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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Entre fantasmas, esperanças e crenças:


a angústia do “sionismo de esquerda” no Brasil

Bianca Albuquerque Marcossi

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2018
Entre fantasmas, esperanças e crenças:
a angústia do “sionismo de esquerda” no Brasil

Bianca Albuquerque Marcossi

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo


docente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Antropologia Social.

Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2018

ii
iii
Entre fantasmas, esperanças e crenças:
a angústia do “sionismo de esquerda” no Brasil

Bianca Abuquerque Marcossi


Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação


em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Banca Examinadora:

________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Adriana de Resende Barreto Vianna (Presidente)
PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes
PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Berenice Alves de Melo Bento
SOL/UnB

________________________________________________
Prof.ª Dr.ª María Elvira Días-Benítez (Suplente)
PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Angela Mercedes Facundo Navia (Suplente)
DAN/UFRN

iv
RESUMO

Entre fantasmas, esperanças e crenças: a angústia do “sionismo de esquerda” no Brasil

O objeto desta dissertação se vê concentrado na zona de tensão que a própria enunciação


do “sionismo de esquerda” movimenta como um problema, um dilema dramático ao
mesmo tempo ontológico, político e moral, vivido por fragmentos da população judaica
do Rio de Janeiro e de São Paulo, muitos dos quais se identificam como sendo “sionistas
de esquerda”. Ser “sionista” e “de esquerda” é, hoje, um trabalho de agonia, que mobiliza
explicações, fantasmas e silêncios. Neste esforço, “Palestina”, “palestinos”, “Israel”,
“ocupação” e “refugiados” não existem em si, mas são refletidos como sombras dentro
de certa doxa do possível, funcionando como categorias à serviço do problema que
enfrentam os interlocutores para resolverem a si mesmos e manterem a crença em um
Estado nacional “judaico e democrático” na Palestina. Este é um trabalho que tenta
compreender, a partir das falas/ações dos interlocutores, os sentidos e as materializações
da crença “sionista de esquerda”, a partir da qual os entrevistados se constroem como
sujeitos político-morais e cultivam sua esperança.

Palavras-chave: crença, sionismo, sionismo de esquerda, esquerda, Israel/Palestina,


angústia, esperança.

v
ABSTRACT

Among ghosts, hopes and beliefs: the anguish of "left Zionism" in Brazil

The object of this dissertation lies on the tension that the very enunciation of "left
Zionism" articulates as a problem, a dramatic dilemma that is at the same time
ontological, political and moral, endured by some members of the Jewish population of
Rio de Janeiro and São Paulo, many of whom identify themselves as "left-wing Zionists".
Being "Zionist" and "Left-wing" nowadays is agonizing, and mobilizes explanations,
ghosts and silences. In this effort, "Palestine", "Palestinians", "Israel", "occupation" and
"refugees" do not exist in its selves but are shadows within a certain doxa of the possible,
operating as categories serving the problems faced by their members, who need to resolve
themselves and maintain their belief in a "Jewish and democratic" national state in
Palestine. This work strives to understand, from the words/actions of the interlocutors,
the meanings and the materializations of the "Zionist leftist" belief, upon which the
interviewees construct themselves as moral-political subjects and cultivate their hope.

Keywords: belief, Zionism, left Zionism, left-wing, Israel/Palestine, anguish, hope.

vi
Agradecimentos

À querida orientadora Adriana Vianna, sem a qual eu teria sido incapaz de escrever esse
trabalho, agradeço as repetidas leituras atenciosas, o tempo atento e generoso e as
contribuições sempre imprescindíveis ao meu próprio entendimento sobre o que eu
estava fazendo. Agradeço, sobretudo, por ter confiado em mim e aceitado a proposta de
trabalho, mesmo sabendo dos perigos e temas sensíveis que ela decidia enfrentar,
encorajando-me a seguir, com leveza e bom humor.

Agradeço a todos os professores do PPGAS, com os quais tive o privilégio de ter o meu
primeiro contato com a Antropologia. Foram especialmente marcantes os encontros
com Giralda Seyferth, Moacir Palmeira, John Commerford, Adriana Facina e María
Elvira Días-Benítez - quem, diante da minha prova inconclusiva para a seleção do
mestrado, perguntou-me o que significava aqueles três pontos ao final da página: “eu
queria mais tempo, tinha tanto ainda a falar...!”.
Agradeço também à finitude do tempo, e a sua passagem.

A José Sergio Leite Lopes e María Elvira, agradeço também por terem aceitado compor
a banca de defesa. À Angela Facundo e Berenice Bento, pelo imenso interesse que
demonstraram na pesquisa e por serem as mulheres e pesquisadoras que são.
Aos funcionários e funcionárias da secretaria do PPGAS, sempre tão atenciosos e
prestativos, agradeço a paciência. Sou grata também às bibliotecas públicas, gratuitas e
de qualidade da cidade de São Paulo, sem as quais não teria conseguido essa ilha de
espaço, tempo e paz necessários à escrita acadêmica.

A todas as colegas de turma do mestrado com quem pude compartilhar, além de muitos
PDFs, momentos de tensão e de alegria desde o início, especialmente à Carol, parceira
de todas as horas, amiga que guardarei para vida, à Fran, por sua sensibilidade e alegria,
à Telma, por toda a ajuda, e à Ozi, por ser a pessoa maravilhosa que é. Agradeço
também à Anita pela canção que nos trouxe à casa onde então moraríamos. E à Tatiane,
por ter feito minha passagem pelo Rio um período de muita alegria e transformações.

À Thais Garcia e Luna Campos, agradeço pelo acolhimento no Rio desde a entrega dos
documentos de inscrição para a prova de seleção do Museu – sei que posso contar com
vocês.

A Miguel Palmeira, sou grata pela paciência com que me aguentou ‘procurando’ um
tema de pesquisa na História e pela infinda generosidade na escuta e na troca: se não
fosse você eu nunca teria feito da mudança para o Rio de Janeiro uma possibilidade –
tampouco teria conhecido o “Museu Nacional”. Aos colegas do grupo da pós “do
Miguel”, principalmente Lidiane, Marcio, Franco, Paulo, Carlos e Julio, agradeço pelas
discussões sociológicas elaboradíssimas – de um jeito ou de outro, com todos os meus
limites, elas estão refletidas aqui.
Miguel: da próxima vez prometo não biancar.

Aos queridos Reginaldo Nasser e Arlene Clemesha, por quem sou profundamente grata
pelo interesse e estímulo à pesquisa, desde meu retorno da Palestina.
À Gustavo Barbosa, pelas imprescindíveis e generosas trocas de emails no início da
dissertação, fundamentais às elaborações das primeiras angústias.

vii
Ao Luiz, pelo primeiro convite à revolução e pelo encorajamento a uma viagem sem
retorno. Sem você nada disso teria começado. Te agradeço e perdoo.

Aos palestinos de Yanoun e Aqraba, principalmente Wafa, Rashid, Najiha e Khamall, e


Ghassan, por compartilharem comigo seu cotidiano e histórias de vida e de resiliência.

A Manuel Quintero, e a todo o pessoal da coordenação nacional do EAPPI, em especial


Fernanda, Alexandre e Michelle, agradeço pela oportunidade do deslocamento e pelo
trabalho de equipe e de afeto.
Ao pessoal do MOP@T e da Frente em Defesa ao Povo Palestino, sou grata pelas
conversas e por tantos aprendizados.

Aos colegas “self-hating jews” Bruno, Iara, Yuri, Juliana e, especialmente, Shajar e
Lilian, sou grata por serem as pessoas que são e por não abrirem mão daquilo em que
acreditam, apesar de tudo.
À Sedq – Global Jewish Network for Justice, especialmente Jordy Silverstein, Sahar
Vardi, Ilise Cohen, Efrat Yerday e rabino Brant Rosen, agradeço por tentarem formular
uma judeidade possível no mundo contemporâneo que seja solidária às lutas
antirracistas e anticapitalistas.

À Berta e Senta, bisavó e avó, agradeço a memória da força dos sobreviventes. À minha
mãe Eugenia, agradeço por me inspirar a sonhar com um mundo melhor.

À Monica Barreto, pelas palavras de cura e de cuidado nas horas difíceis, e Camile, por
me ajudar a entender a dimensão subjetiva do político.

À Mariana, companheira de vida e melhor amiga, agradeço por ser a mulher que é, e por
ter aceitado me acompanhar nessa jornada de angústia e alegria. Todo meu amor e
gratidão.

À Priscilla e ao Julio por terem estado sempre por perto quando precisei, e por me
encorajarem a ver as coisas de forma mais simples.

À família Burg-Mlynarz, sobretudo à Monica, pela enorme contribuição que tiveram


para que eu pudesse chegar até aqui. Sou grata pela confiança e pelo respeito.

À “comunidade judaica” paulistana e, mais especificamente, ao Colégio Alef, antiga


“mishpachá Bialik”, agradeço por me fazerem enxergar os limites do significado de
“comunidade” e de “família”.

Aos meus alunos que, com perguntas sensíveis (como aquela da Rafaela: “morá, por
que só estudamos o que fizeram com a gente e não o que a gente fez com os outros?”; e
a do Gabriel: “mas por que o moço usa essa kipá pra lembrar que deus está em cima
dele se ele não respeita nem a lei? O que está acima dele?”), me ensinam a acreditar na
mudança.

Aos interlocutores entrevistados, agradeço por compartilharem comigo suas histórias de


vida e suas mais profundas contradições, medos, dilemas e esperanças.

E ao CNPq, agradeço pela bolsa concedida, sem a qual essa pesquisa não teria sido viável.

viii
SUMÁRIO

Introdução 1
PARTE I – PRODUÇÃO SOCIAL DA CRENÇA
CAPÍTULO 1 - Materiais e montagens da crença 30
1.1 “Meu sionismo, meu sionismo de esquerda”: a confecção do sionismo como
sobrenome 36
1.1.1 “É do Shomer que vem tudo”: os movimentos juvenis judaicos sionistas 45
1.2 Construção do duplo-Estado e a economia política dos mortos 51

CAPÍTULO 2 - Ritos do fazer crer 60


2.1 O mágico árabe 63
2.2 O jovem mágico 68

PARTE II – PRÁXIS DA CRENÇA


CAPÍTULO 3 - Explicar, Falar, Fazer sumir: gramáticas da angústia 80
3.1 Um primeiro campo “assustador”: universalismo, colonialismo e identidade 86
3.2 Práticas possíveis: entre diálogos, pedagogias, arrumações e boicotes 92
3.2.1 Descrição de um evento 95
3.2.2 As vozes do “boicote” e os interditos do “diálogo” 107
3.2.2.1 “Diálogos” possíveis, “diálogos” decentes 115
3.2.2.2 “Ação do boicote” vs. “Liberdade do diálogo”: vozes,
justificativas e acusações em torno do boicote acadêmico 126
3.3 Quando o “apartheid” é aqui: falas e enfrentamentos da “periferia do sionismo” 135
3.3.1 “É caso de política comunitária”: entre iguais e diferentes 141

CAPÍTULO 4 – Fazer Ver: mapas, viagens e retornos (im)possíveis 148


4.1 “Olhos viajantes”: “Palestina” para ensinar, para aprender, para enxergar, para
crer 160
4.2 – A(s)sombra do Monumento: “antissemitismo” e os limites da crença 181

Considerações Finais 193

ix
Referências bibliográficas 197
Glossário 211
APÊNDICE I - Roteiro-base de entrevistas 213
APÊNDICE II - Quadro geral de interlocutores/as entrevistados/as 220
ANEXO I – “Carta de Independência de Israel”_________________________236-239
ANEXO II – Mapa/Cronologia “O Meu Israel”__________________________240-242
ANEXO III – Mapa UN/OCHA-OPt – “West Bank”______________________243-244
ANEXO III.I – Mapa UN/OCHA-OPt – “Nablus”_______________________245-246
ANEXO IV – Mapa “Shalom Achshav”/ Peace Now / Paz Agora____________247-248
ANEXO V – Mapa “Agência Judaica”_________________________________249-250
ANEXO VI – Mapa “Colonialism in desctru(a)ction – 1949”_______________251-253
ANEXO VI.I – Mapa “Colonialism in desctru(a)ction - 1947”______________254-255

x
We fail to remember what Jewish means or we have not thought carefully about all the
possible permutations of “never again”; after all, remembrance does not restrict to my
suffering or the suffering of my people alone. The limit on what can be remembered is
enforced in the present through what can be said and what can be heard, the limits on the
audible and the sensible that contingently constitute any public sphere.

Judith Butler, Parting Ways: Jewishness and the Critique of Zionism (2012).

xi
INTRODUÇÃO

Esta é uma dissertação que se faz a partir de um problema vivido por mim ao
mesmo tempo como um problema político, um problema de conhecimento e um problema
da minha própria constituição subjetiva. Ao longo do trabalho, as questões suscitadas por
esta condição não serão plenamente resolvidas, mas pensadas como mutuamente
constituídas. Reconhecer as condições de produção deste trabalho é uma forma de dizer,
desde já, que se trata de uma pesquisa parcial, posicionada e localizada, escrita por uma
mulher jovem, branca e judia, nascida e criada na capital paulistana, durante um período
dramático específico na história do país. Essa explicitação é também uma forma de
reconhecer-me responsável pelo mundo, e pelo texto, que construo e que vejo ser
construído – talvez essa pesquisa tenha surgido a partir mesmo do problema da
responsabilidade1 (BUTLER, 2015)2.
Ao iniciar a escrita da primeira versão desta introdução, havia dado por terminado
meu trabalho de campo dia 2 de maio de 2017. Naquele dia, pouco depois do 28 de abril,
quando aconteceu a maior greve nacional de que tenho registro em minha memória jovem,
uma greve que foi brutalmente reprimida pela polícia militar, houve um ato na Avenida
Paulista, organizado pelo grupo Direita São Paulo e Juntos pelo Brasil, contra a aprovação
do novo Estatuto da Migração, ocorrida no Senado naquela mesma terça feira.3 Durante o
ato de protesto à lei que, em alguma medida, facilitaria a permanência de pessoas

1
Os termos em itálico se referem ou a conceitos, e assim seguidos das respectivas referências, a palavras em
idioma estrangeiro – exceto nomes próprios ou excertos que excedem três linhas – ou ainda a um destaque
meu.
2
Inspirada no argumento de Emmanuel Levinás sobre o surgimento pré-ontológico do sujeito a partir de uma
“invasão primária”, não desejada, pelo outro (é nesse sentido que o autor afirma que a perseguição gera uma
responsabilidade para o perseguido independente das ações deste último), Judith Butler (2015) diz que tal
postulação de um sujeito que não funda a si mesmo e compartilha uma suscetibilidade comum é o que nos
torna responsáveis pelos outros. Essa ideia de corresponsabilidade aparece em seu livro Parting Ways -
Jewishness and the Critique of Zionism (2012), obra que inspira e atravessa essa dissertação, como uma das
bases para o seu argumento sobre diasporismo, coexistência e cohabitação.
3
O projeto da Nova Lei de Migração PL2516/2015, aprovado com modificações pela Câmara e pelo Senado
em abril de 2017, e sancionado com diversos vetos pelo presidente Michel Temer, substitui o Estatuto do
Estrangeiro criado durante a ditadura civil-militar brasileira e vigente até 2017 na regulação da vida dos
imigrantes no Brasil. Orientado pelo paradigma da “segurança nacional”, que trata os e as imigrantes como
“casos de polícia”, o Estatuto vetava aos “estrangeiros” a condição de igualdade entre nacionais e não-
nacionais, prevista pela Constituição de 1988, além de proibir-lhes o direito ao exercício de qualquer
atividade ou organização de natureza política. (FELDMAN-BIANCO, 2017).

1
imigradas no país (LUCIO, 2017) e promoveria políticas contra a xenofobia e o racismo
sofridos principalmente pelos imigrantes não ocidentais (FELDMAN-BIANCO, 2017),
Hasan, o primeiro palestino que conheci, e Nour, refugiado do campo de Yarmouk, na
Síria, e filho de refugiados apátridas da al-Nakba, a catástrofe palestina de 1948, foram
detidos pela polícia militar aos gritos de “Viva a PM!” e “Comunista tem que morrer!”.
Em vídeo postado no Facebook, o presidente de um dos grupos organizadores do
ato disse: “um desses agressores é estrangeiro, muçulmano e de nacionalidade palestina.
[...] Veja só o tipo de comportamento ele quer trazer para nossa nação. Sabemos que ele é
totalmente contra Israel. Nós apoiamos declaradamente Israel [...]” (BALLOUSIER,
2017). Foi também pelo Facebook que alguns ‘amigos’ meus, naquele mesmo dia,
comemoravam o que o Estado de Israel e a “diáspora”4 judaica sionista chamam de Yom
Ha’atzmaut, o “dia da Independência” do Estado que, em 2017, completa 69 anos. Os
mesmos 69 anos desde que os pais de Nour se transformaram em refugiados dando lugar
ao novo Estado. E é no aniversário de Israel que Nour é detido, no Brasil, e levado pela
Polícia Federal, por ser estrangeiro – e o mesmo dia em que, nas prisões israelenses, 1.500
palestinos vivem o 15o dia de uma das maiores greves de fome coletivas da história
palestina.
Poucos dias antes daquela manifestação, vi os direitos dos e das trabalhadoras
serem ameaçados porque entendidos como empecilhos ao “desenvolvimento econômico do
país”, que, desde o impeachment da presidenta eleita, tem exigido uma urgente
“modernização das leis trabalhistas”; vi também indígenas Gamela sofrerem um massacre,
tendo tido suas mãos decepadas com facões por pistoleiros impunes no Maranhão; vi
colegas antropólogos e antropólogas serem criminalizados por sua atuação nos processos
de reconhecimento de direitos indígenas junto à FUNAI, cujo orçamento foi cortado em
mais de 50%; e vi Rafael Braga, preto, favelado e único condenado preso durante as
jornadas de junho de 2013, ser julgado e condenado a 11 anos de prisão por tráfico.
Se é certa a data em que ritualizei um “fim” para o trabalho de campo, tenho
dificuldade em precisar seu início. Se, quando estudante de graduação em história na

4
As aspas duplas (“ ”) aparecerão em termos que não são meus, mas citações, seja de autores, seguidos então
da referência, ou de interlocutores. Os termos escritos entre aspas simples (‘ ’) se referem àquilo que
pretendo que seja lido como aspas minhas, em certo tom de imprecisão e ambiguidade, mais próximo ao que
seria uma figura de linguagem.

2
Universidade de São Paulo, vi-me profundamente afetada ao ouvir meus admiráveis
professores tratarem Israel como um “Estado fascista e genocida”; se quando decidi ir
morar em Yanoun5, uma vila palestina cercada por colônias construídas por judeus-
israelenses na Cisjordânia ocupada, trabalhando como “observadora de direitos humanos
na Palestina”; ou ainda se quando, de volta ao Brasil, vi-me apartada da “comunidade
judaica” na qual havia crescido e, numa busca por formas “alternativas” de uma judeidade
possível, acabei estranhando-me ainda mais. Minha busca pela Antropologia está
atravessada por este estranhamento.
Para tratar do percurso dessa pesquisa, alguns elementos de minha trajetória6 são
relevantes na medida em que ajudam a objetivar meu lugar na constituição daquilo que
escolhi estudar nessa dissertação e tratar como um campo de angústia. Selecionarei as
seguir alguns aspectos pessoais importantes para o exercício dessa objetivação.

Trajetória
Judia “legítima” por “direito materno”, conforme legisla a tradição religiosa
judaica, essa identidade, nos tempos de criança, se resumia a uns raros dias de sinagoga,
em que minha mãe cobria a cabeça com um lenço, jejuava um dia por ano e lia um livro de
letras tortas. Neste dia, depois da sinagoga, seguíamos até a casa dos parentes ricos da
família da minha tia-avó, sobre os quais pouco sabíamos. No caminho, eu era tomada por
uma espécie de orgulho em me ver diferente dos outros que passavam na rua. Sentia-me
especial, eu era judia: faltava à escola, vestia saia longa e ouvia uma língua estranha.
Aos 8 anos perdi minha mãe e, com ela, os dias de sinagoga. Minha avó, judia
alemã refugiada no Brasil em 1941, fazia pouca questão de nos ensinar sobre religião ou
qualquer tradição judaica, mesmo tendo tido um marido rabino, sobrevivente de campo de
concentração nazista. Os documentos dela, carimbados com a insígnia do Terceiro Reich, e
as cartas dele, escritas em papel timbrado do campo, fui conhecer após sua morte, quando
os descobri guardados num armário de roupas dentro de uma caixa antiga.
5
Para uma breve história da vila de Yanoun, alegoria da tragédia palestina, ver MANDAL, 2012.
6
Neste relato de mim mesma, não pretendo a ilusão biográfica que produza uma coerência, mas que ilumine
as marcas de minha trajetória relevantes à constituição do meu objeto nessa dissertação e do meu lugar diante
dele. Nesse sentido, considero o ““si mesmo” já implicado numa temporalidade social que excede suas
próprias capacidades de narração [...]” e que “o “eu” não tem história própria que não seja também a história
de uma relação - ou conjunto de relações - para com um conjunto de normas” (BUTLER, 2015, p. 18).

3
Em três anos, passei por três escolas – de uma escola municipal em que eu era
considerada “rica” e “loira” pelos meus amigos, mudei para um colégio franciscano num
bairro caro de São Paulo, cuja mensalidade meu pai sempre devia às freiras, que, meio a
contragosto, nos dispensavam das aulas de religião. Com a morte de meu pai, no entanto,
fui estudar numa escola estadual próxima ao Riacho Grande, periferia de São Bernardo do
Campo, na Grande São Paulo, onde morei com minha família paterna, que nos tratava, a
mim e a minha irmã, de uma forma bastante especial. Parecia-me, éramos vistas como
‘turistas’ naquele mundo: meu pai, o primogênito, fora o único filho de minha avó preta,
Maria do Rosário, que havia ido trabalhar em São Paulo e, “bem sucedido”, conseguira
casar-se com uma descendente de alemães (e judeus!) de “olhos bem claros”, dando a ela
netas “loiras”: Bianca, que sou.
Em 2002, recebemos, eu e minha irmã, o convite para irmos morar, em “condições
infinitamente melhores”, com aqueles primos ricos da família de minha mãe, que mal
visitávamos. Assim fui introduzida na ‘comunidade judaica’ paulistana. Da 6ª série ao 3º
colegial vivi a “comunidade” guardando ainda certos aspectos de alógena, já que numa
escola de 600 crianças, eu era uma das únicas que não tinha sido alfabetizada em hebraico,
não dançava “dança israelita”, não conhecia o hino de Israel tampouco sabia o que
significava Yom Ha’atzmaut. Eu ainda não compartilhava do habitus daquela comunidade.
Todos sabiam, eu não era uma menina judia “normal” e, por mais que meus parentes
judeus se esforçassem em incluir-me, nem a frequência ou os namoros no clube d’A
Hebraica, nem os amigos, as festas e as músicas de bar-mitzvah, nem a colônia de férias
em Campos do Jordão tiraram de mim um certo olhar de “estrangeira”. Ocupando um lugar
ambíguo, desconfortável, eu continuava órfã de pais suicidas, pior dos pecados segundo o
Judaísmo, morava na Oscar Freire sendo bolsista de uma escola cara e, diferente das outras
meninas, preocupava-me com os estudos. Além de ser por excelência o lugar do “contrato
pedagógico” com a família para uma “boa transmissão da herança (sobretudo quando ela
consiste em capital cultural)” (BOURDIEU, 2016a, p.588), a escola pra mim significava a
própria possibilidade de futuro – e isso incluía a tentativa de incorporação dos desejos,
doxas de entendimento e crenças compartilhadas.
Nessa socialização com a “comunidade”, Israel foi ocupando um lugar cada vez
mais definidor na minha constituição como judia. O currículo de “Valores e Tradições

4
Judaicas”, nome da disciplina dada pelo professor-rabino, famoso por trazer anualmente
um tanto de moças e rapazes “de volta” à religião, englobava aulas de mística, ética, lei e
“história” judaicas aos adolescentes do ensino médio. Neste último tópico, se abordava a
“história do povo judeu” a partir da narrativa bíblica7, entremeada por notícias que
relatavam casos de “antissemitismo” e revelavam o ódio dos “árabes” à Israel, veiculadas
na mídia e reunidas na apostila do ano. Neste curso, aprendi, entre outras coisas, a sentir
orgulho de ser judia e, principalmente, a ver os outros não judeus com certo receio e
desconfiança. Estava convencida de que o “antissemitismo” era um ódio irracional e
infundado ao “povo judeu”, e cuja origem remetia ao povo bíblico de Amalek, e se
estendia a todas aquelas figuras que, no presente e no futuro, sempre odiarão “nosso povo”
– Haman (o vizir persa que, segundo o livro de Ester, articulou a primeira tentativa de
extermínio do povo judeu), Hitler, a entidade mística, e, numa versão mais contemporânea,
“os palestinos”, “os terroristas” e os “árabes”, categorias que se sobrepunham na minha
cabeça8. Todas essas entidades comprovavam a existência de uma Genealogia do Mal
contra os judeus9.
Diante disso, a produção de uma postura de defesa do Estado de Israel, uma
disposição contínua de autodefesa, se dava desde a infância no colégio. Era, e ao que tudo
indica continua sendo, “nosso dever” defender a “Minha Israel” (ver anexo II)10: o Estado
de Israel era a materialização de nós mesmos e seu destino era também o nosso. O país

7
Trago, no anexo II, um exemplo de material didático usado na construção da nossa imaginação espaço-
temporal de “Israel”. As múltiplas ‘visões’ de Israel/Palestina através dos mapas será melhor tratada no
capítulo 4.
8
Importante lembrar que nessa escola em que estudei, considerada pela “comunidade” como “liberal”, no
sentido de não religiosa, “pluralista”, e “tradicionalista”, os professores de ciências humanas, judeus ou não,
eram dispensados da responsabilidade sobre o conteúdo referente à história dos judeus em qualquer espaço
de tempo. Para mim, a situação em Israel/Palestina nunca foram uma questão de história ou geografia, e, no
limite, nada do que os professores não judeus dissessem nos satisfaria: eles nunca entenderiam a
irracionalidade deste ódio milenar e a impossibilidade de entendê-lo com aquelas categorias históricas que
usamos para entender a história do resto do mundo, a história dos outros. Aqueles poucos e corajosos que
ousaram tratar do assunto foram demitidos.
9
Essa interpretação se aproxima daquela de Emannuel Lévinas que, em Difficult Freedom: Essays on
Judaism (1971, apud BUTLER, 2015), diz ser o universal e pré-ontológico da perseguição o destino e a
essência de “Israel” - entendido aqui ao mesmo tempo como povo e terra da Palestina. Para uma crítica dessa
leitura, ver BUTLER, 2015, p.122 a 126.
10
Ainda que no material pedagógico “Israel” esteja enquadrada no gênero masculino, ao longo do texto
tratarei “Israel” no feminino porque é dessa forma que os interlocutores se referem tanto à Israel enquanto
Estado como enquanto territtório.

5
encarnava todas as características daquilo que construí como “os judeus”: 1) seria
‘especial’ quando comparado às outras nações - um país que quase “miraculosamente”
conseguiu se erguer com as próprias mãos, “fazer florescer o deserto” e se tornar um país
de primeiro mundo em menos de 50 anos; 2) é sobrevivente e imbatível - apesar de tudo e
de todos; 3) e, por todas essas ‘qualidades’, sempre estaria em contínua ameaça.
Para comprovarmos tudo aquilo que havíamos aprendido, chegado o momento da
viagem de formatura, escolhemos viajar para a “terrinha”, como dizíamos, ao invés de ir
para Porto Seguro, na Bahia, lugar consagrado das quentes baladas adolescentes. Fechamos
um pacote de quinze dias com a Agência Judaica, que nos levaria aos principais pontos
turísticos do país11 - sem que, claro, nem nossas vidas, nem nosso orgulho sionista, fossem
colocados em risco.
Dias antes do embarque, atormentavam-me pesadelos em que árabes perseguiam-
me com cimitarras, sedentos pelo meu sangue: via-me pequena, protegida por uma grade
de ferro, enquanto vários desses homens, cujos rostos misturavam-se aos de Osama Bin
Laden e do vilão do desenho do Aladim, tentavam me raptar12. No sonho, eu sabia que
aquele ódio não tinha qualquer motivo racional, além do fato deles me odiarem por eu ser
judia. Nesse caso, a invasão desse Outro não me demandava reconhecimento, ética ou
responsabilidade, mas gerava um sentimento urgente de autopreservação (BUTLER,
2015), uma espécie de narcisismo. No fim, o pesadelo não se confirmou profecia e vivi
“ótimos 15 dias” em Israel em que não me lembro de qualquer momento de
vulnerabilidade. Sentia-me no quintal de casa e sabia que havia um exército imbatível a me
proteger do Outro – que não sabia muito bem onde estava.
Ainda em Israel, tive a notícia de que havia passado na Universidade de São Paulo.
Na faculdade de História, as rachaduras na adesão às crenças cultivadas na “comunidade” e
das quais eu tentava compartilhar, talvez mais do que me fosse sociologicamente possível,
foram ainda mais fragilizadas pelas aulas, discursos e pessoas com os quais fui cruzando e
sendo ‘contaminada’. Esforcei-me por pensar Israel lançando mão de categorias históricas

11
Porque patrocinada pela Agência Judaica, que garante uma visita à Israel a todo e qualquer judeu do
mundo por direito de nascença (birthright), e por conta de algumas rifas vendidas na “comunidade”, a
viagem de 15 dias custou 300 dólares por aluno.
12
A aparição de figuras que remetem a estereótipos orientalistas em sonhos me foi descrita em várias outras
ocasiões por alguns interlocutores.

6
que são mobilizadas quando se quer entender os outros nacionalismos, guerras, ocupações
e colonizações dos séculos XIX e XX. Através do estudo, de leituras e de encontros, entrei
em contato com outras narrativas e logo percebi que elas não me revelariam a verdade ou
as verdades que sejam, algum lugar seguro para se estar e de onde se falar, algum lugar
fora. Também elas, essas narrativas - e seus narradores - eram carne do “conflito”. Campo
de disputas que transborda o papel e a academia, as narrativas produziam doxas, limites,
quadros de inteligibilidade, e legitimidade.
Nesse processo de desmoronamento, tive a oportunidade de ir viajar à
Israel/Palestina numa viagem em que eu moraria por três meses em Yanoun, na região de
Nablus, Cisjordânia ocupada13, trabalhando como “acompanhante ecumênica” num
programa cristão em que eu seria a única judia (fora os colonos israelenses) 14. Meu
trabalho era, junto a outros “internacionais”, prestar “presença protetiva” aos palestinos da
região norte da Cisjordânia ocupada, principalmente à vila de Yanoun ameaçada pela
presença e violência dos colonos; escrever relatórios sobre as situações nas várias vilas,
descrevendo os casos pontuais de “violação aos direitos humanos” e “clashes” entre
palestinos e colonos, e compartilhá-los com as organizações parceiras do programa; e, por
fim, “testemunhar” o cotidiano da vida sob a Ocupação de modo que, de volta aos nossos
países (majoritariamente europeus, já que se trata de um programa financiado em sua
maioria por igrejas e instituições cristãs daquele continente), pudéssemos compartilhar
nossos “testemunhos” como forma de pressão política pelo “fim da Ocupação” e por uma
“resolução pacífica e justa em Palestina-Israel”. No momento em que decido fazer essa
viagem, eu trabalhava como professora de “história geral” na mesma escola judaica onde
havia estudado.

13
O termo “Cisjordânia” será usado aqui como sinônimo de West Bank. Trata-se de um dos ‘pedaços’ da
Palestina histórica, ocupada por Israel desde 1967. 5.600 km2 de território da Cisjordânia, ou West Bank,
onde vivem cerca de 2.747.943 palestinos, 592.200 “colonos” israelenses (sendo 201.200 em Jerusalém
oriental) (CIA, 2017), em desacordo com o direito internacional – “enquanto poder ocupante, Israel tem a
obrigação de proteger a população civil do território ocupado e administrá-lo em benefício desta população.
A destruição ou confisco de propriedade privada [...] e também a transferência de assentados (settlers) dentro
do território ocupado são proibidas.” (UN/OCHA-OPt, 2014 – tradução da autora). Para uma visualização da
Cisjordânia/West Bank produzida pela ONU, ver mapa no anexo III. No anexo III.I há uma ampliação da
região em que morei, a qual me refiro neste trecho.
14
O programa foi criado em 2002 pelo Conselho Mundial de Igrejas, em resposta ao chamado de algumas
igrejas em Jerusalém por presença internacional protetiva naqueles anos de escalada da violência. Desde
então, mais de 1.500 pessoas, entre 25 e 70 anos, trabalharam como “acompanhantes ecumênicos”.

7
Tendo postado fotos e relatos do cotidiano da Ocupação que, fui saber mais tarde,
ultrapassavam a crítica aceitável dentro de certa doxa – alguns desses limites, sendo um
deles a própria Linha Verde15, serão mapeados ao longo da dissertação -, sou demitida da
escola onde agora trabalhava e na qual havia me formado.
Os mapas (que não conheci nos tempos de escola), as histórias das vidas sob a
Ocupação, as fotografias ordinárias do cotidiano, as tecnologias de controle da construção
e reforma das casas, do trânsito, do acesso à terra e à água, os relatos das prisões das
crianças e das incursões militares nas escolas, a legislação que organiza a arquitetura da
Ocupação – todo esse conhecimento venenoso (DAS, 2011), pelo qual fui contaminada,
era tóxico e não poderia sequer ser compartilhado16.
De volta ao Brasil, era preciso recriar o mundo, reinventá-lo no sentido de invenção
que propõe Edward Said, no fim da vida, ao relembrar sua cidade de Talbieh, hoje parte do
Estado de Israel:
Em latim, invencio é encontrar novamente. [Este termo] foi usado na retórica clássica
para descrever o processo pelo qual você encontra [find] experiências passadas e as
rearranja para dar-lhes eloquência e novidade. Não é criar do nada, é reordenar. Nesse
sentido, eu me inventei. [...] Foi nesse momento [quando eu estava enfrentando uma
doença terminal], enquanto eu olhava para trás, que eu percebi que o mundo no qual eu
cresci, o mundo dos meus pais, de Cairo, Beirute e Talbieh de pré-1948, era um mundo
criado. Não era um mundo real. Ele não tinha o tipo de solidez objetiva que eu queria que
ele tivesse. Por muitos anos, eu lamentei a perda deste mundo. Eu realmente lamentei.
Mas agora eu descobri a possibildiade de reinterpretá-lo. [...] Eu entendi que meu papel
era contar e recontar uma história de perda onde a noção de repatriação, de um retorno
para a casa, é basicamente impossível. (SAID, 2002, tradução da autora)

Para onde retornar? Envolta nessas questões atravessadas por perplexidade – é esse
o primeiro nível da angústia que tratarei mais objetivamente adiante –, era preciso tentar
compreender (BOURDIEU, 2016b) a razão, sem com isso dar razão (op. cit, p.711) ao
silêncio, ao apagamento, à oclusão. Depois de algumas tentativas de aproximar-me das

15
Linha do armistício de 1949, assinado entre Israel e Síria, Egito, Líbano e então Transjordânia, que
funcionou, até junho de 1967, como fronteira de facto do Estado de Israel. Na prática, o armistício expande
em 22% a extensão de terra destinada ao Estado Judeu definida em 1947 pela ONU (56% da Palestina sob
“mandato britânico”, ou seja, do Mediterrâneo ao Jordão), e não mais existe como fronteira do Estado, como
retomarei principalmente na parte 2, quando for tratar das amterializações da crença. Para a visualização de
seu traçado, ver o mapa do anexo III.
16
Não só a escola demitiu-me antes mesmo de eu voltar ao Brasil, supostamente impedindo a possibilidade
de eu ter um efeito de contágio em meus alunos, como também outras insituições judaicas, nas quais eu havia
me formado, recusaram meus pedidos para que eu compartilhasse o conhecimento (e a dor) que trazia depois
da experiência da viagem.

8
pessoas daquela “minha comunidade” de São Paulo, que poderiam ser meus interlocutores
numa pesquisa que se perguntasse sobre as relações contemporâneas entre judeidade e
sionismo - essa foi a primeira forma com que entendi meu objeto - concluí que voltar não
seria possível, tampouco produtivo17.

Construção do campo
Nesse movimento de reinvenção, conheci, em São Paulo, um dos criadores de um
fórum “secreto”18 no Facebook que então me convidou a entrar no grupo virtual, composto
hoje19 por cerca de 830 pessoas, sendo 350 mulheres e 480 homens, que se reconhecem
como “judeus progressistas” e, em sua maioria, como “sionistas de esquerda”.
Os seis eixos da Declaração de Missão do grupo, documento publicado na internet
de forma aberta, foram construídos entre 2014 e 2015 com o intuito de serem eixos que
orientariam o sentido das ações levadas a cabo pelo grupo, formando um “hexágono
ideológico”, uma estrela de seis pontas. Eles são:
1 - Promover a consciência dos nossos imperativos éticos (referências éticas e universais);
2 - Paz justa em Israel-Palestina com fim da ocupação, uma solução com Dois Estados e
igualdade de direitos para todos em Israel;
3 - Combater todas as formas de racismo, exclusão, difamação e discriminação,
especialmente o antissemitismo e a islamofobia (antissemitismo como questão universal,
entre outras formas de exclusão);
4 - Estimular a participação de setores da comunidade judaica, ao lado das forças
progressistas, nas lutas por justiça social e na política do nosso país;
5 - Resgatar a memória da relação judaica com os valores de justiça, paz, e direitos
humanos (cultivar a memória judaica progressista, liberal e democrática);
6 - Atuar interna e externamente com processos, estruturas e cultura permeados pelos
valores de respeito, escuta, afetividade e apreciação, seguindo o princípio de sermos a paz
que queremos ver no mundo (nossa práxis como movimento).

Com esses eixos, o fórum virtual é entendido por seus membros ora como um
“caldo de cultura judaico progressista”, ora como uma “comunidade”, alternativa ao

17
Em certo momento, entendi que seria necessário sair de São Paulo para olhar de outra forma esse processo.
Nesse momento escolho então ir estudar antropologia social no Rio de Janeiro. Assim como Edward Said
usou o termo “home” para se referir à Universidade de Columbia, onde lecionava, posso dizer que o PPGAS
do Museu Nacional funcionou como uma casa durante esses anos de busca e pesquisa.
18
A categoria “secreto” para um grupo de Facebook significa que nem seu nome, nem seus membros ou as
discussões que acontecem ali, através dos posts, são acessíveis a não membros. Para entrar no grupo, é
preciso ser convidado por alguém ‘de dentro’ e fazer uma breve apresentação de si. Há também uma página
pública, “aberta”, com o mesmo nome do grupo e onde se postam posicionamentos e notícias, principalmente
no que se refere à Israel/Palestina, mas sua atividade é muito menos intensa e quase não gera discussões ou
polêmicas.
19
No ano em que entrei no grupo virtual, 2012, havia cerca de 200 membros.

9
“establishment judaico”, tido como “conservador”, como um “oásis na comunidade
judaica”, como disseram alguns, um lugar de “respiro”; e ora como um “movimento de
judeus brasileiros20, e de pessoas próximas a nós por afinidade, identificados com os ideais
de justiça, liberdade e solidariedade, organizados desde 2011 de forma presencial e
virtual”. Em entrevista de 2015, concedida à Associação Sholem Aleichem - Judaísmo e
Progressismo, uma instituição conhecida por sua trajetória de militância na esquerda
judaica carioca, e historicamente antissionista, um dos cofundadores da “comunidade”
explica o momento e a razão da fundação do grupo:
Talvez o “quando surgiu” deva ser remetido a 28 de junho de 2011, quando dez pessoas
se reuniram na casa do então cônsul de Israel, que tinha me proposto organizarmos
pessoas na comunidade judaica de São Paulo que tivessem opiniões de esquerda. Ele
achava anômalo a comunidade ser tão conservadora. Ele, eu e um diretor da CONIB
[Confederação Israelita do Brasil] fizemos uma lista, e cada um convidou alguns. Deu
liga [...] (STORCH, 2015).

Logo em seguida, diz que grande parte desses primeiros fundadores se dispersaram
e outras pessoas, “indicadas por dirigentes de instituições judaicas”, foram contribuindo
para a consolidação do “movimento”, que se estendeu para o Rio de Janeiro, além de mais
uma dezena de cidades brasileiras e um núcleo em Israel.
Daí em diante, várias ações que partiram de membros do grupo - e raramente do
coletivo, já que o consenso é difícil e são muito frequentes os impasses sobre os
procedimentos justos e democráticos para tomadas de decisão sobre ações políticas
conjuntas no caso de uma comunidade virtual, extensa e diversa como aquela - foram
concretizadas. Dentre essas ações, ressalto a participação de alguns dos membros, a
convite do Itamaraty, no seminário “Lado a lado: o papel das Diásporas para a paz Israel-
Palestina”, em Brasília, com lideranças palestinas brasileiras; jantares com “convidados
pinçados estrategicamente” como lideranças da diplomacia brasileira; estreitamento de
relações com instituições judaicas e com ativistas e intelectuais de Israel; e publicação de
manifestos e abaixo-assinados. Um dos mais significativos desses abaixo-assinados,
segundo um dos fundadores do grupo, foi a “Carta aberta de brasileiros judeus
progressistas pelo fortalecimento das relações Brasil-Israel-Palestina”, endereçada à então
presidenta Dilma Rousseff, ao Itamaraty e à sociedade israelense, na ocasião da indicação

20
Há também não brasileiros no grupo.

10
de Dani Dayan, ligado “à política de ocupação de territórios palestinos e com propostas de
anexação dos mesmos”.
Se não poderia levar em conta as discussões desenvolvidas nos posts do grupo
virtual secreto, o contato com seus membros – os quais, assim como todos os demais
interlocutores, serão tratados aqui de forma anônima –, foi fundamental na construção da
rede em que tracei o campo da pesquisa, seja indicando-me pessoas relevantes para
entrevista, aceitando serem entrevistados ou ainda compartilhando comigo materiais
relevantes e angústias. Composto em sua maioria por homens entre 35 e 60 anos, em geral
profissionais liberais, sendo alguns estudantes de pós-graduação e professores
universitários, e vários deles ligados a movimentos juvenis judaicos sionistas e/ou outras
instituições judaicas, tais como B’nai B’rith, Federações Israelitas estaduais (FISESP,
FIERJ), CONIB (Confederação Israelita do Brasil), institutos, clubes e escolas judaicas, a
“comunidade” se reconhece como uma voz dissonante no campo sionista, localizada nas
‘bordas’ da crença num sionismo possível na/de “esquerda”, ‘espremida’ entre os
“sionistas de direita” e os “anti/não sionistas”.
Se na “comunidade” em que fui formada, minha própria presença e os discursos
que trazia da experiência em Israel/Palestina foram inteditados, percebi que entre os
“judeus progressistas” a crença na possibilidade de um “sionismo de esquerda” tinha
limites mais ‘heterodoxos’ e seus membros se esforçavam, com variações distintas, por se
manterem dentro deles. Ao longo das primeiras entrevistas, sem ainda ter um recorte claro
de qual era de fato meu objeto, fui reconhecendo certos marcos daquilo que começava a
desenhar como meu campo de pesquisa, qual seja, o campo de tensão em torno do que
denomino o trabalho de manutenção da crença no “sionismo de esquerda”.
Definir-se “sionista de esquerda” significa, em primeiro lugar, afirmar o “direito
dos palestinos” a um “Estado Palestino” como desdobramento da afirmação do “princípio
de autodeterminação dos povos”, o mesmo que legitimaria o “direito dos judeus” a um
“Estado judeu”. Desse “Estado Palestino” não se tem um consenso sobre quais seriam seus
limites territoriais já que parte considerável dele já se vê ocupado por densa população
israelense e porque “são vidas já construídas, não se pode simplesmente deslocá-las”,
como disse um interlocutor. Se também não se tem consenso sobre como se chegará a esse
“direito”, a crença de que seria através do “diálogo” com “ambas as partes” entre pessoas

11
“moderadas”, e não “radicais, fanáticas”, é compartilhada por todos. Também unânime no
campo é a rejeição ao chamado civil palestino pelo movimento de Boicote,
Desinvestimento e Sanções à Israel21, embora a forma com que se lide com o BDS varie
entre ações explícitas e públicas de crítica que aproximam o movimento a uma “nova
forma de antissemitismo” até um “não apoio” que reconhece a “legitimidade” do
movimento.
Outro marco comum à crença “sionista de esquerda” significa ser crítico à
“Ocupação”, entendida como aquela porção de território que o Estado de Israel mantém
militarmente ocupado desde 1967 e para onde transfere população civil, constrói estradas,
universidades, cidades, indústrias e zonas de treinamento do exército exclusivas aos
cidadãos israelenses, além de explorar água e outros recursos naturais, proibir a construção
(ou mesmo a manutenção) de estruturas sem a licença da burocracia estatal, controlar
fluxos de coisas humanas e não humanas, deter crianças por atirarem pedras em jipes
militares, e outros inúmeros casos de violência de Estado22. Para os que compartilham a
crença, o Estado de Israel que administra e mantém a “Ocupação”, “imoral”, “vergonhosa”
e “não-sionista”, não é o mesmo Estado de Israel “de 48”, “direito legítimo do povo
judeu”, “reconhecido pelo direito internacional” e “democrático”. A Linha Verde, por isso,
é uma das fronteiras que delineia esse “sionismo”, “de esquerda”. Reforçá-la, aprofundá-la,
acreditar nela é parte de seus esforços de vida e de luta.
Também o não rompimento público com o “sionismo” é uma características
compartilhadas por meus interlocutores. Mesmo aqueles que me ‘confessaram’ estarem se
afastando da crença num sionismo de esquerda possível, não o fazem publicamente (“nessa

21
Conforme site oficial, o movimento BDS reivindica três direitos: o “fim da Ocupação e colonização de
todas as terras árabes e o desmonte do Muro; o reconhecimento do direito à igualdade plena dos cidadãos
árabes-palestinos de Israel [20% dos cidadãos israelenses]; e o respeito, proteção e promoção do direito de
retorno às casas e propriedades dos refugiados palestinos, como estipulado pela Resolução 194 da ONU”
22
Escolho usar o termo “violência de Estado” inspirada tanto na formulação de Butler e Spivak sobre o
Estado-nação que se funda na produção da privação através da criação dos excluídos e não nacionais, como
em meu próprio testemunho da situação em Israel/Palestina. Alguns exemplos do que chamo de “violência de
Estado” são: a burocracia da titularização das terras da Cisjordânia definidas por Israel em sua maioria como
“state lands”, o sistema de permissões que autoriza a mobilidade no território e qualquer tipo de construção
civil, reforma ou zoneamento, a política das “ordens de demolição”, a obrigação da comprovação contínua de
residência em Jerusalem Oriental, a vinculação da permanência a certos documentos e comprovantes de
pagamento de impostos, o regime de abertura dos portões agrícolas que dão acesso à terra limitado a horários
e períodos específicos do ano, os checkpoints, a legalização dos outposts (caravanas ilegais que dão origem
aos “assentamentos”), o acesso restrito à água presente no território palestino e as humilhações diárias.

12
altura da minha vida, me vejo cada vez mais distante do sionismo”; “eu duvido que algum
dia haja paz ali na região!”) e, se o fazem, é em certas condições (“Acho que não sou
sionista não, mas não fala pra ele [outro interlocutor]! [risos]. O sionismo é tão
fascistinha...”). De modo geral, o movimento do discurso “sionista de esquerda” faz-se em
sentido contrário ao rompimento, esforçando-se por separar a crença daquilo que a ameaça
a fim de salvá-la seja da maldita “Ocupação” ou dos “sionistas religiosos” que mataram
Yitzchak Rabin e que hoje têm no ministro da Educação e ministro dos Assuntos da
Diáspora um de seus representantes, seja dos “de direita”, encarnados principalmente ou no
“establishment” ou na figura de Benjamin Netanyahu, atual primeiro ministro reeleito,
quem estaria “mais preocupado com as eleições do que com Israel”.
Neste campo estreito, inflamado, em que se vêem os interlocutores, formular as
diferenças entre os “muitos sionismos”, seja os anteriores ao estabelecimento do Estado,
seja aqueles que ainda estão por vir, é um dos trabalhos exigidos pela crença. Outro
trabalho é eleger mapas e datas possíveis, e contornar os temas e termos tóxicos à doxa da
crença, acionados por aqueles que denunciam e apontam para sua impossibilidade.
Ainda que não todos, a maioria dos interlocutores que entrevistei é membro mais
ou menos ativo do grupo virtual dos judeus progressistas. Marquei as primeiras entrevistas
com algumas das pessoas que julguei centrais no campo, levando em conta tanto a
intensidade da sua participação nas discussões do grupo virtual quanto o reconhecimento
da relevância de seus posts pelos demais membros. A partir daí, fui seguindo a rede de
pessoas que me eram indicadas pelos próprios entrevistados.
Ao todo, foram entrevistadas 24 pessoas, entre 23 e 67 anos, que se definem como
“judias”, sendo que 14 delas considerei como interlocutores e interlocutoras centrais
(adiante apenas interlocutor/es), por se reconhecerem, com intensidades de atuação
distintas, como “sionistas de esquerda”. As outras 10 entrevistas foram feitas com aquelas
pessoas que chamei de interlocutores secundários23 e que assim serão identificados quando

23
Também descritos no apêndice II, são os interlocutores que não se reconhecem como “sionistas de
esquerda” e que apareceram em algumas falas como “preguiçosos em lidar com a contradição judaica”,
“judeus úteis”, “que se auto odeiam” ou “ingênuos”. Embora suas vozes não apareçam na dissertação com a
mesma frequência e intensidade como a dos interlocutores centrais - trata-se, afinal, de uma dissertação sobre
a angústia da crença sionista de esquerda e seus trabalhos de manutenção - essas pessoas, crentes de outras
crenças, ajudaram-me a compor a rede em que se vê atualmente ativo o drama em questão, tendo dessa forma
participado, mesmo que indiretamente, das elaborações e argumentos aqui apresentados.

13
mencionados no texto. Em condição de anonimato e tendo omitido certas marcas que
explicitam a identidade dos entrevistados24, desenhei um quadro geral (apêndice 2) em que
se pode ler as principais características de cada um deles, incluindo sexo,
profissão/ocupação e trajetória/localização no campo. Neste momento introdutório, trago
abaixo apenas um quadro resumido dos interlocutores, que poderá ser retomado em mais
detalhes com a leitura do apêndice 2.

1. Interlocutores/as situados dentro do campo “sionista de esquerda” em SP e RJ

N.o Idade Sexo Profissão/ Trajetória / Localização no campo


ocupação
1 +60 homem Profissional Distingue o judaísmo e o “sionismo dos reis” do judaísmo e o
liberal “sionismo dos profetas”, com o qual se identificaria, e que vê nos
aposentado fundadores dos kibutzim25 na Palestina. Identifica-se como
“periférico” na comunidade judaica e não se sente representado ou
tem vínculo com nenhuma instituição. É um dos fundadores da
comunidade JuProg. Até a data da entrevista, havia conhecido Israel
como turista e em sua última estadia de duas semanas passou um dia
na Cisjordânia ocupada. Hoje atua em outras frentes de luta no
Brasil, como no movimento Raiz e, nas últimas eleições municipais
de 2016, na campanha da Luisa Erundina.
2 +60 homem Profissional Diz que está “deixando de ser sionista aos poucos”, mas com
liberal bastante frequência participa das atividades organizadas pelos
aposentado grupos ativos no campo. Até a data da entrevista, não havia estado
nos territórios ocupados em 1967. Se por um lado afirma que “Israel
deve existir como um Estado democrático e judaico, nesta ordem”, e
se diz se emocionar quando ouve o hino de Israel (Hatikvá,
Esperança), por outro considera que o sionismo é um projeto do
século XIX que já se realizou com a criação do Estado de Israel.
Nas últimas eleições municipais, militou na campanha da Luisa
Erundina, embora considere algumas posições da esquerda “muito
radicais”.
3 +60 homem Profissional Uma das lideranças do núcleo brasileiro do Paz Agora nos anos

24
Na maior parte das vezes em que as falas são citadas, elas serão seguidas pelo número de identificação do
interlocutor, entre colchetes. Em alguns casos, quando a caracterização explicitar elementos que poderiam
quebrar o anonimato, escolhi propositalmente omitir o número correspondente ao autor da fala. Também
entre colchetes estarão as intervenções externas ao texto e, entre parênteses, as minhas falas geradas durante
as entrevistas. Em caixas alta estarão as palavras enfatizadas pelos interlocutores.
25
Colônia agrícola judaica baseada na propriedade comum dos bens de produção. Para outras palavras do
hebraico, consultar o glossário.

14
liberal 2000. Compôs uma iniciativa de “diálogo” com judeus e palestinos
aposentado do Brasil mas que, em função de divergências políticas,
principalmente no tocante à “questão do retorno”, não se
desenvolveu. Ser sionista para ele é uma identidade da qual não se
diz disposto a abrir mão e, em Israel, “sente-se em casa”. Viaja com
frequência para o país, esteve por uma tarde em Gaza, como turista,
quatro anos depois da ocupação israelense de 67. Em Israel, é
próximo das lideranças da Autoridade Nacional Palestina de diálogo
com a sociedade israelense.
4 +50 mulher Professora Uma das representantes do movimento Avodá-Brasil, ligado ao
de hebraico, partido trabalhista de Israel, tem formação universitária em ensino
líder de hebraico e bíblia. Hoje ocupa cargos em diversas instituições
comunitária judaicas, incluindo a Federação Israelita e o Congresso Sionista
e Mundial. Participa do diretório do Fundo Nacional Judaico [Keren
profissional Kayemet LeIsrael - KKL], responsável por “todas terras do Estado
liberal do de Israel”. Representa os judeus no Conselho Nacional de Políticas
terceiro setor de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), órgão da Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). É ativista de
direitos humanos no Brasil nas áreas de diálogos interreligiosos,
violência contra mulheres de favela, crianças em situação de rua e
violência policial.
5 +50 homem Profissional É um dos líderes de uma instituição judaica fundada nos anos 1960
liberal por imigrantes da Europa oriental e reconhecida no campo como
aposentado e laica, progressista e historicamente não sionista, embora hoje se
líder reconheça parceira do “sionismo de esquerda”, atuando em conjunto
comunitário com iniciativas que promovam principalmente “debates e palestras”.
Reconhece-se “sionista” por apoiar o Estado de Israel como um
Estado judeu “que já existe”; e “não sionista” por não acreditar na
saída nacional, “particularista”, para o “problema judeu”. Visitou
Israel como turista, e não tem cidadania israelense. Nunca visitou os
territórios ocupados em 1967.
6 +40 homem Profissional Não tem qualquer vínculo com instituições judaicas. Em Israel, onde
liberal mora parte de sua família, entrou em contato com o movimento Paz
Agora. Durante a faculdade, foi filiado a um partido considerado de
esquerda, mas saiu por não ver ali uma crítica suficiente ao
stalinismo e por enxergar certo antissemitismo na militância
antissionista. Seus textos publicados em uma revista virtual buscam
apontar aquilo que chamou de “antissemitismo mascarado de
antissionismo” dentro da esquerda.
7 +40 homem Professor Atualmente é uma das autoridades mais reconhecidas no campo do
com carreira “sionismo de esquerda”. Tem contato com representantes da
acadêmica diplomacia israelense no Brasil e é um dos fundadores de um grupo
de pesquisa em “estudos judaicos” em uma universidade pública
brasileira. Possui mestrado em sociologia e antropologia pela

15
Universidade Hebraica de Jerusalém. Tem cidadania israelense e
prestou serviço militar obrigatório numa cidade palestina ocupada.
Não é filiado a nenhum partido, embora tenha “conversas” com
algumas figuras políticas da “esquerda, centro e centro-direita”
brasileiras sobre as questões de Israel e do sionismo. Em Israel,
atualmente apoia o Meretz.
8 +30 homem Líder Participou de movimento juvenil de esquerda e emigrou para Israel,
comunitário prestando o serviço militar obrigatório. Formou-se em história do
oriente médio e, durante a graduação em Israel viveu uma “crise
pessoal” com o sionismo ao tomar contato com o discurso pós-
colonial. Hoje trabalha em uma instituição vinculada a um dos
movimentos juvenis “de esquerda” considerados ativos no campo,
promovendo debates e atividades que façam “pontes” entre os
“assuntos de Israel” e os “assuntos locais” com os quais a esquerda
se vê preocupada.
9 +30 mulher Profissional Não estudou em escola judaica ou teve uma sociabilidade
liberal comunitária. Viajou recentemente para Israel, pela primeira vez,
como turista. De família considerada de esquerda no Brasil,
classifica sua mãe, muito próxima aos fundadores do PT, como
“mais pró-palestina que pró-Israel”. Hoje milita por um partido
considerado de esqeurda, mas ainda sem filiação por não se sentir
segurança sobre as posições do Partido em relação à Israel. Participa
de um projeto de educação para mulheres de favela.
10 +20 homem Jornalista Completou o ciclo educativo de um movimento juvenil de
orientação sionista-socialista e hoje participa de um coletivo de
judeus de esquerda. Morou três meses em Belém, cidade na
Cisjordânia ocupada, fazendo um trabalho de acompanhamento
ecumênico e observação de direitos humanos através de um
Programa vinculado ao Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra.
Hoje tem família no Brasil, Estados Unidos e Israel, onde pensa em
morar a fim de tentar promover “encontros entre palestinos e
israelenses”.
11 +20 homem Estudante Fez o ensino fundamental em escola judaica e completou o ciclo
universitário educativo num movimento juvenil de orientação sionista-socialista.
Recentemente, trabalhou como voluntário e conselheiro em
instituições judaicas e participava de dois coletivos judaicos de
esquerda, um dos quais foi fundador. Faz trabalho voluntário numa
ONG que visa a superação da pobreza e é filiado a um partido
brasileiro reconhecido como de esquerda. Suas posições em relação
à Israel são reconhecidas como “mais à esquerda” do que seus pares,
“mas nada antissionistas”. Acredita na solução de dois estados,
embora não considere “justa a devolução total de toda a Cisjordânia
e Gaza” aos palestinos.
12 +20 homem Estudante Completou o ciclo educativo num movimento juvenil de orientação

16
universitário sionista-socialista, estudou em escola judaica a vida toda, ocupou o
cargo de coordenador de projetos sociais em uma instituição sionista
no Brasil e hoje é filiado a um partido brasileiro considerado de
esquerda, ainda que não aceite as posições dos grupos antissionistas
dentro do Partido. Considera sua família “conservadora” e de
“classe média alta”, tendo parente em cargos importantes dentro de
instituições judaicas.
13 +20 mulher Estudante Recém completado todo o ciclo educativo num movimento sionista
universitária de esquerda, onde passou “a vida toda”, trabalhou como
e líder coordenadora de relações externas de seu movimento e hoje
comunitária coordena um grupo vinculado ao Partido Meretz, no Brasil, que
busca aproximar a esquerda brasileira da esquerda sionista-
israelense. É conselheira voluntária em uma instituição judaica, um
cargo “difícil”, mas que escolheu ocupar pela “minoria jovem e
feminina”, pouco representada na instituição. Vê o “sionismo de
esquerda” como uma “utopia”, mas nem por isso deixa de militar
pelo “fim da Ocupação” e por um Estado de Israel “mais ético”.
14 +20 mulher Estudante Foi uma pessoa bastante atuante no movimento juvenil de
universitária orientação sionista-socialista do qual participou a vida toda, tendo
educado muitas crianças e jovens no sionismo e no judaísmo nos
quais acredita. Diz hoje reconhecer a importância de se viver “na
diáspora” e fora dos ambientes da “comunidade”, afirmando uma
“identidade sionista de esquerda” através da “escuta” e do “diálogo”
com os não-judeus. Hoje vê o “sionismo de esquerda” como uma
“utopia” ao mesmo tempo que o afirma como uma identidade e uma
prática do “falar, discutir, debater” e, principalmente, dizer que há
uma urgência em terminar a “Ocupação”, mesmo essa não sendo sua
primeira militância.

2. Interlocutores/as secundário/as situados/as fora do campo “sionista de esquerda”


em SP e RJ
N.o Idade Sexo Profissão/ Trajetória / Localização no campo
ocupação
15 +60 homem Profissional Vive em Israel desde os 18 anos. Fez o serviço militar obrigatório e
liberal do sua base era na Cisjordânia ocupada, perto de Jerusalém, tendo
terceiro setor colocado “ao exército” a condição de não sair de sua base. Hoje atua
numa ONG de educação não formal em Israel na qual organiza
colônias de férias “bilíngues” para crianças de 7 a 13 anos, “metade
judeus, metade árabes”. Pelo fato deste estudo estar restrito ao
sionismo de esquerda no Brasil, este interlocutor não foi considerado
como parte do campo principal considerado aqui.
16 +30 homem Profissional De família “toda FHC e Lula do mal”, completou o ciclo educativo
autônomo sionista-judaico em um movimento juvenil sionista sem orientação

17
política definida à esquerda. Hoje é filiado a um partido tido como
de esquerda no Brasil. Entende a relação do sionismo na esquerda
como algo “muito complicado”. Buscou se inserir em instituições e
grupos judaicos “progressistas” com o intuito de pensar formas
coletivas de lidar com o dilema da “identidade judaica na esquerda
hoje”, mas acabou se frustrando e hoje vê o discurso “sionista
progressista” como muito próximo ao discurso “da direita”, sendo
este apenas mais “violento” e inescrupuloso. Nunca esteve nos
territórios palestinos ocupados a partir de 1967. Não acredita ou
milita pela solução de dois estados, que classifica como “uma
besteira”.
17 +60 mulher Profissional Aos 12 anos começa a “sonhar sonhos de utopia em Israel, sonhos
liberal com o kibutz, da igualdade das mulheres, do heroísmo, da
segurança... sonhos de esquerda”. Impulsionada por esses sonhos,
em 1967 atende ao chamado da Agência Judaica que conclama
voluntários jovens judeus para irem à Israel ajudar nos kibutzim
durante a guerra. Após vários “choques” e “desilusões” com Israel,
volta ao Brasil concluindo que “sionismo é racismo” e que, “por
definição, prevê uma teocracia”. Ao falar sobre os “sionistas de
esquerda”, diz que são sujeitos “bem intencionados” e “bonzinhos”
e, por sentirem “culpa”, não podem admitir que Israel é hoje um
“Estado racista, cruel, opressor”. Reconhecendo-se como
“ecofeminista”, hoje ela vê correspondências entre o “não” dos
palestinos e o “não” da mulher sendo estuprada.
18 +20 homem Profissional Nascido em Jerusalém e crescido num país latinoamericano, estudou
liberal em escola judaica por toda vida e participou de um movimento
juvenil de orientação sionista-socialista durante toda a juventude no
Brasil. A partir do contato com outras perspectivas trazidas em
palestras, leituras e contato com outros judeus não sionistas,
começou um processo de crítica profunda aos fundamentos do
movimento juvenil o qual liderava, passando a desconfiar de tudo o
que havia aprendido até então. A partir de uma viagem com um
programa educacional que busca ouvir vozes silenciadas quando se
fala do “conflito Israel/Palestina”, vive um processo que chamou de
“desaprendizado” e “descontrução” profundos, rompendo
publicamente com o sionismo, “qualquer que seja ele”. Hoje, parte
de sua família mora em Israel, sendo que uma parcela em
assentamento na Cisjordânia ocupada.
19 +40 homem Funcionário Desprovido de qualquer vínculo com a comunidade judaica, não
público participou de nenhum movimento juvenil. Hoje publica textos nos
quais comenta os “erros cometidos pelos governos de Israel” e
também textos que denunciam a “educação judaica ‘de gueto” e a
“lavagem cerebral” que recebera no colégio onde estudou e que foi
educado à “sacralizar Israel e tê-la como referência identitária

18
necessária” em função da morte dos “6 milhões, 6 milhões, 6
milhões”. Hoje, entende sua história conectada mais à Polônia, de
onde vieram seus pais, do que à Israel.
20 +60 homem Profissional Considera-se a si mesmo como um “judeu não sionista, derrotado”
liberal pela história que deu fim aos roite iden, em ídische, os “judeus
aposentado vermelhos”, “não religiosos e contra Israel”, com os quais se
identificava. Por muitos anos foi filiado a um “partido comunista”,
com o qual rompeu recentemente. Entende o projeto do sionismo
como incompatível à esquerda e à democracia. É descrente em
qualquer solução para a região e, por estarem tão arraigados,
considera tanto o antissemitismo como o sionismo realidades que
“não se acaba por vontade ou boa intenção”.
21 +60 homem Professor De família não sionista “e até antissionista”, foi um dos fundadores
com carreira da Comissão de Assuntos Judaicos do PT (CAJU), criada em São
acadêmica Paulo em 1986, que atuou tanto como “assessora” dos candidatos do
PT quanto na “ampliação de debates dentro do Partido sobre a
cultura judaica inserida na sociedade brasileira e a questão do
conflito árabe-israelense”. Hoje acredita no projeto do sionismo de
esquerda, vendo na criação de um Estado palestino nas fronteiras de
1967 a opção “mais justa”, embora se coloque como “um pessimista
em relação à qualquer solução para o conflito”. Por não se ver ativo
no campo hoje ou mesmo angustiado com a questão, considerei-o
como um interlocutor secundário.
22 +30 homem Pesquisador Sem ter estudado em escola judaica ou participado de movimento
acadêmico juvenil, afirma-se um “não sionista” interessado numa “tradição
judaica diaspórica”. Sua família judaica é de origem egípcia, persa e
romena e sente um “incômodo” grande em relação à
representatividade que Israel “se coloca a si mesmo”, falando em
nome de todos os judeus. Por entender que sua judeidade é afetada
pelo que Israel faz e por se ver como uma minoria mesmo dentro do
campo dos judeus progressistas, optou por se aproximar de
iniciativas internacionais de judeus que lutam pelo fim da “ocupação
dos territórios”.
23 +60 homem Profissional Resume sua trajetória como um “judeu de esquerda” até os 15 anos,
liberal um “período sionista” dentro de movimento juvenil e, hoje, “de
aposentado esquerda”. Sobre a “fase sionista”, diz que entrou no movimento
juvenil “conquistado” pelas ideias que “misturavam sionismo com
socialismo”. Durante uma viagem à Israel com seu movimento
juvenil foi tendo alguns “cliques” sobre a “questão Palestina”, mas
foi a partir da leitura de um texto que desenvolvia, com argumentos
marxistas, o caso da colonização da Palestina como uma
“colonização de povoamento” (settler colonialism), que passou a se
identificar como “um antissionista com consciência”. Hoje é filiado a
um partido socialista trotskista. Diferente dos interlocutores centrais,

19
não vê a questão Israel/Palestina como um confronto entre dois
direitos nacionais.
24 +60 homem Jornalista Filho de pais nascidos no Brasil e neto de avós crescidos na Palestina
“antes da colonização sionista”, participou de movimento juvenil
judaico “sionista de esquerda” durante toda a adolescência. Indo
morar em Israel, conheceu e ingressou na “organização antissionista
e anticapitalista” Matzpen (‘A Bússola’). Candidatou-se a deputado
no parlamento israelense pela lista “Socialista Revolucionária”,
composta por membros do Matzpen, da Aliança Comunista
Revolucionária e dos Panteras Negras – árabes judeus que “lutavam
contra a discriminação racial” em Israel. De volta ao Brasil, se filiou
a um partido conhecido como “revolucionário” e mais tarde se
elegeu vereador por outro partido no Nordeste. Vê o sionismo como
“uma forma de racismo”, edificado sob um “regime de apartheid” e
tem um livro publicado sobre o assunto, que foi considerado
“terrível, asqueroso” pelo único interlocutor do campo que citou a
obra.

Com exceção de duas pessoas, todos os contatados para entrevista se dispuseram a


conversar comigo e me davam, alguns com bastante generosidade, elementos para que eu
“compreendesse”. A necessidade de “explicar” e de “compreender” foi acionada pelos
interlocutores com alguma frequência e, na situação de entrevista, entendo que ela possa
expressar algo sobre o lugar que eu ocupava nessa interação. Se “contaminada” com
críticas às vezes “muito radicais” porque fora da doxa da crença nos “dois Estados”, seus
pressupostos e desdobramentos, e trazendo elementos de outras gramáticas, suponho que
eu ainda era vista como uma interlocutora válida, de alguma forma ainda alvo da magia26.
Parece-me que tanto a disposição em aceitar o convite à entrevista, conhecendo, na maioria
dos casos, as minhas posições27, quanto a própria produção das falas nas entrevistas
tenham sido atravessadas pelas marcas sociológicas que carrego e que acionavam nos
interlocutores um desafio duplo: aquele que era ativado nos regimes de justificação
(BOLTANSKI, 1990) diante de meus posicionamentos críticos, do conhecimento que

26
Os termos em que entendo a magia serão explicitados mais adiante e trabalhados ao longo de toda a
dissertação.
27
No momento do contato das pessoas para entrevista, em 2016, a história da minha demissão política já
havia corrido alguns meios progressistas judaicos do Rio de Janeiro e São Paulo, o grupo virtual e outros
ambientes da “comunidade judaica”. Também em agosto de 2014, durante a invasão à Gaza que matou mais
de 2.200 pessoas e deixou 500.000 deslocadas, eu havia participado, junto a outros judeus, de um protesto em
frente ao consulado de Israel em São Paulo e que foi amplamente divulgado nas principais mídias.

20
adquiri na viagem outsider que fiz e do meu lugar de pesquisadora em uma instituição
consagrada; e outro, o do convencimento possível diante de uma figura judia, mulher,
jovem e, se pesquisadora, ainda mestranda.
Se a entrevista foi a principal forma de interação com os interlocutores na
construção do campo, ela não foi a única. Além de “pessoas-chave” com as quais eu “tinha
que falar”, alguns dos entrevistados compartilhavam comigo, ou em seus perfis no
Facebook, eventos públicos que se propunham a discutir temas que giravam em torno do
problema do sionismo na esquerda ou de esquerda e que aconteciam em São Paulo e no
Rio de Janeiro. Estive presente como ouvinte em sete desses eventos. Muitos deles eram,
direta ou indiretamente, mobilizações recentes na “diáspora” judaica, incentivadas,
ideológica e materialmente, por forças políticas da esquerda israelense, organizadas ou não
em partidos, e fomentadas pelo quinquagésimo aniversário da Ocupação militar, completos
neste ano de 2017. O fato dessas situações serem bastante distintas da situação de
entrevista por acontecerem, geralmente, em alguma instituição judaica e reunirem pessoas
interessadas no assunto, além de trazerem um palestrante ou um debatedor que se
propunha a falar sobre um determinado assunto, fez com que algumas delas fossem
bastante elucidativas do trabalho produtivo da enunciação “sionista de esquerda” e de suas
angústias.
Com todo esse material etnográfico, fui percebendo algo sobre os matizes do
campo, sua (longa) história, forças e embates internos, e também sua extensão. O grupo de
onde eu partia, dos “judeus progressistas” do Brasil, era apenas um pequeno ponto numa
rede bastante viva, abrangente e complexa onde circulavam, pelo menos desde 1901
(BARTEL, 2012), pessoas judias e não judias, instituições, partidos, consulados, forças
políticas do Brasil e de Israel, dinheiro, materiais e discursos de campanhas internacionais,
literatos e acadêmicos, narrativas, fantasmas e feiticeiros na produção, circulação,
transmissão e expansão da crença “sionista de esquerda”.
Importava-me compreender melhor, dentro desse universo crítico a certa política
colonial - ainda que nem “colonialismo” nem “racismo” sejam termos frequentes na
gramática do campo -, quais eram os matizes, os limites inexoráveis que não se
ultrapassava e os trabalhos de produção de um “sionismo de esquerda” no Brasil
contemporâneo frente aos inúmeros desafios impostos. Como fui entendendo aos poucos,

21
essa magia nativa “sionista de esquerda”, forma de lidar com os infortúnios, não era só
uma angústia “minha” (“como é possível se afirmar um sionismo de esquerda hoje, depois
de tudo?”), mas um problema interno ao universo êmico, com o qual os interlocutores têm
de lidar a todo momento, ao qual eles têm que responder e a partir do qual constroem-se,
na “diáspora”, enquanto sujeitos político-morais, movimentando o sentido das suas ações e
seus discursos, que serão aqui entendidos como atos de fala (BOURDIEU, 1996).
Se para Bourdieu (1996), “[a] pretensão de agir sobre o mundo social através de
palavras, isto é, magicamente, é mais ou menos insana ou razoável, dependendo do grau
em que está fundada na objetividade do mundo social” (op. cit., p.62), busquei estar atenta
à eficácia simbólica que a enunciação “sionista de esquerda” provoca em certo mercado de
bens simbólicos, capaz (ou não) de transformar o sionismo e o sionista em projeto e
ontologia “de esquerda” hoje no Brasil. No contexto do campo que investiguei, a
enunciação “sionista de esquerda” é em si um ato criativo por aquilo que mobiliza em
relação ao estado de angústia em que se encontram os próprios interlocutores, sujeitos
agonísticos no jogo social do enfrentamento do si consigo e com os outros. A dimensão
ética é, nesse caso, ilocucionária, ou seja, se realiza na linguagem, e prevê uma escolha,
um cálculo, certa agência sobre as consequências das ações (com quem se fala, como se
fala, para quem se fala, etc.).
Escolhi trabalhar com os termos da angústia considerando escalas distintas. Num
primeiro nível, “angústia” é a categoria como eu organizo e percebo o campo do “sionismo
de esquerda” que construí, tendo em vista meu próprio lugar implicado no campo. Nesse
sentido, angústia é um conjunto de inquietações, desconfortos e formas de qualificação que
os interlocutores fazem e que vejo como uma condição angustiada. Num segundo nível,
“angústia”, “aflição”, “depressão”, “frustração”, “contradição”, “preocupação” são termos
que constituem o próprio campo semântico êmico mobilizado pelos interlocutores. Por
último, também parte da literatura que aciono constitui, ela mesma, parte da angústia ao
participar ativamente do campo em disputa em que se vê a crença/descrença num
“sionismo de esquerda”. Nesse sentido, este modo de tratar o “problema” se vê
inescapavelmente ligado à dobra em que eu mesma estou localizada no campo que
construo. Como ficará mais claro ao longo da dissertação, ocupo diversos lugares de
qualificação, seja considerando meu posicionamento/trajetória (é impossível não ter

22
posicionamento/crença neste campo e, nesse sentido, também eu sou uma ‘interlocutora de
mim mesma’), a etnografia que faço (levando em conta o que os interlocutores qualificam
na interação comigo) e a forma como a tensão é qualificada pela bibliografia que escolho
acionar. Se esta sobreposição não é um impeditivo ao trabalho, mas a própria condição de
produção da pesquisa, meu esforço aqui tem de ser o de tentar objetivá-la o máximo
possível.
Tendo dito isso, o objeto desta dissertação se vê assim concentrado nessa zona de
tensão primordial que a própria formulação e o enunciado do “sionismo de esquerda”,
movimenta como um problema, como um dilema moral, ao mesmo tempo ontológico,
político e ético, através do qual os interlocutores constroem-se a si mesmo como sujeitos
político-morais. Como coloca Foucault,
para ser dita "moral", uma ação não deve se reduzir a um ato ou a uma série de atos
conformes a uma regra, lei ou valor. É verdade que toda ação moral comporta uma
relação ao real em que se efetua, e uma relação ao código a que se refere; mas ela implica
também uma certa relação a si; essa relação não é simplesmente "consciência de si", mas
constituição de si enquanto "sujeito moral", na qual o indivíduo circunscreve a parte dele
mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao
preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização
moral dele mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-
se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se. Não existe ação moral particular que não se
refira à unidade de uma conduta moral; nem conduta moral que não implique a
constituição de si mesmo como sujeito moral; nem tampouco constituição do sujeito
moral sem "modos de subjetivação", sem uma "ascética" ou sem "práticas de si" que as
apoiem. A ação moral é indissociável dessas formas de atividades sobre si [...]”
(FOUCAULT, 2009, p.37)

Se, dizem alguns interlocutores, havia sido diferente “nos bons tempos dos
kibutzim”, ser “sionista” e “de esquerda” é, hoje, um trabalho de agonia. Não sendo mais
judeus os refugiados e a minoria perseguida desprovida de direitos, e tendo Israel, o Estado
Judeu, finalmente se “normalizado”, tornando-se uma potência bélica no Oriente Médio,
exportadora de tecnologia de controle de população civil e armamentos de ponta; um país
neoliberal, que, “igual a todos os outros”, se recusa a admitir formalmente e se
responsabilizar pelos crimes cometidos contra os povos indígenas28; os interlocutores se

28
Como se vê na análise de discurso dos livros escolares feita pela linguista professora da Universidade
Hebraica de Jerusalém, Nurit Peled-Elhanan (2012). Sobre os dez livros que analisou, escolhidos por sua
popularidade em “mainstream secular [...] schools”, todos autorizados pelo Ministério da Educação de Israel
e usados nas disciplinas de história, geografia e estudos civis, ela conclui que nos momentos raros em que
palestinos são retratados, eles aparecem ora como ameaça ora como figuras primitivas, e conclui: “nenhum
dos livros estudados aqui incluem [...] qualquer aspecto cultural ou social positivo do mundo da vida
palestina [...] e todos representam eles [os palestinos] em ícones racistas ou em imagens classificatórias

23
vêem num lugar “difícil”, lutando pela “esquerda” nos espaços sionistas e pelo “sionismo”
nos espaços de esquerda29.
Encarar o “sionismo de esquerda” como uma empreitada nativa que envolve
política, moral e subjetividade permitiu-me entender a intensidade da produção de
discursos, no mundo virtual e fora dele, em que se vêem imersos os interlocutores.
“Explicar”, “debater”, “dialogar”, “publicar”, “escrever”, “conversar”, “responder”,
“desmentir”, “apoiar” são alguns dos verbos que compõem o universo semântico desse
campo vasto do “sionismo de esquerda”, circunscrito, aqui, nas cidades do Rio de Janeiro e
São Paulo30. Seguindo Marcel Mauss (2003), é nesse sentido, como um campo agitado e
produtivo que demanda trabalho e tem materialidade, que entendo o campo do “sionismo
de esquerda” como uma crença.
Importante dizer que tanto a rede de interlocutores quanto as práticas e
materialidades da crença compõem um campo que fui construindo a partir das
interlocuções estabelecidas, principalmente nas situações das entrevistas 31 e falas públicas
que se localizam num espectro de variedades de problematização da possibilidade de um
sionismo de esquerda hoje. Fiz desse espectro o campo da angústia suscitada pelo drama
da crença “sionista de esquerda”.
Como toda rede de interlocuções, esta foi constituída por um conjunto de
articulações, de modo que se pude acessar algumas pessoas, outras eu necessariamente não
pude, seja porque não houve condições de acesso (não consegui o contato, não obtive
retorno, fui desconvidada para um evento, se eu falei com esta eu já não “precisaria falar”
com aquela, etc), seja porque elas não foram citadas por serem “invisíveis”, “óbvias” no

humilhantes tais como terroristas, refugiados e agricultores primitivos – os três ‘problemas’ que eles
constituem para Israel.” (op. cit., p.49, tradução minha). Todos os livros foram escritos entre 1996 e 2009,
após os “acordos de paz” de Oslo, portanto, e três deles “foram avaliados por pesquisadores como mais
progressistas do que outros por apresentarem narrativas mais complicadas [...] assim como por priorizar
perspectivas críticas.” (op. cit., p.22, tradução minha).
29
Os sentidos de “sionismo” e “esquerda”, aqui considerados por enquanto em sua dimensão êmica, serão
descritos e trabalhados ao longo da dissertação. Procurarei não tratar tais categorias como dadas, mas
entender como tais termos funcionam nas falas dos interlocutores, bem como quais obliterações
performatizam.
30
Escolhi considerar essas cidades por elas se verem mais ativas dentro das redes que acionei a partir do
grupo dos judeus pogressistas. Há, no entanto, redes importantes ativas nas formulações de um “sionismo de
esquerda” possível também em outras cidades, principalmente Porto Alegre.
31
O roteiro-base usado nas entrevistas se encontra em anexo. Friso que tais perguntas revelam mais os temas
pelos quais a conversa passou, do que de fato interrogações que foram respondidas.

24
campo, ou então não mais reconhecidas como “ativas”. Se é certo que os filtros que me
levaram a umas pessoas e não me levaram a outras têm relação com redes morfológicas,
institucionais e de parentesco, não será a ligação dessas pessoas com tais redes e tampouco
as redes em si meu objetivo de pesquisa.
Ressalto que esta dissertação não pretende ser uma antropologia do campo
sociológico do sionismo de esquerda no Brasil em sua densidade institucional, demasiado
amplo e complexo. O objetivo aqui é tentar mapear esse campo agitado do sionismo de
esquerda contemporâneo e descrever o trabalho que a crença mobiliza diante das
interpelações vividas por alguns fragmentos de setores da população judaica do Rio de
Janeiro e São Paulo, vinculados a certas redes de maior ou menor densidade institucional
que serão localizadas e remetidas apenas quando forem relevantes à discussão.
Se é difícil separar e objetivar o que é materialidade, prática ou simbologia da
crença, escolhi privilegiar aquilo que as pessoas relatavam nas situações de entrevista, nas
quais, como nas situações de confissão ou de relato de si, se dá a “cena verbal e corporal
da demonstração de si mesmo, [em que] o sujeito se fala, mas na fala torna-se o que é”
(BUTLER, 2015, p.146).
A magia é real, nos ensina Mauss (2003), ela dá trabalho, exige rituais e, se o
feitiço não deu certo é porque o feiticeiro errou o ritual, e assim a magia segue sendo crível
e produzindo sentidos de mundo, sujeitos, sonhos, lutas, sentimentos. Devo admitir desde
já que um dos meus maiores desafios no trabalho etnográfico foi o compromisso de levar a
crença “sionista de esquerda” a sério, esforçar-me por não julgá-la e não travar uma batalha
contra ela, mas tentar compreendê-la, dando-lhe legitimidade e ‘veracidade’ sem que isso
significasse subscrevê-la.
Tendo afeto pelas pessoas com quem morei na Palestina ocupada e desde então
militando em solidariedade à causa, era preciso ser afetada por aqueles dos quais eu
discordava, era preciso “reabilitar a ‘velha’ sensibilidade”, como diz Favret-Saada (2005).
Eu era plateia nos eventos, rituais da magia, nos quais feiticeiros explicavam sua “razão”
através de argumentos-feitiço. Nas entrevistas, era para mim que explicavam o porquê
“Israel é imprescindível para os judeus do mundo”, o porquê “lutar pelo sionismo de
esquerda no Brasil é fundamental”, o porquê “dois Estados para dois povos é a única
solução razoável para o conflito”, o porquê “a Ocupação e o fundamentalismo - de ambos

25
os lados - eram o problema”. Compreender demandava deixar-me afetar pela feitiçaria
sem que
“a “verdade” [viesse] escorrer sobre o “real”, e este, sobre o “observável” [...], depois
sobre o “fato”, o “ato” ou o “comportamento”. Essa nebulosa de significações [teria] por
único traço comum o fato de opor-se a seu simétrico: o “erro” escorria sobre o
“imaginário”, sobre o “inobservável”, sobre a “crença” e, por fim, sobre a “palavra”
nativa (FAVRET-SAADA, 2005, p. 156).

Proteger-me reproduzindo nos meus interlocutores a Grande Divisão entre “nós”,


judeus não sionistas emancipados pela Razão e pela Verdade, e “eles”, adeptos da feitiçaria
que transforma em utopia um Estado que se faz colonial e racista, me impediria de ouvi-
los, afinal, ““nós” também já acreditamos em feiticeiros, mas foi há trezentos anos, quando
“nós” éramos “eles”” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 157). Talvez essa condição de afeto em
que me via durante as entrevistas, como judia contaminada pela luta e dor palestinas
pesquisando o campo sionista, explique a dificuldade que tive em redigir o roteiro de
perguntas (apêndice 1) que guiaria minha relação com os interlocutores durante as
entrevistas. As questões que formulei no papel - e que, no processo vivo da entrevista,
eram “naturalmente” ajustadas no tom da voz ou na forma de perguntar, geralmente
amenizadas - foram se mostrando numerosas demais, complexas demais e por vezes ácidas
demais. Isso revelava não só uma curiosidade de pesquisa, mas também certo desejo de
provocar os interlocutores, contaminá-los, imputar-lhes certa vergonha - uma ‘metodologia
militante’ que, devo dizer, logo no início do campo se mostrara mal sucedida, pequena
demais que eu era diante do encanto da crença.
Assim, é importante ressaltar que não só eu política e subjetivamente, mas também
a “pesquisa” era parte constitutiva do campo - seu próprio enunciado era uma espécie de
termômetro e também disparador da angústia. Assim que lhes apresentava as inquietações
que motivavam a investigação (para isso, eu contava a história da minha relação com o
tema - indissociável da pesquisa em si - e dizia que o corte que escolhi ia no sentido de
tentar “entender o sionismo de esquerda entre judeus no Brasil hoje”) várias pessoas
reagiam explicitando a “importância desta pesquisa em dias de Trump e Netanyahu, em
que os religiosos comemoram os 50 anos da retomada da Judeia e Samária”. Tentando “me

26
ajudar”, iam elencando obras, “clássicos”, pessoas e discussões incontornáveis na “minha
pesquisa” assim como os riscos que corria32.
Tentando lidar com as pressões e com os vários convites a coorientações de
interlocutores, não pedidas, afirmo que será impossível atender à pluralidade das demandas
feitas, e que, sim, procurarei estar atenta aos riscos da “pesquisa”, sem com isso deixar de
fazê-la do modo que me foi possível. Nesse sentido, escolher uma orientadora outsider ao
campo me ajudou na objetivação desses dados - e, consequentemente, na calma diante da
inquietação que essas tantas “sugestões” me geravam. Desse modo, adianto que
decepcionarei feiticeiros, enfeitiçados e quem tivesse o desejo (compreensível) de que,
como eu fosse parte dos desenfeitiçados, que eu tivesse poderes de desfazer o feitiço.
Como toda relação, a situação de entrevista é uma situação social densa e, portanto,
tem efeitos nos resultados da pesquisa (BOURDIEU, 2016b). E se parte do trabalho desse
“olho” sociológico é objetivar as condições da troca e seus sentidos33, é preciso dizer que
no “mercado de bens linguísticos e simbólicos” instituído no momento da entrevista ocupei
certo lugar de mendicância na dissimetria social que se verifica quando uma jovem mulher
aprendiz de antropologia, judia e não sionista (posição, como disse, explicitada logo na
apresentação da pesquisa), estuda “para cima” (NADER, 1971), entrevistando pessoas
mais velhas, em geral homens que são ou foram ligados a instituições sionistas. Com
quatro interlocutores, porém - hoje não mais vinculados institucionalmente a nenhum
órgão sionista (ainda que militantes de um sionismo de esquerda), sendo três deles da
mesma idade que eu e duas delas mulheres - o fato de eu ter morado na Cisjordânia ou ter
feito faculdade de história contou para mim como uma vantagem de capital simbólico na
situação da entrevista. Essa vantagem se expressou em falas como: “mas eu posso estar

32
Os “riscos” que este trabalho corria me foram lembrados por alguns interlocutores. Tal como os
“candomblecistas que queriam estudar o candomblé” ou os “médicos que queriam estudar medicina”, o fato
de eu ser de “dentro” trazia “uma responsabilidade” e um “desafio extra”, tarefa que só antropólogos como
Gilberto Velho, nos estudos sobre sua Copacabana, dera conta, e que agora seria o meu desafio, o de
“desnaturalizar o natural”: “eles nunca poderão ser sua Bali porque você não é estranha aos significados do
bar-mitzvah, das festas etc.”, ou então: “e o que isso tem a ver com antropologia social?”, ou ainda “olha, eu
não conseguiria fazê-lo, mas quem sabe você o consiga” - eram alertas que, neste caso, vinham de
interlocutores intelectuais de ascendência judaica, mais velhos do que eu, e bastante familiarizados com a
antropologia social.
33
De modo, diz Bourdieu, a medir a “amplitude e a natureza da distância entre a finalidade da pesquisa tal
como é percebida e interpretada pelo pesquisado, e a finalidade que o pesquisador tem em mente” (op. cit., p.
695).

