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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Etnografando a ‘Red de Ananse’: Política, Pesquisa e Espiritualidade


Afro-colombianas.

LUIS GUILLERMO MEZA ALVAREZ

2014
Etnografando a ‘Red de Ananse’: Política, Pesquisa e Espiritualidade
Afro-colombianas.

Luis Guillermo Meza Alvarez

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.

Orientador:
Marcio Goldman

Rio de Janeiro, fevereiro de 2014

ii
Etnografando a ‘Red de Ananse’: Política, Pesquisa e Espiritualidade Afro-
colombianas.

Luis Guillermo Meza Alvarez

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.

Aprovada por:

_____________________________________
Marcio Goldman, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN)
(Orientador).

_____________________________________
María Elvira Díaz Benítez, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGAS/MN).

_____________________________________
Claudia Miranda, Doutora, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

_____________________________________
Gabriel Banaggia de Souza, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGAS/MN) (Suplente).

_____________________________________
Ana Claudia Cruz Da Silva, Doutora, Universidade Federal Fluminense (UFF)
(Suplente).

Rio de Janeiro, fevereiro de 2014.

iii
Meza Alvarez, Luis Guillermo.
Etnografando a ‘Red de Ananse’: Política, Pesquisa e Espiritualidade Afro-
colombianas / Luis Guillermo Meza Alvarez. - Rio de Janeiro: UFRJ/
PPGASMN, 2014.
Orientador: Marcio Goldman
Dissertação (mestrado) UFRJ/ PPGAS-MN/ Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social – Museu Nacional, Rio de Janeiro,
2014.
Referências Bibliográficas:
1. Politica 2. Pesquisa 3. Luta antirracismo 4. Mulheres negras 5.
Espiritualidade afro. 6. Etnografia.
Meza Alvarez, Luis. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa
de Pós-graduação em Antropologia Social – Museu Nacional.

iv
Resumo: Essa dissertação é uma etnografia a respeito das conexões que o coletivo de
docentes Red de Ananse faz a respeito de assuntos corriqueiramente pensados como
pertencentes a universos separados como política, cultura e religião. A ênfase é colocada na
descrição das concepções, explicações, contextualizações e reflexões que os próprios
sujeitos da pesquisa fazem em relação a sua própria prática em meio a uma diversidade de
cenários e temas de ação política que socialmente são hierarquicamente organizados: a
escola, a academia, o movimento social afro-colombiano, o sindicato da categoria, a casa, a
família etc. Esses âmbitos são perpassados, cruzados e construídos pelas docentes da Red de
Ananse como espaços cotidianos de disputa, tensão, afirmação e negociação com base em
um posicionamento enquanto mulheres negras/afro-colombianas e enquanto docentes,
pesquisadoras, ativistas e praticantes de uma espiritualidade afro. Assim, essa dissertação
centra-se na descrição etnográfica de como a Red de Ananse articula política, ativismo,
docência, pesquisa, luta antirracismo e ‘espiritualidade afro’.

Palavras-chave: política, pesquisa, luta antirracismo, mulheres negras, espiritualidade afro,


etnografia.

v
Abstract: This thesis is an ethnography that describes the connections that the collective
of teachers Red de Ananse makes regarding matters that are routinely assumed of as
belonging to separate universes: politics, culture and religion. Emphasis is placed on
describing the conceptions, explanations, contextualizations and reflections that the
subjects of the research do in relation to their own practice in the midst of diverse
scenarios and subjects of political action that are hierarchically organized in the social
world: the school, the academy, the African-Colombian social movement, the labor union,
home, family, among others. These scopes are permeated, crossed and built by the teachers
of the Red de Ananse as everyday spaces of dispute, tension, affirmation and negotiation by
positioning themselves as African-Colombian/black women/ and as teachers, researchers,
activists and practitioners of an African spirituality. As such, this thesis focuses on an
ethnographic description of how the Red de Ananse articulates politics, activism, teaching,
research, anti-racism struggle and an “African spirituality”.

Keywords: Politics, research, anti-racism fight, black women, African spirituality,


ethnography.

vi
Dedico essa dissertação a meus ancestrais: minha
mãe Magalis Álvarez Ávila, meu avó José María
Meza Bolaños, meu tios Luis Guillermo e Alba Rosa
Meza Barrios, Ma Rufina e William Martínez.

A minha avó Pune, a meu pai Rafael Meza Barrios,


a meus quatro irmãos, a meus onze sobrinhos,
especialmente a María Alejandra. A toda minha
família extensa.

vii
Agradecimentos

Não cabe dúvida de que essa dissertação não poderia ter sido feita sem o feliz encontro que
tive com um grupo de mulheres guerreiras, corajosas, decididas, criativas e generosas a
respeito de seus saberes, suas experiências e seus afetos. As mulheres da Red de Ananse são e
isso e muito mais. O ponto de partida foi um fortuito encontro com Milena, a diretora
desse grupo. Não imaginava e ainda não consigo perceber completamente o universo de
emoções, assuntos, questões, saberes e, sobretudo, aprendizado que se deflagraram e
continuam a se deflagrar a partir desse primeiro contato com ela. Essa dissertação tenta de
alguma forma mostrar um pouco do que por enquanto consigo expressar, na forma de um
texto, dessa multiplicidade existencial que vocês são com suas constantes, novas e
agradáveis conexões. Agradeço-lhes por terem me permitido escrever sobre o presente de
vocês, mesmo sendo já coisa do passado.

A partir desse contato com Milena, só coisas boas vieram a acontecer. O encontro com
Angela, minha esposa, é um deles. Com ela o Iré (na Ocha, o bom, a sorte, etc.) manifesta-se
e se cultiva pacientemente, aprazivelmente. Um novo encontro, uma nova aventura
intelectual e afetiva se inicia com ela em cada conversa, em cada bate-papo, em cada ação
conjunta. Esse exercício etnográfico apresentado na forma de dissertação também é
resultado de uma serie de acontecimentos, encontros, redes e viagens que tem a ver com
ela, e fizeram que hoje eu pudesse estar aqui desenvolvendo meu projeto acadêmico.
Agradeço-te o carinho, a companhia, tua família, teus avós, a paciência, tuas conversas
inspiradoras. Paro por aqui, as outras coisas vou te agradecer no ouvido.

Agradeço a meus cunhados Helena e José María o cuidado, o suporte, o carinho, o tempo,
as consultas, os conhecimentos sobre variados temas, as historias, as ‘francachelas’, a música,
as visitas, as conversas e as risadas durante a pesquisa de campo e todos esses anos.
Agradeço também a José María pai por sua amizade, disposição, paciência, suas assessorias
e colaboração.

Seguindo Angela na sua aventura intelectual nas aulas do PPGAS, muito antes de eu
estudar lá, conheci cenários estimulantes para o trabalho de pensar o mundo desde a
disciplina antropológica na qual não sou formado. Lá um encontro, fundamental para essa
empreitada que hoje realizo, produziu-se nas sempre estimulantes aulas do professor
Marcio Goldman, meu orientador. Uma confluência de temas, interesses e jeitos de ser
contribuem para essa relação. A ele agradeço os desafios intelectuais que coloca em cada
curso por meio da exploração de novas conexões entre assuntos diferentes. Agradeço suas
finas observações, seu estímulo, sua confiança, e a liberdade que me deu para realizar essa
etnografia. Agradeço também seu interesse nas pessoas com as quais trabalho.

Agradeço também a todos os professores pelas reflexões e questões compartilhadas nas


aulas: Adriana Vianna, Antônio Carlos de Souza Lima, Giralda Seyferth, Olivia Cunha,
Eduardo Viveiros de Castro e Marcio Goldman.

Agradeço a todos os funcionários do PPGAS/MN. Na secretaria agradeço a Adriana,


Carla, Anderson, Bernardo, Isabel, Marcelo e Afonso. Na biblioteca agradeço a Fernanda,
Marcio, Alessandra, embora já não esteja mais, e especialmente a Carla de Freitas.

Agradeço a todos os colegas e amigos que fazem a estadia no Rio de Janeiro mais
interessante e mais agradável: Rita Santos e C. Veloso, Katiane Silva e Aruã Silva Vargas,
viii
Marine Corde, Maria Rossi e Ricardo Palacio. Marta Antunes e Willy. Aos camaradas Juan
Pablo Sierra e Sergio Quintero. A Jenny Fonseca, Johana Salazar, Antonia e Andrés
Góngora. A Johana Pardo, Fidel e meu irmão Daniel Fortes. Aos amigos Guillermo Vega
Sanabria e Ricardo. Natalia Quiceno e Juan Gabriel Acosta. Raquel Sant’Ana, María e
Eleana Catacora Salas. Pablo Antunha Barbosa, Cristobal Maíno e Tamara Leal. A Marco
Poglia e Poliana. A Marco Alejandro Tobón Ocampo.

Muito especialmente a minhas queridas amigas Carla Semedo e Tatiane Figueredo dos
Santos pela amizade, carinho, pelas conversas e risadas. A meu caro colega e amigo Cauê
Fraga Machado.

Aos colegas Angela Domingos Peres, Anna Massoz, Floriberto Vásquez, Suely Noronha,
Luiza Dias Flores e Bia Arruda. Aos colegas de turma: Cecilia, Carolina, Uliana, Mariana
Renou, Tássia, Iván Doro, Maria Luisa Lucas, Virginia, Paula, Amanda Migliora, Ana Fiod,
Guilherme, Jorge Luan, Dibe Ayoub, Fernanda Abreu, Conrado, Clarisse Kubrusly, Marília
Lourenço.

Na Colômbia agradeço a Jaime Arocha, Alexandra Riveros Rueda, Jimmy Vieira, Santiago
Angulo, Franklin Gil Hernández, Pietro Pisano. Aidén Salgado, Diana Montaño e
CEUNA. Em Bogotá agradeço o apoio e a amizade de Gustavo Arias e Mateo Torrenegra.
A minhas amigas Juliana Flórez e Ana Flórez. A meu grande amigo Álvaro Vásquez
Morrón.

Agradeço a todas as pessoas que contribuíram no aprimoramento do português dessa


dissertação. Muito obrigado!

Agradeço às professoras Claudia Miranda e María Elvira Díaz Benítez pela gentileza de
participarem na minha banca, além dos professores Gabriel Banaggia de Souza e Ana
Claudia Cruz da Silva por participarem como suplentes.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa


de mestrado concedida. Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da UFRJ (PPGAS-MN/UFRJ) pelo suporte acadêmico e financiamento
de idas a campo.

ix
LISTA DE SIGLAS

ACABA: Asociación Campesina del (alto) rio Baudó y sus afluentes

ACADESAN: Asociación Campesina del San Juan

ACIA: Asociación Campesina Integral del Atrato

AT55: Artículo Transitorio 55

CONPES: Consejo Nacional de Política Económica y Social

CNOA: Conferencia Nacional de Organizações Afro-colombianas

DANE: Departamento Administrativo Nacional de Estadísticas

DNP: Departamento Nacional de Planeación

INCODER: Instituto Colombiano de Terras

MEN: Ministerio de Educación Nacional

OBAPO: Organización de Barrios Populares de Chocó y Comunidades Campesinas de


la Costa Pacífica del Chocó

OCABA: Organización Campesina del Bajo Atrato

ORCONE: Organización de Comunidades Negras

PCN: Processo de Comunidades Negras

SED: Secretaria de Educación Distrital

UPN: Universidad Pedagógica Nacional

x
Sumário
Introdução ........................................................................................................................................... 3
Capítulo 1
Começando a tecer os fios ................................................................................................................ 21
1. Características gerais: localização, dados, categorias e nomeação. ...................................... 21

1.1. Localização.................................................................................................................... 21

1.2. O tamanho da população negra. .................................................................................... 23

1.3. Categorias censitárias, termos e formas de nomeação, identificação e auto-


identificação. ............................................................................................................................. 26

2. Os estudos sobre a população negra, afro-colombiana. Perspectivas e debates. ................... 30

3. A emergência do movimento social afro-colombiano e a etnicidade dos afro-colombianos 35

4. Ao encontro do universo espiritual afro-cubano: militância e espiritualidade. ..................... 46

Capítulo 2
Atrás dos fios da Red de Ananse ....................................................................................................... 52
1. Introdução ............................................................................................................................. 52

2. Dos pueblos negros para a capital. ........................................................................................ 54

2.1. Maria Angola................................................................................................................. 54

2.2. Celina ............................................................................................................................ 58

2.3. As tumaqueñas .............................................................................................................. 61

3. Rupturas e nascimento de novas organizações...................................................................... 67

3.1. O Taller Infantil Nuestra Cultura ................................................................................. 71

3.2. Expedições pedagógicas e a Ruta Afro-colombiana. Rupturas e críticas da dominação


masculina................................................................................................................................... 74

4. Atrás dos fios da Red de Ananse ........................................................................................... 79

Capítulo 3
Os tecidos da Red de Ananse abrindo novos caminhos..................................................................... 84
1. A política, o meio educacional e os saberes ancestrales. ..................................................... 84

2. No Ilé de Milena. A centralidade da espiritualidade ............................................................. 97

1
Considerações finais........................................................................................................................ 111
Referências Bibliográficas .............................................................................................................. 115
Apêndice I
Regiões do país e localização da população negra/afro-colombiana .............................................. 126
Apêndice II - Mapas
1. Regiões da colômbia ........................................................................................................... 132

2. Percentual de população afro-colombiana e sua distribuição geográfica. ........................... 133

3. Lugares de origem das fundadoras ...................................................................................... 134

4. Bogotá. Alguns lugares da pesquisa. ................................................................................... 135

Apêndice III – Imagens da Red de Ananse...................................................................................... 136


Apêndice IV – Glosário................................................................................................................... 137

2
INTRODUÇÃO

Essa dissertação é resultado de uma pesquisa de campo com cujos sujeitos de


investigação teci relações na minha condição de pesquisador, incluindo vínculos de tipo
espiritual. O entrecruzamento desses laços provocou questionamentos que estão no cerne
desse texto e que explicam, em parte, que eu tenha privilegiado o caráter descritivo para dar
conta da complexidade de trajetórias, acasos e detalhes que compõe a história e o presente
da Red de Ananse. Esses questionamentos têm a ver justamente com a forma em que
práticas pedagógicas, políticas e espirituais podem ser pensadas juntas, e como a reflexão
conjunta qualifica os lugares de produção de conhecimento como espaços cotidianos da
ação política. Assim, o caráter em andamento da minha pesquisa e a condição contingente
desse texto têm a ver não apenas com as condições internas 1 do programa para o qual foi
escrito, mas também com o intuito dele ser útil e interessante também para o grupo de
pessoas para o qual ele foi escrito.
Desse modo, nas páginas seguintes apresentarei uma espécie de “apanhado” das
práticas, relações, ações, projetos, discursos, pontos de vista, e posicionamentos ‘políticos’
e ‘espirituais e/ou religiosos’ da Corporación de Maestras y Maestros Investigadores Tras
los Hilos de Ananse, mais conhecida como Red de Ananse. Ao mesmo tempo, almeja
descrever etnograficamente como a Red de Ananse articula política, ativismo, docência,
pesquisa, luta antirracista e ‘espiritualidade afro’.
Assim a ênfase é colocada na descrição das ações e práticas “internas” do grupo,
atentando para as explicações, os termos e as categorias usados pelos componentes da Red
de Ananse. Nesse sentido, esse trabalho tenta apresentar uma ‘visão de mundo’, um jeito de
olhar as relações entre o individuo, a família, a escola, a academia e os espaços de interação

1
Ao falar em condições internas estou me referindo notadamente ao tempo que no mestrado pode ser
dedicado à pesquisa de campo e à extensão prevista para uma dissertação. Além disso, no meu caso, tendo
optado por descrever em detalhe o contexto e os movimentos da Red de Ananse, abri mão também de
qualquer pretensão generalizadora ou comparativa em relação a questões similares no movimento negro no
Brasil. De todo modo, vale a pena salientar a possibilidade de estabelecer leituras cruzadas entre a Colômbia e
o Brasil a respeito de como tem sido abordada a relação entre assuntos complexos e costumeiramente
pensados como separados como cultura, política e religião, podendo vir a ser exploradas na minha pesquisa de
Doutorado. A esse respeito para o Brasil ver, por exemplo, os trabalhos de Cunha, 1991; Silva, 1998; Agier,
2000; Goldman, 2006; Siqueira, 2006; Mello, 2010.
3
mais amplos e cotidianos por parte das pessoas que integram essa rede. O caráter
etnográfico se relaciona com o intuito disciplinar de levar em conta, acima de tudo, tanto as
práticas quanto as próprias concepções da Red de Ananse – tanto em conjunto como as de
alguns de seus componentes – no que se refere à atuação global e às facetas das vidas das
pessoas na sua relação com os outros, com a natureza e com as forças espirituais. Os relatos
sobre as experiências vitais de formação e aprendizado acadêmico, político e espiritual são
fundamentais para a configuração da trama etnográfica (entendida como um trabalho que
implica pesquisa de campo e escrita, por meio de uma ficção conveniente ou controlada2),
que tenta explicitar como são feitas, pensadas e entendidas a política, a pesquisa, a
docência, a luta antirracismo, a espiritualidade, etc, por parte da Red de Ananse.
A Red de Ananse é um coletivo de docentes organizados na forma de ‘rede
pedagógica e política’, além de ‘pesquisadores’ (em outra época o nome incluía ‘etno-
educadores’) que procuram construir conhecimentos e metodologias, assim como outras
lógicas de pensamento por meio do resgate, valorização e visibilização das populações
negras/afro-colombianas naqueles espaços em que foram historicamente excluídos, como a
escola e a academia. É em Bogotá, capital da Colômbia e que no senso comum é pensada
como uma urbe não racializada3, que a Red de Ananse desenvolve seu trabalho.
Embora o meio escolar seja o âmbito privilegiado de seus compromissos e das suas
ações, essas vão além das salas de aula das escolas públicas, onde trabalha a maioria de
seus componentes, e se projeta com variadas intensidades e nuanças na vida das docentes
(sendo a maioria atualmente composta por mulheres): nas relações com suas famílias, com

2
No sentido conferido por Strathern (1988), ou seja, um ‘problema técnico’ em que as questões e os temas
aqui colocados funcionam no interior da trama definida pelo recorte feito (nessa dissertação), o qual aponta
para conexões entre aqueles, para ver o que um desses elementos expressa e que escapa ao outro, e constituem
aqui a base do contexto para interpretar o mesmo contexto que os próprios atores se dão.
3
Embora essa situação tenha se modificado nas últimas décadas. De um lado, pelo deslocamento forçado
maciço de populações, o que tem provocado o êxodo de muitas populações negras para as cidades capitais,
especialmente para Bogotá. De outro lado, pela visibilização da presença histórica das pessoas negras em
Bogotá que têm feito algumas pesquisas de caráter acadêmico, entre elas Acá antes no se veían negros de
Claudia Mosquera (1998), Mi gente en Bogotá: estudio socioeconómico y cultural de los afrodecendientes
que residen en Bogotá, de Jaime Arocha, María Elvira Díaz e Lina María Vargas (2002), Vivir en un mundo
de “blancos”. Experiencias, reflexiones y representaciones de “raza” y clase de personas negras de sectores
medios en Bogotá D.C., de Franklin Gil Hernandez (2010), entre outras. Há que se mencionar também
trabalhos de caráter artístico-acadêmico, como a recente exposição “Presencia negra en Bogotá: décadas
1940-1950-1960”, de Mercedes Angola e Maguemati Wabgou.
4
outros grupos que compartilham de interesses temáticos e pedagógicos afins, com
lideranças e organizações do movimento social afro-colombiano, e nos mais diversos
assuntos no dia a dia.
Gostaria de explicitar as notações gráficas que utilizo nessa dissertação para um
melhor entendimento do conteúdo das afirmações que aparecerão ao longo do texto. Assim,
utilizo as aspas duplas para relativizar palavras e expressões, próprias na maioria das vezes.
As aspas simples serão empregadas para apontar palavras, expressões e citações de pessoas
e autores. Os itálicos são usados tanto para os nomes próprios de instituições e
organizações (dentre elas Red de Ananse) assim como para palavras e expressões de línguas
distintas em relação ao português, e especialmente para apontar palavras, expressões e
frases das pessoas com as que interagi no campo. As citações superiores a quatro linhas são
colocadas em outros parágrafos.
Além disso, pelo contexto bilíngue em que se inscreve essa dissertação e para
manter a força das falas levantadas no campo, mantive-as na língua original, introduzindo
entre parênteses um equivalente em português quando necessário. Além disso, substituí os
nomes próprios de algumas das pessoas citadas nessa dissertação por nomes fictícios,
tentando de alguma forma protegê-las diante de possíveis conflitos e tensões que possam
derivar das afirmações que aqui aparecem, ainda que os envolvidos possam se reconhecer
no texto com certa facilidade. Aliás, porque há na escrita etnográfica um pouco de ficção na
hora de apresentar as personagens, vistas através da “lente” do etnógrafo.
****
As trajetórias de vida das fundadoras da Red de Ananse (como se verá ao longo do
texto) e suas experiências de participação em organizações sociais, políticas, no movimento
social afro-colombiano e seus envolvimentos profissionais e existenciais com a docência
configuram os principais traços (fios) de relações que situam a Red de Ananse nas redes de
relações que ligam pessoas, associações, organizações, movimentos sociais e instituições.
Dessa forma, sobre a Red de Ananse e suas participantes pode-se dizer que:
a) pode ser considerada uma expressão organizativa do chamado movimento social
afro-colombiano e, como tal, participa de espaços de convergência e decisão com outras
organizações afro-colombianas, especialmente algumas de suas lideranças;

5
b) nem todas se auto-reconhecem fenotipicamente como negras e nem todas são das
regiões Pacífico e Caribe, onde vive uma grande parte da população negra da Colômbia e
que são pensadas, especialmente a primeira região, como referencial de território negro4;
c) a maioria delas é docente de escolas públicas no nível primário e secundário
(Ensino Fundamental e Médio), encarregadas de várias disciplinas, chamam-se a si mesmas
de ‘pesquisadoras’ e estabelecem um diálogo entre a academia, a escola e os órgãos e
instituições estatais de educação (Secretaria Distrital de Educación e Ministério de
Educación Nacional);
d) reivindicam para o êxito de suas atividades a prática da ‘espiritualidade afro’,
elemento que – pelo menos atentando para o material de pesquisa e minha própria
experiência de relacionamento com organizações do movimento afro-colombiano – não faz
parte do discurso, das práticas e das ações públicas do hoje chamado movimento social
afro-colombiano, como se verá no primeiro capítulo;
e) seriam localizáveis no amplo espectro político da esquerda colombiana, em
função da participação em espaços de mobilização do grêmio dos professores, do tipo de
luta em que se envolvem, das lutas que acompanham, do discurso público e das relações
que são ativadas em momentos pontuais;

4
Essa característica já ocasionou certo impasse com uma antiga funcionaria do Ministério de Interior e
militante afro-colombiana responsável pelo cadastramento de organizações afro-colombianas na Dirección de
Asuntos Étnicos. Segundo Milena, diretora da Red de Ananse, a funcionaria teria rejeitado o cadastro da Red
de Ananse argumentando que esse grupo ‘estava cheio de mestizos’. Esse termo, de origem colonial, a meu
ver é usado principalmente por pessoas próximas do discurso do movimento social afro-colombiano e por
pessoas que apoiam as reivindicações antirracismo desse movimento (dentre elas alguns pesquisadores), para
nomear fenotipicamente pessoas não-negras, para falar não em termos raciais mas em processos de
racialização, e sobretudo para relativizar a suposta ideia de “branquidade” a que essas pessoas poderiam se
remeter em relação aos “negros”. A meu ver, o que esse termo utilizado por militantes ‘afros’ parece dizer é
que na verdade não há na Colômbia pessoas propriamente brancas e sim, pessoas com diferentes níveis de
traços e tons de pele mais claros misturados com traços de populações indígenas, a depender da região, da
situação e da relação de poder específica. Mas, como aponta Gil Hernandez (2010), a ideia de mestiçagem (e
do mestizo) na Colômbia na prática acaba remetendo à ideia do branco como destino desejável, e ao negro
como seu avesso, embora nesse país o termo mestizo não seja utilizado corriqueiramente. Nesse sentido, uma
tradução literal para o português (mestiço) não expressaria o sentido específico nesse contexto de fala em que
é utilizado aqui. Por isso mantenho o termo tal como utilizado nesse campo semântico específico e em itálico,
e peço ao leitor brasileiro atentar para essas nuanças. Por outro lado, ao contrário do caso do grupo Afro
Reggae, mencionado por Cunha (2000), na Red de Ananse a ‘identidade negra’ se mantém apesar do grupo se
abrir a outras pautas, pessoas não-negras, e ao fato de que não necessariamente nas salas de aula haja crianças
negras, fenotipicamente falando.
6
f) consideram a ‘espiritualidade afro’ um elemento a ser levado em conta no
exercício docente na escola, nas aulas e na vida cotidiana;
g) usam categorias como ‘interculturalidade’ ‘saber ancestral’, ‘ancestralidade’,
‘saberes outros’, ‘pedagogias descoloniais’, entre outras.
Por isso mesmo optei pelo termo “apanhado” no começo dessa Introdução, em meio
ao qual tentarei localizar intersecções entre assuntos e identificar algumas tramas em que a
Red de Ananse participa e que vai tecendo por meio de suas ações. Assim o recorte feito
nessa dissertação pretende justamente, por meio das palavras-chave política, pesquisa e
espiritualidade, e mediante algumas práticas, relações, encontros e acontecimentos
específicos vivenciados pelas integrantes da Red de Ananse, apontar para um universo de
assuntos e questões que por sua complexidade poderiam ser abordados com profundidade
etnográfica e em detalhe na minha pesquisa de Doutorado.
Por outro lado, talvez o próprio nome desse coletivo seja o melhor articulador
conceitual das características definidoras que conectam tão diversos e distintos assuntos
num grupo só. Assim, a Red de Ananse é concebida como uma

otra forma de organización que tiene como objeto central la conformación de “entes
autónomas”. En el sentido de asumir caminos propios construidos de y desde la realidad en
la que vivimos porque hasta ahora hemos transitado caminos pensados y marcados por
“otros”.

É uma rede que

crea nodos en varias direcciones a partir de la práctica, pero une esfuerzos para pensar la
cultura afrocolombiana, no es una red que atrapa [captura], por el contrario, es una RED de
huecos grandes donde sales y entras sin ninguna presión y el que queda se apasiona con lo
que hace.

Além disso, é ‘um palenque5 que se pensa a si mesmo e que deve pensar o país, que
aspira a partir de sua própria autonomia construir um espaço político para a elaboração de

5
Seu nome vem das paliçadas que rodeavam os povoados levantados no mato pelos escravizados fugitivos
(chamados pelos espanhóis cimarrones, nome esse que por sua vez tinha sido dado antes ao gado indomável
quando se evadia para o mato). Palenque virou, para o movimento social afro-colombiano, sinônimo de
rebeldia, autonomia e alternativa de construção de outra sociedade, em que as pessoas negras podem ser
livres, expressa por meio da noção de cimarronaje. Daí cimarrón ou cimarrona serem termos usados para
atribuir essa atitude a uma pessoa ou que podem ser reivindicados também por uma pessoa.
7
um conhecimento que reconheça o posicionamento intelectual do palenque como uma
identidade própria’. Nesse sentido, a própria definição da Red de Ananse expressa um
desejo de autonomia na medida em que busca construir um caminho por meio de práticas
próprias e de relações decididamente horizontais (a ideia da rede flexível), do exercício
político que implica construir conhecimento com base na reivindicação da diferença afro-
colombiana como uma ação constante, ao redor de imagens fundamentais e fortes para uma
boa parte da população negra colombiana em seu conteúdo libertário e espiritual como são
Palenque e Ananse. Aqui Ananse ou Anansi se concebe como sendo

un animal [aranha] que los hombres y mujeres que trajeron en la condición de esclavizados
[para as Américas e para a atual Colômbia] deificaron por su autosuficiencia: saca de sus
entrañas redes, [com] las que une a África con América. Es un paradigma de supervivencia,
reta a las Deidades más poderosas que ella. Con su propio cuerpo teje redes con huecos
[buracos] grandes para entrar y salir libremente; teje casa que sirve para procurarse
alimentos; somos una Red de resistencia étnica, cultural, pedagógica y política; teje hilos
para la creación de palenques culturales. Es Ananse porque asume varios roles, maestra
madre, maestra cimarrona, maestra mixtura, maestra amiga, consejera, entre otras. Baila, ríe,
canta, llora en todos los momentos de la vida. Ananse es todo el que se denomina a sí
mismo libre, independiente, el que mantiene viva la memoria de la lucha por la libertad y la
autonomía heredada de los ancestros africanos, resuelve situaciones difíciles; que acompañó
al esclavizado en todas las situaciones, en las fiestas, en la muerte, siempre estuvo ahí
Ananse [itálicos acrescentados].

Essa definição que aparece numa brochura (cartilha) de apresentação da Red de


Ananse6 é inspirada no livro Ombligados de Ananse. Hilos ancestrales y modernos en el
Pacífico colombiano, do antropólogo Jaime Arocha (1999)7. Com ela a Red de Ananse
define seu posicionamento em relação a outras experiências organizativas com as quais teve

6
Red de Maestros etnoeducadores Tras los hilos de Ananse. Tejiendo memoria desde los encuentros. IDEP.
s/d.
7
A linha argumentativa desse livro se baseia na premissa das Huellas de Africanía, literalmente “pegadas de
africanidade” ou ‘vestígios de africanidade’, como traduz Estupiñan (2010) do espanhol para o português,
premissa central nos estudos desse antropólogo a respeito da ‘gênese, transformação e presença dos negros na
Colômbia’, com dados empíricos que sustentariam essa premissa nas relações dos habitantes do Alto Baudó
(Chocó) no Pacífico colombiano, com as aranhas e o universo simbólico a elas associado, presente também
nos contos sobre Ananse, anancy, Nansi ou breda Nancy, da população do arquipélago de San Andrés,
Providencia e Santa Catalina; além disso, essa espécie de avatar, de espirito ancestral, estaria presente em
populações negras afrodescendentes em vários países do Caribe insular e continental (Costa Rica, Suriname,
entre outros). Ao mesmo tempo, nesse livro Arocha opõe dados e argumentos a posturas que imputam a
invenção do termo ‘afro-colombiano’, do legado africano e da ponte África-América, por antropólogos, com
base nas noções de mestiçagem e hibridação, tais como Peter Wade e Eduardo Restrepo, aos quais por razões
de espaço só me referirei no primeiro capítulo dessa dissertação.
8
e tem contato atualmente, e faz um resumo de suas apostas em termos organizacionais,
políticos, espirituais e, ao mesmo tempo – a meu ver –, coloca os fios que unem a
procedência regional de suas fundadoras (origem, concepções e práticas) com seus
diferentes âmbitos e tipos de ações, numa amálgama de espaços e lógicas locais, regionais,
nacionais e ‘diaspóricas’, como se verá ao longo do texto. E, mais especificamente, como
disse Milena, diretora da Red, em uma apresentação na Universidad Pedagógica Nacional
em maio de 2013, a respeito do nome desse coletivo em relação com o título do livro, Tras
los Hilos de Ananse,

es una metáfora, una metáfora para reconocer todas las representaciones, toda la naturaleza
que fortaleció el espíritu africano en el momento de la colonia; a los hombres y mujeres
africanos en la colonia; y permitieron que yo esté aquí con ustedes conversando en igualdad
de condiciones. Entonces, para nosotras sigue siendo como las búsquedas, como los
caminos que andábamos recorriendo de mirar, de buscar una sociedad igualitaria, una
sociedad justa, una sociedad sin discriminaciones, sin prejuicios. Y Ananse, bueno, es una
araña, una arañita y que cambia de nombre y de contenido y de sentido de acuerdo a la
cultura. Existe en África, existe en San Andrés, en muchas partes, en Centro América. (…)
[E ainda sobre o verbo ombligar, ela afirma:] para nosotros es una práctica cultural. (...) Y
bueno, esos elementos, que pudimos revitalizar sin vergüenza, ¡sin vergüenza! con la frente
en alto, han servido, no solamente a maestras afrocolombianas, sino también a maestras
mestizas. Hoy tenemos maestras mestizas que dicen "ay no, yo quiero ombligar a mi hijo".
Ombligar quiere decir curar el ombligo [umbigo do bebê] cuando nace con hierba, no con
Isodine, nosotras no curamos con Isodine, sino con hierba, con plata, con rezos. Entonces,
eso es una cultura que se revitaliza y que se convierte en patrimonio de los otros.

Ombligar também tem por objetivo proteger ao filho das diferentes ameaças à vida
no cotidiano e ao mesmo tempo dar a ele um atributo da substância do animal ou mineral
utilizado nesse procedimento que influirá no seu comportamento.

****

Durante o último ano da minha graduação em Sociologia conheci Milena, diretora


da Red de Ananse. Ela me contatou em 2007 no contexto de uma oficina (na qual
participava também a Red de Ananse) que visava formar lideranças afro-colombianas num
bairro popular de Bogotá onde há uma grande presença de população negra: o bairro
Jackeline Kennedy na área da cidade conhecida como Kennedy, localizada ao sudoeste
dessa cidade. Ela queria que eu fosse o seu professor de português. Naquela época, ela

9
queria estudar essa língua o suficiente para se comunicar com colegas brasileiros
acadêmicos, ativistas e com a Fundação Cultural Palmares, órgão com o qual a Red de
Ananse já teve uma parceria.
Eu já tinha visto Milena em reuniões com organizações afro-colombianas e tinha
ouvido falar alguma coisa sobre aquela ativista do movimento social afro-colombiano, a
quem eu identificava como uma militante antirracismo no meio escolar8. Milena é uma
pessoa muito ativa na discussão, proposição e construção de materiais para a
implementação da Cátedra de Estudios Afrocolombianos9 nas escolas públicas de Bogotá.
Eu sabia também de sua participação em outra época na Comisión Pedagógica Nacional,
além de ser docente na Universidad Pedagógica Nacional (UPN) e numa escola pública.
Ela e sua irmã Victoria tiveram e ainda têm relações com o movimento afro-colombiano e
ambas participaram em alguns espaços de consulta e decisão sobre assuntos de políticas
públicas para a população afro-colombiana. De fato, Victoria fez parte, durante alguns
anos, da Consultiva Distrital para Comunidades Negras, espaço estabelecido na lei 70 de
1993 (também conhecida como Lei de Comunidades Negras) para a interlocução entre a
população negra e o Estado, nesse caso o governo do Distrito de Bogotá10.

8
Em 2005, as militantes apoiaram e participaram das manifestações contra a decisão do governo nacional
daquela época de elaborar o concurso e a prova de seleção para docentes etno-educadores para municípios
com maior população negra sem consultar previamente as populações concernidas, como obrigava a lei e um
acordo entre o Ministerio de Educación Nacional (MEN) e a Comisión Pedagógica Nacional, espaço de
interlocução do movimento social afro-colombiano com aquele ministério, da qual fazia parte Milena. Em
Bogotá, a manifestação implicou na tomada da colonial igreja San Francisco, localizada no centro da capital,
a qual já foi tomada em muitas ocasiões por parte das organizações do movimento social afro-colombiano.
9
Criada pela Lei 70 de 1993, a cátedra só foi concretizada no decreto 1122 de 1998, que a tornou obrigatória
na área das ciências sociais nas instituições estatais e privadas de ensino nos níveis pré-escola, primária e
médio, pautada na noção de etno-educação, por sua vez pensada como uma ‘educación pertinente para la
realidad cultural de las Comunidades Afro-colombianas’ (MEN, 2004:11). Desde então, muitos esforços de
organizações do movimento social afro-colombiano, associações de docentes e aliados, têm proposto
mudanças na concepção da mesma, buscando, entre outras coisas, ampliá-la para outras áreas de
conhecimento e outros níveis de educação formal, e levar em conta a diversidade regional do país.
10
Com a Sentença T-832 de 2012 a Corte Constitucional deixou sem efeito a Comisión Consultiva de Alto
Nivel, espaço de interlocução das comunidades negras, afrocolombianas, raizales e palenqueras com o
Estado, e consequentemente as comisiones consultivas municipales. Mas a sentença exige também que o
governo nacional expeça novas diretrizes para a eleição de novos representantes dessas comunidades, as quais
devem ser construídas com as comunidades de base, inclusive aquelas que não têm títulos coletivos de terras.
Justamente no ano de 2013 foram realizadas reuniões regionais e um congresso nacional com esse fim.

