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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS


Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito

A CONSTRUÇÃO DO MÉRITO PARTICIPADO NO PROCESSO COLETIVO

Fabrício Veiga Costa

Belo Horizonte
2012
2

Fabrício Veiga Costa

A FORMAÇÃO PARTICIPADA DO MÉRITO PROCESSUAL NAS AÇÕES


COLETIVAS

Tese de Doutorado apresentada ao programa de


Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de
Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais como requisito de conclusão do curso de
Doutorado em Direito Processual, sob orientação do
Professor Doutor Vicente de Paula Maciel Junior.

Belo Horizonte
2012
3

Fabrício Veiga Costa

A FORMAÇÃO PARTICIPADA DO MÉRITO PROCESSUAL NAS AÇÕES


COLETIVAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira


de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, nível Doutorado,
como requisito de obtenção do título de Doutor em Direito Processual.
Belo Horizonte, 2011.

______________________________________________________________
Professor Doutor Vicente de Paula Maciel Junior (orientador)

______________________________________________________________
Professor Doutor Vitor Salino de Moura Eça - PUCMINAS

______________________________________________________________
Professor Doutor Leonardo Augusto Marinho - PUCMINAS

______________________________________________________________
Professor (a) Orlando Aragão Neto - FAMINAS

______________________________________________________________
Professor (a) Juliana Maria Mattos - UNESA

Belo Horizonte, 01 de julho de 2012.


4

Dedico essa Tese de Doutorado ao meu professor orientador, Vicente de Paula


Maciel Junior e ao professor e amigo Cícero Alves Soares Neto, pela admiração,
respeito e gratidão; aos meus pais, pelo constante apoio incondicional a todos os
meus projetos profissionais e pessoais; à minha querida avó Izabel, pela estreita
ligação afetivo-espiritual; ao meu querido sobrinho Miguel, esperança de um mundo
melhor, mais justo e menos desigual.
5

AGRADECIMENTOS

Inicialmente quero externar meus sinceros agradecimentos aos meus pais


Israel e Claudete, pessoas que são exemplo de bravura, de doçura, de sabedoria,
de perspicácia, de doação e de certeza de que a educação é a forma mais efetiva de
aprimoramento do homem enquanto cidadão. A minha irmã Janaina e ao meu
sobrinho Miguel, que representa a esperança e a vida para todos nós. À minha
querida vó Izabel, pela estreita e verdadeira ligação afetiva, meu eterno carinho.
Ao meu professor orientador, Doutor Vicente de Paula Maciel Junior, exemplo
de retidão, compromisso com a docência; meus sinceros agradecimentos.
Às minhas amigas Juliana Maria Matos, Maria Luisa Costa Magalhães,
Andréia Alves de Almeida, pela presença constante e profunda disponibilidade em
auxiliar-me sempre que precisei.
Aos amigos Welington Teixeira, Sérgio Zandona, Carla Clark, Dheniz Cruz
Madeira, Eduardo Tupynambás, Dayse Starling e João Antonio Lima Castro, pela
amizade sincera e pelas orientações ao longo da minha vida pessoal e profissional.
Aos meus amigos e parceiros de advocacia, Ladislau Rodrigues dos Santos,
Sérgio Eustáquio Duarte e Plauto Rino Pompeu, por compreender e suportarem os
meus inúmeros momentos de ausência.
Às pessoas especiais, Marco Antônio, Rozirene Emetério, Graciane Saliba e
Marcos Costa, por existirem em minha vida e serem presenças constantes no meu
cotidiano, auxiliando-me sempre que preciso.
A minha eterna gratidão a Marlene Fiúza, Maurílio Fiúza e demais familiares,
por tudo que já fizeram e fazem ainda por mim.
Ao eterno mestre, amigo e professor Cícero Alves Soares Neto, que com
leveza me fez compreender a importância da reflexão cientifica como caminho para
a lapidação do ser humano.
Aos meus colegas docentes, coordenadores, corpo administrativo e diretores
da Faculdade de Pará de Minas, Faculdade Pitágoras Unidade Divinópolis,
Fundação Pedro Leopoldo e ao Instituto de Educação Continuada da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, em especial a Sônia Malta e Maurício
França.
6

Sou como você me vê.


Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,
Depende de quando e como você me vê passar.

Clarice Lispector
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RESUMO

A revisitação teórica do clássico modelo de processo coletivo construído a partir do


sistema representativo é condição indispensável ao entendimento critico do
processo constitucional coletivo e democrático. A proposta de pesquisa que se
desenvolve no presente estudo consiste, já no primeiro capítulo, na apresentação e
na desconstrução do modelo liberal e individual do mérito processual, reduzido no
processo civil às matérias de fato e de direito trazidas aos autos pelo requerente e
requerido, para, assim, demonstrar que a base do atual e vigente modelo de
processo coletivo no Brasil decorre da ideologização do sistema representativo
sedimentado por meio da sistematização teórica do mérito no âmbito do processo
individual. A teoria das ações coletivas como ações temáticas, de autoria do jurista
Vicente de Paula Maciel Júnior, propõe o entendimento do processo coletivo sob a
ótica do objeto (não do sujeito) e, por isso, concentra o seu foco de discussão no
direito fundamental de participação de todos os interessados difusos e coletivos no
debate e na construção discursiva dos provimentos estatais. Assim, as ações
temáticas passam a representar o parâmetro para o entendimento do modelo de
processo coletivo democrático, uma vez que os provimentos deixam de ser
construídos exclusivamente pelo julgador, pelo demandante e demandado,
permitindo-se a ingerência de todos os interessados. A contribuição científica da
pesquisa ora desenvolvida encontra-se na demonstração de que o conceito e a
noção de mérito processual não podem ser reduzidos às questões ou às matérias de
fato e de direito trazidas pelo requerente e pelo requerido aos autos, até porque, o
mérito nas ações coletivas deve ser visto como um procedimento através do qual
todos os interessados difusos e coletivos participam num primeiro momento (até a
fase saneadora) da definição das questões que integrarão o debate meritório para,
em seguida (na fase instrutória) legitimar a participação e o debate dessas questões
de mérito por todos aqueles sujeitos aptos a sofrer os efeitos jurídico-legais do
provimento estatal a ser construído. A legitimidade processual para a propositura
das ações coletivas deixa de ser abstratamente definida pelo legislador, uma vez
que é a análise especifica do caso concreto o referencial para a definição da
legitimidade dos interessados na construção do provimento nas ações coletivas, haja
8

vista que o objeto da ação proposta é considerado o parâmetro para estabelecer


quem serão os legitimados. Nesse ínterim, a definição das questões de mérito passa
a ser uma prerrogativa de todo sujeito legitimado a apresentar tempestivamente, ao
longo do procedimento da ação temática, um tema ou uma alegação coerente
àquela inicialmente deduzida em juízo. Por isso, o mérito processual deixa de ser
conseqüência de uma decisão judicial unilateralmente proferida pelo julgador para,
por conseguinte, ser resultado do amplo debate isonômico da pretensão, no lócus
processual, por todos os interessados difusos e coletivos, tanto na primeira fase do
procedimento (fase saneadora = definição das questões e da matéria de mérito)
quanto na segunda fase (fase instrutória = momento em que toda a matéria de
mérito é ampla e isonomicamente debatida por todos os interessados). O direito
fundamental de participação no processo, bem como os princípios da isonomia
processual, fundamentação das decisões judiciais, contraditório, ampla defesa,
devido processo legal e amplo acesso ao Judiciário são referenciais teóricos para o
entendimento critico da formação participada do mérito processual no modelo de
processo coletivo trazido pelo Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Mérito Processual. Teoria das Ações Coletivas como Ações


Temáticas. Cidadania.
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ABSTRACT

The theoretical reconsideration of the classical model of collective process


constructed from the representative system is indispensable to a critically
understanding of the collective and democratic constitutional process. The research
proposal that is developed in this study is, in the first chapter, the presentation and
the deconstruction of the liberal and individual modelof merit procedural, reduced, in
civil procedure, to matters of fact and of law brought before the Court by the applicant
and defendant, in order to demonstrate that the basis of the present model of
collective process in Brazil stems from the idealization of the representative system
crystallized on theoretical systematization of merit in the individual case. The theory
of collective action and thematic actions, authored by the jurist Vincente de Paula
MacielJunior, proposes the understanding of the collective process from the
perspective of the object (not the subject) and therefore focuses its discussion on the
fundamental right of participation of all diffuse and collective interested persons in the
debate and in the discursive construction of State decisions. Thus, the thematic
actions will represent the parameter for understanding the model of collective
democratic process, since the decisions will no longer be built solely by the judge, the
plaintiff and defendant, allowing the intervention of all interested persons. The
contribution of the present scientific research is the demonstration that the concept
and notion of merit cannot be reduced to procedural issues or matters of fact and of
law brought by the claimant and the defendant to the proceedings, once, merit,in
collective actions, should be seen as a procedure by which all the diffuse and
collective interested parties participate at the first moment (until the preparatory
phase) to the definition of the issues that will be part of the merit debate, then (in the
instruction phase) legitimize the participation and debate of those merit questions
among those subjects able to suffer the legal effects of the state judicial provision.
The legal standing in order to bring collective actions cease to be abstractly defined
by the legislator, since it is the analysis of the specific case which is the reference for
defining the legitimacy of interested parties in the construction of the judicial provision
in the collective actions, given that the object of the proposed action is considered
the standard for determining who will be legitimized. Meanwhile, the definition of
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merit issues becomes a legitimate prerogative of every subject who may promptly
submit, throughout the procedure of the thematic action, a coherent theme or
argument to that initially done in court. Therefore, the procedural merit ceases to be a
consequence of a judgment unilaterally rendered by the judge, being consequently
the result of extensive isonomic debate of the claim, the locus of the procedure, for all
diffuse and collective interested persons, both in the first moment of the procedure
(preparatory phase = defining the issues and matters of merit) and second moment
(instructions phase = time when all the merit subjects are debated broadly and
equally by all interested persons). The fundamental right to participate in the process,
as well as the principles of procedural isonomy, justification of judicial decisions,
contradictory, legal defense, due process of law and access to the judiciary constitute
theoretical basis for critical understanding of the participative construction of
procedural merit in the model of collective action brought by a democratic State.

Keywords: Procedural Merit. Theory of the Collective Actions as Thematic


Actions.Citizenship.
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SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO....................................................................................................... 14

2. Da Gênese do Mérito no Direito Processual e do Debate Preliminar da


Proposta de Pesquisa........................................................................................ 21

2.1 . A compreensão jurídica do Direito Processual e do Mérito no Direito


Romano................................................................................................................ 33
2.2. As proposições teóricas de Oskar vön Bülow no estudo do mérito – Teoria das
Exceções e dos Pressupostos Processuais ...................................................43
2.3. As contribuições científicas de Chiovenda no estudo do mérito no Direito
Processual ................................................................................................... 53
2.4. O mérito processual em Calamandrei e os reflexos de suas contribuições
científicas........................................................................................................ 63
2.5. Mérito Processual em Francesco Carnelutti ................................................. 71
2.6. O estudo do mérito na obra de Enrico Tullio Liebman ................................. 78
2.7. O Mérito Processual na perspectiva de Elio Fazzalari ................................ 78
2.8. As contribuições cientificas da doutrina brasileira no estudo do mérito
processual ......................................................................................................94
2.9. A concepção individualista do mérito processual no Código de Processo Civil
de 1973 .........................................................................................................104
2.10. Mérito Processual, Direito de Ação e Acesso à Justiça ................................111
2.11. Mérito Processual e Cognição ..................................................................... 121
2.12. A problemática jurídica do mérito no processo de execução e nos
procedimentos especiais de jurisdição voluntária ....................................... 125
2.13. O Mérito no Código de Processo Civil Italiano ............................................ 136
2.14. Síntese ........................................................................................................ 148

3. Análise crítica da repercussão do modelo atual do processo coletivo para a


formação do mérito .................................................................. 155
12

3.1. Historicidade do Processo Coletivo ................................................................ 155


3.2. Processo Coletivo Americano: o Sistema da Class Action e a problemática da
construção do mérito processual ........................................................................... 172
3.3. O Sistema Representativo (a problemática jurídica da legitimidade processual
nas ações coletivas) como fundamento regente da concepção de Processo Coletivo
preconizada pela Escola Instrumentalista
..................................................................................................................................185
3.3.1 O Mérito Processual nas ações coletivas visto sob a perspectiva dos
Anteprojetos de Código de Processo Coletivo ........................................................192
3.3.2 O mérito processual no Código de Processo Civil Coletivo – Antônio Gidi.
................................................................................................................................ 205
3.3.3 O mérito processual no Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-
América. ............................................................................................................... 220
3.3.4 A análise do mérito processual coletivo no Anteprojeto do Código Brasileiro de
Processos Coletivos da UERJ/UNESA e USP. ................................................... 240
3.3.4.1 Do Anteprojeto coordenado por Aluisio Gonçalves de Castro Mendes.
................................................................................................................................ 241
3.3.4.2 O estudo do mérito processual no Anteprojeto de Código Brasileiro de
Processos Coletivos – USP – ................................................................................ 257
3.3.4.5 Código de Processo Coletivo Brasileiro da PUCMINAS: uma proposta
legislativa de teorização do mérito participado. ..................................................... 265
3.5 Síntese
............................................................................................................ 276

4.Processo Coletivo e Estado Democrático de Direito


................................................................................................................................. 281

4.1 A constitucionalização do processo e da jurisdição no Estado Democrático de


Direito ..................................................................................................................... 281
4.2 O sistema participativo e a Teoria do Discurso como fundamentos regentes do
Processo Coletivo Democrático ............................................................................. 295
4.3 Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas: o processo coletivo visto
sob a ótica do objeto (não do sujeito) .................................................................... 305
13

4.4 O mérito participado visto sob a perspectiva da Teoria das Ações Coletivas com
Ações Temáticas .................................................................................................... 318
4.4.1 A procedimentalização da construção participada do mérito no processo
coletivo democrático ............................................................................................... 324
4.5 Análise crítica da participação dos legitimados no processo coletivo
................................................................................................................................ 335
4.5.1 O instituto do Amicus Curiae e a participação dos legitimados no processo
coletivo brasileiro: historicidade e previsão legislativa ........................................... 342
4.5.1.1 Resgate histórico-legislativo do instituto do Amicus Curiae ....................... 345
4.5.2 O Amicus Curiae como herança do Sistema Representativo no Processo
Coletivo vigente e a sua pseudo-participação na construção do mérito processual
................................................................................................................................. 360
4.5.3 Um estudo crítico da ADIN 3510 sob a perspectiva da participação do Amicus
Curiae na construção do mérito processual
............................................................................................................................... 367
4.6 Síntese ............................................................................................................ 371

5 CONCLUSÃO .................................................................................................... 374


REFERÊNCIAS .................................................................................................... 381
14

1. INTRODUÇÃO

O objetivo da presente pesquisa cientifica é desenvolver inicialmente um


estudo teórico dos fundamentos jurídicos utilizados como parâmetro à compreensão
do mérito processual, com o propósito de demonstrar sua gênese e, especialmente,
explicitar que toda a base teórica encontra-se no processo civil. Para isso, foi
necessário a elaboração do primeiro capítulo, momento em que foi demonstrada
toda a construção teórica do conceito de mérito processual, partindo-se do direito
romano e perpassando pelos mais expressivos autores que envidaram esforços para
o debate e o entendimento cientifico do mérito no contexto do processo civil,
especificamente. É de suma relevância esclarecer que a elaboração do primeiro
capítulo torna-se vital na presente pesquisa, a fim de esclarecer que todos os
autores que se debruçaram no estudo do tema mérito processual pautaram suas
reflexões em cima da noção decorrente da matéria ou das questões de mérito. Ou
seja, além de existir uma profunda divergência doutrinária, pelos autores
consultados foi possível verificar que não existe um consenso sobre o que seja o
mérito processual, haja vista que o respectivo tema ora é compreendido como
matéria de fato e de direito, ora como demanda, lide, pretensão, causa de pedir
(próxima e remota).
A elaboração do primeiro capítulo se justifica no sentido de tornar evidente
que, antes de compreender o instituto da formação participada do mérito processual
nas ações coletivas, é necessário esclarecer que a sua teorização se deu a partir de
estudos desenvolvidos na seara do processo individual (processo civil), cujo
entendimento do tema materializa-se e se limita na noção das questões ou das
matérias fático-jurídicas trazidas pelas partes (requerente e requerida) até a fase
saneadora, a fim de serem avaliadas e valoradas, muitas vezes de forma unilateral,
pelo julgador. Trata-se do momento da pesquisa em que foi possível deixar claro
para o leitor que o modelo de processo coletivo vigente no Brasil é reflexo da
concepção liberal e individualista, uma vez que compreende o mérito na mesma
perspectiva trabalhada pelo processo civil, até porque na lei de ação civil pública,
por exemplo, a noção de mérito processual decorre basicamente da matéria e das
questões fáticas trazidas pelos legitimados ao processo, ressaltando-se que o
conceito de legitimidade processual ativa trabalhado na Lei 7437/85 exclui o cidadão
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do rol dos legitimados. Isso evidencia claramente que na atual sistemática do


processo coletivo brasileiro identifica-se que não é possível a formação participada
do mérito processual, haja vista que nem todos os interessados difusos (tal como os
cidadãos) tem legitimidade para participar da definição das questões e da matéria de
mérito nas ações coletivas. É nesse contexto que se desenvolve inicialmente o
estudo do mérito processual na presente pesquisa, uma vez que a atual metodologia
utilizada pelo legislador e pela maioria dos estudiosos do processo coletivo no Brasil
é pautada no sistema representativo, que trabalha em cima da idéia de que o
legislador abstratamente é o detentor da legitimidade de definir taxativamente (e de
forma restritiva) quem é legitimado processual nas ações coletivas. No momento em
que o próprio legislador faz a opção pelo sistema representativo, limitando o rol dos
legitimados para as ações coletivas, certamente também delimita o número de
questões que poderiam ser trazidas para o debate no âmbito do processo coletivo.
Pelo cuidadoso estudo desenvolvido nas obras de Oskar Von Bülow,
Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei, Liebman e Fazzalari, foi possível constatar que
o entendimento do mérito processual limita-se às matérias e às questões trazidas
pelo requerente e pelo requerido para os autos, ou seja, o que se verifica na análise
dos autores trabalhados e discutidos no primeiro capítulo é uma concepção técnico-
dogmática do mérito apenas como a matéria (fática e jurídica) trazida pelas partes,
com a finalidade de guiar o juiz no ato decisório. Considerando-se que os primeiros
estudos sobre o mérito processual fundaram-se basicamente na noção de matéria
de fato e da matéria de direito discutidas apenas por quem propôs a ação
(demandante) e contra quem a ação foi proposta (demandado), pode-se afirmar,
inicialmente, que a adoção do sistema representativo como fundamento regente da
atual e vigente sistemática do processo coletivo no Brasil é reflexo da teorização do
mérito processual desenvolvida pelo processo civil. Em decorrência disso, torna-se
impossível pensar a formação participada do mérito processual enquanto o processo
coletivo continuar sendo visto e compreendido como uma extensão das discussões
teóricas perpetradas e desenvolvidas pelos estudiosos do processo civil.
O que se busca discutir ao longo de todo esse trabalho de pesquisa é o
estudo do mérito processual no Estado Democrático de Direito, demonstrando que a
respectiva reflexão cientifica não pode ter o seu entendimento adstrito à noção de
que o mérito processual é a matéria fática e jurídica trazida pelo autor e pelo
demandado na relação processual ora instaurada, haja vista que o mérito deve ser
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reconstruído teoricamente, a fim de ser visto e compreendido como um


procedimento bifásico que viabiliza a formação participada do provimento por todos
aqueles sujeitos legitimamente interessados e que demonstram aptidão para sofrer
os efeitos jurídicos do provimento.
É por isso que o mérito processual pode ser definido como um procedimento
(não como mera matéria de fato e de direito) através do qual num primeiro momento
todos os interessados no provimento terão legitimidade de participar da definição de
todas as matérias de fato e de todas as alegações jurídicas que permearão o objeto
da demanda até a fase de saneamento. Uma vez definido de forma participada o
objeto da demanda ao final da fase postulatória (que se encerra com o saneamento
processual), inicia-se, portanto, a segunda fase do procedimento, que consiste no
momento em que todos os interessados no provimento terão legitimidade para
debater amplamente todas as questões e a matéria trazidas pelas partes no primeiro
momento do procedimento.
Nessa seara sabe-se que o estudo sistematizado e crítico do mérito
processual perpassa, inicialmente, pela distinção teórica de alguns conceitos a ele
inerentes, tais como, demanda, pretensão, lide, matéria de fato, matéria de direito e
causa de pedir. Embora o Código de Processo Civil brasileiro de 1973 tenha
adotado as proposições teóricas de Enrico Tullio Liebman, para quem o mérito e a
lide são institutos correlatos, é importante ressaltar a necessidade de superação do
entendimento ideológico atinente ao tema, a fim de não condicionar a sua
compreensão ao direito das partes (demandante e demandado) e do juiz reduzi-lo
peremptoriamente àquelas questões ora levantadas e alegadas em juízo.
No segundo capítulo pretendeu-se demonstrar as bases teóricas do atual
modelo de processo coletivo brasileiro, centrado no sistema representativo, o que
denota a sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito pelo fato de
inviabilizar a formação participada do mérito processual. Os estudos desenvolvidos
no primeiro capítulo foram necessários para demonstrar que toda a base teórica da
atual sistemática adotada no Brasil quanto ao processo coletivo é mero reflexo da
ideologia individual e liberal de processo trabalhada pelos clássicos autores que
propuseram a base de toda a teoria processual. A partir desses estudos,
desenvolveu-se uma análise detalhada do histórico do processo coletivo, do sistema
americano (class action) e de todos os anteprojetos de codificação do direito
processual coletivo, momento em que foi possível constatar que a base teórica de
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todos os anteprojetos (salvo o anteprojeto de codificação do processo coletivo


desenvolvido pela Pucminas) é o sistema representativo, o que torna inviável pensar
em qualquer possibilidade de formação participada do mérito processual, haja vista
que todos os anteprojetos propõem um rol fechado de legitimados processuais a
propositura das ações coletivas. A construção tanto do primeiro capitulo, quanto do
segundo capítulo, foram vitais para o enfrentamento critico do tema problema no
terceiro capitulo, uma vez que foi possível, ao longo de toda a pesquisa, demonstrar
que a gênese do atual modelo de processo coletivo brasileiro encontra-se no
processo civil, que por ser de natureza liberal não propõe uma teoria geral do
processo de cunho democrático, mas sim autoritário, em que o julgador é quem
define os legitimados a participarem da relação processual, assim como institui
unilateralmente as matérias de fato e de direito a serem discutidas ao longo do
procedimento. O mérito processual, nesse contexto, é visto como a repercussão das
questões (fáticas e jurídicas) que o autor e o demandado submeteram à apreciação
do juiz.
A releitura do tema inicia-se pelo entendimento constitucionalizado do direito
de ação no Estado Democrático de Direito (artigo 5º, inciso XXXV da Constituição
brasileira de 1988), que se materializa inicialmente pelo amplo acesso ao Judiciário
e, especialmente, pelo direito assegurado indistintamente a todos os jurisdicionados
(interessados difusos e coletivos) de participar discursivamente da construção do
mérito processual. Assim, a ação passa a ser vista como o direito fundamental de
discussão do mérito da pretensão deduzida, assegurado a todo sujeito que
demonstre interesse jurídico na pretensão (objeto da ação proposta). Dessa forma,
resta superada a possibilidade de extinção do processo sem julgamento do mérito
por carência de ação, uma vez que as cognominadas condições da ação passam a
ser matéria integrante do mérito processual, admitindo-se, ainda, a figura da
extinção do processo sem julgamento do mérito apenas para aquelas situações que
não envolvam matéria de mérito, tal como ocorre com os pressupostos processuais
de existência e de validade da relação jurídico-processual.
A teoria das ações coletivas como ações temáticas, de autoria do jurista
Vicente de Paula Maciel Junior, ao propor o estudo do processo coletivo a partir do
objeto, superando o clássico entendimento que concentra a análise das ações
coletivas no sujeito, supera a concepção liberal-individualista ao estabelecer o
principio da participação como referencial ao debate das pretensões de cunho
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transindividual. A constituição de um lócus processual, de amplo e isonômico debate


fático-jurídico da pretensão coletiva ou difusa, por todos os interessados e
legitimados ao provimento estatal, deve ser vista como o patamar do entendimento
crítico-constitucionalizado do mérito.
O mérito processual não pode decorrer das questões consideradas relevantes
pelo juiz e suscitadas pelo autor da ação, na exordial, e pelo demandado, na peça
de defesa, tal como ocorre no processo civil. Na realidade, o mérito participado nas
ações temáticas deve ser resultado de um amplo debate instaurado
processualmente, em que figura como protagonistas do discurso democrático todos
os interessados na pretensão. Por isso, o mérito processual construído de forma
dialógica assegura a legitimidade do provimento estatal (jurisdicional), viabiliza o
exercício da cidadania e garante a efetivação do principio da inafastabilidade do
controle jurisdicional (amplo acesso ao Judiciário), tendo em vista que é reflexo de
um procedimento instaurado e conduzido a partir da possibilidade dos legitimados
apresentarem tempestivamente temas correlatos à pretensão inicialmente deduzida.
No terceiro capítulo procurou-se demonstrar que o conceito de mérito
processual trabalhado pelos autores e teóricos do processo civil não pode ser
utilizado como parâmetro ao entendimento do mérito nas ações coletivas, haja vista
que a herança liberal torna inviável a implementação do projeto democrático de
formação participada do mérito processual nas ações coletivas. A contribuição
pretendida com a presente pesquisa é propor um novo entendimento cientifico sobre
o mérito processual, superando aquele preconizado pelos autores clássicos (Bülow,
Chiovenda, Calamandrei, Carnelutti, Liebman) e desenvolvido no contexto do
processo civil, que limita a noção de mérito processual à matéria de fato e de direito,
ou seja, as questões fáticas e jurídicas submetidas à apreciação do juiz e trazidas
pelo demandante e pelo demandado ao processo. Dessa forma, o mérito processual
nas ações coletivas deve ser reflexo da formação participada pelos interessados
difusos e coletivos, podendo ser definido como um procedimento bifásico, em que na
primeira fase os interessados terão legitimidade de levar aos autos todas as
questões relacionadas com a pretensão inicialmente deduzida, ressaltando-se que o
despacho saneador é o término dessa primeira fase do procedimento, momento em
que é definida a matéria de mérito. Já na segunda etapa do procedimento temos a
ampla discursividade da matéria de mérito pelos interessados difusos e coletivos,
para que todos possam efetivamente influir, de forma direta, na construção do
19

provimento. A partir dessas considerações iniciais pretende-se demonstrar, ao longo


de toda a pesquisa, que o conceito de mérito processual proposto pelos estudiosos
clássicos no primeiro capítulo deve ser repensado, haja vista que na perspectiva do
processo civil a noção de mérito processual restringe-se às questões ou a matéria
apreciadas pelo juiz e trazidas pelo autor e pelo demandado, enquanto a formação
participada do mérito processual nas ações coletivas é reflexo de um procedimento
estabelecido para definir inicialmente a matéria de mérito a ser ampla e
discursivamente debatida pelas partes interessadas em momento posterior ao
saneamento. Nesse contexto, o mérito deixaria de ser visto apenas como a matéria
alegada pelas partes no processo e passaria a ser visto como um procedimento
construído e desenvolvido pelo devido processo legal, tendo em vista que o seu
entendimento supera muito às questões suscitadas processualmente pelas partes.
Afirmar que o mérito processual é um procedimento constitucionalizado de
formação do provimento estatal é reconhecer que o seu entendimento científico não
fica adstrito às questões ou a matéria (fática e jurídica) trazidas pelas partes ao
processo. É nesse contexto que se torna necessário distinguir mérito processual de
matéria de mérito. A partir da teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas os
temas trazidos pelas partes ao longo de todo o procedimento configurariam a
matéria de mérito alegada, até porque, a proposta da presente pesquisa é
demonstrar que a formação participada do mérito processual é um procedimento
através do qual as partes detêm a legitimidade de definir e de debater amplamente
toda a matéria de mérito.
O processo intelectivo do juiz na construção ou na formação participada do
mérito processual nas ações coletivas pressupõe a apreciação de todos os temas,
de todas as questões e matérias (fáticas e jurídicas) trazidas para o debate
processual pelas partes interessadas no provimento, ou seja, o que se pretende
demonstrar ao longo de toda a pesquisa é que o mérito processual não é mero
reflexo de conjecturas solitárias e unilaterais do julgador.
O provimento jurisdicional deve ser conseqüência de um procedimento
meritório desenvolvido discursivamente pelo devido processo legal, em que todos os
interessados tiveram a oportunidade de participar da definição da matéria de mérito
e também do amplo debate de todos os temas (matérias ou questões de mérito)
levantados pelos legitimados. Na realidade, quando o jurista Vicente de Paula Maciel
Junior sistematizou a Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, deixou
20

claro que os temas trazidos pelos interessados difusos para o processo coletivo
constituem a matéria ou as questões de mérito que conduzirão todo o debate
processual da pretensão em momento posterior à fase de saneamento e anterior à
decisão (provimento).
O presente trabalho é resultado de uma pesquisa teórico-bibliográfica e
documental, desenvolvida com o propósito de testificar o conhecimento científico
mediante a problematização crítica. A delimitação do problema teórico decorreu de
proposições dedutivas, cuja compreensão somente foi possível por meio de análises
temáticas, teóricas, interpretativas, comparativas, históricas e, essencialmente,
crítico-constitucionalizadas.
21

2. A GÊNESE DO MÉRITO NO DIREITO PROCESSUAL E DO DEBATE PRELIMINAR DA

PROPOSTA DE PESQUISA.

Inicialmente é importante esclarecer que a elaboração do primeiro capítulo


justifica-se pela necessidade de esclarecimento cientifico de toda a base teórica do
estudo do mérito processual, buscando-se demonstrar que a gênese de toda
produção atinente ao tema proposto encontra-se no direito romano e nas
proposições trazidas por Bülow, Chiovenda, Calamandrei, Carnelutti, Liebman e
Fazzalari, pesquisadores que demonstram em suas obras a estreita e a intrínseca
relação existente entre o mérito processual e diversos outros temas e institutos
correlatos, tais como a matéria de mérito (fática e jurídica), a pretensão, a lide, a
causa de pedir e a demanda. Preliminarmente pretende-se demonstrar que a base
de todo o estudo do mérito encontra-se no processo individual (processo civil) e se
limita às questões de fato e de direito trazidas pelas partes (requerente e requerido)
e apreciadas pelo julgador como referencial para a decisão judicial.
Esse sólido entendimento preconizado pelos autores clássicos, de que o
mérito processual restringe-se à matéria de fato e a matéria de direito trazida apenas
pelas partes (requerente e requerido) à relação processual, tem reflexos diretos no
entendimento critico da formação participada do mérito no processo coletivo. A
teorização de que o mérito processual limita-se à matéria fática e jurídica trazida
pelo autor e pelo demandado no processo se opõe à noção democrático-
constitucionalizada do mérito processual que deve ser visto como a instauração de
um procedimento de construção discursiva do provimento mediante o debate da
matéria de mérito por todos os interessados e afetados pelo provimento estatal.
A proposta específica do primeiro capítulo é justamente estudar e demonstrar
que os critérios utilizados pelos autores clássicos para definir o mérito no processo
individual é utilizado como referencial teórico para a sedimentação do modelo de
processo coletivo adotado pelo Brasil, especialmente quando se analisa, por
exemplo, a Lei de Ação Civil Pública, que ao restringir o rol de legitimados
processuais ativos a sua propositura (excluindo-se o cidadão) certamente demonstra
a opção pelo sistema representativo. O conceito de mérito do processo civil,
trabalhado pelos autores analisados no presente capitulo, é a base de todo o
sistema representativo adotado no modelo de processo coletivo brasileiro vigente,
22

haja vista que o legislador é quem definiu abstratamente aquelas pessoas


consideradas legitimadas à propositura das ações coletivas, excluindo-se, na maioria
das vezes o cidadão.
A relação existente entre o mérito do processo civil e o sistema representativo
resta evidente na limitação dos sujeitos que participarão da formação do mérito, ou
seja, tanto no processo civil quanto no modelo de processo coletivo adotado
atualmente no direito brasileiro é o legislador quem define os legitimados a
propositura da ação coletiva, à definição da matéria de mérito e a participação no
debate da matéria de mérito no âmbito processual. Isso implica em limitação na
participação dos interessados na formação do mérito, algo que se pretende
demonstrar ao longo de todo esse capitulo por meio da apresentação dos
fundamentos teórico-científicos utilizados como parâmetro à construção do conceito
de mérito pelos autores estudados.
Tanto no processo civil quanto no processo coletivo brasileiro vigente não se
vislumbra a formação participada do mérito, pelo fato de não haver abertura que
oportunize isonomicamente a participação de todos os interessados na definição da
matéria de mérito e, também, na construção do mérito como conseqüência do
debate amplo das questões fático-jurídicas suscitadas pelas partes. A restrição do
rol de sujeitos legitimados ao debate processual impossibilita a construção
participada do mérito.
É nessa seara que se inicia o estudo específico do tema, ressaltando-se que
etimologicamente a palavra mérito vem do latim meritum, cuja significação é
“merecimento, aptidão, superioridade, bom serviço”1 (BASTOS, 1928, p. 912).
Verifica-se que a palavra mérito encontra-se diretamente vinculada ao
reconhecimento, à aptidão, à capacidade, à superioridade, à habilidade, ou seja,
classicamente a compreensão mais adequada é aquela na qual o mérito se associa
ao significado que designa pessoa merecedora de reconhecimento. Correlacionar o
sentido clássico da palavra mérito com o instituto do mérito processual pode denotar
inicialmente que o julgamento do mérito é uma prerrogativa inerente às pessoas que
merecem discutir os fundamentos fático-jurídicos da pretensão deduzida em juízo
por terem demonstrado previamente os requisitos legais que viabilizam a análise e a
participação na discussão meritória. Considerando-se que a discussão do mérito

1
Importante ressaltar que pela pesquisa ora desenvolvida não houve, a partir de 1928, relevante
contribuição filológica com relação ao conceito de mérito.
23

processual não é um direito assegurado a todos indistintamente, pode-se afirmar


que a participação no debate do mérito da pretensão é uma prerrogativa assegurada
apenas a determinadas pessoas merecedoras e que tenham demonstrados
previamente os requisitos extrínsecos ao mérito (condições da ação e pressupostos
processuais).
A compreensão dos fundamentos científicos do mérito processual sempre foi,
e ainda é, objeto de profundas e de hesitantes discussões jurídicas, tendo em vista o
seu caráter polissêmico e também a ausência de critérios de cientificidade para o
seu entendimento2.
Essa indefinição teórica acerca do mérito decorre da sua proximidade com o
conceito da causa de pedir, visto processualmente pela Escola Instrumentalista3
como a fundamentação fático-jurídica da pretensão deduzida em juízo e, nessa
perspectiva, o mérito processual restringir-se-ia à análise dessas peculiaridades
fático-jurídicas e/ou apenas jurídicas da pretensão deduzida em juízo.
Sabe-se que o estudo da natureza jurídica do mérito inicia-se a partir das
considerações cientificas ora expostas, porém a elas não se restringem. Isso advém
da necessidade de delimitarmos os fundamentos e os contornos científicos do
entendimento crítico acerca do mérito no âmbito processual.
A ideologização4 e a dogmatização5 do tema mostra-se na dificuldade dos
estudiosos quanto a sua conceituação e também na promiscuidade como o tema é

2
[...] Demonstrando a promiscuidade do legislador na utilização da expressão, em caminho seguido
por outros processualistas, Cândido Rangel Dinamarco mostrou que o legislador brasileiro, na
Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, conferiu à palavra l”lide”, dentre outros, o
significado de “mérito”, o mesmo ocorrendo, quase sempre, ao longo do mencionado diploma legal.
Assim, expressões como “julgamento antecipado da lide” (v.g. nomenclatura utilizada na seção em
que se encontra o artigo 330), “julgar total ou parcialmente a lide” (artigo 468), litisconsórcio por
“comunhão de direitos ou de obrigação relativamente à lide” (artigo 46, inciso I), “ conhecimento da
lide” (artigo 110) e outras tantas são exemplos da utilização da expressão lide com sinônimo de
mérito. (MADEIRA, 2010, p. 109).
3
Todas as vezes que for mencionado ao longo dessa pesquisa a expressão “Escola Instrumentalista
de Processo” ou “Escola Paulista de Processo” pretende-se fazer uma remissão aos estudos
científicos e sistematizados especialmente pelos professores e pesquisadores da Universidade de
São Paulo, e mais recentemente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialmente os
professores doutores Cândido Rangel Dinamarco, Alfredo Buzaid, Kazuo Watanabe e Ada Pelegrini
Grinover, cujos estudos científicos no âmbito do direito processual são relevantes e foram
desenvolvidos a partir das proposições teóricas de Enrico Tullio Liebman.
4 IDEOLOGIA: “Esse termo foi criado por Destut de Tracy (Idéologie, 1801) para designar a análise

das sensações e das idéias segundo o modelo de Condillac. A I. constituiu a corrente filosófica que
marca a transição do empirismo iluminista para o espiritualismo tradicionalista e que floresceu na
primeira metade do século XIX (v. ESPIRITUALISMO). Como alguns ideologistas franceses fossem
hostis a Napoleão, este empregou o termo em sentido depreciativo, pretendendo com isso identifica-
los com sectários ou dogmáticos, pessoas carecedoras de senso político e, em geral, sem contato
com a realidade (PICAVET, Lês idéologues, Paris, 1891). Aí começa a historia do significado
24

abordado. Tal afirmação justifica-se pela ausência de cuidado dos pesquisadores


em diferenciar sistematicamente o mérito, a pretensão, a lide, a demanda, o objeto 6,
a causa de pedir próxima e remota. O que se pretende com a presente pesquisa é
inicialmente teorizar o estudo do mérito a partir do processo individual para, assim,
estabelecer critérios científicos suficientes ao seu entendimento no âmbito do
processo coletivo.
A Escola Instrumentalista do Processo compreende o instituto jurídico do
mérito processual a partir da análise das condições da ação, porém apenas
esclarece que a legitimidade ad causam, a possibilidade jurídica do pedido, o
interesse de agir e as condições específicas de procedibilidade da ação penal são
requisitos indispensáveis para a análise do mérito da pretensão, sem adentrar ao
estudo critico e jurídico sobre o que é propriamente o mérito processual.
Simplesmente o debate jurídico limita à demonstração de que a inexistência de uma
das condições da ação no processo civil ocasionará a carência de ação, que terá
como conseqüência a extinção do processo sem julgamento do mérito(CINTRA,
2005, p. 266-272).
O estudo da gênese do mérito processual justifica-se pela proximidade do
tema com a matéria de fato7 e a matéria de direito, consideradas o pressuposto para

moderno desse termo, não mais empregado para indicar qualquer espécie de análise filosófica, mas
uma doutrina mais ou menos destituída de validade objetiva, porém mantida pelos interesses claros
ou ocultos daqueles que a utilizam. {...}. Hoje, por I. entende-se o conjunto dessas crenças, porquanto
só têm a validade de expressar certa fase das relações econômicas e, portanto, de servir à defesa
dos interesses que prevalecem em cada fase desta relação. Foi exatamente com esse sentido que a
I. foi estudada pela primeira vez em Trattato di sociologia generale (1916) de Vilfredo Pareto, apesar
de, nesta obra, não ser usado o termo I. (que fora empregado em Sistemi socialisti, 1902, pp. 525-
26). Em Paeto, a noção de I. corresponde à noção de teoria não-cientifica, entendendo-se por esta
última qualquer teoria que não seja lógico-experimental [...]”.(ABBAGNANO, 2003, p. 531-532).
5
Dogma: opinião ou crença. Nesse sentido a palavra é usada por Platão e contraposta pelos céticos
à epoché, ou suspensão do assentimento, que consiste em não definir a própria opinião em um
sentido ou em outro. Kant entendeu por dogma uma proposição diretamente sintética que deriva de
conceitos e como tal distinta de uma proposição do mesmo gênero, derivada da construção dos
conceitos, que é um matema. Em outros termos, o dogma são proposições sintéticas a priori de
natureza filosófica, ao passo que não poderiam ser chamadas de dogma as proposições de cálculo e
geometria (ABBAGNANO, 2003, p.292).
6
Objeto litigioso, pois, é conceito menor do que objeto do processo. Em conclusão, diz que o objeto
litigioso “é o mérito, assim entendido o pedido do autos formulado na inicial ou nas oportunidades em
que o ordenamento jurídico lhe permita ampliação ou modificação; o pedido do réu na reconvenção; o
pedido do réu formulado na contestação, nas chamadas ações dúplices; o pedido do autor ou do réu
nas ações declaratórias incidentais (sobre questões prejudiciais); o pedido do autor ou do réu contra
terceiro na denunciação da lide; o pedido do réu no chamamento ao processo; o pedido do terceiro
contra autor e réu, formulado na oposição. Em suma, é o pedido que, na opinião de Sydney Sanches,
caracteriza o objeto litigioso (DINAMARCO, 1987, p. 213).
7
O artigo 330 do Código de Processo Civil vigente (CPC 1973) estabelece: “O juiz conhecerá
diretamente o pedido, proferindo sentença: I- quando a questão de mérito for unicamente de direito,
ou, sendo de direito ou de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência; II- quando
25

o entendimento de conceitos fundamentais do Direito Processual e, por conseguinte,


requisitos indispensáveis à análise do mérito da pretensão nos ditames expostos
pelo legislador do Código de Processo Civil de 1973. A causa de pedir, o objeto da
lide, a pretensão e a própria lide são institutos cujo entendimento condiciona-se à
teorização do que seja matéria de fato e matéria de direito. O que temos nos
estudos desenvolvidos até então é que a matéria de fato e a matéria de direito,
como temas do Direito Processual, são vistas sob a ótica ideológica, ou seja, existe
uma ínsita relação entre elas e mérito processual.
Tal relação encontra-se claramente estruturada a partir dos conceitos de
sentença terminativa8 (sentença que extingue o processo sem julgamento do
mérito), de sentença definitiva (sentença em que o julgador garante a resolução do
mérito da pretensão deduzida) e também no instituto do Julgamento Antecipado da
Lide9.
O julgamento do mérito processual da pretensão deduzida condiciona-se à
formação do convencimento motivado do julgador referente às questões de fato e de
direito postas pelas partes em juízo. Havendo provas suficientes ao convencimento
do julgador, teremos o julgamento do mérito.
Dessa forma, sabe-se que entre os pesquisadores e os estudiosos do Direito
Processual proposto pelo legislador do Código de Processo Civil de 1973, a análise

ocorrer a revelia”. (BRASIL, Código Civil, Comercial, Processo Civil e Constituição Federal, 2008,
p.642). Nesse dispositivo legal verifica-se a relação intrínseca entre o mérito e a matéria de fato. Pelo
que se extrai da leitura do dispositivo o legislador limitou o instituto do mérito às alegações de fato e
de direito, inerentes à pretensão, cuja apreciação dar-se-á a partir do exercício da jurisdição pelo
julgador, que quando da análise do mérito excluirá qualquer participação das partes (demandante,
demandado e demais sujeitos juridicamente interessados na pretensão) na construção do mérito.
Assim, pode-se afirmar que o conceito de mérito adotado pelo legislador do Código de Processo Civil
de 1973 advém de uma concepção autoritária de processo e do entendimento da jurisdição enquanto
sacerdócio e poder exercido pelo julgador.
8
Grosso Modo, pode-se dizer que haverá julgamento conforme o estado, sem que se aprecie o
mérito, se o juiz verificar de oficio ou se convencer da alegação de uma das partes, quanto à
inexistência de pressuposto processual ou de quaisquer das condições da ação, ou quando houver a
presença de pressuposto processual negativo. (WAMBIER, 2005, p. 420)
9
O julgamento antecipado da lide, que é uma espécie do gênero “julgamento conforme o estado do
processo, pode ocorrer em três situações. Pode o pedido envolver só direito e não fato, não havendo,
portanto, necessidade de produção de provas, além daquelas que já terão sido produzidas com a
própria petição inicial (documentais). [...] Também deve haver julgamento antecipado se, embora o
mérito envolva matéria de fato e de direito, não houver necessidade de produção de provas em
audiência. Nesse caso, inspirado pelo principio da economia processual o legislador autorizou o juiz a
dispensar a audiência de instrução e julgamento. Por último, pode haver julgamento antecipado da
lide se, tendo o réu se omitido com relação ao ônus de contestar, sendo, portanto, revel, ocorreram os
efeitos da revelia. Esses efeitos, como se viu, ocorrem se preenchidas as condições legais (como, por
exemplo, não se tratar de direito indisponível) e se o juiz considerar verossímeis os fatos narrados
pelo autor na petição inicial, em respeito ao principio do livre convencimento motivado. (WAMBIER,
2005, p. 421-422).
26

do mérito consiste no enfrentamento de todas as alegações fáticas e jurídicas que


deverão ser provadas e demonstradas, no âmbito da relação processual instituída
entre as partes e pelas partes, diante da autoridade do julgador.
Importante ressaltar que a complexidade do tema ora posto em debate advém
certamente da sua utilização enquanto sinônimo de pretensão, de lide e de objeto da
demanda. Para aqueles que compreendem o processo como um instrumento para o
exercício da jurisdição e a oportunidade do Judiciário manifestar-se juridicamente
acerca do conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida o conceito
de mérito encontra-se intrinsecamente interligado ao conceito de Lide.
Esse foi o posicionamento adotado nas Exposições de Motivos do Código de
Processo Civil vigente, onde se verifica a utilização da palavra Lide para designar o
mérito da causa. Visando esclarecer a sistemática adotada pelo legislador do Código
de Processo Civil vigente é oportuna a análise de alguns dispositivos para verificar o
sentido e a compreensão jurídica adotada acerca do mérito.
No artigo 330 do CPC10 o legislador pátrio deixou claro que o mérito restringe-
se à apreciação de toda matéria fática e de direito ou apenas a matéria de direito
objeto da pretensão deduzida em juízo. Já no artigo 468 do CPC 11 verifica-se a
delimitação do conceito de mérito à compreensão que se tem de Lide hoje. Esse é o
entendimento adotado pelo professor José Marcos Rodrigues Vieira: “ O mérito é o
pedido e é a lide, ou, como visto, é esta nos limites daquele” (VIEIRA, 2002, p. 160).
Segundo explica o autor em comento o conceito de mérito é endoprocessual
e pode ser definido como a lide nos limites do pedido. Nesse sentido

O mérito já foi dito que é o pedido, que é a lide, que é o pedido nos limites
da lide e, atribuída à lide a conotação de realidade intra-autos, seria (a meu
ver) a lide nos limites do pedido, a lide não transbordante do pedido. Sem
maiores discussões sobre a doutrina, não se pode deixar de admitir que o
mérito, qualquer que seja a concepção, haja de refletir o conjunto de
questões subordinadas à preclusão do deduzido e do dedutível (VIEIRA,
2000, p. 116).

Novamente verifica-se que o conceito de mérito proposto pelo legislador do


Código de Processo Civil refere-se a todas as questões fáticas e jurídicas da

10
Arito 330 do Código de Processo Civil: “O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo
sentença: I- quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não
houver necessidade de produzir prova em audiência; II- quando ocorrer a revelia (artigo 339)”
11
Aritigo 468 do CPC: “A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites
da lide e das questões decididas”.
27

pretensão deduzida em juízo, conforme preceitua o artigo 459, caput: “O juiz


proferirá a sentença, acolhendo ou rejeitando, no todo ou em parte, o pedido
formulado pelo autor. Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito,
o juiz decidirá de forma concisa”. Todo o nosso ordenamento jurídico foi estruturado
no sentido de vincular a temática do mérito processual ao debate das questões
fático-jurídicas a partir da pessoa do juiz.
Por isso, pode-se afirmar que hoje o entendimento jurídico-científico comum
entre os processualistas é de que o mérito processual percorre a essência da
situação processual instituída a partir do poder inerente à jurisdição. Ou seja, o
enfrentamento do mérito é visto como uma prerrogativa do julgador, e não como um
direito das partes. A justificativa de tal colocação é no sentido de que a construção
ou a análise do mérito não advém de um direito das partes diretamente interessadas
no provimento. Pelo contrário, é produto da legitimidade pressuposta do legislador
que determina, através da imposição das condições da ação e dos pressupostos
processuais, a viabilidade ou não de enfrentamento do mérito.
A ausência de um conceito construído e pacificado sobre o mérito é o que
garante criticamente as reflexões cientificas propostas na presente pesquisa. Para
Candido Rangel Dinamarco “o mérito é o complexo das questões materiais que a
lide apresenta” (DINAMARCO, 1996, p. 200).
Giuseppe Chiovenda compreende o mérito a partir do conceito de demanda.
Nesse sentido é oportuna a citação de Chiovenda exteriorizando o seu entendimento
sobre o que é demanda: “é o ato pelo qual a parte, afirmando existente uma
vontade contrata de lei, que lhe garante um bem, declara querer que essa vontade
se atue, e invoca para esse fim a autoridade do órgão jurisdicional”(CHIOVENDA,
1969, p. 297). Verifica-se, previamente, que para Chiovenda o mérito reside na
demanda, tendo em vista ser a sentença o provimento estatal que reconhece ou não
a demanda do jurisdicionado. Oportuno esclarecer que a demanda é vista aqui como
a pretensão, ou seja, como uma narração reivindicativa de um direito materializado
na petição inicial. Nesse sentido é oportuna a contribuição de Kazuo Watanabe:
“demanda é fato estritamente processual e constitui veículo de algo externo ao
processo e anterior a ele, algo que é trazido ao juiz em busca de um remédio que o
demandante quer” (WATANABE, 1987, p. 731).
No mesmo sentido temos o posicionamento de Cândido Rangel Dinamarco,
que entende ser a demanda o próprio objeto do processo. Nesse sentido temos: “a
28

demanda é o objeto litigioso do processo, em torno do qual será exercida a


jurisdição em cada caso concreto, ao juiz não sendo lícito desconsidera-lo, amplia-lo
por iniciativa própria ou pronunciar-se acerca de outro objeto” (DINAMARCO, 1986,
p. 186).
É nessa perspectiva que podemos afirmar que o conceito de mérito encontra-
se intrinsecamente atrelado ao objeto da lide e à pretensão deduzida nos limites do
pedido. Pelo estudo preliminar do tema constata-se a necessidade de maior
profundidade científica no estudo crítico do mérito processual. É evidente a
construção jurídica vinculando o mérito à pretensão, ao objeto da lide e a matéria
fático-jurídica levada ao Judiciário. O processualista italiano Elio Fazzalari também
explicita em sua obra a relação existente entre mérito processual, demanda e lide

Quanto aos provimentos de mérito em sentido lato, podem-se qualificar


como tais os provimentos que envolvem a cognição do mérito (isto é, o
aspecto substancial deduzido na lide e aquele requerido ao juiz), sejam os
que acolhem a demanda judicial, sejam os que a rejeitam. Em sentido
estrito, são provimentos de mérito somente os jurisdicionais, ou seja,
aqueles que no acolher da demanda invocam uma das medidas
reparadoras que constituem a jurisdição (condenação, declaração e
constituição): são elas que desenvolvem efeitos substanciais no patrimônio
das partes. Por sua vez, a pronúncia de rejeição da demanda – a recusa de
invocar aquela medida – deve considerar-se “de rito”, porque desenvolve
efeitos somente no processo. (FAZZALARI, 2006, p. 441-442).

Fica claro, inicialmente, que, sob a ótica do processo civil (processo


individual), não podemos hoje visualizar a possibilidade de construção participada do
mérito processual. A predeterminação legal da existência das condições da ação e
dos pressupostos processuais como elementos jurídico-ideologizantes extrínsecos e
intrínsecos à relação processual já denota a existência de condicionantes legais ao
enfrentamento do mérito. Isso evidencia a exclusão das partes como legitimados à
construção participada do mérito no momento em que o legislador legitima o julgador
a deixar de enfrentar o mérito em virtude da ausência de tais elementos.
As condições da ação, tais como dispostas na legislação processual civil
vigente, traz no seu bojo questões atinentes à matéria de mérito, uma vez que a sua
análise perpassa necessariamente pela verificação das questões de fato e de direito
que permeiam, direta ou indiretamente, a pretensão deduzida. Nessa seara, não é
possível, sob o ponto de vista crítico, desvincular o estudo do mérito com relação às
condições da ação (legitimidade ad causam, interesse de agir e possibilidade jurídica
do pedido), uma vez que a análise das circunstâncias vinculadas ao cerne da
29

pretensão tem relação intrínseca com todas as alegações trazidas pelas partes aos
autos.
Os pressupostos processuais de validade e de existência (competência do
juízo) da relação jurídico-processual são vistos como questões pré-meritórias ou
exteriores ao mérito da pretensão, tendo em vista que não possuem qualquer
relação com os fundamentos daquilo que está sendo debatido pelas partes no
processo.
A extinção do processo sem julgamento do mérito12 por carência da ação
deve ser vista como um meio ilegítimo de exclusão das partes na construção
participada do mérito processual. É a ratificação do entendimento já solidificado de
que a relação processual é um recinto conduzido pessoalmente pela percepção que
o julgador tem do caso concreto. Isso fica muito evidente no estudo do processo
coletivo na atualidade, tendo em vista que o sistema jurídico-processual adotado
hoje pelo Brasil, no que tange à proteção jurídica dos direitos de natureza
metaindividual, é uníssono ao excluir o cidadão individual como autor da ação
coletiva. A falta de legitimação para agir ao indivíduo que busca o exercício da tutela
coletiva o impossibilita de participar discursivamente da construção do mérito
processual, conforme entendimento preconizado por Vicente de Paula Maciel Junior:

No Brasil um caso típico a demonstrar essa tendência é a falta de


legitimação para agir ao individuo no exercício da tutela coletiva no Código
de Defesa do Consumidor, que poderia gerar uma série demandas
individuais com repercussões coletivas contra a Administração Pública
quando a mesma presta serviços públicos.
E aqui a revelação das tensões nos processos judiciais discursivos se faz
mais nítida, transformando em grande problema moderno a questão do
acesso à Justiçam, quando na verdade o que ocorre é uma negação da
faculdade de agir ao legitimado natural para a ação.
Esse modelo de Justiça no qual se nega legitimação para agir ao individuo é
um sinal da presença autoritária das forças políticas dos agentes em um
Estado. Eles agem retirando a possibilidade de instauração de processos
judiciais discursivos que os fiscalizem e limitem suas ações aos termos da
lei (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 127).

Inicialmente pretende-se demonstrar que o enfrentamento do tema referente à


construção participada do mérito processual perpassa pela ruptura com a concepção

12
[...] caracteriza-se a sentença terminativa por desfechar o processo na instância sem a apreciação
do seu mérito, deixando de ser conhecido e enfrentado o pedido formulado pelo autor na peça inicial,
o que se justifica em virtude da existência de um vício formal, que macula a relação jurídica.
(MONTENEGRO FILHO, 2006, p. 563)
30

autocrática do processo visto como instrumento da jurisdição e a jurisdição como um


poder do juiz de dizer o direito no caso concreto. Além disso, faz-se necessário
teorizar os elementos e os fundamentos jurídicos indispensáveis à construção do
mérito no Direito Processual, especificamente no processo coletivo, para que fique
evidente que o principio participativo é o referencial para assegurar a todos os
interessados difusos e coletivos o direito fundamental de ser inserido no lócus
processual e, assim, exercer a condição de co-autor do provimento jurisdicional de
natureza meritória.
O pressuposto teórico essencial à discussão do tema proposto é o estudo do
processo, no contexto da constitucionalidade democrática, cujos fundamentos
centrais são os princípios da legalidade, do contraditório, da ampla defesa e da
obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais. A construção participada
do mérito perpassa pela conjugação da legitimidade processual assegurada a todos
os interessados no provimento jurisdicional (estatal), incluindo-se aqueles que
sofrerão, direta ou indiretamente, os efeitos jurídicos da decisão judicial. Os direitos
de natureza metaindividual designam uma relação organizada de sujeitos orientados
a um mesmo resultado comum, argumento esse que justifica, preliminarmente, a
legitimidade dos interessados participarem de forma discursiva da construção dos
fundamentos regentes do provimento de mérito
A Constituição brasileira de 198813 passou a ser o lócus e o fundamento
jurídico de estruturação do procedimento voltado à construção participada do
provimento (LEAL, 2002, p. 87). Nessa mesma perspectiva teórica, a legitimidade
democrática na construção participada14 dos provimentos passa a ser o objeto da

13
A visão analítica das relações entre processo e Constituição revela ao estudioso dois sentidos
vetoriais em que elas se desenvolvem, a saber: a) no sentido Constituição-processo, tem-se tutela
constitucional deste e dos princípios que devem regê-lo, alçados a nível constitucional; b) no sentido
do processo-Constituição, a chamada jurisdição constitucional, voltada ao controle da
constitucionalidade das leis e atos administrativos e à preservação de garantias oferecidas pela
Constituição (“jurisdição constitucional de liberdades”), mais toda a idéia de instrumentalidade
processual em si mesma, que apresenta o processo como sistema estabelecido para a realização da
ordem jurídica, constitucional inclusive. A tutela constitucional do processo tem o significado e escopo
de assegurar a conformação dos institutos do direito processual e o seu funcionamento aos princípios
que descendem da própria ordem constitucional (DINAMARCO, 1996. p. 25).
14
Acredito estejamos caminhando para o processo como instrumento político de participação. A
democratização do Estado alçou o processo à condição de garantia constitucional; a democratização
da sociedade fá-lo-á instrumento de atuação política. Não se cuida de retirar do processo sua feição
de garantia constitucional, sim fazê-lo ultrapassar os limites da tutela dos direitos individuais, como
hoje conceituados. Cumpre proteger-se o indivíduo e as coletividades não só do agir contra legem do
Estado e dos particulares, mas de atribuir a ambos o poder de provocar o agir do Estado e dos
particulares no sentido de se efetivarem os objetivos politicamente definidos pela comunidade.
31

Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 117)
e da Teoria Neo-Institucionalista do Processo a partir dos princípios institutivos,
visando-se, assim, compreender o processo como um espaço de discursividade
democrática (LEAL, 2009, p. 86)15.
Há aproximadamente 10 anos o professor e processualista Vicente de Paula
Maciel Junior estuda o processo coletivo e publicou no ano de 2006 obra intitulada
Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, com o propósito de revisitar a
propedêutica do processo coletivo clássico desenvolvido a partir do sujeito. Propõe o
autor o estudo do processo coletivo a partir do objeto, fundamento esse considerado
imprescindível ao entendimento democrático-constitucionalizado do processo
coletivo como recinto da discursividade e da dialogicidade como parâmetros lógicos
à construção participada do mérito processual. É por isso que “quanto maior fosse a
participação na formação do mérito, maior seria a legitimação da decisão do
processo coletivo em relação aos efeitos que produziria em face dos interessados
difusos” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 181)
O principio do contraditório, enquanto pressuposto da dialogicidade passa a
ser o fundamento da regência do modelo constitucional de processo. Adolph Wach,
já no século XIX (especificamente no ano de 1865), ao sistematizar cientificamente o
estudo do Direito Processual, já mencionava a importância do contraditório ao
enaltecer que tal princípio oportunizava às partes (autor e réu) a possibilidade de
dialogo no âmbito processual, podendo o réu rebater legitimamente as alegações
propostas pelo autor (WACH, 1977, p. 23-25).
Sob a ótica constitucionalizada e democrática o contraditório deve ser visto
como um princípio que assegura a todos interessados na construção participada do
provimento o direito de influenciar nas decisões judiciais e não serem surpreendidos
por uma decisão unilateralmente imposta pelo julgador (NUNES, 2008, p. 233-235).
Além disso, tal princípio estabelece o dever do julgador se posicionar e se

Despe-se o processo de sua condição de instrumento de formulação e realização dos direitos. Misto
de atividade criadora e aplicadora do direito, ao mesmo tempo (PASSOS, 1988, p. 95).
15
Infere-se que uma teoria neo-institucionalista do processo só é compreensível por uma teoria
constitucional de direito democrático de bases legitimantes na cidadania (soberania popular). Como
veremos, a instituição do processo constitucionalizado é referente jurídico-discursivo de estruturação
dos procedimentos (judiciais, legiferantes e administrativos) de tal modo que os provimentos
(decisões, leis e sentenças decorrentes) resultem de compartilhamento dialógico-processual na
Comunidade Jurídica, ao longo da criação, alteração, reconhecimento e aplicação de direitos, e não
de estruturas de poderes do autoritarismo sistêmico dos órgãos dirigentes, legiferantes e judicantes
de um Estado ou Comunidade. (LEAL, 2009, p. 86).
32

pronunciar sobre todas as teses e alegações apresentadas pelas partes, não


podendo se esquivar e deixar de se posicionar sob o pretexto do livre
convencimento ou a intima convicção.
É intrínseca a relação existente entre o princípio do contraditório16 com o
principio da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais 17. Diante disso
sabe-se que o enfrentamento do mérito processual na perspectiva da dialogicidade
proposta pelo contraditório pressupõe a possibilidade das partes participarem e
construírem diretamente o provimento, retirando-se a autonomia exclusiva do
julgador de decidir unilateralmente o caso concreto. É nesse sentido que se
posiciona Ronaldo Bretas de Carvalho Dias, na seara da obra de Dierle José Coelho
Nunes:

Enfim, em concepção científica atualizada, como escreve Dierle José


Coelho Nunes, forte nas lições doutrinárias de Comoglio e de Trocker,
impõe-se a “leitura do contraditório como garantia de influência no
desenvolvimento e resultado do processo”, sendo esta a razão de se elevar
o contraditório à destacada condição de “elemento normativo estruturador
da comparticipação”, assegurando-se o “policentrismo processual”,
segundo o devido processo constitucional. Tais premissas levam referido
doutrinador a concluir: “permite-me, assim, a todos os sujeitos
potencialmente atingidos pela incidência do julgado (potencialidade
ofensiva) a garantia de contribuir de forma critica e construtiva para sua
formação”. (DIAS, 2010, p. 52-53).

A pré-compreensão que o legislador do Código de Processo Civil de 1973 tem


sobre o mérito processual decorre da abordagem advinda das proposições

16
[...] o principio do contraditório é referente lógico-jurídico do processo constitucionalizado,
traduzindo, em seus conteúdos, a dialogicidade necessária entre interlocutores (partes) que se
postam em defesa ou disputa de direitos alegados, podendo, até mesmo, exercer a liberdade de nada
dizerem (silêncio), embora tendo direito-garantia de se manifestarem. Daí, o direito ao contraditório
ter seus fundamentos na liberdade jurídica tecnicamente exaurida de contradizer, que, limitada pelo
tempo finito (prazo) da lei, converte-se em ônus processual se não exercida. Conclui-se que o
processo, ausente o contraditório, perderia sua base democrático-jurídico-principiológica e se
tornaria um meio procedimental inquisitório em que o arbítrio do julgador seria a medida colonizadora
da liberdade das partes. (LEAL, 2009, p. 97).
17
Liga-se aos princípios da ação, da defesa e do contraditório, e ao método do livre convencimento
do juiz, a obrigação de motivação das decisões judiciais, vista, sobretudo, em sua dimensão política.
Com efeito, a razão da necessidade de motivar pode ter dois enfoques distintos. A mais antiga atém-
se a razões exclusivamente técnicas, endoprocessuais, restritas às partes, às quais se assegura o
direito de conhecer as razões da decisão, para, adequadamente, impugna-la; e aos órgãos de
segundo grau, para dar-lhes meios de controlar a justiça e legalidade das decisões submetidas a sua
revisão. [...] Salienta-se, hoje, a função política da motivação, sendo seus destinatários não apenas
as partes e o juiz da impugnação, mas quisquis de populo, com a finalidade de aferir-se, em concreto,
a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça de decisão [...] Por isso é que diversas Constituições
modernas elevam o principio da motivação à estatura constitucional, e o que não significa apenas
conferir-lhes maior estabilidade, mas, sobretudo, atribuir-lhe dimensão de garantia do correto
exercício da jurisdição [...] (GRINOVER, 1990, p. 34).
33

ideológicas das obras de Enrico Tullio Liebman, Francesco Carnelutti e Giuseppe


Chiovenda, ao não esclarecer as distinções teóricas existentes precipuamente entre
o mérito, a matéria de fato e a matéria de direito. A proposta da presente pesquisa é
construir e teorizar o mérito processual a partir das premissas trazidas pelo modelo
constitucional de processo, e, mais especificamente, debater a problemática do
mérito no contexto do processo coletivo, cujo entendimento pressupõe a superação
da matriz autoritária de processo centrado na figura do decididor e a (re) construção
de um modelo de processo coletivo compatível com o Estado Democrático de
Direito, não mais centrado no sujeito, mas sim no objeto.
A legítima construção participada do mérito processual pela amplitude da
defesa se faz nos limites temporais do principio do contraditório, até porque a
amplitude de defesa não pode ser compreendida sob a égide da infinitude da
produção de defesa a qualquer tempo, tendo em vista que a defesa das partes
deverá ser produzida no tempo do processo estabelecido pela lei (LEAL, 2009, p.
98). Ressalta-se que o princípio da legalidade, no contexto da processualidade
democrática, não pode ser visto nem compreendido a partir de percepções retóricas,
ou seja, a partir da conveniência da equidade ou da sabedoria inata do julgador em
permitir, quando entender necessária, a construção participada do mérito
processual. Tal afirmação se justifica no sentido de que a lei que estabelece o limite
temporal de construção do mérito processual a partir dos princípios do contraditório,
da ampla defesa e da obrigatoriedade de fundamentação das decisões pelo julgador
deve ser a lei democrática, produzida no recinto da Devido Processo Legislativo
(LEAL, 2010, p. 131-138).
Assegurar a igualdade jurídica de argumentação das partes (interlocutores)
no âmbito processual é o fundamento para garantir a legitimidade do discurso de
construção do mérito participado. A igualdade jurídica 18 materializa-se pela igual
oportunidade que os interlocutores terão de verem apreciados todos os seus
argumentos fático-jurídicos pelo julgador no momento em que se pronunciar sobre o
caso concreto. A partir disso é possível identificar a implementação do principio da

18
A isomenia, em minha teoria neo-institucionalista, que é instituto operacional do principio da
legalidade, define-se pela oportunidade de colocar todos os destinatários normativos (intérpretes) em
simétrica posição ante idêntico referente lógico-jurídico construtivo, aplicativo, modificativo ou
extintivo do sistema jurídico (LEIS). É o devido processo, no sentido da teoria neo-institucionalista,
que é o referente lógico-jurídico (interpretante) a balizar os limites hermenêuticos de um sistema
jurídico de “Estado Democrático de Direito” em concepções de uma sociedade aberta [...]. (LEAL,
2010, p. 271.
34

fundamentação das decisões judiciais na construção participada do mérito


processual, até porque, o julgador tem o dever (não mera faculdade) de enfrentar
todas as teses jurídicas e alegações fáticas apresentadas pelas partes interessadas
quando for proferir sua decisão.
Nesse primeiro momento pretendeu-se demonstrar a necessidade de
revisitação do entendimento adotado pelo legislador do Código de Processo Civil de
1973 e pela maioria dos estudiosos no que tange ao mérito processual, para, assim,
esclarecer inicialmente a relevância de debater o tema proposto sob a ótica do
modelo de processo adotado pela Constituição brasileira de 1988.
Na seqüência será desenvolvido um estudo da gênese do mérito, partindo-se
do Direito Romano e passando pelos principais estudiosos do tema, tais como
Bulow, Carnelutti, Chiovenda e Liebman, visando entender mais especificamente os
estudos desenvolvidos por esses autores e demonstrar os fundamentos por eles
utilizados no que tange ao estudo do mérito. Posteriormente desenvolver-se-á um
estudo específico no campo do processo coletivo, com o propósito de identificar os
reflexos das proposições teóricas dos autores consultados no entendimento do
mérito participado no modelo de processo coletivo proposto pelo Estado
Democrático de Direito, averiguando-se, assim, as especificidades jurídicas a serem
observadas na sua construção e levando-se em consideração a complexidade das
relações jurídicas decorrentes da sociedade contemporânea e plural.