27
falando besteira [sobre essas questões de território], não sei, depois você pode me dizer se
eu tô errado, você que morou lá” ou “[,apresentando-me a outra pessoa:] A Bianca é uma
joia rara. É uma judia quase-palestina! Morou três meses lá” e ainda: “você com
conhecimento histórico muito maior que o meu me corrige se eu tiver errada, mas…. até
onde eu sei, em 1900 quando chegaram lá e construíram.... aqueles terrenos foram
comprados. Ou não?”.
Talvez “mais fácil” teria sido reproduzir a fabricação do outro para fora, como me
fora sugerido algumas vezes, reproduzir a “outrez” nos “palestinos” - essa entidade
longínqua, ameaçadora e sem rosto (LEVINAS apud BUTLER, 2012). No entanto, porque
pra onde e por onde olhar o debate é também uma decisão política e portanto
metodológica, a escolha por fazer “nativos” os “judeus sionistas de esquerda” no Brasil,
em sua maioria brancos, ashkenazitas34 homens, intelectuais e “progressistas”, e estudar
(n)o circuito desses debatedores, desses formuladores de crítica e de modos de pensar a
“questão Israel-Palestina” e o “sionismo de esquerda” foi uma das escolhas políticas deste
trabalho. Nesse sentido, não perco de vista o “ponto de vista” da autora, crítico à crítica,
quem, com esta longa introdução, tentou explicitá-lo e objetivá-lo, fugindo do truque dos
olhos de deus (HARAWAY, 1995).
Considerando o caráter material, produtivo e prático que a crença demanda
(MAUSS, 2003), dividi a dissertação em duas partes, sendo a primeira dedicada aos
mecanismos de produção social da crença, sua circulação e transmissão principalmente
entre as pessoas que se reconhecem como “judias sionistas”. No primeiro capítulo desta
parte, tratarei do esforço de preservação da crença no projeto político-moral “sionista de
esquerda” a partir de certos materiais e operações de montagem. Para isso, destacarei a
relação dos interlocutores com o passado do “povo judeu”, tentando perseguir os fantasmas
ativos na crença e na construção do Estado de Israel como um Estado-Esperança, um
Estado-Vingança e um Estado-Monumento, regido por certa economia política de mortos.

34
De Aschkenas, Alemanha: judeu de origem alemã e, por extensão, dos países eslavos; sua língua é
originalmente o ídische. Os sefaradim, ou sefaraditas, de Sfarad, Espanha, são os judeus de origem ibérica,
após a expulsão de 1492 dispersos no norte da África e Império Otomano. Sua língua é o ladino, uma mistura
de espanhol medieval com elementos do árabe, do turco e do hebraico. Há também os judeus da região do
levante asiático (Jordânia, Líbano, Iraque e Síria), da Ásia central e também do norte africano. Estes,
considerados a diáspora judaica mais antiga, são chamados genericamente de “mizrachim”, “orientais”,
classificação a qual voltarei adiante.

28
Aqui, as narrativas sobre um passado e a referência a pessoas, tempos, fronteiras e
acontecimentos específicos são um pilar de sustentação da crença. Ainda na parte II, no
segundo capítulo, descreverei dois eventos que caracterizei como ritos mágicos do fazer
crer, também ligados aos trabalhos de manutenção e transmissão da crença.
Na segunda parte, dedico-me à práxis da crença através de algumas batalhas
discursivas e embates públicos que apareceram no campo demandando aos interlocutores
“explicação”, “diálogos” e “esclarecimentos” sobre pontos nevrálgicos do dilema,
apontados por acusadores da crença. Nesses embates públicos, que fazem parte de uma
ética do encantamento dos outros, mas também de um trabalho de produção de si, localizo
o esforço mais intenso da magia por mantê-la e protegê-la de outros fantasmas que a
rondam, através de uma gramática específica de mágicos explicadores que “esclarecem”
para fazer sumir o dilema.
Por fim, no último capítulo, discutirei as múltiplas viagens possíveis à
Israel/Palestina como ingrediente ritual essencial à manutenção da crença e o lugar que os
ditos – “Palestina”, “palestinos”, “territórios”, “Ocupação”, “refugiados”, “fronteiras de
67” –, e os não-ditos – as sombras do dilema e os fragmentos do território palestino -,
ocupam nessa economia de mortos e gestão de silêncios que sustentam a crença e
produzem o Estado-Monumento sionista. As “viagens” aqui agregam valor aos viajantes,
os preservam das sombras que ameaçam a crença e fortalecem a magia – quando
circunscritas às fronteiras e rotas por ela permitidas e promotoras de “encontros” com
metonímicas “Palestinas” que servem como agentes da crença.

29
PARTE I – PRODUÇÃO SOCIAL DA CRENÇA

CAPÍTULO 1
MATERIAIS E MONTAGENS DA CRENÇA

Os Azande não percebem a contradição como nós a percebemos, porque não possuem
um interesse teórico no assunto, e as situações em que manifestam suas crenças na
bruxaria não lhes obrigam a enfrentar o problema.
- Evans-Pritchard, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (1976)

Como dito na introdução, nessa primeira parte vou me deter na produção,


circulação e reprodução do fenômeno da crença coletiva no “sionismo de esquerda”.
Assim como a “lógica” da bruxaria zande, descrita por Evans-Pritchard (2005), a crença
“sionista de esquerda” também tem suas próprias regras de pensamento. Usarei a
categoria de crença de duas formas distintas: uma enquanto termo êmico presente nas
falas das pessoas que “acreditam” e outra enquanto ferramenta analítica inspirada na
caracterização da crença zande da bruxaria feita por Evans-Pritchard (2005), mas
sobretudo pelo “Esboço de uma teoria geral da magia”, de Marcel Mauss (2003).

Como qualquer sistema de entendimento de mundo, a crença sionista de


esquerda não contradiz o conhecimento empírico ou uma ‘verdade’ externa a ele, mas
sobretudo a organiza, nomeia e a produz. “Crença” aqui, como para Mauss (2003) e
Evans-Pritchard (2005), não significa mais “fragilidade” ou mais “ficção” do que
qualquer outro sistema social, mas um processo possível e material de produção do
sujeito e das formas de transmissão e de prova possíveis a sua própria sustentação e
reprodução. Localizada pelos interlocutores como “judia” e “não sionista”, também eu
sou parte de um campo de justificações e de desafios à crença que analiso e que, se já
não comungo mais, esforço-me, nesta primeira parte, por entender suas operações de
confecção.

Ao longo do texto, como disse na introdução, chamarei de “angústia” aquilo que


identifico como certo estado político-subjetivo e moral em que percebo a crença sionista
de esquerda em seu desafio de hoje conciliar duas gramáticas distintas e inconciliáveis,

30
quais sejam, a da Esquerda1 e, mais especificamente, a da Democracia com a de
Sionismo, enquanto afirmação de uma soberania nacional judaica na Palestina. Diante
de tal angústia, perseguirei algumas das operações de salvamento e acomodação da
crença, que se veem ativas nas falas dos entrevistados produzidas nas situações de
entrevista e também em alguns eventos que apresentarei mais adiante.

Dentre inúmeras e complexas operações que fazem da crença algo possível e


material, recortarei, nesta primeira parte, aquelas que, considerando minha própria
localização no campo que tracei, saltaram mais aos olhos e eram comuns nos discursos.
A primeira delas, que tratarei no primeiro item deste capítulo 1, é a elasticidade possível
da crença através da formulação de um “sionismo” individual e subjetivo; a segunda
delas, assunto do segundo item do capítulo, é a eleição de datas e fronteiras que
funcionam afastando Israel sionista daquilo que a contamina, caracterizado como a
“tragédia” – a construção do que chamo de ‘duplo-Estado’: “Israel” e a “Ocupação”. No
segundo capítulo, me deterei nos ritos mágicos de transmissão e reforço da crença a
partir da situação específica de dois eventos que considero dramáticos/sintomáticos da
angústia.

Como dito na introdução, foram feitas entrevistas com 24 pessoas que se


definem como “judias”, sendo 14 delas consideradas interlocutores e interlocutoras
centrais (adiante apenas interlocutor/es), ou seja, que se reconhecem, com graus e
intensidades de atuação distintos, como “sionistas de esquerda”. As outras 10
entrevistas foram feitas com aqueles que chamei de interlocutores secundários. Para um
melhor acompanhamento das discussões que desenvolverei neste capítulo, sugiro que a
leitura do quadro completo de interlocutores trazido no apêndice 2 aconteça neste
momento.

Ao decidir circunscrever meu campo ao “sionismo de esquerda no Brasil” e,


mais especificamente, em São Paulo e Rio de Janeiro, e iniciar as entrevistas, me vi
ansiosa por confrontar/contaminar meus interlocutores com os mapas2, histórias de vida

1
Quando me refiro à esquerda em geral, enquanto idéia não agenciada, iniciarei o termo com letra
maiúscula. As esquerdas êmicas e específicas serão aspeadas e escritas com letras minúsculas. O mesmo
critério é aplicado aos demais termos como Ocupação ou Sionismo.
2
Para as entrevistas, levava comigo uma coleção de mapas produzidos pela UN/OCHA-OPt [United
Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs - Ocuppied Palestinian Territories], que
trouxe de Jerusalém em 2013, e a partir dos quais ‘mostrava’ o vilarejo onde eu havia morado, em
Yanoun, na região de Nablus, norte da Cisjordânia ocupada. A maioria das entrevistas foi feita com os
mapas da Cisjordânia abertos (anexos III e III.I), ao lado do meu caderno de notas e do gravador. Mais

31
dos palestinos e palestinas que conheci, dados sobre as leis vigentes em Israel/Palestina
e todo um conhecimento venenoso que trouxera na bagagem com o intuito de,
finalmente, tentar romper o que eu via como um silêncio, pacífico e seletivo, sobre as
violências cometidas pelo Estado de Israel contra as pessoas não judias. Em certo estado
de perplexidade, condição que atravessou este estudo3, percebi que a crença performava
um tipo de ‘imunização’ entre meus interlocutores, que pareciam não “enfrentar o
problema” que eu trazia - por isso a epígrafe de Evans-Pritchard -, sendo o principal
deles o problema da crença no “sionismo de esquerda”.

No desafio de me ‘tornar antropóloga’ e de olhar para aquilo que os


interlocutores olhavam, para onde apontavam (e não para seu dedo, dizendo-lhe que
‘dragões não existem’), me dei conta de que o que me diziam , e que tive dificuldade de
ouvir, era que eles mesmos eram as vítimas da situação de conflito/ocupação em
Israel/Palestina4. O campo semântico da “angústia”, nesse sentido, é também um termo
êmico, produzido pelos interlocutores durante as situações de entrevista e, portanto, é
atravessado pelo lugar específico que eu ocupava diante dos entrevistados e de como eu
era por eles percebida.

Umas vezes frustradas, desesperançosas e diagnosticadas com “depressão”,


outras vezes intensamente militantes e articuladas, mostrando ou não certo “cansaço”,
mas ainda assim mobilizadas pela causa (BOLTANSKI, 1990), as vítimas da Ocupação
eram eles mesmos, os próprios judeus sionistas de esquerda e, como pude ouvir não sem
surpresa, o próprio “sionismo”, como me diz uma interlocutora

...não...[interrompendo-me], mas tem que ter um estado judeu! [voz firme] Com
certeza...a gente é fodido no mundo inteiro...[...] mas assim, eu acho que sionismo de
esquerda...o que tá muito ameaçado hoje em dia é o sionismo, na verdade (o sionismo
tá ameaçado?) O sionista tá ameaçado... porque o Estado judeu é... de acordo com o
sionismo, ele é um estado justo, igualitário, ele tem vários valores...e não um estado

adiante, no capítulo 4, descreverei melhor algumas das interações com os mapas nas situações de
entrevista.
3
Tal perplexidade se vê expressa tanto no tamanho do roteiro de perguntas (apêndice I) quanto no tempo
longo que levei para elaborá-lo, mobilizando bibliografias que, fui percebendo ao longo do tempo, se
encontravam elas mesmas, assim como eu, dentro do campo de disputa, desafios e angústias da crença
“sionista de esquerda”. Insegura pelo lugar que ocuparia diante dos interlocutores (ver Introdução),
preparava-me para fazer perguntas que, sem constrangê-los, os provocaria, levando-os a se posicionarem
a respeito dos efeitos da crença “sionista de esquerda” sobre os não sionistas. Muitissimo longas e
exaustivas, as primeiras entrevistas pareciam verdadeiros embates entre crenças.
4
“Conflito/ocupação em Israel/Palestina” é a expressão que, seguindo a recomendação da Associação
Americana de Antropologia (2015), mobilizo para me referir àquilo que, com pequenas variações, os
interlocutores chamam de “conflito Israel-Palestina”.

32
bíblico (os valores da carta de independência de Israel 5, você diz?) exatamente. A
carta da independência é o sionismo. O que acontece hoje em Israel não é o sionismo.
[...] O sionismo ainda não se completou né, ainda não se cumpriu...até porque
enquanto você não tiver o Estado da Palestina, instaurado e bem, [o sionismo] não se
cumpriu né..., porque Israel não tem fronteira. [...] Eu considero um objetivo sionista
trabalhar pela criação do Estado palestino. O sionismo precisa muito de pessoas boas e
que queiram...no meu entendimento, o sionismo ele tem que criar o Estado palestino.
É uma obrigação com ela. Porque se aí não chega, não tem fronteira essa porra. E o
Estado [de Israel] se formar sem essas fronteiras, sem essa negociação, não será um
Estado sionista. Ok, tudo bem, os judeus já estarão lá...verdade...mas eu ficarei muito
triste…porque os judeus estarão lá, o sonho sionista não. [4, grifos meus]

Segundo Boltanski (1990), uma das condições para que se produza uma causa
coletiva, justa e legítima, é o fato de, em dado momento, certos atores passarem a
considerar algo como uma injustiça e a protestarem contra ela. Para que isso aconteça, o
autor considera que os atores que se sentiram injustiçados direta ou indiretamente
devam produzir uma denúncia que seja pública e reconhecível pela própria gramática de
justiça/injustiça, de perpetrador/vítima consagrada como efeito da disputa 6 . Nesse
sentido, para que se produza uma causa é preciso, antes, portanto, produzir uma
injustiça, em forma de denúncia pública, que seja admissível por aqueles dotados de
senso de justiça. Inspirada nessa leitura, perguntava-me qual injustiça estava sendo
produzida nas falas dos interlocutores, à qual tragédia, senão à palestina, se referiam, e
que os mobilizava na causa coletiva do sionismo de esquerda.

A figura da Ocupação aparecia então formulada como um ‘quisto’, um ‘desvio’


no desenvolvimento do projeto sionista, um problema que ameaçava o “sonho” e contra
o qual um “bom sionista”, o de esquerda, preocupado com as injustiças perpetradas por
“50 anos” de “ocupação”, deve se posicionar caso “ame” Israel – como é o caso do
jovem entrevistado, um líder de um movimento juvenil judaico de esquerda7:

A Ocupação é uma infelicidade pro sionismo. Uma tragédia. Infelicidade parece uma
coisa assim fofinha. É uma tragédia. Você vê, por exemplo, ali [aponta para um
adesivo com palavras em hebraico]: “ohavim et Israel, mitnagdim la kibush”: support
Israel, fight the occupation. A gente... é um lugar comum do pessoal mais tradicional,
que tem uma visão sionista mais tradicional, ficar incomodado com as caras ruins de
Israel, colocar aqueles que criticam essas caras ruins como “vocês são traidores, vocês
são ‘anti’, vocês não são parte, vocês são parceiros dos outros, não da gente”, então há
ali [no adesivo] um pouco esse lema, eu trabalho com isso que.... “Olha, eu AMO

5
O texto da carta se encontra no anexo I.
6
O próprio trabalho social de produção de uma gramática da justiça/injustiça, direito/violação,
perpetrador/vítima, um dos elementos da práxis da crença, será discutida mais cuidadosamente no
capítulo 3.
7
Os movimentos juvenis judaicos sionistas de esquerda serão discutidos um pouco mais adiante, num
subitem dentro deste mesmo capítulo

33
Israel”, inclusive em inglês é “support”, em hebraico é “ohavim”, que é “adoramos”,
“amamos”. Eu ADORO Israel e eu acho que a Ocupação é uma porcaria...
primeiramente pro sionismo. Pros palestinos também, mas desde meu lugar de fala,
onde eu tô parado, é uma porcaria primeiro pra nós, depois, claro, tampouco agora vou
sair “não me importam os palestinos!”. [...] Mas é EXATAMENTE porque eu me
importo com Israel, com o sionismo, que eu fico incomodado com ocupar, com
controlar um outro povo. […] 50 anos esse ano, 50 ANOS! 50 anos é MUITO tempo.
São quase três gerações. Pesado. [...] E assim, eles [os apoiadores da Ocupação] vão
fazendo inviável dois estados para dois povos e vão aproximando do estado binacional,
que é o fim do sionismo e do Estado judeu. [8, ênfases dele]

“Trabalhando” contra o “lugar comum” das visões “tradicionais” de sionismo


que veem a “Ocupação” como parte daquilo que não se pode criticar – as “caras ruins de
Israel” – se não se quer ser tido por “traidor”, o entrevistado narra a “tragédia” que a
“Ocupação” prevê. Ao contaminarem (os opositores da crença) a “Israel” que se
“adora” com a “infeliz Ocupação” e assim “ir viabilizando” um estado binacional, o
“fim do sionismo” é anunciado – e é justamente contra esse “fim” que atua a causa
sionista de esquerda e mobiliza a sustentação da crença8.

Como se vê nas duas falas anteriores, uma das materialidades da crença é ser
pelo Estado sionista e contra a Ocupação não sionista; outra delas é o estado
emocional/afetivo que atravessa os entrevistados, revelados em termos de “tristeza” e
“amor”, mas também em “otimismo”, “frustração”, “tensão”, “depressão” e “alegria”.
Imagens de patologia/saúde também foram acionadas.

Assim como tantas causas sem motivos.... pra gente ser otimista, a gente continua
nelas. Ser sionista para mim é deter esse processo... Essa patologia. Deter essa
degeneração. Existe uma degeneração sionista. E existem sionistas que buscam um
retorno à saúde. À saúde desse coletivo. [...] Um Estado democrático judaico na
Palestina é possível, mas só daqui 20 anos. Sou um sonhador né. [...] O projeto
sionista não está realizado ainda. Israel pode acabar amanhã. Israel está sujeito a
chuvas e trovoadas.[1]

Tendo voltado de Israel/Palestina com as ‘vítimas palestinas’ na cabeça, um


frequente estado de sofrimento, de defesa e de esperança em que se viam os

8
Para Hannah Arendt, a ‘infelicidade’ do sionismo é localizada não em 1967, mas antes mesmo do
estabelecimento do Estado de Israel. Em “Zionism Reconsidered” (2007), a autora faz um balanço
pessimista sobre a trajetória da realização do sionismo até aquele momento dos anos 1940, no qual afirma
que tanto o programa político dos revisionistas “de direita” quanto o dos “general zionists”, os
trabalhistas, convergeriam “se não em seus métodos, em seus princípios”. Para afirmar isso, Arendt abre
seu texto citando uma resolução aprovada unanimamente por judeus americanos sionistas “de esquerda e
direita” já em 1944, antes do estabelecimento do Estado de Israel, demandando “uma comunidade
[commonwealth] livre, judaica e democrática [...] que deve abranger toda a Palestina, indivisa e não
reduzida [undiminished]” (s/ p., tradução minha). O texto da Resolução, confirmado pelo Congresso
Sionista Mundial no ano seguinte, em 1945, não mencionava os árabes, “o que obviamente deixa a eles a
escolha entre a emigração voluntária e a cidadania de segunda classe” (s/ p., tradução minha). Para a
autora, este texto de 1948 é um dos marcadores da falência do projeto sionista.

34
entrevistados ao serem confrontados com elementos de uma certa descrença que trazia
em meus comentários saltava aos olhos. “Explicando-me” o que o sionismo era (“a carta
de independência de Israel”) e não era (“a Ocupação”) e o valor das “fronteiras”,
percebi que o “problema da ocupação” era, a um só tempo, uma tensão que ameaça a
crença e aquilo mesmo que a sustenta, fazendo-a circular: um meio fio que exige
formulações e criatividades como as que introduzo a seguir.

Em São Paulo e, principalmente, no Rio de Janeiro, a causa pela qual os


sionistas de esquerda se veem mobilizados parece abranger uma dimensão ontológica e
ética ao aparecer, ao mesmo tempo, como uma luta por existirem enquanto sionistas “de
esquerda” na Esquerda, através da produção de si como “periféricos” e outsiders em
relação ao “establishment judaico”, através da batalha pelo reconhecimento na Esquerda
da “pluralidade de sionismos que existem”; uma luta por seguirem crendo no “sonho
sionista”; e, finalmente, uma luta por fazer crer os descrentes, judeus e não judeus,
através de “pedagogias”, “diálogos”, “viagens à Israel/Palestina” e outros rituais que
serão melhor tratados nos próximos capítulos.

Dotados de um senso de obrigação ética, um dever que remontam tanto à


tradição dos profetas bíblicos (“há o sionismo dos profetas e o sionismo dos reis” [1]),
como à “história do povo judeu” de perseguição - sentida ou lembrada - de seus
ancestrais, é comum os entrevistados se dizerem “sozinhos” e “pressionados” entre a
“direita judaica” e a “esquerda” não judaica,

antissionista, que diz que o estado de Israel não tem que existir, que não é legítimo, e
não sei o quê...que também não é verdade. Ainda eu que venho principalmente de uma
família que tem um background lá na Idade Média, nas perseguições da Igreja
Católica, eu sei o quanto isso é importante... e a gente sabe disso. [4]

Antes de iniciar com o “trabalho” que a crença exige dos interlocutores, é


importante dizer que, com exceção dos eventos cujos contextos especificarei ao longo
do trabalho, as falas que aqui mobilizo como artefatos para a composição dos meus
argumentos foram produzidas em conjunto com os entrevistados, numa interação
específica e particular de entrevista. Nessa situação, diante daqueles meus interlocutores
centrais, suponho que eu era vista como alguém que, contaminada pela descrença, ainda
assim era potencial alvo da magia - porque judia, jovem, mulher e pesquisadora -
ocupando portanto um lugar ambíguo, e às vezes tenso, entre o desconforto/defesa e a
justificação/convencimento. No caso das entrevistas com os interlocutores secundários,
elas aconteciam em geral com mais informalidade e fluidez, eu sendo vista como uma

35
‘potencial amiga’ talvez porque também mais confortável diante dos discursos e crenças
que me eram apresentados. De uma forma ou de outra, é bom lembrar que, tanto como
entrevistadora e ao mesmo parte do campo do ‘problema’ que persigo, quanto como
autora deste texto, estou aqui co-produzindo uma ficção persuasiva (STRATHERN,
1987) específica e única, da qual eu mesma não estou fora. Como diz Marylin Strathern
(1987), a própria produção, edição, recorte, aproximação ou distanciamento das falas,
são, em si, trabalhos de tradução. E esta é apenas uma tradução possível dentre tantas
outras.

1.1 “Meu sionismo, meu sionismo de esquerda”: a confecção do sionismo como


sobrenome

O meu sionismo não significa o Estado, ou só o Estado. É uma coisa meio confusa.... e
ela não tá muito afiançada numa realidade concreta. [...] O sionismo pra mim significa
liberdade e emancipação judaica.
- jovem interlocutor, ao retornar de uma viagem à Israel/Palestina.

Lógico que existe sionismo de esquerda! E quem fala que isso não existe, não
EXISTE O CACETE!, é minha identidade, meu amigo, EXISTE! PONTO. Sou EU.
Então é importante, você pode ser o que você quiser, você não vai deixar de ser
porque as outras pessoas falam que você não é.
- interlocutor filiado a um partido de esquerda, ênfases dele.

Encarar o problema da existência do “sionismo de esquerda” implica considerar


a própria prática de seus militantes uma vez que a crença não necessariamente precede a
prática, mas é por ela produzida e transmitida. Tornamos-nos justos realizando atos
justos, considerava a ética de Aristóteles, referência para autores como Michael Lambek
(2010a; 2010b), cuja defesa de uma ética que seja “ordinária”, ligada à vida vivida e a
confecção cotidiana de uma ‘coerência atual’ de si, oferece um framing para a
compreensão da confecção ordinariamente ética do ‘bom’ sionista9.

9
Lambek entende a ética ordinária como uma das modalidades da ação social que opera reconhecendo a
“finitude humana” em suas contradições e limites ao mesmo tempo que cultiva a “esperança”,
abrangendo, nesse sentido, o exercício cotidiano de “habitar e perseverar à luz da incerteza e do
sofrimento” (LAMBEK, 2010a, p.4). Tal prática ética será aqui tratada através das falas dos
interlocutores, entendidas como ações e produzidas tanto nas entrevistas quanto nas situações dos eventos
descritos nos capítulos. Tratarei com mais profundidade dessas operações na parte 2, destinada à
descrição de alguns dos elementos da práxis da crença.

36
Em uma palestra sobre os “dilemas do sionismo contemporâneo”, dada por
figuras centrais do sionismo de esquerda sendo uma delas um brasileiro morador de um
kibutz10 que havia vindo direto de Israel para conversar com os judeus no Brasil, ouvi,
pela primeira vez, que o sionismo era “um sobrenome, não um “nome”. Com essa
‘dica’, passei a perceber que quando eu perguntava qual era o entendimento de sionismo
que as pessoas tinham, a resposta era quase sempre iniciada com uma marca de
pessoalidade, quase que uma apresentação de si (“meu sionismo é...” ou “meu sionismo
não é...”), indicando a elaboração de várias ‘individualidades’ sionistas.

Eu acredito num sionismo muito da Declaração de Independência, sabe?,


você pega a Carta... é outra coisa! Não é o que tá acontecendo hoje. Não tem
NADA a ver com Israel que tá aí hoje. É uma OUTRA coisa, de um OUTRO
lugar. Não tem nada a ver. Pra mim é isso, sabe? O meu sionismo não tem
NADA a ver com o sionismo que tá POSTO, em cheque. [13, ênfases dela]

Num movimento que viabiliza a possibilidade da crença, a confecção desses


“sionismos individuais”, frequentemente acionados nas falas, permite contornos
importantes frente aos impasses concretos nos quais os interlocutores se veem: entre a
‘contingente’ e a Israel “da Carta”, do “sonho”, um “meu sionismo”, artefato ao mesmo
tempo político e subjetivo, ainda estaria por vir.

A imagem do “sobrenome” é aqui significativa também porque conforma uma


relação específica e estreita entre a dimensão políca do “sonho sionista” e a produção
subjetiva do sujeito. Se levarmos a sério a ideia de Frazer, tomada por Mauss (2003), de
que a magia acontece pelos princípios da “similaridade” e da “contiguidade”, a mágica
de transformar o sionismo em “sobrenome” cria entre o sionismo e o sujeito que crê um
elo de aproximação, de similaridade. Se na magia “o semelhante produz o semelhante”,
“as coisas que estiveram em contato, mas que já não estão mais, continuam a agir umas
sobre as outras como se o contato persistisse" e "a parte está para o todo assim como a
imagem para a coisa representada" (MAUSS, 2003, p.50), “Israel” e “sionista”, pessoa
judia e “povo judeu” se veem conectados e próximos11.

Isso que estou chamando de ‘elo’ é traduzido pelo interlocutor como um


“paradigma” pelo qual todo “judeu” se vê atravessado e não pode “ignorar”:

10
Kibutz (kibutzim, no plural do hebraico) são as colônias coletivas judaicas, construídas em lugares
estratégicos para a colonização, baseadas na posse comum das terras e dos meios de produção entre os
kibutzniks.
11
A noção de se estar conectado e próximo à Israel se vê contida na formulação da ideia de “diáspora
judaica”, que, neste trabalho, será considera apenas em sua dimensão êmica.

37
Você pode ser não-sionista, ou antissionista, mas SIONISTA é parte do seu paradigma.
Você precisa se colocar em relação a isso porque isso não pode ignorar. […]
Se você é judeu você não pode fugir da pergunta de Israel e do sionismo. Faz com ele
o que você quer, mas se você não responde, não aborda, não afronta essa pergunta,
não.... é.... é uma negação. [8, ênfase dele]

Este “paradigma”/”sobrenome”, que aqui descrevo como fruto da magia sionista


de esquerda, que age por similaridade e contiguidade sobre todos os judeus que crêem,
talvez explique o fato dos interlocutores se produzirem a si mesmos como “sionistas de
esquerda” no Brasil com seus olhos voltados à Israel, como discutirei adiante, e também
acreditarem que sua “luta pelo fim da ocupação” aqui tenha efeitos lá. Não são raras as
imagens de “pontes” e “diálogos entre a esquerda brasileira e israelense” suscitadas nas
falas, operações que tratarei mais profundamente na parte 2.

Narrando sua formação como “sionista de esquerda”, uma jovem interlocutora e


líder um movimento juvenil judaico sionista de esquerda, diz:

É do movimento juvenil que vem tudo que eu sei de sionismo, a questão com a
esquerda.... a minha esquerda É sionista, né. Eu não... eu não era de esquerda
“brasileira” até ser da esquerda sionista. [...]eu acho que eu fui me interessando muito
mais pelo que acontecia com o MEU país, olhando pra Israel. Isso é muito doido
assim, porque eu tava no movimento juvenil, e a gente trabalhava com pautas muito
mais DE ISRAEL, e aí a coisa ficou pra mim meio que nesse registro. E aí é óbvio,
quando eu fui crescendo eu fui entendendo que, bom, o movimento juvenil falava de
uma coisa que era muito legal, que era ok, e a medida que eu fui crescendo dentro do
movimento a gente foi trazendo TAMBÉM o que acontecia por aqui. [13, ênfases
dela]

E ainda um outro interlocutor, secundário, que rompeu com o movimento juvenil


no qual crescera e se formara, diz:

Pra gente o movimento juvenil era nossa prática de esquerda. Na nossa cabeça a gente
tava fazendo a revolução. “Tamo educando no socialismo, a gente tá formando a nova
geração judaica socialista que vai.... que Israel vai ser a luz entre as nações. Or
leGoyim 12 . Vamos transformar Israel num modelo para o mundo. Modelo de
socialismo, o kibutz”… E Paulo Freire era uma das únicas referências brasileiras que
tinha. De resto era tudo Borochov, Herzl, Gordon, Achad Haam, Janus Korczak,
Vigotsky. E foda-se que ele era brasileiro. Isso não era o ponto central. Não tinha essa
questão. [...] Essa era a ideia, meio que “ah, não, tem muitos problemas no Brasil mas
a gente tem que mudar Israel primeiro porque Israel é o primeiro passo. Israel é
prioridade, Israel é o mais importante. A partir de Israel, a gente vai...” [18]

Como se vê nas falas, a experiência no movimento juvenil aparece como


fundamental à construção tanto de si, como “sionista” e “de esquerda”, quanto das
12
Como brevemente citado no roteiro de entrevistas, Or LeGoyim é um conceito bíblico, citado em três
momentos no livro do profeta Isaías ao tratar da superioridade do povo judeu, ‘especial’ aos olhos de
deus. O conceito foi “secularizado” pelos movimentos juvenis em relação ao Estado moderno de Israel,
que foi criado com a ideia de ser um exemplo moral às nações. O projeto dos kibutzim aparece dentro
deste framing de uma “vanguarda socialista” e “moral” na fala deste e de outros muitos interlocutores.

38
percepções do mundo ‘próximo’ pelo qual se é rodeado e onde se vive. Moldando certa
percepção espacial, as categorias de próximo e distante parecem ser menos definidas por
marcas geográficas do que pelo ‘elo’ que os liga à Israel e ao sionismo.

Uma interlocutora jovem universitária que hoje se vê “distante” do movimento


juvenil do qual foi educadora por muitos anos diz que, ao entrar na universidade pública
passou a ter “proximidade” com discussões como as do feminismo/sexismo na
sociedade, que, segundo ela não eram facilmente tratadas dentro do movimento juvenil.
Com esse distanciamento, um movimento que ela entende ser mais difícil para os
meninos judeus, que “ainda têm uma necessidade muito grande de se encontrarem com
as pessoas [do movimento juvenil]”, a interlocutora diz que também se viu “percebendo
as diferenças” entre ela e suas colegas de turma, “o tempo que elas demoravam pra
chegar na faculdade [...], uma amiga que era mãe, tinha dois filhos, trabalhava [...], uma
amiga negra que era discriminada no trabalho [...] que vivia relações abusivas” [14].

A mesma entrevistada traz ainda uma dimensão de classe a esse ‘elo’ de


aproximação, indicando que essa ligação vincularia menos “os judeus” em geral com o
sionismo do que entre “os judeus” que moram em certos bairros e ocupam certos
lugares sociais. Dizendo que quando próxima do movimento juvenil “não conhecia a
realidade”, ela conta que, enquanto ainda monitora do movimento, teve uma educanda
moradora da favela da Rocinha cujo pai não poderia pagar a passagem da filha para ir à
Botafogo, onde se davam as atividades do movimento semanalmente. Combinou então
com o pai que ela esperaria a menina no metrô de modo que ele não precisasse sair da
estação e pagar a passagem duas vezes, garantindo a ida da menina às reuniões
semanais. Depois que a entrevistada deixou o movimento, no entanto, esse combinado
não mais aconteceu porque os outros monitores tinham “preguiça de ir buscar [a menina
no metrô], ao mesmo tempo que organizavam às vezes uma van pra buscar os alunos lá
da Barra da Tijuca e que os pais não queriam ir levar de carro até Botafogo, que é
longe”. [14]

Essa elasticidade que conecta “judeu”, “sionista” e “esquerda”, e que, como


visto, também aproxima e distancia lugares sociais, é suspensa quando pergunto a um
entrevistado se ele não se sente incomodado pelo fato de Israel se dizer um Estado judeu
e falar em nome dos judeus:

39
Israel fala em nome dos israelenses. Só. Essa é uma confusão que rola e tem que ser
descontruída. Desconstrução total. Pra ontem! Porque essa ligação é muito perigosa
pra gente. [11]

Se este elo mágico entre o “povo judeu” e cada judeu não é absoluto, a crença,
no entanto, não se desfaz com tal mobilidade, tampouco é enfraquecida a confecção de
si como “sionista de esquerda”. O trabalho imperativo de distinguir o “israelense” do
“sionista” e o “judeu da Rocinha” do “judeu da Barra da Tijuca”13, vem acompanhado
do trabalho de se “salvar” da ‘barbárie’ através da “esquerda” – e não de qualquer
esquerda, mas da “esquerda judaica”, através do movimento juvenil ou do colégio
judaico. Diz um interlocutor, hoje filiado ao PSoL [Partido Socialismo e Liberdade]

minha militância, minha sensibilidade social são inteiramente frutos do movimento


juvenil. Eu era de torcida organizada, ia pra porrada com polícia, com torcedor, já
peguei em arma, umas paradas assim bem bravas, sabe? O que me tirou desses... [...]
tipo, eu jamais seria do PSoL, jamais teria participado da campanha do Freixo. Eu ia
estar zoando, freixominions, freixetes, ser homofóbico pra caralho, machista pra
caralho.... então.... (...o movimento te salvou...) é.. o movimento me salvou [risos meu
e dele]. [...] a educação do movimento tem valores judaicos que são valores... o
judaísmo tem valores humanistas de verdade né... quem me fez ser assim [de esquerda]
foi uma instituição judaica através de judaísmo. O problema é que esse judaísmo não
existe muito por aí né.

A crença não apenas produz “sionistas de esquerda” como também “valores


humanistas judaicos”. Não raro os interlocutores me diziam que “seu judaísmo” é um
“judaísmo humanista”, expressão que por vezes funcionava como um sinônimo para
“sionismo de esquerda”:

O meu sionismo é um sionismo muito periférico e muito minoritário. Talvez a única


coisa que eu tenha certeza sobre, são duas: uma, que o meu judaísmo é de Leibowitz 14
e que o meu sionismo é de Achad Haam15. Isso pra mim dá uma tranquilidade [...] (e

13
Outras mobilidades possíveis deste elo presentes nas falas dos interlocutores são as diferenciações
entre o “sionista de esquerda” do “sionista de direita”, o “judeus pró-Palestina” dos “selfhating jew”, e do
“judeus secular” do “judeu religioso”, “fanático” ou “fundamentalista”, frequentemente associados à
“Ocupação” e, portanto, mal vistos por estes sionistas.
14
Yeshayahu Leibowitz (1903- 1994) foi um judeu ortodoxo, filósofo e químico, nascido no império
russo (em Riga, atual Letônia) e emigrado à Israel em 1935. Foi um defensor fervoroso da separação entre
Estado e religião desde antes da fundação de Israel e crítico a “idolatrias” como a que via no culto ao
Kotel, o Muro Ocidental do antigo templo de Jerusalém. Em 1967, foi um dos primeiros intelectuais a se
levantar contra a ocupação dos territórios árabe-palestinos entendendo-a como “imoral”.
15
Peudônimo de Ascher Ginzberg (1856-1927), também nascido no império russo (Skvira, atual
Ucrânia) recebeu formação religiosa, tornando-se um estudioso da literatura rabínica. Atuante no
movimento sionista, era bastante crítico à forma como alguns sionistas, principalmente daqueles da
corrente herzliana, imprimiam suas ações, acreditando que a “revivescência do país não poderia anteceder
a revitalização do povo e das forças espirituais da nacionalidade” (GUINSBURG, 1970, p.196). Em seu
retorno de Israel/Palestina, para onde foi ver a situação das colônias agrícolas já estabelecidas, escreveu
artigos sobre “a verdade de Eretz Israel”, “onde desnudava os erros cometidos e os problemas existentes
no amparo à ação colonizadora”. (idem) Foi um dos principais conselheiros de Chaim Weizman durante
as negociações que conduziram à Declaração Balfour. Em 1922, fixou-se em Tel Aviv. Para ele, o
sionismo “constituía não uma mera ideia política ou expediente prático, porém o próprio centro do

40
você tem alguma referência de mulheres que te inspiraram pra pensar seu sionismo?)
não conheço... Acho que não. Tem na bíblia, a Dvorah, que eu acho a mulher mais
maravilhosa de todas, e a Yael. Mas inspiração pro sionismo... [silêncio] [...] você tá
falando de mulher, engraçado, esqueci de falar dela, mas a pessoa mais próxima hoje é
a Hannah Arendt. Em todos os sentidos. [7]
Faz parte da minha identidade judaica olhar pro próximo. O máximo que me constitui
como judia é esse olhar mais atento, né. [13]

A criação de um “judaísmo” e de um “sionismo minoritário” e “periférico”, que


dão “tranquilidade”, é fundamental no agenciamento e elasticidade permitido pela
crença na construção ética de si. Na fala de outra interlocutora, a invenção de um
“sionismo pós-moderno” aparece como ainda outra uma estratégia que lhe “confortou”
e lhe permitiu não “precisar negar esse sionismo, essa identidade, ao mesmo tempo que
[lhe] permitia poder fazer críticas a tudo que eu queria com relação ao Estado [de Israel]
e às ocupações” [14]. Esse é um agenciamento que torna possível a crença sem que com
isso tenha que se abrir mão do “sobrenome”. Afinal, diz a mesma interlocutora: “se eu
não for sionista eu vou ser o quê?, você não tem muitos caminhos, né”. O poder de
similaridade e contiguidade da magia são elementos fundamentais na produção social da
crença e do sujeito.

O Amos Oz [escritor, expoente do campo da paz israelense e ligado ao Movimento


Shalom Achshav/Paz Agora] fala que quando o pai dele morava na Polônia e foi pra
Israel, quando ele tava na Polônia, todos cartazes nas ruas eram “ídisches, sujos,
voltem pra Palestina!” e que hoje em dia quando você volta pra Europa os cartazes são
os mesmos, mas com outros dizeres, de “judeus, sujos, saiam da Palestina!” [rindo].
Então assim, é muito difícil porque eu acho que, realmente..., como a gente NÃO
TEM LUGAR! É uma coisa IMPRESSIONANTE, assim. (você se sente assim?) É, eu
sinto que tem alguma coisa aí que REALMENTE....eu já pensei MUITO sobre essa
coisa da paranoia que me incomoda muito,[...] mas eu acho que também achar que não
existe nada também não é por aí que a gente vai conseguir alguma coisa.
Você SABE que seu povo foi perseguido, você sabe que isso é real ainda. [...] Você vê
agora com a eleição do Trump a quantidade de grafite que surgiu com suástica é uma
coisa....[...]não é do nada que surgiram milhares de neo-fascistas, ele já estavam ali,
talvez eles tivessem com um pouquinho mais de vergonha de... e agora deu uma carta
branca, “agora que se dane, vambora!”. Então eu também não sei se, olhando pra
frente....[13, ênfases dela]

Falas como essa, que afirmam a “necessidade de um lugar para os judeus”, são
recorrentes entre os entrevistados. Se a magia opera construindo percepções específicas
de proximidade/distância, de “esquerda”, de “judaísmos” e “sionismos”, dessa forma
moldando ontologias possíveis dentro da crença, ela também opera construindo o

judaísmo, na perspectiva contemporânea” (op. cit., p.198). Para ele o “Estado judeu não [era] um
princípio, mas um fim, o fruto sazonado do “sionismo espiritual”. (idem)

41
“sonho sionista”, encarnado na Carta de “independência”, a partir da memória de um
trauma imemorial16. A ‘aproximação’ dos interlocutores com essa memória é mais um
elemento material da confecção do sionismo-identidade, vinculando os interlocutores a
certo compromisso ético do “olhar atento ao outro” e, ao mesmo tempo, ao
compromisso de afirmarem o “direito” de reivindicar um Estado para si: um Estado que
não seja a “Ocupação” e que seja um ‘Estado ético’, comprometido com a memória de
perseguição que o “fez necessário”.

quem não vai se relacionar com esse sentimento? Quem vai falar “não, não quero, não
preciso”? Tô educado desde pequeno com isso, e realmente, assim, eu na escola
judaica eu era educado pra ter medo! [...] o sionismo não tange, ele tá instrínseco
mesmo [na identidade judaica] né. O que importa é que [o judaísmo] não é uma
religião, e acho que faz parte dessa cultura judaica o medo ao antissemitismo. Eu acho.
Infelizmente. [11]

A memória do ‘povo-vítima’, do ‘povo-mal quisto’ e do ‘povo-sem lugar’


produz um Estado que não é só um documento, uma prova e registro do mal sofrido
pelos judeus ao longo da história, e da cumplicidade do mundo diante de seu
sofrimento. Este Estado é um monumento, no sentido que Jacques Le Goff (2003) dá
aos documentos utilizados pelo poder, retomando-o em sua acepção antiga: como obra
comemorativa, tal qual o arco do triunfo ou um troféu, e um monumento funerário,
destinado a perpetuar a memória da morte. O Estado de Israel funciona, assim, para um
sionista de esquerda, como um Estado-identidade – tanto no sentido de sua definição
jurídica como um “Estado Judeu”, cujo direito à cidadania é estendido a todas as
pessoas judias que tiverem um avô/avó comprovadamente judeu (por isso, me explica
um interlocutor, não é possível ser sionista sem ser judeu, “você pode no máximo apoiar
Israel”), quanto no sentido que remonta à concepção grega sobre os bárbaros, um nosso
Estado, dos judeus.

Este Estado é também um Estado-monumento, na medida em que ele se erige


sobre, lembra e faz política em nome de seus mortos-vivos – um “edifício linear e
monolítico, feito de biologia e história”, diria Shlomo Sand (2008) e, eu acrescentaria,
morte e sonho. E é ainda um Estado-vingança17, expresso no desejo destes sionistas da

16
A expressão que utilizo aqui, “trauma imemorial”, tem como referência a leitura do “trauma
transgeracional” de Grace Cho (2008), conceito relevante para pensar a constituição do sionismo como
uma ‘economia de mortos’, ideia desenvolvida mais adiante.
17
Uso aqui o termo vingança porque ele foi mencionado em um dos eventos sobre os “dilemas do
sionismo contemporâneo” que estive e que será melhor descrito no capítulo 2. Durante a apresentação do
palestrante foi apresentado à plateia um poema de Leo Herzog, do qual reproduzo o seguinte excerto:
“Nos humilharam, torturaram, destruíram nossos lugares, e por isso nunca humilharei, nunca torturarei,

42
construção de um Estado comprometido em se tornar um exemplo para o mundo com o
qual não puderam contar, um Estado que seja uma “luz entre as nações”, or le goym18.

Nesse sentido, essa montagem de si como alguém “contra a Ocupação”


(distinguindo fronteiras legítimas das ilegítimas, como tratarei mais adiante), “de
esquerda” (acionando “valores judaicos humanistas”) e “sionista” (formulando um
sionismo que seja “minoritário” e “individual”) é também um dever dos vivos em
relação a certos fantasmas eleitos pela crença – judeus, ashkenazitas, vítimas e/ou cujo
projeto de sionismo (ainda) não se realizara.

A elasticidade e os agenciamentos que operam na produção de um “meu


sionismo” parecem formulações fundamentais na sustentação da crença frente aos
impasses ético-políticos que os interlocutores são chamados a enfrentar concretamente
diante de uma Israel contingencial. Acionando “o Hamas”, “os colonos”, “os radicais”,
“a Ocupação”, “o Netanyahu”, “os religiosos”, “os neoliberais”, “a direita” e “o Trump”
como os principais atores nesse regime de justificação da “tragédia sionista”, ou do
momento crítico (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999) em que os interlocutores se
vêem19, esses sionismos individuais, personalizados, são movimentos para a produção
de uma diferença em relação àquilo que não cabe na crença. Parecem assim funcionar
como uma “operação de resgate” ou “salvamento” daquilo que Ilan Pappe (2003),
considerando os marcos histórico-sociológicos do estabelecimento do Estado de Israel,
caracteriza como sendo o sionismo tradicional.

Para Pappe (2003), a “operação de salvamento” do sionismo tradicional,


liderada e alimentada por historiadores identificados com o campo da “esquerda
sionista”20 nas universidades israelenses, é uma batalha (struggle) pelas imagens e
percepções de Israel/Palestina, como discutirei na parte 2. No entanto, na escala do
“sionismo individual” de que estou tratando aqui, é possível entender essa formulação

nunca destruirei./ Essa é a encomenda da minha shoá [referência à “catástrofe” dos judeus sob o
nazismo]./ Nunca ser para os outros o que os outros foram para mim./ Essa é a minha vingança, minha
vingança moral.”
18
Para uma melhor definição desta expressão, ver glossário.
19
Não foram raras as falas que localizavam a pesquisa num momento especialmente difícil, como a dessa
interlocutora, líder de uma instituição judaica: “e o pior é que assim... você escolheu um momento pra
essa sua pesquisa em que a coisa tá MUITO gritante![risos]” [13, ênfase dela].
20
Se “sionismo de esquerda” é uma categoria êmica produzida pelos interlocutores, “esquerda sionista” é
o termo por eles utilizado ao se referirem à esquerda de Israel, da qual o Partido MERETZ, que
apresentarei a seguir, bem como o chamado “campo da paz” israelense surgido nos anos 1980, são
expoentes.

43
como uma batalha pela própria percepção e imagem que os sionistas produzem em
relação a si mesmos enquanto sujeitos político-morais. Ao se afirmar um “meu
sionismo”, cria-se para si um ‘estado de paz’, no qual a imaginação de um
“sionismo/sionista humanista” é protegida das ameaças encarnadas pelo sionismo
“deles”, que aqui no Brasil dão o nome de “sionismo hegemônico” ou de
“establishment”, e pelo “não sionismo” dos judeus às vezes referidos como “idiotas
úteis” ou self-hating jews.

Um entrevistado, que trabalha num movimento juvenil judaico estabelecendo


“diálogos” entre a esquerda sionista de Israel e a esquerda brasileira, narra sua “crise
com o sionismo” e a saída curiosa que formulou para sair desse dilema lançando mão da
imagem curiosa de Israel como “sua merda”, apontando para um elo quase orgânico
entre ele mesmo e o Estado:

(você fica mexido com isso, com as críticas que a esquerda faz ao Estado de Israel?,
isso te afeta?) Agora menos, mas esse agora é recente, e tem a ver com isso que eu te
falei outro dia, que eu tô em paz com o sionismo, com a minha leitura política.
[...]talvez pra mim, apesar de saber que Israel não é um país ideal, eu talvez tinha a
fantasia de que era um país ideal. Talvez tinha a fantasia que, sei lá, era um país justo.
Tem justiça para todos. Aí você vai descobrindo que não, aí puta que pariu.. “o que eu
faço agora?” [...] (e depois que você teve essa crise com o sionismo, como costurou
isso?) [...] Procurei em muitos outros lugares, fora do Brasil, mas aqui eu encontrei
esse lugar onde minha identidade judaica-sionista não entrou em conflito com a minha
identidade de progressista. [...] E sim tem muito do que tá acontecendo, tem muito
problema que tudo que você apontou antes e que eu não desconheço, não minimizo,
não sinto confortável, mas.... em algum momento daquela minha crise.... ficar ciente
desse tipo de coisas que acontecem, a mim geraram uma grande crise com a minha
própria identidade, até o ponto de dizer “eu largo isso, não é comigo, nada a ver,
obrigada” [...] Só que o conflito em mim se gerou porque existia essa outra identidade
em mim que fazia sentido AINDA, que não... então é isso, eu acho que eu fui
procurando e encontrando um lugar assim, meu lugar dentro do sionismo sem ter que
sair fora. Eu não queria sair fora, eu também tenho meus limites né. Mas hoje eu tô em
paz. [...] Eu me lembro também de um seminário da tnuá [movimento juvenil judaico
sionista], em Israel [...] foi uma coisa que me marcou e fez muito sentido pra mim,
que a gente, em roda, conversa, conversa, critica, critica, “Israel isso, Israel aquilo”, aí
você vai ficando deprimido, [risos] e aí vem um cara que fala, e aí vem a mensagem
otimista, a gente não tava preparado, mas aí o cara vem e fala “sabe o quê? Vocês têm
razão todos, é uma merda, é uma merda tudo, mas sabe o quê? É a MINHA merda.”
[ele ri] Então, é verdade. Pra mim é um pouco isso, é a minha merda. Todo mundo
tem as suas merdas. Para mim, eu não gostaria de....de.... de divorciar de Israel ou do
sionismo. Pelo contrário, para mim é muito caro, apesar de todas as merdas que a
gente sabe que tem. E apesar da conjuntura, eu ainda consigo ser otimista. [...] Eu
acho que Israel vai ter um movimento também de volta, pelo menos pra social
democracia. [ênfases dele]

Interessada nos mecanismos de produção desse ‘estado de paz’ que resiste à


experiência da desilusão diante da distopia do real restaurando o próprio ‘otimismo’ –
essa operação nem sempre é bem sucedida, como são os estados de “frustração” e
“depressão” presentes em certas falas – e atenta às referências acionadas e às redes que

44
me levavam mais ou menos às mesmas pessoas e discursos, fui percebendo, ao longo
das entrevistas, que a maioria dos interlocutores havia passado por movimentos juvenis
judaicos durante boa parte da juventude21. Mesmo este dado não tendo sido um critério
para a delimitação do campo que tracei, foi imperativo levar em conta a experiência na
“tnuá” (literalmente “movimento”, em hebraico) na constituição da visão e da divisão
do mundo dos entrevistados. Todos os movimentos juvenis judaicos sionistas, sejam
aqueles que se denominam “de esquerda” ou “de direita”, “religiosos” ou não, são
movimentos educativos que têm um projeto de transmitir aos jovens os valores e
entendimentos de judaísmo e de sionismo defendidos por cada um deles 22. Um objetivo
comum a todos é o de formar uma juventude judaica que apoie e defenda, em Israel ou
na “diáspora”, o Estado judeu. Essa indistinção é refletida na forma com que tanto os
entrevistados como os sites oficiais de cada movimento se referem a eles: como
“movimento juvenil” ou ainda somente como “tnuá”.

1.1.1 “É do Shomer que vem tudo”: os movimentos juvenis judaicos


sionistas
Seria errôneo pensar que o sionismo tenha alcançado seus objetivos com a criação de
um Estado Judeu. O Estado é o instrumento e todo judeu sente no seu fôro íntimo que
“em caso de apuro”, caso seja vítima de perseguição, haverá um país, um só em todo o
mundo, disposto a abrir-lhe suas portas.[...] O sionismo desde seu início se dividiu em
trabalhista, liberal-burguês e religioso. [...] Ao optar por uma destas correntes, você
escolhe o Israel que mais perto se encontra de seu coração e de sua visão de mundo.
[...] É esse destino comum [do povo judeu] o que deve levá-lo a transpôr o umbral.[...]
Que é o sionismo em última instância? É a solidariedade judaica do mundo, a
solidariedade essencial com o Estado de Israel (e não necessariamente com suas
eventuais posições políticas). [...] Deixe pois a encruzilhada!
- Dov Bar-Nir, liderança do Partido dos Trabalhadores Hashomer Hatzair, em
manuscrito (“Se você é simpatizante de Israel e não é sionista, leia isto! - para
publicação interna”, manuscrito de Dov Bar-Nir - DEOPS-SP, c. 1971)

Great suffering was inflicted upon the men taking part in the eviction action. [They]
included youth-movement graduates who had been inculcated with values such as
international brotherhood and humaneness. The eviction action went beyond the
concepts they were used to. There were some fellows who refused to take part...

21
Conforme descrito no quadro de interlocutores, no apêndice II.
22
Sobre os movimentos juvenis eu muito pouco sabia, embora tivesse alguns amigos de escola que os
frequentavam. É preciso dizer que o motivo que leva um jovem a um movimento juvenil, como pude
ouvir em quase todas as entrevistas, é menos a “ideologia” do movimento do que as relações de amizade
“e de futebol”, além da vontade dos pais de manterem os filhos num “ambiente judaico” e promover
encontros com judeus, quando não estudam em escola judaica, ou ainda por verem o movimento como
elemento importante na “formação humana” do jovem e no seu amadurecimento. Não é raro uma família
que não se considere “de esquerda” inscrever os filhos em um movimento juvenil “sionista de esquerda”.

45
Prolonged propaganda activities were required after the action... to explain why we
were obliged to undertake such a harsh and cruel action.
- Yitzchak Rabin, sobre operação, da qual era oficial militar, de expulsão e massacre
dos habitantes das vilas palestinas de Lydda e Ramle em 1948/1949 (apud
MASALHA, 2012a)

Se os colégios judaicos são importantes no processo de montagem, produção e


circulação da crença, os movimentos juvenis judaicos sionistas são os lugares por
excelência desse processo e onde se dão vários dos ritos mágicos que operam, como
dito, por similaridade e contiguidade, no processo de constituição da possibilidade
“sionista de esquerda”. Como tentei demonstrar no item anterior, a subjetivação de um
sionismo, de uma “minha merda”, ou da escolha do “Israel que mais perto se encontra
de seu coração e de sua visão de mundo”, são agenciamentos que permitem contornos e
acomodações de certas contradições diante dos impasses contemporâneos do sionismo.
Essa construção, que tem no movimento juvenil um pólo importante, é, no entanto,
fundamentada por alguns marcos histórico-sociológicos relevantes que permitiram que
o sionismo se pensasse como “de esquerda” e, ao mesmo tempo, ocupasse um lugar
central no projeto do Estado de Israel – como aponta o discurso de Yitzchak Rabin, um
dos líderes que até hoje inspira a crença dos interlocutores23.

Farei esta breve retrospectiva histórica porque mapear as relações entre


constituição de pessoas, instituições (movimentos juvenis, partidos, congressos) e
Estado, atravessadas por diversas escalas espaciais e temporais, ajudou-me a
compreender os níveis de institucionalidade da crença e os repertórios, as histórias, os
personagens e as experiências que eram - e as que não eram - por ela ativadas. Com esse
repertório, eu tive mais capacidade de acompanhar o que o termo “de esquerda”
performatiza na fala dos interlocutores.

23
Assassinado em 1995 em praça pública por um judeu israelense contrário aos acordos de Oslo
assinados com o líder palestino Yasser Arafat, Yitzchak Rabin foi, junto com Shimon Peres, um dos
maiores líderes do “campo da paz” israelense. Ambos são até hoje referidos, tanto pelos interlocutores
quanto por Mahmoud Abbas (atual líder da Autoridade Nacional Palestina), como lideranças políticas que
trabalharam “corajosamente” pela paz. Como pude perceber pelas entrevistas, essa inspiração não é
abalada pelo fato de Rabin ter sido um dos comandantes da operação que expulsou e massacrou os
habitantes da cidade palestina de Lydda, em 1948 (SHAVIT, 2013). Também intacto é o lugar de Shimon
Peres, premiado com o Nobel da paz, responsável por fomentar a construção e expansão de assentamentos
em território ocupado, e acusado de envolvimento na venda de tecnologia militar israelense para a África
do sul do apartheid, além de ter participado do maior plano de privatizações da história do Estado de
Israel até então (MATAR, 2016).

46
Cada movimento juvenil sionista no Brasil 24 , além de ter seus próprios
símbolos, cores, datas comemorativas, herois, vestimentas, hinos, saudações, valores,
programas e de ter alguma autonomia nas tomadas de decisão e nas agendas em relação
a suas diretrizes gerais (PINSKI, 2000), está ligado a uma força política presente em
Israel, geralmente partidária, e representada, através de delegados e filiados de vários
países, na Organização Sionista Mundial (daqui em diante OSM)25.

Desde o início do século XX, essas forças políticas presentes no Congresso, e


que reúnem um amplo espectro ideológico, foram fundamentais na colonização da
Palestina durante o mandato britânico (1920-1948) através dos kibutzim, e também
foram responsáveis por criar os outros organismos sobre os quais se sustentará o recém
nascido Estado de Israel. Enquanto alguns desses organismos eram ainda clandestinos,
como a então milícia Haganá (“defesa”, do hebraico, fundada em 1935 e núcleo do
futuro exército de Israel), outros foram fundados sob a autorização do poder imperial
britânico, como a Agência Judaica, criada em 1929 como organismo executivo da OSM
com a função de representar os judeus na Palestina (PINSKY, 2000). Fundado o Estado,
e com muitas divergências políticas mas ainda assim unidos pela causa sionista, essas
forças se transformam em partidos políticos passando então a disputar cadeiras no
Knesset, o parlamento israelense.

Os principais movimentos juvenis que compuseram a formação sionista dos


entrevistados foram o Ichud Habonim Dror26 (agora referido apenas como Dror), o

24
No Brasil, o Movimento Ichud Habonim Dror tem núcleos em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto
Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza e Manaus. Já o Movimento Hashomer
Hatzair está presente em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Florianópolis. A Chazit Hanoar tem sedes
em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Em São Paulo, Rio de Janeiro e Belém se vê ativo o
movimento juvenil religioso Bnei Akiva. Já o Beitar, fundado por Vladimir Jabotinsky, em 1923, na
Lituânia, e vinculado a uma corrente da direita sionista, está em Porto Alegre. Em São Paulo, são atuantes
também os movimentos Avanhandava, a colônia da CIP [Congregação Israelita Paulista], o Netzah,
fundado em 1974, o Hebraikeinu, do clube “A Hebraica”, o Laor e o Noam, ligado à comunidade Shalom,
mas ainda não reconhecido pelo Ministério da Educação de Israel.
25
Ainda hoje reunida no Congresso Sionista Mundial a cada 4 anos em Israel, a OSM foi criada no I
Congresso Sionista, em 1897, com o objetivo de fundar um Estado judeu que fosse internacionalmente
reconhecido. Segundo Carla Pinsky, “com a proclamação do Estado, em 1948, a OSM passou a
dedicar-se à promoção do sionismo através de atividades voltadas para a unidade do povo judeu e a
centralidade de Israel na vida judaica; para encorajar a reunião dos exilados; para fortalecer e reforçar o
Estado; para fomentar a educação judaica nas comunidades judaicas de todo o mundo; e para defender os
direitos dos judeus em todos os lugares” (PINSKY, 2000). Segundo um interlocutor e líder de movimento
juvenil, o “Congresso Sionista é a reunião mais importante do povo judeu hoje [...] de mais impacto na
diáspora judaica”. Essa “influência”, como ele explica, se dá pelo fato de ser no Congresso que se
decidem os “orçamentos que vão para as representações dos partidos israelenses nas diásporas”.
26
Literalmente “União dos construtores da nação”, foi o nome adotado pelo movimento a partir de 1958,
após fusões com outros grupos. Embora não haja ainda um estudo estritamente etnográfico dos

47
Hashomer Hatzair27 (agora referido apenas como Shomer) e o Bnei Akiva28, sendo os
dois primeiros de orientação “judaica, secular e sionista-socialista” e o último “judaico,
religioso, sionista” e considerado por alguns como de “centro-esquerda”, por outros de
“centro-direita”.29

Tendo alguma dificuldade em entender as diferenças entre o Dror e o Shomer,


ambos denominados “sionistas de esquerda” ou movimentos da “esquerda sionista”, um
interlocutor me explica que, se até os anos 1950 ambos guardavam muitas rivalidades e
disputavam projetos distintos de Estado, hoje estão tão próximos que as instâncias
nacionais e mundiais do Dror estariam discutindo sua fusão com o movimento Shomer.
Assim, ambos os movimentos se distinguiriam apenas em relação aos partidos de Israel
com os quais se veem institucionalmente ligados, mas não em relação à ideologia que

movimentos juvenis judaicos no Brasil, para uma história bastante minuciosa do Dror através da memória
de seus integrantes nos anos 1950, que aborde as origens românticas e utópicas do movimento de
colonização da Palestina através dos kibutzim, o valor do chalutz (“pioneiro”, “esforço”) colonizador e do
ingresso dos jovens dos anos 1950 no movimento como uma possibilidade de “poder sonhar com um
mundo melhor”, ver o trabalho de Carla Pinsky (2000) e os relatos de memória coletados e selecionados
por Avraham Milgram (2010), que anexa documentos importantes do Dror no Brasil.
27
Literalmente “O Jovem Guardião”, é um movimento juvenil judaico de orientação “sionista socialista”,
formado na Europa no início do século XX pela fusão do Hashomer (“O Guardião”, grupo de jovens
escoteiros judeus da Galícia) com o Tzeirei Zion (“Juventude de Sião”, movimento juvenil judaico
vienense de caráter intelectual e sionista). Inspirado em A. D. Gordon (1856-1922, sionista russo,
inspirado no socialismo internacionalista através do trabalho judeu na terra “de Israel”), Theodor Herzl
(1860-1904, jornalista austríaco que, impactado pelo caso Dreyfuss, inventa um Estado judeu nos moldes
burgueses europeus, na Palestina), Ber Borochov (1881-1917, marxista ucraniano fundador do partido
proletário judaico Poalei Zion, defensor da “normalização” da condição dos judeus da Europa através de
sua proletarização na Palestina; em 1920, a ala esquerda do Poalei Zion era soviética, repudiava a
Declaração de Balfour e a aliança do sionismo com o imperialismo britânico enquanto que a ala direita
apoiava a Organização Sionista Mundial e colaborava com grupo sionistas não operários), buscou unir
seu objetivo sionista à utopia socialista, inaugurando o movimento kibutziano de colonização da Palestina
no início do século XX. (PINSKI, 2000; MILGRAM, 2010)
28
Em site oficial, o Bnei Akiva diz que “como um movimento sionista pioneiro, acredita que é uma
mitzvá (mandamento) crucial no Judaísmo o retorno à Terra de Israel. De fato, o futuro do povo Judeu
está ligado ao Estado de Israel. O Bnei Akiva sente que a Juventude Judaica na Diáspora deve ser
educada para pensar que o Estado Judaico precisa deles, e eles precisam do Estado Judaico. O Bnei Akiva
é hoje representado em mais de 30 países. [...] Em comunidades onde há pouco conhecimento do
Judaísmo, o Bnei Akiva espalhou as palavras da ética Judaica e o Ideal Sionista.”
29
Houve ainda a remissão a um outro movimento juvenil de orientação “sionista de esquerda”, o IMY
(Irgun Maguen Yehuda – Organização Escudo da Judeia), que não será considerado aqui por ter tido uma
duração muito efêmera no Brasil e, tendo aparecido em poucas entrevistas, não faça parte da rede do
“sionismo de esquerda” hoje atuante. A diferença que guardava com os outros movimentos era,
principalmente, o fato deste não ser ligado a nenhum partido em Israel e, talvez por isso, ter um
posicionamento mais crítico, por exemplo, em relação à ocupação de 1967 que, já no ano seguinte, fora
tratada publicamente por esses jovens como uma forma de “expansionismo” ilegítima. O projeto do
“sionismo socialista” do IMY era estabelecer núcleos coletivos urbanos (kibutz iruni). No Brasil dos anos
60, o IMY era o único movimento de esquerda que permitia que os jovens fizessem faculdade no país e
que, diferente do Shomer, permitia o uso de meias de nylon e diversão em bailinhos de rock, segundo um
interlocutor, que o classifica como “menos estalinista” que os outros. Por alguns poucos anos, foi o maior
movimento de São Paulo, contando com uma sede no Rio de Janeiro e no Uruguai.

48
tenta realizar o amálgama entre judaísmo, nacionalismo e socialismo. Tal amálgama,
cabe lembrar, foi alvo da crítica e descrença de Hannah Arendt, ela mesma envolvida no
trabalho de imigração de crianças judias europeias à Palestina durante a 2ª Guerra
Mundial30.

Sobre isso, é importante dizer que o Shomer, em 1948, esteve ligado ao partido
sionista MAPAM (abreviação de Partido Obreiro Unido), hoje transformado em
MERETZ (coalisão entre o MAPAM e o RATZ - Movimento pelos Direitos Civis e
pela Paz), que é, segundo um interlocutor, “o único partido da esquerda sionista que
existe em Israel hoje”, com 5 das 120 cadeiras no parlamento em Israel 31. Desde 2015, o
partido atua no Brasil através do MERETZ-Brasil, realizando falas e organizando
eventos no Rio de Janeiro e São Paulo que aproximem a esquerda sionista-israelense da
esquerda brasileira, estabelecendo “pontes” entre suas “lutas”.

No caso do Dror, o movimento se vê ainda vinculado ao que foi, antes da


fundação do Estado, a organização política sionista socialista MAPAI (abreviação de
Partido dos Trabalhadores de Israel), hoje Partido Avodá, o partido trabalhista de Israel
(ou, como diziam os entrevistados, “O PT de Israel”) 32 . O Partido MAPAI era
considerado uma esquerda moderada e pragmática, criada por Ben-Gurion em 1930 e
dominante nas instituições sionistas pré-Estado, como a Agência Judaica e a Histadrut
(Confederação Geral dos Trabalhadores Hebreus da Terra de Israel). Transformado em
30
Escreve a autora: “...dentro do movimento sionista, tal amálgama [entre nacionalismo e socialismo]
nunca se realizou. Em vez disso, o movimento foi dividido desde o início entre as forças soaicis
revolucionárias, que haviam brotado das massas do leste europeu, e a aspiração pela emancipação
nacional como formulada por Herzl e seus seguidores nos países da Europa central. O paradoxo dessa
divisão era que, enquanto o primeiro era, na verdade, um movimento popular, causado pela opressão
nacional, o último, criado pela discriminação social, se tornou o credo político dos intelectuais. [...] Desde
os dias de Borochov [...], os sionistas de esquerda [the leftist Zionists] [...] simplesmente adicionaram o
sionismo oficial ao seu socialismo. Essa adição não fez um amálgama, uma vez que reivindica socialismo
para uso doméstico e o sionismo nacionalista para assuntos estrangeiros. O resultado é a situação
existente entre judeus e árabes”. (ARENDT, 2007, tradução minha)
31
Para uma melhor localização do MAPAM, cabe citar que ele pretendia ser representante de todos os
operários da Palestina, inclusive dos árabes-palestinos, e por isso era considerado em Israel um partido
“de esquerda radical”, acreditando e militando por um estado binacional, ao menos nos primeiros anos da
colonização. A identificação com a União Soviética começou a perder força a partir de 1952 em função
das notícias sobre as políticas autoritárias e perseguições de Stalin e sobre o acordo de cooperação militar
da URSS com o Egito. (PISNKY, 2000)
32
Por mais que perguntasse nas entrevistas, não consegui informações muito precisas sobre a natureza
dessas ligações entre movimentos juvenis e partidos porque, pra isso, deveria fazer uma etnografia do
Congresso Sionista em si e vê-las funcionando na prática. No entanto, para uma maior precisão, cito a
fala de um entrevistado e uma das pessoas representantes do Avodá no Brasil: “O movimento ligado ao
Habonim Dror é o Avodá, não o partido, o movimento. Nenhum movimento juvenil tem partido, ele
tem... Israel tem partido. Mas no mundo, no Congresso, é movimento. E a gente [do movimento Avodá
no Brasil] não tem uma atuação partidária, é importante separar”.

49
Avodá a partir da fusão com outros grupos políticos, o partido e seus membros – em sua
quase totalidade ashkenazim – se tornaram a elite política do país, elegendo todos os
cargos de primeiro-ministros33 até 1977. Neste ano, a ascensão do Likud – partido do
atual primeiro-ministro Benjamin “Bibi” Netanyahu–, marcou o fim da hegemonia
política dos trabalhistas pela vitória eleitoral de Menachem Begin, ele mesmo um jovem
do movimento juvenil Beitar, na Polônia, e um dos líderes da milícia judaica clandestina
Irgun Tzvai Leumi, “Organização Militar Nacional”, formada em 1937 e dissolvida em
1948. (PINSKY, 2000).

Seria interessante discutir aqui a “relação difícil” entre marxismo e judaísmo


(CLEMESHA, 1998) ou ainda a “questão judaica” ao longo da primeira metade do
século XX, retomando a história dos dilemas enfrentados pelo movimento operário
judeu da Europa oriental e a escolha ou não pela “saída nacional” sionista frente à
“revolução de classe” da esquerda soviética ou internacionalista – “não sou judeu, sou
internacionalista”, já disse Trotsky. No entanto, em função do recorte da pesquisa, não
desenvolverei a questão34.

Os movimentos juvenis sionistas em geral funcionam como um percurso de


educação, voluntária e não-formal, que é iniciado quando se tem cerca de 7 anos e se
conclui quando o jovem tem entre 20 e 22 anos. Por volta dos 18 anos, os chanichim
(“educandos”) se tornam madrichim (“tutores”, “guias”, “educadores”), responsáveis
por se reunirem de uma a duas vezes por semana com os outros madrichim para
elaborarem as atividades educativas que serão dadas aos sábados às crianças menores,
aos chanichim (plural de chanich). Após uma experiência de um ou dois anos como
madrichim, os jovens realizam o Shnát Hachshará (adiante Shnát), o “ano de

33
Sendo Golda Meir, Yitzhak Rabin e Shimon Peres os mais conhecidos e citados.
34
Sobre isso, é suficiente dizer que as convergências entre “sionistas” e judeus progressistas no Brasil
foram se moldando de tal forma que, diante de inúmero acontecimentos, as instituições judaicas então
antissionistas do Brasil, alinhadas com Moscou, concluíram, de uma forma ou de outra, que “todo o setor
progressista [...] estava decidido a levar adiante o seu apoio moral e material à Israel” (BARTEL, 2010).
Ou ao menos decidiram não declarar suas críticas ao Estado publicamente, mas tão somente às políticas
dos governos “de direita”, podendo ser aí “parceiros” na causa do sionismo de esquerda, como disse-me
um líder de movimento juvenil, ou ainda simplesmente desacreditar na “ilusão” – seja do sionismo, seja
da esquerda, como disse-me um interlocutor [20], considerando-se um “derrotado”. Aguns desses
acontecimentos que marcaram a “desilusão” foram o 1) fracasso do projeto autonomista judaico na União
Soviética, o Birobidjan; 2) a frustração com o socialismo soviético; 3) o desinteresse dos jovens,
estimulado pelo sionismo, no aprendizado do ídische, a língua dos operários judeu antissionista do Leste
Europeu; 4) os esforços da Organização Sionista Mundial para se chegar a um “único judaísmo, o de um
povo em marcha ascensional” (OSM apud BARTEL, 2010); e, 5) finalmente, a própria materialização do
Estado de Israel.

50
preparação”, em que se vive em Israel por 10 meses vivendo diversas “experiências” -
que serão melhor descritas no capítulo 4 - para, na volta ao seu país de origem,
tornarem-se bogrim (“maduros”, “formados”, do hebraico) e assim serem líderes do seu
movimento juvenil pelos próximos dois anos. Daí em diante, o chaver (“amigo”,
membro do movimento) pode assumir outros cargos como por exemplo o de secretário
nacional (mazkir) de seu movimento, reunindo-se anualmente em Israel, junto aos
secretários dos outros países.

Ao final do ciclo educativo, o jovem deve escolher se faz ou não aliá35 para
Israel e, se o fizer, pode tornar-se um sheliach, literalmente um “enviado” ou
“emissário”, cuja função é a de transitar entre Israel e as comunidades da “diáspora”
para, segundo um entrevistado, “ajudar no funcionamento estrutural, ideológico e
educativo da sua tnuá (movimento)”. Ocupando um cargo não voluntário e que, em
geral, dura dois anos, o sheliach é, como veremos no capítulo 2, uma figura importante
em atos rituais do ‘fazer crer’.

1.2 Construção do duplo-Estado e a economia política dos mortos

Você sabia que Israel não permite que ninguém que tenha sido expulso em 1948 seja
enterrado em sua cidade natal? Mesmo na morte os israelenses querem manter os
refugiados fora.
- Lila Abu-Lughod, em entrevista à Revista Spiegel, 2008

...an unspeakable trauma does not die out with the person who first experienced it.
Rather, it takes on a life of its own, emerging from the spaces where secrets are
concealed: “The phantom which returns to haunt bears witness to the existence of the
dead buried within the other”.
- Grace Cho. Haunting the Korean Diaspora (2008a)

Eu vou até [19]67. Depois de [19]67 não é mais nada.


- interlocutora [4]

35
O significado literal de aliá do hebraico, carregado de valor simbólico, é “subida”, “ascensão”. Ale
v´hagshem, uma saudação adotada pelo Dror, significa “Realize-se, fazendo aliá”. Numa tradução
“neutra” feita por um interlocutor, o termo poderia ser tido como “imigração à Israel”. O oposto à aliá,
usado para se referir aos emigrantes de Israel é ieridá, descida. Não ouvi uma única citação de ieridá
durante as entrevistas. Em média, 200 a 250 brasileiros migram anualmente para Israel (MALTZ, 2015).

51
Como disse no início deste capítulo, parte do trabalho da montagem de si como
“sionista de esquerda” opera elegendo certas datas, como aponta a fala da interlocutora
acima. Nesse processo da produção social da crença, as datas são marcos importantes na
medida em que materializam imaginações territoriais possíveis e comunidades políticas
legítimas: na imaginação de uma ‘minha Israel de 1948’, fundamentada na Carta de
independência, o “problema da ocupação” é um obstáculo que, contaminando a crença,
deve ser contornado. Nesse agenciamento de datas/fronteiras legítimas e ilegítimas que
acomodam um “ser a favor do Estado” e um “ser contra a Ocupação” sustentável é que
se dá a elaboração daquilo que chamo de duplo-Estado e que, como tratarei neste item,
conforma uma certa economia política de mortos.

Abro este tópico com as palavras escolhidas por Grace Cho (2008) ao tratar da
“assombração transgeracional” - que não só atravessa como constitui a população
coreana da diáspora norteamericana - não porque acredito que haja, no campo sionista
de esquerda, um silêncio, um segredo em relação ao trauma da tragédia judaica, mas,
pelo contrário, porque esses fantasmas, transmitidos de geração em geração através de
histórias, rituais, e sentimentos, parecem falar, e viver, através dos vivos e cobrar-lhes
certa “responsabilidade moral” na sua relação com o mundo e, mais especificamente,
com o Estado de Israel.

A leitura de Grace Cho (2008a; 2008b) sobre o trauma transgeracional que a


acompanha desde a infância ajudou-me a entender o “apego” ao sionismo, esse ‘estado
de identidade’ em que se encontram os interlocutores e através do qual se relacionam
com seus fantasmas. A pergunta do porquê eu havia me desfeito da ilusão de que, por
“ser judia”, estaria com “todos os judeus no mesmo barco” (ARENDT, 2007) - questão
que não pode ser respondida apenas por minha trajetória de vida, tampouco pela magia
de uma viagem à Palestina - atravessou toda a pesquisa. E tentar respondê-la, num
esboço de auto análise, não caberia aqui36.

Além de definir qual Povo acoberta assassinos e quais assassinatos são


acobertados em nome de qual Povo, a economia política de mortos construída pela

36
Um familiar distante, no entanto, dá algumas pistas, sugerindo na minha própria condição de orfandade
uma das considerações para uma resposta. Ao convidá-lo para um ato em solidariedade aos palestinos
durante a última invasão à Gaza em julho de 2014 em que mais de dois mil palestinos foram mortos e
cem mil desalojados, ele me escreve dizendo que tem certeza de que todos os nossos antepassados
sentiriam muita vergonha de minha atitude. Essa fala sintetiza aquilo que aqui chamo de ‘economia
política dos mortos’, na qual certos mortos são dotados de uma “humanidade espectral, privada de peso
ontológico” (BUTLER; SPIVAK, 2009, p.53):

52
crença compõe uma moralidade distinta para cada pedaço de terra colonizado e
explorado em Israel/Palestina, ‘inventando’ um “Estado de Israel” que não é - porque
não pode ser - “Ocupação” e uma “Ocupação” que não é “Estado de Israel”. Qual é o
dentro e o fora, o moral do “Estado” e o imoral da “Ocupação”, para o “sionismo de
esquerda”? Qual o espaço territorial necessário para honrar e presentificar os fantasmas
judeus e, sem se transformar no opressor, garantir que a história não se repita? Quais
limites geográficos um bom “Estado sionista”, aquele que seja uma “luz entre as
nações” pode ter? Onde estão desenhados os marcos espaço-temporais do direito à
liberdade e à segurança dos judeus? Como manter a crença sionista sem que ela seja
contaminada pelo “colonial”, um termo, como veremos na segunda parte, poluidor e
recusado pelos interlocutores? Essas são algumas das questões chave que pesam,
compondo a angústia sionista de esquerda, e para as quais os interlocutores
confeccionam respostas possíveis.

Uma dessas respostas, talvez a mais importante, é a Partilha da Palestina


britânica pela ONU logo após o término da Segunda Guerra Mundial, em 1947, entre
um “Estado Judeu” e um “Estado Árabe”. Ainda que a “partilha” do território nunca
tenha se materializado nem em sua proposta de fronteiras37 tampouco na criação de um
“Estado Árabe” 38, ela é acionada pela crença como uma das bases para a “solução” da
angústia sionista de esquerda, a chamada “solução de dois estados para dois povos”.
Para a sustentação da crença nessa “solução” é preciso ainda crer numa Linha Verde, a
linha que marca o armistício de 1949, consagrada como fronteira de Israel ainda que
expandida em relação à Partilha e não mais presente nos mapas oficiais de Israel, como
disse-me uma interlocutora que compõe o diretório do Fundo Nacional Judaico (KKL),
“o responsável por todas as terras”.

E aí eu criei um pau lá [no KKL] agora porque eles estavam com um mapa na parede
que não tinha linha verde. Aí eu perguntei, “cadê a linha verde?”, “que linha verde?”
[risos], eu falei: “gente!, a linha verde! Tem uma linha verde aí, esse mapa não é
assim!”, “ah, não tem linha verde nenhuma...que não sei o quê” [risos]. E é, não tem
mesmo, se você for ver não tem, o muro não tá na linha verde, “não, mas no mapa tem
que ter”. E aí eu descobri uma coisa muito triste: que há vinte anos o Ministério da

37
Para uma visualização das fronteiras propostas pela Partilha, nunca realizadas, ver o mapa do anexo
VI.I.
38
Ao contrário do que propunha, a Partilha deflagrou aquilo que os entrevistados chamam de “guerra de
independência de Israel” e os árabes-palestinos, ausentes da sessão que decidia seu destino, chamam de
al-Nakba, a catástrofe que transformou 2/3 da população da Palestina em genéricos “refugiados”
(MASALHA, 2012a) ou em ainda mais genéricos “cidadãos árabes” de Israel – quando não em
“residentes temporários”, como são reconhecidos os moradores palestinos de Jerusalém, ou ainda em
“presentes-ausentes”, uma cateogria que integra os deslocados internos da “guerra” de 1948.

53
Educação israelense tirou a linha verde dos mapas das escolas...então as novas
gerações israelenses nunca ouviram falar sobre isso 39.

Ainda outro marco fundamental à confecção de uma “Israel” possível é, como


diz a interlocutora, “1967”, quando, segundo a crença, em apenas “seis dias de guerra”,
o projeto do sionismo se “desviaria” e passaria então a “ocupar” um território que não
lhe pertenceria40 e que, portanto, deveria ser devolvido integral ou parcialmente, de
acordo com cada entrevistado.

Baruch Kimmerling (2008), sociólogo israelense, analisando os regimes


jurídicos vigentes em Israel, afirma que o Estado, definido constitucionalmente como
“judeu e democrático” – nesta ordem –, até hoje não goza de fronteira geográfica
definida, mas se estende por quatro limites (boundaries) que não necessariamente
correspondem ao território. Segundo o autor, a primeira dessas ‘fronteiras’ incluiria os
cidadãos judeus, que, em geral, consideram o Estado uma democracia “esclarecida”
(“enlightened democracy”), apesar de regida por um sistema judicial e legislativo
fundamentado em princípios do judaísmo ortodoxo e, portanto, marcado por absolutas
desigualdades entre homens e mulheres, judeus ortodoxos, seculares e de outras
correntes religiosas. Apesar da Suprema Corte assumir que todo cidadão seja igual
perante a lei, “o Estado não é simplesmente judeu, mas judeu ortodoxo”, diz
Kimmerling (2008, p. 185). Parte de nossos interlocutores se encontra dentro dessa
‘fronteira’.

A segunda dessa “fronteiras” se refere àquela da cidadania israelense, que


distingue cidadãos plenos (de “nacionalidade judaica”), cidadãos de segunda classe (de
“nacionalidade árabe”) e palestinos (“residentes temporários”, ou não cidadãos), e
guarda profunda desigualdade na distribuição dos direitos coletivos a cada uma dessas
categorias – como, por exemplo, o direito a um projeto educacional autônomo nas
escolas judaicas e não nas escolas palestinas, ou ainda a proibição do arrendamento ou

39
Se na escola eu aprendi a imaginar a “nossa Israel” do Mar Mediterrâneo ao Rio Jordão, como meu
professor religioso desenhava na lousa (algo muito próximo ao material didático que se encontra no anexo
II), durante meus estudos na faculdade de História descobri a “existência” da Linha Verde e, com mais
precisão, dos “territórios ocupados”. Essa “existência” resistiu até minha viagem, quando vi que a Linha
Verde não se materializava no traçado do Muro, tampouco funcionava como uma separação entre “Estado
de Israel” e “Ocupação”, seja pelos regimes jurídicos e a burocracia estatal vigentes para além da Linha
Verde, seja na presença física do Estado através de seus cidadãos, exército, checkpoints, administração
civil, etc. Um retrato da inexistência mencionada pela entrevistada pode ser visualizado no mapa oficial
de Israel feito pela Agência Judaica, presente no anexo V.
40
Quais sejam: os territórios da Síria (Golan), Jordânia (Cisjordânia e Jerusalém oriental) e Egito (Gaza e
Sinai).

54
venda de terra para não judeus. Essa fronteira, diz Kimmerling (2008), reconhece
‘direitos iguais’ no nível individual, e não coletivo, de modo que o Estado possa
preservar seu caráter etno-nacional.

A terceira “fronteira” é definida pela lei religiosa e incluiria os membros do


“povo judeu”, em Israel ou na diáspora. Órgãos não estatais, como a Agência Judaica e
o Keren Kayemet-KKL (Fundo Nacional Judaico), operariam dentro desse limite, onde
estão também incluídos todos os interlocutores entrevistados.