10
Só se iniciando no começo de 2008, as aulas na verdade não foram muitas, e o meu
papel como professor de língua estrangeira durou pouco, mas a essa altura Milena e eu já
havíamos ficado próximos. No segundo semestre de 2008, eu conheci outra faceta daquela
ativista e de sua irmã, no marco da exposição temporária ‘Velórios e Santos Vivos.
Comunidades negras, afrocolombianas, raizales e palenqueras’ no Museu Nacional de
Colômbia em Bogotá, onde eu trabalhei como monitor-guia-docente.
Uma das atividades paralelas à exposição foi uma palestra do médico cubano e
santero Wilfredo Allen Hilton intitulada ‘Oferenda e espiritualidade’, que tratou
basicamente do culto aos Orixás na chamada Santería cubana. Ao final da palestra o
público foi convidado para desfrutar de uma oferenda para Yemayá (Iemanjá) muito
generosa, com comidas de vários tipos e quitutes dos mais exóticos aos olhos dos
habitantes da capital, organizada por essas duas irmãs ativistas da Red de Ananse e pelo
doutor Allen Hilton.
Esse ato, juntamente com aquela exposição, foi inédito na história e no roteiro
daquele museu, e talvez na história dos museus na Colômbia. Além disso, Victoria
participou da pesquisa de campo em Tumaco que serviu de base para essa exposição11, e as
duas irmãs contribuíram também com um altar com as imagens dos santos que a mãe delas
cultuava, e que fez parte daquela exposição temporária.
Outro fato que chamou minha atenção foi o convite que Milena me fez para
comparecer a uma festa religiosa em dezembro de 2008, talvez para Babalú Ayé (Obaluaiê).
No local da festa, havia um altar para essa divindade na sala, próximo à porta de acesso à
casa. Caminhando uns metros no sentido dos fundos da casa, havia também um grande
espaço com um altar e uma oferenda, um sacrifício de um animal de quatro patas, que
foram preparados para uma entidade do vodu haitiano por uma outra pessoa, que durante
uma parte da noite incorporou essa entidade.
Naquela época, eu já tinha certa curiosidade pelo que eu considerava uma expressão
particular da diversidade de crenças e costumes dos diferentes povos, grupos e populações
negras da Colômbia e das Américas. Por um lado, um interesse diletante por meio de

11
Maria Angola, integrante da Red de Ananse, também participou em qualidade de Sabedora na preparação
da Exposição e coordenou uma das oficinas realizadas como atividades anexas para aproximar o público dos
saberes afrocolombianos.
11
textos, canções (a maioria do repertório popular cubano e algumas delas brasileiras) e
documentários sobre as práticas religiosas afro-cubanas e do vodu haitiano; por outro, certa
curiosidade sobre as práticas funerárias, rituais mortuários e o culto aos ancestrais
familiares das populações negras/afrocolombianas.
Minha aproximação com essas últimas foi sem dúvida influenciada pela
participação na exposição mencionada anteriormente. Mas esses fenômenos e assuntos não
faziam parte propriamente de meus interesses de pesquisa e militância12. Em 2009, quando
fui convidado por Milena para participar das reuniões da Red de Ananse, me aproximei
propriamente desse grupo. Conheci seus componentes e um pouco da dinâmica de trabalho
para a construção de sua visão e sua proposta de escola, currículo e organização escolar
para a implementação da Cátedra de Estudios Afrocolombianos, a qual teria de ser entregue
na forma de um relatório para a Secretaria de Educación Distrital como parte de um
convênio/contrato de pesquisa entre a Red e essa Secretaria. Além disso, participei de
algumas ‘missas espirituais’13 e algumas atividades rituais para os orixás cultuados por
Milena e por algumas pessoas da Red; muitas dessas experiências envolveram possessão,
ou melhor, nos termos utilizados nesse contexto, algumas pessoas se montaron.
Naquele ano a Red de Ananse organizou o ‘Seminário Internacional Diásporas
Afrolatinas, Interculturalidad, Participación y Pedagogías Decoloniales’, com a presença
de pesquisadores do Equador, da Colômbia, dos EUA e do Brasil. Em meados desse ano e
na volta à Colômbia, depois de uma estada de um mês em Cuba, Milena me presenteou
com um colar feito com sementes cada uma delas era metade preta, metade vermelha, o
qual me foi entregue por ela na frente do altar de seu Elegguá – orixá dos caminhos e

12
Os meus interesses políticos e de pesquisa naquela época estavam relacionados com o tema da escassa
presença das pessoas afro-colombianas no Ensino Superior e as políticas de ações afirmativas. A articulação
desses assuntos resultou na minha monografia de graduação em sociologia intitulada ‘Reproducción de las
desigualdades sociales y raciales en la Universidad Nacional de Colombia: Estudiantes afrocolombianos’
(Meza Alvarez, 2008) e, junto ao pesquisador Handerson Joseph, no livro Olhares negros: desigualdade
racial e ações afirmativas no ensino superior na Colômbia e no Brasil (Handerson, J. & Meza Alvarez,
2012).
13
As missas espirituais são cerimônias para o desenvolvimento tanto dos espíritos dos mortos que são
convocados quanto dos espiritistas que nelas participam, mediante uma serie de procedimentos (orações de
abertura e de fechamento, cantos, fumo de charuto, preparação do altar ou bóveda espiritual, etc.) que buscam
estabelecer uma comunicação entre eles, e nas quais os primeiros advertem as pessoas presentes sobre eventos
futuros, ou apontam problemas atuais com suas causas espirituais ou materiais e os procedimentos que têm de
ser feitos para resolvê-los.
12
mensageiro entre os humanos, os orixás e o deus supremo Olofi –, e me disse: ahora yo soy
su madrina y usted tiene que decirme madrina, algo que passei a fazer a partir de então e
até hoje. Também me disse que eu tinha que usar esse colar sempre que possível,
especialmente quando estiver fora de casa. Também me disse que eu tinha que tirá-lo para
dormir, tirá-lo para ter relações sexuais e que não deveria usá-lo quando estivesse nu ou
quando fosse para a praia.
Ainda em 2009, a Red organizou uma oficina local para docentes e pesquisadores
das universidades da capital que trabalham questões relacionadas com a história da África e
da população negra na Colômbia, e com a Cátedra de Estudios Afrocolombianos, na qual
os principais palestrantes foram docentes pesquisadores de algumas universidades públicas
da cidade, alguns deles muito conhecidos como o professor Rafael Díaz da Pontificia
Universidad Javeriana e o professor do Togo Maguemati Wabgou, da Universidad
Nacional de Colombia.
Minha participação nessas atividades (no seminário internacional e na oficina) foi
basicamente ficar responsável pelo registro em áudio das palestras, uma espécie de trabalho
como “auxiliar técnico”. Nesse ano também tomei conhecimento sobre a iniciativa para a
‘adoção’ de uma escola em Cuba e outra escola no município de Tumaco, no sul da região
do Pacífico, no sudoeste da Colômbia. Tratava-se de ações que visavam desenvolver um
trabalho de identificação do racismo e da discriminação, valorização e promoção de
saberes, práticas e cultura das populações negras ou ‘afros’, por meio da interculturalidade
como tema transversal e como princípio das atividades e das relações sociais a serem
promovidas nas salas de aula.
A iniciativa de ‘adoção’, ou melhor, de amadrinamiento das escolas, ao que parece,
surgiu numa das viagens que algumas pessoas da Red – dentre elas Madrinha e Victoria –
costumam realizar duas vezes por ano a Havana, Cuba. Elas vão durante as férias escolares
para cumprir com as obrigações e com o processo de ‘crescimento espiritual’, que inclui a
visita ao respectivo padrinho ou madrinha de santo ou de Ocha14 (como elas preferem que

14
Santería ou Regla de Ocha, em Cuba, refere-se à religião de ‘origem ioruba’ em que são cultuadas as
divindades de origem iorubá conhecidas como orichas, orixás em português, intermediárias entre os homens e
o deus supremo conhecido como Olofi, Olodumare ou Olorún. O culto é dirigido aos orichas, e não a Olofi.
Segundo Castro Ramírez (2010) Ocha seria uma simplificação de Oricha, mas talvez a melhor tradução seja
Santo, ou seja, o santo ou a divindade que é coroada na cabeça (orí) da pessoa.
13
seja falado) e a participação em cerimonias necessárias para seu crescimento espiritual e
para o maior conhecimento da religião. Pelo que me contou recentemente Madrinha,
problemas de segurança e financeiros tornaram impossível dar continuidade ao projeto no
município de Tumaco. No caso da escola em Havana, ainda que elas continuem a doar
alguns livros e materiais didáticos, as autoridades cubanas, ao que parece, têm um pouco de
receio em abrir o espaço escolar para que sejam trabalhados temas desse tipo. Além disso,
não foi garantida por parte da empresa de aviação do Estado cubano a isenção do
pagamento pelo peso desses materiais, o qual não deixa de ser um problema porque elas já
têm que levar os seus tronos, ou seja, representações físicas de seus orixás, além de outros
objetos e materiais necessários para as cerimonias.
Contudo, somente com a minha vinda para o Brasil, em 2010, e minha aproximação
com a antropologia no PPGAS/MN, foi que comecei a pensar nas características
particulares da Red de Ananse, nesse ‘modo peculiar’ de mobilizar problemas e assuntos
diferentes (Mello, 2010), e comecei a tentar articular em um projeto de pesquisa esses
assuntos que se tornaram importantes para mim nos últimos anos em termos políticos e
acadêmicos.
Meu envolvimento com as dinâmicas, as atividades e ações da Red de Ananse e de
alguns de seus componentes, bem como o caloroso recebimento e abertura à minha
presença nas reuniões de trabalho, mesmo sem eu ter qualquer noção sobre o que
significava ser docente numa escola, sem ter experiência docente, sem saber o que
significava lidar enquanto docente com o racismo e a discriminação numa aula, e mesmo
sem nunca justificar em detalhe a minha presença nas reuniões, me colocaram num estatuto
que até agora não consigo explicar bem. Mas atentando para a própria definição da Red de
Ananse, os buracos da sua teia são grandes, e nela eu entrei, saí quando vim para o Brasil, e
a ela retornei para realizar a pesquisa de campo que embasou essa dissertação, ela própria
ligada à Red de Ananse.
Sem dúvida, o vínculo prévio com Milena e o fato de eu ser convidado dela abriu
para mim, desde a primeira reunião em 2009, a família que é a Red de Ananse, e nessa
ocasião, já em 2013, me facilitou a entrada no campo, mediante um pedido de permissão
anterior e prevendo a explicitação dos objetivos da pesquisa e das minhas motivações

14
pessoais. Vale dizer que o fato de propor uma pesquisa sobre a Red de Ananse despertou
nas integrantes um grande interesse.
Ainda que as missas espirituais naquela época (em 2009) tivessem para mim um
estranho gosto pelo que eu considerava elementos pertencentes ao catolicismo, a minha
atitude desde então foi a de participar nas atividades espirituais, quaisquer fossem elas, e
nas ações da Red para conhecê-las a partir da prática, ou melhor, para tentar entender
alguma coisa daquilo que nelas era falado, assim como aquilo que havia encontrado nos
textos que li e nas canções que escutava na época. Fui motivado por pura curiosidade; eu
não cogitava naquela época fazer uma pesquisa a respeito desses temas. Além disso,
Madrinha um dia me disse: si usted quiere saber, usted tiene que participar, usted tiene que
hacer. Aliás, ela me disse que esse tipo de saber não estava nos livros, pelo menos não
todo, e que todo esse conhecimento tinha muito de oral e de segredo.
Já em 2013, um dia qualquer ela me disse: si usted quiere saber más sobre la Ocha,
usted tiene que hacerse santo, ou seja, ‘ser feito no santo’, se iniciar. Em uma das primeiras
missas espirituais em que eu participei estando no campo, um dos eggun15, chamado Pedro
Pablo, perguntou para Madrinha se já não estava na hora de eu receber novos colares e
apontou para o colar que eu tinha nesse momento. Ao final da missa, Madrinha pediu para
eu tirar o colar e deixá-lo num cantinho qualquer da cozinha, porque ela ia tomar conta
dele. Tanto ela como o seu sobrinho Diego me disseram que aquele colar de sementes tinha
cumprido a sua função de protección; além disso, me disseram que o colar tinha recogido
mucha cosa (recolhido muita coisa) e uma prova disso era o aspecto escuro. Mas foi o
Diego quem me disse que esse colar que eu tive até então era um collar de peonía, que
segundo ele, é dado àquelas pessoas que são indecisas perante essa religião.
Isso causou em mim uma curiosa surpresa, porque de alguma forma essas palavras
apontavam para uma descrição um pouco próxima da minha postura até agora: um lento
envolvimento baseado numa franca curiosidade, mediado sem duvida pela proximidade
com Madrinha, o que tem me permitido participar em cerimônias e receber objetos de
protección, sem qualquer tipo de pressa, respeitando os tempos e as regras sobre o sigilo
frente a procedimentos rituais, ainda que eu não seja um iniciado. Essa curiosa surpresa

15
Espíritos dos mortos.
15
toca em um ponto central das práticas no interior das religiões afro-cubanas: o segredo e o
fato de que nem tudo é dito, e aquilo que é dito não o é de uma vez só. Há, de fato, um
processo de conhecimento ou aprendizado aos poucos (Machado, 2013) ou como bem
aponta Goldman (2006:24) com a expressão ‘catar folhas’, como processo característico no
‘aprendizado dos meandros do culto do candomblé’, em que o interessado ‘deve ir reunindo
(‘catando’) pacientemente, ao longo dos anos, os detalhes que recolhe aqui e ali (‘as
folhas’) com a esperança de que, em algum momento, um esboço plausível de síntese será
produzido’.
Nesse sentido, eu me deixei ‘afetar’ pela Red de Ananse, no sentido de ser afetado
pelas intensidades específicas (afetos) que abrem uma ‘comunicação sempre involuntária e
desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não’ como condição de
possibilidade de uma etnografia [Favret-Saada, (1990) 2005]. Nesse caso, foram
principalmente as missas espirituais onde esse tipo de comunicação foi mais frequente; a
essas me referirei especialmente no terceiro capítulo16.
Marco também meu interesse nessa primeira tentativa de observação ‘intensa de
suas práticas cotidianas’ (Silva, 1998), que foram relativamente mais bem sucedidas em
relação às atividades rituais que aconteceram na casa de Madrinha. Tudo isso sem deixar de
pensar ao mesmo tempo no interessante caráter político e no potencial perturbador de sua
reivindicação para a práxis micropolítica, acadêmica e na vida cotidiana na escala de
relações em que está envolvida a Red de Ananse ou, pelo menos, alguns de seus
componentes. Não se trata aqui de uma relação mais ou menos contratual com o intuito de
facilitar o acesso no campo para fazer a pesquisa. Há uma relação mediada pelo afeto que
tem sem duvida implicações metodológicas, éticas e políticas e, em todo caso, uma
preocupação fundamental para que esse trabalho sirva de alguma forma para a Red de
Ananse.
Além disso, esse trabalho não é nem uma mudança, nem uma ruptura em relação ao
meu envolvimento inicial com esse tipo de movimento, ao contrário, há uma continuidade –
16
Por enquanto é interessante apontar que desde a primeira vez eu senti nas missas espirituais uma vontade de
fumar charuto, sendo que não sou fumante e que nunca tinha fumado antes, e de beber álcool em grande
quantidade, mas sem ficar bêbado; além de sentir às vezes que algumas partes do meu corpo ficavam mais
pesadas. Pensando nessas sensações e após muito tempo perguntei para Madrinha por que isso acontecia. Ela
me disse que se fumava e se bebia e não ficava bêbado devia-se ao fato de serem os egguns e não eu quem se
manifestava e quem agia nesses casos.
16
embora os coletivos não sejam os mesmos – de vinculações político-acadêmicas que se
encontram, se confrontam e que estão na base de meus interesses existenciais e de pesquisa,
e que, portanto, não pretendem ser nem “neutros”, nem “objetivos”.

****

A pesquisa de campo em que se baseia essa dissertação foi realizada em Bogotá


entre os meses de fevereiro e maio de 2013. Em total, foram quase quatro meses
acompanhando muitas das atividades realizadas em conjunto pela Red de Ananse. A
maioria delas foram conversas pautadas com temas como as trajetórias individuais como
mulheres e como mulheres negras, as experiências de racismo e discriminação vivenciadas,
e o percurso até chegarem na conformação da Red de Ananse; as experiências de
‘aplicação’ das chamadas ‘pedagogias ancestrais’ nas aulas; os saberes e as práticas
ancestrais e espirituais e as estratégias pedagógicas acionadas em aula. Além disso,
participei de muitas conversas sobre vários temas com algumas pessoas da Red nos
momentos prévios às reuniões e nos intervalos entre estas e as missas espirituais.
As missas espirituais foram outras das atividades que acompanhei e das quais
participei. Nelas, nem sempre participavam as professoras da Red, por diferentes motivos
que abordarei mais adiante. As missas espirituais, principalmente, e alguns rituais da Ocha,
foram as cerimonias espirituais/religiosas que mais acompanhei durante o período de
pesquisa de campo, sendo que a maioria delas aconteceu na casa de Madrinha.
De uma forma individual, realizei entrevistas semiestruturadas com algumas
pessoas da Red de Ananse (de fato a maioria) procurando conhecer um pouco as trajetórias
de vida, os percursos feitos até conhecer a Red de Ananse, a experiência de participação na
Red e as experiências com a espiritualidade. Realizar entrevistas tornou-se necessário para
complementar as informações com os detalhes que dificilmente apareceriam nas reuniões e
conversas pelo tempo relativamente curto para dedicar a relatos sobre as trajetórias. Além
das pessoas da Red e procurando um olhar “externo”, realizei entrevistas com algumas
pessoas que conhecem o trabalho feito pela Red ou o trabalho docente e militante de alguns
de seus componentes.

17
Por outro lado, pela proximidade e pelo fato dela dispor relativamente de mais
tempo (no momento da pesquisa), participei de muitas conversas junto com Madrinha sobre
diversos assuntos (movimento afro-colombiano, política, espiritualidade, entre outros);
também realizei algumas leituras sobre temas de ensino e infância no candomblé, que
foram temas propostos por ela, além de assistir vídeos (documentários) e outros materiais
similares em português que eu tive que “ler” em espanhol para ela. Além disso, apoiei o
trabalho de “secretaria” da Red (ajuda na redação de cartas, comunicados e na proposta de
encontro internacional sobre espiritualidade e resistência), sempre sob orientações e
diretrizes de Madrinha.
Por alguma razão que ainda desconheço, poucas referências a parceiros afetivos e
maridos apareceram nos relatos das integrantes da Red de Ananse, a não ser pouquíssimos e
isolados comentários. No caso das conversas descontraídas, as datas (anos) de alguns
acontecimentos e eventos são aproximadas, assim como os nomes de colegas e outros
companheiros que neles participaram. Imagino que o silêncio delas sobre esses assuntos
durante a pesquisa de campo, tenha a ver com o fato de eu ser um pesquisador homem.
Por outro lado, quando as atividades de observação no campo aconteceram durante
o dia, na noite eu fazia anotações tentando “fixar” ideias, assim como fazer descrições de
situações e acontecimentos, mas isso nem sempre era possível, porque havia atividades que
aconteciam até muito tarde. Nas missas espirituais, nos rogamientos17, nas cerimonias
espirituais para alimentar os egguns (dar de comer al muerto), etc., fazer registro não foi
possível tanto porque não é permitido quanto pelo fato de que a participação é a única
garantia de poder estar nelas. Algumas dessas cerimonias implicaram estar desligado quase
inteiramente do ritmo cotidiano por mais de vinte e quatro horas, assim como de qualquer
tipo de aparelho eletrônico e de qualquer coisa que possa tirar os envolvidos da
concentração do que se passa nas cerimonias. Após esse tempo, apesar da sensação de
tranquilidade, o cérebro parece incapaz de reconstruir a sequência de fatos e muito menos
os detalhes, ao menos no meu caso.

17
Procedimento para limpar o astral da pessoa o que implica entre outras coisas que a cabeça, orí ou erí seja
refrescada.
18
****

Enfim, essa dissertação se estrutura em três capítulos. Os eixos são constituídos


pelos termos política, pesquisa e ‘espiritualidade afro’. Por sua vez aprendizado, docência e
luta antirracismo aparecem ligados àqueles como temas transversais. Ao longo do texto e
em cada capítulo a articulação e ordenação (hierárquica) de eixos e temas se relacionarão
com os discursos da Red ou de alguns de seus componentes, assim como com as atividades,
os objetivos, os espaços, as relações, os interesses em jogo e as pessoas envolvidas em cada
caso, mas esses últimos serão diferentes em cada capítulo em função dos dados empíricos.
Assim, o primeiro capítulo tentará mostrar a diversidade da população
negra/afrocolombiana em relação tanto às localizações geográficas e aos “tipos regionais”
quanto com as diferentes formas de nomeação atribuída (hetero-percepção) e de auto-
identificação (auto-percepção). Esses dados serão postos em relação com o discurso racial
da nação colombiana e com a emergência dos afrocolombianos como sujeitos de direitos
diferenciados em função do multiculturalismo definido na Constituição de 1991, e das
características do surgimento e participação nesse processo do nascente movimento social
afrocolombiano de ao menos duas das fundadoras da Red de Ananse, que são personagens
centrais dessa dissertação.
O segundo capítulo versará sobre o nascimento da Red de Ananse com base nas
trajetórias das pessoas que eu chamo aqui de fundadoras. Além disso, essas histórias serão
postas em relação com o panorama mais geral da presença de pessoas negras na cidade de
Bogotá e com as expressões do movimento social afrocolombiano na capital do país. Aliás,
se atentará para as formas de vinculação dos componentes da Red de Ananse, as formas em
que se organizam, assim como seus projetos.
O terceiro capítulo abordará a concepção que a Red tem sobre a escola e a
instituição escolar como um todo, a luta antirracismo no meio escolar, a relação da escola
com a universidade e as propostas para uma escola intercultural estruturada ao redor da
reivindicação do papel central da pesquisa (docentes pesquisadoras), do ativismo e da
política (docentes ativistas ou cimarronas), e das pedagogias ancestrales em diálogo com
as pedagogias criticas e descoloniais. Também se atentará para o lugar da espiritualidade
afro no meio escolar. Enfim, nesse capítulo mencionarei muito brevemente os elementos,
19
as práticas, as hierarquias, o papel da mulher, os espaços rituais, e o lugar dos mortos na
espiritualidade afro. Quando possível serão feitas algumas relações sobre o que seria o
campo das religiões afro-cubanas em Bogotá e o ponto de vista de algumas pessoas da Red
a esse respeito.

20
Capítulo 1
COMEÇANDO A TECER OS FIOS

A população hoje chamada de ‘afro-colombiana’ abrange uma grande diversidade


de experiências históricas, sociais e políticas, presente nas suas múltiplas formas de auto-
identificação, que por sua vez estão ligadas a distintos âmbitos regionais (geográficos e
culturais) e que se manifestam nas experiências organizativas, especialmente no movimento
social afro-colombiano. Nesse sentido, gostaria de começar apontando neste capítulo
algumas características muito gerais sobre essa população, diferenciando-a analiticamente
tanto dos estudos e da literatura a respeito dela quanto de sua expressão organizada. Essas
diferenciações não se pretendem exaustivas, mas ajudam a identificar aspectos que serão
importantes na compreensão das questões, redes e âmbitos de relações em que participa a
Red de Ananse: a diversidade regional, a ordem racial colombiana, o processo de
etnicização, o nascimento do movimento social afro-colombiano, entre outros18.

1. Características gerais: localização, dados, categorias e nomeação.

1.1. Localização.
A população negra colombiana está presente em todo o território do país (Dane19,
2007). Mais recentemente se observa uma presença crescente na Orinoquía e no
Piedemonte da Amazônia, porém por razões históricas e demográficas ela se localiza
principalmente nas seguintes áreas do território nacional: região do Pacífico, caribe

18
Visões de conjunto sobre a historia da experiência organizativa da população negra colombiana ou do hoje
chamado movimento social afro-colombiano são escassas, excetuando-se talvez o bom trabalho de Wabgou,
Arocha Rodríguez, Salgado Cassiani e Carabalí Ospina, de 2012 (doravante Wabgou et al.), intitulado
Movimiento social afro-colombiano, negro, raizal y palenquero: El largo camino hacia la construcción de
espacios comunes y alianzas estratégicas para la incidencia política en Colombia. Algo similar acontece em
relação à experiência organizativa da chamada Comisión Especial de Comunidades Negras, responsável pela
elaboração do artigo transitório 55 (AT 55) da Constituição de 1991 e da Lei 70 de 1993. Talvez o único
trabalho detalhado até agora sobre a conformação, os integrantes, as estratégias, as reivindicações e as
alianças no seio dessa comissão seja a dissertação de mestrado de Liliana Gracia Hincapié, de 2013, intitulada
‘Território e etnicidade afro-colombianas: dinâmicas de luta em Chocó’. Sobre a experiência organizativa e
construção de um discurso da negritude na Colômbia nas primeiras décadas do século XX, existe a
dissertação de mestrado em história de Pietro Pisano, de 2010, intitulada ‘Liderazgo político negro en
Colombia 1943-1964’.
19
Departamento Administrativo Nacional de Estadísticas.
21
continental, arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina, vales inter-andinos e
grandes cidades do país (Dane, 2007; Conpes20 3660/2010)21. De um modo geral, os
principais lugares de habitação da população negra em termos demográficos coincidem
com os antigos destinos do trabalho escravo: mineração do ouro em garimpos nos rios do
ocidente do país (no Pacífico), trabalho em fazendas e navegação pelos rios e vales
interandinos, nas cidades de recepção e venda de escravizados, como Cartagena e Popayán
(Maya, 1998; Arocha, 2008), e hoje em dia nas grandes cidades.
Por outro lado, ainda que existisse população negra nas cidades desde a época
colonial, as grandes cidades22 são destinos relativamente recentes por diferentes motivos:
procura de melhores condições de vida e emprego, estudo universitário e intensificação do
conflito social e armado, em particular pelo deslocamento forçado da população negra
(principalmente da região do Pacífico) desde meados da década de 1990 por diferentes
atores armados, com destaque para os grupos paramilitares. A maioria dessa população
negra mora nos bairros periféricos e marginalizados dessas cidades e em áreas de alto risco
pela qualidade do terreno, pela insegurança, e pelo baixo acesso a serviços públicos. No
capítulo 2, tratarei de caracterizar de passagem a presença da gente negra na cidade de
Bogotá a partir das pessoas que nessa dissertação eu chamo de fundadoras da Red de
Ananse.
Seja nas grandes cidades, seja nos litorais, nas áreas rurais ou até mesmo nos
territórios coletivos, as populações negras colombianas apresentam em sua maioria os
piores indicadores sociais de renda, escolaridade, emprego, utilização de serviços públicos
de qualidade, saneamento básico e condições de moradia, se comparados com outros
grupos étnicos e outros setores sociais da população colombiana (Conpes 3310; Conpes

20
Consejo Nacional de Política Económica y Social, órgão do Departamento Nacional de Planeación (DNP).
21
Para mais detalhes convido o leitor a ver o apêndice I, ‘Regiões do país e localização da população
negra/afro-colombiana’ e o mapa 1 do apêndice II.
22
Aqui me refiro à população que tem chegado nas cidades desde meados do século XX e não aos
assentamentos de população negra criados a partir do cimarronaje (fugas) e da construção de palenques
(quilombos) ou àquelas que foram levadas para realizar diferentes trabalhos nas cidades já existentes no
período colonial. Quer dizer, isso não exclui a presença mais antiga nas áreas que hoje fazem parte dessas
cidades. Para informações sobre a conformação de assentamentos e sobre a presença de populações negras
nas cidades e regiões colombianas ver Maya (1998), assim como Diaz (2001) para o caso de Bogotá e áreas
vizinhas.
22
3660). Essa imagem de pobreza e precariedade associa-se comumente à cor da pele e aos
lugares de habitação da população negra na Colômbia: ali claramente aparecem a região do
Pacífico (especialmente do departamento de Chocó), seguida da região caribe
(especialmente Cartagena), e enfim os bairros populares de cidades como Cali, Medellín,
Bogotá, Barranquilla, Cartagena. Assim sendo, tanto os indicadores sociais quantos os
aspectos fenotípicos se juntam numa geografia racializada que expressa também o que
Wade (1997) denomina ‘ordem racial colombiana’, numa relação hierárquica de raça e
economia política:

En cuyo punto más alto está lo blanco y en los dos ángulos inferiores está lo negro y lo
indígena. Los dos vértices de abajo son vistos desde arriba como primitivos, dependientes,
ignorantes, rústicos e inferiores (…) Blanco [significó] prestigio, poder, riqueza,
civilización, creación, y gobierno de la nacionalidad colombiana y las altas posiciones en las
escalas de urbanidad, educación y “cultura”. [En ese orden racial,] los negros son
estereotipados como perezosos y no progresistas, ignorantes y con una áspera y rústica
manera de hablar. Los indígenas también son vistos como refractarios al progreso y al
desarrollo (…). Estas imágenes son una consecuencia del hecho de que el orden racial
triangular presentado aquí se superpone fuertemente a un orden básico de clase que,
empezando con el colonialismo, la esclavitud y la explotación de la mano de obra indígena,
ha estructurado la raza de manera jerárquica (...). Las jerarquías de raza y clase no son
coextensivas, porque existen blancos de clase baja y algunos negros de clase media, pero su
coincidencia histórica ha sido suficiente para crear la jerarquía básica del orden racial
(Wade, 1997:52).

1.2. O tamanho da população negra.


Segundo dados do mais recente censo geral de população de 2005, processados e
divulgados pelo órgão estatal Departamento Administrativo Nacional de Estatísticas
(Dane), no território colombiano moram 41.468.384 pessoas23, das quais 5.709.238
(14,06%) disseram pertencer a um grupo étnico. De acordo com o Dane, a quantidade de
indígenas que informaram seu pertencimento étnico foi 1.392.623 (3,43%); de afro-
colombianos 4.311.757 (10,62%) e do povo Rom (cigano) 4.858 pessoas (0,01%). A
quantidade de pessoas que não informaram pertencimento étnico segundo as opções de
resposta do formulário foi de 34.898.170 (85,94%) (Dane, 2007).

23
Segundo o site do Dane para o dia 15 de outubro de 2013 a população colombiana desse dia foi 47.280.694
habitantes.
23
Os departamentos24 com maior percentual de afro-colombianos são Chocó, Valle
del Cauca, Bolívar, Cauca e o arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina. Os
que concentram aproximadamente 50% da população afro do país são Valle del Cauca,
Antioquia e Bolívar (Dane, 2007:24).
Segundo o Dane, a população negra experimenta um processo acelerado de
migração para as cidades devido ao deslocamento forçado causado pelos diferentes atores
do conflito nas regiões de Urabá e do Médio Atrato, e pela expansão de cultivos ilícitos nas
regiões dos rios Patía e Naya, o que faz com que 29,2% dos afro-colombianos residam em
cidades como Cartagena, Cali, Barranquilla, Medellín e Bogotá (Dane, 2007:2)25. Ao
mesmo tempo, a atividade “legal” por meio de megaempreendimentos de mineração e os
agronegócios com monoculturas voltadas para os biocombustíveis, entre outros, também
são causas de deslocamento26.
A respeito desses resultados censitários, há que se dizer que foram recebidos com
muitas críticas por parte de vários setores da população: pesquisadores, especialistas em
censos, ex-funcionários do Dane, prefeitos de algumas cidades e organizações do
movimento social afro-colombiano. De fato, a produção de indicadores e, em geral, de
dados sobre a população negra colombiana é alvo de forte crítica por parte de organizações
do movimento social afro-colombiano, pelo menos desde o começo da década de 1990,
momento em que o desenho do censo e em particular das categorias étnicas e raciais
ganham relevância para essa população, após os resultados do censo de 1993 o qual,

24
Na divisão administrativa colombiana, “departamento” é cada uma das unidades em que se divide o
território colombiano. Cada departamento tem uma capital e diversos municípios. A principal autoridade no
departamento é o Governador, seguido dos Alcaldes (prefeitos) de cada um dos municípios, incluindo ali a
cidade capital.
25
Segundo esse censo, no departamento de Chocó 82,12% da população é afro-colombiana. No arquipélago
de San Andrés, Providencia e Santa Catalina esse percentual é de 56,98%, do qual 69,09% corresponde à
população raizal, oriunda desse departamento. No departamento de Bolívar, 27,61% da população é afro-
colombiana; no Valle del Cauca esse percentual é de 27,20% e no departamento de Cauca 22,20%. Mais da
metade da população afro-colombiana (57,28%) se concentra nos departamentos de Valle del Cauca,
Antioquia, Bolívar e Chocó. 17,48% residem nos departamentos de Nariño, Cauca e Atlántico (Dane,
2007:39). A população palenquera é em torno de 7.740 pessoas, incluindo o município de Mahates, no
departamento de Bolívar. Já a população raizal estaria composta por 30.565 pessoas à época. Além disso,
segundo o Conpes 3660 de 2010, a população negra colombiana seria a segunda maior da América Latina e
do Caribe, depois do Brasil, e a terceira maior depois do Brasil e dos Estados Unidos de América.
26
Convido o leitor a ver o mapa 2 (no apêndice II: Mapas) que mostra os lugares com maior presença de
população negra no território nacional.
24
segundo o Processo de Comunidades Negras (PCN) e alguns autores, teve muitas
inconsistências técnicas, de tempo, de recursos tecnológicos e, em particular, uma fraca
operacionalização da nova categoria que entrava em cena associada a um novo sujeito de
direitos: as comunidades negras (PCN, 2006).
No caso do censo geral de população realizado em 2005, a crítica do movimento
social afro-colombiano apontava o ‘genocídio estatístico’ da população negra porque,
segundo cálculos prévios realizados pelo mesmo órgão e por alguns documentos do
departamento nacional de planejamento (DNP) nos chamados documentos Conpes para a
população negra, afro-colombiana, raizal e palenquera, o tamanho dessa população seria
bem maior: em torno de 18% ou até 26% da população colombiana (Conpes 3310 de 2004).
De fato, o documento ‘“Y el chocolate espeso”: Evaluación del censo general 2005
y la pregunta de autoreconocimiento étnico entre afro-colombianos’ (2006) redigido pela
articulação de organizações Processo de Comunidades Negras – PCN, aponta várias
inconsistências derivadas do descumprimento dos acordos entre o Dane e as organizações
afro-colombianas, os quais foram o resultado de meses de diálogos, discussões e propostas
para o desenho do componente de caracterização da população em termos étnicos e raciais,
que inclui as categorias censitárias com base no critério de autoidentificação, a participação
de pessoas negras ou afro-colombianas no operativo censual, a capacitação dos
recenseadores sobre questões relativas à população negra e uma campanha de
sensibilização por meio de mensagem audiovisual que devia ser veiculada nos canais de
televisão.
Em resumo, o PCN aponta como problemas do processo censitário a não-realização
ou omissão da pergunta de autoidentificação étnico-racial por parte dos recenseadores, a
atribuição de caracteres étnico-raciais à população pelos próprios recenseadores, a pouca
divulgação (sensibilização) em torno das categorias utilizadas pelo censo para caracterizar a
população negra ou afro-colombiana e, enfim, a exclusão unilateral da categoria “moreno”,
descumprindo acordos prévios com as organizações (PCN, Op. Cit; Mosquera Rosero, Diaz
León, Rodríguez Morales, 2009).
O que esses desvios mostram é uma disputa pela produção das cifras entre, de um
lado, as populações racializadas, os grupos étnicos e seus aliados e, de outro, os
funcionários do Estado (os chamados especialistas), assim como colocam em xeque a
25
confiabilidade dos dados que são a base das políticas públicas. Ao mesmo tempo,
questiona-se o compromisso e a vontade política por parte do Estado em relação às
obrigações derivadas da assinatura de convenções internacionais (entre elas a Conferência
de Durban), bem como dos documentos Conpes para a população negra ou afro-
colombiana, nos quais há um declarado compromisso por parte do Estado colombiano com
a produção de cifras confiáveis para a elaboração de políticas para o desenvolvimento desse
setor social.
Assim sendo, há, segundo Estupiñan (2006), uma ‘invisibilidade estatística’ de
longa data da população negra, e que se mantém na atualidade na falta de uma
quantificação real, bem como a consequente ausência de indicadores socioeconômicos e
demográficos confiáveis. Nesse sentido, o interesse de um setor organizado da população
negra no desenho do censo apontava para a inclusão de outras categorias de identificação
que refletissem a diversidade regional e de formas de nomeação da própria gente negra.

1.3. Categorias censitárias, termos e formas de nomeação, identificação e auto-


identificação.
Termos de identificação e autoidentificação expressam experiências raciais, étnicas,
organizativas e políticas dos distintos conjuntos, que nesse capítulo eu chamo de população
negra em contextos geográficos, regionais, ambientais e históricos variados. Daí se entende
o trabalho feito pelo movimento social afro-colombiano para a inclusão de categorias que
não haviam sido consideradas em censos anteriores, com objetivo de abranger as formas de
identificação regionais próprias de grandes conjuntos dessa população numa mistura de
critérios fenotípicos (raciais) e culturais (étnicos): negros (incluindo os mulatos), afro-
colombianos, raizales e palenqueros.
Assim, organizações que representaram essas populações perante a comissão
encarregada do segmento de caracterização social para o censo de 2005 argumentaram a
favor da inclusão do termo ‘moreno’, muito usado no cotidiano, ora como estratégia de
‘embranquecimento’ (ou de ‘competência mestiça’ como diz, ora porque pela mesma
discriminação, como estratégia de evitação do estigma (Cunin, 2004), evitem usar outros

26
termos para se identificar (PCN, 2006), ora também porque esse termo eufemístico é
utilizado por outras pessoas para se referir àqueles (hetero-percepção)27.
Aqui são necessários alguns esclarecimentos: as categorias que finalmente foram
utilizadas no censo de 2005, algumas delas usadas efetivamente no dia a dia por
comunidades e por indivíduos em diferentes regiões do país, não são idênticas a alguns
termos geograficamente menos abrangentes utilizados por conjuntos de pessoas
principalmente em determinadas áreas do Pacífico. Esses termos também não se confundem
com a profusão de termos que fazem referencia a fenótipos, utilizados tanto para se
autorreferenciar como para serem atribuídos a outros segundo traços percebidos por
pessoas que se percebem sem esses atributos.
Nesse sentido, as categorias Negro, Afro-colombiano, Raizal e Palenquero
coexistem (fora de espaços e discursos institucionalizados) com outros tantos termos nas
experiências mais diversas e em diferentes lugares da geografia nacional: mulato, café com
leite, moreno, triguenho, etc. Além desses últimos termos que fazem referencia à cor da
pele, existem os que alguns pesquisadores chamam de etnônimos e que se referem a termos
reivindicados por habitantes de um mesmo povoado com predomínio de população negra
quando moram nas cidades ou fora de seus lugares de origem, onde conformam as
chamadas “colônias”, ou seja, grupos de conterrâneos: sanjuaneño (San Juan), atrateño
(Atrato), baudoseño (Baudó), guapireño (Guapi), paimadoseño (Paimadó), etc. (Gracia,
2013:27-28). Outros termos com uma função parecida com as daqueles são renacientes e
libres.

27
A respeito das diversas formas de autoidentificação, aponta Estupiñan: ‘En las ciudades, las poblaciones
afrocolombianas y las formas de identificación étnico-racial son diversas y sincréticas. El término negro se
utiliza con la connotación negativa que encierra su historicidad, aunque el discurso de raza ha sido
reivindicado por algunas instancias del movimiento social afrocolombiano, los niveles de impacto han sido
limitados en la población. La autoidentificación de la población afrocolombiana urbana también se expresa
con base en procesos conscientes de etnización que se enraizan en los discursos académicos, y de formas de
vinculación política y cultural a las dinámicas urbanas. Los discursos agenciados por estas instancias de
etnización están relacionados con la explicitación del pasado y el presente de África como herencia histórica y
cultural y como referente actual (Agudelo, 2004). Un elemento que ha sido señalado como altamente
incidente en las formas de autoidentificación etnico-racial en el caso de las poblaciones negras urbanas en
Colombia y de otros países de América Latina como Brasil, es los factores asociados a la condición
socioeconómica y sociogeográfica que presenta el individuo (Barbary y Urrea, 2004; Carvalho et al., 2003)’
(Estupiñan, 2006).
27
‘Libre’ seria o termo com que os indígenas do atual departamento de Chocó
identificaram os escravizados fugitivos (cimarrones) ou os libertos que habitaram a região
desde finais do século XVII, provenientes dos rios Curundó e Quito e das minas de Nóvita.
O termo Libre seria utilizado pelas pessoas de ascendência africana uma vez alforriados, ou
seja, quando obtinham a carta de liberdade por meio da automanumisão, o que lhes permitia
serem Libres para circular (Meza apud Gracia, 2013: 35-36). Já o termo renaciente seria
utilizado no Pacífico Sul desde o século XIX por descendentes de africanos escravizados.
Esse termo remeteria à ideia de renascimento, de geração, de descendente, ligado a um
tronco familiar. Em uma relação metafórica, faz referencia à semente de uma árvore que vai
dar fruto e constituir outra família que é renaciente da primeira (Almario apud Gracia, op.
cit.:36).
A categoria raizal, segundo Robinson Davis & Botero Mejia (2008), é reivindicada
pelos habitantes do arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina que se
identificam como sendo uma etnia anglo-afro-caribenha, que resultou da ‘mistura de
culturas, de estratégias de supervivência (invenção de signos, dialetos, cantos, etc.) em uma
obrigada interação entre amos e escravizados, dominantes e dominados que teve lugar
nesse arquipélago’ (op. cit.: 108). Segundo as autoras, esse termo foi cunhado pelos
movimentos políticos locais para se diferenciar dos outros habitantes das ilhas que
chegaram maciçamente a partir da declaratória do arquipélago como porto livre na década
de 1950, que passaram a ser chamados com o termo que era empregado para nomear aos
antigos habitantes dessas ilhas: isleños (ilhéus) (ibid.).
O termo palenquero diz respeito à população que mora no Palenque de San Basilio,
no departamento de Bolívar, na região Caribe, o qual segundo alguns autores existe desde o
século XVII (Arrázola, 1970; Cassiani, 2008). Já o termo afro-colombiano é entendido por
algumas organizações e por alguns acadêmicos como sendo o nome para se referir às
diferentes comunidades, povos, grupos, etc., descendentes de africanos chegados à atual
Colômbia na condição de escravizados e que além da experiência comum de racismo,
guardariam memórias e saberes ancestrais, seja do legado africano, seja como produto das
adaptações, criações, resistências e invenções no atual território colombiano. Além disso, o
termo, reivindicado tanto por alguns ativistas como por alguns acadêmicos aponta, em todo
caso, para uma referência à experiência da origem, o drama da escravidão, e procura ir além
28
da referência ao fenótipo, ou seja, o tom da pele escuro presente no termo negro cunhado na
experiência colonial.
Em geral, o termo negro é altamente pejorativo quando usado fora de discursos e
espaços institucionais por ser historicamente usado para ofender e discriminar as pessoas
percebidas como tendo uma pele escura por pessoas que se presumem não portadoras
desses atributos (hetero-percepção). Foi precisamente esse o termo ao qual foram reduzidos
os africanos escravizados nas Américas. Outros termos coloniais como mulato, zambo, etc.,
não são muito utilizados atualmente e menos ainda reivindicados por pessoas a quem
poderiam em teoria ser atribuídos. De todo modo, o termo negro pode ter um significado
diferente a depender da pessoa que o utilize e da intenção, da circunstância e do lugar em
que seja usado, podendo não ser considerado pejorativo se utilizado entre pessoas que se
pensem sendo negras28.
Apesar da diversidade de termos de percepção e hetero-percepção mencionados
nessa secção, essas categorias (negro, afro-colombiano, raizal e palenquero) foram
institucionalizadas ao serem utilizadas no censo de 2005 e também ao serem incluídas em
documentos oficiais, acadêmicos e até na linguagem politicamente correta de alguns
cenários: academia, escola, mídia. Ainda que isso não mude as práticas racistas e
discriminatórias, hoje é difícil que as palavras “negro ou negra” não sejam qualificadas (ao
acrescentar outros termos) utilizados para se referir a um individuo ou um conjunto de
pessoas por parte da mídia, da escola, das instituições públicas, personagens públicas:
homem negro, mulher negra, pessoa negra, comunidade negra ou população negra, o
mesmo valendo para o termo afro. O uso recente do termo afro aponta para um boom étnico
afro-colombiano: assim, fala-se em afro-bogotanos, afro-pacífico, afro-diaspórico,
conciertafro, etc29.