2.1. A COMPREENSÃO JURÍDICA DO DIREITO PROCESSUAL E DO MÉRITO NO DIREITO


ROMANO

O desenvolvimento do estudo do direito processual romano na presente


pesquisa justifica-se pela necessidade de esclarecimento da gênese do mérito
processual como reflexo de todas as questões fáticas e jurídicas consideradas
relevantes pelo magistrado. Ou seja, é de suma importância demonstrar que a noção
inicial que se tem de mérito processual relaciona-se com as matérias ou as questões
consideradas relevantes pelo magistrado (não pelas partes interessadas = autor e
réu), como fundamento regente da decisão judicial a ser proferida pelo juiz. Isso
evidencia a gênese essencialmente privada do conceito de mérito, que se encontra
35

adstrito à noção da matéria (fática e jurídica) proposta pelas partes ao magistrados,


o que torna impossível, até pelo contexto histórico, compreender o mérito de forma
dissonante ou mais ampla que as próprias questões trazidas pelas partes (autor e
réu) ao processo.
A compreensão do Direito enquanto instrumento regulador da vida em
sociedade decorre da clássica e da estreita relação existente entre o Direito e a
Justiça preconizada pelo Direito Romano-Germânico. Nesse contexto pode-se
afirmar que o Direito é o elemento garantidor da adaptação social decorrente da
necessidade que o homem tem de ordem, de justiça e de segurança (FIUZA, 2004,
p.1). O direito brasileiro encontra seus fundamentos no sistema romano-germânico e
traz no seu âmago a ideologia de que a justiça decorre da aplicabilidade e do
exercício de direitos assegurados aos homens. A justiça, ao longo dos séculos,
decorria não do direito, mas sim da força, considerada o instrumento utilizado na
resolução dos conflitos de interesses.
A gênese do Direito de Ação, tal como se estuda hoje, encontra sua base no
Direito Romano, cuja definição no sentido mais amplo é: “Todo recurso à autoridade
judicial para consagrar um direito desconhecido, ou, simplesmente, a perseguição de
um direito na justiça” (PETIT, 2003, p.813). Pelo exposto verifica-se que a ação deve
ser vista como um procedimento a ser utilizado para garantir a consagração de um
direito violado. A organização do procedimento no Direito Romano variou conforme
as épocas e os três sistemas19 que estiveram sucessivamente em vigor: as ações da
lei (período das legis actiones, que compreende o século VIII ao século V a.c), o
procedimento formulário ou ordinário (o período que se iniciou a partir do século V
a.C até o século II a.C é denominado de período formular do direito romano arcaico)
e o período que se iniciou a partir do século II a.C até o século III d.C denominado
de procedimento extraordinário (período da cognitio extra ordinem – direito romano

19 Nos treze séculos da historia romana, do século VIII aC ao século VI d.C, assistimos, naturalmente,
a uma mudança contínua no caráter do direito, de acordo com a evolução da civilização romana, com
as alterações políticas, econômicas e sociais, que a caracterizaram. [...] Tal divisão pode basear-se
nas mudanças da organização política do Estado Romano, distinguindo-se, então, a época régia
(fundação de Roma no século VIII a C até a expulsão dos reis em 510 a C), a época republicana (até
27 a C), o principado até Diocleciano (que in iciou seu reinado em 284 d C.) e a monarquia absoluta,
por este último iniciada e que vai até Justiniano (falecido em 565 d C). Outra divisão, talvez preferível
didaticamente, distingue no estudo do direito romano, tendo em conta sua evolução interna: o período
arcaico (da fundação de Roma no século VIII a. C. até o século II a C), o período clássico (até o
século III d.C) e o período pós-clássico (até o século VI d C) (MARKY, 1995, p. 5-6).
36

clássico que corresponde os anos de 284 a 565 d.C) (PETIT, 2003, p. 813; LEAL,
2009, p. 24-26).
Durante os dois primeiros sistemas verifica-se a divisão das funções judiciais,
ou seja, a primeira fase era realizada diante do magistrado e a segunda perante o
juiz20. O magistrado era quem regulava a marcha procedimental e delimitava o
objeto do debate, enquanto o juiz era quem analisava as peculiaridades do caso
concreto e proferia a sentença (PETIT, 2003, p. 814). Verifica-se, portanto, que a
magistratura, por meio dos reis, dos cônsules e posteriormente dos pretores, era
quem detinha a legitimidade para a administração da justiça, cabendo aos juizes
proferirem as decisões a partir das predeterminações advindas da magistratura. Ou
seja, eram os magistrados que estabeleciam a viabilidade jurídica de discussão da
pretensão, o que demonstra que a ação não era um direito do cidadão, visto que seu
exercício era condicionado aos entendimentos dos magistrados.
Os magistrados tinham legitimidade de propor uma regra de direito, aplicar
uma regra de direito preexistente e publicar editos, que eram normas com conteúdo
aplicável a todos os cidadãos (PETIT, 2003, p. 816). Como se observa, as funções
dos magistrados equiparam ao que temos hoje como função legislativa, visto que os
magistrados eram revestidos da legitimidade de criar e de determinar a aplicação do
direito mais adequado ao caso concreto, cabendo-se aos juízes a ratificação desse
entendimento. Eram os magistrados que determinavam os direitos que podiam ser
reivindicados pelos homens, até porque o direito de ação somente existia se a
magistratura assim autorizasse.
Nesse contexto pode-se verificar a gênese do mérito processual, visto que a
delimitação das questões fáticas (objeto) e do direito a ser aplicado ao caso concreto
(questão de direito) era uma prerrogativa exclusiva do magistrado (pretor, reis ou

20
A este respecto hay que distinguir em el procedimiento clasico dos fases distintas; uma primera
ante el magistrado (in iure) durante la cual los litigantes formulan las reclamaciones y argumentos
jurídicos, y uma segunda ente el juez privado (apud iudicem) en la que se rinden las pruebas y se
pronuncia el iudicatum fundamentado en una opinión (sententia) del juez. El magistrado pues, se
inhibe de juzgar, y sus facultades (iurisdictio) se limitan a determinar el contenido del litigio y
garantizar el cumplimiento de la posterior sentencia; el iudex en cambio, ejerce la iudicatio, que
consiste en resolver la contienda al tenor de las pruebas. Que la acción es concreta o típica significa
que a cada litigio corresponde una acción: la jurisprudencia o el Edicto ofrecen modelos de
reclamaciones, pero éstos son adaptados durante la fase in iure, para que reflejen de la manera más
exacta el contenido actual de la controversia. Precisamente, las actuaciones ante el magistrado tienen
como finalidad principal el determinar cuál es el contexto exacto de la acción; el documento que
recoge estos términos, llamado formula, constituye el único principio vinculante para el juez privado,
quien deberá atenerse a las instrucciones en él contenidas si pretende que el iudicatum pueda tener
eficacia ejecutiva (SAMPER, 1993, p. 48).
37

cônsules), que excluía qualquer tentativa das partes de participar da construção do


objeto da demanda. Trata-se de um direito processual de caráter autoritário no
sentido de exclusão de qualquer participação das partes como co-autores do
provimento, visto que as primeiras proposições teóricas acerca da gênese do mérito
encontram-se intrinsicamente atreladas à noção e ao entendimento preconizado
quando da discussão referente à matéria de fato e a matéria de direito.
O imperium merum (poder para infligir castigos corporais), o imperium mixtum
(poder de utilizar-se da coação), a jurisdictio (poder de criar e de aplicar o direito) e o
senatus consultum (poder de nomear tutores e autorizar a venda de imóvel rústico
pertencente a um menor) eram as prerrogativas inerentes ao exercício da
magistratura (PETIT, 2003, p. 815-817). A autoridade judicial pertenceu inicialmente
aos reis, depois aos cônsules e no ano 387 foi confiada ao pretor, com autoridade
para a criação dos editos.
Durante os dois primeiros sistemas de procedimento os juízes eram pessoas
designadas pelos magistrados para analisar e julgar os casos concretos. Havia os
juizes designados para cada assunto, dentre os quais ressalta-se o judex (eram
juizes ou árbitros escolhidos pelo pretor, com idade mínima de 20 anos e com a
incumbência de decidir) e os recuperadores (juízes incumbidos de julgarem os
processos envolvendo interesses de cidadãos e peregrinos), bem como dos juízes
permanentes (são os juízes que compunham os tribunais permanentes) (PETIT,
2003, p. 818-820).
O período das legis actiones (ações da lei) consistia em “certos
procedimentos compostos por palavras e por feitos rigorosamente determinados que
deveriam ser realizados diante do magistrado, fosse para chegar à solução de um
processo, fosse como vias de execução” (PETIT, 2003, p. 821). A oralidade, a
solenidade e o formalismo são características típicas do procedimento a ser
utilizado, visto que as partes, diante do magistrado, pronunciavam palavras que
eram analisadas rigorosamente e com a precisão dos termos legais, sabendo-se que
o menor erro que viesse a ser cometido poderia acarretar-lhe a perda do processo. A
ignorância do procedimento muitas vezes acarretava aos plebeus a perda do
exercício de direitos perante os patrícios. Nesse sentido temos

Do século VIII ao século V a C., tem-se noticia, no Direito Romano, de um


sistema chamado de legis actiones, que apresentava três características:
judicial, legal e formalista. A judicial, porque se iniciava perante o
38

magistrado (in jure), e em seguida, perante o árbitro particular (apud


judicem); legal, porque previsto em regras do magistrado, e formalista por
se vincular a formas e palavras sacramentais (verba certa) (LEAL, 2009, p.
24)

No sistema das ações (legis actiones) os litigantes não podiam exteriorizar as


pretensões mediante a utilização de palavras próprias, visto que deveriam externar e
pronunciar oralmente os termos empregados e previamente definidos na lei (verba
certa). As ações eram caracterizadas pela tipicidade e os litigantes deveriam
reproduzir com rigor formal todo conteúdo previsto exatamente como se encontra
descrito na literalidade lei. Nesse mesmo sentido Antonio Filardi Luiz ressalta-se as
características ínsitas das ações da lei

É um processo legal porque decorrente da lei, ao contrario do que ocorria


anteriormente, em que o processo era consuetudinário, baseado, pois, nos
costumes.
É também formalista, além de solene e imutável, porque processo implica
palavras certas e determinadas, alicerçado no principio da verba certa a
exigir gestos e atitudes definidos. A mínima infração quanto a tais preceitos
leva à perda do processo, relatando Gaio, citado por Cretella Junior, o caso
em que um dos litigantes perdeu a causa porque citou a palavra vites,
videiras, em lugar de arbores, como determinado em lei, embora a questão
se relacionasse com videiras.
Finalmente, as legis actiones obedecem a uma ordem judiciária
especifica, a ordo judiciorum privatorum. O processo inicia-se apenas
perante o magistrado, fase designada in jure, e termina com a decisão do
judex, na instância apud judicem, cidadão comum escolhido pelas partes.
É o juízo arbitral, privado, em contraposição ao juízo estatal moderno.
(LUIZ, 1999, p. 89). (grifo nosso).

No período das legis actiones a legitimidade processual ordinária era


considerada a regra geral, ou seja, “sob as ações da lei, ninguém pode figurar por
outro em assuntos de justiça” (PETIT, 2003, p. 822). Tal regra é excepcionada nos
casos pro libertate (quando uma pessoa livre reclama a liberdade de um escravo,
pelo fato do mesmo não poder sustentar uma ação na justiça), pro populo ((quando
se faz necessário defender os interesses do povo), pro tutela (quando o tutor
sustenta na justiça os direitos do pupilo) ou crimen suspecti tutoris (quando um
cidadão cativo ou ausente no interesse do Estado foi vitima de roubo, a lei autoriza
um terceiro exercitar em seu nome a ação furti) (PETIT, 2003, p. 822-823).
No sistema das legis actiones a ação era um direito que se subdividia em
duas fases, quais sejam, a fase de conhecimento ou de cognição, em que o autor
deverá provar a existência ou não do direito pretendido (actio per sacramentam,
actio per judicis arbitrive postulationem e a actio per conditionem) e a fase de
39

execução, através da qual o autor poderá exigir o cumprimento do direito


reconhecido em caso de inércia do réu (actio per manus injectionem e a actio per
pignoris capionem) (LUIZ, 1999, p. 88-89).
O excesso de formalismo, como peculiaridade do sistema das legis actiones,
permite afirmar que a concepção de mérito processual vigente à época consistia na
adequação dos fatos alegados à literalidade da interpretação dada pelo magistrado
ao caso concreto, ou seja, a solenidade do procedimento exigia que a parte
ratificasse o entendimento do magistrado para obter êxito no processo quando do
julgamento do caso concreto perante o juiz. Verifica-se, portanto, a absoluta
exclusão da parte enquanto sujeito legitimado à construção do mérito processual.
O processo no sistema das Legis Actiones inicia-se pela manifestação oral do
demandante, perante o magistrado, de exigir o comparecimento do seu adversário
em dia fixado. Uma vez presentes as partes perante o magistrado o assunto é
exposto e inicia-se o rito da ação da lei que se aplica ao processo. Todo
procedimento instaurava-se oralmente perante o magistrado e para garantir e
comprovar o seu cumprimento as partes tomavam o testemunho das pessoas
presentes com a finalidade de fornecer diante do juiz, caso necessário fosse, o
testemunho do que havia ocorrido perante o magistrado. Essa escolha das
testemunhas denominava-se Litis Contestatio21.(NEVES, 1971, p. 39-40; PETIT,
2003, p. 824-825).
José Carlos Moreira Alves critica a rigidez formal do Sistema das Legis Actiones

no processo formulário não se encontra o formalismo rígido do sistema das


ações da lei. Não se pronunciam palavras imutáveis; não se fazem gestos
rituais – em conseqüência, não mais se perdem causas por desvios
mínimos de formalidades. Por outro lado, não há mais que atender, para a
designação de Juiz popular, ao prazo de trinta dias da Lei Pinária, o que
tornou esse processo, sem dúvida, mais rápido que o das ações da lei”
(ALVES, 1971, 232)

Denomina-se formular ou ordinário o procedimento no qual o magistrado


redige e entrega às partes uma espécie de fórmula ou instrução escrita que indica
ao juiz a questão a ser resolvida e lhe confere o poder de julgar, ou seja, trata-se de

21
Embora uma corrente de romanistas admita a existência da litis contestatio no período das legis
actiones (Pugliese, Il processo civile romano,1º v., p. 390), a função por ela desempenhada aparece
mais compreensível no momento da introdução do processo formulário, com a bipartição da relação
processual entre procedimento in jure e apud judicium, quando a litis contestario passa a
corresponder ao ato de encerramento da primeira fase do processo, desenvolvida perante o pretor.
(SILVA, 1996, p. 72)
40

um período do Direito Romano em que a produção do direito encontra-se nas mãos


dos pretores e dos jurisconsultos (PETIT, 2003, p. 833). Assim, “os processos, pois,
são julgados secundum ordinem judiciorum, e, quando, por exceção, o próprio
magistrado decide a diferença, diz-se que estabelece extra ordinem” (PETIT, 2003,
p. 833).
O advento da Lei Aebutia (século II a C.) instituiu o processo formular e
substituiu o sistema das legis actiones, mantendo o procedimento em duas fases (in
jure, ou seja, perante o magistrado e o procedimento in judicio (segunda fase do
procedimento realizada perante o juiz) (LUIZ, 1999, p. 84-94)22.
O procedimento in jure desenvolvia-se perante o magistrado e se desenvolvia
em três fases: comparecimento das partes, debates in jure e entrega da fórmula. A
magistratura, no período per formula, é exercida pelo pretor romano. As partes
compareciam pessoalmente ou por intermédio de seu mandatário perante o
magistrado (as partes não eram mais obrigadas a comparecerem pessoalmente, tal
como ocorria no sistema das ações da lei). A intentio continha a pretensão do
demandante e constitui o objeto do processo. Ao longo do procedimento in jure o
magistrado (pretor romano) buscava redigir a fórmula que seria aplicada ao caso
concreto. No período per formula a litis contestatio coincide com o decreto do pretor
romano ao emitir a fórmula23. Nesse sentido temos

Quando os debates sobre a composição da fórmula tinham fim, o pretor


redige-a, entregando-a ao demandante. Este, na presença do magistrado,
comunica-a ao demandado, que deve aceita-la. Se recusa-la, impedindo,
dessa maneira, que o processo siga seu curso, expõe-se às rigorosas
medidas ordenadas contra o indefensus. Se aceita-la, o acordo das partes
para que o litígio seja examinado por um juiz Poe fim ao procedimento in
jure. Esse é o momento que é chamado de litis contestatio. Embora a

22
A partir do século V a C., com a expulsão dos reis e o advento da república romana, aboliu-se o
sistema rígido das legis actiones e a função de árbitro (judex) foi exercida pelos peritos que se
notabilizaram como juristas, surgindo a figura dos jurisconsultos (convocadores do povo para
deliberar sobre projetos de lei) e do pretor, nomeado pelo governo (magistrado), que, por via dos
éditos (um programa publico de critérios de aplicar o direito vigente), exercia funções jurisdicionais de
fornecer a fórmula ao árbitro (instrumento redigido pelo próprio Pretor) que continha o resumo,
limites e o objeto da demanda (litiscontestatio), o nome do árbitro livremente escolhido pelos
demandantes e o compromisso a ser assinado pelo árbitro e pelos litigantes de seguirem os termos
da fórmula e de os litigantes obedecerem a decisão (sentença) a ser proferida pelo árbitro. (LEAL,
2009, p. 25) (grifo nosso)
23
Em el perído formulário, la litis contestatio coincide com el momento em que, mediante el decreto
del pretor que emite la fórmula y la aceptación de ésta por parte de los litigantes, se establecen
precisamente los términos fundamentales en que habrá de desarrolharse el judicio; lo cual se
realizaba, en el procedimiento de la legis actiones, mediante la solemne invocación de los testigos.
Con la diferencia, naturalmente, de que en la litis contestatio del procedimiento formulario no hay ya
foirmas solemnes ni la solemne invocación de los testigos. (SCIALOJA, 1954, p. 87-88)
41

fórmula escrita dispensasse a tomada de testemunhos, como ocorria na


prática com as ações da lei, a palavra litis contestatio permaneceu para
designar o ultimo ato do procedimento formulário diante do magistrado.
Dessa maneira é que o processo está completamente concluído,
acarretando importantes conseqüências (PETIT, 2003, p. 47-48).

No Sistema Per Formula a segunda fase, qual seja, o procedimento in judicio,


desenvolve-se perante o juiz e “sua missão consiste em examinar o assunto posto
na fórmula24, em comprovar os fatos que se relacionam e em fazer a aplicação dos
princípios de direito postos em jogo” (PETIT, 2003, p. 49). Nesse período do Direito
Romano sabe-se que a efetiva construção do mérito ocorria perante a autoridade do
juiz, que era quem detinha a legitimidade na análise das questões de fato e das
questões de direito, cabendo ao magistrado identificar a pretensão das partes para,
assim, analisar a viabilidade jurídica do objeto da demanda e, por conseguinte,
elaborar a fórmula que direcionará (não vinculará) o julgamento a ser proferido pelo
juiz.
No que tange à construção do mérito o juiz poderia se posicionar em três
sentidos: a) se o objeto da demanda não lhe parece claro o juiz não tinha o dever
legal de se pronunciar, ou seja, facultava-se ao juiz a possibilidade de não adentrar
diretamente à análise do mérito da pretensão em decorrência da ausência de
clareza e de objetividade no que tange ao objeto da demanda. Pode-se afirmar, no
respectivo caso, que a construção do mérito não ocorria em virtude da ausência de
clareza e de objetividade das partes no que tange à apresentação da pretensão
deduzida. b) a absolvição do demandado ocorria sempre que o demandante não
podia justificar sua pretensão ou quando o próprio demandado apresentava uma
prova que paralisava o processo. Imperava, nesse contexto, a legitimidade do juiz,
quando do enfrentamento e da análise da pretensão deduzida, de não reconhecer o
pedido do demandante quando perdurasse a existência de eventual dúvida quanto
às alegações inicialmente apresentadas pelo autor da ação. c) a procedência do

24 A fórmula foi uma criação espetacular. Era uma espécie de decreto pretoriano, em forma de carta
dirigida ao juiz, resumindo a causa, estabelecendo os limites subjetivos e objetivos da lide processual,
indicando as provas a serem produzidas. Ao gerar uma decisão revestida da coisa julgada material,
sem decisão de mérito, funcionava como um relatório definitivo. Quem julgava a causa era o juiz ou o
árbitro, resolvendo-se a fórmula. Com o processo formular o pretor passa a se impor para resolver
com eqüidade os casos concretos, antes submetidos ao rigorismo das formalidades. É um processo
mais rápido, menos formalista e escrito. (MACIEL. Disponível:
http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=156. Acesso: 12 abr. 2011)
42

pedido com a conseqüente condenação do demandado decorria da comprovação do


alegado pelo demandante.
Da análise do procedimento in jure e do procedimento in judicio no período
formular do Direito Romano verifica-se claramente que a construção do mérito
processual decorria da atuação unilateral e solitária do juiz, que buscava
fundamentar suas decisões a partir da fórmula pretoriana, bem como a partir de um
juízo de certeza (não de mera probabilidade) acerca das alegações perpetradas pelo
demandante.
Ao assumir o cargo de imperador romano no século III Diocleciano ordenou
que os magistrados fossem responsáveis não apenas pela administração judicial,
como também pelas decisões de todos os assuntos que lhes fossem submetidos,
estabelecendo-se, assim, uma nova divisão do Império, posteriormente ratificada por
Constantino (306-337 d.C). Encerra-se, portanto, a dupla instância típica do sistema
das Legis Actiones e do Período Formular, em que havia a distribuição das
atividades processuais entre o magistrado e o juiz. Ressalta-se, ainda, que no
sistema da Cognitio Extra Ordinem25 a justiça é exercida diretamente pelo Estado,
encerrando-se, portanto, o período da ordo judiciorum privatorum26. Nesse sentido é
relevante ressaltar o entendimento de Antônio Filardi Luiz

Portanto, paulatinamente, vão desaparecendo as duas fases da instância


(in jure e apud judicem), acabando o processo por se concentrar no
magistrado que, ao mesmo tempo, conhece e decide o litígio, sem
necessidade de envia-lo para um árbitro. Essa a grande e fundamental
característica do sistema extra ordinem, visto que a ação começa e
termina perante o juiz, cedendo a ordo judiciorum privatorum, a justiça
de caráter privado, lugar à organização estatal na solução das demandas.
A justiça, por conseguinte, passa a ser de responsabilidade total do Estado
em sua distribuição, não mais entregues os casos aos árbitros leigos e sem
qualquer conhecimento de Direito. ao contrário, os juizes, agora, são
elementos pertencentes ao Estado, especializados, e com a função
precípua de conhecer e julgar as ações. (LUIZ, 1999, p. 101). (grifo nosso).

25
Logo em 17 a . C., Augusto reorganiza o sistema processual do ordo iudiciorum privatorum, então
em vigor, ao promulgar a lex Julia privatorum. O detido exame das fontes referentes a essa lei, que,
como se sabe, introduziu em definitivo o processo per fomulas, em substituição àquele das legis
actiones, levou Palazzolo a convencer-se de que a finalidade última de tal reforma foi tão-só a de
racionalizar o regramento processual vigente, mas certamente o desejo de tolher do arbítrio do pretor
o maior número possível de controvérsias, incluídas, de modo especial, aquelas que se fundavam nas
normas do ius honorarium (TUCCI, 1987, p. 27).
26
[...] É o período da ordo judiciorum privatorum, ou ordem dos processos privado, posto que tudo
se passa entre os particulares sem a presença efetiva do Estado, verdadeira justiça privada. (LUIZ,
1999, p. 84) (grifo nosso).
43

Por volta do final do século III d C, ou seja, na Constituição do ano de 294, o


Imperador Diocleciano suprime do processo romano as últimas aplicações do
procedimento formular, ordenando aos presidentes das províncias do Império
Romano a legitimidade para conhecer pessoalmente todas as causas,
independentemente de serem obrigados a enviá-las perante um juiz. Mesmo assim,
a respectiva Constituição facultava aos presidentes das províncias encaminhar as
pretensões para um juiz, caso as ocupações administrativas e a multiplicidade dos
assuntos atinentes às pretensões viesse a impossibilitar o magistrado (presidente da
província) de decidir o caso concreto.
Do estudo analítico do processo romano sob a ótica do mérito processual
pode-se chegar inicialmente às seguintes conclusões:

a) a primeira noção de mérito processual que podemos vislumbrar no Direito


Processual Romano é aquela obtida a partir do entendimento da matéria de
fato e da matéria de direito que permeavam o objeto da demanda. Não existe
uma definição clara o suficiente para explicar com exatidão o mérito
processual nos períodos das Legis Actiones, Per Formula e Cognitio Extra
Ordinem. Tal afirmação se justifica no sentido de que o mérito processual
decorria da noção de objeto, de demanda, ou seja, o enfrentamento do
mérito consistia na análise das questões fáticas levadas ao magistrado e ao
juiz e na identificação do direito mais adequado a ser aplicado ao caso
concreto. É por isso que é possível afirmar que no Direito Processual
Romano o entendimento do mérito processual encontra-se diretamente
vinculado à matéria de fato e à matéria de direito que tangenciam e
constituem o objeto da demanda.
b) O Direito Processual Romano estrutura-se e se desenvolve a partir da
autoridade do magistrado (rei, cônsule, pretor ou presidente da província) e
do juiz, ou seja, nos dois primeiros períodos do Direito Romano (Legis
Actiones e Per Formula) o enfrentamento do mérito processual era uma
prerrogativa inerente ao exercício das atividades do juiz, tendo em vista que
ao magistrado cabia apenas delimitar o objeto da demanda, cujo julgamento
ocorria perante a autoridade do juiz. Já no período da Cognitio Extra
Ordinem o magistrado passa a ser legitimado para a delimitação do objeto da
44

demanda e também para o enfrentamento do mérito processual, uma vez


que com o advento da Constituição do ano de 294 o Imperador Diocleciano
conferiu aos presidentes das províncias do Império Romano a legitimidade
de não apenas delimitar os objetos das demandas, mas também decidir e
aplicar o direito ao caso concreto, coincidindo-se, assim, com o
enfrentamento do mérito processual não mais apenas pelo juiz, mas também
pelo magistrado e pelos presidentes das províncias.
c) Durante o período do Império Romano o Direito vigente visava, acima de
tudo, resolver conflitos de interesses envolvendo romanos e peregrinos, ou
seja, conflitos de interesses de natureza essencialmente individual. Por isso,
a concepção que se tinha de objeto da demanda relacionava-se com
questões de cunho essencialmente individual. Dessa forma, sabe-se que a
noção de mérito processual passível de identificação no contexto do Direito
Romano não engloba o processo coletivo, tendo em vista que o processo
nesse período da história da humanidade destinava-se a resolver
precipuamente conflitos de interesses individuais, o que nos leva a afirmar
que a noção de mérito processual passível de compreensão decorre também
da acepção individualista do Direito vigente à época.

2.2. AS PROPOSIÇÕES TEÓRICAS DE OSKAR VÖN BÜLOW NO ESTUDO DO MÉRITO –


TEORIA DAS E XCEÇÕES E DOS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

A contextualização do estudo da obra de Bülow com o objeto da presente


pesquisa resta evidenciada na demonstração de que o autor em questão não
desenvolveu especificamente, em sua obra, um estudo específico sobre o mérito
processual, embora seja possível visualizar, pela própria análise sistemática de sua
produção, que a noção de mérito processual ainda encontra-se adstrita à matéria
fática e jurídica trazida pelas partes (autor e réu) ao processo e utilizada pelo
julgador como referencial e parâmetro para sua decisão. Isso demonstra que o autor
não se desvinculou da noção individualista de mérito já preconizada no direito
romano, considerada pelo juiz como todas as questões relevantes no julgamento da
45

demanda. Julgar o mérito consiste no enfrentamento e na análise de todas as


questões de fato e de direito trazidas pelas partes no processo. O que se busca com
a presente pesquisa é demonstrar, ao longo de toda a discussão cientifica, que o
conceito de mérito processual não pode ficar adstrito às matérias e às questões
discutidas pelas partes no processo, haja vista que o mérito deve ser visto como um
procedimento que oportuniza democraticamente a todos os interessados o direito de
poder definir e discutir a matéria ou as questões de mérito vinculadas à pretensão
inicialmente deduzida em juízo.
Oskar vön Bülow, ao publicar em 1868 sua obra intitulada “Teoria das
Exceções e dos Pressupostos Processuais”, propõe a teorização do processo como
relação jurídica a partir da revisitação crítica da concepção romana do Direito
Processual, que se desenvolveu essencialmente a partir do Direito Privado. A
sistematização científica da teoria desenvolvida por Bulow27 decorre inicialmente da
proposição do jurista italiano do século XII, Búlgaro (BÜLOW, 1964, p. 1 e 3), que
afirmava que o processo é um ato de três pessoas, quais sejam, juiz, autor e réu
(judicium est actum trium personarum: judicis, actoris et rei) (LEAL, 2009, p. 78).
A autonomia científica do Direito Processual frente ao Direito Material e o
advento da concepção publicista do processo enquanto relação jurídica constituída
entre juiz, autor e ré é considerada o fundamento central para a contextualização
histórica da teoria de Bulow, que decorreu da polêmica da actio, quando, em 1856,
Windscheid e Muther problematizaram a discussão sobre o direito de ação a partir
de uma análise critica das considerações de Savigny acerca do estudo sobre o
direito de ação desenvolvido a partir da Teoria Imanestista.
Napoleão separou a legislação processual civil da legislação processual penal,
assim como estas da legislação civil e penal (direito material); sua iniciativa exerceu
grande influência sobre os ordenamentos processuais de toda a Europa continental
(LIEBMAN, 2003, p. 51-53). O advento do processualismo científico decorre da visão
do processo desvinculada do direito material, que ocorreu com a polêmica sobre o

27
Segundo José Eduardo Carreira Alvim “[...] o jurista alemão não criou o conceito de relação jurídica
processual, vez que a intuição da relação jurídica processual, de resto, já se encontra em textos de
Búlgaro (iudicium est actum trium personarum: iudicis, actoris et rei). O mérito de Bulow foi o de ter
sistematizado a relação processual (2005, p. 164). Veja-se, no entanto, que a relação processual de
que Búlgaro aproxima-se mais da relação privada, porque, na tradução que o próprio Carreira Alvim
oferece para a célebre afirmativa de Búlgaro, “Juízo (processo) é ato de três pessoas: juiz, autor e
réu” (2004, p 164), fica clara a alusão a um “ato” (e nenhuma referencia à relação jurídica
propriamente dita) – o que implica que o processo teria uma origem contratual, em posição oposta à
defendida por Bulow. (LEAL, 2008, p. 38-39)
46

direito de ação de Windcheid (a ação é um poder de agir do autor em face do réu) e


Muther (a ação é um direito que o autor exerce frente ao Estado, ou seja, trata-se do
direito a uma prestação jurisdicional).
Dessa forma pode-se afirmar que a obra de Bülow28 não foi a primeira a intuir a
existência de uma relação jurídico- processual de cunho publicístico29, cabendo-lhe
a sistematização da teoria da relação processual e a diferenciação existente entre o
direito material e o processual, distinção essa concretizada após a ocorrência da
polêmica da actio, conforme explica Dinamarco:

Von Bülow não foi, na realidade, o primeiro a intuir a existência dessa


relação jurídica processual. Antes dele, já tinha sido feita uma referencia a
esta na obra de Benthmann-Hollweg, que ele próprio cita. Seu mérito
indiscutível foi o de apresentar sistematicamente a teoria da relação
processual, que antes fora objeto de um simples aceno [...] Essa despertou
a doutrina para a existência de dois planos a observar, o substancial e o
processual, distinção esta que veio exposta sistematicamente na obra de
Bülow, onze anos após encerrada a polêmica (DINAMARCO, 2002, p. 41-
42)

No desenvolvimento de sua teoria Bülow inicialmente retorna ao Direito


Romano com a finalidade de criticar a acepção dada a exceptio, vista como um
instituto processual utilizado para delimitar os fundamentos de argumentação jurídica
do réu na etapa in iure perante o magistrado30. A exceptio romana, em sentido geral,
pode ser vista como um modo de defesa que não contradiz diretamente a pretensão
do demandante e que pode ser utilizado pelo mesmo no curso do processo. A sua
gênese não se encontra no período das Legis Actiones (sistema das ações da lei),

28
Embora Bülow deixe claro em sua obra (ainda que em breves notas de rodapé) que buscou
inspiração na máxima de Búlgaro (jurista italiano do século XII): “judicium est actum trium
personarum: judicis, actoris e rei” (o processo é ato de três personagens: do juiz, do autor e do réu)),
é na obra de Bethamann-Hollweg (Der Civilprozess Rechets in geschichtlicher Entwicklung, 1864-
1874) – “O processo civil do direito comum em seu desenvolvimento histórico”), não resta dúvida de
que foi também fortemente influenciado pelas teses de Bernhard Windcheid, que em sua obra
publicada em 1856 – Die Actio des ro:mischen Zivilrechts von Standpunkte des heutigen Rechts (“A
ação do Direito Romano do ponto de vista do direito civil), possibilitou a conciliação de uma
determinada noção de direito subjetivo (prerrogativa sobre a conduta alheia) com a de processo,
restando, portanto, a Bulow apenas a estruturação da teoria da relação processual. (AGUIAR;
COSTA; SOUZA; TEIXEIRA, 2005, p. 23-24)
29
[...] desde que los derechos y las obligaciones procesales se dan entre los funcionários del Estado y
los ciudadanos, desde que se trat en el proceso de la función de los oficiales públicos y desde que,
también, a las partes se las torna em cuenta unicamente em el aspecto de su vinculación com la
actividad judicial, esa relacións pertence, con toda evidencia ao derecho publico y el proceso resulta,
por tanto, una relacións juridica publica. (BULOW, 1964, p. 2)
30
Segundo Bülow, a exceção teve origem na exceptio dos romanos. Em Roma, no entanto, a
exceptio referia-se aos limites da argumentação de defesa do réu ou, dito de outra forma, dizia
respeito à articulação fático-jurídica de que o réu poderia se utilizar para evitar que o autor fosse
vitorioso no conflito concernente à relação jurídica privada encaminhado ao magistrado para
resolução. (LEAL, 2008, p. 40)
47

tendo em vista que o advento das exceções no Direito Romano decorre do


procedimento formulário e subsiste durante todo o período da Cognitio Extra
Ordinem. Os efeitos mais comuns das exceções caracterizavam-se tanto pela
absolvição do demandado como uma simples diminuição em sua condenação
(PETIT, 2003, p. 906-907).
Em suas proposições teóricas Bülow critica a exceptio romana enquanto
instituto que limitava o direito de defesa do demandado. O procedimento formular
iniciava-se com o comparecimento do demandante perante o magistrado, momento
em que apresentava sua pretensão (intentio) e caso a defesa do demandado fosse
limitada à intentio o debate transcorreria livremente, sem que houvesse necessidade
de agregar algo à fórmula. O demandado também podia sustentar em sua defesa,
perante o magistrado, tese ou alegação estranha à intentio, sabendo-se que para o
juiz apreciar esse modo de defesa do demandado era necessário que a fórmula
estabelecida pelo magistrado o autorizasse a isso. A exceptio romana consiste na
possibilidade do demandado, em sua defesa, alegar questão (ponto controvertido)
estranha à intentio, sabendo-se que a admissibilidade de sua alegação se
condicionava à anuência do magistrado e a inclusão das questões alegadas na
fórmula do pretor que será utilizada pelo juiz como parâmetro ao julgamento da
demanda (PETIT, 2003, p. 844-847).
A partir dessas considerações iniciais Bülow diferencia em sua obra exceções
processuais de pressupostos processuais ao afirmar que as exceções, no sentido
trabalhado no Direito Romano, consiste na oportunização de defesa do demandado
na fase in jure do procedimento formular e perante o magistrado, enquanto os
pressupostos processuais devem ser compreendidos como requisitos de ordem
formal e hábeis a garantir a constituição válida e legítima da relação processual
(competência do juiz). A partir dessas considerações Bülow afirma que os
pressupostos processuais não podem ser vistos como questões de ordem
meramente privada, visto que o Judiciário tem legitimidade para apreciar,
independentemente da manifestação das partes, a legalidade e a observância dos
respectivos pressupostos processuais.
Nesse contexto pode-se afirmar que a sistemática das exceções processuais,
proposta pelo Direito Romano, ao limitar o direito de defesa do demandado,
certamente desencadeia comprometimento à construção do mérito processual. Tal
afirmação se justifica porque no procedimento formulário o mérito processual é
48

definido e construído unilateralmente pela figura do magistrado, ou seja, pelo pretor


romano, que é o detentor da legitimidade de editar a fórmula a ser utilizada como
parâmetro do julgamento proferido pelo juiz, sabendo-se que a fórmula do
julgamento decorre da intentio (pretensão do demandante) e da exceptio
(admissibilidade da defesa do demandado se o seu conteúdo não contiver questão
estranha a intentio). A autoridade e o poder exercido pelo pretor romano no
procedimento formular são considerados os elementos norteadores para a definição
do mérito processual, visto que na fase in judicio temos o enfrentamento do mérito
processual pelo juiz, cujo estabelecimento ocorreu na fase in judicio através da
edição da fórmula decorrente da análise da matéria fática e da matéria jurídica
apreciada pelo magistrado.
Verifica-se, assim, que o momento processual em que podemos visualizar a
construção do mérito processual no procedimento formular é na fase in jure,
momento em que o magistrado (pretor) analisa e aprecia toda a matéria de fato e
matéria de direito trazida pelo demandante e pelo demandado para, a partir dessa
análise, editar a fórmula que direcionará as atividades do juiz na fase in judicio. Por
isso, não se pode vislumbrar a construção do mérito processual na fase in judicio,
uma vez que nesse momento do procedimento formular não temos novo debate das
questões de fato e de direito, ou seja, não é permitido ao juiz instituir novo debate
das questões fático-jurídicas trazidas pelas partes, visto que sua atividade limitar-se-
á a aplicabilidade da fórmula predeterminada pelo pretor.
Na obra de Bülow não encontramos um debate direto do tema atinente ao
mérito processual, razão essa que justifica a necessidade de um estudo crítico-
epistemológico-reflexivo acerca de tal temática em suas proposições teóricas. O
processo, na concepção bulowiana, decorre da constituição de uma relação
processual entre pessoas (juiz, autor e réu), cujo magistrado encontra-se em posição
hierarquicamente superior. Nesse sentido pode-se afirmar que “a teoria desenvolvida
por Bülow encontra suas bases na idéia de subordinação de um dos sujeitos da
relação jurídica processual ao outro [...]” (TEIXEIRA, 2008, p. 61). Adepto da
corrente unitarista (unicista), Bülow preconiza que a vontade de lei surge com a
jurisdição, ou seja, o direito nasce do processo, mais especificamente da sentença,
visto que tanto o direito objetivo quanto o direito subjetivo sofrem fundamental
transformação através do processo. Nesse sentido ressalta-se:
49

[...[ a lei vai do comando abstrato (lex generalis) ao concreto (lex specialis
contida na sentença) e finalmente à realização deste (execução), tudo isso
significando que o direito (não só o subjetivo, como também o objetivo)
sofre uma fundamental transformação através do processo (DINAMARCO,
2002, p. 46)

Bülow é unitarista com relação à existência ou não de um direito anterior ao


processo; e como entende que o direito nasce com o processo pode-se afirmar que
é na sentença que o direito é constituído. Em contrapartida, não se pode deixar de
ressaltar o caráter dualista da teoria bulowiana no momento em que diferencia os
planos normativos do direito material e do direito processual.
Para Bülow “o processo, tendo seus próprios pressupostos, não poderia
permanecer, como até então ocorria, indistinto da relação jurídica afeta aos
interesses das partes, cuja existência essas queriam tornar certa” (LEAL, 2008, p.
28). Nesse sentido, pode-se afirmar que até a segunda metade do século XIX o
processo detinha caráter meramente adjetivo tendo em vista que se tratava de uma
mera extensão do direito civil. Por isso, em sua obra Bülow buscou a autonomia
científica do direito processual frente ao direito material e, a partir daí, passou a
compreender que a relação jurídico-processual é absolutamente distinta das
relações jurídicas e de cunho privado discutidas em juízo, ou seja, é sabido que nas
proposições teóricas apresentadas por Bülow temos a clara diferenciação entre a
relação jurídica constituída no processo (entre juiz, autor e réu) da relação jurídica
de cunho material levado e debatido em juízo. Em decorrência da contribuição
científica da sua obra, Alcalá-Zamora y Castillo afirma que Bülow é “el fundador del
moderno processualismo” (ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, 1974, p. 81).
A expressão pressupostos processuais, cunhada por Bulow, é vista como
requisitos de constituição válida da relação processual, considerando-se que a
violação de qualquer pressuposto processual comprometerá, sobremaneira, o a
validade do processo. Segundo André Leal, com o destaque dos pressupostos
processuais e a invenção da “relação jurídica processual” Bülow quer fundamentar
teoricamente a necessidade do aumento do poder do Estado, dos juízes e dos
tribunais (2008, p. 45).
Os pressupostos processuais, na obra de Bülow, dizem respeito à autoridade
judicial competente (denominada atualmente como competência do juízo); parte
capaz ou representante legitimado (trata-se da legitimidade ad causam, considerada
atualmente como condição da ação); direito privado (trata-se da relação jurídica de
50

direito material considerada o fundamento de constituição da pretensão deduzida em


juízo) (LEAL, 2008, p. 9). No momento em que Bülow substituiu a expressão
exceções processuais por pressupostos processuais pretendeu legitimar o julgador
no controle da relação processual, ou seja, objetivou concentrar nas mãos do
julgador a legitimidade para o controle dos requisitos de validade de constituição da
relação processual31.
Especificamente no que tange ao debate jurídico acerca do mérito na obra de
Bülow faz-se necessário identificar a distinção existente entre os requisitos
extrínsecos ao mérito e que garantem a validade na constituição da relação
processual, bem como os requisitos inerentes ao mérito, quais sejam, a constituição
do direito (objetivo e subjetivo) a partir da sentença e da autoridade do julgador.
Inicialmente é importante discorrer sobre os requisitos extrínsecos ao mérito,
ou seja, os pressupostos processuais de natureza formal e indispensáveis à validade
jurídica da relação processual, dentre os quais podem ser ressaltados inicialmente a
competência do órgão julgador, ou seja, a legitimidade que cada órgão do Judiciário
tinha de conhecer especificamente determinadas pretensões. A regularidade de
representação das partes por procurador constituído também pode ser ressaltada
como um requisito formal extrínseco ao mérito. Tais requisitos podem ser
denominados de pressupostos processuais de operacionalização e de constituição
válida da relação processual, concedendo-se ao julgador a legitimidade quanto ao
controle e a observância de tais requisitos.
A legitimidade processual (parte capaz ou representante legitimado), na obra
de Bülow, pode ser vista como um elemento extrínseco ao mérito no sentido de que
o julgador detém a legitimidade de avaliar previamente a titularidade da pretensão
deduzida, antes mesmo de adentrar à discussão do mérito. Verifica-se, portanto, que
já na obra de Bülow começa a serem delineados os fundamentos teóricos das
condições da ação, cuja sistematização teórica ocorre a partir da obra de Chiovenda.

31
Según lo dicho, no puede ya pensarse que el complejo de pressupuestos procesales debe ser
mirado desde el punto de vista de las excepciones procesales, como há ocurrudi siempre hasta
ahora. Todo el supuesto de hecho de la relación procesal encuentra tan poco lugar en el concepto de
exceptio com el de relacións material y aún mucho menos. Todavia se quiere permanecer aferrado a
la teoria de las excepciones procesales, de modo que sólo queda eligir e ampliar el concepto de
excepcións a todo lo que el demandado diga ocasionalmente ante el tribunal, en vez de restringirlo a
lo que debe decir y probar ante el mismo, o afirmar que no se da validez alguna a las prescripciones
procesales, ni nulidad del proceso a causa de la transgresión del derecho procesal. Em pocas
palabras, o una nocion ridicula de exceptio o proceso contratual puro, es el precio que se puede
pagar nada más que por el mantemiento de las exceciones procesales. (BULOW, 1964, p. 294)
51

Pela análise da obra de Bülow pode-se afirmar que a capacidade da parte ou


de seu representante legitimado (legitimidade ad causam) são considerados
pressupostos processuais extrínsecos ao mérito, tendo em vista a impossibilidade de
constituição válida de relação processual de natureza pública, caso venha a ser
constatada a ausência de capacidade do sujeito ser parte na relação processual ora
instituída.
O juiz, na obra de Bülow, é o intérprete especializado da lei e quem detém a
legitimidade de averiguar a observância dos pressupostos processuais,
considerados requisitos extrínsecos ao mérito processual e indispensáveis à
constituição e à existência da relação processual.
Partindo-se do principio de que os pressupostos processuais são
considerados elementos de constituição e de existência32 da relação processual,
pode-se afirmar que a discussão do mérito vem posteriormente à averiguação da
existência dos pressupostos processuais, e que o controle dar-se-á diretamente pela
autoridade do julgador, independentemente da manifestação das partes.
O mérito processual em Bülow encontra-se intrinsecamente relacionado com o
Direito Subjetivo, considerado o direito que cada sujeito tem ou o poder da vontade
individual sobre a conduta do outro (verifica-se, nesse contexto, a ideologia de
subordinação de um sujeito do processo ao outro sujeito do processo titular do
Direito Subjetivo). “Windescheid, trabalhando o conceito do direito subjetivo, constrói
outro conceito igualmente caro à arquitetura, que foi o da relação jurídica e ambos
influenciam posteriormente a construção do conceito de ação” (MACIEL JUNIOR,
2006, p. 74). Assim, o direito subjetivo é visto como um poder absoluto sobre a
própria conduta, ou, também, como uma prerrogativa sobre uma conduta alheita
(GONÇALVES, 1992, p. 77 apud MACIEL JUNIOR, 2006, p. 74).
O advento do liberalismo teve como conseqüência a ampla proteção jurídica do
indivíduo e, por isso, o direito civil assume o ápice de sua expressão, passando a
inspirar os demais ramos do direito. O direito objetivo passa a assegurar ao indivíduo
o gozo dos direitos subjetivos, que pode ser visto como o poder ou a vontade do

32
No que diz respeito aos pressupostos processuais (elementos constitutivos da relação processual),
Bulow os define como sendo aqueles requisitos imprescindíveis ao nascimento da relação processual
e que englobam os requisitos de admissibilidade e as exigências prévias para que se efetive a
relação processual inteira. Dizem respeito às pessoas, ao objeto (litígio) ao fato ou ato gerador (atos
necessários à formação da relação processual), à capacidade e legitimação para praticar tais atos
[...]. (AGUIAR; COSTA; SOUZA; TEIXEIRA, 2005, p. 26-27).
52

homem, juridicamente protegidos, cuja exteriorização decorre obrigações e de


faculdades estabelecidos em lei.
Importante ressaltar nesse contexto que na concepção de Ihering o direito é um
interesse juridicamente tutelado, enquanto o interesse é a manifestação de uma
pessoa em face de um determinado bem. A noção inicial que temos sobre o Direito
Objetivo é de reconhecimento ou de legitimação de direitos inatos preexistentes aos
sujeitos (MACIEL JUNIOR, 2008, p. 70). Visando o maior esclarecimento cientifico
do tema o professor Vicente de Paula Maciel Junior, autor da Teoria das Ações
Coletivas como Ações Temáticas (teoria cujo desenvolvimento de suas primeiras
proposições iniciou-se há aproximadamente 10 anos), afirma que “o direito objetivo,
a lei, é o critério geral das condutas em um dado ordenamento, no sentido de
estabelecer o norteamento das ações legitimas em um dado Estado” (2006, p. 71)33.
Nesse ínterim pode-se afirmar que em Bülow o mérito processual é uma
discussão posterior à análise dos pressupostos processuais (requisitos jurídicos de
existência da relação processual) e decorre inicialmente do direito subjetivo exercido
pelo autor em desfavor do réu e perante o julgador. Assim sabe-se que o mérito
processual pode ser visto como a discussão judicial referente ao reconhecimento ou
não do Direito Subjetivo através do processo. Além disso, o julgador era quem
detinha a legitimidade para construir unilateralmente o mérito processual, uma vez
que o exercício da Jurisdição dava-se a partir da fundamentação jus-filosófica trazida
pelo Movimento do Direito Livre34. A justiça da sentença judicial decorria do
enfrentamento do mérito a partir da sensibilidade jurídica do meio social do julgador,

33
Mas o pensamento de Savigny evoluiu no sentido de procurar uma fusão entre o direito subjetivo e
o direito objetivo, quando então desenvolve uma teoria sobre o “direito de ação”, que foi construída
sob o perfil da violação dos direitos. Nessa perspectiva seria o próprio direito que, quando violado, se
modificaria e entraria em estado de defesa, transformando-se.
Da violação do direito nasceria uma relação entre ofendido e ofensor, cujo conteúdo seria a faculdade
de pedir uma reparação. Essa relação para Savigny se chama “direito de agir”, ou ação em sentido
substancial, que é diferente da ação em sentido formal, ou seja, da efetiva atividade do ofendido
mediante a qual ele faz valer o seu direito de agir, atividade que com suas condições e formas diz
respeito à teoria do processo. Com isso Savigny enraíza o direito de agir no sistema do direito
privado, desvinculando-o das formas processuais mutáveis e abandona a ação em sentido formal ao
direito público, sem todavia que a distinção signifique para ele a existência de um limite preciso e a
necessidade de observá-lo rigorosamente. Para Savigny, o processo e o direito de ação, concebido e
analisado em sua relação com o direito, são estreitamente coligados e devem ser deixados para
avaliação de cada um dos cultores de uma e outra disciplina, porque pertencem a um campo limítrofe
(ORESTANO, 1978, p. 33 apud MACIEL JUNIOR, 2006, p. 81-82).
34
O Movimento do Direito Livre, assim como a jurisprudência dos interesses e a sociologia jurídica
empírica, é a ramificação da doutrina do positivismo jurídico, que concebia o direito como um dado do
mundo exterior (fato sociológico) ou um dado do mundo interior (fato psicológico). (AGUIAR; COSTA;
SOUZA; TEIXEIRA, 2005, p. 46-47).
53

ou seja, o juiz, no momento em que fosse analisar o mérito processual buscava


inicialmente fundamentos na lei (positivismo) e, em caso de lacuna, poderia utilizar-
se de argumentos metajurídicos e axiologizantes como parâmetro à análise e ao
reconhecimento ou não do Direito Subjetivo no caso concreto. A exclusão das partes
na construção do mérito advinha do caráter autocrático do processo cuja relação
jurídica era instituída e desenvolvida perante a autoridade do juiz.
A sistemática dos Direitos Subjetivos funda-se em ideologia liberal, cujo
entendimento do direito decorria de proposições de natureza privada. O Direito
Subjetivo, na concepção bülowiana, era reconhecido através do processo. O
julgador era legitimado a garantir a constituição de uma relação processual
(mediante a observância de normas processuais de direito público = pressupostos
processuais) em que a pretensão das partes (autor e réu) materializava-se por
interesses jurídicos divergentes (interesse enquanto a manifestação de vontade de
uma pessoa em face de um bem). O enfrentamento do mérito processual pelo
julgador consistia na análise dos interesses jurídicos divergentes para, ao final da
relação processual, proferir uma sentença justa, ou seja, uma sentença através do
qual o juiz reconheceria o direito subjetivo do autor ou do réu.
Nesse contexto pode-se afirmar que o mérito processual em Bülow é a
análise da pretensão das partes (interesses jurídicos divergentes) pelo juiz, análise
essa que se desenvolve inicialmente a partir da lei (positivismo), viabilizando-se ao
magistrado (juiz) o direito de uma análise metajurídica, em caso de lacuna de direito
(Movimento do Direito Livre). Por isso, pode-se afirmar que a construção do mérito
processual em Bülow dá-se de forma unilateral pela autoridade do juiz, excluindo-se
qualquer ingerência das partes interessadas (autor e réu). O processo como
taxonomia da relação jurídica surge em Bülow como instrumento da jurisdição,
devendo essa ser entendida como atividade do juiz na criação do direito em nome
do Estado (não em nome das partes) com a contribuição do sentimento e da
experiência do julgador (LEAL, 2008, p. 60).Na análise do mérito processual o juiz
poderá contrariar o sentido e a vontade da lei quando essa se tornar injusta para um
caso concreto específico.
54

2.3. AS CONTRIBUIÇÕES CIENTÍFICAS DE CHIOVENDA NO ESTUDO DO MÉRITO NO

DIREITO PROCESSUAL

As contribuições científicas preconizadas por Chiovenda, no contexto da


problemática trazida no presente trabalho de pesquisa, justificam-se no sentido de
demonstrar que o conceito de mérito processual ainda continua sendo trabalhado
como a matéria de fato e de direito alegada pelas partes no processo, e que e o
julgamento do mérito da demanda consiste na apreciação judicial de todas essas
questões suscitadas pelas partes.
Verifica-se, ainda, que o conceito de mérito é restrito e atrelado a uma visão
privada do processo, não permitindo, pelo próprio contexto histórico da produção
científica da obra de Chiovenda, que todos os sujeitos afetados pela decisão judicial
venham a participar da definição e do debate da matéria de mérito. É nesse contexto
que se inserem as proposições teóricas chiovendianas, consideradas mais um
fundamento legitimo para justificar que o atual substrato jurídico do modelo de
processo coletivo brasileiro vigente, qual seja, o sistema representativo, encontra
sua base no conceito individual de mérito proposto pelo processo civil, haja vista a
restrição quanto à participação dos interessados na formação do provimento de
mérito.
Partindo-se das proposições teóricas desenvolvidas pelo processualista
alemão Oskar von Bülow na segunda metade do século XIX, o processualista
italiano Giuseppe Chiovenda, nas primeiras décadas do século XX, teoriza o
processo como relação jurídica entre juiz, autor e réu e sistematiza a discussão do
processo sob a ótica do Direito Subjetivo.
Inicialmente esclarece que o Direito Objetivo é a “manifestação da vontade
geral coletiva, destinada a regular a atividade dos cidadãos ou dos órgãos públicos”
(CHIOVENDA, 2002-a, p. 17). Aborda em suas proposições teóricas iniciais que o
Direito Objetivo não era produto apenas das normas de direito privado
(regulamentação jurídica das relações entre particulares), mas também englobava
normas jurídicas de direito publico (aquelas que regulam as relações envolvendo
direta ou indiretamente instituições públicas).
À aspiração do sujeito jurídico de dar consecução ou conservar os bens que
lhes são atribuídos pela lei Chiovenda denomina de Direito Subjetivo, que pode ser
55

definido como a expectativa de uma pessoa com relação a um determinado bem da


vida garantido pela vontade da lei. “Todo direito subjetivo pressupõe (como sua fonte
ou causa imediata) uma relação entre duas ou mais pessoas, regulada pela vontade
da lei e formada pela verificação de um fato” (CHIOVENDA, 2002-a, p. 17).
O processo deve garantir à parte aquilo que ela teria direito (o bem da vida)
se a norma jurídica fosse cumprida, ou seja, o processo, enquanto uma relação
jurídica regulada pelo direito público, deve dar, quanto for possível, a quem tenha
um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que se tem direito de conseguir. È nesse
sentido Chiovenda afirma ser o “processo civil um complexo de atos coordenados ao
objetivo da atuação da vontade da lei (com respeito a um bem que se pretende
garantido por ela) por parte dos órgãos da jurisdição ordinária” (2002-a, p. 56).
A restrição e a superação da autodefesa decorre da legitimação do Estado na
resolução dos conflitos de interesses. Nesse contexto o processo passa a ser um
instrumento de justiça nas mãos do Estado. O Estado Moderno tem como função
essencial a administração da Justiça e “é exclusivamente seu o poder de atuar a
vontade da lei no caso concreto, poder que se diz jurisdição, e a que provê com a
instituição de órgãos próprios (jurisdicionais)” (CHIOVENDA, 2002-a, p. 58). O
processo, nesse contexto, é visto como o instituto jurídico hábil a garantir a atuação
da vontade concreta da lei, garantindo a parte um bem em face de outros
particulares ou em face da própria administração.
O juiz exercia o poder de coordenar, conduzir e controlar a constituição da
relação jurídica processual. Ao contrário de Bülow, que preconizada a atuação do
juiz centrada no Movimento do Direito Livre (a influência de juízos axiológicos e
metajurídicos na construção unilateral do mérito processual pelo julgador),
Chiovenda mantém nas mãos do juiz o controle da relação processual, porém
destaca o principio da legalidade como norte da atividade jurisdicional. É por isso
“que a função pública desenvolvida no processo consiste na atuação da vontade
concreta da lei, relativamente a um bem da vida que o autor pretende garantido por
ela” (CHIOVENDA, 2002-a, p. 59). Sabe-se que a atividade dos juízes dirige-se ao
exame da norma como vontade abstrata da lei (questão de direito) e ao exame dos
fatos que transformam em concreta a vontade da lei (questão de fato).
Certamente é possível averiguar que tanto as questões de fato quanto as
questões de direito permeiam o conceito de pretensão deduzida em juízo, o que, por
conseqüência, nos remete ao estudo do mérito processual, que, inicialmente na obra
56

de Chiovenda, pode ser visto como o debate conduzido pelo juiz acerca das
questões fático-jurídicas que refletirão diretamente na atuação da vontade concreta
da lei.
A definição ou a formulação do direito a ser aplicado ao caso concreto sempre
foi alvo de profundos debates entre os estudiosos do processo. Em Bülow o juiz
encontrava-se livre em seu julgamento, podendo-se nortear pelo senso comum
jurídico, pelos costumes e, também, pelo seu senso de justiça quando da análise do
caso concreto. No Direito Romano, especificamente na primeira fase do processo
formular, o pretor romano era quem detinha a legitimidade para estabelecer a
fórmula e o direito mais adequado a ser aplicado ao caso concreto.
Em Chiovenda a atuação da vontade concreta de lei é o direito a ser aplicado
ao caso concreto, ou seja, em sua obra a atuação do juiz é regrada pelos contornos
da lei, não decorrente de uma interpretação ou compreensão livre do direito a ser
aplicado ao caso concreto. A atuação da vontade positiva da lei ocorre no momento
em que o juiz, através do processo, garante à parte autora um bem da vida mediante
o cumprimento e a aplicabilidade do disposto na lei. Em contrapartida, a atuação da
vontade negativa da lei advém da aplicabilidade de lei ao caso concreto para
reconhecer judicialmente que a parte autora não tem direito ao bem da vida
pretendido inicialmente, o que por conseguinte nos permite concluir que a atuação
da vontade concreta de lei no presente caso ocorrerá em favor do réu.
Nesse contexto, é plenamente possível afirmar que as proposições teóricas
trazidas por Chiovenda, no que tange à atuação da vontade concreta da lei visa
assegurar bilateralmente tanto o bem da vida pertencente ao autor quanto ao réu,
razão essa que justifica a distinção acima mencionada: atuação da vontade positiva
da lei e atuação da vontade negativa da lei.
Do estudo sistemático da obra do processualista italiano observa-se a sua
preocupação quanto à limitação e o controle da atividade jurisdicional35 no que tange
à atuação da vontade concreta da lei:

35
La jurisdicción puede ser definida como la función del Estádo que tiene por fin la actuación de la
voluntad concreta de la ley mediante la substitución, por la actividad de llos órganos públicos, de la
actividad de los particulares o de otros órganos público, sea al afirmar la existencia de la voluntad de
la ley, sea al hacerla prácticamente efectiva. (CHIOVENDA, 1940, p. 1-2). A jurisdição pode ser
definida como a função do Estado que tem por fim a atuação da vontade concreta da lei mediante a
substituição, pela atividade dos órgãos públicos, da atividade dos particulares ou de outros órgãos
públicos, seja para afirmar a existência da vontade da lei, seja para torna-la praticamente efetiva
(tradução livre).
57

[...] Outra coisa é considerar isso como mister do juiz, perigosa máxima que
pode encorajar as interpretações individuais e cerebrinas. Com desdobrada
razão podemos dizê-lo das doutrinas inspiradas no princípio da maior
liberdade do julgador (a chamada escola do direito livre) e que a
exageraram ao ponto de admitir um poder de correção da lei. Os juizes
rigorosamente fiéis a lei conferem aos cidadãos maior garantia e confiança
do que os farejadores de novidades em geral subjetivas e arbitrárias.
(CHIOVENDA, 2002-a, p. 63)

O controle da atividade jurisdicional pelo princípio da legalidade limitará a


atividade do juiz quanto ao enfrentamento e à construção do mérito processual,
especificamente no que se refere à análise das questões de fato e de direito
inerentes à pretensão deduzida. Outra questão de extrema relevância é que a
vontade concreta da lei tende a realizar-se no domínio e nos limites das questões
fáticas levadas pelas partes ao Judiciário.
A ação36 em Chiovenda é um direito que pode fluir da lesão a um direito.
Trata-se de um direito potestativo preexistente à demanda, um direito subjetivo 37 do
autor, um poder jurídico autônomo de dar vida à condição de atuação da vontade
concreta da lei por meio dos órgãos jurisdicionais. A ação se realiza através do
processo, cuja utilidade se revela quando não se tem a certeza acerca do direito
pleiteado pelo autor em face de seu adversário. Por isso, Chiovenda trabalha o
processo como instrumento de implementação da justiça, mediante a garantia de
atuação da vontade concreta da lei.
As condições da ação são aquelas condições necessárias para que o juiz
declare e atue a vontade concreta da lei invocada pelo autor, ou seja, as condições
necessárias à obtenção de um pronunciamento favorável (CHIOVENDA, 2002-a, p.
89). Já os “pressupostos processuais compreendem-se as condições para a
36
In realtà l’azione è diritto che spetta al titolare affermato (ossia a colui che nella domanda si afferma
titolare) del diritto sostanziale, nei confronti del soggnetto passivo affermato dello diritto sostanziale
(ossia di colui che nella domanda è affermato soggetto passivo di quel diritto); e soprattutto è um
diritto che, a differenza dal diritto sostanziale, no há, come suo contenuto, uma prestazione del titolare
passivo dello stesso diritto sostanziale, bensì la prestazione di um altro ed autonomo soggetto: il
giudice (o, più in generale, I’organo giurisdizionale) che nel processo opera come organo dello Stato.
Ed anche la prestazione dell”organo giurisdizionale, come contenuto del diritto di azione, è diversa ed
autonoma dalla prestazione che costituisce el conteunto del diritto sostanziale, anche se strumentale
rispetto ad essa; è la prestazione della tutela giurisdizionale, o, più precisamente, lo svolgimento
dell’attività giurisdizionale; più precisamente ancora, quell” attività giurisdizionale più qualificata che
non si arresta ad uma pronuncia sul processo, ma – in quanto sussistano lê condizioni dell’azione –
giunge fino allá pronuncia sul mérito. (MANDRIOLI, 1997, p.58).
37
El derecho subjetivo es precisamente la expectativa de um bien de la vida, garantizada por la
voluntad del Estado. El derecho subjetivo pone al que lo posee en una especial condición de
preeminencia frente a los demá, por lo que se refiera al bien de que es objeto de ese derecho: porque
este bien corresponde sólo a él, con exclusión de todos los demás. En sentido propio derecho
subjetivo supone, pues, un bien de la vida que idealmente pueda corresponder también a persona
distinta de aquella investida de tal derecho. (CHIOVENDA, 1936, p. 56)
58

obtenção de um pronunciamento qualquer, favorável ou desfavorável, sobre a


demanda” (CHIOVENDA, 2002-a, p. 90). Dessa forma, verifica-se que os
pressupostos processuais na obra de Chiovenda são os requisitos extrínsecos ao
mérito processual e que visam assegurar a existência e a validade jurídica da
relação processual. É nesse sentido que o autor elenca como pressupostos
processuais a competência do juízo 38 e a capacidade das partes, considerados pré-
requisitos essenciais ao enfrentamento do mérito pelo juiz. É por isso que Chiovenda
afirma
[...] A sentença, portanto, que se pronuncia apenas sobre os pressupostos
processuais, ou seja, que declara possível pronunciar-se sobre a demanda
ou absolve do prosseguimento da causa, não é favorável nem ao autor
nem ao réu; não concede nem recusa nenhum bem; veremos que, por isso,
em regra não deve incluir condenação nas despesas e que não produz
coisa julgada substancial” (CHIOVENDA, 2002-a, p, 92).