A última dessas fronteiras de Israel, segundo Kimmerling (2008), se estende até


os limites com a Jordânia, Líbano, Síria e Egito, englobando Gaza e Cisjordânia. É
dentro dela que se dá o controle da população árabe-palestina através das detenções
administrativas em massa sem julgamento (incluindo crianças), tortura, destruição de
moradias, punições coletivas, restrição de movimento e acesso a serviços básicos,
expropriação de terra e água, sequestro, e outras violações41. (KIMMERLING, 2008, p.
389)42

Diante dessa realidade difícil e apenas tangenciada em campo, mas


continuamente presente como angústia, parece fundamental à crença o trabalho de
reimaginar as fronteiras que separam o “Estado moral”, obra do “sionismo humanista”,
do “Estado imoral”, a “Ocupação”. Um retrato da agonia da crença se vê na fala deste
interlocutor:

ou o Estado de Israel decide a questão da Ocupação, ou ele VIRA a Ocupação. Se ele


virar a Ocupação ele acaba. E já está num processo de virar a ocupação. Isso tá
acontecendo. (aí nesse caso você deixaria de ser sionista?) Nesse contexto eu
continuaria sendo o sionista que eu sou, né. Quem tá deixando de ser sionista são
ELES [em Israel]. Eles tão acabando com o sionismo. Sionista sou eu!. [...] A
Ocupação é imoral, não só é imoral como corrompe o ocupador. [7, ênfases dele]

Como disseram duas outras interlocutoras, querer acreditar [“eu prefiro, eu


quero acreditar que sim, que aquelas terras foram compradas pelos sionistas em 1900

41
Para uma descrição bastante detalhada do cotidiano da Cisjordânia e Gaza em 2008 e dos “iron walls”
– de concreto, arame enfarpado e burocracia – através dos quais persiste a vida na ocupação, ver o livro
Palestine Inside Out, de Saree Makdisi (2010a).
42
“A rede de assentamentos e a proteção militar a eles oferecida constituem uma expansão direta do
Estado israelense; os territórios da Cisjordânia e Faixa de Gaza ocupados em 1967 não podem ser
considerados externos aos perímetros do controle militar e econômico israelense, mesmo se o nível de
controle direto declinou ou tenha passado para um subcontratante. É um tipo de colonialism interno, pois,
entre outras razões, segundo a percepção básica de cada lado, nenhum dos povos tem uma pátria
[homeland] alternativa”. (KIMMERLING, 2008, p. 184, tradução minha)

55
[9]”] e ter “esperança” de que existe um “jeito de resolver sem que niguém seja
oprimido” [13] são também operações importantes. Se certa inação é indispensável para
que a esperança se perpetue – realizá-la não é a prioridade –, imaginar e, com isso, criar,
de forma “pragmática”, as fronteiras dentro das quais caberia o sionismo dos oprimidos,
e distingui-las das fronteiras do sionismo dos opressores, é parte integrante de uma
economia de mortos e também de uma geografia política reivindicada pelos fantasmas
que contam.

Crapanzano (2003), em sua reflexão etnográfica sobre a esperança, propõe


pensar a categoria como a parte passiva do desejo. Aquela, diferente deste, é dependente
da agência de outrem para sua realização – de um deus, de uma chance, de um outro. Se
ambos, esperança e desejo, requerem uma ética, no caso da primeira há um limite do
que se pode fazer para atingir o que se deseja: entre a esperança e a experiência o que há
é espera. Nesse sentido, a luta dos interlocutores parece ser uma luta de quem tem o
tempo 43 e luta por mantê-lo sob seu controle 44 . O que podem fazer? Esperam,
compondo a esperança de um “sionismo ainda não completo” com a nostalgia de uma
“Israel de 1948” e o pragmatismo do inevitável (“dois Estados”) ou do que é um ‘mal
menor’ frente aquilo que poderia ser (“Estado-ocupação”, ou ainda “apartheid”).

eu sou uma pessoa muito pragmática, é importante deixar isso claro. O que eu mais
queria era a música do John Lennon Imagine all, né. Na minha utopia isso seria muito
bom. Mas por exemplo, com pragmatismo, isso hoje é impossível. [...] E aí indo
contra o Imagine all, mas sendo pragmático, [...] primeiro que do jeito que tá não pode,
do jeito que tá HÁ MUITO TEMPO não pode. É um absurdo (50 anos né...) 50 anos
de Ocupação...não pode (a Ocupação é mais velha que o próprio Estado, de [19]48 a
[19]67 né, e antes de [19]67 os palestinos de dentro de Israel vivendo sob regime
militar, quando nem tinha Ocupação ainda...) o que é que...é...o que que...qual é o
passo que é viável para o momento hoje? Para que não tenhamos mais 50 anos de
Ocupação? O que é mais fácil? A gente quebrar o normal com uma GRANDE
revolução... ou a criação de dois estados para dois povos de uma forma mais
pragmática? EU ACHO, EU ACREDITO, EU, que é a visão dois estados para dois
povos. [12, ênfases dele]

você ir fazendo assentamento e esmagando cada vez mais o povo palestino... eu sou
totalmente contra isso! Mas assim... um sionismo socialista do INÍCIO de Israel, sabe?
Dos kibutzim... [...] de você DELIMITAR o Estado, o Estado judaico, entendeu?
Porque aí eu acho sim que tem que ser um Estado judaico, porque eu ouço pessoas
falando “ah não, tem que ser UM estado laico para dois povos”. Oi!? [ri]. [9, ênfases
dela]

43
Diz um interlocutor: “o que são 50 anos? Meio segundo na vida de uma pessoa em termos históricos!
[...] Nesses dois últimos segundos o sionismo esteve com problemas, mas dá pra consertar [8]”
44
Como podemos interpretar da fala recorrente: “precisamos de um Estado Palestino para que o sionismo
se realize”.

56
Um certo ‘realismo mágico’ compõe o pragmatismo dos interlocutores, que os
habilita, senão a superar os dilemas, a se manterem à espera de algo que desejam que
aconteça. Como discutirei na parte 2, a gramática que compõe a esperança pragmática
dos interlocutores se constroi dentro de uma zona de silêncio em relação a outros temas
que são levantados por aqueles acusadores da crença ou que apontam para os limites da
possibilidade de um sionismo “de esquerda”.

Ao imaginar fronteiras e eleger momentos históricos específicos, os


entrevistados tornam viável a possibilidade da crença. Robert Darnton (1990),
analisando a “força emotiva da data” através da memória do massacre de quatro mil
soldados poloneses – no ano de 1940 se seus autores foram os alemães, como diz a
história oficial, ou no ano de 1941 se os soviéticos, como dizem os sussurros – afirma
que as datas não são meras metáforas ou representações.

Tentem dizer a um polonês que os fatos não importam, que a diplomacia e a política
são epifenômenos, que é possível deixar de lado as datas para estudar estruturas. Ele
responderá que a diferença entre 1940 e 1941 é uma questão de vida e morte, que nada
poderia ser mais importante do que as cláusulas secretas do Pacto
Ribbentrop-Molotov, que todo o sentido da Polônia pode ser enfileirado em datas:
1772, 1793, 1795, 1830, 1863, 1919-20, 1939, 1944-45, 1956, 1968, 1970 e 1980. Os
acontecimentos de agosto transformaram o mundo para ele. Para nós outros, eles
sugerem que a história pode pregar peças em si mesma, e que pode voltar atrás para
trabalhar em sua antiga tarefa, ensinando lições e modelando uma consciência
nacional. Na Polônia, essa consciência determinará tanto o futuro quanto o passado.
(DARNTON, 1990, p.46)

Nesse sentido, maio de 1948 não é junho de 1967: se o primeiro é “Estado” e


corresponde ao “direito” dos fantasmas que contam - judeus, europeus, seculares,
vítimas -, o segundo é “território” e ameaça a crença. O ano da “independência”, que
resultou no “estabelecimento” de Israel em 78% do território da Palestina britânica, não
pode ser o mesmo ano da “Ocupação” dos 22% restantes: “em [19]67 é que a coisa
realmente virou. Ali eles conseguiram isolar o país (eles quem?) Bibi e quadrilha. A
aliança da direita [1]”.

Acho que aí, como no ‘De Volta para o Futuro’ que tem aquele dia, sei lá, de outubro
de 1955, em que cai o raio na torre e aí a mãe conhece o pai e tudo acontece nesse dia,
bom, isso é junho de [19]67 [...] Pra mim a tragédia começa a partir do ano de [19]67.
Nos anos 70 ali, começa a ter uma... começam os assentamentos... [8]

O trabalho de seguir crendo, elegendo datas, gramáticas, fantasmas e fronteiras,


é fundamental para o fazer-se sionista de esquerda. A crença exige trabalho, romper

57
com ela é um processo dolorido e desestruturador (HAASZ, 201145; DOR, 201046),
quando não uma “não opção de existência”, como diz uma interlocutora [13] que
lamenta não poder ser de direita, o que, segundo ela, lhe renderia menos “problemas”.

Em caso de perda da “esperança” ou “crise”, quando o ‘pragmatismo mágico’


não funciona, o próprio corpo “orgânico” do interlocutor pode ser prejudicado. Um
entrevistado, militante do Paz Agora-Brasil, a mais conhecida ONG do campo da paz
israelense, conta a “depressão” que teve, durante tantos anos de “militância” e
“nenhuma alegria”.

Mas eu tô meio fora do circuito há mais ou menos um ano, eu peguei uma puta
depressão. (tensão?) Depressão. (Ah, você sofreu?) Estou sofrendo [risos]. Tive que
pedir um afastamento da empresa, tal. E essa história toda tem a ver com isso né. Eu
milito numa área que não dá muitas alegrias, nos últimos anos né. [...]. De ano a ano
eu percebo que eles [meus amigos pacifistas] tão mais desiludidos, descrentes,
desanimados.[...] É depressão química, orgânica mesmo. [...] É porque é uma coisa
que eu tenho me dedicado nos últimos quase 15 anos né.. Então… é uma coisa que me
toma né, eu me envolto… Se eu tivesse tido alguma alegria nesse quesito teria sido
bom [risadas]. (Não teve?) Não...

Em seguida, o mesmo interlocutor sugere-me um antídoto para a depressão


causada por falta de esperança na “solução do conflito” – ler o texto da iniciativa de
Genebra de 200347, traduzido e publicado no site do Paz Agora-Brasil: “quando você
acha que nao tem mais jeito, relê. Ele dá uma luz legal”.

45 Yuri Haasz, em sua dissertação de mestrado, analisa quatro relatos de ativistas israelenses que passaram
pelo processo “dolorido e libertador” de transformação de sua “identidade sionista” ao perceberem a si
mesmos como “parte de uma máquina violenta enquanto acreditavam serem corretos [righteous]”
(HAASZ, 2011, p.164). Sua pesquisa tem por objetivo entender as relações entre a reprodução do conflito
israelense-palestino e o cultivo do ethos sionista, caracterizado, segundo autores como Baruch
Kimmerling e Asima Ghazi-Bouillon, pelas noções imbricadas de a) judeidade [Jewishness], inventada a
partir de uma narrativa de continuidade entre os judeus modernos e os bíblicos; b) segurança/militarismo
como uma necessidade por ‘sobrevivência’, fundamentada e justificada por uma identidade permanente
de vítima, experienciada ou lembrada; e c) sionismo hegemônico, ou consensual, o regime de verdade
consagrado pela narrativa historiográfica oficial do sionismo trabalhista sobre a qual o Estado foi erigido.
46
A partir de teorias feministas e queer e autores de uma pedagogia da transformação, como Paulo Freire
e bell hooks, Tal Dor (2012), em seu texto Queering Zionism, fazendo uma analogia entre sionismo e
hegemonia heterossexual chamou de “saída do armário”, de “coming out”, o processo de des-sionização,
analisado nos relatos de sete israelenses. Segundo a autora, o processo de “deseducação” e
“desnaturalização” do sionismo como identidade vem acompanhado de constantes e contínuos outros
“becomings” anti-hegemônicos.
47
A iniciativa é parecida com as cláusulas previstas no acordo de Camp David, em 2000, sugerida por
Ehud Barak e Bill Clinton e rejeitada por Yasser Arafat, que não abriria mão do retorno dos refugiados
nem da retirada total de Israel da Cisjordânia. A iniciativa prevê um Estado palestino em 97,5% da
Cisjordânia e da Faixa de Gaza, a divisão de Jerusalém, que seria a capital dos dois Estados e o abandono
da grande maioria dos assentamentos. O direito de retorno dos refugiados palestinos é reduzido a um
número simbólico de famílias.

58
Ao final da entrevista, uma das interlocutoras mais ativas no campo,
ex-madrichá do Shomer, coordenadora do MERETZ-Brasil e conselheira na FIERJ
[Federação Israelita do Rio de Janeiro] resume o dilema ontológico, moral e político de
um sionista de esquerda e sua elaboração para se manter em paz na angústia:

Olha, eu, sinceramente, eu falo isso com muito pesar, mas eu acho que o sionismo de
esquerda é um bando de gente esperançosa [...]. Eu vi uma matéria na Folha hoje que
fala exatamente disso em relação ao PSoL, de ser um partideco de utopias. Que é o
MERETZ! [rindo] Assim, me dói muito falar isso, mas é verdade. Então eu acho que,
sinceramente, são pessoas que não conseguem abrir mão da identidade sionista. Eu,
por exemplo, não consigo abrir mão disso. Isso é meu, eu gosto da história do meu
povo, eu GOSTO do movimento sionista, eu acho que a gente tem direito SIM, eu
acho que é ESSENCIAL pra nossa vida, pro nosso FUTURO. Então não consigo abrir
mão disso. Mas eu também não consigo abrir mão dos meus ideais. [...]Mas assim,
isso é uma super crítica, sabe?, porque eu não sei a quantas todo esse movimento
sionista de esquerda tem mais a ver com um peso na MINHA consciência, que eu não
consigo lidar... porque pode ser que seja!, não sei, pode ser que seja, TOMARA QUE
NÃO [rindo], mas pode ser que isso seja meramente uma solução SINTOMÁTICA de
uma coisa que eu não consigo elaborar de uma outra forma. Pode ser. Pode ser que
seja. Mas é difícil. Então eu acho que é muito mais uma questão de não conseguir
abrir mão das duas coisas e aí você tenta UNIR e eu acho que é uma coisa um pouco...
utópica, eu espero MUITO que não, profundamente eu espero que não, mas eu acho
que tem um quê de utopia sim. (ênfases dela)

Como diz Crapanzano (2003) sobre os brancos sul-africanos no final do


apartheid, manter a esperança na desesperança, hope-in-hopelessness, é uma estratégia
de sobrevivência: é preciso crer, mesmo que - e justamente porque - não se crê. A
mesma interlocutora que compõe sua esperança pragmática pela nostalgia da “Israel do
início”, “dos kibutzim”, diz:

Eu acho que a gente NUNCA vai conseguir ter paz ali. Isso eu acho. Acho que assim,
pode melhorar, mas assim paz-linda-maravilhosa-dois-estados-felizes, nunca vai. Se
você disser que eu falei isso eu vou dizer que é mentira! [...] de verdade, eu não
acredito. É uma utopia. Só que eu acho que a gente TEM que... a gente tem que ter
utopia, porque se não.... entendeu? Pra gente poder seguir, senão fica “ah, nunca vai
resolver..” então larga!, joga fora!, esquece aquela merda lá!, joga uma bomba!, mata
todo mundo! [risos], entendeu?

É este o maior desafio dos interlocutores: manter uma espera ativa num sonho
que, com carta/certidão de nascimento, nunca (ainda) nasceu. Para manter e transmitir a
crença é preciso feiticeiros, gramáticas e crentes angustiados – a seguir, descreverei dois
eventos do ‘fazer crer’.

59
CAPÍTULO 2

RITOS DO FAZER CRER

A crença de todos, a fé, é o efeito da necessidade de todos, de seus desejos unânimes.


[...] Mas negamos que o mágico possa chegar sozinho a esse estado e que ele próprio
se sinta isolado. Por trás de Moisés apalpando a pedra, há Israel inteiro, e, se Moisés
duvida, Israel não duvida; por trás do pesquisador de nascentes que segue seu bastão,
está a ansiedade da aldeia em busca de água. [...] Um embrião de multidão que é toda
expectativa, temor, esperança, credulidade e ilusão.
- Marcel Mauss, Esboço de uma teoria geral da magia (1937)

Nós temos que voltar a acreditar que o sionismo é a libertação do povo judeu. Até
[19]67 tivemos um país, é possível, nada vai acontecer.
- “enviado” [sheliach] da Agência Judaica e membro da direção do Partido MERETZ
de Israel, em palestra em São Paulo (2016)

Para que a crença circule, seja reproduzida e transmitida, ela supõe não só
agenciamentos, contornos e negociações, como discuti anteriormente, mas também um
conjunto de práticas sociais (MAUSS, 2003). Se na segunda parte da dissertação me
deterei mais precisamente à práxis do crer, neste capítulo descreverei dois desses ritos
da magia sionista de esquerda imprescindíveis à produção social da crença: a palestra de
um jovem “enviado” de Israel sobre os “dilemas contemporâneos” do sionismo, e a
exposição de um “parlamentar árabe” de Israel no Brasil. Tanto num quanto noutro,
agitar-se com um bastão uma fonte para que se faça chover é tão mágico quanto se fazer
crer que um Estado que deve expulsar, matar, desapropriar, prender e apagar para
sobreviver (BUTLER, 2012) se torne, um dia, um estado de “liberdade” e “paz”.

Escolhi tratar os ritos da crença sionista de esquerda como ritos mágicos e não
religiosos/judaico por várias razões, dentre elas 1)porque seus agentes mesmos se
advogam seculares, ou mesmo antirreligião; 2)por não serem ritos obrigatórios ou
regulares (embora se repitam com maior frequência em tempos febris da crença); 3)e
por serem práticas no geral, isoladas, ou ao menos fora dos circuitos “oficiais” da
religião (embora um deles tenha acontecido no espaço de uma sinagoga, foi num horário
em que não havia serviços religiosos). O que os aproxima dos ritos religiosos, no
entanto, é o fato de serem fenômenos essencialmente coletivos em todas as suas partes –
agentes, crença, eficácia etc. (MAUSS, 2003)

60
Durante todo o campo, acompanhei diversos eventos que aconteceram no Rio de
Janeiro e em São Paulo e que se propunham a discutir o sionismo, o “conflito
Israel-Palestina”, ou ainda a relação entre Israel e a diáspora judaica. Percebi que eles
eram não só bastante frequentes, mas guardavam certo padrão – seja em relação ao
formato, ao perfil do público e dos palestrantes (em geral ‘autoridades’ e ‘experientes’),
ao repertório utilizado, às instituições que os realizava e aos momentos “críticos” nos
quais aconteciam, geralmente seguidos de alguma operação militar “relevante”,
“atentado terrorista” ou situação diplomática delicada em que Israel se via envolvida.
Não só “palestras”, “debates”, “conversas”, essas práticas faziam parte da própria
materialidade da crença: eram rituais do fazer crer que, como injeções de esperança para
angustiados, funcionavam como uma espécie de magia contra os ‘bruxos’ causadores
dos infortúnios que contaminaram o sionismo com a imoralidade da “Ocupação”. Se,
segundo Evans-Pritchard (2005, p.50), “a bruxaria participa de todo os infortúnios e é o
idioma em que os Azande falam sobre eles – e por meio do qual eles são explicados”, o
que faz um bruxo, neste caso, é o fato dele furar a ‘possibilidade’ da crença no projeto
do sionismo de esquerda.

A magia, diz Mauss (2003), é uma “arte de dispor, de preparar misturas,


fermentações e manjares” (op. cit., p.90) e é compreendida por três elementos
fundamentais: os agentes – cuja autoridade mágica lhes é conferida não por seu caráter
individual, mas pelos “sentimentos sociais” direcionados a eles, uma predeterminação
coletiva, gerados por uma revelação, consagração ou tradição; as representações
mágicas, ou representações dos efeitos dos atos mágicos; e os atos em si, ritos, que
devem acontecer com certa repetição para que a magia seja crível e, assim, eficiente.
Com seus mágicos, crenças e ritos, a magia sionista de esquerda obedece à doxa mágica
da semelhança (“semelhante produz semelhante”), já que “esquerda” no Brasil parece se
assemelhar à “esquerda” em Israel (“o Avodá é como o PT daqui, e o MERETZ é o
PSoL de lá” – explicavam os interlocutores com alguma frequência); e também da
contiguidade (“coisas que estiveram em contato continam agir umas sobre as outras,
mesmo se não mais estão”), através da constante invocação da “ética judaica”, dos
profetas, dos kibutzim, de documentos e espíritos – Herzl, Achad Haam, Leibowitz, etc.
–, além da própria contiguidade no espaço. Praticar um sionismo de esquerda na
diáspora é fortalecer a esquerda sionista em Israel, como uma ação à distância: daí que,

61
como veremos no capítulo 4, manusear um mapa implica intervir sobre o território,
produzi-lo.

O comum da magia, conforme Mauss (2003), é a mudança de estado – neste


caso, de um estado de desconfiança, frustação e falta de esperança de seus espectadores,
para um estado de crença, empoderamento e esperança. Não chamarei de ilusão, pois
não é disso que se trata: segundo o autor, “o mágico que cumpre o rito e o interessado
que acredita nele, [...] [e]sse par teórico irredutível forma, efetivamente, uma sociedade”
(MAUSS, 2003, p.158). E se a crença não é dogma, é possível dizer que ela é quase
obrigatória na medida em que é “compartilhada de nascença”: “somos, portanto,
levados a pensar que, na raiz mesma da magia, há estados afetivos, geradores de ilusões,
e que esses estados não são individuais, mas resultam da mistura dos sentimentos
próprios do indivíduo com os sentimentos de toda a sociedade” (op. cit., p.127)

No entanto, se a fé na magia precede necessariamente a experiência – só se vai


procurar o mágico porque nele se acredita – o ato ritual mágico nem sempre é eficaz
diante de crentes que, angustiados, clamam por outros ritos para manterem sua fé.
Estive em cinco rituais do fazer crer, entre meados de 2016 e meados de 2017. Em
geral, os convidados principais, que aqui tratarei como mágicos, tinham sotaque forte,
eram israelenses ou moradores de Israel, educados em movimento juvenil, e sua visita
se dava através de alguma instituição ligada à Israel (Agência Judaica, partidos
israelenses, instituições mundiais como Hillel ou B’nai B’rith). Alguns deles se referiam
a si mesmos como shlichim ou, no singular, sheliach, como já dito, “enviado” ou
“emissário” - um tipo de cargo institucional que dura em média dois anos48.

Não raro esses convidados especiais, vindos de longe e trazendo novidades e


informações ‘de dentro’, às quais não teríamos acesso daqui, percorrem várias
instituições, em sua maioria judaicas, fazendo apresentações em institutos, escolas,
sinagogas e movimentos juvenis, localizados principalmente no Rio de Janeiro, São
Paulo, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba e Brasília. A divulgação destes eventos não
é muito ampla – restringindo-se geralmente aos círculos judaicos e a um público judeu –
e frequentemente se pede algum tipo de inscrição prévia. A seguir, descreverei

48
Segundo site oficial da Agência Judaica, “nossos shlichim preenchem a lacuna entre os judeus de
diferentes origens e Israel, aumentando a consciência judaica e orgulho dentro de sua comunidade,
ajudando a promover uma compreensão de Israel e seus ideais”. A prática de “fazer compreender” será
melhor desenvolvida na segunda parte desta dissertação.

62
brevemente dois desses eventos, dos quais fui uma observadora mais participante do
que havia planejado.

2.1 – O mágico árabe

“Se o cara árabe tá dizendo... não é tão difícil assim!”


- interlocutor [8]

Deste evento, soube através de um post no Facebook compartilhado por um dos


interlocutores: um parlamentar “árabe-israelense” do MERETZ e ex-secretário do
movimento Paz Agora viria de Israel para a conferência da União Internacional do
Judaísmo Progressista em São Paulo. Além disso, em sua passada pelo Rio de Janeiro,
falaria em uma sinagoga e também daria uma palestra sobre “as minorias não judias de
Israel e os desafios da sua representação política” na UFRJ [Universidade Federal do
Rio de Janeiro], a convite do Núcleo de Estudos Judaicos do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais49.

Em trinta minutos, num inglês bastante simples e didático, o convidado


confirmou ao público - de 15 a 20 pessoas, em sua maioria jovens do sexo masculino,
de movimento juvenil, alguns dos quais vestidos com a camiseta do movimento - que é
possível discordar das políticas do atual governo (“Israel não é só o Bibi!”) e ainda
assim seguir apoiando o Estado de Israel, “judeu”, “democrático” e “sem ocupação”.
Em sua análise da conjuntura israelense, apesar dos “riscos” que a “democracia
israelense” (enquadrada nos termos: “people´s rights”, “human rights”, “freedom
speech”, “civil society”) estaria correndo neste momento, no qual “a direita” e “os
religiosos” têm trabalhado no sentido de fazer de Israel um Estado antes “judeu” que
“democrático”, ameaçando assim “suas minorias não judias”, o palestrante demonstra
uma postura otimista quanto ao futuro do país. Segue com a apresentação da crença na
“solução de dois estados”, “única solução judaica e democrática possível” e com a
condenação do BDS – movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções à Israel,
melhor tratado no capítulo a seguir – como uma força política “contra Israel”,

49
Em agosto de 2015, o mesmo núcleo de estudos recebera a visita do então candidato à prefeitura de Tel
Aviv e ex-deputado do mesmo partido, apontando para certa periodicidade deste tipo de rito neste espaço
da Universidade.

63
instrumentalizada pela “direita” para minar a “esperança” da “paz” e do “diálogo” com
os palestinos e que, por isso, deve ser rejeitado.

Ao final da apresentação, abriu-se espaço para questões. Quando perguntado


sobre o motivo de sua escolha em se filiar a um partido sionista, cujos votos e políticos
são majoritariamente judeus, e não a um “partido árabe” da Lista Unificada [Joint List],
criada nas últimas eleições, o parlamentar responde, em tom bastante exaltado, fazendo
uma crítica aos “árabes” do parlamento (knesset) que se negam a compor alianças com a
“esquerda sionista” e se abstêm de participar nas discussões e decisões políticas
formuladas pela casa.

Qual a diferença entre MERETZ e os partidos árabes (“Arab parties”)? A gente [do
MERETZ] acredita que Israel é ok, um estado do povo judeu é ok, mas ao mesmo
tempo acreditamos que Israel é um estado DE TODOS SEUS CIDADÃOS. Não
somente o Estado dos Judeus! (“Not only the Jewish State!”). [...]. Meus amigos do
MERETZ não cancelam (“do not cancel”) meu pertencimento [por eu ser “árabe”]. Eu
aceito um Estado Judeu, mas não aceito que não-judeus não sejam iguais perante a lei.
[...] Você deve fazer parte do jogo político (“political game”). Se você não é parte do
jogo político, não há necessidade de você estar aqui [no parlamento]. Se você decidiu
ir lá [ao parlamento], fazer parte do knesset, você PRECISA fazer parte do jogo
político, para influenciar. É estúpido ter isso! É ridículo. Treze membros do knesset
não tomam partido em nada no knesset! Eles não são parte do jogo político. Por que
então estão ali? [ênfases do parlamentar]

Neste momento, um aluno do curso de Ciências Sociais do IFCS, judeu


israelense, levanta a voz e, da plateia, responde ao palestrante, em inglês: “Because they
are anti-zionists!”. Em seguida, trocam algumas palavras em hebraico – o organizador
esclarece a todos que o aluno é [judeu] israelense – e o palestrante segue, em inglês:

OUÇA! Você pode definir-se do modo como quiser, Mas nós dois, você e eu,
concordamos sobre a plataforma, ok? EU ACEITO SEU SIONISMO, MAS DENTRO
DA MESMA PLATAFORMA QUE TEMOS! O que eles estão fazendo no knesset?
Knesset é uma instituição sionista! O knesset representa Israel, sim? “Porque vocês
[“árabes” não sionistas] estão lá? Vocês precisam ser parte do jogo político!” [ênfases
do parlamentar]

E segue para a próxima pergunta. Incomodada com o fato do visitante ter usado,
durante toda a palestra e sem quaisquer esclarecimentos, “the Arabs” e “the Jews”
enquanto categorias excludentes – reproduzindo talvez as categorias oficiais usadas por
Israel de “nacionalidade árabe” e “nacionalidade judia” – como se não houvesse judeus
árabes (que em Israel se transformam em “orientais”, mizrachim50) ou como se essas

50
Literalmente “oriental”, é a forma pela qual são chamados geralmente os judeus de Israel oriundos de
países árabes e muçulmanos da Ásia e do norte da África e que constituem a maioria da população
judaica de Israel. Ella Shohat (2007), ao tratar dessa “entidade intermediária”, geralmente esquecida dos
tradicionais discursos críticos à Israel e ao sionismo, afirma que, assim como os nativos palestinos,
também esses judeus tiveram o direito de auto representação extirpado pela rejeição sionista ao Oriente

64
fossem ‘identidades’ inimigas, eu, que vestia um keffieh [lenço palestino carregado de
sentido político] no pescoço, peço um esclarecimento. Meu pedido é traduzido em
hebraico (língua que não domino) por um dos organizadores da palestra e também um
de meus entrevistados. O palestrante então troca uma meia dúzia de palavras com o
organizador, ignora meu pedido de esclarecimento e passa para a próxima pergunta. É
curioso notar que em nenhum momento o palestrante explicitou o fato dele mesmo não
ser judeu, bastando ser suficiente para o entendimento do público (e de fato foi
suficiente, como pude perceber pela reação das pessoas à “estranheza” do meu
comentário) identificar-se como “Arab” e, por vezes, como “mizrachi”, generalidades
que são ‘naturalmente’ entendidas pela plateia. Talvez também o fato dele ter
comentado que seus “jewish friends” não o excluem tenha bastado à plateia.

Se “árabe” vinha sempre seguido de “israelense”, na forma como se identificava,


“palestino” ou “palestinos” foram citados na fala do parlamentar unicamente para tratar
do “conflito com os palestinos”, de um “Estado Palestino” ou para falar sempre de
outros, referidos em terceira pessoa. Parecia estar diante de um ‘árabe-ashkenazita’, ou
de um ‘oriental orientalista’.

Quando finalmente conhecido pelos sionistas, os palestinos foram referidos como


“árabes”. Isto serviu a dois propósitos. Por um lado, o olhar orientalista relacionava os
palestinos aos outros países árabes, que eram vistos como inferiores pelos olhos dos
colonizadores ocidentais. De outro lado, o termo marcava-os como nômades e
beduínos, negando assim qualquer tipo de posse [ownership] coletiva ou pessoal da
terra. (Abu-Lughod apud Tal Dor, 2012, p. 211, tradução minha)

Ao final da palestra, o parlamentar se volta à pergunta a respeito do direito de


retorno dos palestinos expulsos em 1948 e de seus descendentes, garantidos por lei. Sua
resposta usa a mesma gramática do “pagmatismo mágico” da maior parte dos
interlocutores que entrevistei ao longo da pesquisa:

Veja, eu sou uma pessoa prática. A realidade é mais forte que qualquer coisa. Não
podemos colocar cinco milhões de palestinos dentro [inside] de Israel. Eu acredito que
teremos a solução de dois Estados e então o Estado Palestino será a resposta para todo
o povo palestino e os refugiados poderão ir para o país [da Palestina].

Logo em seguida a essa fala, o palestrante pergunta meu nome ao organizador,


se direciona a mim e diz as seguintes palavras, que mantenho no original:

no processo de judaização ashkenazita (palavra de origem bíblica usada para designar os judeus oriundos
da Europa e eslavos), protagonizado pelos “ocidentais”: “O sionismo não apenas assume a posição de
porta-voz da Palestina e dos palestinos, impedindo assim toda possibilidade de auto representação
palestina, como também pressupõe falar em nome dos judeus orientais”. (op. cit., p.118)

65
Bianca, you are right. I want to be part of the Israeli part. It is my believe. That´s why
I choose to be in MERETZ. Because MERETZ has an ideology of MAN: no Jewish,
no Arabs, only man, person. All of you.... I look at you as humans. I choose to be in
this party because there are people who believe in democracy, in human rights, in man,
in person.

O visitante então conclui sua palestra respondendo à última questão, dessa vez
elaborada pelo próprio organizador, que pergunta: “como você lida com a memória do
massacre cometido em sua própria vila, Kafr Qassem?”

Sobre este massacre, são relevantes algumas informações. Logo após o


estabelecimento do Estado de Israel em 1948, ainda antes da “Ocupação” os
árabes-palestinos que permaneceram no território e se tornaram cidadãos israelenses de
“nacionalidade árabe” viviam sob um governo militar que restringia seus movimentos
através de toques diários de recolher. No início da guerra de 1956 com o Egito, o
governo e o exército traçaram o Mole Plan (Plano Toupeira) para “encorajar” os
palestinos que viviam próximos à Linha Verde a irem se estabelecer na então
Transjordânia e bloquear seu retorno (PELED-ELHANAN, 2012). Neste dia, 29 de
outubro de 1956, o toque de recolher fora adiantado em duas horas e os moradores da
vila de Kafr Qassem avisados meia hora antes de seu início, de modo que os
trabalhadores que estavam no campo ou longe da vila não poderiam saber da mudança
de horário. A ordem dada pelo coronel era atirar em quem estivesse na rua após o início
do novo toque de recolher51

Segundo a autora Nurit Peled, que estudou o processo de legitimação de três


massacres palestinos cometidos por Israel (Deir Yassin, 1948; Qibya, 1953; Kafr
Qassem, 1956) através da análise de discurso dos livros escolares aprovados pelo

51
“Apesar da maioria dos oficiais junior decidirem não obedecer a ordem, o tenente Gavriel Dahan, o
comandante na entrada ocidental de Kaffer Kassem, parou os carros, bicicletas e caminhões que traziam
os trabalhadores de volta dos campos, ordenou as pesssoas e suas famílias a formarem uma fila e instruiu
seus soldados a ‘cortá-los’ [‘cut them down’]. Dentro de uma hora, 47 pessoas – dentre elas 11 crianças e
17 mulheres – foram mortas nas entradas ao norte e a oeste [de Kaffer Kassem] e dentro da vila mesma.
Os corpos foram rapidamente enterrados durante a noite na vila vizinha de Jaljoulia pelos próprios
aldeões forçados a fazerem a tarefa. Após seis semanas durante as quais o governo israelense negou o
evento e censurou sua publicação, não havia alternativa senão responsabilizar os soldados por assassinato.
Os defensores alegaram que eles obedeceram as ordens de seus superiores, mas o juiz decidiu que eles
deveriam ter desobedecido uma ordem manifestadamente ilegal e os sentenciou à prisão por uma duração
que variou entre 7 e 17 anos. O oficial comandante foi sentenciado a uma multa de 2 libras. Eles foram
todos soltos em dezembro de 1959 pela anistia presidencial e tiveram suas patentes restauradas. O próprio
Gavriel Dahan foi nomeado delegado da Agência Judaica em Paris. Em 1994, o prefeito de Kaffer
Kassem, Sheikh Darwish Nimer, escreveu uma carta ao Primeiro Ministro Yitzhak Rabin pedindo
reconhecimento estatal pelo massacre, mas não recebeu resposta.”. (PELED-ELHANAN, 2012,
p.171-172, tradução minha)

66
Ministério da Educação, o massacre de Kafr Qassem é lembrado pela consciência
judaica-israelense como o dia em que a Suprema Corte do país legislou contra a
complacência às ordens militares “manifestadamente ilegais”. Anos depois do massacre,
um ministro da educação decidiu que a data deveria ser comemorada nas escolas por ter
sido o marco que definiu os “limites morais” (“moral boundaries”) dentro dos quais
gerações de soldados e comandantes deveriam operar. A comemoração não levaria em
conta o fato do veredito da Corte não ter sido levado a cabo, tampouco o sofrimento das
vítimas. Baruch Kimmerling (2008), em seu artigo sobre os vários regimes jurídicos
ativos no atual Estado de Israel, afirma que a Corte e o Exército são as únicas entidades
que ganharam a absoluta confiança da sociedade israelense, sendo tal confiança
imprescindível para a preservação do caráter etno-religioso e excludente do Estado52.

Sessenta e um anos depois, o palestrante, que perdeu o avô no massacre em sua


vila, responde à pergunta do organizador do evento sobre sua memória do massacre. Ele
diz: “o que posso dizer é que aprendi com a história a não guardar vingança, mas sim
me esforçar pra que ela não se repita”.

A visita do deputado parece ter tido sucesso em seu objetivo de ‘explicar’, com
muita clareza, a “única solução” para a angústia sionista, e assim contribuir para a
manutenção da crença do “sionismo de esquerda” na “diáspora”, alimentada pela
“esquerda sionista” de Israel. Durante entrevista com outro interlocutor líder de
movimento juvenil, que acontecera muitos meses depois dessa palestra, os “recados” do
parlamentar deixados no Rio de Janeiro reaparecem como “prova” da possibilidade da
crença.

[mas pra você já existe um Estado judeu democrático?] Sim, sim.... [Hoje já existe?]
sim. Imperfeitamente democrático, claro, mas democrático, com suas imperfeições...
algumas muito GRAVES, mas democrático, sem dúvida. E judeu. Não acho que tenha
que ser uma coisa ou outra. Minha visão do sionismo é de um Estado judeu
democrático. O ano passado veio um parlamentar do MERETZ [...] que...você ouviu
ele falar? [Acho que sim.. [...]] ele tinha uns recados muito claros pra dar, mas que
fazem muito sentido. Ele falava: “olha, eu pretendo que Israel seja um Estado judeu e
de todos os seus cidadãos.” Muito fácil. Não é muito fácil? Muito fácil. O cara árabe

52
Kimmerling (2008) afirma que as duas Leis Básicas constitucionais (Basic Laws) criadas em 1992,
“B.L.:Human Dignity and Freedom” e “B.L.:Freedom of Occupation” - que se propõem a “ancorar em
uma Lei Básica os valores do Estado de Israel como um Estado judaico e democrático” -, por deixarem
indefinidas as categorias “mutuamente excludentes”, segundo o autor, de ‘judeu’ e ‘democrático’, são os
exemplos mais instrutivos nos quais “constitucionalização, sob o pretexto de liberalismo progressista,
perpetua discriminação básica com base na ideologia” (op. cit., p. 196-197, tradução minha) Outro
exemplo de violação de direitos humanos e crimes internacionais cometidos através da lei israelense é o
regime de permissões (permits) que possibilita a demolição “legal” de moradias e a proibição de acesso à
serviços básicos e à terra para cultivo ou colheita.

67
tá te dizendo: “[o Estado] não tem que parar de ser judeu, tem que ser TAMBÉM de
todos seus cidadãos”. E ele é árabe. A família dele foi massacrada em Kafr Qassem. E
ele fala isso. Um parlamentar. Partido sionista. Cara, eu tô nessa, pra mim é isso. Não
é TÃO difícil assim. [ênfases do interlocutor, em entrevista]

2.2 O jovem mágico

Boa noite a todos. Queria agradecer a presença de vocês nesta noite [...] Queremos
passar uma visão do sionismo com um enfoque um pouco mais à esquerda, um
sionismo aberto e com uma outra concepção do que a gente conhece. E para isso nada
melhor do que Yariv, que é o sheliach do Hashomer Hatzair aqui no Brasil, viaja tanto
pro Rio, quanto para São Paulo, também Florianópolis, Brasília também...e... tem uma
formação ligada a esse processo histórico, ao estudo da história judaica do conflito e
então eu acho que a gente vai poder sair daqui com bastante informação de uma
pessoa que vivencia, uma pessoa que MORA em Israel, VIVE a realidade de Israel, e
tem uma mensagem diferente do que a gente assiste hoje, grotescamente do
Netanyahu [...]. Há um ano atrás nessa mesma sala, um deputado do MERETZ falou
uma coisa que ficou no meu ouvido: “Gente, acreditem, Israel não é o Netanyahu,
Israel não é o Bibi. Israel tem MUITO MAIS GENTE, muito mais diversidade que
isso”. Então seguindo essa corrente, essa linha, queria apresentar para vocês, Yariv.
– organizador, na abertura do evento [ênfases dele]

É isso, gente, eu acho que eu estou aqui para dar voz, palco, para um outro sionismo
que eu vou mostrar pra vocês agora.
- Yariv53

No evento que descrevo a seguir considerarei Yariv um jovem mágico do fazer


crer. A relevância aqui de sua juventude vem do fato dela ser entendida, pela
coletividade do ritual, como um símbolo de renovação que produz esperança.

Soube deste evento também através do compartilhamento do post na timeline de


um interlocutor. Cheguei ao local, uma sinagoga localizada no bairro do Jardins, São
Paulo, dei meu nome na portaria e entrei. Havia cerca de 20 pessoas no total, sendo a
grande maioria mais velha que o palestrante, com 30 anos, e apenas eu, minha esposa e
uma outra pessoa ligada ao Dror de São Paulo, éramos as mulheres presentes. Também
havia alguns rostos conhecidos do JuProg, frequentes nestes eventos, e na época já
entrevistados para a pesquisa. Era uma noite de abril de 2017, no meio da semana.

A “palestra”, como chamou o próprio orador Yariv, tinha por título, projetado no
primeiro slide do powerpoint, “De minoria à minoria: 1948 - ........ , a transição sionista

53
Nome fictício.

68
que não acabou”. Neste título estava sintetizado o principal recado que trazia para a
plateia:

o sionismo nos tornou maioria, como queríamos, findando dois milênios de uma
existência minoritária, exílica e frágil, mas o projeto ainda está em transição no
sentido de que devemos nos transformar numa maioria melhor do que estamos sendo,
mais coerente com aquilo com que nossos ancestrais, fundadores do sionismo,
estavam inspirados, e que se vê encarnado na Carta de fundação de Israel. [Yariv]

Apresentados os títulos que consagravam o jovem mágico perante o público, que


em geral não o conhecia (com exceção de seu pai, também ativista brasileiro-israelense,
presente na plateia), uma vez que sua atuação mais contínua se dá no Rio de Janeiro –
era evidente certo nervosismo no corpo de Yariv –,agora de pé no altar da sinagoga, sua
“cozinha mágica”, sua primeira fala é logo uma revelação: tendo nascido em kibutz e
vivido toda sua vida em Israel, ele não se entendia como sionista até encontrar o “seu
sionismo”, parte de sua identidade, e que hoje se vê “calado”, “oprimido”,
“marginalizado”.

eu acho que o nosso...o meu... desculpe...o meu sionismo no sentido assim, afiliado,
parte da minha identidade que em determinado ponto eu adquiri...eu acho que tem
esse problema, de não ser ouvido. Esse sionismo que fundou o Estado de Israel não
tem presença, não tem voz, não tem fala dentro do discurso público e da grande mídia
também no Brasil.

E, para descrever esse sentimento de opressão, essa angústia de se sentir


incompreendido, conta que em 2014 participou de uma “delegação” para os Estados
Unidos em que 5 israelenses e 5 palestinos fariam discursos no congresso
norteamericano. Durante a viagem, todos os participantes se declaravam socialistas.
Apesar disso, quando Yariv foi se apresentar dizendo que era “socialista e sionista”, o
resto da delegação negou-lhe essa possibilidade de existência.

Aí eles falaram “ah, não pode ser. Você não pode ser socialista e sionista”. Ora, eu
venho da casa do meu pai. Pelo sionismo, LeTsyonut, é: sionismo, socialismo e
fraternidade entre os povos. Como pode ser que não? Que não encaixa...que não pode
ser? Toda a minha vida ouvi isso. O projeto kibutziano, que é um projeto, na minha
opinião, pelo menos pela longitude, um sucesso na história da humanidade, mais de
cem anos tá rolando esse projeto socialista, projeto sionista. Será que eu vivi uma
ilusão? E aí a gente ficou lá...verão de 2014, vocês lembram que aconteceu naquele
verão? [alguém intervém : “em Gaza...”] Aconteceu uma guerrinha, última guerra,
operação, guerra sei lá...que teve em Gaza 54. Então, a gente tinha duas semanas de
estágio [nos Estados Unidos] antes de começar a merda lá. E a partir desse momento,
eu dizer que sou a favor da paz e da solução, e sou sionista... [os palestinos] falavam
“você não pode ser os DOIS! Você tem que optar por ser...você tem que desistir de

54
A operação a que ele se refere foi uma das mais violentas operações que Israel realizou em Gaza nos
últimos anos. Seus resultados se arrastam até hoje, com milhares de pessoas desalojadas e construções em
ruínas.

69
alguma coisa, ou você está a favor da PAZ, da minoria neste caso, ou você é sionista,
que tá apoiando o que está acontecendo....essa é a dinâmica de forças.” Eu falei: “eu
não sei como fazer isso, não sei como ser a favor da paz, da solução, ao mesmo tempo
abrir mão da minha identidade. Não sei como fazer eu nem acho que vai trazer a paz,
para mim faz mais parte do conflito do que da solução do conflito. Como pode ser que
a minha negação, negar EU, vai trazer um futuro melhor para nós?” [...] Até me viram
como um bobo clássico, foi realmente um chute no peito...mas aí eu fiz essa palestra
pra tentar explicar o que é sionismo para mim, não só para mim, gente, também para
muitas pessoas que acreditam no Estado, que estão nesse processo...e para falar dos
resultados da viagem: dos 5 palestinos, 3 pararam de falar comigo, mas os outros dois
são meus amigos...uma menina de Gaza...a gente brigou depois de dois meses, mas foi
importante também para ela ver que tem isso, que existe. [ênfases dele]

Revelando essa “honestidade” diante do público, Yariv segue compartilhando


seu kit de ferramentas discursivas, o ‘tesouro de ideias’ de sua cozinha mágica: no
powerpoint, se lê projetado o alef beit (o be-a-bá) para se tornar um bom sionista.

A educação mágica parece mesmo ter sido dada na maioria das vezes, como a
educação científica ou técnica, de indivíduos a indivíduos. [...] Houve todo um ensino
mágico, escolas de mágicos. Certamente, para ensinar a magia a indivíduos era
preciso torná-la inteligível para os indivíduos. Fez-se então sua teoria experimental ou
dialética, que negligenciava naturalmente os dados coletivos inconscientes. [...]
Ademais, as magias desenvolveram-se através de pesquisas objetivas, de verdadeiras
experiências; enriqueceram-se progressivamente de descobertas, falsas ou verdadeiras.
[...] Desse modo ela se aproximou das ciências e, de fato, assemelha-se a elas, pois se
diz resultar de pesquisas experimentais e de deduções lógicas feitas por indivíduos.
Desse modo assemelha-se também, e cada vez mais, às técnicas [...]. A magia [...] não
é apenas uma arte técnica, é também um tesouro de idéias. Dá uma importância
extrema ao conhecimento, e este é um de seus principais recursos. Com efeito, vimos
várias vezes que, para ela, saber é poder. (MAUSS, 2003, p. 173)

Resultado de muitas experiências, essas técnicas são, segundo interlocutores,


compartilhadas principalmente no momento do Machon LeMadrichei Chutz Laaretz
(adiante apenas Machon), uma espécie de “faculdade para madrichim” dos movimentos
juvenis, quando, ao término do ciclo educativo, fazem Shnát, “o ano de preparação” ou
“de treinamento” (MILGRAM, 2010) em Israel.55

Em primeiro lugar, como o próprio mágico já demonstrou, é necessário


“honestidade” e “apologia” ao se falar de sionismo, considerando seus “erros e
virtudes”, sem entrar nos “pormenores” para, assim então “melhorá-lo”.

E para começar, quando a gente começa a falar de uma história, para mim, de sucesso
histórico de movimento nacional, sempre temos que adotar como uma medida de
honestidade e de... até eu vou dizer...apologética. Porque? Eu tenho orgulho de 100%
do meu sionismo, mas eu também sei que o sionismo, como qualquer movimento
social que conquistou sua visão, tinha seus momentos melhores e piores. Em alguns
casos o sionismo fez TUDO, e usava todos os meios para ser justo...em outros casos,
não fez nada. Acho que esse papo...não quero entrar agora em detalhes na conversa
sobre terra, árabes...que foram realmente evacuadas e retiradas do lugar e...tem uma

55
Tanto a viagem do Shnát quanto a experiência no Machon serão melhor tratadas no capítulo 4, em que
discuto as múltiplas viagens à Israel/Palestina possíveis.

70
lista de coisas, tá? Mas eu não queria entrar nessa. Para mim...olhar para trás e
aprender dos erros, é uma VIRTUDE, não é uma desvantagem. Eu acho que um líder
sionista que não quer aprender dos erros do passado, portanto, não tem capacidade ou
disposição de enxergar entre “bom” e “mau” e portanto, não tem as ferramentas de
guiar o povo dele para um futuro melhor, mais justo. [Yariv, ênfases dele]

Yariv então lista os quatro elementos obrigatórios para ser/fazer um sionista de


esquerda, projetados em seu powerpoint e comentador pelo mágico: 1) reconhecer o
direito de todas as nações à autodeterminação – inclusive a palestina; 2) ter uma postura
adequada, sendo “um guardião justo e ponderado de Israel e querê-la bem: sempre
trabalhar, lutar para uma Israel melhor”; 3) “honrar e proteger nossas minorias porque
em toda nossa história fomos perseguidos”, assumindo que “sionismo sem democracia
não é sionismo e não faz parte do patrimônio judaico”; 4) crer na “diplomacia” como
único meio legítimo para alcançar a “paz” e “sempre estar disposto ao diálogo”,
lembrando que “todas as conquistas do movimento sionista foram pela diplomacia”.

Listadas as obrigações éticas do sionista exemplar, segue para os tabus, as


proibições. São três: 1) dizer que o povo “x” não existe (“deslegitimação é uma doença
de que nós sofremos até hoje, não podemos alimentar esse bicho. Isso é um disparo no
nosso próprio pé”); 2) desprezar o papel da ONU e suas declarações: “de novo, a
fundação de Israel foi pela família das nações... isso está na declaração de
independência”; 3) dizer que quem é contra Israel é antissemita – neste caso, você deve
“lutar” e “ganhar” do antissionista, não simplesmente “taxá-lo”:

O antissionismo, os antissionistas é....é uma outra criatura...é uma criatura política, às


vezes racista, não sempre.... mas é uma posição, um argumento válido, presente, que a
gente tem que saber debater, lutar, ganhar e não só para o melhor do nosso movimento
nacional, mas para todos os movimentos nacionais. Por que o antissionista faz o
mesmo que a extrema direita sionista tá fazendo para outros povos: não ver esse
direito, esse movimento histórico como realmente um valor universal, não exclusivo, e
por isso é importante reconhecer que o antissionista, que não é antissemita, traga o
poder de debater para poder ganhar.

Não mais explicitando se se tratava agora de ‘ensinar a fazer crer’ ou de ‘fazer


crer’, segue o encantamento com as invocações rituais, fundamentais, segundo Mauss
(2003), para “evocar um poder”.

Invoca-se, chama-se, presentifica-se a força espiritual que deve fazer o rito eficaz, ou,
pelo menos, sente-se necessidade de dizer com qual poder se conta; é o caso dos
exorcismos feitos em nome desse ou daquele deus; atesta-se uma autoridade (MAUSS,
2003, p. 93)

O espírito invocado é o de Theodor Herzl, considerado o pai do “sionismo


político”, cujas marcas se assemelham muito a dos espectadores: trata-se de um judeu,
ashkenazita, jornalista, intelectual, urbano, da classe média austríaca. É tratado pelo

71
mágico como “visionário” por ter imaginado, tanto em seu famoso “O Estado Judeu”
como em seu romance “Altneuland”, “Nova e Velha Pátria”, a “sociedade exemplar”
que o sionismo criaria, e como um profeta, que anunciara, numa anedota56, as desgraças
que cairiam sobre todos os judeus, sionistas ou não, caso essa sociedade falhasse em
realizar.

Visionário, profeta e também um “quase socialista”, por ter imaginado, “antes de


qualquer legislação trabalhista”, uma “sociedade exemplar” cuja jornada de trabalho
seria de sete horas diárias e na qual as mulheres judias teriam garantidos direitos iguais
aos dos homens

Não sei se vocês sabem, trinta anos antes da fundação de Israel já mulheres
dentro do movimento sionista podiam votar, 30 anos antes de 1948. [...] Uma
lei muito muito avançada que Israel implementou e até hoje existe. “O
número de policiais militares não superará a 10% da população”...não fiz o
cálculo da realidade hoje em dia, mas ele escreveu isso, gente. Olha a
profundidade do saber que ele tem

Uma sociedade na qual uma educação pública e gratuita seria garantida, assim
como a moradia pública – “fundada em [19]49 em Israel muito pela visão de Herzl”, diz
Yariv – e a saúde pública aos judeus: “que tem em Israel desde 1911 [...]. É uma
satisfação poder dizer isso. Hoje esse ideal de Herzl existe”. Nessa sociedade imaginada
de Herzl também haveria a separação completa entre religião e estado: “agora a gente se
afastou um pouco desse ideal. Mas Herzl não tinha dúvidas sobre a importância disso”.

E então a “Carta de Independência” é invocada como ‘prova’ da existência de


um “sionismo democrático” que “acolhe suas minorias”, um documento que materializa
a crença, acalmando a angústia. Olhando para a imagem do manuscrito original da Carta
(anexo I) projetada na parede, Yariv enuncia: “Isso é a alma, a ALMA, o elemento
sionista judaico de acreditar, de não...[procurando a palavra em português] é... não
desesperar!” [ênfase dele].

56
Projetada na parede, a anedota, contida num manuscrito raro de Herzl e ainda não traduzida para o
português, se dirigia contra os religiosos europeus antissionistas, aos quais Herzl se refere jocosamente
por Mauschel, como um “Moisés” em ídische, a língua falada por esses antissionistas. Segue um trecho
do manuscrito, traduzido pelo próprio Yariv: “Maushel, cuidado! Aqui há um movimento, que inclusive
os que odeiam Israel sabem não o subestimar! Desta sede eles devem começar a transferência em massa
de seres humanos com condição financeira miserável, ou que estão sob grave perigo por questões
políticas, em direção a uma pátria permanente, estabelecida sob condições legais e seguras. É contra isso
que você se rebela, Maushel? É isso que você quer impedir com atos hediondos, por não ter nisso
interesse próprio? [...] Maushel, cuidado! O sionismo pode ser para você como foi a lenda de Guilherme
Tell. Quando Tell disparava com uma flecha em direção à maçã que se encontrava na cabeça de seu filho,
tinha consigo outra flecha em sua cintura. Caso o primeiro disparo falhasse, o segundo seria um disparo
de vingança. Companheiros: a segunda flecha do sionismo está destinada ao peito do Maushel!”.

72
E pede para um dos espectadores ler um dos trechos selecionado do documento:

“...O Estado de Israel [...] será baseado nos preceitos de liberdade, justiça e paz
ensinados pelos profetas hebreus; defenderá total igualdade social e política para
todos os seus cidadãos, sem distinção de raça, credo ou sexo.”57 Está aí, pelo menos
no papel, uma descrição de uma sociedade que eu gostaria de fazer parte. Pra mim, se
não é exemplar esse...Or LeGoym, EXISTE isso no momento de fundar, de estabelecer
o projeto, muito do que Herzl queria e sonhava está nessa declaração.

Interessante notar que o rito de invocação dos fantasmas de Herzl e do


documento fundacional de Israel segue quase rigorosamente a teoria dos encantamentos,
sistematizada por Mauss (2003):

uma primeira espécie [de encantação mítica] consiste em descrever uma operação
semelhante à que se quer produzir. Essa descrição tem a forma de um conto ou de um
relato épico, e seus personagens são heróicos ou divinos. Compara-se o caso presente
ao caso descrito como se este fosse um protótipo e o raciocínio adquire a seguinte
forma: se alguém (deus, santo ou herói) pôde fazer tal ou tal coisa (geralmente mais
difícil) em tal circunstância, assim também, ou com mais forte razão, pode-se fazer o
mesmo no caso presente, que é análogo (MAUSS, 2003, p. 92)

O discurso de Yariv sobre a “visão” de Herzl, a “sociedade exemplar” e a


“vanguarda política” que Israel representa e da qual se orgulha remeteu-me à fala de um
interlocutor que, em entrevista, me revelou com mais clareza o caráter mágico do
sionismo sobre os crentes:

você tá falando de identidade judaica e sionista... O holocausto é fundamental. [...] eu


me emociono quando eu chego lá [em Israel]. Eu sinto uma puta raiva de ver os
colonos usando a bandeira de Israel da forma que eles usam, mas fora isso… [...]
Você chegar lá nesse país que antes não existia nada e agora tem tudo isso… é
chocante. [3]

Se Mauss (2003) diz que “há grupos que pretendem ter realmente poderes
sobre-humanos [...] sobre certos fenômenos” e que “há sociedades que se arrogam o
dom de fazer a chuva ou de reter o vento, e que são conhecidas pelas tribos vizinhas
como possuidoras desses dons” (op. cit., p.68), no caso dos sionistas de esquerda
“seculares” tais poderes são mesmo a ‘prova’ de que a magia funciona e não depende da
intervenção divina, já que o próprio “dom” judaico-sionista se encarregou do milagre de
“fazer o deserto florescer”.

O mesmo leitor que da plateia se oferecera a ler em voz alta a Carta – um jovem
vestido com a camiseta de seu movimento juvenil – segue: “...garantirá total liberdade
de consciência, culto, educação e cultura; protegerá a santidade e inviolabilidade dos
templos e lugares sagrados de todas as religiões; e se dedicará aos princípios...”. PÁ!

57
Grifo do autor da apresentação em powerpoint.

73
Neste momento, estoura a lâmpada do aparelho que projetava a prova. E a técnica do
fazer crer parece prejudicada pela tecnologia. Segue um desconforto geral (“e essa
lâmpada é super cara!”), a insegurança do jovem mágico se torna ainda mais evidente –
seu ritual dependia, em parte, daquelas representações mágicas – , mas retoma a
apresentação mesmo assim, agora de forma mais sucinta e apressada: seus slides
estavam também impressos e Yariv os trazia nas mãos.

E lista de forma bastante didática os quatro “novos-antigos desafios do


sionismo”, aquilo que o sionismo teria ainda pra “resolver” e “melhorar”: o desafio da
liberdade de se ser o judeu que se quer (“qualquer tipo de judeu”); o desafio da
“cooperação regional” – além da já existente com o Egito, Jordânia e Arábia Saudita; o
desafio da “solução de dois estados para dois povos” - “sem entrar em detalhes, que não
acho fácil falar, acho complicado...” - para assim “conseguir colocar uma separação pra
cada povo se recuperar, se reconstruir, sua identidade, seu bem-estar”; e, por último, o
desafio de ter um estado democrático de maioria judaica, o maior deles.

o caráter judaico de Israel está sob uma ameaça muito muito grave e muito grande.
Até a gente não ter a nossa independência sionista, judaica, de... mais do que
4.000.000 de palestinos [está se referindo aos palestinos que vivem sob a Ocupação de
Gaza e Cisjordânia]...a nossa visão como Estado Judaico nunca vai poder ser
realizada...como um elemento importante que eu acredito, o elemento de uma maioria
judaica dentro de Israel. Não acho uma DESGRAÇA querer preservar um país que
tenha esse elemento...é...não de religião, senão realmente de caráter étnico e nacional,
pra mim, junto com todo esse documento que a gente viu agora. Não é perfeito, pode
ser realizado, esse é o ideal. Então é isso, gente, separar, independência NOSSA do
povo palestino. É... Democracia. Até a gente não retomar esse teor democrático, o
nosso caráter democrático depois de 50 anos de Ocupação... me sinto um pouco
incomodado com esse termo [Ocupação]58....mas REGIME MILITAR ninguém pode
dizer que não existe. Em nós, o que podemos resolver...se a gente não PARAR de
controlar, de maneira cotidiana, a vida de mais de 4.000.000 de pessoas, que é outro
povo...a gente NÃO vai poder se referir como um Estado, um movimento democrático
e um espírito.... pluralismo...PLURAL judaico. Democracia é um desafio que temos
que resolver. [ênfases dele]

Yariv conclui sua palestra acionando sua confiança na Corte e no Exército de


Israel, já tratada acima a partir da leitura de Baruch Kimmerling. Para o mágico, é a
“direita [que] está em crise”: por mais que ela tente ultrapassar os “limites morais do
Exército”, as barreiras “legais” são claras e são elas que impedem “a direita” de
desfigurar o que Herzl e outros fantasmas viram e marcaram na fundação pétrea de
Israel.

58
Importante dizer que Israel nunca assumiu, juridicamente, serem os territórios palestinos “ocupados”.
Segundo Baruch Kimmerling (2008), o termo legal corrente é “território administrado”, sendo
“ocupação” um termo do direito internacional, não do direito israelense.

74
A direita tá numa bagunça muito grande. Eles querem, tá, eles querem mudar o
exército, e tem tirado muitos limites morais do exército. Aí pá!, o Atzal, o Atzal é um
documento do exército que fala muito muito claro quando você pode usar uma arma
ou não e...tem uma frase que.... é a primeira aula quando você é um soldado, que diz
quando você pode usar uma M16, isso ensina no Tzahal [exército], que seja num ser
humano. [...] Outra coisa: eles querem agora, por exemplo, mudar as placas da estrada
de Israel. Por exemplo [a cidade de] Akko, eles não falam “Akko” em árabe. Se fala
“Acre”. Eles querem mudar pra que seja em letras árabes, mas “Akko”. Isso é
eliminação de uma cultura e patrimônio. Mas eles não podem porque tem o [palavra
em hebraico ininteligível], são leis básicas que eles não podem mudar, só por via de
um processo muito muito complicado....mas não podem porque árabe é uma língua
formal de Israel. Tá bom? Eles querem eliminar coisas do mundo árabe da democracia
de minorias em Israel, mas eles não podem porque a declaração está aí, de
independência.

Terminada a apresentação, Yariv abre para a plateia angustiada expôr suas


questões – e então começa o trabalho mais pesado da magia. Pablo59, um homem alto,
barbudo e grisalho, levanta a mão:

você disse que a direita quer mudar essas coisas em Israel...agora...só que você não diz
o que JÁ FOI mudado. Porque esse sionismo liberal, essa certidão de nascimento do
sionismo, nessa configuração com a qual nós nos identificamos...esse sionismo não
existe. Ele foi desestimulado... [palestrante interrompe:] Não esse. É... [Pablo:] só, só
terminando minha colocação. Essas noções que você falou, que há uma pressão de
mudança ... vamos olhar para trás...o que é que foi mudado já? O que que já foi
perdido? Poucos dias atrás, tava conversando com uma pessoa que tava me
perguntando como vai a família, o que tem feito o seu filho... “ah, o meu filho estuda
jornalismo, faz isso, faz aquilo...e ele faz parte de um grupo juvenil socialista sionista”.
Essa pessoa ficou me olhando como se eu tivesse dito “meu filho é um corintiano
palmeirense”. Ela me olhava como se... “como essas duas organizações podem
conviver numa mesma ideia?!”. Como se o sionismo fosse algo ABSOLUTAMENTE
avesso ao que se pode chamar socialismo. Essa pessoa não é uma exceção. Portanto
me parece muito importante focalizarmos as pressões de mudança de certos elementos
pétrios [, que] não podemos deixar que mudem. Mas o que já foi mudado? E o que nós
já perdemos? [ênfases dele]

O feiticeiro enuncia então uma cura tópica dizendo que há de se conseguir


separar o “governo” do “Estado” de Israel, as vozes corretas das vozes equivocadas:
“Existem vozes que são muito, muito radicais, muito violentas...mas em Israel a
democracia existe”. E diagnostica a angústia de Pablo como um sintoma da “falta de
diálogo, de contato com um tipo de sionismo que a gente acreditava”. E ativa o poder da
confiança na tradição, dizendo que

não só nós [acreditamos]...vou te dizer: toda a casta de comandantes do Tzahal


[Exército], do passado e do presente, não vou falar sobre o futuro... tão apoiando esse
negócio aqui [aponta para a tela onde estavam sendo projetados os documentos e as
ideias], tá? E do Shabak [serviço secreto interno] e Mossad [serviço secreto externo].
[...] Pra mim isso dá força. Eu sei que eu.... a esperança não foi perdida. [Yariv]

E realiza a profecia que a plateia quer ouvir:

59
Nome fictício.

75
Na próxima eleição, escutem o que eu tô dizendo, vai subir um governo de esquerda...
centro-esquerda, não posso dizer se “sim” ou “não”, posso estar errado, mas no meu
olhar Benjamin Netanyahu NÃO VAI MAIS SER primeiro ministro de Israel. NÃO
VAI afetar o projeto sionista... aparentemente nunca mais na vida dele. Ok? Isso
aqui....seguindo tudo que está acontecendo, isso parece QUASE seguro tá? Sei lá o
que foi perdido e o que não foi perdido...a saúde pública eles tentaram privatizar, nos
últimos dois anos. NINGUÉM aceitou, ninguém [Yariv, ênfases dele]

Seguindo com as questões, Claudio60, um senhor bastante ativo nas discussões


virtuais do JuProg, faz mais uma intervenção angustiada, chamando para o auditório
nomes e fantasmagorias até então ausentes da sinagoga, explicitando suas diferenças de
repertório – e geração – com o jovem mágico.

Olha, na minha época falava-se do “sorex”, do socialismo realmente existente na


União Soviética. Uma coisa é o que sonhavam [...] outra coisa é o socialismo real. O
sionismo real, o sionismo REALMENTE, ele....é OPRESSOR, não tem como negar
isso. Quando você faz essa fala...eu gosto, eu me reconheço nela, mas é uma fala
idealizada, ela não representa a realidade, é um sonho, que infelizmente não se
realizou...houve um desvio. [ênfases dele]

Claudio segue então numa fala longa, que traz o dilema de como dizer “a
verdade” do sionismo para a comunidade judaica e ser ouvido sem que se tenha que
romper com o “sobrenome” sionista. Faz sugestões para que o sheliach melhore a
eficácia do seu rito, explicitando, “entre nós”, que é “importante ter claro para quem
você está falando. Você é sheliach do Brasil. [...] É preciso falar para essa comunidade
judaica brasileira a verdade, não o sonho”.

Claudio segue fazendo referência às comunidades judaicas nos Estados Unidos


que não têm “medo de enfrentar e denunciar essa realidade de apartheid em Israel e nos
territórios ocupados”. “Lá”, também o BDS [Movimento de Boicote Desinvestimento e
Sanções à Israel] teria um discurso “mais sofisticado” do que a “bobagem que o pessoal
fala aqui no Brasil”. Claudio sugere que se fale a “verdade” aos jovens, ou então eles
“vão aprender com a esquerda, com os antissionistas, com os trotskistas”. Sua proposta
é que se “enfrente” a “tamanha ignorância” da “comunidade judaica brasileira” sobre

a opressão, a humilhação que a gente impõe aos palestinos essa... esse... estado
policial que acontece nos territórios ocupados... a gente tem vergonha...quer dizer, as
pessoas, aqui, óbvio que me entendem... Mas pessoas na nossa comunidade aqui tem
vergonha de reconhecer que existe apartheid em Israel. EXISTE apartheid nos
territórios ocupados, não dá para negar isso.

Nesse momento, ao trazer à tona essas ‘palavras venenosas’ (como tratarei no


próximo capítulo, o palestrante interrompe:

60
Nome fictício.

76
Não em Israel. [Claudio continua:]...nós temos que afirmar isso. Existem 50 leis
racistas em Israel, que quem nos informou disso foram as pessoas do movimento de
solidariedade à Palestina [palestrante interrompe:] Isso é importante dizer: não é NO
Estado de Israel...eu acho isso muito, muito... é louco que a gente esteja criando essa
realidade lá. Mas dentro de Israel não existem essas 50 leis. [Claudio insiste:] São 50
leis EM ISRAEL que discriminam árabes israelenses [palestrante interrompe:] Isso
NA CISJORDÂNIA, não em Israel. Na Cisjordânia, não no país do povo judeu.
[Claudio continua insisitindo:] Não, não tô falando dos territórios ocupados. Tô
falando de Israel, eu te mando depois...porque nós fomos informados, e nossos jovens
vão para a universidade e lá eles são informados pelos trotskistas, entendeu?... então,
vamos aprofundar isso com mais detalhes. Leis que restringem o acesso de árabes a
instituições, à moradia... [palestrante interrompe:] Dentro de Israel? [Claudio:] ...leis
que viabilizam, por exemplo, que os árabes em Narraria.... [palestrante interrompe:]
Isso é racismo, não tem nada a ver... [Claudio:] racismo! [palestrante:] ...isso é
racismo DE RABINOS, não é uma instituição apoiado com regras. [Claudio:] Tá...eu
não sei exatamente... [ênfases deles]

No momento em que afirma “não saber”, Claudio, quem conheço das discussões
do fórum do JuProg, sabe de minhas posições em relação à Israel/Palestina e foi um de
meus entrevistados, vira em direção a mim e pergunta: “você conhece, Bianca, as 50
leis discriminatórias?”. A plateia então direciona os olhares a mim, que estou sentada
em uma das cadeiras, e digo: “tem uma ONG israelense só destinada a isso, que é a
Adalah61, né”. E Yariv diz: “Adalah? Adalah são meus parceiros, eu conheço eles! O
Omar, tá, ele é muito amigo meu. A minha área de estudo é sobre os árabes em Israel”.
Eu digo que ele deve conhecer então sobre o que se trata essas 50 leis. E ele responde,
terminando o assunto: “tá, eu vou ver, tá, eu acho muito interessante... eu acho que
existe uma discriminação ENORME dentro de Israel, mas não tá institucionalizado”
[ênfase dele]. Bianca, a que vê, fala e toca nos fantasmas ausentes, parece ser convocada
nos casos de aflição que exigem trabalhos mais pesados da magia. O “enviado” diz que
não sabe do que se está falando, mas que é amigo de quem sabe e fala que “vai ver”.

Claudio então segue desenvolvendo sua sugestão à Yariv para que se construa
uma crítica mais sólida, mais “verdadeira”, mobilizando outros termos. Para ele, é
preciso assumir a necessidade de um “racha” com a “comunidade”, fundando outras
comunidades dispostas a enfrentar uma realidade de Israel/Palestina na qual caibam as
categorias que usou para descrevê-la: “racismo”, “apartheid”, “opressão”.

Parece que Claudio, duas gerações mais velho que Yariv e não vinculado a
nenhuma instituição formal judaica, aciona elementos mais ‘radicalizados’, pouco
frequentes e mais ‘jovens’ na gramática do sionimo de esquerda no Brasil – como

61
Conheci a ONG Adalah - The Legal Center for Arab Minority Rights in Israel quando de minha viagem
à Israel/Palestina. Para uma descrição das leis discriminatórias aos não judeus israelenses, ver o banco de
dados da ONG (ADALAH, 2017).

77
parece expressar a referência ao movimento Jewish Voice for Peace. Tal escolha
constrasta com aqueles elementos acionados pelo próprio jovem “enviado”, que busca
sua fonte de esperança nos espíritos mais antigos, encarnados em Theodor Herzl ou na
“Carta” – ingredientes para uma mágica cuja eficácia não parece estar indo bem.
Claudio, também crescido em movimentos juvenis, talvez acredite mais do que Yariv
no elo que une os judeus à terra de Israel, não vendo por isso riscos em se assumir e
falar “a verdade” sobre Israel/Palestina. Diferente do mágico, ele parece crer que o
“sobrenome sionista” não pode ser ameaçado ou contaminado pela “realidade” – e por
isso sugere outros ingredientes para um rito mais eficaz diante do desafio de “conciliar
essas duas coisas: você tem que dizer a verdade para a comunidade ao mesmo tempo
você não pode ser rejeitado, se não as famílias não colocarão os jovens no Hashomer
Hatzair, no Dror... esse é um veredito muito difícil” [Claudio]. Diante do “difícil
veredito”, não se nega a crença, mas se repensa a ética do ritual, alterando as formas do
fazer crer:

A magia, como a religião, é um bloco: nela se crê ou não se crê. [...] a crença num
caso de magia implica a crença em todos os casos possíveis. Inversamente, uma
negação faz desabar o edifício inteiro. Com efeito, é a própria magia que é
questionada. Temos exemplos de incredulidade obstinada ou de fé enraizada que
cedem de uma só vez a uma experiência única.” (MAUSS, 2003, p. 126-127)

Algumas últimas angústias são trazidas ao altar: “uma coisa é a gente lidar com
ideais, outra coisa é a gente lidar com fatos [...] Eu não vejo hoje a esquerda sionista
com um projeto que dê conta desse processo, não vejo”, ou ainda pedidos por “novas
ideias”, “coisas”, “possibilidades” que existem em Israel e que aqui seriam úteis em
rituais de fazer crer:

Daqui a gente não tem...o que que nós temos? Nós temos dois movimentos que tão
pequeníssimos e com possibilidades muito restritas. Então que tipo de...tô falando do
Hashomer e do Dror...é....que tipo de ideias novas e uma nova educação pra gente, por
exemplo, acender essa esquerda judaica que a gente luta? [...] eu realmente não tenho
encontrado... que possibilidades novas existem?, e o que de Israel a gente pode então
trazer pra cá?...e que fala de um outro lugar, de uma outra...de outras ideias?,
porque...legal, acho que você retomou a história do sionismo e seus princípios...e por
isso eu me afirmo sionista, mas.....bom...isso não está tendo efeito. Aqui em São Paulo,
e vocês sabem bem disso, esses dois movimentos tão muito enxutos... Os movimentos
tão temerosos, tão temerosos...falam de uma dificuldade muito grande de serem
respeitados nos meios judaicos. [mulher na plateia]

A essas aflições o mágico responde despachando-as com pedidos de paciência:


há algo “novo” vindo, diz o jovem, um “renascimento”, que remonta ao tempo de
Yitzchak Rabin, o expoente do “campo da paz” israelense.

78
eu estou presenciando um Renaissance [...]. Tem outros fatos acontecendo dentro de
Israel, o que acontece aqui é ainda tipo...dez anos atrás para mim…! [...] Eu fico muito
feliz de ver que Meretz-Brasil aqui em São Paulo está começando [...] Com o tempo, a
gente vai criar uma família, um movimento, uma onda! [Yariv]

O ritual é concluído com a fala bastante enérgica de um dos representantes do


MERETZ no Brasil e organizador do evento.

Agora eu vou falar nossa parte: a gente não vem cumprindo com a nossa parte. Eu
acho que o grande momento tá sendo agora, nos últimos tempos, com uma
reorganização, surgindo grupos que questionaram e voltaram a [dizer]...: “não, isso
aqui pertencia a mim, é MEU isso aqui, esse discurso do Herzl, essa mensagem do
Ben-Gurion, É NOSSA, É DA ESQUERDA SIONISTA, É DE QUEM CONSTRUIU
O ESTADO DE ISRAEL, DE QUEM FEZ AS ALIÓT. É de quem foi para os
kibutzim, É NOSSO. E vocês [da direita] estão se apropriando disso aqui e
desvirtuando, construindo muros, separando e transformando isso em uma coisa
sagrada”. Você vai vendo várias instituições tentando resistir, começando a entender
que na realidade nós fazemos parte de um mesmo corpo. A gente [instituições da
esquerda sionista] pode um estar num dedo, outro em outro dedo...mas a gente faz
parte do mesmo corpo. E aí que nós temos que funcionar, e aí que nós temos que TER
SIM uma mensagem. Eu acho que a nossa mensagem chegando até as pessoas, nós
temos que funcionar como embaixadores, como pólos de ação e disseminação dessa
mensagem dessa ideia e tentar trazer cada vez mais pessoas para os nossos grupos e
tentar fortalecer esse sionismo de esquerda que eu falo. Eu não tenho vergonha de
falar “sionismo progressista”!. NÃO!, É ESQUERDA SIONISTA, É ESQUERDA
SIONISTA! E nós não temos por que ter vergonha disso. A história da esquerda
sionista é uma GLÓRIA SÓ. É a história que construiu o Estado de Israel! Quando eu
vejo o pessoal do Hashomer Hatzair com a chultzá [camiseta do movimento] eu
TENHO MAIOR ORGULHO, depois de mais de 100 anos eles continuam
[interventor:] mais de 100 anos...! [orador:] MAIS DE 100 ANOS! E continuam
trajando....ESSA BANDEIRA. [ênfases dele]

Em tom motivacional, o crente – e interessado em crer – se esforça por injetar


auto-estima e esperança na plateia. Para isso, lembra das “glórias” do novo-velho
“sionismo de esquerda”, sendo uma das quais a própria fundação do Estado de Israel –
uma verdade difícil de ser negada. A já antiga crença num “Estado judeu e
democrático” aposta na magia de criar um Estado sem opressão, um espaço sem lugar
definido e um tempo sem duração: “o que são 50 anos? O sionismo esteve com
problemas nos últimos 2 segundos de história, dá pra reverter!”. Ainda hoje, o “sonho”
se vê suspenso no ar enquanto que a “verdade”, evocada por Claudio, vai fazendo seu
trabalho de lei, de bala e de chão.

Entender como funciona a produção social da crença e suas formas de vida,


circulação e transmissão, passa, necessariamente, por entendê-la em sua dimensão
prática. Alguns desses exercícios que possibilitam e materializam a crença serão
examinados na parte II, a seguir.

79
PARTE II – PRÁXIS DA CRENÇA

CAPÍTULO 3
EXPLICAR, FALAR, FAZER SUMIR: GRAMÁTICAS DA ANGÚSTIA

Toda a reflexão europeia se desenvolveu em lugares cada vez mais desérticos, cada vez
mais escarpados. Assim, tornou-se hábito encontrar aí cada vez menos o homem. Um
diálogo permanente consigo mesma, um narcisismo cada vez mais obsceno não
cessaram de preparar o leito para quase um delírio, onde a atividade cerebral se torna
um sofrimento, as realidades não sendo as do homem que vive, trabalha e se forja a si
mesmo, mas palavras, agregados variados de palavras, as tensões nascidas dos
significados contidos nas palavras.
- Frantz Fanon, Os Condenados da Terra

A maioria [do meu Partido] tá começando a entender, e isso é muito bom, que esse é o
trabalho pedagógico que a gente tá fazendo. Que, gostem ou não, a gente reivindica o
sionismo e a gente reivindicando o sionismo é a favor do Estado palestino, luta por isso,
é contra a Ocupação...é tudo isso que eu te falei. Dá um bug na cabeça deles, eles não
conseguem entender. [...] E hoje a vitória que a gente vem conseguindo é que as
principais lideranças do Partido pensam muito parecido com a gente. A gente conseguiu
trazer muita gente pra esse debate, né. Que se tem alguma coisa sobre Israel eles vão
pensar muito antes de falar besteira. Eu acho que a grande maioria pensa muito parecido
com a gente, [...] e que falam: “hoje eu sou a favor de dois estados para dois povos, sou
contra a Ocupação, sou a favor da criação do Estado palestino...”. Lógico que tem
muitas questões que eu também não sei responder: “ah, mas e os refugiados?”. Não sei!
Eu também não sei! A gente não tem que saber tudo. Vamos debater sobre isso.
- jovem interlocutor filiado a um partido de esquerda.

Nossa luta precisa se alicerçar em bases pedagógicas, alimentando o diálogo, suscitando


a divergência, em prol de uma espécie de marco civilizatório.
- interlocutor em conversa sobre as tarefas do sionismo de esquerda.

Tendo, na primeira parte, descrito alguns dos elementos político-subjetivos da


crença “sionista de esquerda”, sua genealogia e mecanismos de produção e manutenção,
nesta segunda parte privilegiarei a práxis da crença, ou seja, as práticas e estratégias
formuladas pelos interlocutores em suas batalhas discursivas travadas com/na Esquerda.
Neste capítulo, tratarei dos tensionamentos nervosos, dos temas-limite à crença e das
palavras que, quando suscitadas, inflamam o debate e demandam contornos, explicações,
defesas e acusações. Como explicar a quem “não entende” o sionismo de esquerda e seus
dilemas? Como fazer com que enxerguem as dificuldades que enfrentam os adeptos da

80
crença e assim gerar solidariedade à causa da “esquerda sionista”? Como enfrentar o
contingente de palavras e de estratégias políticas que não cabem na crença? É da didática
angustiada do “sionismo de esquerda” que tratarei no capítulo que segue.

Carregando existências incompreendidas, ontologias “complexas” que “desafiam


entendimentos” e “borram as fronteiras” traçadas entre sionismo e esquerda – tanto pela
esquerda antissionista quando pela direita judaica, dizem –, os interlocutores se
encontram, por um lado, em uma luta por se fazerem existir na Esquerda – eles mesmos
e também sua “narrativa” – e fazê-la “enxergar” a diferença que esta narrativa sionista
traz.

o debate político é importante, é fundamental, porque é isso que forma a opinião das
pessoas, entendeu?. A criação das narrativas é que vai para um lado ou vai para o outro.
Aí as pessoas vão começar a enxergar as duas narrativas [...], vão pelo menos dar um o
primeiro passo que é enxergar, saber que existe mais que uma narrativa ali. [12]

Contra os argumentos de uma esquerda adjetivada como “goi” 1 , “binária”,


“fundamentalista”, “burra”, “às vezes antissemita” e “que não conhece o assunto”, “a luta
tem que ser pedagógica”, como diz um entrevistado, crescido em movimento juvenil e
hoje filiado a um partido de esquerda.

tem gente lá [no Partido] que é esquerda burra mesmo, que não sabe discutir, não tem
argumento, e aí é “foda-se”. É muito mais fácil dizer “sionistas devem ir juntos pro
paredão!” do que discutir sionismo. Eles não sabem...não tô falando com arrogância,
que não sei uma porrada de coisa também... mas eles não SABEM, não SABEM do que
tão falando [...] E aí cometem erros históricos porque não sabem... Por isso é muito fácil
ganhar no debate de ideias, e aí eles começam a gritar, tal... Ganhar no debate de ideias
é muito fácil porque a gente JÁ FOI LÁ! A gente SABE, a gente CONHECE! Tem
muitas dúvidas, muitos questionamentos que a gente conhece. [12, ênfases dele]

Para comunicar e explicar é preciso saber e, na pedagogia sionista “de esquerda”,


ser judeu, estudioso do assunto e alguém que viaja à “Israel” e “Palestina”, “conhece” e
“conversa” com “israelenses e palestinos”, são elementos que fazem dos mágicos-
pedagogos autores/autoridades que podem dizer, se envolver na luta e explicar aos não
sionistas, corrigindo seus “erros”.

o que eu não quero é voltar pra Israel a não ser com cargo de professor da Universidade.
Porque uma coisa que é fundamental aqui no Brasil é ser professor da Universidade.
Me dá um lugar de empoderamento que eu acho fundamental. Lá [em Israel], nos
Estados Unidos, onde eu for, isso é fundamental. Sempre uma referência. [7]
eu não acho que é nosso papel, muito menos de um GOI, que NUNCA esteve em Israel,
definir... opinar sobre isso [“o conflito”]. Não é a luta dele. Entendeu? [...] querer
divulgar alguma coisa, fazer algum pronunciamento oficial, quem sou eu, sabe? Nem

1
Termo bíblico traduzido do hebraico como “nação”, mas frequentemente usado pelos judeus para se
referirem às pessoas não judias, por vezes de forma pejorativa.

81
eu acho que EU tenho direito, porque eu acho que precisaria de muito mais vivência ali
pra poder me posicionar de fato. [...] Eles [esquerda antissionista] nem têm.... é... tudo
bem, conhecimento pra dizer, pra querer formular, eles até podem ter porque você
consegue acessar isso... Mas eles não têm que se envolver nisso! [9, ênfases dela]

Se não há mágico honorário ou mágico inativo, como afirma Mauss (2003), não
há “sionista de esquerda” não praticante e que, em seu cotidiano, não se encarregue de
certa tarefa pedagógica, seja de maneira institucional, como um cargo ocupado em
alguma estrutura judaica organizada para exercer tal função, seja de maneira “pessoal”,
nos espaços em que circulam entre não judeus, principalmente na faculdade e espaços de
trabalho. “Se eu pudesse escolher, não seria sionista de esquerda”, diz uma interlocutora,
reconhecendo os enfrentamentos e “trabalho” que este lugar/crença exige.

aqui [numa mão] é a esquerda não judaica não sionista, aqui [na outra mão] é a NÃO
esquerda judaica. Esses caras que estão aqui [a “não esquerda judaica”], só pelo fato de
MENCIONAR “Nakba”, sim?: “Ohhh!, isso é uma mentira, uma fabricação, isso não
existe!” [...] E aqueles que sentam aqui [na mão em que localizou a “esquerda não
judaica não sionista”], você de repente traz elementos que desestruturam eles. Não
esperam conhecer um discurso de um cara sionista que fala de Ocupação e crítico à
Israel ou crítico com o governo ou..... que tá preocupado com os palestinos... que se fala
pró-palestino e pró-israelense, que não tem contradição nisso e..... uma lista de tópicos
assim de discursos que você sente que tá fazendo um trabalho ali, um trabalho. [8]

O “trabalho” de “desestruturar” e “fazer conhecer”, a que se refere o interlocutor,


um “serviço pro sionismo [, que] deixa um sionista satisfeito, contente”, deve, no entanto,
ser diferenciado do trabalho que fazem as “grandes estruturas de hasbará”. Diferente
dessas, financiadas por “grandes estruturas de orçamento”, o trabalho para o sionismo “de
esquerda” não deve ser entendido como uma “missão mandada peo Mossad”, mas movido
por uma “ideologia pessoal”, algo no qual se acredita.

Fazer ou não “fazer hasbará”2 é um dos tensionamentos sensíveis ao campo na


medida que, podendo se transformar facilmente em categoria de acusação, é um trabalho
que deve ser bem explicado, decantado, dentro de uma gramática possível do sionismo
na/de esquerda. Embora a tradução literal da palavra hasbará seja ‘explicação’, os
interlocutores, em sua prática pedagógica em geral, não se veem praticando hasbará
porque, como vários deles explicaram-me, tal categoria carrega uma marca associada às
políticas de propaganda oficiais do Estado de Israel, cujo trabalho é, através de programas
de viagens, materiais audiovisuais, palestras e outros recursos, elaborar imagens positivas

2
Como dito em nota no capítulo anterior, hasbará é uma palavra usada para designar “propaganda”, embora
seu significado literal seja “explicação”, em hebraico. Para o historiador Nur Masalha (2012b, p.181),
“explicação” é um eufemismo de “propaganda”, assim como “transferência [de população]” [ha’avara] o
é para “limpeza étnica”.

82
do país/povo judeu, principalmente naqueles momentos agudos do “conflito”. Para isso,
os Ministérios da Defesa, Turismo e Relações Exteriores de Israel contam com unidades
de hasbará ligadas ao gabinete do primeiro-ministro e em intensa relação com as
instituições judaicas ao redor do mundo. Um interlocutor, que compôs uma comissão
permanente de “hasbará” numa instituição judaica, explica-me as várias linguagens
possíveis à prática da hasbará, tendo todas elas um tom comum de ‘defesa’ diante de uma
acusação que vem “de fora”.