28
Vale dizer que o uso desses termos até pelas mesmas organizações é bem variado. Até em suas publicações,
por vezes no interior de um mesmo texto, é possível encontrar termos como afro-colombianos, comunidades
negras, gente negra, povo negro, afros, usados indistintamente para se referir a um mesmo conjunto ideal de
pessoas, como é o caso do texto do PCN (2006) citado neste capítulo.
29
Sei que de alguma forma a mobilização pautada em reivindicações étnico-raciais pode ter efeitos em função
de uma “linguagem politicamente correta”, com a possibilidade ao mesmo tempo de que isso em nada tenha
mudado as práticas de discriminação racial para as pessoas conhecidas antes de 1991 apenas como sendo
“negros e negras”. Contudo, hoje duvido que em textos acadêmicos ou em discursos de políticos ou
funcionários públicos se fale em “negro/a ou negros/as” sem que a palavra seja acompanhada pelo menos de
outras como gente (negra), pessoa (negra), homem (negro), mulher (negra), população (negra), comunidades
29
Esse esforço de definição de categorias abrangentes e de criação de denominações
por parte de organizações sociais é expressão do processo de etnicização dessa população
no intuito de se tornar visíveis perante o Estado e se afirmar na sociedade nacional em
condições “adequadas” para o acesso aos bens derivados dessa relação em uma leitura que
leva em conta tanto o passado e o presente com suas exclusões, obliterações e resistências.
Em todo caso, o que se há a atentar é quem teria o “direito” de empregar esses
termos numa relação de interação específica. As pessoas com as quais construí o material
de pesquisa têm formas próprias para se autoidentificar, e como por vezes utilizo outro
termo para me referir a eles, faz-se preciso explicar os motivos dessa escolha. No caso
dessa dissertação, em grande parte utilizo deliberadamente as expressões “população
negra” e “gente negra”, principalmente nesse capítulo, para me referir em termos amplos ao
conjunto de pessoas que caberiam idealmente nessa denominação e para efeitos práticos de
narração. Já nos seguintes o texto acompanhará os termos usados pelas pessoas com as
quais construí o material de pesquisa.
Por outro lado, termos e categorias mantêm uma relação de mão dupla, no que se
refere a seu uso, por parte de acadêmicos, da referida população e de sua expressão
organizada, e como diz Gracia nas ‘ações oficiais’ (Gracia, 2013:31). No caso do campo
das pesquisas sobre essa população, seu uso remete a posicionamentos teóricos bem
definidos e por vezes opostos em um cenário tenso, como visto a seguir.

2. Os estudos sobre a população negra, afro-colombiana. Perspectivas e debates.


A partir do reconhecimento legislativo das comunidades negras como sujeitos de
direitos étnicos de base territorial30 parece ter havido um grande interesse acadêmico a
respeito dessa população, a maioria dos estudos tendo como campo e como imagem do
negro a região do Pacífico (Restrepo, 2001:5). Talvez esse crescente interesse deva-se
também ao trabalho pioneiro de determinados autores, entre eles Friedemann e Arocha, que

(negras), ou se fale em afro-colombiano/s (em conjunto) ou se utilize o termo afro para se referir a um
individuo ou um traço fenotípico, um tipo de cabelo ou até um tipo de penteado.
30
Entre os anos 1996 e 2008 foram entregues 160 títulos coletivos cujo território somado alcançaria
5.242.264 hectares, segundo o documento Conpes 3660/2010. De acordo com Gracia (2013), com base em
informação do Instituto Colombiano de Terras (Incoder), a quantidade de terras tituladas até 2012 é de quase
seis milhões de hectares, a maioria delas entregues a comunidades negras da região do Pacífico.
30
questionaram ‘um universo acadêmico que na prática desconhecia a pertinência acadêmica
e política de tais estudos’ (Restrepo, 2003: 88-89)31. Assim, gostaria de aludir a um debate
central na antropologia colombiana a respeito dessa população, representado por autores
como Jaime Arocha (bem como Friedemann, Maya e seus discípulos), por um lado, e Peter
Wade e Eduardo Restrepo, por outro.
Assim, de um lado aparece o argumento – mobilizado principalmente por Arocha e
Friedemann – da ‘invisibilidade’ da população negra na sociedade colombiana como efeito
da ideologia da mestiçagem, o qual apaga os aportes dos negros na construção do país e
nega as estratégias de resistência dos escravizados e sua criatividade a partir não só das
condições (incluindo as ambientais) impostas pela escravidão, mas pelos saberes que os
escravizados recriaram nas Américas. Desse modo, eles investem em estudos que
contribuem para explicitar a capacidade de invenção, de criatividade em resistência à
escravidão (Arocha, 1999:26), assim como os elementos que permitiriam traçar a ponte
entre a África e a América.
É no campo dos estudos afro-americanistas que aparece, com base em uma
perspectiva afrogenética32, a noção de ‘Huellas de Africanía’, literalmente pegadas de
africanidade ou, na tradução de Estupinãn (2010), ‘vestigios de africanidade’, mas no
sentido original do termo há uma diferença entre africanidad (que estaria presente na
África) e africanía em referencia tanto à reconstrução da memoria a partir das lembranças
dos cativos africanos quanto àqueles que seriam os legados das populações negras (Arocha,
2002:57; apud Restrepo, 2003:93). Ali se entende a importância teórica, ética e política que
os termos afro-americano e afro-colombiano têm para esse enfoque. Essa diferença é
fundamental porque permite pensar –com independencia do uso feito por Arocha dessa
noção- possíveis traços de inspiração africana nas práticas culturais das populações afro-
colombianas, o que não implica em uma ‘transmissão’ inalterada de legados.

31
Por motivo de espaço, não me referirei aqui à história dos estudos sobre essa população nas ciências
sociais, nem mesmo os realizados pela antropologia. Balanços sobre esse respeito foram feitos por vários
autores, entre eles Friedemann (1984), Restrepo (2001), Hurtado (2008) e mais recentemente Pulido Londoño
(2011).
32
Frente a crioulo-gênese, a indo-gênese, e a euro-gênese.
31
Mas a relação entre a pegada e sua expressão não seria linear, ou seja, uma pegada
poderia estar presente em várias práticas culturais, e uma prática cultural poderia ser
formada por várias pegadas. Daí a necessidade de conjugar etnografia e história ‘em uma
dimensão que leve em conta ‘racimos y no trazos aislados’ (Restrepo, 2003: 94).
É o livro de Arocha Ombligados de Ananse: Hilos ancestrales y modernos en el
Pacífico colombiano, mencionado na introdução, que integra aqueles que seriam para o
autor os achados empíricos dessas pegadas ao redor tanto da prática da Ombligación
quanto da presença dessa deidade, personagem esperta, ‘prometeica’, presente em contos e
disposições da população ante esse bicho, que é Ananse, e mais ainda na prática específica
da Ombligación com essa aranha (Ananse) na região ribeirinha do Alto Baudó, no
departamento de Chocó. Assim, é a Ananse como figura associada à liberdade dos
escravizados, que sabe se sair bem das situações mais embaraçosas, que Arocha toma como
metáfora das disposições criativas da população afro-colombiana na região do Pacífico
colombiano.
É justamente contra esse tipo de viés que Restrepo dirige sua crítica em vários
textos, e de forma mais detalhada no artigo de 2003 intitulado ‘Entre arácnidas deidades y
leones africanos: contribución al debate de un enfoque afroamericanista en Colombia’, no
qual realiza uma crítica do enfoque afroamericanista em três aspectos ‘1) em seu modelo
conceitual e explicativo, 2) em seu enquadramento metodológico, e 3) em suas estratégias
narrativas’ (Restrepo, 2013:88-89)33.
O autor tece observações interessantes sobre as inconsistências do enfoque em
termos teóricos, metodológicos, nas estratégias narrativas, e até da ‘africanização’ que teria
feito Arocha de seus próprios textos à luz da figura de Ananse (como expressão de Huella
de Africanía), bem como sobre a noção de bricolage (op. cit.:104), que é central em relação
à Red de Ananse. Contudo, é importante apontar que Restrepo questiona, entre outras

33
Restrepo realiza duas perguntas que somente deixa “penduradas”: a primeira diz respeito aos efeitos dos
processos coloniais na formação de hábitos e o que isso poderia dizer ou até explicar do ‘racimo de trazos’ e
da conexão histórica entre os grupos específicos para argumentar em favor de uma pegada de africanidade
(Restrepo, 2003:97). A segunda pergunta tem a ver com a conexão entre a ideia de princípios gramaticais
inconscientes ou orientações cognitivas de Mintz e Price a partir da heterogeneidade cultural dos africanos
com as colocações de Bateson a respeito das epistemologias locais definidas estritamente em função da
formação de hábitos ‘cujo marco se desdobra em uma cultura e uma nação específica’, já que teoricamente
haveria que se pensar nesse caso em africanidades no plural e não no singular (Restrepo, 2003:98-99).
32
coisas, a suposta especificidade para os “afrodescendientes” da ombligada de Ananse, já
que os indígenas Embera no mesmo departamento de Chocó teriam essa mesma prática.
Além disso, de acordo com pesquisas de outros autores sobre o tema (Velásquez e
Losonczy), e dele próprio no sul da região Pacífico, ele considera-se ‘que tanto quantitativa
como qualitativamente, a [prática da] ombligada com Ananse é marginal’ (op. cit.:107-
108).
Todavia, embora o objetivo de Restrepo seja apenas colocar algumas questões que
poderiam até aprimorar os argumentos e pressupostos do enfoque afro-americanista, ele
toca em assuntos que se pode aproveitar para colocar outros questionamentos com o intuito
de continuar o debate. A meu ver, a crítica que ele dirige a Arocha, principalmente, como
representante do enfoque afro-americanista, no sentido de retirar dos argumentos dos outros
os trechos considerados “mais fracos”, abandonando o argumento enquanto tal, poderiam
ser aplicados à sua própria crítica.
Dizer que a prática da ombligación com a aranha Ananse entre os Embera de
alguma forma colocaria em dúvida a ‘especificidade’ afrodescendente, nada diz a respeito
da historicidade da relação interétnica e em que direção essa prática foi compartilhada,
apropriada, etc., nem em que medida pode ser considerada igual, similar ou diferente entre
indígenas e pessoas negras no departamento de Chocó. De fato, existe a alusão que tanto
Arocha quanto Restrepo fazem do que seria a ombligación Embera, na qual as partes
previamente trituradas da aranha são untadas por várias partes do corpo das pessoas e não
no umbigo. Além disso, Restrepo não toca na outra forma de ombligación que Arocha
menciona, ou seja, aquela em que a nova mãe enterra a matriz e o umbigo da criança junto
com um pé de uma planta escolhida por ela desde que soube de sua gravidez e que as
pessoas costumam chamar de ‘meu umbigo-árvore’ (Arocha,1999:15).
Por outro lado, parece que a explicação de Ananse, seja na forma de ombligación
(embora segundo o autor trate-se de uma prática marginal no Pacífico), seja na forma de
contos, orações, nem sequer motiva nele a pergunta pela presença da prática mesma da
ombligación em outros lugares da região do Pacífico, e nem o leva a prestar atenção à
presença de Ananse no arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina, como
consta nos textos citados por Arocha a esse respeito.

33
Aqui é importante apontar que, ainda que o próprio nome da Red de Ananse tenha
sido inspirado no título do livro de Arocha, na pesquisa de campo dessa dissertação a
prática da ombligación, embora eu desconheça a substância utilizada, apareceu nos relatos
das fundadoras da Red em relação a alguns de seus filhos ou de alguns familiares, tanto no
caso daquelas do Pacífico Sul quanto da integrante que é de Puerto Tejada, município
localizado em um vale inter-andino, ou seja, em outro lugar fora da região do Pacífico.
Além disso, ainda que não com o nome de Ananse, ouvi relatos da disposição das
fundadoras e de seus conterrâneos em relação às aranhas: não bater nelas, não matá-las
mesmo estando dentro de casa, sob pena de atraer la mala suerte. Ainda que para estudar a
população negra não se tenha necessariamente que se perguntar por origens como afirma
Restrepo, esses assuntos tampouco podem ser despachados dizendo-se apenas que não são
exclusivos dos afrodescendentes a partir de um único caso mencionado e, sobretudo,
quando especificamente falando a respeito da palavra ananse, anancy, anansi, nancy, nansi,
se oblitera sua existência justamente entre populações afrodescendentes de outros países
americanos. Dizer que a prática da ombligación é marginal não me parece um bom
argumento para questionar uma huella de africanía em relação àquela prática. O fato de a
ombligación con ananse ser pouco praticada também não suscita nenhuma pergunta sobre
essa suposta marginalidade.
Há a meu ver uma tendência no caso de Restrepo, para se duvidar de qualquer
possibilidade de singularidade relacionada com a população que eles chamam de negra
(negros e negras), termo que por sua vez se toma como dado, como se todas as pessoas
‘negras’ o utilizassem, o que acaba por sugerir a invenção das práticas ‘culturais’ daqueles
e restringir essas práticas ao espaço americano. Esse posicionamento vai ao encontro da
crítica, que não é exclusiva de alguns pesquisadores, a respeito da etnicidade dessa
população como suposta cópia de um modelo antropológico de etnicidade indígena. Essa
postura de alguma forma só coloca duas opções possíveis: ou o antropólogo é um gênio,
um mágico capaz de criar um povo, sendo que as pessoas, populações, grupos, como se
prefira, são sujeitos passivos da etnização, ou esses últimos são muito calculistas em
relação ao poder de barganha derivado dessa constituição em etnia.
Ali vale a pergunta se não opera nessas pessoas um modelo de etnicidade indígena a
partir do qual julgam as outras tentativas de “construção” de uma alteridade contraposta ao
34
modelo mestiço dominante. Cabe ainda se perguntar a respeito desse tal modelo indígena,
que parece “natural”, não-inventado, contínuo. Será que não há diversidade entre os
indígenas? De fato, há povos indígenas em todo o território nacional, e o chamado
movimento indígena, parâmetro organizativo com o qual o movimento social afro-
colombiano se compara constantemente, não existiu sempre, nem é homogêneo, nem está
fechado a ideias e práticas produzidas em outros entornos. Curiosamente, quando se trata
de criticar as características da lei 70 de 1993, fala-se como se o movimento social afro-
colombiano fosse homogêneo34.
É importante mencionar o processo que deu estatuto de cidadania étnica
diferenciada à população negra da Colômbia. Assim como faz Antonio Risério (1981) no
caso dos blocos afro da cidade de Salvador, capital do estado da Bahia, no Brasil, é preciso
atentar para o processo de constituição desse movimento, algo que aponta, no caso
específico da Red de Ananse nesse e nos outros capítulos, para os encontros com uma
multiplicidade de atores que possibilitam a construção de projetos coletivos e de
posicionamentos políticos.

3. A emergência do movimento social afro-colombiano e a etnicidade dos afro-


colombianos.
Foi nos anos 1970 que foram formadas organizações que reivindicavam e
valorizavam o papel das pessoas negras na história social, cultural e política colombiana, ao
mesmo tempo em que denunciavam o racismo e as condições de exclusão e invisibilização
das populações negras na sociedade colombiana. São dessa época tanto os espaços de
discussão sobre as condições de exclusão da população negra na Colômbia concretizados
entre os anos 1975 e 197735, quanto as aproximações e vínculos com movimentos com

34
No caso das ainda tímidas reivindicações por ações afirmativas para o acesso da população afro nas
universidades colombianas mobilizadas por algumas organizações, Restrepo (2007) afirma que essa também é
uma cópia de pautas dos negros estadunidenses, ignorando que nem todos no movimento compartilham dessa
reivindicação e que esta não é uma novidade para essa população. E em todo caso, parece que ao afirmar isso
estivesse dizendo, talvez sem querer dizer, que não existe razão alguma para que “os negros colombianos”
exijam tal coisa, ou seja, como se não houvesse um problema ali.
35
Os encontros para discutir e pensar a respeito da população negra colombiana foram: I Encontro Nacional
da População Negra Colombiana realizado em Cali (1975); III Encontro regional e I do Litoral Pacífico
(Tumaco-Nariño, 1975); II Encontro Nacional da População Negra Colombiana (Quibdó, 1976); Congresso
de Negritudes (1977); III Encontro Nacional da População Negra Colombiana (Cartagena, 1977).
35
reivindicações similares no continente americano e no continente africano, especialmente
mediante a realização do Primeiro Congresso da Cultura Negra das Américas, na cidade de
Cali, entre os dias 24 e 28 de agosto de 197736 (Wabgou et al., 2012).
Segundo esses autores, esses encontros tiveram repercussões em termos
organizativos na Colômbia e em outros países da América Latina. No caso da Colômbia,
desde meados da década de 1970, e a partir do I Encontro da População Negra Colombiana
de 1975, observa-se o nascimento de organizações sociais sob a liderança de estudantes
universitários37, principalmente, que no final da década vão se mobilizar em favor dos
direitos das populações negras.
Essas primeiras organizações foram criadas em contextos urbanos por pessoas
oriundas do Pacífico e do Caribe (ou da Costa Atlântica), regiões com predominância de
população negra, como já se viu, e especialmente de áreas rurais (Wabgou et al., 2012;
Gracia, 2013). Essa experiência organizativa viu-se fortalecida pela participação de pessoas
negras integrantes do magistério público (educadores, professores, instrutores), estudantes
universitários, alguns profissionais liberais (advogados, principalmente) (Wabgou et al.,
2012).

36
Da Colômbia, além de Manuel Zapata Olivella como seu principal organizador, participaram: Rogelio
Velásquez, Helcías Martán Góngora, Jorge Artel, Ricardo Cros, Aquiles Escalante, Nina S. de Friedemann,
Jaime Arocha, Delia Zapata Olivella, Nancy Motta González, entre outros. Dentre os participantes
internacionais estavam: José Ferreira, de Angola e Abdias Do Nascimento, do Brasil; Eulalia Bernard, da
Costa Rica; Auguste Romieux Michael, do Chile; Oscar Chalá C. e Nelson Estupiñán, do Equador; Armando
Crisanto Meléndez, de Honduras; Gabriel Moedano, do México; Armando Fortune, Geraldo Maloney F,
Aminta Núñez, Rogelio Sinán e Alberto Smith Fernández, do Panamá; José Eusebio Campos Dávila, de Perú;
Ronald J. Duncan, de Puerto Rico; José Ramón Marcial Guedes e Angelina Polak-Eltz, da Venezuela; Larry
Neal, Lorenzo Prescott, Charles Wright, Eleanor Traylor, Norman Whitten, Sheila S. Walker, dos Estados
Unidos; Jaime Delgado M., da Espanha; Wole Soyinka e Wande Abimbola, da Nigéria; Mohamed El-
Khazindar, do Egito; Biram Diouf Mam e Francois Bogliolo, do Senegal; Valerie McCormie, como
representante da OEA; César Fernández Moreno, como representante da UNESCO. Para mais detalhes do
evento ver (Wabgou et al., 2012 Cit:114).
37
Surgiram os grupos Poblaciones Negras, Negritudes, Cultura Negra e Tabalá, em Tunja; Panteras Negras,
La Olla e Musulmanes Negros, em Buenaventura; Circulo de Estudios de la Población Negra –Soweto, em
Pereira (Wabgou et al., 2012:117). Entre essas organizações destaca-se o Circulo de Estudios sobre la
Población Negra – Soweto formado na cidade de Pereira em 1976 por estudantes da Universidade
Tecnológica de Pereira. Esse grupo, anos mais tarde, tornar-se-ia o Movimento pelos Direitos Humanos da
População Negra Cimarrón, mais conhecido como Movimiento Cimarrón, que muitos apontam como a
matriz das principais organizações sociais afro-colombianas da atualidade, do qual saíram integrantes, por
diferenças de ‘índole ideológica, administrativa, organizacional, etc., com o líder Juan de Dios Mosquera’
(Wabgou et al., 2012:128), que logo depois formariam novas organizações.
36
As posições políticas eram variadas segundo as organizações, algumas delas com
traços mais integracionistas e outras mais reivindicadoras de uma diferença. Muitas dessas
organizações teriam tido como referenciais na luta contra a discriminação racial e a
exclusão social, as lutas pela independência dos países da África, a luta pelos direitos civis
nos Estados Unidos, e a luta contra o Apartheid na África do Sul. As personagens de
inspiração reivindicadas seriam muito diferentes e expressivas de posicionamentos políticos
igualmente diferentes em cada uma dessas organizações: Black Panthers, Malcolm X ou
Martin Luther King, no caso dos Estados Unidos; Nelson Mandela e Steven Biko, no caso
da África do Sul; Marcus Garvey, Patrice Lumumba, Frantz Fanon e Amilkar Cabral, como
referenciais de posicionamentos independentistas dos povos negros38.
Assim, segundo Gracia (2013:33), o chamado Movimiento Cimarrón foi a primeira
organização a ter um caráter nacional, tendo vindo a influenciar várias outras formas de
organização. Cimarrón teve um papel destacado na criação de organizações de
comunidades de camponeses negros, especialmente no departamento de Chocó, na década
de 1980, junto a comunidades religiosas como os Claretianos, almejando a defesa dos
territórios diante das madeireiras transnacionais. Comunidades eclesiais de base, conselhos
de vizinhos e juntas comunitárias seriam os formatos organizativos de populações que
procuravam defender os territórios e os modos de vida configurados ao redor dos rios
durante séculos.
Já na década de 1980, as populações negras organizadas tornariam públicas suas
demandas por meio de ações concretas. Na época muitas dessas manifestações eram

38
Existem vários paralelos entre esse processo de inspiração e de referenciais de luta para o movimento negro
colombiano com a emergência do movimento negro baiano e especificamente em relação aos blocos afros de
Salvador (Brasil), tal como descrito por Antonio Risério (1981), mas por razões já expostas não é possível
fazer essa exploração nesta dissertação. No caso colombiano, me pergunto sobre como foi em detalhe essa
relação das organizações de pessoas negras na Colômbia com aquelas ideias e processo políticos. Também me
pergunto pelos efeitos estéticos de uma possível influência afro dos EUA, ou de imagens da África, porque se
as ideias e pautas mais “políticas” chegaram de alguma forma, por que não chegariam junto ou na mesma
época outros referenciais negros ou africanos? Além disso, há que se apontar um silêncio – e essa dissertação
não tem elementos para subsidiar nesse sentido – a respeito da possível inspiração ou efeitos nas militantes
negras colombianas de sua possível relação com críticas feitas por feministas negras norte-americanas (A.
Davis, K. Crenshaw, entre outras), a partir de noções e posicionamentos de raça, classe e sexo, tanto ao
movimento feminista quanto ao movimento dos direitos civis. Essa lacuna, como sugere Camacho (2004),
talvez esteja diretamente ligada ao silêncio da literatura sobre experiências organizativas dessa população e
até no movimento social afrocolombiano, a respeito da participação das colegas colombianas nessas
experiências organizacionais.
37
entendidas como mobilizações sociais na procura de direitos econômicos, sociais e
políticos. Além disso, pessoas negras participaram em mobilizações e em diferentes
movimentos sociais, e também participaram nos partidos políticos tradicionais. Sobre as
mobilizações tanto de comunidades e organizações negras quanto de pessoas negras em
outros movimentos, é pouco o que se conhece. Em termos gerais, como afirmam Wabgou
et al. (2012:138), o aprendizado dos afro-colombianos em outros movimentos sociais foi
aplicado nas organizações afro-colombianas constituídas durante essa década e na seguinte.
De fato, os anos de 1980 foram muito conturbados, um período de grande agitação
política e social no qual a legitimidade do Estado colombiano foi amplamente desafiada e a
ordem política e social questionada39. No caso das populações negras havia uma grande
diversidade organizativa nos âmbitos rural e urbano: cooperativas, associações de
camponeses, comitês e movimentos cívicos comunitários, grupos folclóricos e centros
pastorais – muitos deles coordenados por sacerdotes católicos, especialmente na região do
Pacífico.
Em particular, na época já existiam associações de camponeses para a defesa dos
territórios dos habitantes dos rios do departamento de Chocó, organizados em muitos casos
com a participação de sacerdotes católicos, alguns deles próximos da teologia da libertação,
entre elas a Acia, a Acadesan, a Obapo, a Ocaba e a Acaba40. Na região do Pacífico,
especialmente no departamento de Chocó, houve dois acontecimentos importantes: em
1986, uma grande mobilização pela titulação da terra na área conhecida como Médio
Atrato, em oposição às madeireiras; em 1987, o Paro Cívico na cidade de Quibdó, capital

39
Para citar alguns exemplos: os movimentos guerrilheiros se fortaleceram e formaram a Coordinadora
Nacional Guerrillera; o poder de ameaça dos cartéis do narcotráfico se expressou por meio de atos terroristas
para forçar o abandono da proposta de um tratado de extradição com os Estados Unidos de América; a
deslegitimação do Estado e das forças militares relacionada com esses acontecimentos e com o nascimento de
grupos paramilitares (em alianças sempre complexas com cartéis de drogas) para o extermínio da oposição
política de esquerda; a perseguição a lideranças comunitárias; a violação de direitos humanos em geral. Dois
candidatos à presidência pelo partido Unión Patriótica foram assassinados: Jaime Pardo Leal e Bernardo
Jaramillo Ossa. Com o assassinato desses candidatos começou o que veio ser chamado de Genocídio de la
UP, ou seja, o extermínio quase total dos militantes desse partido de esquerda que apareceu no cenário
político nacional com grandes possibilidades eleitorais.
40
Acia: Asociación Campesina Integral del Atrato. Acadesan: Asociación Campesina del San Juan. Obapo:
Organización de Barrios Populares de Chocó y Comunidades Campesinas de la Costa Pacífica del Chocó.
Ocaba: Organización Campesina del Bajo Atrato. Acaba: Asociación Campesina del (alto) rio Baudó y sus
afluentes.
38
desse departamento, para tornar visível a exclusão social e a marginalização da população
dessa região: falta de vias, escolas, saneamento básico, água potável, entre outros. Como
afirmam Grueso, Escobar & Rosero:

Esses grupos reuniram-se na Conferencia Pré-Constituinte das Comunidades Negras,


realizada em Cali em agosto de 1990, com o objetivo de tirar uma proposta de ação para a
conjuntura. Dessa conferência nasceu a Coordinadora Nacional de Comunidades Negras
(CNCN) para coordenar e implementar as ações decididas na reunião. Porém, as profundas
divisões e o amplo espectro de perspectivas representadas na CNCN, que ia de grupos
camponeses urbanos, populares e de partidos tradicionais a movimentos etnoculturais e de
esquerda, indicavam que ela teria vida curta. Quando se instalou a Assembleia Nacional
Constituinte, cada um desses setores negros avaliou a situação de acordo com seu conjunto
de interesses e modo de inserção histórica no país. (2000: 304-305).

Como resultado disso, não houve um representante dessa população na Assembleia


Constituinte, o que fez com que a saída consistisse em fazer um acordo com um dos
representantes indígenas para que este levasse a situação das comunidades negras. Ao final,
o Artigo Transitório 55 (AT 55) tratou dessa população, mas chegar a isso não foi fácil,
para isso havendo todo um processo de mobilização e de alianças com vários setores e
personalidades, e após ‘uma forte campanha de lobby que teve até ocupação de edifícios’
(Grueso, Escobar & Rosero, 2000).
Nesse sentido, ainda que existissem desde a década de 1970 organizações com
discursos pautados na reivindicação da diferença em torno da população negra, foi o
processo constituinte que deu o impulso para a articulação organizativa no nível nacional e
para o que seria uma agenda de reivindicações como segmento social expressivo na
sociedade colombiana. Como bem aponta Gracia (2013:23), os processos organizativos das
populações negras no Pacífico, especificamente no departamento de Chocó, foram
decisivos para o processo de etnicização e de reivindicação da diferença que resultaria na
lei 70 de 199341. A construção de um discurso identitário em uma chave étnico-racial

41
Nessa lei se reconhece a titulação das terras ancestrais onde habitam as comunidades negras. Por outro lado,
por comunidades negras a Constituição de 1991 e a Lei 70 referiam-se aos habitantes rurais ribeirinhos, na
sua maioria da região do Pacífico colombiano. Assim sendo, esse nome se aplicava a outros habitantes negros
do país cujas condições de ocupação territorial e práticas culturais fossem semelhantes àquelas do Pacífico
(Agudelo, 2004; 2007:2). Na Lei 70 de 1993 são explicitados os mecanismos para a titulação coletiva de
territórios, e é definida a criação de novos espaços de participação e representação política para o conjunto
das populações negras colombianas (Viáfara Valverde, 2003), como é o caso das duas cadeiras na Câmara de
Representantes, ou câmara baixa do congresso, assim como a chamada Consultiva de Alto Nível e as
consultivas dos departamentos e das cidades capitais que, como seu nome indica, não têm poder vinculante.
39
colocaria em relevo no nível nacional as demandas seculares das populações afro-
colombianas, que ganhariam um status tanto de sujeito político quanto de sujeito de direitos
diferenciados.
Nesse sentido, houve uma mudança na postura por parte do setor organizado da
população negra, na medida em que se passou de uma valorização do papel dessa
população na construção da nação (que ainda continua) e de posicionamentos que
procuravam uma participação no sistema político colombiano em termos de certa
igualdade, para uma reivindicação de direitos baseados na diferença, nesse caso, de uma
identidade étnica. Aqui pode se pensar que a cultura é redefinida como elemento central de
uma especificidade identitária associada a territórios e práticas que ampliam os contornos
dos movimentos sociais na medida em que ressalta um vínculo constitutivo da cultura com
a política (Flórez-Flórez, 2004) em termos de ‘políticas culturais’. Essas políticas são
entendidas como práticas sociais não limitadas ao âmbito estatal, mas realizadas por uma
multiplicidade de atores, que promovem práticas culturais que definem o que conta como
político. Como bem apontam Alvarez, Dagnino & Escobar:

A cultura é política porque os significados são constitutivos dos processos que, implícita ou
explicitamente, buscam redefinir o poder social. Isto é, quando apresentam concepções
alternativas de mulher, natureza, raça, economia, democracias ou cidadania, que
desestabilizam os significados culturais dominantes, os movimentos põem em ação uma
política cultural (Alvarez, Dagnino & Escobar 2000:25).

Voltando ao ponto, em um contexto de abertura democrática – negociações de paz


com guerrilhas, diálogos com setores sociais mobilizados que levaram à convocatória de
uma assembleia nacional constituinte e à promulgação de uma nova Constituição (1991) –,
o multiculturalismo foi declarado como um princípio para lidar com a diversidade cultural,
étnica e racial por meio das chamadas políticas de reconhecimento, dando visibilidade a
segmentos sociais historicamente excluídos. Na nova Constituição (1991) se reconhece a
diversidade dos grupos étnicos do país (povos indígenas, ‘comunidades negras’ e o povo
Rom ou ‘ciganos’), oficialmente negada por mais de um século de vida republicana. Em

Aliás, a Lei 70 reconhecia direitos territoriais rurais, principalmente, num marco muito restritivo e ruralizado
em sua concepção da etnicidade negra, inspirado no modelo indígena de etnicidade (Agudelo, 2007).
40
teoria, até 1991, todos esses grupos eram considerados como sendo cidadãos sem mais
atributos.
Desse modo, declarou-se a Colômbia como sendo uma sociedade pluriétnica e
multicultural, o que se constituiu como uma grande mudança frente ao modelo de sociedade
‘unitária’ da Constituição de 1886, a qual pretendia definir e construir “uma” nação, com
“uma” religião (católica) e com “uma” língua (espanhol). Assim, as línguas faladas pelos
povos indígenas passaram a ser consideradas co-oficiais e soberanas em seus territórios.
Algo parecido com o que aconteceu com as línguas crioulas faladas pelas populações
negras (língua palenquera’ e creol dos raizales), bem como o reconhecimento da liberdade
de “cultos”.
Nesse ponto, é importante dizer que se atentarmos para os detalhes do processo
mais do que para o resultado, hoje possível pela análise das atas e outros materiais
produzidos no seio dessa Comissão Especial de Comunidades Negras42, reunidos por
Gracia (2013), é possível entender os posicionamentos e os interesses dos atores implicados
na elaboração dessa legislação, assim como as dinâmicas de discussão, acordos, e tensões
entre os diferentes delegados.
Isso mostra não apenas as várias concepções sobre a gente negra que se colocaram
como alternativas, assim como os traços possíveis da lei que foram apresentados pelas
mesmas pessoas negras e seus aliados, como também as pressões governamentais – que
acabaram sendo imposições – para uma definição da lei baseada no modelo indígena de
grupo étnico, que associa grupos populacionais e cultura com figuras de administração e
com territórios específicos (rurais), além das pressões objetivas de tempo, já que a
Comissão – atrasada em sua convocatória, que era responsabilidade do governo –, estava
trabalhando no limite do prazo para a elaboração da lei, o que teria dado chance ao governo
de emitir não uma lei, mas um decreto de forma unilateral.
A lei foi produto de circunstâncias, interesses e forças distintas, e seu resultado não
pode ser pensado como obra de um único ator, por mais poderoso que tenha sido, nem
muito menos que a etnicização da gente negra colombiana seja um desejo realizado nascido

42
Essa comissão foi composta por políticos, funcionários delegados pelo governo da época, acadêmicos não-
negros (alguns deles antropólogos que pesquisam sobre essa população) e líderes das comunidades negras.
41
do sonho de uma mente brilhante. Nesse sentido, é importante atentar para um traço que
parece óbvio em um movimento social, mas que curiosamente não parece ser assim
percebido: o movimento, quer dizer, a mudança de posicionamentos, o ajuste da tática em
função da estratégia em relação a circunstâncias pontuais, a avaliação constante das
alianças e suas transformações possíveis, assim como a diversidade interna, em um meio
justamente dinâmico como é a política, em que as decisões, os acordos e os ganhos são
sempre relativos, nada definitivos e, portanto, passíveis tanto de modificações quanto de
ameaças.
Nesse processo de mobilização no Pacífico colombiano entraria em cena, em 1993,
o Processo de Comunidades Negras (PCN), hoje uma organização de caráter nacional e que
foi fundamental para promover a formação de organizações nessa região, especialmente no
chamado Pacífico Sul. O PCN, segundo Libia Grueso, uma de suas integrantes (Wabgou et
al., op. cit.:186), teria como antecedentes a Organización de Comunidades Negras, que teve
seus núcleos iniciais em Buenaventura, Guapi e Tumaco, antes de se consolidar na década
de 1990 como uma rede de organizações afro-colombianas articulada em torno da defesa
dos direitos étnicos, culturais e territoriais. A região do Pacífico acaba sendo dividida: ao
norte, no departamento de Chocó, encontram-se as organizações camponesas já
mencionadas e o Movimiento Cimarrón, o qual possui alguns vínculos com organizações
locais. Essas comunidades vão se organizar ao redor dos chamados Consejos Comunitários,
figura administrativa dos territórios coletivos que acabou se impondo na Comissão Especial
para Comunidades Negras encarregada de elaborar o artigo transitório 55 da constituição
nacional de 1991 e da Lei 70/93. No sul, destaca-se a rede de organizações de comunidades
negras que integram o PCN, organizadas na figura de rede de Palenques43 como forma
administrativa reivindicada como própria, em oposição à figura institucional dos Consejos
Comunitarios reconhecida na lei.
Contudo, segundo mostra Gracia, as razões dessa divisão têm a ver com visões
opostas sobre as relações para fora do movimento social afro-colombiano, já que as

43
De fato, esses palenques teriam existido durante cinco anos e depois entraram em declínio quando do inicio
da conformação dos Consejos Comunitarios. Porém, o PCN conseguiu articular a maioria de Consejos,
organizações urbanas e culturais do Pacífico Sul, assim como conseguiu vincular organizações do caribe
colombiano e a intelectuais que estavam fora do país, além de obter apoio de cooperação internacional
(Gracia, 2013:47).
42
organizações do Pacífico Sul, articuladas no PCN, questionariam as relações das
organizações chocoanas (Pacífico Norte) com os partidos políticos tradicionais no nível
local e nacional. Além disso, elas se orientariam para um movimento de tipo étnico, social e
contestatário; as organizações do Pacífico Norte, ao contrário, se assumiriam como
organizações ‘mais territoriais’, enquanto as organizações do sul, segundo o líder
Rudecindo Castro44, são baseadas no marxismo, e este ‘não é claro a respeito da luta étnica’
(Gracia, 2013:47-48).
Já segundo Grueso, Escobar & Rosero (2000:305), foi nas reuniões de avaliação dos
resultados e na discussão sobre a eleição de representantes de grupos étnicos, tal como
estipulado pela nova Constituição, que houve uma clara divisão entre ‘os que eram a favor
da construção de um movimento cujo objetivo seria a participação política nas instituições
estabelecidas e aqueles que acreditavam num movimento social para o qual a participação
eleitoral seria apenas uma possibilidade e não o elemento central’.
Assim sendo, nessa trajetória surgiu o movimento negro colombiano
(posteriormente conhecido como movimento social afro-colombiano) como um ator
político, que teve como bandeira o reconhecimento constitucional das chamadas
comunidades negras, cuja visibilidade tem se constituído e expressado claramente na luta
contra o racismo em todas as suas formas e em diferentes âmbitos da vida social na
Colômbia. Portanto, o que foi se configurando nos discursos sociais, políticos e midiáticos
como ‘movimento negro ou afro-colombiano’ é, na realidade, uma tentativa de unir (quase
de constituir um corpo só) uma pluralidade, uma diversidade de atores cujas relações com
outros grupos da população negra, com redes sociais de diversos tipos (ONGs ambientais e
de direitos humanos, pastorais católicas, etc.) e com as autoridades locais e nacionais são
igualmente heterogêneas.
Em todo caso, no processo de articulação desse emergente movimento social, foram
feitos esforços para ampliar as características da definição inicial de população negra,

44
Segundo Gracia (2013:47): ‘Rudecindo Castro é uma liderança de Chocó, nascido no rio Baudó. Fez seus
estudos de ensino fundamental em Quibdó e faculdade em Bogotá, nos anos 70 e princípios dos 80. Quando
formado voltou para Quibdó e começou se envolver no movimento Cimarrón e depois fundou a ACABA com
outras pessoas. Foi o primeiro presidente da ACABA, fez parte da Comissão Especial de Comunidades
Negras e atualmente é o diretor distrital de assuntos étnicos em Bogotá’. Ele integra também a Organização
de Comunidades Negras (ORCONE), criada em 1993 por pessoas ligadas ao magistério, entre elas o atual
Concejal (vereador) de Bogotá Laureano García.
43
buscando incluir a própria diversidade que ela significa e as reivindicações das populações
negras do país, dentre elas as que habitam as áreas urbanas. Isso se manifestaria, por
exemplo, nas próprias formas que assume a identificação ou autoidentificação dos
diferentes segmentos dessa população, o que se relaciona com processos sociais e culturais
diferentes em distintos lugares da geografia colombiana, mas com alguns elementos
similares e com uma experiência de discriminação racial e social percebida como sendo
muito parecida, além de uma decidida intenção de se diferenciar enquanto grupo (apesar
das diferentes correntes e tendências internas) do restante da população nacional45.
Entre os poucos aspectos regulamentados até o momento presente, o decreto 1122
de 2001, sobre a chamada Cátedra de Estudios Afro-colombianos, embora com a falta de
compromisso efetivo (financiamento e preparação de docentes por parte do Estado e dos
diferentes governos nacionais), se converteu em um marco que tem permitido e
potencializado pesquisas, a conformação de grupos de estudo, organizações de docentes
negros e não-negros para levar a luta antirracismo ao âmbito educativo (principalmente
público, embora não exclusivamente), ainda que tenha se mantido até agora no nível
primário e secundário de ensino. Essa luta antirracismo no meio formativo, principalmente
na escola e em menor medida na universidade, é uma expressão da discussão frente ao
modelo/padrão dominante estético e moral para a população negra na Colômbia46.
Assim, segundo Wabgou et al., reivindicações construídas na base de um discurso
identitario, especialmente em termos étnico-raciais, deram relevância nacional às
comunidades afro-colombianas, colocando um conjunto de reivindicações políticas, sociais

45
Contudo, a maioria dos aspectos gerais da Lei – como promoção da diversidade cultural, dos costumes, dos
hábitos, das crenças, da religiosidade, do acesso ao ensino superior, do compromisso de luta contra a
discriminação racial –, após 20 anos de sua promulgação (não restritos ao Pacífico), ou não foi
regulamentada, ou sua aplicação não suscitou as mudanças planejadas em termos de direitos e
reconhecimento das reivindicações desse segmento da população colombiana (Agudelo, 2007:7). Entre os
aspectos regulamentados estão: o decreto 2313 de 1994, por meio do qual é criada a Dirección de Asuntos
Étnicos do Ministério de Interior; o decreto 1745 que trata da propriedade coletiva; o decreto 2248 que aborda
a participação na, e a organização da Consultiva; e o decreto 804 de 1995, que versa sobre a Etnoeducación.
Há pessoas que afirmam que esse tipo de conceito de educação é um exemplo de medidas adotadas pela gente
negra a partir do modelo de etnicidade indígena. Porém, uma leitura de experiências organizativas da gente
negra colombiana desde começos do século XX mostra que reivindicações desse tipo já apontavam nessa
direção (ver, por exemplo, Pisano, 2010; Wabgou et al., 2012).
46
Ver os trabalhos de Zenaida Osorio Porras (2001) e María Isabel Mena García (2006), sobre a forma em que
a gente negra aparece nos livros de texto e didáticos nas escolas colombianas.
44
e culturais, tonando-se sujeitos políticos e sujeitos de direitos com capacidade de
interlocução com um Estado central, homogeneizante e excludente.
Por outro lado, após duas décadas, alguns autores e ativistas (Wabgou et al., 2012)
apontam um certo enfraquecimento do movimento social afro-colombiano em função de
processos de divisão47 e ‘atomização’, o que faria com que grande quantidade das
organizações existentes nascidas a partir de 1993 não consigam ter um poder de negociação
e de influencia diante do Estado. Sob essa perspectiva, essas organizações apresentam
maiores dificuldades para construir e acionar uma agenda conjunta para a defesa dos
direitos ganhos legislativamente e, especialmente hoje, da efetiva defesa dos direitos
territoriais coletivos adquiridos. Como apontam tanto os autores quanto os ativistas que
participaram dos grupos focais daquela pesquisa e que são líderes de organizações que tem
presença nacional, esses problemas impedem e freiam a elaboração em consenso de uma
agenda afrodescendente que

incluya a la mujer y priorice el trabajo en red como uno de los mecanismos estratégicos más
potentes para impulsar posibles escenarios donde se pueda hacerse mayor presencia en
procesos de toma de decisión (igual que en los mecanismos de implementación y
seguimiento de las medidas) mediante una vocería creíble y comprometida, manteniendo,
por supuesto, las especificidades o particularidades de cada una de las organizaciones
(Wabgou et al., 2012:22-23).