A demonstração de existência de um direito (possibilidade jurídica do pedido),


a comprovação da legitimação de agir e o interesse de agir (necessidade de buscar
a prestação jurisdicional) são considerados requisitos imprescindíveis à análise do
mérito processual. Ou seja, a discussão e a efetivação da atuação da vontade
concreta da lei somente é possível após demonstradas as condições da ação. “Na
falta de semelhantes condições, deve rejeitar a demanda, independentemente de
uma particular solicitação do réu, mesmo, por exemplo, se o réu é revel”
(CHIOVENDA, 2002-a, p. 227)39.
A compreensão jurídica do mérito processual perpassa pelo esclarecimento
científico de institutos afins. A demanda judicial “é o ato pelo qual a parte, afirmando
existente uma vontade concreta da lei, que lhe garante um bem, declara querer que
essa vontade se atue e invoca para esse fim a autoridade do órgão jurisdicional”
(CHIOVENDA, 2002-b, p. 354). A demanda judicial é a pretensão levada ao
Judiciário, ou seja, são as questões fáticas e jurídicas apresentadas pelo autor
(quando da propositura da ação) e pelo ré (quando da apresentação da defesa). A
nulidade da relação processual poderá decorrer da nulidade da demanda judicial ou
da nulidade dos pressupostos processuais. “Se fundado numa demanda válida o juiz
tem, pelo menos, a obrigação de se declarar competente ou incompetente, fundado
38
O primeiro pressuposto processual, ou seja, a primeira condição para poder examinar-se no mérito
a demanda judicial, é que a demanda se haja endereçada a um órgão do Estado revistido de
jurisdição. (CHIOVENDA, 2002-b, p. 7-8)
39
[...] mancando queste condizioni, egli deve rigettare la domanda, anche senza uma particolare
istanza del convenuto, anche se ad es, il convenuto é contumace. (CHIOVENDA, 1960, p. 158)
59

numa demanda nula o juiz, sobre não poder entrar no mérito, não pode sequer
examinar se existem os pressupostos processuais [...]” (CHIOVENDA, 2002-b, p.
383).
A constituição válida da demanda decorre da citação do ré. “O vício máximo
de uma demanda é a falta de comunicação ao réu” (CHIOVENDA, 2002-b, p. 383). A
ausência de regular comunicação do réu acarreta a inexistência da relação jurídica.
A demanda judicial regularmente constituída representa a oportunidade que
as partes têm de delimitar questões fáticas e jurídicas que permearão a construção
do mérito processual perante o juiz. É o momento em que o objeto do processo é
definido, vinculando o juiz quanto à análise do mérito, tendo em vista que o
magistrado não pode se pronunciar a favor ou contra as pessoas que não são
sujeitos da demanda; o juiz não pode conceder nem negar coisa diversa da
demanda e a causa petendi40 não pode ser unilateralmente alterada pelo julgador
(CHIOVENDA, 2002-b, p. 405-406). Ou seja, a demanda judicial é o pressuposto
lógico do mérito processual, que não é definido unilateralmente pelo magistrado,
cujo julgamento de mérito fica vinculado e adstrito ao que as partes alegaram em
juízo.
Temos uma intrínseca relação entre mérito processual e demanda judicial na
obra de Chiovenda. O juiz, ao exercer a jurisdição, não tem liberdade para formar o
seu convencimento desvinculado das questões postas pelas partes em juízo.
Significa dizer que a construção do mérito processual em Chiovenda decorre da
autoridade do juiz, regrada pelo principio da legalidade, cujos critérios para a análise
do mérito são jurídicos e vinculados aos fatos e fundamentos apresentados e
debatidos pelas partes no processo.

40
[...] Etimologicamente causa petendi significa ragione del domandare, titolo giuridico sul quale la
domanda si Fonda, comprendente “i fatti e gli elementi didiritto constituenti le ragioni della domanda”
(n. 4 art. 163): ma tale definizione, per la sua evidente genericità. È inidônea a descrivere, anche in
combinazione com il petitum, la realtà sostanziale che sta a base della domanda introduttiva ed, in
particolare, ad individuare modalità ed eventuali limite entro i quali il diritto a rapporto giuridico
sostanziale affermato entra a far parte della domanda, contribuendo, per ciò stesso, ad identificarla.
Non sembra inutile ricordare che l’elaborazione della nozione di causa petendi è stata fortemente
influenzata dallo sviluppo e dalla sucessiva contraposizione delle teorie, di origine germanica, della
sostanziazione e della individuazione: la prima, di più ântica concezione (che si ricollega al principio di
eventualità, cioè ad um’ida del processo como giudizio su uma serie di fatti), richiede che la domanda
debba indicare tutti rilevanti ed identifica la causa petendi nel compendio dei fatti costitutivi posti a
fondamento della domanda. La seconda richiede che la domanda specifichi il diritto sostanziale in
base al quale si chiede la tutela, assumendo essere compito del processo esclusivamente quello di
accertare l’esistenza od inesistenza del diritto, ed assegna allá causa petendi la funzione di
individuare soltanto il rapporto giuridico controverso (causa agendi próxima). (MONTESANO; ARIETA,
1996, p. 148).
60

Ao contrário do que foi preconizado por Bülow (liberdade do julgador construir


o mérito processual a partir de argumentos jurídicos e metajurídicos, sem ter o dever
de se vincular às questões postas pelas partes no processo), o mérito processual em
Chiovenda decorre das seguintes premissas: 1) o juiz controlará a legalidade da
constituição e da existência da relação processual; 2) a constatação de elementos
que venham a comprometer a validade da relação processual (ausência de
pressupostos processuais ou a nulidade da demanda por ausência de citação do
réu) são fundamentos para inviabilizar a construção e a análise do mérito processual
pelo magistrado; 3) a constituição válida e regular da demanda judicial dar-se-á pela
oportunização juridicamente igual do autor e do réu apresentar legitimamente todas
as questões de fato e de direito pertinentes ao que foi inicialmente alegado em juízo;
4) o julgador, quando da construção do mérito processual, fica vinculado às
questões de fato e de direito postas e alegadas pelas partes em juízo. Isso implica
dizer que o magistrado não tem liberdade de construir unilateralmente o mérito
processual, desconsiderando as alegações das partes no processo. É dever do juiz
construir o mérito processual a partir do que foi debatido e colocado pelas partes na
relação processual.
A sentença de mérito em Chiovenda é conseqüência da análise pelo juiz das
questões inerentes à demanda judicial. Não pode o juiz nem as partes se afastar da
demanda judicial quando forem construir o mérito processual. Nesse sentido

Não somente o juiz deve comportar-se nos limites da demanda, mas


deve também abster-se de considerar de oficio determinados fatos
que, embora não acarretariam mudança de demanda: secundum
allegata et probata partium indicare debet. Pode-se, portanto, dizer
que, se se veda à parte afastar-se da demanda inicial, com maior
razão de veda ao juiz. (CHIOVENDA, 2002-b, p. 406)

A atuação de ofício do juiz nunca poderá integrar questão atinente ao mérito


processual em virtude de sua vinculação com a demanda judicial. A legitimidade de
atuação de ofício do magistrado fica adstrita ao controle da constituição e da
existência da relação processual41 no contexto da legalidade vigente, ou seja, o juiz

41
[...] A relação processual é uma relação autônoma e complexa, pertencente ao direito público.
Autônoma, porque tem vida e condições próprias, independentes da existência da vontade concreta
da lei afirmada pelas partes, visto fundar-se sobre outra vontade da lei, quer dizer, sobre a norma que
obriga o juiz a pronunciar-se em referência a pedidos das partes, quaisquer que sejam:UMA COISA
É, POIS, A AÇÃO, OUTRA A RELAÇÃO PROCESSUAL: aquela compete à parte
61

se legitima no controle da validade dos pressupostos processuais e de eventuais


vícios da demanda

[...] Ao juiz não é dado, efetivamente, entrar numa relação jurídica a que
faleçam condições de validez. Por essa razão, declara de oficio sua própria
incompetência; argúi de ofício sua própria incapacidade subjetiva;
manifesta de ofício sua própria capacidade subjetiva; manifesta de oficio a
incapacidade das partes; a falta das autorizações necessárias para
comparecer em juízo; a incapacidade de ser parte; a falta de procuração; a
carência do ius postulandi e assim por diante. (CHIOVENDA, 2002-b, p.
421-422).

Entende Chiovenda que a partir do Estado Constitucional diversas relações


jurídicas são estabelecidas entre os indivíduos, e entre estes e o Estado. Tal idéia
teve por motor a separação dos poderes, o que fez com que o próprio Estado se
submetesse à vontade da lei. Entre o Estado e os indivíduos estabelece-se uma
relação jurídica de direito público, sendo o processo uma das formas dessa relação
(relação jurídica processual) que se apresenta em contínuas interferências e
contraposições em face da relação jurídica constituída entre as partes e deduzida
em juízo pelo autor (relação jurídica substancial).
Em virtude do advento do Estado Constitucional pode-se afirmar que a
construção do mérito42 tem sua base na fundamentação jurídica advinda da análise
da demanda judicial pelo juiz, ou seja, a sensibilidade sócio-jurídica do julgador não
pode servir de parâmetro para o julgamento do mérito da pretensão, assim como o
próprio julgador não tem legitimidade para ignorar as questões postas pelas partes
(autor e réu) quando da constituição da demanda judicial no contexto da relação
processual.
Adepto da teoria dualista do ordenamento jurídico, Chiovenda reconhece que
há direito anterior ao processo, mas afirma que o processo apresenta-se como fonte
autônoma de bens da vida, que não se podem conseguir a não ser no processo. O
juiz ao construir e analisar o mérito processual busca, acima de tudo, garantir às

42
Chiovenda é um exemplo. Ele diz que “objeto do processo é a vontade concreta da lei de cuja
existência e atuação se trata, bem como o poder de pedir a sua atuação, i.é, a ação”. A referência à
ação e sua inclusão no objeto do processo não só expressa essa postura mental diferente da dos
arautos do método que faz deste o centro, como ainda traz uma impropriedade: como pode a ação
como poder que é (ou direito público subjetivo, como muitos preferem), ser posta diante do juiz? a
ação não é um ato, ela se situa no plano das situações jurídicas. Melhor se expressou Chiovenda, em
outra passagem já citada, quando associou a demanda (ato inicial do exercício da ação) e não a ação
em si mesma ao conceito de mérito (DINAMARCO, 1987, p. 210).
62

partes (autor e réu) a atuação da vontade concreta da lei mediante a delimitação da


demanda judicial debatida no âmbito da relação processual instituída perante o juiz.
O principio da oralidade43, tal como desenvolvido na obra de Chiovenda, pode
ser visto como um retorno ao processo vigente no Direito Romano e também é
importante ressaltar que a oralidade causa reflexos diretos na compreensão e no
entendimento do mérito processual. A finalidade do procedimento oral é aproximar
as partes, facilitar o debate e proporcionar melhores condições ao magistrado para
perquirir com maior clareza a pretensão deduzida em juízo. Ou seja, através da
oralidade o juiz garante um diálogo mais direto entre as partes, viabilizando a
constituição de uma via discursiva de construção participada do mérito processual.
Assim é possível vislumbrar uma participação mais direta das partes (autor e réu) no
debate fático-jurídico de construção do mérito processual.
No processo oral há a “prevalência da palavra como meio de expressão
combinada com o uso de meios escritos de preparação e de documentação”
(CHIOVENDA, 2002-c, p. 61). Além de aproximar as partes, a oralidade viabiliza no
âmbito processual maior efetividade ao principio do contraditório, tendo em vista que
garante maior possibilidade de debate e de participação na construção do mérito
processual. A aplicabilidade do principio da oralidade não pressupõe a exclusão da
escrita no processo, tendo em vista a necessidade de documentação de todo ato
processual oralmente praticado.

43
Naturalmente, a realização do principio da oralidade comportava um abandono radical do velho
sistema, ou seja, do denominado “processo comum”, e isto significava evidentemente uma profunda
ruptura daquela unidade que havia nascido nos séculos da Idade Média e que, pelo menos em parte,
havia sobrevivido ao longo do século XVIII. Mas posto que o século passado foi um século
predominantemente inspirado, pelo menos na Europa, em movimentos ideológicos e políticos
nacionais e nacionalistas, a ruptura daquela unidade correspondia perfeitamente à tendência
dominante na ideologia e na política da época. Por outro lado, como já se teve ocasião de
demonstrar, a ruptura da antiga unidade, devida aos novos códigos e leis processuais inspirados em
critérios radicalmente novos foi-se convertendo sucessivamente em um fenômeno de tal modo
difundido e generalizado na Europa que se pode, hoje em dia, sustentar que, por meio daquela
ruptura, foi-se formando uma nova tendência para uma nova unidade. Isto quer dizer que as
legislações nacionais que, sucessivamente, acolheram o sistema processual oral foram sendo cada
vez mais numerosas, de modo que hoje em dia pode-se afirmar que representam a grande maioria
dos sistemas nacionais europeus. No principio da oralidade, inspiraram-se, com efeito, mais ou
menos terminantemente, ou, além dos dois códigos, alemão e austríaco, já lembrados, todos os
códigos europeus do nosso século, desde o código húngaro de 1º de janeiro de 1911, elaborado
principalmente por Alexandre Plóz, o dinamarquês, em vigor desde 1919; o norueguês em vigor
desde 1927; o polonês que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1933; o iuguslavo, de 13 de julho de
1939, que entrou em vigor entre 1933 e 1934 (quase literalmente modelado sobre o código austríaco)
– para chegar às leis mais recentes, como o código federal suíço de 1947 e o código sueco, em vigor
desde 1º de janeiro de 1948, assim como as leis processuais dos paises socialistas da Europa,
baseadas também fortemente no critério da relação imediata e oral do juiz com as partes e os outros
sujeitos do processo (CAPPELLETTI, 2001, p. 44-45).
63

Outra vertente do principio da oralidade encontra-se na “imediação da relação


entre o juiz e as pessoas cujas declarações deva apreciar” (CHIOVENDA, 2002-c, p.
64), ou seja, trata-se de corolário do principio da identidade física do juiz, através do
qual o juiz a quem caiba proferir a sentença e construir o mérito processual deve
assistir e acompanhar diretamente o desenvolvimento das provas das quais tenha
de extrair o seu convencimento.
A legitimidade do julgador na construção do mérito decorre da análise
apurada das provas produzidas pelas partes em juízo, ou seja, o juiz tem o poder de
valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes e, a partir de suas
constatações no âmbito processual, definir a matéria de mérito para julgar o mérito
da pretensão. Verifica-se que a oralidade representa para o juiz a oportunidade de
perquerir com maior exatidão e clareza qual a matéria de mérito a ser apreciada em
cada caso concreto.
Chiovenda, em suas proposições teóricas, trabalha dois tipos de cognição: a
cognição que conduz à sentença de mérito e a cognição que se desenvolve sem que
o magistrado enfrente a matéria de mérito (CHIOVENDA, 2002-c, p. 229). Sentença
definitiva é o ato processual através do qual o magistrado enfrenta o mérito da
pretensão deduzida em juízo e satisfaz a obrigação que lhe decorre da demanda
judicial. “É vedado ao juiz recusar a sentença de mérito, quando validamente se
constitui a relação processual” (CHIOVENDA, 2002, p. 230). Isso evidencia
claramente que a construção do mérito processual n obra de Chiovenda perpassa
obrigatoriamente pela observância de requisitos legais que venham garantir a
existência e a regularidade da relação processual. Dessa forma pode-se excluir do
conceito de mérito processual qualquer questão técnica e formal vinculada à
constituição valida da relação processual, tendo em vista a vinculação estreita
existente entre mérito e demanda judicial (questões fático-jurídicas).

2.4. O MÉRITO PROCESSUAL EM CALAMANDREI E OS REFLEXOS DE SUAS

CONTRIBUIÇÕES CIENTÍFICAS

No contexto da problemática científica proposta no presente trabalho, a obra


de Calamandrei tem significativa contribuição em razão de o respectivo autor
64

trabalhar o processo civil na perspectiva dialética. Num primeiro momento pode-se


imaginar que a base teórica da formação participada do mérito processual estaria na
obra de Calamandrei, algo que não se evidencia ao longo dos estudos em razão do
processo dialético restringir a participação dos interessados no debate da pretensão
deduzida, ou seja, o conceito de dialeticidade trabalhado pelo autor restringe-se às
partes no processo (autor e réu), ressaltando-se que o juiz é o legitimado a conduzir
a relação processual e a analisar quais serão as questões discutidas e consideradas
relevantes ao julgamento do objeto da demanda.
Além de restringir substancialmente a participação na formação do mérito
apenas às partes diretamente envolvidas no processo (autor e réu), Calamandrei
continua limitando o entendimento do mérito processual às questões ou à matéria
suscitadas pelas partes em juízo e analisadas pelo julgador no momento de decidir.
O julgamento do mérito materializa-se pelo enfrentamento e análise, pelo juiz, de
todas as questões propostas e trazidas aos autos pelas partes. Não é possível
vislumbrar na obra do autor italiano parâmetros legítimos ao entendimento do mérito
processual como um procedimento de ampla discursividade da pretensão deduzida
por todos os interessados na pretensão, tal como se pretende discutir ao longo
desse trabalho.
Piero Calamandrei, na primeira metade do século XX, propõe a compreensão
do processo a partir de uma relação processual de natureza dialética (órgão judicial
= juiz; autor e réu), ou seja, os atos processuais “resultam da colaboração de várias
pessoas, cuja atividade se sucede alternativamente na série, do mesmo modo que
nas intervenções de um diálogo” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 266). Calamandrei
remonta a máxima de Búlgaro (iudicium esta actus trium personarum, actoris, rei,
iudicis), bem como desenvolve sua teoria a partir das proposições teóricas
bulowianas e chiovendianas.
Calamandrei deixa explícito em sua obra o caráter dialético44 da relação
processual, que pode ser vista como um espaço de debate e de discussão das

44
O processo não é somente uma série de atos que devem se suceder numa determinada ordem
estabelecida pela lei (ordo procedendi), senão que é também, no cumprimento desses atos, um
ordenado alternar de várias pessoas (actus trium personarum), cada um a das quais, nessa série de
atos, deve atuar e falar no momento preciso, nem antes nem deposi, do mesmo modo que na
recitação de um drama cada ator tem que saber “entrar” a tempo para sua intervenção, ou numa
partida de xadrez têm os jogadores que se alternar com regularidade no movimento de suas peças.
Mas a dialeticidade do processo não consiste somente nisto: não é unicamente o se alternar, numa
ordem cronologicamente preestabelecida, de atos realizados por distintos sujeitos, senão que é a
concatenação lógica que vincula cada um desses atos ao que o precede e ao que o segue, o nexo
65

partes acerca da pretensão e do mérito processual. Talvez a grande contribuição


científica do autor encontra-se no sentido de reconhecer que a relação processual
validamente constituída entre as partes legitima a oportunidade do autor e do réu
atuarem de forma mais dinâmica e direta na construção do mérito. Percebe-se a
preocupação de colocar autor e réu numa posição menos subserviente, mais
autônoma e mais ativa em relação à autoridade do julgador, o que representa uma
das características típicas da obra de Calamandrei

[...] É este o caráter que se poderia denominar dialético do processo, em


virtude do qual, o processo se desenvolve como uma luta de ações e de
reações, de ataques e de defesas, na qual cada um dos sujeitos provoca,
com a própria atividade, o movimento dos outros sujeitos, e espera, depois
deles um novo impulso para se pôr, por sua vez, em movimento. Tudo isso
pode também se expressar dizendo que o processo não é somente uma
série de atos realizados por distintas pessoas na ordem estabelecida pela
lei, senão que é também, desde o inicio até o fim desta série, uma relação
contínua entre estas distintas pessoas, cada uma das quais se determina a
atuar do modo prescrito pela lei em conseqüência e em vista desta relação
pessoal em que se encontra com as outras; assim o caráter dialético do
processo leva naturalmente a conceber os atos que o formam como a
manifestação exterior de uma relação jurídica que corre entre os sujeitos
do mesmo; e surge assim a noção de relação processual.
(CALAMANDREI, 1999-a, p. 266-267).

O procedimento consiste na regulamentação ou na ordem de sucessão dos


atos constitutivos da relação processual45. A providência jurisdicional é a meta a ser
atingida ao final do procedimento, visto que no processo de cognição a decisão não
pode ser pronunciada antes que da fase de instrução tenham sido recolhidas todas
as provas e apresentadas todas as alegações pelas partes. O órgão judicial não
permanece como espectador inerte até chegar o momento de pronunciar a
providência final, ou seja, ao longo da instrução processual o magistrado atua
efetivamente de forma direta na construção do mérito processual conjuntamente
com as partes. È nesse contexto que Calamandrei enaltece a dinamicidade e a
dialética da relação processual, materializada através do posicionamento ativo

psicológico em virtude do qual cada ato que uma parte realiza no momento preciso, constitui uma
premissa e um estímulo para o ato que a contraparte poderá realizar imediatamente depois. O
processo é uma série de atos que se cruzam e se correspondem como os movimentos de um jogo:
de perguntas e respostas, de réplicas e contra-réplicas, de ações que provocam reações,
suscitadoras por sua parte de contra-reações. (CALAMANDREI, 1999-c, p. 225).
45
Para disciplinar a estrutura exterior de cada ato processual considerado por si mesmo, o direito
processual estabelece por quem pode ser cumprido cada ato (pelos órgãos judiciais ou pelas partes
ou por terceiros), que meios de expressão devem ser empregados (idioma oficial, art. 122 do C. p. c.;
forma escrita ou forma oral, exemplo, art. 180; publicidade ou segredo, exemplo, art. 128), que
condições de lugar (exemplo, art. 139 do C. p. c.) ou de tempo (exemplo, art. 147 do C. p. c.) devem
ser observadas para cada um deles. (CALAMANDREI, 1999-a, p. 259)
66

adotado tanto pelas partes quanto pelo juiz, no que diz respeito à busca de todos os
elementos, os fundamentos e a análise de todas as alegações fático-jurídicas que
orientarão a decisão a ser proferida ao final do procedimento pelo julgador. Nesse
sentido
[...] Também durante a fase preparatória o juiz dirige as partes e colabora
com elas; e também antes de chegar ao pronunciamento da providência de
mérito que irá por fim ao processo, pode ocorrer que tenha de tomar no
curso do processo providências de caráter – Arts. 176-187 – ordinário e
preparatório (ver art. 176, art. 187 etc.) que não fecham a série, mas que
se intercalam entre as atividades das partes, marcando outras tantas fases
internas, cada uma das quais constitui um passo em direção à providência
final. (CALAMANDREI, 1999-a, p. 260).

O processo é uma relação jurídica constituída pelas partes46 (autor e réu)


perante o Judiciário, ou seja, “a relação processual é fórmula mediante a qual se
expressa a unidade e a identidade jurídica do processo” (CALAMANDREI, 1999-a, p.
273). A constituição válida da relação processual diferencia-se da relação jurídica de
direito material instituída entre as partes, visto que tal relação decorrente do direito
material é considerada o fundamento central do objeto do processo (demanda
judicial). A relação processual “se constitui no momento em que a demanda, pela
qual uma parte pede uma providência ao órgão judicial, se – Arts. 101, 39, 643 –
comunica à outra parte” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 273).
O estabelecimento regular da relação processual entre as partes e perante o
juiz decorre da instauração efetiva do contraditório, ou seja, da oportunização ao réu
de participar diretamente da dinâmica do processo. “A relação processual é uma
relação dinâmica que tende alcançar uma finalidade e a se extinguir no êxito da
mesma” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 274). A finalidade da relação processual
regularmente constituída é oportunizar ao juiz o julgamento do mérito do objeto do
processo, a partir do que foi legitimamente alegado pelas partes em juízo. O
magistrado ao proferir julgamento de mérito fica adstrito especificamente ao que as
partes alegaram em juízo, ou seja, a análise do mérito processual pressupõe a
manifestação judicial de todas as questões postas e alegadas pelas partes.

46
A denominação de “partes” com que, desde a terminologia jurídica latina, se indica às pessoas
entre as quais versa o litígio perante o juiz, é uma das palavras, freqüentes na linguagem processual,
cuja etimologia alude às origens primitivas do processo, concebido como uma luta legalizada a
presença de um árbitro neutro; se chamam “partes” os contendentes no processo, no mesmo sentido
em que se fala de partes em todos os caso em que há uma contraposição de adversários que
competem entre si para a obtenção de uma vitória: um duelo, em um torneio cavalheiroso, em uma
competição de ginástica, em uma luta política de partidos ou de frações. (CALAMANDREI, 1999-b, p.
226).
67

A ação é um direito concreto47, ou seja, o seu exercício pressupõe o


reconhecimento jurídico da pretensão inicialmente deduzida pelo autor. Assim, “a
ação, entendida em sentido concreto (§34), é o direito à providência (de mérito)
favorável” (CALAMANDREI, 1999, p. 278). O requisito constitutivo para a efetivação
do direito de ação na perspectiva concretista pressupõe obrigatoriamente a análise
do mérito da demanda pelo juiz. Ou seja, a teorização do direito de ação em
Calamandrei encontra-se diretamente vinculada com a compreensão jurídica do
mérito processual, tendo em vista que o exercício do direito de ação ocorre apenas
quando a pretensão ou a demanda do autor é reconhecida pelo juiz. Para isso, é
necessário que o juiz adentre à análise de todas as alegações apresentadas pelas
partes em juízo.
O enfrentamento do mérito processual como corolário do reconhecimento ou
não da ação como um direito concreto condiciona-se, inicialmente, à demonstração
da viabilidade fática e jurídica da demanda judicial (relação entre o fato e a norma), a
legitimação para atuar ou contradizer (investidura para atuar ou contradizer;
titularidade da condição de parte na relação processual) e o interesse processual
(CALAMANDREI, 1999-a, p. 206-220). Além das condições da ação, é necessário
também ressaltar a relevância dos pressupostos processuais como requisitos de
validade e de existência da relação processual e, também, como elementos
extrínsecos ao mérito processual.
Nesse contexto é oportuno ressaltar que em sua obra Calamandrei explica
que o direito substancial é considerado o fundamento do objeto do processo
(demanda judicial) e ressalta a necessidade da distinção entre a relação jurídica
processual e substancial

[...] Decorre desta observação a profunda diferença que se deve fazer entra
a relação substancial, que é o mérito da causa, isto é, o tema que o órgão
judicial põe diante de si como um evento histórico que já tem sido vivido
pelos contendentes antes e fora do processo; e a relação processual, que
se cria no mesmo momento em que as partes entram em relação com o
juiz e na qual juiz e partes atuam numa cooperação viva, na qual cada um
dos seus atos deve conformar-se a outros tantos preceitos jurídicos que o
direito processual dirige a cada um deles, momento a momento.
(CALAMANDREI, 1999-a, p. 276)

47
A ação pode ser concebida de conformidade com a teoria que consideramos hoje historicamente
preferível, como um direito subjetivo autônomo (isto é, tal que pode existir por si mesmo,
independentemente da existência de um direito subjetivo substancial) e concreto (isto é, dirigido a
obter uma determinada providência jurisdicional, favorável à petição do reclamante. (CALAMANDREI,
1999-a, p. 206).
68

Essa distinção entre o direito processual e o direito substancial, mais


especificamente a relação jurídica de cunho processual e substancial, é
imprescindível ao estudo do mérito processual a partir das proposições teóricas
trazidas na obra de Piero Calamandrei. A existência e a regularidade da relação
processual decorre da observância de todas as normas processuais atinentes à
competência do juízo, legitimidade e representação das partes. A instrumentalidade
do processo é indispensável para garantir a validade da relação processual
constituída e, por conseguinte, viabilizar a análise do mérito processual pelo juiz.
Nesse ínterim sabe-se que “para obter a providência jurisdicional sobre o mérito,
não existe outro caminho senão o da rigorosa observância do direito processual”
(CALAMANDREI, 1999-a, p. 277).
Eventual equívoco do juiz quanto à análise do mérito da demanda é
denominado de error in judicando, o que não se confunde com a irregularidade
processual (error in procedendo)48. A não constituição válida e regular da relação
processual inviabiliza a análise do mérito da demanda. Considera-se error in
judicando qualquer interpretação ou análise do mérito processual dissonante com as
alegações e com as provas produzidas pelas partes em juízo. Assim, o mérito
processual em Calamandrei deve ser compreendido a partir da dicotomia e da
correlação existente entre a relação jurídica processual e substancial

[...] com o fim de que o órgão judicial possa chegar a aplicar o direito
substancial, isto é, a prover sobre o mérito, é necessário que antes as
atividades processuais tenham se desenvolvido de conformidade com o
direito processual. Somente se o processo se desenvolve regularmente,
isto é, segundo as prescrições ditadas pelo direito processual, o juiz
poderá, como se diz, “entrar no mérito”; se, vice-versa, tais prescrições não
têm sido observadas, as inobservâncias de direito processual, quando
sejam de uma certa gravidade, constituirão – Caráter instrumental do
processo – um impedimento para a decisão de mérito (“litis ingressum
impedientes”). [...] a investigação do juiz sobre a relação substancial não
acontece senão através de um processo regularmente constituído.
(CALAMANDREI, 1999-a, p. 277).

48
La contraposición de los errores in judicando a los errores in procedento, dice Beling, parte de uma
supuesta diversidad entre dos especies de normas jurídicas que el juez, al ejercitar su actividad en el
proceso, podría violar: unas serían normas de derecho procesal, destinadas a indicar al juez el modo
de regular su conducta durante el proceso (in procedendo); otras serían normas, por lo general de
derecho substancial, destinadas a ser aplicadas en la sentencia para la decisión de la relación
litigiosa de mérito (in iudicando). (CALAMANDREI, 1945, p. 165).
69

No procedimento judicial de análise do mérito da pretensão é necessário


diferenciar os requisitos de admissibilidade da demanda e os fundamentos a ela
inerentes. Considera-se admitida a demanda que se desenvolve no âmbito de uma
relação processual regularmente instituída e “fundada é a demanda quando quem a
propõe tem ação (em sentido concreto)” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 278), ou seja,
é aquela demanda através da qual o pedido do autor é judicialmente reconhecido.
“Neste caso, então, a demanda é admissível (enquanto tem todos os requisitos
processuais para ser admitida ao exame de mérito), mesmo sendo infundada
(enquanto faltam os requisitos constitutivos da ação indispensáveis para acolhê-la)”
(CALAMANDREI, 1999-a, p. 278), O juiz, antes de prover sobre a demanda e
analisar se a mesma é fundada ou não, deverá verificar a observância das questões
sobre a admissibilidade da demanda (questões de mérito e questões de rito). Deverá
o julgador averiguar preliminarmente a presença de todos os requisitos legais de
validade e de regularidade da relação processual, assim como auferir a viabilidade
fático-jurídica da pretensão deduzida em juízo.
Existe uma relação intrínseca entre o direito de ação e o mérito processual,
tendo em vista que a fundamentação decorrente da relação jurídica de direito
substancial representa, na obra de Calamandrei, os requisitos inerentes à análise do
mérito na perspectiva concretista do direito de ação. As condições da ação se
referem aos requisitos atinentes à viabilidade jurídica e fática da pretensão, ou seja,
são todos os elementos indispensáveis à providência favorável do pedido do
demandante, enquanto os pressupostos processuais (órgão judicial competente;
demanda dirigida ao órgão judicial nas formas estabelecidas pela lei processual;
capacidade de ser parte; capacidade processual; representação processual) são
todas aquelas exigências legais de constituição válida da relação processual. O
estudo do mérito decorre simultaneamente da existência da relação processual e da
validade da relação jurídica substancial

[...] para poder pronunciar uma providência favorável ao reclamante é


necessária a existência dos “requisitos constitutivos da ação” (ou condições
da ação: ver §37), os pressupostos processuais são as condições que
devem existir a fim de que possa se ter um – Pressupostos processuais –
pronunciamento qualquer, favorável ou desfavorável, sobre a demanda,
isto é, a fim de que se concretize o poder-dever do juiz de prover sobre o
mérito: assim, enquanto os requisitos da ação fazem referência à relação
substancial que preexiste ao processo, os pressupostos processuais são
requisitos pertinentes à constituição e ao desenvolvimento da relação
70

processual, independentemente do fundamento substancial da demanda.


(CALAMANDREI, 1999-a, p. 280).

Os pressupostos processuais também podem ser denominados de


pressupostos do conhecimento do mérito, extremos exigidos para decidir o mérito ou
condições da providência de mérito. Isso significa dizer que a falta de um
pressuposto processual acarreta a irregularidade na constituição da relação
processual e, por isso, o juiz tem o dever de emitir uma providência em que declare
expressamente as razões pelas quais não poderá adentrar ao exame da causa,
enquanto no caso do processo regular o juiz tem o dever de prover o mérito. Nesse
contexto sabe-se que em todo o processo temos uma fase preliminar, também
denominada de fase pré-meritória, “na qual o objeto da indagação do juiz não é a
ação, senão que é o processo: um verdadeiro e próprio processo sobre o processo”
(CALAMANDREI, 1999-a, p. 282). A constatação da ausência de um pressuposto
processual levará o juiz a uma providência sobre o processo em que não poderá
prover sobre o mérito da demanda; se a relação processual encontra-se
regularmente constituída, mas o reclamante carece de ação (a carência de ação em
Calamandrei decorre da impossibilidade do reclamante demonstrar fundamentos
fáticos e jurídicos para a procedência do pedido), este terá o direito de obter uma
providência de mérito através da qual o juiz rejeitará sua demanda por ser
considerada infundada; se a relação processual encontra-se devidamente
constituída e o demandante tem ação, o mesmo terá direito de obter o acolhimento
da demanda, ou seja, a análise do mérito favorável ao reclamante. Importante
ressaltar que “se a demanda tem sido declarada inadmissível por razões
processuais, a mesma pode ser proposta de novo em outro processo regularmente
constituído” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 283). Trata-se da problemática jurídica
existente no direito brasileiro referente à coisa julgada formal (atinge sentenças
terminativas e tem efeitos endógenos) e à coisa julgada material (atinge as
sentenças definitivas = sentenças de mérito e possui efeitos exógenos, ou seja,
vincula processos vindouros e atinge decisões proferidas em outras relações
processuais validamente constituídas), já trabalhada por Calamandrei na primeira
metade do século XX.
A última discussão proposta por Calamandrei e concernente ao debate do
tema-problema objeto da pesquisa, qual seja, o mérito processual, diz respeito à
71

defesa do réu e a possibilidade do mesmo alegar as exceções de mérito (ou


exceções substanciais) e as exceções de rito ou de procedimento (ou exceções
processuais). Nas exceções processuais o demandado busca alegar algum vício ou
defeito na constituição da relação processual (vícios esses que podem também ser
reconhecidos de ofício pelo juiz) que venha a impedir o juiz de decidir sobre a ação
(adentrar ao mérito processual). Já as exceções de mérito são alegadas pelo
demandado com a finalidade de desconstituir as alegações do autor e, por
conseguinte, comprometer o exercício do direito de ação em decorrência da eventual
improcedência do pedido.
A grande contribuição científica do processualista italiano Piero Calamandrei
no que tange ao mérito foi conduzir o estudo e a reflexão do tema a partir do
entendimento concretista do direito de ação, ou seja, ao trabalhar simultaneamente
os pressupostos processuais (requisitos de constituição válida da relação
processual) e as condições da ação (fundamentos de natureza fática e jurídica para
o reconhecimento judicial da demanda e do pedido do demandante), demonstrou
que o enfrentamento do mérito processual não é inerente a toda a qualquer relação
processual, mas somente aquelas em que as relações processual e substancial
foram validamente constituídas.

2.5. MÉRITO PROCESSUAL EM FRANCESCO CARNELUTTI.

O estudo do objeto da presente pesquisa na obra de Carnelutti justifica-se


pela necessidade de demonstração de que o entendimento acerca do mérito
processual ainda continua adstrito à matéria de fato e de direito trazidas pelas partes
ao processo para integrar a lide, ou seja, mérito em Carnelutti são as questões de
fato e de direito que integram o conflito de interesse litigioso deduzido em juízo. O
julgamento de mérito ocorre quando o juiz adentra às questões fático-jurídicas que
integram a pretensão litigiosa deduzida em juízo, ressaltando-se que a definição das
questões a serem discutidas é uma prerrogativa exclusiva das partes (autor e réu) e
que a apreciação dessas questões em juízo é uma atribuição que se encontra nos
limites da legitimidade da atuação do juiz.
72

O entendimento do conceito de mérito em Carnelutti é importantíssimo para


demonstrar que a noção que se tem sobre o mérito no modelo de processo coletivo
vigente no Brasil está diretamente ligada ao conceito de lide, ressaltando-se que a
base do sistema representativo encontra-se na ideologia de que a legitimidade na
formação e no debate da matéria de mérito não deve ser ampla e estendida a todos
os interessados, mas apenas àquelas pessoas previamente autorizadas pelo
legislador. A atual sistemática preconizada pelo modelo de processo coletivo
brasileiro, fundada na ótica representativa, destoa das proposições teóricas e
democráticas do modelo de processo coletivo centrado no sistema participativo e
adotado pela Constituição Federal de 1988.
Especificamente ao longo das três primeiras décadas do século XX o
processualista italiano Francesco Carnelutti desenvolve seus estudos sobre o
processo a partir de duas noções prévias: o interesse e a lide, sendo esta
caracterizada pelo conflito de interesses a que se direciona o processo, enquanto o
interesse pode ser visto como a manifestação de um sujeito com relação a um
determinado bem, ou seja, como “uma posição do homem, ou mais exatamente:
uma posição favorável à satisfação de uma necessidade (sujeito do interesse é o
homem e o objeto daquele é o bem)” (CARNELUTTI, 2000-a, p. 55). A noção de
conflito de interesses decorre da limitação de bens para satisfazer as necessidades
ilimitadas dos homens, ou seja, considerando-se que o interesse consiste na
situação favorável do homem satisfazer uma necessidade, o conflito de interesses
surge “entre dois interesses quando a situação favorável à satisfação de uma
necessidade excluir a situação favorável à satisfação de uma necessidade distinta”
(CARNELUTTI, 2000-a, p. 60-61).
Tal como Chiovenda e escudado nas concepções de Bülow, Carnelutti adota
a Teoria da Relação Jurídica, para o qual o processo 49é visto como um método para
a formação ou para a aplicação do direito, ou seja, o processo consistiria numa
relação jurídica de origem em normas instrumentais que determinariam poderes e
sujeições para a solução da lide. Aplica-se o processo, por via repressiva ou por via
preventiva, para a formação ou a atuação, mediata ou imediata, geral ou particular
do direito, que por sua vez visa a regulação do conflito de interesses. A matriz

49
O estudo da composição do processo engloba não somente os elementos da lide e do processo,
propriamente dito, mas também o conhecimento das relações entre processo e litígio. (PACHECO;
MAGALHÃES; FONSEÇA, 2004, p. 155).
73

instrumental do processo é percebida ao longo de praticamente todo o Sistema de


Carnelutti, que deixa claro em diversas passagens que o “interesse na composição
do litígio” (CARNELUTTI, 2000-a, p. 98) é o “interesse servido pelo processo”,
ressaltando-se uma suposta finalidade pública do processo civil.
O desenvolvimento das proposições teóricas carneluttianas decorre do
entendimento do processo a partir das noções de relação jurídica e de conflito de
interesses:
[...] a relação jurídica, o mesmo que o conflito de interesses, apresenta duas
fases, cada uma das quais corresponde a um dos interesses em conflito.
Mas exatamente porque a composição jurídica se produz por meio da
garantia de prevalecer a um deles citado, e por meio da imposição ao outro
da subordinação, na relação jurídica, diferentemente do simples conflito, os
dois interesses apresentam-se em posição distinta. Por isso, a relação
jurídica é a composição de dois interesses: um prevalecente ou protegido e
outro subordinado. (CARNELUTTI, 2000-a, p. 76).

A finalidade do processo é a justa composição da lide 50, ou seja “o processo


se desenvolve para a composição justa do litígio 51” (CARNELUTTI, 2000-a, p. 373).
O processo serve para reproduzir o litígio perante o julgador, a fim de habilitá-lo a
decidir. A noção de processo encontra-se diretamente vinculada com o conceito de
lide proposto por Carnelutti, o que repercutirá no entendimento jurídico acerca do
mérito processual, tendo em vista que a lide é um instituto utilizado para designar o
mérito da causa. O objetivo central do processo consiste exatamente no alcance da
justa composição da lide52, considerada a finalidade pública e precípua da relação
processual ora instituída entre as partes e perante o juiz. Como se observa, o

50
Mas, o que há de se entender por composição justa do litígio? Já observei que a justiça é a
conformidade com uma regra (supra, nº 7). Por conseguinte, a composição será justa quando for
conforme à regra que no processo se tende a aplicar e, por isso, conforme os casos, quando seja
conforme o Direito ou à equidade. Por outro lado, a conformidade com a regra é, por sua vez, um
juízo; por isso, a composição será justa enquanto seja julgada como tal, distinguindo-se, nesse
sentido, da justiça individual e a social (CARNELUTTI, 2000-a, p. 372)
51
Como já asseverado por Carnelutti, o destino do processo para a composição da lide expressou-se
já metaforicamente várias vezes como “relação de continente a conteúdo” (Carnelutti, v. 2, 2000, p.
797). Esta metáfora está na base da continência do processo, que é uma fórmula para expressar tal
relação: o processo contém aquela quantidade de litígio que serve para compor (Carnelutti, v. 2,
2000, p. 797). (PACHECO; MAGALHÃES; FONSEÇA, 2004, p. 155-156).
52
[...] a composição do litígio não é um fim em si mesmo, e sim um meio para a proveitosa
conveniência social. E esta eficácia sua pode se explicar de dois modos: enquanto a composição se
extinga, dentro do possível, a aversão entra os litigantes, que contém um gene anti-social e,
enquanto, por meio do exemplo, induza a outros litigantes à composição espontânea de conflitos
análogos. É evidente que esta influência sedativa e difusora da composição não pode se exercer em
si e por si, e sim apenas enquanto seja idônea para satisfazer a necessidade da justiça.
(CARNELUTTI, 2000-a, p. 371)
74

processo na obra de Carnelutti é um instrumento legitimo utilizado pelo julgador para


garantir a paz e a justiça em suas decisões. Em decorrência do caráter polissêmico
da expressão justiça, associada com a possibilidade do julgador utilizar-se do juízo
de equidade, pode-se afirmar que a análise e a construção do mérito processual
decorre não apenas de argumentações jurídicas, mas, acima de tudo, da
possibilidade do julgador utilizar-se da metajuridicidade como critério lógico de
análise e do balizamento do mérito da causa. “[...] Segundo o Direito, o poder do
legislador é livre, enquanto o poder do juiz está vinculado, inclusive quando
pronunciar uma sentença dispositiva, que terá de formular segundo a equidade [...]”
(CARNELUTTI, 2000-a, p. 373).
A função processual em Carnelutti decorre da combinação de dois
importantes elementos: a paz e a justiça. Entende-se que “onde não há litígio para
compor segundo a justiça, não há função processual” (CARNELUTTI, 2000-a, p.
374). Seria justa uma decisão se a mesma se encontrasse de acordo com uma
regra, ou seja, desde que alinhada com a ideologia da justiça que decorre de uma
concepção de interpretação majoritária (opinião comum) sobre como se solucionaria
determinado conflito. O Estado tem interesse em compor apenas os litígios que
ameaçam a paz social, ou seja, a função pública do processo exterioriza-se no
sentido em que o Estado não tem interesse em se manifestar e garantir a justiça
naqueles litígios que não afetam direta ou indiretamente a paz social. “[...] Isso
significa que o litígio está presente no processo, como a enfermidade o está na cura.
O processo consiste, fundamentalmente, em levar o litígio perante o juiz, ou
também, em desenvolvê-lo na sua presença” (CARNELUTTI, 2000-b, p. 25).
O debate acerca do mérito processual em Carnelutti perpassa pela
legitimidade que o julgador tem de analisar os fundamentos da lide a partir de
argumentações tanto jurídicas quanto metajuridicas. A demonstração da carga
axiológica e metajurídica quanto à análise do mérito da pretensão resta evidenciada
nas proposições teóricas atinentes à justiça e à paz social como corolários da função
processual. Além disso, verifica-se que o debate acerca da construção do mérito
processual advém da unilateralidade da compreensão do magistrado acerca da
pretensão deduzida em juízo, o que denota a total exclusão das partes quanto à
legitimidade de participação na construção do mérito processual.
O processo não se confunde com o litígio, tendo em vista que a relação
jurídica processual tem o propósito de reproduzir o litígio perante a autoridade do
75

juiz. O litígio deve ser visto na obra de Carnelutti como o pressuposto do processo,
ou seja, “[...] um processo sem litígio é como uma tela sem moldura” (CARNELUTTI,
2000-b, p. 25).
Não há atividade jurisdicional sem lide, considerando-se a lide como um
fenômeno extraprocessual, metaprocessual e metajurídico que é delimitada quando
da propositura da ação, ou seja, trata-se de uma porção do conflito sociológico que
ingressa no mundo do processo. “O conflito e interesses se converte em litígio em
virtude de uma atitude específica das partes, uma das quais pretende, enquanto a
outra resiste à pretensão” (CARNELUTTI, 2000-b, p. 30). A pretensão decorre da
subordinação de um interesse alheio a um interesse próprio, ou seja, a
dialeticidade53 da relação litigiosa é considerada o fundamento norteador ao
entendimento da lide enquanto pressuposto da relação processual. Quando o titular
do interesse oposto se subordina ao interesse próprio, a pretensão foi suficiente
para resolver o conflito; quando isso não acontece instala-se o litígio. È nesse
ínterim que esclarece Carnelutti que ao conflito de interesses, quando efetivado com
a pretensão ou com a resistência, poderia dar-se o nome de contenda, ou mesmo de
controvérsia, mas que lhe pareceu mais conveniente e adequado aos usos da
linguagem o de lide (CARNELUTTI, 2006, p. 102) – que, por sua vez, foi apropriado
em grande parte nas proposições teóricas desenvolvidas por Enrico Tullio Liebman.
O desenvolvimento de toda teoria do processo em Carnelutti decorre do
entendimento da lide enquanto um conflito intersubjetivo de interesses qualificado
por uma pretensão resistida. A composição imediata do conflito de interesses dar-se-
ia através das normas materiais, ao passo que a composição mediata far-se-ia com
o uso de normas instrumentais que atribuem ao juiz o poder para a composição do
conflito. Os reflexos de tais proposições teóricas encontram-se na exposição de
motivos do Código de Processo Civil de 1973, em que Alfredo Buzaid utiliza-se da
palavra lide para designar o mérito da causa. È nesse sentido que Cândido Rangel
Dinamarco afirma que para Carnelutti o mérito da lide significa um complexo das
questões materiais que a lide apresenta (DINAMARCO, 1986).

53
É evidente que a apresentação da demanda em juízo sempre se faz, de parte a parte, do ponto de
vista do interesse pessoal. Nenhuma das partes, em são consciência, irá desenvolver suas
argumentações pondo em destaque os pontos que favorecem ou que possam favorecer o seu
adversário. A lide é, portanto, uma realidade técnica, intra-autos, por isso mesmo que o magistrado
compõe o litígio mediante a busca da verdade formal. (VIEIRA, 2002, p. 61).
76

O que determinaria o caráter jurisdicional do provimento para a composição


da lide seria o processo, ou seja, a relação jurídica (poder e seus atos) utilizada para
reprodução do conflito de interesses perante o juiz e que permite a aplicação da
sanção pacificadora. (LEAL, 2002, p. 75).
Na esteira das contribuições cientificas trazidas na obra de Francesco
Carnelutti encontra-se o entendimento do professor e processualista mineiro José
Marcos Rodrigues Vieira, para o qual o mérito seria, portanto, a lide nos limites do
pedido54, ou seja, “o mérito é o pedido e é a lide, ou, como visto, é esta nos limites
daquele” (VIEIRA, 2002, p. 160). “Mérito em verdade, é a composição da lide que
recai sobre relação de direito material controvertida que pode ser quanto a sua
existência, inexistência, modo de ser e ainda quanto a sua realização” (SOUZA,
2011).
A constituição do litígio no âmbito processual encontra vinculação direta com
a matéria de fato trazida pelas partes em juízo. O manejo e a análise da matéria
fática pelo julgador dar-se-á conforme as provas produzidas, as normas jurídicas e
as regras da expediência, visto que é a partir delas que o julgador extrairá a
aplicação da lei ao caso concreto. O enfrentamento do mérito processual está
intimamente ligado a problematização da matéria fática e jurídica pelo magistrado,
que é quem detém a legitimidade de análise de tais questões postas e trazidas pelas
partes em juízo.
É oportuno ressaltar que o exercício legítimo do direito de ação tem como
conseqüência jurídica a possibilidade de resolução da lide mediante a análise do
mérito da demanda. Por isso, sabe-se que o exercício do direito de ação pressupõe
inicialmente a capacidade das partes (“a capacidade é a expressão da idoneidade
da pessoa para atuar em juízo, inferida de suas qualidades pessoais”), ou seja, a
legitimidade de postular ou de ser parte numa determinada relação processual. Além
disso, a legitimação das partes também constitui pressuposto para o exercício do
direito de ação, sabendo-se que “a legitimação representa, pelo contrário, tal
idoneidade inferida de sua posição com respeito ao litígio” (CARNELUTTI, 2000-b, p.
54
De se notar que o conceito de mérito, acima transcrito, é endoprocessual, sendo definido como a
lide nos limites do pedido. É um conceito simples, claro e que, a nosso juízo, merece todos os elogios
e acolhidas. Apoiado nele e dando um passo, já nos é possível perceber que o mérito não é o pedido
e não é, do mesmo modo, a lide em si (como está expresso em vários dispositivos do CPC vigente e
do Anteprojeto, sem que se deixe claro se a lide endo ou extraprocessual), mas a lide narrada nos
autos e limitada pelos pedidos formulados por ambas as partes (no caso do demandado também
os fazer, quer seja na contestação das ações dúplices, que seja na reconvenção). (MADEIRA, 2010,
p. 117).
77

51). A noção de legitimação está relacionada com a titularidade da pretensão e com


a ingerência das partes para com as questões e a matéria de fato e de direito ora
levadas ao juízo da demanda. È nesse contexto teórico que Carnelutti faz a distinção
entre o interesse em litígio (trata-se do objeto do processo, o seja, a demanda
judicial das partes) e o interesse na composição do litígio (refere-se à finalidade
publica do processo exercida pelo juiz no sentido de buscar um provimento
compatível, na medida do possível, com a justiça e a paz social), afirmando-se que a
ação poderá ser exercida por quem possua interesse na composição do litígio
(comum a qualquer cidadão), quanto àquele que possua interesse no litígio
(CARNELUTTI, 2004, p. 56-57).
A capacidade e a legitimação das partes, assim como o conteúdo da ação,
são requisitos considerados indispensáveis à constituição regular da relação
processual que, por conseguinte, causa reflexos diretos no entendimento e na
construção do mérito processual. “Legitimação processual expressa, portanto, a
idoneidade de uma pessoa para atuar no processo, devida a sua posição e, mais
exatamente, a seu interesse ou a seu ofício” (CARNELUTTI, 2000-b, p. 57). É
relevante a distinção feita pelo autor entre sujeito da ação e sujeito do litígio:
considera-se sujeito do litígio aquele com respeito ao qual se faz o processo e que
sofre suas conseqüências (titular da pretensão deduzida em juízo), enquanto o
sujeito da ação seria quem o faz, pelo menos, quem concorre a fazê-lo e, deste
modo, a determinar aqueles efeitos (titular do direito de postular). Normalmente o
sujeito do litígio coincidiria com o sujeito da ação, mas casos haveria em que o
sujeito da ação não seria o sujeito do litígio, como os casos de legitimidade
extraordinária do Ministério Público (CARNELUTTI, 2004-b, p. 87).
A demanda inicialmente pode ser vista como um instituto inerente ao
exercício do direito de ação pela parte autora da relação processual, ou seja,
demandar é a forma característica da atividade da parte. A constituição efetiva da
demanda judicial depende da manifestação da parte demandada, ou seja, destaca o
autor que a ação não corresponde a uma parte, e sim a cada uma das partes,
apontando a necessidade da bilateralidade e de observância do contraditório para a
finalidade do processo

À demanda introdutória do autor ou do credor corresponde ou, pelo menos,


pode corresponder, uma demanda do demandado, quando comparecer no
processo de conhecimento, ou do devedor, quando manifesta sua atividade
78

no processo de execução; tal demanda pode concordar ou discordar da do


autor ou credor, conforme aqueles que adiram ou resistam à pretensão; o
que o art. 36 do Código de Procedimento Civil chama “contra-dizer a
demanda”, e o que os arts. 162 e 415 chamam “responder”, não é mais do
que a proposição que de sua demanda faz o demandado ao juiz, como o
faz o autor. (CARNELUTTI, 2000-b, p. 105-106).

Demanda judicial é sinônimo de objeto do processo, ou seja, é o que as


partes alegam sob o ponto de vista fático e jurídico na relação processual
regularmente constituída perante o Judiciário (a ação para Carnelutti é um direito
abstrato de natureza pública e dirigida contra o juiz, e não contra o Estado 55. Para
Carnelutti, portanto, o direito de ação consistiria em uma situação jurídica que não se
estabelece perante os pretensos direitos materiais de âmbar as partes, mas se
configura como um direito da parte ante o juiz ou o funcionário judicial).
As razões que apóiam a demanda representam o substrato para a
compreensão do mérito processual. As partes têm o dever de proporcionar todos os
elementos para a apreciação do mérito processual a partir dos fundamentos
constitutivos da demanda judicial. A instrução processual é o momento em que o
julgador se utiliza para avaliar as provas e os argumentos das partes e, assim,
adentrar à análise do mérito processual.
Considerando-se que a jurisdição é um poder exercido pelo julgador para
garantir a justiça e a paz social em suas decisões e que o processo exerce uma
função pública cujo escopo é a justa composição da lide, o mérito processual em
Carnelutti decorre das ponderações e das análises do julgador acerca de todas as
questões atinentes a matéria fática e jurídica trazidas pela partes no contexto
processual. É por isso que a explicação do que se pode entender sobre mérito
processual obrigatoriamente se encontra vinculada ao conceito de lide, a matéria de
fato, as questões de direito, cuja análise e debate partirá do senso de justiça da
autoridade do julgador. Na sentença o julgador visa tornar concreto ou particular o
preceito abstrato e genérico contido na norma legal; é por isso que a sentença em
Carnelutti deve ser vista como uma lei específica e individualizada construída a partir
de normas abstratas e genéricas aplicadas ao caso concreto.

55
A ação seria, então, direito ao cumprimento dos atos em que se resolve a tutela jurídica [...]. Não
seria direito contra o Estado (Ofício) mas contra o Oficial [...]. Resolve-se em Carnelutti o problema da
ação em que a sujeição da parte, quando sucumbente, não é ao direito da outra, mas ao poder que o
reconheça [...]. O reverso desse direito seria a obrigação do funcionário. [...] Assim declinou Carnelutti
a novidade de seu direito de ação contra o juiz (não contra o juízo). (VIEIRA, 2002, p. 48-49)
79

2.6. O ESTUDO DO MÉRITO NA OBRA DE ENRICO TULLIO LIEBMAN

O pensamento científico do processualista italiano Enrico Tullio Liebman é de


extrema relevância para o estudo do objeto da presente pesquisa, haja vista que
ratifica o entendimento preconizado anteriormente pelos autores estudados, de que
o mérito processual consiste na análise, pelo juiz, da matéria e das questões de fato
e de direito alegadas pelas partes (autor e réu) em juízo, não se preocupando em
diferenciar mérito processual de matéria de mérito.
O mérito processual é visto como a análise das questões trazidas pelas
partes ao juiz, ressaltando-se que tal análise é uma prerrogativa exclusiva do
julgador, sujeito considerado o intérprete qualificado da lei. Tanto a definição das
questões de mérito a serem analisadas, quanto os critérios de análises das questões
suscitadas é uma prerrogativa exclusiva do julgador, tal como ocorre até hoje,
quando se analisa a base teórica do Código de Processo Civil brasileiro de 1973.
O que se abstrai criticamente desse contexto é que o mérito consiste no
“merecimento” do julgador em apreciar unilateralmente as questões trazidas pelas
partes no processo para, com fundamento em sua experiência, bem como no
presumido e no notável saber, garantir a justiça da decisão para as partes
envolvidas no conflito de interesses.
É visível na obra de Liebman a reprodução do sistema representativo,
considerado o referencial para modelo do processo coletivo brasileiro vigente, em
que somente está legitimado a apresentar judicialmente as questões de mérito
aquelas pessoas previamente autorizadas pelo legislador, excluindo-se a
possibilidade dos demais interessados serem inseridos processualmente na
definição e no debate de outras questões relacionadas com a pretensão inicialmente
deduzida em juízo. Trata-se de uma teoria absolutamente incompatível com o
sistema participativo, que estabelece a base jurídica do modelo de processo coletivo
democrático.
Partindo-se das concepções teóricas desenvolvidas por Chiovenda e
Carnelutti, o processualista italiano Enrico Tullio Liebman, radicou-se em São Paulo
e, na Universidade de São Paulo, junto com um grupo de alunos e estudiosos
influenciou o pensamento dos processualistas brasileiros, dentre eles, Alfredo
80

Buzaid, Moacir Amaral dos Santos, José Frederico Marques, Cândido Rangel
Dinamarco e Kazuo Watanabe. A repercussão das proposições liebmanianas no
Brasil pode ser claramente percebida no Código de Processo Civil de 1973,
especificamente no que tange às condições da ação, ao julgamento antecipado da
lide (art. 330 CPC), a compreensão do instituto da coisa julgada a partir da ideologia
da imutabilidade e da indiscutibilidade da decisão judicial. Visando ressaltar a
influência das teorias de Liebman sobre o processo civil brasileiro Cândido Rangel
Dinamarco ressalta que

os pensamentos e escritos de Liebman, notadamente aqueles voltados ao


direito brasileiro, vieram a projetar-se intensamente na cultura
processualística de nosso país, com intensa repercussão, desde logo, na
doutrina dos que com ele conviveram e, ao longo de todas essas décadas,
no pensamento formado entre os discípulos de seus discípulos (...). Já
passadas mais de seis décadas de sua chegada, ainda hoje é possível
sentir o peso das propostas que trouxe e, sobretudo, das grandes
premissas que plantou entre nós, como verdadeiras raízes da formação do
pensamento científico brasileiro do processo civil (DINAMARCO, 2005, p.
78).

É relevante a contribuição cientifica Liebman no que tange ao estudo do


mérito processual, conforme será demonstrado pelas discussões a serem
desenvolvidas ao longo desse trabalho cientifico. O exercício da jurisdição56 em
Liebman decorria da concentração dos poderes de julgar nas mãos do magistrado,
ou seja, o juiz era considerado o intérprete qualificado da lei com a legitimidade de
julgar de forma justa ou injusta, no sentido de viabilizar a implementação da paz
social, tendo em vista que o fim último de sua atividade era a justiça de suas
decisões57.
Para Chiovenda a jurisdição é uma função do Estado que o legitima a garantir
a aplicação da vontade positiva ou negativa da atuação concreta da lei, ou seja, o

56
Julgar quer dizer valorar um fato do passado como justo ou injusto, como lícito ou ilícito, segundo o
critério do juízo fornecido pelo direito vigente, e enunciar em conseqüência a regra jurídica concreta
destinada a valer como disciplina do fato típico em exame (Caio deve mil a Tício; Semprônio está
condenado à reclusão). A operação lógica do juízo pode ser feita de quem quer que seja, dotado da
necessária cognição e dará lugar a um parecer, uma opinião; mas apenas a que advém do juiz e é
expressa numa sentença tem um conteúdo vinculativo e uma eficácia vinculante. Mediante a
execução forçada, por sua vez, os órgãos judiciários dão atuação prática efetiva àquilo que a lei
dispõe para o caso singular em concreto. (LIEBMAN, 2003, p. 23)
57
O juiz como intérprete qualificado da vontade da lei não significa que “ele possa atribuir à norma
conteúdos conforme à sua preferência subjetiva e arbitrária; pelo contrário, ele deve se esforçar para
exprimir as exigências e os valores da sociedade de seu tempo. O fim último da sua atividade é a
justiça e, com ela e por meio dela, a paz social” (LIEBMAN, 2003, p. 24)
81

referido autor diferenciou claramente a atividade administrativa do Estado (função


executiva) da atividade do juiz, sabendo-se que somente esta última atividade tinha
caráter jurisdicional. Seguindo a mesma sistemática jurídica proposta por Chiovenda,
Liebman diferencia a atividade jurisdicional da atividade judicial a partir do conceito
de joeiramento prévio.Ao ser proposta uma determinada ação o juiz primeiro deveria
analisar a presença dos elementos indispensáveis a análise do mérito processual,
quais sejam, os pressupostos processuais (requisitos extrínsecos ao mérito que
visam garantir a validade jurídica da relação processual) e as condições da ação
(legitimidade ad causam, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido). O
joeiramento prévio consistia na análise da existência desses requisitos
indispensáveis à apreciação do mérito processual. Uma vez constatada a ausência
de tais requisitos o magistrado não julgaria o mérito da demanda e, por isso,
exerceria a atividade judicial (considera-se judicial a atividade do magistrado atinente
à extinção do processo sem julgamento do mérito, ressaltando-se que tal atividade
não é considerada jurisdicional, visto que se equipara muito mais a uma atividade
administrativa exercida pelo juiz). O exercício da atividade jurisdicional58 pelo
magistrado dar-se-ia apenas quando o mesmo enfrentasse o mérito da demanda, ou
seja, Liebman deixa claro em sua obra que o exercício da atividade jurisdicional
encontra-se intrinsecamente vinculado à análise do mérito processual pelo
magistrado.
Os pressupostos processuais (capacidade especifica = competência do juiz;
capacidade das partes; ausência de impedimento derivado da litispendência; do
compromisso arbitral) são condições de desenvolvimento valido do processo, e a
ação é um direito condicionado (condições da ação) de provocar o exercício da

58
[...] Entendendo por jurisdição a atividade do poder judiciário, destinada a realizar a justiça
mediante a aplicação do direito objetivo às relações humanas intersubjetivas, no processo de
cognição somente a sentença que decide a lide tem plenamente natureza de ato jurisdicional, no
sentido mais próprio e restrito. Todas as outras decisões tem caráter preparatório e auxiliar: não só as
que conhecem dos pressupostos processuais, como também as que conhecem das condições da
ação e que, portanto, verificam se a lide tem os requisitos para poder ser decidida. Recusar o
julgamento ou reconhece-lo possível não é ainda, propriamente, julgar: são atividades que por si
próprias nada tem de jurisdicionais e adquirem esse caráter só por serem uma premissa necessária
para o exercício da verdadeira jurisdição. A ordem jurídica tende com a jurisdição ao fim de realizar-
se praticamente. Esse fim é conseguido pela decisão de mérito, não pelo exame da existência das
condições para que ela possa ser proferida. Nessa fase preparatória o processo funciona, em certo
sentido, como um filtro para evitar que haja exercício de jurisdição quando faltam os requisitos que a
lei considera indispensáveis para que se possam alcançar resultados satisfatórios. (LIEBMAN, 2001,
p. 109)
82

jurisdição no sentido de obter o julgamento do pedido, ou seja, a decisão da lide, ou,


em suma, a análise do mérito.
O pensamento liebmaniano apontava que a função do processo ”não se
cumpre num só momento ou num só ato, mas como uma série coordenada de atos
que se desenvolvem no tempo e tendem à formação de um ato final” (LIEBMAN,
2003, p. 45). É nesse contexto que temos a “idéia de um proceder em direção de
uma meta e o nome dado ao conjunto de atos trazidos à existência no exercício
dessa função” (LIEBMAN, 2003, p. 45). Liebman trabalha a noção de procedimento
como “diversas etapas de um caminho que se percorre para chegar ao ato final, no
qual se identificam a meta do itinerário pré-fixado e, inclusive, o resultado da inteira
operação” (LIEBMAN, 2003, p. 48). Pela análise das considerações do autor verifica-
se que a meta do processo é viabilizar ao magistrado o exercício da jurisdição no
que tange especificamente à análise do mérito da pretensão. É nesse contexto
teórico que encontramos a gênese da ideologia desenvolvida pela Escola Paulista
de Processo, para quem o processo é o instrumento da jurisdição.
O processo59 é uma relação jurídica constituída pelas partes (autor e réu),
perante o Judiciário, através da qual o juiz se coloca em posição hierarquicamente
superior, excluindo toda e qualquer forma de participação direta ou indireta das
partes na construção do mérito processual. “A atividade com a qual se desenvolve
em concreto a função jurisdicional se chama processo” (LIEBMAN, 2003, p. 45), e
essa atividade se cumpre por meio de uma série coordenada de atos que se
desenvolvem no tempo e tendem à formação de um ato final. Todas as atividades
desenvolvidas no processo são minuciosamente regulamentadas pela lei tendo em
vista que o processo é a atividade com a qual se desenvolve concretamente a
função jurisdicional.
Decidir é uma prerrogativa inerente ao exercício da jurisdição60. O conjunto da
atividade jurisdicional ordena-se no “esquema de uma demanda que uma parte61

59
“O processo é feito para dar razão a quem a tem; mas exatamente por isso no processo é garantida
a ambas as partes a possibilidade de defender as próprias razões e de lutar com armas iguais para
fazê-las triunfar” (LIEBMAN, 2003, p. 49).
60
Falar em decisão evoca desde logo, na mente do processualista, a função jurisdicional e
especificamente o processo de conhecimento. [...] Embora a decisão não constitua exclusividade da
jurisdição, nem a jurisdição só se exerça decidindo, tão importante é o momento decisório na
caracterização desta (nas origens, foi somente judicium), que é muito comum confundi-la com a
função cognitiva e identifica-la nesta. Constitui bem uma expressiva manifestação desse pensamento
arraigado na mente dos juristas a indicação da sentença (de mérito) como “ato jurisdicional magno”,
ou seja, “aquele em que a função jurisdicional realiza a sua função mais nobre e significativa.
(DINAMARCO, 1996, p. 90-91).
83

dirige ao órgão jurisdicional em confronto com a parte contrária, à qual o órgão


jurisdicional responde com uma decisão” (LIEBMAN, 2003, p. 45). Para Liebman o
mérito processual delimita-se através do pedido das partes e também encontra
relação direta com o conceito de lide, visto que o processo tem por escopo realizar o
Direito Material através da construção e da concretização do mérito pelo juiz.
O objeto do processo é um conceito utilizado para explicar o mérito
processual, tendo em vista que a análise de toda a matéria e de todas as questões
trazidas pelas partes no processo passa a integrar a matéria de mérito a ser
enfrentada pelo julgador.Carnelutti entende que o objeto do processo consiste nos
interesses contraditórios das partes62. Na esteira de Liebman o objeto do processo é
o pedido do autor, conforme explica a seguir

[...] A razão é fácil de explicar: o pedido do autor é o objeto do processo.