Então assim, hasbará pode ser feita de várias formas. Pode ficar falando que Israel é
ótima, que fez tomate-cereja, o pen-drive, que tem o melhor exército do mundo, ou pode
ser feita através de...mais por fora da comunidade judaica, de ir mostrando que existem
judeus e israelenses que querem um Estado Palestino. Então assim, hasbará, no fundo,
o sentido mesmo, é um trabalho de: “não odeiem os judeus”, pra fora. Aí pode ser feito
de várias formas. [11]

Na diáspora, à distância do “conflito”, os interlocutores se esforçam por não fazer


‘respingar’ as violências perpetradas lá por Israel nos judeus distantes daqui, aos olhos
dos que “não entendem”, evitando assim que se abra espaço para a manifestação do
“antissemitismo”. Neste nível ‘local’, no qual se vê a maioria dos interlocutores, hasbará
não é só um trabalho de esclarecimento e explicação como de separação, da produção de
uma diferença entre a pessoa judia e o “lado ruim” do Estado judeu ou mesmo daquilo
que chamam de “establishment” judaico. Voltarei a este trabalho de diferenciação como
forma de lutar contra o “antissemitismo” mais adiante.

Escolho não usar a palavra hasbará para tratar das argumentações e explicações
às quais me deterei neste capítulo, insistindo antes no verbo “explicar”, ao levar a sério o
esforço dos interlocutores por diferenciarem suas “pedagogias” das “propagandas”
oficiais, que viriam por outros canais: diferentes dos “hasbarentos”, eles são “de
esquerda” e têm “autonomia” em relação ao Estado, como diz um interlocutor que
trabalha num núcleo de uma versão brasileira de um partido da “esquerda sionista”
israelense, fundado com o intuito de promovendo ações que aproximem as “esquerdas”
daqui e de lá:

Sim, [o Partido] tem diálogo claramente com o Estado, diálogo estratégico e diálogo
orçamentário. Mas tem autonomia também! [...] Hasbará vai por outro canal. Vai pela
embaixada... Ministério das Relações Exteriores... [...] (e seu trabalho nesse diálogo
entre a esquerda de Israel e do Brasil, por exemplo, você entende como um tipo de
hasbará? De esclarecer mesmo, colocar em debate, explicar.... porque você faz um
trabalho educativo, né?) Olha, em algum sentido sim, só que essa palavra tem um peso,
tem uma conotação, tem um..... pro bem e pro mal. Mas num sentido sim, por exemplo,
pra mim me dá uma satisfação, sou grato por poder tirar dúvidas e trazer argumentos
que desestruturam algumas verdades sobre Israel que as pessoas que sentam aqui [na
mão em que localizou a “esquerda não judaica não sionista”] têm. [8]

83
Saber, conhecer – “Israel”, “judaísmo”, “a Palestina”, “palestinos”, a história dos
vários sionismos, seus autores, os debates e polêmicas acadêmicas que estão sendo
produzidas nas universidades israelenses sobre os “temas chave” da questão (e a melhor
forma de nomeá-los e tratá-los) – é fundamental nessa pedagogia: significa não só poder
falar, ter autoridade e ser convidado e ouvido nas atividades sobre “Israel e Palestina”
dentro e fora da “comunidade judaica”, mas também, e principalmente, poder produzir e
gerir a economia dos argumentos, dos temas, das críticas, dos livros e autores que valem
e daqueles que não valem3.

O problema é que querem produzir no Brasil o livro do Ilan Pappé [“A Limpeza Étnica
da Palestina”4], que é um livro muito ruim. Em termos de pesquisa é um livro muito
ruim. É igual ao livro do Benny Morris, são dois livros muito ruins produzidos pra
propaganda. [...] O problema é utilizar isso como referência de militância acadêmica.
Não é. Isso é militância política. É massa. Que nem o livro do [Shlomo] Sand [“A
Invenção do Povo Judeu”]. Que nem o livro do Benny Morris, “One State, Two States”.
Isso é hasbará. (propaganda de quê? Do interesse de quem?) Isso é utilizado pra
hasbará. [...] A Judith Butler [,por exemplo,] é reflexiva quando ela fala de gênero,
quando ela fala de sionismo ela passa a ser normativa. [7]

Certo tipo de posicionamento revelado pelos textos/autores citados faz com que
eles se tornem “ruins” porque ‘úteis’ hasbará. Opondo-se àquilo que o interlocutor chama
de “militância acadêmica”, a simples citação de um desses autores/livros/críticas
considerados “rasteiros” já ‘contaminaria’ a legitimação de um texto (e de seu autor)
acadêmico ao “mostrar” de que lado se está na disputa: contaminado, ele se transformaria
em um um texto “pasteurizado”, “normativo”, “pouco reflexivo”, no qual “falta talmud5
e sobra tanach6”. Afinal,

se você publica um livro pra mostrar uma narrativa específica, isso é hasbará; se você
publica um livro pra construir pesquisa, entendeu, pra poder ser lido. (você publica um

3
Embora não seja o caso de desenvolver nesta dissertação, é possível enxergar aqui um campo sociológico
do saber-poder que conecta embaixadas e consulados, partidos políticos israelenses, professores
universitários em trânsito/viagem, convênios acadêmicos entre Brasil e Israel, financiamentos de pesquisa
e a manutenção de certa doxa/regime de verdade nas formas de se nomear e tratar os temas relativos à
Israel/Palestina.
4
Obra historiográfica sobre o processo que culminou na expulsão de mais de 750 mil palestinos (2/3 da
população) e a destruição de mais de 500 vilarejos e que, se utilizando das fontes primárias contemporâneas
à fundação do Estado e abertos à pesquisa somente nos anos 1980, conclui ser a “limpeza étnica” um dos
projetos do sionismo, necessários à concretização do Estado de Israel. O livro, escrito em 2006 e publicado
na Inglaterra, foi traduzido e lançado em São Paulo pouco tempo depois dessa entrevista, em 2016, pela
editora Sundermann, vinculada a um partido de esquerda.
5
Talmud é o debate rabínico sobre as interpretações das leis descritas na Torá, também conhecido como
“lei oral”.
6
Tanach é um acrônimo para o conjunto de livros fundamentais do judaísmo: os livros da Torá
(Pentateuco), os livros dos Profetas e os Escritos.

84
livro e pronto?) Não, não é. Não se publica um livro e pronto. Se publica um livro pra
alguma coisa. [7, grifo meu]

O “pensamento”, em geral, e o “estudo”, considerado por vezes uma atividade


judaica porque “talmúdica”, e a Academia, em particular, somados a “conversas” junto a
membros de partidos de esquerda com quem se tem “relações de amizade”, quando não
“de infância”, são, como pude observar, lugares privilegiados da prática “sionista de
esquerda”. Nesse “conflito de narrativas” entre aquelas narrativas que valem e aquelas
que não valem, não se diz que os argumentos desses autores “cínicos”, “hipócritas”,
“pretensiosos” são falsos, estão equivocados, não existem, ou com os quais não se
concorda politicamente, mas que eles “carecem de precisão, de materialidade” e que
falam “coisas que não cabem, como por exemplo essa coisa do redwashing7, que é uma
perspectiva muito pouco qualificativa, que trata as coisas como se fossem preto no branco.
Isso é hasbará! [...] É hasbará pró-Palestina” [10]. Desta vez, hasbará não é uma
categoria da qual se defende, mas com a qual se acusa os posicionamentos impossíveis à
crença: é através da “reflexão”, da “pesquisa” e da “academia” que se pratica o “sionismo
de esquerda” e que se pode ser “pró-Palestina”, não através da “hasbará”, “burra” e
“rasteira”.

“Pensar política”, nesse sentido, diferente de “fazer política”, parece estar ligado
a uma identidade específica que se não é a judaica, porque também a direita judaica e
judeus antissionistas “fazem hasbará”, é sionista – e de esquerda.

minha prática sionista está na reflexão, dentro da Academia. [...] O debate talmúdico do
texto é fundamental no meu judaísmo. [...] Não tem ninguém pensando política do outro
lado [no “lado palestino”]. Eu não sou militante, tá, mas eu penso política o tempo todo.
No [movimento juvenil] Dror, esses dias, eles me ligam: “O que você acha disso?”. Não
tem ninguém fazendo isso do outro lado [...]
(mas você tá em algum grupo de esquerda?) Não. (então essa prática de esquerda, de
construção dessa igualdade social que você falou, ela está...)...ela é intelectual. Eu
participo de grupos de estudo. Quando tem alguma emergência, eu participo…eu
participo dos debates. [...]
Já desde a graduação que eu fui pra um outro lugar, não o do movimento estudantil, que
eu já era no grêmio do colégio, mas uma militância de esquerda mais comprometida
com o estudo. Estudar texto, discutir texto. Aí comecei a discutir muito o conflito
palestino-israelense, na Universidade. [7, grifos meus]

Entendendo a questão sionista-palestina como um “conflito de narrativas” em que


“ambos os lados” – geralmente contados como dois: o “israelense” e o “palestino” –
teriam igualmente suas razões, os interlocutores acreditam no “diálogo”, no “encontro”,

7
Conceito cunhado pela autora Berenice Bento (2017) para designar “os dispositivos discursivos
autodenominados de “esquerda” que visam limpar os crimes do Estado de Israel”.

85
na construção de “pontes”, e valorizam a “dúvida”, as “perguntas em aberto” e a
“dialética” como método de compreensão da realidade. Em suas explicações se atém, do
ponto de vista de quem “sabe”, aos “debates”, “versões” e “perspectivas” possíveis do
“conflito”. A atividade intelectual, ao garantir-lhes certo lugar ‘universal’ de quem vê e
não é visto, parece funcionar como uma estratégia de validação imprescindível diante dos
enfrentamentos, como a medida das coisas que podem ou não ser ditas, e de que forma.

3.1 Um primeiro campo “assustador”: universalismo, colonialismo e


identidade

Meu judaísmo é tão volátil quanto meu sionismo. Eu aciono o que interessa. Não existe
judaísmo. Nem sionismo. Ou qualquer outra prática identitária que eu tenha. [...]
Eu sou a nonplace man. Total. (você se sente assim?) Sim. Cada vez mais. O mundo da
universidade é o mundo onde você se despe da identidade em nome da conexão com
outra identidade. É o mundo da dialética. O mundo da política como identidade ou da
identidade como política é um mundo da não dialética. Isso é assustador.
- interlocutor e professor universitário

Brancos de classe média, em sua maioria profissionais liberais homens, alguns


dos quais com mais de uma cidadania (brasileira, argentina, israelense, etc.) e com níveis
de escolaridade superior que variam entre Ensino Superior incompleto e pós-
doutorado/professor universitário e sendo, no Rio de Janeiro, moradores dos bairros de
Copacabana, Botafogo, Tijuca, Flamengo e Barra da Tijuca (tendo um deles nascido no
Méier e hoje morador de São Cristóvão), e, em São Paulo, moradores de Pinheiros e
Higienópolis, Vila Mariana/Aclimação, Pompéia e Bom Retiro, parecem falar não a partir
destes lugares sociais específicos, mas a partir de um “não lugar”, descolado e deslocável
das marcas sociais que produzem e atravessam qualquer pensamento e todo corpo
(HARAWAY, 1995). Entendendo a si mesmos como “sem lugar”, falam de um lugar
“universal” em oposição à “pouco qualificada” hasbará e à assustadora “teoria das
identidades”.

Explicar pela via estritamente intelectual e “volátil”, e não política, a “trágica”


diferença que os separa daqueles que não gozam da mesma “universalidade” parece ser
aqui imperativo à didática de se fazer crível como “sionista” e “de esquerda”. A estratégia
do “universal” é, nesse sentido, constituinte do ‘privilégio possível’ diante do

86
“assustador” “mundo da política como identidade”, ou seja, da assustadora materialidade
epistêmica e política que marca as identidades e posiciona os lugares: quais os sentidos
políticos de se ser branco de classe média no Brasil e ser sionista diante da questão
palestina? É dessa mistura impossível e inevitável entre identidade e política que parece
vir a angústia do interlocutor assustado.

Objetivando as ‘epistemes universais’ de alguns dos intelectuais por quem tinha


admiração, Edward Said (2000) escreve sobre seu encontro com Michel Foucault 8 ,
Simone de Beauvoir 9 e Jean-Paul Sartre em 1979, quando fora convidado para um
seminário em Paris. O objetivo do encontro com os acadêmicos, Said descobrira somente
depois, era reunir israelenses e palestinos notáveis para que pensassem caminhos à
“normalização” (SAID, 2000) do Estado de Israel no cenário internacional e nas relações
com os países árabes, restando ausente da pauta “the matter of the Palestinians”. O tom
da descrição de Said é bastante frustrado: apesar das posições de Sartre sobre a situação
colonial na Argélia, a questão palestina não cabia em sua leitura e a crítica colonial não
aparecia neste universal da justiça sartriana possível.

O “pró-sionismo” (SAID, 2000) irreversível de Sartre rendeu a retirada de seu


prefácio às últimas edições do “Condenados da Terra”, de Frantz Fanon, à pedido da
viúva do autor da Martinica, Josie Fanon. Em entrevista de 1978, ela diz que, apesar de
ser um “bom prefácio, do ponto de vista ocidental”, exigiu que o retirassem das próximas
edições em função das posições “pró-sionistas” de Sartre e outros intelectuais franceses
em junho de 1967, durante a Guerra que rendeu à Israel o controle dos territórios
palestinos, posicionamentos para ela “incompatíveis com o trabalho de Fanon: “Qualquer
que seja a contribuição de Sartre no passado, o fato de ele não ter entendido o problema
palestino reverteu suas posições políticas anteriores” 10 . (FANON apud FILOSTRAT,
2008, p.161, tradução minha)

Frantz Fanon (1968), por sua vez, – um autor não citado por meus interlocutores
– em sua crítica ao “universalismo” abstrato e humanista diz que o mundo do colonizado
é um “mundo maniqueísta”, regido pelo “princípio da exclusão recíproca” (op.cit., p.28),

8
Quem, segundo as memórias de Said (2000), teria perdido a longa amizade de Deleuze por discordâncias
em relação à questão palestina, este demonstrando apoio aos palestinos e Foucault à Israel.
9
Que logo saiu antes que começasse o seminário para o qual convidara Edward Said porque, relembra o
autor, de turbante, se ocupava de sua próxima viagem ao Irã para uma manifestação contra o chador.
10
“Quelle que soit la contribution de Sartre dans le passé, le fait qu'il n'a pas compris le problème
palestinien a inversé ses positions politiques antérieures”

87
e no qual os valores universais atuam onde há desigualdade de valor entre humanidades.
Falando do ponto de vista do colonizado, lugar que os interlocutores não podem ocupar
tampouco usar para explicitar a questão, o autor diz:

a discussão do mundo colonial pelo colonizado não é um confronto racional de pontos


de vista. Não é um discurso sobre o universal, mas a afirmação desenfreada de uma
singularidade admitida como absoluta [...]. O colono faz do colonizado uma espécie de
quintessência do mal (FANON, 1968, p.30).

Existem certos temas-limite da crença que compreendo como aqueles que


evidenciam as contradições mais difíceis de serem contornadas. Esses temas estão fora
da gramática do “universal”, compondo um campo semântico nervoso, suscitado, como
tratarei mais adiante ao discutir uma situação específica de debate, pelo “colonial” da
questão Israel/Palestina, ao lado de outras palavras como “hasbará”, “boicote”,
“apartheid”, “racismo” e “retorno dos refugiados”. Se os interlocutores não podem dizer
que seus adversários políticos são a “quintessência do mal”, dizem, sobre aqueles que
acionam essas palavras tóxicas, que são “ruins” e “normativos”, ou então que são
demasiado marcados por suas posições políticas. Por isso, como descreverei ao longo
deste capítulo, exigem “mais precisão” no uso dessas categorias – e o fazem a partir de
um lugar “singular absoluto” não marcado: o do pensamento.

Fora da gramática possível, considerado um “erro de categoria”, o colonialismo,


no entanto, não é reconhecido pelos interlocutores como categoria adequada para explicar
a situação da ocupação/conflito, tampouco a natureza do sionismo, entendido como um
“movimento de libertação nacional” ou uma “busca de liberdade”11 – algo mais próximo
ao “universal” do que ao “colonial”. Quando pergunto se um movimento de libertação,
poderia ser, ao mesmo tempo, um movimento colonial, respondem que “não são todos os
sionistas que são assim. É uma parte do sionismo que acaba se transformando numa coisa
nacionalista chauvinista”. [6, grifos meus] Suscitado, o “colonial” aparece como ameaça,
exigindo um contorcionismo que isole o projeto de uma Israel exemplar da Israel
contingencial, atual. Num movimento parecido, de desprezar uma “parte” para salvar o
todo, diz outro interlocutor:

11
Para Masalha (2012b), a recusa em entender o sionismo como um movimento colonial é parte das
“políticas de negação” [politics of denial] de Israel as quais, também presentes nos discursos “autocríticos”
dos “colonizadores de esquerda” (op. cit., p. 161) e dos “novos historiadores”, são fundamentais na
sustentação dos regimes de verdade hegemônicos, tanto em Israel como no Ocidente, sobre a questão
Palestina. Segundo o autor, essa forma de “narrativização” [narrativisation] de um sionismo moral através
de uma autocrítica, limitada a certos marcos e categorias possíveis, provê a “justificação ética” necessária
para a continuidade do empreendimento sionista no século XXI.

88
(e pra você o sionismo é um projeto colonial ou não?) Não. [silêncio] O sionismo.... O
SIONISMO, o sionismo CLÁSSICO, aquele sionismo, aquelas correntes sionistas que
surgiram no século XIX, ganharam corpo e se consolidaram num Estado no século XX,
em 1948, acho que esse sionismo não [é um projeto colonial]. Não eram colonialistas,
imperialistas, nenhuma... nenhuma aspiração a isso. Nenhuma vontade disso. Nenhuma
ambição dessas. Mas o ATUAL Estado de Israel, que é diferente de sionismo, [...] o
sionismo foi criado lá atrás, sabe qual é? Então essas pessoas [Herzl, Ben-Gurion,
Borochov etc.] não pensavam: “Vamos expulsar os palestinos”, algumas sim, né, mas
outra não. [11, ênfases dele]

Quando não ausente de suas falas, a dimensão colonial do sionismo é relativizada:


são, por exemplo, chamados “settlers” ou “colonos” apenas os cidadãos israelenses
localizados além da Linha Verde, não os primeiros colonizadores da Palestina britânica,
chamados “imigrantes” (ou “olim” das “aliót”). O “colonial” é também visto como uma
ameaça à medida que é entendido como uma forma de singularizar a experiência
israelense daquela de outros países, também coloniais, como Estados Unidos e Brasil, por
exemplo, com quem o empreendimento sionista guardaria semelhanças (estabelecimento
de colônias por estrangeiros, geralmente animados por um senso messiânico e que, se
transformando em maioria militar, política e demográfica, passa a tomar as terras das
pessoas que ali vivem, seja por meio da força, de negociações com as elites ou de
instrumentos jurídicos, acreditando não serem os indígenas capazes da tarefa de
cultivarem adequadamente a terra, que lhes pertenceria), mas também guardaria
diferenças. A relação dos judeus com a terra de Israel/Palestina, por exemplo, é defendida
pelos interlocutores, majoritariamente seculares, não em termos estritamente
messiânicos, mas como uma ‘continuidade’ entre o “povo judeu” bíblico e eles mesmos,
como o único lugar em que se pode viver a judeidade em sua “plenitude”, espacial e
temporalmente. Quando converso com uma interlocutora sobre o lugar de Israel no
judaísmo e em sua judeidade, ela diz:

em todas as reuniões culturais, nas orações, se reza, né: “no ano que vem em
Jerusalém…” sabe aquela coisa, assim? (pode ser mítica, né...uma terra…)...é, mas não
é mítica, a gente sabe o que é a Jerusalém concreta né. (na Torá tem as dimensões
geográficas da terra sagrada?) tem tudo lá. (é lá mesmo.) é lá mesmo. Não dá pra
inventar [...]
Considero que algumas árvores judaicas estão...é...sem frutos, porque não tem espaço,
onde você vai fazer isso? Não tem onde fazer isso. Como é que eu vou num tempo não
judaico, fazer algo judaico? Então eu acho que essa é a maior qualidade do Estado
nacional judaico [...] se eu não vivencio um tempo judaico como é que eu posso produzir
algo judaico? (um templo judaico?) um TEMPO [...] Tem toda uma coisa, que ela é
anômala, sempre vou ter uma sensação de não pertença em qualquer lugar do mundo
exceto em Israel. [...] Você pode viver como judeu na diáspora, pode. Você pode fazer
todas as coisas? pode. Você está na sua plenitude? Não. [4, ênfase dela]

Nos casos de interlocutores mais “pragmáticos”, porém, o argumento da ‘ligação


com a terra’ para defender o “direito” do Estado judeu na Palestina/Israel é menos o de

89
uma continuidade enquanto povo do que de uma “necessidade” em função do
antissemitismo e das perseguições, Israel sendo entendido neste caso como o único lugar
em que eles poderiam estar a salvo do antissemitismo.

A questão pragmática de Israel enquanto ‘único porto seguro’ com o qual se


poderia contar, não elimina, no entanto, o mal estar sobre o que se tornou o país na região,
uma angústia que foi exposta no meio acadêmico desde pelo menos os anos 1980 pelos
autores “pós-sionistas” (NIMNI, 2003), alguns dos quais citados pelos interlocutores nas
entrevistas. Um dos esforços destes autores foi o de formular um “pós-sionismo-pós-
colonial”: a pergunta aqui é se é possível pensar uma teoria “pós-colonial” sem ‘antes’ se
pensar um movimento anticolonial? Sobre a partir de que momento, da perspectiva
indígena, começaria o “depois” do colonial ou sua superação é a pergunta que faz Ella
Shohat, acadêmica iraquiana-judia, professora de estudos culturais e feministas, em seu
“Notes on the ‘Post-Colonial’” (1992).

Segundo a autora, a questão palestina não é, ou não é somente, “pós-colonial”12,


mas colonial e próxima à questão indígena no Brasil e em outros países13. Para ela, se
certa teoria pós-colonial celebra os hibridismos, os trânsitos em direção às ex-metrópoles,
as fronteiras fluidas e o cosmopolitismo, os palestinos, como os indígenas, “ainda”
demandariam um “nacionalismo terceiro-mundista”, fronteiras demarcadas na terra e uma
“identidade” como resistência às políticas de aniquilação: a luta por existências e
identidades ainda não está superada neste mundo. Nesse sentido, uma crítica que não

12
Além de unificar temporalidades distintas, um outro problema do “pós-colonial”, segundo a autora, seria
o de equivaler experiências tão distintas quanto a indiana e a australiana, ambas consideradas igualmente
“pós-coloniais” porque uma vez coloniais. Ignorando diferenças geopolíticas significativas entre países
coloniais brancos e países do “terceiro mundo”, igualando-os sob a mesma rubrica em relação a um único
“centro colonial”, o termo acabaria por mascarar as violências coloniais e racistas contra os indígenas,
vividas tanto antes quanto depois de suas respectivas “independências” oficiais, a partir das quais raramente
se viu o colapso da hegemonia intervencionista dos países do primeiro mundo e, no caso dos indígenas, da
opressão racial e nacional dos países do terceiro mundo (SHOHAT, 1992).
13
Julie Pettet (2016) diz que o enquadramento dos palestinos como “indígenas” – um “essencialismo
estratégico” menos ligado a certa noção de ‘cultura’ e de presença ‘nativa’ no território do que conectado
ao campo do poder, das relações com o Estado e da luta por direitos – é bastante recente, não consensual,
e está relacionado ao entendimento do sionismo como um caso de “settler-colonialism”, como discutido
adiante. Com isso, Pettet propõe que se reconheça a “indigenidade” palestina como um todo, considerando
a relação contemporânea “colonial-nativa” que a categoria é capaz de incorporar, e também pelo papel
positivo que exerce no contexto de luta anticolonial e por direito ao espaço e a seus recursos: “De um lado,
a inclusão [dos palestinos] na categoria [de nativos] expande os limites da categoria e sua relevância no
presente, e, de outro lado, funciona para des-excepcionalizar a Palestina e a situa dentro uma trajetória
histórica de colonialismo e deslocamento forçado [...]. Indígenas perturbam a narrativa colonial [settler-
colonial], lançando uma sombra escura em seu heroico e auto-imputado estado autóctone” (PETTET, 2016,
p.35/36, tradução minha)

90
considera os colonizados tampouco os autores e as lutas anticoloniais, diz a autora, não
poderia produzir uma teoria “pós”-colonial.

Na academia anglo-americana, a teoria pós-colonial emergiu do movimento


anticolonial e da perspectiva terceiro-mundista; isto é, ao mesmo em parte, o que a faz
“pós”. A escrita pós-sionista-pós-colonial em Israel, em contraste, vem de um contexto
acadêmico muitas vezes intocado pela história dos debates anticoloniais. Assim, nós
encontramos o “pós” sem o passado […]. Em Israel, não foi o discurso antissionista que
deu lugar ao discurso pós-sionista, mas o discurso sionista que deu lugar ao discurso
pós-sionista. Argumentar para além do ‘colonial’, como sugerido pela teoria pós-
colonial, dentro de um estado-nação e dentro de um espaço acadêmico quase intocado,
historicamente, pela perspectiva terceiro-mundista, requer que façamos a pergunta do
(anti)colonial com ainda mais vigor. (SHOHAT apud MASALHA, 2012b, p.177,
tradução minha)

“É possível enquadrar o conflito na teoria pós-colonial enquanto o colonialismo


[settler-colonialism] sionista na Palestina está expandindo sem sinais de descolonização
ou de libertação pela Palestina?”, pergunta o historiador Nur Masalha (2012b, p.179;
2012a, tradução minha), quem, assim como Ella Shohat (1992), Ilan Pappé (2003) e a
própria Associação Americana de Antropologia (AAA Report, 2015), entendem e
sugerem que se entenda a situação do conflito/ocupação em Israel/Palestina através do
frame do settler-colonialism, para o qual uma tradução possível é o de “colonialismo de
povoamento” – um colonialismo que pretende substituir a população original do território
colonizado por uma nova sociedade de colonos – aproximando assim o caso palestino de
outras colonizações como a América do Norte, Austrália e África do Sul. Com
modulações nos diferentes espaços do território, o caso do colonialismo na Palestina
histórica funcionaria de Tel Aviv à Ramallah e Gaza, desde o início do século XX (AAA
Report, 2015)14.

Enquanto os sistemas coloniais dos séculos XIX e XX frequentemente se apoiavam em


violência bruta, o sistema israelense se apoia, em um nível arrasador, em regras
burocráticas (regulando a propriedade [property ownership], por exemplo) e em um
ambiente que é construído para restringir o acesso ao espaço (AAA Report, 2015, p.15)

O “colonial” é “assustador” porque inviável à construção de si como “sionista de


esquerda” e também porque, junto com outros termos venenosos, guarda em si um
potencial acusador, do qual todos os sionistas, mesmo aqueles “de esquerda”, são alvo.
Voltarei a essa discussão adiante.

14
O relatório ao qual me refiro aqui é resultado de um estudo realizado pela Associação de Antropologia
Americana sobre quais frames seriam mais adequados no tratamento da Antropologia à questão
Israel/Palestina. Se neste momento ele está sendo usado como fonte bibliográfica, mais adiante, no item
sobre o boicote acadêmico, ele aparecerá como parte do campo na medida em que, falando em
“antropologia engajada”, “colonialismo”, “apartheid” e outras palavras tóxicas à gramática sionista de
esquerda, é um elemento da angústia.

91
3.2 Práticas possíveis: entre diálogos, pedagogias, arrumações e boicotes

Os Azande procuram explicar uma contradição nas suas crenças por meio do idioma
místico dessas próprias crenças.
- Evans-Pritchard, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (1976)

Ao longo do trabalho de campo, observei que havia vários meios pedagógicos


através dos quais se dava a “explicação” aos descrentes sobre o que é o “sionismo de
esquerda” e quais as práticas que constituem os interlocutores como tal. Para além da
própria situação de entrevista, que às vezes se transformava ela mesma numa situação de
ensino-aprendizagem, na qual eu era chamada a entender, ler, escrever, defender e
acreditar, os principais meios em que se dava essa prática eram conversas informais;
participação em debates; eleição de gramáticas e autores específicas e de livros “bons”
que mereciam ser lidos e traduzidos 15 ; a manipulação de objetos, como camisetas e
adesivos, que tragam a mensagem de “coexistência” das religiões monoteístas ou da
mensagem de “dois Estados para dois povos”; a manutenção do contato com lideranças
de movimentos sociais16 e o convite a viajar à “Israel e Palestina”, direcionado a figuras
públicas e influentes, reconhecidas como “de esquerda”.

15
As batalhas internas às academias israelenses, cujas faíscas chegam aqui só muito tardiamente e já
filtradas, seja pela distância seja pelos interesses, não serão tratadas aqui por não apareceram de forma
relevante no campo - embora alguns dos termos nela correntes, tais como o elemento tóxico do “projeto de
limpeza étnica”, formulado e defendido por alguns autores, ou a própria credibilidade de certos
historiadores em detrimento a outros sejam peças importantes para um “sionismo de esquerda” no Brasil.
Para um panorama desses debates, muitos dos quais ainda em aberto, ver SILBERSTEIN (1999). Alguns
dos tópicos centrais dessas batalhas, deflagradas principalmente pela “nova historiografia” israelense
surgida depois de 1982 e que desconstruiu alguns dos mitos da “velha historiografia” sobre os quais até
então se erigia o Estado – como o famoso mito da “terra sem povo para um povo sem terra” – , são: o
problema da origem do “problema dos refugiados” palestinos no momento da fundação de Israel; a
interpretação sobre a guerra de 1967 ter sido uma guerra defensiva necessária para a sobrevivência de Israel,
como um ‘desvio’ da prática sionista hegemônica (então trabalhista), ou uma oportunidade de “concluir o
trabalho” territorial e demográfico iniciado em 1948; a discussão sobre a relação entre pesquisa acadêmica,
posição ideológica e construção de Estado/política; e o caráter democrático/segregacionista inerente ao
sionismo. Para uma crítica palestina da suposta “revolução” nos regimes de verdade hegemônicos no
Ocidente que teria sido realizada pelos “novos historiadores” (homens de classe média e europeus)
israelenses, ver o texto de Nur Masalha (2012b): “Post-Zionism, the Liberal Coloniser and Hegemonic
Narratives: A Critique of the Israeli ‘New Historians’”. Para o autor, a “nova historiografia”, sem trazer a
perspectiva colonial do conflito/ocupação, revitalizou os ‘velhos’ frames clássicos do sionismo e foi
“desenhada para reforçar a superioridade do poder/conhecimento israelense e sua historiografia “científica”
e para enfatizar as habilidades inferiores e a subordinação dos palestinos” (MASALHA, 2012b, p.154).
16
“teve um momento mais tenso na faixa de Gaza...[...] Aí mandei uma mensagem para algumas pessoas
que eram lideranças, falei “a gente tem que fazer alguma coisa, a Federação [Israelita do Estado do Rio de
Janeiro] daqui a pouco vai fazer uma passeata pela defesa do Estado de Israel e tal [...], então vamos fazer
algo nosso”. Aí a gente fez uma passeata [...] que promovia o diálogo, que a gente ia com bandeira da

92
Neste momento, privilegiarei uma dessas formas que considero exemplar da
prática possível dentro da crença por explicitar e condensar numa mesma situação as
zonas de tensão que exige contornos e aciona justificativas e gramáticas específicas.
Assim, organizarei este item em torno da situação de um debate que estava sendo gestado
desde 2016 e que, pelo fato do assunto Israel/Palestina ter vindo à tona durante as eleições
municipais no Rio de Janeiro de tal forma que ficara publicamente explícita a cisão entre
sionistas e antissionistas de um dos partidos de esquerda no momento final da disputa
eleitoral, vinha sendo frequentemente citado pelos interlocutores como uma discussão
“urgente” a ser enfrentada pela Esquerda para que ela então se posicionasse com mais
clareza sobre o problema da existência de um “sionismo” em seus espaços e discursos
políticos. No segundo semestre de 2017, em São Paulo, este debate foi finalmente
realizado por um partido considerado de esquerda 17 e sua gravação se vê publicada
integralmente na internet.

Embora não vá limitar-me a essa situação como único material etnográfico, o


escolhi como uma situação social a qual eu vou me remeter durante toda esta seção de
“práticas possíveis” porque vejo nela explicitadas as principais tensões e angústias que

Palestina e bandeira de Israel[...] a gente trouxe um líder das religiões de matriz africana, que é legal estar
junto com a gente nesse debate, e no final sentou todo mundo em roda e discutiu”. [12]
17
Uma investigação sobre a história da relação entre o sionismo e os partidos de esquerda no Brasil
remeteu-me aos quinze números do Boletim PT-Shalom e ao documento das Teses de Atuação (1987) da
Comissão de Assuntos Judaicos do Partido dos Trabalhadores (CAJU-PT) que, fundada em 30 de junho de
1986 pelo diretório regional de São Paulo do PT, distribuía os Boletins gratuitamente entre 1986 e 1988
para todos os militantes do Partido e interessados em geral. Segundo o material, a CAJU fora iniciada por
“motivação de base dos companheiros judeus interessados na abordagem de problemas de minorias,
relações com outros grupos étnico-culturais e com questões referentes ao Oriente Médio” e atuou na
“assessoria aos candidatos do PT em diversos níveis”, exercendo um trabalho de “ampliação de debates
dentro do PT sobre a cultura judaica inserida na sociedade brasileira e na questão do conflito árabe-
israelense”. Um de seus principais esforços era o de desfazer o “antissemitismo equivocado”, ou seja,
aquele presente na própria esquerda, sustentado por ““definições” do tipo “os judeus formam uma das
grandes religiões da Humanidade, ou então, mais erradamente ainda, “os judeus formam uma classe””. No
material, se vê também um grande empenho em melhorar a “imagem” do PT para a “comunidade judaica”
que, embora não seja um “monobloco”, “em função de desinformação promovida por determinados órgãos
da imprensa comunitária, não tem ainda uma imagem muito clara quanto aos objetivos do [...] Partido”.
(Boletins PT-Shalom da Comissão de Assuntos Judaicos do PT (DR/SP), 1986-1988). As Teses de Atuação
da Comissão, que trazem em anexo uma cópia do “Manifesto do núcleo petista judaico à comunidade
judaica de SP”, afirmam que essa “desinformação” ativa se verificaria devido à “manipulação ideológica
da dirigência comunitária, em geral ligada ao status quo, que procuram “provar” um pretenso “caráter
antissemita” do PT e a desgraça que seria para os judeus a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder”
(Teses de Atuação, 1987, p.6). Este material, que ainda aguarda estudo, me fora cedido por um dos
interlocutores, que os guardara em seu arquivo pessoal junto às matérias de jornais relacionadas ao assunto
e aos textos que compuseram o livro em que foram publicadas as falas de um ciclo aberto de debates
intitulado “O Judeu, a Esquerda e a Realidade Brasileira de Hoje”, promovido pela Comissão. A publicação
reúne textos de Clara Charf, Dulce Pereira, Florestan Fernandes, Hélio Belik, José Dirceu, Luis Inácio Lula
da Silva, Maurício Tragtemberg, Mauricio Waldman, Paul Singer e Wilma Ary. (WALDMAN, 1988).

93
atravessam o dilema ontológico-político-subjetivo e moral a que nos dedicamos até aqui:
que contradições são essas que vão aparecendo e sendo trabalhadas por essas pessoas que
tentam conciliar a crença sobre si mesmas como figuras “de esquerda” e sua visão como
“sionistas”? Como esses atores sociais lidam com a contradição que lhes mobiliza a
enfrentar o que se coloca como ameaça, contaminação ou espectro da crença?

Descreverei, assim, algumas das didáticas dessa prática, perseguindo suas


formulações e efeitos discursivos. Para isso, farei uma descrição dos argumentos dos
debatedores, apontando para as principais angústias e necessidades de “arrumação” do
discurso e dedicando especial atenção aos campos semânticos que elas acionam,
composto pelas palavras que recebem destaque (/apagamento) nas falas. Seguindo o
argumento de Austin (1956), no texto “A Plea for Excuses” 18 , encaro as palavras
escolhidas pelos agentes do debate não como representações, mas como realidades,
leituras de mundo e ações sobre ele. A fala é aqui um ato e os termos escolhidos são
produtivos.

Outra referência importante é a análise de Boltanski (2004) a respeito das


demandas éticas do sofrimento à distância na construção de uma “política da piedade”.
Diferente da “política da justiça”, que se dá sobre certa convenção de equivalência entre
“grandes” e “pequenos”, grupos não definitivos, a moderna “política da piedade” exige,
diz o autor, além de um sofrente (“unfortunated”) distante e observável, uma audiência
que não sofra (a plateia, os solidários em potencial) e um jogo teatral de convencimento
– neste caso, não pela imagem visual, mas pela fala – suficiente e adequado para fazer
com que o público, transformado em ator, aja de modo a findar o sofrimento, se
comprometendo com a causa. A compreensão dessa relação entre política e
convencimento, pela qual o evento considerado se vê atravessado, terá como referência a
“tópica da denúncia”, que, segundo Boltanski, teria sustentado a dinâmica entre Esquerda
e Direita através da constituição de “sofredores coletivos” (o povo, a classe, a nação), da
“denúncia” política desse sofrimento e da identificação dos “perseguidores” responsáveis.
A leitura do autor sobre essa operação discursiva será importante aqui à medida em que
localizo como centro de tensão do evento a busca pela estabilização de um sofredor (se

18
Uso este texto não porque acredite que o debate seja uma situação de ‘anormalidade’ ou ‘desvio’ na qual
os interlocutores tenham que se “justificar” ou se “desculpar” por suas ações, lutas e crenças - acredito que
seja a própria condição de normalidade na Esquerda que parece estar aqui em disputa -, mas porque este
texto ajudou-me a entender as falas dos debatedores como atos em uma didática da fala.

94
os “sionistas de esquerda”, se “os palestinos”) e de um perpetrador deste sofrimento (se
“o sionismo”, se o sionismo “de direita”, se “o boicote à Israel”, se o “antissemitismo na
esquerda”), bem como a melhor forma de ação para saná-lo (a ação pelo “boicote” ou a
ação pelo “diálogo”).

3.2.1 Descrição de um evento

Soube do debate através de Gabriel*, amigo que conheci em 2012 durante a


semana de preparação para a viagem promovida por um Programa cristão que nos levaria
a “testemunhar, monitorar e divulgar” as violações de direitos humanos correntes na
ocupação militar na Cisjordânia. Estudante de Direito, formado em relações
internacionais e hoje trabalhando como coordenador latino-americano do Comitê
Nacional Palestino pelo movimento de Boicote Desinvestimento e Sanções (daqui em
diante BDS), Gabriel era um dos convidados a falar no evento, que se propunha, segundo
o mediador do debate, a discutir “fraternalmente” o papel da esquerda brasileira frente à
“questão israelense-palestina” e ao chamado civil palestino de não cumplicidade com
entidades que sustentam as violações do direito internacional contra os palestinos através
do boicote a tais instituições.

Além de Gabriel, o mais jovem dos participantes e o único não judeu a compor a
mesa, com exceção do mediador, havia outros três debatedores: uma pedagoga nascida
em Israel, educada no Brasil, e que se define a si mesma como uma “judia solidária à
causa palestina” 19 , chamada aqui de Tina* 20 ; um escritor/jornalista, daqui em diante
localizado como Teles*, argentino, judeu, filiado ao Partido realizador do evento e
assessor de um dos deputados recentemente convidados a viajar à Israel/Palestina e a
palestrar em uma universidade israelense; e o mais velho deles, aqui chamado Moisés*
que, brasileiro e judeu-israelense, tendo prestado exército na cidade ocupada de Hebron,
é historiador com carreira acadêmica. Estes dois últimos participantes apareceram no

* Todos os nomes são fictícios.


19
Embora fosse possível, nesta dissertação não estou trabalhando com a objetivação em torno dos múltiplos
sentidos daquilo que poderia ser considerado uma “causa palestina” – se uma causa por dois Estados, se
pelo fim de Israel, se por um Estado, se por nenhum (como ouvi de um palestino israelense anarquista), se
por outra coisa – deixando a categoria na forma naturalizada com que ela aparece na fala dos interlocutores.
20
Tina foi chamada de última hora para substituir Fadwa*, brasileira-palestina que, convidada, aceitou o
convite mas não pôde comparecer.

95
campo como protagonistas da luta sionista nos espaços de esquerda no Rio de Janeiro –
o primeiro no âmbito da esquerda partidária e nos movimentos LGBT nos quais milita –
ele mesmo homossexual –, o segundo no âmbito acadêmico, tendo relações com
universidades brasileiras, israelenses e norte-americanas. Ambos também se colocam
publicamente como sionistas de esquerda e contra o movimento palestino de BDS, uma
posição consensual entre os interlocutores sionistas entrevistados, com exceção daqueles
que considerei como “interlocutores secundários”.

Com exceção de Teles, que embora fosse uma figura frequentemente mencionada
em campo nunca o havia visto pessoalmente nem me apresentado a ele, eu conhecia todos
os debatedores. Das cerca de 50 pessoas da plateia, identifiquei vários rostos conhecidos,
seja dos sionistas que compunham quase a metade dos ouvintes – alguns colegas de
escola, um antigo professor que não via há tempos e outros membros do JuProg – seja
dos não sionistas - dois amigos judeus e vários dos colegas ativistas do movimento
palestino, que eu conhecera no processo da minha viagem e do trabalho de campo. O
evento durou duas horas e meia, fora gravado em vídeo e alguns dias depois publicado na
internet. O formato seguiu uma estrutura frequente em debates políticos, com uma
primeira fala de quinze minutos para cada debatedor – a ordem tendo sido estabelecida
pela mesa: Teles, Moisés, Tina e Gabriel –, seguida de um primeiro bloco de
perguntas/intervenções da plateia, cinco minutos para cada debatedor respondê-las, mais
um último bloco de perguntas e então sete minutos de respostas e considerações finais
para cada participante da mesa. Na descrição a seguir não seguirei essa ordem, começando
pela fala de Tina.

Com o microfone na mão e diante de uma sala cheia e filmada, Tina, que
raramente fala sobre o assunto publicamente, inicia sua apresentação agradecendo o
convite, lamentando a ausência de Fadwa e assumindo estar “nervosa”. Com o texto que
havia preparado em mãos, diz estar falando do lugar de “judia, israelense e brasileira em
solidariedade à causa palestina” e, usando palavras como “escolhas de vida”, “ações” e
“transformações do discurso hegemônico”, narra o “caminho” que tem percorrido desde
sua experiência como madrichá de movimento juvenil “de esquerda” e professora de
escola judaica que reproduzia a fala com que crescera ouvindo (“nós temos o direito de
nos defender”) até sua “descoberta” da Nakba, antes chamada por ela de “independência
de Israel”. Localizando sua família como “de esquerda”, este processo de “tomada de
consciência” teria se iniciado na adolescência, mas culminado na experiência, que a

96
trouxera de volta ao Brasil, de testemunhar “um ataque suicida” durante a Segunda
Intifada palestina, quando fazia faculdade em Israel e trabalhava em Jerusalém.

Eu conto isso pra vocês entenderem um pouco que hoje eu SEI como se constituiu o
Estado. Hoje eu SEI como ele se sustenta. É nesse sentido que tenho construído meu
caminho de ativismo. Escolho ações e iniciativas cujo objetivo principal é trazer
conhecimento sobre o que acontece lá e desfazer bagunças de informações e argumentos
que o discurso nacionalista israelense promove.
Estou sempre atenta aos chamados palestinos de solidariedade. Tenho conversado com
um amigo sobre isso, o que significa me colocar publicamente. Se por um lado não
posso me calar, preciso agir cada vez mais – uma vez que sei. Por outro, isso significa
rompimentos com familiares e amigos de longa data que ainda não conseguem me
ouvir. Talvez por eu não conseguir achar uma forma de comunicar o que eu quero.
Desde 2008 estudo intensamente a história palestina e a situação atual. Tentei encontrar
grupos de judeus que pudesse conversar comigo sobre o que estava descobrindo, mas
os que encontrei ainda estavam justificando coisas. E eu não posso nem quero mais
justificar. É bastante complexo explicar o que isso significa. [Tina, ênfase dela]

Além do estudo (“estudando, tenho certeza do que estou falando”), seu processo
de “descoberta” fora acompanhado pela viagem a um território cuja paisagem escondia o
que, depois do impacto do atentado da Segunda Intifada e de muito estudo, ela agora
podia enxergar.

Nesse processo, eu fui para os territórios palestinos pela segunda vez, porque em todos
os anos que vivi lá nunca havia ido conscientemente, então tem vários lugares onde são
territórios palestinos ocupados mas que parecem Israel e você nem sabe que você tá
atravessando [a Linha Verde]. Lá eu conheci organizações e pessoas incríveis que
trabalham com a situação, vi com meus olhos tudo o que eu havia estudado e o poder
de transformação que a viagem tem. [Tina]

Tendo pela primeira vez se colocado publicamente como apoiadora do BDS em


2015 durante a campanha “Tropicália não combina com Apartheid”, que pedia a Caetano
Veloso e Gilberto Gil que cancelassem um show marcado para acontecer em Tel Aviv,
Tina diz ter recebido muitas ofensas de conhecidos (“antissemita”, “você devia se
envergonhar de suas opiniões”), lembrando o quão “difícil é pra um judeu se sentir seguro
pra expressar uma dúvida ou uma crítica às ações do Estado de Israel”, e conclui sua fala
criticando a acusação de antissemitismo usada para calar a denúncia às “ações racistas e
opressoras do Estado de Israel”.

Teles então recebe o microfone e sua primeira fala vai no sentido de parabenizar
o Partido pelo evento: “é talvez a primeira vez que um partido de esquerda no Brasil aceita
fazer um debate sobre o conflito israelense-palestino e sobre o BDS ouvindo diferentes
opiniões e não escondendo um debate que EXISTE no interior da esquerda” (ênfase dele).
Afirmando com ênfase a “existência” deste “debate” dentro do campo político da
esquerda, Teles segue atacando o chamado palestino de boicote, desinvestimento e

97
sanções, por ele “impedir a possibilidade de estabelecer o diálogo entre setores da
esquerda brasileira, com setores da esquerda palestina e da esquerda israelense”, de forma
que se perca de vista a “complexidade do conflito”, “simplificando” e “binarizando” a
questão entre “mocinhos e bandidos”, uma leitura que não conduziria “a qualquer
tentativa de solução do conflito israelense-palestino”.

Expressando crescente tensão no corpo e na voz, Teles parece falar de uma


angústia pungente – percebi que suas mãos tremiam. Após ter organizado a viagem de
um dos integrantes de seu partido, organizador do evento, à “Israel e Palestina” com a
intenção de estabelecer “diálogos com a esquerda israelense, palestina e brasileira”, diz
que passara a ser “acusado de sionista” por pessoas e correntes de seu próprio partido,
que entenderiam o sionismo como “um movimento que controla boa parte dos veículos
de comunicação, dos bancos, das principais empresas, do departamento de estado norte-
americano, e das principais potências europeias”, um discurso dos Protocolos dos Sábios
de Sião21 e, portanto, antissemita, o que não aceitaria calado. E esclarece que aceita ser
chamado de sionista se isso significar o que, para ele, é o sionismo:

Defender o direito à existência do Estado de Israel, defender o direito à


autodeterminação do povo judeu [...], da mesma maneira que eu não tenho problema de
ser acusado de “pró-palestino” se ser “pró-Palestina” significar ser a favor da existência
do Estado Palestino e o direito à autodeterminação do povo palestino. [Teles]

Equivalendo as “lógicas” da “direita”, que o acusa de ser antissemita, e de “certos


setores da esquerda”, com seu “antissemitismo conspiratório”, Teles pede uma pausa na
fala por estar “muito tenso”. O mediador a concede e, insistindo na “fraternidade” e
“camaradagem” deste espaço de debate, enfatiza que pelo fato de “muitos daqui serem de
esquerda, compartilhamos muitas das coisas”, mas que divergências sempre existirão e,
apesar delas, é preciso um esforço para evitar a “fragmentação”. “Mas é pra ficarmos

21
O mito dos “Protocolos dos Sábios de Sião” é uma adaptação moderna à tradição demonológica de
conspiração mundial dos judeus que existe desde tempos medievais na Europa, quando Igreja e Sinagoga
concorriam prosélitos no mundo helenístico e os judeus foram tidos como adoradores do Diabo, recebendo
“Dele”, em troca, poderes ilimitados. Embora frequentemente condenada pelos papas e bispos, essa
demonologia seguiu sendo propagada pelo baixo clero e, somada à auto consagração dos judeus como povo
eleito e à vida apartada que levavam na Europa com seu complexo sistema de leis e tabus, essas histórias
acabavam por serem acreditadas (COHN, 1969). Ao longo da história europeia, essa demonologia foi
reativada principalmente em tempos de crise social. Segundo o mito moderno dos “Protocolos”, que
circulou pelo mundo entre 1920 e 1930 mas cuja ideia central remonta aos textos antirrevolucionários de
um abade francês que via na Revolução Francesa um desenvolvimento do projeto de “maçons alemães,
filhos de Satanás” de pregar liberdade a todos os povos e fundar uma república mundial sob seu controle,
existiria um governo judaico secreto que controla toda a política, a imprensa e a economia de um país
através de uma rede mundial de órgãos e instituições judaicas-maçônicas. O texto é ainda hoje lido pelo
mundo e facilmente encontrado na internet.

98
todos tranquilos, até eu fiquei nervoso agora!”, diz, passando a palavra novamente para
Teles, que terá seus minutos de fala devolvidos: “não, foi uma situação muito tensa
mesmo. A gente foi xingado na plenária do Partido, a gente sofreu uma situação de muita
violência por conta dessa questão”. E Teles segue descrevendo as violências que sofre
dentro do próprio campo da esquerda (“eu lembro de discussões internas em que eu era
praticamente acusado de não ser de esquerda por defender essa posição”). Para ele, como
para muitos outros interlocutores que manifestaram uma “retórica da suspeição”
(BOLTANSKI, 2004) frente às reais motivações de solidariedade ao sofrimento palestino
distante, o antissemitismo na Esquerda se “camufla” como crítica à Israel.

Dizendo-se uma pessoa muito curiosa (“Amos Oz diz que a curiosidade não é só
necessária para o pensamento científico, para a literatura, como de certa forma é um
imperativo moral”), Teles afirma ter “sua curiosidade” o levado a “ler muita bibliografia,
a estudar, a pesquisar, a conversar com muitas pessoas e a tentar formar minha própria
opinião” - curiosidade que, segundo ele, parece faltar aos setores da esquerda que não
entendem a “complexidade” da questão e a “simplificariam”, lançando mão a repertórios
antissemitas. Conclui, deixando claro que espera e se esforça por ver uma mudança na
forma da Esquerda discutir o assunto do “conflito”, propondo mais “escuta” do “outro”
para que possam assim “tentar encontrar” a “intervenção” necessária à “solução”.

Você pode ser pró-Israel e pró-Palestina ao mesmo tempo. E há muita gente na Palestina
e em Israel que é pró-Israel e pró-Palestina. A discussão é muito mais complexa. É
preciso aprofundar a complexidade da discussão e deixar essa lógica de ficarmos
acusando e gritando e xingando como eu vi ao longo do último período que por fim
chegou a esse debate, que eu acho muito interessante e que eu espero que seja não o
ponto de chegada mas o ponto de partida pra uma mudança na maneira que a gente vai
debater sobre esses assuntos, ouvindo o outro e tentando sair dessa narrativa simplista
de mocinhos e bandidos, e tentar encontrar juntos qual a nossa possibilidade de
intervenção, qual a posição que a esquerda, diferente do resto do mundo, pode ter como
possibilidade de intervenção para contribuir para a solução do conflito. [Teles]

Poder falar e ser ouvido parece ter sido um alívio e uma felicidade não só para
Teles como para Moisés, que também abre sua fala parabenizando o Partido por ter
“colocado na mesa” algo que estava sendo conversado no “subterrâneo”. E lança seu
“desafio” às câmeras que o filmam:

Acho que este Partido pode ter orgulho de ter sido efetivamente o primeiro partido a
trazer pessoas pra conversar sobre. Acho isso [o debate] importantíssimo e deve ter
marcado daqui pra frente como uma iniciativa que deve se repetir, e eu faço aqui,
aproveitar que está sendo gravado, [olha para a câmera:] em outros partido de esquerda.
É uma espécie de desafio à esquerda discutir esses assuntos mais espinhosos sem medo.
[Moisés]

99
Então faz uma pausa e, calmamente, apresenta-se como “historiador e
antropólogo”. Deste lugar, que o distingue e lhe confere autoridade, diz, com um papel
em mãos, que falará algo que “não tem nada a ver” com aquilo que havia preparado para
falar. Propõe assim organizar o curso do debate desfazendo o que “em outros ambientes
chamaria de falácia”, mas aqui vai chamar de “freagens de arrumação” que vê como
necessárias nesse debate. Embora diga que prefira História – disciplina que “dominou o
meu cérebro e a minha forma de pensar e ser” – à Antropologia, por ver com “certa
desconfiança” a colocação do sujeito/pesquisador/autor no discurso que estuda, Moisés
inicia seu discurso falando sobre sua última semana: a mais difícil em toda sua vida
adulta. E lista todas as ofensas que recebeu da “direita” por suas críticas às políticas do
governo de Israel e à “Ocupação” que, acredita, “a médio prazo, destruirá a sociedade
israelense por dentro”. Por suas posições, fora chamado de “antissemita”, “comunista”,
“antissionista”, “inimigo dos judeus”, “mentiroso”, sendo a primeira a ofensa que mais
“dói” e “machuca”.

Violentado, sua primeira “freagem de arrumação” vai no sentido de tratar da


injustiça que ele sofre e do lugar desafiador que ele ocupa. E logo de início esclarece sua
posição:

É extremamente importante que vocês saibam disso: eu não sou antissionista, não sou
antissemita, e sou sionista, a partir de lógicas bem específicas. [...] E não sou eu alguém
que imagina que a existência de Israel deva ser reavaliada ou imagina que deve ser feito
um boicote à cultura ou às artes em Israel ou imagina que o movimento sionista é todo
ele um movimento extremamente, é...é... negativo. Muito pelo contrário. [Moisés]

Embora ofendido por tais acusações, elas não são suficientes para detê-lo em sua
luta, mas, ao contrário, o fazem seguir “forte” e “certo” do caminho no qual acredita:

[As acusações que sofremos] faz com que aquele que seja ofendido, se não for muito
forte e não tiver muita certeza do seu caminho, se retire. Vá embora. Abandone o campo
de batalha. E a pior derrota pra quem nos ofende, e aí eu aviso, é que eu vou ficar.
[Moisés]

Moisés usa seus próximos minutos para, tal qual Teles, fazer existir seu sionismo
de esquerda diante deste público. Para isso, elabora o argumento, central em sua fala, de
que o movimento palestino de boicote funcionaria “na mesma lógica” que a “extrema
direita sionista”, ambos inimigos daqueles que querem a “solução negociada”, a “paz” e
o “diálogo”. Lançando mão a suas “freagens de arrumação” do discurso da Esquerda
sobre a questão, explica as três equivalências entre o chamado civil do BDS e as políticas
de Netanyahu. Em primeiro lugar, ambos entendem o Estado de Israel também como a
“Ocupação”, sem distingui-los (“para eles, Israel são os territórios ocupados”). Em

100
segundo lugar, ambos desprezariam, em suas estratégias políticas, os israelenses judeus
“pró-Palestina”, “bravos homens e mulheres que lutam por uma solução pacífica e
negociada do conflito”, tais como, além dele mesmo, os escritores David Grossman,
“recém vencedor do prêmio [Man] Booker, na Alemanha, e Amos Oz, quase todo ano
vencedor do prêmio Nobel”. E, em terceiro lugar, ambos, palestinos e espectadores
comprometidos com o BDS e sionistas “de direita”, tratariam sua própria história e
sofrimento como “excepcionalidades”, o que os impediria de enxergar a questão através
da “perspectiva do materialismo histórico, do materialismo dialético, que a própria
Esquerda criou”.

Eu não tô falando aqui de referências metafísicas vinculadas à percepção da vitimização


absoluta, judaica, da extrema direita, e palestina, de algum tipo de esquerda que, ao meu
ver, se desvinculou da Esquerda. E é por isso que eu tô falando disso aqui: a dimensão
da excepcionalidade está desquitada de relações como por exemplo de historiadores
como Rashid Khalidi ou o próprio Edward Said. Esses homens todos, escritores,
intelectuais, são jogados pela janela. [pausa] A tradição intelectual que analisa o conflito
a partir da ideia de que ele foi produzido, a partir de condições materiais, e não
excepcionais [...], nos coloca na situação de ser ou não progressistas, de ser ou não de
esquerda. [...] Eu acredito seriamente que o debate de irmandade, aberto, entre grupos
das esquerdas, pode fazer essa freagem de arrumação e deixar claro pra gente que até
anteontem apoiava o boicote que entenda que esse boicote sugere que a direita se
fortaleça e que a esquerda perca força. [Moisés]

Finalizadas as “arrumações” de Moisés, Gabriel, que, como disse, foi quem me


convidou ao evento, inicia sua fala de apresentação, a última delas, não falando de si ou
agradecendo pela realização do evento, mas pela trajetória do Partido de “compromisso
com a luta palestina e pelo compromisso em avançar a solidariedade com o povo palestino
no marco do BDS”, seja assinando as petições do Movimento, seja compartilhando
informações relevantes que levaram a “campanhas vitoriosas” de boicote a instituições
vinculadas às permanentes violações dos direitos dos palestinos. Duas dessas “vitórias”,
conseguidas com o apoio do Partido, centrais sindicais e movimentos sociais do Brasil,
conta Gabriel, foram o rompimento 1) do acordo militar estabelecido entre o governo do
Rio Grande do Sul e a Elbyt Systems, empresa norte-americana que atua na Cisjordânia
construindo o Muro, condenado pela Corte Internacional de Justiça, e produzindo os
drones usados nas invasões militares à Gaza; e 2) do acordo de cooperação tecnológica
entre a SABESP [Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo], o governo
da Bahia e a Mekorot, companhia nacional israelense responsável por gerir todos os
recursos hídricos de Israel e da Cisjordânia, desviando águas para os assentamentos e
privando o acesso dos palestinos ao consumo mínimo diário de água. Gabriel parece ser

101
aqui a figura que traz os elementos venenosos22 à conversa: “acordos militares”, “gestão
israelense de recursos hídricos da Cisjordânia”, “apartheid” e “vitórias do boicote”.

Eu vou tentar falar um pouco de direito internacional, eu nem ia falar, mas eu acho que
tá faltando a gente falar de direitos humanos e direito internacional, porque não dá pra
gente ter essa conversa.... o debate sobre sionismo é interessantíssimo, eu adoraria ficar
aqui conversando sobre isso, mas eu quero falar de SOLIDARIEDADE, de direitos
humanos. [...] Quando eu falo APARTHEID não é assim uma lei ilusória. É um CANO
AZUL E BRANCO que passa em cima de uma vila palestina que não tem direito ao
mesmo sistema de água. Estou falando de dois sistemas de água distintos por critérios
étnico-raciais. Essa é a definição básica do crime de apartheid na ONU. O crime de
apartheid não é definido pelo que aconteceu na África do Sul. Ele é definido desse jeito
que eu falei, textualmente. Vocês podem entrar lá e olhar. [ênfases dadas por Gabriel]

Como se vê, ao chamar por outra estratégia discursiva para o debate sobre a
relação entre a Esquerda brasileira e a “questão israelense-palestina”, Gabriel, a figura
qur intoxica o evento, traz à tona a dimensão material dos termos venenosas que são
contornados pelas falas de Teles e Moisés, de modo a protegerem-se deles. Entre as
palavras que apenas Gabriel movimentava e que se encontram ausentes nos discursos do
sionistas, estão: “normalização” (ausente), “igualdade” (ausente), “colonização”
(ausente), “racismo” (ausente), “segregação” (ausente), “resistência” (ausente);
“liberdade/libertação” (ausentes); “direito de retorno” (ausente), “direito internacional”
(ausente). Outras delas estão presentes em Teles e Moisés, mas guardam um sentido
ditinto, como “solidariedade efetiva” (em Teles a palavra aparece somente como “a
esquerda brasileira deveria se solidarizar com a esquerda israelense”; em Moisés é
ausente), “justiça” (em Moisés aparece apenas como repetição da fala de Gabriel: “tudo
o que você falou até agora [...] água não justa, etc.”; em Teles é ausente), “apartheid” (em
Moisés aparece para ser negado como categoria aplicável à Israel/Palestina; em Teles é
ausente), “direitos humanos” (em Teles aparece para relativizar o Conselho de Direitos
Humanos da ONU e para denunciar o “boicote a ativistas de direitos humanos” de
participarem da Marcha gay em Tel Aviv; em Moisés é ausente), e, por fim, “direito”
(ausente na fala de Moisés; na fala de Teles “direito” aparece como “direito à existência
de Israel” e “à existência do Estado Palestino”, “direito à autodeterminação do povo judeu
e do povo palestino” e “direito dos homossexuais e LGBT”.

22
Ao longo desta seção, uso termos como “elementos venenosos”, “tóxicos”, que “contaminam” e
“poluem” o campo das práticas e gramáticas possíveis ao “sionismo de esquerda” invocando livremente o
conceito de “venenoso” de Veena Das em “O ato de testemunhar: violência gênero e subjetividade” (2011)
e o de “poluição” de Mary Douglas em Pureza e Perigo (1966), tendo em mente que eles não correspondem
exatamente aquilo a que me refiro aqui: o que intoxica a crença, gera angústia, deve ser enfrentado pelos
interlocutores e não pode ser plenamente explicitado.

102
Tratando da escala global em que atua o BDS, Gabriel enfatiza que o movimento
se esforça por conectar as resistências – “porque as nossas opressões já estão conectadas
no mundo” –, trazendo à cena também outros sujeitos políticos. Foram citados líderes do
movimento antiapartheid da África do Sul como Desmond Tutu, quem conhecera
pessoalmente e de quem ouvira que “o que acontece na Palestina é PIOR do que
acontecera na África do Sul” (ênfase dele), o movimento negro dos Estados Unidos Black
Lives Matter23, Angela Davis, o movimento mexicano de imigração contra o muro de
Trump24, o MTST, o MST, as Mães de Maio, o cientista Stephen Hawking, o músico
Roger Waters, a cantora Lauryn Hill, e a própria plateia que, tal como Gabriel, “deve
conhecer a eficiência dos carros militares desenvolvidos por Israel e importados pelo
Brasil” (como os carros “guardiões” e os “caveirões”), usados pela polícia militar para
reprimir as últimas manifestações em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Em resposta à fala de Moisés, que acusara o BDS de boicotar “indivíduos” judeus


e/ou israelenses, mesmo aqueles “pró-palestinos” como ele, podendo assim ser utilizado
por antissemitas “camuflados” de antissionistas, Gabriel enfatiza que o Movimento
internacional de solidariedade não boicota “indivíduos” israelenses ou judeus, mas suas
“relações” com entidades cúmplices das violações dos direitos palestinos: relações com

23
Desde o assassinato do adolescente negro Michael Brown por um policial em Ferguson, Estados Unidos,
em 2014, ativistas palestinos e o movimento Black Lives Matters, que luta contra o racismo estrutural, a
violência policial e o encarceramento em massa, têm trocado mensagens e cartas de apoio, aproximando
suas lutas. Tal aproximação gerou uma viagem de ativistas negros norte-americanos à Palestina e de
ativistas palestinos aos Estados Unidos, um vídeo de solidariedade mútua, seminários acadêmicos e um
documento chamado “Black Solidarity Statement With Palestine”, assinado por grandes ativistas negros,
acadêmicos, artistas e presos políticos <http://www.blackforpalestine.com/read-the-statement.html>. A
luta palestina tem sido “conectada” também ao movimento feminista norte-americano. Reivindicando um
feminismo antirracista e anti-imperialista, em sua última plataforma, escrita em 8 de março de 2017, se lê:
“Contra os defensores da supremacia branca no atual governo e a extrema-direita e antissemitas a que eles
deram confiança, defendemos um feminismo antirracista e anti-colonial firme. Isso significa que
movimentos como o Black Lives Matter, a luta contra a brutalidade policial e o encarceiramento em massa,
a demanda por fronteiras abertas, pelos direitos dos imigrantes e pela descolonização da Palestina são para
nós o coração pulsante desse novo movimento feminista. Nós queremos desmantelar todos os muros, das
prisões às fronteiras, do México à Palestina” (tradução minha). <http://www.womenstrikeus.org/our-
platform/>.
24
São muitas as relações que se pode estabelecer entre os muros que separa o México dos Estados Unidos
e a Cisjordânia de Israel. Talvez a mais precisa e concreta delas seja o fato de que grande parte da
“segurança” de ambas as “fronteiras”, assim como da administração de penitenciárias norte-americanas e
israelenses, serem feitas pela mesma empresa inglesa G4S, a maior companhia de segurança privada do
mundo. Presente em 120 países, a empresa atua em Israel/Palestina treinando a polícia israelense (controle
de multidões, invasões de residências, técnicas de interrogatório, tiros, etc.) e provendo tecnologias de
controle da população palestina em território ocupado. Em 2016, a empresa foi patrocinadora oficial das
Olimpíadas realizadas no Rio de Janeiro, oferendo serviços de segurança ao Comitê Olímpico. (Palestinian
BDS National Commitee, 2017)

103
universidades, institutos de tecnologia, empresas atuantes que “lucram” com as violações,
etc.

Se o sujeito quer boicotar o fulano porque acha que ele tem posicionamento racista,
homofóbico, quem sou eu pra dizer que ele não vai boicotar? Agora, nosso movimento
tem uma diretriz clara de QUANDO é o Movimento. E aí é assim: fulano foi financiado
pra esse evento acadêmico por embaixada ou instituição ligada ao governo israelense?
Há vínculo institucional com universidade que tá cúmplice das violações de direitos
humanos? Não é pela OPINIÃO do sujeito, é pelos vínculos institucionais. [...] O que a
gente queria é que [o deputado levado em viagem à Israel/Palestina por Teles e Moisés]
não fosse na Universidade Hebraica porque é uma universidade que tá vinculada com o
apartheid. E se vocês perguntarem, por exemplo, pra Nurit-Peled, que é uma das
grandes acadêmicas da educação em Israel, professora da Universidade Hebraica [...],
ela vai dizer: “eu sou acadêmica aqui: por favor boicotem a minha Universidade. Esta
Universidade tem parte do seu campus em território ocupado de 67, ela produz a
tecnologia e o discurso utilizado pelo exército. Ela APOIOU o massacre de Israel na
Faixa de Gaza em 2014”. Se trata de VÍNCULOS INSTITUCIONAIS, não de pessoas.
[ênfases de Gabriel]

Tampouco, segue a fala, o Movimento pretende “resolver o conflito”25, apoiando


ou estabelecendo “soluções” como a de “dois estados, um estado ou uma confederação”,
o que não caberia a ninguém ali fazê-lo, segundo Gabriel, mas atender (e, nesse caso,
ouvir é agir) o “chamado” civil palestino que, desde 2005, reunindo 170 organizações26
de vozes palestinas dispersas entre refugiados em exílio, moradores da Cisjordânia (áreas
A, B e C), Gaza e cidadãos de Israel27, chama a comunidade internacional a romper os
vínculos de cumplicidade institucional28 que sustentam e “normalizam” as violações do
direito internacional por Israel, até que seus direitos fundamentais sejam respeitados.
Nesse sentido, o BDS se organizaria não em torno da “solução” defendida por Gabriel ou
por “militantes pró-Palestina”, mas em torno dos “direitos”, internacionalmente
reconhecidos, funcionando assim como uma “estratégia política” fundamentada num
“consenso” entre várias das forças políticas civis palestinas e a Lei Internacional. Tal

25
Os palestinos que se colocam contra a perspectiva da “resolução de conflito” ou do “diálogo” como meio
de alcançar a “paz” argumentam que tal perspectiva assume uma simetria e um balanço inexistentes,
reproduzindo a situação de opressão e invisibilidade (GIACAMAN, 2009).
26Conforme site oficial do Movimento BDS, em <https://bdsmovement.net/bnc>. Último acesso em 24 de
novembro de 2017.
27
Recentemente, esses palestinos cidadãos de Israel têm se referido a si mesmos como “palestinos de
[19]48”, uma forma de afirmar seu pertencimento ao povo palestino como um todo .
28
Este chamado vai ao encontro da Resolução ES-10/15, adotada em ampla maioria pela Assembleia Geral
da ONU poucos dias depois da condenação do Muro pela Corte Internacional de Justiça, em 2004. A
Resolução – que não teve uma resposta efetiva dos Estados – chama a comunidade internacional a “não
prestar ajuda ou assistência para a construção do muro ou reconhecer a situação ilegal, e assegurar o
cumprimento por Israel de suas obrigações previstas no Direito Humanitário Internacional e o direito de
auto-determinação do povo palestino” (Russel Tribunal on Palestine, 2013). Tanto o Movimento BDS,
quanto o Tribunal Russell sobre a Palestina, são iniciativas civis gestadas neste contexto de inação dos
Estados frente às resoluções internacionais.

104
“consenso” se fundaria em três direitos fundamentais: o fim da “colonização e
ocupação”29 de Gaza, Cisjordânia, Jerusalém Oriental e das colinas sírias do Golan, bem
como a destruição do Muro que penetra na Cisjordânia, chamado de “cerca de segurança”
por Israel e “muro do apartheid” pelos palestinos; o compromisso com o direito de
retorno às casas e propriedades dos palestinos tornados refugiados em 1948 e seus
descendentes30; e o direito à cidadania plena das pessoas árabes não judias, um quinto da
população de Israel.

Se o esforço de Gabriel parece ser o tempo todo o de “conectar” as lutas,


diminuindo as distâncias que separam o público do sofrimento palestino, neste momento,
ao tentar desfazer a distinção entre o Estado de Israel e a “Ocupação”, essencial à
manutenção da crença, como visto na parte I, e reagrupar os palestinos deslocados nos
vários e genéricos “territórios” como um só “sofredor/unfortunated coletivo”
(BOLTANSKI, 2004), sua fala destoa ainda mais das anteriores, marcadas pela ênfase no
sofrimento de si e pela acusação, seja do BDS ou da “direita sionista”, de enfraquecerem
a esquerda sionista e, portanto, distanciarem “a paz”. A fala de Gabriel diminui altera a
escala do sofrimento, especificando ainda mais as “violências” das quais ele – e não ele
“ativista”, mas órgãos/espectadores considerados “imparciais” e “indisputáveis” –
estariam falando:

a gente [os militantes do BDS] sempre luta pra falar MAIS do que da ocupação de 67.
Pra LEMBRAR as pessoas que o povo palestino não tá só lá na Cisjordânia e Gaza: eles
são 20% DA população DE ISRAEL que não têm os mesmos direitos. E aí a gente pode
falar das leis específicas que discriminam essas pessoas DENTRO de Israel: as vilas
que não são reconhecidas DENTRO de Israel, institucionalmente, e nelas não chegam
serviços públicos31; os comitês de civilidade que vão decidir se palestinos podem ou
não morar em certos bairros; as escolas, no sistema de educação israelense, que estão
segregadas; o orçamento direcionado pras escolas palestinas é inferior ao das escolas
judaicas israelenses. Isso são FATOS, tão bem documentos pela ONU, pelas comissões
da União Europeia.... Isso não sou eu, ativista louco falando, né. [Gabriel, ênfases dele]

A reivindicação desses três direitos, lembra Gabriel, foram suficientes para que o
governo de Israel destinasse um orçamento estatal específico para o combate ao

29
A retirada dos “territórios ocupados” – cuja ocupação, regulada pelo Direito Humanitário Internacional,
aplicado em situações de conflito armado, deve ser temporária, respeitar as leis, ordem pública e direitos
fundamentais dos povos ocupados, protegendo os civis das operações militares – foi estabelecida e reiterada
por algumas resoluções da ONU, tais como a Resolução 242, de 1967; a Resolução 338, de 1973; a
Resolução 465, de 1980 e a Resolução 2334, de 2016.
30
O direito de retorno é estabelecido pela Resolução 194, datada de dezembro de 1948
31
Gabriel se refere às vilas dos cerca de 135.000 palestinos do deserto do Naqab (ou Neguev) que se
recusaram a serem realocados para as cidades pelo Estado de Israel e não têm acesso à água ou eletricidade
(AAA Report, 2015, p.9)

105
Movimento BDS e seus apoiadores, e criminalizá-los32: para ele, esta seria a prova de que
as reivindicações do Movimento que representa desafiariam o “establishment”,
incomodando o governo por ameaçarem o “status quo” sionista-israelense que, “à direita”
ou “à esquerda”, se esforça por “normalizar” a situação de “apartheid”, “colonização” e
“ilegalidade”.

Pessoas como vocês, militantes deste Partido, dos movimentos sociais aqui no Brasil,
movimento negro, central sindical, que apoia o movimento BDS, tá barrado de entrar
em Israel. Inclusive, recentemente, eles já barraram judeus estadunidenses de entrar em
Israel por serem apoiadores do BDS.33 [Gabriel]

“Normalização” é outra palavra que, acionada por Gabriel, compõe o campo


semântico tóxico à prática “sionista de esquerda” e da qual deve-se defender. Segundo
Azmi Bishara (2016), intelectual palestino e antigo parlamentar no Knesset,
“normalização” é o termo usado, na linguagem diplomática e estatal, para se referir às
relações “normais” que Israel conseguiu estabelecer, após “negociações” e tratados de
“paz”, com países como Egito, Marrocos, Qatar e Jordânia, com os quais mantem acordos
econômicos e/ou relações diplomáticas bilaterais. A palavra que exprime a luta de Israel
por ser reconhecido como um país “normal” se transforma aqui – e não só neste evento
como em outras ocasiões em que ouvi militantes palestinos em Ramallah, Belém ou Haifa
– , em categoria de acusação contra as inciativas da “esquerda sionista” que, desde pelo
menos os anos 1990, com os “processos de paz” como Oslo e Camp David, unindo
“palestinos e israelenses” para fazê-los “dialogar” e “marchar pela paz” sem que se
considere as reivindicações palestinas, os direitos violados e a assimetria de poder das
falas (SAID, 2005), contribuiriam para a perpetuação do sofrimento palestino, através de

32
A lei do Boicote, de 2011, permite que qualquer pessoa que chame pelo BDS seja processada por
israelenses que tiveram seus meios de sobrevivência comprovadamente comprometidos pelo boicote a
produtos de Israel ou dos assentamentos na Cisjordânia. Em março de 2017, outra lei foi aprovada barrando
a entrada no país de estrangeiros que apoiem o BDS, judeus ou não judeus. Esses dispositivos jurídicos e
leis de criminalização de atos e discursos políticos que questionam a natureza judaica ou sionista do Estado,
como a Lei da Nakba de 2011 e outras leis assinadas entre 2009 e 2012 que visam aprofundar a restrição
ao acesso de não-judeus israelenses à terra e à propriedade; condicionar sua cidadania ao seu
comportamento de lealdade à Israel como um “Estado Judeu, sionista e democrático” (ADALAH, 2012,
p.10); aprofundar a “luta contra o terrorismo”; restringir o direito de árabes-palestinos ao cargo
parlamentar; privilegiar judeus do acesso aos recursos do Estado; e implementar recursos de “não
responsabilidade” do Estado por um “ato de guerra” cometido nos territórios ocupados; podem ser lidas no
relatório da organização Adalah (2012)
33
Importante dizer que essa “nova” dificuldade enfrentada pelos apoiadores do BDS é já bastante conhecida
por palestinos e palestinas que tentam visitar o lugar em que nasceram, cresceram ou que enterraram seus
parentes, e são barrados no aeroporto de Ben-Gurion, em Tel Aviv, como foi o caso de Fadwa, ausente no
evento. Tampouco seria possível, sem uma autorização do Estado de Israel, que viesse ao Brasil “falar”
num “debate” sobre BDS e esquerda uma pessoa palestina que vivesse na Cisjordânia, em Gaza, ou que
morasse em Israel e lá não ‘existisse’, conforme a “Lei dos Ausentes” (Absentee Law), a não ser como
“present absentees” ou “internally displaced” (SABBAGH-KHOURY, 2012).

106
sua cumplicidade com o “status-quo”, que se manteria ileso a tais iniciativas – e por isso
não gerando reações repressivas como as citadas.

Gabriel conclui sua apresentação citando a distinção de Paulo Freire entre a “falsa
caridade” e a “verdadeira solidariedade”, sendo a primeira aquela que estende a mão ao
oprimido sem que se aja no sentido de transformar e cessar “as condições materiais” que
produzem esse estender de mãos, como num verbal speech (BOLTANSKI, 2004). Não é
isso que esses palestinos que Gabriel vem trazer à fala pedem à comunidade internacional
– um compromisso (effective speech), pela sua causa. Ao final, o discurso de Gabriel se
torna, agora de forma explícita, um “convite” à plateia para que ouçam “o oprimido”,
construindo assim uma “solidariedade efetiva” e uma esquerda “descolonizada”. Tal
como Moisés, Teles e Tina, Gabriel parece falar da “esquerda” em que acredita.

[Depois da viagem organizada por Moisés e Teles, o deputado] falou pra Folha que não
existia movimento LGBT na Palestina, que os palestinos não discutem isso. Eu fiquei
muito triste com isso, assim, porque eu conheço muitos companheiros e inclusive
organizações palestinas que defendem os direitos LGBTs na Palestina, que tão lutando
contra a colonização, contra a Ocupação, contra o apartheid ao mesmo tempo que lutam
pela liberdade dos seus corpos. E é isso que um verdadeiro movimento LGBT, que eu
acredito, deveria fazer. [Gabriel]

No próximo subitem, ainda dentro das “práticas possíveis”, seguirei com as


formulações discursivas formuladas pelo “sionismo de esquerda” me atendo à zona de
tensão constituída pelo acionamento das estratégias do “boicote” e do que é tido pelos
interlocutores como seu oposto “universal”, o “diálogo”. Para isso, retornarei às falas e
situações do evento descrito mas não me limitarei a ele, trazendo também algumas das
falas construídas em entrevista.

3.2.2 As vozes do “boicote” e os interditos do “diálogo”

“ah, o apartheid israelense...”, quando começam a falar isso... “ah, porque os israelenses
fazem com os palestinos o que os nazistas fizeram com os judeus....” eu começo a ficar
com ânsia de vômito, sabe? [...] Eu não sei, mas eu acho que os processos históricos
têm nome. O sionismo ele é sionismo, ele não é nazismo. Ele não é racismo.
- interlocutor em conversa sobre texto que citava o “apartheid israelense”.

A estratégia que a gente tá fazendo [no Partido] é isso: é conversando com as pessoas.
Quando a gente conversa com as pessoas a maioria...pode ter divergência, só
que...entende e começa a aceitar.
- jovem interlocutor filiado a um partido de esquerda.

107
Ao final do primeiro bloco de falas, e já antes, desde as polêmicas suscitadas
durante as últimas eleições do Rio de Janeiro que envolveu sionistas e antissionistas “de
esquerda” e do mesmo Partido organizador do evento, percebi que havia naquela ‘arena
pública’ no mínimo dois projetos ético-políticos distintos de Esquerda ou, nos termos de
Boltanski (2004), duas “políticas de piedade” em disputa. Se todos no evento –
debatedores e plateia – ocupavam o lugar de espectadores do distante sofrimento
palestino, cada uma das falas apontava para sofredores distintos, denunciava diferentes
persecutores e cúmplices e propunha ações contra o sofrimento opostas entre si: o
“diálogo” e o “boicote”. Neste subitem, pretendo descrever os tensionamentos suscitados
pelo tema do “boicote”, cuja oposição constituiu um recorte consensual no campo
“sionista de esquerda”, para assim, no subitem seguinte, descrever as estratégias
formuladas para enfrentar as ameaças trazidas pelo “boicote” – o “diálogo” possível.

No evento descrito, a fala/ação de Gabriel, cuja militância pela “causa palestina”


teve início com uma viagem como “observador internacional de direitos humanos”,
limitado a observar, ouvir e reportar, como um espectador ‘neutro’ e ‘ideal’, mas que
hoje se tornara seu ‘emprego’, vai no sentido de “conectar” as lutas daqui e de lá,
esforçando-se por diminuir as distâncias (já anuladas pela globalização da opressão, como
ele diz) entre os sofrentes e o público, então convidado a se comprometer “efetivamente”
com o chamado palestino por solidariedade através do boicote. “Conectar” globalmente
as “resistências” até que cessem as violações dos “direitos dos palestinos” é, atualmente,
seu compromisso como coordenador latino-americano do Comitê Nacional Palestino de
BDS pela “causa palestina”.

Desse lugar, como figura representante da voz dos palestinos que chamam pelo
BDS, Gabriel, branco, não judeu, classe média e com ensino superior completo, participa
da disputa tomando como central a ‘mancha semântica’ interdita, ao mesmo tempo
política, subjetiva e epistemológica, do “colonial” e do “apartheid”. Essas palavras, se
impossíveis à construção e “pedagogia” do “sionismo de esquerda”, não ameaçam
Gabriel, mas, ao contrário, o capitalizam no debate: explicitando que para falar da questão
Israel/Palestina é preciso antes que se assuma a dimensão colonial em toda sua
complexidade, incluídos aí os problemas em torno do controle discursivo e da
desigualdade de voz/poder, Gabriel pode, assim, chamar a plateia a “ouvir o oprimido e
ir na raiz do problema”.

108
O BDS tem sim uma liderança, que é PALESTINA. Porque eu não luto pelo movimento
negro como você [, Moisés, que disse que luta], eu luto COM o movimento negro, eu
respeito a liderança DO movimento negro dos lugares que EU tenho que portar ali. E
eu faço isso com o povo palestino também. A liderança do povo palestino é esse Comitê
Nacional [...] que reúne TODAS as organizações políticas: organizações de mulheres,
campesinos, sindicatos, professores, acadêmicos, artistas, estudantes, estudantes que
TÃO nas universidades israelenses. Você acha que pra eles é “nossa!, que grande
problema boicotar os eventos na minha universidade”? A família do cara tá há
quilômetros de distância dele! [...]
Vamos internacionalizar nossas resistências, vamos fazer movimento baseado nos
direitos humanos, não vamos querer ser mais palestinos que os palestinos e DIZER pra
eles qual é a solução, vamos ouvir o oprimido [...]. Se a esquerda não é capaz de fazer
isso, ninguém vai ser. Isso é uma verdadeira esquerda, é ouvir o oprimido, ir na raiz do
problema. [Gabriel, ênfases dele]

A explicitação de Gabriel sobre as diferenças que distinguem as “esquerdas” em


disputa, separadas pela zona inflamada do campo semântico venenoso, recebe eco de
outras falas da plateia, como a de uma professora da rede pública de São Paulo: “Eu tô
aqui como membro da sociedade civil interessada nas propostas deste Partido pra
esquerda e pra sociedade brasileira [...]. Fico me perguntando: como um partido socialista
[...] pode sustentar um projeto nacionalista e colonizador?”.

Ou ainda a pergunta de uma militante do movimento negro:

Em 2015 eu compus um grupo e fomos à Palestina. Na volta, nós procuramos a


assessoria do deputado [com o qual trabalha Teles] querendo estabelecer um diálogo e
até hoje não fomos recebidos nem tivemos resposta. [...] Pra mim a luta da esquerda é
internacionalista né, internacional, isso é pra toda esquerda. E por ser do movimento
negro e trabalhar no projeto de arte-educação da Fundação Casa, eu tenho direto a
relação com os jovens mortos. Então eu quero saber, principalmente de você dois [se
direciona à Teles e Moisés], como vocês dialogam com a juventude negra, com o
genocídio da juventude negra, visto que Israel é um dos maiores exportadores de armas
que mata essa juventude. [plateia]

Moisés responde a essa pergunta dizendo que se importa com as vítimas raciais e
de classe (“o genocídio da população negra é meu problema. Todos os dias há um corpo
perto da minha casa e o corpo é negro”), e logo devolve a pergunta à plateia separando o
que a autora da pergunta uniu (“juventude negra morta” e “armas” exportadas por Israel)
e explicando aquele que é o verdadeiro perigo – a “perspectiva da conspiração” que o
“vincular” ao Estado de Israel:

O que tem a ver eu ser israelense e eu lutar pra que aquele menino negro não morra
amanhã? Só tem a ver uma questão: se você acreditar que meu vínculo com o Estado
de Israel é um vínculo tão poderoso, tão poderoso, que eu faço parte de alguma
conspiração e que me coloque vinculado a relações profundas com aquele governo! É
claro que eu não tenho nada a ver com aquilo! E é claro que se você me convidar pra
uma manifestação em que se fala sobre a questão das armas eu vou ser o primeiro a ir.
De quaisquer armas. Não há conspiração! Israel não está no centro do capitalismo
Internacional. A perspectiva da conspiração é uma perspectiva perigosíssima! [Moisés]

109
Teles responde a mesma pergunta como assessor do deputado citado, acusando
como “desonesto” o questionamento sobre a atuação do deputado, que se encontra muito
engajado no assunto, e, em seguida, explicita a “obviedade” da sua posição contra a
exportação de armas “de Israel, do Irã, da Rússia, da China, da Alemanha, dos Estados
Unidos, do Brasil, de qualquer país!”, mas vendo como uma “confusão deliberada” a
aproximação que se faz entre o genocídio34 da juventude negra e as “decisões políticas
do governo de um país, o Estado desse país e a população desse país”. O trabalho de Teles
e Moisés parece ser o de separar aquilo que Gabriel e parte da plateia se esforçam por
“conectar”: “políticas”, “lutas”, “resistências”, “instituições” e “sionistas”.

A causa de Teles e Moisés, nesse sentido, parece chamar por outros sofrentes –
eles mesmos35. Organizando sua fala em torno das “dificuldades” e “violências” que eles
sofrem, pessoal e coletivamente, como “sionistas de esquerda” e tendo ambos acusado “o
BDS”, ali encarnado em Gabriel, de ser o responsável pelo enfraquecimento – e pelo
possível fim – da “esquerda sionista”, agravando o sofrimento palestino que eles
combatem, tal qual uma “profecia que se autorrealiza” que, prevendo, gera o próprio mal,
Teles e Moisés parecem estar tentado construir ali uma “política da piedade” que aja no
sentido de findar o seu sofrimento (dos sofrentes presentes - expresso na própria
“emoção” nervosa que impediu Teles que seguir a fala) e ajudá-los a fortalecer a sua
causa.