De fato, esforços nesse sentido vêm sendo realizados há alguns anos. A Conferência
Nacional de Organizações Afro-colombianas (CNOA), criada em 2004, é um exemplo
disso, por mais que ainda não tenha atingido os resultados esperados desde sua criação.
Exemplos mais recentes são a Mesa Nacional de Organizações Afro-colombianas, que se
reuniu em Bogotá no ano 2010, o encontro nacional de Consejos Comunitários realizado
em Bogotá em 2011, a Mesa de Organizacionais Afro-colombianas no ano 2012 em
Bogotá, e o Primeiro Congresso Autônomo de Comunidades Negras realizado em Quibdó

47
Segundo o Padre Emigdio Cuesta (citado por Wabgou et al.,2012:274) integrante da Conferência Nacional
de Organizações Afro-colombianas, citando dados da Dirección de Asuntos para Comunidades Negras, Afro-
colombianas, Raizales e Palenqueras do Ministério del Interior, até junho de 2012 eram 1064 as organizações
de base inscritas em todo o país, assim como 320 Consejos Comunitarios, ou seja, um total de 1384, ainda
que, segundo ele, a maioria só existisse no papel.
45
(Chocó) entre os dias 23 e 27 de agosto de 201348, e que coincidiu com os vinte anos da
promulgação da Lei 70 de 1993. Os temas da representação política das comunidades
negras/afro-colombianas e da consulta previa às comunidades foram centrais nesses
encontros, mas as reivindicações no interior do movimento também foram colocadas, como
a participação da mulher afro, não sem o decidido esforço nesse caso por parte das
companheiras do movimento.
É aí que se situa a Red de Ananse como uma expressão organizativa do movimento
social afro-colombiano que vem complexificar, por suas características, o exercício da
política e do ativismo na sua articulação com a luta antirracismo, o elemento acadêmico-
pedagógico e religioso ou espiritual na capital do país.

4. Ao encontro do universo espiritual afro-cubano: militância e espiritualidade.


Tanto Milena quanto sua irmã Victoria participaram desse processo de mobilização
e articulação política de organizações negras e seus aliados para a introdução das
reivindicações desse setor populacional na nova Constituição. Comissões de estudos,
reuniões de discussão e de construção de propostas, mesas de socialização e iniciativas
como o telegrama negro49, são exemplos das ações em que elas se envolveram. Muitas
dessas atividades aconteceram no restaurante Secretos del Mar, que existia desde meados
da década de 1980 no centro da cidade, e que a essa altura já havia se tornado um Palenque
urbano, como afirma a Milena: fue pensado para ser um espacio negro, para recrear la
cultura, también para actuar, para cimarronear. E foi justamente em meio às dinâmicas

48
Em anos recentes foram realizados encontros na procura de construir espaços de convergência na
reafirmação do caráter étnico dessa população assim como na defesa dos direitos territoriais coletivos
ameaçados desde 1998 pela ação de atores do conflito social armado e da pressão de interesses ligados ao
narcotráfico, à produção de biocombustíveis, monoculturas de exportação, de mega-obras de transporte e
interconexão energética sem o devido cumprimento da obrigação do mecanismo legal da consulta prévia às
populações, em um cenário que pode ser descrito como ‘geografias do terror’ (Oslender, 2004), que faz com
que milhares de habitantes encontrem-se sob deslocamento forçado nas grandes cidades e muitos líderes
comunitários sejam hoje exiliados (Arocha e Moreno, 2006). Nesses encontros participaram de fato tanto a
Victoria quanto a Milena e, em menor medida, outras pessoas da Red de Ananse.
49
O telegrama negro foi uma das estratégias utilizadas pelas organizações de Chocó, Valle del Cauca, Nariño
e Cauca, com apoio de organizações da capital e do caribe colombiano, para se tornarem visíveis como grupo
populacional perante a assembleia nacional constituinte. Assim, foi enviado a essa assembleia um telegrama
solicitando a inclusão no texto constitucional de seu reconhecimento como grupo étnico e a titulação de suas
terras. A mensagem dizia ‘Díganle sí a las propuestas de las comunidades negras’. Essa e outras estratégias
são documentadas em detalhe em Gracia (2013).
46
próprias desse restaurante, essa espécie de ‘sede’ da população negra organizada na capital
do país, que Milena, Victoria e seu marido (dono do restaurante e também ativista) foram
rayados50, iniciados em Palo Monte, uma das reglas ou um dos sistemas religiosos afro-
cubanos. Como bem relata Victoria:

En ese periodo [yo] vivía en la Candelaria y una tarde salgo temprano y llego al
restaurante y hay un tipo, alto, canoso, negro, que está tocando, pero me llama mucho la
atención porque saca ritmo de la barra y yo me quedo mirando y digo ‘¡uy, ese tipo cómo
toca!’, parecía unos instrumentos y me le acerco y yo me le quedo sentada y me dice ‘vas a
tener problema con una herencia, vas a tener no sé qué cosa, vas a tener, vas a tener...’.
‘¿Dios mío este man quién es? Y después le pregunto a mi marido ‘¿quién es?’ y dice él,
‘ese es cubano’. Y el tipo todo lo que me decía [era] vas a tener problemas, vas a tener una
cosa... Te digo que todo lo que ese hombre me dijo, hasta hoy me va saliendo. Y como el
restaurante había sido ese espacio de encuentro, todo lo que se llamaba negro, llegaba ahí;
llegaba el Grupo de Mercedita Valdés [Yoruba Andabo]. Y entonces, como ellos llegaron
en el Hotel Dann, ellos vieron ese restaurante afro, iban a comer allí. Y mi marido los
atendía muy bien y se hacían tertulias, en fin. Los tipos, de agradecimiento, en ese tiempo la
taberna [bar] se llamaba Changuirí, Pupy – que ya murió, que era hijo de Changó – le dijo
a Tito ‘mi hermano, quítale el nombre, Changuirí es el diablo y por eso tienes peleas aquí’.
Mi marido, pues claro, muy obediente... Y nosotros entonces parecíamos cubanas; todo el
mundo creía que nosotros [éramos cubanos]. Íbamos al [Teatro] Colon, eso entrábamos
como perro por su casa y nosotros… Ese grupo era maravilloso. Los tipos, por
agradecimiento de la atención que le había dado mi marido, dijo que ellos nos querían
hacer un regalo. Y nos dijeron que consiguiéramos unas hierbas, que consiguiéramos...
bueno, todo lo que se necesita para rayamiento espiritual. Y nos rayaron. Eso fue un
domingo cuando nos rayaron. Todo un día. Mi marido gritaba como una bestia. Todo el
mundo gritaba como bestia. Una amiga se iba a rayar, pero cuando ya la iban a rayar dijo
‘no, yo no me rayo’. Todo el mundo gritaba. Yo decía ‘Dios mío, ¿será que yo voy a gritar
tanto?’. Cuando ya pasan a [rayarme], yo no grito; yo no sé, pero yo estaba tan fuerte, que
yo no grité. Y Milena pensaba, como estábamos vendadas, [fue] una ceremonia muy fuerte.
Milena decía ‘Ay, ya mataron a mi hermana, ¿por qué ella no grita como todo el mundo
grita?’. Como todos [los rayados] gritaban y yo no gritaba ella decía ‘Ay, ya la mataron,
ya la mataron, ya la mataron’. Y yo le decía a ella ‘no, todavía estoy viva’. Bueno, nos
rayaron y todo. Mi hermana no podía tener hijo. Después de ese ritual de rayamiento,
quedó embarazada de su primer hijo.

Esse acontecimento teve desdobramentos com consequências ‘espirituais’ para


essas duas ativistas e para seus familiares e abriu não apenas um processo para a
participação assim como também um envolvimento ativo nos caminhos das religiões afro-

50
O Rayamiento é a cerimonia de iniciação em Palo Monte, e que implica alguns cortes no corpo. Em Cuba
se conhece como Regla de Palo ou Regla Conga o conjunto de práticas que têm sua origem na região do
Congo, cuja prática cerimonial se baseia na relação com os mortos, os quais podem ajudar os iniciados a
terem uma vida longa, assim como os protegerem de ataques de bruxaria, o que pode implicar agir contra o
autor do ataque.
47
cubanas e das espiritualidades afros, não restrito aos espaços rituais, como se verá ao longo
do texto.
Por ora, vale dizer que tanto na literatura sobre a população negra ou afro-
colombiana consultada para essa dissertação como nos sites, discursos e documentos
públicos das principais organizações do movimento social afro-colombiano, sobretudo
aquelas que têm presença nacional (PCN, Cimarrón, CNOA, principalmente), não encontrei
informação que permita afirmar que o espiritual ou religioso seja um dos componentes de
sua valorização ou de suas reivindicações públicas. É possível que efetivamente práticas
espirituais ou religiosas façam parte das ações de organizações do movimento social afro-
colombiano, mas que exista um receio de torná-las públicas. De todo modo, a esse respeito
não há por enquanto um material documental, nem mesmo estórias, boatos, etc., que
permitam afirmar isso. Outra possibilidade é a de que só alguns militantes afros participem,
consultem ou efetivamente sejam praticantes de algum tipo de espiritualidade ou
religiosidade em momentos pontuais, mas de forma privada, como já ouvi falar sobre
algumas pessoas durante a pesquisa de campo. Caberia perguntar se essa prática é mantida
em segredo perante a própria organização ou ante o movimento social afro-colombiano.
Nesses casos, ainda resta a questão da existência de uma fronteira que tenha sido
estabelecida pelo movimento social afro-colombiano entre as ações consideradas políticas e
aquelas que não o seriam: nesse caso, a prática espiritual ou religiosa. Em ambos os casos
mencionados, caberia ainda perguntar se a prática privada corresponderia a uma espécie de
proteção das mesmas aos olhos dos não-negros e, digamos, do racismo e da discriminação,
ou quiçá se ela deriva do estabelecimento de fronteiras entre o que seria considerado
político e o não-político por parte de algumas organizações do movimento, ou ainda entre
as ações e práticas públicas e as que seriam do âmbito do privado, ou por fim seria fruto de
uma separação que visaria evitar a “contaminação”: seja do espiritual, religioso ou sagrado
na política, ou da política no espiritual, religioso ou sagrado.
A julgar pela literatura consultada para essa pesquisa, pelo que me contaram alguns
pesquisadores e ativistas51 sobre a população afro-colombiana, e segundo o que me

51
Um deles sendo um babalaô (babalawo, um sacerdote da regla de Ifá) que participa de um espaço de estudo
e discussão sobre as práticas afro-cubanas em Bogotá chamado Linea Afro, e o outro um praticante de Ocha,
quem é funcionário da Secretaria de Educación Distrital (SED) de Bogotá, ambos se auto-identificando como
48
contaram tanto Milena quanto Victoria (igualmente especialistas no assunto), a
espiritualidade ou religiosidade não faz parte das reivindicações do movimento social afro-
colombiano. Inclusive, tanto Milena como sua irmã Victoria apontam que esse é um
elemento que está ausente no movimento, e que talvez explique a ‘desunião’ e a ‘dispersão'
características daquele. De fato, elas afirmam que isso mesmo aponta uma falta de
coerência entre muitas das organizações e lideranças do movimento, sobretudo se falam em
resgate, libertação, ou em descolonização mental da gente negra.
Ao mesmo tempo, ao falar da população afro da região do Pacífico em geral – já
não exclusivamente do movimento social afrocolombiano que seria uma parte desta
população – Milena aponta que as expressões da espiritualidade e religiosidade daquela
região são católicas na base, produto de séculos de colonização e evangelização,
esclarecendo que, em todo caso, são práticas católicas que assumem características muito
particulares.
De fato, como mostram as pesquisas de Arocha e sua equipe, entre elas a
experiência de pesquisa de dois anos que desembocou na Exposição Velórios e Santos
Vivos (2008) assim como no mais recente projeto sobre as espiritualidades dos
afrodescendentes peruanos e colombianos (2012), há práticas que indicariam modos muito
específicos de relacionamento tanto com os mortos quanto com os santos por parte dessas
populações e que se diferenciam de outras igualmente populares em outros lugares do país
onde a presença dessas pessoas negras é menor.
Ainda nos lugares de predomínio demográfico afro, cabe pensar também nas
características específicas de práticas que poderiam ser consideradas como sendo
“bruxaria” ou, em todo caso, que não passam pelo olhar comunitário nem fazem parte
daquelas atividades que são reguladas pelo calendário católico ou pela prática cristã
protestante, no caso específico de uma parte da população raizal, e que apesar de sua
existência, como no caso da Obeah, não são mencionadas. Nesse ponto, é importante
ressaltar que, com base na informação disponível até agora, tanto nas pesquisas de Arocha e
sua equipe, quanto na bibliografia consultada e na pesquisa de campo realizada para essa

afro-colombianos e do movimento social afro-colombiano e com conhecidos vínculos com lideres e


organizações afro-colombianas de variadas tendências no nível local e nacional.
49
dissertação, as práticas desse catolicismo popular – assim como as que fogem à observação
cristã – aparecem como sendo realizadas majoritariamente por mulheres. Ali também
caberia se perguntar se justamente por isso exista além das possíveis fronteiras entre o
político e o religioso/espiritual, entre o público e o privado, outra fronteira que delimite um
“domínio” exclusivo de homens e outro de mulheres.
Em todo caso, nessa dissertação trata-se é de conhecer como as integrantes de uma
associação de docentes-ativistas-pesquisadoras, da qual fazem parte pessoas que se
autoidentificam negras ou mestizas, reivindicam a espiritualidade afro e outras práticas
ancestrales para a realização de seus projetos, suas ações cotidianas tanto na escola como
em suas vidas e, em alguns casos, como elemento central para uma análise da escola e da
universidade, das relações sociais e da situação atual do movimento social afro-
colombiano, tudo isso de forma pública.
Nessa altura, gostaria de tocar em alguns assuntos que surgem de uma tentativa de
leitura do movimento social afro-colombiano e que de alguma forma se vinculam com o
exercício etnográfico dessa monografia em relação à Red de Ananse, que poderiam
‘iluminar’ por meio de algumas perguntas tanto a Red de Ananse quanto o movimento
social afro-colombiano. Em primeiro lugar, não encontrei até o momento uma genealogia
das organizações de pessoas negras que permita traçar um mapa organizativo para conhecer
os posicionamentos ideológicos específicos dessas organizações, algo do qual se fala pouco
no movimento social afro-colombiano, nem mesmo a partir dessa suposta matriz
contemporânea que seria o Movimiento Cimarrón, como sugerem Wabgou et al., apesar de
esses autores oferecerem alguns elementos que poderiam subsidiar um trabalho nessa
direção52.

52
Nesse sentido, justamente pelas informações que fornecem autores como Gracia, e pela minha própria
experiência de militância na década passada e de estudo de algumas ações desse movimento social afro-
colombiano, o recurso à noção de ‘segmentaridade’ como processo e como ‘aspecto universal da vida
política’– como fez Goldman (2006) para o caso das organizações do movimento negro em Ilhéus baseado em
sua análise dessa noção antropológica, assim como dos princípios de reunião e divisão a ela associados –
possa fornecer algum rendimento para pensar a origem, as tensões e as distâncias, assim como as relações e as
alianças relativas das organizações afro-colombianas, o campo político afro-colombiano, bem como para
pensar a formação das organizações afro-colombianas que surgiram em finais da década de 1970 e durante a
década de 1980, e especialmente aquelas que surgiram tanto nos processos em torno da assembleia
constituinte no começo dos anos 1990, assim como aquelas que foram criadas após a lei 70 de 1993, em um
período que alguns chamam de ‘boom’ da questão afro-colombiana.
50
Apesar do importante trabalho de Gracia (2013) com base nas atas da Comissão
Especial de Comunidades Negras e em entrevistas com alguns participantes da mesma, não
há registros a respeito do papel das mulheres negras nessas experiências organizativas, e
especificamente no processo que conduziu à criação da legislação para a população afro.
De fato, o próprio texto de Wabgou et al. (2012) dedica pouquíssimas páginas a
pequeníssimos resumos sobre organizações formadas por mulheres, desde a década de 1990
até o momento de publicação desse livro. Nesse ponto, mais do que saber os nomes
específicos das mulheres que ali participaram, que sem dúvida têm sua importância, seria
interessante saber as características e condições da participação e da vinculação das
mulheres negras nesses grupos em relação aos companheiros de luta.
Assim, é pouco conhecida a experiência de participação de alguns dos atuais líderes
do movimento social afro-colombiano nos sindicatos, nos movimentos sociais e nas
organizações políticas de esquerda. Nesse ponto também, mais do que saber os nomes das
pessoas e das organizações e movimentos de esquerda em que estiveram ligados, seria
interessante saber qual seria o possível efeito ou não dessa experiência na participação em
organizações pautadas na identidade étnico-racial. Igualmente importante seria saber das
pessoas que ações, dinâmicas, discussões e lugares de reunião contribuíram para a criação
da legislação afro-colombiana, especialmente na capital, lugar onde de alguma forma
acabam confluindo forças e reivindicações mobilizadas, mas que não fazem parte até agora
do relato mais ou menos conhecido sobre os acontecimentos que desembocaram na
constituição das comunidades negras em sujeito de direitos étnicos e em um novo ator
político.
Por fim, e nesse sentido, considero que observar as experiências vitais e
organizativas das fundadoras da Red de Ananse ajudaria a traçar os fios que ligam
diferentes e variadas questões sensíveis hoje para o movimento social afro-colombiano. A
mesma prática da Red aproxima, leva e extrapola essas questões para o movimento, para o
interior da própria Red, para a escola, para a universidade e para a capital do país, em uma
serie de sucessivos deslocamentos entre a experiência individual e a coletiva, entre a região
de origem e a capital, entre a Red e a escola, entre a escola e a universidade, entre a Red e o
movimento, entre o país e a diáspora, sucessiva e reciprocamente.

51
Capítulo 2
Atrás dos fios da Red de Ananse

1. Introdução
Nesse capítulo será explorado o lugar da experiência vital nos territórios de origem
das mulheres que chamo as fundadoras da Red de Ananse, experiência que é referência
central em seu discurso político reivindicatório, nas suas práticas como docentes, ativistas,
mães, pesquisadoras e, sobretudo, como mulheres negras ou afro no seu cotidiano na
capital colombiana.
Em especial, a experiência particular como mulheres e como mulheres negras que
realizam essa reivindicação de uma existência diferenciada em termos étnicos e raciais,
aparece como um motivo e uma característica de seu posicionamento. Esse fato gera tanto
tensões quanto reconhecimento em variados espaços de ação coletiva
compartilhados/disputados/reclamados: no movimento social afro-colombiano, nos espaços
gremiais e da categoria, na escola, em variados âmbitos de construção da política pública
para a população negra/afrocolombiana, e em outros espaços em que participa a Red de
Ananse, como coletivo ou somente alguns de seus componentes.
Essa experiência racial e racializada53 será abordada com base nas trajetórias das
fundadoras, assim como nas respostas criativas manifestas em seus projetos, iniciativas,
ações e propostas de soluções para problemas pontuais nos níveis existencial, profissional,
espiritual etc. Essas respostas e trajetórias não apresentam uma linearidade, mas são
produto da invenção e das contingências, alimentando-se da experiência vivida como
mulheres negras e como reivindicadoras de uma cultura e de práticas ancestrais e rurais na
capital do país54. Entre as experiências mencionadas, me centrarei na participação na
construção da legislação afro, no Taller Infantil Nuestra Cultura, na Expedición
53
Apesar de o exercício descritivo, que como descrição densa privilegiei como formato dessa dissertação, não
permitir por enquanto uma longa e detalhada abordagem de algumas das categorias propostas, gostaria
apontar que concordo com a ideia da racialização no sentido que tem sido salientado por Miles (1989:75) e
retomado em trabalhos como o de Mazouz (2010:13). Quer dizer, não como um simples processo de
categorização, mas como uma categoria analítica e como um processo em curso na sociedade que estabelece
relações de poder que são racializantes.
54
Fenômeno que, ao que parece, não acontece com todas as pessoas negras quando chegam às grandes
cidades, e em particular em Bogotá (Mosquera, 1998).
52
Pedagógica Nacional, na Expedición Pedagógica Nacional Ruta Afro, e no nascimento da
Red de Ananse.
Além disso, o percurso que tentarei traçar neste capítulo atentará para as condições
que possibilitaram os encontros individuais e conexões dos quais surgiram tanto espaços
organizativos quanto iniciativas e projetos. Será importante colocar em relevo os modos
como esses processos afetaram as fundadoras e como são expressos – como aprendizado –
em criações e soluções coletivas. Assim, as narrativas das fundadoras são centrais para
mostrar como os grandes temas de análise propostos nessa dissertação (racismo, política,
luta antirracismo, relações de gênero55, entre outros) têm uma dimensão existencial, não
sendo abstrações de militantes nem de cientistas sociais, mas estando na ordem do vivido. E
é justamente essa experiência que lhes permite fazer a constante conexão entre os temas.
Ao mesmo tempo, essas narrativas não são estritamente pessoais, embora possam
por vezes parecê-lo, expressando uma experiência que poderia colocar em relevo estórias
similares de outras pessoas, especialmente de outras mulheres negras na capital do país.
Aqui apenas reapresento as narrativas delas, focando o interesse no modo em que elas
relatam, situam e explicam suas próprias histórias em termos daquelas categorias sociais e
políticas.
Enfim, ainda que não seja seu principal propósito, este capítulo de alguma forma
documenta não apenas uma participação feminina56 no nascimento do movimento social
afro-colombiano como uma construção de um ponto de vista sobre a luta das pessoas
negras/afro-colombianas, bem como sobre as estratégias de combate ao racismo

55
Embora o capítulo (e a dissertação em geral) não se proponha propriamente a realizar uma discussão das
relações de gênero, por meio das experiências das fundadoras e dos componentes da Red de Ananse pode-se
ver que existe uma preocupação a esse respeito, bem como uma reflexão (nos dois sentidos do verbo refletir)
com relação às suas práticas.
56
À qual por sinal comumente não se refere quando se trata de falar em movimento social afro-colombiano,
silêncio apontado por Camacho (2004), entre outros. De fato, tudo se passa como se esse movimento fosse
movido unicamente pela força da mobilização, a tenacidade e a inteligência dos homens negros.
Consequentemente, costuma-se associar nomes específicos, ou melhor, homens específicos a organizações
específicas, em particular aquelas que têm abrangência nacional: Carlos Rosero e PCN; Juan de Dios
Mosquera e o Movimiento Cimarrón, para mencionar só dois exemplos. Criticas a um certo incômodo sob o
argumento do desvio do foco da luta ao discurso feminista por parte de companheiros de luta podem ser vistos
em Grueso & Arroyo (2002) (Grueso também é militante do PCN), assim como em Lamus Canavate (2008).
Uma valiosa pesquisa a esse respeito que aponta como os movimentos sociais baseados em uma identidade
étnica/racial lidam com o dissenso colocado por outras pautas e, especificamente, como o PCN lidou com as
chamadas relações de gênero, pode ser vista em parte no artigo de Juliana Flórez-Florez (2004).
53
vivenciado57 na capital do país com base em posicionamentos de mulheres negras muito
específicas.

2. Dos pueblos negros para a capital.


As fundadoras da Red de Ananse chegaram a Bogotá em diferentes momentos a
partir de finais da década de 1970, fazendo um percurso que já naquela época tinha sido
feito por conterrâneos seus na procura de melhores condições de vida e emprego. Fizeram-
no seja para desenvolver uma carreira política, artística ou para estudar, indo da região do
pacífico e dos vales interandinos para o centro do poder político, econômico e midiático do
país (Wabgou et al., 2012).
A primeira a chegar foi Victoria, no ano de 1978, com o objetivo de entrar em uma
universidade para prosseguir com seus estudos. Com o mesmo intuito chegou Milena, irmã
de Victoria, em 1982. Por sua vez, Maria Angola chegou em 1981, já tendo alguma
formação e experiência docente. Já Celina morou durante sua infância na capital,
posteriormente foi para Chocó, a terra de seus pais e familiares, e retornou em Bogotá com
alguma formação e com experiência docente no início dos anos 1980.
Aqui me referirei a essas experiências, a começar pela de Maria Angola, seguida
pela de Celina, continuando com as das tumaqueñas58 (Victoria e Milena), procurando as
pistas dos encontros e também desencontros que possibilitaram o nascimento da Red de
Ananse.

2.1. Maria Angola


Maria Angola é oriunda de Puerto Tejada, município localizado ao nordeste do
departamento de Cauca, em um vale interandino, na divisa com o sul da cidade de Cali, a
capital do departamento de Valle del Cauca. Puerto Tejada é um município com uma

57
Um interessante estudo sobre o que seriam as características do racismo em Bogotá e do racismo
colombiano encontra-se na dissertação de mestrado ‘Vivir en un mundo de “blancos” do antropólogo Franklin
Gil Hernández (2010).
58
Ou seja, oriundas de Tumaco, município que se destaca no Pacífico Sul.
54
população em sua maioria negra e, segundo ela59: el 90% de la población es afro, el resto
son paisas60 que llegaron recientemente a apropiarse del comercio de allá61.
Segundo Maria Angola, os sobrenomes africanos são comuns no norte do Cauca,
entre eles Carabalí, Congo, Arará, Lucumí, Amún, Zape, Biohó, Popó etc62. Para ela, esse é
um aspecto que lhe permite ter a certeza de donde ella viene, de saber que é negra apesar
de seu tom de pele ser claro.
Quanto aos estudos, Maria Angola cursou a primária em seu povoado, que na época
só oferecia esse ciclo e uma formação complementaria, onde se ensinava uma base de
enfermagem ou costura. Estimulada sobretudo pela mãe, que queria que suas filhas
estudassem, realizou os estudos secundários em Popayán, capital do departamento de
Cauca, e lá se formou em 1970 como docente normalista, quer dizer, por ter estudado a

59
Segundo os dados oficiais com base no censo de 2005, 97,5% da população se autoidentifica como “afro-
colombiano, negro (mulato), raizal, palenquero, ou afrodescendente”.
60
Paisa é um termo utilizado para se referir a pessoas do chamado Eixo Cafeeiro (Eje Cafetero), conformado
pelos departamentos de Antioquia (o maior departamento do Eixo), Caldas, Risaralda e Quindío, que
antigamente conformavam um único território. Paisa faz referência a um tipo regional, mas também a uma
identidade que, no senso comum, e não somente o das elites econômicas e políticas de Antioquia, ressalta um
certo “empreendedorismo”, baseado no mito da conquista de territórios desse Eixo –supostamente terras
devolutas – pelas próprias mãos e coragem (berraquera). Essa autoimagem está atrelada a outras imagens:
aquela do patriarca, capaz de defender sua família, branco, católico e conservador. Assim, nessa imagem não
cabem os indígenas nativos nem os negros/afro-colombianos que habitam desde o período colonial esses
departamentos. Muitas vezes afirmam que são isolados geneticamente, europeus oriundos de várias províncias
da atual Espanha (Catalunha, Andaluzia, Extremadura, País Basco). Há alguns anos o governo de Antioquia e
o Instituto para el Desarrollo de Antioquia (Idea) produziram uma série de TV intitulada ‘Paisa. Memorias de
un Pueblo’ que busca ‘fortalecer a identidade’ desse departamento. Um posicionamento alternativo parece ter
sido a exposição Antioquias (12/06/2013 até 18/08/2013) do Museo de Antioquia, que propos ‘exponer y
hacer una revisión crítica de los imaginarios de identidad sobre Antioquia y sus pobladores’. Contrastando
com a autopercepção paisa, a imagem que passam algumas pessoas da Red de Ananse faz referência a uma
percepção de um certo “expansionismo” que tem uma referência racial (branca) e que se pretende dominante
em termos econômicos, políticos, militares e eclesiásticos nos territórios habitados em sua maioria por
pessoas negras/afro-colombianas, como em Chocó e no norte do departamento de Cauca.
61
Talvez essa afirmação seja um sintoma da leitura das pessoas negras locais que de alguma forma
experimentaram desde meados do século XX o declínio do campesinato negro com suas pequenas
propriedades rurais produtoras de cacau que era a base do poder econômico e político no norte do Cauca, e
consequentemente a progressiva perda de influência das lideranças negras no cenário político local (Wabgou
et. al., 2012:76) enquanto se foi produzindo um processo de expansão e consolidação da monocultura de cana-
de-açúcar e de proletarização dos habitantes da região.
62
Segundo o antropólogo Jaime Arocha (2008) essa seria uma das tantas formas de resistência utilizadas
pelos escravizados para manter a memoria da origem. Mas seriam etnônimos que fazem referencia –alguns
deles– tanto aos nomes que os europeus deram aos escravizados em relação aos lugares próximos dos postos
de embarque nos litorais da África do centro e sudoeste quanto aos grupos dominantes ao redor desses pontos.
55
secundaria em um colégio que oferecia uma formação básica em pedagogia com a qual
naquela época se podia lecionar63.
Assim, Maria Angola trabalhou durante dez anos em Puerto Tejada, e já casada
viajou para Bogotá no ano de 1981 porque seu marido conseguiu um emprego na capital.
Lá começou a trabalhar como docente do distrito de Bogotá em 1982, e iniciou estudos de
graduação em educação básica primária com ênfase em matemáticas e uma especialização
em arte e folclore na Universidad Del Bosque, uma instituição particular.
Segundo Maria Angola, foi em Bogotá que ela se deu conta que o tom de sua pele
era más claro do que o de outras pessoas de sua família ou, melhor, que a pele dela não era
tão escura quanto a pele das pessoas de seu povoado. Para ela, nos pueblos negros no hay
ese problema tan feo de discriminación como se siente en las ciudades o como se siente en
Bogotá. Oriunda de uma família com sete irmãos na qual existem tons de pele entre os mais
claros e mais escuros, quando ela perguntava ao pai a respeito do que seria, digamos assim,
sua identidade racial (papá, ¿yo soy negra?) ele respondia: en Puerto Tejada, las personas
o son negras o son paisas; si usted es hija mía, entonces usted es negra. Assim, segundo
ela, essa resposta dera o fundamento de seu posicionamento em termos de autoidentificação
racial.
Nesse sentido, foi justamente em Bogotá que ela experimentou a discriminação,
inicialmente de uma forma indirecta, ao perceber que as pessoas lhe davam um tratamento
diferenciado pelo modo de hablar ou pelo penteado. Casada com um homem com um tom
de pele mais escuro, os três filhos que nasceram na capital foram muito discriminados
quando crianças. A partir daí, ela explica que a pessoa com uma piel más oscura é passível
de ser alvo de discriminação más fuertemente.
Um exemplo, entre outros, aconteceu um dia em que ela e seus filhos subiram em
um ônibus em Bogotá. Os meninos tinham passado a roleta, ela ficou para passar por
63
Maria Angola poderia ter estudado em Cali (distante 17 quilômetros) e não em Popayán (108 quilômetros),
mas como ela conta nessa época era mais difícil encontrar uma vaga na primeira cidade. Na época a formação
normalista fornecia acesso a um grande número de quadros docentes na rede pública. Maria Angola foi das
primeiras que tiveram alguma formação para o exercício docente, trabalho antes exercido por donas de casa
alfabetizadas. Na época, em Puerto Tejada docentes homens lecionavam para meninos e docentes mulheres
para meninas, assim o trabalho docente com meninas de primária do seu município serviu para que nesse
contato cotidiano com elas lembrasse e aprendesse elementos da cultura local que ela já tinha esquecido em
função do tempo em que morou na capital do departamento, e que com o passar do tempo só continuam a
existir nas áreas rurais.
56
último, e quando se dispunha a pagar a passagem ao motorista, que não percebeu que os
meninos estavam com ela, perguntou: ¿Y quién va a pagar el pasaje de esos micos? Nesse
e em outros momentos de discriminação racial64, ela reagia decididamente com palavrões e
xingamentos, porque como ela diz era la forma que tenía para defenderse, e defender os
filhos, naquela época. Seria a Red de Ananse que daria outros argumentos para valorizar-se
(a partir de ideias de pertencimento a uma etnia) e para se defender de otra forma.
Esse posicionamento enquanto mulher negra e essas experiências de discriminação
a levariam a trabalhar com os próprios filhos para eles se sentirem orgulhosos enquanto
negros, se defenderem da discriminação, e conhecessem os costumes e a identidade negra
do lugar de origem de seus pais. No entanto, esse trabalho não seria feito somente com os
próprios filhos, mas com os filhos das mulheres negras que faziam parte, junto com ela, do
Grupo de Mujeres Negras de Bogotá. Assim, durante alguns anos, após chegar do colégio
onde trabalhava, Maria Angola almoçava com os seus filhos e com os filhos daquelas
outras mães, orientava os deveres escolares dessas crianças e logo em seguida contava para
eles lendas, estórias e acontecimentos da terra dessas mulheres, enquanto as mães das
crianças trabalhavam em um microemprendimento de produção de cocadas e de bonecas
negras, que na época eram uma raridade e, na verdade, continuam a ser. Quando o
repertório dela acabava, reunia-se com essas mães numa espécie de oficina, dois domingos
por mês, para se lembrar de cantos, cuentos, rondas y saberes com os quais elas cresceram
e que queriam que seus filhos aprendessem, porque com certeza não os aprenderiam nas
escolas da capital65.

64
Piadas, comentários grosseiros e insultos em função da forma de falar, do tom da pele, do fenótipo, e até a
negativa para alugar uma casa são formas de discriminação racial também vivenciadas tanto pelas fundadoras
há algumas décadas quanto por outros componentes da Red de Ananse nos últimos anos na capital do país.
65
Esse trabalho de recuperación cultural foi feito por ela durante aproximadamente quinze anos, com o apoio
inicial da Fundación de Vida, que era dirigida por uma señora paisa e um sacerdote alemão, os quais tiveram
uma importante implicação no nascimento de um grupo de gente negra no sudeste da cidade. Mas o grupo
acabou porque as mulheres negras não gostavam do fato de serem aqueles os que mandavam, os que tomavam
as decisões, por isso surgiu o Grupo de Mujeres Negras. Formado em meados dos anos 1990, com o tempo
esse grupo perdeu força, e as poucas pessoas que permaneceram em contato formaram anos depois o grupo
Palenque, que realizava um trabalho parecido no sentido de manter práticas e saberes dos lugares de origem
das mães que deixavam seus filhos aos cuidados de docentes conterrâneas suas. O grupo Palenque hoje é
basicamente um grupo de música e dança afro-colombianas formado por jovens afro-bogotanos do sudoeste
da capital, que é uma das áreas da cidade com um número significativo de pessoas negras/afro-colombianas.
Alguns dos meninos que participaram das dinâmicas do Grupo de Mujeres Negras e do grupo Palenque,
inclusive um dos filhos da Maria Angola, hoje são músicos muito conhecidos na cena musical bogotana e até
57
Maria Angola lembra que foi em torno do ano de 1990 ela conheceu tanto as
tumaqueñas quanto Estela Escobar66 durante os eventos afro que eram realizados em
Bogotá e aos quais ela ia para vender as bonecas negras. Maria Angola viria a conhecer
melhor essas mulheres durante uma liturgia afrocolombiana (em que há sacerdotes,
tambores, danças e comidas afro) que ela organizou para a comemoração do dia da
afrocolombianidad (21 de maio), perto do ano 2000. Ela não sabe como as demais ficaram
sabendo dessa cerimônia, mas compareceram, ficaram conhecidas e a convidaram a
participar na Expedición Pedagógica Ruta Afro. Naquela época, o Grupo de Mujeres
Negras estava quase desaparecendo. Assim sendo, ela se sentiu interessada em participar do
mesmo, até porque ela percebia que era algo que tinha mais a ver com o tipo de trabalho
que ela queria desenvolver67.

