois dos cinquenta, eu acho. Num é? Elas não
consegue mais fazer as coisa. Eu num fico velha não. Mentira. As pessoas fica
velha depois dos 60. Tem aquele negócio das filas preferencial. Pra mim, num
sei...... é difícil” (Kate, 2 set. 2018).
Excerto 20
“Cada uma envelhece de um jeito, né? Não tem como ser igual pra todo
mundo. Eu já sinto umas dores no joelho, nas costas. Quando era novinha não.
Mas mesmo assim ainda faço pista. Ruim vai ser quando eu não for mais [pra
pista]...” (Jussara, 7 set. 2017).
119
Mas Kate expressa não acreditar que tinha chegado tão longe “Eu num fico
velha não. Mentira!” ou até mesmo possa ter intentado inferir surpresa ao ter chegado
aos 54 anos.
A respeito do início do processo de envelhecimento, há uma convenção de
que este inicia aos 65 anos em países europeus e por volta dos 60 anos no Brasil, de
acordo com o Estatuto do Idoso. Porém, Adriana me contou que o envelhecimento das
travestis e mulheres trans inicia-se mais cedo que para as mulheres cisgêneras, sem o
marco da idade cronológica, como Casteleira (2014) completa, especialmente ao
avaliarmos as trajetórias de vidas dessas sujeitas (ANTUNES, 2010).
Oliveira e Meira (2016) revelam que uma de suas interlocutoras acredita que
o envelhecimento inicia-se no momento em que saem de casa, perdem o vínculo com suas
famílias, o que não posso afirmar que se aplica a alguma de minhas interlocutoras.
Jussara, de outra via, expressa não saber definir o que vem a ser o processo
de envelhecimento, uma vez que “cada um envelhece de um jeito, né? Não tem como ser
igual para todo mundo”. Os modos de envelhecer, de acordo com Jussara, podem variar
de pessoa pra pessoa (como também já vimos no excerto de número 17, de Dê Silva),
corroborando com a falta de homogeneidade nos modos de envelhecer entre sujeitas de
um mesmo grupo geracional (OLIVEIRA; MEIRA, 2016). Ainda, envelhecer continua
sendo um processo relacionado à solidão (WEEKS, 1983), pobreza, sofrimento, estigma.
As pesquisas apontam diferenças nos modos de envelhecer no tocante ao
tempo histórico, classe, educação estilo de vida, gênero, profissão, etnia (ESCOBAR et
al, 2017; ANTUNES, 2010; LIMA, 2006; BEAUVOIR, 1970), especialmente gênero e
as diferenças sociais consideradas (MAGALHÃES; SOBRINHO, 2006).
Em adendo, Cunha (2016) informa que mesmo as possibilidades sociais
sendo tão discrepantes, o processo de envelhecimento vivenciado na atualidade muito
difere do mesmo processo se este for comparado ao século passado, levando-nos a
concordar com Jussara ao asseverar que cada pessoa tem uma maneira de envelhecer, e
tais maneiras propiciam maior longevidade à medida que tenhamos recursos financeiros
disponíveis para tal.
Además, mesmo não tendo uma definição na ponta da língua, Jussara associa
a velhice e o processo de envelhecimento à deterioração corporal, descrita por Beauvoir
120
(1970) e assume que seu próprio corpo já sente as dificuldades físicas da idade (“Eu já
sinto umas dores no joelho, nas costas...”)
Essa passagem de tempo, e consequentemente, essa transformação
geracional, é marcada nos corpos das travestis e mulheres trans por meio de dores e outras
limitações em termos de saúde que tornam as vidas mais difíceis (OLIVEIRA; MEIRA,
2016).
Patrícia afirma que “...já é difícil chegar lá, se tiver doença é ainda pior...”,
de maneira a concordar com a premissa que o processo de envelhecimento é precoce,
somado à baixa expectativa de vida (“...já é difícil chegar lá...”), além de associar o
envelhecimento à obtenção de doenças. Jéssica também teme ficar velha e “...ter um
monte de problema de saúde”.