é claro que Bibi vai colocar milhões contra o BDS, tal qual ele colocou milhões contra
o Irã. Tal qual ele tá colocando milhões contra a esquerda sionista! [Gabriel, sem
microfone: ele tá colocando milhões contra vocês?!] Tá! Tá fazendo propaganda contra
nós da diáspora! VOCÊS SÃO O PROJETO DO BIBI! Vocês são a propaganda dele!
Quanto mais vocês gritam - e nós sofremos - mas o Bibi se fortalece. (Moisés)
Quando o companheiro diz que o BDS não é contra pessoas, indivíduos, ele tá
mentindo! [...] O nível de agressão... e, olha, eu fiquei extremamente tenso na minha
fala anterior, e eu estou muito acostumado como ativista do movimento LGBT a lidar
com bolsominion. Eu tô acostumado a lidar com discursos de ódio. Eu tô acostumado a
ser xingado das piores maneiras. Mas sabe qual a diferença quando você é xingado por

34
Uma consideração relevante aqui é o fato da categoria “genocídio” também compôr o campo semântico
impossível, tendo sido rejeitada por todos os interlocutores centrais entrevistados como uma categoria
válida para descrever a situação em Israel/Palestina. Um entrevistado reconhecido no campo como alguém
“mais à esquerda, mas nada antissionista”, que “acha que tem sim que dar porrada em Israel [...] e ele não
se sente tão atingido [...] diferente do nosso posicionamento [...] e da maioria do pessoal com que você vai
conversar”, é a figura que mais se aproxima do termo. Quando perguntado ele diz: “Não, não, não acho que
[Israel] promova genocídio, porque acho que genocídio... é uma questão etimológica... pra mim [o termo
correto] é massacre....tipo...(...e pra você é etnocídio? A tentativa de exterminar um povo, em termos de
memória, de símbolos....) Aí pode ser. Não tô 100% convicto, mas não vejo como [um termo] absurdo.”
35
Saffo Papantonopoulou enquadra a narrativa do sionismo como vítima na noção nietzschiana de
“moralidade escrava”, a partir da qual Israel se constituiria então como “o triunfo do fraco como fraco”
(NIETZSCHE apud PAPANTONOPOULOU, 2014, p. 282)

110
seguidores de Bolsonaro? Você reage de uma forma. Agora quando você é xingado das
mesmas maneiras por pessoas que supostamente fazem parte do seu próprio campo
político da esquerda, a dor é muito mais profunda, a dor é muito mais profunda. E por
isso a tensão, e por isso o nervosismo. (Teles)

O boicote, que atravessou todo o evento e também apareceu como uma tensão nas
entrevistas, é em si um tema nevrálgico. Isso, porque ele cria tensões que exigem
operações difíceis ao sionismo de esquerda, como se pode perceber nas reações de Moisés
e Teles. Uma dessas operações se relaciona com a ‘ferida’ moral e pessoal de se sentirem
eles mesmos, como indivíduos, boicotados por aqueles que, acreditam, deveriam
fortalecê-los por estarem “à esquerda”; e a outra é, mais uma vez, a tarefa de separar,
arrumar, distinguir os alvos legítimos e não legítimos do boicote. A repetição de Gabriel
sobre serem “as relações institucionais cúmplices dos crimes de Israel, e não as pessoas”
o alvo do movimento oficial do boicote que representa – não podendo ter controle sobre
os boicotes não oficiais e “pessoais” que porventura as pessoas possam fazer em nome
do BDS, sem cumprir com os princípios do movimento – parece não ser suficiente para
aplacar a angústia dos sionistas. Se é legítimo que se boicote os governos de direita e até
os produtos dos “assentamentos” (os quais Israel não aceita distinguir dos “seus” produtos
com algum tipo de identificação), não é legítimo boicotar “todo um país”, “intelectuais
como Amos Oz”, ou mesmo o “Estado”, um “lugar” para um “povo que sofreu”,
tampouco – e isso parece ser o mais “assustador” – o mundo que extrapola Israel, os
judeus, e, mais do que isso, justamente aqueles judeus “talmúdicos”, “universalistas” e
“antirracistas”. De alguma forma, é como se disessem: ‘o judaísmo é bom, é intelectual e
é de esquerda, não é legítimo, portanto, que a Esquerda o boicote; assim como de esquerda
é também o sionismo – veja os pioneiros e os kibutzim. Vocês deveriam estar do nosso
lado nessa causa, não boicotem os sionistas de esquerda’. Diante dessas operações,
Gabriel aparece como a figura que contamina esse chamado.

Alguns casos de boicote a pessoas foram relatados pela Associação Americana de


Antropologia (2015, p.40), que entende serem eles tanto movidos por razões ideológicas,
como também por medo de serem acusados de colaborar com a “normalização” do
conflito/ocupação e boicotam pessoas ligadas de alguma forma à Israel com o intuito de
de se fazerem ‘mais corretos’ diante de seus pares. Esse é o caso, diz o relatório, de
estudantes recusados em programas de PhD em função de sua nacionalidade e de
acadêmicos israelenses desligados de conselhos editoriais. No evento, também um
membro da plateia, ligado à Confederação Israelita do Brasil [CONIB], levantou o caso
do cantor Matysiahu, judeu e não israelense, cujas canções remetem a temas do sionismo,

111
expulso de um show na Espanha depois de ter se recusado a assinar uma petição apoiando
o Estado Palestino. “Se o Movimento oficialmente não boicota indivíduos, você não acha
que boa parte dos ativistas do BDS ao redor do mundo que não são talvez controlados
pela cúpula do BDS são sim pessoas que boicotam indivíduos judeus só porque eles são
sionistas?”, pergunta o membro da plateia ao Coordenador do BDS no evento.

O relatório da Associação Americana também afirma que o clima de tensão em


função dos debates sobre Israel/Palestina e o BDS tem se intensificado nos círculos
internacionais de antropologia de tal forma que os pesquisadores, principalmente recém
estabelecidos nas instituições, já estejam “autocensurando” suas “opiniões erradas” sobre
o conflito/ocupação e sofrendo “intimidação” por rejeitarem o boicote ou por suas
opiniões individuais sobre a questão.

É dentro dessa zona de tensão suscitada pelo tema do “boicote” que se veem os
interlocutores numa agonia ao mesmo tempo moral, política e subjetiva: entendendo-se a
si mesmos, e seu projeto, como alvos equivocados do “boicote”, eles se esforçam por
serem aceitos nesta esquerda a partir de operações difíceis que mobilizam atividades de
separação, arrumação, distinção, precisão, diferenciação e substituição. Neste contexto
que venho descrevendo as “práticas possíveis”, a própria construção de um “sionismo de
esquerda” pode ser considerada uma causa que envolve, ao mesmo tempo, a elaboração
de uma identidade; de uma solução para o “conflito” (“dois Estados para dois povos”);
de uma compreensão “complexa” do que seria este “conflito” e de uma esperança. Mas
também a elaboração de um método – o do “diálogo”, categoria a qual me deterei no
subitem a seguir e que, na tensão trazida pelo “boicote”, parece funcionar como um
dispositivo moral e universal com o qual se disputa a “opinião pública” pela causa
“sionista de esquerda”: quem afinal, numa esquerda ocidental e democrática, se recusaria
a “dialogar” com acadêmicos e ativistas “contra a Ocupação”?

Eu não sou a favor de boicote porque não se boicota culturalmente lugar nenhum, assim.
Independente de... não concordo. [14]
O que o governo israelense faz com as pessoas que tão em Gaza... é ÓBVIO que é
surreal. É ÓBVIO que a gente tem que ser contra. Mas não dá pra negar todo um direito
de existência [do Estado] [rindo], senão não faz sentido!. Traz os judeus que não
concordam pro teu lado e abre uma ponte. Por isso que pra mim essas coisas não fazem
sentido de “ah, vou romper relações diplomáticas com Israel”: cara, isso vai te ajudar
em quê? Parece só uma criança birrenta tapando os ouvidos enquanto o cara tá gritando!
Não vai te ajudar. [13]

Ao contrário do “diálogo”, o boicote aparece aqui como algo “que não ajuda”,
uma “birra”. Atender ao chamado palestino de boicote – que “compreende” de outra

112
forma e nomeia com outras palavras – é recusar o chamado de piedade da esquerda
sionista, sua estratégia política – o “diálogo”. Se por um lado é com felicidade que Moisés
e Teles inauguram suas intervenções agradecendo por terem sido convidados a falar (“eu
tô muito feliz em poder conversar dentro de um partido de esquerda”), por outro, um
militante antissionista e filiado ao Partido organizador do evento lamenta a “existência”
mesma do “debate”, que vê como um retrocesso político:

porque o que eu vejo dentro do Partido é que nós temos um retrocesso aqui. Era algo
consensual entre nós o boicote e a luta do povo palestino e hoje, infelizmente, isso não
é consensual, como tá expresso aqui nesse debate. [plateia]

Durante o evento, a resposta de Moisés a essa intervenção explicita a divergência


entre o que ele mesmo propõe como “estratégia de luta” adequada à Esquerda – uma
‘política do debate’–, e a falta de “consenso” que o membro da plateia, o “rapaz
militante”, diz lamentar:

O rapaz aqui militante [...] falou que há um retrocesso por conta do debate sobre a
questão do BDS. Eu acho que aqui tem uma diferença fundamental de estratégia de luta.
Quando se debate uma questão, na minha opinião é um avanço e não um retrocesso,
mas eu acho que isso tem a ver com perspectivas de mundo, inclusive. [Moisés]

Moisés segue assim apontando os “erros da esquerda” e indicando os caminhos


por onde a Esquerda deve caminhar:

Essa perspectiva [do BDS] coloca no mesmo campo [esquerda e direita sionista], e aqui
tem um ERRO DA ESQUERDA, é um erro tático, estratégico, que na minha opinião é
TRÁGICO!, coloca a impossibilidade da militância [sionista] de esquerda ser legítima
pela esquerda, no caso o BDS, e pela extrema direita, no caso da extrema direita sionista.
[...] De novo, eu falo: o BDS é responsável pelo enfraquecimento da esquerda sionista.
Da esquerda DE Israel. [...] lutem com a esquerda sionista! Lutem com a esquerda
israelense! Vocês vão derrotar essa esquerda! Vocês vão derrotar essa esquerda!
[Moisés, ênfases dele]

Há aqui uma “tragédia” sendo prevista – a do fim da esquerda sionista – e um


clamor explícito pelo “diálogo” com o “Boicote”. Moisés parece estar propondo uma
‘política do possível’ para que a distância da plateia em relação ao sofrimento palestino,
que Gabriel se esforça em diminuir através do convite à “conexão”, permaneça: é preciso
salvar a “esquerda sionista, a esquerda DE Israel”. O “diálogo” – ou o “boicote ao boicote
– proposto pelos interlocutores seria assim a única solução possível frente a “tragédia”
que está por vir: o triunfo da “direita”. Se em outro momento Moisés chamou o BDS de
“profecia que se autorrealiza”, aqui ele apresenta a sua profecia, que anuncia, num futuro
não muito distante, o desastre do fim, do seu fim; e, fazendo-o, anuncia também o destino
palestino, cuja “tragédia” parece estar em função da “tragédia” sionista. Em outras

113
palavras, ele parece dizer: a única saída para o sofrimento palestino é o “diálogo” e a
proximidade com o sionismo de esquerda – caso contrário, será pior.

A Universidade Hebraica de Jerusalém [UHJ] ou de Tel aviv, onde o Omar Barghouti36


fez o doutorado, há estruturas que apoiam profundamente a Ocupação e outras que
combatem a Ocupação! E a decisão de boicotar a Universidade é uma decisão de
boicotar a ambos! Inclusive os grupos que apoiam o combate constante à Ocupação!
[...] tudo o que você falou até agora, TUDO o que você falou até agora, né, a questão
do não reconhecimento das vilas, não reconhecimento da água, quer dizer, água não
justa, tal, isso tem a ver com a esquerda israelense inclusive com a sionista! Porque
jogá-la pra um lugar em que por conta das INSTITUIÇÕES ela seria boicotada? Aí que
eu entendi por quê. O final da sua última fala eu entendi porque: vocês querem ganhar,
vocês querem ter vitórias. Vocês VÃO ter vitórias!. E a esquerda israelense precisa
tanto do apoio de vocês que vocês tirando apoio e boicotando a esquerda israelense
vocês vão ganhar. [...]. Quando vocês boicotam a Universidade, ela fica como nós da
esquerda sionista: boicotadas por lá e por cá. E vocês ganham. Assim vocês vão ganhar.
Quando vocês boicotam a esquerda sionista vocês vão ganhar porque ela vai
desaparecer. E o debate vai ser o debate de preto e branco. Vocês, contra a direita
sionista. [Moisés]

Diante dessa plateia, a distância que os faz próximos à esquerda “de Israel”
(“sionistas de esquerda”), parece ser a mesma que os faz distantes da esquerda (“não
sionista”) que chama pelo boicote ou mesmo da esquerda do Partido organizador do
evento. A fala de um jovem membro do JuProg presente na plateia do evento resume o
dilema:

Eu tô num momento muito complicado, desde que eu entrei no Partido, há uns 2 anos,
porque parte do partido que eu tô me considera como um espião, como....usam essa
palavra mesmo né, espião, sionista, traidor, fascista, né, porque sionismo é fascismo pra
muitos deles, [...] e parte da extrema direita da comunidade judaica me considera
traidor, antissionista, kapo, né, que é uma das piores ofensas que um judeu pode sofrer.
[...] quando eu entrei no Partido, muita gente, tanto do Partido quanto da comunidade
judaica, falou pra eu abrir mão do meu sionismo ou do fato de eu ser de esquerda. Então
a reflexão que eu fico... na verdade não que eu fico, mas que eu trago pra todo mundo,
porque pra mim tá muito claro, como o Moisés disse, eu não vou abrir mão da minha
identidade judaica, da minha identidade sionista, e não vou abrir mão de estar no
Partido, não vou abrir mão da minha identidade de esquerda, mas acho que a reflexão
que fica, pra concluir, é se todo mundo aqui da mesa acha que eu, por exemplo, tenho
espaço dentro do Partido. Eu sei que eu vou ficar, independente da resposta, mas será
que pra vocês um sionista de esquerda tem espaço dentro deste Partido? [plateia]

Gabriel, não parecendo “compreender” a formulação “sionista de esquerda”,


devolve a pergunta ao jovem filiado ao Partido questionando-o se, em “seu sionismo”,
estão previstos os “direitos palestinos” – “porque é disso que estamos falando”:

Sobre a sua pergunta se o seu sionismo tem espaço aqui. Eu não sei o que é o seu
sionismo, não sei o que significa quando você diz isso. E aí eu te devolvo a pergunta:
você concorda com o direito do retorno, você concorda com o fim da Ocupação, você
concorda com palestinos terem direitos iguais? É isso. A gente tá falando DISSO. A
gente não tá falando da concepção de um-estado-dois-estados, da concepção de

36
Omar Barghouti é um dos fundadores do Movimento BDS e membro fundador da Campanha Palestina
pelo Boicote Acadêmico e Cultural de Israel [PACBI].

114
sionismo. Esse é o meu ponto aqui. E quem sou eu pra dizer quem tem espaço ou não
nesse Partido. Acho que pra mim um partido forte tem que ter posições claras sobre
essas três coisas. [Gabriel]

É possível uma “esperança” [hatikvá] colonizar, uma “utopia” segregar e um


“Estado judeu” na Palestina não se sustentar sobre o desenvolvimento contínuo e massivo
de tecnologia militar e de controle demográfico e uma distribuição desigual de direitos
entre judeus e suas “minorias”? Pergunto-me, pensando no texto de Crapanzano (2003)
sobre a “experiência sul-africana” e no efeito que a dominação exerce sobre os próprios
dominantes/brancos que “esperam” sob o regime do apartheid. Um interlocutor,
descrevendo-me como imagina “sua” esquerda, lembra-me de que também “esquerda”,
assim como “meu judaísmo” e “meu sionismo”, são categorias políticas e subjetivas
negociáveis, sobre as quais se tem agência: além da construção de si como “sionista de
esquerda”, parece-me que também a confecção de uma ‘esquerda possível’ é tarefa da
angústia.

Se eu olho um pouco mais pra cá [à esquerda], eu não vejo parceiros [...], é um mundo
totalmente diferente do mundo que eu quero construir. É um mundo fixo, estabelecido,
é um mundo com respostas. Na minha esquerda tem perguntas. [...] A minha esquerda
tá em construção constante. [7]

Até aqui, dediquei-me a descrever o caráter tóxico do “boicote” que, suscitado


pelas falas de Gabriel e de parte da plateia no evento, as ultrapassa porque mobiliza temas-
limite, como aqueles que giram em torno do “colonial” e do “apartheid”, os quais, não
podendo ser mencionados porque ameaçadores à causa sionista de esquerda, sua “utopia”
e “esperança”, exigem contornos e “arrumações” discursivas que deslegitimem o
“boicote” como uma estratégia política “adequada” à esquerda. A seguir, interessa-me a
formulação de uma dessas estratégias – o “diálogo”.

3.2.2.1 – “Diálogos” possíveis, “diálogos” decentes

Hoje eu comecei a abrir mão de alguns debates [...] Tem tanta gente que quer fazer esse
debate de forma fraterna, que quer aprender.... agora ficar discutindo com esses caras,
que só querem fazer barulho? Não sei...não sei.
- jovem interlocutor filiado a um partido de esquerda

Tem que ter um pouquinho de consistência na linguagem. Tem linguagens com as quais
não é possível dialogar. Assim como a gente não admite ter no JuProg pessoas que
defendam o apartheid, não pode admitir pessoas que usam discurso antissemita, que
misture sionistas com fascistas. Não pode.
- interlocutor e cofundador do JuProg

115
Essa galera toda que entrou no MOP@T [Movimento Palestina para TOD@S], era uma
galera muito menos, como é que eu vou dizer?, militante, no pior sentido da palavra.
Militante em hebraico, e não em português. Militante em hebraico é quase um sinônimo
de violento no discurso: “militant”. Militant é um cara muito violento no discurso. E...
mudou tudo. É impressionante como tudo mudou, em 2, 3 anos, tudo mudou.
- interlocutor e professor universitário

Como se vê nas falas usadas como epígrafe deste item, o “diálogo”, proposto pela
didática “sionista de esquerda” como uma forma possível de enfrentar as ameaças tóxicas
do “boicote”, não é universal e, para se realizar, guarda interditos e condições. Por vezes
sinônimo de “aprendizado”, ele deve acontecer em uma linguagem específica,
“consistente”, e não deve ser “barulhento” nem “violento”, mas “fraterno”. Neste
subitem, tratarei das formas possíveis desse “diálogo”, perseguindo os limites e interditos
da “fala” bem como a produção daquelas figuras que não são ‘dialogáveis’, mas inviáveis.

Em uma entrevista, um interlocutor conta que, enquanto morava em Israel e


trabalhava num restaurante com palestinos que “não gostavam de serem chamados de
árabes-israelenses”, um deles, Abud*, “um cara muito radical”, sempre lhe chamou
atenção: se por um lado, “na linguagem do trabalho” ambos davam-se muito bem e se
ajudavam, ao mostrar-lhe uma foto em que aparecia num acampamento de férias com
“capuz e um cinto [de explosivos] expressivo”, em que a “brincadeira” era “se fantasiar
de terrorista”, na “linguagem da política” Abud aparecia como uma figura inviável, que
ultrapassa a “linha vermelha”. Ao perguntar-lhe se ele não via semelhanças entre a
“brincadeira” do acampamento de Abud e as brincadeiras de gadná37 nos acampamentos
dos movimentos juvenis sionistas, ele responde: “isso eu não tenho como não chamar de
terrorista, não tenho como equiparar a um soldado”.

Posso comparar sim. Igualar não consigo. (por causa do autoflagelo?) Não, por causa
do método. O método de se explodir num cinema, num restaurante, com fins políticos.
Os fins políticos podem ser muito legítimos. O meio.... não consigo relativizar isso. [...]
Pra mim há uma linha vermelha. Isso tá além da linha vermelha. [8]

* Nome fictício.
37
Gadná é um programa em Israel com o objetivo de preparar os jovens para o serviço militar oficial do
exército. Conheci o termo com 14 anos, quando ia às machanót [acampamentos] de férias e, em todas elas,
havia tradicionalmente uma atividade de “gadná” em que ‘brincávamos’ de soldados e soldadas de Israel,
realizando operações e pensando estratégias de guerra.

116
O “terrorista”, diferente do “soldado”, é um dos elementos limite do “diálogo”, ou
ao menos daquele diálogo sobre a motivação “política” que faz de Abud alguém que
frequente acampamentos nos quais se “brinca” de “terrorista”. Mais adiante, o mesmo
interlocutor conta de uma pessoa muito próxima a ele, também palestina israelense, e que
para sua “surpresa”, durante “a guerra de 2006 do Líbano”, apoiou o grupo Hezbollah,
para ele “indefensável de qualquer ponto de vista”. Se eram amigos “próximos”, no
momento em que a pessoa apoiava o Hezbollah ela passou a distanciar-se, tratando-o
como “vocês” e assim o incluindo, como um judeus israelense “vindo de fora”, no
conjunto daqueles responsáveis pela violência travada entre Israel e os palestinos do
Líbano. Ele, sentindo necessidade de se defender, devolve-lhe a responsabilidade por ela
“também morar” ali: ““Como ‘vocês’?!”, eu dizia, “você tá morando aqui também!” [8].

Uma outra interlocutora, narra, “com sinceridade”, a suspeita que guarda em


relação aos “palestinos”, mesmo aqueles do Brasil, e que a faz “resistente” ao diálogo:
“um encontro aqui com palestinos, eu acho que eles sempre teriam uma agenda... Alguma
coisa, entendeu?, por trás, assim. [...] E não sei porquê, porque nunca aconteceu nada
comigo e com um palestino pra que eu...” [9].

Outra interlocutora, também mullher e coordenadora de um grupo que tenta


estabelecer “pontes” entre a esquerda brasileira e a esquerda de Israel, se mobiliza para
o “diálogo” com “refugiados, árabes e judeus”, propondo uma “falafada intercultural”
para que assim possa entrar em contato com o “sofrimento palestino”: “É uma coisa que
a gente fala muito sobre o SOFRIMENTO palestino. Eu não conversei com um palestino”
[13, ênfase dela]. Nessa entrevista, fiquei sem saber se esses “árabes” ou “refugiados” se
tratavam ou não de árabes e refugiados palestinos.

Uma certa “retórica da suspeição” (BOLTANKSI, 2004) sobre as reais intenções


desses espectadores solidários à causa palestina e sobre o próprio sofrimento palestino se
vê ativa nessas falas e coloca condições para que a “conversa” aconteça. A própria noção
de “consenso palestino” na qual o movimento BDS diz fundamentar sua luta, segundo a
fala de Gabriel no evento descrito, é colocada sob suspeita. Naquele evento, um dos
membros da plateia, e também do JuProg, levanta o episódio de uma marcha de mulheres
“palestinas e israelenses” sobre a qual o BDS teria se colocado contra por entender que
essa marcha, não levantando os pontos “consensuais” da “luta palestina”, não
“incomodava o status quo”. Ele diz:

117
Quando o BDS se arroga partir de um certo consenso do povo palestino, eu apenas
gostaria que isso fosse um pouco revisto. Esse consenso não é algo de partida, é um
PRODUTO do processo do BDS. Ao promover uma certa SABOTAGEM pacífica a
essas mulheres [palestinas] que querem marchar COM mulheres israelenses então você
não estar partindo em consenso, você está manufaturando um consenso. [membro da
plateia do evento, ênfases dele]

Se na fala da interlocutora anterior os “árabes” e “refugiados”, aqueles dialogáveis


e por isso chamados à “falafada cultural”, não eram exatamente palestinos, aqui são as
“mulheres palestinas” que dialogam com as “mulheres israelenses” as figuras audíveis e
mobilizadas no evento para ‘desmascarar’ o “consenso palestino” e assim fortalecer a
causa sionista de esquerda. Excluídos dessa zona de figuras possíveis que, com
“fraternidade”, desejam “aprender” e não são “militantes” estão as figuras do “terrorista”,
dos “preconceituosos” e dos “antissemitas camuflados de antissionistas”.

Também no evento, Gabriel, que também guarda uma suspeição sobre a


“esquerda” de Teles e Moisés, pergunta quais seriam os palestinos conversáveis para eles
e quais vozes caberiam nesse “diálogo” que propõem e na “esquerda” que imaginam:

Com quem vocês conversam? Quem é a esquerda israelense de que vocês tão falando?
[...] Você falou [da necessidade de precisar as] categorias. Então vamos falar de
categoria! Que esquerda é essa que você fala que a gente não tá apoiando e que a gente
tá fragilizando? Pelo contrário, esse pessoal [árabe-palestino que chama pelo BDS] tá
crescendo muito lá [em Israel]! E eles AGRADECEM! Inclusive esses israelenses
quando eles pedem aos artistas não fazerem show em Israel eles dizem isso, eles falam:
“vocês AJUDAM a gente, a gente precisa de mais VOZ aqui!” Então é isso, que
esquerda que você considera que é esquerda. [...] E aí o que a gente considera que é
esquerda, né? [Gabriel, no evento, ênfases dele]

Se Moisés e Teles exigem “mais precisão” em relação a categorias como


“apartheid” e “boicote a instituições”, Gabriel exige precisão na categoria “esquerda
israelense”, na qual estariam inclusos os palestinos viáveis que o BDS estaria
“fragilizando”. Moisés, em sua vez de responder às intervenções da plateia, retoma o
argumento que suspeitava de um “consenso palestino” para, aprofundando-o, questionar
a própria existência da “categoria” de uma “sociedade civil palestina” – uma ideia, para
ele, demasiado “ampla” e “orientalista”.

Vou começar [...] pela ideia de que “há uma sociedade civil, uma sociedade civil”. Eu
acho que nós da esquerda temos que tomar cuidado com categorias. Eu frequento muito,
vou com muita frequência à Palestina, e à Ramallah, frequento reuniões em
[Universidade de] BirZeit, em [Universidade de] Al-Quds, converso com Mohammed

118
Madani38, converso com Mohammed Odeh39, com Frej40, SÃO PALESTINOS e são
CONTRA o BDS. E são militantes da CAUSA PALESTINA, não são propagandistas
do sionismo ou qualquer coisa que o valha, qualquer coisa dá uma gugada pra ver quem
eles são. Nesse sentido, a construção de que é uma “sociedade civil”, que é uma
categoria muito.... ampla, etecetera e tal, eu acho que vale a pena entender
historicamente qual é o processo de constituição de um movimento de boicote à Israel
[...], vale a pena entender que a ideia de que a sociedade civil palestina fala também é
uma forma de orientalismo. Ela desconsidera OUTROS elementos da sociedade civil
palestina que não são vocês! [Moisés no evento, ênfases dele].

A suspeição ao “boicote” ressoa aqui produzindo figuras inaudíveis, “categorias”


que devem ser relativizadas em nome de outras. Se por um lado, a “sociedade civil
palestina” (“professores, campesinos, mulheres, sindicatos”) que compõe o Comitê
Nacional Palestino pelo BDS e o “consenso palestino” em torno dos três direitos
reconhecidos internacionalmente (“fim da Ocupação”, “retorno dos refugiados” e
“igualdade de cidadania dentro de Israel”) não existem, são inviáveis, devem ser
“precisados”; por outro lado, os palestinos produzidos como “audíveis” são justamente
aqueles mobilizados no discurso para, enquanto “palestinos”, revelarem as fraquezas das
“categorias” evitadas por Moisés e Teles e chamadas à mesa por Gabriel.

Neste campo semântico perigoso sobre o qual, “como historiador”, Moisés exige
“precisão”, se veem incluídas como as figuras possíveis a “Ocupação”, primeira das três
exigências do BDS, os palestinos que não precisam ser apresentados mas que se conhece
por uma “gugada” (principalmente aqueles nomeados pela Autoridade Palestina para
“interagir” com a sociedade israelense, e que também produzem seus palestinos inviáveis)

38
Dado que o palestrante não explicou de quem se tratavam os nomes citados em sequência, talvez julgando
que a plateia conhecesse/devesse conhecê-los ou, ainda mais provavelmente, prevendo o desconhecimento
e justamente assim apostando que o efeito da explicação pudesse ser ainda mais bem-sucedido, pesquisei
quem eram as pessoas com quem o debatedor “conversava”, os palestinos “dialogáveis”. Admitindo que
entendi o que fora apenas citado, e em sotaque árabe, cheguei à Muhammad Al-Madani, o líder do Comitê
palestino de interação com Israel, nomeado em 2012 pelo presidente da Autoridade Nacional Palestina,
Mahmoud Abbas, para organizar diálogos com a sociedade israelense, provando aos israelenses e ao mundo
de que existiria um “parceiro para a paz”, alguém com quem dialogar, após a inclusão da Palestina como
um estado observador e não membro das Nações Unidas: “‘Apesar dos obstáculos que Israel está tentando
colocar’, Abbas me disse, ‘nós temos que continuar transmitindo a mensagem ao público israelense que
nós queremos paz’. […] Nós nos opomos às vozes militantes de alguns árabes israelenses [...]. Quando a
onda recente de terror irrompeu, nós dissemos a eles: ‘isso não é da sua conta. Vocês são árabes israelenses,
o que isso tem a ver com vocês? Não se envolvam’”. (ELDAR, 2016, tradução minha). Também estes
palestinos “dialogáveis” e nomeados por Abbas para “interagir” com a sociedade israelense tem seus
“interditos” de diálogo, inviáveis palestinos israelenses.
39
Esse nome é desconhecido para mim e não o encontrei em uma “gugada”, como recomendado pelo
debatedor. Descartada a possibilidade de se tratar do Mohammed Odeh que foi autor de um atentado contra
estudantes da Universidade Hebraica de Jerusalém durante a Segunda Intifada e hoje se encontra preso,
penso na possibilidade do debatedor ter se equivocado quanto ao nome do sujeito e talvez estar se referindo
a Ayman Odeh, líder da chamada Joint List, uma coalisão parlamentar entre quatro partidos “árabe-
israelenses”, formada em 2015, tendo conseguido 13 das 120 cadeiras no Knesset naquele ano.
40
Referência à Issawy Frej, deputado parlamentar do MERETZ.

119
e aqueles “israelenses”, sobretudo os de dentro do partido da esquerda sionista que
“aprenderam com a história a não guardar vingança, mas a trabalhar pra que ela não se
repita”.

Além do “terrorista” e seus apoiadores, dos “barulhentos”, dos que não “querem
aprender” e daqueles com “agendas políticas escondidas” e sem uma linguagem
“consistente” se veem excluídas deste campo possível do audível/dialogável figuras que,
quando suscitadas, mobilizam diferentes estratégias de não ouvir/dialogar e causam
reações parecidas com aquela de Teles que, nervoso, quase não conseguiu seguir sua fala
diante da lembrança da acusação de “pinkwashing” que sofrera. As figuras que
ultrapassam esse limite do possível do diálogo são, sobretudo, três figuras: 1) a do
“refugiado” e de seu “retorno” – a segunda da exigência do BDS –, tranformados em um
“debate complexo” durante a única menção feita por Moisés no evento, e, também numa
única menção de Teles, em “refugiados LGBTs palestinos que migram à Israel fugindo
do Hamas” – “Hamas” aqui funcionando como totalidade suficiente para “Gaza”, cuja
população é composta em 83% por pessoas refugiadas da Palestina histórica (UNRWA,
2015) e que aparece em Teles somente como o lugar em que “ainda é proibido ser
homossexual”; 2) a figura que fala em “racismo” e “apartheid” e chama à “igualdade de
cidadania” entre judeus e não judeus em Israel, terceira exigência do “consenso palestino”
e “categorias” ausentes (ou “arrumadas”, como no caso do “apartheid”) na fala dos
sionistas, que as transformam em “desigualdade social”; 3) e a figura que suscita o
“colonial” contida nas política do Estado de Israel, cujo início é datado não por “1967”
mas por “1948” – por isso uma figura tóxica à militância meramente “anti-Ocupação”
dos sionistas – e que se mantém até hoje, produzindo materialidades como, por exemplo,
o controle total da terra, da mobilidade das pessoas no território, da arrecadação e do
repasse de impostos à “Autoridade Nacional Palestina”, a distribuição desigual do poder
de voz e do valor das vidas, e o desenvolvimento de tecnologias militares de ponta
(testadas em territórios e corpos palestinos) capazes de sustentar esse sistema. Esta última
figura se torna ainda mais impossível ao tentar “conectar”, como o faz Gabriel, as
“resistências” e “lutas” das vítimas dessas tecnologias, subprodutos do “colonial”, aqui e
lá, aproximando-as assim dos interlocutores sionistas – que, vistos como brancos e
privilegiados, se encontram, mais uma vez, angustiados na difícil construção de si como
“de esquerda”. Tratarei deste assunto mais adiante.

120
A condição de não ser ouvido (e mesmo assim ser “olhado”, como discutirei a
partir da viagens, no próximo capítulo) é uma condição que ultrapassa o método do
“diálogo” com a “esquerda sionista” e se vê refletida na própria condição de produção da
“Palestina” pelas vozes/poderes internacionais. Ausentes na Declaração de Balfour, 1917,
caladas na Partilha de 194741 e expulsas em 1948 (MASALHA, 2012a), as várias vozes
que desde 2005 chamam internacionalmente pelo rompimento dos “diálogos” que
perpetuam a situação, se esforçam por se reunirem em torno de seus direitos e exigem,
trazendo o “barulho” do inaudível (“colonização”, “apartheid”, “ocupação”), serem
ouvidas. Edward Said, referido duas vezes na fala de Moisés, vê o intelectual neste mundo
como um “oposicionista”, cuja tarefa pública deve ser a de fomentar e tornar possível a
busca por justiça social e igualdade econômica de indivíduos e grupos que preferem “a
articulação ao silêncio” (SAID, 2004, p.124). Nesse sentido, “sociedade civil”, para o
intelectual palestino, parece ser tão pouco “cultural ou gramatical” quanto os “direitos
humanos”, que, “quando violados, são mais reais do que qualquer outra materialidade”
(op.cit, p. 126).

Palestinos conversáveis são os palestinos que sonham ou ao menos não


contaminam o sonho sionista; que cultivam o “modelo israelense” – ou europeu – do
estado-nação ou do “universal abstrato” (FANON, 1968, p. 33), o desejo de “trabalhar
para que a história não se repita” através da “interação” e do “diálogo” com a sociedade
israelense na incansável busca por um “parceiro para a paz”. Palestinos que existem e têm
voz são aqueles aptos a desejar o desejo do sionismo, que aceitam a “obrigação sionista”,
como disse outra interlocutora, da criação do “Estado Palestino”. Ainda na ocasião do
evento, Teles diz o que “deve fazer” a esquerda brasileira e qual a utopia que deve ser
sonhada:

E o que deveria fazer a esquerda brasileira é se solidarizar com a esquerda israelense e


gritar “Fora Netanyahu”, e não boicotar toda a população do país por causa da política
de Netanyahu. [...] Então, o que eu defendo? Da mesma forma que boa parte das
pessoas, talvez quase todas as pessoas que a gente conheceu, tanto nos territórios
palestinos, quanto em Israel, durante essa viagem, e, o que segundo as pesquisas dizem
ser o que aspira a maioria das pessoas, tanto dos territórios palestinos quanto em Israel,
é a possibilidade de que existam dois estados para dois povos, que exista um acordo de
paz que permita que o Estado palestino e o Estado israelense possam, no futuro,

41
Em 29 de novembro de 1947, as Nações Unidas aprovaram a Resolução 181 que recomendava a partição
da Palestina histórica em um “Estado judeu”, a ser firmado em 55% do território para meio milhão de
colonos judeus vindos majoritariamente da Europa, e um “Estado Árabe”, em 45% do território, para um
milhão de indígenas árabe-palestinos.

121
conviver pacificamente. Isso hoje parece uma utopia, irrealizável. Agora, eu concordo
que no futuro vai ser a única solução para esse conflito. [Teles, grifo meu]

Fanon (1968) diz que “durante o período de libertação[...], a burguesia colonialista


busca febrilmente contatos com as “elites” [e é] com estas elites que se trava o conhecido
diálogo sobre os valores” (op. cit., p. 33). Se mesmo nos momentos de ‘paz’ a
interlocutora é “resistente” em dialogar com “os palestinos”, “massa indistinta” (ibidem)
que sempre teria uma “agenda escondida”, nos momentos de tensão, no entanto, o
“diálogo” parece imperativo. Como disse-me um brasileiro-palestino, quando os “judeus
pacifistas se encontram em agonia, em crise existencial”, ele era chamado a dialogar e foi
convidado a formar uma iniciativa conjunta que pôde funcionar até o limite da aprovação
da cláusula sobre o “direito de retorno” no estatuto do grupo “pela paz”. Os “diálogos”
que, “pela paz”, não levam em conta a materialidade da terra e da vida (“para a população
colonizada, o valor mais essencial, por ser o mais concreto, é a terra” (FANON, 1968,
p.40)) são tidos como “colaboração” e “cumplicidade” pelas vozes “barulhentas” e
inaudíveis – quando não ‘recolonização’, como parece ser a interpretação que faz Edward
Said (1993) na manhã seguinte ao “tratado de Versalhes” palestino42.

42
Narrar uma história das “negociações de paz” entre Israel e “Palestina” não é meu objetivo aqui. No
entanto, julgo relevante certa descrição dos Acordos de Oslo, considerados parte desse “processo de paz”
e que, iniciados no bojo do fim da Segunda intifada, da Guerra Fria e da Guerra do Golfo, resultaram no
reconhecimento mútuo, e assimétrico, entre Israel e a Autoridade Nacional Paletina como representante
política legítima do povo palestino. Uma breve cronologia desta história incluiria o marco de 1988 como o
momento em que Yasser Arafat anuncia a concordância da Organização pela Libertação da Palestina (OLP)
sobre as Resoluções 242 e 338 da ONU, que dão à Israel o direito de gozar de fronteiras seguras e
internacionalmente reconhecidas, e o marco da Conferência de Madri, de 1991, em que se deram
negociações preliminares entre Israel e os países árabes vizinhos. Em 1993, após algumas conversas
secretas em Oslo, Noruega, é assinada em Washington a “Declaration of Principles on Interim Self-
Government”, documento que regeria e abriria os demais Acordos. A Declaração explicita logo no primeiro
artigo o objetivo de estabelecer uma Autoridade Palestina soberana e democrática dentro de no máximo
cinco anos (Artigos I – III), período em que Israel se retiraria lenta e gradualmente dos territórios palestinos
ocupados, a começar imediatamente por Gaza e Jericó (Artigo V), ‘concedendo’ paulatinamente à
“Palestina”, entendida como uma unidade entre Cisjordânia e Gaza (Artigo IV), sua autonomia (Artigos
VI) e seu direito a uma “polícia forte” que garanta a “ordem pública” (Artigo VIII). Em ‘troca’ da retirada
de Israel da terra palestina, ou seja, de seu cumprimento da lei humanitária internacional, a Autoridade
palestina se comprometeria a abrir mão do ‘terror’ como método de luta. Daí que Oslo é também conhecido
como a troca de “terra por paz”. Neste ínterim da ‘transição’, previsto na Declaração em cinco anos, também
se veria ativo um comitê israelo-palestino para resolução de disputas (Artigo X) e um comitê de
“cooperação econômica” (Artigo XI). Após cumpridas estas etapas, a administração civil e o governo
militar israelenses seriam então dissolvidos (Artigo VII) e se daria início à discussão sobre as questões
‘polêmicas’, tais como as fronteiras finais, o status de Jerusalém, os termos da independência de um Estado
Palestino, os assentamentos judaicos e os direitos dos refugiados que perderam suas terras e propriedades
com a fundação de Israel (Declaration of Principles, 1993). Com a Declaração já em vigor, Oslo I é assinado
e nele são acordados os Protocolos de Paris, que regeriam as relações econômicas entre “Palestina” e Israel
no período do ínterim. O documento dissolve as fronteiras econômicas entre ambas as partes, deixando ao
cargo de Israel o recolhimento de todos os impostos e seu repasse à Autoridade Palestina. Em ‘troca’ da
garantia da abertura do mercado palestino aos produtos israelenses e da restrição palestina à exportação
autônoma e a um Banco Central independente, Israel se compromete a permitir que os trabalhadores dos
territórios palestinos trabalhem em Israel – permissão condicionada à segurança do país. A disparidade de

122
Um interlocutor, apontando para a questão do tempo que leva seu “diálogo” e
constitui sua esperança, diz:

A Universidade [Hebraica de Jerusalém] [...] TODA, toda, não faz colaboração com a
Universidade de Ariel [localizada em assentamento]. [...] (mas será que basta não fazer
colaboração? Eu sinto que os palestinos estão exaustos de dialogar e nada mudar na
realidade deles) Mas isso é política! Leva tempo!. [7]

O “tempo” que a “política leva” não parece ser o mesmo tempo da


“descolonização”, “justiça”, “igualdade” e outras palavras evitáveis, substituídas pela
política do “diálogo” e da “paz”, como se vê no infográfico “Twenty Years of Talks:
Keeping Palestinians Occupied” (Visualizing Palestine, 2013)43. No caso da situação de
ocupação/conflito em Israel/Palestina, o “tempo” da “paz”, do “diálogo” e da “não
cooperação” com o assentamentos parecem produzir, de forma inversa e também
complementar, o espaço temporal necessário para a expansão e aprofundamento da
própria situação de ocupação, para a “integração” como um processo de “administração”
(FACUNDO, 2014). O “tempo” da esperança está, neste caso, à serviço do tempo da
materialidade dos ‘facts on the ground’, como afirma Talal Asad em texto em que explica
a razão de seu apoio ao movimento de BDS:

É amplamente observado que as negociações de paz nas últimas duas décadas falharam
completamente. Mas, na verdade, elas não falharam. Elas compraram um tempo valioso
para os colonizadores – abertamente financiados, encorajados e protegidos pelo estado
israelense – tomarem mais terra e água palestinas, intensificarem o cerco à Gaza, e
solidificarem a ocupação por Israel da Cisjordânia. (ASAD, 2015, s/p., tradução minha)

poder entre as partes se torna evidente nos quatro anos seguintes aos Protocolos, quando se vê um crescente
aumento de ataques suicidas em Israel e de bloqueios militares e restrições de movimento nos territórios
palestinos. Se considerarmos a assimetria dos termos dos Acordos desde a Declaração de 1993, a Segunda
Intifada, eclodida em 2000, não seria a responsáel pelo fim da esperança trazida por Oslo, como é
frequentemente tratada, mas um desdobramento do próprio ‘processo de paz’. Os Protocolos de Paris, com
algumas modificações, regulam até hoje as relações econômicas entre Israel e “Palestina”. Oslo II é
assinado no ano seguinte aos Protocolos, 1995, quando se divide a Cisjordânia nas áreas A, B e C, já
descritas. Embora nominalmente reconhecida na Declaração de 1993, a unidade da Palestina nunca se
materializou desde o domínio israelense, Gaza e partes da Cisjordânia – áreas A, B, C, Jerusalém,
Hebron/Al-Khalil, etc. – tendo jurisdições, regimes e condições de acesso específicos. Said (1993) descreve
Oslo como o momento da capitulação palestina à supremacia judaica na Palestina, através da criação de
uma ‘autoridade palestina’ dependente de Israel e responsável apenas pela ‘administração’ (e repressão, em
casos de revolta civil) de porções do território ocupado: “criamos a polícia do gueto”, diz. O adiamento das
reivindicações fundamentais palestinas para o momento final das negociações; a subordinação de seus
direitos ao comportamento ‘não violento’ da sociedade palestina; e a continuidade da colonização dos
“territórios”, agora legalmente segregados, fazem de Oslo o “Tratado de Versalhes” palestino. Se na fase
inicial das ‘negociações’, diz Tony Judt no prefácio à obra de Said (2005), havia, em 1993, 32.750 moradias
judias na Cisjordânia e Gaza, sob o governo trabalhista de Yitzhak Rabin e Shimon Peres, de 1992 a 1996,
durante os Acordos, essa população cresceu 48% na Cisjordânia e 61% em Gaza. Além disso, foram
construídas algumas rodovias de uso exclusivo dos “colonos” cidadãos israelenses, interligando os
assentamentos entre si e com Israel e aprofundando ainda mais as divisões nos ‘bantustões’ palestinos das
áreas A, B e C (ver mapas nos anexos III e III.I).
43
Disponível em <http://bit.ly/2mWioMD>.

123
Se, em “termos pragmáticos”, como argumentam vários dos interlocutores, a ação
‘ideal’ que cessaria o sofrimento palestino não é hoje alcançável, na temporalidade
sionista de esquerda, que age prevendo e prevenindo a “tragédia” de seu próprio fim, a
única opção de ação solidária possível à política da piedade (BOLTANSKI, 2004) que
propõem é a da espera através da manutenção do “diálogo” com as “vozes moderadas” e
não “malucas”, as vozes que sonham sonhos possíveis, sonhos que não custam.

(e vocês têm algum plano para este ano, que completa 50 anos da Ocupação?) sei lá...
vamos sonhar. Vamos sonhar alto. Imagina que tenha 30 comunidades da diáspora e
levam dezenas de milhares em Israel de pessoas não só israelenses ou judeus, também
de outros lugares, e vamos fazer manifestações não violentas pró-Israel, contra a
Ocupação: “cara, 50 anos, deu o tempo.” Por que não? Não sei. Sonhar muito alto, mas
sonhar não custa. O máximo que pode acontecer é ficar como tá [risos], mas se não
tenta, vai ficar como tá com certeza. Eu acredito. [...]. Poderia ser lindo, significativo,
importante. Além de estar lá, mostrar né... nesses tempos de hoje muita coisa passa pela
imagem. Mostrar que os moderados se mobilizam, dialogam, tem voz, e que os malucos
vão seguir jogando bomba. [8]

A utopia que joga para um “futuro” as “complexas” questões sobre o direito de


retorno dos refugiados, ou mesmo relativizam a completa retirada dos assentamentos da
Cisjordânia, como sugeriram outras falas que veem como “defasado” o traçado da Linha
Verde considerando o “tempo” material das vidas firmadas naqueles territórios44, além
de circunscrever e afirmar certa geografia/fronteira, aponta para um tempo específico:
que conta como 50, e não 70 ou mais, os anos da “Ocupação” e que, daqui, não prevê o
“cotidiano”. Um interlocutor, ao listar para mim os efeitos de uma viagem que fizera à
Israel/Palestina e da qual acabara de voltar, elenca como o primeiro item de sua lista a
percepção que teve sobre o tempo da “Ocupação”:

(e aí, o que você viu na Palestina?) [...] eu percebi que 50 anos de Ocupação é muito
mais quando você tá lá do que quando você tá por exemplo aqui [no Brasil] e você pensa
que são 50 anos de Ocupação. Acho que lá o impacto é muito mais forte, é todo o
cotidiano. [10]

44
Um interlocutor localizado por outros como um dos mais ‘radicais’ (à esquerda) em suas críticas à Israel
diz: “eu não sou a favor de recuar tudo. Tudo eu não sou. Eu não acho que tem que devolver o Golan pro
Líbano e pra Síria, eu não acho que tenha que devolver TODA a Samaria, tipo, a Cisjordânia. [...] eu acho
que não tem que ser “67 pra cá [sentido leste da Linha Verde], devolve tudo”. Acho que tem que ser bem
negociada... porque tem muito palestino que tá pra cá [à oeste], e tem muito assentamento que tá pra cá
[sentido leste]. E a gente tá falando de alguns deslocamentos que não são assim, fáceis. Tu viveu lá, porra,
quantas pessoas, casas, lojas... isso aí se constrói dos dois lados. Tipo, indústria, plantação, isso não
desenrola numa reunião com caneta e papel. Isso é a vida de muita gente, de muita família, de muita gente
que trabalhou, ANOS, anos e anos, dos dois lados né, pra construir com seu esforço um patrimônio, e aí
você chega e fala “pô, não é mais teu, vem pra cá; não é mais teu, vem pra cá”?. Não é assim. A linha de
67 tá defasada. Infelizmente algumas décadas aconteceram e vidas aconteceram por aqui, dos dois lados.”
[11, ênfass dele]

124
Outro jovem interlocutor explicita a impossibilidade de outra opção à resistência
palestina que não pelo “diálogo” – a única forma de manter a existência da “esquerda”
sionista pra que ela não “vire pra direita” – e faz sua sugestão preocupado em que não se
crie (ainda mais) “gerações de ódio”, outro elemento angustiante contido na “política do
diálogo”:

se fechar e falar “tá, não quero, não aguento mais e foda-se essa porra, vamos pegar em
armas e lutar até a morte”, cara, o exército de Israel vai te esmagar, entendeu? Tipo....
os poucos moderados israelenses de repente vão virar pra direita, o de direita vão virar
pra extrema direita. [...] A esquerda vai acabar, sabe? E isso deixa a gente mais próximo
ou mais longe de um Estado palestino? Eu acho que deixa a gente mais longe. A gente
vai criar gerações de ódio, sabe? As gerações de ódio já existem ali, tipo, mas pode se
espalhar mais ainda. [11]

Angela Facundo (2014), ao etnografar a produção da figura contemporânea do


refugiado, elabora os múltiplos sentidos de tempo contidos neste processo: o trabalho
sobre o tempo da “integração” do refugiado é fundamental na transformação destas
figuras não coetâneas novamente em humanos, e, assim, em cidadãos, fechando o ciclo
de um caso “bem sucedido” de nacionais integrados. As “gerações”, são, assim,
elementos importantes na construção (ou não) de um projeto nacional bem sucedido. É
disso que o interlocutor parece falar: “gerações de ódio” são as gerações não
“integráveis”, não “dialogáveis”, que se veem fora do projeto nacional possível45, fora da
contagem do tempo e da história.

Escrevo este trabalho no ano do aniversário de 120 anos do Primeiro Congresso


Sionista, do centenário da Declaração Balfour de 1917, nascida da boa relação entre
Chaim Weizmann, líder sionista e primeiro presidente de Israel, e o secretário do exterior
inglês e sionista cristão Arthur Balfour (MASALHA, 2012a, p.54); no septuagésimo
aniversário da Partilha da Palestina de 1947, sessão na qual o voto brasileiro fez ser
aprovada a Resolução 181, que concedia aos judeus 56% da Palestina; no aniversário dos
50 anos da ocupação de 1967; e na semana em que o presidente norte-americano, Donald
Trump, “reconheceu” a cidade de Jerusalém (una) como a capital oficial de Israel,

45
Remetendo à tese de Sonia Hamid sobre os processos do reassentamento de palestinos no Brasil, Angela
Facundo (2014) demostra como a “dificuldade” de integração dos “palestinos” no Brasil, em contraste com
o “caso colombiano”, está relacionada a uma “distância” temporal entre os solicitantes e os agentes do
Estado: pelo fato de, segundo uma agente humanitária, “os palestinos” terem “aprendido a protestar no
campo [de refugiados]” de onde vinham, na Jordânia, isso implicou uma maior “demora” no “complexo
trabalho civilizador de “fazer com que os palestinos entendam” os códigos “adequados” da comunicação”
(FACUNDO, 2014, p.305)

125
anunciando a transferência de sua embaixada de Tel Aviv à cidade sagrada 46 e
estimulando que outros países façam o mesmo47. Diante da situação em que se encontram
hoje os palestinos, pergunto-me qual o sentido de uma ação voltada para o “futuro”. Quem
pode seguir ‘esperando’? “É muito difícil abraçar por cinco décadas uma causa
continuamente perdida”, comenta Edward Said em uma entrevista concedida ao escritor
israelense Ari Shavit (SAID, 2002), três anos antes de falecer. Lembro-me aqui da
pergunta feita por um jovem judeu, conhecido meu, a uma senhora palestina “de [19]48”
refugiada no Brasil, ecoando a famosa frase atribuída à David Ben-Gurion, “os velhos
morrerão, os jovens esquecerão”: “Quantas mais gerações a senhora vai precisar para
esquecer aquela terra?”, ele perguntou diante da senhora, que narrava sua história de vida
num evento realizado na Universidade de São Paulo. “Esquecer” ou “esperar” parecem
aqui ser as duas únicas resistências possíveis às gerações palestinas “integráveis”
(FACUNDO, 3014) à temporalidade sionista de esquerda. Nesse sentido, não esquecer,
persistir e chamar pelo boicote como um “basta” me parece, como os colombianos de
Facundo que “retornam”, uma disputa não só sobre as imagens de “utopia” em
Israel/Palestina como sobre o tempo, lento, da administração e do diálogo.

3.2.2.2 –“Ação do boicote” vs. “Liberdade do diálogo”:


vozes, justificativas e acusações em torno do boicote acadêmico

Liberdade para produzir e trocar conhecimento e ideia foi considerada sacrossanta


independente das condições prevalecentes. Existem duas falhas principais nesse
argumento. É inerentemente tendencioso porque considera apenas como digna a
liberdade acadêmica dos israelenses.

46
Esse “reconhecimento” acontece apesar da anexação jurídica de Jerusalém Oriental já ter sido aprovada
como uma Lei Básica de Israel desde 1980 (“Jerusalem, complete and united, is the capital of Israel”,
segundo site oficial do Parlamento israelense <http://bit.ly/2DC6DSH>), a partir de quando o documento
jordaniano que os palestinos de Jerusalém possuíam perde a validade, transformando-os em "residentes
temporários" na cidade, que pode ser revogado a qualquer momento por diversos motivos, dentre os quais
o não pagamento em dia das taxas públicas ou a comprovação, pelo Estado, que o “centro da vida” do
“residente” não é Jerusalém. Ironicamente, a decisão de Mahmoud Abbas, o atual presidente da Autoridade
Nacional Palestina, de recusar o encontro com o vice-presidente americano em Ramallah após a decisão de
Donald Trump, “boicotando-o”, foi entendido pela Casa Branca como uma perda de “oportunidade para
discutir o futuro da região”: “O presidente pediu ao vice-presidente para ir à região reafirmar nosso
compromisso em trabalhar com parceiros em todo Oriente Médio para derrotar o radicalismo que ameaça
as esperanças e sonhos de gerações futuras [...]. É uma pena que a Autoridade Palestina esteja se
distanciando novamente de uma oportunidade de discutir o futuro da região.” (TIBON, 2017, tradução e
grifos meus)
47
Como aponta o texto de Mariana Schreiber (2017), “Lideranças evangélicas querem que Brasil siga EUA
e transfira embaixada em Israel para Jerusalém”.

126
O fato de os palestinos terem seus direitos básicos negados, bem como liberdade
acadêmica devido à ocupação militar de Israel, é perdido para aqueles que repetem o
argumento. E seu privilégio de liberdade acadêmica como um super-valor acima todas
as outras liberdades é em princípio antiético ao próprio fundamento dos direitos
humanos. O direito de viver e da liberdade à subjugação e ao domínio colonial, para
nomear apenas alguns deles, deve ser mais importante do que a liberdade acadêmica.
Se a última contribui, de qualquer forma que seja, à supressão dos primeiros, direitos
mais fundamentais, ela deve ceder.

Da mesma forma, se a luta para atingir os primeiros exige um nível de restrição sobre a
última, então que assim seja.
- Lisa Taraki e Omar Barghouti, cofundadores do Movimento BDS e da Campanha
Palestina de Boicote Acadêmico e Cultural de Israel [PACBI] (2005, tradução minha)

A luta das vozes palestinas para serem ouvidas e terem seus direitos (inclusive o
de memória) reconhecidos no presente, através do boicote às relações com Israel, tem
encontrado eco em vários intelectuais de outros países, que atenderam ao “chamado
palestino” da PACBI [Campanha Palestina pelo Boicote Acadêmico e Cultural de Israel],
organização ligada ao Comitê Nacional Palestino pelo BDS, responsável por coordenar
esta campanha. Omar Barghouti e Lisa Taraki, cofundadores da campanha, chamando a
comunidade acadêmica internacional à ação do boicote, explicam o princípios e objetivos
da Campanha afirmando que

as instituições acadêmicas são chave da ideologia e estrutura institucional do regime


israelense de ocupação, colonialismo e apartheid contra o povo palestino [...]. O boicote
institucional às instituições acadêmicas de Israel devem continuar até que tais
instituições cumpram duas condições básicas: a) Reconheça os direitos inalienáveis do
povo palestino, consagrados pelo direito internacional [...] e b) Finde todas as formas
de cumplicidade na violação dos direitos palestinos como estipulado na lei
internacional. (PACBI Guidelines for the International Academic Boycott of Israel,
2014).

Entre os intelectuais que atenderam a esse chamado estão antropólogos, alguns


dos quais judeus e muitos etnógrafos de comunidades palestinas, tais como Lila Abu-
Lughod, Talal Asad, Michael Taussig, Jean e John Comaroff, Laura Nader, Ann Laura
Stoler, Deborah Poole e Otávio Velho, os quais, junto a outros cerca de 1.300 acadêmicos
(22 dos quais de universidades brasileiras em São Paulo, Bahia, Goiás, Pará, Paraná,
Santa Catarina, Amazonas e Rio de Janeiro, sendo 7 delas da UFRJ), assinaram um
documento de outubro de 2014, ecoando o “chamado” palestino pelo boicote acadêmico.

A petição, disponível online48, diz ter por objetivo “expressar [to voice] nossa [dos
assinantes] oposição às contínuas [ongoing] violações de Israel aos direitos palestinos [...]

48
Para ler o documento em questão e outros textos sobre as relações entre a ação do boicote acadêmico à
Israel e a disciplina antropológica e acessar todas as assinaturas (nomeadas e anônimas), ver o blog

127
e boicotar as instituições acadêmicas de Israel que são cúmplices de tais violações”. O
argumento central dessa “voz” é que, enquanto intelectuais que estudam “questões do
Poder, opressão e hegemonia cultural”, a comunidade acadêmica tem a “responsabilidade
moral” de “falar [speak out] e exigir a responsabilização de Israel e de nossos governos”
pelas violações. Segue chamando à “ação” pelo boicote, entendendo tal ação como parte
da tradição da disciplina antropológica de apoiar lutas anticoloniais e de direitos humanos,
dada a história de cumplicidade da antropologia com o “colonialismo”:

Ao responder ao chamado palestino, buscamos praticar o que a AAA [Associação


Americana de Antropologia] chama de "antropologia engajada", que é "empenhada em
apoiar os esforços de mudança social decorrentes da interação entre objetivos
comunitários [community goals] e pesquisa antropológica". A pesquisa antropológica
iluminou os efeitos destrutivos da ocupação israelense na sociedade palestina. E a
comunidade palestina pediu um boicote acadêmico de Israel como um passo necessário
para garantir os direitos dos palestinos, incluindo o direito à educação. (Anthropologists
for the Boycott of Israeli Academic Institutions - “The statement”, 2014)

E segue tornando mais preciso aquilo que chama de “relações de cumplicidade”


entre as instituições acadêmicas de Israel e a opressão dos palestinos:

Nos últimos meses, as forças israelenses invadiram a Universidade Al Quds em


Jerusalém, a Universidade Árabe Americana em Jenin e a Universidade Birzeit, perto
de Ramallah. No ataque [assault] deste verão [julho de 2014], o bombardeio aéreo
israelense destruiu grande parte da Universidade Islâmica de Gaza. De um modo mais
geral, o Estado israelense discrimina estudantes palestinos em universidades israelenses
e isola a academia palestina, entre outras táticas, impedindo que universitários
estrangeiros visitem instituições palestinas em Gaza e Cisjordânia. Também estamos
alarmados com a longa história de confisco de arquivos palestinos e a destruição de
bibliotecas e centros de pesquisa.
As instituições acadêmicas israelenses são cúmplices da ocupação e da opressão dos
palestinos. A Universidade de Tel Aviv, a Universidade Hebraica de Jerusalém, a
Universidade Bar Ilan, a Universidade de Haifa, Technion e a Universidade Ben-Gurion
declararam publicamente o apoio incondicional ao exército israelense. Além disso,
existem conexões íntimas entre as instituições acadêmicas israelenses e os
estabelecimentos militares, de segurança e políticos em Israel. Para tomar um exemplo:
a Universidade de Tel Aviv está diretamente implicada, através do seu Instituto de
Estudos de Segurança Nacional (INSS), no desenvolvimento da Doutrina Dahiya,
adotada pelos militares israelenses em seus ataques [assaults] ao Líbano em 2006 e à
Gaza neste verão. A Dahiya Doctrine defende a destruição extensiva de infraestrutura
civil e o "sofrimento intenso" entre a população civil como um meio "efetivo" para
subjugar qualquer resistência.49 (Anthropologists for the Boycott of Israeli Academic
Institutions - “The statement”, 2014)

atualizado dos “Anthropologists for the Boycott of Israeli Academic Institutions”:


<https://anthroboycott.wordpress.com/>.
49
Outras formas de intervenção de Israel no funcionamento da vida acadêmica palestina são as descritas
no relatório da delegação de acadêmicos europeus pelo Boicote Acadêmico e Cultural de Israel, que visitou
sete universidades palestinas na Cisjordânia em 2015, reconhecendo um “padrão” de restrição no que se
refere ao livre movimento de estudantes e professores; obstáculos burocráticos; restrição à colaboração e
comunicação entre as universidades palestinas; restrição a visitas de acadêmicos estrangeiros às
universidades e a sua contratação; interrupção do fluxo de materiais, equipamentos e livros, cuja entrada é
controlada por Israel; e submissão dos estudantes e acadêmicos a humilhações cotidianas. Disponível no

128
Possivelmente prevenindo-se de acusações de “antissemitismo” como as
presentes nas falas de Teles, Moisés e outros interlocutores, o documento da petição
esclarece que esse chamado não é diferente das demais ações nas quais os antropólogos
e antropólogas têm se engajado, como, por exemplo, aquelas contra o “apartheid na
África do Sul, Namíbia e Burundi”, a “violência contra civis na ex Iugoslávia e no
Paquistão” ou contra os “indígenas e populações de minorias no Chile, Brasil e Bulgária”
e outras. Entendendo este boicote não como uma retaliação moral pela “cumplicidade”
com as violências do Estado de Israel, mas como “a única forma não-violenta de pressão
que poderia persuadir israelenses a chamar [to call] – e a agir por – uma mudança
significativa que poderia levar a uma paz justa”, os assinantes convidam os leitores a
“agirem”, não “colaborando” em projetos e eventos que envolvam instituições
acadêmicas israelenses, não “ensinando” ou “participando” de conferências e outros
eventos nessas instituições, ou ainda não “publicando” em jornais acadêmicos baseados
em Israel, até que os palestinos possam ser “livres para frequentar universidades, na
Palestina ou no exterior, em segurança” e terem uma experiência educacional
“florescente, inclusiva e em movimento”: “eles devem ser livres para conhecer e aprender
com estudiosos de todo o mundo”, conclui o documento.

Os acadêmicos que assinaram a petição, no entanto, não o fizeram sem “medo”


dos impactos que isso poderia ter nas suas vidas, carreiras e empregos, segundo o relatório
da AAA (2015):

Eu assinei [a petição pel]o boicote, mas senti algum medo. Eu aconselhei colegas junior
a não colocarem seus nomes na petição. Eu não posso rescindir essa assinatura. Agora
está lá para sempre. Eu não acho que existem repercussões significativas na minha
universidade. Alguns estudantes podem reclamar. Quando assinei, eu era professor/a

site da Association des Universitaires pour le Respect du Droit International em Palestine


<http://bit.ly/1KEGmCY>. Também o site da campanha da Universidade de Birzeit, Right to Education,
traz outras impossibilidades de se exercitar a “liberdade acadêmica” palestina, como incursões militares,
confisco de computadores e materiais, a prisão de seus estudantes, a frequência com que os semestres
letivos são impedidos de serem completos e a desistência de estudantes cursarem à universidade em função
dos atrasos e humilhações sofridos nos checkpoints <http://right2edu.birzeit.edu>. Embora vivendo em
melhores condições, também os estudantes e acadêmicos árabes-palestinos cidadãos de Israel enfrentam
formas de discriminação, tanto estruturais (baixa representatividade, marginalização da língua árabe,
implicações da proibição ao serviço militar na concessão de bolsas de pesquisa e na candidatura a
disciplinas, etc.) como interpessoais (humilhações, prejuízos na contagem de créditos, censura a certos
projetos de pesquisa, discursos de ódio). Segundo o relatório da Associação Americana de Antropologia
(2015), há organismos não governamentais responsáveis por “monitorar” as atividades e discursos dentro
das universidades de Israel, alguns deles contando com um atendimento a “reclamações” sobre discursos
“anti-Israel”, como o Israel-Academia-Monitor <http://bit.ly/2mYsVHe>, e há também universidades,
como a de Haifa, que oferece um curso em sua grade curricular de “embaixadores online”, com o objetivo
de formar pessoas capazes de “lutar contra a crescente deslegitimação de Israel nas mídias sociais”
(SCHINDLER, 2012).

129
catedrático/a e tinha segurança no trabalho. Mas, para meus alunos, as perspectivas de
emprego podem ser frágeis no futuro se eles se candidatarem a empregos nos EUA. Nós
não vivemos em mundos acadêmicos compartimentalizados. [A Europa] é mais aberta.
Eu estarei ansioso/a da próxima vez que voltar à Israel por ter assinado [a petição].
(AAA Report, 2015, p.62, tradução minha)

Na busca por tentar compreender esse problema da “liberdade e o livre pensar”,


observei que também outros intelectuais ecoavam, às vezes em termos idênticos, a fala
de Moisés. Este é o caso, por exemplo, de um professor de antropologia da Universidade
de Tel Aviv, ex presidente da Associação de Antropologia Israelense e cofundador dos
“Anthropologists for Dialogue on Israel and Palestine”50. Em texto intitulado “Why the
BDS Campaign Can't Tolerate Israeli Moderates”, ele diz:

[...] universidades não podem, não devem e não afirmam posições insitucionais sobre
questões políticas. Outra versão de um boicote, a ser debatido pela Associação
Americana de Antropologia em novembro [de 2015], sugere que o boicote será aplicado
até o momento em que universidades israelenses ‘findem sua cumplicidade’ com as
injustiças infligidas aos palestinos. Israel sim inflige injustiças aos palestinos, mas fazer
as universidades responsáveis pore las é ridículo, e uma condição tão vaga quanto ‘até
que as universidades findem sua cumplicidade’ é um novo atoleiro processual
[procedural quagmire]. Quem decide se ou quando a “cumplicidade” é “finda”? São as
universidades de todos os lugares “cúmplices” das ações indecentes de seus governos?
(RABINOWITZ, 2015, tradução minha)

Aqui, o argumento do professor questiona o “quem” pode decidir a medida


suficiente das relações entre academia e a política e o “quando” basta dessa
“cumplicidade” entre academia israelense e as violências perpetradas pelo Estado. O
professor de antropologia aponta, assim, para uma ausência de voz, de poder, que possa
arbitrar sobre o que é suficiente para os palestinos: é esse argumento parte de sua
antropologia ou de seu “ativismo”? Dado que “a antropologia contribuiu acima de tudo
para a justificação intelectual da iniciativa colonial” (FABIAN, 2013a, p.53) não teriam
os antropólogos e antropólogas o papel “ativista” de elaborar a crítica de como os
poderosos mantêm o poder.

O documento “Report to the Executive Board: the Task Force on AAA


Engagement on Israel-Palestine” (AAA Report, 2015)51, escrito pela equipe executiva da

50
A iniciativa “Anthropologists for Dialogue on Israel/Palestine - Promoting the use of anthropology in
working towards peace and justice in Israel/Palestine” também tem um blog, muito parecido com o de seus
‘adversários’, citados acima, mas com uma quantidade significativamente menor de textos e documentos
publicados. Ver em <https://anthrodialogue.wordpress.com/about/>. Último acesso em 13 de dezembro de
2017.
51
O relatório está disponível no site <http://bit.ly/2DpDbOA> . Logo no início do documento, lê-se a
dimensão da urgência pela “ação do boicote” frente ao tempo do diálogo, discutido na seção anterior: “ Nós
somos da opinião unânime de que [...] há um forte argumento para a Associação tomar medidas sobre essa
questão, e que a Associação deveria fazê-lo. [...] Se alguma vez houve um tempo em que essa questão fosse
marginal dentro da Associação, esse tempo passou. (tradução e grifos meus)

130
Associação, agora interessa-me menos enquanto fonte bibliográfica do que como agente
da disputa sobre os frames52, as palavras e as estratégias político-epistemológicas mais
adequadas à situação em Israel/Palestina. Os relatório descreve o desafio que enfrentaram
os acadêmicos em sua busca, durante à viagem, por precisar mais objetivamente onde
estaria a “relação de cumplicidade” entre a Academia e as políticas de opressão aos
palestinos. Se a equipe encontrou sinais claros nas disciplinas das “ciências exatas”
(confecção de drones, armas, tecnologias de controle de movimento etc.) e da psicologia
(participação em estudos e aplicação de métodos de tortura etc. (op. cit., p.66)), nos
departamentos de antropologia não teria encontrado nenhum “exemplo dessa
colaboração”. Dois professores palestinos explicam então à equipe que, se procuram por
“cumplicidade” na Antropologia, não achariam: as ações de justificação na disciplina se
dão através da “humanização da ocupação, escrevendo sobre a experiência dos soldados
ou das mães dos soldados”, ou da “omissão” e do “silêncio” frente à injustiça – “vocês
tem que ir além da busca por antropólogos cheirando à fuzil” (op. cit., p. 66-67)53.

O texto do professor de Tel Aviv segue dizendo que o objetivo do BDS seria
“demonizar Israel como um epítome do mal radicalmente essencializado, e [convencer
de que] você pode acelerar sua extinção”. E como um eco das falas de Teles e Moisés,
tanto na escolha dos termos quanto do tom, se lê:

Tal tática [de demonizar] tem parceiros bem dispostos na direita israelense, onde
políticos prosperam em cultivar o ethos “o mundo é contra nós”. O que [essa tática] não
pode tolerar são os israelenses moderados. Um ambiente intelectual vibrante e credível,
no qual acadêmicos e artistas abraçam a complexidade e as nuances, criticando
abertamente a ocupação e o governo, subverte a missão essencializadora do BDS.
Aqueles que questionam o excessivamente simplificado, hipócrita e monolítico conto
dos malvados opressores coloniais e das angélicas vítimas nativas devem ser
marginalizados e silenciados”. (RABINOWITZ, 2015)

Neste caso, Talal Asad (2015), antropólogo que assinou a petição, em texto em
que explica a razão pela qual apoia o movimento, publicado no blog de Antropologia
Savage Minds – Notes and Queries in Anthropology e depois compartilhado pelo blog

52
Julie Peteet, em seu texto “Language Matters: Talking about Palestine” (2016) lembra que é apenas em
1980 que a Palestina é inquirida pela antropologia como assunto etnográfico, e a busca por enquadramentos
adequados para descrever a situação contemporânea do conflito/ocupação/colonização, sem que se perca
sua especificidade, continua.
53
O relatório informa ainda que logo após o retorno da viagem da equipe da AAA, a Associação de
Antropologia Israelense adotou uma resolução condenando “a Ocupação”, o “movimento do boicote”,
chamando pelo “fim do cerco à Gaza”, pela “igualdade dos cidadãos palestinos”, por “negociações para a
retirada dos assentamentos dos territórios ocupados em 67” e por “soluções dignas, justas e efetivas para a
tragédia dos refugiados palestinos”. Parece assim que a produção do relatório da “task force” gerou em si
‘resultados’ de engajamento.

131
dos Anthropologists for the Boycott of Israeli Academic Institutions, responderia que os
“efeitos colaterais” do boicote, se sim prejudicariam “inocentes”, “não matam pessoas ou
as deixa sem teto“.

Sobre a acusação de “ameaça” à liberdade do “pensar” a que os “moderados”


estariam sendo vítimas, Lila Abu-Lughod (2016), intelectual americana de origem judaica
e árabe-palestina, em texto intitulado “Should We Act on Israel/Palestine, or Not?”
publicado originalmente na Revista da AAA Anthropology News e depois compartilhado
pelo blog dos antropólogos pelo boicote, localiza os limites do “universal” da reflexão,
voltando-se aos boicotes, no cotidiano do tempo presente, que enfrentam certos
pensadores, com marcas não universais:

Aqueles que tem falado contra o boicote como o caminho a seguir geralmente conhecem
a situação e a condenam. A maioria [destes] não foi detida, como eu fui, na fronteira e
questionada sobre participar de uma conferência na Universidade de Birzeit. A maioria
não teve sua entrada recusada no país, como o teve o destacado Noam Chomsky em seu
caminho a uma palestra. A maioria não seguiu as etapas da “via dolorosa” de tentar
obter uma autorização de segurança e uma permissão da Cisjordânia para o Consulado
Americano em Jerusalém a fim de solicitar um visto para aceitar um convite a uma
conferência em uma universidade americana (a minha). À maioria não foi negada
permissão de deixar Gaza para aceitar uma bolsa da Fullbright para estudar nos Estados
Unidos. A maioria não teve uma oferta de emprego na Universidade de Tel Aviv
recusada porque colegas leram um trabalho que você escreveu que analisava o modo
como o conceito de etnicidade na ciência social israelense ofusca diferença nacional,
racial e política, como aconteceu com um/a colega israelense palestino/a. A maioria não
foi cuspida em seus campi e agredida em seus escritórios, ou parada pela segurança
quando entravam em seus próprios campi, como aconteceu com colegas palestinos/as
em universidades israelenses (ainda uma minúscula minoria). A maioria não foi barrada
de acessar suas universidades por tanques e soldados ou tiveram gás lacrimogênio
jogado em suas salas de aula, como acontece com nossos colegas das universidades de
Birzeit e al-Quds. […] Nós queremos liberdade acadêmica apenas para aqueles que já
a tem? Ou para aqueles que não a tem? Alguns argumentaram que antropólogos/as
israelenses não foram cúmplices. Essa é uma questão complexa, sem dúvida. Silêncio
pode ser uma forma de cumplicidade, como todos nós sabemos. Diálogos privados
deixam as estruturas básicas de poder e desigualdade – neste caso, legalizadas –
intocadas. Mas antropólogos/as têm um entendimento muito sofisticado do nexo
poder/conhecimento para esperar que os estudos estejam livres de seus contextos
políticos e intelectuais. Nenhum de nós está do lado de fora, embora geralmente seja
apenas em retrospectiva que vemos com clareza de que maneira nossas categorias,
interesses e erudição foram moldados por tais contextos. (ABU-LUGHOD, 2016,
tradução e grifos meus)

A Resolução54, um ‘problema’ que o professor da Universidade de Tel Aviv tenta


desconstruir com argumentos semelhantes aos de Moisés no evento, foi uma tentativa de
subscrever um protesto e estabelecer um compromisso de solidariedade da Associação
Americana de Antropologia, “enquanto Associação”, com o chamado dos professores

54
Disponível no blog dos Antropólogos pelo Boicote, em <https://anthroboycott.wordpress.com/the-
resolution/>.

132
palestinos, através da aprovação de um documento que foi colocado em votação diante
de todos seus membros. A referência ao longo tempo em que se veem negados os direitos
dos palestinos e à ineficiência das condenações feitas pelos poderes internacionais,
ignoradas por Israel, abrem o primeiro parágrafo do texto, acionando então os termos e
frames a partir dos quais esses acadêmicos ‘explicam’ e ‘compreendem’ a situação:

Considerando que por décadas, apesar da condenação pelas Nações Unidas e outros
órgãos internacionais, o Estado de Israel tem negado aos palestinos – incluindo
acadêmicos e estudantes – seus direitos fundamentais à liberdade, igualdade e auto-
determinação através de limpeza étnica, colonização, discriminação e ocupação militar;
[...]. (Anthropologists for the Boycott of Israeli Academic Institutions - “The
resolution”, 2015, tradução e grifo meu)

Um dos assinantes da petição e apoiador da aprovação da Resolução em disputa


na AAA, professor de Antropologia da Universidade do Novo México, descreve, em texto
no qual se posiciona sobre “Why Jewish Anthropologist Should Support the Boycott”
(2017), o processo de transformação pelo qual passou até que pudesse usar categorias
como “limpeza étnica” e “colonização” para compreender “criticamente” aquilo que,
como judeu sionista, havia sido desde criança levado a ver, a sentir e a falar. O
conhecimento da participação de Israel no mercado de armas e tecnologias de repressão
contra civis e do apoio a regimes ditatoriais na América Latina e países da África durante
um trabalho de campo, teve, no antropólogo Les Field, um efeito de evenenamento de tal
modo que o obrigou a reenquadrar seu ‘entendimento’ sobre o que “via” e ter de agir
contra aquilo que hoje chama de “ocupação e projeto do colonialismo israelense [Israeli
settler-colonialism] na Palestina” (FIELD, 2017):

Enquanto um antropólogo judeu, eu apoiei e continuo apoiando o BDS e o boicote


acadêmico às instituições israelenses [...]. Crescer como um sionista, eu diria, tem para
muitos judeus americanos um impacto muito maior na formação de vida do que crescer
num ambiente familiar democrata, republicano ou mesmo comunista. Se você cresceu
como eu, Israel estava presente em cada café da manhã e em cada jantar [...]. Como
pode uma pessoa vir a pensar de forma independente e crítica sob tais circunstância [nas
quais cresci]? O caminho para um re-exame crítico da educação sionista, sem dúvida,
varia muito; no meu caso, esse caminho teve início e se desenvolveu quando estudante
de graduação começando a embarcar em projetos de campo na América Latina. Na
Nicarágua de 1980 eu vi com meus próprios olhos os hospitais e bairros que foram
destruídos durante os últimos dias da diatadura de Somoza com armamento avançado
proveniente de Israel, o último país a prover bombas ao ditador. Como conciliar a
evidência diante de mim com aquilo com que cresci, como eu havia aprendido que Israel
e o povo judeu possuíam um código moral mais elevado? O caminho se fez mais largo
ao longo dos anos 1980, quando Israel se tornou o principal aliado e provedor de armas
dos Contras, do exército antissemita argentino, principalmente durante a Guerra das
Malvinas, e dos generais guatemaltecos que realizavam uma campanha genocida contra
os indígenas do país. (tradução minha)

Nessa disputa suscitada pelo boicote dentro do campo internacional acadêmico, e


mais precisamente na Antropologia americana, o texto/compromisso da Resolução foi no

133
entanto rejeitado pela comunidade acadêmica da AAA em uma votação apertada, que
mobilizou lobbies e campanhas internacionais55 e produziu alguns embates públicos entre
os ‘adversários’: com uma diferença de 39 votos, 2.423 membros se opuseram à
aprovação da Resolução do boicote pela AAA, sendo que 2.384 votaram a seu favor.
Apesar disso, o Conselho Executivo da Associação aprovou o “Task Force Report”
(2015), propondo frames, linguagens, princípios e ações (sendo a “inação” a primeira
não recomendada) a serem consideradas pelos antropólogos e antropólogas em seus
trabalhos, levando em consideração os princípios da própria Associação Americana e
trazendo, em detalhe, a situação da “liberdade acadêmica” em Israel/Palestina, de forma
que tal “liberdade” não considere apenas alguns acadêmicos: “quando dizemos, como
assim deveríamos, que acadêmicos deveriam ser livre para trocar ideias, nós tacitamente
imaginamos um acadêmico que é livre para ter um visto e participar de uma conferência
em outro país”, diz Judith Butler (2006, p.15) em seu texto sobre os “paradoxos da
liberdade acadêmica”.

Apesar da “perda”, a disputa por uma “antropologia engajada” na AAA – que tem
20% de seus associados fora dos Estados Unidos – parece, no entanto, não ter acabado.
Em texto do blog dos Antropólogos pelo Boicote, Roberto González (2017) convida os
antropólogos e apoiadores da causa a desprezarem a “paciência passiva” e seguirem com
a “paciência do ativismo”:

Nós esperamos que os novos oficiais da AAA continuem incorporando as melhores


tradições de nossa disciplina, incuindo uma perspectiva global, uma postura suspeita
em relação ao autoritarismo e poder estatais, e uma inclinação a entender e mesmo
simpatizar com as experiências dos grupos oprimidos, na Palestina e além. (tradução
minha)

Usando certa gramática político-epistemológica e, de um lugar posicionado,


ecoando o chamado de ‘basta’ através do boicote às instituições acadêmicas israelenses,
o documento/compromisso da Resolução parece querer convidar a comunidade de
antropólogos/as e intelectuais a uma outra forma de ação e reflexão diferente daquela do
“modelo europeu”, que, segundo Fanon, “se desenvolveu em lugares cada vez mais
desérticos, cada vez mais escarpados, [de modo que tenha se tornado] hábito encontrar aí
cada vez menos o homem” (FANON, 1968, p. 273).

55
No site oficial da American Anthropological Association – Advancing Knowledge, Solving Human
Problems, estão expostas as “razões para votar SIM” e as “razões para votar NÃO” à Resolução do Boicote
às Instituições Acadêmicas Israelenses. Ver <http://bit.ly/2n2uOCs>..

134
3.3 Quando o “apartheid” é aqui:
falas e enfrentamentos da “periferia do sionismo”

É uma perda de energia me chamar de fascista, não-sei-o-quê. Eu sou fascista? Falar


que eu sou fascista ajuda? (um palestino talvez te reconheça como…)...Eu não aceito.
Porque ele tem que SABER o que quer dizer fascista. Da mesma maneira que pra um
negro eu não posso falar que ele é racista. Mesmo que ele ache que todo branco é racista.
Eu não sou racista! Eu não vou aceitar ser chamado de racista. Ele pode falar que a
sociedade que eu vivo é racista, mas EU não sou racista. Eu acho que esse é o campo
da não política, da essência.
- interlocutor e professor, ênfases dele

É impressão minha ou os representantes da esquerda psolista judaica aqui só aceitam


fazer uma RODA DE CONVERSA se eu tratá-los como os melhores humanos? E o que
eu faço com o fato histórico de que eles são de classes mais privilegiadas e são brancos?
Esse componente eles querem que seja automaticamente apagado? Então isso não é
conversa. Conversa é desconforto. [...] Você não morou em periferia. Você não é preto.
Você teve mais oportunidades. Acho que aí, nesse mínimo ponto, você deve assumir
um lugar de escuta. Não de "hey, periféricos, calem-se." [...] cara: vc está num lugar
muito acima de qualquer um aqui. Se apruma.
- Anderson França, em post público no Facebook, ênfase dele

Já me perguntaram várias vezes como eu podia ser judeu e brasileiro ao mesmo tempo.
Já me falaram que meu nome não era brasileiro. Já me perguntaram por que eu estava
aqui e não em Israel ou na Europa da onde minha família fugiu.
- Ilan, respondendo a Anderson França em post público

Mas... eu sou um periférico. Assim como tem muita gente que é periférica no JuProg,
no JuProg eu não sou periférico.
– cofundador do JuProg

Se até aqui venho tratando das várias palavras/ações/figuras que, quando


suscitadas, intoxicam a elaboração e compreensão do “sionismo de esquerda” e devem
ser enfrentadas, neste terceiro item do capítulo 3, no qual me dedico às estratégias dessa
angústia, interessa-me a formulação do sionismo de esquerda no Brasil enquanto uma
“periferia”. As intervenções que trago como epígrafe deste item se referem aos
enfrentamentos dessa “periferia” com certa branquitude que lhe constitui e sobre a qual
é chamada a responder, produzindo um outro campo de tensão no qual privilégios de
classe e cor se cruzam com as palavras “assustadoras” – apartheid, colonialismo, racismo,
genocídio.

135
A fala de Anderson França, cronista carioca conhecido por suas postagens sobre
os enfrentamentos cotidianos com o racismo na cidade do Rio de Janeiro e por seus
projetos voltados à periferia, se inscreve aqui no contexto de uma polêmica suscitada
entre abril e maio de 2017 no Facebook na qual, em uma comparação feita entre
“holocausto” e “senzala”, alguns judeus o teriam criticado. Mostrando-se indignado com
o fato dos “judeus” se “recusarem a ter empatia com a população pobre, preta e favelada
que, diferente deles, não alcançou níveis de privilégios [...] exclusivíssimos”, Anderson
França propõe uma “conversa” com “judeus” para “entender” e tirar algumas de suas
“dúvidas” sobre se

esse judeu [que o criticou na analogia] tem noção de História, ou se é racista e de direita,
[...] ou se por se sentirem intocáveis querem proibir citações, ou se esqueceram que esta
sociedade é eurocentrada e judaico-cristã, ou se esqueceram que eles mesmos têm raízes
africanas, ou se é uma falsa simetria que força a barra para terem carta branca pra
racismo e nenhuma empatia, embora exijam com eles. (Anderson França em post
público)

Aproximando os problemas da periferia negra em relação à branquitude judaica


no Brasil, a polêmica gerou mais de quinhentos comentários, sendo um deles o de Ilan
que, em um tom de defesa semelhante ao do interlocutor 7, explicita os elementos que
também o fariam uma “periferia” – o fato de ser visto, enquanto judeu de descendência
europeia no Brasil, como um elemento exógeno em relação a seu entorno. Não ser tido
como racista, “de direita” ou menos brasileiro porque judeu parece ser uma das angústias
fundadoras dessa “periferia”.

Em relação ao “sionismo de esquerda”, a formulação de uma “periferia” sionista,


por vezes sobreposta como judaico-sionista, funciona em geral em três frentes: fazendo
do sionismo um empreendimento do oprimido (ser judeu é ser periferia no mundo e por
isso Israel como Estado Judeu é necessário); como forma de diferenciação em relação
àquilo que chamam de “establishment” judaico (“o establishment é o meu problema! O
próprio establishment sionista mesmo, que agrega os cristão sionistas por exemplo. Isso
é um problema pra mim [10]); e como categoria que transforma a branquitude desses
interlocutores, em geral de classe média, intelectuais e profissionais liberais, autorizando-
lhes o diálogo com a periferia e as lutas sociais no Brasil e lhes protegendo da acusação
de serem racistas ou vistos como cúmplices das políticas discriminatórias do Estado de
Israel contra não-judeus e contra judeus não-brancos. Esforçando-se por explicar que ser
dominante em um sistema de dominação não implica necessariamente dominar o

136
sistema56, Moisés, que é cidadão de Israel, ex soldado nos territórios ocupados e professor
visitante da Universidade Hebraica de Jerusalém, diz no evento sobre BDS e a Esquerda
no Brasil: “eu não tenho NADA a ver com Israel. Eu tô junto com vocês, não sou diferente
[...]. Eu não tenho NENHUM vínculo com o Estado de Israel. Inclusive, eu evito tê-lo”.
Também um outro interlocutor em entrevista, se referindo a este mesmo problema, diz:
“ninguém sabe que eu cresci numa família comunista [...], que eu fui do movimento
estudantil!”.