2.2. Celina
Celina nasceu em Quibdó, capital do departamento de Chocó, local que, como já se
viu, ainda é pensado como referencial de um lugar habitado por pessoas negras, quer dizer,
pessoas com a pele muito escura e com traços fenotípicos ditos negros. Ainda criança, ela
veio para Bogotá junto com os pais e os irmãos. Celina aponta que a partir da discriminação

nacional. No caso das mães, muitas delas abriram restaurantes especializados em comidas das suas regiões de
origem, principalmente do Pacífico e do norte do departamento de Cauca. Esses restaurantes têm por nome
Apolonia, em homenagem a uma líder cimarrona do exército de Benkos Bioho, de quem se diz foi o fundador
do Palenque de San Basilio. Segundo a professora Angola, tanto os músicos quanto os restaurantes
enriquecen a Bogotá con la cultura afrocolombiana e, em particular, com a sazón (o gosto) das comidas que
aquelas levaram para a capital. Segundo Maria Angola, o Grupo de Mujeres Negras participou no processo de
elaboração da legislação afro participando em reuniões em Chocó com Obapo, Acia e com a Organización
Indígena Embera y Waunana (Orewa). Além disso, homens do grupo, como o chocoano Antero Mosquera e
Luis Arrechea, de Puerto Tejada, marido da diretora do grupo Palenque, também fizeram lobby no Congresso
da República.
66
Docente afro chocoana que também participou durante alguns anos em espaços organizativos de mulheres
negras junto com as tumaqueñas e com Celina, como o Taller Infantil Nuestra Cultura e no início da
Expedición Ruta Afro.
67
Formal e legalmente, o Grupo de Mujeres Negras continua a existir pela decisão das antigas companheiras
como lembrança tanto de sua experiência de afirmação enquanto mulheres negras nos primeiros anos em
Bogotá quanto da manutenção de relações de amizade e – sobretudo – de familiaridade, já que algumas delas
são comadres. Após morar durante 17 anos no sudeste na cidade, Maria Angola se mudou para um
apartamento no setor de Kennedy (sudoeste), sendo docente no colégio público Carlos Arango Vélez,
próximo de lá, há quatorze anos. Como docente que precisa lecionar em todas as disciplinas, e sendo
responsável por uma turma de primária, sempre fez questão de mostrar aos estudantes que existem otros
pueblos con saberes distintos que vale a pena conhecer, povos que podem ensinar algo para os habitantes
dessa grande cidade.
58
racial no bairro e principalmente na escola, onde era uma das poucas meninas afro, se
pensou como sendo negra. E foram os xingamentos, os apelidos e piadas racistas
experimentados diariamente em Bogotá que contribuíram nesse sentido, aos quais ela
reagia com agressões físicas, o que colaborou para adquirir a fama de briguenta, pelo fato
dela se defender e defender a seu irmão e suas irmãs. Mesmo tendo um irmão homem, disse
ela, ele não reagia à discriminação que sofriam.
Quando era vítima de piadas, Celina batia em quem as proferisse: con una piedra yo
rompía cabeza; o sea, esa era la manera de defenderme; por eso yo entiendo a los niños
que vivem eso, porque yo pasé por eso; porque ¿quién le presta atención a uno? Como
Celina sabia dançar, ela era procurada pelas professoras para que dançasse nos atos
festivos da escola, algo que hoje ela lê como uma ocasião na qual estava sendo aproveitada
pelas mesmas professoras, que não gostavam muito dela. Celina sente que há duas atitudes
muito comuns em relação às pessoas negras: ora um tratamento hostil e com uma suspeita
sempre pairando sobre eles, ora uma aproximação em função daquilo que eles
supostamente teriam de melhor, a saber suas habilidades “físicas”, claramente a dança e os
esportes, utilizadas para divertimento de outrem.
A forma de suas reações, que geraram queixas de professores68 e vizinhos, fez com
que a mãe dela chamasse uma filha mais velha em Quibdó para que levasse Celina para lá,
porque já não sabia o que fazer com aquela menina. Efetivamente, ela foi levada para
Quibdó e lá continuou os estudos no ciclo da primária e da secundária. Contudo, lá também
foi alvo de piadas e comentários. Se em Bogotá ela era incomodada pelo seu fenótipo,
percebido como negro, em Quibdó foi ao contrário percebida como tendo um tom de pele
mais claro, vindo a ser de fato chamada de paisa, ou seja, branca, em vez de mulata, que
seria o termo local para se referir nesse caso a ela que é de pele relativamente mais clara

68
No segundo ano da primária, Celina foi suspensa após brigar na sala de aula com umas gemelas monas
[loiras] de ojos verdes, que tinham feito algum comentário racista contra ela. Ao indagar sobre a punição
imposta para as gêmeas, ela seria informada que elas não haviam sido repreendidas. Celina pensou então que
a professora tinha raiva dela, não gostava dela ou, como hoje interpreta esse episódio, se deu conta que as
professoras também discriminam. Em função disso, pensou em se vingar da professora. Um dia qualquer em
que a professora andava com seus sapatos de sola de madeira, sapatos com um salto muito alto, com muito
sigilo Celina caminhou bem atrás dela e pisou em um dos sapatos, fazendo a professora despencar.
Consequentemente, Celina não mais retornou para essa escola.
59
por ser filha de um papá negro e de uma madre mulata (de traços negros e com uma pele
mais clara).
Celina atribui essa dupla discriminação ao fato de ter morado alguns anos em
Bogotá, cidade dos Andes em que à época hacía más frío que hoy, o que fazia com que ela
ficasse com as bochechas avermelhadas como os habitantes de um departamento vizinho à
capital (Boyacá). Por causa disso, lá também brigou com os colegas de escola. Sua situação
só começou a mudar quando, no quarto ano da primária, Celina foi matriculada em uma
escola cuja reitora era uma parente dela, fazendo com que fosse efetivamente criada por
suas irmãs mais velhas.Toda essa experiência, como ela mesma afirma, a ajudaram para sua
tomada de consciência sobre o ser negro.
Em Quibdó Celina completou os estudos secundários em uma escola normalista.
Sendo já uma docente e ainda que tendo vontade de estudar em uma universidade, ela
preferiu ir trabalhar no campo, na área rural, em povoados como Bojayá, Balboa, Río
Sucio, andando de canoa a través de los rios. Lá, trabalhou69 principalmente o relativo à
cultura, basicamente as danças tanto de afros quanto de indígenas da região, com os quais
conviveu. Após alguns anos realizando esse trabalho, Celina resolveu ir para a capital, onde
moravam sua mãe e seus irmãos, e entrar na universidade.
Para se sustentar na capital e conseguir estudar em uma universidade, Celina teve
que procurar emprego para ser docente, de preferência na área de educação física e
danças70. Essa procura não foi fácil. Nos colégios onde ela deixava o seu currículo,
principalmente nos privados, quando era chamada para uma entrevista acabava sendo
descartada pelos encarregados da seleção em função de seu fenótipo. Como ela mesma
conta: cuando yo llegaba allá y ellos veían que yo era negra, ellos no me recibían.
Já com emprego na primária, Celina fazia questão de acompanhar o desempenho
dos estudantes afros ou mestizos discriminados, ou daqueles que não eram muito queridos
pelos outros professores, fossem hiperativos ou tivessem algum problema com o

69
Na época, como ela afirma, os professores e professoras tinham autoridade, mandaban, eran respetados, e
ao mesmo tempo realizavam muitas tarefas além da docência. Ela, por exemplo, cortava o cabelo das
crianças, tratava as feridas feitas por chimbilacos (morcegos), ensinava higiene pessoal e organizava visitas ao
rio.
70
Celina estudou na escola de artes cênicas da Universidad Distrital de Bogotá, que é uma instituição pública,
e durante alguns anos percorreu o país com um grupo de teatro.
60
rendimento. Com eles, ela fazia reforço escolar em domicílio. Além disso, os defendia tanto
das atitudes de colegas docentes quanto dos reitores ou reitoras dos colégios, para os quais
ela não tinha qualquer problema para expressar aquilo que pensava a respeito de ações de
discriminação.
Após alguns anos de trabalho, Celina conheceu Victoria, que trabalhou no mesmo
colégio, ali tendo seu primeiro emprego como docente após a formatura em licenciatura em
Ciências Sociais pela Universidad Pedagógica Nacional. Lá, as duas seriam, junto com
Patricia Buriticá71 e Nancy Rodriguez, as revoltosas que conseguiam discutir as posições
com o presidente da cooperativa dona do colégio. Foi justamente com o impulso dado por
Patrícia que elas iniciariam os primeros pasos políticos no nível sindical. Entretanto, um
tempo depois Celina foi demitida e Victoria passou no concurso para ser docente da rede
pública de ensino da capital. Porém, quando Celina ganhou a vaga para docente do distrito,
ela foi empossada no mesmo colégio onde Victoria já trabalhava. Já nessa época elas
começaram a trabalhar no Taller Infantil Nuestra Cultura, espaço de trabalho com filhos de
mulheres negras de setores populares que compunham uma grande parte da população.
O Taller veio a ser um espaço de convergência de mulheres preocupadas com a
discriminação racial das crianças negras e com a recuperação de práticas, usos e folclore
afro na capital do país, formando a base do que anos depois viria a ser a Red de Ananse,
mas dele falarei mais adiante. Antes disso, por meio de alguns elementos das trajetórias das
irmãs tumaqueñas, tentarei mostrar um pouco o seu percurso organizativo, as diferenças
com o movimento social afro-colombiano no seu período de formação, e as rupturas que
geraram novas organizações e colocaram outras questões para a luta antirracismo, e como
foram resolvidas por elas.

2.3. As tumaqueñas
Victoria e Milena, sua irmã mais nova, são conhecidas como tumaqueñas, ou seja,
nascidas em Tumaco, um município litorâneo no Pacífico Sul, ainda que toda a família seja
do interior, de Robles, um povoado da área rural. Elas provêm de uma família extensa:
Victoria é a sétima filha dentre seus irmãos, e afirma que as coisas que ela sabe, e aquilo
que ela é, são fruto das relações com seus pais, tios, irmãos, primos e vizinhos, em meio a
71
Atual subsecretária de Qualidade e Pertinência da SED.
61
um sentido comunitário característico desse contexto. Essa experiência existencial de uma
vida camponesa numa pequena propriedade familiar faz com que ela se defina como sendo
camponesa também. Porém, Victoria cresceu num constante vai-e-vem entre Tumaco, onde
ela estudava, e a roça aonde ela ia durante as férias.
Em função de uma discussão em que se envolveu em Tumaco, derivada de seu
incômodo com o fato de o cunhado passear com a amante na frente da sua irmã, Victoria
foi levada para a cidade de Cali, já que, segundo ela, na época era considerado de mau
gosto que as mulheres brigassem de modo geral, sendo ainda pior se a briga acontecesse em
público. À época ainda uma adolescente de 16 anos, Victoria foi morar com sua tia em
Cali. Lá, ela se deparou pela primeira vez com as condições de pobreza em que vivem as
pessoas negras nas cidades, porque ainda que sua família não fosse abastada, as condições
de vida em Tumaco ou em Robles, na roça, não eram tão precárias quanto estas.
Tanto em Tumaco, onde ela cursou até o segundo ano da secundária, quanto em
Cali, Victoria estudou em colégios confessionais, administrados por freiras. Rapidamente
identificou que em ambos os colégios o tratamento preferencial dispensado às meninas
brancas obedecia tanto à origem social quanto al color de la piel. Além disso, sentia que
estava em desvantagem frente às colegas, pelo fato de ter estudado em Tumaco
praticamente sem biblioteca, sem livros. Tímida, ela percebia que dentre os poucos
estudantes negros, somente os esportistas de alto rendimento e que representavam o colégio
em competições recebiam um trato diferenciado por parte de professores e colegas.
Por outro lado, criada ao redor del peso del pecado y de la total ignorancia sobre la
sexualidade, Victoria ficou grávida de seu primeiro filho em Cali na sua primeira
experiência sexual, aos dezenove anos. Ela só ficou ciente de sua gravidez depois que a
barriga começou a crescer. Grávida no penúltimo ano da secundária, sem apoio, sem
qualquer pessoa para ajudá-la a tomar conta do filho, ela adiou a conclusão de seu curso,
regressando para Tumaco, lugar para o qual tinha receio de voltar por lo que eso
significaría para a família e, especialmente, pelo efeito que a fofoca poderia causar. Após
passar um ano em Robles, sem estudar, ela retornaria às aulas em Tumaco, com apoio do
pai, e sobretudo da mãe, que tomou conta do filho de Victoria.
Num dia qualquer em que faltava água em Tumaco, e ao ficar sabendo que uma
passeata de protesto seria realizada em direção à prefeitura, Victoria conseguiu que os
62
colegas de turma atendessem sua proposta de participar da manifestação, porque ela
pensaba que no era justo que enquanto estudantes do último ano da secundária não
fizessem nada. Falando a um jovem que ela identificava como sendo um líder, disse: mire
hermano, nosotros tenemos que dejar nuestra marca en este colegio, tenemos que salir y
marchar con el pueblo. Reprimida, com confusão, encarceramento de algumas jovens e
truculência da polícia, Victoria situa essa marcha como o início de sua preocupação com o
social; ao mesmo tempo, para ela essa foi uma marcha com caráter político72, no sentido de
que as preocupaciones fueron planteadas en relación con las necesidades del pueblo.
Após sua formatura, com dinheiro poupado no emprego que teve na registraduría73
local, e após uma conversa com sua mãe – que não queria que ela fosse para Cali, onde
morava o pai de seu filho –, Victoria resolveu viajar para Bogotá, com mais duas amigas,
com o objetivo de estudar em uma universidade. O filho dela, já com seis anos à época,
ficou com a avó. Uma das amigas dela tinha um irmão que morava na capital. Após
atravessarem por terra metade do país74, foram terminar sua jornada no bairro Eduardo
Santos, que era o lugar típico ao qual llegaban casi todos los tumaqueños.
Sem dinheiro para estudar em uma faculdade particular, sem informação sobre a
oferta de cursos universitários e sobre as datas das inscrições nas universidades, e sem
orientações certas sobre esses assuntos por parte dos paisanos (conterrâneos) que moravam
na cidade, Victoria e suas amigas foram informadas da existência de um profesor negro que
ayuda mucho a los negros en la Universidad Pedagógica Nacional. O paisano que
conseguiu o nome do professor Fortunato disse para elas o procurarem e dissessem que
queriam estudar, e que falassem para ele de donde ellas habían viajado. Com ajuda do
professor Fortunato e conforme as vagas que alguns decanos conseguiram abrir em alguns
cursos, Victoria e mais uma amiga começaram seus estudos ainda nesse primeiro semestre.
Ainda que sendo poucos na universidade, entre os estudantes oriundos do Pacífico
había una división, mais marcada entre as mulheres negras, pelo fato de se considerarem de

72
Ela opõe claramente político a cívico, aquelas ações que enquanto eram crianças e jovens faziam
coletivamente para manter limpas as ruas e praças do bairro em que viviam.
73
A Registraduría Nacional del Estado Civil é uma agencia do Estado encarregada do registro e identificação
dos colombianos e da administração dos processos eleitorais.
74
Percurso que durou cinquenta horas de viagem, de Tumaco até a capital, Victoria estima.
63
uma origem social mais alta e por possuírem atributos físicos mais atraentes. Segundo
Victoria, as meninas chocoanas achavam que não eram pobres, porque naquela época os
docentes do departamento de Chocó tinham condições para enviar seus filhos para estudar
na capital. Portanto, ellas se identificavan por la forma de vestir, por el tipo de ropa que
usaban e, além disso, pelo fato de acharem que seus traços fenotípicos eram mais
delicados, de tal forma que aunque tuvieran la piel afro, sentian que se asemejaban más a
los mestizos75.
Victoria aponta experiências de discriminação racial contra estudantes negros na
universidade por parte de algumas pessoas mestizas. Alguns desses casos envolveram
agressão física tanto de quem discriminou quanto da pessoa discriminada. Às vezes houve
tentativas de retaliação por parte das pessoas mestizas envolvidas e, como relata Victoria,
até mesmo com apoio de pessoas externas ao campus, algo que já aconteceu, por exemplo,
contra uma das conterrâneas de Victoria e contra sua própria irmã, Milena, que tinha
chegado em 1982. Em função desses acontecimentos, los negros se juntaran por primera
vez, aunque en momentos específicos como ese. A partir de então Victoria começou a
pensar que era possível que os afros pudessem se unir, justamente com base nesses
momentos pontuais de solidariedade que ela começava a ver nos companheiros, ainda que
na época sin mucha consciencia afro76.
Nessa experiência de ser uma espécie de estrangeira no seu próprio país, Victoria
aponta a necessidade de exercer um esforço adicional para ser reconhecida por seu
desempenho acadêmico. Essa ideia, que já ouvi em várias ocasiões, confirma a
invisibilidade das pessoas negras em alguns espaços. Segundo Victoria, não existem meios
termos em relação às pessoas negras. Elas se destacam ou como tendo bom, ou como tendo
mau desempenho, ninguém parecendo notar o que há no meio. Isso implica uma pressão

75
A divisão básica seria, segundo Victoria, entre as mulheres do departamento de Chocó (Pacífico Norte) e as
mulheres negras de Buenaventura e Tumaco, principalmente, o chamado Pacífico Sul. Contudo, algumas
mulheres de Guapi (Pacífico Sul) tinham vínculos com mulheres de Chocó, em função das pretensas
características comuns de classe.
76
Com os professores as experiências foram distintas. Alguns gostavam das estudantes negras das ciências
sociais numa relação mediada pelos professores negros Fortunato e Justiniano, mas outros as discriminavam.
Em particular, Victoria aponta um tratamento discriminatório no momento da qualificação. Um caso
específico foi o da professora que disse que ela não pronunciava o S no final das sílabas, pelo seu suposto
sotaque costeño, estereótipo associado às pessoas da costa atlântica (ou região Caribe).
64
objetiva em função do discurso do mérito, que está na base dessa dinâmica, desconhecer a
trajetória social e acadêmica dos estudantes, alunos que, como Victoria, arrastam as
deficiências derivadas das condições de precariedade do ensino no lugar de origem. Para
Victoria, ao mesmo tempo isso se tornou um desafio, um estímulo diante das condições
adversas tanto no âmbito acadêmico quanto no enfrentamento à discriminação, que se deu a
partir do conhecimento das dinâmicas dos lugares em que ela atua para o empoderamiento
enquanto pessoa e mulher negra.
A discriminação não foi experimentada somente por Victoria: sua irmã e suas
amigas no âmbito da universidade também, a capital em geral, segundo ela, não se
mostrando receptiva com pessoas negras. Elas foram insultadas por policiais, tinham
dificuldade para alugar moradia, incluindo restrições até para ligar o rádio, e havia até
pessoas mestizas que en aquella época se rascaban [coçavam] la rodilla [joelho] cuando
veían a um negro, dizque porque daba suerte77. Em uma ocasião na rua um homem pediu
para Victoria e uma colega que estava com ela irem embora da cidade, dizendo também que
elas eram mulheres de serviço doméstico.
Victoria reagiu e discutiu fortemente com esse homem, quase sendo agredida por
ele. Embora diante de uma possível agressão física, ela continuou a discutir na espera da
solidariedade de um homem negro que estava ali por perto, mas isso não veio a acontecer.
Isso fez Victoria perceber que a solidariedade não era automática, que não era con todos los
afros que ela podia contar. Igualmente, Victoria pensou que los afros sentian miedo de
verse como negros y de reconocerse enquanto tal, porque em circunstâncias em que ela se
expressava negra, los otros negros se ocultaban.
Assim, para ela, a vivência da discriminação foi percebida como sendo algo novo e
característico da capital, e isso fez com que ela começasse a refletir sobre lo que es ser
negro. Essa reflexão sobre o ser negro vai ser afetada pelo encontro com o seu
companheiro afetivo (e pai de seu segundo filho), Tito. Ele estava há muito mais tempo na
cidade, era estudante de direito em uma universidade particular e já tinha participado de
alguns espaços de discussão sobre o tema, especialmente de um grupo conformado por

77
Celina conta que isso também aconteceu com ela em varias ocasiões.
65
pessoas afro, entre elas Amir Smith Córdoba (1948-2003)78, na época também sendo
vinculado ao partido comunista, especificamente com a Juventude Comunista79. Então, a
partir desse contato a preocupação pelos afros, segundo ela, se encontrou com uma
preocupación con lo social.
Morando no centro da cidade, a casa veio a ser um espaço onde passaram muitos
dirigentes de esquerda de diferentes grupos, seja em reuniões ou até mesmo em festas.
Ainda que próxima do movimento comunista e socialista, Victoria não se sentia, como
pessoa negra, completamente atraída pelo discurso focado na classe. Contudo, foi em
meados da década de 1980, com a abertura do restaurante Secretos del Mar80, que suas
preocupações sobre o lugar e as condições da população negra na transformação da
sociedade encontrariam um espaço onde seriam colocadas. De fato, o restaurante foi
pensado para servir de espaço de encontro para as pessoas negras da cidade e para aquelas
que estavam em trânsito, tanto como lugar para discutir a realidade dessa população, quanto
como opção de emprego de mulheres e até mesmo como ponto de auxílio e solidariedade
com as pessoas próximas da causa que não tivessem um tostão para comer.
No caso de Milena, na época ela já estava envolvida com o movimento de esquerda,
mas sempre identificando e criticando as ausências e os limites dos discursos da esquerda
em relação às populações negras. Para ela, esse também foi um espaço de resistência: un
palenque urbano para que los negros pensaran su realidad política y social. E esse papel
foi desempenhado cabalmente nos momentos prévios ao processo constituinte, durante a
assembleia nacional constituinte para a construção do artigo transitório 55 (AT55) da

78
Destacado intelectual e político, nascido no departamento de Chocó. Fundou o Centro de Investigaciones
para el Desarrollo de la Cultura Negra e o jornal Presencia Negra. Foi um pioneiro da reivindicação de
direitos para as populações negras colombianas.
79
Pela repressão e perseguição aos esquerdistas, que é uma constante na história da Colômbia, mas em
particular ainda mais aguçada para eles naquela época, Victoria, Tito e alguns primos dele tiveram que se
refugiar no centro da cidade durante um semestre, num bairro reputado como perigoso e quase sem presença
policial.
80
O restaurante está localizado no centro de Bogotá, que é também o centro do poder político, lugar do
governo nacional e dos ministérios, das cortes, do congresso, como foi desde a época colonial, quando era a
capital do Vice-reinado. Nele também encontra-se o prédio da prefeitura da cidade e a Catedral primaz. Esse
centro é o lugar então do “político” e da “política nacional”; ali –especialmente na praça de Bolívar– acabam
as passeatas, as marchas; ali são realizados comícios. É um importante espaço de interpelação ao Estado.
66
Constituição de 1991, e na mobilização ao redor da construção da lei 70 de 1993, ou Lei de
Comunidades Negras.

3. Rupturas e nascimento de novas organizações.


No final dos anos 198081, o restaurante Secretos del Mar (que também tinha um bar
ao lado) foi se consolidando como ponto de encontro entre os conterrâneos (paisanos) para
dançar, comer e, como afirma Victoria, como um espaço de resistência, porque ali podiam
manter as práticas culturais que traziam de sua região. Além disso, foi um espaço onde
algumas organizações afros realizavam suas reuniões. Mais especificamente, durante o
processo que fez surgir a lei 70 de 1993, o restaurante foi o lugar onde eram tomadas as
decisões sobre ações para incidir82 na criação de uma legislação específica para a
população negra, que até esse momento era pensada como sendo integrada à nação.
Segundo Victoria e Milena, ali se indicaram alguns candidatos a delegados para a
assembleia constituinte, se decidiram ações de apoio, se fizeram propostas para a redação
dos artigos da lei 70 de 1993, se organizaram manifestações para dar visibilidade às
reivindicações da população negra, se apoiaram ações de pressão (tomada da igreja São
Francisco no centro da cidade e tomada da embaixada do Haiti), entre outras.
Segundo Milena, as marchas e outras manifestações não eram muito cheias e, na
época, esses manifestantes eram maltratados pelas pessoas que trabalhavam nos locais do
centro da cidade onde eles expressavam suas reivindicações, especialmente pelos
esmeralderos83. Segundo ela, jogavam água neles, foram alvo de insultos racistas, até
diziam ustedes negros no son de aquí, váyanse para África. Isso sem dúvida as indignava e,
como disse Milena: era mucho dolor en la piel. Mesmo assim, mantiveram uma constância
nas suas ações de mobilização.
No Secretos del Mar se formou a Organização para a Unidade Afro-colombiana
(OUA), na qual houve uma grande presença de acadêmicos e intelectuais afro, e que teve

81
No final dessa década nasceu Stokely, segundo filho da Victoria. O nome é uma homenagem a Stokely
Carmichael, inspirado pela leitura da biografia desse líder afro-antilhano-americano que ela e Tito faziam à
época.
82
Deixo em espanhol e em itálico esse termo que, nesse contexto semântico, quer dizer tanto influir quanto
“fazer diferente”.
83
Comerciantes de esmeraldas.
67
destacada liderança de Tito. As irmãs Victoria e Milena também fizeram parte dessa
organização e ali conheceram alguns dos colegas que anos depois participaram junto com
elas no ativismo antirracismo e em projetos de pesquisa na escola e na Universidad
Pedagógica Nacional. A OUA participou junto com outras organizações afro no processo
de mobilização para a elaboração da legislação para a população negra.
Segundo Victoria, a OUA era um grupo com uma presença política muito forte na
capital, porém sem deixar de ser um grupo muito machista: las mujeres éramos vistas como
subalternas, no teníamos el poder de la palabra; no podíamos hablar, no podíamos opinar,
porque eran ellos los que tenían el poder, la palabra y la razón. Contudo, como aponta
Milena, elas compareciam com trabalho constante: construindo a proposta de cada uno de
los artículos de la ley 70 de 1993, organizando as passeatas, acompanhando aos líderes,
resguardando aqueles que eram perseguidos para que não fossem assassinados,
contribuindo com a comida, e até mesmo fazendo uma reza ou, segundo Milena como diz a
canção, a puño, sangre e oración.
Com a saída de Tito da OUA, esse grupo começou a decair, e as irmãs saíram
depois, a partir do momento em que se tornou predominante a proposta de constituí-lo em
um partido para aproveitar o ambiente político da nova Constituição de 1991, que
favoreceu a formação de novos movimentos e partidos que disputassem
“democraticamente” o poder pela via eleitoral, além de objetivar o acesso às cadeiras
reservadas na lei 70 de 1993 para as minorias étnicas no Congresso da república, em
particular aquelas para as chamadas na legislação da época de comunidades negras. Nesse
cenário, elas pensaram que enquanto mulheres o lugar delas não era ali, e que outro espaço
precisava ser criado. Foi assim que, junto a outras mulheres do movimento, formaram a
Associação de Mulheres Afro-colombianas (Amoafro), no ano de 199384.
Inicialmente, o grupo não tinha mais de cinco mulheres, mas posteriormente foram
chegando outras, à medida que o grupo se tornava conhecido, em parte pela realização do
primeiro encontro de mujeres negras, em Bogotá. Conforme explica Victoria, o encontro
teve suas conclusões publicadas, e algumas propostas a respeito da participação das

84
Ver também Wabgou et al., 2012.
68
mujeres negras no movimento foram levadas em conta. Na época, Milena não esteve muito
presente por causa da criação do seu primeiro filho, mas participou nesse encontro.
Foi no seio da Amoafro que as tumaqueñas lançaram a proposta de recuperación de
la espiritualidad por parte de las mujeres negras. Segundo Victoria, isso provocou uma
forte rejeição por parte das companheiras, que disseram que ellas no eran brujas, que eso
era brujería85. Essa é uma das experiências que ela coloca como exemplo da recusa do
movimento social afro-colombiano a uma espiritualidade afro voltada para um exercício
político de unidade e de resistência. Como em qualquer canto há interesses pessoais que se
destacam, Victoria disse que uma das companheiras foi ganhando poder dentro do grupo e
acabou apropriandose de él hasta el punto que ella insiste en que es la única fundadora.
Mas, como ela reconhece, isso foi possível porque ellas también dejaron que eso ocurriera.
Por isso, ela acabou se afastando dessa associação.
Na época, tanto Victoria como algumas pessoas da Amoafro faziam parte do
Processo de Comunidades Negras. Justamente com o apoio do PCN, Victoria conseguiu
uma vaga na Consultiva de Alto Nível, espaço consultivo entre o governo nacional e as
comunidades negras. Victoria disse que não tinha muitos elementos para participar desse
espaço, quer dizer, não tinha noção sobre a função de um consultivo e, aliás, era muy
tímida, no era tan peleona como ahora, não tendo meios de enfrentar a oposição que os
antigos companheiros do movimento iniciaram no período da assembleia constituinte. Estes
eram mais experientes nessas dinâmicas e tinham relações com o bipartidismo (liberal e
conservador) predominante no cenário político colombiano86. Com muitas pessoas contra,
como ela afirma, paralisou-se, não conseguia nem falar nas reuniões, enfim foi una
experiencia muy fea. Depois dessa experiência, Victoria resolveu se afastar desse espaço
consultivo e, junto com sua irmã, procurar enquanto docentes construir um espaço de
trabalho para continuar a luta antirracismo e a valorização e visibilização dos afros. Esse
espaço foi o Taller Infantil Nuestra Cultura.

85
Trata-se de práticas das populações negras do Pacífico para resolver problemas no dia a dia: fumar tabaco
para saber a sorte antes de tomar uma decisão, fazer trabalhos espirituais para atingir objetivos, usar secretos
para se livrar de situações de risco, usar as ervas para limpeza das energias etc.
86
De fato, muitos deles, que também fizeram parte da comissão encarregada da criação da lei 70 de 1993,
anos depois se tornaram funcionários do Estado e ocuparam os poucos cargos públicos de livre designação
criados com base nessa lei para lidar com as comunidades negras, entre eles a Dirección de Asuntos Étnicos.
69
Retrospectivamente, para Victoria as críticas por elas recebidas deveram-se ao fato
de elas nunca terem sido próximas dos partidos tradicionais (liberal e conservador), além de
terem criticado as práticas corruptas no movimento. Contudo, as rupturas que aconteceram
serviram como marcadores de fronteiras e de posicionamentos a respeito tanto de objetivos
de luta do movimento como dos meios utilizados e, acima de tudo, das práticas concretas
dessas ativistas: formas da participação, o lugar das mulheres na luta, a relevância dada aos
interesses pessoais, entre outros. Por outro lado, a distância para alguns ex-companheiros e
ex-companheiras de luta é relativa: com alguns não há contato por fora de cenários de
convergência do movimento, enquanto com outros há proximidade programática e até
amizade, que pode ser ativada em projetos e momentos pontuais.
Ao mesmo tempo, segundo Milena, as organizações maiores reconhecem e
respeitam o trabalho feito pelo grupo liderado pelas tumaqueñas, especialmente no que se
refere a propostas pedagógicas e de implementação da Cátedra de Estudios
Afrocolombianos, o que se traduz ora em convites para espaços de trabalho sobre o assunto
no nível distrital ou nacional, ora em cautela para ao menos medir as palavras sobre o tema
quando na presença delas. Embora elas tenham procurado seu próprio espaço de ação,
consideram que é necessário participar com seu próprio posicionamento em espaços de
tomada de decisões que vão afetar os afros. Assim, por exemplo, Milena participou na
Comisión Pedagógica Nacional que teve a responsabilidade pela construção tanto do
decreto 1122 de 1998, que criou a Cátedra de Estudios Afrocolombianos, quanto das
diretrizes curriculares (Lineamientos Curriculares), pautados naquela época na noção de
etnoeducação.
Milena também participou na comissão ad hoc que assessorou a ministra de
educação para a política educacional intercultural para as populações negras,
afrocolombianas, raizales e palenqueras. Por sua vez, mais experiente sobre as políticas
públicas, a legislação sobre os afros e sobre a função de um espaço consultivo, Victoria
participou na Consultiva Distrital de Bogotá eleita em 2007,que foi responsável pela
elaboração da política pública distrital de ações afirmativas para a população negra,
afrocolombiana, raizal e palenquera em Bogotá.
Incidir é justamente o verbo mobilizado pelas tumaqueñas e pelas colegas da Red de
Ananse em cada espaço em que elas fazem presença: na escola, na universidade, no
70
sindicato da categoria, nas discussões sobre a cátedra de estudos afro-colombianos tanto no
nível local quanto no nacional, na consultiva distrital de Bogotá etc. Incidir aparece de fato
na linguagem utilizada pelas integrantes da Red de Ananse para caracterizar como político
o trabalho que elas desenvolvem em cada um desses espaços em que participam, a começar
pela escola. A construção de novos espaços de ação, como o Taller Infantil Nuestra
Cultura, aparecem como uma alternativa quando incidir em alguns espaços decisórios não
é possível e, especialmente, quando consideram que não está sendo feito um trabalho que
beneficie os afros ou que reproduz práticas que contradizem seus posicionamentos.

3.1. O Taller Infantil Nuestra Cultura


Baseadas na experiência de participação em algumas organizações do movimento
afro-colombiano, as tumaqueñas chegaram à conclusão de que com os líderes afros –
homens e mulheres – ya no había nada que hacer, devido à corrupção, o machismo e ao
seu encumbramiento, ou seja, o autoposicionamento em um lugar de prestígio e ao mesmo
tempo uma diferenciação com as pessoas que estariam na base das organizações. Segundo
Victoria, havia negros visibles, negras visibles y aquellos que no eran visibles, como elas,
mas que trabalhavam muito em função da causa afro.
Assim, as tumaqueñas coincidem na necessidade de construir um espaço de trabalho
próprio e diferente a começar pela pedagogia, enquanto docentes, para formar meninos e
meninas negras conscientes de sua identidade, que se assumissem enquanto meninos e
meninas negras e melhorassem sua autoestima, além de ajudar as crianças que eram
discriminadas nas escolas, partindo da própria experiência de discriminação que elas
passaram em vários momentos da vida. Aí nasceu a proposta de criação do Taller Infantil
Nuestra Cultura.
Para esse novo espaço de trabalho, Victoria convidou Celina, após seu reencontro
no colégio San Francisco. Por meio de Victoria, Celina e Milena se conheceram. Junto a
outras mulheres negras e docentes realizaram um trabalho com crianças de famílias negras
carentes no bairro La Igualdad. Indo de casa em casa elas conseguiam reunir até cinquenta
crianças em uma escola que conseguiram permissão para utilizar, levando também para lá
seus próprios filhos. Ali cresceram Stokely (segundo filho de Victoria), Rafael (o primeiro
filho de Milena), Carlos e Vicky (filhos de Celina), entre outros. Como elas afirmam, a

71
criação dos filhos foi coletiva, daí costumarem dizer que ali se configurou uma família, em
que cada uma delas é mãe e tia dos meninos e meninas, sendo todos seus filhos e sobrinhos.
Aos poucos o trabalho delas foi se tornando conhecido na cidade entre alguns
setores do movimento social afro-colombiano e também no nível institucional, em
particular com as apresentações do grupo de danças formado por esses meninos e meninas
em cenários públicos administrados pela prefeitura local. Segundo Victoria, isso mostrava
que essas crianças tinham se empoderado, elas tinham assumido com orgulho o fato de
serem negros. Por outro lado, como outro efeito positivo, algumas crianças em situação de
atraso escolar ou fora do sistema educacional conseguiram ser recebidos nas escolas
públicas de Bogotá ou em seus lugares de origem, naqueles casos de crianças que
retornaram aos seus povoados.
No Taller, as três preparavam materiais didáticos, colocavam em prática e criavam
métodos de ensino, pensavam o ensino da cultura afro e o fortalecimento da identidade por
meio da dança, entre outras formas de fazê-lo. Ao mesmo tempo, elas coincidiram na
necessidade e na importância da autoformación para dar rigor ao trabalho realizado. Aos
poucos – e ao que parece de forma pouco deliberada – essa dinâmica foi aplicada por elas
em seus exercícios docentes nas escolas, o que contribuiu para que elas se autoafirmaran
como docentes afros, ou seja, um tipo de docente que pensa sua posição enquanto mulher
afro ou negra no meio escolar, reivindicando essa identidade. Segundo Victoria, isso foi
possível porque elas teriam deixado para trás la verguenza de ser mujeres negras, o que
passava por assumir a diferença baseada nos traços fenotípicos (entre eles a cor da pele), o
lugar de origem e os saberes e práticas com os quais cresceram. Essa dinâmica de
autoformação contribuiu para que elas assumissem um papel de destaque nos colégios.
Nesse sentido, reivindicavam a vontade de se diferenciar em função das próprias
características pelas quais foram e eram discriminadas. De alguma forma isso estava em
sintonia com o posicionamento do movimento social afro-colombiano como novo ator
político e étnico em meio a esse projeto político multicultural. O posicionamento dessa
identidade, enquanto mulheres negras que reivindicam suas origens, continua a ser feito
diante da sociedade majoritária e do movimento social afro-colombiano. Esse último,
graças a sua diversidade, especialmente na capital, pode assumir posições ora
integracionistas, ora considerar desnecessárias algumas reivindicações da diferença em
72
alguns espaços institucionalizados. Como afirma Victoria, esse empoderamiento tinha a ver
com o fato de elas serem mulheres negras do movimento que conheciam o que elas
chamam de a cultura afro porque habían vivido esa cultura y conocían las prácticas que se
realizaban en el Pacífico, ao contrário das mulheres urbanas.
Além de uma reivindicação da diferença em função tanto de características
fenotípicas quanto culturais, há aí uma crítica às posturas de algumas pessoas do
movimento que – por terem uma experiência citadina – falavam em nome de uma etnia
afro-colombiana, acionando um discurso de unidade ao mesmo tempo em que na prática
estabeleciam uma diferenciação em função dos estudos universitários realizados, da
experiência urbana e de moradores da capital, do desejado posicionamento enquanto líderes
perante os interlocutores governamentais para aumentar seu poder de barganha, além das
práticas ditas corruptas apontadas pelas fundadoras.
Justamente, esse posicionamento enquanto mulheres negras com base em uma
experiência de racismo e de vivência em regiões com maioria de população afro foi que
permitiu que, em meio à procura de outras formas e conteúdos, as tumaqueñas iniciassem a
tarefa de pesquisar e pensar as práticas e saberes que seriam próprios dos lugares de
origem, assim como explorar seu potencial para a promoção de outros valores em sala de
aula na escola bogotana, o que elas começaram a chamar os saberes ancestrales, aos quais
me referirei mais detalhadamente no capítulo seguinte.
O trabalho feito com o Taller serviu para que – com mais experiência e em meio a
esse relativo afastamento com o movimento social afro-colombiano – Milena participasse
na Comisión Pedagógica Nacional encarregada da regulamentação de alguns dos artigos da
lei 170 de 1993, que deu nascimento ao decreto 1122 de 1998, relativo à promoção da
história e cultura afro-colombianas na sala de aula por meio da Cátedra de Estudios
Afrocolombianos. Além da criação da CEA, a comissão também redigiu as diretrizes
curriculares (lineamientos curriculares) que são a base legal de iniciativas para a
visibilização dos afro-colombianos no meio escolar.
Essa experiência acumulada no Taller, legitimada de alguma forma pelo decreto que
criou a CEA, foi importante para que as docentes do Taller propusessem e desenvolvessem
nos colégios em que trabalhavam projetos de implementação da CEA baseados em pesquisa
bibliográfica e de campo, envolvendo os docentes e os estudantes. Anos depois, alguns
73
desses projetos lhes renderam reconhecimento por meio das chamadas Experiencias
Significativas, premiação realizada pelo Ministério de Educação Nacional (MEN). Isso
trouxe, além do destaque do trabalho realizado enquanto docentes, uma visibilização dos
colégios aos quais elas eram vinculadas, e contribuiu em alguns casos, ainda que não
definitivamente, para que seu trabalho encontrasse menos desinteresse por parte dos
colegas e diretivos, e para que outros docentes se aproximassem dos projetos, fazendo com
que elas ganhassem espaço e respeito.
Surgiu então a iniciativa de registrar as experiências desenvolvidas, algo que se
colocou como uma necessidade de sistematização tanto das ideias quanto das experiências.
A autoformação e a pesquisa significaram um ativo, propositivo e constante aprendizado
sobre a identificação das formas e vias de expressão do racismo, as formas de enfrentá-lo
por meio de argumentos, que passam pelo conhecimento da legislação afro e por uma
transformação pessoal das práticas cotidianas e das maneiras de se reagir e, acima de tudo,
de atuar diante do racismo. Esse espaço de trabalho também levava em conta, e colocava
em prática, uma troca de saberes e práticas espirituais presentes nas regiões de origem das
fundadoras.
Segundo as fundadoras, Milena também colocou na pauta a necessidade de
continuar a formação por meio de estudos de pós-graduação. Justamente, ao final da década
de 1990, ela era a única pessoa desse grupo que tinha feito um mestrado. Foi nesse
mestrado que Milena participou da iniciativa conhecida como Expedición Pedagógica
Nacional e do movimento pedagógico nacional, produto também do encontro com Pilar
Unda, sua orientadora no mestrado. A participação na expedição fortaleceu o trabalho de
formação e delineou parte dos posicionamentos da atual Red de Ananse.

3.2. Expedições pedagógicas e a Ruta Afro-colombiana. Rupturas e críticas da


dominação masculina.
Segundo Pilar Unda87, foi a existência de redes pedagógicas, formadas por docentes
de escolas em varias regiões do país, que deu origem à Expedición Pedagógica Nacional. A
expedição surgiu como uma iniciativa para (re)conhecer a diversidade pedagógica que os

87
Psicóloga de formação, com doutorado em cultura e educação na América Latina e docente na Universidad
Pedagógica Nacional.
74
docentes do país colocam em prática nas escolas a partir da diversidade existente nas
diferentes regiões, culturas e territórios, e que não são reconhecidas, pensadas, nem levadas
em conta na definição das políticas educativas no nível nacional, geralmente definidas pelo
MEN na capital do país. A Expedição era também uma resposta alternativa à ideia de
capacitação de docentes por parte da UPN, que se propunha a conhecer os recursos
docentes disponíveis e a criatividade posta em ação, colocando em questão a ideia de
incapacidade de imaginação e proposição dos docentes.
A preparação da expedição enquanto viagem começou em 1998, e as primeiras
viagens foram realizadas no ano de 1999 em seis regiões do país: Caribe, Sudoeste, em
territórios indígenas de Cauca, Pacífico Sul, Eixo Cafeeiro e Centro (Bogotá). Com o
intuito de fazer registros das experiências, foram pensadas e mobilizadas várias formas de
registro levando em conta as possibilidades dos participantes individuais, o que, segundo
Pilar Unda, resultou em uma variedade de diários de campos, cadernos de notas, gravações
de áudio e vídeo, e até em desenhos, por aqueles que tinham habilidades para fazê-los.
Segundo ela, houve uma aposta nos relatos e na procura de outras escritas, o que fez com
que os docentes não parassem de escrever, contrariando a imagem e até a autoimagem
compartilhada de que os docentes não sabiam escrever. As expedições contaram com o
apoio de universidades departamentais, ONGs, igreja católica, sindicatos, secretarias de
educação etc.
No ano 2000, quando se pensou que o projeto tinha acabado, os mais de seiscentos
docentes que tinham participado da expedição propuseram, naquela que se esperava fosse
uma reunião de balanço final, que se continuasse o trabalho de pensar a escola e os
docentes. Mesmo havendo acabado o financiamento, criaram o que se chamou o
Movimiento Expedición Pedagógica. Segundo Milena, a expedição revitalizou o
movimento pedagógico no país, na medida em que outras redes de docentes nasceram nesse
processo.
À época, alguns docentes afros que tinham participado da expedição propuseram a
formação de uma Expedición Pedagógica Afrocolombiana, também conhecida como Ruta
Afro, para conhecer o que havia de afro na escola colombiana. Como conta Pilar, graças à
liderança e aos contatos de três docentes expedicionários afros, entre eles Milena, a Ruta
Afro começou sua expedição em três zonas: no Caribe, em Bogotá, e nos departamentos de
75
Cauca e Valle del Cauca. A partir daí, Milena foi se consolidando como uma importante
figura para a Ruta Afro. Durante o III Encontro Ibero-americano de Pedagogía de
Coletivos y Redes de Docentes88, junto com vários companheiros de outras regiões, foi
pensada a proposta dessa nova expedição. Segundo Milena, docentes de diferentes lugares
do país se mobilizaram física e mentalmente para olhar a escola não somente como espaço
físico, mas como instituição que produz políticas.
Efetivamente, a Ruta Afro em Bogotá foi coordenada por Milena e Victoria, e
implicava viajar para fazer visitas às escolas e colégios para olhar em detalhe como eram a
escola colombiana e seus docentes, e sobretudo focar nas práticas implicadas nesse
exercício. Segundo Milena, as professoras afros que participaram da Ruta Afro encontraram
grande riqueza na escola bogotana: de docentes, de estudantes, de práticas, riqueza que teria
produzido outras perguntas que não haviam sido inicialmente concebidas. Foi aí que as
docentes afros se perguntaram a respeito do aporte da cultura afro-colombiana na escola e
pelo que nela havia de afro.
Segundo Milena, na Ruta Afro elas encontraram e conheceram iniciativas
pedagógicas que trabalhavam com elementos da cultura afro, porém não eram vistos como
tais pelos docentes: contos, brincadeiras de grupo, lendas, entre outros. Por outro lado,
houve também uma emergência dos afros no meio escolar, por exemplo, por meio da
participação de docentes e estudantes no governo escolar e de seu destaque cada vez maior
como líderes.
Pilar Unda salientou uma mudança fundamental na pergunta norteadora: Ya no se
trataba de como lo afro había sido excluído o estigmatizado en la escuela; sino por la
potencia de lo afro en la escuela. Aliás, segundo Milena, essa pergunta inicial transbordou
em outras perguntas e questões que precisavam de soluções e, mais ainda, perguntas que
desestabilizavam o docente, a escola, os conteúdos curriculares, mas acima de tudo, as
mesmas docentes envolvidas.