De acordo com Foucault (2008), a sociedade de controle encoraja o discurso
da “qualidade de vida” o qual interdita o envelhecimento. O discurso é tão categórico que
age de modo a dizimar os estigmas de doença e decadência tão comuns por entre os(as)
idosos(as) (ANTUNES, 2010). Com isso, é possível entender porque as pessoas tendem
a associar a velhice às mazelas, dores e outras limitações biológicas.
É relevante acrescentar que as informantes mais novas expressam grande
pavor em ficarem velhas. Jéssica explica que ao envelhecermos “...fica tudo esbagaçado,
cheio de ruga. Perde o glamour, o charme...”, enquanto as colaboradoras mais velhas
enxergam o processo de envelhecimento como natural, mais uma experiência.
Porém, envelhecer e adoecer não é o pior de todos os males. Para algumas
informantes, como Jussara, “...ruim vai ser quando eu não for mais pra pista”.
Mesmo o envelhecimento sendo encarado como um processo que atribui o
troféu de bem afortunada àquelas que conseguem alcança-lo (SIQUEIRA, 2004;
ANTUNES, 2010; OLIVEIRA; MEIRA, 2016), ele também desqualifica mulheres trans
e travestis para o exercício da prostituição, daí o medo que elas tem de envelhecer.
Excerto 21
“Ficar velho é não querer ir pra pista ne? (risos). Não tem vontade de sair. De
fazer nada. Eu gosto de passear. De ir pra pista todo dia... sou bem sapeca... e
num tô velha não”(Jussara, 7 set. 2017).
Excerto 22
“A idade chega, as menina não ganha mais o que ganhava. Ta velha né? As
novinha ganha mais... até a hora que as mais velha para de fazer pista. Aí cê
sabe que elas tá velha” (Jéssica, 20 nov. 2017).
121
Excerto 23
“...eu sempre tive consciência ... e na convivência você vê que algumas peças
do supermercado vão perdendo valor, vão passar a... ser trocada... vai
chegando pecinhas nova...” (Patrícia, 23 mai. 2016 ).
122
ganham valor e substituem as pecinhas mais velhas, podemos inferir que isso ocorre em
função dos padrões de beleza e jovialidade carregados pelas mais novas.
Explico: como já vimos anteriormente, a vivência nas ruas é assolada pelas
inúmeras formas de violência que as mulheres trans e travestis são acometidas, fora as
demais violências enfrentadas em seus cotidianos, como por exemplo o afastamento das
famílias, os maus tratos experimentados nos mais diversos contextos sociais, problemas
emocionais acarretados por falta de respeito, alimentação e sono inadequados, falta de
cuidados com o próprio corpo e preocupações quanto a moradia.
Esses e outros fatores são responsáveis por colocarem nossas informantes em
situação de degradação corporal e logo, envelhecimento. Todas essas mudanças
influenciam na jovialidade (envelhecimento precoce, como citei) e na perpetuação da
beleza das meninas.
Oliveira e Meira (2016) garantem que as informantes mais velhas de sua
pesquisa tendem a associar o processo de envelhecimento a decadência física. Contudo,
percebi por entre as minhas interlocutoras que não há diferença se são mais velhas ou
mais novas, todas tendem a entender a velhice enquanto um processo de decadência que
muito influencia na aparência bela.
As autoras supracitadas também asseguram que atualmente as travestis e
mulheres trans têm ao seu dispor inúmeras tecnologias no ramo da estética e beleza,
facilidades as quais não eram acessíveis para as gerações anteriores, o que faz com que
as meninas de hoje sejam muito mais belas e atraentes (OLIVEIRA; MEIRA, 2016).
Sobre o exposto, analisemos os excertos de números 24, 25 e 26, a seguir:
Excerto 24
“Não tem coisa mais feia que ficar velha. Afff. Nem quero olhar no espelho. A
gente fica toda enrugada, feia, nada fica bom. Toda cagada (risos).” (Fabíula,
13 jul. 2018).