Como tenho mostrado tanto no evento descrito anteriormente neste capítulo como
em outras falas, se um dos dispositivos discursivos para se aproximar da plateia/Esquerda,
ganhá-la para sua causa e assim fazer a magia dar certo é dizer que o movimento BDS é
um “projeto de Bibi” traçando várias aproximações entre o BDS, que “demoniza” Israel
e os judeus “anti-Ocupação”, e a “direita judaica”, que é alimentada por essa
demonização, outro recurso é evitar, e se defender, de palavras fantasmagóricas como
“racismo” e “apartheid” – este último definido pelo Estatuto de Roma de 1988 como
“atos desumanos […] cometidos no contexto de um regime institucionalizado de opressão
sistemática e dominação por um grupo racial sobre qualquer outro(s), e cometidos com a
intenção de manter tal regime”57.

No evento, Gabriel é uma das figuras que, tentando “conectar” as “lutas”,


escorrega o racismo de lá e o racismo daqui, fazendo-os replicar nos interlocutores,
levados a se posicionarem.

eu faço uma pergunta sincera: vocês vão estar na linha de frente na campanha de boicote
aos caveirões? Vamos fazer essa denúncia de que Israel tá lucrando com o genocídio
dos negros? Isso não é uma conspiração, é fato! [...] Tem no jornal que os caveirões tão
vindo de lá.” (Gabriel à Teles e Moisés durante o evento)

Uma vez esclarecido que “é claro” que Moisés e Teles são contra a exportação de
armas israelenses para o Brasil e que a luta contra o genocídio da população negra e

56
Tal atitude me parece próxima àquela que etnografa Vincent Crapanzano e ouve nas falas de seus
interlocutores brancos na África do Sul, segundo Mariza Peirano (1985), em resenha do texto do autor, ao
qual não pude ter acesso (PEIRANO, 1985, p.250). Parecida com a situação estudada por Crapanzano é
também a negação da palavra apartheid, que, se ausente nos discursos dos brancos na África do Sul, aqui,
quando aparece, é para explicar sua inadequação ao tratamento da situação de conflito/ocupação de
Israel/Palestina, geralmente através de justificativas acadêmico-conceituais ou de casos de indivíduos
“árabes” não discriminados: “Tem racismo em Israel, mas não apartheid. Apartheid não existe. Não tem
como falar que tem. Um dos homens mais ricos de Israel é um árabe muçulmano do norte [de Israel],
importador de carne kasher. Também não há leis racistas pra ele”, diz um interlocutor secundário [15].
57
O documento do Estatuto de Roma, que estabeleceu a Corte Penal Internacional, pode ser acessado em
<http://bit.ly/1TeuDLN>.

137
favelada é uma luta “deles”, provando à plateia que não são ou que são menos racistas
que os outros, o que haveria em Israel/Palestina é mais uma vez diferenciado, limpo do
do “racismo” e explicado como “desigualdade social”.

Sobre o apartheid. [pausa] Eu sou historiador, né. Eu tenho um certo problema com o
uso de palavras fora do contexto. Na Namíbia, houve apartheid. Na África do Sul,
houve apartheid. O que acontece em Givat Shaul, o bairro dos etíopes negros judeus
em Israel, não é apartheid. É uma situação terrível de desigualdade social. O que
acontece no Meshulash58 em Israel não é apartheid, é desigualdade social. Israel já é
um país capitalista, cada vez mais desigual, e que promove desigualdade. [pausa]
Considere - e isso não é defender Israel não - considere o número de estudantes na
universidade de Johannesburgo durante o apartheid com os estudantes de [Universidade
de] Haifa, árabes, durante o governo de Israel. É preciso entender: se você chama alho
de bugalhos, amanhã apartheid perde o sentido. Quando [os judeus de direita] me
chamam de antissemita, a palavra antissemitismo PERDE o sentido. USEM a palavra
quando vocês tiverem que usar. O que acontece em Hebron [cidade palestina na
Cisjordânia ocupada] é muito mais sério do que acontece em Haifa [cidade palestina em
Israel]. Olhem pra Hebron! [Moisés, ênfases dele]

Ao menos diante dessa plateia, o termo apartheid é inviável para os “sionistas


periféricos”, destoando de chefes de Estado de Israel como Ehud Olmert (BBC, 2007),
Ehud Barak (MCCARTHY, 2010) e até Ytzchak Rabin que, entrevistado em 1976, diz,
se referindo aos “árabes” dos territórios ocupados: “Eu não acho que é possível conter a
longo prazo, caso não queiramos chegar ao apartheid, [mais] um milhão e meio de árabes
dentro de um Estado judeu” (STAFF, 2015, tradução minha). Também John Kerry, ex
secretário de Estado norte-americano, em uma declaração de 2014, teria alertado para o
“risco” de Israel se tornar um “Estado de apartheid” caso uma “solução de dois estados”
não estivesse próxima. Se para os chefes de Estado o “apartheid” em Israel/Palestina seria
uma questão de tempo – um futuro que, apesar de sempre próximo, desde 1976, parece
nunca chegar –, para o interlocutor há uma distinção quanto à própria natureza dos termos,
excludentes entre si e inconciliáveis numa mesma frase: nem o “sionismo clássico” pode
ser “racismo” e “apartheid” (tampouco o seria o “sionismo do Bibi”, cujo projeto estaria
transformando Israel em um país “não democrático”, “agressivo” e “autoritário”,
equivalente a outros países “árabes” ou “da diáspora”), nem o “sionista de esquerda” pode
ser racista ou estar situado em outro lugar que não na “periferia”.

58
Mais uma vez, para que eu entendesse a explicação de Moisés foi necessário fazer uma pesquisa posterior
a sua fala. Não sabendo o que significava Meshulash, aprendi, pelo Google, que HaMeshulash/al-
Muthallath, literalmente “o triângulo” (ou “pequeno triângulo”, em relação ao “grande triângulo” de Jenin,
Tulkarem e Nablus, região bastante ativa na revolta árabe-palestina de 1936/1939 e hoje parte da
Cisjordânia ocupada), é o nome dado às cidades e vilas palestinas dentro de Israel as quais, adjacentes à
Linha Verde, foram tratadas, em alguns “processos de paz”, como uma futura moeda de troca com o Estado
Palestino por alguns assentamentos localizados além da Linha.

138
Nesse sentido, se, por um lado, ser “periférico”, “progressista” e “de esquerda” é
possível e, nesse caso, necessário59, por outro, a aproximação de sionismo com racismo
ou apartheid parece ser o próprio limite da manutenção da crença e da possibilidade da
continuação pela espera. E sua assunção talvez exigisse uma ação distinta daquela
proposta pela imagem do “diálogo”.

É relevante lembrar aqui que denúncias que aproximam o sionismo do racismo e


do apartheid, acontecem, em escala internacional, desde os anos 1950. Em 10 de
novembro 1975, a Assembleia Geral das Nações Unidas, com o apoio de países como
Brasil e outros 71 países, adotou a Resolução 337960, concluindo ser “o sionismo uma
forma de racismo e discriminação racial” ao considerar outros documentos, como a
Resolução 3151, que em 1953 condenou “a perversa aliança entre o racismo Sul-africano
e o sionismo”, a Declaração de 1963, a qual nenhum Estado é imune, sobre a “Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial”, e onde se lê que “toda doutrina de
diferenciação ou superioridade racial é cientificamente falsa, moralmente condenável,
socialmente injusta e perigosa”, além de posicionamentos de outros países e entidades
internacionais, como a Declaração do México sobre a Igualdade das Mulheres e Sua
Contribuição para o Progresso e a Paz, que promulgou o

princípio de que "a cooperação internacional e a paz exigem a conquista da libertação


nacional e independência, a eliminação do colonialismo e do neocolonialismo, da
ocupação estrangeira, do sionismo, do apartheid e da discriminação racial em todas as
suas formas, assim como o reconhecimento da dignidade dos povos e de seu direito à
autodeterminação" (apud Resolução 3379/ONU)

e a Assembleia de Chefes de Estado e Governo da Organização da Unidade Africana,


que, em 1975, considerou que

o regime racista na Palestina Ocupada e o regime racista no Zimbabwe e África do Sul


têm em comum a mesma origem imperialista, formando um todo e tendo a mesma
estrutura racista e estando organicamente ligadas em sua política de repressão da
dignidade e integridade do ser humano (apud Resolução ONU/3379).

Depois de anos de pressão dos EUA e de Israel, em 1991, no entanto, a Assembleia


Geral da ONU revogou a Resolução 3379, criando condições para que acontecessem os
Acordos “de paz” de Oslo. Em março de 2017, também viu-se um desfecho parecido, em

59
Linda Sarsour, ativista feminista palestina-americana, e outras feministas, como Samer Jaber, afirmando
a importância da perspectiva da “interseccionalidade” nas lutas, denominam esse posicionamento, que
vêem em muitos judeus de esquerda e “sionistas liberais” norte-americanos, como “Progressive except for
Palestine”, ou PEP. (JABER, 2015; MEYERSON, 2017)
60
Ver documento em <http://bit.ly/2yJmBue>. Último acesso em 16 de janeiro de 2018.

139
que também um órgão da ONU, a Comissão Econômica e Social para a Ásia Ocidental
[UN/ESCWA], sediada no Líbano e composta inteiramente por 18 países árabes,
encomendou um “estudo acadêmico”, “cujos resultados deveriam ser extensamente
divulgados”, a fim de “examinar se Israel estabelecia um regime de apartheid que oprime
e domina o povo palestino como um todo” (UN/ESCWA, 2017). O relatório da Comissão,
intitulado “Israeli Practices Toward the Palestinian People and the Question of
Apartheid”, concluiu vigorar, tanto em Israel quanto nos territórios ocupados, o regime
de apartheid, conforme definido pelo direito internacional, sobre os palestinos, a fim de
assegurar uma “engenharia demográfica” para a manutenção de Israel como um Estado
judeu.

Dois dias depois de publicado, o estudo foi recusado pelo próprio chefe da Nações
Unidas, que removeu o texto do site oficial e aceitou o pedido de demissão da secretária
geral do órgão responsável após a desaprovação do relatório e das acusações, feitas pela
embaixadora dos Estado Unidos na ONU, contra um dos autores do documento, um
professor inglês de Direito Internacional e ex pesquisador da ONU de direitos humanos
para os territórios palestinos, que, segundo a embaixadora, seria famoso por suas posturas
“antissemitas” e “conspiratórias” contra os Estados Unidos e Israel: “É perfeitamente
normal que criminosos pressionem e ataquem aqueles que advogam pela causa de suas
vítimas. Eu não posso me submeter a tamanha pressão.” (KHALAF, 2017, tradução
minha) – diz a carta de demissão da secretária geral ao chefe da ONU. Para o autor do
relatório, o próprio termo “apartheid”, sozinho, teria sido o suficiente para a rejeição do
estudo, horas depois de publicado (FALK; TILLEY, 2017).

Se na escala internacional o “apartheid” e a “colonização” são termos interditos


por outros agentes e estratégias, essa interdição não é suficiente para que a questão
desapareça e, na escala local da crença, deixe de interpelar seus crentes. No próximo
subitem, me dedicarei às respostas estratégicas desses interlocutores que,
compreendendo-se como “sionistas” e “de esquerda”, veem o projeto de si mesmos
atingido pelos transbordamentos e contaminações seja das políticas de Israel 61 , do
“establishment” comunitário ou da branquitude que (não) os marca no Brasil.

61
Efrat Yerday, israelense de origem etíope e professora da Universidade de Ben Gurion, coloca a questão
da branquitude das políticas do Estado de Israel nos seguintes termos: “A verdade é que a brutalidade
policial contra palestinos e judeus etíopes [...] são dois lados do mesmo sistema de opressão. […] Quando
o Estado Judeu diz conceder a todo judeu em necessidade a oportunidade de naturalizar-se, você deve ler
os detalhes e as condições de cidadania encaradas por cada grupo específico de pessoas. Os únicos grupos

140
3.3.1 “É caso de política comunitária”: entre iguais e diferentes

Esse judeu, sujeito privilegiado, deve dizer qual seu posicionamento diante do racismo
e da opressão aos palestinos em Gaza, PARA COMEÇO DE CONVERSA e entender
que gay pode ser machista, feminista pode ser racista e judeu pode ser de direita. E
racista. E homofóbico.
- Anderson França em post público, ênfases dele.

por que a gente resolveu se organizar e formar o Coletivo Judaico de Esquerda? Porque
todo mundo dos nossos meios não judaicos olhavam e vinham cobrar a gente, tipo:
“porra, você é judeu, você concorda com isso tudo aí mesmo?”, colocando a gente no
mesmo saco. Aí a gente ficou assim: “cara, não, a gente não é do mesmo saco e a gente
tá afim de disputar essa comunidade”, sabe? Aí [...] a gente sentou e falou “tá na hora
de ocupar de verdade, e vamos ocupar de dentro pra fora”. E aí a gente fez uma chapa
pra eleição da Federação.
- jovem interlocutor, cofundador do Coletivo Judaico de Esquerda

a exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma


condição que necessita de ilusões.
- K. Marx, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1844)

Ao longo da construção do campo, os interlocutores estiveram envolvidos em


várias dessas práticas de dupla-ação, entre a construção de uma diferença em relação à
“direita”, ao “establishment” e ao “fascismo comunitário” e a aproximação com as lutas
periféricas, de esquerda, e antirracistas no Brasil. Entre elas pode ser citada a criação do
Coletivo Judaico de Esquerda, como explica o interlocutor da epígrafe. Aqui, no entanto,
me deterei em uma delas, por ser exemplar de um caso ‘dramático’, que descrevo a seguir.

Organizada a partir do fórum do JuProg, a ação foi uma tentativa de barrar a visita
do ex vereador, deputado federal e atual candidato à presidência, Jair Messias Bolsonaro,
conhecido por suas posturas autoritárias, machistas, homofóbicas e racistas, ao clube A
Hebraica, à convite das presidências do clube em São Paulo e do Rio de Janeiro. Alguns
judeus, incomodados com o convite e com suas possíveis consequências à “comunidade”,
encabeçados por vários dos interlocutores entrevistados, criaram uma campanha nas redes

aos quais se vê imposta a condição da conversão e das cotas acontece de serem grupos de origens não
brancas [from brown origins]: América Latina, India e Etiópia [...]. O pecado original do Estado Judeu não
é necessariamente a ocupação, mas é um mais antigo: o pecado da supremacia branca que foi bastante
convencional no mundo antes da Segunda Guerra Mundial – e continua a operar hoje”. (YERDAY, 2017,
tradução minha)

141
sociais se opondo à presença do candidato através da hashtag Não Em Nosso Nome. Se
as vozes paulistas conseguiram fazer com que a visita fosse cancelada através de um
abaixo-assinado com mais de 3.804 assinaturas as quais, “em nome da memória de
Vladmir Herzog, Iara Iavelberg, Ana Rosa Kucinski [...] e tantos outros judeus vítimas
da ditadura”62, pediam à Hebraica-SP o cancelamento do evento, as vozes cariocas não
foram suficientes para fazê-lo, tendo sido a petição, intitulada “Frente Ampla das
Minorias” e entregue à presidência da Hebraica-RJ com 1.866 assinaturas63, insuficiente
para os objetivos do movimento.

Diante da confirmação do evento, organizou-se um ato de protesto em frente à


Hebraica-RJ, composto de pessoas ligadas aos movimentos juvenis “sionistas de
esquerda” e de outras pessoas que se viram ofendidas com a visita de Bolsonaro ao clube
no qual cresceram e que o têm como parte de sua “comunidade”. Do lado de fora do
evento, três gerações, somando cerca de 150 pessoas, gritavam, empunhando bandeiras
de Israel, palavras de ordem que lembravam os judeus mortos vítimas do nazismo e da
ditadura brasileira: “se esquece da shoá quem permite torturar!”, “judeu e sionista não
apoia fascista!”.64

Enquanto isso, dentro do auditório, Jair Bolsonaro, em frente à bandeira


israelense, falava para cerca de 300 sócios e convidados. Também foram apresentadas
pelo candidato algumas de suas propostas, prevendo corte de fundos para ONGs, o
armamento massivo da população e o fim da demarcação de terras indígenas e
quilombolas. Um mês depois da visita à Hebraica, Bolsonaro fez uma viagem com
membros de sua família e partido à Israel, onde foram recebidos pelo parlamento à convite
de seu presidente, e participaram tanto de palestras na empresa estatal de águas Mekorot,
já citada, e no Ministério de Agricultura, quanto da cerimônia em homenagem aos
soldados israelenses e às “vítimas do terrorismo”. Em vídeo, dizem que “o Brasil tem
muito a aprender com Israel”, traçando muitos elogios ao país.65

62
O texto do abaixo assinado de São Paulo por ser acessado aqui <http://bit.ly/2luZZUb>. Último acesso
em 19 de dezembro de 2017.
63
A petição do Rio de Janeiro pode ser acessada aqui <http://bit.ly/2B5rhaL>. Último acesso em 19 de
dezembro de 2017.
64
Para um vídeo produzido por um dos organizadores da manifestação, ver “O ovo da Serpente” (7´38´´)
<https://vimeo.com/212305518>. Último acesso em 20 de dezembro de 2017.
65
O percurso da viagem do candidato, assim como suas impressões e “aprendizados” em Israel, pode ser
visto em seu canal oficial no YouTube.

142
Se a viagem do candidato não gerou protestos organizados da “comunidade”, sua
presença mais ‘próxima’, num clube comunitário, foi vista como um alerta para o perigo
que a “minoria” judaica corre66. Revoltada, uma das espectadoras que entrou na palestra
para “ver se era verdade” o que dizia o político, concluindo que se tratava de “um
imbecil”, explica, preocupada com a repetição da catástrofe judaica que viu/ouviu
anunciada, por quê protesta contra a presença do candidato na Hebraica:

eu tô aqui pra defender a honra dos meus antepassados, da minha família que morreu
perseguida pelos nazistas, pelos fascistas! Então a gente não pode admitir preconceito
contra ninguém! Contra índio, branco, judeu, negro, mulher, homem, gay porque nós
fomos perseguidos [...]. E Hitler subiu assim na Alemanha! Eu avisei!

Outro interlocutor, um dos organizadores do ato na Hebraica-RJ e próximo aos


movimentos juvenis sionistas “de esquerda”, acredita serem estes jovens as principais
vítimas do “fascismo comunitário” e os defende como a “reserva moral dessa comunidade
dilacerada”67. Após o ato, que para ele parece ter funcionado como uma ‘prova’ de que

66
Além do ato, outras manifestações de repúdio à presença de Bolsonaro na Hebraica foram publicadas na
internet. Algumas delas foram cartas dos movimento juvenis sionistas “de esquerda”, lembrando que
“apesar de não sermos a minoria mais atingida pela discriminação no Brasil, ainda constituímos um grupo
minoritário [e] enquanto tal, temos certas responsabilidades”; um vídeo-carta aberta à Hebraica-RJ,
relembrando os judeus mortos na ditadura em contraste com o fato de Bolsonaro defender o regime militar
e apoiar uma “guerra civil” que mate “30 mil” como plataforma política; uma “nota aos judeus” da
Associação Sholem Aleichem [ASA]; uma “nota” da CONIB, em seu site oficial, dizendo que “A
comunidade judaica defende[...] os valores da democracia e da tolerância e o respeito absoluto a todas as
minorias”; uma nota de repúdio da B´nai B’rith, intitulada “Irresponsabilidade de alguns”, em que manifesta
seu “absoluto repúdio e indignação pelos pronunciamentos de xenofobia, discriminação e racismo”; el´me
de textos e vídeos individuais que “com vergonha” e “repúdio”, usando a hashtag Não em Nosso Nome,
enfatizavam a “pluralidade da comunidade” e a “não representatividade” do Clube “decadente” e
parabenizavam as pessoas pelo protesto, que mostrou aos não judeus que existe um “outro lado” na
comunidade.
67
Embora discutir a “direita judaica” não seja parte do meu esforço neste trabalho, não posso deixar de
citar alguns eventos importantes para a compreensão da angústia “sionista de esquerda”, atravessada pela
relação tensa e ambígua que os interlocutores guardam com aquela. Alguns meses depois da postagem deste
interlocutor, no contexto da eleição da presidência da Federação Israelita do Rio de Janeiro e de seu
conselho, do qual alguns interlocutores foram candidatos e venceram, os movimentos juvenis sionistas do
Rio de Janeiro estavam sofrendo ataques nas mídias sociais pelo grupo adversário da chapa que foi
vencedora e cujo presidente, de “centro-direita”, é irmão de um dos interlocutores filiado a um partido de
esquerda e líder do Dror. Algumas das acusações afirmavam serem os Movimentos “formadores de Che
Guevaras” e “esquerdopatas de merda”, pedindo seu fim. Os jovens e pais de quatro movimentos juvenis
sionistas reagiram aos ataques fazendo campanhas virtuais usando a hashtag Somos Todos Movimento
Juvenil. Segundo um interlocutor, “a gente mostrou que o extremismo de direita também não é tão bem
vindo assim, sabe? Porque quando os caras falaram que tem que acabar com o Dror e o Hashomer, tem que
ACABAR com uma instituição que FORMOU Israel [risos dele], sobreviveu aos guetos na Polônia, na
Alemanha, sabe? Eles se colocaram no mesmo patamar dessas instituições históricas. E a comunidade
judaica mostrou que o buraco é mais embaixo pra mexer assim” [10, ênfases dele]. Também relevante aqui
é o fato de um grupo do Facebook, intitulado “Amigos” e do qual eu nunca fiz parte, ter publicado na
internet uma lista com nomes de membros do JuProg que eles consideravam “ratos” e “kapos”/traidores,
fazendo referência aos judeus alemães que, sob o mando nazista, foram obrigados a levar outros judeus
para serem mortos nas câmaras de gás.

143
são de esquerda, em um post público, faz seu pedido de aproximação à “esquerda” não
judaica que o “olha com desconfiança”:

Pois bem, urge que meus amigos de esquerda entendam isso. Faz poucas semanas, eu e
eles (os movimentos juvenis), fomos acusados de estarmos no mesmo campo de
Bolsonaro. [...]. Por anos, somos, judeus de esquerda e os movimentos juvenis sionistas,
olhados com desconfiança e repúdio. Hoje mostramos de que lado estamos, cabe a vocês
mostrarem onde estão, se ao nosso lado, ou se nos ofendendo junto à plateia do
Bolsonaro na Hebraica.

No dia seguinte ao protesto, o presidente da FIERJ [Federação Israelita do Estado


do Rio de Janeiro], instituição responsável por representar a “comunidade judaica” do
Rio de Janeiro, gravou um vídeo direcionado aos judeus que protestaram, afirmando ser
“perigoso quando resolvemos nos unir a outros fora de nossa comunidade para nos
manifestar contra um problema que é caso de política comunitária [...]. Isso pode nos
levar a uma exposição desnecessária e negativa”68. Com esse vídeo, o presidente retraça
a fronteira da “comunidade”, que os angustiados se esforçam por flexibilizar e mostrar
que “não somos todos iguais”.

Tendo sido encarada como uma ofensa – principalmente à história judaica de


perseguição que teria sido “esquecida” pelo “establishment” segundo um manifestante
no vídeo de protesto – a “periferia” da “comunidade” foi interpelada a agir no sentido de
não ser confundida com a parte da “comunidade” que convida a falar em seus espaços
pessoas como Jair Bolsonaro. Há aqui duas escalas distintas de “periferia” ativas: uma
colada ao “ser judeu” enquanto figura perseguida por líderes políticos como o deputado,
cuja ascensão é o “ovo da serpente” que anuncia a repetição do pior; e outra periferia
encarnada no “ser judeu de esquerda” nesta “comunidade” – o protesto tendo sido em
grande parte puxado pelos movimento juvenis sionistas “de esquerda”.

As crenças que envolvem a magia sionista de esquerda, se por vezes são distintas
de outras crenças sionistas talvez mais hegemônicas (como a crença de que os judeus têm
direito ao território do Mediterrâneo ao Rio Jordão), não parecem, no entanto, ser
suficientes para que os mágicos e crentes sejam expulsos do campo e dos circuitos das
instituições do “establishment”, onde pretendem “ficar” para “disputar” e “mudar por

68
Vídeo disponível na página pública da Federação Israelita do Rio de Janeiro <http://bit.ly/2B6OitR>.
Último acesso em 20 de dezembro de 2017. Uma semana depois, durante os dias de Pessach, a Páscoa
Judaica, em que se lembra o tempo em que os judeus foram escravos e oprimidos e se celebra a liberdade,
o mesmo presidente publicou um texto no jornal O Globo, agora reivindicando a tragédia judaica como
legado moral – e destino – do povo judeu: “como Moisés no Egito, [os judeus] não nos calaremos ao
presenciarmos a violência contra os mais fracos [...]. Este é o nosso passado. Este é o nosso destino”.
(ROSENBERG, 2017)

144
dentro” – postura muito parecida com a que alguns interlocutores filiados a partidos de
esquerda dizem ter em relação às políticas antissionistas dentro de seus próprios partidos.
Pelo contrário, nelas e por elas são convidados e incentivados a participar de atividades e
ocupar conselhos e cargos de liderança, enquanto ‘vozes de esquerda’ na “comunidade”.
Lembro-me aqui também da fala de um interlocutor, membro do JuProg, que disse ter o
grupo nascido em função da “estranheza” sentida pelo cônsul de Israel ao vir ao Brasil e
não se deparar com nenhum coletivo judaico que fosse de “esquerda”.

[Em 2011,] dez pessoas se reuniram na casa do então cônsul de Israel, que tinha me
proposto organizarmos pessoas na comunidade judaica de São Paulo que tivessem
opiniões de esquerda. Ele achava anômalo a comunidade ser tão conservadora.

A crença sionista de esquerda, nesse sentido, parece ser parte constituinte do


establishment, que dela também necessita para manter e fazer manter o espírito que
construiu o Estado de Israel: é a própria crença a matéria necessária à construção de Israel
como uma utopia, um projeto de libertação.

Apesar do esforço de diferenciação, ao entrevistar uma das figuras importantes do


curso de hasbará disponível aos jovens que fazem Shnát, o “ano de preparação” em Israel
realizado pelos movimentos juvenis, um dos interlocutores é lembrado daquilo que o une
ao entrevistado, um expoente da “hasbará antiboicote”[18], considerado um “sionista de
centro-direita” :

[entrevistado:] Temos que recordar o que nos une, não o que nos separa.
[interlocutor/entrevistador:] essas pessoas então que veem o sionismo como algo
monolítico e não aceitam sionismo de esquerda ou sionismo de direita não entendem o
que é sionismo na verdade. [entrevistado:] O sionismo é muito claro: é o direito do povo
judeu a uma pátria independente. Se pode ser sionista de muitas formas. [...] apesar de
saber que sua posição é muito diferente da minha, eu amo o que você faz e penso e
quero que continues a fazer. Não há crescimento como nação senão também te escutar.
Muito obrigado.

O limite desse trabalho pela diferença em relação a uns e pela igualdade em


relação a outros é dado pela fala de Gabriel no evento, ao acusar essa “periferia” de estar
do mesmo lado do “establishment”.

Por mais que a direita israelense ataque vocês, e aí eu me solidarizo completamente a


esses ataques pessoais, as atitudes que NÃO VÃO ao encontro dessa normalização,
desses vínculos institucionais que falam dessas três coisas juntas - ocupação, direito de
retorno e palestinos dentro de Israel - elas NÃO desafiam o establishment. (Gabriel,
ênfases dele)

Gabriel parece aqui ser o contraponto que diz que não há ‘convicção’ ou magia
possíveis que façam do “sionismo de esquerda” algo tão diferente do “sionismo de
direita”, do “establishment”, ou dos brancos no Brasil numa estrutura de poder desigual

145
descrita pela gramática do apartheid, do racismo e do colonial. Tal gramática, quando
acionada, torna a crença insuficiente e a posição que ocupamos invariavelmente superior
à fala, a ultrapassando – no Brasil, esses judeus continuam brancos; em Israel, o sionismo
continua produzindo vítimas porque não judeus.

Fazendo uma leitura contemporânea do último livro escrito por Freud, “Moisés e
o Monoteísmo”, Edward Said (2004b) (e também Anderson França) nos lembra que a
origem dos judeus, sua cosmologia e leis, está localizada num Moisés egípcio, e, portanto,
não branco e não europeu – uma figura periférica, não aquela que salva o “povo” da
‘selvageria faraônica’, mas aquele que vagueia, perambula e que, enquanto egípccio,
sempre estivera fora da Identidade dentro da qual tantos se posicionaram e sofreram: um
exílico que nunca chega à terra que teria sido prometida para os seus. Essa origem
mosaica/periférica/exílica do povo judeu, que nesta era de refugiados e despossuídos
muito o ultrapassa, diz Said, poderia se “articular” e “dirigir-se a outras identidades
sitiadas” (op. cit., p. 81), e, quem sabe, instaurar uma “política de vida na diáspora”,
instaurando uma ética da cohabitação [cohabitation] que Butler (2012), aprofundando a
crítica de Hannah Arendt ao Estado Nação, tenta formular. Essa potência do
“contraponto”, no entanto, não parece ser possível dentro de qualquer frame de “estado
soberano judaico”.

Distantes dos efeitos do discurso sionista sobre suas vítimas históricas (não judeus
e judeus não brancos), ‘coabitando’ em São Paulo e Rio de Janeiro é possível/preciso ter
mais agência na formulação sobre um “sionismo de esquerda”, “arrumando” e
“explicando” aquilo que deve ser compreendido: como diz um interlocutor jovem, filiado
a um partido de esquerda, “é preciso ter uma linguagem tanto para o empresário quanto
para o favelado”.

Se levarmos a sério a ideia, como propõe Ella Shohat (2007), do sionismo como
um projeto de branqueamento e europeização do judeu (e da paisagem de
Israel/Palestina), limpando-o de tudo aquilo que o associa a suas origens não ocidentais
– e egípcias, frisava Freud (apud SAID, 2004b) – temos que, de certa forma, o sionismo,
seja à esquerda ou à direita, incorpora o discurso daquele que o fortaleceu – o
antissemitismo de Estado –, fundamentado na distribuição desigual dos direitos segundo
critérios de raça. No Estado Judeu, adotado como ‘Ocidente’ desde 1917, os não judeus,
os não brancos e os não ocidentais são os ‘outros’, periféricos. No contexto brasileiro, a
formulação “sionista de esquerda” – diferente de “esquerda sionista”, que, em geral, é
146
usada para se referir à esquerda de Israel – parece ser uma tentativa de produzir uma
diferença em relação a esse projeto de branqueamento, embora nem sempre seja bem-
sucedida, como faz questão de lembrar Anderson França e a própria posição que, como
brancos, ocupam no Brasil e, como sionistas, ocupam na Palestina e na distribuição de
poder/lugar no mundo. Tal como na “comunidade judaica”, cuja ‘periferia’ protesta
contra Bolsonaro em seus espaços comunitários, haveria alguma ‘periferia do sionismo
que não produza, juridicamente, periféricos e/ou exilados e/ou estrangeiros?

147
CAPÍTULO 4
F AZER V ER : MAPAS , VIAGENS E RETORNOS ( IM ) POSSÍVEIS

Aí é a terra de Israel, os navios que vinham com refugiados, nos anos [19]30, [19]40,
na época que a Europa tava em guerra, é... não sei o quanto você conhece da história,
do desenvolvimento do sionismo e tal, isso aí por exemplo tem uma torre ali e um muro,
com algumas casas, porque teve uma política de assentamento e de ocupação da terra,
que se chamava Chomá Umigdal, Torre e Muro. Tem uma famosa frase do Ben-Gurion
que sintetiza o dilema dessa história que é: “vamos combater o nazismo como se não
houvesse o Livro Branco69, e vamos combater o Livro Branco como se não houvesse
nazismo”. [...] Mas, segundo a legislação britânica, os migrantes que ultrapassassem
essa cota permitida tinham que ser expulsos e os assentamentos iam ser desmontados.
Só iam deixar se anteriormente já existisse uma torre e um muro. Então ali chegavam
clandestinamente, nas noites, levantavam torre e muro, aí de dia, pronto, tá cumprindo
com a lei. Como uma armadilha, uma trapaça, para burlar a lei. (e essas pessoas meio
clandestinas aí em preto? É o Irgun, as milícias judaicas...?) não, acho que não... Olha,
tem muitos detalhes que agora eu tô interpretando junto com você. Eu nunca tinha
pensado...essas pessoas são clandestinas, estão pretas só porque saiu preto, mas são
trabalhadores da terra, porque aí tem a ver com o kibutz também. Os pioneiros,
chalutzim, a volta ao trabalho na terra. O judeu típico do gueto era um judeu alienado,
que trabalhava com capital, não por escolha, e daí vem o preconceito contra os judeus,
porque na sociedade medieval cristã os judeus tinham sido proibidos de trabalhar na
terra, possuir armas, é... tinham alguns ofícios proibidos [...], e aí um trabalho que tava
proibido pros cristãos era um trabalho do demônio, assim, mas que alguém precisava
fazer, “então vamos deixar com o judeu”. Aí então esse era o judeu típico do gueto. Aí
então o sionismo, sobretudo o sionismo socialista, vem com essa ideia de se reconciliar
com a terra, o trabalho na terra. Aí depois passa pra cá, e tem a declaração da
independência, representada pelas caras de Herzl e Ben-Gurion.[...] E aquele cara que
tá lá é o Mordechai Anielewicz [...] que foi o cara que comandou o levante do Gueto
de Varsóvia, e era um cara deste nosso movimento juvenil, ele tinha 23 anos... (ah, ele
era do movimento?) Sim. Lá em Varsóvia [...]. Por isso em Yom Hashoá, o dia do
holocausto, a data é a data do levante do gueto de Varsóvia, que na verdade em hebraico
se chama Yom Hashoá VeHaguevurá, o ‘dia do holocausto e do heroísmo’, para trazer
um pouco isso também, [...] porque teve um heroísmo em resistir, não só em ir como
em rebanho pra... morte. Porque no início do sionismo não era claro que Israel, que a
terra de Israel era o território é..... que ia ser apontado como judeu, (a Palestina, você
diz?) Claro. Não... mas na narrativa sionista é a terra de Israel... ou a Palestina...?, não
se falava porque naquele momento era o nome dado pelos..... britânicos e.... [silêncio]
os turcos.... porque os otomanos tavam... [silêncio] não sei se os otomanos... boa
pergunta agora... [silêncio] como eles chamavam a região...? Não sei se chamavam
Pa.....lestina. [silêncio] Bom, fiquei na dúvida. Tem que conferir isso. [silêncio] Mas
aí.... Por exemplo, Herzl, no Estado Judeu, que é o livro, o texto fundacional do
sionismo político, ele fala de... de Palestina ou Argentina, por exemplo. E Uganda.[...]
Você sabe que no ano [19]48, quando se declarou independência, já existia um Estado
andando, né?, não foi criado a partir desse dia. As instituições do Estado, tudo, foi criado
sobretudo nos anos [19]20 e [19]30, nos anos [19]10 [...] os historiadores periodizam
que têm aliót. Aliá também é uma palavra que tem uma conotação positiva, né, em uma
parte da narrativa sionista, mas se a gente quiser ser neutro, a gente pode falar de
MIGRAÇÕES, assim, ondas migratórias, teve cinco ondas migratórias, cinco aliót. A
mais importante é a segunda aliá, anos [19]20, que é aliá de todos os principais, aqueles

69
Os Livros Brancos foram documentos emitidos pela Grã-Bretanha durante o Mandato Britânico na
Palestina (1920-1948), os quais reafirmaram a Declaração de Balfour, excluindo o lado oriental do rio
Jordão da “Palestina britânica”, ofertado à família real Abdullah; e, nos anos 1930, eles restringiam a
colonização judaica, limitando-a para 75.000 imigrantes judeus entre 1939 e 1944, a partir de quando a
imigração judaica restaria sob o consentimento árabe. <http://bit.ly/2BNrMYr>.

148
que construíram as instituições, que depois viraram os líderes do Estado de Israel, como
Ben-Gurion, por exemplo, as pessoas da Europa oriental [esses que construíram eram
ashkenazim?] Sim: russos, poloneses, ucranianos, depois vieram da União Soviética,
das repúblicas soviéticas, sim... o pessoal alemão, o pessoal é.....ashkenazi.
- interlocutor, jovem líder comunitário, narra-me a história do sionismo

O ato de discriminação é invisível porque é inescrutável. Como, afinal, você pode


reconhecer que Israel discrimina contra sua população palestina quando não existe tal
coisa? Que palestinos? Não há palestinos dentro de Israel, apenas “árabes israelenses”.
E esse é o ponto: a negação, o apagamento, o ato de discriminação já está lá antes que
o enunciado seja feito. Não há linguagem para isso; isso não pode ser enunciado. [...]
Ao final do dia, o branco sul-africano, independentemente de sua posição política, tinha
que olhar a placa dizendo ‘branco/não brancos’ ['blankes/nie blankes'] e afiliar-se em
conformidade. O judeu israelense, e o apoiador de Israel de além mar, nunca é forçado
a tal confrontação, nunca tem que fazer essa escolha – ela está feita para ele antes da
linguagem: o racismo é pré-digerido e permanece inescrutável.
– Saree Makdisi, A Racism outside of Language: Israel´s Apartheid. (2010b, tradução
minha)

Espero até aqui ter conseguido demonstrar que, naquilo que chamei de ‘didática’
sionista de esquerda, a eleição de gramáticas, frames, vozes, causas, vítimas e autores, é
fundamental para o ato de se fazer entender e gerar solidariedade à angústia dos
interlocutores. Tentei demonstrar também que o maquinário da linguagem que nomeia,
explica e faz entender a “complexidade” não só ‘faz ver’ como também ‘faz sumir’,
transformando em vítima aquele que ‘pode falar’ e em agressor o que ‘não pode’,
“racismo” em “desigualdade social”, “apartheid” em categoria histórica e não jurídica, o
“colonial” em “libertação nacional”, “Nakba” em “passado” ou “guerra civil”70, “tragédia
(judaica)” em identidade e destino, palestino em “minoria árabe”, quando não em
“refugiado”, judeu-árabe em “judeu” ou “oriental”71, e judeu “re-tornado”, em nativo72.
Nessa batalha assimétrica, as narrativas discursivas não só explicam o que deve ser
compreendido, mas o fazem ao mesmo tempo que produzem o inteligível. O próprio ato

70
Como disse-me um interlocutor historiador: “esse [a guerra 1948-49] é um caso clássico de guerra civil
que acabou quando terminou a resistência do outro lado [o árabe-palestino], como qualquer guerra civil,
que é uma das piores coisas do mundo. [...] A ÚNICA solução pra guerra civil palestina-israelense foi a
construção do Estado de Israel. Porque [...] havia possibilidade de um acordo. Qual a merda? É que tem
que ter um Estado Palestino também”.
71
Sobre a situação dos judeus árabes, é interessante o relato que faz Ella Habiba Shohat, “Reflections By
An Arab-Jew” (s/ data), ela mesma “mizrachi”, sobre os apagamentos que a ideia de “um povo”,
institucionalizada como política de Estado pelo sionismo, produz.
72
“Re-torno implica uma presença e posse passadas, uma ausência, e agora uma retomada da posse, numa
construção linguística que nativiza o judeu. Então se os judeus são os nativos, o que são os palestinos?”.
(PETEET, 2016, p.36, tradução minha).

149
de enquadrar, lembra Judith Butler (2009), é em si uma operação de poder, e também a
violência tem uma forma narrativa, sobretudo se se tratar de uma história linear do
“progresso” de um projeto nacional vitorioso (BUTLER, 2012, p. 99-114), como parece
ser a narrativa do interlocutor, registrada em desenho na parede do muro de um dos
movimentos juvenis de esquerda como um elemento importante no processo da educação
sionista.

Se no capítulo anterior tratei da práxis da crença a partir de certos elementos da


gramática sionista de esquerda, neste capítulo me concentrarei no tema crucial da viagem
e dos deslocamentos em seus múltiplos sentidos: tanto como dispositivos do ‘fazer ver’,
como são as ‘viagens programadas’ e iniciáticas que compõem a formação judaico-
sionista dos jovens e as ‘viagens-espetáculo’ que levam celebridades da Esquerda a
“conhecer” Israel/Palestina e a ‘falar sobre’; quanto como dispositivos do ‘fazer sumir’,
como é a ‘viagem fantasmagórica’ dos ausentes e que não prevê retorno. Tais viagens,
assim como os mapas, essa “instituição de poder” fundamental na construção da
“narrativa político-biográfica” de todo Estado moderno (ANDERSON, 1993), são
recursos pedagógicos que, além de inscreverem no território e na história certo tipo de
“Israel” e “Palestina” viáveis à crença, as produzem como “comunidades imaginadas”,
tornando-as visualizáveis e narráveis.

O trabalho de urdidura do Estado de Israel, seja pela indeterminação de suas


fronteiras e extensão, pelo constante ‘problema demográfico’ que representam os
“árabes”, ou ainda pela necessidade de se construir, não só aos olhos de seus cidadãos
como diante do mundo ocidental e, principalmente, da diáspora judaica, enquanto um
Estado “judeu e democrático”, conforme definido em lei (KIMMERLING, 2008), exige
um esforço coletivo e contínuo. Como toda entidade política imaginada (ANDERSON,
1993), o Estado de Israel tem um caráter inacabado e as ferramentas/categorias usadas
para compreendê-lo e construí-lo estão em disputa. Ao narrar-me o “lado elogioso” de
Israel, o tom do interlocutor, líder de movimento juvenil, é alterado ao se defender daquilo
que vê como uma acusação injusta gerada pelo “mantra do apartheid”:

Existe também subúrbio em Tel Aviv por exemplo, lá você percebe no espaço público
e na política pública... que é um desprezo, assim. Mas.... em Taybe [“cidade árabe em
Israel”] também, você percebe na cidade toda. Por que? Porque não pode ter, como aqui
tem cotas raciais, não pode lá ter cotas para a população mais desfavorecida? Melhora
as populações desfavorecidas! Vamos dar espaço pra elas também. [...] Por que os
árabes nos espaços de poder nunca chegam aos 18%, 20% , que é a população [“árabe”]
de Israel? Certo. Agora, por outra parte, estou me colocando de maneira crítica em
relação à Israel, agora, olhando Israel de maneira elogiosa, é possível também. Você

150
tem árabes no Judiciário, no Legislativo, no Executivo, Universidades.... ocupando
espaço, não na proporção, mas eles tão lá TAMBÉM. Então... Por que? TEM QUE
JOGAR TUDO ISSO NO LIXO? Apartheid, apartheid, apartheid? Como um mantra?
Apartheid, apartheid, apartheid? Por que? É a outra cara da moeda. Eu acho que existe
muito essa cara. NINGUÉM CONHECE NADA, ninguém sabe nada, mas...: “SABE
O QUÊ? Na dúvida, vamos tirar daí. Porque não é legítimo, porque era um problema
europeu, jogaram eles lá no Oriente Médio, o que tem a ver? São europeus... lá [na
Europa] foi que aconteceu o holocausto”. Aí tira foto com os malucos do Naturei Karta,
fantasiados de ortodoxo, então “ah, olha, tem judeu pra apoiar ele também!”. Faz um
jogo de idiota útil e..... POR QUE? Por que? [interlocutor 8, ênfases dele]

Há múltiplos mecanismos discursivos ativos na construção de uma Israel ‘judaica,


democrática e ocidental’, tais como o aprendizado da língua, os conteúdos escolares, a
construção de museus e a arqueologia, por exemplo, que apagam do território, da história
e da paisagem suas marcas não ocidentais ao mesmo tempo que constroem o “judeu”
como um “ocidental”, um dos resultados do sionismo (“essa outra história não-judaica,
não-europeia, foi apagada e já não figura naquilo que diz respeito, hoje, a uma identidade
judaica oficial” (SAID, 2004b, p.73)). Como disse, aqui me aterei àquelas práticas
discursivas relacionadas ao tema das viagens e que foram acionadas tanto no evento
descrito como nas entrevistas com alguns dos interlocutores.

Pensando nesses deslocamentos produtivos, escolhi abrir o item com a longa


narração da construção do Estado de Israel, ele mesmo fruto de várias e contínuas viagens,
que foi apresentada a mim por um interlocutor em frente à grande pintura no muro do
Movimento Juvenil, feita em 2013, em comemoração ao centenário do Movimento. Nessa
pintura, a figura de um menino jovem, vestido com a camiseta do movimento juvenil,
aparece repetidas vezes, ‘mostrando’ ao espectador/observador a história que corre em
ordem cronológica: desde a chegada dos “navios com refugiados” até a “independência”,
passando pela “política de assentamento e de ocupação da terra” que, cumprindo a lei a
burla, garantindo assim o projeto/sobrevivência das vítimas e dos herois do nazismo.
Escolhi essa passagem porque, além de narrar a ‘viagem primordial’ fundadora de Israel
e que remete à própria condição judaica de viajante-perseguido – voltarei a essa ‘teoria
da história judaica’ mais adiante – , vejo aí muitos dos elementos que tenho tentado
discutir sobre os apagamentos e as eleições que o ‘falar’ e o ‘fazer entender’
performatizam numa narrativa, criando realidades.

Judith Butler (2012, p.120-130), retomando a noção benjaminiana de lembrança


[remembrance] de modo a transformá-la na base ética de uma política da
coexistência/cohabitação, diz que a narração de uma história linear e progressiva, fundada
nas bases de um passado que nunca passa, do trauma fundacional, é a condição mesma

151
da produção de um passado/presente que não pode ser reconhecido, de uma amnésia.
Nessa narrativa mítica que nos mostra o garoto no muro (um personagem que não é
atravessado pelo tempo) e reproduz, com algumas dúvidas, o interlocutor, saltou-me aos
olhos aquilo que não está. O que é fantasmagórico, o que não aparece naquilo que se
ouve, que se vê e que se lê sobre o conflito/ocupação sionista-palestino? De quais sombras
a fala e a visão precedem? As citações que abrem este capítulo, tanto a do primeiro
parágrafo do livro de Freud sobre a origem “não nacional” e exílica/diaspórica de Moisés
e do Judaísmo, quanto a tese de Saree Makdisi (2010b) sobre o racismo sem “racismo”,
apontam para algumas respostas possíveis.

Ao longo do campo, percebi que a construção discursiva de uma Israel


“ocidental”, “secular”, “democrática” e “liberal” se dava com frequência a partir de
comparações com aquilo que julgavam ser o oposto do ideal da crença sionista de
esquerda: “tem mais judeu ateu do que palestino ateu e isso faz com que o Estado judeu
seja mais democrático que a Palestina, tenha uma maior aceitação de causas
progressistas”, me diz uma jovem interlocutora militante de um partido de esquerda.
Outra, em tom honesto, assume não ver a “origem” do povo palestino e por isso não
entender “o que os impede de viverem sob o Estado israelense”, já que sua “identidade
religiosa” é tão forte que teriam problemas com outros regimes, não tão tolerantes quanto
Israel.

eu não aceito aquela história de que os Palestinos são árabes e que eles não existem...eles
existem. Mas na verdade isso daí é coisa complicada. Você conseguiu entender... agora
vou perguntar uma coisa idiota: você conseguiu entender qual é a origem do povo
palestino? Eles não conseguem explicar direito…[a origem eu não sei não…acho que
não é uma questão pra eles essa, mas a questão do direito à terra] Então, pois é...eles
não têm um…então, eles tavam morando lá, mas assim...eles não tem uma...eu acho que
agora eles tão criando uma identidade nacional. Mas acho que não tem uma...qual é o
marco da…eu acho que não existiam com consciência mesmo, assim...o negócio deles
era territorialmente ali. Então... o que que impede eles de viverem sob o Estado
israelense? [...]
eu acho que os palestinos ainda não conseguiram criar uma consciência...é...nacional
homogênea. Eles ainda vivem como clãs, como tribos, como...é...a identidade religiosa
deles é mais forte que a da gente, isso atrapalha...os palestinos são sunitas, mas sunitas
de que linha...as lealdades exigidas deles, são diferentes, né, aí eles vivem amedrontados
não só por Israel, mas do mesmo modo pelo Hezbollah, amedrontados pelo Estado
Islâmico, amedrontados por um monte de coisa. [...] Então por exemplo: os sunitas,
reinando os xiitas, ficarão felizes? – interlocutora [4]

Ao contrário dos que “ainda vivem como clãs”, “religiosos”, ou “sem consciência
de si”, Israel era enquadrada dentro do frame da ‘moral ocidental’ de inúmeras formas,
seja por suas contribuições/dádivas tecnológicas ao mundo, como na pergunta de um
senhor, membro do JuProg, direcionada à Gabriel, no evento:

152
Gabriel, você colocou de boicotar as empresas que fazem o Muro, o caveirão... o BDS
também boicota a medicina, e coisa assim, ou só essas coisas opressoras?[...] E você
também falou do retorno: o retorno dessas pessoas seria pro Estado palestino, quando
ele se formar, ou pra Israel? Porque no começo a Palestina era considerada onde é Israel
hoje, né. Antes de ocupar ninguém pediu pra isso ser um Estado. [plateia no evento]

Ou então pelo tratamento que dá às “suas minorias”, sejam elas mulheres73, que,
diferente do que queriam a “direita sionista” ou os “generais aposentados”, sempre
estiveram e permanecerão no exército israelense [Tzahal]

- [...] as mulheres já são parte inseparável de cada esfera pública em Israel e elas não
vão embora para nenhum outro lugar. [...]. Nós vamos continuar vendo mulheres se
incorporando em tarefas de combate no Tzahal, mesmo sob os narizes dos generais
aposentados - 74,

sejam os não-heterossexuais, como diz Teles em sua fala inicial no evento:

Então vamos falar sobre direitos LGBT. Não tenho nenhum problema. Israel não é o
paraíso dos direitos LGBT. Tá muito longe de ser o paraíso. Mas se a gente tivesse que
de alguma maneira classificar os países numa escala que vá entre aquelas em que os
homossexuais são condenados à pena de morte, como Arábia Saudita, o Irã e vários
países da África, e aqueles em que os homossexuais têm todos seus direitos civis
garantidos, países como Argentina, Uruguai e Holanda, sendo que os primeiros são
número 1 e os últimos número 4, a imensa maioria dos países do Meio Oriente estão no
número 1. Israel estaria de certa forma no número 3. [Teles, no evento]

Apresentada a escala de sua geopolítica sexual, que localiza a legalidade


homossexual em países ocidentais e a “pena de morte” na “Arábia Saudita, Irã e países
da África”, Teles, que também é ativista gay, segue sua fala, no evento chamado pelo
Partido para que se discutisse o chamado de BDS, a questão palestina e a esquerda
brasileira, listando os direitos dos homossexuais e transexuais os quais, violados pela
sociedade palestina e pelo “Meio Oriente”, seriam respeitados em Israel:

Em Israel, por exemplo, foi discriminalizada a homossexualidade quatro anos antes que
a Inglaterra. Israel revogou a criminalização da homossexualidade, que vinha do
mandato britânico, como política do império, se não me engano em [19]64 e 4 anos
depois essa lei foi revogada na Inglaterra. Hoje, em Israel, as pessoas transsexuais têm
direito a fazer a mudança de nome, [...], tem direito à cirurgia de transgenitalização. Os
casais do mesmo sexo têm reconhecidos praticamente todos seus direitos civis, embora

73
Há muitos textos que questionam a possibilidade de um “feminismo sionista”. Embora discutir os termos
desse debate escape dos meus limites nesta dissertação, alguns dos textos que trazem a questão de maneira
bastante contundente são os de Brenna Bhandar (2014), de Nadera Shalhoub-Kevorkian (2014) e, desde a
publicação da última plataforma feminista nos Estados Unidos que chamou a descolonização da Palestina
de “beating heart” do movimento feminista (International Women’s Strike US Platform, 2017), os textos
de Nada Elia (2017), Mairav Zonszein (2017), Donna Nevel (2017), que crescera identificando-se como
uma “socialist feminist Zionist” e a entrevista de Linda Sarsour concedida ao jornal The Nation
(MEYERSON, 2017).
74
Post publicado na página do Facebook do Partido MERETZ, traduzido para o português e compartilhado
por um dos interlocutores.

153
não exista em Israel o casamento civil 75 , tem legislações que protegem contra
discriminação no trabalho, etc. Realmente a situação dos direitos LGBT é muito melhor
do que na maioria do entorno. Na maioria do Meio Oriente nós somos condenados ou à
prisão ou à morte. Essa é a realidade. E isso é verdade. [...] A gente teve na Cisjordânia,
né, mas a gente não poderia estar em Gaza. Você [se vira à Gabriel] sabe disso. Você
SABE disso. Você SABE disso. [Gabriel fala alguma coisa inaudível, sem microfone].
A gente não poderia porque em Gaza a homossexualidade AINDA é criminalizada. [...]
E, sim, é verdade que há movimentos LGBTs nos territórios palestinos. E muitos deles
inclusive tentam emigrar dos territórios palestinos pela discriminação que eles sofrem
lá dentro e pela criminalização da homossexualidade. [...] A gente participou lá [em Tel
Aviv] de uma reunião com um grupo que trabalha justamente com refugiados LGBTs
palestinos que migram à Israel fugindo do Hamas. [Teles no evento, ênfases dele]

Enquanto descreve certa geopolítica sexual, Teles imagina e produz “Gaza” e o


“Médio Oriente” como lugares inseguros, proibidos e “ainda” não acolhedores para
pessoas como ele, numa operação parecida com aquela que performatiza a narrativa
arqueológica sionista ao desvelar do território apenas aquilo que contribui para a
construção de uma paisagem/nação/Estado “judaico” e “ocidental” (SAID, 2004b).

Sentido-se ofendido com a fala de Teles e, dizendo ter tido contato com a “teoria
queer” na própria Palestina, onde pôde “conhecer o que significava uma real libertação
dos corpos [...], com esses ativistas LGBT, que tão, inclusive, em Gaza”, Gabriel, que se
autodefiniu bissexual, exige que Teles não negue a “resistência” desses ativistas que “tão
militando contra o apartheid e contra a colonização e pela liberdade deles de gênero e de
sexualidade”.

Às resoluções da ONU e de outros órgãos internacionais citadas, que condenam a


política de Israel como “racismo” e “crime de apartheid” e descrevem as leis que
segregam e distinguem o acesso à educação, saúde, terra e moradia a não-judeus, Teles
responde relativizando a autoridade da ONU como parâmetro válido para julgar ou
nomear as ações de Israel, colocando em questão a própria legitimidade das Nações
Unidas para falar em “direitos humanos”:

O companheiro cita várias vezes como fonte as declarações da ONU. Vou te contar uma
coisa [se dirige a Gabriel], você sabe qual é a composição dos direitos humanos das
Nações Unidas? [Gabriel sem microfone, grita:] eu me oponho à presença da Arábia
Saudita lá e os movimentos de base palestinos...[Teles, com microfone, corta:] O
conselho de direitos humanos das Nações Unidas está integrado por 47 países. Desses
47, 16 a homossexualidade é criminalizada. Em 4 deles com a PENA DE MORTE. [...]
Isso é uma comissão de direitos humanos? Esse conselho é formado por países onde os
homossexuais são condenados à pena de morte. Então se a gente vai colocar os
documentos da ONU como fonte pra fazer um debate político, a gente precisa
problematizar um pouco: que tipo de fonte é essa? [Teles, ênfases dele]

75
Embora isso não esteja explícito na linguagem, diz Saree Makdisi (2010b), em Israel, não havendo
casamento civil, judeus só podem se casar com judeus, e sob a lei ortodoxa judaica.

154
Tomando notas em seu caderno enquanto Teles falava, Gabriel o acusa de estar
fazendo, nesta e em outras falas, aquilo que se entende por pinkwashing:

É óbvio que a gente tem que condenar isso, mas o que você tá fazendo nesse instante é
o exemplo do que a gente tava falando de pinkwashing: tá desviando o assunto da
Palestina pra falar da Arábia Saudita violando o direito dos homossexuais. Vamos falar
da Arábia Saudita, mas HOJE o debate não era sobre BDS e Palestina? Eu CONDENO
aqui, publicamente, todos os países árabes, muçulmanos, não importa, que tão contra
os homossexuais. O que a gente não pode fazer é desviar o debate com esse argumento!
[Gabriel, ênfases dele]

Cunhado em 1985 em uma campanha que identificava as empresas que lucravam


com mulheres com câncer de mama enquanto diziam que as apoiava, Sarah Shulman
(2011), afirma que em 2010 o conceito passou a ser extensivamente usado por ativistas
queer anti-Ocupação, ao lado de outras categorias como greenwashing e whitewashing.
Traçando um histórico do selo “Brand Israel”, campanha iniciada em 2005 e financiada
pelo governo de Israel em cerca de 90 milhões de dólares apenas no ano de 2010
(SHULMAN, 2011) com o intuito de promover a cidade de Tel Aviv como um “destino
de férias internacional da comunidade gay”, fomentando representações artísticas de
casais jovens homossexuais e patrocinando filmes israelenses com temática gay e lésbica
para concorrerem a festivais de cinema internacionais, a autora resume o fenômeno do
pinkwashing como “o uso cínico das duramente conquistadas vitórias das pessoas queer
pelo governo de Israel, numa tentativa de vender-se [re-brand] como progressista
enquanto continua a violar a lei internacional e os direitos humanos dos palestinos”.
Também no site da campanha Pinkwatchers, uma iniciativa das organizações PQBDS
[Palestinians Queers for BDS] e alQaws - for Sexual & Gender Diversity in Palestinian
Society, se lê:

Pinkwashing é o uso cínico dos direitos dos gays a fim de distrair e normalizar a
realidade de colonialismo [settler-colonial] e apartheid que o Estado de Israel
estabeleceu no território. [...] A lógica do pinkwashing reforça o isolamento das
identidades queer de outras e esconde desigualdades estruturais que fazem certos corpos
e identidades (judeus, israelenses) “aceitáveis” e outros (palestinos, árabes) não. [...]
Israel está usando a relativa liberdade concedida a (israelenses judeus) gays como uma
ferramenta de relações públicas.76

Teles se defende da acusação de estar fazendo “pinkwashing” dizendo que o


próprio uso da categoria é uma ação “não só antissemita”, pela “ideia de que os judeus
são incapazes de fazer uma coisa boa sem que por trás tenha um objetivo ruim”, como
“homofóbica”, por fazer entender que “pelo fato de eu ser gay [...] eu sou incapaz de
pensar sobre qualquer assunto [...] que não seja APENAS a partir da minha orientação

76
Ver site da campanha em <http://www.pinkwatchingisrael.com/> (tradução minha).

155
sexual. O que você está me dizendo é praticamente que eu sou um estúpido”. E assim,
mais uma vez, Teles se constrói como vítima diante da plateia, agora a partir da
criminalização da própria categoria que dá nome a um tipo específico de normalização da
situação do conflito/ocupação, formulada por suas próprias vítimas. “Você é solidário
com a Palestina ou com os queers... na Palestina?”77, perguntaria Haneen Maikey, diretora
da ONG alQaws.

Numa crítica queer ao discurso de pinkwashing, Saffo Papantonopoulou, em seu


artigo “‘Even a freak like you would be safe in Tel Aviv’: transgender subjects, wounded
attachments and the Zionist Economy of Gratitude” (2014), se pergunta em que momento
a segurança [safety] de uma pessoa transgênero se tornaria um presente [benevolent gift],
dado pelo Ocidente ou por Israel, na economia da gratidão sionista, que, sob o rótulo de
uma “Tel Aviv gay/LGBT friendly”, transformaria capital material em capital
moral/afetivo. A essa pergunta, ela responde: a partir do momento em que o corpo
transgênero é um corpo em constante dívida ao Ocidente por permitir-lhe existir. Diz
Saffo: “Sob a economia sionista da gratidão, a pessoa transgênero está perpetualmente
em dívida [indebted] com o capitalismo e com o Ocidente por autorizá-la a existir”.
(PAPANTONOPOULOU, 2014, p.281, tradução minha). Nessa economia, acionada por
Teles, o incitamento a tal vulnerabilidade (neste caso, impresso na fala: “a gente não
poderia estar em Gaza, você sabe disso”) funcionaria, para a autora, como uma lembrança
que “diz aos israelenses ‘lembrem-se que vocês são vulneráveis’, enquanto diz aos
palestinos ‘lembrems-se que vocês são menos que humanos’” (ibidem, tradução minha).

Segundo Papantonopoulou (2014), o pinkwashing, assim como aquilo que ela


chama de “dialética Sabra 78 -Holocausto”, se referindo à virilidade do israelense
construída a partir da vulnerabilidade do judeu perseguido, seriam casos emblemáticos
de uma política do “apego pela ferida” [“wounded attachment”], conceito formulado por
Wendy Brown, no qual os traumas/vulnerabilidades estariam adequadamente alinhados à
serviço do Estado e do capital. Neste caso, a vulnerabilidade da pessoa queer seria
cooptada sob a marca/brand “gay friendly”, firmando um ‘apego’/attach àquilo mesmo

77
Questão que Maikey coloca durante sua fala em conferência entitulada “Homonacionalism and
pinkwashing”, realizada em abril de 2013 em Nova York, disponível em <http://bit.ly/2CnXtIM>.
78
Sabra, palavra usada para designar o judeu nascido em Israel, geralmente associada à imagem de uma
pessoa dura, forte e aparentemente fria, porque construída numa paisagem ‘hostil’ é, lembra Nur Masalha
(2012a, p.23), um termo “hebraicizado’ da palavra árabe sabar, que dá nome às peras espinhosas que
cresciam nas vilas palestinas, destruídas em 1948.

156
que a subordina e a torna vulnerável. De sionistas vulneráveis à LGBTQ vulneráveis, a
mensagem seria: “podemos consumir e sermos livres em Tel Aviv/Israel/Ocidente”, sem
que tal liberdade se relacione com qualquer projeto de luta anticolonial ou anti-
imperialista. Diz ela:

A economia sionista da gratidão, como parte de uma indústria de propaganda


multibilionária, é uma economia em sentido literal. O pinkwashing implanta no
sionismo tropos pré-existentes da vitimização judaica, numa tentativa de fazer o sujeito
transgênero assumir uma dívida de gratidão para com o neoliberalismo. Tal narrativa
estabelece vulnerabilidade como capital econômico. (PAPANTONOPOULOU, 2014,
p.290, tradução minha)

Nessa perspectiva, atados pela ferida que os constitui como sujeitos, seria o
“legado emocional da homofobia” (SHULMAN, 2011) o que tornaria lésbicas, gays,
bissexuais e transgêneros suscetíveis aos discursos de pinkwashing, e o que os faria julgar
o quão ‘avançado’ é um país levando em conta, prioritariamente, o tratamento que ele
despende à homossexualidade – ou a certos homossexuais. Talvez essa seja uma chave
possível para entender o desprezo que demonstrou Jean Wyllys, deputado federal pelo
Rio de Janeiro e ativista LGBT, pela categoria de “pinkwashing”, da qual foi acusado, em
seu discurso durante a viagem de cinco dias que fez à Israel/Palestina, em janeiro de 2016,
narrada em crônicas escritas durante sua estadia lá, postadas em sua página do Facebook
e, em seguida, reunidas e publicadas em um artigo na revista do Núcleo de Estudos
Judaicos da UFRJ:

“lavagem rosa” — que conceito horrível! Os direitos conquistados pelos LGBTs


israelenses são uma luz numa região dominada pelo fundamentalismo, o totalitarismo,
a misoginia e a homofobia. Eu parabenizo esse povo por seus avanços. (WYLLYS, 215,
p. 47)

Também o ‘apego pela ferida’ nos dá elementos para entender a escolha por
palestrar, durante sua participação no IV International Symposium on Brazil: Brazil and
Israel: Social and Cultural Challenges no Departamento de Estudos Latino-Americanos
da Universidade Hebraica de Jerusalém79, sobre as

79
Segundo site da Universidade, este Simpósio é organizado pelo Instituto Truman de Pesquisa para o
Avanço da Paz da Universidade Hebraica de Jerusalém e, na edição para a qual o deputado fora convidado,
acolheu um painel intitulado “Boycotts, Prejudice and Violence: Confronting New Forms of Racism in
Brazil”, apoiado pela Vidal Sasson International Center for the Study of Antisemitism da Universidade
Hebraica de Jerusalém, e uma apresentação dos resultados de um encontro realizado em São Paulo e Rio
de Janeiro no ano anterior, 2015, intitulado “Encontros e Diálogos entre israelenses e palestinos: Dilemas
e Perspectivas sobre o caminho para a paz”, apoiado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e
pela Comissão da Anistia Brasileira do Ministério da Justiça do Brasil através da figura de Paulo Abrão,
também convidado à viagem pelas mesmas instituições/pessoas para a versão anterior do Simpósio
Internacional, em 2014. Para este encontro no Brasil, além de figuras políticas do cenário político
israelense, foram chamados acadêmicos palestinos cidadãos de Israel, membros do Al Fatah e do MERETZ

157
relações entre a homofobia e o antissemitismo, arraigados na nossa cultura e na nossa
língua. [Na Universidade,] expliquei que eu, como gay, sempre senti empatia pela dor
do povo judeu, que enfrenta, como nós, homossexuais, um ódio antiquíssimo e os
preconceitos e incompreensões da direita e da esquerda. [...] Falei da tragédia do
terrorismo e do fundamentalismo e de sua expressão no Brasil. (WYLLYS, 2016, p.45)

Um elemento comum presente nas falas de Jean Wyllys e Teles nos remete à
viagem como um plano que inscreve o “distante” no espaço, o Outro, para onde se viaja,
numa distância temporal, como um ‘atraso’,um tempo da alteridade ao qual é atribuído
certo valor moral. Nesse sentido, o deslocamento da viagem até “lá” permite o conforto
do retorno a si mesmo, ao aqui, e funciona reforçando a crença na superioridade moral do
‘lugar’ de partida80.

Tanto a gramática dos “ainda” não prontos palestinos de Teles no evento, como
o “nós, judeus e homossexuais” e o ‘eles’ “fundamentalistas” e “terroristas” de Jean
Wyllys, como também as operações da arqueologia israelense, nos lembram que o Tempo
é de fato uma dimensão constitutiva da realidade social (FABIAN, 2013a). Como “Gaza”
e “Hamas”, nesta menção é também a única vez que “refugiados palestinos” aparecem e
são produzidos na fala de Teles: como LGBTs fugindo do Hamas e se refugiando em
Israel. Aqui, há um corpo de conhecimento sendo validado/invalidado pela dimensão
valorativa do tempo no qual se insere, ou seja, a (não) coetaneidade81 a ele aplicada: os
palestinos “salvos” por Israel, os LGBTs, aparecem como coetâneos a seus salvadores. A
diferenciação fundamental entre o salvador e o salvo, no entanto, se mantém: caso
contrário seria impossível salvá-los – afinal, lembra Fabian (op. cit.), transpondo a lei da
física para política, dois corpos não podem habitar o mesmo espaço:

quando, no curso da expansão colonial, um corpo político ocidental passou a ocupar,


literalmente, o espaço de um corpo autóctone, diversas alternativas foram concebidas
para lidar com essa violação da regra. A mais simples delas [...] era, naturalmente,
deslocar-se ou remover o outro corpo. Outra alternativa é fingir que o espaço está sendo
dividido e distribuído entre corpos distintos. [...] Mais frequentementem a estratégia
preferida tem sido simplesmente manipular a outra variável – o Tempo. Com o auxílio
de diversos instrumentos de sequencimaneto e distanciamente, atribui-se às populações
conquistadas um Tempo diferente. (FABIAN, 2013a, p.65/66)

e acadêmicos brasileiros e norteamericanos brasilianistas, alguns dos quais compõem uma rede importante
de intelectuais antiboicote.
80
Há, no entanto, deslocamentos que escapam à pedagogia que lhes é proposta e confundem o tempo dos
de “lá” e dos “daqui”. A elas retornarei no próximo item do capítulo.
81
Uso aqui coetaneidade no sentido proposto por Fabian (2013a) em sua crítica à Antropologia, como
‘compartilhamento do tempo’ e ‘contemporaneidade’ – condição negada pelo antropólogo ao produzir a
distância em relação a seus objetos de estudo “visíveis” pela tradição ocidental do conhecimento. Para o
autor, a coetaneidade entre as pessoas, principalmente entre o antropólogo e as culturas estudadas, não está
dada e, como todo Tempo/relação temporal, deve ser produzida para que aconteça a comunicação.

158
Fabian (2013a) argumenta que a passagem do Tempo da Salvação para o Tempo
espacializado-secularizado, para o qual a viagem tem uma importância relevante, a ser
melhor descrita adiante, é marcada pela mudança fundamental entre um tempo/espaço
inclusivo, no qual o pagão poderia ser salvo, e um Tempo exclusivo e expansionista, no
qual o selvagem “ainda não” estaria pronto para a civilização. Neste último,
“determinadas sociedades de todos os tempos e lugares podem ser esboçadas em termos
de relativa distância do presente” (op. cit., p. 67) – e do lugar de onde parece falar Teles.
A diferença entre ele e “os palestinos” se transforma em distância, seja temporal, espacial
ou moralmente. É essa a mesma distância entre o ocidente (west) e o resto (rest) que
Fabian (op. cit.) diz ser o pressuposto sobre o qual todas as teorias clássicas da
antropologia foram criadas. Talvez seja também essa mesma distância no Tempo que
separa Teles e “os palestinos” a justificativa para a “solução de dois estados”, que,
consensuada entre os interlocutores que se definem como “sionistas de esquerda”,
resolveria o problema da não coetaneidade com (a crença n)uma fronteira: eles ‘lá’, nós
‘aqui’.

Ausentes das narrativas, da língua, do mapa, do censo e do museu, aqueles que


não estão nem ‘lá’ nem ‘aqui’, são, no entanto, aqueles de cuja viagem, movida por
expulsão e fuga, não pode haver retorno – os fantasmagóricos “palestinos de 1948”, sem
rosto e anteriores mesmo à própria linguagem (MAKDISI, 2010b). Nessa ficção
“político-biográfica” que, num trabalho coletivo e contínuo de apagamento, vai tecendo
a urdidura de todo Estado moderno (ANDERSON, 1993), são os refugiados nascidos pela
própria criação do ‘estado para os refugiados’ – para os sempre viajantes judeus expulsos
e por isso mesmo ansiosos por se “reconectarem à terra” através do trabalho no kibutz –,
as figuras que somem, mesmo às narrativas “à esquerda” do Estado, como aquela ausente
na pintura do muro do movimento juvenil. Fora do campo de visão possível, estão as
marcas dessas figuras não só nas narrativas da crença, como no território e naquilo que o
constroi – os mapas. É dessa dimensão do ‘ver’ para ‘fazer sumir’, do viajar para retornar
a si mesmo, que tratarei nos próximos itens deste capítulo.

159
4.1 “Olhos viajantes”:
“Palestina” para ensinar, para aprender, para enxergar, para crer

fui [à Ramallah] pra tentar construir uma empatia. Acho que os dois lados estão com
uma desinformação muito grande. [...] Olha... Foi punk, porque eu sou uma pessoa que
chega e fala quem eu sou, né: “Ah, eu sou nanã... Sionista”. Isso gerou uma reação
fortíssima, é quase um palavrão dizer que é sionista... Aí eu falei que era sionista: “como
assim?!” , teve uma [palestina] que deu um chilique assim: “então não pode ficar na
minha terra!”, e tinha uma outra [...] que começou a conversar comigo, que não
entendia, perguntando o que eu faria se eu tivesse o poder hoje, e a gente foi
conversando... Fui super sincera. Olha só a importância disso: passei o dia com eles!
[...] Eles não têm a menor noção do que é um judeu. Um sionista. Entendeu? [...] Eles
associam o judeu sionista ao israelense [...]. Aí eu falei para elas, tinha que falar né, ela
perguntou! Eu vou chegar e vou falar que eu sou uma pessoa fofinha que gosta deles e
tal?. E eu sou sionista MESMO né... [...] Aí ele [, um amigo palestino que conheço do
Brasil e cuja irmã estava comigo lá em Ramallah, mandou uma mensagem] pra irmã
assim: “ela é gente boa, só tem um defeito: que é ser sionista de esquerda”. Imagina se
eu não tivesse falado que eu era? Não saía viva de Ramallah!
[...]
O fato delas [mulheres palestinas de Ramallah] terem vindo conversar comigo... eu já
achei que isso foi um canal. Eu abri um portal no céu, abri o portal para elas! [...] aí a
gente foi falando [eu e os palestinos de Ramallah], foi desconstruindo estereótipos, e
eles falavam: “ah não, porque a moeda de dez centavos de shekel...ela é um candelabro
e em baixo, onde ele tá desenhado, é o mapa da Grande Israel...eles [os sionistas] já
fizeram até isso!”. Eu falei: “gente, da onde vocês tiraram isso?! Aquilo é um
candelabro que ficava no grande templo! Que os romanos destruíram e levaram.... e eles
precisavam de um símbolo nacional da época que a gente tinha um reino, então eles
usaram isso”. E [eles diziam]: “Ah, mas a bandeira de Israel tem duas listras azuis, uma
que é as águas embaixo da terra, outra que é até o céu… eles querem tudo mesmo!” Eu
falei: “não tem nada a ver!” (eu já ouvi uma interpretação de que eram os limites da
Grande Israel: das margens do Mediterrâneo às margens do Rio Jordão...) Não! São os
dois...são as duas listras do talit82, que é pra lembrar que todo o judeu deve cumprir as
mitzvót83 e tal...[...] é o azul do período bíblico e a estrela de Davi. [...]. E os caras não
sabiam, gente…! (é, mas como eles vão saber né?, eles não são judeus... nem eu sabia!)
não, mas... olha essa foto da gente lá, que bonito. [...] (e o que que você sentiu quando
você estava com elas?) olha aqui...eu achei muito difícil, para mim foi dificílimo.
Primeiro pela reação delas quando eu falei que era sionista... e segundo também porque
ela se impôs né: ela colocou o lenço palestino e depois foi me dar a bandeira. [...] (o que
você foi fazer lá então se foi tão difícil?) Não, fui conversar com eles... Eu fui fazer o
que eu fiz, para eles verem uma sionista.
– interlocutora sobre viagem que fez à Ramallah.

é a loucura de um homem que faz com que ele se perca; cabe à sabedoria do homem
salvá-lo. Os povos são ignorantes – que eles possam se instruir; seus governantes são
pervertidos – deixa-os corrigir e governar a si mesmos. Porque esse é o ditame da
natureza: uma vez que os males da sociedade vêm da cupidez e ignorância, a
humanidade não deixará de ser atormentada até que se torne esclarecida e sábia, até que

82
Xale usado pelos homens judeus durante as orações, cujas características (tecido, cor, etc.) devem
respeitar àquelas descritas na Torá.
83
Plural de mitzvá, são os 613 mandamentos dados por deus a serem cumpridos pelas pessoas judias. As
não judias devem cumprir apenas 7 delas.

160
pratique a arte da justiça, com base no conhecimento das suas relações e das leis de sua
organização.
– Volney, 1830 (apud FABIAN, 2013a, p.47)

Lutas a respeito do que terá vigência como explicações racionais do mundo são lutas a
respeito de como ver.
– Donna Haraway, Saberes localizados (1995)

Como explicitado desde a introdução dessa dissertação, é importante lembrar aqui


que também eu, autora deste trabalho, e o texto que produzo, são efeitos de uma viagem
à Israel/Palestina. Estive na Cisjordânia ocupada entre os meses de novembro de 2012 a
fevereiro de 2013 trabalhando como “observadora de direitos humanos” a serviço de um
Programa financiado pelo Conselho Mundial de Igrejas que ‘leva’ internacionais, em
tempo contínuo – contado de três em três meses – , a “testemunharem” a “vida palestina
sob a Ocupação”. Esse “testemunho” se dava como uma prática de “presença protetiva”,
que observa e não intervém, a não ser fazendo “advocacy” pelo “fim da Ocupação” e por
uma solução de “paz e justiça” em Israel e Palestina84. Se todas as viagens são parte da
pedagogia da construção do Estado de Israel e ensinam a ver, nem todas fazem com que,
após o retorno, o deslocamento se finde, de modo que possamos retornar a nós mesmos e
a nossa própria moral em relação àqueles Outros, distantes não coetâneos, como discuti
anteriormente (FABIAN, 2013a). Este foi o caso da viagem que rendeu-me, entre outros
‘castigos’, uma demissão da “comunidade” de onde eu vinha. Meu ‘retorno mal
sucedido’, deslocado, guarda algo distinto daqueles de Jean Wyllys e Gregório Duviver
e compõe outros textos e imagens de “Israel/Palestina”. Nesse sentido, ressalto que se as
viagens – assim como o mapa, o censo, o museu e a escola (ANDERSON, 1993) – são
dispositivos pedagógicos fundamentais à construção dos Estados e à materialização da
crença, elas também guardam surpresas e podem não reconfortar85.

Considerando essa tensão entre o fazer ver e o fazer sumir das viagens, neste item
optei por interromper o corpo do texto com alguns materiais que, introduzidos em boxes
gráficos, funcionam como contraponto ao que está sendo enquadrado, como uma

84
Ainda que o Programa do Conselho Mundial de Igrejas se increva numa política da ‘razão humanitária’,
dentro dos limites dessa dissertação não será possível tratar deste tema, discutido criticamente por autores
como Didier Fassin e Lori Allen.
85
Também para alguns dos interlocutores secundários que conversei, a viagem gerou um deslocamento que
os impediu de seguir ‘acreditando’ no sionismo como possibilidade de ‘libertação’. Ver outros efeitos da
viagem à Israel/Palestina nos relatos dos interlocutores 17, 18 e 23, que constam no quadro (apêndice II).

161
tentativa de jogar alguma luz sobre a sombra das narrativas (inclusive as minhas, como
‘observadora de direitos humanos na Palestina’) que ‘documentam’ ao mesmo tempo que
‘monumentam’ (LEGOF, 2003) “Israel” e “Palestina”.

Na escala do campo que tracei no Rio de Janeiro e São Paulo, viagens à


“Palestina” (idas e vindas) são movimentos fundamentais à pergunta/problema do
“sionismo de esquerda”. Ingrediente especial da magia, a viagem permite que, enquanto
se caminha, se mostra e se fala sobre “Israel”, “Palestina” e “com palestinos”, se produza
a realidade mesma de um sionismo de esquerda possível também do/no Brasil. Nesse
sentido, imagens de “Israel” e, “do outro lado”, “Palestina”, “palestinos” observados, com
quem lá se “dialogou” e/ou se “passou a enxergar”, parecem aqui funcionais tanto à
pergunta sobre si mesmo – é possível um sionismo de/na esquerda? – quanto à construção
da solidariedade ao “sionismo periférico” na “esquerda”. Tomo emprestado os “olhos”
de Haraway, no título deste item, para chamar atenção a essas imagens de “Israel” e
“Palestina” produzidas através dos olhos dos viajantes.

A partir do século XVIII, diz Fabian em seu Time and the Other (2013a), a viagem
se torna fonte de conhecimento “filosófico” e secular de todo homem. Porque a negação
da coetaneidade entre observado e observador é parte da tradição epistemológica do
Ocidente, demonstra Fabian, o movimento de ‘conhecer’ o ‘desconhecido’ torna o
deslocar-se no espaço um deslocar-se no tempo: é viajando que se pode ‘completar’ a
história humana – e a si mesmo. Veículo para ‘autorrealização’ do homem, “a viagem
secular”, diz Fabian, “se dava dos centros de conhecimento e poder para lugares onde o
homem nada encontraria além de si mesmo” (op. cit., p.44, grifos do autor). Transformada
em “ciência” através do visualismo (“a capacidade de ‘visualizar’ uma cultura ou
sociedade torna-se quase sinônimo de entendê-la” (FABIAN, 2013b, p.130)), os objetos
“conhecidos” porque “vistos”, tangíveis, transformam o observador em conhecedor.
Nesse sentido, ‘ir’ e ‘ver’ a “Palestina” faz do viajante, não judeu, um aprendiz e, do
judeu, um conhecedor ou mesmo um mágico que faz conhecer.

No momento em que escrevo esta seção sobre as imagens produzidas pelos “olhos viajantes” é
publicada pelo Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel uma lista das 20 organizações cujos
membros ativos estão a partir de agora proibidos de entrarem em Israel por apoiarem o chamado do
BDS. Alguns dos ‘olhos’ impedidos do, neste caso, privilégio de ‘ir’, ‘ver’ e ‘transitar’ em
Israel/Palestina, são os da organização norteamericana Jewish Voice for Peace, da organização quaker
American Friends Service Committee, premiada em 1947 por salvar centenas de famílias judias do
regime nazista (<http://bit.ly/2FsdjTT>), e do BDS National Comitee, do qual Gabriel faz parte.

162
Ao longo do campo, percebi que eram várias as viagens possíveis à
Israel/Palestina. Uma delas é aquela que constroi Israel como um lugar de ‘oportunidades
abundantes’ das quais todo judeu/judia pode usufruir. Se no discurso institucional a
imagem acionada de Israel é, por vezes, a imagem explícita da família86, na fala dos
interlocutores “Israel” é imaginada como um lugar “conveniente” e/ou o lugar das
“oportunidades” que não seriam oferecidas da mesma forma no Brasil. Diz uma
interlocutora, jovem estudante de pedagogia:

eu pensei em fazer aliá duas vezes...uma foi durante o ensino médio, que eu tava assim
meio sem saber o que fazer, meio perdida [...] E a outra foi depois que eu [...] já sabia
que eu queria estudar educação [...] eu sabia que ser professora no contexto brasileiro
era muito difícil né... e ao mesmo tempo, conhecia em Israel propostas maravilhosas
[...] lá tem uma variedade muito grande nessa área, aí eu falei “pô, vou pra Israel porque
lá vou ter uma oportunidade, assim, profissional muito boa.

Outro jovem interlocutor diz sobre a “conveniência” que uma viagem à Israel lhe
proporciona:

Cara, eu sempre tive uma vontade muito grande de experimentar, viver uma parte boa
da vida, fora [do Brasil]. Por crescimento. Mas nada a ver com judaísmo, sionismo. Eu
poderia ir pra qualquer lugar do mundo, mas Israel me dá algumas... muitos benefícios
que os outros não dão, então lá é bem conveniente” [11]

Outro ainda, mais velho do que a média dos interlocutores, se refere à Israel como
um lugar para onde se vai quando não se tem mais para onde ir:

O Safra veio da Síria. De Aleppo. Porque ele não foi pra Israel? Quem foi pra Israel?
Quem tava com uma mão na frente e outra atrás! Até hoje é assim. Você vê o pessoal
mais velho que vai pra Israel, por que? Porque tá fodido aqui. Você ganha casa, o básico,
emprego... gente da minha idade inclusive que vai. Que foi né. De repente: “Fulano foi
viver em Israel” (parece quase uma segunda casa, né, a casa da mãe, um retorno pra
casa da mãe, do pai, não sei) Bem isso! [2].

Tendo ido à Israel fazer um doutorado na Universidade Hebraica de Jerusalém,


um outro interlocutor conta que o trabalho que conseguira num Museu em Jerusalém lhe
deu a oportunidade de ‘aprender a palestrar’ e proporcionou a possibilidade de ser

86
O site da Agência Judaica, responsável por grande parte dos programas que levam jovens judeus à Israel,
descreve ser um dos objetivos da instituição o de “ligar a família judaica mundial”. <http://bit.ly/2Diw3ba>
O texto segue dizendo que “a Agência Judaica continua a ser a primeira do mundo judaico a
responder, preparada para lidar com situações de emergência em Israel, e para salvar judeus em situações
de risco nos países onde se encontram”. Além da imagem de Israel como uma ‘família protetora’ com a
qual se pode contar (“O aumento de crime, não de sionismo, estimula novo êxodo de judeus brasileiros”, é
a manchete de uma matéria do Haaretz (MALTZ, 2015)), é possível ler na missão da Agência Judaica
também a dimensão da preocupação afetiva na contínua produção do Estado, cuja importância é descrita
por Ann Stoller (2007) ao tratar dos esforços afetivos dos Estados coloniais e suas técnicas de controle
através da distribuição de sentimentos e desejos. Outro desses ‘cuidados afetivos’ produzidos por Israel é
a proibição do casamento entre judeus e não judeus, ou entre palestinos de Israel e da Cisjordânia,
contrastada com o estímulo dos encontros entre jovens judeus de várias partes do mundo em mais de 200
programas de viagem oferecidos pela Agência.

163
contratado por uma instituição judaica aqui no Brasil, permitindo-lhe voltar ao país com
estabilidade econômica e assim seguir adiante sua carreira acadêmica.

Eu trabalhava no Museu On The Seam, Museu No Limite, que falava sobre a questão
palestina-israelense, conflito... eu dirigia o projeto de coexistência lá, eu e uma parceira
palestina. (uma palestina israelense?) Mais ou menos né, depende do que você chama
de israelense... (...ela tinha cidadania?) não, ela era de Jerusalém Oriental, tinha aquela
carteira de residente [silêncio]. E aí veio um grupo de brasileiros, fiz palestras, eu me
especializei em fazer palestras pra soldados do exército sobre coexistência e... foi foda...
Foi uma experiência assim que me formou como palestrante. Eu aprendi a fazer palestra
lá. Eram uns moleques de 18 anos com barba na mão que paravam tudo que tinham pra
fazer pra assistir um babaca falando sobre coexistência, e eu tive que desenvolver
estratégias pra falar com eles de maneira que fosse muito interessante. [...]Aí eu acionei
aquilo que tava mais assentado no meu cérebro, que era o marxismo. Quando eu não
penso, eu sou marxista. [...] E aí esses caras iam lá e adoravam. [risos dele] Pra você
ver como o marxismo é boçal. [...] Aí veio uma menina....uma mulher da [instituição
judaica no Brasil] e falou: “tenho te acompanhado...”. E realmente, era uma mulher loira
que ficava o tempo todo escutando o que eu tava falando, não sabia quem era, nem que
era brasileira: “Eu quero muito que você vá pro Brasil pra aumentar [a instituição], que
é uma referência, tal” [...] E aí deu super certo.