88
Realizado na cidade litorânea de Santa Marta, no caribe colombiano, de 21 a 26 de julho de 2002 (ver
Duhalde, 2011). É um dos espaços de encontro em que participaram e continuam a participar as docentes da
Red de Ananse para divulgar e compartilhar experiências entre as redes de docentes no nível nacional e, nesse
caso, no nível internacional.
76
É interessante observar que mesmo concordando com a ideia de que as fontes
escritas são a base primordial para o conhecimento, o processo se tratou de um exercício
que, sem desconhecer o que tinha sido aprendido na escola e na universidade, sublinhou
como fundamental um aprendizado a partir da viagem e da própria história. Essa
caraterística implicou, segundo Milena, uma mudança na observação: mirar lo afro con los
propios ojos, mirar lo afro desde la propia condición de mujeres orgullosamente negras. E
esse movimento implicava outro deslocamento na medida em que elas olhavam a escola de
dentro, ou seja, em um universo de relações do qual eram parte.
No caso específico das fundadoras (Milena, Victoria, Celina e Maria Angola),
especialmente com a experiência expedicionária na Ruta Afro, fortaleceu-se o processo de
autoformação que já tinham iniciado as três primeiras no Taller Infantil. A Ruta Afro
realizou-se entre 2002 e 2004, com um primeiro momento de pesquisa de campo e um
segundo momento de socialização sobre a base dos achados. Segundo Pilar Unda, no
segundo momento, que era chamado de Producción de Saberes, visava-se passar da
descrição do que era coletado em campo para a construção de conceitos.
Nessa construção de conceitos notou-se o que foi apropriado/aprendido pelas
fundadoras na Ruta Afro, o trabalho que elas tinham realizado ao redor dos saberes, cultura
e práticas dos povos afros, e aquilo que tinham pesquisado, especialmente as tumaqueñas,
sobre a espiritualidade afro. Trata-se notadamente da tipologia sobre as formas de fazer
escola, por exemplo, la escuela del Color, la escuela de la Diversidad, la escuela Tonga89,
la escuela Tonga de Tambores e la escola Palenque espiritual, assim como uma tipologia
sobre as formas de ser docente afro, e em particular ser professoras afros: maestra Ashé
(axé) maestra Matrona, maestra Ancestral, maestra Cimarrona, maestro Ananse, maestra
Memoria90, entre outras. Como também aponta Milena, cada uma das docentes que

89
No Pacífico sul, a Tonga é uma convocatória para amigos, vizinhos e familiares para a realização de um
trabalho conjunto que beneficia a comunidade. Em outros lugares da região Pacífico tem por nome Uramba.
90
Espero abordar com mais detalhe em outro texto essa emergência dos saberes ancestrales e da cultura afro
na prática política de construção de conceitos outros por parte das docentes da Red de Ananse para pensar a
escola e a própria produção do conhecimento. Por enquanto, mostrarei o significado dessa tipologia segundo o
blog da Red de Ananse. Assim, Ashé: ‘Es la que tiene el carisma, poder y la fuerza para ser escuchada,
respetada y valorada. Existen escuelas donde los maestros afros juegan un papel decisivo en el buen
funcionamiento de la misma. No solo mueve el asunto cultural sino administrativo’. Matrona: ‘Aquella que
no solo se ocupa del asunto académico, sino que también atiende lo relacionado con la vida del niño(a) busca
la valoración de la tarea docente a partir de la mayor comprensión del significado que la escuela tiene para los
77
participou na Ruta Afro, entre elas as fundadoras da Red de Ananse, se aproximava de
alguns desses tipos.
Também segundo Milena, a Ruta afro, enquanto viagem, esfriou um pouco. Em
parte pelos compromissos que tinham nas escolas, mas também porque esse trabalho era
feito com os recursos próprios de cada docente. Nesse processo, algumas docentes
mulheres negras decidiram formar seu próprio grupo, não para se afastar da Ruta Afro, mas
porque viram que elas tinham um trabalho próprio, com características muito particulares e
que poderia ser enriquecido em outro espaço coletivo.
Embora tenha havido grande presença feminina na Ruta Afro, docentes homens e
afros também participaram dessa expedição, e as tumaqueñas se encontraram com
companheiros da época da mobilização que deu nascimento tanto à legislação étnica quanto
ao movimento social afro-colombiano. De fato, após a formação da Red de Ananse em
2004, com as pessoas que vinham do processo expedicionário, alguns desses companheiros
participaram em projetos conjuntos com a Red de Ananse91.
Ainda que não seja pensado como um grupo somente de mulheres, o encontro com
esses companheiros da luta antirracismo e do movimento pedagógico teve um efeito, a meu
ver, definidor de muitas das posturas atuais da Red de Ananse. Na seção seguinte abordarei
alguns desses efeitos a respeito do posicionamento sobre as práticas políticas, da reflexão
sobre a ética na vida cotidiana enquanto docentes, ativistas, e enquanto mulheres, da

niños. Maestra promotora de la cultura y trabajadora comunitaria que con su firmeza recoge alimento
espiritual y material, tranquilidad y regocijo para los pequeños’. Ancestral: ‘Se caracterizan porque parte de
su proyecto educativo consiste en la enseñanza del acervo cultural ancestral que han traído de sus regiones de
origen. El concepto de familia extensa es una práctica vivencial en su aula de clases’. Cimarrona: ‘Aquella
que hace de la escuela y de su aula un espacio de libertad, donde edifica y levanta nuevos cimientos
pedagógicos, culturales, convirtiendo su aula de clase en un palenque; que va más allá del espacio físico,
porque es la actitud que asume frente a la vida, la que construye en medio de las dificultades, la que sigue la
lucha heredada de los ancestros, como un posicionamiento político’. Ananse: ‘Son maestros que unidos
trabajan para mejorar su práctica y se convierten en red, que tratan asuntos de mujeres y hombres que por su
condición étnica y cultural han estado en la penumbra de la historia, de la escuela escondida por los
investigadores, académicos, maestros, medios de comunicación, instituciones educativas y sociedad en
general’. Memoria: ‘Maestra que produce y reconstruye la historia de los afros que se ha escrito, maestra que
permea la familia con sus saberes. Cauce que bordea desde el nacimiento para descubrir el conocimiento,
transformando intenciones para reconocer la esencia y el origen negado por la indiferencia de la institución y
la negación por mantener una superioridad no existente’.
91
Projetos como a preparação de documentos para publicação sobre a experiência de pesquisa com a Ruta
Afro, um projeto de formação de docentes da rede de escolas públicas sobre a Cátedra de Estudios Afro-
colombianos, que foi o primeiro dos contratos conseguidos com a Secretaria de Educação de Bogotá, e no
Encuentro Internacional Diversidad, Interculturalidad y Construcción de Ciudad, realizado em 2007.
78
valorização do próprio trabalho (coletivo) fundamentado na pesquisa e na produção
coletiva de saberes, e do aprendizado constante sobre as práticas racistas, coloniais e
machistas.

4. Atrás dos fios da Red de Ananse


Como bem aponta Victoria, após a experiência com as expedições havia chegado o
momento de procurar a volta para casa. Essa volta implicava fazer um balanço do que
tinha sido realizado e aprendido nessa caminhada, nessas viagens físicas e mentais
enquanto expedicionárias e enquanto mulheres negras e ativistas. Esse balanço também
passou pelo reconhecimento de quanto o machismo fazia parte de suas práticas. Como em
ocasiões anteriores, apesar do trabalho físico e intelectual constante e detalhado que elas
realizavam, eram os homens que davam os discursos, que faziam lobby e que mostravam o
trabalho feito, ainda que não tivessem tido qualquer envolvimento na produção intelectual.
Segundo Milena: nosotros tuvimos el atrevimento de llamar Griot a uno de esos
compañeros porque lo respetábamos, como persona mayor, como docente y como maestro.
El no escribía ni un párrafo, pero se aprendía todo de memoria y después lo presentaba.
Ali se produziu, ao que parece até agora, uma séria e significativa ruptura com esses
companheiros, que afetou o trabalho em rede que tinha sido feito com eles, particularmente
o trabalho realizado na Universidad Pedagógica Nacional. Além disso, segundo Pilar
Unda, houve também uma discussão a respeito da propriedade intelectual dos materiais de
pesquisa elaborados coletivamente sobre a Ruta Afro. A partir daquele momento, a Red de
Ananse seria formada principalmente por mulheres, mas, segundo Milena, a porta não está
fechada aos homens, só acontece que elas consideram que as relações devem acontecer em
um mesmo nível, sem privilégios derivados da condição de machos, sem tratamentos
diferenciados e sem qualquer submissão por parte das mulheres do grupo.
Por outro lado, se a Red de Ananse foi se consolidando com um grupo base de
mulheres negras, que são as que eu chamo aqui de fundadoras, propositalmente também
começaram a convidar mulheres mestizas. Como aponta Milena, há algumas razões que
possibilitaram esse convite, por exemplo, o fato de haver docentes afros que não estavam
comprometidas com a causa da erradicação do racismo. Além disso, elas teriam percebido
que algumas docentes mestizas também estavam pensando a escola e o racismo. Se por

79
alguma razão elas não encaravam decididamente esses assuntos, à medida que conheciam o
trabalho das fundadoras, se identificavam com ele e se tornavam aliadas nas escolas. Por
outro lado, as fundadoras consideram que a formação para a erradicação do racismo não é
exclusivamente para pessoas negras, mas que a sociedade toda tem que ser formada para
isso. Enfim, nos colégios em que elas são docentes nem sempre há estudantes afros, e o
objetivo não é pôr a salvo unicamente a estes, mas construir junto com os estudantes novas
formas de se relacionar entre si, levando em conta a existência da diferença como algo que
enriquece e, sobretudo, que comunica a necessidade da sua decidida afirmação92.
Segundo Milena, as professoras mestizas compartilham com elas a história de serem
mulheres, assim como a história de serem marginalizadas por serem pobres, docentes de
escolas públicas, e discriminadas pelo fenótipo, embora com outras experiências. Esses
elementos em comum permitem um trabalho conjunto, em uma leitura que, a meu ver,
entende as relações sociais em termos raciais, de classe e de gênero e, especialmente, em
termos das interseções dessas categorias de ordenamento hierárquico (Viveros Vigoya,
2008). Essa defesa que faz a Red de Ananse da presença de docentes mestizas não deixa de
92
Vários são os cenários que produziram novos encontros: Catalina conheceu Milena em um curso sobre
estudos afro-colombianos ministrado pela última na UPN, onde estudou Educação Física. Por meio de
Milena, conheceu também Victoria e, falando com esta última, ambas se deram conta de que eram parentes;
as tumaqueñas seriam primas da mãe de Catalina, uma jovem que se autoidentifica como sendo negra ou
afro. A partir daí ela começou uma relação de muita proximidade, chamando-as de tias, e se unindo aos
poucos às atividades desenvolvidas pela Red de Ananse. Catalina atualmente é estudante do mestrado em
Ciencias Sociais na UPN. No caso de Luna, que é bogotana e que se auto-identifica como sendo mestiza, ela
se aproximou da Red de Ananse por meio de um convite feito por Celina. Elas são companheiras de trabalho
no colégio São Francisco, no setor de Ciudad Bolívar, ao sul de Bogotá. Em um curso sobre políticas públicas
ministrado por Milena na Universidad Nacional Abierta y a Distancia (UNAD), ela conheceu Catalina.
Atualmente Luna é estudante de mestrado em Educação e Comunicação na Universidad Distrital de Bogotá.
Desenvolve seu projeto de mestrado em Plataformas Informáticas para o ensino com base na experiência da
Red de Ananse, junto à colega Samanta. Essa última é docente de pedagogia infantil da UPN. Ela conheceu
Milena em 2008 por meio do professor Wilson, docente dessa universidade e colega de Milena. Ela chegou na
Red para fazer um estágio de pesquisa e ficou. Ela é bogotana e se autoidentifica como mestiza. No caso de
Marta, ela conheceu Victoria em 2008, quando trabalhava na Equipe de Qualidade do Ensino na SED. Por
meio de Victoria, conheceu Milena. Marta foi convidada por Milena para falar em algumas reuniões sobre o
tema Ciclos, e acabou ficando. Atualmente ela é docente na UPN, na área de ciências sociais. Por meio dela,
duas de suas orientandas da graduação em educação comunitária com ênfase em direitos humanos, Edilma e
Marina, que se autoidentificam como mestizas, se aproximaram da Red de Ananse em 2010. De fato, essas
últimas fizeram sua monografia sobre as docentes da Red. No caso de Lina, quem se identifica mestiza,
conheceu Victoria quando elas foram colegas na pós-graduação em sexualidade na Universidad Distrital de
Bogotá. Por sua vez, Juliana é uma mulher de Tumaco, trabalha com uma ONG de direitos humanos para
população afro-colombiana deslocada pelo conflito armado interno. Ela se autoidentifica como mulher negra,
mas – como ela diz – não é percebida assim. Foi em um encontro de mulheres deslocadas pela violência
realizado na cidade de Cali, em 2012, que ela conheceu Milena; justamente ela coordenava uma das mesas
temáticas.
80
ser fonte de tensão com algumas pessoas do movimento social afro-colombiano, sobretudo
com aqueles que são funcionários públicos. Isso porque, como aponta Milena, eles
reduziriam a questão ao tom da pele em uma concepção simplista sobre o que é
considerado afro. Assim aconteceu no caso da inscrição do grupo na Dirección de Asuntos
Étnicos, mencionado na introdução.
Aqui é interessante a leitura que faz Flórez-Flórez (2004:223) sobre a relação entre
política e cultura no tocante tanto às políticas culturais quanto à cultura política dos ‘novos’
movimentos sociais (entre eles, os de tipo étnico), que redefinem na prática o que é a
política. A autora ressalta o lugar do poder e do dissenso no interior desses movimentos ao
se perguntar pelas estratégias de vinculação entre igualdade e diferença como critério de
analise, propondo assim não assumir como dada a construção do político. Isso, aliás,
permite pensar os movimentos sociais não apenas como lugares de resistência, mas como
lugares onde o poder também é recriado.
Nesse sentido, os posicionamentos de gênero, étnico-raciais e espirituais das
integrantes da Red em relação tanto ao movimento social afro e a outros espaços de
convergência, quanto ao interior da própria Red, podem ser pensados, como sugere Flórez-
Flórez seguindo Deleuze & Guattari, como um movimento permanente que acompanha e
enfrenta a capacidade de circulação do poder de um nível para outro. Isso se dá tanto em
seu ‘componente molar (perante o Estado, por exemplo) que sobrecodifica as múltiplas
diferenças em categorias binárias e abstratas (etnia, género, classe, etc.), quanto em seu
componente molecular’, em que em um plano local e menos abrangente essas codificações
adquirem características muito específicas; ali, esses movimentos de enfrentamento
incessante aparecem como necessários para que essas relações de poder não derivem em
dominação (2004:225).
Ao mesmo tempo, em relação às práticas concretas que essa resistência implicou e
implica no cotidiano, a Red de Ananse situa-se, a meu ver, e seguindo Guattari (1985:101),
em meio a uma polaridade entre ‘grupo sujeito’ e ‘grupo sujeitado’. Ali, a transversalidade
aparece como o ‘lugar do sujeito inconsciente do grupo e que dá suporte ao desejo do
grupo’. Mas essa dimensão só pode ser ‘posta em relevo em certos grupos que,
deliberadamente ou não, tentam assumir o sentido de sua práxis e se instaurar como grupo
sujeito, colocando-se assim na postura de se assumir como agente de sua própria morte’.
81
Dito de outra forma, daqueles grupos que justamente fazem resistência ao poder na medida
em que introduzem questionamentos que apontam a diferença interna frente à igualdade
(identidade) do grupo, que elevam a voz de dissenso ou que não recebem passivamente
suas determinações do exterior e que, nesse sentido, não ‘recusam o enriquecimento
dialético fundado na alteridade do grupo’ (ao contrário do grupo sujeitado).
Enfim, nos últimos seis anos chegou à Red de Ananse um importante número de
pessoas, a maioria nascida em Bogotá, trazendo seus saberes e suas experiências nas
iniciativas assumidas coletivamente. No seu contato com a Red de Ananse e por meio do
exercício de pensar o racismo, a discriminação racial na escola e o lugar do docente nessas
relações, terminam por se pensar e se assumir como mestizas. Assim, relativizam nessa
interação seu ponto de vista “normal” e se racializam/etnicizam nesse processo. Isso resulta
interessante especialmente se levarmos em conta que historicamente foi sempre com base
em Bogotá que se construiu a maioria das imagens sobre a nação em termos étnico-raciais.
Os estereótipos resultantes dessa centralidade do saber foram aplicados às províncias,
regiões e periferias tanto da capital quanto do restante do país. Vale a pena lembrar que é a
partir de Bogotá que se legisla e se governa para as regiões e, em particular, que lá é
definida a política educativa pelo MEN, assim como os conteúdos dos livros de texto que
são utilizados em escolas e colégios colombianos.
Bogotá foi, e continua sendo, uma cidade em que os racializados ou etnicizados são
sempre os outros, especialmente aqueles que portariam em seus corpos outros traços,
costumes, músicas, comidas e sotaques, as marcas das diferenças tornadas desigualdades.
No caso específico da gente negra, essas imagens foram construídas conjuntamente, ou
apoiadas em fantasias raciais e sexuais igualmente inscritas na ordem racial colombiana e
associadas a identidades e status de grupos minoritários (Viveros Vigoya & Díaz Benítez,
2010; Viveros Vigoya, 2008). As integrantes da Red de Ananse tornam explícito seu lugar
social e étnico-racial como ponto de partida de seu posicionamento político frente à
sociedade dominante justamente em um dos espaços que veicula e replica costumeiramente
essas imagens: a instituição escolar.
Por último, a concepção da Red de Ananse como família, que não deixa de
representar um desafio às fórmulas clássicas de organização dita política, se expressa ora
pela experiência de criação coletiva dos filhos em uma relação de mães-tias e filhos-
82
sobrinhos no Taller Infantil, ora pelo sentimento de participação em uma espécie de família
ampliada, como apontaram algumas das colegas mestizas. Porém, existe outra forma de
familiaridade reivindicada pela Red de Ananse, com conotações e obrigações muito
particulares: as relações espirituais/religiosas, baseadas na prática da espiritualidade afro-
cubana (espiritismo e regla de Ocha/Ifá, principalmente). Nelas existem madrinhas,
afilhados e irmãos de iniciação, assim como um vínculo com um universo de seres que
fazem parte do chamado cordón espiritual.
A espiritualidade/religiosidade, segundo as mulheres da Red de Ananse, está voltada
para o cotidiano, para a solução de problemas pontuais do dia a dia, e para o fortalecimento
individual e coletivo implicado no que seria o propósito básico dessas práticas rituais e
espirituais, quer dizer, la formación del carácter. Abordarei esses assuntos no terceiro
capítulo.

83
Capítulo 3
Os tecidos da Red de Ananse abrindo novos caminhos

1. A política, o meio educacional e os saberes ancestrales.


Nesse capítulo me ocupo do vínculo entre elementos da chamada cultura afro e os
saberes ancestrales, notadamente os espirituais, identificando ao mesmo tempo um
segundo nível de conexão que fala do encontro dessa espiritualidade com a escola como
lugar de significância e poder político. Mostrarei como as reflexões sobre escola, docência
e pesquisa estão baseadas em um complexo movimento intelectual, existencial e espacial.
Nesse movimento encontram-se reunidos vários elementos que corriqueiramente não são
concebidos como parte da ação e das práticas políticas e acadêmicas.
O ponto de partida do trabalho da Red de Ananse é constituído ao redor da definição
de instituição escolar, entendida como um espaço notadamente político, em que os docentes
são vistos como sujeitos que têm o potencial de construir e fazer a política, ou de serem
construídos e feitos pela política. Como explica Milena, o cerne da questão não é
constituído pela pedagogia em si, não é restrito ao exercício docente, mas pela relação com
os objetivos políticos que existem como potencialidades dessa própria ação, expressos em
perguntas norteadoras:

¿Yo desde qué lugar como maestra me estoy pensando? ¿Para qué sirve lo que hago? O sea,
cuando yo llego a un salón de clases, yo lo primero que pienso es ¿Qué quiero hacer con
estos niños? ¿Yo qué tipo de sujeto quiero formar? Un maestro no puede dejar de hacerse
esa pregunta. El maestro serio se hace esa pregunta. ¿Qué tipo de niño, qué tipo de niña
quiero formar? ¿Qué tipo de sociedad quiero? Hay que hacerse esa pregunta. Cuando uno se
hace esa pregunta, entonces identifica qué tipo de pedagogía está haciendo y quiere hacer.
Efectivamente los movimientos pedagógicos lo que hacen es que los maestros se reconozcan
sujeto de la pedagogía, sujeto de la historia, históricos, y desde ahí cuando ya se empodera y
cuando uno ya se cree "parte de", cuando uno "es", ya transforma, ya incide. Entonces, el
asunto de la pedagogía para nosotras es muy importante, porque es la pregunta por el ser,
porque es la pregunta por lo político, por la incidencia, no es solamente de cómo enseño, de
si los pongo en grupo, no. No podemos caer en el activismo del seminario, del “tallercito”,
de que los niños corran, no. Es lo que yo quiero, el tipo de sociedad que quiero formar.

Além disso, a luta antirracismo que a Red de Ananse desenvolve na escola


apresenta, a meu ver, dois componentes. Um deles aponta para a denúncia tanto da
invisibilização das pessoas negras na historia do país quanto do racismo, promovendo
84
formas de relacionamento pautadas na noção de interculturalidade. Isso porque elas
consideram que o assunto não consiste só na coexistência das diferenças e sua celebração
pública, mas na possibilidade de elas interagirem e na necessidade de se criar espaços e
práticas para elas se expressarem e se afirmarem enquanto diferenças. Portanto, a
pedagogia que visa identificar os discursos e práticas de discriminação de estudantes,
docentes e funcionários, não se limita à discriminação em função da pertença étnico-racial
ou do fenótipo, mas abrange outras discriminações (racistas, sexistas, homofóbicas). Isso se
dá, reconhecendo, contudo, que no contexto escolar as discriminações não estão dadas de
antemão, mas são significadas na interação das pessoas.
A interculturalidade é pensada como um objetivo a ser atingido nas relações sociais,
não como algo dado pelo simples fato da existência da palavra ou da noção. Esse objetivo
implica uma mudança nas relações que situam em condição de inferioridade grupos
previamente racializados, nesse caso, as populações negras/afro-colombianas, e uma
melhor distribuição dos bens sociais. Nesse sentido, aparece como uma crítica à noção de
multiculturalismo como principio de administração da diferença em sociedades neoliberais,
que em meio às mudanças constitucionais de vários países latino-americanos desde finais
da década de 1980 ‘reconhece’ a diversidade cultural da nação e outorga direitos de
cidadania em função da cultura de certos grupos, pensados como minorias, mantendo
intactas as relações hierárquicas entre o Estado, a sociedade majoritária e esses grupos.
Essa concepção de interculturalidade se alimenta das elaborações realizadas pela
pesquisadora Catherine Walsh93, que se interessa pelas condições de possibilidade de um
diálogo de saberes entre culturas distintas, dando relevância às lutas das populações
afetadas pelo desenvolvimento do capitalismo, e levando em conta as condições de
desigualdades e hierarquias existentes. Essa noção encontra-se no horizonte da crítica
descolonial (‘virada descolonial’) nas ciências sociais, com base em autores como Anibal
Quijano e outros pensadores afins do projeto modernidade/descolonialidade (Grosfoguel,
Mignolo, Maldonado, entre outros), que apontam as relações e condições de colonialidade,

93
Vale dizer que Walsh fez uma palestra intitulada ‘Interculturalidad crítica. Pedagogía de-colonial’
(publicada em 2008) no Seminário Internacional ‘Diversidad, interculturalidad y construcción de Ciudad’,
realizado pela Red de Ananse, organizações e instituições aliadas, em Bogotá, nos dias 17-19 de abril de 2007.
Apesar disso, segundo disseram várias das professoras da Red de Ananse, nas memórias do evento não
aparecem mencionadas nem a Red, nem Milena, que convidou a maioria dos participantes internacionais.
85
mesmo sem serem colônias, ainda presentes nas sociedades latino-americanos em vários
níveis, sendo a produção e circulação do conhecimento uma delas94.
Além disso, as pedagogias críticas pensadas e inspiradas na filosofia crítica (escola
de Frankfurt) passam a ser vistas como insuficientes, na medida em que, se buscam
desvelar as relações de dominação baseadas na classe, permanecem cegas a outras
opressões (raciais, de gênero, sexuais etc). Assim, em diálogo com as elaborações teóricas
da crítica descolonial à modernidade latino-americana, as pedagogias ancestrales vão reter
a atitude crítica em termos de poder e classe, e pensar nas pedagogias ancestrais como
prática crítica intercultural e descolonial. Esse posicionamento expressa também tensões
entre conhecimentos e saberes pensados por elas como eurocêntricos e os saberes
ancestrales. Como disse Milena, não se trata apenas de visibilizar os padrões de poder que
mantêm as diferenças étnico-raciais (resultado também da experiência colonial), de gênero,
sexuais, entre outras, mas contribuir para criar condições ‘radicalmente diferentes de
existencia, conocimiento y de poder que podrían contribuir a la transformación de la
escuela y de nuestra sociedad’.
A noção de interculturalidade também está fortemente ligada ao segundo
componente de luta da Red de Ananse, que visa à valorização cultural, a partir do
reconhecimento da existência da diferença e, sobretudo, da existência de pessoas e grupos
que detêm outros saberes e práticas, outras formas de se relacionar entre si, com a natureza,
com os mortos/espíritos, com outras religiosidades e outras espiritualidades. Assim, adotar
a luta antirracismo na escola e ter um posicionamento em favor do reconhecimento dos
aportes de grupos historicamente excluídos do meio escolar passa pelo fato dos docentes
realizarem um movimento para se assumirem pesquisadores e, ao mesmo tempo,
transgressores em relação à instituição escolar. Como bem aponta Milena:

94
O texto de Quijano intitulado ‘Colonialidad del poder. Eurocentrismo y América Latina’ talvez seja um dos
textos mais influentes dessa perspectiva, na medida em que elabora a noção de colonialidade do poder. Com
ela, Quijano aponta as características de dominação articuladas ao redor da raça como critério de organização
e distribuição da população em níveis, papéis e identidades inferiorizadas (índio, negro), contribuindo para a
configuração do capitalismo como poder global expresso nas mais variadas formas de controle e hegemonia; é
a colonialidade do poder, do ser e do saber. Segundo Walsh, a colonialidade do ser se expressou no caso dos
“negros” em uma desumanização, e de certa não-existência social, tanto no passado quanto no presente
(Walsh, 2007:29).
86
Aún en la escuela de hoy hace falta que los maestros y las maestras reconozcamos los
aportes de otras culturas en la conformación y en el desarrollo de las disciplinas que
nosotros impartimos en la escuela. Pero, para reconocer eso se requiere que el maestro se
convierta en investigador, que el maestro estudie, que el maestro indague. Entonces no
podemos ser maestros de la casa a la escuela, de la escuela a la casa. No trabajamos con
textos escolares, no trabajamos con los programas del ministerio [MEN]. Y decimos a los
maestros que no se puede trabajar con esos textos, con esos programas, hasta tanto no haya
un reconocimiento serio por parte de las editoriales, de los que producen los libros y del
ministerio, un tratamiento serio de las otras culturas. Que haya un tratamiento no tan
eurocéntrico. [Porque se está] aprendiendo sólo lo occidental, machista, sexista y blanco,
católico, no más. [En esa lógica] no existen otras realidades en la escuela; entonces todos
debemos ser católicos, todos tenemos que ser blancos, porque el que no es blanco o mestizo
es diferente, es estereotipado, es subalternizado.

Assim, a viagem (física e mental) é um elemento central no discurso e na prática da


Red de Ananse, como disposição para o conhecimento, como meio para a pesquisa, como
motor de aprendizado, especialmente pela afetação individual e coletiva em várias
direções, possibilitadas pela relação com outrem. Ali, as chamadas por elas pedagogías
ancestrales, como proposta para a implementação da Cátedra de Estudios
Afrocolombianos, aparecem tanto como proposta pedagógica quanto aposta política, porque
procuram levar para a escola não apenas outros saberes, outras histórias, mas outras formas
de trabalho e de relacionamento.
Além disso, as pedagogias ancestrales são produto de um exercício de pesquisa a
respeito de práticas e saberes muito específicos das populações afro, em uma perspectiva de
posicionar saberes outros como alternativas frente ao eurocentrismo que elas consideram
predominante no meio escolar e, em geral, nas instituições de ensino. A viagem ao lugar de
origem foi fundamental nessa empreitada. Como aponta Victoria:

Y empezamos a buscar herramientas pedagógicas que nosotros fuimos resignificando acá,


porque nosotras empezábamos con Milena, sobre todo las dos, a preguntar en Tumaco a la
gente, bueno cómo se hacía... ¿por qué cuando construyen una casa todos se unen? ¿Por qué
es la junta? ¿Qué significado tiene la junta? ¿Por qué se reúnen para ir a limpiar el monte?
Entonces la gente iba explicando a su manera porqué la gente negra se reúne en la junta,
porqué la gente negra se reúne para construir la casa, porqué cuando van a pescar se
reparten el pescado. Entonces nosotros fuimos resignificando esas prácticas ancestrales de
los afros y las llevamos a la escuela, las pedagogizamos. Eso fue lo que hicimos. Y
empezamos a escribir; Milena es muy buena para eso.

O interessante não é apenas que elas levem ideias, práticas, conceitos, de um campo
de pensamento ou de ação para outro, mas os tipos de elementos que são levados para a
escola pública da capital do país: práticas e relações de trabalho rural das populações negras
87
do Pacífico, da periferia racializada e estigmatizada, para o centro civilizador nacional,
ainda que na rede pública, onde são apresentados como elementos de valorização e como
aporte afro-colombiano para a escola. Ali, as comunidades negras são apresentadas de um
modo dignificante, e aparecem em aula como sujeitos produtores de saberes, saberes dignos
de serem aprendidos. Além disso, no retorno da viagem de pesquisa há o propósito não
apenas de compartilhar saberes e práticas como de mudar algo na escola. Como aponta
Milena:

Otro elemento que recuperó la Ruta Afro fue el papel de las comunidades, el papel de los
mayores, de los sabedores, el papel ancestral de la cultura. Nosotros tomamos la decisión de
recuperar la cultura rural, el acervo cultural rural. Entonces en las comunidades afro, porque
también son diversas, tenemos unas formas organizativas, tenemos unas formas de
relacionarnos, tenemos unas formas de comunicarnos, tenemos formas de aprender, de
hacer. Nosotros lo que hicimos fue mirar qué de eso era posible en lo urbano, era posible en
la escuela y de ahí fue que salió la propuesta de escuelas [Tonga, Color, Palenque]. Fue
donde esas formas ancestrales que trajimos del Pacífico y del Caribe, que salieron las
diferentes formas de ser maestros. Pero también nosotras tenemos unas formas organizativas
[…]. Pero esas formas ancestrales, nosotras decidimos traerlas a la escuela, sirvieron para
modificar comportamientos negativos que tenían nuestros estudiantes; por ejemplo, las
pandillas. Porque nos propusimos aportarle a este país, aportarle a la escuela,
intencionalmente, desde lo afro. Y eso para nosotros es un asunto político; porque se
transforma, porque se incide. Entonces, nosotros empezamos a traer esas formas ancestrales
de ser y de hacer que teníamos en el Pacífico y en el Caribe para la escuela bogotana y nos
dio muy buenos resultados. Quiere decir entonces, que no sólo se aprende con los
conocimientos occidentales; que hace falta conocer la cultura indígena, que hace falta
conocer a los Rom (gitanos) y que hace falta conocer a los afros, en sus prácticas.

Assim, as professoras da Red de Ananse perceberam que se a escola podia mudar


porque havia docentes que tentam mudá-la e que mudam suas concepções e práticas por
meio da pesquisa, seria possível também mudar a universidade e as faculdades de ensino
que formam aos docentes. Essa percepção aponta para o reconhecimento que elas fizeram
da universidade e das faculdades enquanto dispositivos de poder colonial, como têm sido
caraterizados esses espaços por diversos autores (Quijano, 2000; Walsh, 2009). Assim, sua
proposta é que a universidade também tem que mudar junto com a escola, em seu currículo,
na sua organização, na sua estética, na sua relação com outrem. Como apontou Milena em
uma palestra na Universidad Pedagógica Nacional, em maio de 2013:

Esta universidad, es como el dispositivo que tiene el colonialismo para conservar su poder,
para mantener el poder, el de la educación. Entonces, aquí se dice quién es investigador y

88
quién no es; quién sabe y quién no sabe. Porque ha sido eurocéntrica por siglos y no se ha
renovado y lo que la expedición decía es que hay que renovar y hay que buscar maneras de
ser maestro, distintos. Uno cuando sale y cuando se dispone a que el conocimiento entre, se
enriquece y las maestras tenemos que estar dispuestas a abrirnos para que el conocimiento
entre, se enriquezca nuestra mente, porque somos muy cuadriculados, exageradamente
cuadriculados; porque esta universidad mire, cuatro paredes y pintada de beige tendiendo a
blanco. Porque todo tiene que ser blanco, si fuera de otro color sería terrible; si fuera
triangular, sería terrible. Entonces, hay que transformar esas prácticas. Este mismo salón
deberían de ponerlo a circular, para que todos nos viéramos; miren que a la niña de allá, yo
no la veo; porque es la estructura como está pensada la escuela, así está pensada la escuela;
no solamente desde los contenidos, desde los discursos, desde la política, sino también
desde la disposición estética.

Então, o docente da escola e da universidade teria de participar de um processo de


mudança subjetiva (aprendizado) que busque emancipar a sociedade no seu espaço
cotidiano de ação. Para tanto, o exercício docente teria de se sustentar na pesquisa enquanto
viagem, atentando para a diversidade social e cultural do país. Assim, o docente teria de
assumir uma atitude não apenas crítica, mas também curiosa, criativa, para produzir
conhecimento e práticas novas. Portanto, o docente teria de se mobilizar, sair de seu lugar
de conforto, da inércia individual e institucional, e dessa forma afetar a própria instituição
educativa, por meio de um deslocamento entre aprendizado e desaprendizado. Como
afirma Milena:

También hace falta que la facultad de educación se involucre; es que cuando yo estaba aquí
todas las tesis eran de aprendizaje. Todas las tesis son de cómo aprende el niño, de la lecto-
escritura. Todas las tesis son iguales en Infancia. Hay otros asuntos que hay que investigar y
que enriquecen la escuela. Por ejemplo, nosotros como Red de Ananse, estamos diciendo
que hay diferentes infancias, que la infancia afro es distinta, que la infancia indígena es
distinta, que la infancia en condición de desplazamiento es distinta, que hay diversidad de
infancias. Y que desde ahí entonces se requiere miradas distintas de tratamiento en el aula
de clase. Tenemos un conocimiento universitario valioso. Yo inicié diciendo que estudié en
esta universidad y que aprendí mucho, pero también que se hace necesario desaprender.
Nosotros decimos, si la cátedra de estudios afrocolombianos, si lo que hacemos como
mujeres afros, como mujeres, como maestras y como activistas afros, no sirve para
emanciparnos, no sirve pa’ nada, no sirve para nada. Y nosotras por ejemplo, creemos que
ya aprendimos mucho de occidente, que todo lo que occidente nos puede enseñar ya lo
aprendimos, que nos han enseñado mucho. Es que no desconocemos que sabemos, que nos
han enseñado, pero ya los conocemos (…). Nos enseñaron tanto que nos enseñaron a
negarnos y a decirnos cómo tenemos que hablar, "hable mejor, usted", o "esta es la religión
que hay que hacer", "así es como tiene que comportarse, saludar cuando entre", unos
comportamientos, unas normas, todo, ya nos lo enseñaron. Entonces digo yo, me dispondría,

89
me dispongo, a aprender, porque cuando yo aprendo [enquanto docente], está aprendiendo
esa sociedad mestiza, porque es que yo tengo que reflejar eso que aprendo en esa comunidad
afuera, traerlo a Bogotá, llevarlo para Cali, a donde sea.