Excerto 25
“A velhice chega pra quem deixa chegar. Eu já fiz cinco cirurgias plásticas pra
melhorar a minha aparência, sabe, pra ser uma mulher mais bonita..... vou fazer
de novo. Faço sempre que achar que devo ..... vou ser uma velha linda...
ninguém vai nem dizer que sou velhinha quando chegar a hora.....” (Amanda,
3 out. 2017).
Excerto 26
“Quando a velhice chega a gente não é mais bonita que nem as novinha, né? A
gente não é mais como elas, né? Assim, não fica mais tão bonita...” (Kate, 2
set. 2018).
123
Excerto 27
“...velho começa a ter um monte de problema de saúde. E fica tudo esbagaçado,
cheio de ruga. Perde o glamour, o charme.” (Jéssica, 20 nov. 2017).
124
(IN) CONCLUSÕES
69
O programa Profissão Repórter apresenta reportagens com a aparição de repórteres jovens sob a
supervisão do jornalista Caco Barcelos, na Rede Globo de Televisão. O programa que discute a prostituição
tanto de mulheres cis como de mulheres trans, teve como participante a travesti Luana Muniz que se tornou
conhecida desde então, por ter agredido um de seus clientes. O programa foi ao ar em 25 de maio de 2010.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=G0DVl1Ae5Hw. Acesso em 29 dezembro de 2018.
Luana Muniz faleceu em 06 de maio de 2017, aos 59 anos, em virtude de complicações de uma pneumonia.
125
resistentes no que diz respeito às suas vivências. E ao me aproximar delas, era tanta
informação que um dia acabei percebendo que quase não tinham travestis e mulheres
trans idosas por entre elas.
Desse modo, meu interesse revelou-se em estudar essas sujeitas que
encontravam-se em ambas as categorizações: mulheres trans/travestis e idosas. Os
objetivos com a pesquisa foram: a. compreender como as travestis/mulheres trans
constroem sentidos acerca de si, sejam elas idosas ou não; b. entender como as
travestis/mulheres trans percebem/significam o seu processo de envelhecimento; c.
assimilar como as travestis/mulheres trans articulam as noções de gênero e
envelhecimento na sua construção identitária;
Nesse ínterim, as perguntas de pesquisa que auxiliaram no alcance dos
objetivos foram:
1. Como as travestis/mulheres trans significam o seu processo de
envelhecimento?
126
do Rio de Janeiro, as consideradas travestis das 1ª e 2ª gerações, como nos trabalhos de
Siqueira (2004) e Costa (2013).
Entendi também que não estava tendo acesso apenas a travestis, mas a
sujeitas que se autodenominavam mulheres trans, contrariando fatos que eu havia lido e
aprendido com autores como Hélio Silva (1993), Don Kulick (2008), Monica Siqueira
(2004), Benedetti (2005), entre outros. Compreendi que seria muito mais relevante e mais
digno valorizar a visão das mulheres trans e travestis que encontram-se na academia,
como Rodovalho (2017), Lanz (2017), Oliveira (2017), Alexadre (2017), Silva (2015),
entre outras, ao abordar temas recorrentes em suas vidas, definir termos e realizar as
análises.
É claro, contei com o suporte de Foucault (2008, 2007, 1996, 1994, 1988,
1987) em alguns momentos, e de igual modo com algumas discussões de Butler (2003,
1993) no tocante à Teoria Queer, para me auxiliarem a compreender as narrativas das
minhas informantes, construídas no decorrer dessa caminhada, em comparação com os
trabalhos de Leite Jr. (2017), Casteleira (2014), Costa (2013), Nogueira (2013), Antunes
(2010), Siqueira (2004, 2012), entre outros.
Todo esse direcionamento contribuiu para me guiar pela investigação quanto
a possibilidade de entender as formas de envelhecimento das travestis e mulheres trans
que se dispuseram a participar da pesquisa.