Não posso seguir o texto sem antes dizer que a propriedade ocupada pelo Museu referido pelo
interlocutor, no qual trabalhou e a partir do qual conseguiu uma ‘promoção’ em outras insituições
judaicas, agora no Brasil, e onde começou a “ter contato com o movimento negro, movimento
gay, movimento não-sei-o-quê, de esquerda, né” (ênfases dele), é propriedade da família
palestina Baramki. A casa foi desenhada pelo arquiteto Andoni Baramki, quem, recorrendo à
justiça israelense diversas vezes para reaver sua propriedade, faleceu em 1972 sem ter tido
permissão para entrar em sua casa e ele mesmo considerado “ausente” [absentee], e sua
propriedade “do Estado” [state land]. Forçada a sair de Jerusalém durante a guerra de
1948/Nakba, a família Baramki viveu como refugiada em Gaza e depois em Birzeit
(Cisjordânia), enquanto sua casa, colada à oeste da linha do armistício de Jerusalém que divide/ia
a cidade entre “ocidente” e “oriente”, funcionava como um checkpoint militar israelense. Em
1983, a casa/checkpoint é transformada em “Museu para o Entendimento” [Museum for
Understanding] – a essa altura, os familiares haviam conseguido um registro como “residentes”
de Jerusalém oriental, já então ocupada por Israel – até ser transformada em “Museu na
Fronteira” [Museum on The Seam], onde o interlocutor palestrava aos soldados.

Para a palestina israelense Awatef Sheikh (2011), o Museu na Fronteira, “comprometido a


examinar a realidade social de nosso conflito regional, a avançar o diálogo em face da discórdia
e a encorajar a responsabilidade social baseada naquilo que todos temos de comum e não naquilo
que nos mantém separados”, segundo seu site oficial (http://www.mots.org.il) é apenas um dos
exemplos em que “‘arte’, ‘educação’ e ‘cultura’ andam de mãos dadas com a missão sionista de
eliminar a existência e a história palestinas na Palestina” (SHEIKH, 2011, p.17).

164
Com exibições como “Equal and less Equal”, “Bare Life”, “The Right to Protest” e
“Homelesshome”, o Museu “sócio-político de arte contemporânea” tem o objetivo de
“levantar tópicos controversos para discussão pública”. Detalhando esta última exibição,
“Homelesshome”, de 2010, Sheikh aponta para uma das únicas presenças palestinas do
Museu: uma foto legendada como “Balata, Israel, 2002”, se referindo a um espaço
“extremely overcrowded”. Trata-se do campo de refugiados palestinos Balata, na região de
Nablus, Cisjordânia ocupada. Denunciando o palestino-negativo representado
artisticamente, a autora diz: “To the Museum on the Seam, its Palestinian "neighbors" exist
– but only as an image. They exist, but outside themselves, outside their own bodies, outside
their property, heritage, identity and nation. They are fluid – just like art. Intangible, they
are more of a concept to contemplate, and to allow one to feel good while doing so. They
are there but absent--just like Andoni Baramki. Negatives.” (op. cit., p.17)

Se a viagem à Israel pode ser uma viagem de ‘oportunidades’ que só o privilégio


da judeidade pode conceder, ela também já foi uma viagem de “esforço”, como narra pela
interlocutora que, em sua juventude, foi do movimento juvenil Ichud Habonim, antes dele
se unir ao movimento Dror, durante o processo de ‘fundação’ do Estado de Israel.

O [Movimento Juvenil] Ichud Habonim na época [da fundação de Israel] era o


movimento chalutziano-kibutziano [por que chalutziano?] chalutz são os judeus que
foram secar pântano em Israel, que era um território agreste mesmo né. Difícil... e então
tirar pedra, e tal né...então os chalutzim...você tem que entender a figura do chalutz,
porque ele é a base dos movimentos juvenis judaicos do sionismo de esquerda que
foram pra lá [...]. Então o Ichud era um movimento kibutziano-chalutziano, ou seja, que
era não só de fazer o kibutz... O Dror por exemplo era só kibutziano, então não tinha a
coisa de você ir conquistar, dominar a terra, território e tal. [isso era chalutziano?] Isso
era chatulziano. Chalutz de “esforço”. [4]

Menos considerada uma viagem do que um movimento de enraizamento, como


explica o interlocutor, a aliá/subida é a principal das viagens dos jovens judeus à Israel,
fazendo daquele que viveu no país um líder preparado para trabalhar pelo sionismo em
outras comunidades judaicas do mundo, como é o caso deste líder, e de tantos outros
interlocutores, argentino-israelense e atualmente trabalhando num movimento juvenil no
Rio de Janeiro.

[eu e meus amios que fizeram aliá comigo] somos uma espécie de garín, o que
antigamente se chamava garín aliá. Garín é semente. Garín é um grupo de pessoas que
vão e começam um caminho em Israel juntos. Saem 30 caras. 10 do Rio, 10 de São
Paulo, 5 de cá, 5 de lá. E vão levantar um kibutz na puta que pariu, sei lá onde.

Principal responsável pelas viagens e trânsitos entre a diáspora judaica e Israel, e


criada em 1929 para apoiar a construção do Estado de Israel levando à Palestina apoio

165
financeiro e político – e também judeus ‘resgatados’ da diáspora e outras matérias-primas
de Estado87 -, o principal objetivo hoje da Agência Judaica, segundo seu próprio site, é
“conectar judeus com Israel, uns com os outros, com a sua herança cultural e com o nosso
futuro coletivo”, “lutando contra a assimilação e contra o BDS”, acrescenta o presidente
da Agência em visita ao Rio de Janeiro. Para isso, além de fomentar a aliá, a instituição
oferece mais de 200 programas de viagem (entre “estágio, voluntariado, estudos
acadêmicos e estudos judaicos”) com diferentes durações, levando, a cada ano, mais de
10.000 jovens judeus de 42 países à Israel88.

Entrando em contato com os números dos investimentos injetados nestes


programas de viagem à Israel, financiados pela Agência Judaica junto aos Ministérios, e
com algumas falas do campo – como por exemplo o pedido do presidente da Agência ao
jovens brasileiros por mais aliót e pela presevação da identidade judaica (“sua identidade
judaica é a única fonte [source] para seu povo, para sua história e para seu país. E a
comunidade [Judaica] não tem future sem um Estado” – tradução minha) –, percebi89 que
o vetor do tráfego dos elementos mantenedores da crença no sionismo também
funcionaria de maneira inversa. Se no período pré-Estado o fluxo de elementos da crença
(dinheiro, discursos, autores, imigrantes, armas) vinha da diáspora para a construção de
Israel, agora vai de Israel para a diáspora, que passa então a receber discursos da crença
na forma de shlichim, visitas de professores e deputados parlamentares da “esquerda
sionista”, versões brasileiras de partidos israelenses (como “MERETZ-Brasil”), objetos
“pedagógicos” tais como mapas, cartilhas, adesivos etc., demonstrando assim o caráter
‘inacabado’ do Estado consolidado, preocupado com a manutenção da ligação (e do afeto)
com sua “família judaica mundial”. Adianto que, parece-me, o trabalho de manutenção

87
Embora não trate aqui das transformações territoriais em Israel/Palestina produzidas pelas “viagens”,
limitando-me aos olhos dos viajantes e das imagens de “Israel e “Palestina” por eles produzidas e usadas
com fins pedagógicos, é relevante dizer que, além de dinheiro, pessoas, línguas, objetos etc., foram também
levadas à Palestina árvores, numa política de “fazer o deserto florescer”, fomentada até hoje pelo Fundo
Nacional Judaico/KKL. Se materializavam na terra certa imagem de uma Palestina bíblica e ao mesmo
tempo secular-europeia, as árvores também puderam esconder tanto os vestígios das vilas palestinas como
as partes expostas do Muro na paisagem israelense, e, enuanto marcas de ancestralidade no território,
confirmavam o “retorno” judaico à “sua” terra (BURKHART, 2017). Agradeço à Naomi Sara Burkhart
pela elaboração desse argumento.
88
Segundo site oficial da insitituição Masá Israel, vinculado à Agência Judaica e responsável pelos
Programas oferecidos aos judeus <http://bit.ly/2Db8Ab3>. Último acesso em 04 de janeiro de 2018
89
Agradeço à David Reichardt, com quem pude ter mais clareza desse argumento seja através das conversas
ou da leitura de seu projeto de mestrado, infelizmente não concretizado, que planejava uma etnografia dos
movimentos juvenis judaicos de São Paulo. O projeto pode ser acessado em <http://bit.ly/2Czh1sM>.
Último acesso em 05 de janeiro de 2018.

166
da crença do sionismo de esquerda, que faz dos interlocutores não só viajantes como
promotores de viagens à “Israel/Palestina”, é uma das formas possíveis – e autorizadas
pelo Estado e pelo establishment – dessa “conexão” entre os interlocutores e o “sonho
sionista”, e guarda forte caráter ‘educativo’.

Embora tendo aparecido na fala de apenas dois interlocutores, o Taglit-Birthright


é outra viagem do fazer ver e do fazer crer, a qual toda pessoa judia menor de 26 anos
tem direito e cujo objetivo é, segundo site oficial do Programa, “diminuir a crescente
divisão entre Israel e as comunidades judaicas ao redor do mundo, reforçar o sentimento
de solidariedade entre jovens israelenses e judeus da diáspora”90. Num período de 10 dias
em Israel, o projeto busca “promover a idéia de que uma viagem à Israel é uma parte
fundamental da vida judaica fora de Israel para todos os judeus da diáspora.” Uma
interlocutora que participou do programa relata sua experiência da seguinte forma:

(e você saiu da viagem pelo Taglit com que impressão?) Saí apaixonada. Você não vê...
você SÓ vê o lado maravilhoso. E além disso eles levaram a gente pra Sderot [cidade
perto de Gaza]... todos os mísseis anotados... aí faz aquela coisa toda pra você se sentir
super mal, pra você ficar com raiva do cara que jogou míssel ali. E assim: eles só levam
você pra lugares maravilhosos, e aí chega naquela cidade HORROROSA pra você ficar
assim: “coitados dos moradores, olha o que eles passam...” Você vê que o objetivo é
puramente manipulação. É absurdo. [9, ênfases dela]

Um “direito por nascença” do qual 9.200 brasileiros já gozaram, o Taglit-


Birthright é um projeto que atinge um perfil de jovens judeus, em sua maioria, de São
Paulo (53%), Rio de Janeiro (23%) e Porto Alegre (9%), que não estudaram em colégio
judaico (75%) e nunca foram para Israel (73%) 91 . Financiado principalmente por
doadores norteamericanos e membros das comunidades judaicas locais, o programa já
levou ao todo mais de 230.000 jovens para Israel desde 1999 (LIPHSHIZ, 2009) e, apesar
dos altos investimentos92, suas ‘técnicas de visualização’ não têm o objetivo de estimular
a imigração dos jovens, mas o de mostrar Israel e ‘seduzi-los’ de forma que “se
apaixonem” – mesmo que esta sedução seja por vezes, como diz a interlocutora,
demasiado explícita.

90
Em <http://bit.ly/2Gjs8Zi>. Último acesso em 10 de janeiro de 2018.
91
Conforme site do Instituto Samuel Klein <http://institutosamuelklein.org.br/projeto/taglit/>. Último
acesso em 10 de janeiro de 2018.
92
Segundo matéria do Haaretz (SHAMIR; BARKAT, 2007), a Fundação norteamericana Adelson fez,
apenas em 2007, uma das maiores doações para o Taglit-Birthright, no valor de U$25 milhões de dólares,
financiando a viagem de 10.000 jovens.

167
A viagem à Israel mais presente no campo foi, no entanto, o “ano de preparação”,
ou Shnát Hachshará, fase importante da constituição da pessoa judia sionista e da crença
no sionismo de esquerda, e cujo formato fora criado em 1946, antes mesmo do
estabelecimento Estado. Após já terem se tornado madrichim e tendo sido mentores na
educação não formal dos mais novos, os jovens dos movimentos juvenis concluem sua
trajetória com 10 meses de “preparação” em Israel. Numa “viagem que muda muito a sua
vida” [12], cada movimento dá o seu “tempero”, ‘mostrando’ e ‘fazendo ver’ aspectos
distintos de Israel: “no caso, o [movimento juvenil] socialista vai pro kibutz, no caso do
Bnei Akiva vai pra yeshivá, no caso do Beitar vai pro exército, ter uma experiência no
exército” [8]. No caso dos movimentos juvenis de esquerda, aos quais tive mais acesso,
nos 4 primeiros meses se vive num kibutz (“Se vive num ambiente socialista em Israel
num kibutz!” [12]), nos 2 meses seguintes em uma “comuna”, um “kibutz urbano” em que
se “vive uma experência comunista real... dividindo todo o dinheiro que a gente recebia
do programa”, e nos 4 últimos meses, esta fase comum a todos os movimentos juvenis,
“da esquerda à direita”, cerca de 150 pessoas se encontram no Machon LeMadrichim,
uma espécie de “faculdade”, como me explicaram, “para ajuda esses jovens adultos
judeus a responderem eficazmente aos desafios encarados pelo Sionismo”93. Segundo os
interlocutores, eles têm aulas de sionismo, judaísmo, educação e de hasbará94, optativas
e obrigatórias, com professores que são jornalistas, ex-shelichim (“enviados”, como visto
na primeira parte), políticos, pessoas de altos cargos no exército e bogrim (“maduros”,
Os jovens do Bnei Akiva, movimento juvenil religioso, são os únicos a não estudarem
“formados”
no Machondos movimentos),
LeMadrichim, que
indo, fizeramumaliá.
segundo interlocutor que foi do movimento, estudar
judaísmo numa yeshivá em Kiriat Shmoná, “uma yeshivá maravilhosa”. A cidade de Kiriat
Shmoná, ‘mostrada’ ao interlocutor e onde ele estudara religião, fora construída na vila árabe-
palestina de al-Khalisa, na região de Safad, cujos habitantes tentaram em vão um acordo com
as autoridades judaicas durante a Nakba e tiveram que deixar a vila em 1948.

93
Tradução minha de texto do site oficial da Agência Judaica. <http://bit.ly/2D8bFbG>. Último acesso em
05 de janeiro de 2018.
94
Segundo um interlocutor secundário, que, em seu Machon optou por fazer um seminário optativo de
hasbará, seu professor lhe ensinava que “toda crítica à Israel, que se baseia em negar a existência do Estado
de Israel, a não legitimidade do Estado, é antissemitismo. Fato. Se você nega o direito de Israel existir você
é antissemita. Ponto. Por que? Porque se Israel é o direito de autodeterminação dos povos, e você é a favor
da autodeterminação de todos os povos menos a do povo judeu, então você tá sendo antissemita. Essa era
a lógica. E ele falava: “Mas, dentro do discurso, esse antissemitismo se transforma em outras coisas”. Então
qual é a nossa missão enquanto hasbaristas? É mostrar pros palestrantes que eles tão sendo antissemitas. É
deixar claro pra todo mundo que aquilo é antissemita. Então era sempre estratégias de como mostrar... como
arrancar o antissemitismo do cara pra fora. Então tínhamos desde aulas de história, não sei o quê, até aula
de retórica, linguagem corporal, muito louco mesmo.” [18]

168
Seu nome então passou a ser Kiriat Shmoná, “Colina dos 8”, em homenagem aos oito homens
comandados pelo russo Joseph Trumpeldor e mortos pelos árabes nativos em 1920 durante
aquilo que se considera a primeira batalha entre sionistas e árabes, enquanto os territórios da
Palestina, Síria e Líbano eram distribuídos entre Inglaterra e França. Nos anos 1950, as
primeiras populações judias a serem assentadas na cidade de Kiriat Shmoná foram imigrantes
trazidos do Iêmen, Marrocos e Romênia. De 1970 a 2000, ano em que o exército israelense
desocupou o sul do Líbano, a cidade, localizada na fronteira norte de Israel, foi alvo de
diversos mísseis e ações violentas contra os agora israelenses, organizadas pela Frente Popular
pela Libertação da Palestina (FPLP), pela Organização pela Libertação da Palestina (OLP) e
pelo Hezbollah. Hoje, para além das ruínas da vila palestina, não “vistas” pelo interlocutor,
existe o museu histórico da cidade, que está construído sobre o que era a mesquita al-Khalsa.
Assim, a memória de Trumpeldor, heroi nacional que na hora da morte teria dito “não importa:
é bom morrer lutando pela nossa terra”, é eternizada no nome na paisagem da cidade que hoje
abriga a yeshivá onde o interlocutor estudou religião. (KHALIDI, 2006)

Parte do tempo em que passam na “comuna”, os jovens realizam “ativismo social”


com as pessoas (visíveis) consideradas socialmente mais vulneráveis: “africanos” e
“beduínos” foram os que mais ‘apareceram’ no campo. Um jovem interlocutor
secundário, formado no movimento Dror e mais tarde tendo rompido com sua formação
como judeu sionista-socialista e com o sionismo em geral, faz o seguinte relato do que
‘viu’ na Israel do seu Shnát:

Meu trabalho era dar aula de inglês pra uma comunidade beduína que não falava
hebraico. [...] Eles eram muito pobres, assim. Viviam uma situação muito precária,
batiam nas crianças. Pra gente [jovens do movimento juvenil], eles eram meio bárbaros:
“a gente aqui lendo Paulo Freire e Janus Korczak e vocês batendo nas crianças porque
elas não ficam quietas”. Quando o propósito é o oposto né. [...] Aí levaram pra ter uma
experiência beduína real. Fomos na tenda de final de semana do beduíno. Tinha camelo,
deram leite de camelo pra gente. Na época achei irado. Aí começou o ramadã e não
tinha mais como dar aula. Mudaram a gente pra Arad, perto do mar morto. Eram
refugiados sudaneses em trabalhos análogos à escravidão naqueles resorts do mar
morto, e a gente dava atividades pros filhos deles. Chegamos lá: de repente todas as
crianças negras. Que não falavam hebraico. Aí era: “porque eu sou dessa tribo, aquela
é de outra tribo, e eu falo esse idioma e o dela, ela fala outro idioma”. Lembro de um
dia que teve uma moça que desceu na praça onde a gente ficava com as crianças falando
assim: “parem de brincar com essas crianças!, falem pra eles voltarem pra África, não
queremos eles aqui, esses sujos africanos que vieram pra foder com o nosso país...”.
Mas esse tipo de trabalho cabia totalmente dentro da nossa perspectiva de que a gente
era mega sionista. Pra gente a gente tava exercendo o sionismo na sua forma mais pura.
A experiência da comuna ainda mais que no kibutz, porque a crítica sionista de esquerda
do kibutz era que o kibutz ficava no campo. E as questões hoje são urbanas, não adianta

169
ficar no campo. Antes tinha a coisa de ganhar a terra, colonizar, plantar. Hoje a terra já
é nossa, hoje o que precisa é pensar nas cidades, na desigualdade, etc. [18]

Além desse, outros relatos do mesmo interlocutor revelam uma “Israel concreta”
com problemas ainda não resolvidos e que são imaginados como reparáveis através de
um “sionismo de esquerda” – exemplos desses problemas são a “intensa desigualdade
social”, “puteiros de Tel Aviv com filipinas escravizadas”, “russas e empregadas judias
mais caras do que as outras”. A viagem do Shnát parece servir para ‘concretizar’ a Israel
da crença:

Porque o Shnát é a formação intelectual essencial. Você aprende pra caralho. Você vive
a parada. O Dror não faz tanto sentido até você ir pro Shnát. Até você ir pro kibutz o
que que é o kibutz, sabe? Até você ir pra Israel, o que que é Israel? Ali que tudo se torna
concreto. Ali você vê o sionismo de esquerda, entendeu? A gente visitou comunas
verdadeiras. Uma comuna de 80 pessoas do pessoal que se formava no Movimento, ia
pro exército junto, o exército meio que aceita essas kvutzót [grupo de madrichim que
viajam juntos para o Shnát] de movimento juvenil fazerem exército juntas, e depois vão
morar juntos numa casa fazer trabalho social recebendo ajuda do governo. E o foco é
ficar em Israel, não sair. O foco é trabalhar a sociedade israelense. Sociedade israelense.
Sociedade israelense. Sociedade israelense. Para se transformar na luz entre as nações.

Com outros tipos problemas, aqueles “vistos” como parte intrínseca a uma “Israel”
em constante estado de ameaça, deve-se aprender a conviver e “não falar disso”. Um
exemplo deste tipo de visão/participação na “maluquice” aparece no relato daqueles
interlocutores que relembram sua “experiência” no exército. Falando sobre “aquelas duas
semanas no exército”, previstas no programa do Shnát, um interlocutor secundário, hoje
filiado a um partido de esquerda, relata sua visão como um jovem no Shnát:

Foi o momento em que eu atirei com uma M16. Foi assim uma coisa… eu dei um tiro.
O mundo todo mexeu, cara. Aí eu falei assim pra minha amiga: “foda-se essa porra, eu
sou o Rambo!” E só segurei o dedo: tátátátátátátátá [imitando vários tiros]. Eu queria ir
pro mundo da imaginação. Não queria estar ali. Naquela época eu ainda achava legal
isso, mas já foi um baque aquilo. O exército define a sociedade. E tudo que diz respeito
a palestino é assunto de exército. Você APOIAR um exército?! É muito maluco! E lá é
uma coisa totalmente normal.

Outro interlocutor – o mesmo que estudou religião na yeshivá maravilhosa –,


relembra o serviço militar que prestou na cidade de Hebron, Cisjordânia ocupada, como
condição para conseguir a cidadania no país:

Eu não gosto de falar disso não. Não tem nada… Você sabe quando você pensa numa
coisa que você fez que parece que não foi você? Todo o resto eu tenho certeza que eu
fiz. Várias histórias. Fui eu. Agora, no exército, parece que não fui eu. (mas esse não é
um dever sionista?) Acho que tem a ver com ser sionista quando eu botava a arma no
chão e falava: “isso é imoral”. Ali eu virei sionista. Virei sionista o dia que eu botei a
arma no chão.

Mas o ‘conhecimento’ sobre Israel/Palestina, poder que faz do aprendiz um


mágico, não é, lembra Mauss (2003), transmitido de forma incondicional.

170
Essas condições de transmissão, essa espécie de contrato, mostram que, embora
transferido de pessoa a pessoa, o ensinamento não deixa de implicar a entrada a uma
verdadeira sociedade fechada. A revelação, a iniciação e a tradição, sob esse ponto de
vista, são equivalentes; elas marcam formalmente, cada uma a seu modo, que um novo
membro agrega-se à corporação dos mágicos. (MAUSS, 2003, p.80)

E uma das condições de ver é não ver:

(e os palestinos não apareciam nos debates de vocês, na comuna?) eles só apareciam no


debate Israel-Palestina. Não, tinham os beduínos que são também palestinos! Mas nunca
apareciam como palestinos. [...]
A minha experiência mais palestina que eu tive no Shnát foi com um cara do Shalom
Achshav [ONG Paz Agora] durante uma aula no Machon. A gente perguntou pra ele
onde comprava fumo de narguila bom e barato e ele falou: “sai no portão de Damasco
[da cidade velha de Jerusalém], vira a direita [entrando em Jerusalém oriental], perto da
livraria, sabe?, por ali. E aí eu lembro que a gente foi comprar. MANO. Foi uma
experiência FODA, assim. Fui na cidade velha, de boa, passou na parte árabe começou
a ficar tenso. Na hora que eu saí no portão de Damasco....... Nunca tinha passado ali.
CA-RA-LHO. ONDE TAVA ISSO TODO ESSE TEMPO? O PORTÃO MAIS
LEGAL! Mais bonito. Onde tava isso todo esse tempo?! Mas eu tava com muito medo...
muito medo. Desconfiava de tudo. Compramos rapidinho o tabaco. Aí fazíamos meio
que um revezamento: sua vez de ir, sua vez de ir. Então fui duas vezes. E a terceira vez
levamos umas 4 pessoas. Foi por ali que eu cheguei na Palestina. [18, ênfases dele]

Proibidos de irem à Cisjordânia ocupada, tanto pelo Taglit-BirthRight quanto pelo


Shnát, o que viram os olhos viajantes dos jovens aprendizes os coloca num estado especial
– moral, afetiva e às vezes fisicamente (como nas “semanas do exército”) –, enquanto
guardiões da magia em seus países: a viagem é aqui um ritual de iniciação. Iniciados, são
raros os viajantes que voltam desencantados.

Aí voltei do shnát mega conservador, hasbará total. Querendo fazer hasbará. Voltei
pro Dror [...] Aí voltei como boguer. Em 6 meses já era mazkir [secretário do
Movimento] em São Paulo. [...] Era todo dia. Não sei como eu dedicava tanto empenho
em algo. Eu nunca me empenhei tanto em nada. Era se matar. Se matar por isso. [18]

Não sendo os olhos passivos (HARAWAY, 1995), eles traduzem e constroem


modos específicos de ver a partir daquilo que lhes é ‘mostrado’, daquilo que está na
condição de objeto do olhar. Se ‘mostrar’ a Palestina está fora dos objetivos dos
programas destinado aos jovens judeus em viagem à Israel – ela é a figura do território
proibido, perigoso, que envolve “responsabilidades” e “riscos” – , ela ‘aparece’ dentro da
prática sionista de esquerda do ‘fazer ver’ e do ‘ensinar’ direcionada a figuras públicas,
não judias, e consideradas de esquerda. A seguir, trago algumas das imagens produzidas
de “Palestina” e “palestinos” possíveis dentro da crença, que funcionaram como material
da didática sionista de esquerda e agregaram valor à fala daqueles que agora podem falar
do que “viram” e formular interpretações “sobre Israel/Palestina” e o “conflito”.

Foram muitos os viajantes e promotores de viagens com os quais cruzei no campo.


Em todas essas viagens, se foi à “Palestina” ou aos “territórios palestinos” ‘para’ alguma

171
coisa: “ver com meus próprios olhos o que acontece lá”, “conhecer o outro lado”,
“encontrar com...”, “entender a complexidade do conflito”, “entender o Brasil”, “entender
a mim mesmo”, “compreender meu próprio medo”, “fazer eles verem uma sionista”.

Também todas elas guardavam seu caráter “científico”, confirmando o fato da


viagem não necessariamente ser um meio de aproximação e conexão, mas também de
distanciamento. A fala da interlocutora que aparece como epígrafe da seção não faz dos
palestinos de Ramallah seu coetâneos. Sua tentativa, razão de sua visita à Palestina, é
“fazê-los ver” e explicar-lhes o tempo do sionismo e o sentido político-cronológico
específico que ela dá à moeda, à Torá e ao Templo. Não coetâneos, sua esperança é que
entendam e aceitem o tempo de Israel: “eu acho que eles [os palestinos] não existiam com
consciência mesmo, assim...o negócio deles era territorialmente ali. Então... o que que
impede eles de viverem sob o Estado israelense?” [4].

Sobre uma dessas viagens, que mobilizou grande parte dos interlocutores,
incluindo Moisés e Teles, e esteve presente em quase todas as entrevistas, um interlocutor
diz:

a viagem deu muito CONTEÚDO para ele, foi uma viagem de ESQUERDA né. A gente
conversou com...a gente não foi lá para encontrar o Bibi né, a gente foi lá para encontrar
parlamentares do Avodá, do MERETZ. Foi lá para conversar com a tzavá [exército],
mas com o lado da tzavá que denuncia a questão de direitos humanos. A gente lá falou
muito, não sei se você conhece o Marcos [...], que foi morar lá, ele faz um trabalho de
judô com crianças, mas que é um trabalho de...não se sei é na Cisjordânia...tanto que
quando tem momentos mais tensos ele tem que parar...que é um trabalho que eu esqueci
o nome agora, mas com alunos árabes israelenses, palestinos também. Mas a gente falou
com alguns palestinos, eu não fui no dia dos palestinos porque eu tinha um casamento
da minha família nesse dia, mas ele saiu de lá e foi falar com o cara do BDS. [12, ênfases
dele].
O Jean [Wyllys] foi pra Israel [...] numa viagem MARAVILHOSA, e ele teve uma coisa
muito forte de entender que: “cara, olha que bizarro, né, no ORIENTE MÉDIO, um país
que OK você ser gay”. Não é pouca coisa né?. A gente tem muito isso de criticar né,
mas é de se elogiar. Pô, tu tá em Tel Aviv, a marcha gay de Tel Aviv é uma parada
LOUCA. A questão LGBT é MUITO forte. E no oriente médio! [13, ênfases dela]

A viagem já mencionada de Jean Wyllys, que passou “cinco ou seis dias lá, sendo
dois [dias] de seminário [na Universidade Hebraica]” em janeiro de 2016, foi gestada,
segundo outro interlocutor que participara do processo, em mensagens privadas entre
membros do JuProg e, para sua realização, contou com o apoio da CONIB [Confederação
Nacional Israelita do Brasil] e da embaixada do Brasil em Israel. Seus “anfitriões”, como
descreve o próprio Jean Wyllys (2016), tinham por objetivo, disse-me um deles, “fazer a

172
conexão entre a esquerda sionista e a esquerda palestina e [servia] pro Jean Wyllys, pro
debate da Ocupação dentro da esquerda”.

Essa viagem, ainda que não tenha sido a única nem a primeira a levar celebridades
reconhecidas como “progressistas” ou “de esquerda” e importantes no cenário político
brasileiro, gerou muita polêmica, não só pelo fato de se tratar de uma figura bem
conhecida nos círculos da esquerda brasileira, mas principalmente porque os
‘aprendizados’, as ‘visões’ e os ‘encontros’ de Jean Wyllys com Israel/Palestina estavam
sendo narrados ao mesmo tempo em que eles aconteciam, e eram publicados em formatos
de posts e fotos em sua página oficial no Facebook. As polêmicas ultrapassaram os
‘comentários’ nos posts de cada Crônica, gerando textos duramente críticos, escritos tanto
pelo movimento palestino95, por uma ativista brasileira palestina (MISLEH, 2016) e pelo
secretário geral da Federação Árabe Palestina no Brasil, quanto por figuras como o ex-
deputado Milton Temer, do mesmo partido96 de Jean Wyllys e que entendeu a viagem
como “um grande erro”, e Paulo Sérgio Pinheiro, diplomata brasileiro que trabalhou na
Comissão Nacional da Verdade sobre violações de direitos humanos cometidas durante a
ditadura civil-militar brasileira e ex relator especial de direitos humanos da ONU em
Myanmar: “Lamentáveis e deploráveis as notas do deputado Jean Wyllys sobre sua visita
a Israel”, diz Paulo Sérgio Pinheiro em um vídeo publicado em sua página no Facebook.

Depois de sua palestra na Universidade Hebraica, o roteiro do deputado passou


por Tel Aviv e Jerusalém ocidental, onde visitou o Museu do Holocausto [Yad Vashem],
conversou com figuras do campo da “esquerda sionista”, como o escritor David
Grossmann – conversa da qual diz ter saído “encantado” – e cuja obra já conhecia e
admirava, e o ex parlamentar, Nitzan Horowitz (“membro do MERETZ, um partido de
esquerda muito semelhante ao PSOL”). Ele também visitou ONGs que “defendem a
solução pacífica para o conflito entre judeus e palestinos” (WYLLYS, 2016, p.45). Em
Jerusalém, Jean Wyllys aceitara – apesar do “receio” de seus “anfitriões” – o convite para

95
A carta escrita pela Frente em Defesa do Povo Palestino e enviada ao deputado está disponível em:
<http://bit.ly/2EdjbjH>. Último acesso em 10 de dezembro de 2018.
96
Segundo nota escrita pelo BDS Brasil em julho de 2014 e assinada por diversas organizações políticas,
o Partido do deputado Jean Wyllys, que assinou a nota exigindo do governo brasileiro o rompimento das
“relações militares, comerciais e diplomáticas com Israel”, o “fim do Tratado de Livre Comércio do
Mercosul com Israel”, o “fim dos acordos com [...] todas as empresas ligadas às violações da lei
internacional perpetradas por Israel”, bem como a “condenação pública das prisões políticas[...] dos
palestinos”, integra a campanha “por boicote, desinvestimento e sanções a Israel (BDS)”. (BDS Brasil,
2014). <http://bit.ly/2rG0ySG>. Último acesso em 12 de janeiro de 2018.

173
uma conversa com membros brasileiros de uma organização que apoia o BDS e que
teriam lhe dito que sua viagem e os discursos por ela produzidos estariam servindo ao
“pinkwashing”, acusação lida pelo deputado como “preconceito” e “subestimação” de sua
capacidade crítica (op. cit., p.47).

Também compôs o roteiro de viagem de Jean Wyllys uma visita ao kibutz Zikim,
ligado ao Movimento Hashomer Hatzair, no qual “todos os carros são de propriedade
coletiva” e “por volta de 80% das pessoas votam na esquerda” (WYLLYS, p. 51).

Um interlocutor secundário, mais velho do que a média dos entrevistados e hoje filiado
a um partido de esquerda, que trabalhara neste mesmo kibutz Zikim nos anos 1970, disse-me que
demorou anos para descobrir que o kibutz do movimento juvenil sionista “de esquerda” fora
construído sobre a vila palestina de Hirybia. Tendo rompido com o sionismo, ele me conta sua
descoberta:

O clique foi quando eu fui pro... eu tava... eu tava no kibutz Zikim ao lado de Gaza e
esse kibutz foi construído sobre, como todos, foi construído sobre as ruínas de uma
aldeia palestina.
E a gente pegava no fim de semana o ônibus e em geral ia pra Jerusalém [...]. E na
volta eu vinha de Ashkelon para o kibutz, que era o ônibus em que vinham os
trabalhadores palestinos, alguns trabalhavam na construção dos kibutzim. Um ônibus
diferente, porque já tinha aquelas.. aquelas grades de... de ferro. Não era estilo militar,
mas já tinha, pra proteger de pedras e tal. E tava cheio de palestinos, eu descia no
entroncamento e então ia caminhando pelo kibutz... aí um palestino: “onde é que vocês
vão?”, em inglês. Eu: “Ah, a gente vai aqui no kibutz Zikim”, “minha família morava
lá há vinte anos”. Aí eu entendi, é claro que eu entendi..... Disse [pro palestino] que
não entendia inglês, mas aquilo me marcou. Aquilo me marcou, acho que aquele foi o
detonador. Eu tava revisando um maço de cartas que eu mandava pros meus pais [...]
conforme eu ia perdendo a... perdendo as ilusões... mas eu levei alguns anos até
compreender. [...]
E no dossiê do Sartre tinha um artigo do Maxime Rodinson, eu li... eu lembro que no
dossiê tinha uma frase de um palestino que eu não esqueci. Que diz que “entre os
sobreviventes de Auschwitz e de Treblinka certamente não estão os algozes d[o
massacre de] Deir Yassin”. Me lembro dessa frase, me chamou atenção. O pior é que
tinha né. [tinha?] Não, não tinha. Não, não, mas da geração né. Acho que sobrevivente
não. Porque era gente muito acabada, mas da geração sim. O Hashomer Hatzair era
isso... e o Hashomer Hatzair era gente bem de esquerda.[...] (eles foram pelo
binacionalismo durante uma época né...) sim, sim... mas quando houve a Partilha [da
Palestina], eles foram da ala super nacionalista e foram um dos que mais pegaram terras
pra fazer kibutzim. [...] Em geral era porque onde as aldeias estavam era onde havia
água né? Eram os melhores lugares.

O “dia dos palestinos” que consta no roteiro de viagem de Jean Wyllys, foi aquele
em que o deputado conheceu Jamil El Kassas, um palestino refugiado da Nakba, morador
do campo de Deheishe, Belém, que, depois de ter participado ativamente na Primeira

174
Intifada e perdido a mãe e o irmão, “aprendeu que essa guerra devia terminar” (WYLLYS,
2016, p.48), hoje se reconhece um “ativista pela paz”, “sabe que não vai voltar à região
onde nasceu, e abre mão disso”.

Sobre sua visão desse “dia”, Jean Wyllys (2016) diz:

Por razões de segurança, não seria possível ir à Gaza, mas apesar dos riscos, decidimos
visitar um campo de refugiados na Cisjordânia, parte da Palestina [...] ali [na entrada da
cidade de Belém], [eu e dois dos meus anfitriões israelenses] conhecemos o palestino
Jamil El Kassas e pulamos para seu carro, já que carros com placas israelenses em
campos de refugiados são inadmissíveis porque podem ser atacados a qualquer
momento. Seguimos. [...] Já no “campo de refugiados”, a expressão que denomina o
local se mostrava confusa para nosso olhar brasileiro: o que encontramos foi um lugar
semelhante às favelas da Rocinha ou Cantagalo, semi-urbanizado e sem morro. Não era
muito diferente dos bairros palestinos de Jerusalém, só que mais pobre. (op. cit., p.49)

Tendo chegado às quase idênticas conclusões de seus “anfitriões”, todas essas


amostras de “Israel” e “Palestina” parecem ter produzido um (quase) sionista de esquerda.

Jean Wyllis viajou para Israel, acompanhado por amigos nossos, e ele declarou
posicionamentos que são muito próximos aos nossos, muito próximos. Praticamente
semelhantes. Se não fosse a diferença do lugar de fala, que não é nem judeu nem
sionista, mas só a compreensão da realidade, muito próxima. Muito semelhante. [8]
[a de Jean Wyllys] foi uma viagem de afeto e confiança, ele conversou com muita gente,
e não foi assediado anteriormente como o Caetano, com carta daqui, carta de lá. [...] a
[viagem] do Caetano eu não fui, com certeza se eu fosse eu faria o que eu acho que...é
certo...não sei, as conversas que ele teve lá...não sei se tinha a posição de só uma das
narrativas, não sei. Eu tenho certeza que o Jean enxergou mais que uma narrativa só na
viagem. De novo, ele encontrou pessoal do... Na verdade ele nem enxergou a narrativa
dos judeus de direita ou de judeus de centro, ele enxergou a narrativa dos judeus de
esquerda, pra esquerda né... Dentro disso ele enxergou a narrativa de gente que defende
efusivamente o Estado de Israel, é a favor de dois estados para dois povos, e luta pela
criação do Estado palestino, que denuncia os atos desproporcionais e por aí vai. O
Caetano eu não sei se teve isso,entendeu? [12]

Se para o interlocutor a viagem de Jean Wyllys foi uma “viagem de afeto e


confiança” – distinta daquela de Gilberto Gil e Caetano Veloso97, que escrevera dizendo
que achava que não voltaria à Israel pois Tel Aviv refletia a “paz que eu não quero” – , o
deputado, tendo tido a oportunidade de “ver in loco o que os livros e artigos [...] e a frieza
dos mapas não poderiam mostrar” (WYLLYS, 2016, p.45)98, diz ter sido uma viagem de

97
A viagem dos músicos, marcada em função de um show que fariam em Tel Aviv, aconteceu em julho de
2015, apesar da pressão pública do Arcebispo Desmond Tutu, apoiador do BDS, e Roger Waters, co-
fundador do Pink Floyd, que escrevera à Caetano Veloso uma carta aberta publicada na Folha de São Paulo.
Tendo visitado algumas vilas paletinas ocupadas, conversado com ONGs israelenses como o Breaking the
Silence, formada por soldados que denunciam os crimes do exército, participado de um encontro oficial
com o presidente de Israel, Shimon Peres, após a viagem, Caetano Veloso escreveu à Folha de São Paulo
dizendo que não mais voltaria ao país. (VELOSO, 2015)
98
Importante dizer que o viajante não só “viu”, mas também ‘fez ver’, como disse um dos realizadores
israelenses da viagem: “Pra mim, a visita do Jean Wyllys à Israel foi de um aprendizado absurdo,
principalmente nesse campo da militância gay. [...] Ele falou: “ó, o debate que tem em Tel Aviv é um
debate... A cidade liberal de Tel Aviv tá falando do gay homem de classe média, não tá falando do resto.

175
“muitas emoções e muita aprendizagem” (op. cit.). Segundo suas “Crônicas desde Israel
e Palestina” (2016), com a viagem, aprendeu que: “sionismo não é sinônimo de judeu”;
“antissionismo é acionado para disfarçar antissemitismo”; “o sionismo nasceu como uma
ideia” que reivindicava o direito do povo judeu a uma terra e uma nação; “há sionistas de
esquerda, direita, laicos e religiosos”; que “nem todo judeu israelense pensa igual; que
“há sionistas que são contra a ocupação de territórios palestinos, contra a política
guerreira do atual governo israelense e a favor da solução dos dois Estados” (op. cit.,
p.46); e, finalmente, que “a ultradireita israelense no governo e os grupos terroristas e
fundamentalistas islâmicos conspiram contra a paz [...], mas [que] ainda há muita gente
sensata tentando construir pontes de diálogo. Há esperanças!” (op. cit., p.45).

Jean Wyllys, pela emoção e pelo aprendizado experienciados na viagem de 5 ou


6 dias, passou a “ver” com os olhos de seus “anfitriões”, compartilhando com eles da
mesma esperança, do mesmo repúdio ao movimento de BDS (“Aliás, por que não há
boicote contra a Síria, cujo governo é responsável por dezenas de milhares de mortes, ou
contra a ditadura iraniana, que enforca homossexuais? Será porque não são judeus?”
(WYLLYS, op. cit., p.47)), e do mesmo método, o diálogo.

Um dos aprendizados mais importantes dos meus últimos dias em Israel foi concluir
que a esquerda brasileira precisa conhecer esse país e precisa muito conhecer a (e
interagir com) a esquerda israelense [...] Guantánamo. Por isso, eu disse e repito que
convido a esquerda brasileira a abandonar a equivocada ideia do boicote a Israel — que
prejudica um povo inteiro, detona as pontes e fortalece a direita e a extrema direita desse
país — e a começar a dialogar com a esquerda israelense. (WYLLYS, op.cit., p.52)

A “Palestina” ou os “territórios palestinos”, aqui metonimizados em “Ocupação”


ou em um dia em “Belém”, e “os palestinos”, metonimizados em Jamil El Kassas, se
tornam assim não só acessíveis aos olhos dos viajantes como também são parte do
material pedagógico do ‘fazer crer’. Dos retalhos de Palestina, os viajantes veem o que é
possível ser visto, o que está dentro dos limites da linguagem: não se conhece aquilo que
se vê, mas aquilo que se pode ver, o que se aprende a ver. Como lembra Veena Das (1996)
retomando Wittgenstein, dizer “I´m in pain”, ou ver um corpo em dor, não significa que
a dor será compartilhada – a afirmação é apenas o início do jogo de linguagem: ela é um
convite ao conhecimento, que pode ser aceito ou negado.

Então tão falando besteira, a cidade de Tel Aviv não é uma cidade liberal pros gays. É uma cidade com esse
tipo de gay, que é muito parecido com Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro.” Pô! Eu juro pra você que eu
nunca tinha percebido isso”. Essa visão, no entanto, não apareceu nas Crônicas de Wyllys. Pela não menção,
concluo que o marcado de diferença “palestino” entre os gays israelenses não foi vista.

176
Talvez estivesse falando dessa impossibilidade Gregório Duvivier, “figura central
do humor engajado”, de acordo com um dos “anfitriões” da mesma viagem de 5 dias,
realizada um ano depois daquela de Jean Wyllys, em janeiro de 2017 99 . Em palestra
realizada em São Paulo marcada para falar, junto a outros viajantes, sobre suas
“impressões”, ele diz:

toda viagem, na verdade, a gente só faz pra voltar pra casa, não é? É pra isso que servem
as viagens. As viagens servem pra gente voltar pra casa e entender a nossa casa, não o
lugar, porque não é o lugar em que eu vou viver e não me interessa ir em algum lugar....
não me interessa, é.., querer entender lá a não ser pra entender aqui. Pra ME entender
como pessoa e pra entender as pessoas que me cercam. E eu acho que nesse sentido
ajuda muito SIM a entender. [...] olha como o nosso olhar pras violações de LÁ podem
ajudar a gente a olhar melhor as violações DAQUI. Olha como a viagem, o
deslocamento e a imagem ajudam a gente a entender o que tá acontecendo AQUI.
[Gregório Duvivier em palestra realizada em 1 de abril de 2017 em uma instituição
judaica em São Paulo]

Apesar de ter se esforçado por encarar a viagem como sua “chance de olhar o país
pela primeira vez”, como “um poeta e uma criança”, e de ocupar o “lugar daquele que se
dá o direito de não saber nada”– apesar de já ter ouvido muitas “certezas” sobre Israel e
conhecer e admirar o trabalho de pessoas como “Amós Oz, David Grossman, Edgar
Keret, Yael Naim [...] como que eu vou boicotar um país onde moram essas pessoas?!
[...] Tadinhos! Quem perde é quem boicota! [...] A priorização de Israel como alvo de
boicote só pode ter a ver com antissemitismo” (exposição oral em palestra pública) –, a
viagem do humorista parece ter “completado” a visão que já tinha.

Eu nunca ouvi falar nos druzos, além da questão árabe, tem a questão druza! Tudo era
uma série de questões... tem a questão palestina, tem a questão dos palestinos
israelenses, tem uma quantidade enorme de complexidade. E de narrativas. Né. E isso
que eu fiquei muito chocado lá, de pessoas que nem eu falei, que tem o Marcos, que dá
aula pra crianças palestinas e israelenses, tem o nosso... como era o nome dele?... do
Jamil né, que é um cara que mora em Belém, é palestino, a gente ficou lá na casa dele.
[...] Então foi uma viagem sobretudo pra entender que são muitas milhões de
narrativas... [...] o que mudou [com a viagem] foi no sentido de não saber o quanto as
fronteiras eram arbitrárias [...]; mudou de eu não saber também, do lado de Israel, o
quanto que tem pessoas israelenses empenhadas na transformação disso, contra a
Ocupação... então isso tambem me surpreendeu... é... isso me surpreendeu
positivamente, e negativamente a violência dessa fronteira [do Muro que conheceu em
Belém]. E as humilhações cotidianas que quem mora na Palestina e vai trabalhar em

99
A viagem de Gregório Duvivier, que, segundo um de seus organizadores, aconteceu no mesmo formato
da de Jean Wyllys, também teve repercussões significativas, apesar dele não ter postado “Crônicas” no
Facebook, mas somente publicado algumas fotos comentadas em seu perfil no Instagram e, quando de volta
ao Brasil, ter dado uma entrevista à CONIB, dizendo que “o boicote à Israel é uma estupidez” (BESEN,
2017) e escrito à Folha de São Paulo (DUVIVIER, 2017). Algumas das críticas que recebeu seu discurso
pós viagem foi o fato dele de permitir “afirmar saber algo que outros fingem ou ignoram sobre os palestinos:
que são raros entre eles os que apoiam o boicote [...] e o Hamas” (NASSER, 2017) e por participar
ativamente, como um “garoto-propaganda” junto a outros, da tentativa de “normalização da limpeza étnica
e da colonização na Palestina” (MISLEH, 2017; HARTMANN e HUBERMAN, 2017). Alguns desses
textos renderam réplicas e tréplicas dos organizadores da viagem.

177
Israel tem que passar, é algo realmente vexatório, é um negócio realmente, do ponto de
vista humano, muito vergonhoso. O túnel, a fila diária, que não precisava ser assim né.
Me parece o maior constrangimento mesmo do cidadão palestino. 100

A dor palestina não é compartilhada, ouvida, vista por Duvivier, mas usada como
uma “imagem” para que se veja outra coisa: “A Palestina é aqui – e ninguém se importa”,
é o título do texto do autor que, tendo conhecido o mesmo Jamil El Kassas, se
transformara em autoridade para afirmar, num dos maiores jornais do Brasil, que “raros
são os palestinos que defendem o boicote. E mais raros ainda são os que defendem o
Hamas”. (DUVIVIER, 2017).

Podendo “ver” todos os palestinos e distinguir os “raros” dos “não raros”, aqueles
vísiveis e dialogáveis, a viagem de Duvivier e de outros viajantes rumo à “Palestina”
parece mais uma vez servir à construção contínua da ficção coletiva que torna
“seriável”/metonimizável o particular em prol de uma visão mais ampla e narrável
(ANDERSON, 1993). Nessa relação de poder entre o observador e o observado (“a
hegemonia do visual como um modo de conhecimento pode ser diretamente vinculada à
hegemonia política de uma faixa etária, uma classe ou uma sociedade sobre a outra”
(HARAWAY, 1995, p.144)), os “raros” ou “não raros” palestinos, assim como os
“territórios” (metonimizados na cidade de Belém) existem, tal qual no Museu On The
Seam, como objetos do olhar e “funcionam” como peças na construção contínua da
crença. Um dos idealizadores da viagem de Wyllys e Duvivier, pensando sobre o roteiro
que planeja traçar próximas viagens, diz: “A partir de algum momento, eu comecei a
perceber que Ramallah funciona como alternativa à Tel Aviv, e Belém funciona como
alternativa à Jerusalém”.

Metonimizados, seriados, “palestinos” e “Palestina” parecem ser vistos por olhos


descorporificados, não marcados em seus trânsitos por Israel/Palestina. Olhos que
transitam sem serem vistos, mesmo nas cidades palestinas em cuja entrada se vê exposta
uma grande placa proibindo cidadãos israelenses de ali entrarem: “Dangerous to your
lives and is against the Israeli law”. Olhos que transitam num tempo de quem não é
‘marcado’ ou ‘ocupado’, num tempo de viajante – como diz Jean Wyllys: “as distâncias,
nesse pequeno país, são curtas e permitem que se visite várias cidades no mesmo tempo

100
Se os “cidadãos palestinos” de Israel não passam por “túneis” ou “filas diárias” nos checkpoints, penso
que Gregório Duvivier talvez estivesse falando aqui dos não cidadãos de Israel, os moradores da
Cisjordânia que vão trabalhar diariamente no país por baixíssimos salários, sem terem direito à cidadania e
correndo o risco de perderem seus empregos por um “mau humor”, como disse-me um dos moradores de
Belém, de um dos soldados que controla os portões de um dos checkpoints que dá acesso à Israel.

178
em que se demora para percorrer trajetos dentro da cidade do Rio de Janeiro”. (WYLLYS,
2016, p.48)

Uma das principais reclamações que ouvia dos moradores que dependiam diariamente da
abertura dos checkpoints e dos portões agrícolas para acessarem suas próprias terras ou para
atravessarem de um distrito ao outro é o tempo que ‘gastavam’ com distâncias tão curtas, antes de 1967
feitas em linhas mais retas e sem restrições de movimento (para as barreiras terrestres que restringem o
movimento palestino, ver mapas III e III.I). De maneira concreta, o tempo desses moradores, marcados
por sua palestinidade num território não palestino, não é o mesmo tempo dos viajantes. Segundo a
UN/OCHA-OPt (2011), cerca de 200.000 palestinos são obrigados a desviar do percurso direto até a
cidade mais próxima, perfazendo um trajeto de 2 a 5 vezes mais longo. Segundo a instituição, tais
condições de vida coagem os palestinos para que deixem as áreas B e C (80% da Cisjordânia) e,
“voluntariamente”, se desloquem para as área A, onde a vida palestina, sob a jurisdição da Autoridade
Nacional Palestina, poderia se desenvolver de forma mais livre – se não fossem os altos custos de
moradia, com o aumento da procura por espaço urbano habitável e a diminuição da oferta.

Aqueles palestinos, majoritariamente homens entre 25 a 45 anos, que conseguem permissão


do DCO [District Coordination Office, a “administração civil” do exército militar de Israel sobre os
territórios palestinos ocupados] para trabalhar à oeste da Linha Verde (Israel) chegam diariamente ao
checkpoint, como pude presenciar, por volta das 3h00 da manhã e aguardam em fila até que o checkpoint
abra. Neste intervalo de tempo, onde se dá a fabricação de uma pobreza simbólica, de uma insuficiência,
os homens se amontoam e tentam, subindo pelas grades, tomar o lugar uns dos outros. É comum se
ouvir casos em que trabalhadores perdem o emprego por chegarem frequentemente atrasados ao local
de trabalho, no outro lado. No checkpoint de Tarqumia, em Hebron/al-Khalil, um dos 11 checkpoints
usados pelos westbankers trabalhadores de Israel e o único permitido à passagem dos familiares dos
palestinos em prisão no Neguev, presenciamos o “esquecimento” de um idoso que, sem o conhecimento
da razão, teve sua permissão negada e ficou cerca de 40 minutos esperando entre as grades dos dois
portões de saída. Considerando também o fato de que parte dos checkpoints nos territórios ocupados
são administrados por companhias privadas de segurança supervisionadas pelo Ministério da Defesa de
Israel, a corporificação temporal do checkpoint ganha ainda a dimensão do tempo da (re)produção do
capital. Os cerca de 361 “surprise flying checkpoints” ativos em 2013, quando estive em
Israel/Palestina, exemplficam essa materialidade do corpo do checkpoint que se faz através da
interrupção, gestão e produção do tempo da vida cotidiana. Nesses “flying checkpoints” os soldados, a
qualquer momento, param um veículo palestino, pedem seus Identity Cards (IDs) e, com ou sem
cachorros farejadores, vistoriam o veículo e seus passageiros.

Tendo viajado à Israel/Palestina também para “combater seu próprio medo, o


medo de falar sobre isso, o medo de não entender”, a conclusão a que chega Gregório
Duvivier, com a “ajuda” de seus ‘anfitriões’, é a de que “quem não está confuso [sobre

179
Israel/Palestina] está mal informado [risos da plateia]”101, reforçando o mesmo caráter
“complexo” que Moisés e Teles, no evento descrito, acionavam quando do enfrentamento
com as palavras ‘difíceis’.

Acompanha-me a memória da frase escrita no muro de Belém (Bethlehem), o mesmo


muro que viram os viajantes: “Now that I´ve seen I´m also responsible for”. Pergunto-me qual
responsabilidade carregam os olhos que “veem” a “Palestina”, que podem vê-la, assim como
podem ir e podem voltar - uma impossibilidade para tantos que ali nasceram.

E assim, através das múltiplas viagens possíveis à esquerda, segue a contínua


construção do Monumento-Israel, cujas luzes que recebe de seus construtores, à direita
ou à esquerda, permanece produzindo sombras e apagamentos. Guardando muitas
semelhanças e algumas diferenças com o processo que converteu em indios os nativos
sob os olhos, penas e epistemes dos conquistadores espanhois e os transformou em
“objetos suscetíveis de medida” comparáveis ao ouro (ZAMBRANO, 2008, p. 40), estes
indígenas, na invenção de uma Israel judaica e democrática, sobram – são excesso – e,
quando aparecem como imagens, aparecem para reforçar essa invenção.

Saree Makdisi (2010b) fala em “soft” e “hard zionism” para designar os regimes
político-discursivos vigentes em Israel, demonstrando ser o primeiro o predominante. A
peculiaridade do “sionismo de esquerda” que aqui descrevo, e que, segundo o autor, se
encaixaria no “soft zionism”, seria o fato dele não precisar ver explicitamente os
problemas inerentes ao próprio Estado judeu: no nível da língua – e dos olhos – não há
“racismo”, não há Nakba, não há vilas palestinas destruídas, não há apartheid porque isso
transbordaria o jogo de linguagem possível, materializado pelo roteiro das viagens.

The great strength of Israel’s system of apartheid is that it is structured in such a way
that it never ever makes the great mistake of South African apartheid by forcing people
to confront the nakedness and vulgarity of its racism. So they can support it and go on
thinking of themselves as virtuous, ethical and progressive, technologically chic,
friendly to animals and kind to the environment. [...] Every attempt to point to it and
say 'that’s the problem' will be met with the perfectly sincere reply 'what problem?'
What racism? What villages? What road network? What Palestinians? (MAKDISI,
2010b, p.7)

O que foge à explicação e à narrativa sobre “Israel/Palestina” feita por quem ‘foi
e viu com seus próprios olhos’ ou por quem simplesmente ‘conhece’ sua razão e história,
como a interlocutora citada na epígrafe, segue à sombra do Monumento. Se a viagem

101
Em fala durante evento em São Paulo, em abril de 2017.

180
funciona como reforço e pedagogia da crença, fazendo ver, ela também é um dispositivo
do fazer sumir ao transformar os nativos expulsos em viajantes compulsórios, suspensos
no tempo e no espaço, os quais, tal como Andoni Baramki, o dono do Museu, não podem
viajar em ‘retorno’ senão como fotografias, fragmentos de um tempo longínquo e nunca
narrado.

4.2 A(s)sombra do Monumento: “antissemitismo” e os limites da crença

O BUND102 tentou por 300 anos fazer um lugar onde os judeus pudessem ser soberanos
sem um Estado. Sabe o que aconteceu com o BUND? Foi atropelado pelo holocausto.
Se não tivesse holocausto, não teria o Estado de Israel. Você tá entendendo? E aí como
você explica pra um palestino, acho que essa é a maior dificuldade, que a alternativa do
sionismo era uma em várias? Que a história acabou pregando tantas ciladas naqueles
que eram contra o sionismo que as alternativas foram diminuindo?
- interlocutor e professor unversitário

Os judeus são também o que chamei de uma comunidade de sofrimento e carregam uma
herança de grande tragédia. Mas, ao contrário do sociólogo israelense Zeev Sternhell,
que apresentou certa vez a ideia na minha presença, não concordo que a conquista da
Palestina tenha sido necessária. A noção ofende o sofrimento palestino, real, e, em seus
próprios termos, igualmente trágico.
- Edward Said, “O papel público dos escritores e intelectuais” (2004)

Como tenho mostrado pelos relatos de viagem, viajar não apenas aproxima
distâncias, constrói “diálogos”, conecta judeus e esquerdas e ‘faz conhecer’, mas também
produz distâncias e sombras. No item anterior, tentei descrever algumas das visões da
Palestina e Israel, do que é mostrado e visto. Neste último item do capítulo sobre as
viagens e retornos (im)possíveis, pretendo me dedicar mais atentamente aos fantasmas
que assombram a crença – tanto aqueles que a sustentam, encarnados na figura do
onipresente “antissemitismo”, quanto aqueles que, fantasmas dos fantasmas, os

102
BUND (literalmente “União”, em ídische) foi o partido socialista das massas proletárias judias, fundado
em 1897 na Lituânia, que se contrapunha ao sionismo, visto como uma expressão da burguesia judaica.
Acreditava que o futuro dos judeus se encontrava nos países nos quais viviam e desenvolviam sua cultura.
Nos anos 1930, antes da Guerra, foi o principal contraponto aos sionistas, como expressa a canção de 1931,
Oh, you foolish little Zionists [Oy, ir narishe tsienistn]: “Oh, you foolish little Zionists / With your utopian
mentality / You´d better go down to the factory / And learn the worker´s reality. // You want to take us to
Jerusalem / So we can die as a nation / We´d rather stay in the Diaspora / And fight for our liberation.”
(tradução por Daniel Kahn, disponível em <http://bit.ly/2BNMXZn>).

181
“refugiados de 48”, não aparecem, porque estão fora do jogo de linguagem possível do
sionismo. Se os primeiros contornam o campo da crença, são seu limite, os últimos o
extrapolam, excedem, e poluem mapas, esta forma de ver, através da qual se imaginam
“territórios” e realidades (ANDERSON, 1993).

Assim como as viagens, também os mapas são em si práticas de visualização e


compõem as imagens de “Israel” e “Palestina”. Trago em anexo o Mapa da ONG Shalom
Achshav/Paz Agora (anexo IV) que ganhei de “presente” de um dos entrevistados, um
militante pacifista do campo da paz em Israel. Produzido pelo “Watch Settlements Team”
do Shalom Achshav/Paz Agora, esta foi a visão da “Ocupação” que mais apareceu em
campo: ela estava presente na casa de um jovem interlocutor e também na parede da sede
do Movimento Hashomer Hatzair, ao lado de outro mapa, feito pela Agência Judaica,
muito semelhante àquele do anexo V, que traz a Palestina/Israel ‘inteira’, sem os marcos
das divisões internacionais do Armistício de 1949 (Linha Verde) ou os despedaçamentos
das áreas definidas em Oslo103. Nesta última ocasião, o mapa do Paz Agora – que traz
alguns dos marcos ‘visíveis’ da ocupação, como as áreas A, B e C, a linha do armistício,
o traçado da “Barreira”, os números (desatualizados) dos “residentes” das vilas palestinas
e dos assentamentos judaicos e as rodovias israelenses, e não traz outros, como os
checkpoints, a situação dos “residentes” de Jerusalém, dos refugiados “residentes” no
West Bank expulsos com a fundação de Israel, ou mesmo a situação de Gaza e das colinas
sírias do Golan – fora considerado pelo entrevistado um mapa “muito radical”.

Observando com o interlocutor o mapa que acabara de ganhar de presente,


comento sobre os “dedões” do traçado do Muro que penetram no território palestino:

É o dedão do [assentamento de] Ariel. (é muito inteligente....) o quê? (essa divisão do


território que o muro faz. São entradas.... Primeiro separar na horizontal o norte do sul
e depois ir fatiando na vertical com estradas.) é... essa é uma tese do [Ministro da
Educação “de direita”, Naftali] Bennett né, que a gente nunca vai renunciar essas
entradas que dão até o Rio Jordão. E eu nunca tinha prestado muita atenção nisso. É
maquiavélico mesmo. (o Vale do Jordão [extensa área C, a oeste do Rio Jordão] é um
grande campo de treinamento do exército, os moradores recebem a notificação de que
o exército vai treinar ali e têm que sair das casas em poucas horas... e fica fechado como
“closed military zones”, e as pessoa dormem no caminhão, fora dali….) aham (e os
soldados usam as tendas... aí ninguém pode entrar, a gente só ouve os tiros) aham. Você

103
Entre as áreas B (22% da Cisjordânia, sob a jurisdição “militar” de Israel e “social” da Autoridade
Nacional Palestina) e a área C (60% da Cisjordânia, é o “plasma” que envolve os pedaços de Palestina,
totalmente sob jurisdição do Civil Administration in Judea and Samaria, parte integrante do Exército de
Israel (IDF), e onde vivem 300.000 palestinos e 341.000 colonos (UN/OCHA-OPt, ago./2014)), não há
qualquer demarcação visível no território.

182
viu isso? (vi, isso no Vale do Jordao é bem comum. E aí isso vai longe né... Aqaba [área
C], por exemplo, também no Vale do Jordão tá com todas as estruturas, praticamente,
da mesquita à escola e cisternas, com ordens de demolição...) aham. (Tive a impressão
de ser um campo de treinamento militar mesmo, um espaço bem estratégico pra Israel,
que é difícil abrir mão, sabe.... de teste de armas, treinamento de exército. A gente cobria
toda essa região norte da Cisjordânia, ouvindo as historias de vida das pessoas e fazendo
presença protetiva, né... Vi várias prisões de crianças que eram explicitamente para fins
de treinamento dos soldados mesmo...) é... um dia vou fazer essa excursão. (você só
conhece Ramallah?) eu fui pra Ramallah, fui pra…… pra….como chama….? Rawabi,
você chegou a conhecer? (não...) É uma cidade palestina planejada, da classe média
palestina. Fui pra Mas´ha [vila na região norte, distrito de Salfit, perdeu extensas áreas
para os assentamentos de Elkanan e Etz Efraim], Abu-Diz [vila na área B, perto de
Jerusalém oriental]... Gaza fui em 71, sozinho, peguei um ônibus e fui, rodei tudo
sozinho. Conheci a praia de Gaza. [risos] E só tinha soldado. Aí eu desci, comi um
falafel, e peguei o ônibus de volta. Não é bonita. [risos] [3]

Assim como a “Israel” e a “Palestina” vistas são aquelas possíveis dentro da


crença, também os mapas que circularam no campo eram os “mapas possíveis” – eles
traziam uma geografia da esperança que os fantasmas que eu trazia na minha indignação,
mapas e comentários ameaçavam contaminar.

Como disse, nas entrevistas trazia comigo mapas que havia pego na sede da
UN/OCHA-OPt [United Nation Office for The Coordination of Humanitarian Affairs –
Occupied Palestinian Territories] em Jerusalém, quando estive lá em 2012/2013 (anexo
III e III.I). Trazia-os para a entrevista com a intenção de entender como e o que “viam” e
“conheciam” os interlocutores diante desses fragmentos de território. Num início de
entrevista, ao apresentar o mapa do “West Bank” (anexo III), produzido pela UN/OCHA-
OPt, para situar a pesquisa – e a pesquisadora –, um interlocutor diz:

(você conhece esse mapa?) tem um igualzinho ali no quarto. Esse é o mapa dos
territórios ocupados né (é, na verdade só da Cisjordânia, gaza não tá aqui) sim, sim
(onde eu morei é uma vilazinha de 80 pessoas rodeada pelo assentamento de Itamar,
aqui) mas Itamar é grande né, é famoso (sim... eles sofrem ataques e já perderam uma
porção considerável da terra da vila... Isso é norte de Nablus) Tô procurando Ramallah...
tá pra cá [aponta para a esquerda]? (tá pra baixo. Tá bem aqui, perto de Jerusalém. Aqui
é Nablus, norte.) tá (aqui em laranja são as principais cidades: Jenin, Nablus, Ramallah,
Jericó... [...]) o que é o azul e o branco? (o azul é a área C, que é 60% de toda a
Cisjordânia) sim, áreas A, B e C, sim. (então, a área C é basicamente onde estão todos
os assentamentos; o vinho é área de assentamento já construído ou para construção, que
os palestinos de lá foram removidos, deslocados, ou perdera a posse da terra por várias
razões). Mas esse azul assim pontilhado é área descoberta né? (esse roxo pontilhado são
as closed military zones....)...tipo, não tem habitação. Não tem aldeia, não tem
assentamento, não tem nada. Não tem cidade? (cidade palestina não, cidades são só
essas áreas laranjas mais populosas, mas tem gente morando lá sim) o branco é a área
A? (não, a área A são só as cidades palestinas, né, sob o governo da Autoridade
Palestina. Ramallah, Nablus, Hebron etc. Esse laranjinha mais claro que parece branco
na verdade é área B, que são as vilas em volta das cidades, onde também tem
assentamentos...)...ah tá! Achei que você tava falando A, B, C da descrição dos Tratados
de Oslo. (sim, exatamente) Você tá falando disso? (sim, sim, isso). [11]

Diante da visão do ‘meu’ mapa dos “territórios” da Cisjordânia, parecia estarmos


falando de coisas distintas, numa comunicação bastante truncada. Olhando a área B e nela

183
vendo área A e vendo a área C como área onde “não tem nada”, a percepção da geografia
da Ocupação do interlocutor, que tinha um mapa “igualzinho a esse” no quarto e foi de
movimento juvenil por toda a vida, imaginava uma outra Cisjordânia, talvez com menos
gente e mais área A, ou mais ‘autonomia’.

Ao comentar sobre o que eu havia visto morando e trabalhando como


‘acompanhante ecumênica’ na região norte da Cisjordânia, percebia que o que eu dizia
era muitas vezes desconhecido por figuras importantes dentro do campo do sionismo de
São Paulo e Rio de Janeiro. Conversando com uma pessoa representante do Avodá no
Brasil, também membro da executiva do Congresso Sionista Mundial e da diretoria do
Fundo Nacional Judaico (KKL), percebi que meus mapas e relatos muitas vezes excediam
o possível da crença, gerando, ao mesmo tempo, interesse em conhecer mais (“você não
tem outro mapa desse não, né? Se você puder, me manda um material...”) e certa náusea,
sem que, no entanto, a esperança fosse ferida:

(as violências dos colonos acontecem principalmente no shabat [feriado semanal


judaico]. Sexta-feira à noite e sábado é o momento em que eles mais...) ...nossa, me fez
muito mal agora essa história do shabat. (faz mal né?) Nossa, muito, me deu até um…
[silêncio]
[...]
(você acha possível Israel sobreviver com só isso aqui de terra? [aponto o mapa],
considerando que isso aqui é deserto... e aqui [aponto o Vale do Jordão] tem exploração
de água subterrânea, umas bombas de água com arame farpado e câmeras em volta...
essa água aqui sobe pras colônias direto, não passa pelos vilarejos palestinos aqui
embaixo... eu não sei se Israel sobrevive só com isso aqui, sinceramente... ] ah tem que
sobreviver! Tem que sobreviver! Por que que tem tanta tecnologia? Pra isso! (e essa
região também é muito estratégica em termos militares, né...) não,
não...estrategicamente e tal... Mas tem a questão do...mas esse mapa aí é 48 né? (é, isso
é 48… 49 na verdade, depois do armistício) cadê o mapa de 67? (não, 67 é isso tudo
aqui, depois da Linha Verde. [silêncio] [...] não interessa...tem que sobreviver! [risos]

Em nenhum dos mapas que circularam no campo – nem naqueles trazidos pelos
interlocutores nem nos trazidos por mim – a figura do refugiado produzido pelo
estabelecimento do Estado de Israel em 1948 aparecia. Quando comparado com os mapas
do Paz Agora ou mesmo aos mapas da UN/OCHA-OPt, o Mapa “Colonialism in
desctru(a)ction” (anexos VI e VI.I) (que não pude mostrar aos interlocutores por ter tido
acesso a ele apenas depois das entrevistas), produzido pelo [De]Colonizer, um
“Laboratório de arte e pesquisa para a mundança social”, e idealizado pelo fundador da
ONG Zochrot, Eitan Bronstein Aparicio, uma organização israelense que se esforça por
“lembrar, testemunhar, conhecer e reparar”104 a Nakba palestina, traz aquilo que escapa à

104
Segundo site oficial da ONG <http://zochrot.org/en/content/17>. Último acesso em 8 de janeiro de 2018.

184
crença e desaparece nas falas dos interlocutores: as 615 vilas e os locais destruídos antes
e durante 1948 (ver anexo VI e VI.I), sobre os quais se constroi continuamente tanto o
Estado de Israel como o sonho sionista e que hoje permanecem como sombras
fantasmagóricas encarnadas no “retorno dos refugiados”. Inviável também é o mapa,
igualmente produzido pela equipe do [De]Colonizer, que contamina a crença de que Israel
teria cumprido as determinações da Partilha da Palestina Britânica de 1947 ao ‘mostrar’
as “destru-ações” das localidades palestinas que se encontravam dentro daquilo que pela
ONU fora determinado como as delimitações do “Estado Árabe” (ver anexo VI.I). Para
que a crença no duplo-Estado (apresentada no capítulo 1) se sustente, essa ‘visão’ é
imunizada pela magia através do argumento do “pragmatismo da guerra”, já apresentado
anteriormente, que traçou a Linha Verde do armistício, consensuada entre os
interlocutores como a fronteira “legítima” do Estado de Israel.

Nas entrevistas, quando eu perguntava sobre o direito de retorno/ressarcimento


dessas cerca de sete milhões duzentos e cinquenta mil pessoas (BADIL, 2011),
fantasmagóricas e invisíveis, ele aparecia como algo “complicado”:

Então, cara, não sei, acho que isso é complicado, não tenho opinião formada não. Porque
ao mesmo tempo que os caras foram expulsos, eles podiam ter expulsado tambem. Foi
guerra. Guerra tem disso. Todo mundo. E assim, nunca ouvi falar de nenhum refugiado
de guerra que depois foi ressarcido.... (os judeus, né) só os judeus pela Alemanha. [11].

Como algo que não se “entende” (“o fato dos palestinos serem o único povo que
continua refugiado, mesmo tendo se estabelecido, mesmo tendo vida digna. EU NÃO
ENTENDO POR QUÊ” [10, ênfases dele], ou ainda como uma responsabilidade da ONU
e da Autoridade Palestina que Israel teria “herdado” depois de ocupar a Cisjordânia:

quem é responsável pelo campo de refugiados? É a ONU e Autoridade Palestina, não é


Israel. (É...Israel talvez seja responsável pela existência dos refugiados) Não.
Refugiados tem em todos os lugares. (Ah sim, tem palestinos refugiados nos países
árabes.) É...mesmo em Israel também né, não foi um campo construído por Israel, Israel
não construiu campos de refugiados. Eles já existiam...Israel herdou os campos de
refugiados. (existiam campos de refugiados palestinos antes de 48?) Israel herdou os
campos de refugiados em 67, não tinha. (ah, em 67...) Ele não criou campos de
refugiados, já tinha. (tem muitos refugiados em 67) Setenta campos de refugiados. Na
Cisjordânia, Gaza... (conheci famílias que foram refugiadas três vezes, que saíram de
Israel em 48, e foram sendo deslocadas na Cisjordânia) Não,você tá falando de outra
coisa. [4]

A conversa parecia ganhar outro tom quando os fantasmas dos refugiados e seu
direito de retorno apareciam. Assim como o mapa que traz as sombras das vilas palestinas
destruídas, parecem fora do jogo de linguagem possível os 68 massacres entre 1947 e
1949 que precipitaram a saída de dois terços da população palestina (MASALHA, 2012a).

185
Também no evento sobre o BDS e a esquerda percebe-se o caráter fantasmagórico
do “retorno dos refugiados”. Gabriel, representante dos que não são ouvidos/vistos, traz
à plateia a figura do retorno/refugiado em quatro momentos distintos:

São mais de 5 milhões de palestinos refugiados. Mais da metade dos palestinos foram
expulsos em 1948 [...] Tem poucas coisas que são pétreas no direito internacional,
principalmente no direito internacional relacionado aos refugiados. O direito de retorno
é uma delas. [...]
Sobre o direito de retorno era a outra pergunta: é o que tá na resolução 194 da ONU. É
especificamente aquilo. Os palestinos têm o direito de voltar a suas casas e terras, em
casos específicos têm o direito à repaaração. Se os palestinos não têm possibilidade de
voltar ou a casa dele não existe mais, lá tá o aeroporto de Ben-Gurion agora né, não sei,
tem várias situações aí, então essa resolução 194 da ONU ela versa sobre isso: como
regularizar o que o direito internacional diz do direito de retorno. Os palestinos tem a
CHAVE da casa deles né. Em teoria é isso: você volta. Mas na prática essa resolução
194 determina muito bem como fazer. [...]
Essa marcha de mulheres é caracterizada como normalização porque não fala disso: fala
só sobre a Ocupação, por exemplo, e esquece os refugiados. [...]
as atitudes que NÃO VÃO ao encontro dessa normalização, desses vínculos
institucionais que falam dessas três coisas - Ocupação, direito de retorno e palestinos
dentro de Israel - elas NÃO desafiam o establishment. (Gabriel durante evento, ênfases
dele)

Tina traz a figura uma vez, chamando pela necessidade de “reconhecer e


implementar o direito de retorno dos refugiados palestinos, como estipulado pela
Resolução 194 da ONU”, Moisés a menciona em abstrato: “é claro que o debate sobre o
retorno dos refugiados é complexo, [e] na esquerda tá dado” e Teles, como já vimos, se
refere aos refugiados uma única vez, como figuras LGBT “que migram à Israel fugindo
do Hamas”.

O direito de retorno dos palestinos, nunca reconhecido por Israel como um direito,
tampouco considerado em qualquer acordo de paz já assinado, parece extrapolar o limite
do diálogo possível, como narra um interlocutor, que participara de uma iniciativa de
“diálogo” conjunta com palestinos brasileiros:

A questão política que pegou mais [para o fim do grupo] foi a questão do direito do
retorno. Eles queriam assim: “a gente só vai fazer um grupo juntos se estiver no estatuto
do grupo que a gente tem direito ao retorno”. E daí a gente falou “não, vamos deixa
aberto essa questão e eles resolvem lá, porque...”, aí a gente: “não, de jeito nenhum ,
papapa...”.

E logo em seguida sua fala traz outros fantasmas:

E aí eles [os palestinos brasileiros] organizaram uma manifestação que teve muito
antissemitismo e ele [um dos palestinos do grupo de diálogo] não teve uma palavra dele
de crítica, achei chato isso. [...] [Na manifestação] tinha assim umas coisas absurdas:
“judeus são demônio”, do evangelho do João, que os judeus são comparados ao diabo,
né. Tinha crianças de igreja, de escolas religiosas muçulmanas com estrela de David e
suástica, uma na outra assim. E tinha esses religiosos que tão aí falando, do caminhão

186
de som, “não, os judeus são um povo perverso, inimigo da humanidade...”. Eu fiquei
assim, estarrecido, e.... depois teve uma avaliação desse ato, que foi feito na câmara
municipal de São Paulo, e um dos palestinos do grupo falou e não disse uma palavra
sobre isso: “foi um sucesso”, ele disse. E: “Ah, o único detalhe foi que morreu um cara
atropelado.”

Rejeitando o direito de retorno dos palestinos à Israel, o mesmo interlocutor,


diante do “antissemitismo” que vê na esquerda, defende o fim da “Ocupação” e Israel
como um Estado democrático e igualitário a todos seus “cidadãos”, mas não abre mão da
Lei do Retorno aos judeus, dispositivo que faz de Israel um lugar para onde “o judeu pode
ir se ele quiser ou se ele precisar. Eu acho que os judeus vira e mexe vão precisar ou vão
querer ir e acho que é legítimo, sei lá, você ter um pedacinho de terra em que as pessoas
podem ir lá e viver”. Há aqui uma ‘mistura’ entre a defesa de um Estado para os judeus e
a própria possibilidade de sobreviver e de ter um “lugar”.

Peraí. Sabe? Um pouquinho mais de conhecimento sobre a causa. Pelo amor de deus.
Você pode ter todas as críticas ao governo israelense e realmente..[...] mas você não
pode ser contra o Estado. Não pode ser contra o Estado de um povo que sofreu, do jeito
que sofreu, você não pode negar um LUGAR a essas pessoas. [13, ênfase dela]

O “lugar” a que se refere a interlocutora é hoje garantido por um dispositivo


jurídico, a Lei do Retorno, criado em 1950 tendo em vista tanto as necessidades
demográficas da construção de um país judeu num território não judeu quanto a condição
de “sem direito a terem direitos” dos refugiados judeus europeus, e ativamente nega os
direitos de “lugar” (e de “direitos”) aos palestinos (BUTLER, 2012). O medo de “não ter
lugar” vem aqui do fato de se pressupor que um “Estado para os judeu” pode ser
preservado apenas por uma vantagem demográfica sobre os nativos não judeus.

Tratando dessa ‘confusão’ entre sionismo e judeidade, Judith Butler (2004, p. 101)
diz “parece[r], pois, que o próprio sentido do “ser judeu” ou da judeidade tenha sofrido
um certo empobrecimento”. Buscando “outras formas de judaísmo que ficam muitas
vezes desconhecidas ao mundo”, é com essa mistura que Tina, no evento, diz ter rompido
depois de entender o que ela reproduzia:

Eu acreditei que Israel e os israelenses só faziam o que era justo e humanitário, e eu


acreditei e reproduzi essas falas. E pra mim sionismo é isso: construir essas falas
misturadas ao judaísmo. É misturar o que é nacionalismo ao que é religião, herança dos
meus avós, ao que é herança de uma luta terrível contra a opressão deles, de fugas. É se
perder nesse nacionalismo que agora tá faznedo opressão contra outro povo. Pra mim é
isso [silêncio]. Não é fácil falar. [Tina, no evento]

Em contraste com a invizibilidade dos fantasmas dos “refugiados” palestinos,


corporificados nas falas de Gabriel, os fantasmas do “antissionismo” e do

187
“antissemitismo” se veem muito presentes nas falas de Moisés e Teles. As aparições das
categorias “antissionismo” e “antissemitismo” no evento estão listadas abaixo:

Gabriel Tina Teles Moisés Plateia

ANTISSIONISMO/ 0 0 0 8 0
NISTA

2 3 7 12 1
(rechaçando pinkwashing (como acusação que sofreu por
ANTISSEMITISMO
como forma de criticar Israel e deixar de
/MITA antissemitismo; e dizendo acreditar no sionismo; e como
que há posicionamentos acusação que funciona para
contra antissemitismo dentro desculpar Israel pelos seus atos
do BDS) racistas e opressores com os
palestinos)

Reconhecer em Israel um produtor de refugiados, sua responsabilidade na tragédia


palestina e, com isso, defender o direito de retorno às suas vítimas e reparação105 parece
significar o fim do Estado-Monumento (noção desenvolvida na parte I) de Israel e um
retorno à condição judaica de vulnerabilidade e, por isso, está fora dos limites da crença
que vê, como várias vezes afirmaram Teles, Moisés e outros, no “antissionismo” uma
forma de “antissemitismo”106. As vozes das vítimas que pedem solidariedade através do
BDS parecem inaudíveis diante dos fantasmas pelos quais se ergue (todo) Estado
(ANDERSON, 1993), e particularmente Israel, e faz dele uma condição de sobrevivência,
ainda que angustiada. Diz Moisés:

105
Segundo o relatório (BADIL, 2011), fruto de um estudo dos aspectos práticos do retorno dos refugiados
palestinos a partir das experiências do Timor Leste, Iuguslávia e África do Sul, feito pelas organizações
Zochrot, já mencionada, e Badil, sediada em Belém, o reconhecimento, primeiro passo para a reparação,
significaria não apenas um pedido de desculpas público e coletivo, mas a mudança dos nomes das ruas,
parques e cidades, o ensino da Nakba nas escolas, a concessão de privilégios às vítimas e seus descendentes,
a prestação de contas dos perpetradores (pessoas e instituições) pelos crimes cometidos, bem como o acesso
aos documentos e testemunhos orais que auxiliem nesse processo. A reparação se daria em termos legais e
econômicos, de forma a romper com a situação de desigualdade produzida pela tragédia. Isso significaria,
segundo o estudo, o retorno às casas originais quando possível, compensação financeira, reinclusão social,
desarmamento e desmilitarização. (BADIL, 2011, p. 25-26)
106
Uma fala que pode ser considera ‘excepcional’ no campo, feita por um interlocutor considerado “mais
à esquerda”, é a seguinte: “é normal [o antissionismo na esquerda]. Porque assim, quem é o maior parceiro
dos Estados Unidos no mundo? Israel, cara. Não tem como os caras não enxergarem Israel como uma base
avançada dos Estados Unidos no Oriente Médio. Pra tirar petróleo do Oriente Médio. Normal isso, as
pessoas pensarem isso, porque de certa forma é, cara. De certa forma é. E entender porque a galera olha
mais pro conflito Israel-Palestina, eu entendo, e não vejo isso como antissemitismo, sabe? Não vejo. E cara,
vai falar que a comunidade [judaica] do Rio e de São Paulo é pobre? Não é. Os caras são....né. Os caras são
o capitalismo, cara. Então quando tem... o problema é chegar e.... tipo... partir pra outras paradas tipo, falar
que matou Jesus, e que todo judeu é isso, TODO judeu é aquilo,... aí começa a ir pra um lado que aí eu não
entendo. Aí eu não entendo.”

188
Pra finalizar, me lembro aqui de Santa Maria 107 , me lembro do que aconteceu na
sociedade de antropologia americana108. [...] Eu queria pedir uma coisa pra gente poder
continuar conversando: não tem o que fazer - eu sou judeu e eu sei que o antissemitismo
é usado [nas] críticas à Israel.[...] Há que se deixar claro [...] que qualquer questão que
se confunda com antissemitismo – e em Santa Maria foi – há que ser condenada pelos
militantes do BDS. Acho isso importantíssimo. [Moisés no evento]

Projetada para frente e para trás a figura fantasmagórica do “antissemitismo”, a


história judaica, como diz Ella Shohat (apud PAPANTONOPOULOU, 2014, p. 282) é
transformada num “liga-pontos, de pogrom a pogrom”: o limite angustiado da crença é a
impossibilidade de abrir mão do Estado que reproduz a própria condição que a fez
“necessária” – a produção dos sem-Estado (BUTLER; SPIVAK, 2009). Como me explica
o interlocutor da epígrafe, se o BUND acreditou na possibilidade de uma diferença
judaica que não significasse desigualdade e cujas fronteiras não fossem asseguradas por
um Estado sionista, essa crença fora derrotada pela história, restando acreditar num
sionismo que fosse “de esquerda” e numa esquerda que, também derrotada pela história,
fosse sionista.

Essa forma de pensar a história judaica como uma história de repetições, que liga
“pogrom a pogrom”, aciona uma retórica da suspeição (BOLTANSKI, 2004) constante
nas falas dos interlocutores. Tal suspeição não é cessada com documentos e constatações,
como as de Gabriel, que dizem ser o BDS um movimento que “só boicota relações
institucionais e não pessoas”, que se mobiliza “contra todas as formas de discriminação,
[sendo] um dos maiores braços do BDS é a Voz Judia pela Paz [Jewish Voice for Peace]”,
que é crítico a “posições antissemitas dentro de quem se diz que é pró-Palestina”, e em

107
Moisés se refere ao episódio de agosto de 2014, durante a brutal ofensiva de Israel à Gaza, em que
representantes da Seção Sindical Docente da Universidade Federal de Santa Maria, do Diretório Central
dos Estudantes, da Associação dos Servidores da UFSM e do Comitê Santa-Mariense de Solidariedade ao
Povo Palestino encaminharam requerimento ao reitor da UFSM, no qual, “[...] considerando que a atual
Política Externa brasileira se baseia no tripé democracia, desenvolvimento e descolonização, situação de
fato e de direito divorciada do que se passa entre Israel e Palestina há quase 50 anos, com escalada maior
de gravidade nos últimos 8 anos e flagrância indescritível nos últimos dias”, solicitavam, com base na Lei
de Acesso à Informação, dados sobre a participação da Universidade no “Pólo Espacial do Rio Grande do
Sul”; a relação da Universidade com pessoas jurídicas israelenses; a perspectiva da Universidade “receber
alunos/professores/autoridades/profissionais israelenses” e “a convite/proposta de quem”; e sobre o
“beneficiamento” da Universidade “de algum recurso, material o[u] humano, de origem israelense”. Os
solicitantes afirmavam que o pedido vinha do fato de haver vários documentos e artigos acadêmicos que
dariam conta “da participação da UFSM em projetos de desenvolvimento de tecnologia de “defesa” em
parceria com a empresa brasileira AEL, subsidiária da israelense ELBIT Systems Ltd.”, a mesma empresa
de desenvolvimento de tecnologia aeroespacial, terrestre e naval, cujo rompimento do contrato com o
governo do Rio Grande do Sul, Gabriel diz ter sido uma das vitórias do BDS. <http://bit.ly/2EGrSC7>.
108
Aqui ele se refere à votação da petição pelo BDS ocorrida na AAA, já discutida acima.

189
cujo site se lê uma declaração de “solidariedade contra o racismo, [que] fala do
antissemitismo [e] da ascensão neonazi nos Estados Unidos”.

Palavras sem efeito, o BDS segue sendo visto com suspeita: “BDS são blocos
econômicos disputando poder”, diz uma interlocutora próxima ao Movimento Avodá no
Brasil, “o boicote à Israel só pode ser antissemitismo... Por que não boicota a China que
ocupa o Tibet? Ou o Brasil, que assassina sua própria população?”, diz o viajante
Gregório Duviviver em palestra sobre suas “impressões” de Israel/Palestina; “Eu entendi
o que vocês querem... vocês querem ganhar. E vocês vão ganhar destruindo a esquerda
sionista, boicotando ela”, profetiza Moisés, angustiado.