É ele manifestação da vontade dirigida à autoridade judiciária requerendo
desta uma atividade de determinado conteúdo. Todo o desenvolvimento do
processo consiste em dar a tal pedido o devido seguimento, de
conformidade com a lei, e o órgão público se desimcumbe de sua função
ao proferir os atos com que atende ao mencionado pedido. (LIEBMAN,
2001, p. 100) (grifo nosso).

No processo civil, cuja natureza do objeto versa sobre interesses individuais,


a parte autora, ao acionar o Judiciário, delimita inicialmente o objeto do processo ao
esclarecer sua pretensão na petição inicial. No momento em que a parte demandada
apresenta defesa há a constituição efetiva do objeto do processo mediante a

61
As partes têm direitos subjetivos processuais que consistem em “poderes que a lei lhes reconhece
de provocar a atividade judicial e de determinar que ela se desenvolva numa ou noutra direção”
(LIEBMAN, 2003, p. 49). “Esses direitos subjetivos são abstratos, ou seja, tem por objeto a atividade
do juiz, o resultado favorável ou desfavorável desta atividade, que dependerá por sua vez da
convicção do juiz sobre a existência ou não de fundamento das razoes de uma e da outra parte e,
portanto, de seu julgamento do mérito da causa” (LIEBMAN, 2003, p. 49).
62
É sabido que Carnelutti atribui ao conceito de lide uma importância teórica e sistemática
fundamental tendo, assim, posto muito cuidado em dar-lhe uma conceituação exata, eis, pois, sua
definição: lide é o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos interessados e pela
resistência do outro. A lide, assim conceituada, desdobra-se em duas subespécies: uma que é
caracterizada pela contestação da pretensão de um dos interessados e a outra pela simples
insatisfação daquela pretensão. Deve ficar bem claro que a lide, assim bem entendida, se distingue
rigorosamente do processo, sendo que este constitui o continente e aquela o conteúdo. Por outro
lado, a lide também não deve ser confundida com a antiga noção de controvérsia, produto das
afirmações contraditórias de duas pessoas: para Carnelutti a divergência de afirmações, o contraste
de vontades, representa apenas o sintoma, a manifestação visível, o elemento formal enfim da
matéria viva constituída pelo conflito de interesses efetivos e concretos, interesses de dois sujeitos
que pretendem satisfazer suas necessidades de conteúdo econômico, moral ou psicológico por meio
de um bem e por isso lutam para subordinar o interesse alheio ao interesse público (LIEBMAN, 2001,
p. 95).
84

intenção de apenas desconstituir os fatos e fundamentos alegados pelo autor


(contestação) ou através da ampliação do objeto do processo (reconvenção). É
nesse momento que se considera efetivamente instaurada a demanda, visto que são
definidas todas as questões (de fato e de direito) que nortearão a compreensão do
mérito processual. Trata-se da oportunidade que o magistrado tem de visualizar
claramente a linha de discussão e de debate que será construída pelas partes na
relação processual.
Em contrapartida, a noção de objeto no processo coletivo não se delimita
apenas ao que as partes (demandante e demandado) da relação processual
alegaram em juízo, uma vez que a construção do objeto do processo coletivo, e, por
conseguinte, a construção participada do mérito processual nas ações coletivas, dar-
se-á através da oportunização de implementação do amplo debate no espaço
processual, em que os protagonistas desse espaço de discussão são todos aqueles
sujeitos que demonstram interesse jurídico na apresentação de temas correlatos à
pretensão inicialmente deduzida pela parte autora: essa é a proposta da Teoria das
Ações Coletivas como Ações Temáticas, desenvolvida pelo jurista e pesquisador
Vicente de Paula Maciel Júnior (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 178-182).
Julgar o mérito processual é manifestar-se acerca do objeto da demanda. È
desse contexto que se consegue visualizar a ínsita relação existente entre mérito,
lide e pedido. Os pedidos das partes (demandante e demandado) representam o
objeto do processo e a delimitação dos fundamentos da lide em juízo. Demandar
nada mais é do que a expectativa da parte autora ver reconhecida sua pretensão
(considera-se pretensão como a narração reivindicativa expressa na petição inicial).
O conflito de pedidos das partes (demandante e demandado) constitui a matéria
lógica do processo e o elemento formal de seu objeto, ao passo que a dedução e a
constituição do conflito de interesses em juízo representa o substrato material do
processo. “Este conflito de interesses, qualificado pelos pedidos correspondentes,
representa a lide, ou seja, o mérito da causa” (LIEBMAN, 2001, p. 102). A lide é um
conflito de interesses moldado em juízo a partir dos pedidos das partes formulados
ao juiz.
Liebman deixa explicito em suas proposições teórica que o mérito processual
é a lide63, ou seja, que a natureza dialética da lide constitui o fundamento essencial

63
Lide é, portanto, o conflito efetivo ou virtual de pedidos contraditórios, sobre o qual o juiz é
convidado a decidir. Assim modificado, o conceito de lide torna-se perfeitamente aceitável na teoria
85

ao entendimento e à construção do mérito processual. È o demandante o autor do


objeto do processo e, por conseguinte, o responsável por delimitar o objeto da lide
que norteará a análise do mérito processual pelo julgador

[...] contraste com a realidade de nosso tempo, a qual configura o processo


como uma realidade jurídica de direito público, fundada no poder
jurisdicional da autoridade judiciária, combinado com a iniciativa dos
interessados. Esta iniciativa cabe ao autor; ele é que propõe o pedido e
com isso suscita a lide e fixa o mérito da causa. A atitude do réu é, para
esse efeito sem conseqüência. O máximo que ele pode fazer é contestar o
pedido do autor, sem alterar-lhe os limites; e, por outro lado, a alegação de
fatos e questões novas, embora estenda a matéria lógica a ser examinada,
não modifica a identidade e os limites do pedido [...]. Naturalmente, o réu
pode propor pedido próprio, que não seja a simples contestação ao pedido
do autor; mas, então, seria ele, por sua vez, autor em reconvenção e nova
lide seria introduzida no mesmo processo (LIEBMAN, 2001, p. 102-103)

O exercício da jurisdição e a atuação do juiz no processo, especificamente no


que tange à análise do mérito processual, é limitada64 ao que a parte autora alegou
em juízo, até porque “o juiz não poderá pronunciar-se sobre o que não constitua
objeto do pedido” (LIEBMAN, 2001, p. 99). Assim como Carnelutti, Liebman
desenvolve suas proposições teóricas a partir da estreita relação existente entre
processo e lide, relação essa que “repousa na implícita suposição de existir para
cada conflito de interesses surgido entre duas pessoas o correspondente processo
destinado a acolhê-lo em sua totalidade” (LIEBMAN, 2001, p. 97).
Sistematizar o enfrentamento do mérito processual pressupõe a observar os
requisitos legais de validade da relação processual a ser regularmente constituída
em juízo65 (pressupostos processuais, quais sejam, a competência do juiz; a

do processo e exprime satisfatoriamente o que se costuma chamar de mérito da causa. Julgar a lide
e julgar o mérito são expressões sinônimas que se referem à decisão do pedido do autor para julga-lo
procedente ou improcedente e, por conseguinte, conceder ou negar a providência requerida
(LIEBMAN, 2001, p. 103).
64 [...] o juiz está ligado e limitado em seus poderes por essa escolha do autor: ele não pode de ofício

compor o conflito na forma que achar mais apropriada e sim se limitar a concordar, ou não, com a
solução que lhe foi apresentada. A lei dá ao autor a liberdade, a iniciativa e a responsabilidade da
escolha no modo de resolver a controvérsia, exigindo dele a indicação da forma concreta e
determinada de tutela que pretende conseguir para satisfação de seu interesse. A tarefa do juiz é
unicamente decidir se a solução proposta é conforme ou não com o direito vigente. (LIEBMAN, 2001,
P. 98-99).
65
Fixado desse modo o conceito de mérito é claro que todas as questões por ele não abrangidas
constituem questões prévias, cujo exame pode levar a uma destas duas conseqüências: ou à
continuação do processo para o julgamento do mérito, ou à terminação do processo sem
conhecimento do mérito (absolvição da instância em sentido amplo). [...] A lei estabelece, porém,
algumas regras, cuja observância é necessária para que o processo se realize com as devidas
garantias de imparcialidade, eficiência, ordem, respeito ao direito dos terceiro e assim por diante. A
86

capacidade das partes ou a legitimidade ad processum; e a falta de fatos impeditivos


do processo em relação à determinada lide, tais como, a litispendência, a suspeição
e o compromisso arbitral), ou seja, “o processo deve ser proposto e conduzido com a
observância de uma série de regras de caráter formal que condiciona sua validade e
sua capacidade de progressão” (LIEBMAN, 2001, p. 104). Por isso, Liebman
trabalha as condições da ação (possibilidade jurídica do pedido, interesse
processual e legitimação) como requisitos que a lide deve possuir para ser julgada,
ou seja, para que o mérito processual seja julgado em juízo. Além disso, é
importante ressaltar que a coisa julgada e a perempção constituem fatos extintivos
da ação, ou seja, assim como as condições da ação, a ausência de fatos extintivos
são considerados requisitos extrínsecos ao mérito processual, cuja observância, na
concepção liebmaniana, viabilizará o exercício efetivo do direito de ação.
Na obra de Liebman o conceito de mérito processual encontra-se diretamente
vinculado à lide, o que significa dizer que a lide é pressuposto para o entendimento e
a análise do mérito processual. Ambos os institutos estão muito próximos e, por isso,
acabam recebendo a mesma conotação processual. Sabe-se que a sistematização
do entendimento teórico do mérito tem sido uma constante preocupação dos
estudiosos66 e processualistas, que em sua maioria compreende o mérito como a
composição da lide ou a análise das questões fático-jurídicas atinentes à relação
jurídica de direito material controvertida levada a juízo.

2.7. O MÉRITO PROCESSUAL EM ELIO FAZZALARI

Há aproximadamente duas décadas o processualista brasileiro Aroldo Plínio


Gonçalves publicou obra com o propósito de analisar criticamente as proposições
teóricas desenvolvidas pelo processualista italiano Elio Fazzalari, ressaltando-se

inobservância dessas regras produz a impossibilidade do julgamento da controvérsia. (LIEBMAN,


2001, p. 103-104).
66
A matéria de mérito que se constitui do equivocadamente chamado direito material (direito
alegado e examinável no espaço-tempo do mérito) passa a ser reconhecida judicialmente através do
processo que especifica a lide, nos limites do petitum, a que se referia Carnelutti, por indicar o ponto
crítico (culminante-meridium) da litigiosidade entre as partes sobre um bem da vida jurídica – a res
in judicium deducta, como já salientamos. Não havendo lide, claro fica também que o procedimento
instaurado se torna inócuo, quando se pretenda, em juízo, solução de um conflito não demonstrado.
Assim, a lide é condição do exame do mérito, embora a lide possa ser julgada antes do tempo
merital. (LEAL, 2009, p. 135-136) (grifo nosso)
87

que, a partir desse momento, inúmeros outros estudiosos brasileiros passaram a se


debruçar na compreensão do processo na perspectiva fazzalariana. A teoria
proposta por Fazzalari pretendeu revisitar as construções cientificas desenvolvidas
pelos pandectistas, cujo entendimento sinalizou sempre para o processo como uma
relação jurídica67. O processo passa a ser visto como uma estrutura através da qual
a construção do provimento desenvolvia-se pelo contraditório, considerado uma
“estrutura dialética do processo, que comprova a autonomia deste em relação a seu
resultado” (FAZZALARI, 2006, p. 5). Pode-se afirmar, ainda, que o processo é uma
estrutura na qual se desenvolvem, segundo o ordenamento estatal, numerosas
atividades de direito público e algumas atividades de direito privado. Por atividade de
direito público ressalta Fazzalari os deveres do Estado o qual os executa sempre em
obediência à lei que lhe impõe a obrigação de faze-lo. A jurisdição é indicada como
atividade de administração da justiça, cujo dever é tutelar o interesse na repressão
às violações de lei.
Verifica-se a distinção entre processo e procedimento pelo critério lógico da
inclusão, uma vez que foi desenvolvida uma teoria do provimento, em que o
processo é visto como uma garantia das partes. Trata-se de uma teoria que supera o
dogmatismo hermético que trazia em seu bojo uma concepção autoritária de
processo até então vigente (processo como relação jurídica entre pessoas, em que o
julgador era legitimado a exercer, de forma centralizada, o poder de decidir os
pedidos inerentes à pretensão deduzida a partir de argumentos jurídicos e
metajurídicos – ou de cunho axiológico), tendo em vista que propõe a
democratização do discurso processual. Há a reconstrução do conceito de parte no
processo, não mais como pessoas sujeitas à autoridade do julgador, mas como reais
responsáveis pela construção do provimento: “a legitimação para agir, ligada ao
contraditório e vista como participação dos sujeitos no processo (como
contraditores), enquanto prováveis destinatários da eficácia do ato emanado”
(FAZZALARI, 2006, p. 5).

67
A profundidade com que a idéia do processo como “relação jurídica” arraigou-se na ciência do
Direito Processual Civil pode ser apreendida na exposição de CÂNDIDO R. DINAMARCO:”A doutrina
da relação jurídica processual nasceu na Alemanha há pouco mais de um século e tem hoje ampla
aceitação em toda a literatura do mundo romano-germânico. Embora a idéia já andasse pela doutrina
do processo, dela não se tinha senão mera intuição e foi apenas no século passado que se observou
a sua existência – ressaltando-se que se trata de relação nitidamente distinta da de direito
substancial, da qual difere, em seus pressupostos, em seu objeto e em seus sujeitos” (GONÇALVES,
2001, p. 71).
88

O conceito de norma, na obra de Fazzalari, precede o estudo do


processo, ou seja, para se chegar à noção de processo devemos partir do estudo da
norma jurídica. A norma caracteriza-se por ser um cânone de valoração de
condutas68, ou seja, “a norma jurídica pinça os elementos jurídicos que as condutas
sociais apresentam, isolando-as nessa perspectiva (nesse caso, a perspectiva
jurídica)” (FAZZALARI, 2006, p. 49). A norma jurídica tem como objetivo a valoração
de condutas como lícitas ou devidas69, e por isso “pode ser indicada como valor
jurídico a ser colocado ao lado de outros valores (os éticos, os científicos, os
estéticos, e assim por diante)” (FAZZALARI, 2006, p. 50). Dessa forma pode-se
afirmar

[...] Sob o plano lógico-formal a norma consiste no padrão de valoração de


um conduta, articulando-se: 1- pela descrição do comportamento do ato que
se queira regular (nela os vários elementos e requisitos do ato são
apontados); 2- pela ligação ao ato, de uma das qualificações de ilícito ou de
obrigatório. Assim, por exemplo, o pagamento por parte do devedor é
obrigatório; a cultivação do terreno por parte do proprietário é lícita.
(FAZZALARI, 2006, p. 78).

A noção de ilicitude não está contida na norma em abstrato, visto que


pode ser auferida a ilicitude mediante a valoração de uma determinada conduta ou
comportamento frente a uma determinada situação concreta: “Ilícita é a qualidade
que pode ligar-se não à conduta abstrata contemplada pela norma, mas àquela
concretamente mantida por um sujeito, e de forma diferente do modelo de conduta
devida” (FAZZALARI, 2006, p. 78). Ilicitude para Fazzalari é uma qualidade que se
liga à conduta concreta contrária à norma e não à norma abstrata, pois o direito não
regulamenta o que é ilícito, mas sim o que é lícito. Diz Fazzalari que matar alguém
não é um ilícito normativo, pois o que se tem na consideração jurídica do homicídio é
o dever de não matar; portanto, a conduta lícita não matar. Nesse contexto
manifesta-se Aroldo Plínio Gonçalves

68
Abbiamo rilevato la natura della quale valore; qui accenniamo allá su strutura, Sul piano lógico-
formale la norma consiste nel cânone di valutazione di uma condotta, il qualer si articola: nella
descrizione Del comportamento, o atoot che dir si voglia (in essa sono i9ndicati i vari elementi, o
requisiti, dell’atto; nel collegamento all’atto di uma delle qualifiche di lecito e di doveroso (FAZZALARI,
1996, p. 46-47)
69
A distinção entre elas se mantém pelo conteúdo que comportam, e não pela referibilidade a
qualquer hierarquia, pois enquanto as normas materiais se destinam a valorar a conduta,
qualificando-as como lícita e como ilícita, tendo como matéria as situações jurídicas de que decorrem
direitos e deveres, as normas processuais disciplinam a jurisdição: o exercício da função jurisdicional
e o instrumento pelo qual se manifesta o processo. (GONÇALVES, 2001, p. 49-50).
89

[...] enquanto Kelsen concentrou o estudo da juridicidade no ilícito, Fazzalari


trabalha exatamente em linha contrária. O ilícito, para ele não é o cânone de
conduta. A conduta é valorada pelo lícito, e o ordenamento jurídico é o
complexo de normas, de faculdades, de poderes, de deveres, o complexo
de licitudes. O ilícito nele comparece, mas como a conduta que consiste na
inobservância do dever. (GONÇALVES, 2001, p. 155).

A aplicabilidade da norma jurídica condiciona-se à “indicação do pressuposto


em função do qual determinado comportamento é submetido à valoração jurídica”
(FAZZALARI, 2006, p. 78). Tal pressuposto, denominado pelo autor como
fattispecie, pode ser um fato ou um ato, tal como um acidente de trânsito que tem
como conseqüência o dever de indenizar do agente. É nesse sentido que Fazzalari
trabalha o conceito de ilicitude não como uma previsão na norma em abstrato, mas
como a valoração de uma situação concreta.
A norma jurídica não pode ser contemplada apenas como um “padrão de
valoração de uma conduta”70 (FAZZALARI, 2006, p. 81), tendo em vista que deve
ser compreendida e estudada sob outros pontos de vista. Por isso, é inicialmente
importante analisar a conduta descrita pela norma e a valoração atribuída à mesma.
Outro ponto de vista relevante é a análise tanto do sujeito a que a norma se destina,
bem como a posição do respectivo sujeito com relação à norma, tendo em vista
poder imputar ao sujeito a valoração normativa pretendida. A posição do sujeito com
relação à norma pode ser descrita como uma faculdade (se a conduta é valorada
pela norma como lícita) ou como um dever (se tal posição é valorada como
obrigatória). É nesse contexto que se pode apreender o conceito de procedimento 71
como sendo uma seqüência de normas, atos e posições subjetivas para, ao final,
valorar a conduta como lícita ou devida. “O ordenamento jurídico é freqüentemente
considerado do ponto de vista das normas; já o contrato, do ponto de vista dos atos;
a ação judicial, por sua vez, do ponto de vista das posições jurídicas” (FAZZALARI,

70
A norma jurídica, do ponto de vista de sua estrutura lógica, é contemplada não apenas como
“cânone de valoração de uma conduta”, isto é, como regra vinculante e exclusiva que expressa os
valores da sociedade, mas também em relação à conduta por ela descrita, a que se liga a valoração
normativa. Sendo o ato sinônimo de conduta (que tem no comportamento o seu conteúdo), dessa
valoração resulta a qualificação do ato jurídico como lícito (o uso do próprio bem), ou como devido. A
posição do sujeito em relação à norma permite falar em posição subjetiva, ou posição jurídica
subjetiva, e qualificar a conduta como faculdade ou poder, se é valorada como lícita, e como dever,
se é valorada como devida (GONÇALVES, 2001, p. 106).
71
[...] o procedimento se verifica quando se está de frente a uma série de normas, cada uma das
quais reguladora de uma determinada conduta (qualificando-a como lícita ou obrigatória), mas que
enunciam como condição da sua incidência o cumprimento de uma atividade regulada por outra
norma da série, e assim por diante, até a norma reguladora de um ato final. (FAZZALARI, 2006, p.
93).
90

2006, p. 84). Se o procedimento é regulado de modo a viabilizar a participação a


participação de todos os interessados na construção do provimento em simétrica
paridade (contraditório), é possível extrair a noção de processo como a estrutura que
viabiliza a legitimação da instauração do espaço de debate e de interlocução de
todos os interessados na construção do provimento.
O Estado em todas as esferas de atuação e os órgãos públicos emitem
provimentos72 no exercício de suas respectivas atividades, ressaltando-se que os
provimentos são atos inerentes às atribuições de cada órgão público e através dos
quais os respectivos órgãos do Estado legislam, governam ou fazem justiça. Sempre
que a preparação do provimento decorrer da direta ingerência das partes em sua
construção em contraditório, tem-se o processo. É a análise do provimento que vai
indicar quando há processo e deverá haver o modelo processual (isto é, a
participação dos interessados, em contraditório, ao iter de formação do ato final)
sempre que a atividade a ser desenvolvida deva lidar com interesses em contraste.
No que diz respeito ao provimento de mérito pode-se verificar na obra de
Fazzalari que o conceito de mérito processual ainda tem profunda relação com a
noção de lide e também ainda prevalece a ideologia da procedência do pedido do
autor da ação ser requisito imprescindível ao entendimento do mérito. Ressalta-se
que o provimento meritório em Fazzalari não mais decorre exclusivamente da
autoridade do magistrado (julgador), visto que a efetivação do contraditório como
pressuposto lógico da legitimação do espaço processual de construção participada
do provimento viabiliza a reconstrução e a revisitação do entendimento até então
preconizado pelos processualistas (Bülow, Chiovenda, Calamandrei, Carnelutti e
Liebman) de que o mérito decorre da legitimidade solitária do magistrado, cujo
exercício da jurisdição materializa-se no poder de julgar unilateralmente as
pretensões deduzidas. É oportuna a manifestação de Fazzalari

Quanto aos provimentos “de mérito” em sentido lato, podem-se qualificar


como tais os provimentos que envolvem a cognição de mérito (isto é, o
aspecto substancial deduzido na lide e aquele requerido ao juiz), sejam os
que acolhem a demanda judicial, sejam os que a rejeitam. Em sentido
estrito, são provimentos de mérito somente os jurisdicionais, ou seja,

72
Já se disse que os provimentos são – quanto ao seu conteúdo, emanações de vontade dos órgãos
públicos, os quais, por sua vez, pertencem ao gênero mais amplo no qual estão compreendidas,
como espécies distintas em razão da peculiaridade da disciplina, também as vontades de direito
privado (ou seja, os negócios jurídicos) (FAZZALARI, 2006, p. 443).
91

aqueles que no acolher da demanda invocam uma das medidas


reparadoras que constituem a jurisdição (condenação, declaração, ou
constituição): são elas que desenvolvem efeitos substanciais no patrimônio
das partes. Por sua vez, a pronúncia de rejeição da demanda – a recusa de
invocar aquela medida – deve considerar-se “de rito”, porque desenvolve
efeitos somente no processo (FAZZALARI, 2006., p. 441-442).

Considerando-se que a compreensão do provimento73 em Fazzalari não


decorre apenas da noção de processo judicial, a construção do mérito processual
dar-se-á em qualquer processo (judicial, administrativo e legislativo, ou seja,
qualquer processo desenvolvido perante órgãos públicos) em que o contraditório74
efetivamente se instaura mediante a oportunização de todos aqueles que detém
interesse jurídico na construção do provimento poder participar do debate de todas
as questões fáticas e jurídicas que permeiam o conceito de demanda e que refletirão
diretamente no entendimento jurídico do mérito processual. Fazzalari entende que o
provimento de mérito é aquele através do qual o juiz adentra à análise das
especificidades fático-jurídicas que constituem a pretensão deduzida, porém, antes
de adentrar à análise e à construção do mérito o magistrado analisar a situação que
legitima a emanar o provimento jurisdicional. Ou seja, Fazzalari condiciona à análise
do mérito à regularidade do processo desenvolvido. Por isso, antes de enfrentar as
questões de mérito, o magistrado deverá averiguar a regularidade das questões que
validam a relação processual (tal como a competência do juízo), sabendo-se que a
análise de mérito da demanda não ocorrerá se o juiz constatar que as partes não
detém a legitimação para a análise da pretensão e a construção participada do
mérito processual em contraditório (o provimento de rejeição não é jurisdicional, em

73
O provimento implica na conclusão de um procedimento, pois a lei não reconhece sua validade, se
não é precedido das atividades preparatórias que ela estabelece. Mas o provimento pode ser como
ato final do procedimento não apenas porque este se esgota na preparação de seu advento. Pode ser
concebido como parte do procedimento, como seu ato final, como o último ato de sua estrutura. É na
possibilidade de se enuclearem os provimentos, em conjunto, segundo esta ótica, pela qual eles são
o próprio ato final do procedimento, que FAZZALARI encontra a perspectiva própria para o estudo do
processo (GONÇALVES, 2001, p. 112).
74
A orientação ainda dominante gira, porém, em torno da convicção de que o processo e
procedimento pertencem ao mesmo gênero. Isso não só sob o perfil extrínseco, enquanto se trata de
esquemas que se resolvem ambos em uma sucessão ordenada de atos, mas também sob o perfil
intrínseco, enquanto obedeceriam ambos a um mesmo tipo de racionalidade. Nesse quadro, não se
pode negar que o contraditório não representa uma necessidade “imanente” ao processo, porque não
diz respeito diretamente ao momento fundamental do juízo. A sua função se exaure no garantir às
partes a “paridade de armas” através de uma contraposição mecânica de teses e assim, em última
análise, em um instrumento de luta. Voltam à mente as analogias entre jogo e processo, que implicam
a reconstrução do contraditório como princípio lógico-formal (PICARDI, 2008, p. 141-142).
92

sentido estrito, mas sim de rito)75. Considera-se provimento de rejeição ou de rito


aquele em que o magistrado deixa de apreciar o mérito da demanda (questões de
fato e questões de direito inerentes à pretensão deduzida) por ausência de
legitimação das partes em participarem diretamente da construção do mérito
processual. A noção de mérito processual em Fazzalari exclui a manifestação do juiz
acerca de questões estritamente de natureza processual, ou seja, todas as vezes
que for judicialmente constatada a existência de algum vicio que venha comprometer
a regularidade e a validade na constituição do processo o juiz deixará de exercer a
atividade jurisdicional e exercerá, apenas, a atividade judicial (atividade na qual o
magistrado deixará de conduzir a discussão da demanda juntamente com as partes,
considerando-se que a demanda materializa-se em questões de fato e de direito
postas e trazidas pelas partes no espaço discursivo do processo constituído a partir
do contraditório).
Antes de analisar o mérito da demanda o juiz deve analisar se está investido
do dever de emitir o provimento que lhe foi demandado ou se terá que recusar o
provimento pelo fato de ter refutado a demanda por ausência de legitimação das
partes. Para isso, o juiz, antes de tudo, deverá reconstruir a situação de fato a partir
das alegações e provas produzidas pelas partes. O juízo de fato, pelo juiz, antecede
a análise do mérito processual, uma vez que é através dele que o magistrado afirma
ou nega a existência de fatos relevantes à demanda (o juízo de fato constitui na
análise da existência de fatos constitutivos, extintivos e impeditivos como alegações
inerentes à demanda judicial das partes). “O juízo de direito, isto é, a valoração dos
fatos com base nas normas substanciais” é posterior ao juízo de fatos (FAZZALARI,
2006, p. 456), ressaltando-se que as partes diretamente interessadas no provimento
participarão de forma direta da valoração dos fatos a partir do juízo de direito trazido

75
A situação que o legitima a emanar o provimento jurisdicional (e legitima as partes a recebê-lo) é
constituída não somente pela “situação substancial” – em sede civil: dever, direito, lesão, -0 mas
também, e previamente, pela regularidade do processo desenvolvido, isto é, dos atos processuais
criados até o momento. Por isso deve enfrentar, além das imprescindíveis “questões de mérito” (nos
seus componentes de fato e de direito), também, e em primeiro lugar, aquelas de “rito” (obviamente,
mesmo quando elas se refiram ao fato ou ao direito) se existem (poderá, em verdade, dar-se que não
tenham sido levantadas questões processuais, nem o juiz se dê conta de suscita-las de ofício, ou
mesmo que elas tenham sido já resolvidas no meio tempo: por exemplo, tendo a Corte de Cassação
sentenciado em matéria de regulamento de jurisdição que o juiz de quo é competente), e, afinal,
declarará estar legitimado ao provimento jurisdicional, o juiz a emanará (legitimação ativa ao
provimento) e as partes se submeterão (legitimação passiva ao provimento); se, entretanto, no final
ou no curso da cognição de que estamos falando, o juiz constatar não possuir aquela legitimação,
deverá rejeitar a demanda (Como já dito e como ainda veremos, o provimento de rejeição não é
jurisdicional em sentido estrito, mas sim de rito: constitui a recusa a emitir o provimento, isto é, de
condenar, ou declarar, ou constituir) (FAZZALARI, 2006, p. 442-443).
93

pelo juiz. “O juiz deve, pois, individuar e interpretar a norma jurídica substancial [...],
aplicá-la aos fatos verificados e deduzir as conseqüências. [...] É esse, como se
disse, o chamado juízo de direito” (FAZZALARI, 2006, p. 462-463). A interpretação
da norma a ser aplicada no julgamento do mérito da demanda pressupõe a
determinação da fatispécie legal, ou seja, da situação através da qual se dá a
valoração de um comportamento que viabilizará o juízo de direito, assim como o juiz
deverá se ater à análise da individuação do comportamento descrito pela norma.
Qualquer intérprete que exorbita o seu dever de apreender a norma se coloca fora e
contra o ordenamento constitucional italiano, que preza pelo controle da legalidade
no exercício da atividade jurisdicional (FAZZALARI, 2006, p. 481).
No direito processual civil italiano a situação substancial (que nada mais é do
que a situação de direito material que será discutida no decorrer do processo, e
decidida no ato final do provimento, ou seja, trata-se do direito subjetivo pretendido,
considerado como a posição de vantagem de um sujeito em relação a um
determinado bem) não é considerada condição prévia para a instauração do
processo jurisdicional, “pois a lei processual requer a exposição do pedido, mas não
a exposição dos fatos e do direito como condição para o processo, podendo ela ser
feita em fase posterior a sua inauguração” (GONÇALVES, 2001, p. 157). “O juiz
deve limitar-se a recusar a demanda por falta de pressuposto substancial da
pronúncia jurisdicional, o que não significa declarar ilícita a conduta não disciplinada
no ordenamento: a sentença de rejeição é pronúncia de rito e não de mérito”
(FAZZALARI, 2006, p. 479-480). Fica clara a distinção proposta por Fazzalari: a
análise do mérito processual não ocorrerá sempre que a parte autora deixar de
demonstrar a sua legitimação76 (titularidade do Direito Subjetivo = posição de
vantagem de um sujeito com relação a um bem) na construção participada do
provimento mediante a implementação efetiva do contraditório. A ausência de
legitimação para o provimento decorrerá da não demonstração da situação
substancial, o que ensejará uma sentença de rejeição da demanda, não considerada
para Fazzalari uma sentença de mérito (o pressuposto para a sentença de mérito é a
existência, a análise e o debate processual da situação substancial = Direito

76
FAZZALARI resolveu a questão distinguindo a legittimazione ad agire e a legittimazione al
provvedimento. Esta última não ocorrerá no caso em que se constata a inexistência do dever e, ou,
direito subjetivo (ou que o autor e o réu não são, respectivamente, titulares do direito e do dever) e,
conseqüentemente, da lesão ao direito. Entretanto, o processo existiu, como existiu a ação, como
série de posições subjetivas das partes que o acompanha do princípio até o momento do provimento
(GONÇALVES, 2001, p. 160).
94

Subjetivo, debate esse em que será assegurado a todas as partes o direito de


participação na construção do mérito da demanda a partir do contraditório).
O processo cumpre a sua finalidade enquanto estrutura que prepara a
construção participada do provimento no momento em observa o procedimento em
contraditório77.
Na compreensão do autor o procedimento evidencia-se por uma seqüência de
normas, em que uma norma valora uma determinada conduta como lícita ou devida,
considerando-se que a respectiva conduta qualificará a conduta subseqüente. Na
seqüência normativa que compõe a estrutura do procedimento, a observância da
incidência da norma que prevê o ato que pode ser exercido ou deve ser cumprido é
pressuposto, é condição de validade, da incidência de outra norma que dispõe sobre
a realização de outro ato, sendo deste o pressuposto, assim até que o procedimento
se esgote atingindo seu ato final, quando se verificaram todos os pressupostos
normativamente previstos para a emanação do provimento (GONÇALVES, 2001, p.
111).
Já o processo é visto como uma das espécies do procedimento, cuja distinção
decorre do tratamento dispensado aos partícipes que sofrerão efeitos do ato final,
ressaltando-se que tal participação no âmbito procedimental deverá garantir às
partes posição de simétrica paridade (contraditório)78. A participação do juiz na
construção do provimento não se desenvolve em contraditório entre as partes, tendo
em vista que entre o juiz e as partes não existe interesses em disputa: “a
participação em contraditório79 se desenvolve entre as partes, porque a disputa se

77
Como exposto, FAZZALARI caracterizou os provimentos como atos imperativos do Estado,
emanados dos órgãos que exercem o poder, nas funções legislativa, administrativa ou jurisdicional. O
procedimento, como atividade preparatória do provimento, possui sua especifica estrutura
constituída da seqüência de normas, atos e posições subjetivas, em uma determinada conexão, em
que o cumprimento de uma norma da seqüência é pressuposto da incidência de outra norma e da
validade do ato nela previsto (GONÇALVES, 2001, p. 111-112).
78
Tale struttura consiste nela partecipazione dei destinatari degli effetti dell’atto finale allá fase
preparatória del medesimo; nella simmetrica parità delle lo posizioni. (FAZZALARI, 1996, p. 83).
79
O contraditório é a garantia da participação das partes, em simétrica igualdade, no processo, e é
garantia das partes porque o jogo de contradição é delas, os interesses divergentes são delas, são
elas “os interessados e os contra-interessados” na expressão de FAZZALARI, enquanto, dentre todos
os sujeitos do processo, são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos sujeitos do
processo que terão os efeitos do provimento atingindo a universalidade de seus direitos, ou seja,
interferindo imperativamente em seu patrimônio. O contraditório não é o “dizer” e o “contradizer” sobre
matéria controvertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material,
não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato
final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível. O contraditório é a igualdade de
oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de
todos perante a lei. É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório
enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo (GONÇALVES, 2001, p. 127).
95

passa entre elas, elas são as detentoras de interesses que serão atingidos pelo
provimento” (GONÇALVES, 2001, p. 121). Mesmo não tendo interesse direto na
demanda, o juiz é o responsável pela construção, em conjunto com as partes
legitimadas ao provimento, do mérito processual. Não se pode deixar de ressaltar
que a noção de mérito processual em Fazzalari decorre do entendimento do autor
acerca do Direito Subjetivo, considerado o norte do debate da demanda judicial.

2.8. AS CONTRIBUIÇÕES CIENTÍFICAS DA DOUTRINA BRASILEIRA NO ESTUDO DO

MÉRITO PROCESSUAL

Na exposição de motivos do Código de Processo Civil brasileiro de 1973


verifica-se que no Código de Processo Civil brasileiro de 1939 o vocábulo lide ora é
utilizado para designar o processo (artigo 96 do Código de Processo Civil brasileiro
de 193980) ora o mérito da causa, tal como ocorre no artigo 28781, no artigo 684,
inciso IV82 e no 687, §2º83, todos do Código de Processo Civil brasileiro de 1939. Já
o Código de Processo Civil brasileiro de 1973 deixa explícito que a utilização da
palavra lide é para designar especificamente o mérito da causa, haja vista que o
julgamento, pelo juiz, do conflito de interesses qualificado por uma pretensão
resistida, mediante o qual o juiz acolhe ou rejeita o pedido, dando razão a uma das
partes e negando à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. Nesse

80 Artigo 39 do Código de Processo Civil brasileiro de 1939: Ordenada a citação, ficará suspenso o
curso da lide.§ 1º A citação do alienante far-se-á:a) quando residente na mesma comarca, dentro de
oito (8) dias, contados do respectivo despacho;b) quando residente em comarca diversa, ou em lugar
incerto, dentro de trinta (30) dias.(grifo nosso). § 2º Se a citação não se fizer no prazo marcado, a
acção prosseguirá contra o réu, não lhe assistindo, em caso de má fé, direito a ação regressiva contra
o alienante. BRASIL. Decreto-lei 1608, de 18 de setembro de 1939. Disponível:
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=12170. Acesso: 01 mai. 2012.
81
Art. 287. A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das
questões decididas BRASIL. Decreto-lei 1608, de 18 de setembro de 1939. Disponível:
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=12170. Acesso: 01 mai. 2012.
82
Art. 684. Quando a medida fôr preparatória, será proposta por meio de petição escrita, que
indicará:IV – o objeto da lide principal e as razões que a determinam. BRASIL. Decreto-lei 1608, de
18 de setembro de 1939. Disponível:
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=12170. Acesso: 01 mai. 2012.
83 Art. 687. As medidas preventivas só terão eficácia enquanto pendente a ação, podendo ser
revogadas ou modificadas.§ 2º Se a sentença que resolver a lide transitar em julgado, cessará de
pleno direito a eficácia da medida, embora não expressamente revogada. BRASIL. Decreto-lei 1608,
de 18 de setembro de 1939. Disponível:
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=12170. Acesso: 01 mai. 2012.
96

contexto pode-se afirmar que a lide é o objeto principal do processo e nela se


exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes.
Ao longo de toda a legislação processual brasileira, especificamente o direito
processual civil, verifica-se que a expressão mérito é constantemente utilizada para
designar a lide, a causa de pedir (próxima e remota), a pretensão, objeto da
demanda, ou seja, toda construção que o direito brasileiro desenvolveu acerca do
mérito processual é no sentido de limitar sua compreensão à matéria ou as questões
postas e propostas pelas partes na relação processual. A concepção que se tem
sobre o mérito processual restringe-se à matéria ou as questões fático-jurídicas
trazidas pelas partes (autor e demandado) para a relação processual e que servirão
de parâmetro e de referencial para o julgamento dos pedidos.
Trata-se de um entendimento jurídico em que tanto o legislador quanto os
doutrinadores não se preocupam em diferenciar teoricamente o mérito processual da
matéria ou das questões de mérito. Isso decorre do fato do conceito do mérito
processual restringir-se à noção de matéria de mérito, ou seja, daquelas questões
postas e trazidas pelas partes (autor e demandado) para a relação processual, e que
servirão de parâmetro para o julgamento da lide.
Esse debate científico é extremamente relevante para a presente proposta de
pesquisa, tendo em vista que se busca demonstrar, ao longo de todo trabalho, que o
instituto do mérito não pode se limitar à noção de que o mérito processual constitui-
se apenas pelas matérias ou questões fáticas e jurídicas trazidas pelas partes na
relação processual. O que se pretende demonstrar e construir ao longo dessa
pesquisa é o entendimento de que o mérito processual é uma conseqüência do
debate e da definição participada das questões de mérito levantadas pelo juiz e por
todas as partes juridicamente interessadas no provimento final. Por isso, torna-se
necessário desconstruir a concepção liberal-civilista de que o mérito limita-se à
definição das matérias e das questões a serem apreciadas em juízo unilateralmente
pelo julgador, para passarmos a compreendê-lo como um procedimento bifásico em
que, num primeiro momento todas as partes juridicamente interessadas, e também o
juiz, possam definir, até a fase de saneamento, quais serão as questões fático-
jurídicas que integrarão o objeto da demanda e, em seguida, na segunda fase do
procedimento (após a fase saneadora), viabilizar o amplo debate de das questões
postas por todos aqueles legitimados ao provimento final. Essa é considerada, em
linhas gerais, a proposta e a contribuição científica pretendida com a presente
97

pesquisa, que visa demonstrar que o mérito processual é um procedimento através


do qual os legitimados ao provimento final têm a oportunidade de definir e discutir
amplamente todas as questões inerentes e vinculadas, direta ou indiretamente, à
pretensão inicialmente deduzida em juízo.
A atual sistemática proposta pelo Código de Processo Civil brasileiro vigente
não oportuniza a construção participada do mérito processual, tendo em vista que
limita às partes (autor e demandado) o direito de trazer aos autos as questões que
integrarão a lide, não oportunizando maior amplitude de participação de todos
aqueles sujeitos que teriam legitimidade de participar da construção do provimento
final. Além disso, o legislador do Código de Processo Civil conferiu exclusividade ao
julgador no que tange à atribuição legal de proferir o despacho saneador, a fim de
unilateralmente definir quais serão as questões relevantes à formação do mérito da
demanda. Isso implica dizer que após o despacho saneador a análise e a
interpretação das questões de mérito é uma prerrogativa exclusiva do julgador, sem
que as partes possam influir diretamente na construção da sentença de mérito. O
processo intelectivo de construção do mérito processual é uma prerrogativa
exclusiva do julgador, que se utilizando do livre convencimento motivado, decide o
caso concreto da forma que melhor lhe convier.
Para o processo civil brasileiro o julgamento de mérito é uma atividade
intelectiva exclusiva do juiz, uma vez que as partes ficam eqüidistantes do contexto
decisório,até porque são vistas como meras coadjuvantes.
A maior demonstração de que no processo civil o mérito processual está
intrinsecamente ligado à lide encontra-se na distinção teórica proposta e existente
entre defesas de mérito (defesa de mérito direta84 e defesa de mérito indireta85) e

84
Deixa-se claro, contudo, que a defesa de mérito direta não se dirige apenas contra o fato alegado,
podendo também se voltar contra o efeito jurídico que o autor deseja retirar desse fato. De modo que
o réu pode simplesmente contestar o fato constitutivo, mas também negar o efeito jurídico que o autor
pretende extrair do fato afirmado, sendo que em ambas as hipóteses estará exercendo defesa de
mérito direta (MARINONI, 2006, p. 324).
85
Contudo, o réu pode, adotando o principio da eventualidade, articular defesa de mérito indireta –
em que o fato constitutivo poderia ser dito “implicitamente aceito” – e, ao mesmo tempo, apresentar
defesa de mérito direta – negando expressamente o fato constitutivo. Nesse caso, o fato
expressamente negado na defesa direta, considerando o principio da eventualidade, na realidade não
é admitido na indireta. O fato é sempre negado, afirmando-se que, na eventualidade de não ser
aceita a defesa indireta, deverá ser acolhida a direta, uma vez que a afirmação de fato do autor não é
verdadeira. Assim, por exemplo, o réu pode alegar que o crédito afirmado pelo autor, caso existisse,
estaria prescrito, situação em que o réu alega a prescrição (defesa indireta) mas não admite o fato
constitutivo (defesa direta) (MARINONI, 2006, p. 325).
98

defesa processual86. A defesa de mérito é aquela em que a parte demandada


apresenta fatos extintivos, impeditivos ou modificativos, a fim de desconstituir as
questões e a matéria fática e jurídica alegada pelo autor da ação, mediante a
demonstração e a utilização de meios legitimamente lícitos e utilizados pelo
demandado em sua defesa.
A matéria e as questões que integrarão o mérito são definidas no processo a
partir das alegações na exordial e também pelo que o demandado alegou na sua
defesa. O direito processual civil brasileiro vigente é claro ao explicitar que todas as
questões de mérito são delimitadas quando da propositura da ação e no momento
da apresentação da defesa. Isso deixa claro que a regra geral adotada no direito
pátrio é que a delimitação da matéria de mérito é uma prerrogativa exclusiva do
autor da ação e do demandado, excluindo-se qualquer possibilidade de um terceiro
a relação jurídico-processual poder participar direta e efetivamente da definição da
matéria de mérito que integrará a pretensão deduzida.
Da mesma forma verifica-se quanto à análise e a apreciação da matéria de
mérito proposta pelas partes. O julgamento do mérito processual é uma prerrogativa
exclusiva do julgador, que é a pessoa detentora da legitimidade de analisar e
valorar, com exclusividade, todas as provas e as questões postas e trazidas pelas
partes aos autos. Não se pretende, aqui, excluir a participação do juiz no processo.
O que se busca é demonstrar que o juiz deve ser visto como mais um sujeito
interessado na construção participada do provimento, assim como ocorre com todos
os demais sujeitos legitimamente interessados na pretensão deduzida em juízo. “O
processo, nessa dimensão, assume a condição de via ou conduto de participação, e
não apenas de tutela jurisdicional (MARINONI, 2006, p. 431).
A formação participada do mérito processual somente se torna viável e
plausível mediante a superação da concepção hermética e autocrática do processo
visto como um instrumento da jurisdição. O processo constitucional democrático e a
jurisdição devem ser vistos como instituições que buscam a implementação dos
direitos fundamentais mediante a participação ampla de todos os interessados na
construção dos provimentos.

86
Não há como pensar me incompatibilidade entre a defesa processual e a defesa de mérito, ou entre
a defesa de mérito indireta e a defesa de mérito direta que nega os efeitos jurídicos que o autor
pretende extrair do fato que alegou. O real problema se apresenta quando se pensa na alegação de
fato impeditivo, modificativo ou extintivo que possa ser incompatível com a negação de fato
constitutivo (MARINONI, 2006, p. 325).
99

A racionalidade jurídica deve ser vista como o referencial para o exercício


democrático da jurisdição, retirando das mãos do julgador a exclusividade no que
tange à valoração da matéria e das questões de mérito que integram o cerne da
relação processual.
Alexandre Freitas Câmara afirma que “o saneamento do processo é, em
verdade, uma decisão interlocutória que nada saneia, mas tão-somente declara
saneado o processo, ou seja, o declara livre de quaisquer vícios que possam impedir
seu regular prosseguimento” (2005, p. 366). Na realidade o despacho saneador é o
momento em que o julgador fará uma análise preliminar da observância de todos os
requisitos de validade e de existência da relação processual, considerado o requisito
indispensável à apreciação e o julgamento da matéria de mérito na fase instrutória.
O posicionamento do autor em comento denota claramente o entendimento
preconizado pelo legislador do direito processual civil brasileiro, qual seja, o juiz é o
legítimo titular do exercício da jurisdição e autorizado a controlar e a analisar todas
as questões extra-meritórias (condições da ação e pressupostos processuais) e
propriamente meritórias, cabendo as partes o direito de apenas alegar e trazer aos
autos as questões, as matérias e as alegações consideradas relevantes e conexas
com a pretensão inicialmente deduzida em juízo.
Ao contrário do que se discute no presente trabalho de pesquisa, no processo
civil brasileiro vigente não podemos falar em formação participada do mérito, tendo
em vista que inexiste discussão ampla das questões de mérito trazidas aos autos,
não é oportunizada a ampla legitimidade de todos os interessados trazerem aos
autos questões de mérito além daquelas suscitadas pela parte autora e demandada
e, também, pelo fato da análise das questões de mérito alegadas ser uma
prerrogativa exclusiva do juiz, que não se vincula àquilo que foi alegado pelas
partes, possuindo ampla liberdade de análise de acordo com o principio do livre
convencimento motivado.
Novamente ressalta-se que a proposta do presente trabalho científico não é,
em momento algum, excluir a participação do juiz no ato de decidir e julgar, nem
tampouco deslegitimá-lo no que tange ao exercício da jurisdição. O que se busca é
democratizar o exercício constitucionalizado da jurisdição mediante o entendimento
de que o juiz é mais um interessado em participar isonomicamente da discussão das
questões de mérito e a decidir conforme os critérios e os fundamentos que nortearão
a ampla discursividade da matéria de mérito. A formação participada de mérito que
100

se propõe no presente trabalho é justamente a oportunidade de todos (juiz,


Ministério Público e todos os sujeitos juridicamente interessados da pretensão)
poderem levantar e propor questões e matéria de mérito, além de debatê-las
amplamente no âmbito processual.
O jurista mineiro Ernane Fidélis dos Santos afirma que o mérito processual
integra-se pela matéria e pelas questões postas e propostas pelo autor e pelo
demandado na relação processual, uma vez que o julgamento do mérito consiste na
análise dessas questões pelo juiz para, assim, poder reconhecer ou não o pedido da
parte autora (2007, p. 163). Por isso deixa claro em sua obra que “o mérito é a
matéria de fundo do Processo de Conhecimento e do Cautelar. No Processo de
Conhecimento é o próprio litígio, a lide que constitui seu objeto” (SANTOS, 2007, p.
163).
A exposição das proposições jurídico-científicas do processualista em análise
evidencia que o conceito de mérito processual adotado pelo processo civil brasileiro
está intrinsecamente vinculado à noção de lide e de matéria de fato e de direito que
integra as questões suscitadas pelas partes em juízo (autor e demandado). Deixa
claro em sua obra que o julgamento do mérito da lide deverá ocorrer nos limites
daquilo que as partes pediram expressamente em juízo, momento em que
novamente ratifica o entendimento de que o mérito limita-se às questões fáticas e
jurídicas alegadas pelas partes. O próprio conceito de sentença extra e ultra petita
demonstra que o mérito processual fica adstrito àquilo que a parte autora alegou na
exordial e que o demandado propôs em sua defesa. Oportunizar que outras pessoas
interessadas, além da parte autora e da parte demandada, possam, no curso do
processo civil (até a fase saneadora), apresentar alegações ou trazer questões
conexas, porém distintas, àquelas inicialmente alegadas e propostas na fase
postulatória, certamente acarretará a nulidade do provimento em razão da
concepção hermética de que o processo e a definição da matéria de mérito é uma
prerrogativa exclusiva das partes (autor e demandado) e do juiz. O que se propõe ao
longo de toda essa pesquisa é revisitar esse entendimento adotado pelo processo
civil brasileiro no que concerne à formação do mérito processual de maneira mais
ampla, a fim de oportunizar e garantir que todos os interessados sejam inseridos no
lócus processual da discursividade efetiva da pretensão deduzida em juízo.
O jurista Cássio Scarpinella Bueno alerta a comunidade jurídica, a partir das
colocações de José Frederico Marques, para a necessidade de compreensão do
101

processo civil sob a ótica e o enfoque da constitucionalidade democrática, motivo


esse que justifica a utilização, pelo autor em comento, da terminologia “modelo
constitucional do direito processual civil” (2008, p. 158-159). Certamente a releitura
do processo civil vigente a partir do paradigma proposto pela Constituição Federal
de 1988 causa reflexos diretos no entendimento critico do tema mérito processual.
O modelo de processo proposto pelo legislador constituinte supera e se opõe
àquele adotado pelo legislador do Código de Processo Civil brasileiro de 1973, haja
vista que Alfredo Buzaid instituiu no Brasil a concepção de processo através da qual
o juiz é o legitimado a conduzir solitariamente a marcha processual, exercendo a
jurisdição como uma atribuição inerente ao seu cargo, sem permitir qualquer
ingerência ou participação (direta ou indireta) das partes juridicamente interessadas
na construção do provimento final. Tal afirmação se justifica no sentido em que o
juiz, no ato de julgar, não fica adstrito necessariamente àquilo que as partes
alegaram e provaram ao longo do procedimento. Pelo principio do livre
convencimento motivado o julgador tem legitimidade e liberdade no ato de julgar,
podendo valorar provas e decidir conforme suas convicções, dispensando-se a
análise e o enfrentamento de todas as alegações fáticas e de todas as teses
jurídico-legais propostas pelas partes em juízo. Pela interpretação dogmática da
concepção de processo vigente no Brasil e adotada pelo Código de Processo Civil
brasileiro de 1973, não constitui violação dos princípios do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal o fato do julgador se eximir de enfrentar, de se
manifestar e de fundamentar todas as alegações e questões trazidas pelas partes
para o processo. O juiz tem o dever de julgar, apreciar e decidir de forma
fundamentada apenas aquelas questões consideradas por ele relevante no
julgamento do mérito processual.
A constitucionalização do processo civil brasileiro somente será viável, sob o
ponto de vista democrático, se houver uma profunda revisitação teórica do modelo
de processo civil vigente no Brasil, especificamente no que tange ao tratamento e
aos critérios utilizados como referenciais ao entendimento critico do mérito
processual e das questões de mérito.
A base teórica de todo processo constitucional encontra-se no principio
participativo, que em termos pragmáticos consiste no direito assegurado a todas as
partes interessadas juridicamente no provimento de poderem participar efetivamente
da sua construção, por meio da proposição e do direito de análise das questões ora
102

alegadas e trazidas nos autos. A participação no processo não se materializa


apenas no direito das partes poderem alegar todas as questões de mérito por ela
consideradas relevantes e conexas com a pretensão inicialmente deduzida em juízo.
O efetivo direito de participação no processo se materializa pelo direito de alegação
das partes e pelo dever do julgador apreciar e a se manifestar, de forma jurídico-
constitucionalmente fundamentada, acerca de cada questão de mérito levantada e
proposta pelas partes.
Os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal
são corolários do principio da participação no processo, haja vista que constitui
dever do julgador dar oportunidade a todos os interessados na pretensão
inicialmente deduzida de poderem trazer para o processo todas as questões de
mérito correlatas e conexas àquela inicialmente deduzida pela parte que propôs a
ação. Além disso, constitui dever do magistrado proporcionar o direito de todos os
interessados debaterem, de forma ampla e isonômica, todas as questões de mérito
ora suscitadas e trazidas para os autos por todos os sujeitos legitimamente
autorizados a participarem na formação do mérito processual.
O principio da obrigatoriedade de fundamentação jurídico-legal também é
considerado corolário do principio da participação no modelo de processo civil
constitucional, haja vista que cabe ao magistrado, no julgamento do mérito da
pretensão deduzida, enfrentar, analisar, se posicionar, discutir e apreciar todas as
questões de mérito decorrentes de alegações fáticas e jurídicas propostas e trazidas
aos autos pelas partes interessadas no provimento final. A omissão do magistrado
quanto à análise de qualquer questão de mérito proposta e levantada nos autos
pelas partes interessadas no provimento constitui verdadeiro cerceamento de
defesa, vedado pela constitucionalidade democrática brasileira.
O jurista Alexandre Freitas Câmara descreve muito bem o paradigma
autocrático adotado pelo processo civil brasileiro, que concentra nas mãos do
magistrado o poder de autorizar ou não a participação das partes no processo, além
de possuir e exercer o poder de conduzir unilateralmente toda a instrução
processual87. Esse modelo de processo vigente no Brasil causa reflexos diretos no

87
O juiz tem, no processo civil brasileiro, o poder de conduzir a instrução do processo. Tal poder (que
se desdobra em vários outros poderes menores, como o de determinar as provas que serão
produzidas, conduzir sua produção e valorar cada prova produzida, por exemplo),está descrito,
fundamentalmente, em dois dispositivos do Código de Processo Civil: os arts. 130 e 131 (CÂMARA,
2008, p. 30).
103

que tange ao entendimento do tema “mérito processual”, haja vista que o julgamento
de mérito passa a ser visto como uma prerrogativa exclusiva do magistrado e reflexo
do que o julgador considera ou não relevante na análise do caso concreto. A
legitimidade de conduzir a instrução processual confere ao juiz o poder de definir
quais questões de mérito são consideradas por ele relevantes para o caso concreto,
muitas vezes ignorando ou desconsiderando outras questões relevantes levantadas
ou suscitadas pelas partes interessadas ao longo do procedimento.
Quando o magistrado deixa de apreciar uma ou mais questão de mérito
alegada pelas partes, não se preocupando sequer em fundamentar sua recusa,
ocorre a negativa da jurisdição, que no Estado Democrático de Direito deve ser vista
como um direito assegurado a todos indistintamente de poder propor, debater e
argumentar em juízo todas as pretensões as quais são titulares. A negativa da
jurisdição materializa-se em diversas situações, tais como: a) a supressão do direito
das partes alegarem questões de mérito consideradas relevantes ao caso concreto e
a pretensão inicialmente deduzida em juízo, ou seja, pela negativa do magistrado
em não permitir que todas as partes juridicamente interessadas na pretensão
deduzida possam participar da definição das questões de mérito; b) a retirada do
direito das partes juridicamente interessadas debaterem amplamente as questões de
mérito levadas aos autos; c) a dispensa do magistrado em não ter o dever de se
posicionar e de fundamentar todas as questões de mérito trazidas aos autos pelas
partes interessadas, além de configurar verdadeira negativa de jurisdição, acarreta
às partes interessadas o cerceamento de defesa e o absoluto abandono do modelo
de processo preconizado pela Constituição Federal de 1988.
Por isso, pensar o processo civil sob a égide do constitucionalismo
democrático pressupõe inicialmente implementar, de forma efetiva, o principio da
participação, principio esse que deve ser visto como um meio legitimo de garantia de
formação participada do mérito mediante a proposição e o debate das questões de
mérito por todos os sujeitos juridicamente interessados na pretensão. Em sentido
absolutamente contrário a tal entendimento está o posicionamento do jurista
Alexandre Freitas Câmara, para quem o “processo, instrumento de realização da
jurisdição, é um microcosmo do Estado a que serve” (CÂMARA, 2008, p. 35). Na
seqüência do raciocínio, o autor em comento afirma que “é ponto pacífico que só há
democracia (e, portanto, Estado Democrático de Direito), onde haja legitimidade no
exercício do poder” (CAMARA, 2008, p. 35).
104

Pensar o Estado Democrático de Direito na perspectiva teórica que preconiza


a intrínseca relação existente entre poder e direito é certamente um equivoco, haja
vista que a própria noção processualizada de democracia trabalha os Direitos
Fundamentais sob a égide do principio da participação, ou seja, da legitimidade dos
interessados no provimento poderem ser inseridos no amplo debate critico e jurídico
das questões de mérito de delimitam o objeto da demanda.
Inicialmente pretende-se demonstrar que os autores brasileiros, em sua
grande maioria, reproduzem em suas obras o modelo de processo civil adotado e
proposto pelo legislador do Código de Processo Civil de 1973 que, conforme
exposto, traz um modelo de processo incompatível com a constitucionalidade
democrática, justamente por não viabilizar a ampla participação dos sujeitos
interessados na definição, na proposição e na ampla discursividade das questões de
mérito que delimitam o objeto da demanda, inviabilizando, por conseguinte, qualquer
tentativa no sentido de alcançar a formação participada do mérito processual.

2.9. A CONCEPÇÃO INDIVIDUALISTA DO MÉRITO PROCESSUAL NO CÓDIGO DE

PROCESSO CIVIL DE 1973

O delineamento de toda teoria geral do processo civil brasileiro decorre da


ideologização de que o processo é uma sucessão lógica de preclusões88, cuja
análise e enfrentamento do mérito da pretensão condiciona-se à observância e ao

88
O fenômeno da preclusão, estudado e sistematizado por Giuseppe Chiovenda, assume função
muito relevante no processo civil. A partir da classificação do mestre italiana, considerada sob os
aspectos temporal, lógico e consumativo, Antônio Alberto Alves Barbosa a definiu como o instituto
que impõe a irreversibilidade e a auto-responsabilidade no processo e que consiste na
impossibilidade da prática de atos processuais fora do momento e da forma adequados,
contrariamente à lógica, ou quando já tenham sido praticados válida ou invalidamente. A preclusão,
assim, garante ordem, coerência e direcionamento aos atos processuais, impedindo avanços e
recuos que tumultuem a seqüência das fases procedimentais. É o impulso que movimento o
encadeamento dos atos processuais e assegura celeridade na resolução dos conflitos. Incide tanto
em relação às faculdades e ônus processuais das partes como em relação às questões decididas
pelo juiz (CPC, art. 471). Há, ainda, a preclusão pro iudicato, que produz efeitos externos ao processo
(LUCON; GABBAY, 2007, p.83).
105

preenchimento dos requisitos legais extrínsecos e que tangenciam a noção de


mérito processual (condições da ação e pressupostos processuais89).
O mérito processual decorre de uma construção de natureza individual que
perpassa pelas alegações fáticas e jurídicas apresentadas pelo demandante na
petição inicial e pelo demandado na defesa. Verifica-se que a construção do mérito
no processo civil depende da atuação das partes que se encontram em juízo,
especificamente da atuação do demandante e do demandado, que se legitimam na
delimitação da matéria de mérito até o momento processual do despacho saneador,
que é quando o magistrado unilateralmente aprecia as suas alegações e define qual
das questões postas comporá a matéria de mérito a ser discutida em juízo.
No processo civil a participação do demandante e do demandado na
construção do mérito processual é indireta, tendo em vista que não possuem a
garantia de que todas as questões postas em juízo comporão a matéria de mérito
que delimitará os contornos jurídicos da pretensão e da decisão a ser proferida. Será
o magistrado o legitimado a definir as questões alegadas pelas partes e que
considera relevantes para integrar a matéria de mérito. Não é possível vislumbrar a
possibilidade de construção participada do mérito processual no direito processual
civil vigente, tendo em vista que a atuação do magistrado exclui qualquer forma de
participação direta das partes interessadas na construção do mérito processual, haja
vista que a delimitação da matéria e das questões que comporão o mérito é uma
prerrogativa inerente ao conceito de jurisdição, considerada o poder-dever do
Estado Juiz de dizer o direito mais adequado ao caso concreto. È nesse sentido que
se manifesta Ernane Fidélis dos Santos

Estabelecidas, assim, as finalidades específicas do Estado, no exercício da


jurisdição, podemos defini-la como o poder-0dever do Estado de compor os
litígios, de dar efetivação ao que já se considera direito, devidamente
acertado, e de prestar cautela aos processos em andamento ou a se
instaurarem, para que não percam sua finalidade prática (2007, p. 09).