Como categorias encontradas nas narrativas das informantes, decidi por
dividi-las em dois grupos maiores com subcategorias oriundas de seus relatos. A primeira
categoria foi a violência e a segunda envelhecimento;
Em violência, notei que, independente das idades das informantes, todas
estão cotidianamente expostas a situações de violência física, verbal, psicológica, não
apenas nas ruas – seu lócus de atuação profissional – mas também em locais públicos,
especialmente os de atendimento à saúde pública.
E diante de uma infinidade de violências e adversidades, observei que é
humanamente impossível gozar de um processo de envelhecimento semelhante ao
processo experimentado por pessoas cisgêneras. Seu processo de envelhecimento, ao
contrário do que muitos pensam, não é marcado pela idade cronológica, ou pelos anos
vividos por elas, mas sim pelas barreiras vencidas.
127
Envelhecer na condição de pessoa transgênera consiste em uma dupla
marginalização e estigmatização (SIQUEIRA, 2004), visto que, primeiramente, não são
todas que conseguem envelhecer. Segundo, estar na velhice já implica sofrer
preconceitos e discriminações, tanto da sociedade como por parte das travestis/mulheres
trans mais jovens. As categorias velhice e gênero, juntas, tornam-se implacáveis uma vez
que o discurso social infere que a pessoa velha, é feia, inútil, ultrapassada, o que ocasiona
algumas disputas e rixas por entre as gerações mais novas e mais velhas.
Em outras palavras, essa pesquisa mostra um contraste entre duas categorias
geracionais – construídas em conformidade com a cultura e com os discursos e práticas
sociais – “as tias ou vós” versus as mais “novinhas”. As primeiras tem seus relatos
delineados estritamente pelas violências enfrentadas em um passado, compartilhado com
as mais novas, o fato de chegarem à maturidade, sobrevivido às violências e dificuldades
de sua época, ostentando, assim uma posição de privilégio, status e respeito. As novinhas
não ostentam status nenhum de respeito e destaque em seus grupos, mas menosprezam
as mais velhas por não serem tão belas quanto elas. A velhice é encarada como um fator
que além de degradar o corpo e torná-lo feio, é um fator que seleciona as oportunidades
de trabalho na pista.
A menção à pista, ou à prostituição em si, é recorrente, mesmo tendo muitas
delas afirmado que exercem outras profissões. A prostituição configura-se, conforme os
relatos, como parte essencial da construção identitária de muitas delas e se torna uma
alternativa palpável de subsistência, diante de uma sociedade que se nega formalmente
empregar essa parcela da população. E, possivelmente o empenho das interlocutoras em
outras profissões pode sinalizar o quanto elas se almejam chegar à velhice, mudando as
estatisticas.
Notei que, por mais que em suas narrativas brevemente mencionem o medo
que elas tem do vírus HIV/AIDS, essa temática não toma uma projeção tão ampliada
como nos trabalhos de Antunes (2010), Siqueira (2004), Costa (2013), Pelúcio (2007),
provavelmente pois o universo da minha pesquisa foi composto, em sua maioria, por
mulheres trans e travestis mais jovens, pertencentes a uma geração em que as
informações chegam de modo muito mais fácil e rápido, além dos programas de
distribuição de preservativos gratuitamente, que não só distribui mas também informa
sobre os riscos de contaminação e como previni-la.
128
Ainda, ao contrário do que muitos podem imaginar, o fato de não
mencionarem a temática não implica em aversão ou temor da estigmatização, mas um
reconhecimento da importancia de se cuidarem por meio do uso de preservativos e
conhecimento de alternativas de cuidado com a saúde, como a profilaxia quando em
casos de estupro.
Diante do exposto, no tocante a primeira pergunta de pesquisa, penso que as
travestis/mulheres trans dessa investigação entendem o processo de envelhecimento a
partir de dois vieses opostos. O primeiro deles aponta o envelhecimento como um período
de dor, carregado de dificuldades provenientes das limitações físicas que a fase lhes
impõe, especialmente pois há associação da velhice com a falta de beleza. É nesse
momento em que aquelas que subsistem da prostituição começam a perceber que os
espaços de trabalho que ocupam são outros, a frequência e o número de clientes é
reduzido, e a remuneração recebida é inferior, visto que não são mais mulheres tão
atraentes como outrora, em concordância com pesquisas como a de Siqueira (2004),
Costa (2013), Castaleira (2014), Oliveira e Meira (2016), entre outros.