Em particular, os vínculos de Milena e de alguns companheiros homens com a


Universidad Pedagógica Nacional contribuíram na época do nascimento da Red de Ananse
para colocar essas questões nesse espaço universitário por meio do curso de formação para
docentes da rede pública, e posteriormente com a proposta de mestrado em educação com
ênfase em educação comunitária. No primeiro caso95, as fundadoras tornaram-se docentes
de seus colegas de escola pública para abordar a construção de conteúdos e as possíveis
estratégias de implementação da nascente Cátedra de Estudios Afrocolombianos. No
segundo caso, os colegas homens do grupo e Milena, que na época eram os únicos que
tinham título de mestrado, foram os docentes nessa pós-graduação96. Outra maneira de
posicionar essa concepção política e pedagógica são os chamados Semilleros de
Investigación97, que traçam os vínculos entre os futuros docentes tanto da UPN quanto da
Universidad Distrital com a pesquisa de campo, a experiência de docência e os temas da
CEA na concepção particular da Red de Ananse.
Quanto aos saberes afro levados para a sala de aula, como alternativa de saberes e
práticas, um universo de personagens, lendas, estórias e deuses, se insurge no cenário
escolar: Ananse, Huto, Tio Conejo, Tio Tigre, entre outros. Além disso, práticas como
Chumbar, Ombligada, apadrinamiento/amadrinamiento98, entre outras, são tomadas
daquilo que, seguindo a caracterização feita por alguns autores (Arocha, 1999; Losonczy,

95
No curso/oficina participaram, além dos colegas homens da época, Victoria, Milena, Maria Angola e
Diego, primeiro filho de Victoria. Ele é engenheiro de sistemas, entorno de 35 anos no momento da pesquisa,
docente de uma universidade particular em Bogotá e músico.
96
As fundadoras coincidem em afirmar que Milena colocou a necessidade de realizar estudos de pós-
graduação. Ainda assim, motivadas por ela, somente Victoria e Maria Angola fizeram o mestrado.
97
Por parte da Red de Ananse, esse trabalho é orientado por Milena – ainda que ela já não seja mais docente
universitária – junto com Martha, docente mestiza da área de Ciências Sociais da UPN e integrante da Red de
Ananse, e com uma docente afro-caribenha da área de Pedagogía Infantil da Universidad Distrital.
98
Chumbar ou fajar , segundo Maria Angola e Celina, é uma prática que consiste em cobrir o corpo do bebê
com uma faixa de tela para ajudar a lhe dar forma. Apadrinamiento é, em termos da religiosidade popular
católica, assumir um compromisso de cuidar do afilhado em caso de falta dos pais. Como consegui ver em
sala de aula com a turma de terceiro de primária da professora Maria Angola em maio de 2013, um estudante
com mais habilidade em um tema se propõe a explicar e acompanhar um colega que domina menos o tema,
até que este último possa entendê-lo.
90
2006), optei por chamar de universo mágico-religioso afro, nesse caso aprendidas num
âmbito rural para serem abordadas em sala de aula em Bogotá como exemplo de
concepções e práticas das populações afro-colombianas.
Nessa aposta, conhecer as populações afro torna-se necessário como objeto de
estudo e de ação. Assim, aparecem poetas como Candelario Obeso 99, Jorge Artel, Miguel
A. Caicedo. Irrompem gêneros musicais, cantos e danças que, como disse Celina, são do
Pacífico, Caribe e de outras culturas também100. A pedagogização e reivindicação de
outras práticas de relacionamento e de trabalho rural dessas populações, caracterizadas por
sua oralidade, suscita por parte de colegas docentes, e por parte de alguns acadêmicos, a
pergunta pelas fontes bibliográficas e autores dessa argumentação. Isso acaba por situar a
necessidade de escrever a respeito daquilo que elas caracterizam como pedagogias
ancestrales diante de outras pedagogias que, mesmo se mostrando como opções críticas,
são apontadas pelas docentes da Red de Ananse como expressão dos limites dos discursos
da academia eurocentrada ou, como aponta Carvalho, ‘euro-exclusivista’, ou seja, baseada
‘en la negación o supresión de otros centros simbólicos y otras cosmovisiones’ (2009:41).
Esse posicionamento em relação a saberes e práticas, ou àquilo que, segundo elas,
seria a própria cultura, passa, a meu ver, por uma seleção de elementos dessa cultura afro
para privilegiar uma imagem alternativa das pessoas negras contestando aquelas em que
essa população aparece subalternizada. Vale dizer que esse não é um movimento exclusivo
dessas professoras, e que entre os saberes e práticas relevados pelas próprias populações há
posicionamentos distintos. Assim, por exemplo, há elementos da ordem religiosa/espiritual
que são mais socialmente aceites como aquelas que apontam para uma relação mais
próxima e até quase ‘íntima’ com os santos de um catolicismo popular com características
afro ou um culto cristão de estilo afro-americano, como os gospels dos raizales (Arocha,
2008; 2012). Além desses, encontram-se nesse “catolicismo popular afro” as chamadas

99
Uma das viagens realizadas foi a Mompóx, município do departamento de Bolívar, na região Caribe, para
conhecer um pouco da vida daquele poeta afro-colombiano. A professora Maria Angola mantém contato com
um dos biógrafos desse poeta afro-colombiano que foi até convidado para falar na escola.
100
Celina é docente de educação artística e danças. Além disso, ensina as danças afro e a história por trás
delas por meio da dança. Nesse trabalho, conecta também as crianças e adolescentes surdos dos níveis de
primária e secundária. Esse trabalho já lhe rendeu um prêmio do Festival Artístico Educativo FAE no ano de
2010.
91
liturgias afrocolombianas e, sobretudo, os rituais funerários, até mesmo o lumbalú, em que
cantos e tambores são utilizados para a despedida do ente querido. Além disso, encontram-
se a culinária e as expressões artísticas como danças e gêneros musicais que são mais
facilmente aceitáveis no marco de Estado e de nação pluriétnica e multicultural em meio a
políticas neoliberais que as permeiam.
Contudo, há elementos que nem sempre são reivindicados e que são mais difíceis de
sê-lo no meio escolar, no meio universitário e no nível das organizações do movimento
social afro-colombiano, ainda que sejam conhecidos e até praticados por algumas pessoas.
Práticas de adivinhação, limpezas com ervas para tirar as más energias, trabalhos para
afastar as más intenções dos outros, para se proteger das ameaças à saúde ou para afastar ou
chamar a atenção de uma pessoa – que nos mesmos pueblos negros são considerados como
superstição ou até mesmo bruxaria – hoje são vistos pelas fundadoras como elementos de
resistência ao colonialismo católico espanhol. A relação das tumaqueñas desde começos da
década de 1990 com o universo espiritual afro-cubano, a meu ver, deu sustento a esse
posicionamento.
Assim, o conhecimento por meio da leitura e do envolvimento prático auxilia uma
comparação de saberes e práticas afro-cubanas com aquelas práticas espirituais afro-
colombianas que elas incluem entre os saberes ancestrales. Esses saberes espirituais
ancestrales, que em particular as tumaqueñas já reivindicavam no interior de algumas
organizações do movimento no começo da década de 1990, de uns anos pra cá passaram a
ser considerados publicamente, em uma leitura própria da experiência colonial, da
escravidão, da discriminação e da resistência. Ali, termos como bruxaria usados para
designar aquelas práticas são exemplo da persistência da colônia nas atitudes e nas
concepções das próprias populações afro, inclusive no movimento social afro-colombiano.
As religiosidades e espiritualidades afro-cubanas vistas por essas professoras como
formas de resistência espiritual e como certo legado africano lhes permitem pensar nas
similaridades e diferenças dessas práticas espirituais com aquelas da cultura própria, ambas
entendidas como sendo saberes da diáspora. Assim mesmo, ela lhes permite realizar um
posicionamento crítico a respeito do que seria a própria espiritualidade, sobretudo daquelas
práticas mais socialmente aceitas. Entre outras semelhanças com práticas menos
socialmente aceitas, elas apontam que os banhos com ervas que os egguns recomendam nas
92
missas espirituais teriam o mesmo propósito daqueles que algumas pessoas (na maioria
mulheres) nos pueblos negros realizam para livrar a pessoa de atos de ‘bruxaria’ por parte
de inimigos que travam seu avanço no trabalho ou que enfraquecem sua saúde. Outro
exemplo são as similaridades que encontram Maria Angola e Celina entre o colar de
Elegguá que Diego chamou de peonía (mencionado na introdução) e a pulseira conhecida
como azabache: ambos servem para proteger a pessoa de más energias e intenções, têm em
comum as cores preta e vermelha das contas e são entregues a pessoas “novas” em termos
espirituais (no caso da Ocha) ou etários (bebês).
Particularmente relevante me parece ser o lugar que elas constroem a partir já não
das semelhanças, mas das diferenças. Entre as diferenças, as tumaqueñas apontam a relação
com os mortos, sendo Milena quem mais frisa a diferença especialmente em relação às
práticas funerárias socialmente aceitas. Assim, segundo elas, no caso dos pueblos negros os
rituais funerários habituais são um conjunto de ações para se despedir do morto, talvez
como uma herança católica. Ao contrario, no espiritismo (cruzado), na Ocha, e sobretudo
no Palo Monte, os mortos são instados a ficar perto dos vivos, e para comparecerem
quando chamados pelos vivos. A propósito, Espirito Santo (2009) aponta o lugar social dos
defuntos em Cuba e sua importante presença na vida cotidiana como seres sociais com uma
dimensão e uma função social diferentes após a morte:

While the most troublesome spirits tend to be those who have had sudden or tragic deaths,
and thus are perhaps less likely to gracefully come to terms with their newfound status as
defunct, all spirits must be ultimately helped through the upsetting process of undoing the
attachments they had to persons, things, and ideas while alive. This is because spirits are
social beings - people - just without the material enveloping of their flesh, now rotting
underground (Espirito Santo, 2009:7-8).

Porém, Victoria e Milena apontam que em Tumaco há pessoas que tem uma relação
mais próxima com os espíritos dos mortos, conhecidos como ‘ánimas’ e que a eles pedem
ajuda, em geral para atingir um objetivo, como por exemplo ganhar na loteria,
estabelecendo aí certa relação de reciprocidade101. Além dessas práticas, elas também

101
María Victoria Uribe (2008) tem realizado uma detalhada pesquisa em municípios com presença
paramilitar em que, embora sem presença significativa de população negra, existe a prática de adoção de
mortos aos quais também se pedem favores. Losonczy (1998, 2001, 2003) também explora os cultos
populares de alguns mortos nos cemitérios de Bogotá e Medellín.
93
apontaram que existe no Pacífico aquilo que é comumente chamado de ‘bruxaria’, prática
em que se expressa o conhecimento e o poder de ação à distancia com os mortos, ou seja,
enviar um morto para que perturbe a vida de uma pessoa. Victoria me disse que isso já
aconteceu com ela, e que teria sido uma obra de familiares de seu ex-marido. Como elas
salientaram, o que acontece no Pacífico, e em Tumaco em particular, é que esses saberes e
práticas são mais Congo do que outra coisa, na medida em que se caracterizam pela relação
com as plantas, com as ervas e com os mortos102, e que talvez fossem expressão do
Muntu103, ou seja, a concepção banto do mundo como formado pelo conjunto dos vivos,
dos mortos e da natureza.
Assim, para conhecer o que elas chamam de saberes diaspóricos, foram muito
importantes as viagens físicas e mentais, as leituras sobre santería, Ocha, Palo Monte e
Vodu, a iniciação em Palo Monte e uma posterior aproximação com santeros, paleros e
houngan cubanos em Bogotá desde os anos 1990. Além disso, as viagens a congressos,
encontros, e até uma expedição pedagógica104, foram fundamentais para configurar um
posicionamento cada vez mais crítico contra o colonialismo mental, ao identificar a
presença de práticas de origem africana, que segundo elas seriam a explicação da própria
sobrevivência dessas populações apesar das desigualdades, discriminações e injustiças às
quais foram sujeitas. Nessas viagens, também foi importante identificar que em outros
países alguns intelectuais afro tinham envolvimento com a religiosidade afro ao contrário
do que acontece com as lideranças afro de seu próprio país.

102
Elas identificam esse saber Congo no que elas hoje dizem a respeito de seu Antonio, o pai delas, uma
pessoa que conhecia orações, que fazia coisas diferentes, que pendurava coisas nas arvores, e como algumas
pessoas lhes teriam dito, até tinha secredos e orações para se tornar invisível aos olhos de algumas pessoas.
103
Em situação de desaparecimento em meio ao contexto de mudança acelerada pela guerra. Ver, por
exemplo, Arocha (2002).
104
Alguns desses eventos foram realizados na Cidade do México, nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro,
no Brasil (os chamados Diálogos Afro-latinos do ano 2007), e na Venezuela. Nesse último país foi realizada
uma expedição pedagógica organizada pela Red Iberoamericana de Docentes Investigadores. Essa expedição
organizou várias rotas pelas regiões venezuelanas. As docentes da Red de Ananse embarcaram em particular
na Ruta Afro-venezolana coordenada pela Red de Organizaciones Afrovenezolanas, que percorreu
principalmente o litoral. Como conta Maria Angola, foi lá que ela teria entendido propriamente o que era a
diáspora que tinha estudado no mestrado, quando nas reuniões pessoas da Venezuela, Peru, Costa Rica e
Colômbia falavam de cerimônias funerárias de crianças. Segundo ela, até o nome dado à criança que morre
seria o mesmo: angelito (anjinho).
94
Assim, devido ao empoderamiento atingido no trabalho de dar um lugar para a CEA
nas escolas, e de certa visibilidade e legitimidade conseguida nos reconhecimentos
(prêmios) por seus projetos educativos, foi que orichas como Elegguá, Yemayá, Obatalá105
começam a fazer parte desses saberes outros, desses saberes ancestrales e diaspóricos, por
meio da introdução de alguns patakis106 deles na sala de aula, sobretudo no caso das
tumaqueñas. Mas isso não acontece em um terreno livre de tensões. Esses saberes
ancestrais, como aponta Milena, travam uma disputa política na escola, na medida em que
colocam outros referentes na construção de subjetividades diante de concepções cristãs
católicas e pentecostais. Porém, como Victoria e Milena apontam, talvez as maiores tensões
aconteçam com os outros coletivos que trabalham em relação com a CEA em Bogotá.
Alguns desses grupos e líderes afros, segundo elas, pretenderiam ter a última
palavra a respeito do que a CEA deve ser. Várias são as críticas que elas expressaram a
respeito de posicionamentos e projetos discutidos na dirección de población étnica da SED
– que nos últimos anos tem sido coordenada por uma pessoa afro, mas que é percebida pela
Red de Ananse como representando o ponto de vista da SED. Elas criticam a postura
normativa de algumas pessoas em relação à elaboração de diretrizes da CEA, sobretudo
quando não teriam qualquer envolvimento com a escola, quer dizer, quando não são
docentes, mesmo sendo pessoas incumbidas com a luta antirracismo. Como aponta
Victoria:

Porque para hablar de pedagogía y hablar de cambio en la escuela, hay que estar en la
escuela. Yo no puedo hablar de la escuela desde el escritorio, si no voy al aula. Entonces
¿cómo una funcionaria va venir a hablar de allá de un proyecto, que lo único que ella hace
es escribirlo, y el aula?

O mesmo valeria para as pessoas que são indicadas para esse cargo. Essa postura é
uma consequência do posicionamento delas em relação à necessidade dos professores

105
Na Regla de Ocha (santería), Yemayá é a mãe do mundo, deusa das águas salgadas. Suas cores são azul e
branco. Em Cuba, é sincretizada com a Virgen de Regla. Já Obatalá é o dono das cabeças (orí ou erí). Em
Cuba é sincretizado com a Virgen de las Mercedes. Tem muitos caminos ou manifestações, uma delas sendo
Oxalá.
106
Patakis, pataquies, pataquins, são relatos de estilo mítico que contam a origem de um orixá, de seu
domínio, de algumas das qualidades e interdições a ele associados, sua relação com os homens, dos quais
deriva um ‘corpus ético e moral’ (Castro Ramírez,2010:25) que se traduz no cotidiano dos praticantes.
95
serem docentes pesquisadores, sujeitos políticos que têm que construir a política educativa
e, no caso delas enquanto mulheres negras, serem docentes cimarronas.
Além disso, elas teriam criticado certa falta de coerência que estaria na base de
alguns projetos de valorização da estética afro apoiados pela SED, como Entrénzate, que,
como aponta Milena: en ese grupo muchas de esas profesoras tienen el pelo alisado. Aliás,
a falta de coerência também estaria na reivindicação dos saberes afro por parte de algumas
docentes, ao mesmo tempo em que elas seriam católicas ou algumas até não reivindicariam
nem mesmo práticas do catolicismo popular afro-colombiano. Segundo elas, essas críticas
não têm sido bem recebidas por aqueles colegas. Por sua vez, os colegas, segundo elas, não
revelam suas críticas em relação a elas. Em particular, todavia, haveria certa unidade em
relação à crítica do fato delas reivindicarem essa espiritualidade afro. Segundo Victoria,
essa seria claramente a postura de uma ex-funcionária afro da SED e atual responsável
pelos projetos relativos à população negra no Ministério da Cultura.
Enfim, os saberes ancestrales reivindicados por elas são um conjunto seleto
(escolhido) de elementos da cultura afro-colombiana e de saberes diaspóricos,
especialmente aqueles relativos à espiritualidade afro, que são levados para a sala de aula
como parte das alternativas que auxiliam o exercício docente das integrantes da Red de
Ananse. Além disso, esses saberes outros, se insurgem na instituição escolar em meio a um
movimento que busca de maneira contínua desestabilizar os pressupostos habituais a
respeito da população negra, a respeito do papel da escola, do trabalho docente, dos
vínculos da universidade com a escola, do modo de relacionamento da escola com a
sociedade em que está inserida.
Assim, esses saberes aparecem como parte de uma proposta e uma aposta política
em meio a uma disputa frente a outras opções e posicionamentos sobre a sociedade e sobre
o mundo. Então, não se trataria de uma aposta política que busca colocar a salvo da
discriminação apenas os estudantes afro, mas promover outras formas de relacionamento da
instituição educacional, de um modo geral, com a sociedade da qual fazem parte todas
aquelas pessoas que trabalham e/ou estudam na escola ou trabalham e/ou estudam em
função da instituição educacional.

96
2. No Ilé de Milena. A centralidade da espiritualidade
A ainda escassa bibliografia sobre as religiões afro-cubanas na Colômbia não
permite ter certeza a respeito da época nem das circunstâncias específicas da chegada dos
primeiros santeros, iyalochas e babalawos ao país, fato que também tem sido apontado por
Castro Ramírez (2010), um dos poucos autores que tem pesquisado o assunto. Há quem
diga que foi na década de 1980 que santeros foram contratados por narcotraficantes para
realizar alguns trabalhos. Foi o que me disse, por exemplo, o babalawo afro-colombiano
José Rivera, coincidindo com a explicação de Castro Ramírez (2010:26) e com a de alguns
dos praticantes. Mesmo assim é difícil situar uma origem certa107. Segundo alguns autores,
o que parece mais provável é que ela tenha vindo para o país na década de 1990, em meio
aos efeitos do colapso da União Soviética, seu principal parceiro comercial e político, na
economia cubana que inaugurou o conhecido ‘período especial’ que impulsionou em
grande quantidade a migração dos cubanos e com eles da santeria/Ocha (Feraudy Espino,
2005; Espirito Santo, 2009; Castro Ramírez, 2010).
Como visto, os vínculos das tumaqueñas com a espiritualidade afro-cubana
começaram com a iniciação em Palo Monte nos anos 1990, por meio do contato com
profissionais cubanos e praticantes de algumas reglas108, que teriam chegado à Colômbia
em meados dessa década. Além das leituras próprias que fizeram procurando saber mais
sobre a santería, as tumaqueñas se envolveram cada vez mais com o universo espiritual
afro-cubano. Mas foi a partir da viagem de Stokely109 a Cuba, no início dos anos 2000, para
estudar medicina, que uma série de circunstâncias foram aproximando não apenas as
tumaqueñas, mas uma parte da família e das colegas da Red de Ananse, a essa religiosidade
e essa espiritualidade diaspóricas.

107
Muitas pessoas no campo me disseram que Cali é a cidade com maior presença de praticantes da Ocha/Ifá,
tendo até um mercado de objetos religiosos. O atual marido de Victoria (cubano) foi morar lá. Ela está
esperando que seja efetivada a transferência na Secretaria de Educación de Cali para ir também. O motivo,
além de querer mudar de cidade, é um pedido de Changó, que disse que lá estaria mais tranquila e contente.
108
Entre elas: Espiritismo, Ocha (Santería) e Vodu. Esse último por meio de um descendente de haitianos da
região oriental de Cuba.
109
Segundo filho de Victoria.
97
Segundo Victoria, em uma das cerimônias de iniciação em Ocha – de um amigo110
de criação de Stokely –, conhecida como Itá111, o babalaô falou para o já quase filho-de-
santo que ele tinha um irmão negro que precisava ser iniciado também. A mãe desse garoto
chegou à conclusão que esse ‘irmão’ era Stokely. Já em Cuba, Stokely tomou a atitude de ir
aos poucos se aproximando e conhecendo esse universo, antes de tomar uma decisão. Foi
por meio desse contato que Victoria, Milena e Celina começaram a participar e se
aproximar de modo contínuo das diferentes reglas. Sessões de espiritismo (misas
espirituales) foram as primeiras das práticas em que participaram e que foram realizando
também em sua volta na Colômbia. Desde essa época Milena viaja com seus dois filhos
(Rafael e Lucas). Diego, o primeiro filho de Victoria, também começou a ir com elas.
Conforme Victoria, ainda que com certa experiência de participação em cerimônias
e de avanço em algumas etapas112 no caminho de aproximação com a Ocha, foi Diego e
não as tumaqueñas quem foi o primeiro a ser iniciado, em meados do ano 2009113, após ter
passado por uma série de circunstâncias difíceis. No aniversário de iniciação de Diego,
marcado por uma cerimônia conhecida como Ebbó, ele e Stokely visitaram um Obá114 para
saber quando o segundo poderia se iniciar. Segundo Victoria, o Obá lhes teria dito que eles
não deviam ter sido iniciados antes da mãe, mas que nesse caso – e para que ela não
morresse – Victoria teria de ser iniciada antes da cerimônia de aniversário de iniciação de
Stokely (que aconteceu em 2011).

110
Segundo ela, o amigo de seu filho não tinha irmãos. Ele foi morar com a família em Cuba. Uma série de
problemas pessoais e de incidentes que colocaram em risco sua vida fizeram com que a madrinha da mãe
desse garoto recomendasse que o menino fosse iniciado em Ocha, para ele não morrer jovem.
111
Cerimônia em que é revelado para o olocha seu passado, presente e futuro. É realizada no terceiro dia da
consagração.
112
Tanto elas quanto alguns autores apontam um processo ideal com suas etapas no caminho de envolvimento
progressivo com a Ocha e que elas preferiram seguir. A sequência seria a seguinte: recepção dos colares de
conta, recepção dos guerreiros, Mano de Orula (homens) ou Koffá de Orula (mulheres), e a iniciação
(coronación de santo). A depender da casa religiosa, do padrinho ou madrinha, e da pressa do futuro olocha,
essas cerimônias poderiam ser realizadas na mesma semana. Em cada “etapa” as pessoas vão recebendo
objetos de proteção e representações dos orichas que podem receber. Os objetos, seu tamanho, e o número de
Orichas que representam podem ir aumentando.
113
Victoria conta que, mesmo tendo Diego passado por várias práticas orientais, após a iniciação ele se
separou da esposa porque isso teria se chocado com as crenças dela: Su mujer es cristiana o no cree y es una
mujer negra; ella dice que eso es brujería, ella dice que ella no lo conoció como brujo. Ella dice que él es un
académico y que no puede ser brujo. A separação deles durou um ano.
114
Palavra iorubá que significa rei. Na regla de Ocha é um babalocha com muita experiência.

98
Além disso, Victoria conta que após ter lhe passado algumas informações, o
padrinho teria enviado também uma mensagem para Milena. Ela devia começar a vestir
roupas brancas até a iniciação, para desse jeito superar o problema de saúde que tinha. Ela
acatou a recomendação imediatamente e até ser iniciada, o que contribuiu para a
desaparição da doença. O padrinho havia dito: su hermana está sufriendo de esto, de esto y
de esto. Su hermana desde hoy tiene que ponerse de blanco para que Obatalá la acompañe
porque si no, se muere. Assim, após as iniciações de seus filhos e de ter visto que sua irmã
tinha melhorado de saúde por ter seguido a recomendação de se vestir de branco até a
iniciação (em dezembro de 2010), Victoria finalmente se iniciou em 2011.
Com experiência de ter participado de outras cerimônias e como parte de seu
crescimento espiritual, Milena realizou como Iyalocha (madrina de santo) suas primeiras
iniciações em finais de 2011. Seus afilhados incluem uma colega docente, e o professor
Wilson, um velho amigo de militância, colega da UPN e que nos últimos anos tem se
aproximado das atividades da Red de Ananse, especialmente as de tipo espiritual. Por sua
vez, Celina115 foi iniciada em meados de 2012. Em meados de 2013 foi iniciado Nilson,
filho de Wilson, e no final desse ano foi a vez de Catalina ser iniciada116.
Após a iniciação a pessoa ‘nasce’ na Ocha, a pessoa torna-se Iyabó117, e a partir dali
começa um ano conhecido como yaboraje, em que a pessoa tem que levar uma vida de
sacrifício e purificação: se alimentar utilizando exclusivamente um prato, uma caneca e
uma colher que lhe são entregues na iniciação; durante os três primeiros meses, comer
sobre uma esteira/tatame disposta no chão; vestir-se de branco o tempo todo, da cabeça aos
pés, e exibir os colares de contas; não entrar em filas; não ir a festas; não consumir álcool;
estar debaixo de um teto às seis horas da manhã e ao meio-dia, e após as seis horas da tarde

115
Em termos da Ocha, cada iniciado ou filho (Omo) tem um pai e uma mãe. Milena é Omo Ogun com
Yemayá Okunte. Já Victoria é Omo Changó com Yemayá. Wilson é Omo Ochún. Celina é Omo Changó.
116
Catalina é sobrinha das tumaqueñas. Atualmente é estudante de mestrado em ciências sociais na UPN.
Outras pessoas da Red de Ananse se encontram nos passos iniciais na Ocha. No caso de Martha, ela recebeu
colares, Obí (coco) e Eleggua, em 2009. Nesse mesmo ano, Samanta realizou médio asiento, por problemas
de saúde. Em 2010, Edilma recebeu colares e Mano de Orula. Nessa última, é recebida uma pulseira com as
cores verde e amarelo desse oricha, dono do tabuleiro de Ifá (oráculo), e a pessoa conhece o seu ‘anjo da
guarda’, que geralmente é um oricha de quem essa pessoa é filha. Yemayá no caso de Samanta, Edilma e
Juliana.
117
Iyabó, Iyawo, ou Iaô em português, na regla de Ocha é uma palavra ritual para se referir ao recém-
iniciado.
99
estar em casa; não se olhar em espelhos; seguir as interdições associadas com seu oricha;
atender seus orichas. O nascimento na Ocha implica manter uma relação de reciprocidade
entre o olocha e o oricha, entre o olocha e os egguns, em que deve haver proteção e
atenção mutua. Conforme Castro Ramírez, há uma
‘nueva subjetividad, una forma diferente de ser y estar en la cotidianidad’. (...) El asiento
supone el nascimento de um sujeto diferente. Se trata de una subjetividad que se completa
con la de los muertos, pero también con la del santo y el avatar que este tenga’ (Castro
Ramírez, 2010:67).

Assim, devido à concepção do Oricha como ancestral divinizado na Ocha, revela-se


um aspecto central que liga as religiões/espiritualidades afro-cubanas entre si, em função da
importância do culto aos mortos (Espirito Santo, 2009; Castro Ramírez, 2010). Em
particular, há uma grande comunicação entre a prática espírita e a Ocha/Ifá. Alguns patakis
expressam que existe uma relação mítica entre os egguns e os vivos. Nessa relação, como
me disse Victoria, el muerto es primero, porque el muerto es el que pare al santo. Portanto,
qualquer atividade espiritual tem que começar por atender aos egguns (Espirito Santo,
2009:27;48-49). Segundo Milena, toda cerimônia começa com rituais para os egguns,
geralmente uma misa espiritual, e em alguns casos de trabalhos para os orixás, como
oferendas de sacrifício, se realiza primeiro o que é chamado de dar conocimiento a eggun,
ou até dar de comer al muerto.
No caso das entregas de colares118 em que participei no apartamento de Milena, uma
missa espiritual era realizada para os egguns. Nelas podem participar qualquer pessoa, mas
devem ser dirigidas por uma pessoa com a capacidade de médium. Nesses casos, o objetivo
era que os egguns comunicassem para o aleyo (próximo da Ocha, mas ainda não iniciado)
aspectos de sua vida que precisavam ser resolvidos, ou mensagens de eventos futuros
favoráveis, ou até dizer se a pessoa tinha um eggun bom ou ruim que o acompanhava e
como devia atendê-lo. Para essa cerimônia o aleyo tem que escolher aqueles que serão seus
egguns entre os mortos, que não necessariamente são de sua família, desconsiderarando a
causa de morte, e que serão parte de seu cordón espiritual. Além desse eggun ou desses
egguns, outros podem ser mencionados na missa, geralmente egguns de antigos

118
Milena entregou seis colares de contas nessa sequência: Elegguá (preto e vermelho), Obatalá (branco),
Ogún (preto e verde ou azul intenso), Yemayá (azul claro e branco), Ochún (amarelo e laranja, ou duas
tonalidades de amarelo) e Changó (vermelho e branco).
100
escravizados, ciganos e até árabes, alguns dos quais também são parte do córdon espiritual
da madrinha. Essse cordón, como explica Espirito Santo no caso do espiritismo cruzado em
Cuba, não é escolhido pela pessoa: ao contrário, os espíritos fazem parte dela, estão com a
pessoa desde que ela nasce (Espirito Santo, 2009:9).
Houve algumas vezes em que o aleyo, após a missa espiritual, foi levado para um
pequeno rio em uma montanha próxima dali, para ser apresentado a Ochún e para que o
aleyo colhesse uma pedra de tamanho mediano para que fosse seu eggun119. Esse eggun na
forma de pedra deve ser atendido. É preciso que lhe seja oferecida água com açúcar, ele
deve ser alimentado, novenas devem ser feitas para ele (colocando uma vela branca durante
nove dias num copo com água alçado a cada dia) e, ao mesmo tempo, pedir-lhe saúde,
desenvolvimento, e fazer outros pedidos pontuais segundo a necessidade do aleyo.
Além disso, como bem apontam Victoria e Milena, com as misas espirituais trata-se
de desenvolver a capacidade de ser médium, ainda que, como conta Victoria, ela tenha
nascido para ser espírita, e assim lhe teriam dito na iniciação. Assim, esse ‘caráter
espontâneo do dom’ é um aspecto da condição de médium em um dado cosmos religioso,
como aponta Espirito Santo (2009:79-80). Embora não seja preciso ser ‘iniciado’ em
espiritismo, nem ter uma experiência anterior – como elas dizem, não se precisa nada além
de nascer para poder ser espirita –, é preciso sim se envolver em um processo de
aprendizado experiencial para identificar quando está falando o eggun e quando o próprio
ego, inclusive para controlar as manifestações dos egguns quando o médium não esteja
disposto a sê-lo, assim como para ponerlos a trabajar. Esse processo apresenta paralelos
com as características do desarrollo de los muertos no espiritismo cubano estudado por
Espirito Santo (2009), porque se trata do mesmo tipo de espiritismo: o espiritismo cruzado.
Assim, esse tipo de espiritismo faz um cruzamento, uma mistura, que sincretiza as
forças dos egguns e dos participantes em meio a uma ‘celebração da diversidade
cosmológica’ e a um encontro de diferentes tradições religiosas, no qual participam, junto a

119
Segundo o babalawo Rafael (filho de Milena, entorno de 21 anos no momento da pesquisa) um pataki diz
que os espíritos dos mortos sobem ao céu e descem na forma de chuva, e quando caem na terra viram pedras.
Além disso, esse pataki explica por que, como disse Milena, os santeros evitam se molhar na chuva e
protegem sua cabeça. Esse pataki foi recolhido, entre outros, por Fernandez Robaina (2008).
101
santos católicos, espíritos do passado cubano e do passado local, no caso colombiano, além
de orichas do panteão iorubá e outras figuras de culto. Como aponta Espirito Santo:

Espiritismo cruzado, with which I will be concerned for the remainder of this thesis, is just
this: “crossed”, mixed, syncretic, and more importantly, subject to the power of the muertos,
the participants, and their respective crosses. From references to Catholic saints, and the use
of holy water, candles and prayers, to the Afro-Cuban gods of the Yoruba pantheon – the
orichas – and the spirits who come from a Cuban past with such tales, wise advice, and
musical chants, misas espirituales are the outcome of the cultural and historical multiplicity
of the spirits and the people that mobilize its knowledge (Espirito Santo, 2009:16).

Como Victoria, Milena, e vários autores afirmam (Feraudy Espino, 2005; Fernandez
Robaina, 2008; Espirito Santo, 2009; Castro Ramírez, 2010), em geral as pessoas são
iniciadas em Ocha por problemas de saúde que não são resolvidos pela medicina
convencional, ante um perigo de morte associado a bruxaria, para resolver um problema
pontual ou por chamado de algum oricha. Nesse último caso, mais cedo ou mais tarde a
pessoa acaba chegando na Ocha, enquanto nos outros casos, até nos mais complicados, é a
pessoa que decide quando se iniciar; dai essa conjugação verbal. Assim, apesar dos custos
que a viagem implica e os derechos que são pagos pelo iniciado, muitas pessoas preferem ir
a Cuba. Outra razão tem a ver com a confiança, a idoneidade e o número de babalawos em
Bogotá, e os elementos ainda insuficientes para essas cerimônias. Como afirma Castro
Ramírez (2010:68), entre esses elementos faltam os tambores que devem estar presentes
nas cerimônias de iniciação (asiento). Ele se refere aos tambores batá, também conhecidos
como tambores de fundamento, ou añá, que são três: o maior chamado de Iyá (mãe), o
mediano Itótele e o menor Okónkolo.
No caso dos filhos de Milena, como ela conta, devido às circunstancias que
contribuíram para o nascimento de seu primeiro filho (Rafael), do fato de seu segundo filho
(Lucas) ter nascido em uma família religiosa, e por terem participado desde crianças em
muitas cerimônias, era normal que eles rapidamente atingissem um alto nível na hierarquia
espiritual. Como foi confirmado na cerimônia de recebimento da Mano de Orula, os
signos120 falaram para eles serem iniciados em Ifá, como sacerdotes do oráculo que é

120
Odduns ou signos são os códigos por meio do quais falam os orichas na consulta com o babalawo.
Segundo Milena, Orula es el único oricha que no se corona, quer dizer, que não é asentado na cabeça (orí) do
iniciado.
102
domínio de Orula. Na cerimônia de iniciação em Ifá não podem estar mulheres, a não ser as
mães ou esposas dos iniciados que, por participarem de muitas das cerimônias que fazem
parte desse processo, adquirem o nível de Iyanifa, literalmente ‘esposa de Ifá’, esposa do
sacerdote de Ifá ou Apetebi de Orula, auxiliar de Orula ou do babalawo. Para ela é como
atingir o nível de doutorado, embora na Ocha/Ifá o estudo e o aprendizado nunca acabam.
Desde então, ainda que Milena saiba realizar algumas cerimônias, quando estão
presentes são os babalawos da casa que dirigem as principais cerimônias. Ainda que ela
saiba consultar com obí (coco) e com o dilogun (cauris, conchas de caracóis), são seus
filhos que realizam as consultas ou registros no tabuleiro de Ifá ou Ékuele121. Como
Apetebi de Orula, ela acompanha várias das cerimônias que eles dirigem, mas não pode
estar presente em muitas delas, pelo segredo associado ao círculo de babalawos, espaço
marcadamente masculino. Ainda assim, como ela afirma, as mulheres na Ocha/Ifá são
muito valorizadas, seus saberes são validados e as cerimônias contam com a presença de
uma mulher que, com seu saber, contribui com o ritual, e sem a qual não se poderiam
realizar muitas cerimônias.
Os objetos que a pessoa recebe em cada etapa do processo que leva a iniciação em
Ocha devem receber lugares dentro da casa. No caso do apartamento de Milena, esses
objetos rituais se juntam às peças de madeira com figuras africanas que ela prefere para
decorar as paredes porque são mais parecidas com a gente. No caso do Oricha Elegguá,
ele sempre deve ficar ao lado da porta principal da casa ou apartamento. Em 2009, quando
comecei a aproximação com Milena e com a Red de Ananse, eu somente identificava
Elegguá e algumas imagens e objetos próximos dele, entre eles Obi, os colares de contas
pretas e vermelhas e umas pedras. Nos dias em que eram realizadas misas espirituales, um
altar com a bóveda espiritual122 era montado na mesma sala.

121
Registro é o procedimento de consulta ante o babalawo. Ékuele é o cordão composto por 8 pedaços de
concha de tartaruga ou de outros materiais que é utilizada para o procedimento de consulta. Ela é distintos
momentos é lançada sobre o tabuleiro de Ifá e conforme a posição são lidos os oduns.
122
A bóveda espiritual é um altar no espiritismo que é a conexão entre o espírita e seu cordón espiritual. Sua
função é proteger o espírita e ajudá-lo a resolver suas dificuldades. Nela são colocados copos ou taças com
água fresca para cada eggun do espírita. Fotos e representações dos egguns não podem faltar. Nas missas o
espírita deve estar vestido de branco e com a cabeça coberta, fornecendo água fresca, ervas, fumo de charuto,
cantos espíritas, entre outros. As missas são as atividades mais comuns de comunicação entre os espíritas e
praticantes de Ocha/Ifá, porque podem ser realizadas sempre que seja necessário e com maior frequência que
outras cerimônias. Isso deriva da ideia de desenvolver o morto e se desenvolver como médium. Além disso,
103
Já em 20013, durante a pesquisa de campo, os espaços rituais estavam bem
diferenciados entre orichas e egguns. Assim, na sala encontravam-se os orichas de Milena
e as representações de Orula de cada babalawo. Mas a maior parte do espaço era ocupada
por orichas masculinos como os vários Elegguá próximos à porta e Ogún e os receptáculos
de Orula. Também havia os orichas femininos (Yemayá, Ochún, Yansá) em uma estante
que fica no início do pequeno corredor que leva aos quartos, seguindo em linha reta a partir
da porta de entrada ao apartamento. Já seguindo o lado direito da porta encontra-se, perto
da cozinha, a bóveda espiritual, num pequeno cômodo que em 2009 era uma habitação e
hoje é uma pequena sala de estudo, onde também fica a biblioteca.
Nesse cômodo foram realizadas as misas espirituales. Perguntada pela mudança
espacial, após notar que nessas cerimônias as pessoas deviam tirar os colares, Milena me
disse que era para que os egunns conseguissem chegar, coisa que não poderia acontecer
caso as pessoas permanecessem com os colares no pescoço. Outro espaço que segue essa
lógica de separação é um pequeníssimo quintal onde são alimentados os egguns em um
“altar” simples (um marco de madeira sem mais nada, apoiado em um tijolo). Nesse mesmo
espaço encontra-se a nganga123. Assim, orichas, egguns e prenda/nganga, ainda que no
mesmo apartamento, estão separados. Nesses espaços, são realizadas cerimônias diferentes,
ainda que entre elas possa haver alguma relação, mas como aponta Dos Anjos (2008), em
rituais, momentos e tempos diferentes.
Essa mudança e divisão de espaços, a meu ver, expressam o envolvimento, a
experiência acumulada e o aprendizado na Ocha/Ifá adquiridos por Milena e seus filhos na
prática espiritual. Mesmo que expressa na decoração cada vez mais visibilizada, existe uma

como Milena afirma, é bom que os Egguns contem para os vivos as coisas ruins que poderiam acontecer para
fazer algo antes de ele vierem a acontecer. Aliás, ela disse que a Ocha é uma religião da prevenção. A
diferença dos Orichas ou da consulta com o Babalawo (a cada seis meses), os Egguns podem ser solicitados a
qualquer momento. Pude ver uma bóveda espiritual nos apartamentos de Milena, Victoria e Celina. Maria
Angola, que não é iniciada e não é espirita, comparece a algumas missas. Ela se tornou devota de São Lázaro
(Babalú Ayé), depois de uma experiência mística em que ele se apresentou a ela e lhe ajudou a se curar de
uma doença de pele hereditária. Assim, Maria Angola atende seu São Lázaro, que está em uma pintura na sala
do apartamento, fazendo oferendas de agua, álcool, charuto etc.
123
A Nganga, como aponta Espirito Santo, tem sido descrita como o recipente onde o morto, o nfumbe ou o
perro nganga reside. Esse é um espírito com o qual o Palero fez um pacto e que deve, portanto obedece-lo.
Além disso, as nganga seriam mundos em miniatura, modelos do cosmos e de seus elementos naturais, onde
os paleros agem como criadores e animadores de um microuniverso (Espirito Santo, 2009:27-29; tradução
livre do inglês).
104
estética espiritual afro que não é fácil de perceber em toda sua dimensão de uma vez só, e
que supõe um alto grau de detalhamento e conhecimento para sua elaboração e disposição
nos lugares da casa. Tudo isso implica também certo treinamento do olhar dos praticantes e
do pesquisador para que se possa perceber a grande quantidade de detalhes
religiosos/espirituais por trás das formas, cores e materiais utilizados, além de princípios e
saberes presentes nos procedimentos rituais. Essa estética espiritual afro é cada vez mais
visível, não somente pelo fato do maior número de objetos integrados no quadro a cada
ano, mas pela atitude atrelada a esse processo de envolvimento espiritual/religioso no
caminho da Ocha/Ifá. Assim, a casa de Milena torna-se um Ilé por ser o lugar principal em
que é realizada a atividade ritual em que participam não apenas os afilhados de Milena mas
a maioria dos integrantes da Red de Ananse124.
Como visto, nesse apartamento, sempre que possível, são realizadas reuniões de
trabalho da Red de Ananse. Além disso, há festas, sessões de estudo, reuniões com aliados
de sindicatos de docentes da rede pública ou da UPN, circulação de artistas e militantes
afro, o que faz com que esse lugar seja o lugar dos cruzamentos da política, da pesquisa e
da espiritualidade afro125. A partir dali a Red de Ananse coloca em cena suas reflexões,
propostas e ações, nas quais é dada à espiritualidade afro cada vez mais centralidade, a
partir da qual é feita uma releitura da experiência colonial, da própria cultura afro e das