89
As matérias de processo e de ação, na lei brasileiro, quando ausentes, levam a resultados diversos,
pois a matéria de processo, se ausente e inconvalidável em qualquer um de seus aspectos, provoca a
extinção do processo, enquanto a matéria de ação, em igual circunstância, enseja a carência da ação
com extinção do processo. O certo é que, quando o juiz aprecia o mérito, porque presentes os
elementos formativos ou funcionais do procedimento, fala-se que a sentença que julgou o pedido é de
procedência ou improcedência (sentença de mérito) e, se transitada em julgado, é sentença.
definitiva, enquanto a sentença transitada que só julgou matéria de processo e (ou) matéria de ação
é sentença terminativa – extingue o processo ou profere a carência da ação e extingue o processo.
(LEAL, 2009, p. 136) (grifo nosso)
106

Verifica-se, na citação acima mencionada, a intrínseca relação estabelecida


entre jurisdição, lide e mérito processual. A fundamentação teórica de origem
romano-germânica do processo civil brasileiro parte da pressuposição de que a
matéria de mérito a ser apreciada pelo julgador decorre de uma relação jurídica
litigiosa entre as partes. É por isso que temos a dificuldade de identificar a matéria
de mérito nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária, haja vista a ausência
de questões litigiosas entre as partes a ensejar a definição da controvérsia suficiente
ao entendimento e a visualização da matéria de mérito no âmbito processual.
O despacho saneador90 é o marco processual para o levantamento e a
definição da matéria e das questões que integrarão o mérito da demanda, assim
como a oportunidade que o julgador terá de analisar a existência de eventuais vícios
processuais que venham a comprometer a validade jurídica da fase instrutória. É
nesse momento processual que o magistrado analisará as preliminares, a existência
de eventuais questões de ordem publica de oficio ou que foram suscitadas pelas
partes e que poderão comprometer a análise do mérito da pretensão. “A atividade
saneadora do juiz é constante no processo91. A qualquer momento, inclusive no
despacho inicial, deve o juiz conhecer de matéria referente aos pressupostos
processuais e às condições da ação” (SANTOS, 2007, p. 492).
O despacho saneador é uma realidade no processo civil brasileiro desde a
vigência do Código de Processo Civil de 193992, contexto histórico em que foi
elaborada a súmula 424 do STF: “transita em julgado o despacho saneador de que
não houve recurso, excluídas as questões deixadas, explícita ou implicitamente,
para a sentença” (ALVIM, 2007, p. 423). A respectiva súmula foi revogada pelo fato
90
Um dos institutos que mais sofreu com a reforma do Código de Processo Civil foi o do despacho
saneador, hoje designado saneamento do processo. No sistema antigo, o despacho saneador,
disciplinado no art. 294 do CPC/39, prestava-se, em profundidade, para sanear o processo, para
regularizá-lo, para escoimá-lo dos vícios que o maculam. Era a oportunidade adequada para que o
juiz pronunciasse as nulidades insanáveis e mandasse suprir as sanáveis, para que verificasse a
presença das condições da ação, bem como designasse a audiência de instrução e julgamento e
deferisse o pedido para a realização de provas (ALVIM, 2007, p. 424).
91
Como a atividade saneadora é constante no processo, cumpridas as providências preliminares ou
sendo elas indispensáveis, pode o juiz decretar a extinção do processo sem julgamento do mérito,
desde que ocorra qualquer das hipóteses previstas no art. 267 (SANTOS, 2007, p. 493)_
92
No saneamento, a exemplo do que já ocorria com o antigo despacho saneador constante do
Código de Processo Civil de 1939, são fixados, de pronto – não mais, como antes da reforma
empreendida em dezembro de 1994, somente no inicio da audiência (art. 451) –, os pontos
controvertidos, decididas as questões processuais pendentes e determinadas as provas a serem
produzidas, às luz das que foram requeridas pelo autor na inicial e pelo réu com a contestação e
reconvenção, se oposta, e que o juiz entender necessárias e relevantes para o julgamento da causa.
(ALVIM, 2007, p. 421-422).
107

do Código de Processo Civil brasileiro de 1973 estabelecer que o trânsito em julgado


é inerente às decisões finais de mérito, o que não inclui os despachos de mero
expediente, bem como pelo fato de não se poder admitir a preclusão de matéria de
ordem pública (condições da ação e pressupostos processuais).
Antes de fixar os pontos controvertidos da demanda a ensejar e a nortear a
fase instrutória e decisória o julgador deverá conhecer e analisar detalhadamente a
possível existência de matéria de ordem pública que venha a inviabilizar a análise do
mérito processual. Considera-se de ordem pública “a matéria que não se sujeita à
preclusão, porque interessa diretamente ao exercício da função jurisdicional e não
às partes, podendo o seu reconhecimento dar-se até mesmo de ofício (art. 267, §3º)”
(SANTOS, 2007, p. 492).
Sanear o processo93 é o momento processual em que o juiz declara inexistir
quaisquer irregularidades ou nulidades que venham a comprometer a apreciação do
mérito. “Por pontos controvertidos devemos entender as alegações fáticas e jurídicas
sustentadas por uma das partes e negadas pela parte contrária” (MONTENEGRO
FILHO, 2011, p. 408). É importante ressaltar que a fixação dos pontos controvertidos
é uma prerrogativa exclusiva do magistrado94 a partir do que o autor alegou na inicial
e o demandado sustentou em sua defesa. A fase de saneamento do processo é
posterior a não resolução consensual da pretensão na audiência preliminar.
“Frustrada que venha a ser, porventura, a tentativa de conciliação, o juiz fixará os
pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará
provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se
necessário” (MOREIRA, 2007, p. 98). Nesse contexto do debate jurídico é relevante
mencionar o posicionamento de Cássio Scarpinella Bueno

A fixação dos “pontos controvertidos” (questões) e a determinação da


prova que lhe é correlata é providência que otimiza, em todos os sentidos,

93
O saneamento é a ocasião em que o juiz resolve as questões processuais pendentes
(pressupostos processuais e condições da ação) e determina as provas a serem produzidas,
designando audiência de instrução e julgamento, se necessário (Cód. Proc. Civil, art. 331, §2º).
Nesse momento, são fixados os pontos controvertidos objeto de comprovação. Como referido ato de
fixação é meramente auxiliar do desenvolvimento da instrução, o juiz pode revê-lo no curso desta. Daí
ser desprovido de conteúdo decisório, tendo natureza ordinatória. Já o saneamento, propriamente
dito, tem caráter decisório, recaindo sobre as questões processuais, alegadas ou não, e sobre as
provas requeridas pelas partes (SANTOS, 2008, p. 276).
94
O magistrado, quando fixa os pontos controvertidos, limita a instrução probatória, apenas
permitindo sejam feitas indagações às partes e às testemunhas, no momento da realização da
audiência de instrução e julgamento, se coincidentes com os pontos fixados anteriormente
(MONTENEGRO FILHO, 2011, p. 408).
108

a fase instrutória e que por isso não pode ser apequenada. O sucesso, a
bem da verdade, daquela nova fase do procedimento depende desta prévia
fixação com vistas a realizar adequada e suficientemente o princípio da
economia e da eficiência processuais (BUENO, 2007, p.230).

O despacho saneador é a demonstração mais clara de que o processo civil


brasileiro se estrutura a partir de uma sistemática jurídica de uma sucessão lógica de
preclusões, em que o magistrado é o sujeito legitimado para delimitar solitariamente
a matéria de mérito e os pontos controvertidos da demanda a partir do que as partes
alegaram. É nesse sentido que se faz necessária a revisitação do despacho
saneador sob a ótica da processualidade democrática preconizada pela Constituição
brasileira de 1988, visto que tal momento processual não deve materializar apenas a
oportunidade do julgador delimitar a matéria de mérito a ser apreciada em juízo. Por
isso Luiz Rodrigues Wambier afirma

A fixação dos pontos controvertidos é de grande importância, pois delimita


a atividade probatória das partes. Se isso ocorrer de modo a que as partes,
por seus procuradores, dessa atividade participem ativamente, muito
provavelmente da decisão de saneamento não haverá a interposição de
recurso de agravo (WAMBIER, 2008, p. 526).

O saneamento do processo95 não deverá se limitar a um despacho


unilateralmente proferido por um julgador solitário, mas sim materializar a
oportunidade que todas as partes juridicamente interessadas na pretensão terá,
conjuntamente com o julgador, de analisar e delimitar as questões que integrarão a
matéria de mérito da demanda. A revisitação do saneamento do processo sob a

95
Duas grandes modificações implantou o Código de Processo Civil em relação ao estatuto de 14939,
quanto ao antigo despacho saneador. A primeira delas reside no sentido bem mais restrito que tem a
expressão “saneamento do processo” hoje, do que a de que vinha carregado o “despacho saneador”
de antigamente. No regime antigo, a atividade do juiz na “fase saneadora”, ou “fase do despacho
saneador”, realizava, conforme o caso, três tarefas distintas: a) declarava regular o processo e
presentes as condições da ação, dispondo sobre provas e designando dia e hora para a audiência de
instrução e julgamento; b) determinava a regularização do processo, quando existente alguma
nulidade sanável; c) punha fim a ele desde logo, sem julgar-lhe o mérito, quando não tivesse
condições de prosseguir (tudo isso nos termos dos arts. 294-296 do velho Código). No Código
vigente, o “saneamento do processo” significa bem menos. Após a resposta do réu, virão as
providências preliminares (arts. 323-328) e depois delas, o julgamento conforme o estado do
processo (arts. 329-331). Consistirão aquelas, conforme o caso, em: a) mandar que o autor
especifique provas (arts. 324); b) ouvir o autor, em dez dias, sobre fatos novos alegados pelo réu (art.
326) ou sobre qualquer defesa preliminar (art. 327). E consiste o julgamento conforme o estado do
processo em: a) extinção deste (art. 329); b) julgamento antecipado da lide (art. 330); c) saneamento
do processo (DINAMARCO, 1987, p. 169-170).
109

perspectiva discursivo-participativa se faz necessária para o entendimento critico-


constitucionalizado-democrático do mérito processual construído diretamente por
todos aqueles que demonstram interesse jurídico na pretensão deduzida.
Todo o debate proposto acerca da audiência preliminar e do saneamento
processual visa demonstrar que no processo civil brasileiro o entendimento
prevalente acerca do mérito da demanda é aquele cuja definição das questões de
mérito, assim como a construção e a apreciação do mérito processual decorrerá
essencialmente da autoridade do julgador.
A participação de qualquer parte juridicamente interessada na discussão e na
construção do mérito no processo civil brasileiro condiciona-se à anuência do
julgador, uma vez que é o juiz quem analisa a existência dos requisitos formais e
indispensáveis a análise do mérito, assim como é quem define unilateralmente as
questões consideradas por ele relevantes a integrar a matéria de mérito. Significa
dizer que o julgador não fica vinculado e tampouco obrigado a aderir ou a apreciar
as questões levantadas pelas partes quando considerá-las irrelevante ao caso
concreto.
No momento em que o processo civil brasileiro vigente legitima o direito do
julgador definir solitariamente as questões que comporão a matéria de mérito
certamente não garantirá a participação dos interessados no processo. Além disso,
tal entendimento jurídico legitimará a afronta aos princípios constitucionais do
processo, especificamente a violação do principio do contraditório (limitação ou
supressão do direito da parte interessada argumentar juridicamente e faticamente a
pretensão deduzida em juízo) e do principio da ampla defesa (retirada do direito das
partes interessadas participarem do debate referente as provas consideradas
relevantes ao caso concreto, tendo em vista que a decisão acerca das provas que
poderão ser produzidas partirá da autoridade do julgador).
A concepção vigorante acerca do mérito no processo civil brasileiro decorre
de proposições teóricas que preconizam o processo como um recinto de prevalência
da autoridade do julgador (tal como ocorre no processo coletivo 96), em que a

96
Para a Escola Paulista de Processo o magistrado exercerá sua autoridade de julgador tanto no
âmbito do processo civil quanto no contexto do processo coletivo. Nesse sentido se posiciona Paulo
Henrique dos Santos Lucon: [...] o juiz assume funções de direcionamento e gerenciamento
importantes no Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. As preclusões, que não
deixaram de existir, são apenas atenuadas, notadamente no que se refere à fixação do objeto litigioso
do processo, submetido à interpretação extensiva do juiz, nos limites da necessidade de proteção do
110

realidade vigorante consiste na exclusão de qualquer participação das partes


juridicamente interessadas na construção do provimento.
Certamente as proposições teóricas trazidas pelo direito processual civil
vigente causam reflexos diretos no entendimento do mérito no processo coletivo, tal
como trabalhado e desenvolvido pela Escola Paulista de Processo.
A sistematização do processo coletivo no Brasil decorre das premissas
trabalhadas pela Teoria Geral do Processo desenvolvida em bases privatísticas e
individualistas, o que leva alguns estudiosos a defender a existência do direito
processual civil individual e o do direito processual civil coletivo 97. Trata-se de uma
concepção de processo coletivo enraizada ainda na vertente civilista. Por isso, não
se pode afirmar efetivamente a existência de uma autonomia do direito processual
coletivo98, tal como proposto pela Escola Paulista de Processo, tendo em vista que o
respectivo ramo da ciência jurídica desenvolve-se a partir da concepção unitarista de
processo, cuja ideologia central é o processo civil. Pensar o processo coletivo a
partir do processo individual é não admitir a existência de um modelo de processo
coletivo democrático, pelo fato de limitar substancialmente a participação dos
interessados na construção do provimento.
A crítica que aqui se faz acerca do posicionamento da Escola Paulista quanto
à autonomia cientifica do processo coletivo99 justifica-se no fato desse ramo do
direito processual se desenvolver a partir do sujeito, ou seja, a concepção de
processo coletivo adotada hoje no Brasil foi construída com base no sistema
representativo. Entende-se que a efetiva autonomia do processo coletivo no Estado
Democrático de Direito perpassa pelo seu entendimento a partir do objeto, ou seja,
do sistema participativo (cidadania) adotado como fundamento da Republica

bem jurídico coletivo subjacente, considerando a relevância do contraditório, como dinamizador da


relação processual, ao permear todo o procedimento. (LUCON; GABBAY, 2007, p. 87)
97
Já tivemos a oportunidade de sistematizar, em dissertação de mestrado defendida em junho de
2000 e depois publicada em 2003, que o direito processual coletivo é, no Brasil, um novo ramo do
direito processual. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery também defendem a idéia de
existência de um direito processual civil individual e de um direito processual civil coletivo (ALMEIDA,
2007, p. 55-56)
98
Em edição recente (2005), Ada Pelegrini Grinover, Antônio Carlos de Araújo e Cintra e Cândido
Rangel Dinamarco passaram a sustentar, na clássica obra Teoria Geral do Processo, que, sendo
caracterizado por princípios e institutos próprios, o direito processual coletivo pode ser separado,
como disciplina processual autônoma, do direito processual individual (ALMEIDA, 2007, p. 56).
99
Aplicam-se-lhes todos os princípios gerais do direito processual, mas, além desses, tem ele
princípios próprios ou, ao menos, em relação a ele os princípios gerais devem passar por uma
releitura e revalorização. Assim, por exemplo, a interpretação das normas sempre em benefício do
grupo (quanto à legitimidade ad causam e os poderes do juiz etc.), a atenuação do principio
dispositivo e do principio da estabilização da demanda, um novo conceito de indisponibilidade
objetiva e subjetiva, uma maior liberdade das formas (GRINOVER apud ALMEIDA, 2007, p. 56)
111

Federativa do Brasil, conforme preconizado pela Teoria das Ações Coletivas como
Ações Temáticas.
Todo esse debate científico ora desenvolvido reflete diretamente na noção de
mérito no processo coletivo vigente, cuja construção e compreensão advém do
debate instaurado apenas entre os sujeitos legitimados a propositura das ações
coletivas juntamente com o julgador e o Ministério Público.
É evidente a exclusão de participação de todos os sujeitos juridicamente
interessados no provimento. No Brasil o modelo de processo coletivo vigente
estrutura-se na ideologia do sistema representativo, que se funda na pressuposição
de escolha, pelo legislador, de todos aqueles sujeitos e instituições considerados
preparados e legitimados à propositura das ações coletivas. Não é possível, assim,
vislumbrar o exercício da cidadania a partir do modelo de processo coletivo adotado
atualmente no Brasil.
A elaboração de uma Teoria Geral do Processo Coletivo construída a partir do
modelo de processo constitucional no Estado Democrático de Direito se faz
necessária com a finalidade de vislumbrar a superação dos reflexos das teorias
civilistas no entendimento do processo coletivo. A compreensão unitária 100 do direito
processual torna-se inviável em virtude das evidentes distinções existentes entre os
mais diversos ramos do processo, especificamente o processo coletivo, cujo objeto
e todas as discussões processuais não versam sobre interesses de cunho
essencialmente individual.
A autonomia cientifica do processo coletivo pressupõe a sistematização de
uma teoria geral construída a partir do sistema participativo, que oportuniza
amplamente a possibilidade de participação de todos os sujeitos juridicamente
interessados na construção do mérito processual. Tal sistematização teórica
justifica-se pelo fato do processo coletivo democrático ser visto como uma instituição
que garante a inclusão (não a exclusão) de todos os interessados no debate fático e
jurídico de todas as questões relevantes à construção do provimento. Em
contrapartida, pode-se afirmar que o processo civil brasileiro vigente não adota um
sistema que viabiliza a participação de todos os interessados na construção do
provimento, haja vista que a autoridade exercida pelo julgador quase sempre
representa um sistema de exclusão de participação das partes no processo.

100
Modernamente a ciência do direito processual tem recebido uma inspiração unificadora. Após
séculos de tratamento distinto, o direito processual civil e o direito processual penal
112

2.10. MÉRITO PROCESSUAL , DIREITO DE AÇÃO E ACESSO À JUSTIÇA.

A significação da expressão acesso à justiça101 tem caráter polissêmico,


relativo102 e conotação decorrente de uma concepção autoritária de processo, em
que o julgador é legitimado a decidir solitariamente103 e também a apreciar o mérito
processual a partir de análises jurídicas e metajuridicas da demanda levada pelas
partes ao Judiciário.
É de extrema relevância jurídica a revisitação teórica da relação existente
entre mérito processual, direito de ação e acesso à justiça (acesso à jurisdição é
uma expressão mais adequada e compatível com o modelo constitucional de
processo proposto pelo paradigma democrático adotado na Constituição brasileira
vigente).
Na acepção democrática proposta pela Constituição brasileira de 1988 a ação
é uma palavra “integrante da expressão jurídica direito-de-ação, destinada a
significar direito constitucionalizado incondicional de movimentar a jurisdição” (LEAL,
2009, p. 129).
Dos romanos herdamos a concepção privatística da ação intrinsecamente
vinculada à noção de direito, ou seja, é a partir desse contexto teórico que se pode
delinear a proposição da Teoria Imanentista104, para a qual o direito material era
imanente ao exercício da ação, conforme preconizado no artigo 75 do Código Civil
101 Evitaremos aqui a expressão equívoca de “acesso à justiça”, porque, como já esclarecemos, a
palavra justiça, quando assim posta nos compêndios de direito pode assumir significados vários que,
a nosso ver, perturbam a unidade semântica e seriedade científica do texto expositivo (LEAL, 2009, p.
68).
102
Para Chaim Perelmann a relatividade no entendimento e na compreensão do que seja a Justiça se
justifica no sentido de que não se pode convencer qualquer pessoa de que “determinada concepção
de justiça é a única boa, a única que corresponde ao ideal de justiça perseguido pelo coração dos
homens, sendo todas as outras apenas embustes, representações insuficientes que fornecem da
justiça uma imagem falsa e servem de uma justiça apenas aparente que abusa da palavra justiça
para fazer que se admitam concepções real e profundamente injustas” (BEZERRA, 2001, p. 147).
103 O juiz precisa estar perenemente lembrado de seu solene e patético compromisso com a justiça.

Deve revelar essa consciência ao longo do processo e de sua instrução e depois, ao sentenciar, no
modo como encara a prova e seus resultados, como interpreta os fatos diante do direito e os textos
legais diante do objeto do processo em julgamento (DINAMARCO, 1988, p. 118).
104
[...] Assim, para essa escola, o direito material (bem da vida jurídica) era imanente à ação para
exercê-lo, o que queria dizer que ação e direito surgiam de modo geminado, não sendo possível
separa-los. Percebe-se claramente que a palavra ação, nessa corrente histórica, tinha significado, ao
mesmo tempo, de direito de movimentar a jurisdição e direito ao procedimento de modo
inerente e sincrônico ao direito material instituído. Há, portanto, aderência do procedimento ao direito
criado, formando uma só e única figura jurídica (LEAL, 2009, p. 130).(grifo nosso).
113

brasileiro de 1916: “a todo direito corresponde uma ação que o assegura” (SANTOS,
2007, p. 48). Depreende-se a ínsita relação existente entre o mérito processual e o
direito de ação na perspectiva imanentista, haja vista que a noção de mérito decorria
diretamente do direito material e da matéria fática que permeava o conceito de
demanda levada ao Judiciário.
A autonomia do direito de ação frente ao direito material irrompeu-se com a
polêmica de Windscheid e Muther, para os quais a ação era respectivamente um
direito exercido em desfavor dos interesses jurídicos do réu ou um direito à
prestação jurisdicional. Adolph Wach lançou as bases do concretismo, teoria na qual
a ação passou a ser vista como um direito a uma sentença favorável ao autor (LEAL,
2009, p. 131). “Para Wach, a ação seria direito público, dirigido contra o Estado,
perante o réu, objetivando a prestação jurisdicional, mas autônomo por excelência”
(SANTOS, 2007, p. 48).
Degenkolb e Plosz delinearam a acepção abstrata da ação, agora
compreendida “como um direito incondicionado de movimentar a jurisdição, pouco
importando o reconhecimento do direito material alegado” (LEAL, 2009, p. 131). A
efetivação da autonomia do direito material com relação ao exercício do direito de
ação ocorreu com a superação do concretismo. A concepção de mérito processual
que se pode abstrair desse contexto não se vinculava ao reconhecimento, pelo juiz,
dos pedidos do autor, tal como preconizado pelo concretismo, visto que o mérito
processual decorria da oportunidade que o juiz tinha de analisar as questões fáticas
e jurídicas trazidas pelas partes, independentemente do acolhimento do pedido da
parte autora.
No inicio do século XX Chiovenda sistematizou a teoria da ação como um
direito potestativo, cujo exercício, pelo autor, materializava-se no poder de exigir do
réu um bem da vida perante o Judiciário. Seguindo o mesmo raciocínio inicialmente
proposto por Chiovenda, Carnelutti e Liebman sistematizaram o exercício do direito
de ação a partir da observância prévia das condições da ação e dos pressupostos
processuais, vistos juridicamente como matéria processual pré-meritória, ou seja,
que antecede a compreensão e a análise da matéria de mérito, considerada um
conceito diretamente relacionado com a matéria de fato e as questões de direito que
delineiam o entendimento da demanda judicial.
A compreensão da ideologia do acesso à justiça não pode se limitar ao
entendimento atinente ao direito de estar em juízo, ao direito de reconhecimento
114

jurídico da pretensão ou ao direito a uma prestação jurisdicional em que o juiz


poderá ou não enfrentar o mérito da pretensão deduzida. É preciso reconstruir o
entendimento clássico, dogmático e positivista do acesso à justiça105 como o direito
a uma ordem jurídica justa, cuja justiça se efetiva a partir da visão unilateral do juiz
acerca do caso concreto. A revisitação dessa concepção filosófica de justiça106
decorrente do poder jurisdicional e da autoridade do juiz se faz necessária para a
resignificação do entendimento do tema a partir de proposições teóricas decorrentes
de um direito construído em bases democráticas. O acesso ao Judiciário deve ser
visto como um Direito Fundamental de participação efetiva no debate jurídico
construído em bases processuais em que os sujeitos juridicamente interessados
sintam-se co-autores do provimento. Nesse ínterim, sabe-se que a compreensão do
acesso à justiça como um Direito Fundamental é o fundamento teórico para viabilizar
a cidadania como pilar da participação dos interessados no processo.
É necessário esclarecer inicialmente que o acesso ao Judiciário, conforme
previsão expressa do artigo 5. Inciso XXXV da Constituição brasileira de 1988
(principio da inafastabilidade do controle jurisdicional), consiste no direito das partes
juridicamente interessadas participarem de forma direta da construção do mérito da
demanda. O acesso ao Judiciário no Estado Democrático de Direito materializa-se
pela implementação do debate da pretensão, pelas partes, no espaço processual, e
poderem construir efetivamente o mérito. É nesse sentido que se posiciona Ada
Pelegrini Grinover, representante da Escola Paulista de Processo:

Por outro lado, no enfoque atual, a questão do acesso à justiça se insere


num quadro participativo. A participação popular na administração da
justiça e a participação popular mediante a justiça são duas facetas pelas
quais se concretiza no processo a moderna democracia participativa [...]
Por sua vez, a participação mediante a justiça significa a própria utilização
do instrumento processo como veiculo de participação democrática.

105
Essa visão de acesso à justiça não representa apenas o acesso ao Judiciário, mas o acesso a
todo meio legítimo de proteção e efetivação do Direito, tais como o Ministério Público, a Arbitragem, a
Defensoria Pública etc. Até no plano jurisdicional, o direito de acesso à justiça não é só o direito de
ingresso ou o direito à observância dos princípios constitucionais do processo, mas também o Direito
constitucional fundamental de obtenção de um resultado adequado da prestação jurisdicional (art. 5º,
XXXV, da CF). A decisão que se projeta para fora, atingindo as pessoas, como resultado da
prestação jurisdicional, deverá ser constitucionalmente adequada e justa (ALMEIDA, 2010, p. 171).
106
[...] a Justiça Constitucional tem sido chamada a agir em benefício da realização efetiva dos
direitos sociais contidos na Constituição, e muitas vezes, também tem sido conclamada a exercer
função normativa ou normogenética, o que vem sendo admitido na literatura mais especializada (cf.
AGRA, 2005: 235); interventiva e ativista, repercute na própria atuação e construção de prioridades
pelo Estado prestacional. Certas Constituições, em determinados âmbitos ou tópicos específicos e
por meio da previsão de certos institutos inovadores, reforçam ou conferem suporte a essa leitura da
Justiça Constitucional substantiva (TAVARES, 2010, p. 13).
115

Concretiza-se ela, exatamente, pela efetiva prestação da assistência


judiciária e pelos esquemas da legitimação para agir. Desse modo que a
questão do acesso à ordem jurídica justa, no plano processual, se insere
no quadro da democracia participativa, por intermédio da participação
popular pelo processo (GRINOVER, 1996, p. 116).

Importante esclarecer que a construção da doutrina do acesso à justiça pela


Escola Paulista de Processo é produto da ideologização da ordem jurídica justa em
que o julgador é aquela pessoa legitimada a resguardar a justiça entre as partes,
mediante a utilização de argumentações jurídicas e metajuridicas. Não é essa a
leitura proposta no presente trabalho acerca do tema acesso à justiça. Busca-se,
com a presente pesquisa, a análise critica do acesso ao Judiciário como um Direito
Fundamental do cidadão debater juridicamente de forma ampla a pretensão e o
mérito processual da demanda. A participação do julgador no debate isonômico e
jurídico da pretensão constitui corolário da legitimidade democrática do provimento.
A proposta do legislador constituinte no artigo 5, inciso XXXV foi redesenhar o
acesso à justiça (acesso ao Judiciário) a partir da superação do entendimento
autoritário da ação como um direito cujo exercício fica adstrito à observância das
condições da ação107 e dos pressupostos processuais, tal como trabalhado por
Bulow, Chiovenda, Carnelutti e Liebman, o mesmo entendimento adotado pelo
Código de Processo Civil de 1973 (e também como se observa na ideologia
dominante do Novo Código de Processo Civil). O acesso ao Judiciário deve ser visto
como um Direito Fundamental corolário da cidadania, considerada fundamento do
Estado Democrático de Direito108. Importante ressaltar que a cidadania, nessa
perspectiva, deve ser vista como um direito de participação no processo e, por
conseguinte, de participação na construção e no debate do mérito processual.
Nesse sentido, ressalta-se o entendimento do jurista Vicente de Paula Maciel Junior:

Quando o texto constitucional diz que a lei não excluirá da apreciação do


poder judiciário “lesão” ou “ameaça a direito”, surge naturalmente a

107
O estabelecimento de condições para a ação, em face do modelo constitucional que amplia o
acesso à Justiça, constitui um óbice à apreciação da lesão e da ameaça a direito, ofendendo o Texto
Constitucional (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 168).
108
Inspirando-nos nas doutrinas até aqui colacionadas e levando em conta o principio da Supremacia
da Constituição, do qual emerge a garantia fundamental do devido processo constitucional,
entendemos que, em sentido jurídico amplo, ação, espécie do gênero direito constitucional de
petição, é direito assegurado a qualquer pessoa (natural ou jurídica, de direito público ou de direito
privado), exercido contra o Estado, consistindo em lhe exigir seja prestada a jurisdição, tendo por
base a instauração de um processo legal e previamente organizado segundo o devido processo
constitucional, no qual postulará decisão sobre uma pretensão de direito material (Constituição
Federal, art. 5º, inciso XXXIV, alínea a, e incisos XXXV, LIV e LV) (DIAS, 2010, p. 82).
116

indagação se a norma infraconstitucional poderia criar condições para o


exercício da ação ou pressupostos processuais.
A garantia constitucional parece ter evoluído no sentido de superar o
formalismo e as contradições do sistema dualista do direito subjetivo e da
relação jurídica processual.
Tanto no tema da ação quanto no processo, a opção do legislador foi a de
garantir o acesso a um pronunciamento judicial sobre o mérito.
Portanto, o estabelecimento de condicionantes para a ação nesses
sistemas estaria superado.
A ação é meio e não fim. Sendo meio, não poderia ser obstáculo ao fim, que
é a apreciação dos interesses em conflito, onde se afirmam lesões ou
ameaças a direito.
A lei processual, diante do imperativo constitucional, não poderia
estabelecer condicionantes à ação.
A única condição existente para o acesso à Justiça, segundo esse modelo
constitucional, é a afirmação perante o Poder Judiciário da existência de
lesão ou ameaça a direito.
Ou seja, todo cidadão brasileiro tem direito a uma decisão “sobre o
mérito”, para verificar a ocorrência ou não de uma lesão ou uma ameaça a
um direito (2006, p. 163-164). (grifo nosso)

Ao contrário do que preconiza o legislador do Código de Processo Civil de


1973 (para o qual a ação é vista como um direito a uma prestação jurisdicional cujo
exercício fica condicionado aos requisitos propostos pelas condições da ação e
pelos pressupostos processuais), a leitura critica que se pode fazer das proposições
teóricas trazidas pelo legislador constituinte é que o acesso democrático ao
Judiciário decorre da oportunização das partes participarem isonomicamente das
discussões da demanda (pretensão deduzida) no espaço processual, bem como da
possibilidade de se efetivar Direitos Fundamentais a partir da revisitação do instituto
do mérito processual. A relação existente entre direito de ação e acesso ao
Judiciário encontra-se diretamente vinculada ao estudo do mérito109, tendo em vista
que a democratização do acesso ao Judiciário viabiliza o exercício da cidadania no
momento em que é assegurado a todos os jurisdicionados o direito de participar
efetivamente da construção do mérito processual.

109
A ação, principalmente nos modelos constitucionais que asseguram o livre acesso à Justiça não
deve ter condicionantes, mas sim evolui para um sistema que estabeleça responsabilidades
decorrentes dos atos abusivos e ilícitos oriundos dos excessos no uso do direito de ação. Saber se
há ou não legitimação para agir é questão que envolve o julgamento a luz de provas dos autos e da
verificação ou não se o interesse afirmado pela parte corresponde a um direito que o autor invoca
para si. Dizer que a parte não é legítima significa o mesmo que afirmar a inexistência do direito em
face do interesse manifestado pela parte. Saber se alguém é parte para invocar a aplicação da lei a
um interesse manifestado é questão que envolve o próprio mérito da demanda e conduz a
procedência ou a improcedência do pedido. Se alguém não é reconhecido pelo processo judicial
como o titular de um interesse manifestado não terá por conseqüência o objeto de sua pretensão. O
pedido será improcedente. É improcedente porque, após o processo, restou comprovado que o direito
objetivo invocado pela parte não corresponde ou pode ser aplicado à situação jurídica relatada. A
manifestação do interesse da parte não encontra suporte normativo (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 164-
165).
117

Importante esclarecer que nos estados liberais burgueses a noção que se


tinha sobre o acesso à justiça110 encontrava-se vinculada ao direito natural, ou seja,
considerando-se que tais direitos eram anteriores ao Estado, ressalta-se que era
dever do próprio Estado não permitir que tais direitos fossem infringidos por outros.
A ideologia liberal vigorante não tinha o foco voltado para garantir o acesso à justiça
aos pobres111 e aos mais necessitados, tendo em vista que o conceito de igualdade
formal viabilizava apenas o acesso formal à justiça, o que nos leva a concluir, pelo
menos imediatamente, que no período liberal não se vislumbrava o amplo acesso à
justiça (CAPPELLETTI, 2002, p. 9). “Fatores como diferenças entre os litigantes em
potencial no acesso prático ao sistema, ou a disponibilidade de recursos para
enfrentar o litígio, não eram sequer percebidos como problema” (CAPPELLETTI,
2002, p. 10).
A busca pela proteção jurídica dos direitos coletivos decorrente da superação
do individualismo liberal vigente até o final do século XIX foi suficiente para emergir
as bases do Estado Social, a partir do qual o acesso à justiça passa a ser encarado
como o mais básico dos direitos humanos, cujo propósito é assegurar igualdade

110
É muito importante apresentar o entendimento do jurista Gregório Assagra de Almeida acerca da
temática “acesso à justiça” no contexto da instrumentalidade do processo e pautado na perspectiva
de Mauro Cappelletti: “[...] Nesta fase instrumentalista do direito processual, é que se desenvolveram
as denominadas ondas renovatórias do acesso à justiça. A primeira onda renovatória do acesso à
justiça é conhecida como gratuidade da justiça aos pobres; esse primeiro movimento pelo acesso à
justiça não foi suficiente, especialmente por tratar o pobre como individuo e esquecer-se da
coletividade (direitos massificados). A segunda onda renovatória do acesso à justiça, que aqui nos
interessa particularmente, é conhecida como representação em juízo dos interesses difusos e tem
inicio no final da década de 1960 e início da década de 1970 nos Estados Unidos e na Europa
(França, Suécia etc.). Esta segunda onda renovatória do acesso à justiça é conhecida também como
movimento mundial pela coletivização do processo. Entretanto, as duas primeiras ondas renovatórias
do acesso à justiça não foram suficientes, o que fez surgir uma terceira onda chamada de um novo
enforque sobre o acesso à justiça. Esta terceira onda renovatória do acesso à justiça possui três
dimensões. A primeira dimensão é que ela é abrangente das ondas renovatórias anteriores, mas vai
além. Pela segunda dimensão, o acesso à justiça passa a ser visto por intermédio de um novo
método de pensamento – como direito ao acesso a uma ordem jurídica justa, o que passa a ser
objeto de indagação da filosofia do direito e da teoria geral do direito, de sorte que não há sentido em
se falar em direito sem efetividade, pois a efetividade é um problema relacionado diretamente com a
temática do acesso à justiça. Em uma terceira dimensão, esse novo enfoque sobre o acesso à justiça
(terceira onda renovatória do acesso à justiça) propõe um amplo e moderno programa de reformas do
sistema processual, que se viabilizaria por intermédio: a) da criação de meios alternativos de solução
de conflitos (substitutivos jurisdicionais, equivalentes jurisdicionais), tais como alguns já implantados
no Brasil (arbitragem, a tomada pelos órgãos públicos legitimados às ações coletivas do compromisso
de ajustamento de conduta às exigências legais etc.); b) da implantação de tutelas jurisdicionais
diferenciadas (podemos citar, no Brasil, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional pretendida;
os juizados especiais; o procedimento monitório etc.); c) de reformas pontuais no sistema processual,
a fim de torná-lo mais ágil, eficiente e justo (ALMEIDA, 2007, p. 23-24).
111
O acesso à justiça dentre outros aspectos a ser considerado, sempre foi ligado à idéia de custo.
Inegável que há um custo implicitamente vinculado ao acesso à justiça seja ele obtido pela via
jurisdicional, processual, seja pela via extraprocessual. Esses custos, de qualquer espécie, dificultam
e, às vez desestimulam e até inviabilizam o acesso à justiça (BEZERRA, 2001, p. 181).
118

jurídica no acesso à justiça. “O acesso não é apenas um direito social fundamental,


crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da
moderna processualística” (CAPPELLETTI, 2002, p. 13).
A partir dos estudos desenvolvidos por Mauro Cappelletti percebemos a
grande complexidade que permeia o estudo do tema acesso à justiça. O autor
focaliza seu debate cientifico na necessidade de superação dos obstáculos que
muitas vezes inviabilizam o acesso à justiça, tais como, a pobreza e as limitações de
natureza econômico-financeira do jurisdicionado. Esclarece, ainda, que o acesso à
justiça deve ser assegurado não apenas para tutelar pretensões de natureza
essencialmente individual, haja vista que a coletivização das demandas judiciais
desencadeou a necessidade de ampliação das vias de acesso à justiça para garantir
a proteção dos direitos coletivos. Além disso, verifica-se a extrema preocupação do
autor com relação à efetividade do acesso à justiça, especificamente no que tange à
viabilização do exercício de direitos às partes a partir do processo e do acesso ao
Judiciário.
Ao contrário do que é preconizado pela Escola Instrumentalista, cujos
representantes trabalham o acesso à justiça como o acesso a uma ordem jurídica
justa112, com o advento da Constituição de 1988 e a institucionalização do Estado
Democrático de Direito ocorreu a revisitação do instituto do acesso à justiça, que
passa a ser visto como o direito de acesso ao Judiciário como forma de participação
no processo113 (não apenas os processos cuja pretensão é de natureza
essencialmente individual, mas também o processo cuja pretensão é de direito
coletivo) e, além disso, como um Direito Fundamental de discussão 114, de

112 O direito de acesso à Justiça é, fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa. São
dados elementares desse direito: 1- o direito à informação e perfeito conhecimento do direito
substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e orientada à aferição
constante da adequação entre ordem jurídica e a realidade sócio-econômica do País; 2- direito de
acesso à Justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e
comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; 3) direito à preordenação dos
instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; 4) direito à remoção de
todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características
(WATANABE, 1988, p. 135).
113 Superação do entendimento do processo, como garantia de direitos individuais, alçado ele a

instrumento político de participação na formulação do direito pelos corpos intermediários e de


provocação da atuação dos agentes públicos e privados no tocante aos interesses coletivos ou
transindividuais por cuja satisfação foram responsáveis (PASSOS, 1988, p. 96).
114
O Direito Fundamental de Discussão, ora mencionado no contexto da presente pesquisa, se refere
ao principio participativo, que deve ser visto como o fundamento que garante a todo sujeito
juridicamente interessado na pretensão o direito de discutir e de debater amplamente todas as
questões de mérito ora propostas e que tenham relação com o que foi inicialmente alegado pelo autor
da ação proposta.
119

construção e de análise do mérito da demanda. O principio da inafastabilidade do


controle jurisdicional foi instituído para permitir ao cidadão não apenas o direito de
encaminhar sua pretensão ao Judiciário, mas, acima de tudo, o direito de discussão
da pretensão perante o Judiciário.
O principio do contraditório115 é considerado fundamento essencial ao estudo
do direito de ação (acesso ao Judiciário) a partir da constitucionalidade democrática,
tendo em vista que o respectivo princípio oportuniza a todos os interessados no
provimento o direito de igualdade no debate fático e jurídico da pretensão. As
condições da ação116 e os pressupostos processuais, da forma como propostos no
Código de Processo Civil vigente (1973), e ao contrário do que é preconizado pelo
legislador constituinte, limita o direito de debate e de participação no processo, uma
vez que obstaculizam a discussão da matéria de mérito ao estabelecer a
obrigatoriedade de cumprimento de requisitos formais à análise do mérito
processual117. A dogmatização no entendimento do direito de ação, a partir das
proposições ideológicas do Código de Processo Civil de 1973, deve ser vista como
elemento obstaculizador do acesso legítimo e democrático ao Judiciário (considera-

115
A Escola Instrumentalista de Processo compreende o principio do contraditório como o direito que
as partes tem de influenciar na formação da convicção do juiz. Trata-se de um entendimento
autoritário acerca do principio do contraditório que decorre da acepção de que a jurisdição é um
poder do magistrado decidir solitariamente o mérito da pretensão deduzida em juízo. Nesse sentido
temos: “O núcleo essencial do principio do contraditório compõe-se, de acordo com a doutrina
tradicional, de um binômio: “ciência e resistência” ou “informação e reação”. O primeiro destes
elementos é sempre indispensável, o segundo, eventual ou possível. [...] É que o contraditório no
contexto dos “direitos fundamentais”, deve ser entendido como o direito de influir, de influenciar, na
formação da convicção do magistrado ao longo de todo o processo. Não se deve entende-lo somente
do ponto de vista negativo, passivo, defensivo. O Estado-juiz, justamente por força dos princípios
constitucionais do processo, não pode decidir, sem que garanta previamente amplas e reais
possibilidades de participação daqueles que sentirão, de alguma forma, os efeitos de sua decisão
(BUENO, 2008, p. 107-108).
116
As condições da ação não se confundem com os pressupostos processuais. a jurisdição é
imparcial. Para que se faça correto julgamento, mister se faz que o processo se tenha formado
validamente. Existem, assim, três ordens de matéria que o juiz, necessariamente, enfrenta, quando
julga no processo: matéria de processo, matéria de ação e matéria de mérito. As duas primeiras,
conjuntamente, podemos chamar de condições de admissibilidade do julgamento da lide (SANTOS,
2007, p. 52).
117
“Exercitado o direito de ação, espera-se a prolação da sentença de mérito (que atribua a vitória a
uma das partes), uma vez observados os princípios e as normas processuais, e oportunizado ao réu
o direito de apresentar a sua defesa, concordando ou contrapondo-se às pretensões aduzidas pelo
autor na peça inicial. Contudo, para que isto se confirme, é necessário o preenchimento de requisitos
mínimos, atinentes à própria validade da ação, sem os quais é impossível aprofundar na análise do
direito defendido pelas partes em litígio. Encontramo-nos diante de exigências formais, decorrentes
do exercício do direito de ação. Nesse particular, verificamos que a Lei de Ritos adota a teoria ecética
da ação, desenvolvida por Liebman, dispondo que a ação é um direito subjetivo que não se prende
ao direito material nela envolvido (como defendia a teoria concreta), sujeitando-se, contudo, à
observância de condições, sem as quais não se pode validar a ação. Essa teoria situa-se no meio-
termo entra as teorias concreta e abstrata (MONTENEGRO FILHO, 2011, 114-115).
120

se legítimo o acesso ao Judiciário a implementação do direito de debate e de


argumentação da pretensão no âmbito processual).
A legitimação democrática da participação dos sujeitos no processo é
considerada o fundamento central do entendimento do mérito participado no
processo coletivo. “As diversas manifestações dos interessados, comuns ou
divergentes, constituiriam o mérito da demanda coletiva” (MACIEL JUNIOR, 2006, p.
180). Tal afirmação se justifica no sentido de ser o processo o espaço que legitimará
a discussão da pretensão coletiva por todos aqueles titulares do direito coletivo que
balizará juridicamente a construção do provimento.
O processo coletivo, a partir das proposições teóricas desenhadas pelo
Estado Democrático de Direito, deve ser uma espaço de inclusão (não de exclusão)
de todos os interessados na pretensão coletiva e no debate do mérito. O processo
coletivo é um instituto hábil a legitimar a participação direta e o exercício da
cidadania. A própria construção do conceito de cidadania a partir do modelo de
processo coletivo democrático decorre da implementação do direito de participação
de todos os interessados no provimento. “A demanda coletiva dever ser
essencialmente participativa (VIGORITI, 1979, p. 03-16), no sentido de permitir que
o maior número de legitimados interessados possa defender suas teses em juízo”
(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 178). A coerência e a congruência dos argumentos
levantados pelos interessados difusos no debate jurídico e na construção participada
do mérito processual são necessárias para evitar a infinitude das discussões do
processo coletivo, ou seja, o direito de participação do interessado no processo é
regrado pela delimitação inicial da pretensão (objeto) coletiva deduzida em juízo. “A
legitimação do provimento decorrente de uma ação coletiva se dá pelo procedimento
que permita a inclusão dos legitimados para a participação na construção da
decisão” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 178).
O cerne de toda a problemática atinente ao acesso amplo e democrático ao
Judiciário é viabilizar a participação aberta de todos os legitimados interessados na
construção do provimento e do mérito processual, especialmente nas ações
coletivas, cuja finalidade é “legitimar essa participação no sentido de que ela
represente efetivamente o maior número de interessados no fato ou situação jurídica
geradores do conflito coletivo” (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 178). È nesse contexto
que se posiciona Vicente de Paula Maciel Junior
121

A ação coletiva deve ser a demanda que propõe um tema, abrindo a


possibilidade de que o próprio conteúdo do processo seja definido de modo
participativo. O processo coletivo demanda, portanto, uma frase inicial na
qual o seu objeto seja formado. O mérito do processo é construído, dentro
de um determinado período de tempo fixado na lei, até quando será
possível que os diversos interessados compareçam na demanda e
formulem seus pedidos (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 179).

Toda essa discussão teórica perpassa pela revisitação da concepção clássica


do processo coletivo pensado e construído a partir do sujeito. O acesso ao Judiciário
é estreito e limitado quando o processo coletivo é compreendido a partir dessa
vertente teórica, uma vez que o legislador é considerado o legitimado a escolher os
sujeitos que terão acesso à justiça. Em contrapartida, temos a Teoria das Ações
Coletivas como Ações Temáticas, desenvolvida pelo jurista Vicente de Paula Maciel
Junior, cujo entendimento do processo coletivo parte do objeto (e não do sujeito),
pois assim é possível viabilizar maior participação direta118 dos interessados difusos
no processo coletivo com a maior ampliação do acesso ao Judiciário. O que se
pretende discutir oportunamente no presente trabalho são os instrumentos legítimos
de efetivação da participação dos interessados difusos no processo coletivo, tais
como as audiências públicas e a utilização da internet como canal de comunicação e
de participação dos cidadãos diretamente no processo coletivo.

2.11. MÉRITO PROCESSUAL E COGNIÇÃO

A finalidade do processo de conhecimento119, na concepção da maioria dos


estudiosos brasileiros representantes da Escola Paulista de Processo 120, é o
acertamento de direitos a partir de pressuposições jurídicas e metajurídicas dos
julgadores acerca do mérito da pretensão deduzida em juízo pelas partes. Nesse
118
La participación popular más directa que puede surgir en materia de Justicia y proceso la
constituye, sea la designacións de jueces elegidos por voto popular, sistema que se ensaya en las
comunidades locales de los Estados Unidos, así como la propia designación (por este medio primero
o por otros órganos secundarios en otros casos) de jueces populares, tales como los tribunales de
camaradas sociéticos. (VESCOVI, 1988, p. 365).
119
Proceso de cognición es, pues, aquel que tiene por objeto uma pretensión en que se reclama del
órgano jurisdiccional la emisión de una declaración de voluntad: si se da a esta declaración de
voluntad el nombre de sentencia, el proceso de cognición es, característicamente, el que tiene a
obtener una sentencia del Juez (GUASP, 1998, p. 559).
120
O processo de conhecimento é aquele em que a parte realiza afirmação direito, demonstrando sua
pretensão de vê-lo reconhecido pelo Poder Judiciário, mediante a formulação de um pedido, cuja
solução será ou no sentido positivo ou no sentido negativo, conforme esse pleito da parte seja
resolvido por sentença de procedência ou de improcedência (WAMBIER, 2008, p. 136).
122

ínterim pode-se afirmar que a cognição é vista como um ato decorrente do


conhecimento inato e da inteligência do juiz121, para, a partir de sua experiência,
colocar-se na condição de responsável pela promoção da justiça entre as partes.
Trata-se de entendimento autocrático, republicanista e produto de acepções trazidas
pelo modelo de Estado Social, regido pela ideologia de que a jurisdição é um poder
concebido miticamente, para ser exercido pelo juiz e cuja finalidade é distribuir entre
as partes a decisão mais justa para o caso concreto.
Não se pretende aqui propor a eliminação da atuação legitima do juiz no
processo civil, tendo em vista que se busca repensar criticamente, sob a ótica
democrática, os limites jurídico-constitucionais de sua atuação. A pertinência da
análise crítica proposta é verificada naqueles casos em que o julgador concentra
exclusivamente o poder de julgar em suas mãos, excluindo-se a interferência de
qualquer sujeito interessado na construção do provimento.
A concepção de que a cognição é um ato do juiz causa reflexos diretos no
entendimento do mérito processual, uma vez que o caráter axiológico prevalente no
exercício da jurisdição é considerado o aspecto regente para a apreciação da
matéria de fato, da matéria de direito e, essencialmente, para a interpretação e a
utilização das provas no julgamento da demanda. Seguindo o entendimento ora
preconizado, Kazuo Watanabe afirma que a justiça precisa ser rente à realidade
social e essa aderência à vida somente se consegue com o aguçamento da
sensibilidade humanística e social dos juizes (2005). Para a cognição adequada a
caso concreto, pressuposto de um julgamento justo, a sensibilidade mencionada é
um elemento impostergável.
Nessa mesma linha de raciocínio Luiz Antônio Nunes afirma que a cognição
decorre de uma atividade intrínseca à capacidade intuitiva do julgador, do seu senso
de justiça e da sua sensibilidade no tocante à análise do mérito da pretensão
deduzida em juízo

Ao tratarmos da verdade subjetiva, devemos nos imiscuir no espírito


daquele que julga. Lembramos que a inteligência, que tem função
específica de propiciar a percepção da verdade, é faculdade indispensável

121A cognição é prevalentemente um ato de inteligência consistente em considerar, analisar e valorar


as alegações e provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fato e as de direito que
são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do judicium, do julgamento do
objeto litigioso do processo.” (WATANABE, 2005, p. 67).
123

ao julgador. A inteligência, às vezes, chega à verdade intuitivamente, ou


seja, há a posse desta pela percepção intelectiva, ou verdade intuída,
alcançando-a, outras vezes, pela sensibilidade, isto é, busca o auxílio dos
sentidos para que ela, verdade, chegue ao espírito: é a verdade sensível.
No processo, veremos ao seu tempo que o julgador utiliza-se da intuição e
da sensibilidade para o exercício de seu mister (2000, p. 19).

A atividade cognitiva do juiz efetiva-se no momento em que o mesmo se


imiscui no conflito de interesses propriamente dito, mediante a análise das questões
de fato e de direito que integram a matéria de mérito da pretensão 122. A cognição é
vista pela Escola Instrumentalista como uma atividade intelectual do juiz (muitas
vezes um exercício de subjetividade do julgador) mediante a análise e a decisão do
conflito de interesses contrapostos ora deduzidos em juízo, em que o julgador
consegue auferir o direito material a ser reconhecido no processo 123. Nesse sentido
se posiciona Antônio Cláudio da Costa Machado

Na verdade, a cognição funciona como um ponto de contato, ou uma


‘ponte’, que permite a ligação entre a realidade do direito material e a de
um processo que proponha a realizá-lo o mais plenamente possível.
Talvez, melhor do que ‘ponte’ seja a ideia culinária de ‘ingredientes’ para
identificar a cognição como elemento integrante do modus faciendi dos
procedimentos judiciais, uma vez que o fenômeno cognitivo, ao se
expressar ritualmente desta ou daquela maneira por meio da
regulamentação dos atos do juiz, dará este ou aquele colorido ao
procedimento como um todo, tornando-o mais ou menos habilitado para a
realização satisfatória da vontade do direito material numa ótica sócio-
jurídica (1998, p. 74).

É através do processo de conhecimento que o julgador realizará a valoração


dos pressupostos e dos requisitos que autorizarão a análise do mérito da pretensão,
com a finalidade de decidi-las. Para Alexandre Freitas Câmara a cognição é “a
técnica utilizada pelo juiz para, através da consideração, análise e valoração das
alegações e provas produzidas pelas partes, formar juízos de valor acerca das
questões suscitadas no processo, a fim de decidi-las” (1998, p. 48). Assim, pode-se

122
Na concepção de Jaime Guasp “La pretensión procesal es uma declaración de voluntad por la que
se solicita uma actuación de un órgano jurisdiccional frenta a persona determinada y distinta del autor
de la declaración” (GUASP, 1998, p. 206).
123 A cognição é, portanto, um ato de inteligência, de lógica do juiz. Mas não se limita a isto. É,

também, uma atividade fortemente marcada pela ingerência de outros elementos, intitulados de
componentes de caráter não-intelectual pelo professor Kazuo Watanabe. [02] Assim, condicionanes
culturais, econômicos, políticos, sociais, axiológicos, volitivos, ocasionam os mais diversos reflexos na
atividade cognoscente desenvolvida pelos juízes (GUEDES, Disponível:
http://jus.com.br/revista/texto/18025/a-cognicao-judicial-no-processo-civil-brasileiro. Acesso: 17 set.
2011)
124

afirmar que a cognição é a técnica que oportunizará ao julgador a possibilidade de


valoração solitária das provas e dos argumentos fáticos e jurídicos suscitados pelas
partes no processo. Além disso, ressalta-se que a cognição processual, tal como
exposto até então, efetiva-se mediante o convencimento do julgador a partir da sua
análise unilateral das discussões processuais. É por isso que para Murilo Carraras
Guedes “a cognição consagra, pois, toda a atividade intelectual realizada pelo
julgador para decidir qualquer processo. Não existem decisões, salvo quando
arbitrárias, despida de cognição (atividade intelectual séria e comprometida)”
(2011)124.
Em contrapartida às discussões acima expostas pode-se afirmar que o
entendimento trazido pela maioria dos autores no que diz respeito à cognição
processual não é compatível com o modelo de processo proposto pelo Estado
Democrático de Direito, tendo em vista encontrar-se arraigado a um modelo de
processo e de jurisdição ainda centralizado na autoridade do julgador como ser
onisciente dotado de sapiência inata para o julgamento do mérito da pretensão a
partir do seu senso distributivo de justiça. É nesse sentido que se manifesta o
professor Rosemiro Pereira Leal acerca do tema

Evidente que seria tautológico e ridículo afirmar que o processo de


conhecimento é o processo pelo qual o juiz toma conhecimento do
processo. Processo de Conhecimento é segmento importante da Teoria
do Processo, porque é uma conquista teórica relevantíssima para a
humanidade que imprimiu novos rumos ao estudo do Processo pelo
principio moderno da reserva legal, só se admitindo a cognição
jurisdicional em bases normativas prévias (precedentes, anteriores) aos
fatos e atos a serem jurisdicionalizados. O processo de conhecimento
assenta-se no sistema probatório da persuasão racional, em que a ratio
legis há de anteceder ao logos aleatório ou discricionário do julgador. O
processo de conhecimento, como modalidade de direito fundamental
constitucionalizado (ampla defesa, contraditório e isonomia pelo devido
processo legal), proscreveu, de vez, os sistemas inquisitórios e dispositivo
de livre convicção do juiz que se fazia a ainda se faz em legislações
retrógradas, como a brasileira, em bases de arbítrio e em juízos de poder,
equidade e conveniência, num percurso histórico que se registra desde as
tribos primitivas, passando pelos Romanos, até o common law de nossos
dias, como se vê, principalmente, nos judiciários ingleses e americanos
(LEAL, 2009, p. 139) (grifo nosso).

124
Disponível: http://jus.com.br/revista/texto/18025/a-cognicao-judicial-no-processo-civil-brasileiro.
Acesso: 17 set. 2011.
125

A partir das proposições teóricas desenvolvidas no contexto da


processualidade democrático-constitucionalizada, a cognição deve ser revisitada e
passar a ser compreendida sob a égide do devido processo legal, do contraditório,
da ampla defesa e da isonomia processual. É necessário deixar de estudar a
cognição como um lócus de prevalência da subjetividade do julgador mediante a
implementação de juízos axiologizantes e de equidade. É por isso que se faz
necessária a superação da ideologia do livre convencimento do juiz pelo advento da
persuasão racional pautada no principio da fundamentação jurídico-legal das
decisões judiciais. É esse o paradigma norteador das reflexões acerca da cognição
judicial no Estado Democrático de Direito, uma vez que a cognição não deve
decorrer do conhecimento cognominado inato à pessoa do juiz. O processo cognitivo
desenvolvido no âmbito constitucional-democrático materializar-se-á pelo espaço
destinado à racionalização da pretensão pelas provas e pelos argumentos trazidos
pelas partes no processo.
É necessário deixar de valorar a pretensão para racionalizar o processo
cognitivo mediante a instauração de um procedimento compartilhado de análise do
mérito da pretensão, retirando das mãos do julgador o poder e a autoridade
exclusiva de decidir conforme suas convicções. Nesse contexto, a cognição deixa de
ser uma atividade, uma técnica ou um método exclusivo de formação do
convencimento do julgador, para passar a ser vista como o referencial de
racionalização da pretensão pela atividade compartilhada das partes no que diz
respeito à construção do mérito processual pelos princípios institutivos do processo,
quais sejam, o contraditório, a ampla defesa, a isonomia processual e o devido
processo legal.

2.12 A PROBLEMÁTICA JURÍDICA DO MÉRITO NO PROCESSO DE EXECUÇÃO E NOS

PROCEDIMENTOS ESPECIAIS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA

Conforme debatido anteriormente, o mérito processual compreendido a partir


da Exposição de Motivos do Código de Processo Civil brasileiro de 1973 é visto
126

como sinônimo da palavra lide125, considerando-se a lide como o objeto principal do


processo, uma vez que nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os
litigantes. Ao longo de toda a legislação processual civil vigente encontram-se
dispositivos legais que expressam claramente o intuito do legislador designar o
mérito126 processual a partir do instituto da lide, tal como ocorre com o disposto do
artigo 267 (extinção do processo sem julgamento do mérito), artigo 468 (estabelece
que a sentença que julgar no todo ou em parte a lide tem força nos limites da lide e
das questões decididas em juízo) e o artigo 330 (que estabelece o julgamento
antecipado da lide, designando expressamente que se trata do julgamento
antecipado do mérito da demanda em virtude da existência de provas suficientes
nos autos a viabilizar o julgamento da demanda pelo juiz).
Verifica-se que a doutrina tem se utilizado indevidamente da expressão mérito
sem o cuidado necessário para individualizá-lo e diferenciá-lo da lide, ou seja, sem
muito rigor cientifico. Além disso, é muito comum verificar a confusão terminológica
existente entre os institutos do mérito, da pretensão, da demanda e da lide. A
demanda levada pelo requerente ao Judiciário é a primeira manifestação das partes
para viabilizar a delimitação da pretensão, uma vez que “a demanda, assim narrando
fatos, conclui por colocar diante do juiz uma pretensão, veiculada no pedido de
emissão de um provimento jurisdicional de determinada ordem, com conteúdo que
indica e referente ao bem da vida especificado” (DINAMARCO, 1987, p. 187). Dessa
forma pode-se conceituar a pretensão como a narração reivindicativa de direitos
descritos na petição inicial (instrumento gráfico-cartular materializador da pretensão).
O princípio da demanda consiste na oportunidade que as partes têm de delimitar os
fundamentos fáticos e jurídicos da pretensão deduzida no processo de
conhecimento. Além disso, sabe-se que a demanda é corolário do principio da

125
A identificação entre lide e mérito, todavia, apesar de inspiração carneluttiana, salvo engano jamais
foi feita assim, em termos tão claros e radicais, pelo próprio Carnelutti. Como vimos, este conceitua o
mérito a partir da lide, mas não diz que ele seja a lide. Mérito é, para ele, “o complexo de questões
materiais que a lide apresenta”. Ao construir a sua conceituação em sede doutrinária, Alfredo Buzaid
disse também, após expor o conhecido conceito de lide a partir de seu elemento material, que é o
conflito de interesses: “o julgamento desse conflito de pretensões mediante o qual o juiz, acolhendo
ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma decisão definitiva
de mérito”. Ele invocou também o pensamento de Liebman, que dissera: “lide é o fundo da questão, o
que equivale dizer: o mérito da causa” (DINAMARCO, 1987, p. 200).
126
Mérito,meritum, provém do verbo latino mereo (merece) que, entre outros significados, tem o de
“pedir, pôr preço” (é a mesma origem de “meretriz” e aqui também há a idéia do preço, exigência).
Daí se entende que meritum causae (ou, na forma plural que entre os mais antigos era preferida,
merita causae) é aquilo que alguém vem a juízo pedir, postular, exigir. O mérito, portanto,
etimologicamente é a exigência que, através da demanda, uma pessoa apresenta ao juiz para seu
exame (DINAMARCO, 1987, p. 202).
127

congruência, considerado o parâmetro regente para o julgador proferir sua decisão


nos limites127 do que as partes alegaram em juízo.
Na concepção proposta por Cândido Rangel Dinamarco, existem três
posições fundamentais que poderão ser utilizadas na conceituação do mérito
processual: a) aqueles que conceituam o mérito processual no plano das questões,
ou complexos de questões referentes à demanda; b) os que se valem da demanda
ou de situações externas ao processo, trazidas a ele através da demanda; c) e por
último, aqueles que se utilizam da lide como fundamento para explicar e
compreender o mérito processual (1987, p. 188).
Liebman e Carnelutti vêem o mérito da demanda nas questões de fundo do
processo, quais sejam, as questões de mérito, consideradas como todas as
alegações de fato e jurídicas que integram a pretensão. A questões de mérito nada
mais são do que os pontos controvertidos da demanda, que nortearão o julgador na
construção do mérito processual. Nesse sentido Carnelutti se posiciona no sentido
de que o “mérito da lide significa, portanto, o complexo das questões materiais que a
lide apresenta”. Garbagnati define mérito como “grupo de questões relativas ao fato
constitutivo do direito invocado processualmente pelo autor e à escolha e
interpretação das normas jurídicas que lhe serão aplicadas”. Já Enrico Tulio
Liebman, citado por Candido Rangel Dinamarco (1987, p. 189) afirma

O conhecimento do juiz é conduzido com o objetivo de decidir se o pedido


formulado no processo é procedente ou improcedente e, em conseqüência,
se deve ser acolhido ou rejeitado. Todas as questões cuja resolução possa
direta ou indiretamente influir em tal decisão formam, em seu complexo, o
mérito da causa. Com isso, está o Mestre asseverando que o mérito é
representado pelas questões com influência na decisão (que o juiz prepara
através da cognição) sobre a procedência ou improcedência da demanda.