A retórica da suspeição – que, Segundo Boltanksi (2004), esteve presente na


retórica jacobina, e mais tarde marxista, desacreditando e condenando devotos à “causa
do povo” em razão de suas origens burguesas ou então como invenções à serviço de uma
necessidade de acusação –, parece ser um elemento fundamental na relação entre
acusados e acusadores.

tem gente que disfarça porque sabe que não pode dizer que é contra judeu, inclusive dá
cadeia. Dizer que é contra a existência de Israel não dá [cadeia]. Então as pessoas
transformam uma coisa na outra. [...] Tanto que tem um dos textos [publicados por uma
tendência trotskista de um partido de esquerda], eu vou até procurar essa análise, se eu
achar eu te envio, porque teve um dos textos que alguem fez uma análise, não lembro
quem, por trás do texto, nas entrelinhas assim, o texto é feito com muita pesquisa,
porque você não consegue dizer que o texto tá sendo antissemita, mas assim, ele é feito
baseado em cima de vários argumentos antissemitas, mas que não tão claros ali, um
negócio MUITO bem feito. [9, ênfases dela]

Na hora que eu entrei ali [no Partido] meio que... eu os jovens que entraram junto, a
gente rompeu uma fronteira. Porque pra uma parte da esquerda brasileira você não pode
ser sionista e esquerda, não existe isso. Pra eles não existe isso. E quando você
reivindica isso [...] você também tira a força deles, porque eles muitas vezes ganham o
espaço deles, crescem, e falam “não pode sionista, aqui não existe sionista!”, e muitas
vezes “aqui não existe judeu!”. É porque eu sofri antissemitismo lá dentro [do Partido],
não é que eu sofri só antissionismo...a maioria que eu sofri foi antissionismo...e com
isso eu dialogo...mas eu sofri ANTISSEMITISMO, e com isso eu não dialogo. Sofri
antissemitismo velado, que para mim estava claro. [12, ênfase dele]

Sentindo-se eles mesmos boicotados pelo chamado de boicote “institucional” à


Israel, os interlocutores desconfiam da retórica dos “direitos humanos” e da “lei
internacional”, nas quais se baseiam as reivindicações dos palestinos. Embora esse
argumento não tenha sido explicitado pelos interlocutores, o texto de Netta Van Vliet
(2015), uma autora crítica daquilo que ela vê como um discurso “limitado” do BDS
acadêmico, joga uma luz sobre os fantasmas presentes nas falas do campo:

190
se o discurso do boicote é o discurso da inclusão na modernidade e civilidade europeias,
baseada nos direitos humanos e no sujeito do cidadão liberal, não é a ameça à rejeição
da inclusão dos israelenses neste grupo a mesma ameaça vivida pelos judeus a menos
de um século atrás na Europa – a ameaça que reforçou as convicções sionistas de que
era necessário estabelecer uma democracia liberal explicitamente marcada como judia
porque judeus não podiam ser incluídos como judeus nas democracias liberais
europeias? Como pode uma repetição daquela ameaça convencer aqueles que já
desconfiam deste discurso, alguns cujos pais e avós foram mortos por aqueles que
cumpriram tal ameaça, que eles devem agora confiar na linguagem dos direitos
humanos universais e no ideal do sujeito liberal e cidadão não marcado? (VLIET,
2015,s/p.)

Fundada nas modernas “democracias liberais” ocidentais que, se hoje apoiam o


chamado de BDS, durante a Segunda Guerra Mundial negaram a ‘humanidade’ dos
judeus europeus (VLIET, 2015), o problema da “diferença judaica” parece seguir
latejando como uma dor que não passa, compartilhada por sionistas de “direita” e de
“esquerda”, e exposta como o problema do “antissionismo como antissemitismo” e a
angústia do “sionismo de esquerda”.

Mais do que aos “direitos humanos”, os interlocutores parecem desconfiar do


próprio projeto político do “humano” – esse generoso conceito universal do qual os judeus
europeus foram vítimas e com o qual nem intelectuais como Foucault e Sartre foram
incapazes de romper (SAID, 2000). A Israel do “sionismo de esquerda” talvez seja fruto
dessa própria desconfiança fundamentada numa distribuição desigual de “humanidade”,
num mundo dividido em Estados nacionais e no qual se é humano quando se é cidadão –
ou amigo de quem o é: Estado dos sem-estado por excelência, Israel é parte da história
europeia e de seus fantasmas, como lembra a fala que trago na epígrafe – e, se não fosse
a declaração de Balfour e o nazismo, talvez não existisse.

A história judaica que “liga pogroms a pogroms” sabe que a distribuição de


humanidade (ainda) está vinculada ao projeto europeu de Estado-Nação, através do qual
se recebe o direito a ter direitos (ARENDT, 2012). Assim, vítimas das vítimas, os
palestinos, não humanos porque não cidadãos/nacionais, funcionam para os judeus
sionistas como fantasmas deles mesmos – reflexos, memórias.

A questão pra mim, e aí entra a questão da esquerda e a questão identitária, é que não
posso ter um lugar pra mim enquanto o outro não tem. Isso pra mim não faz sentido.
EXATAMENTE por ter sofrido tanto. [...] Foi justamente classificando qual vida tinha
mais importância do que a outra que a gente foi parar onde a gente parou. [13, ênfase
dela].

É nesse sentido, como um movimento da angústia, que, se não se “pode ser contra
o Estado de um povo que sofreu”, é imperativo que o “sionista de esquerda” defenda um

191
Estado para os sem-Estado (“o fim da Ocupação”) e siga crendo num “Estado judeu e
democrático” e descrendo na humanidade: no limite, é essa sua origem e seu fim.

Localizados entre um chamado de boicote que contamina a ‘explicação’ ao


denunciar os limites inerentes à “democracia judaica ocidental”, as “políticas de Bibi
Netanyahu” (a figura da distopia do sonho) e os expoentes da política conservadora
brasileira que têm cada vez mais se aproximado de Israel (também foram recentes
viajantes convidados ao país – não pelas mesmas pessoas – a ruralista Kátia Abreu, o
candidato à presidência no Brasil e admirador da tecnologia militar israelense, Jair
Messias Bolsonaro, e o pastor da Igreja Universal e prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo
Crivella), a esperança “sionista de esquerda”, em agonia, parece ser a única possível para
aqueles que, ouvindo alto os gritos de dor de seus próprios fantasmas (judeus
perseguidos), memória viva de que é feita o Estado-Monumento, não podem ver os
fantasmas presentes sob seus próprios pés109.

Em “tempos sombrios” como estes, “à beira do fascismo”, diz um interlocutor,


cofundador do JuProg,

podemos ver ressurgir o antissemitismo. [...] Nós temos que atuar junto aos oprimidos.
Então nós temos que estar ao lado dos oprimidos. Então temos que estar junto ao povo.
Temos que estar junto ao movimento negro, ao movimento LGBT... então estes são os
nossos defensores naturais, com todas as dificuldades que possam existir em relação a
isso em função de Israel hoje ser um Estado opressor. Quero dizer, é... os direitos civis
dos judeus são considerados como coisa de uma elite. Por parte do... povão, né? É...
mas não, a gente tem que trazer, e é um processo de educação que tem que se dar junto
com o povo. Então nós temos que estar junto ao movimento popular. Ao movimento
social. [1]

Se o sionismo é a crença no projeto na “libertação nacional judaica”, o Estado de


Israel, sua criação, repete a história que o ‘fez necessário’: a “periferia” do sionismo
parece ser hoje o único lugar habitável, uma espécie de refúgio necessário to keep going
dentro da doxa da crença. Único lugar habitável, a educação da Esquerda parece ser tarefa
igualmente necessária e urgente.

109
Talvez por essa mesma impossibilidade haja, na “esquerda sionista” de Israel hoje, uma agonia em
relação à deportação forçada de cerca de 36.000 pessoas vindas do Sudão e Eritreia, e que, pedindo
asilo/refúgio em Israel, serão mandadas ‘de volta’ para Ruanda e Uganda, ou presas por tempo
indeterminado (LEIFER, 2017).

192
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser de seu próprio tempo.

- Karl Jaspers, citado por Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo.

Com esta dissertação, busquei mapear as operações ativas naquilo que


considerei o ‘campo angustiado’ do “sionismo de esquerda” como vivido por
fragmentos da população judaica do Rio de Janeiro e São Paulo. Para isso, optei por
mobilizar termos agudos como “angústia”, “agonia” e “inflamação” porque essa foi a
forma com que organizei aquilo que ouvia seja na interação com os interlocutores,
‘espremidos’ entre o “sionismo de direita” e os “antissionistas” e interpelados pela
figura semiótica que minhas marcas, mapas e experiência em Israel/Palestina
acionavam em seus discursos; seja pela literatura que mobilizei, ela mesma situada
dentro do campo da disputa. “Angústia”, nesse sentido, não é uma categoria analítica
‘neutra’, mas construída na minha interação com os interlocutores e com a literatura
que me é cara.

Todos os deslocamentos e rupturas que atravessaram minha trajetória, como


tentei objetivar na introdução, sobretudo meus estudos, o deslocamento físico à
Cisjordânia e suas inúmeras implicações, sendo uma delas meu retorno ‘mal
sucedido’ à “comunidade judaica” de São Paulo, contribuíram para que o “sionismo”
como crença na libertação nacional judaica através da soberania política na Palestina
se transformasse em uma crença inviável, sem qualquer possibilidade de
flexibilização que o pudesse tornar um projeto de “esquerda” para mim.

Embora não tenha sido possível objetivar aqui a segunda viagem que fiz à
Israel/Palestina, uma viagem não de adesão, mas de desafio à crença num “Estado
judeu democrático na Palestina”, é preciso dizer que ela foi ambígua. Por um lado,
minha presença na Cisjordânia ocupada confirmou o fato de que o “binacionalismo”
não é algo situado no futuro, mas uma realidade já existente em Israel/Palestina, e o
que se vê é um controle da ‘vantagem demográfica’, onde se assenta a soberania
judaica, através da distribuição desigual de direitos entre judeus e não judeus. Por
outro, trabalhando como “acompanhante ecumênica” em um programa cristão
europeu a fim de “testemunhar” e “reportar” a vida palestina sob a “ocupação”,

193
também eu fui agente da caridosa política humanitária, mantida a fogo baixo, entre a
impotência para a transformação e o pragmatismo do possível.

De toda forma, diante da contaminação pela impossibilidade da crença na


redenção pelos “dois Estados”, tratar o “sionismo de esquerda” como uma crença, no
sentido maussiano, permitiu, como disse no começo dessa dissertação, que eu pudesse
levar a sério o que os interlocutores diziam, seus afetos, preocupações, criações
discursivas e sonhos, já que crença, aprendi, não é mais ‘ficional’ do que qualquer
outra dimensão social da vida e dos sentidos que a produz. Se o Estado de Israel foi
erigido pela própria crença na possibilidade da “libertação nacional judaica”, os
‘obstáculos’ que se impuseram a tal realização (sendo os indígenas palestinos o
principal deles) não foram suficientes para barrá-la. No entanto, diante dos “desvios”
e “incompletudes” entre o “sonho” e a realização do projeto (sendo o massacre e a
expulsão de mais de 800.000 palestinos o mais profundo deles, e ainda inacabado) e,
de forma ainda mais dramática a partir de 1967, a manutenção do “sonho sionista de
esquerda” demanda, como qualquer outra crença, uma contínua produção,
agenciamentos e operações. De forma muito limitada, foram algumas dessas
operações de salvamento e aflição que tentei “compreender” e descrever ao longo da
dissertação.

Localizados entre a moralidade de certa justiça (acionada seja pela gramática


da Esquerda, seja pelo compromisso com seus mortos perseguidos) e a violência de
Estado intrínseca à sua produção como “Estado Judeu” na Palestina, os interlocutores
assumiam para mim, uma judia reconhecida como “antissionista”, “pró-Palestina” ou
às vezes “self-hating jew”, as contradições e dilemas desse lugar. Ao mesmo tempo,
que acionavam certos regimes de justificação como o pragmatismo do ‘mal menor’
diante de um quadro “assustador” que vê no chamado palestino de Boicote,
Desinvestimento e Sanções um “projeto” de Netanyahu.

Nesse sentido, é relevante dizer que se optei por manter citadas, por vezes de
forma exaustiva, várias das falas dos interlocutores no texto, não pretendi com isso
“dar voz” para quem, segundo uma entrevistada, já “faz bastante barulho”. Com
algumas dessas reproduções, busquei trazer ao texto a minha própria perplexidade
diante de algumas das elaborações produzidas em campo. Diante de tanto silêncios e
apagamentos que as crenças performatizam, não sou eu, tampouco a dissertação, que

194
os romperá: trata-se de um silêncio profundo e estruturador da própria possibilidade
de crer.

Dito isso, na primeira parte do trabalho, tratei de descrever alguns mecanismos


de produção, circulação e transmissão da crença “sionista de esquerda” através de
seus materiais, montagens e ritos. Aqui, foram marcantes as construções de sionismos
subjetivados, que dariam conta de preservar o “sobrenome sionista” sem que se
tivesse que abrir mão da possibilidade da crítica, a partir da criação de infinitas
possibilidades de “sionismos” pessoais; e também da construção da figura do
duplo-Estado, que distingue o “Estado sionista”, ainda não concluído, da “ocupação”,
“imoral”, que corrompe o ocupante. Em seguida, dois eventos emblemáticos do
estado da angústia foram descritos como ritos do fazer crer.

Já a segunda parte se preocupou mais detidamente com a práxis da crença


‘para fora’ dos círculos judaicos e ultrapassando as situações de entrevista. Para isso,
descrevi alguns dos embates discursivos que exigiram pedagogias, explicações,
gramáticas específicas e apagamentos diante de mundos inconciliáveis e a produção
de periferias judaico-sionistas frente à Esquerda brasileira. Por fim, dediquei-me ao
fazer ver/fazer sumir da crença, a partir de certas viagens feitas com figuras públicas
reconhecidas como “de esquerda” no cenário político brasileiro.

Se não posso subscrever as respostas de meus interlocutores aos dilemas


contemporâneos, dediquei-me a compreendê-las e reconhecer a honestidade de suas
perguntas e aflições. Parte das operações da crença “sionista de esquerda”,
principalmente aquelas relacionadas à nostalgia de um passado imaginado, sem
dúvida ultrapassam o tema do conflito-ocupação em Israel/Palestina e podem ser
entendidas, considerando um quadro mais geral da Esquerda, como reflexos de um
mundo em desmoronamento, no qual poucos tem sido os repertórios disponíveis para
a criação/imaginação de um outro mundo: desnecessário dizer que não são apenas os
“sionistas de esquerda”, ou apenas essas pessoas enquanto “sionistas de esquerda”,
que se encontram hoje “angustiados” e sob ataque. Nessa escala mais ampla, parece
que a própria possibilidade de crer se vê hoje em jogo.

No início da introdução, descrevi uma cena em que se sobrepunham visões


desse desmoronamento de mundo. Outra cena que compõe um retrato da angústia
mais ampla compartilhada pela Esquerda é um episódio que aconteceu em São Paulo.

195
Sob cartazes de “pedofilia não”, “menino nasce menino”, “por mais princesas e
menos bruxas”, e munidos de bíblias, terços, e uma bandeira do Brasil – e outra de
Israel – manifestantes pregavam o projeto da Escola Sem Partido e recusavam a
“ideologia de gênero” enquanto queimavam um boneco da filósofa Judith Butler,
representada como uma bruxa, e o do banqueiro, e também judeu, George Soros,
identificado como financiador da esquerda e da “ideologia de gênero” pelo mundo.

Nesse sentido, escrevendo em um mundo em convulsão, minha escolha em


fazer do “sionismo de esquerda” uma pergunta de pesquisa passou, como dito na
introdução, pela minha própria posição no campo das possibilidades de imaginação
política no mundo contemporâneo. A crença, sendo também uma categoria relacional,
permitiu-me entender que, se sou descrente diante do “sonho sionista”, não o sou
diante de outros sonhos. Nesse sentido, também compartilho da angústia de um ar
rarefeito à imaginação não só de uma Israel/Palestina possível mas de um mundo que,
para alguém nascida no ano de 1988, se encontra em desmoronamento. Essa
dissertação é também parte de uma pergunta mais ampla sobre qual é o meu papel,
como jovem judia não sionista, branca, lésbica, de uma classe média urbana e de
esquerda, na imaginação e produção de um outro mundo.

Concluo dizendo que se a própria elaboração dessa pesquisa, com todos seus
limites, gerou deslocamentos – seja pela formulação das perguntas, seja pelo desafio
da escuta das respostas, seu tratamento, seleção e edição – ela é em si parte do campo
angustiado em que se vê a crença e, portanto, matéria de disputa. Se, por um lado,
tentei objetivar os momentos em que minha presença foi um marco relevante na
interpelação e produção do campo, por outro, percebo que eu mesma fui movimentada
pelo campo que construí e, por fim, que a própria dissertação, uma vez concluída e
circulada, o será. Sua leitura e repercussão – seja pelo silêncio ou pela crítica – devem
ser entendidos, portanto, dentro desse enquadramento. Nesse sentido, não pretendi
escrever ‘sobre’ o “sionismo de esquerda” no Brasil, lançando mão ao truque dos
olhos de deus, de Haraway (1995): este é, do começo ao fim, um trabalho contido no
próprio campo que o produziu. E, nesse sentido, também compartilho algum nível da
angústia que descrevi, senão como “sionista”, como crente de uma Israel/Palestina
possível e de um mundo sem injustiça, desigualdade ou racismo.

196
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210
GLOSSÁRIO

• Agência Judaica – criada em 1929 como o organismo executivo da Organização


Sionista Mundial a fim de representar os judeus na Palestina durante o Mandato
Britânico. Com a fundação de Israel, adquiriu outras responsabilidades, como
aquelas em torno da relação entre Israel e a “diáspora judaica”.
• Aliá – literalmente “subida”, “ascensão”, é usado como sinônimo de imigração à
Israel. Concebida como resultado do processo educativo e ideológico do
movimento juvenil. Seu contrário é ieridá, literalmente “descida”.
• Ashkenazita/Ashkenazim – judeus originários da Europa ou eslavos.
• Avodá – trabalho, Partido israelense Avodá (antigo MAPAI).
• Boguer – pl. bogrim: madrich formado, mais velho do movimento juvenil, já fez
Shnát e faz parte da liderança local e nacional. Em geral tem entre 18 e 22 anos.
• BUND – abreviação de Algemeyner Yidisher Arbeter Bund in Lite, Poyln un
Rusland: União Geral dos Trabalhadores Judeus na Lituânia, Polônia e Rússia.
• Chalutz – pl. chalutzim: pioneiros; referência aos primeiros colonos sionistas na
Palestina.
• Chanich – pl. chanichin: educando, pupilo, alunos mais novos dos madrichim.
• Chaverim – pl. chaverim: literalmente amigos, camaradas, são os membros do
movimento juvenil.
• Chultzá – camiseta/uniforme do movimento juvenil.
• Gadná – um programa em Israel com o objetivo de preparar os jovens para o
serviço militar oficial do exército. Na diáspora, são atividades lúdicas inspiradas
em operações militares.
• Galut – literalmente “exílio”.
• Garin – literalmente “semente”, é o grupo que faz aliá à Israel com o objetivo de
concretizar um kibutz.
• Goi/á – termo para não judeu/ia, às vezes carregado de valor pejorativo
• Haganá – literalmente “defesa”, foi uma organização clandestina militar judaica
na Palestina britânica, criada em 1935. Fundado o Estado de Israel, foi o núcleo
que deu origem ao exército oficial.
• Hashomer Hatzair (“Jovem Guardião”) – movimento juvenil judaico “sionista
socialista”, formado na Europa em 1916. Inspirado em A. D. Gordon, Theodor
Herzl, Ber Borochov e também em intelectuais soviéticos, buscou unir seu
objetivo sionista à utopia socialista, inaugurando o movimento kibutziano de
colonização da Palestina no início do século XX (1920), ligado ao
MAPAM/MERETZ.
• Histadrut – “Confederação Geral dos Trabalhadores Hebreus da Terra de Israel”,
fundada em 1920 reunindo funções sindicais, cooperativas, securitárias e
industriais.
• I.M.I. – Irgun Maginei Israel (Hebrew for Organization of the Defenders of
Israel).
• Ichud Habonim Dror – “União dos construtores (da nação)”, nome adotado em
1958 pelo movimento juvenil sionista socialista fundado na Polônia na década de
1920 vinculado ao MAPAI/Avodá.
• Ishuv – colônias judaicas na Palestina antes da fundação do Estado de Israel.

211
• Kibutz – da raiz hebraica “k-b-tz”, significa literalmente “reunir em assembléia”.
Kibutzim são as colônias judaicas coletivas baseada na posse comum dos meios
de produção.
• Keren Kayemet LeIsrael (KKL) – Fundo nacional judaico estabelecido em 1901
pela Organização Sionista Mundial para a compra de terras na Palestina.
Arrendava terras para os kibutzim, investia em tecnologias de agricultura.
• Kvutsá – grupo, comunas. Da mesma raiz de “kibutz”. No movimento juvenil, é
composta entre 12 e 25 membros e liderada por um madrich/á.
• Machané – acampamento de férias realizado por um movimento juvenil.
• Machon LeMadrichei Chutz Laaretz – instituto para formação de líderes de
movimentos juvenis da diáspora, organizado pelo Departamento Juvenil e
Pioneiro da Agência Judaica, inaugurado em 1946.
• Madrich/á – pl. madrichim/ót: educador, encaminhador, guia dos chanichim,
servindo-lhes de modelo. Em geral quatro ou cinco anos mais velhos que seus
chanichim, é responsável por transmitir-lhes os valores do movimento.
• MAPAI – sigla para Mifleguet Poalei Eretz Israel (“Partido dos Trabalhadores de
Israel” ou somente “Partido Trabalhista”), transformou-se em Partido Avodá.
• MAPAM – sigla para Mifleguet Poalim Meuchedet (“Partido Obreiro Unido”),
de orientação sionista e socialista, fundado em 1948 numa fusão entre o setor “da
esquerda” do Poalei Tzion e o Hashomer Hatzair. Transformou-se no Partido
MERETZ.
• Mazkir/á – secretário/a do movimento juvenil sionista eleito em assembleia.
• Mizrachim – literalmente orientais, são chamados os judeus oriundos de países
árabes e muçulmanos da Ásia e por vezes também do norte da África.
• Mossad – serviço secreto de inteligência israelense para assuntos “externos”.
• Nakba – a catástrofe, em árabe, é o nome dado ao processo de expulsão e morte
dos palestinos, iniciado em 1948 e ainda não findo.
• Or LeGoim – literalmente “farol para as nações”.
• Sabra – usado para designar o judeu nascido em Israel é um termo “hebraicizado’
da palavra árabe sabar, que dá nome às peras espinhosas que cresciam nas vilas
palestinas, destruídas em 1948.
• Shabak – serviço secreto de inteligência israelense para assuntos “internos”.
• Sheliach – enviado, emissário sionista que vem de Israel para auxiliar no
funcionamento de uma instituição judaica.
• Shnát Achshará – Ano de preparação; programa de viagem de capacitação dos
madrichim, realizado em Israel, com a duração de dez meses.
• Shoá – literalmente sacrifício, é o termo usado para se referir à catástrofe dos
judeus sob o regime nazista.
• Talmud – é o debate rabínico sobre as interpretações das leis descritas na Torá,
também conhecido como “lei oral”.
• Tfutsoth – literalmente dispersão, diáspora.
• Tnuá – pl. tnuót: literalmente tráfego, trânsito, é usado como sinônimo de
movimento juvenil sionista.
• Torá – os cinco primeiros livros da bíblia (Tanach).
• Tzavah – exército israelense.
• Yeshivá – instituição de estudos superiores para o estudo do Talmud, sem o
objetivo de se profissionalizar ou de obter títulos.

Fontes: MILGRAM, 2010; PINSKY, 2000; MASALHA, 2012a.

212
APÊNDICE I

Versão-base do roteiro utilizado nas entrevistas semiestruturadas

1) Origem familiar, trajetória pessoal e produção da “identidade judaica”

▪ Apresentação (Nome, idade, lugar de nascimento, profissão)


▪ Origem da família
▪ Tem familiares morando em Israel? Sente vontade de morar lá? Tem cidadania
israelense?
▪ Escolarização/ formação/ profissão atual
▪ Você se reconhece uma pessoa judia? O que te faz “judeu”? Algum sentimento ou
responsabilidade vem acompanhado dessa identidade? (orgulho, vergonha...)
▪ Você acredita no deus da religião judaica? Tem alguma outra prática espiritual?
▪ Você se sente pertencente a uma “comunidade” ou coletividade judaica? Consegue
descrever qual seria a substância dessa coletividade?
▪ Qual sua prática judaica?
▪ Vê alguma mudança dessa prática em relação a seus pais e avós?
▪ Você pretende que seus filhos sejam pessoas judias? De que forma?
▪ Você convive(u) com não-judeus? Em quais momentos, lugares?

2) Constituição como uma pessoa “de esquerda”

▪ Você se considera uma pessoa politicamente posicionada à esquerda? O que isso


significa?
▪ Qual sentimento vem acompanhado desse posicionamento?
▪ Em que momento da sua história você se identificou como uma pessoa “de esquerda”?
Foi uma escolha motivada por alguma influência (intelectual, de amigos, espaços,
crenças, etc.)?
▪ Houve rompimentos com familiares ou amigos por conta de seu posicionamento?
Prejuízos ou perdas que você lamenta? Julgamentos?
▪ Qual sua prática “de esquerda”?
▪ Exerce militância/engajamento em algum grupo de esquerda hoje? Há um “projeto de
esquerda” com o qual se identifique/sonhe?
▪ Pra você, as pessoas judias têm ou tiveram alguma contribuição específica para a
consolidação de um projeto político “de esquerda”?
▪ Você atua ou já atuou em alguma instituição ou grupo que não fosse “de esquerda”?
Como foi isso?
▪ Participou da construção de algum kibutz ou já morou em algum?

3) Ser ou não ser sionista [categorias de identificação “judeu secular sionista de esquerda”]

▪ O que é sionismo?

213
▪ O sionismo é um projeto colonial? (O sionismo é baseado na igualdade entre os seres
humanos? O sionismo é um projeto de libertação? O sionismo prevê um Estado
democrático para todos seus cidadãos?)

▪ Sobre a produção de vidas precárias pelo Estado, Judith Butler escreveu:


▪ “[...] Es esperable que el estado presuponga, al menos mínimamente, modos de
pertenencia jurídica, pero desde el momento en que el estado puede ser precisamente
aquello que expulsa y suspende modos de protección legal y deberes, el estado mismo
puede ser, para muchos de nosotros, causa de malestar. Puede definir la fuente de no-
pertenencia, incluso producir la no-pertenencia como un estado casi permanente. [...] Si
el estado es lo que vincula, también es claramente lo que puede desvincular. Y si el
estado vincula en nombre de la nación, conjurando {produzindo} forzosa si es que no
poderosamente cierta versión de la nación, entonces también desvincula, suelta, expulsa,
destierra. [...] No estamos fuera de la política cuando estamos en ese estado de
desposesión. Más bien, somos depositados en una densa situación de poder militar donde
las funciones jurídicas se convierten en prerrogativas de las fuerzas armadas. No se trata
de nuda vida, de mera vida [ref à Agambem], sino de una formación particular de poder y
de coerción diseñada para producir y mantener la condición (el estado) de privación”
(BUTLER; SPIVAK, 2009, p.43-45)
▪ Você concorda que o estado-nação requer a expulsão regular e contínua de suas minorias
nacionais para obter um fundamento que o legitime? De que forma um Estado pode
significar um projeto de libertação?
▪ Você é sionista?
▪ “o sionismo é uma cerca [fence] que circunda [encircles] o povo judeu, isolando-o,
concedendo-lhe supremacia sobre outro povo desta terra. É tempo de reconhecer que o
sionismo tornou-se um slogan vazio usado apenas para conceder aos judeus direitos sobre
não judeus e dizer adeus a isso para sempre. O medo dos cidadãos israelenses sionistas de
perder esses privilégios é, certamente, compreensível.” (ROTEM, 2016)
▪ Você concorda com a fala de Noam Rotem, ativista judia-israelense?
▪ Em que momento da sua história você passou a se identificar como sionista? Houve
mudanças nessa identificação desde então?
▪ Fez/faz parte de algum “grupo sionista”?
▪ Qual sua “prática” sionista hoje?
▪ Se você pudesse concretizar seu “sonho/ideal sionista”, como ele seria? Ele já se realizou
em algum momento? O que é preciso para que ele se realize?
▪ Como você vê a ideia do Estado de Israel ter se estabelecido, segundo a ideologia dos
movimentos juvenis “de esquerda”, com o intuito de ser um “farol de luz para as nações
gentias” [Or LeGoim - conceito bíblico citado no livro do profeta Isaías e “secularizado”
pelo empreendimento sionista1]?
▪ Seu sionismo contradiz algum dos seus princípios “de esquerda”?

1
Isaías 42:6 (“Eu sou o Eterno, que em integridade te escolheu [...] te transformarei em um convênio para todos os
povos e uma luz para as nações”), Isaías 49:6 (“[...] Ainda é pouco seres somente Meu servo, para reerguer as tribos
de Jacob e restaurar a descendência de Israel; farei também de ti uma luz para as nações, para que Minha salvação se
estenda aos confins da terra”) e Isaías 60:3 (“Nações se encaminharão para a tua luz, e os reis para o brilho do teu
esplendor.”) (FRIDLIN; GORODOVITS, 2016)

214
▪ Seu sionismo contradiz seu judaísmo?
▪ Você já deixou de se identificar como sionista em algum lugar por algum tipo de receio?
Ou já amenizou alguma crítica ao sionismo por receio de contribuir para um discurso
antissionista?
▪ Conhece alguma pessoa judia “de esquerda” que não seja sionista? O que acha dessa
posição vinda de uma pessoa judia? Em quê você acha que diferem o sonho “de
esquerda” de vocês?
▪ Você já se sentiu vítima sendo uma pessoa “judia sionista de esquerda”? Como foi isso?
▪ E opressor? Já se viu nesse lugar? Como foi?

4) Sobre “diáspora”, segurança, pertencer e ser representado

▪ Você se reconhece como uma pessoa na “diáspora”? O que significa isso? Hoje há duas
palavras no hebraico que remetem, de formas muito diferentes, à ideia de diáspora, um
termo de origem grega, originado da tradução grega da bíblia para a palavra dispersão
que, no livro Deuteronômio, aparece no hebraico como v’hefitze’cha (“e serás
disperso”). Hoje, no entanto, o termo mais corrente em Israel para diáspora é GALUT,
que remete à exílio, e não T’FUTSOTH, que seria o mais literal para dispersão. Entre
exílio e dispersão, qual palavra melhor define sua identidade enquanto pessoa judia no
Brasil?
▪ Você se vê pertencente ao ocidente? E a tradição judaica a qual você se vê pertencente,
você a considera ocidental?
▪ Pensa em morar em outro país? Por que?
▪ Você se sente seguro onde mora?
▪ Você fez serviço militar brasileiro?
▪ Você se sente MAIS seguro pelo fato de existitr um Estado para onde você possa emigrar
a qualquer momento? Sua família ou parentes próximos participam/ram da construção do
Estado de Israel?
▪ Você se sente pertencente ao Estado de Israel? Vai para lá com qual frequência?
▪ Você fez serviço militar israelense?
▪ Você é próximo de alguma instituição judaica, hoje? Sente-se representado por algum
grupo judaico alguma vez?
▪ Você se sente incomodado com o fato do Estado de Israel falar em nome dos judeus do
mundo? Você se sente oprimido pelo Estado de Israel?

5) Sobre territórios, mapas, conhecimento e a “questão Israel-Palestina” [sobre Estado e


violência].

Com mapa da Cisjordânia ocupada e localizar a região onde morei (anexos III e III.I)

▪ Conhece o mapa?
▪ Conhece a Linha Verde?
▪ Identifica o trajeto do Muro construído e planejado?
▪ Reconhece onde estão as áreas de assentamento, já construídos ou planejados?
▪ Sabe o que são áreas de “reservas naturais”?

215
▪ Conhece as áreas A, B e C (sg. Acordos de Oslo) e condições/regimes de vida e trânsito
em cada uma dessas realidades? Conhece jurisdição vigente em cada uma das áreas?
▪ Reconhece as fronteiras internas à cidade de Hebron/Al-Khalili?
▪ Consegue identificar os limites municipais de Jerusalém (Yerushalaim/Al-Quds) e os
limites entre Jerusalém Ocidental e Oriental?
▪ Sabe o que são checkpoints? Consegue localizá-los?
▪ Sabe o que são áreas militares fechadas [firing zone, buffer zone, military base]?
▪ Sabe o que são portões agrícolas?
▪ Conhece as restrições de vida impostas aos moradores da Faixa de Gaza?
▪ Por onde você já circulou desses territórios? Em quais condições isso se deu? [Se não,
tem vontade de circular?]
▪ Qual a sua relação com esses territórios?
▪ Pra você, a quem pertencem esses territórios? De que forma esses lugares estão presentes
na sua vida?
▪ Você se sente responsável pelo que acontece nessa terra?
▪ Conhece(u) ou tem amizades com pessoas palestinas? Tem vontade de conhecer?
▪ Como você vê a “questão Israel-Palestina”? Qual sentimento essa situação te provoca?
▪ Onde e com qual frequência você se informa sobre o que acontece em Israel?
▪ Você conhece ou é próximo de alguma ONG palestina ou israelense de direitos
humanos?

▪ Dessas organizações listadas, qual delas você conhece/já ouviu falar?

ACRI - Association for Civil Rights in Israel Israel (Tel Aviv, Nazaré, Beer
Sheva, Jerusalém ocidental)

Adalah (Justice) - the legal center for Arab minority rights in Israel (Haifa)
Israel

Adameer- Prisoner Support and Human Rights Association Cisjordânia e Jerusalém oriental

Al Haq - defending Human Rights in Palestine since 1979 Ramallah

Al Qaws - for Sexual & Gender Diversity in Palestinian Jerusalém oriental e Israel (Haifa)
Society

Alternative Information Center (AIC) Jerusalém oriental e Cisjordânia


(Belem)

Anarchists Agains the Wall Israel

Jerusalém e Cisjordânia
B'Tselem - The Israeli Information Center for Human Rights
in the Occupied Territories

216
Badil - Resource Center for Palestinian Residency & Refugee Cisjordânia (Belem)
Rights

Breaking the Silence - Israeli soldiers talk about the occupied Israel
territories

Coalition of Women for Peace - a feminist organization


against the occupation of Palestine and for a just peace
Israel

Combatants for Peace Israel (Tel Aviv) / Cisjordânia


(Ramallah)

Defense for Children International Cisjordânia (Hebron/Al-Khalili)

EAPPI - Ecumenical Accompaniment Program in Palestine- Jerusalém oriental/Genebra


Israel

Emek Shaveh - Archeology in the shadow of the conflict Jerusalém ocidental e Cisjordânia

EWash OPT- Emergency, Water, Sanitation and Hygiene


Cisjordânia, Gaza, Europa
(UNICEF, UNOCHA, UNRWA)

Freedom Theatre Cisjordânia (Jenin)

Gush Shalom Israel (Tel Aviv)

Ibdaa Center Cisjordânia (campo de refugiados


Dheisheh - Belém)

Israeli Committe Against House Demolitions (ICHAD) Jerusalém ocidental/Cisjordânia

Jewdas - Radical Voices for the Alternative Diaspora Londres

Jewish Voice for Peace (EUA) EUA

Jewish Voices for a Just Peace - South Africa (JVJP) South Africa

Machsom Watch - Women against the Occupation and for Jerusalém ocidental / Cisjordânia
Human Rights (checkpoints)

New Profile - the movement to demilitarize Israeli Society Israel

Physicians for Human Rights-Israel - health and welfare Israel (Tel Aviv) / Cisjordânia
professionals and social activists

Pinkwatching - A global movement for queer-powered BDS Cisjordânia/ material virtual

217
Public Committee Against Torture in Israel Jerusalém ocidental

Rabbis for Human Rights Israel (Jerusalém ocidental)

Russel Tribunal on Palestine internacional

Ta´Ayush - Israelis & Palestinians striving together to end the


Israeli occupation and to achieve full civil equality through
daily non-violent direct-action. Israel-Cisjordânia

The Center for Jewish NonViolence Europa

The Parents Circle - Palestinian Israeli Bereaved Families for Israel


Peace

Who Profits - The Israeli Occupation Industry Cisjordânia

Yesh Din - Volunteers for Human Rights Israel

Yesh-Gvul - what serving in the army is really like, in the Israel


hopes that this situation will begin to change for the better.

Zochrot - remembering the Nakba Israel (Tel Aviv)

Hannah Arendt, no texto "A decadência da nação-estado e o fim dos direitos do homem”
(ARENDT, 2012), conclui que o discurso dos direitos humanos é débil e nunca protegeu a quem
deveria proteger. Num segundo momento do texto, ela busca um discurso que seja eficaz nesse
sentido, e elenca direitos que seriam fundamentais para que os homens sobrevivessem em sua
humanidade. Dois desses direitos são o direito a um lugar (e ao pertencimento) e o direito a ter
direitos. Esses seriam direitos básicos que não poderiam se fundamentar em nenhum governo ou
instituição social.

▪ Você concorda com a autora? Na sua opninão, hoje os judeus gozam desses direitos
básicos? E os palestinos?

▪ Dentre as políticas do Estado de Israel listadas abaixo, há alguma que o incomoda? De


que maneira?

A) Graus de cidadania distintos para israelenses judeus e israelenses não judeus – Tem
conhecimento de que há hoje cerca de 50 leis discriminatórias em Israel, algumas das quais
formuladas já no início dos anos 50, que privilegiam os judeus em relação aos palestinos
israelenses (que são 20% da população, descendentes dos 300,000 palestinos que ficaram depois
da Nakba/Guerra de Independência), principalmente no que se refere ao acesso à terra e aos
direitos à saúde/educação/moradia, segurança pública, condições sanitárias, participação
econômica, direito à memória e à cultura, etc.? (Adalah, 2012; 2017).

218
B) Lei do retorno a todos os judeus do mundo (birthright, 1950) e negação do direito de
retorno aos palestinos refugiados e seus descendentes (Resolução 194, 1948)

C) Existência de uma lei básica que caracteriza Israel (pela primeira vez em 1992) como
um estado judeu e democrático.

D) Fundamentos religiosos do Estado de Israel - Arranjo do status quo entre Ben-Gurion e


ortodoxos (Agudat Israel) em relação ao Shabbat, Kashrut, leis sobre a família e casamento,
autonomia sobre a educação.

E) Exploração dos recursos (naturais e humanos) pelo Estado e por empresas, sem que se
conceda direitos ou cidadania plena aos habitantes não-judeus.

F) Existência de dois sistemas legais num único Estado, sendo um sistema legal para os
cidadãos de Israel e outro um regime marcial para residentes palestinos.

▪ Pra você, de que forma o território de Israel se distingue dos chamados “territórios
ocupados”?
▪ Como você vê os Acordos de Oslo para a resolução da “questão Israel-Palestina”?
▪ Você vê alguma semelhança entre os kibutzim e as colônias construídas em território
palestino?
▪ Qual sua opinião sobre os movimentos de resistência palestinos (violentos e não-
violentos)?
▪ Conhece termos como “normalização”, “pinkwashing” e outros “washings”? O que
entende por eles?
▪ Qual a razão do prolongamento da “questão Israel-Palestina”? Como esse prolongamento
o afeta?
▪ Qual o caminho para o fim da violência? Haveria uma forma de “diálogo” possível nesse
cenário de violência?
▪ O que pra você seria uma solução justa? (Isso inclui a agenda palestina? Descupação de
67 e fim do Muro dentro do território; Jerusalém oriental como capital; direitos iguais aos
palestinos israelenses e residentes de Israel; direito à cultura e memória palestinas; o
reconhecimento da Nakba e compensação/retorno dos refugiados)?

6) Imaginações de mundo e projeções de futuro

▪ Qual seu palpite “realista” para os próximos anos na região? Como você se sente em
relação a isso? Você se sente responsável por essa solução?
▪ Como se sentiria se Israel não mais existisse enquanto Estado Judeu? Ou então se fosse
abolida a Lei do Retorno e o Estado se tornasse um Estado de seus cidadãos, e não dos
judeus?
▪ Abriria mão do sionismo em alguma situação?
▪ Como seria a “Israel” dos seus sonhos? Tem referências que te inspirem ou na qual você
confia e espelha sua militância?

219
APÊNDICE II

Quadro geral de interlocutores/as entrevistados/as

Neste quadro, estão listadas as pessoas entrevistadas, situadas dentro e fora do campo
“sionista de esquerda” que construí durante a pesquisa através dos contatos e informações
que me foram acessíveis. Como disse na introdução, a rede de instituições que a crença
envolve não foi possível ser completamente mapeada, já que minha posição no campo
condicionou o acesso (ou não) às informações necessárias para montar tal rede.

Considerando que algumas entrevistas foram concedidas em condição de anonimato,


ainda que outras não, optei por omitir as referências que localizavam os interlocutores,
explicitando apenas aquelas relevantes para o argumento desenhado ao longo do texto.
Apresento também as trajetórias daqueles/as que chamei de “interlocutores/as
secundários/as”, situados fora do campo por não se reconhecerem como “sionistas de
esquerda”, porque também suas falas, histórias e posicionamentos em relação à angústia
político-subjetiva que persigo também compuseram meu olhar para o campo e, de formas
variadas, se vêem refletidos no texto. De modo a ter mais controle dos limites do campo,
escolhi considerar como “interlocutores” apenas aquelas pessoas que se reconheciam como
“judias”.

Esclareço também que por “instituições judaicas” me refiro àquelas que foram nomeadas
no campo como tal. São elas: CONIB, FIERJ, FIESP, Hillel, B’nei B’rith, representações de
movimentos e partidos políticos de Israel no Brasil e escolas judaicas. Como “líderes
comunitários” considerei aquelas pessoas que tem cargos remunerados (ao menos aos quais
tive acesso) em instituições judaicas. Para a designação de “profissionais liberais”, usei os
critérios definidos pela Confederação Nacional das Profissões Liberais, que podem ser
acessados em seu site oficial <http://bit.ly/2mV5X3y>.

1. Interlocutores/as situados dentro do campo “sionista de esquerda” em SP e RJ

N.o Idade Sexo Profissão/ Trajetória / Localização no campo


ocupação
1 +60 homem Profissional Impregnado da “consciência do antissemitismo medieval” a
liberal partir das histórias contadas pela mãe que costumava trazer
aposentado memórias dos massacres e perseguições vividos por sua
família na Polônia, costumava sentir medo das pessoas não
judias. Aos oito anos de idade, constavam em seu panteão de
herois Tarzan, Robin Hood, Dartagnan, Moisés e os
“pioneiros” imigrantes judeus na Palestina, fundadores dos
kibutzim, sobre os quais ouvia dizer. Acredita que por ter tido

220
experiências de exclusão na adolescência e mesmo dentro dos
movimentos juvenis sionistas dos quais participou, aprendeu a
cultivar a “solidariedade” pelos oprimidos e hoje se reconhece
como um “revoltado contra todas as formas de injustiça”.
Distingue o judaísmo e o “sionismo dos reis” do judaísmo e o
“sionismo dos profetas”, com o qual se identificaria, e que vê
nos fundadores dos kibutzim na Palestina. Identifica-se como
“periférico” na comunidade judaica e não se sente
representado ou tem vínculo com nenhuma instituição. É um
dos fundadores da comunidade JuProg e hoje se vê envolvido
na concepção e expansão da campanha SISO (Save Israel,
Stop the Occupation), uma iniciativa criada por intelectuais e
ativistas de Israel com o intuito de fortalecer a voz da diáspora
judaica contra a “ocupação de 67”, mais especificamente a
ocupação da Cisjordânia, porque “Gaza” tem outra
“realidade”. Até a data da entrevista, já havia conhecido o
país como turista e em sua última estadia de duas semanas
passou um dia nos “territórios”. Diferente da maioria dos
outros interlocutores, considera o chamado do BDS um
movimento de resistência legítimo, embora não o apoie ou
milite por ele. Tanto por seu entendimento em relação ao BDS
quanto por não ter qualquer vínculo com nenhuma instituição
ou movimento juvenil sionista e pelo fato de dizer, depois de
algumas “desilusões”, que, “tal qual as comunidades fazem
nos Estados Unidos”, é preciso romper com algus setores da
comunidade judaica, colocando assim em questão a doxa do
“diálogo pedagógico” e da esperança da “mudança por
dentro”, considerei-o um interlocutor ‘marginal’ dentro do
campo “sionista de esquerda”. Hoje atua em outras frentes de
luta, como no movimento Raiz e, nas últimas eleições
municipais de 2016, na campanha da Luisa Erundina.

2 +60 homem Profissional Dos 12 aos 20 anos participara de um movimento juvenil


liberal sionista-socialista. Até aquele momento, diz, “não existia o
aposentado problema palestino”. Em visita à Israel como turista, conta
que sua “ficha foi caindo” ao longo da sua estadia. Nos anos
1970, diante da tensão da paisagem israelense, visível no
comportamento das pessoas, optou por voltar ao Brasil,
decidindo “viver brasileiro”, e inclusive se afastando da
“comunidade judaica”. Diz que está “deixando de ser sionista
aos poucos”, mas com bastante frequência participa das
atividades organizadas pelos grupos que compõem o campo,
considerando a “comunidade” virtual JuProg como a única
comunidade judaica com a qual se identifica. Para ele, os

221
judeus “de esquerda” se assimilaram e saíram da
“comunidade judaica”, restando apenas os “de direita”. Até a
data da entrevista, não havia estado nos territórios ocupados
em 1967. Considero-o um interlocutor-limite entre os “não
crentes” e os “sionistas de esquerda” militantes da crença
porque se por um lado afirma que “Israel deve existir como
um Estado democrático e judaico, nesta ordem”, e se diz se
emocionar quando ouve o hino de Israel (Hatikvá, Esperança),
por outro considera que o sionismo é um projeto do século
XIX que já se realizou com a criação do Estado de Israel:
“não era esse o objetivo do sionismo? Um Estado? Hoje o
mundo é uma aldeia global e as pessoas cidadãs do mundo! O
sionismo já era, agora temos que caminhar pro “imagine no
countries, no religions too!”. Nas últimas eleições municipais,
militou na campanha da Luisa Erundina, embora considere
algumas posições da esquerda “muito radicais”.

3 +60 homem Profissional Uma das lideranças do núcleo brasileiro do Paz Agora nos
liberal anos 2000. O grupo, Shalom Achshav, em hebraico, é uma
aposentado ONG israelense fundada nos anos 1970 com o objetivo de
forçar “o primeiro governo de direita”, Menachem Begin, a
assinar um acordo de paz com o Egito, tendo sido central ao
“campo da paz” isralense que impulsionou a realização dos
Acordo de Oslo nos anos 1990). Compôs uma iniciativa de
“diálogo” com judeus e palestinos do Brasil mas que, em
função de divergências políticas, principalmente no tocante à
“questão do retorno”, não se desenvolveu, se dissolvendo
antes da publicação de um documento conjunto. Ser sionista
para ele é uma identidade da qual não se diz disposto a abrir
mão e, em Israel, “sente-se em casa”. Viaja com frequência
para o país, esteve por uma tarde em Gaza, como turista,
quatro anos depois da ocupação israelense de 67, e, durante
uma “excursão” com o Shalom Achshav, visitou algumas
lideranças palestinas em Ramallah e conheceu algumas outras
vilas palestinas, na Cisjordânia. Em Israel, é próximo das
lideranças da Autoridade Nacional Palestina de diálogo com a
sociedade israelense. Se vê descrente e deprimido com os
rumos que Israel tem tomado e por isso se afastou por alguns
anos da “militância”, que pretende retomar em breve.

4 +50 mulher Professora Uma das pessoas representantes do movimento Avodá-Brasil,


de hebraico, ligado ao partido trabalhista de Israel, tem formação
líder universitária em ensino de hebraico e bíblia – embora a
comunitária
religião judaica seja “só uma partezinha” de seu judaísmo.
e
Hoje ocupa cargos políticos, voluntários e não voluntários, em

222
profissional diversas instituições judaicas, incluindo a Federação Israelita
liberal do e o Congresso Sionista Mundial. Participa do diretório do
terceiro setor Fundo Nacional Judaico [Keren Kayemet LeIsrael - KKL],
responsável por “todas terras do Estado de Israel”. Representa
os judeus no Conselho Nacional de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (CNPIR), órgão da Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). É ativista de
direitos humanos no Brasil nas áreas de diálogos
interreligiosos, violência contra mulheres de favela, crianças
em situação de rua e violência policial. Leciona hebraico para
turmas de judeus, cristãos interessados na leitura da bíblia e
adidos militares representantes do Brasil em Israel. Sua
descendência judaica é portuguesa, marroquina e holandesa.
Embora não tenha cidadania israelense, através de sua atuação
no Congresso Sionista Mundial acredita “pressionar o
governo no sentido de acabar com a ocupação” e fazê-lo
cumprir com as exigências dos acordos internacionais.

5 +50 homem Profissional É um dos líderes de uma instituição judaica fundada nos anos
liberal 1960 por imigrantes da Europa oriental e reconhecida no
aposentado e campo como laica, progressista e historicamente não sionista,
líder
embora hoje se reconheça parceira do “sionismo de
comunitário
esquerda”, atuando em conjunto com iniciativas que
promovam principalmente “debates e palestras”: “eu não sou
sionista, mas Israel sou eu também, e na medida em que os
outros dizem “você está matando palestino”, preciso me
posicionar e tentar separar as coisas”. Se reconhece “sionista”
por apoiar o Estado de Israel como um Estado judeu, “que já
existe”; e “não sionista” por não acreditar na saída nacional,
“particularista”, para o “problema judeu”. Visitou Israel como
turista, e não tem cidadania israelense. Nunca visitou os
territórios ocupados em 1967.

6 +40 homem Profissional Não estudou em escolas judaicas, tampouco participou de


liberal movimento juvenil ou tem qualquer vínculo com instituições
judaicas. Em Israel, onde mora parte de sua família, entrou em
contato com o movimento Paz Agora, tendo participado
também da versão brasileira do movimento. Hoje, tendo
escolhido não viver em Israel, diz não precisar se definir
como sionista por acreditar já ter “acontecido”, de “forma
irreversível”, a “autodeterminação judaica” através do Estado
de Israel. Durante a faculdade, foi filiado a um partido
considerado de esquerda mas saiu por não ver ali uma crítica
suficiente ao stalinismo e por enxergar certo antissemitismo
na militância antissionista. Seus textos buscam apontar aquilo

223
que chamou de “antissemitismo mascarado de antissionismo”
dentro da esquerda: “acho que pela história de perseguição, a
identidade judaica te deixa mais alerta a fundamentalismos
[...] e isso acaba sendo uma coisa que faz você se questionar
sobre a questão democrática. [...] Aí [...] se é judeu, e se você
não gostar dele, então agora ao invés de chamar de judeu
poderia chamar agora de sionista. Vira sionista. Isso eu acho
que é um sintoma, sintoma de uma esquerda né, mostra uma
faceta autoritária, que é reveladora. A ideologia antissionista
são transferências de preconceito [antijudaico] no sentido
clássico com o sionismo”. Por militar nessa luta, e também
por defender a existência de Israel/Palestina como “um
território em que o judeu pode ir se ele quiser ou se ele
precisar”, apoiando a Lei do Retorno israelense extendida a
todas as pessoas judias do mundo, foi considerado aqui como
parte do conjunto de interlocutores centrais, ainda que ele
mesmo não se reconheça como “sionista”. Hoje é editor de
uma revista virtual acadêmica “de intervenção política”.

7 +40 homem Professor Atualmente é uma das autoridades mais reconhecidas no


com carreira campo do “sionismo de esquerda”. Quando jovem, completou
acadêmica o ciclo educativo num movimento juvenil religioso, estudando
em instituições religiosas em Israel (yeshivá). Foi expulso do
movimento por ter participado de uma manifestação pró-paz
em Israel, sendo em seguida readmitido, ocupando o cargo de
secretário geral do movimento. Paralelo a essa atividade, foi
presidente do grêmio estudantil num colégio público não
judaico, onde se formou. Hoje é muito próximo aos
movimentos juvenis “de esquerda”, sendo uma “referência
intelectual” frequentemente citada. Tem uma militância
bastante intensa e significativa através do Facebook e debates
nos quais participa. Tem contato com representantes da
diplomacia israelense no Brasil e é um dos fundadores de um
grupo de pesquisa em “estudos judaicos” em uma
universidade pública brasileira. Possui mestrado em
sociologia e antropologia pela Universidade Hebraica de
Jerusalem, com a qual seu núcleo de pesquisa assinou um
acordo de intercâmbio “técnico, científico e cultural” entre
ambas universidades. Tem cidadania israelense e prestou
serviço militar obrigatório numa cidade palestina ocupada.
Não é filiado a nenhum partido, embora tenha “conversas”
com algumas figuras políticas da “esquerda, centro e
centro-direita” sobre as questões de Israel e do sionismo. Em
Israel, atualmente apoia o Meretz.

224
8 +30 homem Líder Participou de movimento juvenil de esquerda e emigrou para
comunitário Israel, prestando o serviço militar obrigatório. Formou-se em
história do oriente médio e, durante a graduação em Israel
viveu uma “crise pessoal” com o sionismo ao tomar contato
com o discurso pós-colonial. Hoje está “em paz” com “seu
sionismo” e trabalha em uma instituição vinculada a um dos
movimentos juvenis “de esquerda” aqui considerados,
promovendo debates e atividades que façam “pontes” entre os
“assuntos de Israel” e os “assuntos locais”.

9 +30 mulher Profissional Não estudou em escola judaica ou participou de movimento


liberal juvenil. Viajou para Israel através do Taglit-Birthright, um
programa educacional de 10 dias, organizado pela Agência
Judaica. De família considerada de esquerda no Brasil,
classifica sua mãe, muito próxima aos fundadores do PT,
como “mais pró-palestina que pró-Israel”. Hoje milita por um
partido considerado de esqeurda, mas ainda sem filiação por
não se sentir segurança sobre as posições do Partido em
relação à Israel. É bastante descrente em relação à solução de
dois estados, embora apoie e trabalhe politicamente nesse
sentido. Participa de um projeto de educação para mulheres de
favela.

10 +20 homem Jornalista Completou o ciclo educativo de um movimento juvenil de


orientação sionista-socialista e hoje participa de um coletivo
de judeus de esquerda. Morou três meses em Belém, cidade
na Cisjordânia ocupada, fazendo um trabalho de
acompanhamento ecumênico e observação de direitos
humanos através de um Programa vinculado ao Conselho
Mundial de Igrejas, em Genebra. Hoje tem família no Brasil,
Estados Unidos e Israel, onde pensa em morar a fim de tentar
promover “encontros entre palestinos e israelenses”.

11 +20 homem Estudante Fez o ensino fundamental em escola judaica e completou o


universitário ciclo educativo num movimento juvenil de orientação
sionista-socialista. Recentemente, trabalhou como voluntário
e conselheiro em instituições judaicas e participava de dois
coletivos judaicos de esquerda, um dos quais foi fundador.
Não se identifica ou pratica a religião judaica e pretende
deixar de atuar na comunidade para cuidar de sua vida
profissional. Seus avós judeus, uma parte de origem turca,
persa e palestina, e outra de origem italiana, grega e francesa,
imigraram ao Brasil antes da primeira Guerra Mundial. Faz
trabalho voluntário numa ONG que visa a superação da
pobreza e é filiado a um partido reconhecido como de

225
esquerda. Classifica sua família como classe média-baixa,
tendo nascido numa zona periférica da sua cidade. Suas
posições em relação à Israel são reconhecidas como “mais à
esquerda” do que seus pares, “mas nada antissionistas”.
Acredita na solução de dois estados, embora não considere
“justa a devolução total de toda a Cisjordânia e Gaza” aos
palestinos.

12 +20 homem Estudante Completou o ciclo educativo num movimento juvenil de


universitário orientação sionista-socialista, estudou em escola judaica a
vida toda, ocupou o cargo de coordenador de projetos sociais
em uma instituição sionista no Brasil e hoje é filiado a um
partido considerado de esquerda, ainda que não aceite as
posições dos grupos antissionistas dentro do Partido.
Trancada a faculdade, candidatou-se a vereador com uma
campanha voltada à “coexistência” e “liberdade religiosa”.
Considera sua família “conservadora” e de “classe média
alta”, tendo parente em cargos importantes dentro de
instituições judaicas.

13 +20 mulher Estudante Recém completado todo o ciclo educativo num movimento
universitária sionista de esquerda, onde passou “a vida toda”, trabalhou
e líder como coordenadora de relações externas de seu movimento e
comunitária
hoje coordena um grupo vinculado ao Partido Meretz, no
Brasil, que busca aproximar a esquerda brasileira da esquerda
sionista-israelense. É conselheira voluntária em uma
instituição judaica, um cargo “difícil”, mas que escolheu
ocupar pela “minoria jovem e feminina”, pouco representada
na instituição. Vê o “sionismo de esquerda” como uma
“utopia”, mas nem por isso deixa de militar pelo fim da
ocupação e por um Estado de Israel “mais ético”.

14 +20 mulher Estudante Foi uma pessoa bastante atuante no movimento de orientação
universitária sionista-socialista do qual participou a vida toda, tendo
educado muitas crianças e jovens no sionismo e no judaísmo
nos quais acredita. Hoje se diz “cansada” e “desinteressada”
em pensar as questões que lhe ocupavam no movimento, tais
como “quem é judeu?” ou “o que é o sionismo?”. Diz hoje
reconhecer a importância de se viver “na diáspora” e fora dos
ambientes da “comunidade”, afirmando uma “identidade
sionista de esquerda” através da “escuta” e do “diálogo” com
os não-judeus. Diz que perdeu o medo da assimilação, que
ainda vê nos seus colegas homens, e hoje tem críticas em
relação ao machismo e à formação que recebeu no movimento
juvenil, considerando-a “elitizada”, “limitada” e “apartada” da

226
sua cidade e de seu país . Hoje vê o “sionismo de esquerda”
como uma “utopia” ao mesmo tempo que o afirma como uma
identidade e uma prática do “falar, discutir, debater” e,
principalmente, dizer que há uma urgência em terminar a
“ocupação”, mesmo essa não sendo sua primeira militância.

2. Interlocutores/as secundário/as situados/as fora do campo “sionista de esquerda” em


SP e RJ

N.o Idade Sexo Profissão/ Trajetória / Localização no campo


ocupação
15 +60 homem Profissional Nascido no Brasil, em uma família “classe média alta
liberal do conservadora” alemã e “muito sionista” (“Ben-Gurion era
terceiro setor recebido na casa dos meus tios”), vive em Israel desde os 18
anos. Fez o serviço militar obrigatório e sua base era na
Cisjordânia ocupada, perto de Jerusalém, tendo colocado “ao
exército” a condição de não sair de sua base. Rodiziava com
um amigo, que morava em um assentamento, quando era
necessário sair. Trabalhou em diversas instituições israelenses
como educador, inclusive dando aulas para os jovens dos
programas do Shnát. Hoje atua numa ONG de educação não
formal em Israel na qual organiza colônias de férias
“bilíngues” (“ser bilíngue não significa só dois idiomas, mas
são dois lugares, a partir de onde falamos, de onde se vem”)
para crianças de 7 a 13 anos, “metade judeus, metade árabes”.
Atualmente, integra a SISO (Save Israel, Stop Occupation) e
compõe a comissão que pensa a educação da 2 States, 1
Homeland [Dois Estados, Uma Pátria], uma “proposta de paz”
recente, criada por iniciativa de membros da sociedade civil de
Israel e da Cisjordânia ocupada, incluindo palestinos e
“colonos” – uma proposta que, para ele, acaba com a
“dicotomia entre esquerda e direita” e não prevê transferência
de populações nacionais. O reconhecimento de sua própria
constituição como um homem “ashkenazi-tel avivi lutando
pela coexistência” é bastante recente e nos últimos anos tem se
confrontado com os desafios e as implicações deste lugar que
ocupa na sociedade israelense – uma consciência que não vê
colocada no Partido Meretz, cuja “carteirinha” abandonou há
pouco, decepcionado: “eles só sabem falar hebraico ashkenazi
tel-avivi e querem exportar essa língua de vocês. É preciso
ouvir o outro. Sem ouvir o outro, tudo o que sair disso é só

227
arrogância. [...] Para entender e resolver esse conflito, é
preciso que a gente saia um pouco de nós mesmos”. Pelo fato
deste estudo estar restrito ao sionismo de esquerda no Brasil,
este interlocutor não foi considerado como parte do campo
principal considerado aqui. Ao citar a nova “proposta de paz”
em outras entrevistas, poucas pessoas a conheciam e, se o
faziam, ou não a entendiam, ou diziam que era cedo demais
para considerá-la uma proposta relevante.

16 +30 homem Profissional De família “toda FHC e Lula do mal”, completou o ciclo
autônomo educativo sionista-judaico em um movimento juvenil sionista
sem orientação política definida à esquerda. Há alguns anos
filiou-se a um partido tido como de esquerda. Entende a
relação do sionismo na esquerda como algo “muito
complicado”. Embora não se afirme sionista, diz que tem um
sentimento de “afeto especial” por Israel, o que o faz sentir
alguma espécie de “responsabilidade por Israel” e diz lidar
com o tema “Israel-Palestina” de uma forma diferente com que
lida com outras questões importantes para a esquerda: “eu vejo
uma notícia ruim de Israel e eu olho pro lado”. Por reconhecer
seu “limite” no que se refere a esse assunto, prefere não se
colocar publicamente sobre a questão (em entrevista, usou
termos como “apartheid”, “imperialismo”, e “colonialismo”)
e, embora veja a “busca pelo comum” e a “solidariedade”
como temas chave para a esquerda, tem dificuldade em
entender de que forma poderia prestar solidariedade com os
palestinos. Buscou se inserir em instituições e grupos judaicos
“progressistas” com o intuito de colocar essas questões e
pensar formas coletivas de lidar com o dilema da “identidade
judaica na esquerda hoje”, mas acabou se frustrando e hoje vê
o discurso “sionista progressista” como muito próximo ao
discurso “da direita”, sendo este apenas mais “violento” e
inescrupuloso. Hoje se vê fora da “comunidade judaica”
dentro da qual vê “racismo” e posturas de “diferenciação”
(“não é porque é judeu que tem que viver junto! Não tenho
que conviver e aceitar merda só porque ela vem de um
judeu!”), embora goste e conheça bastante os rituais da
religião judaica, que realiza com a família. Nunca esteve nos
territórios palestinos ocupados a partir de 1967. Não acredita
ou milita pela solução de dois estados, que classifica como
“uma besteira: dois povos dois estados era polêmico e político
de esquerda em 1970!”. Descreve a si mesmo como um
“personagem de Moacyr Scliar que, após ficar a vida inteira
com uma mala pronta para fugir em caso de perseguição, é

228
roubado e, assim, “já não podia mais fugir””, abrasileirando
seu judaísmo: “parece um pesadelo, mas a realidade é que
meus laços de afeto com Israel se esgarçam com a barbárie da
matança”.

17 +60 mulher Profissional Sendo filha de pai e mãe judeus sobreviventes da Segunda
liberal Guerra Mundial, sua mãe, que conseguira fugir do gueto de
Lodz com a ajuda de um polonês, viajou à Israel assim que
recebeu o dinheiro de indenização da Alemanha, encontrando
lá o que “restou da família”, assassinada em Auschwitz. Sua
mãe volta “encantada” de Israel, principalmente pelos
“soldados judeus”: “meu nome é Primavera, porque eu nasci
em 48!”. A partir das cartas, revistas, discos de música e
cheiros das comidas secas que trocavam sua mãe e os primos
israelenses, a interlocutora, então com 12 anos, começa a
“sonhar seus sonhos de utopia em Israel, sonhos com o kibutz,
da igualdade das mulheres, do heroísmo, da segurança...
sonhos de esquerda”. Impulsionada por esses sonhos, em
1967, quando estoura a guerra e ainda está no colégio, atende
ao chamado da Agência Judaica que conclama voluntários
jovens judeus para irem à Israel ajudar nos kibutzim.
“Apaixonada” pela vida no kibutz, conta das “excursões” nas
quais eram levados aos territórios recém ocupados: assim
conheceu as colinas do Golan, o Vale do Jordão, Gaza,
Jerusalém oriental. Nessas “excursões”, entra em contato com
os palestinos, que “até aquele momento não existiam como
personagens”. Em Gaza, conhece uma família de palestinos
brasileiros que a convida para um churrasco e é proibida de
comparecer: “eles não vão matar um animal para o churrasco,
eles vão sacrificar você!”. Descreve este como seu primeiro
choque contra seus “sonhos de utopia”. Volta ao Brasil da
ditadura e, depois do AI-5, escolhe “fazer a vida” em Israel e
emigrar. Diante de diversas manifestações de “racismo” contra
os “judeus árabes” por parte dos “judeus europeus”, dos
“trabalhistas”, seus “sonhos de esquerda” se desmoronam.
Volta ao Brasil “entendendo” que “não tinha nada a ver com
aquele negócio”, concluindo que “sionismo é racismo” e que,
“por definição, prevê uma teocracia”. Ao falar sobre os
“sionistas de esquerda”, diz que são sujeitos “bem
intencionados” e “bonzinhos” e, por sentirem “culpa”, não
podem admitir que Israel é hoje um “Estado racista, cruel,
opressor”: “gam iôrim, gam bôchim”, ela diz forçando um
sotaque europeu do hebraico, “eles atiram e choram ao mesmo
tempo”. Lembrando do assédio que sofreu por aqueles que

229
chamou de “esquerdomachos” do movimento juvenil
sionista-socialista do qual fez parte, hoje, depois de sua
recente “tomada de consciência como ecofeminista”, ela
considera o “não” dos palestinos como o “não” da mulher
sendo estuprada: “O estupro é a semente de todas as guerras
[...] O outro tá lá gritando: escuta! Ele tá falando “eu não
quero! Eu não quero!”. É mesma coisa que um estupro! É o
“não” da mulher sendo estuprada, é o mesmo “não”, é o
mesmo “não”! Escuta! É um “não! Tá doendo, é ruim, não tá
bom! Tô sofrendo!”. Acorda! Não tem como você ser um cara
de esquerda e não ouvir isso, não dá. [...] Pára de achar que
você é vítima! Como assim vítima? Acorda! Israel se
transformou na indústria da opressão, de armas de opressão de
ponta, de tecnologia, de tudo. Não é só bala de borracha, nem
os escudos, é tudo! É a inteligência disso, a motivação.”

18 +20 homem Profissional Nascido em Jerusalém e crescido num país latinoamericano,


liberal estudou em escola judaica por toda vida escolar e participou
de um movimento juvenil de orientação sionista-socialista
durante toda a juventude no Brasil, tendo sido um líder do
movimento bastante ativo depois de sua viagem pelo Shnát.
Com o colégio, fez uma viagem da “Marcha da Vida”,
financiada pela Agência Judaica, na qual as crianças visitaram
por uma semana os campos de concentração nazistas da
Polônia, embarcando em seguida para Israel. O objetivo da
Marcha, segundo site oficial, é “propiciar uma conexão com o
passado e presente numa linguagem contemporânea [...] e tem
o compromisso de garantir que o ocorrido jamais seja
esquecido”. A partir do contato com outras perspectivas
trazidas em palestras, leituras e contato com outros judeus não
sionistas, o interlocutor começou um processo de crítica
profunda aos fundamentos do movimento juvenil o qual
liderava, passando a desconfiar de tudo o que havia aprendido
até então. Depois de um ato público que realizou em frente ao
consulado de Israel, lendo os nomes de todas as vítimas da
invasão à Gaza de 2014, decide se aprofundar no assunto e ir
fazer uma viagem para Israel e Cisjordânia ocupada, até então
desconhecida, através de um programa educacional que busca
ouvir vozes silenciadas quando se fala do “conflito
Israel/Palestina”. A partir desse momento, vive um processo
que chamou de “desaprendizado” e “descontrução” profundos,
rompendo publicamente com o sionismo, “qualquer que seja
ele”: “não foi um processo bonito, não foi legal. Foi bem ruim.
Eu fiquei feliz de ter descoberto tudo isso, toda a mentira. Mas

230
eu fico pensando se todo mundo ficaria feliz de chegar no
lugar que eu tô hoje ou se preferem seguir sendo sionista de
esquerda e “tá tudo bem””. Hoje, parte de sua família mora em
Israel, sendo que uma parcela em assentamento na Cisjordânia
ocupada. Com estes, não discute suas posições sobre o
assunto.

19 +40 homem Funcionário Desprovido de qualquer vínculo com a comunidade judaica,


público não participou de nenhum movimento juvenil. Hoje publica
textos nos quais comenta os “erros cometidos pelos governos
de Israel” (“eu fiquei revoltado com algumas coisas que eu vi
na televisão, aquela tragédia em 2014 e as pessoas tentando
justificar de alguma maneira: “mas eles são terroristas…!”); e
também textos que denunciam a “educação judaica ‘de gueto”
e a “lavagem cerebral” que recebera no colégio onde estudou e
que foi educado à “sacralizar Israel e tê-la como referência
identitária necessária” em função da morte dos “6 milhões, 6
milhões, 6 milhões [...] Pô, morreu muito mais tutsis e hutus
do que na Segunda Guerra! [...]Você é definido pelo
sofrimento. É muito louco, é uma coisa mórbida inclusive”.
Hoje, entende sua história conectada mais à Polônia, de onde
vieram seus pais, do que à Israel.

20 +60 homem Profissional Considera-se a si mesmo como um “judeu não sionista,


liberal derrotado” pela história que deu fim aos roite iden, em ídische,
aposentado os “judeus vermelhos”, “não religiosos e contra Israel”, com
os quais se identificava. Apesar disso, por quase 30 anos
insistiu no que hoje chama de “ilusão,” ao dirigir uma
instituição judaica que fora deixando de existir aos poucos por
conta da falência do ídische, a base idiomática do coletivo da
esquerda judaica, “que foi minguando ao ascenderem
socialmente”. Por muitos anos foi filiado a um “partido
comunista”, com o qual rompeu recentemente. Hoje diz estar
observando a movimentação da esquerda brasileira, que “está
muito estranha”. Uma atmosfera de nostalgia e tristeza
acompanhou a entrevista. Entende o projeto do sionismo como
incompatível à esquerda e à democracia: “se reprodução dos
indígenas é vista como um problema demográfico, não dá para
dizer que isso é uma democracia”. Esteve em Israel duas
vezes, em uma das quais, acompanhado de um motorista
palestino, viu vilas árabes atravessadas por estradas exclusivas
para israelenses e soube das dificuldades cotidianas
enfrentadas pelos palestinos. É descrente em qualquer solução
para a região e, por estarem tão arraigados, considera tanto o
antissemitismo como o sionismo realidades que “não se acaba

231
por vontade ou boa intenção”.

21 +60 homem Professor De família não sionista “e até antissionista”, foi um dos
com carreira fundadores da Comissão de Assuntos Judaicos do PT (CAJU),
acadêmica criada em São Paulo em 1986, que atuou tanto como
“assessora” dos candidatos do PT quanto na “ampliação de
debates dentro do Partido sobre a cultura judaica inserida na
sociedade brasileira e a questão do conflito árabe-israelense”.
Hoje, embora não mais trabalhando pela “causa”, acredita no
projeto do sionismo de esquerda, vendo na criação de um
Estado palestino nas fronteiras de 1967 a opção “mais justa”,
embora se coloque como “um pessimista em relação à
qualquer solução para o conflito”: “pelo simples motivo de
que há coisas na vida que você resolve e outras coisas que
você administra, porque elas não têm solução. [...]Cansei dessa
discussão já. No Oriente Médio não há paz, há trégua”. Por
seu “cansaço” e não atuação, considerei-o fora do campo ativo
do “sionismo de esquerda”, embora suas posições caberiam
ali: para ele, a “ocupação” é indefesável por ser um “ultraje à
lei” e considera a reivindicação de Yasser Arafat pelo retorno
dos palestinos um dos “graves erros” cometidos – “isso é
demais, é demais. É melhor esquecer, deixar quieto. E não, ele
pega e retoma isso”.

22 +30 homem Pesquisador Sem ter estudado em escola judaica ou participado de


acadêmico movimento juvenil, sente necessidade de questionar a visão
que se tem dos judeus enquanto uma unidade ou uma
“comunidade” (“olha, existem judeus que foram perseguidos,
presos, mortos, lutando contra a ditadura”), mas tem dúvidas
sobre se deveria priorizar se relacionar com judeus ou mesmo
priorizá-los como “unidade de ação política” por serem judeus.
Afirmando-se um “não sionista” interessado numa “tradição
judaica diaspórica”, sua família judaica é de origem egípcia,
persa e romena e sente um “incômodo” grande em relação à
representatividade que Israel “se coloca a si mesmo”, falando
em nome de todos os judeus: “eu não tenho nada a ver com
isso, não falem em meu nome!”. Mesmo entre grupos de
judeus progressistas, dos quais faz parte, percebe que o
elemento comum que os une é a defesa de Israel e um trabalho
por “salvá-la de si mesma”. Também nestes grupos sente certa
rejeição a propostas que pretendam entender o judaísmo para
além do sionismo ou mesmo que discutam as questões
políticas atuais brasileiras. Classifica essa postura como uma
“visão romântica” que os judeus, “mesmo os mais legais”, têm
em relação à Israel. Por entender que sua judeidade é afetada

232
pelo que Israel faz (“somos reféns daquilo, de algum jeito”) e
por se ver como uma minoria, optou por se aproximar de
iniciativas internacionais de judeus que lutam pelo fim da
ocupação dos territórios: “talvez eu precise dessas pessoas
como aliadas. Não enche uma kombi o número de judeus que
pensam como eu!”. Entende que uma solução para o “conflito”
deve passar pela ideia de um “estado plurinacional” que
envolva todos os cidadãos israelenses que não se declaram
judeus: “quantos problemas não têm os africanos de Israel hoje
em dia? Não dá pra você parar o país com uma sirene porque 6
milhões morreram e você chega e faz isso [com os outros
refugiados]! Eu acho macabro...”. Começou a estudar a língua
ídische como uma forma de contato com o que chama de um
“judaísmo diaspórico”. Ao final da conversa, pergunta-me:
“mas você que faz pesquisa sobre isso, me diz: onde está a
esquerda judaica?”.

23 +60 homem Profissional Ao contar-lhe o desejo de estudar os “sionistas de esquerda”,


liberal diz: “ah, são uma espécie em extinção! Mas na minha época,
aposentado nos anos 60, 70, tinha bastante. Eu mesmo caí nessa”. E me
mostra uma foto com uma metralhadora na mão, emprestada
pelo guia do kibutz perto de Gaza onde, durante a viagem do
Shnát, morou no tempo em que era um jovem de movimento
juvenil sionista-socialista. A família de sua mãe morreu em
Auschwitz e a de seu pai não sobreviveu ao campo de
Theresienstadt. Resume sua trajetória como um “judeu de
esquerda” até os 15 anos, um “período sionista” e, hoje, “de
esquerda”. Sobre a “fase sionista”, diz que entrou no
movimento juvenil “conquistado” pelas ideias que os
madrichim traziam, “misturando sionismo com socialismo”:
“eles eram inteligentes, estudiosos, de esquerda... mas era uma
esquerda nacionalista restrita, né. [...]Eu lembro do panfleto
que eles apresentaram com o discurso do Fidel Castro quando
ele adotou a linha soviética de não estender a Revolução pra
toda a América Latina. O título do panfleto era “a morte do
internacionalismo”. Muito interessante. Ou seja, era um
socialismo...era nacionalista, o problema é que não percebi
que era uma nação opressora, não oprimida, lá na Palestina”.
Durante o Shnát, transitou livremente entre os territórios
recém ocupados em 1967: “tive esta sorte…a desgraça dos
palestinos que tavam esmagados foi minha sorte de poder
passear sozinho.” Durante essa viagem, foi tendo alguns
“cliques”, como o encontro com um trabalhador palestino cuja
família morava na aldeia sobre a qual estava o kibutz onde

233
morava, mas finda a visita não pensou mais sobre isso.
Durante a revolução de Salvador Allende no Chile, para onde
foi morar, lembra-se de ter sido perguntado por um dos
dirigentes de um partido revolucionário: ““como é que você
concilia seu marxismo e seu sionismo?”, eu não me lembro a
resposta, eu devo ter ficado sem saber o que dizer. Porque não
havia o que dizer.”. Foi então a partir da leitura de um texto,
escrito por autores de descendência judaica e palestina que
desenvolviam, com argumentos marxistas, o caso da
colonização da Palestina como uma “colonização de
povoamento” (settler colonialism), que passou a se identificar
como “um antissionista com consciência”, deixando, inclusive,
de se identificar publicamente como judeu – escolha que hoje
vê como uma “infantilidade, porque meus pais eram judeus,
fui educado numa escola judia, não era religioso, mas havia
uma cultura [judaica]”. Reconhece sua identidade judaica
como uma “superação hegeliana, [que] supera mantendo os
aspectos do velho”, e se mantém atualizado sobre o tema
Israel/Palestina para que sempre quando solicitado possa tratar
do assunto. Percebe que o fato de se declarar judeu tem uma
“utilidade para legitimação pública, de uma posição
pró-palestina. Pesa. Devo confessar que pesa, você sabe”.
Filiado a um partido socialista trotskista, procura, no entanto,
“não militar nisso pra não voltar ao gueto.” Seu
posicionamento é o de que não se deveria expulsar os judeus
israelenses no processo de “descolonização e libertação da
Palestina” (“são três gerações [de judeus israelenses] e muitos
deles, os mais pobres aliás, não têm para onde voltar”), mas o
lugar daqueles judeus israelenses que permanecerem deveria
ser o mesmo lugar dos brancos na África do Sul – entre os
quais muitos eram judeus, ele lembra. Diferente dos
interlocutores centrais, não vê a questão Israel/Palestina como
um confronto entre dois direitos nacionais: “o problema é que
uma nação é opressora e a outra não. O direito à
autodeterminação era pras nacionalidades oprimidas: o Lênin
não propôs isso pros russos, propôs isso pros ucranianos, pros
judeus, pros poloneses, pros tártaros. Os povos que estavam
sob domínio russo”.

24 +60 homem Jornalista Filho de pais nascidos no Brasil e neto de avós, judeus,
crescidos na Palestina “antes da colonização sionista”,
participou de movimento juvenil judaico “sionista de
esquerda” durante toda a adolescência. Indo morar em Israel,
conheceu e ingressou na “organização antissionista e

234
anticapitalista” Matzpen (‘A Bússola’). Candidatou-se a
deputado no parlamento israelense pela lista “Socialista
Revolucionária”, composta por membros do Matzpen, da
Aliança Comunista Revolucionária e dos Panteras Negras –
árabes judeus que “lutavam contra a discriminação racial” em
Israel. Tem orgulho de dizer que fora um dos primeiros
israelenses a ser detido por se recusar a servir o exército
israelense. De volta ao Brasil, se filiou a um partido conhecido
como “revolucionário” e mais tarde se elegeu vereador por
outro partido no Nordeste. Vê o sionismo como “uma forma
de racismo”, edificado sob um “regime de apartheid”, que
produz a “anulação de um povo pacífico, profundamente culto,
e produtivo: o povo palestino”. Coloca-se publicamente como
antissionista e vê a solução de dois estados como apenas um
primeiro passo em direção a uma “longa jornada no caminho
do entendimento, da paz e do convívio construtivo” entre as
pessoas. Tem um livro publicado sobre o assunto, que foi
considerado “terrível, asqueroso” pelo único interlocutor do
campo que citou a obra. Tendo sido alvo de acusações, ofensas
e retaliações por suas posições, vê um processo de
“fascistização” das “comunidades judaicas” ao postularem que
“todo judeu tem que, por natureza, ser sionista [...] e estar
disposto a pegar em armas”.

235
ANEXO I

Carta de “Declaração da Independência de Israel”.


Tel Aviv, 14 de maio de 1948 – 05 de Iyar de 5705.
Tradução do hebraico por Movimento Paz Agora-Brasil
[disponível em <http://bit.ly/2DWSZwS>]

236
Carta de fundação do Estado de Israel
Traduzida pelo Movimento Paz Agora-Brasil.

Declaração da Independência de Israel


Tel Aviv, 14 de maio de 1948 – 05 de Iyar de
5705

A terra de Israel foi o lugar onde nasceu o


povo judeu. Aqui sua identidade espiritual,
religiosa e nacional foi formada. Aqui eles
conquistaram independência e criaram uma
cultura de significado nacional e universal.
Aqui eles escreveram a Bíblia e a deram ao
mundo.
Exilado da Palestina, o povo judeu se manteve
fiel a ela em todos os países de sua dispersão,
jamais cessando de orar e esperar por seu
retorno e pela restauração de sua liberdade
nacional.
Impulsionados por este vínculo histórico, os
judeus lutaram através dos séculos por voltar à
terra de seus pais e recuperar seu país. Nas
últimas décadas, eles voltaram em massas.
Eles recuperaram o deserto, reviveram sua
língua, construíram cidades e aldeias e
estabeleceram uma comunidade vigorosa e
crescente com vida própria econômica e
cultural. Eles buscaram a paz, mas sempre
estiveram preparados para se defender. Eles
trouxeram a bênção do progresso para todos os
habitantes do país.

No ano de 1897, o Primeiro Congresso


Sionista, inspirado pela visão de Theodor
Herzl do Estado Judeu, proclamou o direito do
povo judeu a uma renascença nacional em seu
próprio país.
Este direito foi reconhecido pela Declaração
Balfour de 02 de novembro de 1917, e
reafirmado pelo Mandato da Liga das Nações,
que deu um reconhecimento internacional
explícito à conexão histórica do povo judeu
com a Palestina e seu direito a reconstituir
seu Lar Nacional.

O Holocausto nazista, que engolfou milhões


de judeus na Europa, provou novamente a
urgência do restabelecimento do Estado Judeu,
que resolveria o problema da falta de um lar
para os judeus, abrindo os portões para todos os judeus e elevando o povo judeu à
igualdade na família das nações.
Os sobreviventes da catástrofe européia, assim como judeus de outras terras,
proclamando seu direito a uma vida com dignidade, liberdade e trabalho, e incontidos
por desgraças, sofrimentos e obstáculos, têm tentado incessantemente entrar na
Palestina.
Na Segunda Guerra Mundial, o povo judeu na Palestina deu uma total contribuição na
luta das nações amantes da paz contra o horror nazista. Os sacrifícios de seus soldados
e os esforços de seus trabalhadores lhe fez merecer figurar ao lado dos povos que
fundaram as Nações Unidas.
Em 29 de novembro de 1947, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotaram
a Resolução para o estabelecimento de um Estado Judeu independente na Palestina, e
instou os habitantes do país a tomar os passos que fossem necessários de sua parte
para concretizar o plano.
Este reconhecimento pelas Nações Unidas do direito do povo judeu a estabelecer seu
Estado independente não pode ser revogado. Ele é, ademais, o direito auto-evidente
do povo judeu de ser uma nação como todas as outras nações, em seu próprio Estado
soberano.

ASSIM, NÓS, os membros do Conselho Nacional, representando o povo judeu na


Palestina e o movimento sionista do mundo, reunidos hoje em assembléia solene, no
dia do término do Mandato britânico na Palestina, em virtude do direito natural e
histórico do povo judeu e da Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas,

AQUI PROCLAMAMOS, o estabelecimento do Estado Judeu na Palestina, a ser


chamado ISRAEL.

AQUI DECLARAMOS que, com o término do Mandato à meia-noite, nesta noite de


14 para 15 de maio de 1948, e até a devida instalação dos organismos do Estado
eleitos em conformidade com uma Constituição, a ser redigida por uma Assembléia
Constituinte não após o primeiro dia de outubro de 1948, o presente Conselho
Nacional irá agir como administrador provisório, constituindo-se no Governo
Provisório do Estado de Israel.

O ESTADO DE ISRAEL será aberto à imigração de judeus de todos os países de sua


dispersão; promoverá o desenvolvimento do país em benefício de todos os
seus habitantes; será baseado nos preceitos de liberdade, justiça e paz ensinados pelos
profetas hebreus; defenderá total igualdade social e política para todos os seus
cidadãos, sem distinção de raça, credo ou sexo; garantirá total liberdade de
consciência, culto, educação e cultura; protegerá a santidade e inviolabilidade dos
templos e lugares sagrados de todas as religiões; e se dedicará aos princípios da Carta
das Nações Unidas.

O ESTADO DE ISRAEL estará pronto a cooperar com os órgãos e representantes das


Nações Unidas para a implementação da Resolução da Assembléia de 29 de
novembro de 1947, e tomará os passos para trazer uma União Econômica para toda a
Palestina.

Apelamos às Nações Unidas para que ajude o povo judeu na construção de seu Estado
e a admitir Israel na família das nações.
Em meio a uma brutal agressão, instamos ainda aos habitantes árabes do Estado de
Israel para que retornem aos caminhos da paz e façam sua parte no desenvolvimento
do Estado, com total e igual cidadania e a devida representação em seus órgãos e
instituições – provisórios ou permanentes.
Oferecemos paz e boa-vizinhança a todos os Estados vizinhos e seus povos, e os
convidamos a cooperar com a nação independente hebraica para o bem comum de
todos.

Nosso chamado vai ao povo judeu em todo o mundo para que se junte a nós na tarefa
de imigração e desenvolvimento e fique ao nosso lado na grande luta para o
cumprimento do sonho de gerações – a redenção de Israel.

Com confiança na rocha de Israel, assinamos esta Declaração, nesta sessão do


Conselho Provisório do Estado, na cidade de Tel Aviv, nesta véspera de sábado, 5º dia
do mês de Iyar de 5708, 14 de maio de 1948.
ANEXO II

Mapa/Cronologia “O Meu Israel – História de Eretz Israel”


Fonte: Material Pedagógico Certame Mundial – MeBereshit: Tnuá Chevratit Ruchanit.

240
ANEXO III

Mapa West Bank – Access Restrictions. Dezembro 2011.


Fonte: United Nations/Office for the Coordination of Humanitarian Affairs –
Occupied Palestinian territories, Jerusalém, 2012.

243
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