O segundo viés entende a categorização geracional velhice enquanto o
período em que elas vão se aproximar de suas famílias, ou se engajar em suas
comunidades com o sentimento de família, cuidado de si, realização de atividades mais
domésticas, como Adriana já havia anunciado no início da investigação. Além de ser um
período em que elas desejam colocar em prática todos os seus sonhos, como abrir o
próprio negócio.
Quanto a segunda pergunta de pesquisa, definitivamente posso declarar que
as inúmeras violências sofridas pelas mulheres trans/travestis são determinantes para o
início de seu processo de envelhecimento. Como a maioria delas é profissional do sexo,
ou pelo menos já teve uma breve experiência na protituição, o aprendizado nas ruas é
acentuado pelas diversas formas de violência em seus cotidianos, como os maus tratos
em vários contextos de vivência social e de saúde, problemas emocionais, financeiros,
de moradia, de maneira a coloca-las em situação de degradação corporal e consequente,
envelhecimento. Todas essas mudanças influenciam na jovialidade (envelhecimento
precoce, como citei) e na perpetuação da beleza das informantes.
Entretanto, devo confessar que a dificuldade inicial para a realização desta
pesquisa foi encontrar sujeitas dispostas a participar. É claro que entendo que as pessoas
129
no mundo atribulado em que vivemos são ocupadas e nem todas podem dispor de tempo
para participar. Mas também entendi que a questão da idade é um fator extremamente
flutuante entre as travestis e mulheres trans.
No início da pesquisa, estipulei que entrevistaria mulheres trans e travestis
com quarenta anos ou mais, contudo, percebi que meu campo de opções se tornava muito
restrito pois pouquíssimas sujeitas assumiam ter a idade mínima de quarenta anos.
Gabriela da Silva, por exemplo, tem cinquenta anos desde janeiro de 2017,
quando nos falamos pela primeira vez. A própria Gabriela me explicou que falar de
velhice e envelhecimento afasta algumas informantes principalmente pois os conceitos
de velhice e envelhecimento se contrapoem ao glamour, luxo e jovialidade que as
mulheres trans e travestis tanto prezam. (as categorias etárias são cultural e
discursivamente definidas de acordo com a aparencia ou com a idade, como já discutido
anteriormente).
Contudo, acredito poder, com este trabalho, contribuir para as discussões
acerca de gênero e velhice, especialmente no tocante às políticas públicas que favoreçam
essa população em processo de envelhecimento. Soma-se a tal propósito a necessidade
de combatermos a violência por elas vivenciada, por meio de ações positivas em nossos
locais de atuação, como a escola e a família, especialmente em tempos tão sombrios como
os que vivemos, tempos fortalecidos por um dito grupo político “renovado” e um governo
federal que pouco se preocupa com o bem-estar e direitos de sujeitas que rompem com a
lógica binária de homem/mulher, masculino/feminino.
Aliás, a atual conjuntura política do país parece estruturar-se de maneira a
combater e exterminar todo e qualquer grupo social que se constitua ideologicamente e
discursivamente diferente dos preceitos impostos como os únicos normais.
Ainda, acredito que esse trabalho pode agregar algumas implicações para a
área dos Estudos da Linguagem e gênero uma vez que se inscreve em uma vertente de
ordem transgressora e crítica (MOITA LOPES, 2006), de caráter multi/inter-in-
disciplinar de maneira a promover práticas transaberes (FABRÍCIO, 2017), observando
as fronteiras normativas relativas a gêneros, sexualidades, classes sociais e raças,
questionando crenças arraigadas, comunidades coesas e corporeidades idealizadas
(FABRÍCIO, 2017) para ultrapassar fronteiras estabelecidas discursivamente.