127
A lei processual é particularmente severa, ao sancionar o principio da correlação entre o
provimento jurisdicional e a demanda, mesmo porque o provimento que ultrapasse qualquer dos
limites postos por estas (partes, causa petendi, petitum) constituirá, de certa forma, exercício não
provocado da jurisdição. A regra geral está no Código de Processo Civil, cujo artigo 128 estabelece
que “o juiz decidirá a lide (rectius: a demanda) nos limites em que foi proposta”; fundamentos de fato
diferentes dos alegados na demanda não podem ser considerados e o Código de Processo Penal
exige providências destinadas a assegurar a mecânica do contraditório (art. 384), ou mesmo nova
demanda (aditamento à denúncia ou queixa), quando fatos novos surgirem na instrução e forem
relevantes; é defesa a prolação de provimento diverso do postulado, ou abrangendo objeto mais
amplo que o indicado na petição inicial (CPC, art. 460). Os pronunciamentos extra ou ultra petita, ou
de alguma outra forma violadores das limitações postas pela demanda, trazem surpresa para a parte
vencida e constituem inegável violação à exigência constitucional do contraditório, bem merecendo,
portanto, a repulsa que lhes devota a lei (DINAMARCO, 1987, p. 186-187).
128

É indiscutível a relação existente entre mérito e questões controversas que


permeiam a demanda, assim como afirma Fazzalari, para quem o “mérito é o objeto
da controvérsia, ou seja, a situação substancial e seus componentes”
(DINAMARCO, 1987, p. 193). Considerando-se que os pedidos do autor na exordial
e eventuais pedidos do requerido na reconvenção constituem o objeto do processo
pode-se afirmar que o mérito processual consistirá na argumentação jurídica das
questões que permeiam e integram os pedidos das partes. Certamente trata-se de
uma noção essencialmente individualista e privada do entendimento do mérito
processual limitado aos pedidos expressamente feitos pelas partes, porém, tal
entendimento não deixa de ser oportuno e coerente no sentido em que a própria
noção de mérito processual perpassa pelo debate das questões trazidas pelas
partes no processo.
Giusseppe Chiovenda associa em sua obra o conceito de mérito processual à
demanda inicialmente proposta em juízo pela parte interessada, sustentando ser de
mérito a sentença em que o juiz se manifesta sobre a demanda da parte autora. É
nesse sentido que o autor afirma que “a sentença de mérito é o provimento do juiz
acolhendo ou rejeitando a demanda do autor destinada a obter a declaração da
existência de uma vontade da lei que lhe garanta um bem ou da inexistência de uma
vontade da lei que o garanta ao réu” (CHIOVENDA, 1928, p. 100). Verifica-se que o
autor pretende diferenciar o mérito processual das questões a ele atinentes, tendo
em vista que afirma que dentre as questões de mérito temos as questões sobre as
condições da ação (importante ressaltar que se trata de posicionamento bastante
particular, uma vez que a partir de proposições de cunho concretista Chiovenda
afirma que a sentença que decide sobre as condições da ação é de natureza
meritória). È por isso que “para ele, o mérito reside na demanda, na medida em que
assevera ser de mérito a sentença que a acolhe ou rejeita” (DINAMARCO, 1987, p.
195).
A partir das considerações expostas por Chiovenda verifica-se que a
demanda é o parâmetro teórico para o entendimento jurídico acerca do mérito
processual, incluindo-se como matéria de mérito tanto a decisão em que o
magistrado reconhece a ausência de alguma das condições da ação quanto a
decisão em que aprecia todas as questões de fato e de direito que integram a
demanda levada ao Judiciário pelas partes, tendo em vista que para o autor em tela
a demanda é considerada o mérito da causa.
129

Outros autores, tais como Redenti, Friedrich Lent e Fazzalari 128, adotam
entendimento distinto dos que já foram expostos anteriormente, tendo em vista que
afirmam que “o mérito, portanto, ou objeto do processo, seria representado pela
relação jurídica substancial controvertida129 pelas partes: controvertida quanto à sua
existência, inexistência, modo de ser” (DINAMARCO, 1987, p. 196). Os respectivos
autores partem da pressuposição de que a relação jurídica controvertida preexiste
ao processo, é de natureza privada e, por isso, se utilizam do processo como
instituto que viabilizará às partes buscarem judicialmente uma manifestação do
julgador no que tange à controvérsia ora exposta.
Delimitar o entendimento do mérito processual a uma relação controvertida de
direito material é o mesmo que reconhecer a existência do debate de questões de
mérito apenas no contexto do processo de conhecimento. Praticamente toda a
produção cientifica no âmbito do processo civil sinaliza para o estudo e o debate
jurídico do mérito como algo inerente ao processo de conhecimento. Dessa forma,
não seria possível visualizar a discussão meritória no processo de execução, uma
vez que a sua finalidade seria, tão somente, garantir a satisfatividade de um direito
material incontroverso esculpido em um título executivo. Da mesma maneira, não
seria possível identificar a discussão meritória nos procedimentos especiais de
jurisdição voluntária, tendo em vista a ausência de litigiosidade ou de relação jurídica
controvertida.
Para aqueles estudiosos que vinculam o estudo do mérito à ideologia do
processo como instrumento de resolução e de apreciação ou análise de relações
jurídicas litigiosas ou controvertidas, é certo não será possível imediatamente pensar
o mérito processual sob a égide do processo de execução e dos procedimentos
especiais de jurisdição voluntária. Porém, a compreensão sistemática do tema ora
exposto perpassa pela revisitação e a reconstrução teórica do próprio conceito de

128
Para o processualista italiano Elio Fazzalari o mérito é o objeto da controvérsia da demanda
judicial, ou seja, a situação substancial e seus componentes. A alusão à situação substancial, como
expressão do mérito, não é tão inconveniente quanto a referência à relação controvertida. Situação
jurídica é locução menos precisa e mais ampla e correspondente, na linguagem desse autor, ao
direito subjetivo deduzido em estado de asserção. A posição de Fazzalari, bem pensado, significa
que o mérito (“parâmetro para a determinação dos deveres do juiz e poderes das partes”) reside na
afirmação de direito subjetivo, da obrigação correspondente, da lesão e (eventualmente) da situação
extraordinariamente legitimante (DINAMARCO, 1987, p. 197-198).
129
A relação jurídica litigiosa relevante para o processo é, no pensamento de Betti, relação jurídica
afirmada e cuja existência será objeto de declaração a ser dada afinal pelo juiz (DINAMARCO, 1987,
p. 198)
130

mérito, bem como a superação do entendimento relacionado ao reducionismo do


mérito processual à noção de lide, tal como proposto e desenvolvido por Carnelutti.
Embora a finalidade imediata do processo de execução seja a satisfatividade
do crédito pretendido pelo exeqüente e materializado em um titulo executivo (judicial
ou extrajudicial), é sabida a possibilidade de vícios ou de nulidades na constituição
do titulo, considerado um dos inúmeros fundamentos que ensejariam a possibilidade
de discussão jurídica do mérito no processo de execução. A propositura dos
Embargos a Execução, assim como da Impugnação na Fase de Cumprimento de
Sentença, são momentos processuais em que o executado poderá suscitar a
necessidade do debate do mérito da pretensão executiva.
As alegações do executado constituem matéria de mérito no momento em
que demonstram e alegam a inexistência do débito pretendido pelo exequente, ou
seja, sempre que o magistrado declarar judicialmente a inexistência da relação
obrigacional entre exequente e executado enfrentará o mérito da pretensão no
contexto do processo de execução. Ou seja, todo provimento jurisdicional em que se
reconheça a inexistência da relação jurídica entre credor e devedor perpassa pela
discussão meritória no contexto processual.
Compreender o mérito processual como a oportunidade assegurada à partes
de debater jurídico-legalmente a pretensão deduzida pode ser visto como importante
fundamento para a revisitação da ideologia vigente de que no processo de execução
não existe discussão meritória. O máximo que podemos afirmar é que o processo de
execução não tem especificamente o propósito de discussão do mérito processual,
considerando-se sua finalidade imediata, mas tal afirmação não pode ser utilizada
no sentido de inviabilizar por total a possibilidade de construção e de debate
meritório no cerne das pretensões executivas.
Excluir a possibilidade de qualquer discussão meritória no processo de
execução é admitir a validade absoluta de todo e qualquer titulo executivo, partindo-
se do pressuposto de que seria impossível visualizar ou admitir vícios jurídicos que
pudessem impedir a satisfação do crédito pretendido pelo exeqüente. Seria o
mesmo que reconhecer que todo titulo objeto de execução deveria ser pago pelo
executado ao exeqüente, retirando do devedor eventual ou possível direito de
exercício do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
Reconhecer a possibilidade de discussão do mérito no processo de execução
é legitimar as partes no direito de participar da construção do mérito processual,
131

garantindo ao executado o direito de resistência legitima à pretensão executiva


trazida pelo exeqüente ao Judiciário. Inúmeras questões de mérito poderão ser
suscitadas pelo executado na defesa do processo de execução: vicio de vontade na
emissão de titulo executivo extrajudicial; comprovação de pagamento total ou parcial
do débito alegado; nulidade processual absoluta em titulo executivo judicial (vício ou
ausência de citação); inexistência de relação jurídica entre credor e devedor
suficiente para viabilizar a emissão de titulo executivo. Em toda e qualquer alegação
legitima apresentada pelo executado como forma de resistir à pretensão executiva
do exeqüente é possível vislumbrar a discussão de mérito, mesmo que sejam
alegações atinentes a vícios formais suficientes para inviabilizar a satisfação do
crédito pelo exeqüente.
Nos dizeres de Candido Rangel Dinamarco

O executado que queira opor resistência à pretensão do exeqüente, terá o


ônus de ofertar embargos, fora da relação processual e do procedimento de
execução. O afastamento das questões de mérito não significa, porém, que
inexista mérito no processo executivo. Há o mérito representado pela
pretensão executiva deduzida mediante a demanda inicial. O fato de
eventual julgamento a respeito ter outra sede (a dos embargos) não significa
que mérito inexista naquele processo (1987, p. 207).

Na sentença que julga os embargos de devedor o magistrado adentra às


questões de mérito suscitadas pelas partes juridicamente interessadas na demanda,
tendo em vista que a oportunização do contraditório e da ampla defesa representa o
parâmetro para justificar a análise e a discussão do mérito processual.
Especificamente no processo de execução o que temos é a discussão indireta do
mérito processual, haja vista que a apreciação e o julgamento das questões
meritórias discutidas nos embargos de devedor certamente refletirão na
exigibilidade, certeza e liquidez da pretensão executiva.
O fundamento da ideologia de inexistência do mérito no processo de
execução justifica-se no fato de toda a discussão meritória condicionar-se à matéria
alegada pelo executado em sua defesa. “O afastamento das questões de mérito não
significa, porém, que inexista mérito no processo executivo” (DINAMARCO, 1987, p.
207). È certo afirmar que não é possível afirmar que em todo processo de execução
encontra-se o debate do mérito processual, tendo em vista que naqueles processos
em que o devedor reconhece o pedido do exequente não se pode visualizar o
debate do mérito em virtude da inexistência de resistência do executado quanto à
satisfatividade do crédito pretendido pelo exequente.
132

Especificamente no processo de execução, o reconhecimento do pedido pelo


executado inviabiliza a análise do mérito da pretensão pelo magistrado, uma vez que
o critério legítimo para auferir o enfrentamento do mérito no processo de execução
encontra-se na defesa do executado, especialmente na resistência do executado em
reconhecer a obrigação exigida pelo exequente. Já no processo de conhecimento, o
reconhecimento do pedido pela parte demandada não acarretará a impossibilidade
de analise do mérito da pretensão. O próprio legislador do Código de Processo Civil
brasileiro de 1973, em seu artigo 269, inciso II afirma expressamente que haverá
resolução de mérito quando o réu reconhecer a procedência do pedido do autor. A
análise do mérito no presente caso decorre do debate isonômico estabelecido entre
as partes (demandante e demandado), que conjuntamente com o magistrado,
deliberaram pela ratificação da pretensão do requerente.
Cândido Rangel Dinamarco é categórico ao afirmar que “há o mérito
representado pela pretensão executiva deduzida mediante a demanda inicial” (1987,
p. 207). No mesmo sentido o autor afirma que o fato do exame do mérito da
pretensão ter o seu julgamento em outra sede (a dos embargos) não significa dizer
que o mérito inexista no processo de execução.
É necessário esclarecer que a constatação da existência de matéria de mérito
no processo de execução130 acarretará conseqüentemente uma sentença de mérito.
No momento em que o magistrado julga procedente os embargos a execução,
declarando inexistir o crédito pretendido pelo exequente, certamente adentrará ao
mérito da pretensão porque o conteúdo de tal decisão é o reconhecimento da
inexistência de relação jurídico-creditícia entre as partes. Contrariando o
entendimento acima exposto, Cândido Rangel Dinamarco, citando José Carlos
Barbosa Moreira, afirma que temos sentença de mérito nos embargos de devedor
cujos efeitos se estendem para o processo de execução em si

O que é certo não haver ali é a sentença de mérito. Barbosa Moreira


colheu bem a situação, dizendo que a definição da sentença como ato que
põe termo ao processo ‘decidindo ou não o mérito da causa’ foi feita com
‘olhos fitos exclusivamente no processo de conhecimento e no cautelar,
porque na execução não existe mérito a ser apreciado. Não é que não haja
mérito ali, o que não há é a apreciação do mérito (1987, p. 207).

130
O reconhecimento mais autorizado da existência do mérito na execução está no próprio título de
famoso livro de Liebman “Le opposizioni di merito nel processo di esecuzione”. A tradução brasileira
abandonou a literalidade do título original (seria: os embargos de mérito), sendo conhecida como
Embargos do Executado (DINAMARCO, 1987. p. 207).
133

Pela citação acima mencionada verifica-se que a intenção do autor é


demonstrar que a discussão do mérito processual concentra-se no julgamento dos
embargos, e não propriamente no processo de execução. O que se pode observar é
que no processo de execução temos a extensão dos efeitos da decisão de mérito
que julgou os embargos, e não propriamente o julgamento do mérito do processo de
execução. Tal debate existe somente pelo fato do procedimento adotado no
processo civil brasileiro estabelecer o trâmite dos embargos a execução em autos
distintos do processo de execução em si. Certamente se os embargos 131 fossem
protocolizados e julgados nos mesmos autos do processo de execução tal discussão
cientifica seria inócua no sentido em que o julgamento procedente dos embargos a
execução implicaria no julgamento e na análise do próprio mérito da execução em si.
Na atual sistemática de execução de titulo judicial no Brasil a apresentação da
defesa do executado (impugnação) ocorrerá nos mesmos autos em que o titulo
judicial se encontra (sincretismo processual) e é executado, o que torna inócua a
discussão atinente à análise do mérito apenas quando do julgamento da defesa no
processo de execução, e não no processo de execução em si.
É certo que a defesa do executado é o que viabilizará a discussão do mérito
processual, mas isso não justifica a afirmação no sentido de que o debate do mérito
processual tem seus efeitos limitados ao campo da defesa da parte executada, não
se estendendo para o contexto amplo do processo de execução.
Com previsão nos artigos 1103 a 1210 do Código de Processo Civil brasileiro de
1973, os procedimentos especiais de jurisdição voluntária materializam claramente o
propósito do Estado em controlar a legalidade de relações jurídicas de cunho
essencialmente privado, cuja característica central é a consensualidade entre as
partes diretamente interessadas na pretensão deduzida em juízo. A inexistência de
lide nas pretensões atinentes aos procedimentos especiais de jurisdição voluntaria é
o ponto central de toda a problemática jurídica referente ao mérito processual, tendo

131
O mérito da execução, quando julgado através dos embargos (CPC, art. 471, inc. VI: fundamentos
de direito material), conduz a uma sentença que declara procedente ou improcedente a execução
mesma. Os termos são inversos: procedência dos embargos, improcedência da pretensão executiva;
improcedência dos embargos, procedência desta. O próprio Código de Processo Civil, aliás, fala de
uma sentença “que julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública” (art. 475, inc.
III): é a que julga procedentes os embargos de mérito opostos a ela, acolhendo-os (DINAMARCO,
1987, p. 207-208)
134

em vista a intrínseca relação existente entre litigiosidade132 e mérito que permeia o


estudo do respectivo tema para o direito processual civil brasileiro.
Inúmeras são as criticas cientificas à jurisdição voluntaria no sentido de
acarretar o desvirtuamento da função típica do Judiciário133, tal como explicita Gisele
Leite: “A chamada jurisdição voluntária também denominada de graciosa ou
administrativa, nada tem de gratuita e realmente desfigura as funções do Poder
Judiciário, arremessando-as para o terreno à Administração própria do Poder
Executivo” (2004)134 . José Frederico Marques, citado por Gisele Leite, afirma que a
“jurisdição voluntária é uma atividade administrativa que o Judiciário exerce na tutela
de direitos subjetivos” (2004)135.
A máxima que norteia o estudo da jurisdição voluntária consiste na legitimidade
do Judiciário imiscuir-se na administração pública de interesses privados dos
jurisdicionados. É por isso que se afirma que a jurisdição voluntaria é exercida inter
volentes, ou seja, por solicitação ou por consentimento exclusivo dos interessados
na pretensão.
Considerando-se que toda a teorização da jurisdição se deu a partir do conceito
de lide e da legitimação de um poder mítico concedido ao juiz para resolver conflitos
de interesses entre particulares, verifica-se entre a maioria dos autores e
pesquisadores do direito processual civil que a jurisdição voluntária é uma atividade
atípica do Judiciário e que a jurisdição contenciosa é considerada uma atividade
essencialmente jurisdicional136.

132
Não havendo litígio não se fala de partes, e do mesmo modo, de contestação. Na jurisdição
voluntária têm-se interessados e a citação dá oportunidade manifestação de um dos interessados em
10 dias. Não havendo litígio nem um processo contencioso, não se admite nessa manifestação ou
resposta a notificação reconvenção, embora, possa incidir efeito da revelia. A litigiosidade pode
ocorrer no efeito incidental e o juiz tem ampla e livre liberdade de investigação dos fatos podendo
aplicar às soluções os elementos de conveniência e oportunidade, como por circunstâncias
supervenientes, sem prejuízo aos efeitos já produzidos, poderá modificar a sentença. (AYRES, 2010)
Disponível: http://www.webartigos.com/artigos/jurisdicao-voluntaria/33601/. Acesso: 12 out. 2011.

133 As diversas teorias sobre a natureza jurídica da jurisdição voluntária podem ser enquadradas, a
grosso modo, em cinco grupos, onde é encarada I) como uma atividade administrativa; II) como uma
atividade genuinamente jurisdicional; III) como um tertium genus; IV) como uma atividade negocial e
V) como não sendo jurisdicional e não se sabendo a que categoria pertence, presumindo que seja
administrativo. (MARQUES, 2011) Disponível:
http://web.unifacs.br/revistajuridica/edicao_setembro2000/corpodiscente/pos-
graduacao/jurisdicao_contenciosa.htm. Acesso em: 12 out. 2011.
134
Disponível: http://jusvi.com/artigos/2119. Acesso em: 12 out. 2011.
135
Disponível: http://jusvi.com/artigos/2119. Acesso em: 12 out. 2011.
136
A jurisdição contenciosa produz coisa julgada, a voluntária não produz. Até porque a decisão final
paira sobre numa equação de incógnitas eternamente variáveis. Aliás, a coisa julgada é bem mais
adequadamente conceituada como a qualidade de que se reveste a sentença tornando-se numa
135

A sistematização teórica da jurisdição enquanto poder do julgador dirimir a


litigiosidade entre as partes através da aplicação do direito vigente (lei) causa
reflexos diretos na compreensão do mérito no contexto dos procedimentos especiais
de jurisdição voluntária137. Considerando-se que tradicionalmente o mérito
processual é explicado a partir do conceito de lide, poder-se-ia afirmar previamente
que inexiste discussão meritória na jurisdição voluntária, uma vez que a atuação do
julgador não seria para dirimir conflitos de interesses, mas apenas ratificar o
entendimento consensualmente adotado pelos particulares. Dessa forma, a
teorização do mérito processual nos procedimentos especiais de jurisdição
voluntária pressupõe a revisitação do clássico e dogmático entendimento de que o
mérito processual é a lide levada pelas partes para que o Judiciário possa resolvê-la
por meio da lei.
A desvinculação entre lide e mérito138 é o pressuposto da ressemantização do
tema na perspectiva crítica, tendo em vista que no paradigma da constitucionalidade
democrática o mérito processual é corolário dos princípios da ampla defesa, do
contraditório, da isonomia processual e do devido processual legal, cuja finalidade é
viabilizar amplamente o debate fático e jurídico da pretensão mediante a isonômica
participação de todos os interessados. A ausência de lide nos procedimentos
especiais de jurisdição voluntária não implica necessariamente a impossibilidade de
debate cientifico da pretensão pelas partes interessadas. Tal afirmação justifica-se
pelo fato da lide não poder ser vista como requisito indispensável ao debate jurídico
da pretensão, uma vez que até mesmo no âmbito da consensualidade é
perfeitamente possível a instauração do debate jurídico-legal da pretensão deduzida.
Os interessados na pretensão objeto dos procedimentos especiais de jurisdição
voluntária têm legitimidade na instauração do debate jurídico no espaço processual,

decisão definitiva, imutável e irrecorrível. Na jurisdição contenciosa há partes, na voluntária há


interessados ou requerentes conforme menciona o art. 1.104 do CPC; enquanto que o art. 262 do
CPC que explicita escrachadamente que “o processo civil começa por iniciativa da parte”. (LEITE,
2004) Disponível: http://jusvi.com/artigos/2119. Acesso em: 12 out. 2011.
137 Na jurisdição contenciosa há ação, na voluntária há simples pedido de um interessado. Tanto é

assim que o art. 1.112 e seguintes do CPC in verbis menciona “o procedimento terá início...”.Assim na
jurisdição contenciosa há ação e pretensão; na voluntária não há ação nem pretensão, entendida a
pretensão como a exigência de que um interesse alheio se subordine ao próprio (LEITE, 2004)
Disponível: http://jusvi.com/artigos/2119. Acesso em: 12 out. 2011.
138 A Exposição de Motivos do Código de Processo Civil consagrou que a lide só é usada no projeto

para designar o mérito, embora o Código de Processo Civil empregue o vocábulo lide em sentido
diverso. Evidente a influência Carneluttiana na identificação entre lide e mérito; mas o mestre italiano
não fez tal identificação. Embora conceitue mérito a partir da lide, não diz ser essa o próprio mérito.
Este “é o complexo de questões materiais que lide a apresenta” (DINAMARCO, 1986, p. 200)
(RODRIGUES, 2002, p. 60).
136

com a finalidade de oportunizar a construção participada do provimento jurisdicional.


O julgador não deve assumir uma postura necessariamente inerte com a finalidade
exclusiva de ratificar o posicionamento dos interessados, tendo em vista que é
imprescindível que atue de forma mais ativa na participação do debate das questões
meritórias que integram a pretensão e o objeto da jurisdição voluntária, até porque
nem sempre o que as partes inicialmente buscam junto ao Judiciário é a forma mais
legítima de resguardar isonomicamente direitos de todos os interessados. Ao
julgador cabe o dever de implementar a isonomia entre as partes e os demais
interessados no debate do mérito processual da pretensão objeto da jurisdição
voluntária, além de se inserir como sujeito legitimado a participar da discussão fática
e jurídica do mérito.
A proposição teórica de discussão do mérito processual na jurisdição voluntária
é uma questão até hoje não enfrentada diretamente pelos estudiosos do processo
civil, tendo em vista a clássica associação existente entre lide e mérito processual. A
discussão da respectiva problemática cientifica implica na desconstrução da
concepção tradicional sobre mérito processual vigorante entre os autores. É
necessário repensar o mérito processual como um tema atinente ao modelo
democrático de processo e como a oportunidade de ingerência direta das partes na
construção do provimento. Para isso, faz-se necessária a superação do
entendimento de que o mérito consiste apenas na análise das questões de fato e de
direito que integram a lide, uma vez que as questões de mérito devem ser vistas
como toda e qualquer questão que viabilizará o debate da pretensão,
independentemente da sua vinculação com a lide. Não podemos desconsiderar a
existência do debate meritório nas clássicas pretensões decorrentes de uma relação
litigiosa, porém, não é possível desconsiderar ou ignorar a temática do mérito
processual no contexto da jurisdição voluntária.
Vincular o debate jurídico do mérito da pretensão à existência de lide é
reconhecer o caráter autocrático do modelo de processo civil vigente e desenvolvido
a partir da ideologização da autoridade do julgador139 em decidir e se manifestar

139
Para, então, desenvolver e desempenhar a função de Justiça Pública, estabeleceu-se a
JURISDIÇÃO, como o “PODER QUE TOCA AO ESTADO, ENTRE AS SUAS ATIVIDADES
SOBERANAS, DE FORMULAR E FAZER ATUAR PRATICAMENTE A REGRA JURÍDICA
CONCRETA QUE, POR FORÇA DO DIREITO VIGENTE, DISCIPLINA DETERMINADA SITUAÇÃO
JURÍDICA”, segundo Liebman (MARQUES, 2011) (grifo nosso). Disponível:
http://web.unifacs.br/revistajuridica/edicao_setembro2000/corpodiscente/pos-
graduacao/jurisdicao_contenciosa.htm. Acesso em: 12 out. 2011.
137

unilateralmente sobre o conflito de interesses (relação jurídica litigiosa) envolvendo


as partes diretamente vinculadas e interessadas na pretensão.

2.13 O MÉRITO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ITALIANO

O artigo 24, 1º da Constituição Republicana da Itália enuncia que todas as


pessoas poderão agir em juízo na busca da tutela de direito próprio, desde que
demonstre a legitimidade processual e o interesse jurídico na demanda
(MANDRIOLI, 2000, p. 7). O processo italiano, na concepção desenvolvida por
Mandrioli é visto como um fenômeno jurídico, ou seja, uma situação jurídica através
da qual o processo viabiliza a operacionalização e a aplicação de uma norma
jurídica genérica a um determinado caso particular (MANDRIOLI, 2000, p. 31). A
norma jurídica busca valorar abstratamente comportamentos humanos, enquanto o
processo busca a análise de uma situação jurídica especifica em que a norma
jurídica será valorada em determinado caso concreto.
O processo é visto como um fenômeno jurídico unitário, dinâmico e
instrumental, que se desenvolve a partir de uma série de situações particulares que
acontecem ao longo do tempo. Dessa análise emerge evidente a autonomia do
fenômeno jurídico processual frente ao direito substancial, ou seja, o processo passa
a ser visto como um instrumento aparentemente mais simples, que se evidencia a
partir de uma relação jurídica constituída entre o autor, o réu e o órgão judicial, cuja
finalidade é a busca pela prestação jurisdicional. Os pressupostos processuais (ou
pressupostos da relação processual) também são vistos como requisitos extrínsecos
ao mérito processual e que devem ser observados para assegurar a existência
jurídica válida da relação processual (MANDRIOLI, 2000, p. 34-37).
No direito processual civil italiano encontramos as condições da ação 140 como
requisitos intrínsecos à demanda e que devem ser previamente observados para
que o mérito processual possa ser apreciado em juízo (MANDRIOLI, 2000, p. 39-43)
(a ausência das condições da ação acarretará a impossibilidade de prosseguimento
do processo e, por conseguinte, da análise do mérito).

140
As condições da ação são requisitos indispensáveis à análise do mérito da pretensão e ao
reconhecimento da pretensão deduzida pelas partes, ou seja, são requisitos extrínsecos ao mérito
processual que visam garantir a validade da relação jurídica mediante a observância da legitimidade
ad causam, interesse de agir e da possibilidade jurídica do pedido (SATTA; PUNZI, 2000, p. 134).
138

A possibilidade jurídica do pedido, considerada a primeira condição da ação,


consiste no dever do autor da ação demonstrar previamente a viabilidade jurídica da
pretensão, para que obtenha êxito quanto à análise jurídica do mérito da demanda.
A fundamentação jurídica da pretensão (demanda) deduzida em juízo encontra-se
diretamente vinculada com a possibilidade jurídica do pedido. Dessa forma, fica
bastante complicado desvincular a fundamentação jurídica da pretensão
(possibilidade jurídica do pedido) do mérito processual, até porque, a construção do
mérito processual perpassa diretamente pela análise da fundamentação jurídica da
pretensão deduzida. Considerar a possibilidade jurídica como matéria pré-meritória
nada mais é do que antecipar a análise do mérito processual, uma vez que no
momento em que o julgador manifesta que a pretensão não é juridicamente viável
certamente analisará o mérito da demanda.
Entende-se por interesse de agir a demonstração, pelo autor da ação, de
fatos constitutivos e de fatos lesivos a um direito alegado em juízo (MANDRIOLI,
2000, p. 44), conforme preceitua o artigo 100 do Código de Processo Civil italiano. A
legitimidade para agir pode ser auferida mediante a afirmação da titularidade do
autor da ação com relação ao direito afirmado na demanda judicial em desfavor do
réu (legitimado processual ativo é aquele que afirma ser titular do direito pretendido
na demanda e legitimado processual passivo é aquele contra quem se alega a
violação do direito) (MANDRIOLI, 2000, p. 44).
A comprovação da ausência de alguma condição da ação ou de algum
pressuposto processual inviabilizará o exame do mérito (MANDRIOLI, 2000. p. 45).
O exercício da jurisdição no direito processual civil italiano consiste no poder
exercido pelo juiz que o legitima a descobrir e a criar141 o direito mais adequado ao
caso concreto (PICARDI, 2008, p. 12-15). Verifica-se que a atuação do julgador
consiste na auferição da existência de elementos pré-meritórios (condições da ação
e pressupostos processuais) bem como na análise do mérito da pretensão deduzida
em juízo. No que concerne ao exame do mérito a atuação do julgador ficará adstrita
e vinculada à alegação das partes (autor e réu), embora seja expressamente
reconhecida e legitimada a atuação de um juiz ativo e dinâmico, munido de amplos

141
Uma primeira orientação atribui ao juiz a função de “descobrir” (Rechtsfindung) as regras,
escavando na magma do direito, estendendo ou restringindo, integrando ou corrigindo o dado
normativo, o juiz desenvolve uma série de operações hermenêuticas, a sua vez sofisticadas, dirigidas
a descobrir a regula iuris e aplicá-la no caso concreto. Em definitivo, segundo tal orientação o juiz,
“encontrada” a regra, “declara-a” (Rechtsprechung); o legislador, por sua vez, dita a regra
(Rechtssetzung) (PICARDI, 2008, p. 13).
139

poderes de direção formal e material do processo (TROCKER, 1974, p.7). O juiz


dispõe de amplos poderes discricionários142 no que concerne à formação da
sentença

Já há tempos colocou-se em evidência que a atividade do intérprete não


pode se reduzir a uma simples explicitação, mas é sempre uma contínua
“reformulação” “da norma”, e também se esclareceu que a individualização
da regra a ser aplicada no caso concreto, longe de se impor do exterior, é
fruto de uma escolha que o juiz desenvolve na interpretação ou aplicação
da norma. Hoje é precisado que, no iter de formação da sentença, o juiz
dispõe de amplos poderes discricionários e, exatamente por meio do
exercício desses poderes, é que ele cria a decisão (PICARDI, 2008, p. 15).

Ainda no que diz respeito ao exercício da jurisdição no processo civil italiano


ressalta-se a pronúncia segundo o juízo de equidade, que constitui uma exceção a
regra contida no artigo 113 do Código de Processo Civil italiano, segundo a qual o
juiz deve, no momento em que for decidir, seguir a norma jurídica (MANDRIOLI,
2000, p. 69). O juízo de equidade vem ratificar a discricionariedade do julgador e
pode ser utilizado apenas excepcionalmente nas hipóteses expressamente previstas
em lei e que englobam pretensões de menor complexidade.Importante ressaltar que
tal possibilidade materializa o direito do julgador utilizar-se de argumentos de cunho
metajurídico na análise do mérito processual.
A utilização da equidade e da discricionariedade pelo julgador representa o
caráter autoritário da concepção de processo vigente no direito italiano, cujo
exercício da jurisdição encontra-se concentrado nas mãos do julgador, o que
impossibilita qualquer tentativa de democratizar a construção participada do mérito
processual.
A Lei Fundamental de Bonn143, publicada na Alemanha em 23 de maio de
1949, considerada o fundamento do neoconstitucionalismo e a base do

142
Na verdade, a discricionariedade é um conceito de relação. A discricionariedade do juiz, em
particular, é colocada em conexão indissolúvel com a própria função judiciária. Nas hipóteses em que
o juiz deva escolher entre duas ou mais alternativas, igualmente legítimas, deverá tomar a decisão
mais oportuna para desempenhar a função reclamada. O poder discricionário do juiz se, de um lado,
não é um poder vinculado, de outro, nem mesmo é um poder absoluto, enquanto relacionado à
própria função jurisdicional e, como tal, sujeito a limites. Com efeito, a margem de discricionariedade
concedida aos juizes é relativa, na medida em que opera em um determinado âmbito espacial e
temporal e, portanto, pode variar segundo os diversos ordenamentos e épocas. Uma alteração
normativa, ou de fato, ou até uma alteração socioeconômica, pode ampliar ou restringir a margem de
discricionariedade deixada ao juiz (PICARDI, 2008, p. 17).
143
Embora a Lei Fundamental de Boon tenha sido produzida no contexto do direito alemão, ressalta-
se a sua direta influência quanto ao direito processual civil italiano.
140

entendimento jurídico do Estado Constitucional de Direito, instituiu a ação como um


direito constitucional a tutela jurisdicional (TROCKER, 1974, p.183). Nesse contexto
pode-se afirmar que a acepção constitucionalizada acerca do direito de ação não
comporta as condições da ação, uma vez que a ação consiste no exercício do direito
à discussão e à análise do mérito processual, independentemente de qualquer
requisito que venha a obstaculizar o enfrentamento do mérito da demanda pelo
julgador. A ação, no processo civil italiano, caracteriza-se por ser o direito a uma
prestação jurisdicional bem diversa e autônoma da prestação que constitui o direito
substancial, ou seja, a ação é um direito para o qual o juiz (como um órgão do
Estado) manifesta-se através de um provimento de mérito (MANDRIOLI, 2000, p.
47).
O artigo 101 do Código de Processo Civil italiano enuncia que o juiz não pode
se pronunciar sobre a demanda se a parte contra a qual é proposta a ação não foi
regularmente citada para o exercício efetivo do principio do contraditório. É
importante esclarecer que a demanda consiste no pedido ao juiz de um provimento
de mérito (MANDRIOLI, 2000, p. 78-79). Faz-se necessária de instauração de uma
situação jurídica através da qual a implementação do contraditório viabilizará a
dialeticidade entre as partes no processo, a fim de proporcionar ao juiz condições de
julgamento e análise da pretensão. O processo civil italiano destaca o principio da
colaboração e da responsabilidade processual das partes com relação à construção
do provimento, ressaltando-se que a colaboração das partes não deve ser vista
como mera participação, mas sim, como a oportunidade efetiva de influenciar
diretamente na construção do mérito processual (TROCKER, 1974, p. 667-668).
A finalidade central do processo é proporcionar às partes o direito concreto de
efetivamente desempenharem o papel de sujeitos ativos e legitimados a atuarem
diretamente na solução do litígio, sabendo-se que a efetivação do contraditório
condiciona-se a existência de um espaço processual em que os sujeitos do processo
possam debater, de forma jurídica e isonômica, a pretensão deduzida em juízo.
Além de assegurar o direito de participação no processo, o contraditório
assegura às partes o direito de não serem surpreendidas por uma decisão de mérito
em que não tiveram qualquer oportunidade de participação e responsabilidade
processual. O principio do contraditório materializa o direito de igualdade de
manifestação das partes no processo (TROCKER, 1974, p. 385), ou seja, o
contraditório no processo civil italiano é visto como um princípio constitucional
141

previsto no artigo 24 da Constituição Italiana e que exterioriza o direito de defesa


das partes.
Ressalta-se, ainda, que o não enfrentamento do mérito em decorrência da
constatação da ausência de alguma das condições da ação ou dos pressupostos
processuais inviabiliza o exercício e a implementação efetiva do principio do
contraditório, tendo em vista que as partes juridicamente interessadas no provimento
não terão a oportunidade de participar da construção do mérito processual da
demanda.
O direito de participação das partes no processo materializa-se pela
oportunização de controle da atividade jurisdicional, especificamente no que diz
respeito ao mérito processual. No momento em que as partes diretamente
interessadas nos provimentos são chamadas a participarem da discussão e da
construção do mérito processual a atividade jurisdicional passa a ser exercida de
forma democrática e menos autoritária pelo julgador.
A proposta da presente pesquisa é justamente debater a existência de
critérios e de fundamentos jurídicos a fim de esclarecer quem são as partes
legitimamente habilitadas a participarem da construção do mérito processual em
cada provimento construído no âmbito jurisdicional, ou seja, busca-se, a partir da
Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas desconstruir a concepção de
processo coletivo pensado a partir dos sujeitos para compreende-lo
sistematicamente sob a égide do objeto e da noção de interessados difusos na
construção participada do mérito processual.
Sob o ponto de vista democrático-constitucional, considera-se legítimado a
participar da construção do provimento e do mérito processual toda pessoa que
demonstrar interesse jurídico na pretensão deduzida, e não apenas aqueles sujeitos
eleitos e escolhidos pelo legislador como representantes da maioria. Pensar o
processo civil e o processo coletivo na perspectiva democrática é superar a ideologia
vigente da democracia representativa (construída a partir dos representantes eleitos
pelo Estado) e desenvolver toda a produção científica sob a ótica do principio
participativo (na Constituição brasileira de 1988 encontramos no artigo 1º a
soberania popular como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,
considerada o pressuposto teórico básico ao entendimento constitucionalizado do
modelo de processo democrático).
142

No direito italiano verifica-se a extensão do conceito de legitimidade


processual para agir a partir do fenômeno jurídico das ações em grupo. O
fundamento de tais ações encontra-se na socialização dos direitos e na
reconstrução da concepção de que o processo é um recinto utilizado apenas para
garantir a satisfação dos direitos de cunho individual. Nos termos trazidos pela
Constituição Italiana a compreensão social dos direitos encontra-se diretamente
inserida na dinâmica da estrutura processual vigente, considerada o fundamento
para o exercício das liberdades fundamentais. A relativização do conceito individual
de legitimado à propositura de ações judiciais se contrapõe aos direitos coletivos,
responsáveis por ampliar o espectro do entendimento dos sujeitos legitimados à
construção do mérito processual (TROCKER, 1974, p. 209-210).
As ações em grupo são consideradas uma categoria das ações coletivas e
foram criadas especificamente para ampliar a esfera dos sujeitos legitimados a
provocar a intervenção do órgão jurisdicional e ampliar o campo da situação jurídica
subjetiva e subjacente à relação processual (TROCKER, 1974, p.211). A tutela
jurisdicional dos direitos coletivos significa a emancipação do sujeito, que poderá
buscar a proteção não apenas de direitos de natureza individual. O Judiciário abre-
se para viabilizar a tutela dos direitos da coletividade, uma vez que o artigo 24 da
Constituição Italiana passou a assegurar a todos os cidadãos individuais e a toda a
coletividade, grupo de pessoas e instituições voltadas a proteção dos direitos de
todos os interessados difusos e coletivos a facilitação do direito de acesso ao
Judiciário mediante a ampliação do conceito de legitimado processual (TROCKER,
1974, p. 215).
Ultrapassado o debate jurídico referente ao direito de ação e a legitimidade
processual144 do direito italiano145 é importante ressaltar a distinção proposta pelo
direito processual civil italiano existente entre questão preliminar de mérito e questão
prejudicial de mérito (MONTESANO; ARIETA, 1997, p. 398). Considera-se questão
preliminar de mérito a inobservância de requisitos legais considerados
indispensáveis à análise do mérito da pretensão (condições da ação e pressupostos
processuais), visto que o preenchimento de tais requisitos certamente viabilizará o

144
Analisando o processo civil italiano verifica-se que a legitimidade processual ativa decorre da
demonstração, pelo autor da ação, da viabilidade jurídica da pretensão, assim como a demonstração
da coerência dos fatos e dos fundamentos jurídicos ora alegados em juízo ( PICARDI; GIULIANI,
2004, p.13).
145
Importante esclarecer que assim como no processo civil brasileiro, o processo civil italiano
diferencia sentença definitiva de sentença não definitiva (terminativa) (PICARDI, 2003, p. 70)
143

exame das questões meritórias, podendo ocorrer ou não o reconhecimento da


pretensão e dos pedidos inicialmente deduzidos em juízo (LUIZO, 1997, p. 53-55).
Dessa forma, resta evidente que a questão preliminar de mérito refere-se à matéria
de cunho processual que inviabiliza o adentramento, pelo juiz e pelas partes, na
discussão do mérito processual (é por isso que se menciona as condições da ação e
os pressupostos processuais como matérias clássicas a demonstração da preliminar
de mérito). A propositura de uma ação de conhecimento com a finalidade de exigir o
cumprimento de um determinado contrato poderá ensejar a alegação da preliminar
de ausência de interesse de agir por se tratar de titulo executivo extrajudicial,
ocasionando, assim, a extinção do processo sem julgamento do mérito.
No que diz respeito à questão prejudicial de mérito pode-se afirmar que não
estamos nos referindo especificamente a matéria processual, ou seja, ao contrário
das questões preliminares que inviabilizam a análise do mérito da pretensão por
questões de natureza estritamente processual, as questões prejudiciais inviabilizam
o enfrentamento do mérito da pretensão deduzida muitas vez pela existência de
alegações e de questões atinentes ao direito material.
Considera-se questão prejudicial de mérito a existência de alegações ou de
questões, normalmente vinculadas ao direito material, surgidas ao longo do
processo que inviabilizam o enfrentamento do mérito pelo julgador. Um clássico
exemplo é a demonstração da prescrição no caso de uma ação de cobrança. Mesmo
comprovando-se a legitimidade do requerente e do requerido, demonstrada a
possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir das partes, os pressupostos
processuais de validade e de existência da relação jurídico-processual sabe-se que
a análise do mérito processual fica prejudicada pelo reconhecimento judicial da
prescrição. O magistrado não adentrará na discussão e na análise referente à
existência ou a inexistência de uma relação jurídico-obrigacional entre credor e
devedor, ou seja, não haverá análise do mérito processual (se o requerido poderá ou
não ser condenado a pagar o requerente) por ser a prescrição considerada uma
questão prejudicial de mérito (a prescrição e a decadência, embora sejam
consideradas no direito brasileiro hipóteses de resolução do mérito da pretensão,
devem ser reconhecidas como questões prejudiciais de mérito, tendo em vista que
inviabilizam a discussão das especificidades atinentes ao mérito da pretensão
deduzida em juízo).
144

Conforme exposto, é de competência exclusiva do juiz, no processo civil


italiano e brasileiro, a análise das questões de mérito apresentadas pelas partes em
juízo. Todavia, antes de proferir a decisão das questões de mérito o julgador deverá
se manifestar acerca das questões prévias, consideradas indispensáveis à análise
do mérito da pretensão, tais como as preliminares e as prejudiciais de mérito.
“Conforme Barbosa Moreira e Thereza Alvim, as questões prévias podem ser
classificadas como questões preliminares ou questões prejudiciais – embora
Cândido Dinamarco prefira chamar as prejudiciais de questões de mérito, de acordo
com o tipo ou o teor de influência exercido sobre as questões posteriores” (FREIRE,
2011)146.
Verifica-se nos estudos apontados a constante preocupação dos juristas em
diferenciar o mérito processual de outras questões processuais, ora denominadas
questões prévias e questões posteriores. O critério muitas vezes utilizado para tais
distinções refere-se à análise ou não das questões de fato e de direito que
permeiam a matéria de mérito trazida pelas partes em juízo. Considera-se preliminar
toda questão que antecede ou se encontra alheia à matéria de mérito; prejudiciais
são aquelas questões que não se confundem com as preliminares, mas que
comprometem, sobremaneira, a análise das questões meritórias pelo julgador. É
nesse sentido que se posiciona Barbosa Moreira e Thereza Arruda Alvim

Note-se, porém, que é possível entre duas questões (questão prévia e


questão posterior) ocorrer uma relação de dependência lógica, sem que
uma delas (a questão posterior) seja exatamente a questão de mérito.
Barbosa Moreira oferece a respeito interessante exemplo: numa ação
popular, a questão sobre a validade do ato de naturalização é prévia
(prejudicial) em relação à questão sobre a legitimidade para a causa e esta,
por sua vez, é prévia (preliminar) em relação à questão de mérito. Outro
bom exemplo é o de Thereza Alvim: tendo o autor usado do procedimento
sumário (sumaríssimo à época), objeta o réu quanto ao valor da causa
(porque, exemplificativamente, tem interesse em promover reconvenção); a
questão sobre o valor é prévia (prejudicial) em relação à questão do tipo de
procedimento, enquanto a questão do procedimento será prévia
(preliminar) em relação à questão de mérito (FREIRE, 2011)147.

A problemática cientifica que permeia toda essa discussão refere-se a


distinção jurídica a ser estabelecida entre mérito processual e questão prejudicial de
mérito, tendo em vista a proximidade existente entre os institutos. Considera-se
146
Disponível: http://jus.com.br/revista/texto/4145/preliminares-prejudiciais-e-merito-da-causa. Acesso:
18 set. 2011.
147
Disponível: http://jus.com.br/revista/texto/4145/preliminares-prejudiciais-e-merito-da-causa. Acesso:
18 set. 2011.
145

discussão meritória a análise das questões que integram (não somente permeiam) a
pretensão deduzida em juízo. Já as prejudiciais de mérito são questões que
permeiam o mérito processual e que se constatadas inviabilizam a análise das
questões inerentes ao mérito da pretensão deduzida.
As prejudiciais de mérito, conforme mencionado anteriormente são questões
que se encontram mais diretamente vinculadas ao direito material (não são questões
processuais que inviabilizam a análise do mérito, tais como as preliminares de
mérito), e que quando constatadas impedem que o mérito seja julgado pelo juiz.
Uma ação proposta por um servidor investido em cargo comissionado visando uma
vantagem pecuniária assegurada apenas aos servidores de cargos efetivos é um
exemplo que ilustra bem a distinção existente entre questão prejudicial de mérito e o
mérito processual propriamente dito. Nesse caso, o juiz competente não poderá
adentrar especificamente à análise do mérito da pretensão deduzida (que consiste
no direito à gratificação pecuniária e no valor de eventual condenação do Estado)
pelo fato da existência de uma questão prejudicial, que consiste na demonstração de
que o próprio autor da ação não tem legitimidade para reivindicar tal direito. Não se
tratar de hipótese de ilegitimidade processual ativa porque a comprovação de tal
situação perpassa pela análise do direito material e não se refere especificamente
ao direito processual. Considerar-se-ia preliminar de mérito no presente caso se
fosse constatado de imediato que o autor da ação não era servidor publico
(comissionado ou efetivo). Como foi necessário avaliar o direito material antes da
análise do mérito processual, considera-se que se trata de clássico exemplo de
prejudicial de mérito, tendo em vista que foi necessário que o juiz competente
verificasse inicialmente que o direito à pretendida vantagem pecuniária estende-se
apenas aos servidores efetivos, e não aos servidores comissionados. Não era
possível, mediante análise preliminar, que no presente caso o magistrado auferisse
a ilegitimidade processual ativa, uma vez que foi necessário adentrar à análise de
questões referentes ao direito material para constatar a impossibilidade de
julgamento do mérito da pretensão deduzida em juízo.
Outra discussão que surge no presente contexto é a seguinte: no momento
em que o magistrado acolhe uma prejudicial de mérito será proferida sentença
definitiva ou sentença terminativa. O esclarecimento cientifico de tal indagação
perpassa inicialmente pelo estudo crítico-sistematizado do mérito processual.
Considera-se sentença definitiva ou sentença de mérito aquela em que o magistrado
146

se manifesta acerca do direito material alegado e pretendido pelas partes em juízo.


Sentença terminativa é aquela proferida pelo magistrado quando o mesmo justifica a
existência de uma questão processual que o impossibilite de analisar o direito
material pretendido pelas partes em juízo.
No momento em que o magistrado profere decisão fundamentada justificando
a impossibilidade de análise do direito material pretendido pelas partes em
decorrência da existência de uma questão prejudicial de mérito profere uma
sentença que não se enquadraria basicamente em nenhuma das duas classificações
acima mencionadas e adotadas pelo Código de Processo Civil brasileiro vigente e
também preconizada pelo processo civil italiano (sentenças terminativas e sentenças
definitivas).
Trata-se de sentença em que o magistrado fundamenta a impossibilidade de
análise do mérito da pretensão inicialmente deduzida em virtude da existência de
uma questão prejudicial (questão atinente ao direito material e que justifica a
impossibilidade de análise do mérito da pretensão inicialmente deduzida). Nesse
caso o magistrado não estaria julgando o mérito da pretensão porque não adentraria
à análise do direito material pretendido pelas partes em juízo. O magistrado também
não estaria se esquivando da análise do mérito da pretensão inicialmente deduzida
por constatar a existência de uma questão de ordem processual que pudesse
inviabilizar o julgamento do mérito (preliminar de mérito decorrente da ausência de
condições da ação ou de pressupostos processuais). A decisão proferida no
presente caso consiste na justificativa judicial de impossibilidade de apreciação do
mérito processual por constatar a existência de uma questão de direito material que
impossibilite tal análise e julgamento.
Dessa forma, pode-se afirmar que a sentença que aprecia e reconhece a
existência de uma questão prejudicial é considerada uma sentença atípica, tendo em
vista que deixa de julgar o mérito processual por razões vinculadas ao direito
material, e não ao direito processual. Por isso, não se poderia inclui-la na clássica
classificação proposta pelo processo civil italiano e brasileiro, que dicotomiza as
sentenças a partir do critério em que o julgador analisa ou não o mérito da pretensão
a partir de justificativas de ordem essencialmente processual. Não existe no
processo civil brasileiro e italiano uma espécie de sentença que justifica o não
julgamento do mérito processual a partir de questões atinentes ao direito material, tal
como a prejudicial de mérito.
147

O que encontramos na doutrina e na legislação brasileira é o enquadramento


da sentença que acolhe a prejudicial de mérito no conceito de sentença definitiva.
Trata-se de posicionamento minimamente precipitado, sob o ponto de vista do
entendimento critico do processo civil democrático. Tal crítica se justifica inicialmente
pelo seguinte argumento: no acolhimento da prejudicial de mérito não há o
julgamento do mérito da pretensão inicialmente deduzida em juízo, mas sim, a
justificativa do não julgamento do mérito da pretensão por razões inerentes ao direito
material. O julgamento do mérito processual ocorreria se o magistrado enfrentasse
as questões alegadas pelas partes em juízo e que servem de condão para justificar
o direito material pretendido. O acolhimento da prejudicial de mérito busca justificar a
impossibilidade de discussão das questões suscitadas pelas partes com o propósito
de reconhecer o direito material pretendido. É por isso que se trata de uma espécie
de sentença atípica que não pode ser confundida com a sentença definitiva, tal
como trabalhada no Código de Processo Civil brasileiro de 1973.
Recentemente o processo civil italiano passou por uma reforma que buscou
estabelecer critérios mais claros para o entendimento dos prazos peremptórios.
Pretendeu-se limitar o tempo para a conclusão do processo mediante a restrição dos
prazos recursais (PANZAROLA, 2009). Estabeleceu-se, também, um regime mais
rígido das preclusões como o parâmetro para reger todo o processo civil sob a ótica
da efetividade, tendo em vista que “na Itália, como se pôde ver, a longa duração dos
processos faz parte da história” (SCHENK, 2011)148. A superação da morosidade
judicial é considerada um dos principais desafios do processo civil italiano e, por
isso, o legislador italiano buscou “resolver o problema com a fixação de termos
peremptórios para a prática dos atos processuais” (SCHENK, 2011)149.
Trata-se da mesma ideologia que norteia a elaboração do Anteprojeto do
Novo Código de Processo Civil brasileiro, centrada no entendimento do processo
civil visto sob a égide do tempo cronológico. Verifica-se que o legislador continua a
alimentar o entendimento equivocado de que o problema da morosidade judicial será
resolvido por meio de simples intervenção legislativa.

148
Disponível: http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-eletronica-de-direito-processual/volume-
ii/breve-relato-historico-das-reformas-processuais-na-italia-um-problema-constante-a-lentidao-dos-
processos-civeis/. Acesso: 25 set. 2011.
149
Disponível: http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-eletronica-de-direito-processual/volume-
ii/breve-relato-historico-das-reformas-processuais-na-italia-um-problema-constante-a-lentidao-dos-
processos-civeis/. Acesso: 25 set. 2011.
148

Fica evidente que a intenção do legislador, tanto no processo civil italiano,


quanto no processo civil brasileiro, é tão somente reduzir o tempo de duração do
processo, acarretando, assim, a sumarização da cognitio mediante a restrição do
espaço processual de argumentação da pretensão pelas partes juridicamente
interessadas. Ao limitar os prazos recursais e restringir o número de recursos
cabíveis o legislador alimenta a ideologia de que ocorrerá a amenização da
morosidade judicial.
Repensar o processo civil a partir desses parâmetros teóricos é perpetuar a
concepção autocrática de um modelo de processo incompatível com o Estado
Democrático de Direito. A superação da morosidade judicial não será possível
através da sumarização da cognitio e da deslegitimação das partes interessadas na
discussão ampla e na construção participada do provimento. Reduzir os prazos
recursais, assim como diminuir o número de recursos cabíveis no processo civil, é o
mesmo que limitar o acesso ao Judiciário e suprimir a legitimidade de todos os
interessados poderem discutir e participar isonomicamente da construção do mérito
processual.
O que pretende o legislador brasileiro através das constantes reformas
processuais é fortalecer a autoridade do julgador e restringir o espaço de
participação das partes na construção do mérito processual, reduzindo, assim, a
legitimidade dos interessados no acesso amplo ao Judiciário, tal como esculpido no
artigo 5º, inciso XXXV da Constituição brasileira de 1988.

2.14. SÍNTESE

A elaboração do primeiro capítulo da presente pesquisa cientifica justifica-se na


necessidade de apresentação e de demonstração que a base teórica do estudo do
mérito encontra-se no processo civil, especificamente nas questões ou nas matérias
fáticas e/ou jurídicas trazidas pelas partes para serem apreciadas pelo juiz ao longo
do processo. Na sistemática apresentada pelos autores estudados resta claro que o
julgamento do mérito consiste na análise, pelo julgador, das questões de mérito
trazidas pelas partes (autor e réu) para o processo. A crítica inicialmente proposta é
149

que a noção de mérito trabalhada no contexto do processo civil é restritiva,


dogmática e vinculada à legitimidade unilateral do juiz julgar o caso concreto. Os
autores clássicos não trabalham a noção de mérito como produto do debate amplo
das questões de mérito por todos interessados na demanda e pelo juiz. O que se
busca, ao longo dessa pesquisa, é propor a construção de um conceito de mérito a
partir da leitura crítica dos autores que estudaram o instituto no contexto do processo
civil.
A proposta da respectiva pesquisa cientifica é desenvolver um estudo jurídico
acerca do mérito processual, especificamente no que tange à sua construção no
modelo de processo coletivo proposto pelo Estado Democrático de Direito. Por isso,
procurou-se inicialmente esclarecer o caráter ideológico do instituto do mérito
processual, demonstrando a ausência de sérios critérios científicos utilizados como
parâmetro ao seu estudo, tendo em vista a sua ínsita relação com a causa de pedir
próxima, causa de pedir remota, matéria de fato, matéria de direito, pretensão,
objeto da lide e demanda. Verifica-se, ainda, que o Código de Processo Civil
brasileiro de 1973 adotou expressamente na sua Exposição de Motivos a estreita
vinculação existente entre lide e mérito processual, procurando-se ressaltar a
concepção carneluttiana para a qual o pressuposto teórico para o entendimento
jurídico do mérito processual é a demonstração da existência de uma relação
jurídica litigiosa entre as partes.
No estudo do Direito Romano foi possível verificar inicialmente que a
compreensão do mérito encontra-se diretamente vinculada à matéria de fato e a
matéria de direito integrante da pretensão deduzida pelas partes e que a análise do
mérito era uma prerrogativa exclusiva do juiz, tendo em vista que ao magistrado
incumbia delimitar o objeto do processo e controlar a regularidade da marcha
processual.
Oskar Von Bülow procurou diferenciar matéria de mérito de questões
extrínsecas ao mérito ao ressaltar que a análise do mérito processual condicionava-
se à constituição válida e regular da relação jurídico-processual diante de um juiz
competente e legitimado para a análise da pretensão deduzida pelas partes. Por
isso, desenvolve toda sua teoria a partir dos pressupostos processuais,
considerados os requisitos extrínsecos ao mérito e cuja finalidade é a
operacionalização e a constituição válida da relação processual, legitimando o
julgador no controle da observância de tais requisitos. Considerado o interprete
150

especializado da lei, o juiz detém a legitimidade para averiguar os requisitos legais


extrínsecos ao mérito, assim como se encontra investido na autoridade de
apreciação do mérito processual a partir da análise do Direito Subjetivo do autor da
ação.
Em Chiovenda a legitimação do julgador no exercício da jurisdição consiste na
busca da atuação positiva ou negativa da vontade concreta da lei, enaltecendo o
principio da legalidade como norma jurídica regente para o controle da jurisdição. É
muito próxima a relação existente entre mérito processual e demanda judicial
quando se analisa a obra de Chiovenda, tendo em vista que a legitimidade do
julgador analisar o mérito da pretensão fica condicionada à observância dos limites
impostos pelo principio da legalidade no que tange ao exercício da jurisdição e
também às questões de fato e de direito levantadas pelas partes interessadas e que
integram a demanda judicial. Isso significa dizer que o julgador não possui uma
liberdade incondicionada quanto à análise do mérito, tal como proposto por Bulow,
até porque, para Chiovenda, são as partes que direcionam o foco do debate judicial
como parâmetro à análise do mérito processual pelo juiz. Chiovenda ressalta o
principio da oralidade como fundamento regente para o maior aprimoramento da
participação das partes na construção do mérito processual mediante a aproximação
dos interessados no conflito, facultando ao juiz uma análise mais aprimorada acerca
das peculiaridades fático-jurídicas inerentes à pretensão. Mesmo assim não é
possível afirmar que a análise do mérito processual na obra de Chiovenda ocorre de
forma democrática por meio da participação das partes, tendo em vista que a
prerrogativa para julgar o mérito da pretensão ainda é exclusiva do juiz.
A dialeticidade na relação processual é uma característica peculiar da obra de
Calamandrei e, por isso, autor e réu poderão atuar de forma dinâmica na construção
participada do mérito processual. Verifica-se, em sua obra, a possibilidade de
atuação mais direta e efetiva das partes na construção do provimento. Há uma
intrínseca relação existente entre direito de ação e mérito processual, tendo em vista
que a fundamentação jurídico-legal decorrente da relação jurídica de direito
substancial representa, na obra de Calamandrei, os requisitos inerentes à análise do
mérito na perspectiva concretista do direito de ação, tendo em vista a clássica
distinção que faz entre relação jurídica de direito substancial e material.
Francesco Carnelutti é o grande precursor do estudo e da compreensão do
mérito processual vinculado ao conceito de lide, considerando-a como um fenômeno
151

metaprocessual caracterizado por um conflito intersubjetivo de interesses qualificado


por uma pretensão resistida. Tal proposição teórica foi adotada expressamente na
Exposição de Motivos do Código de Processo Civil brasileiro de 1973 ao reconhecer
que o julgador é parte legitimada a conduzir unilateralmente a construção do mérito
processual, dispensando-se qualquer tipo de participação das partes interessadas.
O manejo e a análise da matéria de fato pelo julgador e a repercussão jurídico-legal
da pretensão deduzida em juízo pelas partes são considerados os parâmetros para
o entendimento do mérito processual na obra de Carnelutti. Ressalta-se que o
exercício legítimo do direito de ação na perspectiva carneluttiana, tem como
conseqüência jurídica a possibilidade de resolução da lide mediante a análise do
mérito da demanda.
Ao considerar o juiz como o intérprete qualificado da lei, Enrico Tullio Liebman
afirma que o poder de decidir é uma prerrogativa exclusiva da jurisdição, cuja
finalidade específica é dirimir relações jurídicas conflituosas existentes entre as
partes. O mérito da pretensão delimita-se pelo pedido das partes, uma vez que o
objeto da demanda é considerado o parâmetro para o debate processual das
questões meritórias trazidas pelas partes no processo. Ao desenvolver suas
proposições teóricas Liebman, assim como Bulow, Chiovenda e Carnelutti,
compreende o processo como uma relação jurídica constituída pelas partes diante
do juiz, considerada a autoridade legitimada para a análise do mérito da demanda
independentemente de qualquer participação dos interessados na construção do
provimento.
Ao propor um novo modelo de processo, compatível com o Estado
Democrático de Direito, Elio Fazzalari revisita a concepção autoritária do mérito
processual preconizada até então pelos estudiosos do processo civil a partir da obra
de Liebman, Chiovenda e Carnelutti. O mérito processual deixa de ser uma
prerrogativa exclusiva do processo judicial e passa a ser estudado sob a ótica do
processo legislativo e administrativo. Dessa forma, verifica-se que a construção do
mérito será possível em qualquer processo em que o contraditório efetivamente se
instaura mediante a oportunização de debate isonômico da pretensão por todos
aqueles que demonstram aptidão de sofrer os efeitos jurídicos do provimento.
Fazzalari entende o provimento de mérito como aquele em que o juiz adentra à
análise das questões de mérito que integram a pretensão deduzida, porém, antes de
152

adentrar à construção do mérito o magistrado deverá analisar a situação que o


legitima a emanar o provimento jurisdicional.
No Processo Civil Italiano verifica-se que as condições da ação são
juridicamente tratadas como questões extrínsecas à discussão meritória da
pretensão, que poderão ser alegadas por meio das preliminares de mérito (meio de
defesa através do qual o demandado poderá alegar a impossibilidade de apreciação
ou de análise do mérito da demanda pelo fato da parte autora inobservar os
requisitos técnicos que viabilizam a discussão meritória). Ao debater as questões
prejudiciais de mérito os processualistas italianos, tais como Picardi, afirma que se
trata de questões normalmente vinculadas ao direito material e que quando surgidas
ao longo do processo inviabilizam a análise do mérito da demanda pelo julgador. A
problemática cientifica que permeia toda essa discussão diz respeito à distinção
jurídica existente entre mérito processual e questão prejudicial de mérito.
Consideram-se mérito todas as questões que integram (não somente permeiam) a
pretensão deduzida em juízo, enquanto as prejudiciais de mérito são questões que
permeiam o mérito processual e que se constatadas inviabilizam a análise das
questões inerentes ao mérito da pretensão deduzida.
Estabelecer as condições da ação e os pressupostos processuais como
requisitos indispensáveis à apreciação do mérito da pretensão certamente é limitar o
acesso ao Judiciário, considerando-se o principio da inafastabilidade do controle
jurisdicional (artigo 5º, inciso XXV da Constituição brasileira de 1988) como norma
regente que assegura indistintamente a todo jurisdicionado o direito de amplo
acesso ao Judiciário. Ter acesso ao Judiciário sob a perspectiva da
constitucionalidade democrática é ter o direito de participar amplamente da
discussão e da construção do mérito processual referente a toda pretensão a qual a
parte demonstre interesse jurídico.
O estudo sistemático do mérito processual pressupõe a superação do
entendimento que parte da premissa de que a cognição é um ato de inteligência ou
de sapiência inata do julgador. É necessário reconstruir e ressemantizar o
entendimento critico acerca da cognição processual, que deverá ser vista sob a
perspectiva do modelo constitucional e democrático de processo. A atividade
cognitiva centrada na autoridade do juiz é mero reflexo do modelo autocrático
adotado pelo direito processual civil brasileiro vigente e incompatível com a
Constituição brasileira de 1988. A cognição não deve ser vista como uma atividade
153

exclusiva do juiz, mas sim como uma prerrogativa das partes, cujo exercício dar-se-á
a partir do debate da pretensão mediante a implementação dos princípios
constitucionais do contraditório, da ampla defesa, da isonomia processual e do
devido processo legal. A resignificação teórica da cognição sob o patamar
democrático-constitucionalizado deve ser vista como o fundamento teórico regente
ao entendimento crítico do mérito processual como um espaço que legitima as
partes interessadas ao debate fático-jurídico da pretensão deduzida.
O mérito no processo civil deve ser entendido como toda a matéria de fato e
de direito, trazida pelas partes (autor e réu) para o processo, e definida como
relevante pelo julgador no momento em que for apreciar e decidir as peculiaridades
e as questões que integram a pretensão deduzida em juízo. O mérito no processo
coletivo é resultado da participação de todos os interessados difusos e coletivos na
definição da matéria e das questões de mérito para, assim, viabilizar a constituição
de um lócus processual de ampla discursividade da pretensão e alcançar, por
conseguinte, a legitimidade democrática do provimento jurisdicional.
154

3. ANÁLISE CRÍTICA DA REPERCUSSÃO DO MODELO ATUAL DO PROCESSO COLETIVO

PARA A FORMAÇÃO DO MÉRITO

O objetivo da pesquisa nesse segundo momento é discorrer inicialmente


sobre a gênese do processo coletivo, buscando-se levantar os fundamentos teóricos
utilizados pelos estudiosos como parâmetro ao estudo crítico do modelo de processo
coletivo vigente. Na seqüência, desenvolver-se-á uma análise do processo coletivo a
partir do modelo proposto pela Constituição brasileira de 1988, que estabelece com
um dos seus pilares, já no artigo 1º, a soberania popular.
Considerando-se as peculiaridades da pretensão coletiva, bem como o
fundamento regente do modelo de processo adotado pelo Estado Democrático de
Direito, torna-se indispensável a abordagem critica da sistemática proposta pelo
modelo de processo coletivo desenvolvido pela Escola Paulista, especificamente no
que diz respeito à legitimidade processual.
A desconstrução do modelo de processo coletivo centrado no sistema
representativo será possível mediante a constitucionalização das reflexões jurídicas
a serem oportunamente desenvolvidas. No mesmo sentido, pode-se afirmar que o
processo coletivo democrático não pode mais ser pensado e estudado a partir do
sujeito, e especialmente sob a ótica exclusiva do julgador. É necessário, no
paradigma democrático, que o processo coletivo seja pensado a partir do objeto, ou
seja, o legislador, assim como o magistrado, não possui legitimidade jurídica para
estabelecer taxativamente quem serão os legitimados à propositura das ações
coletivas, excluindo-se, muitas vezes, inúmeros interessados difusos e coletivos na
pretensão. Tal afirmação se justifica a partir da Teoria das Ações Coletivas como
Ações Temáticas, desenvolvida há pelo menos 15 anos pelo processualista mineiro
Vicente de Paula Maciel Junior, para quem a legitimidade processual de qualquer
sujeito numa ação coletiva será definida pelo objeto ou pelo tema ora posto em
discussão. Qualquer interessado difuso ou coletivo terá legitimidade processual para
figurar como parte no processo coletivo democrático, desde que demonstre
claramente o interesse jurídico na pretensão.
Continuar estudando o processo coletivo sob a vertente autoritária é o mesmo
que legitimar o acesso restrito ao Judiciário, algo incompatível com o disposto no
artigo 5º, inciso XXXV da Constituição brasileira vigente. No momento em que o
155

legislador estabelece taxativamente os legitimados à propositura das ações


coletivas, restringindo a legitimidade processual dos interessados difusos e coletivos,
viola a soberania popular e a cidadania, considerados dois importantes fundamentos
jurídicos do Estado Democrático de Direito.
Antes de adentrar especificamente na reflexão cientifica da temática
envolvendo o processo coletivo democrático, faz-se necessário um estudo da
historicidade e da gênese do processo coletivo.