124
Vale dizer que na pessoa de Milena encontram-se não apenas as características de líder político-social,
militante afro, mas também espiritual. Nela encontram-se também a explicação espírita da missão do espírito
reencarnado, um dos pataki associado ao arquétipo de Yemayá (sua oricha mãe) e um jeito de “mãe coruja”
que faz com que ela sempre tenha por perto muitos “filhos” afros e mestizos. Como ela me disse em 2009,
disseram a ela em Cuba que ela teria abandonado em outra vida muitos de seus filhos. Coincidentemente, ela
é filha de Yemayá, figura da maternidade, mãe abnegada, protetora. Além disso, ao falar com Edilma a esse
respeito em 2013, nos demos conta que os afilhados e afilhadas de Milena, de uma ou outra forma, não foram
criados por suas mães biológicas, seja porque foram abandonados ou porque elas morreram. De fato, como
afirma Victoria, é Milena quem têm afilhados e quem leva uma atividade espiritual constante e dedicada.
Entre seus afilhados na Ocha encontram-se a maioria de jovens da Red de Ananse (Edilma, Juliana, Catalina,
Samanta, Ana), além do professor Wilson, do filho de Wilson, de um funcionário da prefeitura, parentes,
colegas da UPN, colegas docentes, entre outros. Parentes da família (alguns irmãos e algumas sobrinhas)
recorrem a ela ou, recentemente, aos babalawos.
125
Algumas das reuniões no apartamento de Milena, que acompanhei durante a pesquisa, coincidiram com os
ensaios de um grupo de música espiritual recentemente criado. O grupo é formado por Diego, primeiro
vocalista, percussionista principal e diretor, Rafael, que toca o cajón, Nilson, Lucas e Catalina, que alternam o
toque do chekeré e a clave. Diego é conhecido no meio artístico local como grande percussionista e como
diretor do já extinto Grupo Kilombo, que tocava música do Pacífico.
105
práticas da militância, como reivindicação de um saber legítimo, como filosofia de vida e
como tema de pesquisa.
A partir desse envolvimento com a Ocha, em 2010 foi realizado o primeiro
seminário sobre a ‘Espiritualidad como forma de resistencia política y cultural del pueblo
afrocolombiano’, coordenado pela Red de Ananse e para o qual foram convidados
sacerdotes vodu, iyalochas afro-cubanos e alguns pesquisadores afro-colombianos. Como
desdobramento desse evento, conformou-se um grupo de estudo e diálogo para pensar a
espiritualidade afro como elemento para a resistência das populações tanto diaspóricas
quanto afro-colombianas. O intuito desse evento e do projeto de encontro internacional que
a Red de Ananse pensou em realizar em 2013, além de conhecer experiências de vínculos
entre praticas religiosas/espirituais e problemas sociais das populações negras da América
Latina, era estabelecer um diálogo com esses saberes espirituais afro-diaspóricos vistos
como formas de resistência dessas populações em meio a condições de desigualdade,
racismo e discriminação, em um contexto de guerra como o colombiano, especialmente nos
pueblos negros.
Aliás, segundo afirma Milena, busca-se interpelar tanto a população negra em geral
quanto o movimento social afro-colombiano em particular, com aquelas que seriam
alternativas de ação para atingir objetivos políticos e com uma revitalização das
espiritualidades próprias do Pacífico e alhures, especificamente daquelas socialmente
menos aceitas. Como modelo ético, baseando-se em uma eticidade das práticas e das
relações cotidianas com o mundo e com as pessoas, ou seja, pensada a partir da concepção
da natureza como moradia dos ancestrais e dos orichas, o que implica uma relação baseada
em uma codificação espiritual/religiosa dos domínios destes (água doce, água salgada,
mato, ar, etc.), assim como uma espécie de ética do cuidado nas relações com os outros.
Isso contribuiria para a melhoria das relações entre organizações e para impulsionar
processos de unidade do movimento social afro-colombiano. Assim, busca-se interpelar os
próprios afros, os saberes e as práticas espirituais.
Além disso, essas iniciativas procuram colocar a religiosidade/espiritualidade afro
como uma via para conhecer e explorar as relações com a diáspora afro-latina. Ao mesmo
tempo, buscam apontar a religiosidade/espiritualidade afro como assunto de um
posicionamento de outros saberes no meio educacional, universitário e escolar, como via de
106
questionamento de cegueiras e de limites de posicionamentos teóricos. Essas barreiras
incluem as posições daqueles que, “bem intencionados”, propõem um ‘diálogo de saberes’
no qual a universidade se abre aos saberes outros, mas conservando uma posição de poder
que lhes é favorável e sem produzir mudança nas hierarquias implícitas.
Por outro lado, com essas atividades de visibilização de uma ética-política-
espiritual, busca-se fazer um posicionamento a respeito do que seria o campo da Ocha/Ifá
em Bogotá. Esse campo está conformado por iyalochas e babalawos cubanos e
colombianos, que ao redor de pelo menos duas concepções sobre as práticas, saberes e
segredos, conhecidas como líneas, reproduziriam na Colômbia antigas tensões. Por um
lado, encontra-se a línea conhecida como ilé tun tun, que é disposta a uma abertura ao
diálogo e à inovação na prática. Por outro lado, encontra-se a línea ilé ifé, que seria mais
“tradicionalista”, preocupada com que sejam respeitados os intervalos entre uma cerimônia
e outras, entre uma etapa e outra no caminho da Ocha/Ifá. A essa última pertence o grupo
de olochas da Red de Ananse. Além dessas, existiria uma linha colombiana, que se
posiciona a favor de uma adaptação da Ocha/Ifá a partir da realidade social e ambiental do
país, e de uma projeção pública desse saber e dessa prática126.
Em meio a esse horizonte, Milena aponta que é preciso tirar línea sobre el asunto,
porque acá cada día hay más religiosos, pero miran la religión desde el ebbó (ação
mágica). Nesse sentido, especialmente em relação ao Ifá, ela considera que é necessário dar
visibilidade aos outros componentes desse saber, pensado como uma filosofia sobre o
mundo e a vida, que também contempla um sistema divinatório e práticas mágicas. Além
disso, Milena critica a comercialização da Ocha/Ifá em Bogotá, e o interesse de algumas
pessoas mais em fazer dinheiro do que levar a sério os procedimentos rituais. Em particular,
Milena critica aquilo que ela identifica como uma tendência mestizante que estaria presente
na línea colombiana. Nesse sentido, ela coloca a necessidade da formação de um grupo de
estudo de produção de saber com os olochas, iyalochas e babalawos próximos ao redor da
Ocha/Ifá entendida como filosofia de vida, como referência de uma ética, e como uma

126
Apesar disso, como aponta Castro Ramírez, em geral a santeria/Ocha é uma prática que tem um caráter
secreto, embora haja uma oferta de trabalhos em sites e em folhas de propaganda em algumas ruas da cidade.
107
forma de resistência das pessoas negras, embora não fechada à prática por parte de pessoas
não-negras, mas que seja colocado de início a origem africana da Ocha/Ifá.
Nesse ponto, a centralidade dada à religiosidade/espiritualidade afro, não apenas
afro-cubana, coloca os elementos de uma aposta ética para interpelar o campo educacional
(escola e universidade), o campo afro-colombiano, e o campo da Ocha/Ifá. Tentando
resumir o raciocínio de Milena127, pode-se dizer que: é preciso estudar porque, além de ter
clareza a respeito da própria filosofia de vida que é a Ocha/Ifá, estudar dá aché128; há que
se ser bom no que se faz (seja docência, militância, prática espiritual, etc.); a espiritualidade
afro tem que ser posta a serviço das pessoas, sobretudo das pessoas que mais precisam; ser
solidários com as pessoas e cuidar dos outros, o que inclui a natureza, ela é morada dos
orichas, assim como a pessoa é natureza; levar em conta os saberes ancestrales, as pessoas
mais novas e as pessoas mais velhas. Assim, a espiritualidade aparece como fundamento de
uma resistência em variados âmbitos.
A partir dali, há um investimento na conceptualização da escola como espaço de
resistência. O interessante é que não há um modelo para a construção dessa escola.
Justamente é o caso de os docentes, estudantes e diretores, também enquanto sujeitos
assumidamente políticos, participem da construção da política escolar de acordo com as
necessidades, características e desejos dos que nelas confluem. Isso ocorre claramente em
meio a marcos e exigências externas próprias do âmbito social em que está inserida a
escola: a rede pública, a política educacional da secretaria de educação, do ministério ou do
governo do momento. Nesse sentido, as “soluções” e as saídas que possam ser “bem
sucedidas” – sempre contingentes – têm que atentar justamente para as contingências da
dinâmica social, em que brechas podem ser abertas e exploradas.
Por outro lado, como já foi salientado, uma reivindicação de uma espiritualidade
afro nos termos expressos pela Red de Ananse não faz parte da agenda do movimento
social afro-colombiano. Segundo a bibliografia existente, e segundo os praticantes que ouvi
durante a pesquisa de campo – que são pessoas vinculadas ao movimento social afro-

127
Vale dizer que Milena tem um interesse em conhecer, aprender e pesquisar sobre o assunto da criação e
formação das crianças em âmbitos religiosos. Daí o interesse dela em conhecer bibliografia produzida no
Brasil a esse respeito.
128
Aché, axé, é a força criadora do universo, presente em todas as coisas existentes.
108
colombiano –, embora os vínculos que algumas pessoas do movimento possam ter com
santeros, iyalochas, babalochas e até babalawos, os “usuários” de santeria/Ocha em
Bogotá são em sua maioria mestizos. A mesma coisa acontece com os praticantes e
iniciados, maioritariamente mestizos. Aliás, os vínculos como consultantes que algumas
pessoas do movimento afro-colombiano possam ter com essas práticas, não querem dizer
que o movimento em conjunto tenha vínculos com aquelas ou até mesmo que exista uma
reivindicação das mesmas para dentro do movimento, ao menos publicamente. Assim como
também não me parece que se possa dizer que seja “uma prática dos afro-colombianos em
Bogotá” como afirma Velasco Olarte (2003:75). Em todo caso, sem desconhecer os
vínculos que pessoas do movimento possam ter com algumas práticas espirituais afro, o
que é singular na Red de Ananse é justamente a reivindicação pública dessas práticas.
Considero que essas diferenças e distâncias só reforçam a ideia, aqui defendida, de
que não há como se falar em movimento social afro-colombiano como sendo um só. Como
visto, há uma multiplicidade organizativa, de projetos e de formas de atuar até mesmo em
relação ao combate ao racismo e à discriminação racial, que são justamente os temas de
confluência, embora outros assuntos considerados relevantes, segundo as contingências,
consigam mobilizar projetos existenciais coletivos. Essa multiplicidade expressa a própria
diversidade da população negra, que os termos negro, afro-colombiano, raizal e palenquero
tentam de alguma forma exprimir, e que constitui para o pesquisador um desafio a ser
documentado, como bem convidam a fazê-lo Bastide (1969) e Hall (1992).
Enfim, o percurso feito até agora com base na experiência vital das integrantes da
Red de Ananse, que buscava traçar os fios que esse grupo tece em e com variados e
distintos âmbitos, campos, movimentos, redes, seres e pessoas, permite afirmar que na
prática e no discurso esse grupo contesta a ideia de Estado multicultural (que confinou a
diversidade ao cultural e ao folclórico) e, sobretudo, questiona a nação colombiana, com
suas imagens sempre ambíguas de unidade e discursos concomitantes de igualdade
(mestizos) e diversidade (Wade, 2002). Como visto esse questionamento deriva de um
posicionamento militante em função de um movimento de politização da vida, em que a
vida é o centro da política. Ou seja, o ser, como disse Milena, é o centro da questão, é
centro das preocupações e dos investimentos enquanto mulheres negras.

109
O foco é a vida e é dali que deriva, como uma consequência, a politização da escola,
da religiosidade/espiritualidade, e mesmo do movimento social afro-colombiano, pois como
nos lembra Flórez-Florez (2004:223), não há algo em si que possa ser assumido como “o
politico”: esse não é um dado, mas uma construção. Nesse sentido, posicionamentos
políticos com base na reivindicação de uma identidade de gênero racializada, e
especialmente na centralidade dada à espiritualidade afro, e em certa ideia de familiaridade
espiritual, desestabilizam as habituais fronteiras construídas ao redor das dimensões do
social em política/cultura, política/religião, público/privado, além das formas consideradas
legítimas ou não pelo Estado para fazer a política.
Da mesma forma, esses posicionamentos colocam em questão as visões sobre os
espaços e lugares sociais que no senso comum estão separados e inseridos em relações
hierárquicas: escola e universidade; estudante, docente de escola e professor universitário;
docente e pesquisador. Esse deslocamento das fronteiras e das questões revela o papel da
escola como produtora de políticas na medida em que contribui para a formação de
subjetividades. Com base na escola é repensado também o papel do docente, da instituição
escolar e dos vínculos com a universidade, já que todos participam de alguma forma na
reprodução e atualizam relações que expressam uma colonialidade do poder, do ser e do
saber, nos termos de Quijano (2000).
Assim, os saberes ancestrales e diaspóricos, dos quais os saberes ancestrales
espirituales são uma parte, são colocados como uma alternativa para pensar outras formas
de relacionamento interculturais. Eles são mobilizados também para pensar outras
conexões, outros vínculos e outros projetos existenciais que contemplem outros seres
(ancestrais, egguns, orichas, natureza).

110
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tentar traçar a trajetória da Red de Ananse, assim como os percursos das mulheres
que hoje são suas integrantes e que a formam, foi um desafio em vários sentidos. Primeiro,
porque entender essas trajetórias e percursos, que necessariamente implicam movimento,
era fundamental não apenas para desestabilizar a forma endurecida com a qual comumente
são percebidos os movimentos sociais, mas para compreender quais são as relações atuais
da Red de Ananse, para compreender quais os lugares construídos como os seus lugares de
luta e como esses lugares são politizados, significados e pedagogizados.
Assim, isso fez com que eu privilegiasse, nesse exercício, um formato descritivo
mais do que uma complexa elaboração analítica baseada nos diferentes aportes que, na
antropologia, tratam várias das questões abordadas nessa dissertação. A descrição, claro, é
ela mesma um exercício analítico de selecionar, hierarquizar e organizar as experiências de
campo em um texto que inevitavelmente tem algo de ficcional. Contudo, os limites dessa
dissertação não obedecem somente ao fato dela ser um trabalho de pesquisa e escrita em
andamento e um exercício de me aproximar da antropologia, área na qual não sou formado
na graduação. Os limites e a quantidade de elementos descritivos que tentei reunir no texto
têm a ver, também, com a forma pela qual me aproximei do campo de pesquisa, tanto
quanto com minha proximidade emocional e espiritual com a Red de Ananse.
Essa proximidade foi, ao mesmo tempo, um desafio e um convite para que a
reconstrução que realizo no texto fosse útil e interessante para a própria Red, mas também
para que eu mesmo pensasse e repensasse as implicações do meu exercício acadêmico, meu
lugar como pesquisador, e o lugar de enunciação que é o programa para o qual eu apresento
essa dissertação de mestrado.
Assim, tentei organizar cada um dos três capítulos em torno de um eixo que
estabeleci a partir da experiência de campo e da informação que foi se construindo com a
pesquisa. No primeiro capítulo, foi necessário mostrar as diferentes experiências históricas,
sociais e políticas da chamada população afro-colombiana. Isso foi feito no intuito de
evidenciar as diversas experiências organizativas que corriqueiramente são chamadas de
“movimento social afro-colombiano”. Busquei privilegiar dessa forma a ideia mesma de
111
movimento e, por vezes, de contradição, justamente como motor das ações dos diversos
sujeitos — individuais e coletivos — que são vistos e assumidos como sendo esse
movimento social afro-colombiano.
Ainda no primeiro capítulo, tracei alguns dos vínculos das fundadoras da Red de
Ananse com esse movimento social, identificando aspectos, espaços sociais e
epistemológicos de coincidência ou discordância, bem como as contingências particulares
das fundadoras que as levaram a se aproximar da religiosidade afro-cubana. Religiosidade
que, como prática espiritual, se tornaria elemento fundamental de sua luta política e
antirracismo.
O segundo capítulo foi dedicado à experiência vital das mulheres que, na
dissertação, são chamadas de fundadoras da Red de Ananse. Isso porque a reivindicação de
uma existência diferenciada em termos étnicos e raciais aparece como um motivo e uma
característica de seu posicionamento político e de suas práticas. Existência que guarda
estreita relação tanto com a forma em que foram vividos os territórios de origem, quanto
com as viagens e as experiências que marcaram seus deslocamentos para Bogotá. Busquei
mostrar como essa experiência vital é uma fonte de reflexão sobre suas práticas como
docentes, ativistas, mães, pesquisadoras e, sobretudo, como mulheres negras ou afro.
Com o intuito de mostrar como as fundadoras foram, aos poucos, construindo esse
posicionamento político como um espaço existencial, descrevi as tensões e contradições
que foram decantando os posicionamentos e as reflexões da Red de Ananse com
características próprias que, por vezes, a reuniram a outros grupos e movimentos e, por
vezes, a afastaram. Nesses movimentos e reconfigurações não só estão em jogo as
definições políticas ou identitárias dos grupos, como entram em disputa o poder de
incidência em espaços gremiais, na escola, no movimento social e em vários âmbitos de
construção de políticas públicas para a população negra/afro-colombiana.
Dessa forma, a reflexão centrou-se na experiência vital e no posicionamento político
das fundadoras que, deparando-se com críticas e tensões em um campo de interesses,
conseguiram encontrar respostas criativas de caráter sempre coletivo e sempre contingente.
O segundo capítulo, portanto, descreve também algumas dessas soluções criativas,
retraçando as rotas de viagens físicas e mentais que confluíram no nascimento da Red de
Ananse: Taller Infantil Nuestra Cultura, Expedición Pedagógica Nacional, Expedición
112
Pedagógica Nacional Ruta Afro. Por meio do acompanhamento desse percurso, o capítulo
documentou não apenas a participação feminina no nascimento do movimento social afro-
colombiano, mas a construção de um ponto de vista sobre a luta das pessoas negras/afro-
colombianas, e as estratégias de combate ao racismo na capital do país a partir dos
posicionamentos de mulheres negras muito singulares.
No capítulo final, me ocupei do vínculo entre elementos da chamada cultura afro e
os saberes ancestrales, notadamente os espirituais, identificando ao mesmo tempo um
segundo nível de conexão, que fala do encontro dessa espiritualidade com a escola como
lugar de significância e poder político. Mostrei como as reflexões sobre escola, docência e
pesquisa estão baseadas em um complexo movimento intelectual, existencial e espacial.
Nesse movimento foram reunidos vários elementos que corriqueiramente não são
concebidos como parte da ação e das práticas políticas e acadêmicas. Dessa forma,
madrinazgos, cuidados corporais e espirituais, saberes rurais, práticas de intervenção sobre
o destino e o apelo aos mortos para ajudar aos vivos aparecem como elementos
fundamentais da luta política antirracismo e da disputa pela concepção e reprodução das
imagens de nação.
Finalmente, devo reconhecer que a complexidade da reconstrução que a presente
descrição implicou deixou mais perguntas do que respostas definitivas. Vários e variados
temas caros à antropologia foram aparecendo e sendo apontados na dissertação. Interessou-
me, notadamente, refletir sobre o caráter ficcional das fronteiras que separam as práticas
religiosas daquelas consideradas políticas, assim como aquelas que dividem o universo
público-político e os universos domésticos. Afinal, com o caso da Red de Ananse, vimos
que muitas vezes são nestes que se constroem soluções, formatos, ações e ideias que são
políticos e que só podem sê-lo porque engendrados nas práticas cotidianas de mulheres
negras em Bogotá e seus percursos particulares.
Acompanhando essa reflexão, que acabou ficando transversal ao texto, eu gostaria
de continuar indagando pela particularidade da experiência religiosa afro-cubana das
fundadoras da Red, seja no que diz respeito à relação dos vivos com os mortos, quanto ao
estatuto que esses últimos têm na vida social. Essa espiritualidade, tomada enquanto
prática, implica também uma série de questões que vão desde a adaptação ao contexto
colombiano das práticas espirituais – tornando necessário encontrar materiais para as
113
oferendas e os colares, plantas para os trabalhos e espaços para os rituais – até a elaboração
de explicações sobre as conexões espirituais, que, no caso, é ao mesmo tempo afro e
relacionada com a experiência diaspórica.
Finalmente, além dos elementos elencados, gostaria de indagar, em minha futura
pesquisa para o Doutorado, a respeito das caraterísticas da participação de pessoas negras e
não negras nesse tipo de práticas espirituais. Em especial, pesquisar os possíveis vínculos
de outras pessoas do chamado movimento social afro-colombiano, vínculos que podem,
talvez, já estar dinamizando e transformando as relações e as ideias sobre o lugar dessa
espiritualidade na vida do movimento e das pessoas negras em geral. Porque afinal, e ainda
que, como salientei, haja pouca participação dos ativistas afro-colombianos nas religiões de
matriz africana, não podemos esquecer que as práticas afro-cubanas em Bogotá, tal qual
afirmadas pela Red de Ananse, são relativamente recentes, e que ainda é cedo para prever
suas repercussões nas práticas espirituais afro-colombianas como um todo e no movimento
social afro-colombiano em particular.

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125
Apêndice I
REGIÕES DO PAÍS E LOCALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO
NEGRA/AFRO-COLOMBIANA

A Colômbia está dividida em cinco grandes regiões: a região Pacífico; a região


Caribe; a região Andina; a região da Orinoquia; a região da Amazônia. Essas divisões são
realizadas a partir de características heterogêneas em torno do revelo, tipos de solos,
vegetação e clima [ver apêndice mapas].
A região Pacífico, também conhecida como Chocó biogeográfico129, é composta por
planícies aluviais, grandes bacias hidrográficas, manguezais, estuários e montes; trata-se de
uma grande planície, limitada ao norte pela fronteira com o Panamá e ao sul com o
Equador; a oeste pelo oceano Pacífico e a leste pela cordilheira ocidental. Nela há uma
grande biodiversidade, assim como uma grande pluviosidade anual. Desde começos da
década de 1980, foi objeto de crescente interesse por parte de madeireiras e mineradoras
multinacionais (especialmente no departamento de Chocó), ao mesmo tempo em que foi
incluída no discurso estatal sobre a proteção da diversidade ambiental e na pauta do
discurso ambiental de organismos multilaterais (Grueso et al, 2000; Gracia, 2013). Além
disso, essa região concentra o maior número de hectares dos territórios coletivos titulados
para a população negra no marco da lei 70 de 1993 (Conpes, 3660130; Gracia, op. Cit.).
A região Caribe em geral também é composta por planícies, percorrida por rios
(Magdalena, Cauca, San Jorge, Sinú), ainda que conte com importantes elevações (sendo a
maior a Sierra Nevada de Santa Marta) e uma variedade de climas. O mar Caribe abrange
grande parte da paisagem da região, e para ele confluem rios, riachos, lagoas e extensas
áreas úmidas (Maya, 2000:254). É comum que nessa região sejam incluídos territórios

129
O Chocó biogeográfico é ‘un corredor natural neo-tropical que inicia sus límites de norte a sur así: desde la
provincia de Darién al este de Panamá, cruzando por todo el occidente Colombiano hasta el noroeste del
Ecuador y termina en el extremo norte del Perú. Y en sentido occidente a oriente, comprende desde, la Costa
Pacífica hasta la cordillera occidental, lo que significa que este corredor cruza por el litoral pacífico de cuatro
países y en algunos se adentra hasta valles, vertientes o incluso hasta el litoral Caribe’ (Botero Chica, 2010,
apud Wabgou et al, 2013).
130
Entre os anos 1996-2008 foram entregues 160 títulos coletivos que equivalem a 5.242.264 de hectares,
segundo o documento Conpes 3660/2010. Segundo Gracia (2013), com base em informação do Instituto
Colombiano de Terras (Incoder), a quantidade de terras tituladas até 2012 são quase seis milhões de hectares.
126
insulares no Caribe, como o arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina; esta
área insular se caracteriza por uma vegetação de bosque tropical seco na transição para
bosque tropical úmido (Ibíd).
A região Andina é formada pelas três cordilheiras em que se divide a grande
cordilheira dos Andes no território colombiano (Ocidental, Central e Oriental) e seus platôs,
assim como planaltos e montanhas, com importantes fontes de água. Essa região concentra
a maior densidade de população do país. Nela se encontram as maiores cidades do país
(Bogotá e Medellín), que concentram ao mesmo tempo a indústria pesada, a maior oferta de
emprego e, no caso de Bogotá, que é o distrito capital, os poderes estatais, a grande mídia e
uma grande oferta no ensino superior. A Orinoquía é uma vasta extensão de lhanuras ao
leste da cordilheira oriental, limitada ao norte e leste pela Venezuela e separada por grandes
rios ao sul da Amazônia. Essa última é caracterizada por uma ampla floresta tropical úmida,
limitada a leste e sudeste pela divisa com o Brasil.
A essa divisão em regiões se superpõem as características heterogêneas da
população (origens, costumes, práticas alimentares, folclore, sotaque etc.). Aqui farei
referência exclusivamente à população negra da Colômbia. Essa população está presente
em todo o território nacional (Dane, 2007). Mais recentemente se observa uma presença
crescente na Orinoquía e no Piemonte da Amazônia, porém por razões históricas e
demográficas ela se localiza principalmente em seis grandes áreas do território nacional: na
região Pacífico; no Caribe continental, no arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa
Catalina; nos vales inter-andinos e em quatro grandes cidades do país (Dane, 2007; Conpes
3660/2010). Em termos demográficos, os principais lugares de habitação da população
negra coincidem com os antigos destinos do trabalho escravo: mineração do ouro em
garimpos nos rios do ocidente do país (no Pacífico), trabalho em fazendas e navegação
pelos rios e vales interandinos; nas cidades de recepção e venda de escravizados, como
Cartagena e Popayán (Maya, 1998; Arocha, 2008), e hoje em dia nas grandes cidades.
A região do Pacífico colombiano é composta pelo departamento de Chocó, em sua
totalidade, e por algumas áreas litorais dos departamentos de Valle del Cauca, Cauca e
Nariño, incluindo as cidades capitais dos três primeiros: Quibdó, Cali e Popayán,
respectivamente, sendo que Cali e Popayán estão localizadas nos vales interandinos. Essa
região estende-se desde o noroeste do país em limites com os departamentos de Antioquia e
127
o istmo do Panamá, até a fronteira com o Equador. Ela é subdividida no Pacífico Norte, que
abrange a totalidade do departamento de Chocó, e no Pacífico Sul, que vai desde o sul do
departamento de Chocó até o litoral sul do departamento de Nariño, na divisa com o
Equador. Segundo Gracia (2013), essa divisão se corresponde com uma outra, de ‘caráter
cultural’, baseada nas diferenças da ‘culinária, da música e da geografia’ e uma divisão
‘organizativa’: ‘o Pacífico norte tem várias organizações que se denominam afro, e o
Pacífico Sul está organizado no Processo de Comunidades Negras – PCN’ (2013:17).
Segundo Maya (1998), a mistura racial da população negra (mulataje) no Pacífico seria
menor do que na região Caribe. Essa característica, somada à precariedade das vias de
comunicação terrestres, implicou, segundo a autora, um desenvolvimento independente que
contribuiu para a manifestação e sobrevivência de pegadas de africanidade (Huellas de
Africania) (Maya, op. Cit.: 254). Ao mesmo tempo, é uma região que em conjunto
apresenta os piores indicadores sociais: escolaridade média, saneamento básico,
desemprego etc. (Conpes 3310; Conpes 3660).
A região Caribe continental, também chamada de Costa Atlântica, inclui a
população que mora nas capitais dos departamentos, principalmente em cidades como
Cartagena, capital do departamento de Bolívar, e Barranquilla, capital do departamento de
Atlántico. Além disso, encontram-se populações negras no Palenque de San Basilio e em
povoados constituídos a partir de antigos quilombos próximos do localizado em área dos
Montes de María e ao redor da cidade de Cartagena (todos eles no departamento de
Bolívar), assim como outros povoados, como San José de Uré, no departamento de
Córdoba.
O Palenque de San Basilio, próximo do município de Mahates, no departamento de
Bolívar, é um povoado criado – segundo alguns autores – em 1603 pelos cimarrones
(escravizados fugitivos) comandados por Benkos Biohó (Bioo ou Domingo Biohó), daí se
dizer que é o primeiro povo livre de América (Arrázola, 1970; Cassiani, 2008). O nome
palenque derivaria das paliçadas construídas para proteger o povoado de ataques de
autoridades do governo da província de Cartagena. Segundo Cassiani, ante a
impossibilidade de submeter o palenque em diferentes campanhas ao longo do século
XVII, em 1713 foi aplicado um pacto com a coroa espanhola em que se reconheceu a
liberdade dos palenqueros assentados nesse território (Op.Cit.:110). Segundo esse autor, a
128
partir desse momento e com um relativo isolamento, os palenqueros puderam criar e
manter uma série de condutas ancestrais, como a língua131 palenquera, a organização
social em kuagros (grupos de idade) e em juntas (cooperação para fins específicos e
temporários), medicina tradicional, e práticas funerárias como o lumbalú132, entre outras
(Ibíd.:111).
No arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina, localizado nas águas
do mar Caribe, encontra-se a população raizal. Os raizales têm uma forte identidade
caribenha e umas raízes afro-anglo-antilhanas (Arocha, 2012). Robinson Davis & Botero
Mejia (2008) apontam vários períodos de colonização do arquipélago: os primeiros
assentamentos ingleses na ilha foram entre 1627 e 1631; os primeiros escravizados foram
levados em 1633 para a ilha de Providencia para a exploração de madeira de tinte. A partir
de 1730 se iniciou uma segunda onda colonizadora partindo do Caribe anglofalante,
Escócia, Irlanda e Costa do Ouro na África Ocidental (atual país de Gana), mas foi no final
do século XVIII que surgiu um assentamento permanente e duradouro no arquipélago, do
qual, segundo a autora, descende a atual população raizal. Disputado desde meados do
século XVII por Espanha e Inglaterra, passou a ser domínio espanhol em 1786 mediante o
Tratado de Versalhes, e em 1803 a administração do arquipélago foi transferida da
Capitania de Guatemala para o Vice-Reinado da Nueva Granada. Os ingleses das ilhas
podiam permanecer nelas, mas jurando lealdade e fidelidade à Espanha. Com a
independência, funcionários grancolombianos procuraram a adesão dos ilhéus à
Constituição de Cúcuta, em 1822. Ainda que fossem enviados esporadicamente
representantes saindo de Bogotá, o arquipélago foi praticamente abandonado pelos
governos colombianos (Robinson, 2008:106). Segundo Robinson Davis & Botero Mejia,
isso fez com que os ilhéus desfrutassem de uma independência que permitiu desenvolver
seu próprio sistema de vida baseado no creole como língua materna (língua oral de base
Akán e lexicalizada em inglês), o inglês como língua da igreja e da escola, com a religião

131
Segundo Cassiani, essa é uma língua independente com uma estrutura fonológica, morfológica e sintática
própria lexicalizada em espanhol, com aportes de línguas românicas (espanhol e português) e bantos, assim
como elementos do kikongo e kimbundu (Op. Cit. 111).
132
Lumbalú é o do conjunto de cerimonias mortuárias que inclui cantos-respostas acompanhados de tambores;
antigamente era utilizado o tambor pechiche, tocado exclusivamente nessas cerimônias.
129
protestante e o conjunto de crenças e práticas religiosas de origem africana chamadas de
obeah (Ibíd.:107).
Os raizales criticam o que chamam de colombianização por parte do Estado
colombiano, nascida no projeto homogeneizador, centralista e controlador da população e
do território da Constituição de 1886, que buscava a unidade nacional sobre a base da
semelhança. A educação em espanhol dirigida pela Igreja Católica e a obrigação de se
batizar nessa fé para ter acesso às escolas públicas foram estratégias características desse
projeto (Ibíd.:107). Segundo a autora, essa tentativa de aculturação se tornaria definitiva e
teria um efeito ainda mais devastador em 1953, quando o governo da época declarou o
território insular como porto livre e ordenou a construção de um aeroporto. Isso despertou o
interesse de comerciantes vindos do continente, fomentou o turismo, disparou um
crescimento urbano descontrolado com efeitos, como a superpopulação, ainda presentes,
despejo da população local, urbanizações ilegais, construção de hotéis em cemitérios
familiares, introdução da mídia em espanhol, desencadeando um conflito interétnico, a
deterioração de ecossistemas marítimos e terrestres, a poluição de fontes de água doce, a
discriminação dos ilhéus (nas esferas econômicas, politicas e culturais), a militarização das
ilhas e a chegada do narcotráfico (Ibíd.: 107-108).
Por outro lado, ainda que existisse população negra nas cidades desde a época
colonial, as grandes cidades são destinos relativamente recentes para ela por diferentes
motivos: busca de melhores condições de vida e emprego, estudos universitários e em
função da intensificação do conflito social e armado, em particular pelo deslocamento
forçado desde meados da década de 1990. A maior parte dessa população negra mora nos
bairros periféricos e marginalizados dessas cidades, em áreas de alto risco pela qualidade
do terreno, pela insegurança e pelo baixo acesso a serviços públicos.
Enfim, seja nas grandes cidades, seja nos litorais, nas áreas rurais ou até mesmo nos
territórios coletivos, as populações negras colombianas apresentam os piores indicadores
sociais de renda, escolaridade, emprego, serviços públicos, saneamento básico e condições
de moradia, se comparados com outros grupos étnicos e outros setores sociais da população
colombiana (Conpes 3310; Conpes 3660). Essa imagem de pobreza e precariedade associa-
se comumente à cor da pele e aos principais lugares de habitação da população negra na
Colômbia: ali claramente aparecem a região Pacífico (especialmente do departamento de
130
Chocó), seguida da região Caribe (especialmente Cartagena), e enfim os bairros populares
de cidades como Cali, Medellín, Bogotá, Barranquilla, Cartagena. Assim sendo, tanto os
indicadores sociais quantos os aspectos fenotípicos se juntam numa geografia racializada
que expressa também o que Wade (1997) denomina ordem racial colombiana, numa
relação hierárquica de raça e economia política.

131
Apêndice II - MAPAS

1. REGIÕES DA COLÔMBIA

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/50/Regiones_naturales_de_Colombia.png

Under license of Creative commons. Author; Shadowxfox.

132
2. PERCENTUAL DE POPULAÇÃO AFRO-COLOMBIANA E SUA
DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA.

133
3. LUGARES DE ORIGEM DAS FUNDADORAS

134
4. BOGOTÁ. Alguns lugares da pesquisa.

135
Apêndice III – Imagens da RED DE ANANSE

Logo Red de Ananse

SEMINARIO INTERNACIONAL
DIÁSPORAS AFROLATINAS,
PARTICIPACIÓN, INTERCULTURALIDAD Y
PEDAGOGÍAS DECOLONIALES

Desing do seminário
Realizado em 2009

Brochura (Cartilha)
Red de Ananse

‘Membrete’ Red de Ananse

136
Apêndice IV – GLOSÁRIO

Aché (axé): é a força criadora do universo, presente em todas as coisas existentes.


Apetebi de Orula: auxiliar do bablawo.
Ananse: Anancy, Nansi ou breda Nancy é uma personagem, aranha, presente em contos, estórias e
práticas das populações negras do Pacífico e do arquipélago caribenho de San Andrés, Providencia
e Santa Catalina. Além disso, essa espécie de avatar, de espirito ancestral, estaria presente em
populações negras afrodescendentes em vários países do Caribe insular e continental (Costa Rica,
Suriname, entre outros). Segundo o antropólogo Jaime Arocha (1999), Ananse é uma deidade
prometeica, cujo nome é uma palavra do idioma Akán dos povos Fanti-Ashanti da África centro-
ocidental.
Babalawo (babalaô em português): sacerdote de Ifá.
Babalocha: filho de santo que pode iniciar a outros homens na Ocha ou pai de santo.
Bóveda espiritual: A bóveda espiritual é um altar em espiritismo que é a conexão entre o espírita e
seu cordón espiritual. Sua função é proteger ao espírita e ajudá-lo a resolver suas dificuldades.
Cimarrón: Escravizado fugitivo
Cimarronaje: Ação libertária dos escravizados fugitivos. É também uma atitude libertaria ante a
opressão.
Ebbó: ritual realizado que visa a ajuda do Oricha para o Omo melhorar a situação economia e ter
saúde. Também é o nome que recebe a cerimonia de aniversário de iniciação em Ocha.
Egguns: espíritos dos mortos.
Ékuele: é o cordão composto por 8 pedaços de concha de tartaruga ou de outros materiais que é
utilizada para o procedimento de consulta. Ela é lançada em distintos momentos sobre o tabuleiro
de Ifá e conforme a posição são lidos os oduns.
Elegguá: oricha dos caminhos, encruzilhadas, mediador entre os homens e as divindades e o deus
supremo Olofi. Suas cores são vermelho e preto. Tem um avatar que é Echú, Eshú ou Exú, cujas
cores são preto e branco.
Ifá: filosofia de vida e sistema divinatório regido por Orula.
Ilé: casa
Ilé tun tun: linea cubana da Ocha que seria mais disposta `a inovação nas práticas rituais.

137
Ilé Ifé: linea cubana da Ocha considerada mais ‘tradicionalista’e mais ligada com África. De fato,
Ilé Ifé é o nome da cidade sagrada dos Iorubas.
Itá: Cerimônia em que é revelado para o olocha seu passado, presente e futuro. É realizada no
terceiro dia da consagração.
Iyabó, Iyawo, ou Iaô em português: na regla de Ocha significa iniciado.
Iyalocha: mãe de santo.
Mano de Orula: é uma pulseira com as cores de Orula (verde e amarelo) que é entregue em uma
cerimonia do mesmo nome. Os homens recebem a Mano de Orula e as mulheres o Koffá de Orula.
Essa cerimonia é o primeiro passo nos caminhos de Ifá, mas não necessariamente toda pessoa deva
ser iniciada em Ifá.
Misa Espiritual: é uma cerimônia para o desenvolvimento tanto dos espíritos dos mortos que são
convocados quanto dos espiritistas que nelas participam, mediante uma serie de procedimentos
(orações de abertura e de fechamento, cantos, fumo de charuto, preparação do altar ou bóveda
espiritual, etc.) que buscam estabelecer uma comunicação entre eles, e nas quais os primeiros
advertem as pessoas presentes sobre eventos futuros, ou apontam problemas atuais com suas causas
espirituais ou materiais e os procedimentos que têm de ser feitos para resolvê-los.
Muntu: a concepção dos povos banto da África austral do mundo como formado pelo conjunto dos
vivos, dos mortos e da natureza.
Nganga: recipente onde o morto o nfumbe ou reside. As prendas ou ngangas seriam mundos em
miniatura, modelos do cosmos e de seus elementos naturais, onde os paleros agem como criadores e
animadores de um microuniverso.
Obá: Palavra ioruba que significa rei. Na regla de Ocha é um babalocha com muita experiência.
Obatalá: é o dono das cabeças (orí ou erí). Oricha mais velho, criador da terra e do homem. Sua cor
é o branco. Em Cuba é sincretizado com a Virgen de las Mercedes. Tem muitos caminos ou
manifestações, uma delas sendo Oxalá.
Oddun: Oduns ou signos são os códigos por meio do quais falam os orichas na consulta com o
babalawo.
Ocha/Ifá: sistema religioso que compartilha muitos elementos em comum (divindades, patakis,
rituais) e diferenças (Ifá é domínio de Orula). Segundo Feraudy Espino (2005), a diferença é que
Ocha é uma criação cubana a partir de elementos africanos e Ifá seria propriamente da África.

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Ochosi: é um oricha caçador muito habilidoso. É dono de cárcere. Em Cuba é sincretizado com
Norberto, San Alberto, Santiago Arcangel e San Humberto.
Ochún: dona da sensualidade e dos prazeres. Simboliza o amor carnal. Em Cuba é sincretizada com
a virgem da Caridad del Cobre. Sua cor é o amarelo.
Ogún: oricha guerreiro, dono do metal.
Olofi: deus supremo do panteão ioruba. É um deus que mora afastado. Ele ordenou a construção do
mundo.
Houngan: sacerdote vodu.
Omo: filho
Orí: ou erí, é uma palavra de origem iorubana que significa cabeça.
Orichas: divindades do panteão ioruba cultuados na regla de Ocha (santería). A palavra é composta
de orí (cabeça) e Ocha (divindade ou santo), é a divindade ou santo dono da cabeça do olocha
(iniciado).
Orichas guerreiros: Elegguá, Ogún, Ochosi e Osun ou Ozun. Este último não se coroa nem baixa à
cabeça dos santeros.
Orula: deus da divinação. A ele são consagrados os babalawos.
Palenque: Povoados levantados no mato pelos escravizados fugitivos (cimarrones).
Patakis: pataquies, pataquins, são relatos de estilo mítico que contam a origem de um orixá, de seu
domínio, de algumas das qualidades e interdições a ele associados, sua relação com os homens, dos
quais deriva um ‘corpus ético e moral’ (Castro Ramírez,2010:25) que se traduz no cotidiano dos
praticantes.
Regla de Palo Monte: o regla Conga é um conjunto de práticas que têm sua origem na região do
Congo, cuja prática cerimonial se baseia na relação com os mortos, os quais podem ajudar os
iniciados a terem uma vida longa, assim como os protegerem de ataques de bruxaria.
Registro: é o procedimento de consulta ante o babalawo.
Regla de Ocha (santería): refere-se à religião de ‘origem ioruba’ em que são cultuadas as divindades
de origem iorubá conhecidas como orichas, orixás em português, intermediárias entre os homens e
o deus supremo conhecido como Olofi, Olodumare ou Olorún. O culto é dirigido aos orichas, e não
a Olofi.
Rogamiento: Procedimento para limpar o astral da pessoa o que implica entre outras coisas que a
cabeça, orí ou erí seja refrescada.
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Rayamiento: é a cerimonia de iniciação em Palo Monte, e que implica alguns cortes no corpo.

Yemayá: na Regla de Ocha/Ifá é a mãe do mundo, deusa das águas salgadas. Suas cores são o azul
e o branco. Em Cuba, é sincretizada com a Virgen de Regla. Ela tem 21 caminos ou manifestações.

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