130
Precisamos enfocar mais plenamente nas mulheres trans e travestis, ouvi-las
com mais atenção, não apenas no que diz respeito às questões de saúde. Em várias
conversas informais com Adriana, ela mencionou que das trinta mulheres trans e travestis
que vivem na casa da Meire, todas – com exceção de Adriana – não possuem o ensino
médio completo, o que nos remete para a importância de discutirmos mais sobre a
formação escolar das minorias, em especial, das minorias LGBT.
O término de uma tese não deixa de ser angustiante. Foram intensas guerras
travadas para que eu chegasse até esse ultimo capítulo. A primeira dessas guerras diz
respeito ao tema estudado o que por si já representa um desafio muito grande. Ser uma
pessoa cisgênera que pesquisa uma população transgênera não é fácil, visto de quaisquer
um dos pontos de vista: transgênero ou cisgênero.
Do ponto de vista cisgênero, gastei muito tempo tentando convencer algumas
pessoas, cis e trans, de eu estava observando cuidadosamente sujeitas as quais tem seus
direitos surpimidos por serem a materialização de um grito de liberdade contra um
discurso hetero-cisnormativo que tanto as violenta e oprime.
Recebi olhares e comentários desconfortáveis por parte pessoas trans por ser
uma sujeita que falava de um local de aprendiz e, igualmente, mais uma mulher nesse
tecido feminino que sofre o machismo, o preconceito, a discriminação, a violência.
Nunca foi minha intenção falar em nome da população trans ou dar voz a essa população.
Sempre posicionei-me como mais uma voz que se une à luta e almeja ecoar por lugares
ainda mais distantes.
Perdi pessoas que acreditava serem meus amigos e minhas amigas pela
escolha do tema, principalmente pois, ao me posicionar enquanto pesquisadora foi
impossível concordar com as crenças políticas e conceitos morais que eles e elas tanto
defendiam. Não há como conviver e apoiar um grupo de pessoas que apoia o extermínio
de seres humanos, ou que sente que a opressão sofrida por mulheres trans e travestis não
passa de um “mimimi”.
As críticas à escolha do tema também foram diversas. Algumas pessoas não
conseguiam enxergar a cientificidade do assunto, enquanto outras o consideravam
superficial. Mas penso que uma pesquisa dessa natureza tem sua importânci fundamental
na transformação que causa nos pesquisadores. E é essa a minha maior conquista.
131
Não tenho a mínima intenção em militar como muitas mulheres trans e
travestis admiráveis pois creio que a minha militância se dá diariamente nos espaços que
ocupo: na minha comunidade familiar, com meus amigos e, principalmente, em sala de
aula, junto aos inúmeros estudantes que encontro semanalmente.
A corrida para finalizar o trabalho foi outro aspecto que me consumiu. Uma
vez que soube que seria nomeada para o concurso que tanto almejava, e que para tomar
posse precisava do título de doutora, passei a trabalhar de modo exaustivo sobre a
pesquisa, tendo que conciliar a minha atuação profissional, o meu papel de esposa, de
mãe e ainda, o papel de filha que teve o pai por 80 dias na UTI. Foi humanamente
impossível ter foco em muitos momentos.
Mas diante de alguns percalços, o trabalho foi demasiado estimulante. O ato
de desenvolver uma pesquisa qualitativo-interpretativista tem como mérito deixar
interlocutoras e pesquisadora em uma relação mais confortável e mais próxima, na qual
não há interpretações idealizadas, certas ou erradas, mas expressões diferentes sobre um
mesmo tópico. Há uma aproximação de cumplicidade, entre seres humanos. Passamos a
ver umas com os olhos das outras.
E, finalmente, testemunhar o cotidiano das meninas me tornou uma pessoa
muito mais empática, mais paciente e observadora. Percebi que, inconscientemente, antes
da pesquisa, reproduzia discursos discriminatórios, bem como notei que não
compreendia mulheres trans e travestis, no início da pesquisa, como variações de gênero
e sexualidade normais, o que me impedia de ser capaz de incluí-las na lógica binária que
eu acreditava ser a natural.
132
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