3.1. HISTORICIDADE DO PROCESSO COLETIVO

A proteção dos direitos coletivos, de natureza metaindividual, é uma


preocupação que transpassa a historiografia mundial desde os primórdios, ou seja, a
necessidade de disciplinar juridicamente tais direitos coincide certamente com o
advento das civilizações150.
Nesse ínterim, pode-se afirmar que o antecedente histórico mais remoto que
se tem noticia no estudo do Direito Coletivo é a ação popular romana. O interesse
dos romanos para com a proteção jurídica não apenas dos conflitos individuais
certamente se explica pela construção do ideal de Democracia prevalente ao longo
de toda a história do Império Romano.
Tal afirmação se justifica pela solidificação da idéia de interesse público,
muito evidente no Direito Romano e produto da construção da res publica que
viabilizava o sentimento de cada cidadão romano poder pleitear judicialmente e
também participar de todas as decisões referentes ao interesse público. Por isso,
resta clara a afirmação de que, embora a base do Direito Romano encontrava-se
sedimentada no Direito Privado, o cidadão romano podia participar ativamente da
vida do Estado através do instrumento da ação popular, o que não significava a

150
Desde os primórdios das ações em grupo (representative actions) na Inglaterra, o caráter coletivo
esteve associado e vinculado ao interesse comum (common interest), tendo sido transplantado
posteriormente para outros países. Em determinadas legislações, como nos Estados Unidos, a
essência coletiva do processo passou a estar ligada à obrigatoriedade da proteção metaindividual, no
caso, mediante o uso das class actions (mandatory class actions). No ordenamento americano, a
solução judicial unitária se faz necessária, expressamente, para impedir condutas incompatíveis da
parte adversa da classe, nos termos da Regra 23 (b) (1) (A), e, também, para não permitir que a
instauração de um processo, por determinada pessoa, acabe, na prática, dispondo sobre o interesse
de outros indivíduos, que não figuram como parte, ou interferindo de modo a impedir ou prejudicar os
interesses destes (MENDES, 2006, p. 36).
156

prevalência absoluta dos interesses estatais em detrimento dos interesses dos


cidadãos (LEONEL, 2002, p. 40-43).
A ação popular romana tinha caráter predominantemente penal e visava,
acima de tudo, a defesa de coisas públicas e de caráter sacro. Dentre os
legitimados, as mulheres e os menores eram excluídos, por não serem reconhecidos
como cidadãos. Ressalta-se, ainda, a impossibilidade de substituição processual em
caso de morte do autor da ação, o que demonstra ser um profundo equivoco, até
porque se o objeto da ação versa sobre uma pretensão metaindividual não se
justificava a extinção do processo com a morte do autor da ação.
Admitia-se também a qualquer tempo a oposição de exceção à coisa julgada
sempre que demonstrado o interesse juridicamente legitimo de prosseguir com o
debate jurídico de novas questões relacionadas à pretensão inicialmente deduzida
em juízo e de caráter e interesse da coletividade (LEONEL, 2002, p. 44-45).
Resta esclarecer que através da ação popular o cidadão romano podia
controlar a atividade estatal, com o propósito de averiguar se o interesse da
coletividade estava sendo efetivamente protegido. Tratava-se de uma instrumento
hábil a controlar não somente a atividade estatal mas, acima de tudo, limitar o
exercício abusivo das liberdades individuais que pudessem contrariar os interesses
da coletividade. Nesse sentido afirma-se

A ação popular tinha em Roma amplitude extraordinária, servindo não


somente para a tutela de interesses individuais com conseqüências
publicas (como no caso de defesa pessoal do uso de vias publicas por
meio do interdictum ne quid in loco publico vel itinere fiate; como ainda da
utilização dos rios, ancoradouros, bebedouros, entre outras coisas, por
força dos interdictum ne quid in flumine publico ripave ejus Fiat; uso de
esgotos públicos, por meio do interdito de cloacis, entre outros); mas ainda,
e sobretudo, para a tutela de interesses mais propriamente coletivos, como
na defesa de sepultura comum, efetivação de fundações instituídas por
atos de disposicao de ultima vontade, oposição à colocação de telhas e
janelas de coisas que pudesses ser lançadas à rua, entre outras (LEONEL,
2002, p. 47).

É recente a regulamentação da ação popular, tendo ocorrido em 30 de março


de 1836 com a lei comunal, na Bélgica e, em seguida, na França, com a lei comunal
de 18 de julho de 1837. Na Itália foram implementadas em 20 de setembro de 1859
a lei 26, que previa a possibilidade de ação popular para matéria eleitoral, e também
a Lei 765, de 06 de agosto de 1927, que previa o uso da ação popular em matéria
urbanística (LEONEL, 2002, p. 52).
157

A experiência inglesa é considerada juridicamente relevante no estudo e na


análise histórica do processo coletivo. Verifica-se no sistema common Law a
existência de instrumentos do processo coletivo, considerados a gênese da class
action. Desde o século XVII verifica-se na Inglaterra a existência de Tribunais de
Equidade (Courts of Chancery), que admitiam o Bill of Peace (trata-se de um modelo
de demanda que rompeu com o principio segundo o qual todos os interessados
devem participar do processo). Houve, nesse período histórico, o advento do
sistema representativo no processo coletivo inglês, uma vez que se passou a admitir
que determinados grupos de indivíduos atuassem em nome próprio na defesa dos
interesses de seus representados (legitimidade extraordinária) (LEAL, 1998, p. 140).
Importante ressaltar que da experiência das cortes inglesas encontramos a
gênese das ações de classe (class action), difundida no sistema norte-americano
principalmente a partir do ano de 1938, com o advento da Rule 23 das Federal Rules
of Civil Procedure. Em 1966 verifica-se uma importante reforma no sistema norte-
americano que sedimentou o sistema da class action.
A Inglaterra é apontada pelos estudiosos como o berço dos litígios coletivos,
tendo em vista que as ações de grupo tornaram-se freqüentes nos séculos XIV e XV
(MENDES, 2009, p. 39)151. A Court of Star Chamber cumpriu durante
aproximadamente duzentos e cinquenta anos importante papel diante da resolução
de litígios coletivos. Durante o século XVII temos o desenvolvimento do Bill of Peace,
considerada uma instituição legitimada a julgar demandas coletivas condicionadas a
existência de interesses comuns, envolvendo um numero elevado de pessoas
comprovadamente vinculadas aos efeitos da coisa julgada (MENDES, 2009, p. 43).
Com o advento das corporações o período compreendido pelos anos 1700 a 1850
caracteriza-se pelo declínio dos litígios de grupos na Inglaterra, fatores esses que
contribuíram de forma direta para que praticamente no final do século XIX e inicio do
século XX o desaparecimento das ações coletivas por longo período na Inglaterra. A
partir da segunda metade do século XX verifica-se o ressurgimento das ações

151
As ações de grupo tornaram-se freqüentes nos séculos VIV e XV, especialmente nos povoados
(villages) e paróquias (parishes), refletindo, por certo, a estrutura e organização social daquela época,
em que as instituições intermediárias, como a família, as vilas, a Igreja, concentravam importância
econômica e política, formando a base do sistema de produção. A defesa dessas células sociais no
processo pelos seus respectivos lideres, foi se desenvolvendo e multiplicando naturalmente
(MENDES, 2009, p. 39).
158

coletivas na Inglaterra com o advento das representative actions, contidas desde


1965 na Order 5 e Rules 12152 e 13153 (MENDES, 2009, p. 45).
No direito norte-americano no ano de 1820 o caso West v. Randall é
considerado a primeira demanda coletiva registrada historicamente. Em 1829 a
Suprema Corte apreciou o caso Beatty v. Kurtz, ação coletiva proposta por um grupo
de luteranos em desfavor de um herdeiro que estaria ameaçando de lhes retirar a
posse do barracão onde faziam suas pregações. Em 1842 a Suprema Corte norte-
americana edita a Equity Rules 48, considerada a primeira norma escrita relacionada
com a class action nos Estados Unidos da América. Nessa primeira regra a Suprema
Corte adotou o entendimento no sentido de não permitir que os efeitos do julgado
atingissem os interessados ausentes do processo, representando, dessa forma, a
denegação do caráter coletivo do processo. Finalmente, no ano de 1938, surge nos
Estados Unidos o primeiro Código de Processo Civil no âmbito federal, que acabou
por instituir através da Regra 23 as ações coletivas (MENDES, 2009. p. 58-64)154.
O texto formulado para a Regra 23 no ano de 1966 sofreu alterações nos
anos de 1987, 1998, 2003 e 2007. O pré- requisito inicial para a propositura da class
action é que a parte legitimada a propositura da ação deverá integrar a própria
classe e que o numero excessivo de integrantes da classe tornará inviável a
constituição do litisconsórcio. A adequada representação do autor da ação, a
existência de questões de fato e de direito comuns aos integrantes da classe, assim

152
Segundo a Regra 12, quando uma quantidade grande de pessoas possuísse o mesmo interesse,
em qualquer procedimento, o processo poderia ser inicia e prosseguir, se a corte não determinasse
diferentemente, pela iniciativa ou em face de apenas um ou alguns dos interessados que estariam
representando os demais (MENDES, 2009, p. 45-46).
153
A Order 15, Rule 13, das Rules of the Supreme Court previa, por sua vez, em circunstâncias
limitadas, que as ações poderiam ser ajuizadas por pessoas que não detinham também a titularidade
do direito em litígio. Diferenciava-se, assim, da hipótese contida na Regra 12, na medida em que
estariam os processos, por um lado, circunscritos a lides relacionadas com herança, com bens
sujeitos à custódia e administração de terceiros e à interpretação de documentos escritos, inclusive
de leis, mas, por outro, a legitimação extraordinária não estaria restrita às pessoas que estivessem
partilhando do interesse comum afetado (MENDES, 2009, p. 47).
154
A Rule 23 previa, na verdade, três categorias diversas de ações coletivas: a) as puras,
verdadeiras, autênticas ou genuínas (true); b) as híbridas (hybrid); c) as espúrias (spurious) –
classificação que é atribuída ao professor J. W. Moore, que participou da redação do Código. A
distinção, segundo consta em geral nos livros, propiciou certa dificuldade de interpretação e definição
clara das hipóteses. A ação de classe pura pressupõe a existência de unidade absoluta de interesse
do grupo, ou seja, pressupõe a demonstração efetiva da natureza indivisível do direito ou do interesse
comum a todos os membros do grupo. Nas ações de classe hibridas os membros da classe
compartilham do interesse em relação a um bem jurídico objeto da ação, entretanto, o direito não é
único ou comum a todos (há uma pluralidade de direitos que incidem sobre o mesmo objeto). Nas
ações de classe espúrias há uma pluralidade de interesses decorrentes de uma questão comum de
fato ou de direito a indicar como apropriada a agregação dos direitos individuais para a utilização de
um remédio processual comum (MENDES, 2009, p. 64-66).
159

como a identidade de pretensões ou de defesas entre o representante e a classe


também integram os requisitos indispensáveis à propositura da ação de classe.
Segundo estabelece Pedro da Silva Dinamarco (2001, p. 327-329) as premissas que
regem a Regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure são as seguintes:

a) O pressuposto inicial da class action é autorizar que um ou mais membros


da classe podem demandar ou serem demandados como representantes
dos interesses de todos, caso a categoria seja tão numerosa que torne
inviável a participação direta de todos os interessados.
b) Uma única ação poderá desenvolver-se como class action, desde a
pretensão verse sobre questões de fato e de direito comuns ao grupo e
também desde que os pedidos ou defesas dos litigantes sejam idênticos
aos pedidos ou defesas da própria classe.
c) O pressuposto para o desenvolvimento válido da class action é que as
questões de fato e de direito levadas ao Tribunal sobrepujam as questões
de caráter estritamente individual, ressaltando-se e necessidade de
averiguação da extensão e do conteúdo da demanda para cada parte
interessada.
d) Quanto ao procedimento judicial, inicialmente caberá ao Tribunal averiguar
se a pretensão deduzida poderá ou não desenvolver-se como class action.
Uma vez reconhecido judicialmente que a demanda será desenvolvida
como uma class action torna-se necessária a notificação de todos os
integrantes do grupo titular da pretensão deduzida em juízo. A partir da
notificação cada integrante tem legitimidade para, no prazo legal, requerer
a sua exclusão do grupo, ressaltando-se que qualquer componente da
classe que não requereu que fosse excluído poderá, se desejar, intervir no
processo, representado por seu advogado.
e) A sentença proferida na class action, favorável ou contrária, será
vinculante a todos aqueles que o tribunal declarar serem integrantes da
classe, bem como com relação a todos aqueles que não requereram a sua
exclusão.
f) Os litigantes não podem renunciar ou transigir no âmbito da class action
sem autorização do Tribunal, que disporá sobre a notificação, na forma em
que determinar, do conteúdo da renúncia ou da transação a todos os
160

membros do grupo. Verifica-se a direta intervenção do Judiciário na


proteção e no reconhecimento jurídico dos direitos difusos, que por serem
considerados de natureza indisponível não poderão ser renunciados ou
objeto de transação sem qualquer intervenção estatal.
g) Com relação ao direito de recorrer o Tribunal de Recursos pode, em sua
discricionariedade, admitir um recurso de uma sentença emanada de um
juízo distrital concedendo ou negando a certidão da class action sob o
fundamento da Regra 23, se a solicitação for feita no prazo de 10 dias
após o registro da sentença.
h) A propositura da class action dar-se-á por meio de um ou alguns dos
membros da classe com legitimidade para representar e defender os
interesses de todos os seus membros, sempre que for inviável, na prática,
o litisconsórcio ativo dos interessados.
i) Ao juiz, com a propositura da class action, é atribuído uma gama
significativa de poderes, tais como a análise das condições de
admissibilidade da demanda, a adequada representação dos
demandantes bem como os pressupostos para o desenvolvimento e a
instrução da ação.
j) Atendidos todos os requisitos de admissibilidade e de desenvolvimento do
processo a sentença proferida no julgamento da class action fará coisa
julgada com eficácia geral, de modo a vincular todos os membros da
classe, inclusive aqueles que não foram devidamente notificados, desde
que tenha sido reconhecida sua adequada representação.

O dogma liberal pautado no caráter privatístico das pretensões levadas ao


Judiciário foi superado com o advento de um novo modelo de Estado, ora
denominado Estado Social, cujo eixo central passou a ser a socialização dos direitos
e o advento da metaindividualidade como parâmetro regente ao estudo da Ciência
do Direito. O fenômeno da transindividualização dos direitos ocorreu essencialmente
na segunda metade do século XX, especialmente a partir dos anos 70, quando se
verifica a operacionalização de medidas e de instrumentos destinados à proteção
jurídica do meio ambiente e dos consumidores.
A proteção jurídica do meio ambiente, assim como dos direitos do
consumidor, é considerada o ponto de partida do debate contemporâneo acerca dos
161

direitos difusos e coletivos em vários sistemas jurídicos. Além da sistematização


jurídica no campo do Direito Material, é importante ressaltar o advento da teorização
do processo coletivo como ramo do conhecimento jurídico destinado a
operacionalizar a implementação e a executoriedade dos direitos difusos e coletivos
no Estado Democrático de Direito.
Tornou-se necessária a construção de uma Teoria Geral do Processo
Coletivo, tendo em vista ser considerada impropriedade a utilização da Teoria Geral
do Processo Civil como norte para reger toda a compreensão do processo coletivo,
haja vista as peculiaridades jurídico-legais inerentes ao Direito Coletivo e ao
Processo Coletivo. Reproduzir a metodologia do processo civil para a explicação e a
compreensão do processo coletivo é o mesmo que não reconhecer a autonomia
cientifica do Processo Coletivo como área propriamente especifica da Ciência do
Direito.
Até meados do século XX o processo civil era visto essencialmente como um
instrumento destinado à solução de controvérsias cujos interesses tinham caráter
meramente individual. As normas jurídicas processuais e procedimentais destinadas
à regular a atuação do magistrado não tinham como objeto os direitos difusos e
coletivos. A complexidade das relações sociais na contemporaneidade refletiu-se no
entendimento do direito como um todo, especificamente no contexto dos conflitos
envolvendo diretamente os direitos difusos e coletivos. Na medida em que se tornam
mais complexas as relações sociais os conflitos de interesses ganham novos
contornos, deixando a esfera exclusivamente individual e passando a englobar o
contexto coletivo e difuso.
A complexidade das relações jurídicas reguladas pelo direito difuso e coletivo
desencadeou cientificamente o surgimento de inúmeras problemáticas cientificas no
âmbito do processo coletivo, tais como a definição da legitimidade processual ativa,
a questão envolvendo a coisa julgada e os seus efeitos jurídico-legais.
O estudo da historicidade do processo coletivo e dos direitos coletivos e
difusos perpassa pela compreensão da experiência francesa da Loi Royer, de 1973,
modificada em 1988, cujo artigo 46 estabeleceu que as associações regularmente
declaradas que tem como objeto explícito a defesa dos interesses dos consumidores
poderão, quando autorizadas para esse fim, atuar perante a jurisdição civil
relativamente a fatos que produzam prejuízo direto ou indireto ao interesse coletivo
dos consumidores (ZAVASCKI, 2005, p. 26).
162

Solução semelhante foi adotada na Espanha, com o advento da Lei 20/84


(Ley General para La Defensa de los Consumidores y Usuários), ao conferir
legitimidade ativa às associações com o propósito de promover demandas coletivas
de natureza consumeirista e que envolva questões relacionadas à prestação de
serviços, incluindo a informação e a educação dos consumidores e dos usuários,
seja em caráter geral, seja em relação a produtos ou serviços determinados.
Posteriormente ressalta-se o advento da Ley Organica Del Poder Judicial, de 1985,
que buscou propiciar maior amplitude de acesso ao poder Judiciário, visando
permitir que a proteção dos direitos ou interesses coletivos pudesse ser exercida em
juízo pelas corporações, associações e grupos atingidos ou que estejam legalmente
habilitados para a sua defesa (ZAVASCKI, 2005, p. 26).
A Itália tem cumprido um relevante papel no estudo e no aprimoramento da
compreensão das tutelas e dos direitos coletivos e difusos. No inicio do século XX a
Itália foi o berço dos movimentos sociais e do direito do trabalho, implementando a
cultura das associações operárias e patronais (MENDES, 2010, p. 95). A partir dos
anos de 1911 e 1912 verifica-se a preocupação dos estudiosos e do Estado italiano
no que tange à proteção jurídica dos direitos coletivos e difusos, conferindo aos
próprios titulares dos respectivos direitos e também a determinadas instituições a
legitimidade quanto à propositura de ações voltadas à proteção jurídica dos direitos
difusos e coletivos.
É indiscutível o vanguardismo do Estado italiano no que tange à preocupação
quanto ao estudo, a compreensão e a proteção dos direitos difusos e coletivos,
embora se ressalte que somente a partir dos anos 70 que os temas atinentes ao
direito e ao processo coletivos passam a ser diretamente estudados por
consagrados autores italianos, tais como Vittorio Denti, Mauro Cappelletti, Andrea
Proto Pisani, Vincenzo Vigoriti, Nicolò Trocker e Michele Taruffo, dentre outros
(MENDES, 2010, p. 97). “Em termos normativos, a legitimação dos sindicatos,
prevista no art. 28 da Lei 300, de 1970, costuma ser apontada como importante
precedente na introdução da tutela coletiva no direito positivo italiano” (MENDES,
2010, p. 107). Um grande marco histórico-jurídico que diz respeito aos direitos
difusos e coletivos no direito italiano ocorreu em 1973, conforme a seguir exposto:

Não se pode deixar de mencionar que o assunto foi, em certa parte,


impulsionado pela decisão proferida pelo Conselho de Estado, no dia 9 de
março de 1973, que reconheceu legitimação à associação ambientalista
163

Itália Nostra para impugnar um ato da província de Trento, autorizando a


construção de uma auto-estrada na zona circundante do lago de Tovel. O
julgado contrasta com uma longa série de pronunciamentos reiterados, nos
quais se negava a possibilidade de defesa de interesses que não fossem
exclusivamente individuais. Foi considerada, assim, como o grande
precedente na direção de um tratamento mais generoso em relação aos
interesses difusos, classificação essa que, na época, carecia, ainda mais,
de precisa definição (MENDES, 2010, p. 97).

Na Itália155 as alterações mais significativas com relação aos direitos coletivos


ocorreram por influência direta do Tratado da União Européia, de 1992, que cuidou
do tema da proteção ambiental e do consumidor em seus artigos 129 e 130. A partir
do respectivo Tratado foi editada a Lei 281, em 1998, reconhecendo os direitos
coletivos dos consumidores e estabelecendo a forma de sua tutela jurisdicional.
Anteriormente, no ano de 1996156, verifica-se que foi criada legislação que alterou o
Código Civil Italiano ao estabelecer uma espécie de ação inibitória para pretensões
de natureza difusa e coletiva, cuja propositura poderia ocorrer através de entidades
associativas, em caso de urgência, visando coibir a utilização abusiva dos contratos
(ZAVASCKI, 2005, p. 26). “Na Itália há previsão da possibilidade de ajuizamento de
ações populares ainda hoje em matéria eleitoral, de beneficência, e em questões

155
Em termos normativos, a legitimação para os sindicatos, prevista no art. 28 da Lei 300, de 1970,
costuma ser apontada como importante precedente na introdução da tutela coletiva no direito positivo
italiano. As associações sindicais podem, com fulcro no dispositivo, pedir a cessação da conduta anti-
sindical e a remoção de seus efeitos. As providências previstas possuem caráter essencialmente
inibitório (MENDES, 2009, p. 107). Em termos de meio ambiente, a participação das associações
recebeu impulso, embora modesto, com a edição da Lei 349, de 08-07-1986, que prevê a
possibilidade de intervenção tanto nos processos judiciais versando sobre indenização por danos
ambientais, bem como de recorrer, em sede de jurisdição administrativa, contra os atos
administrativos considerados ilegítimos, visando a sua anulação. Para tanto, as associações de
caráter nacional ou com estruturação em pelo menos cinco regiões estar registradas junto ao
Ministério do Meio Ambiente, incumbido de baixar decreto relacionando, inclusive, a finalidade
programática das entidades, de modo de disposição interna e o funcionamento democrático conforme
previsto nos respectivos estatutos (MENDES, 2009, p. 108).
156
O desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial no sentido da admissibilidade de postulação, no
contencioso administrativo, da tutela de interesses supraindividuais, posteriormente acabou
recebendo o beneplácito legislativo. O art. 18 de Lei 349, de 08-07-1986, que instituiu o Ministério do
Meio Ambiente, conferiu expressamente legitimação, às associações individualizadas com decreto do
titular da respectiva pasta para postular perante a justiça administrativa a anulação de atos ilegítimos
e lesivos ao meio ambiente [...] O art. 28 da Lei 300, de 1970, conferiu instrumento de proteção de
situações subjetivas de grupo de trabalhadores que somente podem ser tuteladas de forma coletiva,
como v. g., o exercício do direito de greve, cujo acesso à justiça seria inviabilizado na hipótese de
concessão de via de tutela em caráter exclusivamente individual. [...]. Com a Legge n. 244 de 2007,
foi introduzida e disciplinada no ordenamento italiano a ação coletiva com escopo ressarcitório de
interesses de consumidores, atendendo às diretrizes elaboradas no plano da Comunidade Econômica
Européia. A demanda é proposta por associação de defesa de consumidores, podendo a ela aderir
através de manifestação escrita, em momento próprio e após publicidade adequada a respeito da
existência do litígio coletivo, membros do grupo de pessoas lesadas em relações de consumo que
são especificadas nos dispositivos que regulam essa nova modalidade de prestação jurisdicional
(LEONEL, 2011, p. 56-59).
164

urbanísticas, relacionadas à defesa dos interesses comunais” (LEONEL, 2011, p.


53).
Mauro Cappelletti trouxe grande contribuição cientifica para o debate dos
direitos coletivos em artigo cientifico publicado no ano de 1976 e intitulado Appunti
sulla tutela giurisdizionale di interessi collettivi ou diffusi. No respectivo trabalho
cientifico enunciou proposições que influenciaram (a ainda influencia) todo o mundo
no estudo do processo coletivo, ao atentar que a realidade contemporânea trouxe
um novo paradigma para o entendimento da ciência do direito e por isso enalteceu a
necessidade de adequação do direito processual à exigência de tutela dos direitos
coletivos. Cappelletti destacou ainda em sua obra a importância de teorizar e
viabilizar o acesso à justiça no que tange ao debate e à proteção dos interesses
coletivos (MENDES, 2009, p. 98-103).
Outro processualista italiano que contribuiu substancialmente para o estudo
dos direitos difusos e coletivos a partir do processo coletivo foi Vincenzo Vigoritti,
que em 1979 através de sua obra intitulada Interessi collettivi e processo: la
legittimazione ad agire teorizou o processo coletivo a partir do principio da
participação popular como parâmetro para justificar a ampliação e o alargamento de
legitimidade processual e da participação através da jurisdição. Vigoriti “desenvolve
o tema, inicialmente, sob o prisma da participacao popular, principio que encontraria
fundamento constitucional, a ampliação da legitimação representaria, assim, o
alargamento da participação através da prestação jurisdicional“ (MENDES, 2010, p.
104). Uma das grandes preocupações da obra de Vigoriti é sistematizar a distinção
teórico-pragmática existente entre os conceitos de direito coletivo e direito difuso. Os
direitos difusos “se referem a um estado mais fluido do processo de agregação dos
interesses individuais, ou seja, no qual não se faz presente a coordenação das
vontades singulares” (MENDES, 2010, p. 105).
Na Alemanha temos no sistema processual a previsão de tutela coletiva a ser
exercida por associações, cuja finalidade é a proteção do consumidor e do meio
ambiente (ZAVASCKI, 2005, p. 27), ou seja, “a defesa judicial dos interesses
coletivos, em sentido amplo, é realizada na Alemanha, basicamente através das
Verbandsklagen, que são as ações associativas (MENDES, 2009, p. 118). Essa
forma de regular o processo coletivo decorre da cultura do associativismo que
permeia historicamente a sociedade alemã. “ A necessidade de organização e
estruturação dos interesses comuns, sejam eles esportivos, festivos ou voltados
165

para a defesa do meio ambiente ou dos consumidores, enseja o fortalecimento das


entidades e organizações civis” (MENDES, 2009, p. 118). A legitimidade processual
das associações encontra-se prevista na Lei Contra a Concorrência Desleal, Lei
sobre as Ações Inibitórias em Matéria de Direito do Consumidor e outras infrações,
na Lei para o Regulamento das Clausulas Gerais dos Contratos e na Lei contra as
Limitações da Concorrência ou Lei dos Cartéis).
Em Portugal a Constituição de 1976 estabeleceu expressamente que a tutela
dos direitos coletivos ocorrerá por meio da ação popular, cuja finalidade é prestar a
tutela preventiva, reparatória e sancionatória de lesões à saúde pública, ao meio
ambiente, à qualidade de vida e ao patrimônio cultural157. O advento da Lei 83/95
veio regular o direito de participação procedimental e de ação popular, consagrando
no ordenamento jurídico português o acesso supra-individual à justiça (MENDES,
2009, p. 133). Posteriormente, no ano de 1996, ocorreu em Portugal a edição da Lei
24/96, ampliando o espectro da ação popular e fazendo incluir a proteção dos
consumidores (ZAVASCKI, 2005, p. 27). Dessa forma verifica-se que nos termos do
artigo 52, n. 3 da Constituição portuguesa, combinado com o artigo 1., n. 2 da Lei
83/95, a ação popular pode ser utilizada como instrumento de persecução dos
direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, não se prestando a consecução
de direitos estritamente individuais.
Historicamente o primeiro registro que se encontra no Canadá quanto ao
estudo do processo coletivo encontra-se na província de Quebec, que no ano de
1978 introduziu no seu Code de Procedure Civile o remédio jurídico denominado
recours collectif. Em 1992 foi editada a Ontario Class Proceedings Act, seguida da
Lei de Processamento Coletivo aprovada em 1995 na província de British Columbia.
È de suma importância ressaltar que o modelo adotado nas três legislações acima
mencionadas adota estruturalmente a Regra 24 do direito federal norte-americano.
No ano de 1998 foi editada no Canadá legislação federal atinente às ações
coletivas, conforme dispõe a Regra 114 das Federal Court Rules, sob a
denominação de representative proceedings. “Em conformidade com a Regra
Federal 114, quando duas ou mais pessoas tiverem o mesmo interesse, a ação

157
Quanto ao art. 52, a Constituição especifica, agora no n. 3, os contornos da ação popular,
conferindo “a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o
direito de acção popular nos caso e termos previstos na lei, nomeadamente o direito de promover a
prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, a degradação
do meio ambiente e da qualidade de vida ou a degradação do patrimônio cultural, bem como de
requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização (MENDES, 2009, p. 131-132),
166

poderá ser instaurada por iniciativa ou em face de algum ou alguns deles, na


qualidade de parte representativa de alguns ou de todos os demais” (MENDES,
2009, p. 142-143).
O Código Modelo de Processos Colectivos para Ibero-América, editado quase
dez anos após a Lei de Ação Civil Pública brasileira (Lei 7347/85), ainda continua
restrito ao sistema representativo como parâmetro ao entendimento jurídico-legal do
modelo de processo coletivo ora proposto (GRINOVER, WATANABE, MULLENIX,
2008, p. 45), ou seja, não é possível verificar na respectiva proposta legislativa a
tentativa do legislador implementar o sistema participativo como norte a viabilizar a
todos os interessados difusos a legitimidade processual suficiente a propositura das
ações coletivas. Por isso, é oportuno demonstrar que o respectivo modelo de
processo coletivo foi concebido em desconformidade com a processualidade
constitucional-democrática centrada no paradigma participativo como fundamento
regente ao exercício pleno da cidadania.
Na Colômbia a tutela processual dos direitos e interesses coletivos está
contida no artigo 88 da Constituição Política e regulamentada pela Lei 472 de 1998.
A Constituição colombiana vigente estabelece expressamente as ações populares e
de grupos como instrumentos legítimos a garantir a proteção dos interesses e dos
direitos difusos, assim entendidos como os interesses supraindividuais e de natureza
indivisível, bem como as ações coletivas para a tutela de direitos individuais
homogêneos. Dentre os legitimados à propositura das ações coletivas temos as
pessoas físicas e jurídicas, assim como os demais legitimados expressamente
autorizados pela lei, como é o caso das Organizações não Governamentais
(GRINOVER, WATANABE, MULLENIX, 2008, p. 46/47). Verifica-se que na Colômbia
foi adotado o sistema participativo como parâmetro regente ao estudo do processo
coletivo, tendo em vista a possibilidade de qualquer cidadão e titular de um direito
difuso deter a legitimidade de propositura da ação popular.
Na Argentina, especificamente na província da Catamarca, encontra-se a Lei
local 2034, de 14 de agosto de 2001, considerada uma legislação muito completa
sob o ponto de vista dos interesses difusos e direitos coletivos. A respectiva
legislação estabelece expressamente que em caso de violação dos direitos difusos e
coletivos admite-se a propositura da ação preventiva, da ação de reparação em
espécie bem como da ação de reparação pecuniária pelo dano causado ao interesse
coletivo. Adotou-se na Argentina o sistema participativa no que tange à legitimidade
167

para a propositura da ação coletiva, tendo em vista a possibilidade do cidadão


propor uma ação coletiva sempre que conseguir demonstrar que a violação do
direito difuso ou coletivo o afetou de maneira pessoal e direta158. Mesmo a legislação
prevendo a possibilidade do cidadão propor uma ação coletiva, caberá ao juiz
analisar a legitimidade da pessoa ou do grupo de pessoas interessadas
juridicamente na tutela dos direitos difusos e coletivos. Tal prerrogativa assegurada
ao julgador denota claramente o caráter autocrático (não democrático) do modelo de
processo coletivo proposto na sistematicidade jurídico-legal argentina em virtude de
concentrar os poderes nas mãos do juiz e legitimá-lo a definir quem possui
legitimidade e interesse jurídico na busca da proteção dos direitos difusos e
coletivos.
Ainda na Argentina, ou seja, na Província de Rio Negro, o Código de
Processo Civil e Comercial da Província, promulgado em 19 de dezembro de 2006,
estabelece expressamente a proteção jurídica dos direitos individuais homogêneos,
ou seja, todos aqueles direitos individuais provenientes de uma origem comum e que
tenham como titulares os membros de um grupo (GRINOVER, WATANABE,
MULLENIX, 2008, p. 78). Para esse tipo de ação é considerado legitimado todos os
afetados, o Ministério Público, municípios, entidades legalmente constituídas para a
defesa dos direitos coletivos e qualquer pessoa física que atue no resguardo dos
direitos afetados. Verifica-se, novamente, a adoção do sistema participativo como
parâmetro regente ao estudo e a compreensão do processo coletivo, embora não
seja possível afirmar que se trata de um modelo de processo coletivo efetivamente
compatível com o Estado Democrático de Direito porque, embora a legislação
argentina preveja expressamente a possibilidade de propositura da ação pelos
cidadãos interessados na pretensão difusa ou coletiva, observa-se que todo o
processo continua sendo conduzido e desenvolvido a partir da autoridade exercida
pelo juiz, o que deslegitima ou limita a participação do cidadão no que tange à
construção ampla e participada do provimento jurisdicional de forma isonômica.

158
Están legitimados para ejercer e impulsar lãs acciones previstas em la ley, La Fiscalía de Estado,
El Ministerio Público, las municipalidades, los organismos descentralizados o autárquicos con
capacidad para estar em juicio según sus estatutos, los entes reguladores, las entidades legalmente
constituidas e inscriptas em el registro respectivo para La defensa de los intereses difusos o derechos
colectivos y cualquier asociación civil, sociedad o particular, cuando accionen invocando La
afectación de um interes difuso o colectivo que les concierna de manera personal y diresta (art. 8)
(GRINOVER, WATANABE, MULLENIX, 2008, p. 76).
168

A Constituição do Uruguai prevê norma expressa de regulação do processo


coletivo, sem prejuízo de normas expressas sobre a proteção do meio ambiente
(GRINOVER, WATANABE, MULLENIX, 2008, p. 79). Não existe no Uruguai uma
legislação especifica para regulamentar a proteção jurídica dos interesses coletivos
e difusos, porém, todo o processo coletivo é regulamentado a partir do artigo 42 e
220 do Código Geral de Processo, do ano de 1989. Não se observa na legislação
uruguaia a distinção entre interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos, limitando-se o legislador a se referir aos interesses difusos. No que
tange à legitimidade processual ativa a legislação autoriza a propor ações coletivas
o Ministério Público, as associações ou instituições representativas, bem como
qualquer cidadão. Verifica-se que no Uruguai adota-se um sistema misto
(representativo-participativo) como parâmetro regente ao estudo e a compreensão
do processo coletivo, tendo em vista estabelecer expressamente a possibilidade de
instituições (ex. Ministério Público) e do próprio cidadão como legitimados a
propositura de uma ação coletiva destinada a proteção dos direitos e interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos, desde que demonstre claramente o
interesse jurídico na pretensão coletiva deduzida em juízo (interesse jurídico no
sentido de poder sofrer os efeitos da decisão judicial ora proferida no âmbito de uma
ação coletiva).
No Brasil não foi diferente, uma vez que a gênese do processo coletivo está
Ação Popular, que foi inicialmente inserida no Direito pátrio através do artigo 113,
inciso XXXVIII da Constituição de 1934: “Qualquer cidadão será parte legítima para
pleitear a declaração de nulidade ou anulação de atos lesivos do patrimônio da
União, Estados ou dos Municípios” (BRASIL, Constituições Brasileiras, 2001, p.
161). “Foi na Constituição da República de 1934, em seu artigo 113, XXXVIII, que ao
cidadão foi conferida a legitimidade para propor ação popular para pleitear a
nulidade ou a anulação de atos lesivos ao patrimônio da União, dos Estados ou dos
Municípios” (CARVALHO, 2005, p. 222).
É de suma importância esclarecer que o primeiro instrumento processual hábil
no Direito pátrio ao controle das atividades estatais encontra-se na Constituição de
1934, especificamente no que tange ao controle do patrimônio público. “Na
Constituição de 1937 foi suprimida a previsão da ação popular, retornando a receber
tratamento em sede constitucional novamente na Carta de 1946 (Art. 141, inc.
XXXVIII), com a mesma feição da disposição da Constituição de 34” (CARVALHO,
169

2005, p. 223). Sabe-se que historicamente tal possibilidade foi suprimida na


Constituição de 1937, que pelo próprio contexto histórico, marcado por um regime
político de exceção, o cidadão encontrava-se impossibilitado de participar das
decisões estatais e se encontrava refém do arbítrio dos detentores do poder. Assim
ressalta-se
No intervalo observado entre a Constituição do Estado Novo até a publicação
da Carta de 1946, foi editado o novo ordenamento processual civil unificado,
sendo que neste havia a previsão, no artigo 670, da possibilidade de
ajuizamento de ação pelo Ministério Público ou por qualquer do povo, com o
escopo de dissolver associação civil com personalidade juridica que
promovesse atividade ilícita ou imoral, reavivando aquela espécie de ação
que já fora prevista anteriormente na própria Carta de 1934, tida pela
doutrina de então como popular (LEONEL, 2002, p. 52).

Com o advento da Constituição de 1946 houve o renascimento da ação


popular em seu artigo 141, inciso XXXVIII: “Qualquer cidadão será parte legítima
oara pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio
da União, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicas e das sociedades
de economia mista (BRASIL, Constituições Brasileiras, 2001, p. 103)”. Novamente
temos a possibilidade jurídica de controle do patrimônio público pelo cidadão. Dessa
forma observa-se:

[...] Em seguida, foram instituídas ainda duas ações de natureza popular no


âmbito da legislação infraconstitucional, quais sejam: uma pelo artigo 35,
§1º, da Lei 818, de 18.09.1949, relacionada à aquisição, perda e
reaquisição da nacionalidade e perda de direitos políticos; e ainda outra,
pelo artigo 15, §1º, da Lei 3.052, de 21.12.1958, relativa à impugnação do
enriquecimento ilícito (matéria hoje regulada pela Lei 8.429/92, que será
tratada oportunamente). [...} (LEONEL, 2002, p. 54)

Em 29 de junho de 1965, em pleno período da Ditadura Militar, foi sancionada


a Lei 4.717, que disciplinava no plano infraconstitucional a ação popular.
Reconheceu-se a legitimidade processual de qualquer cidadão pleitear a anulação
ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio dos entes da
Administração Pública Direta e Indireta. O requisito para a comprovação da
cidadania e da legitimidade para a propositura da presente ação era o titulo de
eleitor e a demonstração da regularidade no exercício dos direitos políticos. A
sentença de improcedência ou de carência da ação estava sujeita ao reexame
necessário e a de procedência à possibilidade de propositura de recurso de
apelação recebido no efeito suspensivo (BRASIL, Vademecum, 2007, p. 1080/1082).
170

Tal legislação denota a tentativa do legislador institucionalizar o controle das


atividades estatais diretamente pelo cidadão. Acontece que tal fiscalidade não era
de natureza ampla, excluindo-se, por exemplo, a possibilidade de controle do meio
ambiente e demais direitos de natureza metaindividual e potencializador do exercício
pleno da cidadania. Com isso, sabe-se que temos, nesse período da historia
brasileira, o início da legitimação do cidadão no controle e fiscalidade das atividades
estatais, até porque tal controle era um tanto limitado em decorrência do próprio
contexto da historiografia brasileira, um período de regime político de exceção.
Dessa forma, sabe-se que não é possível afirmar nesse contexto histórico
efetivamente o exercício legítimo da cidadania através da propositura da ação
popular.
A Carta de 1967, e a Emenda Constitucional 1/69, em seu artigo 153, inciso
XXXI previa: “Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que
vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas (BRASIL,
Constituições Brasileiras, 2001, p. 165)”. Novamente ressalta-se a existência de
uma previsão legal um tanto genérica que garante ao cidadão um controle restrito
das atividades estatais e à margem da legitimidade democrática e do Modelo
Constitucional de Processo Coletivo.
Em 1981 foi editada a Lei 6938, que instituiu a Política Nacional do Meio
Ambiente e representou grande avanço na sistematização jurídico-legal das
questões atinentes aos direitos difusos no Brasil:

A primeira dentre estas leis posteriores à ação popular, destinadas a tutela de


interesses metaindividuais, foi a Lei 6938 de 1981 que institui a Política
Nacional do Meio Ambiente, a qual previu a possibilidade de defesa dos
interesses difusos relacionados ao meio ambiente, disciplinando de forma
pioneira a legitimação exclusiva do Ministério Público para a respectiva ação
de responsabilidade civil. A legitimação do Ministério Público representou um
avanço pois somente o cidadão era legitimado para a propositura da ação
popular, enquanto que no pólo passivo somente o Poder Público poderia
figurar, com esta nova disciplina qualquer agente poluidor poderia ser
demandado (CARVALHO, 2005, p. 223).

Em 24 de julho de 1985 adveio para o sistema jurídico brasileiro a Lei 7.347,


que disciplinou a ação civil pública, cujo objeto pode ser o meio ambiente, o
consumidor e patrimônio público. Isso representa mais uma tentativa do legislador
pátrio regulamentar através de uma legislação especifica o processo coletivo.
Verifica-se que o tratamento jurídico-legal dado ao processo coletivo ainda continua
171

adstrito à concepção representativa por não contemplar o cidadão como legitimado


para a sua propositura, ou seja, na lei da ação civil publica o legislador optou por
excluir o cidadão como parte legitima à propositura da ação. Mesmo assim toda a
doutrina brasileira manifesta-se no sentido de reconhecer a importante contribuição
legislativa trazida com o advento da Lei 7347/85:

Cumpre ressaltar, contudo, que esse diploma legal constitui o marco para
grandes avanços que se sucederam e para um efetivo acesso à justiça,
proporcionando agora a possibilidade de se postular em juízo a tutela dos
interesses transindividuais, pois veiculou novidades que obrigaram uma
releitura do tradicional art. 3º do Código de Processo Civil, concebido,
repita-se, sob o influxo da visão processualista que ainda necessitava
vencer a segunda fase metodológica da ciência processual referida. Menos
de um ano antes do advento da Lei nº 7347/85, o legislador brasileiro já
dava demonstração de sua preocupação com o que Cândido Rangel
Dinamarco denomina de universalização da jurisdição, ou seja, com a
preocupação de cada vez mais trazer ao seio do Judiciário o maior número
possível dos conflitos de interesses detectáveis na sociedade, a fim de
solucioná-los com legitimidade e justiça, perseguindo a pacificação
(VIGLIAR, 1999, p. 21).

A Constituição de 1988 reiterou o tratamento jurídico-legal dado a ação


popular como um instrumento hábil que legitima o cidadão no controle dos atos e
das atividades estatais, ampliando o objeto ou a parte integrante da pretensão
coletiva deduzida em juízo. Com o advento da Constituição de 1988 ficou
expressamente consagrada a tutela material dos direitos de natureza transindividual,
como é o caso do meio ambiente, do patrimônio publico, da probidade
administrativa, da proteção do consumidor e do patrimônio histórico, artístico,
turístico e paisagístico. O texto constitucional vigente atribuiu aos direitos difusos e
coletivos o status jurídico de Direitos Fundamentais em virtude do seu caráter
imaterial, indisponível e irrenunciável.
O legislador constituinte ao possibilitar a propositura da ação coletiva pelo
cidadão veio apenas confirmar o principio da participação expressamente previsto no
artigo 1º da Constituição brasileira de 1988, que trouxe a soberania popular como
um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Nesse contexto sabe-se que
se encontra expressamente previsto no direito brasileiro o fundamento constitucional
e democrático para justificar juridicamente o entendimento do modelo de processo
coletivo que viabiliza a oportunização de construção participada do mérito
processual.
172

3.2. PROCESSO C OLETIVO AMERICANO: O SISTEMA DA CLASS ACTIONS E A

PROBLEMÁTICA DA CONSTRUÇÃO DO MÉRITO PROCESSUAL .

A class action pode ser inicialmente definida como uma ação de classe
proposta por uma ou mais pessoas ou uma entidade com a finalidade de buscar a
proteção jurídica de direitos pertencentes a um grupo de pessoas e cujo julgamento
vinculará o grupo como um todo159 (GIDI, 2003, p. 334).
O instituto da class action, a partir do direito norte-americano160, pode ser
compreendido como um procedimento jurídico-legal através do qual uma pessoa ou
um grupo de pessoas é considerado legitimado para representar um grupo de classe
de pessoas que compartilham, entre si, de interesse comum ou coletivo. O
pressuposto básico da respectiva ação de classe é a demonstração prévia, pelo
autor da ação, da sua legitimidade para representar um grupo de pessoas que tem
direitos comuns entre si. A sua utilização limita-se à determinadas hipóteses ou
situações em que a junção de todos que detém a legitimidade de ser parte no
processo não é algo plausível, porque a junção de todos numa mesma relação
processual causaria dificuldades insuperáveis ao exercício da jurisdição e
possivelmente tornaria a demanda judicial interminável (FRIEDENTHAL; KANE;
MILLER, 1985, p. 728).
A gênese das class actions161 é o direito inglês do século XVII, no bill of
peace162, que estabelecia um procedimento através do qual reconhecia-se a

159 a class action is the action brought by a representative plaintiff (collective standing), in protection of
a right that belong to a group of people (object of the suit), which judgment will bind the group as a
whole (res judicata).
160
Nos Estados Unidos, como é cediço, é bastante intensa a participação popular na gestão do
interesse público (de que são um bom exemplo as class actions), do mesmo modo como é intensa a
fiscalização e supervisão estatal em todas as matérias concernentes aos interesses difusos
(MANCUSO, 1997, p. 189).
161
A origem das class actions remonta ao denominado Bill of peace do direito inglês do século XVII,
procedimento no qual era possível propor uma ação ou sofrer uma ação por intermédio de partes
representativas (representative parties). Eram admitidas nos juízos de equidade, perante a Court of
Chancery. Posteriormente, com a fusão entre os sistemas da law e da equity, decorrente da Court of
Judicature Act, de 1873, a class action acabou sendo estruturada de forma mais aproximada a suas
características modernas, nos moldes em que vigora nos países do common law. A Regra 10 do
referido diploma determinava que, havendo multiplicidade de partes comungando do mesmo
interesse em uma controvérsia, uma ou mais das partes poderiam acionar ou ser acionadas, ou ainda
autorizadas pela Corte para litigar em beneficio das demais. Demonstrados os requisitos necessários,
como a existência de grande numero de litigantes cuja junção fosse impraticável, comunhão de
interesses, e ainda que as partes nomeadas estivessem em condições de adequadamente
representar os ausentes, seria admitida a class action (LEONEL, 2011, P. 61).
173

possibilidade de propor uma ação ou ser demandado em uma ação proposta por
intermédio de partes representativas (representatives parties). Os requisitos do
respectivo procedimento adotado no direito inglês eram semelhantes àqueles
previstos nas class actions, quais sejam, a existência de um grande número de
pessoas que compartilham interesses comuns envolvidos no conflito, bem como a
existência de uma pessoa ou de um grupo de pessoas legitimado a representar
adequadamente os interesses jurídicos daqueles que não figuravam,
expressamente, no processo (COUND; FRIEDENTHAL; MILLER; SEXTON, 1979, p.
261-262).
O advento da Federal Equity Rule 38, no ano de 1912 nos Estados Unidos da
América, foi decisiva para o aprimoramento e a compreensão da class action, tendo
em vista que o presente diploma normativo foi o primeiro a definir o instituto e
também a estabelecer os requisitos essenciais a sua aplicabilidade. A
representatividade por um membro da classe de pessoas é imprescindível em
virtude da inviabilidade de participação de todos os membros da classe na relação
processual. A existência de uma questão de fato ou de direito comum a todos os
interessados também é pressuposto essencial à propositura regular da class action
(TARUFFO, 1969, p. 619).
No ano de 1938 ressalta-se, nos Estados Unidos da América, o advento da
Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure, cuja finalidade principal foi descrever
detalhadamente quando se verificava a hipótese de cabimento de uma class action.
A sistematização das class actions a partir da Rule 23 ensejou diversas
classificações163 conforme a extensão dos efeitos da decisão proferida com relação

162
Trata-se de uma prática dos Tribunais Ingleses dos séculos XVII e XVIII utilizado para resolver
conflitos de interesses de natureza não exclusivamente individual, ou seja, de disputas legais
envolvendo múltiplas partes que compartilham aspectos comuns.
163
Esta nueva version de la Regla 23 restringió lãs acciones de clase a três tipos o categorias [...] (1)
Una acción de clase será acogida si la interposición de acciones separadas puede crear um riesgo de
decisiones judiciales inconsistentes o contradictorias vinculadas a los miembros individuales de la
clase que podrían determinar que la parte que se opone a la clase deba efectuar conductas
incompatibles. Asimismo, la acción también será receptada em el caso de que la multiplicidad de
acciones individuales pueda crear um riesgo de decisiones judiciales respecto de algún miembro de la
clase que haga imposible, perjudique o disminuya la ulterior protección de los intereses de los otros
miembros ajenos al proceso individual. (2) Se autoriza la interposición de uma acción de clase,
cuando la parte opuesta a la clase – contraparte – ejecutó um acto, se negó a actuar o dejó de ejercer
um deber legal de modo uniforme ante el grupo o unan omisión cuyos efectos son aplicables a la
generalidad de la clase y puede ser remediada, con relación a toda la clase, con un mandato de
hacer o no hacer. (3) El juez considera que las cuestiones de hecho y derecho comunes a la clase
predominan sobre otras cuestiones que afectan solamente a miembros individuales y que una acción
de clase es superior a otros métodos que puedan servir para resolver eficazmente la controvérsia.
Para esa determinación el juez deberá tener en cuenta: a) la conveniência para los intereses de los
174

aos direitos de cada sujeito juridicamente interessado na pretensão deduzida, tal


como preceitua José Rogério Cruz e Tucci:

Antes da Reforma de 1966164, a Regra 23, como visto, ensejava uma tríplice
distinção das class actions, dependendo do character of the right deduzido
em juízo e, por isso, diferente era a extensão dos limites subjetivos da coisa
julgada (binding effect) em cada uma das espécies então concebidas. Com
efeito, na denominada true class action – quando o direito da categoria era
joint ou common – a eficácia ultra partes da decisão atingia diretamente
todos os membros do grupo, ainda que estranhos ao processo. Tratando-se
de hipótese de hybrid class action – quando os direitos dos componentes
eram distintos (several), mas referentes a um único bem, na qual havia um
interesse comum, os efeitos da denominada claim preclusion atingiam todos
os membros tão-somente em relação aos seus respectivos direitos sobre o
bem que havia sido objeto da controvérsia [...]. Por outro lado, na hipótese
de spurious class action – quando os direitos dos componentes eram
distintos (several), mas dependentes de uma questão comum de fato ou de
direito, ensejando uma decisão uniforme, a qual, como decorre da própria
denominação, apenas do ponto de vista prático era inserida entre as class
actions, a sentença projetava seus efeitos exclusivamente àqueles que
participavam do processo [...] (1990, p. 26).

O recebimento e o processamento da class action condiciona-se à


demonstração da impossibilidade de reunião de todos os membros individualmente
considerados em um só processo, ressaltando-se que as questões de fato e de
direito levadas perante a Corte devem ser comuns a toda a classe. A class action
torna-se necessária sempre que a propositura de ações individuais, cujo objeto
sejam direitos coletivos, puder causar prejuízos aos interesses de outros membros
da classe não envolvidos nas ações individuais. Além disso, se o direito pretendido é
comum aos integrantes de uma determinada classe, recomenda-se que a pretensão
coletiva seja julgada de forma a causar efeitos jurídicos idênticos a todos os titulares
dos respectivos direitos, a fim de evitar decisões contraditórias entre si 165.

miembros de la clase em defender sus derechos individualmente; b) la prolongación y naturaleza de


outro litígio ya empezado por otros miembros de la clase; c) el deseo de los miembros de concentrar
el litígio en ese foro, y d) lãs dificultades que pueden producirse em el manejo de la acción de clase
(MAURINO; NINO; SIGAL, 2005, p. 36).
164
De outro lado, a doutrina especializada assevera que, em decorrência da ampla aceitação do
instituto, foi promovida sua reforma em 1966, para dirimir dúvidas e esclarecer pontos ainda obscuros
relacionados à prática de sua utilização perante os tribunais, conforme a redação original da Regra
23. A modificação mais relevante foi aquela relacionada à classificação tríplice contida no texto
primitivo. Diante da redação da norma, eram concebidos três tipos de class actions, dependendo do
caráter do direito tutelado, gerando o julgado diversos efeitos. Assim, na true class action, o direito
era absolutamente comum a todos os membros do grupo; na hybrid class action, o direito era comum
em razão de várias demandas sobre um mesmo bem; e, na spurious class action, inúmeras pessoas,
possuindo interesses diversos, reuniam-se para litigar em conjunto (LEONEL, 2011. p. 63).
165
Bajo las normas actuales, para que uma acción sea conducida em forma colectiva, antes de que
uma clase pueda ser sometida a revisión judicial, La Regla 23 (a) estabelece cuatro requisitos prévios
de admisibilidad. [...] Así, conforme a los prerrequisitos de lãs acciones de clase – Regla 23, sección
175

A propositura de uma ação individual poderá ensejar o advento de uma class


action se o objeto suscitado pelo autor da ação for de titularidade comum de uma
determinada classe de pessoas. Assim, poderá o juiz americano, uma vez
preenchidos todos os requisitos legais previstos na Rule 23, receber uma ação
individual e dar prosseguimento a ela como ação coletiva, desde que o objeto
suscitado pela parte autora verse sobre os interesses jurídicos e fáticos de uma
determinada categoria ou grupo de pessoas. Caso essa situação venha a ocorrer na
prática, é importante ressaltar que a decisão judicial proferida estenderá todos os
seus efeitos jurídicos sobre todos aqueles sujeitos jurídico-faticamente interessados
na pretensão inicialmente deduzida em juízo. Uma vez preenchidas todas as
condições de regular processamento da class action todos aqueles sujeitos que dela
participaram, direta ou indiretamente por meio de um representante, serão afetados
pelo conteúdo da decisão ora proferida (MELLO, 1993). Não se pode deixar de
ressaltar que é legitimidade da Corte o direito de analisar unilateralmente se a ação
coletiva é a melhor forma disponível para o julgamento eficiente da controvérsia, a
fim de sobrepujar o julgamento das ações individuais devidamente conexas à
pretensão deduzida em juízo.
Normalmente as situações que dão ensejo a propositura de uma class action
são de caráter pecuniário e condenatório (voltada para fins ressarcitórios em que se
busca simultaneamente a cessação da ilicitude seguida da reparação por perdas e
danos). Porém, em situações excepcionais, poderá ser objeto de uma ação de
classe pretensões coletivo de caráter inibitório revestidas de caráter mandamental,
com o propósito de proteger direitos de natureza imaterial, como por exemplo, ação
judicial proposta com o intuito de inibir discriminação religiosa ou racial.
Os princípios da celeridade processual, efetividade processual, segurança
jurídica (evitar decisões individuais contraditórias versando sobre uma determinada
pretensão coletiva) e economia processual são comumente utilizados como

(a) – uno o más miembros de uma clase pueden demandar o ser demandados como partes
representantes de otros, em el caso de que: (1) La clase sea tan numerosa que resulte impracticable
la participación de todos em el proceso. (2) Existan cuestiones de derecho o hecho comunes a la
clase, que permitan uma resolución judicial común a todos los miembros de Ella. (3) Los reclamos o
defensas del representante de la clase Sean típicos de los reclamos o defensas propios de la clase.
En otras palabras, el representante debe compartir los mismos intereses y debe ser uno de los
miembros de la clase, por lo que la acción será propuesta em su próprio nombre y em nombre de
todas las personas em situación similar. (4) Pueda estimarse que el representante de la clase
protegerá adecuadamente los intereses de SUS miembros, como requisito esencial para que sea
cumplido El debido proceso legal em cuanto a los miembros presentes y a los ausentes de la clase
(MAURINO; NINO; SIGAL, 2005, p. 35).
176

fundamentos para justificar o regular processamento e julgamento das class actions


no sistema norte-americano.
A primeira critica pertinente à sistemática americana das class actions refere-
se a sua incompatibilidade com o modelo de processo trazido pela Constituição
brasileira de 1988, que estabelece como possibilidade o direito de todos os
interessados difusos ou coletivos manifestarem-se, de forma direta, como partes no
processo coletivo cujo objeto versa sobre direitos aos quais são titulares. Em
contrapartida, o sistema das class actions reproduz o modelo de representatividade
como parâmetro ao entendimento do processo coletivo, haja vista que oportuniza
diretamente ao representante da classe o direito de participar da construção do
mérito processual, excluindo-se os demais interessados (ora representados) da
possibilidade de participarem diretamente de todo o debate fático-jurídico da
pretensão no âmbito processual, haja vista que sua participação é indireta e por
intermédio do representante da classe.
Mesmo não tendo participado da construção do mérito da pretensão coletiva
objeto da class action, os sujeitos representados sofrem diretamente os efeitos
jurídicos da decisão ora proferida. A participação dos representados é proibida por
questão de celeridade e de economia processual, haja vista que a delegação da
legitimidade processual ao representante da classe obstaculiza e inviabiliza qualquer
ingerência do interessado difuso ou coletivo (representado) no debate da pretensão
coletiva. Nesse ínterim, verifica-se que a impossibilidade de qualquer participação do
representado no debate processual da pretensão representa verdadeira supressão
do principio do contraditório e da ampla defesa, haja vista que sofrerão os efeitos
jurídicos da decisão sem ter tido qualquer oportunidade de resistir ao julgamento ou
de construir discursivamente o mérito da pretensão coletiva deduzida em juízo.
A não participação do representado na construção do mérito processual não
decorre da voluntariedade do sujeito, mas sim, trata-se de algo imposto pelo
sistemático modelo das class actions norte-americanas. Estender os efeitos de uma
decisão judicial envolvendo pretensão coletiva sobre pessoas que foram
impossibilitadas de exercer livremente o contraditório e a ampla defesa é o mesmo
que legitimar a violação do devido processo legal. O mesmo não se diz com relação
às pessoas as quais foi oportunizado o exercício do contraditório e da ampla defesa
e, livre e voluntariamente, os titulares dos respectivos direitos optaram por não
participar diretamente da construção do mérito processual da pretensão coletiva.
177

Não se pode admitir a relativização dos princípios do contraditório e da ampla


defesa no processo coletivo sob o argumento proposto pelo Sistema Representativo,
visto que a existência de um representante de uma determinada classe não poderá
dar ensejo à supressão do direito dos representados exercerem legitimamente o
contraditório e a ampla defesa.
A representatividade adequada é considerada uma questão preliminar166 para
o recebimento e o processamento regular da class action, pois o julgamento do
mérito da pretensão condiciona-se à demonstração da regularidade da
representatividade adequada do autor da ação para que todos os interessados, ora
representados, possam sofrer os efeitos do provimento. Na análise da adequada
representação a Corte deverá averiguar rigorosamente a observância dos seguintes
requisitos: a) a demonstração inequívoca pelos titulares da pretensão de efetivo
interesse jurídico na promoção daquela demanda; b) a representatividade adequada
por advogados tecnicamente preparados para enfrentar todos os desafios
apresentados no desenrolar da class action; c) averiguar a inexistência de qualquer
conflito entre as partes no interior da classe, ou seja, verificar a unidade dos
integrantes da classe no que tange à promoção da respectiva demanda.
A demonstração de que o autor da ação oferece condições suficientes para
fornecer uma adequada representação para todos os membros da classe é algo
imprescindível para o entendimento jurídico da coisa julgada nas class actions. O
processamento regular da ação denota a sua admissibilidade em virtude da
adequação na representatividade pelo autor. Em face disso, sabe-se que o
julgamento do mérito da pretensão coletiva será visto como um típico precedente,
com as conseqüências jurídico-legais que lhe são inerentes, uma vez que sua
aplicabilidade será estendida a todos as demais pretensões conexas àquela
inicialmente deduzida em juízo.
Qualquer irregularidade constatada na representação do autor da ação
(representatividade inadequada) traz como conseqüência a limitação na extensão
dos efeitos da coisa julgada, ou seja, a coisa julgada não estenderá seus efeitos
jurídicos para aquelas pessoas que não tenham sido adequadamente representadas
pelo autor da ação.

166
Existe controvérsia doutrinária sobre tratar-se a representatividade adequada como uma questão
preliminar ou prejudicial, porém, é pacífico entre os estudiosos de que a representatividade adequada
é uma questão prévia que deve ser necessariamente resolvida antes do julgamento do mérito da
pretensão (ALVIM, 1977, p. 11-25).
178

A Federal Rule 23 estabelece expressamente a necessidade de garantir a


publicidade ampla do objeto da ação de classe, de acordo com as circunstâncias
concretas de cada caso. Já se encontra sedimentado na jurisprudência americana a
obrigatoriedade de ampla publicização de todos os membros da classe que possam
ser identificados e encontrados mediante a utilização de razoável esforço, mesmo
que a classe seja constituída por milhares de pessoas. A inobservância do principio
da publicidade poderá acarretar a extinção do processo sem julgamento do mérito,
tendo em vista a ausência de uma condição de procedibilidade da class action: a
devida comprovação da adequada representação do autor da ação mediante a
efetivação do principio da publicidade. Todo o custo da noticia da tramitação do
processo será suportado pelo autor da ação que, somente se vitorioso, poderá
cobrar de toda a classe, na proporção que cada sujeito faz jus ao beneficio
alcançado com a class action.
Ao notificar cada sujeito interessado, deverá o autor da ação informar na
notificação167 a possibilidade de cada membro requerer expressamente a sua auto-
exclusão da ação proposta. Tal pedido de auto-exclusão poderá ser feito a qualquer
momento antes do julgamento do mérito da pretensão para que a parte interessada
não venha a sofrer os efeitos jurídicos da coisa julgada. Caso o membro da classe
não requeira expressamente a sua exclusão na forma da lei sofrerá todos os efeitos
jurídicos da decisão judicial ora proferida. Uma vez notificado, o membro da classe
poderá participar diretamente da ação, desde que se faça representar por advogado.
Nesse contexto todo é de extrema relevância esclarecer que nenhum individuo é
tratado como membro da classe enquanto não tiver sido regularmente notificado
acerca da existência da class action e desde que tenha optado em participar
daquela relação processual e se seus efeitos conseqüentes.
Outra questão de suma relevância no estudo do tema diz respeito à
discricionariedade que o Tribunal tem de analisar previamente se uma determinada
pretensão pode, ou não, assumir a forma de ação coletiva. Trata-se de decisão

167
La sección (c) (2) de la Regla 23 establece, solamente para el caso de configurarse una acción de
clase del tipo (b.3), que la notificación debe ser la mejor posible, esto es la notificación individual de
todos los miembros del grupo que puedan ser razonablemente identificados y la notificación general
para todos los miembros que no lo sean. A su vez la ley determina que la notificación debe incluir,
como mínimo: a) El anuncio de que el juez excluirá del grupo al miembro que así lo requiera dentro
del plazo estipulado y notificado em esse momento; b) que el fallo sea favorable o no a los intereses
de la clase, incluirá a todos los miembros que no soliciten su exclusión dentro del plazo anteriormente
señalado; y c) Que cualquier miembro que no haya solicitado su exclusión podrá participar del juicio
com patrocínio letrado (MAURINO; NINO; SIGAL, 2005, p. 39).
179

exclusiva do julgador fundada essencialmente na análise perfunctória da condição


de representante adequado do autor da ação, que deverá demonstrar o interesse de
defender os direitos de toda uma classe de pessoas e não apenas os seus próprios
interesses. Sempre que o Judiciário negar a certificação da classe, a ação proposta
poderá prosseguir, porém, como ação individual e sem a possibilidade de extensão
dos efeitos da decisão para terceiros que não figuraram como parte na relação
processual.
Concentrar nas mãos do Judiciário a legitimidade exclusiva de análise da
natureza coletiva da pretensão é suprimir a legitimidade processual de todos os
interessados difusos e coletivos debaterem a pretensão e construírem
participadamente o mérito da ação de classe.
São sete168 as condições indispensáveis para o reconhecimento jurídico da
class action169 e, consequentemente, o seu regular processamento e julgamento:

1- O sujeito que pretende ser reconhecido como representante adequado dos


membros de uma determinada classe deverá fornecer argumentação fático-
jurídica suficiente de que existe uma classe sujeita a violação de um
determinado direito cuja titularidade é comum a todos os integrantes. É
necessário ao autor da ação a descrição detalhada da classe, definindo quais

168
Para a aceitação de uma demanda proposta por um interessado como class action, é necessário o
atendimento de alguns requisitos: a) deve haver uma classe; b) aquele que se pretende adequado
representante deve ser membro atual da classe; c) a classe deve ser tão numerosa que a reunião de
todos os seus membros demonstre-se impraticável; d) as questões que dão ensejo ao litígio de fato
ou de direito, devem ser comuns aos membros da classe e predominar com relação às questões
individuais; e) as pretensões deduzidas pela “parte ideológica” devem ser típicas da classe; f) há
necessidade de reconhecimento de efetiva representação adequada (não simplesmente potencial)
dos interesses de toda a classe, pelo individuo presente na relação processual (o que envolve não
somente a ausência de conflitos entre os membros da classe e os ausentes, como ainda a presença
de advogado especializado, que tenha condições de lidar com a complexidade de questões que
podem se apresentar no desenvolvimento do processo); g) a hipótese trazida a juízo se amoldar a
uma das situações indicadas na Rule 23, i. é. se há risco de se ter regras individuais de conduta
incompatíveis entre si, se há busca de uma injunção a favor ou contra a classe para que sejam
respeitados direitos civis, ou, ainda, se é conveniente, por economia processual e segurança jurídica,
a junção de centenas, milhares ou milhões de lides individuais (multiple litigation) para uma decisão
vinculante, conjunta e uniforme, salvo hipótese de autoexclusão (LEONEL, 2011, p. 65).
169 As class actions norte-americanas podem ter a sua origem histórica traçada já no século XII,

quando grupos sociais litigavam nos tribunais ingleses, representados pelos seus líderes. Trata-se da
gênese do instituto da representatividade adequada considerado o fundamento regente ao
entendimento do instituto das class actions a partir das proposições teóricas delineadas pelo direito
norte-americano (GIDI, 2007, p. 40-57).
180

são as pessoas que nela estão incluída , assim como, deverá demonstrar
quais pessoas podem ser incluídas em tantas subclasses quantas forem
consideradas viáveis e necessárias ao caso concreto.
2- Aquele que se pretende adequado representante deve ser membro atual da
classe. A condição de legitimado processual do representante adequado
perpassa pela demonstração de que é membro integrante da classe que
pretende representar.
3- A classe deve ser tão numerosa que a reunião de todos os membros torna-se
algo impraticável, ou seja, é necessário que o representante adequado
demonstre que o número excessivo de membros da classe torne dificultoso
(ou até inviável) o exercício regular da jurisdição.
4- As questões que deram ensejo ao litígio, sejam as de fato, sejam as de
direito, devem ser comuns a todos os membros da classe, ou seja, é
necessário demonstrar previamente o caráter coletivo da pretensão objeto da
ação de classe. É necessário esclarecer preliminarmente qual será o objeto
da ação coletiva a fim de delimitar previamente os possíveis limites objetivos
da coisa julgada.
5- A pretensão deduzida pelo autor da ação (representante adequado) deve ser
comprovadamente de caráter coletivo e nunca ter natureza exclusivamente
individual. Somente será possível a extensão dos efeitos da decisão para
todos os membros da classe se comprovadamente o objeto da ação de
classe for de natureza coletiva.
6- O representante adequado deverá efetivamente representar os interesses de
toda a classe, adotando todas as medidas jurídico-legais necessárias para a
defesa dos direitos de titularidade de todos os membros que compõe a
classe, não se omitindo e, tampouco, quedando-se inerte na proteção dos
direitos coletivos e difusos que integra a pretensão deduzida em juízo.
7- Na proteção dos direitos de toda uma classe o Judiciário deve ser cuidadoso
no sentido de não violar regras que protegem condutas individuais e, ao
mesmo tempo, ser cauteloso para também não proteger direitos individuais
em detrimento dos direitos coletivos e difusos. A fim de garantir a economia
processual e a segurança jurídica o julgador deverá conciliar, na medida do
possível, todos os direitos de natureza individual e coletiva no momento em
181

que for julgar o mérito da pretensão deduzida em juízo.

A certificação170 (trata-se de uma fase crucial para o regime das ações


coletivas no direito norte-americano) consiste no término da fase preliminar em que o
julgador declara a regularidade processual para o prosseguimento do julgamento do
mérito da class action. Uma ação não certificada como ação de classe prosseguirá
como ação individual. A doutrina majoritária norte-americana, assim como o
entendimento sedimentado na Suprema Corte, sinalizam no sentido da
irrecorribilidade da decisão que reconhece ou não a possibilidade da ação proposta
seguir como uma class action. A doutrina que defende a recorribilidade da decisão
certificatória, chamada de Death Knell, foi derrubada quando do julgamento, pela
Suprema Corte, do caso Coopers and Lybrand versus Livesay (FRIEDENTHAL;
KANE; MILLER, 1985, p. 579).
A execução171 da decisão final condenatória proferida na class action deve
ser analisada sob duas perspectivas: deve-se averiguar o montante do dano sofrido
pela classe litigante e, por fim, distribuir (ou cobrar dos) membros da classe,
enquanto indivíduos que são, sua proporção exata na quantificação do dano. É por
isso que se faz necessária na fase de liquidação de sentença a constatação da
fragmentação ou da individualização dos danos sofridos pela classe como um todo e
também por cada sujeito ou membro que integra a respectiva classe. Para isso
inicialmente deve ser avaliado se existe a responsabilidade do réu e, se positiva, na
sequência será auferida especificamente a quantificação do dano. Uma vez fixada a
responsabilidade da parte demandada e a quantificação dos danos, a Corte
determina como deverá ser efetivada a sua distribuição (ou também sua cobrança)
entre os membros da classe.

170
En lo que respecta AL procedimiento de las acciones de clase, el juez deberá decidir en primer
lugar se acepta la acción como proceso de clase a través del acto de certificación. Esta orden será
condicional y puede ser modificada em cualquier momento hasta la decisión sobre el fondo Del
asunto (MAURINO; NINO; SIGAL, 2005, p. 38).
171
Si todos los prerrequisitos y los requisitos da la acción de clase han sido satisfechos, la decisión
final tendrá efectos vinculantes para todos los miembros de la clase, hayan participado o no del
proceso. Esta es una excepción a cierto principio general asumido em Estados Unidos según el cual
una persona que no haya tenido su “dia em la Corte” no puede ser sometida a uma decisión judicial.
Refleja um reconocimiento de que el sistema judicial debe ser capaz de evitar la demora y gastos que
ocasionan múltiples litígio por uma misma cuestión (MAURINO, NINO; SIGAL, 2005, p. 40-41).
182

A Corte deve ser precisa na distinção dos danos sofridos pela classe como
um todo frente aos danos causados pelo réu a cada membro integrante da classe
especificamente. Nas hipóteses em que o pagamento de todos os danos
individualmente sofridos não esgotar a responsabilidade do devedor tal como ficou
decidido, existe a possibilidade da Corte se utilizar do fluid class recovery, que se
trata de um instituto cuja utilização é mais voltada para fornecer um beneficio geral
para toda a classe do que especificamente compensar cada um dos indivíduos que
a formam. Além disso, o respectivo instituto também se presta a garantir a reparação
dos danos para aquelas pessoas ou membros da classe que, sequer, tenham
conhecimento da ação e que, entretanto, não teriam direito a propositura de uma
ação individual para vindicar o quanto declarado na sentença, tendo em vista o
advento da coisa julgada172 e de seus efeitos jurídico-legais. O fuid class recovery é
um instituto freqüentemente utilizado com o propósito de assegurar que a
indenização reconhecida em uma class action beneficie todos os membros da classe
presentes ou ausentes, de forma individual e coletiva, sem qualquer exceção.
Outro tema correlato a toda problemática cientifica em questão diz respeito à
possibilidade de realização de acordo envolvendo o objeto das class actions. Na
sistemática jurídica adotada pelos Estados Unidos da América, toda proposta de
acordo visando o encerramento de uma ação coletiva, especificamente uma ação de
classe, deve ser submetido ao crivo da Corte, que é quem detém a legitimidade da
análise e da aprovação ou não do respectivo acordo, cuja produção dos efeitos
jurídico-legais somente será possível após a regular homologação pelo órgão
jurisdicional. A proposta de acordo apresentada pela parte demandada deve ser
conhecida integralmente pela parte autora, ou seja, conforme estabelece a Rule
23(e), nas hipóteses em que a classe já tenha sido certified, obrigatoriamente deverá
ser efetivada uma fair notice da proposta de acordo, garantindo-se, por conseguinte,
à representatividade adequada, ou seja, o direito de participar de forma direta do

172
No que atine ao binding efect, ou seja, limites subjetivos da coisa julgada, desde que considerada
adequada a representação, e tendo os integrantes da classe recebido a notificação (fair notice) dando
conta da propositura da demanda coletiva, a decisão, acobertada pelos efeitos da coisa julgada,
vinculará todos os integrantes da classe tanto na hipótese de procedência como de improcedência da
ação. A Regra 23 atribui certo poder discricionário ao juiz de delimitar a extensão dos efeitos
subjetivos da res judicata. Ademais, assegura-se ao membro da classe regularmente notificado, nos
casos de ação destinada à obtenção de indenização, a possibilidade de requerer a sua autoexclusão
(right to opt out), e não ser atingido pelos efeitos da decisão, podendo a qualquer tempo ajuizar
demanda individual com relação aos mesmos fundamentos de fato deduzidos na demanda coletiva
(LEONEL, 2001, p. 73).
183

debate de todas as questões de fato e de direito integrantes do acordo que se


pretende realizar.
A doutrina norte-americana se divide quanto à possibilidade de realização de
acordo antes de ter sido certificada a natureza jurídica de class action para a ação
proposta. Particularmente entende-se que o acordo de qualquer demanda, seja de
natureza individual ou coletiva, versa sobre questões de mérito que permeiam a
pretensão deduzida em juízo. Considerando-se que a análise do mérito da
pretensão das class actions é posterior à certificação, pugna-se pelo entendimento
de que a realização de acordo somente é juridicamente viável após a confirmação
da regularidade procedimental e processual da class action.
A participação direta dos autores da ação (representatividade adequada) é
conditio sine qua non para viabilizar a legitimidade jurídica do acordo a ser firmado
entre as partes e homologado pelo órgão julgador. Isso implica dizer que a Corte
não deteria legitimidade para, de ofício, firmar acordo sob a justificativa de proteção
dos interesses dos membros da classe. Nesse mesmo sentido sabe-se que o
representante adequado (autor da ação) não teria legitimidade para se recusar, de
forma infundada e injustificada, a realização de um acordo que venha a proteger
amplamente os interesses jurídicos de todos os membros da classe. Nessa situação
excepcional, de recusa injustificada do representante adequado em anuir com a
realização de um acordo que atenda aos interesses dos membros da classe, poderá
a Corte, de forma fundamentada, homologar o respectivo acordo.
Quanto à necessidade ou não de intimação pessoal dos membros da classe
para o debate envolvendo possível acordo na class action entende-se ser
dispensável a intimação pessoal, tendo em vista ser juridicamente viável que a
publicidade da realização do acordo poderá ocorrer mediante outros meios idôneos
e efetivos que venham a resguardar o direito de participação e de manifestação das
partes juridicamente interessadas. No ano de 1978, no caso Shelton, a Corte decidiu
pela desnecessidade de intimação pessoal dos membros da classe para a
realização do acordo porque, sem a prévia demonstração de que se tratava de ação
coletiva, não haveria que se falar em eventuais prejuízos para os membros ausentes
(EMANUEL, 1990, p. 264).
Outro tema polêmico e de bastante relevância jurídica se refere à
possibilidade de realização ou não de acordos envolvendo lides unitárias em ações
de classe, isto é, aquelas que não podem ser resolvidas de formas diversas para
184

cada interessado (devem ser decididas de forma idêntica para todos os membros da
classe). Considerando-se a indivisibilidade do objeto da ação coletiva, sabe-se que
em eventual acordo torna-se temerário pensar na proteção jurídica individualizada
dos interesses de cada membro da classe.
O modelo de processo coletivo norte-americano foi construído basicamente a
partir do sistema das class actions173, regida essencialmente pelo sistema
representativo. Trata-se de um modelo de processo coletivo semelhante ao que
existe no Brasil: no Brasil terá legitimidade para a propositura de uma ação coletiva
todas aquelas pessoas e instituições previamente autorizadas pelo legislador a
atuarem na condição de legitimados extraordinários; nos Estados Unidos da América
uma pessoa ou um grupo de pessoas terá legitimidade para propor uma ação de
classe a fim de defender e vindicar em nome próprio direito próprio e direitos alheios
(número determinado, determinável ou indeterminado de pessoas titulares de
direitos comuns = direitos coletivos e direitos difusos).
Certamente trata-se de um modelo de processo coletivo incompatível com a
Constituição brasileira de 1988 que adotou o Estado Democrático de Direito,174
regido essencialmente pelos princípios da soberania popular e pela cidadania,
fundamentos jus-filosóficos hábeis a legitimar discursivamente a participação de
todos os interessados difusos e coletivos na construção participada do mérito
processual das ações coletivas.

3.3 O SISTEMA REPRESENTATIVO (A PROBLEMÁTICA JURÍDICA DA LEGITIMIDADE

PROCESSUAL NAS AÇÕES COLETIVAS ) COMO FUNDAMENTO REGENTE DA CONCEPÇÃO DE

PROCESSO COLETIVO PRECONIZADA PELA ESCOLA INSTRUMENTALISTA

173
Sintetizando o regramento da class action, podemos anotar que: a) quanto ao objeto da demanda,
há necessidade de pluralidade de interessados determinados ou determináveis, cuja atuação
conjunta se torna impraticável, sendo o objeto litigioso comum a todos; b) quanto à legitimação, há
possibilidade de atuação de qualquer componente da classe, sem necessidade de autorização, desde
que titular de uma posição jurídica similar à dos demais; c) quanto aos poderes do juiz, são amplos,
tanto na condução do processo como na delimitação do seu objeto; d) resta assegurado o due
processo of law através da adequacy of representation; e) quanto à extensão ultra partes dos limites
subjetivos do julgado, ocorre indiscriminadamente, na medida em que tenha ocorrido regularmente a
far notice a respeito da demanda, assegurando-se o direito de exclusão (right to opt out) (LEONEL,
2001, p. 73).
174
Pela ótica de que a cidadania, além de ser o fundamento da Democracia, é o comprometimento
com os fundamentos da auto-existência e esta inclusão deve ser solicitada pelo processo (direito
garantia de reivindicar e fiscalizar os direitos assegurados na Constituição (DEL NEGRI, 2008, p. 78).
185

As proposições teóricas que fundamentam o processo coletivo vigente no


Brasil são de natureza dogmática e construídas a partir da herança individualista e
autoritária do processo civil, cujo entendimento e compreensão advêm do exercício
da autoridade e do poder jurisdicional pelo julgador. Essa acepção autocrática,
utilizada como ideologia regente no estudo do processo coletivo lhe retira qualquer
possibilidade de discussão e análise no plano da constitucionalidade democrática.
Ao contrário do sistema da Class Action175 adotado nos Estados Unidos da
América, em que o cidadão diretamente pode ser autor das ações coletivas, no
Brasil adotamos o sistema representativo, através do qual temos um rol taxativo de
legitimados para a propositura das ações coletivas. A limitação trazida por esse rol
taxativo é o fundamento da exclusão de todos os interessados difusos na construção
do provimento, pelo simples fato de não ter sido autorizado pelo legislador.
A reconstrução dos fundamentos teóricos do processo coletivo se faz
necessária para viabilizar a revisitação e a superação da visão privatística do
processo coletivo vigente no Brasil. Compreender o processo coletivo pelo viés do
processo civil é reconhecer a exclusão dos interessados difusos e coletivos na
construção do provimento estatal. Estudar o processo coletivo a partir da concepção
teórica preconizada pelos estudiosos do processo civil é o mesmo que reconhecer
um modelo de processo através do qual os legitimados processuais serão apenas
aqueles sujeitos ou aquelas instituições aleatoriamente escolhidos pelo legislador
como aptos à proteção dos direitos coletivos e difusos.
O estabelecimento do rol de legitimados, ou seja, a definição, pelo legislador,
de algumas instituições legitimadas à propositura das ações coletivas (ex. Ministério
Público) é considerada uma das demonstrações mais claras de que temos uma
vertente essencialmente autoritária para o entendimento do processo coletivo. Tal
afirmação se justifica inicialmente pelo fato do atual modelo de processo coletivo

175Outro padrão adotado é o dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e outros países que admitem a
class action. Nesse sistema há um alargamento do juízo para a discussão de um problema referente
a uma classe ou categoria de pessoas. Aquele que propõe a ação (chamado de class actori) não
precisa de prévia autorização através de lei especifica. Normalmente é uma associação que se
apresenta em juízo como representante de uma classe. O ressarcimento do dano não fica limitado ao
indivíduo prejudicado, alcançando toda a extensão do ato violador. O juiz deve exercer um importante
papel de controle da admissibilidade da representação (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 139-140).
Segundo Vigoriti (1979, p. 261), a “class actio” é oriunda do Bill of Peace do direito inglês, no século
XVII, cujo desenvolvimento e importância somente foram alcançados com a Regra 23 das Federal
Rule of Civil Procedure, de 1938. Nessa norma se reafirma que somente se pode recorrer à class
action quando resulte praticamente impossível unir no mesmo processo todos os interessados
(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 142)
186

adotado no Brasil ser distinto teoricamente daquele modelo de processo


preconizado e trazido pela Constituição brasileira de 1988.
A base de todo o processo coletivo brasileiro vigente encontra-se no Sistema
Representativo. Trata-se de um modelo de processo através do qual o legislador,
solitária e unilateralmente, é quem define os legitimados à propositura de uma ação
coletiva. O processo de construção e de sistematização da legislação que regerá o
processo coletivo brasileiro é desenvolvido por sujeitos considerados legitimados a
definir peremptoriamente quem serão os sujeitos legitimados a figurar como autores
de uma ação coletiva. O cidadão, além de não participar das discussões legislativas
acerca da elaboração da legislação que implementará sistematicamente o processo
coletivo no Brasil, é absolutamente excluído do rol de legitimados a propositura da
ação coletiva (ação civil pública).
A previsão do Sistema Representativo no processo coletivo brasileiro vigente
denota a adoção da ideologia perpetrada por uma cognominada assembléia de
especialistas, composta por pessoas presumidamente mais preparadas para
exercer, em nome dos demais interessados, os direitos coletivos e difusos. A
escolha de instituições ou de determinadas pessoas e a sua legitimação para
atuarem em nome de todos os interessados difusos e coletivos demonstra
claramente a inadequação e a incompatibilidade com o modelo de processo coletivo
adotado no Estado Democrático de Direito. Nesse sentido ressalta-se que “[...] com
o acesso das massas à justiça, grandes parcelas da população vêm participando do
processo, conquanto por intermédio dos legitimados à ação coletiva” (GRINOVER;
MENDES; WATANABE, 2007, p. 12-13).
A adoção do Sistema Representativo exterioriza a opção do legislador
brasileiro pela legitimidade extraordinária176 como fator regente de praticamente todo
o processo coletivo no Brasil. O artigo 5º da Lei 7.347/85177 traz como legitimados à

176 [...] Os modelos de legitimação para agir que se seguiram, como veremos adiante, na verdade
procura reduzir o fenômeno coletivo, difuso, a um sistema de representação no qual se reconheceria
a “um” ente ou a uma pessoa qualidade para representar a vontade de todos. Como veremos, isso
nada mais é do que a reprodução do modelo da legitimação para agir do processo individual, no qual
um sujeito eleito pela norma como o detentor da legitimação representa todos os possíveis
interessados e em nome deles atua como um representante adequado daqueles que suportam os
efeitos do provimento (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 135).
177
Os legitimados para a ação civil pública são aqueles que integram o rol do art. 5º da Lei Federal nº
7347/85, ou então, aqueles constantes do rol do art. 82 da Lei Federal nº 8078/90, sempre lembrando
que as disposições desse último diploma se aplicam não apenas às ações coletivas em que se
tutelem os interesses transindividuais dos consumidores, mas também a quaisquer interesses
187

propositura da ação civil pública o Ministério Público, a Defensoria Publica, os entes


da Administração Pública Direta (União, Distrito Federal, Estados e Municípios), os
entes da Administração Pública Indireta (Autarquias, Fundações Pública, Empresas
Públicas e Sociedades de Economia Mista) e as associações constituídas há pelo
menos um ano nos termos da legislação civil brasileira e que inclua entre suas
finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem
econômica, à livre concorrência, ao patrimônio artístico, histórico, turístico, estético e
paisagístico.
Pela análise do texto legal que institui a ação civil pública resta claro que o
cidadão não é considerado parte legítima para figurar como autor da respectiva ação
coletiva, tendo em vista que o legislador optou expressamente pelo Sistema
Representativo como fator regente do modelo de processo coletivo adotado no
Brasil.
Em contrapartida, verifica-se que a Constituição brasileira de 1988 traz no seu
artigo 1º a soberania popular e a cidadania como um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito, ao instituir o principio da participação popular como o
parâmetro para o entendimento discursivo-constitucional-democrático do modelo de
processo coletivo que deve ser adotado no Brasil a partir de 1988.
A institucionalização do Estado Democrático de Direito como a forma de
Estado adotada pelo Brasil representa expressamente a intenção do legislador
constituinte revisitar e superar o modelo de processo coletivo desenvolvido
essencialmente a partir do Sistema Representativo. Pretendeu o legislador
constituinte implementar o Sistema Participativo como norte ao entendimento critico
do processo coletivo constitucional democrático.
O fato de o legislador constituinte estabelecer no parágrafo único do artigo 1º
da Constituição brasileira de 1988 o exercício da soberania popular através de
representantes eleitos, não pretendeu excluir a possibilidade de exercício direto da
soberania popular pelo povo. Importante ressaltar que o conceito de povo deve ser
lido sob a perspectiva do processo constitucional, ou seja, como cidadão, tendo em
vista que a cidadania no Estado Democrático de Direito implementar-se-á mediante
a oportunização de exercício efetivo dos Direitos Fundamentais e de construção

difusos, coletivos, ou individuais homogêneos, diante da reciprocidade dos diplomas, criadas através
do art. 21 da Lei de Ação Civil Pública e do art. 90 do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
(VIGLIAR, 1999, p. 74).
188

participada de todos os provimentos estatais por todos aqueles sujeitos


juridicamente interessados na construção participada do mérito processual.
O processo coletivo não pode mais ser reduzido a um mero instrumento para
o exercício da jurisdição, cujo rol de legitimados é aquele taxativamente estabelecido
pelo legislador. Pensar e discutir o processo coletivo a partir do sujeito, ou seja, sob
o prisma do Sistema Representativo, é reconhecer a sua incompatibilidade com o
modelo de processo trazido pelo legislador constituinte, uma vez que o respectivo
sistema jurídico é excludente ao não viabilizar a participação de todos os
interessados na pretensão na construção do provimento.
A Constituição brasileira de 1988 trouxe um novo paradigma de compreensão
do direito pátrio ao instituir um modelo de processo cuja finalidade essencial é
assegurar amplamente o acesso ao Judiciário a todos os interessados na pretensão
deduzida em juízo. É nesse contexto teórico que o processo constitucional no
Estado Democrático de Direito passou a ser visto como uma instituição que possui
as seguintes finalidades: a) viabilizar a implementação dos Direitos Fundamentais
instituídos no plano constituinte pelo Devido Processo Legislativo; b) oportunizar a
construção participada do provimento estatal mediante a institucionalização de um
espaço processual em que todos os interessados difusos e coletivos terão
legitimidade no debate da pretensão deduzida em juízo e, por conseguinte, na
construção participada do mérito no contexto do processo coletivo.
A democratização do processo coletivo pressupõe a revisitação e a
superação teórica do Sistema Representativo que dará lugar ao Sistema
Participativo, para que todos os interessados difusos e coletivos tenham legitimidade
para intervir juridicamente no debate e na construção participada do mérito
processual nas ações coletivas.
A Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, de autoria do jurista
Vicente de Paula Maciel Junior, reconstrói teoricamente todo o processo coletivo ao
propor a superação do Sistema Representativo pelo Sistema Participativo. O
processo coletivo deixa de ser visto sob o enfoque do sujeito, ou seja, o legislador
não tem legitimidade para definir imperativamente quais serão as pessoas ou as
instituições legitimadas a propositura de uma ação coletiva de forma genérica e
abstrata. O legislador não poderá definir taxativamente o rol de legitimados à
propositura das ações coletivas, tendo em vista que deverá assegurar a todos os
189

sujeitos interessados na pretensão deduzida em juízo o direito de figurar como parte


na relação processual ora instituída.
Dessa forma, o processo coletivo178 passa a ser estudado e compreendido
especificamente a partir do objeto, tendo em vista que será a partir da pretensão
inicialmente deduzida é que teremos condições de auferir casuisticamente quem
serão as pessoas a figurarem como partes legitimamente interessadas a participar
da construção discursivo-democrática do mérito da ação coletiva. A legitimidade dos
interessados difusos e coletivos no debate processual do mérito é auferida na
medida em que a análise da pretensão denota que a demanda atinge “um fato e um
bem sobre a qual a tutela judicial vai incidir e poder envolver um grande numero de
interessados” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 173). Nesse mesmo sentido, Vicente de
Paula Maciel Junior afirma que “a definição judicial sobre o fato que atinge um
numero grande de interessados revela que a demanda é coletiva” (MACIEL JUNIOR,
2006, p. 173).
A constitucionalização do processo coletivo se deu no sentido de
democratizar o seu entendimento a partir da ampliação do rol de legitimados a
propositura da ação coletiva, tal como ocorre com a ação popular. Desde 1965, com
o advento da Lei 4717, o cidadão é parte legítima a propositura da ação popular com
a finalidade de buscar a anulação ou a nulidade de ato lesivo ao patrimônio público.
Segundo estabelece o respectivo dispositivo legal, a legitimidade processual ativa do
cidadão para fins de propositura da ação popular comprovava-se mediante a
demonstração da regularidade do exercício dos direitos políticos. Importante
ressaltar que o objeto da ação popular a partir da leitura da Lei 4717/65 era um tanto
restrito, tendo em vista que se delimitava apenas a possibilidade do cidadão buscar
o controle dos atos da administração publica no sentido de proteger o patrimônio e o
interesse público.
A Constituição brasileira de 1988, no artigo 5º, inciso LXXIII manteve o
instituto da ação popular como instrumento legítimo que poderá ser utilizado
gratuitamente por qualquer cidadão, no gozo de seus direitos políticos, com a
finalidade de buscar a anulação ou a declaração de nulidade de ato lesivo ao
patrimônio público, bem como a proteção da moralidade administrativa, do meio

178
Pressupondo o processo como um instrumento democrático da racionalidade, ele necessariamente
deverá permitir que dele participem todos os que afirmem um interesse e invoquem o prejuízo sofrido
demandando uma solução hipoteticamente prevista na norma, no sistema jurídico (MACIEL JUNIOR,
2006, p. 170).
190

ambiente e do patrimônio histórico e cultural. Comparativamente com a Lei 4717/65,


o instituto da ação popular trazido pela Constituição brasileira de 1988 estabeleceu
um objeto mais amplo, que vai além da mera possibilidade de controle dos atos
lesivos ao patrimônio público.
O disposto no inciso LXXIII do artigo 5º da Constituição brasileira de 1988 é a
confirmação de que o legislador constituinte adotou expressamente no ordenamento
jurídico brasileiro o Sistema Participativo (não o Sistema Representativo) como
parâmetro de estudo do processo coletivo. Ao garantir a possibilidade de propositura
da ação popular pelo cidadão pretendeu o legislador ampliar o rol dos legitimados e
retirar a legitimidade apenas daqueles sujeitos taxativamente autorizados pelo
legislador a propor as ações coletivas, tal como preconizado pela Lei 7347/85.
Pela interpretação sistemática da Constituição brasileira de 1988 é possível
auferir que a Lei da Ação Civil Pública não foi recepcionada na parte que estabelece
um rol taxativo dos legitimados a sua propositura, excluindo-se desse rol o cidadão.
A justificativa para fundamentar a tese da não recepção da Lei 7347/85 pela
Constituição de 1988 foi a opção do legislador infraconstitucional pelo Sistema
Representativo quanto ao rol taxativo de legitimados processuais ativos a
propositura da ação civil pública, contrariando o artigo 1º, parágrafo único da
Constituição brasileira de 1988, que instituiu o principio da soberania popular como
corolário ao exercício efetivo da cidadania e de implementação de Direitos
Fundamentais.
A partir dessas colocações iniciais pode-se afirmar que o modelo de processo
coletivo trabalhado pela Escola Instrumentalista é aquele ainda centrado na
sabedoria inata do julgador, considerado o legitimado para identificar a titularidade
dos direitos difusos e coletivos, e viabilizar a sua implementação sem qualquer
possível participação de pessoas juridicamente interessadas e que não foram
autorizadas pelo legislador. A condução de todo o processo coletivo, bem como a
definição de quem poderá participar do debate da pretensão coletiva em juízo, é
uma prerrogativa exclusiva do julgador. O legislador delimita as diretrizes do
processo coletivo, implementando o sistema representativo mediante a eleição dos
sujeitos legitimados à propositura das ações coletivas, enquanto o julgador
concentra em suas mãos todo o poder de decisão da pretensão coletiva sem
qualquer ingerência dos interessados difusos e coletivos. Nesse sentido se
manifesta Ada Pelegrini Grinover
191

E o modo de ser do processo, que, quando individual, obedece a esquemas


rígidos de legitimação, difere do modo de ser do processo coletivo, que abre
os esquemas da legitimação, prevendo a titularidade da ação por parte do
denominado “representante adequado”, portador em juízo de interesses e
direitos de grupos, categorias, classes de pessoas (2007, p. 12).(grifo
nosso)

A adoção do sistema representativo no estudo do processo coletivo pela


escola paulista representa uma afronta aos princípios constitucionais do processo,
especialmente ao principio do contraditório, uma vez que retira dos interessados
difusos a igualdade de argumentação jurídica da pretensão e de construção
participada do mérito processual no contexto das ações coletivas. Assim, pode-se
afirmar que os estudiosos da escola paulista de processo passam a ter uma visão
distorcida do principio do contraditório, no momento em que admitem a possibilidade
de exercício do contraditório apenas por aquelas pessoas legitimada pelo legislador
(“representantes adequados”) à propositura de ações coletivas. É nesse contexto
que ressaltamos o entendimento preconizado pela professora Ada Pelegrini Grinover

Aliás, uma consideração deve ser feita que distingue a participação no


processo, pelo contraditório, entre o processo individual e o processo
coletivo. Enquanto no primeiro o contraditório é exercido diretamente, pelo
sujeito da relação processual, no segundo – o processo coletivo – o
contraditório cumpre-se pela atuação do portador, em juízo, dos interesses
ou direitos difusos ou coletivos (transindividuais) ou individuais
homogêneos. Há, assim, no processo coletivo, em comparação com o
individual, uma participação maior pelo processo, e uma participação menor
no processo: menor, por não ser exercida individualmente, mas a única
possível num processo coletivo, onde o contraditório se exerce pelo
chamado “representante adequado” (2007, p. 13).

A sistematização de uma Teoria Geral do Processo Coletivo compatível com o


modelo de processo preconizado pela Constituição brasileira de 1988 se faz
necessária para garantir a superação do sistema representativo, considerado o
parâmetro para o estudo do processo coletivo arraigado ainda em pressupostos de
natureza privada. Trata-se de um modelo excludente e autoritário de processo
coletivo pensado a partir do sujeito, e não a partir do objeto, conforme propõe a
Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, considerada compatível com o
Estado Democrático de Direito pelo fato de vislumbrar o processo coletivo como um
instituto que assegura o exercício da cidadania.
192

Considerando-se que a cidadania é fundamento do Estado Democrático de


Direito e que a noção de cidadania na concepção democrática é construída a partir
da implementação dos Direitos Fundamentais, especificamente o direito de
participação no processo e o acesso amplo ao Judiciário179, a simples demonstração
da condição de interessado difuso garante a qualquer sujeito o direito a possibilidade
de imiscuir-se no debate jurídico da pretensão e na construção do mérito da
demanda coletiva. A exclusão do interessado difuso na construção do provimento
materializa a inviabilidade de exercício democrático da cidadania.

3.3.1 O MÉRITO PROCESSUAL NAS AÇÕES COLETIVAS VISTO SOB A PERSPECTIVA DOS

ANTEPROJETOS DE CÓDIGO DE PROCESSO COLETIVO

A partir da década de 80 e 90 inicia-se no Brasil a sistematização dos estudos


do direito e do processo coletivo, momento em que os pesquisadores como José
Carlos Barbosa Moreira, Vicente de Paula Maciel Junior, Ada Pelegrini Grinover,
Antonio Gidi, Nelson Nery Junior e Gregório Assagra passaram a esclarecer
cientificamente conceitos, institutos e a levantar inúmeras problemáticas de cunho
teórico-pragmático que permeia o objeto de análise do processo coletivo.
O advento da Lei 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), da Constituição
brasileira de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) contribuiu,
sobremaneira, para a sedimentação do movimento de criação de um Código de
Processo Civil Coletivo. Por volta do ano de 2002 o jurista brasileiro Antônio Gidi
finalizou o que hoje se denomina de primeiro Anteprojeto de um Código de Processo
Civil Coletivo, ora denominado de Anteprojeto Original (iniciado em 1993 e finalizado
em 2002).
O segundo anteprojeto que temos é do Código Modelo de Processos
Coletivos do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual. Sabe-se que o

179 Conforme anteriormente mencionado, a Escola Instrumentalista de Processo compreende o


acesso à justiça como o acesso a uma ordem jurídica justa. Nesse sentido: “[...] Na feliz expressão de
Kazuo Watanabe, o acesso à justiça resulta no acesso a uma ordem jurídica justa. Um dos mais
sensíveis estudiosos do acesso à justiça – Mauro Cappelletti – identificou três pontos sensíveis nesse
tema, que denominou “ondas renovatórias do direito processual”: a) a assistência judiciária, que
facilita o acesso à justiça do hipossuficiente; b) a tutela dos interesses difusos, permitindo que os
grandes conflitos de massa sejam levados aos tribunais; c) o modo de ser do processo, cuja técnica
processual deve utilizar mecanismos que levem à pacificação do conflito, com justiça (GRINOVER,
2007, p. 12).
193

respectivo projeto começou a ser elaborado a partir de maio de 2002, quando no


encerramento de um seminário na cidade de Roma ficou estabelecido que o Centro
de Estudos Jurídicos Latino-americano e o Instituto Ibero-Americano de Direito
Processual elaborariam conjuntamente um projeto de um Código de Processo Civil
Coletivo Modelo. Finalizado e aprovado na cidade de Caracas em 28 de outubro de
2004 no ano de 2005, esse projeto teve como relatores Ada Pelegrini Grinover,
Kazuo Watanabe e Antonio Gidi do Brasil, assim como Roberto Berizonce da
Argentina e Angel Landoni Sosa do Uruguai.
O terceiro Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, elaborado
no ano de 2005, foi liderado pelo jurista Aluísio Gonçalves de Castro Mendes e
desenvolvido no programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Estácio de Sá.
O quarto Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos teve sua
elaboração iniciada em 2003 e finalizada no ano de 2007, foi desenvolvido na
Universidade de São Paulo, sob a coordenação da professora e jurista Ada Pelegrini
Grinover.
Os quatro primeiros Anteprojetos foram elaborados com o a finalidade de
codificar o processo coletivo dentro de uma mesma linha teórica, qual seja, a
construção do processo coletivo a partir de concepções conceituais desenvolvidas
no âmbito do processo civil180, ou seja, trata-se de um modelo de processo coletivo
incompatível com aquele preconizado pela Constituição brasileira de 1988 por não
viabilizar a ampla participação de todos os interessados difusos e coletivos na
construção participada do provimento jurisdicional. Conforme preceitua o jurista
Gregório Assagra de Almeida “[...] não se observam nas exposições de motivos das
propostas de codificação estudadas o apontamento das diretrizes metodológicas e
principiológicas para a codificação pretendida” (2007, p. 4).
É necessário o amadurecimento das propostas legislativas de codificação do
direito processual coletivo mediante a realização de amplo debate nacional do tema,
o estabelecimento de uma metodologia e a sistematização teórica de princípios, de
conceitos e de institutos próprios a atender as tutelas coletivas e difusas. Nesse
mesmo sentido pontua Gregório Assagra de Almeida

180
Além de não existir, nas propostas apresentadas a público, a disciplina de todos os institutos
estruturais do direito processual coletivo, nota-se que essas propostas não rompem com as amarrar
liberais individualistas do Código de Processo Civil (ALMEIDA, 2007, p. 4).
194

A simples junção, em um mesmo diploma, do que já foi consagrado no


sistema jurídico brasileiro, com pequenos avanços técnicos e pontuais,
talvez não seja suficiente para justificar o projeto o projeto da nova
codificação; até porque o microssistema formado pela Lei da Ação Civil
Pública (art. 21) e pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 90) não foi
devidamente assimilado por parte da doutrina e, especialmente, pela
jurisprudência *2007, p. 4).

Pode-se afirmar que os autores dos Anteprojetos acima mencionados são


integrantes e representantes da Escola Paulista de Processo (também denominada
de Escola Instrumentalista de Processo181), para quem o processo é visto como um
instrumento para o exercício da jurisdição, enquanto a jurisdição é tida como um
poder assegurado ao juiz a fim de garantir a decisão mais justa para o caso
concreto, podendo se utilizar tanto de argumentos jurídicos, quanto de argumentos
de cunho metajurídicos (axiológicos; juízos de equidade) para fundamentar suas
decisões.
O que se verifica hoje é a teorização do processo coletivo a partir de ideais de
natureza individualistas e privados trabalhados no contexto do processo civil. Pensar
o processo coletivo a partir do processo civil é reproduzir equivocadamente a
ideologia do modelo de processo em que os sujeitos diretamente interessados na
pretensão estão excluídos de participar do debate jurídico que levará à construção
participada do mérito processual. Novamente o professor e jurista Gregório Assagra
de Almeida é pontual em suas críticas aos anteprojetos acima mencionados,
justificando coerentemente suas reflexões na necessidade de utilização da
hermenêutica constitucional democrática como critério de sedimentação teórica das
diretrizes metodológicas de entendimento do direito processual coletivo a partir dos
princípios e das regras interpretativas do direito constitucional, especialmente os
direitos e as garantias constitucionais fundamentais expressamente previstas no
texto da Constituição brasileira de 1988. “Um código sem as diretrizes metodológicas
e principiológicas necessárias poderá simbolizar, com pequenos avanços, uma mera
consolidação ou compilação de leis, apequenando a própria dimensão social e
constitucional do direito processual coletivo, que ainda deve ser desenvolvido e
compreendido” (ALMEIDA, 2007, p. 5).

181
Na fase instrumentalista, o direito processual passa a ser concebido como meio, como instrumento
de realização da justiça por intermédio dos denominados escopos da jurisdição. A postura metódica,
nesta fase instrumentalista do direito processual, que é a visão que hoje prevalece, é pluralista e se
compõe de vários elementos (político, técnico-jurídico, social, sistemático, ético, econômico, histórico
etc.) (ALMEIDA, 2007, p. 22-23).
195

A elaboração de um Anteprojeto de Código de Processo Coletivo pressupõe


inicialmente a construção de uma nova Teoria Geral do Processo Coletivo
compatível com o Estado Democrático de Direito. É exatamente isso que pretende a
Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, de autoria do jurista mineiro
Vicente de Paula Maciel Junior, que busca reconstruir teoricamente todo o processo
coletivo para que o foco de análise científica deixe de estar centrado no sujeito e
passa a se focar no objeto. O processo coletivo deve ser visto como uma instituição
que oportunize efetivamente a participação direta do interessado difuso ou coletivo
na construção do provimento. “Quanto maior a participação dos interessados na
formação do mérito do processo maior será a possibilidade de que esse processo
represente o conflito coletivo de forma ampla” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 179).
Para o autor da Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas o
legislador não detém a legitimidade para estabelecer categoricamente, de forma
abstrata, quem serão os legitimados à propositura de uma ação coletiva. Qualquer
pessoa que demonstre interesse jurídico na pretensão tem legitimidade na
propositura de uma ação coletiva

Isso significa que as ações coletivas que tratem de interesses difusos


devem ser “ações temáticas”, no sentido de que elas devem propor
questões para discussão em um processo judicial onde os diversos
interessados tenham seus interesses representados através de temas
objeto da discussão como mérito da ação proposta (MACIEL JUNIOR, 2006,
p. 180).

A propositura de uma ação coletiva por um dos sujeitos juridicamente


interessados não exclui a possibilidade dos demais interessados difusos e coletivos
passarem a integrar a relação processual como legitimados ao debate fático-jurídico
da pretensão deduzida, desde que apresentem alegações coerentes e conexas ao
tema inicialmente posto e apresentado pelo autor da ação (qualquer sujeito
interessado tem legitimidade de levantar todas as questões ou temas que tenham
relação fática e/ou jurídica, direta ou indireta com a pretensão inicialmente
deduzida).
Isso significa dizer que, para a respectiva teoria, o objeto de uma ação
coletiva não se define com a simples propositura da ação e a apresentação da
defesa pelo demandado, tal como ocorre no processo civil vigente. A propositura da
ação coletiva é o momento em que o demandante delimita inicialmente o tema a ser
196

debatido, facultando-se a todos os interessados difusos apresentarem temas


correlatos, coerentes e conexos à pretensão deduzida. Isso evidencia que não será
o juiz nem apenas o demandante ou demandado os únicos legitimados a
determinarem o objeto de uma ação coletiva, até porque, todo interessado difuso
terá a oportunidade de apresentar temas correlatos à pretensão deduzida até o
momento processual que antecede o despacho saneador. Não se pretende aqui
abandonar a sistemática das preclusões como norte para a construção de um
procedimento ou rito adotado nas ações coletivas como ações temáticas. O
estabelecimento de um momento temporal no processo para encerrar as
possibilidades dos interessados difusos apresentarem os temas correlatos à
pretensão deduzida é algo necessário para evitar que a demanda se torne infinita e,
assim, sejam estabelecidos os contornos dos efeitos jurídicos da coisa julgada.
Deslocar o foco de análise teórica do processo coletivo do sujeito para o
objeto é a maneira mais coerente de avançarmos o debate do tema rumo a
efetivamente uma autonomia cientifica do Processo Coletivo como ramo autônomo
da ciência do Direito. Retirar das mãos do julgador, do autor da ação e do
demandado a autonomia exclusiva de participação na construção do mérito da
pretensão é a metodologia mais adequada para democratizarmos
constitucionalmente a compreensão critica do processo coletivo e superarmos as
proposições teóricas herméticas até então preconizadas pelos estudiosos do
processo civil.
Faz-se necessário, nesse contexto, repensar teoricamente todo o direito
processual sob a égide dos direitos coletivos e difusos. O processo coletivo que se
pretende democrático não pode conviver harmonicamente com um rol taxativo de
legitimados a propositura das ações coletivas mediante a exclusão absoluta de
todos os demais interessados difusos e coletivos na pretensão deduzida.
Um interessado difuso ou coletivo não poderá sofrer os efeitos jurídicos da
coisa julgada em uma ação coletiva a qual não teve qualquer oportunidade
assegurada de exercício efetivo do contraditório, da ampla defesa e do devido
processo legal no que atine ao debate da pretensão.
O mérito processual não pode se limitar às questões de fato e de direito
trazidas pela parte autora e pela parte demandada e, por conseguinte, submetidas
ao crivo do julgador. O mérito processual nas ações coletivas como ações temáticas
deve produto da construção participada de todos os interessados difusos e coletivos
197

na pretensão, desde que lhes tenham sido asseguradas a oportunidade efetiva de


amplo debate no espaço processual a fim de que todos os argumentos de natureza
fática e jurídica apresentados pelas partes sejam levados em consideração quando
da construção do provimento jurisdicional.
No ano de 2008 foi finalizado o Anteprojeto de Código de Processo Coletivo
Brasileiro, elaborado pelos alunos do curso de pós-graduação stricto sensu em
Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, sob a orientação e a
supervisão do jurista e professor Vicente de Paula Maciel Junior. Trata-se de uma
proposta de codificação do processo coletivo no Brasil desenvolvida essencialmente
a partir da Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, cujo fundamento
central para o seu entendimento encontra-se no princípio constitucional da soberania
popular, corolário do exercício efetivo da cidadania.
Antes de passarmos a análise detalhada dos cinco Anteprojetos de Lei
elaborados com o propósito de sistematizar a legislação atinente ao processo
coletivo, faz-se necessária uma breve reflexão acerca da codificação da legislação
em questão. O século XIX182 é considerado o grande momento histórico da
humanidade caracterizado pelas grandes codificações, especialmente da legislação
civil. Trata-se de legislações de cunho eminentemente positivista que constituíam
sistemas jurídicos impermeáveis às modificações econômicas e sociais, tendo em
vista que os textos legislativos eram rígidos, fechados, estáticos e totalizantes
(ALMEIDA, 2007, p. 2). “[...] o positivismo jurídico do século XIX tinha o sistema
jurídico como manifestação de uma unidade imanente, perfeita e acabada”
(ALMEIDA, 2007, p. 16).
Dessa forma, sabe-se que o sistema jurídico foi inicialmente concebido como
uma ordem jurídica fechada que se pautava ideologicamente na ausência de
lacunas. O silogismo foi o parâmetro para a construção do raciocínio jurídico ao

182
Dentro de uma visão mais flexível, há quem identifique a origem remota do código na Antiguidade.
Essa concepção considera como códigos obras como o Código Theodosiano (Codex Theodosianus)
e o Corpus Iuris do Direito Romano. Dentro desse contexto, há quem faça a distinção entre
codificações antigas e codificações modernas. Para tal doutrina, as codificações antigas possuíam
um caráter geral e visavam ao direito em sua totalidade. As codificações modernas seriam especiais
e disciplinavam um só ramo do direito. As antigas decorriam de simples compilações, já as modernas
eram sistematizadas em sua forma. Os códigos antigos eram compostos pela reunião de leis,
princípios jurídicos, doutrinas e os códigos modernos, compostos somente de preceitos legais
enunciadores de regras ou de princípios. Os códigos antigos eram redigidos de forma difusa,
diferentemente dos códigos modernos, que utilizavam forma breve e concisa. Entretanto, existem
aqueles que, partindo de uma concepção mais restritiva, diretamente ligada à noção de sistema no
campo do Direito, somente admitem a idéia de código, como sistemas de direito, a partir dos séculos
XVIII e XIX, por força do iluminismo e do jusracionalismo (ALMEIDA, 2007, p. 7-8).
198

longo do século XIX, em que a premissa maior era a norma legal em abstrato
(genérica), a premissa menor era o caso concreto e a conclusão consistia na
adequação dos fatos mediante a aplicação da norma ao caso concreto. Nesse
período o direito vigente se pautou essencialmente na filosofia liberal-individualista e
foi constituído por meio de sistemas jurídicos codificados, rígidos, hermeticamente
fechados, auto-suficientes e em cima da idéia de completude do próprio sistema
jurídico. “Com a impermeabilidade e inflexibilidade dos grandes diplomas normativos
oitocentistas às mudanças e às transformações sociais, esses sistemas de
codificação fechada vieram a perder a legitimidade social [...]” (ALMEIDA, 2007, p.
19).
Em virtude do dinamismo e da complexidade das relações sociais ao longo da
história183 da humanidade os códigos oitocentistas184 deram lugar, a partir do século
XX, às codificações mais flexíveis e, em especialmente, àquelas desenhadas em
cima de conceitos indeterminados e cláusulas abertas. Rompe-se com o positivismo
centrado em interpretações essencialmente literais para iniciar um novo período em
que o direito passa a ser interpretado conforme o contexto histórico e social em que
o mesmo será aplicado. “É necessário que os códigos atuais sejam dotados de
mobilidade necessária que possam ser atualizados por intermédio de interpretação e
aplicação concreta. Para tanto, é fundamental que sejam dotados de cláusulas
gerais que lhes confiram a mobilidade necessária” (ALMEIDA, 2007, p. 19).
Não se pode confundir conceitualmente os conceitos de codificação e de
consolidação: “a consolidação é o mero recolhimento de normas já existentes, com
incidência especialmente nos momentos de exaustão legislativa, ao passo que o
código, formado por um corpo legislativo novo, é animado por um espírito inovador”

183
Com o fenômeno denominado sociedade de massa e, especialmente, com sua manifestação
social, a emergência cada vez mais intensa da sociedade de consumo, com o surgimento de novas
relações jurídicas não regulamentadas por esses sistemas fechados, em que o consumidor passava a
figurar cada dia mais intensamente como a parte mais fraca, esse sistema do direito civil, implantado
por força do liberalismo, tornou-se obsoleto, totalmente inadequado para a regulamentação de
situações jurídicas novas e especiais, o que passou a ser vivenciado já no final do século XIX e se
intensificou radicalmente após a Segunda Guerra Mundial, com a eclosão da massificação social,
geradora de intensa conflituosidade social (ALMEIDA, 2007, p. 27).
184
As codificações francesas, ao lado das codificações belga, prussiana, austríaca e ainda algumas
codificações esparsas italianas no inicio do século XIX, representaram um fenômeno totalmente novo
na conjuntura moderna. Diferentemente das codificações de outras eras, como a justiniana, a veda ou
a mosaica, o que ocorreu no século XIX foi a efetivação de um novo método de aplicabilidade
jurisdicional, caracterizado pela subsunção de casos concretos a dispositivos escritos e abstratos.
Esse fenômeno tem características próprias – de certa forma, inéditas na história conhecida -, porque
as demais codificações primaram-se pela sua natureza enciclopédica ou antológica, constituindo, de
fato, compêndios e registros de um tempo ou de uma civilização (GONTIJO, 2011, p. 10).
199

(ALMEIDA, 2007, p. 8). A primeira grande codificação ocorreu no ano de 1804 com o
advento do Código Civil de Napoleão185, que em termos jurídicos e históricos
representa um marco no estudo e na compreensão do direito civil, sendo utilizado
como norte para o inicio de um movimento de codificação que se estendeu ao longo
de todo o século XIX e especialmente durante a primeira metade do século XX, com
reflexos diretos no direito brasileiro. Em 1812 temos o Código Civil austríaco,
embora o Código Civil alemão (BGB), do ano de 1896, é apontado como a segunda
grande codificação e reflexo do amadurecimento das proposições teórico-jurídicas
trazidas pelo Código Civil de Napoleão186. “Depois vieram as codificações
denominadas tardias, tais como o Código Civil Suíço de 1907, o grego de 1940, o
italiano de 1942 e o português de 1966, que mantiveram, em síntese, as principais
diretrizes das duas grandes codificações anteriores [...]” (ALMEIDA, 2007, p. 11).
Ao longo de todo o século XIX os estudiosos se debruçaram sobre o debate
acerca da autonomia cientifica do direito processual em face do direito material; ou
seja, buscava-se a superação do modelo imanentista, em que o direito material era
considerado o patamar e o fundamento para o entendimento do direito processual.
Historicamente o Código de Processo Civil francês no ano de 1806 representa o
marco legislativo da autonomia cientifica do direito processual frente ao direito
material, algo que veio se sedimentar mais tardiamente com a obra do alemão Oskar
vön Bulow no ano de 1868 (Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais),
para quem o processo é visto como uma relação jurídica entre juiz, autor e réu e

185
Eis uma história do Code Napoleón (Código de Napoleão): o discurso político subversivo iluminista
pregava a necessidade de criação de um corpo legal escrito, sob a justificativa de buscar clareza,
simplicidade, objetividade e unidade. De todas essas pretensões, à idéia de unidade, em particular,
dá-se maior importância, pois ela coaduna com as aspirações sistematizadoras, por influência das
ciências naturais. A idéia de um ordenamento jurídico sistematizado e, portanto, unificado, tornou-se
uma das estruturas metodológicas mais aceitas pelas escolas de direito nos tempos subseqüentes
(GONTIJO, 2011, p. 11-12)
186
A aprovação final do Código Civil francês se deu por iniciativa do próprio Napoleão Bonaparte, que
a partir de 1800 nomeou uma comissão de juristas coordenados pelo político liberal Jean Etienne
Marie Portalis. Aqui se apresenta um segundo aspecto percebido na decorrência da construção do
Código. Além do abandono definitivo da concepção humanista, de cunho iluminista. Napoleão, como
Primeiro-Cônsul, portanto representante do Poder Executivo, invadiu o espaço do Poder Legislativo,
no momento sob a nomenclatura de Conselho do Estado. Na verdade, o principio da tripartição do
poder defendido por Montesquieu, por efeito francamente iluminista, estava sendo pisado. Bonaparte
participou de 57 das 102 sessões para a discussão e votação do projeto.
Ora, como o Código Civil regularia, segundo o convencimento da época, todas as dimensões sociais
francesas? Napoleão, estando à frente desse empreendimento, se considerava estrategicamente
responsável por este fulminante passo histórico. De sorte que atraia muita atenção política, sobretudo
de grupos econômicos que lhe atribuíam mais poder. Dessa forma, Bonaparte colocava-se
estrategicamente à frente da barganha política angariando-lhe maior gama de jogos de interesses,
pois se entendia o direito civil como coluna dorsal de todo corpo jurídico (GONTIJO, 2011, p. 14).
200

também com a Ordenança Processual Civil alemã (ZPO) datada de 30 de janeiro de


1977 (a ZPO, mesmo diante das diversas alterações sofridas ao longo da historia,
algumas até recentes, continua em vigor).

Em razão do seu rigor técnico e cientifico, a Ordenança Processual Civil


alemã acabou por embasar a criação da Ordenança Processual Civil
austríaca de 1895, além de influencia modernos códigos de processo civil
da Hungria (1911), Bulgária (1922), Noruega (1912). Polônia (1933),
Portugal (1939 e 1961), Brasil (1939 e 1973) e Itália (1940) (ALMEIDA,
2007, p. 26).

Os reflexos no Brasil desse movimento de codificação podem ser notados no


Código Civil de 1916, no Código de Processo Civil de 1939, no Código Penal de
1940, no Código de Processo Penal de 1941, no Código de Processo Civil de 1973 e
no recente Código Civil de 2002.
Além do movimento da codificação da nossa legislação, vivenciamos também
o advento de inúmeros microssistemas jurídicos, também denominados de códigos
setorizados, tais como o microssistema de tutela jurisdicional coletiva comum,
caracterizado essencialmente pela Lei 7.347/85 (lei da ação civil pública) e pela Lei
8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Trata-se de legislações criadas
especialmente na tentativa de sistematizar um conjunto de normas de superdireito
processual coletivo comum que possuem ultra-eficácia imediata. Outro
microssistema jurídico é o da tutela jurisdicional coletiva especial, constituído pela
Lei 9.868/99 (que dispõe sobre o controle abstrato e concentrado de
constitucionalidade por meio do processamento e do julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade) e também pela
Lei 9.882/99 (que disciplina o processamento e o julgamento da argüição de
descumprimento de preceito fundamental) (ALMEIDA, 2007, p. 3).
Os microssistemas jurídicos vêm responder aos anseios da sociedade de
massa a fim de regular as questões relacionadas com os direitos difusos e coletivos.
A preocupação com tais direitos ao longo do século XX é produto da superação do
liberalismo clássico, tipicamente do século XIX, centrado na ideologia da intervenção
estatal mínima que deu lugar à socialização dos direitos, produto de uma postura em
que o próprio Estado é convocado a fim de assumir um papel mais ativo em prol da
proteção dos direitos coletivos e difusos e da transformação social (advento do
Estado Social na primeira metade do século XX e também no inicio da segunda
201

metade do mesmo século). “Assume ele a função de coordenador das reformas


socialmente exigidas, sendo como conseqüência ampliadas as suas tarefas”
(ALMEIDA, 2007, p. 30).
O advento dos microssistemas jurídicos veio a atender as necessidades de
uma sociedade dinâmica, pluralista e democrática, cujo foco de preocupação não
mais se concentra exclusivamente na regulação das relações jurídicas de natureza
essencialmente privada. O direito deixa de ser visto sob o prisma legal e passa a ser
estudado sob a égide da hermenêutica. A interpretação dos conceitos abertos a
partir das peculiaridades de cada caso concreto veio trazer maior dinamismo à letra
fria e abstrata da lei187.
Todo o debate da codificação e da sistematização legislativa das normas
atinentes ao direito processual coletivo deverá ser construído a partir teoria dos
Direitos Fundamentais, cuja interpretação tem como referencial o Estado
Democrático de Direito. O positivismo legalista arraigado à compreensão literal do
texto legal como critério de entendimento sobre o que é o Direito é superado pela
nova visão de que a ciência do Direito desenvolve-se por meio de métodos de
interpretação sistemática da legislação vigente a partir dos princípios e das diretrizes
fundamentais da ordem jurídico-constitucional democrática.
Não podemos deixar de ressaltar a complexidade da discussão acadêmico-
doutrinária que envolve a relação existente entre sistema jurídico e codificação,
ressaltando-se que “a idéia de sistema liga-se diretamente à de codificação,
agrupamento de normas jurídicas da mesma natureza em um corpo unitário e
homogêneo” (AMARAL, 2006, p. 122).
A problemática envolvendo a discussão acerca da Codificação do Direito
Processual Coletivo brasileiro perpassa pela definição inicial das diretrizes
metodológicas que nortearão a delimitação do objeto a ser regulamentado
legalmente. Para isso, torna-se necessário reconstruir teoricamente o direito
processual coletivo antes mesmo de regulamentá-lo no plano legislativo.
Isso denota a necessidade de esclarecimento conceitual e teórico dos
institutos fundamentais; a estruturação da principiologia regente; a definição de um

187
[...] o modelo das codificações atuais são móveis, dinâmicos e até abertos, os quais devem permitir
a mais adequada permeabilidade com o meio social. São modelos pautados por princípios e
cláusulas gerais que permitem maior dinamismo e destacada mobilidade do sistema implantado. São
modelos mais harmônicos e que se fundam no diálogo entre outras fontes legislativas, evitando-se
conflitos de normas muitas vezes insolúveis e prejudiciais à sociedade (ALMEIDA, 2007, p. 35).
202

procedimento que regerá as ações e o processo coletivo nos ditames trazidos pela
constitucionalidade democrática; a ressemantização do dogma da coisa julgada e de
seus efeitos jurídico-legais com relação a todos os interessados difusos e coletivos
que integraram ou não a relação processual ora instituída; a revisitação do sistema
representativo de institucionalização prévia dos legitimados à propositura das ações
coletivas a partir do entendimento do principio da participação popular e do exercício
da cidadania como um dos pilares do Estado Democrático de Direito e, acima de
tudo, a reconstrução crítica de toda a estrutura proposta de um modelo de processo
coletivo que se estruturou e se desenvolve hoje no Brasil ainda preso aos
paradigmas liberais que orientaram a confecção da legislação processual civil
vigente.
“O objeto formal do direito processual coletivo é composto pelo conjunto de
princípios, garantias e regras processuais que disciplinam o exercício da ação
coletiva, jurisdição coletiva, do processo coletivo, da defesa do processo coletivo e
da coisa julgada coletiva” (ALMEIDA, 2007, p. 58). A autonomia cientifica do direito
coletivo e do direito processual coletivo, assim como a superação do liberalismo
individualista clássico188, considerado a base de todo o processo civil, representam
os primeiros passos para justificar fundamentadamente a possibilidade de
codificação do direito processual civil coletivo.
A codificação do direito processual coletivo tornará mais uniforme e claro o
objeto formal dessa área do Direito, que consiste, simultaneamente, na
regulamentação tanto do direito processual coletivo comum (visa a resolução de
conflitos coletivos no plano da concretude) como do direito processual coletivo
especial (voltado para o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade)189.
Classicamente o processo coletivo é visualizado quando do estudo da ação popular,
da ação civil pública e do mandado de segurança coletivo, voltados para a
apreciação e a resolução de conflitos envolvendo direitos coletivos ou difusos no
plano concreto. Porém, não se pode deixar de ressaltar que nos processos em que

188
[...] Os institutos clássicos do direito processual civil (legitimidade, estabilização da demanda,
pedido e sua interpretação, coisa julgada etc.), conceituados e concebidos com base em uma técnica
fundada no liberalismo individualista dos séculos XVIII e XIX, não se amoldam às diretrizes do direito
processual massificado, de natureza coletiva constitucional (ALMEIDA, 2007, p. 58).
189
o jurista Gregório Assagra de Almeida subdivide o direito processual coletivo brasileiro em especial
e comum. O direito processual coletivo especial destina-se ao controle concentrado e abstrato de
constitucionalidade por meio da ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de
constitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental, ressaltando-se que o
seu objeto material consiste na tutela de interesse coletivo objetivo legitimo.
203

se discute abstratamente a constitucionalidade de leis, como é o caso da ação direta


de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e da argüição
de descumprimento de preceito fundamental, é evidente a existência de pretensão
de natureza difusa ou coletiva (a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510 é um
exemplo recente de pretensão coletiva, quando se debateu no Supremo Tribunal
Federal abstratamente a constitucionalidade da lei de biossegurança no que tange a
utilização ou não de células tronco embrionárias em pesquisas cientificas em face do
Direito Fundamental à Vida).
Não pode esquecer-se de inserir nas propostas de codificação do direito
processual coletivo brasileiro as questões envolvendo o recurso extraordinário,
especificamente referente à repercussão geral de questão constitucional. A nova
sistemática trazida pela Emenda Constitucional 45, ao inserir o parágrafo terceiro no
artigo 102 da Constituição brasileira de 1988 instituiu a repercussão geral de
questão constitucional como requisito especifico de admissibilidade dos recursos
extraordinários. Dessa forma, pode-se afirmar que houve a coletivização da análise
do mérito da pretensão recursal no momento em que se estabeleceu que a
admissibilidade do recurso extraordinário fica condicionada à demonstração prévia
da relevância jurídica, social, econômica ou política da pretensão recursal, tal como
estabelece o disposto nos artigos 543-A e seguintes do Código de Processo Civil
vigente, alterados pela Lei 11.418 de 19 de dezembro de 2006.
Construir um projeto de codificação do direito processual coletivo brasileiro
significa considerar todos esses meandros das questões ora levantadas, ou seja,
não podemos pensar na sistematização legislativa focados apenas na ação popular,
na ação civil pública e no mandado de segurança coletivo. É preciso considerar as
questões atinentes ao recurso extraordinário (repercussão geral de questão
constitucional), a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de
constitucionalidade, a argüição de descumprimento de preceito fundamental, ao
mandado de injunção e a todos os demais institutos disponíveis no ordenamento
jurídico brasileiro que viabilizem o debate processual de pretensões envolvendo os
direitos difusos e coletivos, tanto no âmbito judicial quanto no extrajudicial.
É necessário pensar uma proposta legislativa que conclame a possibilidade
de todos os interessados difusos e coletivos participarem ativa e diretamente de todo
o debate das pretensões voltadas à construção participada dos provimentos. Isso
implica em abandonar o sistema representativo como critério lógico de compreensão
204

jurídica do direito processual coletivo brasileiro para legitimar o sistema participativo


como o parâmetro legitimamente democrático190 à reflexão, à discussão, à
proposição teórica e à aplicação do direito e do processo coletivo tanto no plano
concreto quanto no plano abstrato. Vincenzo Vigoriti, citado por Vicente da Paula
Maciel Junior, afirma que “a importância da participação consiste em que o individuo
supera a idéia meramente privatista e passa a agir uti cives e não uti singuli”
(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 120).
Ao discorrer sobre o principio participativo Vigoriti preconiza a participação no
sentido mais amplo do significado, a fim de legitimar todos os interessados difusos e
coletivos na utilização das ações coletivas como instrumentos de controle
participativo de todas as questões e direitos atinentes à coletividade. A
implementação do principio participativo implicará na reestruturação de todo o
processo coletivo, especificamente no que tange ao tema da legitimação para agir.
Certamente “o maior receio dos agentes políticos é que a ação coletiva adotada em
um modelo participativo amplo pudesse no fundo se transformar em um veiculo de
controle difuso do ato administrativo e da lei em tese, a ser exercido por qualquer
interessado” (MACIEL JUNIOR, 2006. p. 121).
A enunciação de todo o processo coletivo sob o viés da constitucionalidade
democrática191 deve decorrer do principio da soberania popular, até porque “[...] o
Estado Democrático tem sua dimensão e se estrutura constitucionalmente na
legitimidade do domínio político e na legitimação do poder pelo Estado assentadas
unicamente na soberania e na vontade do povo (artigo 1º, incisos I, II, parágrafo
único; artigo 14 e artigo 60n §4º, inciso II)” (DIAS, 2010, p. 63-64).
O redimensionamento de todas as proposições teóricas até então vigentes
perpassa pela leitura do processo coletivo pelo crivo do modelo constitucional de
processo desenvolvido na seara de uma sociedade democraticamente plural que

190
Em que pesem pequenas variações semânticas em torno desse núcleo essencial, entende-se
como Estado Democrático de Direito a organização política em que o poder emana do povo, que o
exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas,
mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como
proclama, entre outras, a Constituição brasileira. Mais ainda, já agora no plano das relações
concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se
empenha em assegurar aos cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos,
mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a
solene proclamação daqueles direitos (MENDES, COELHO; BRANCO; 2008, p. 149).
191
O principio democrático, portanto, é a diretriz primária estrutural que deve orientar a construção de
um código brasileiro de direito processual coletivo que corresponda aos verdadeiros anseios sociais
às garantias constitucionais fundamentais do Estado Democrático de Direito consagrado na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (ALMEIDA, 2007, p. 63).
205

anseia pela legitimidade de participação ampla e livre no debate isonômico e jurídico


de todas as pretensões as quais se visualiza a existência de direitos não restritos
apenas ao plano da individualidade humana.

3.3.2 O mérito processual no Código de Processo Civil Coletivo – Antônio Gidi

O anteprojeto de Código de Processo Civil Coletivo, de autoria do jurista


Antonio Gidi, é considerado o primeiro dos inúmeros anteprojetos que se seguiram
e, por isso, é denominado Anteprojeto Original. No entendimento do autor, a
codificação processual coletiva brasileira começa com a promulgação da Lei da
Ação Civil Pública no ano de 1985, perpassa pelos avanços trazidos pela
Constituição brasileira de 1988 e se aprimora substancialmente com o advento do
Código de Defesa do Consumidor no ano de 1990. A elaboração do anteprojeto
original inicia-se no ano de 1993 e se encerra no ano de 2001 quando então Antônio
Gidi resolve compartilhar todas as suas idéias sobre a codificação do processo
coletivo com a então jurista Ada Pelegrini Grinover, que num primeiro momento
mostrou-se reticente e não convencida acerca da importância de realizar um código
de processo coletivo, porém, no mês de maio de 2002, em seminário realizado na
cidade de Roma ficou definido que o Centro de Estudos Jurídicos Latino-americanos
e o Instituto Ibero- americano de Direito Processual elaborariam conjuntamente uma
proposta de Código de Processo Civil Coletivo Modelo sob a relatoria dos juristas
Kazuo Watanabe, Ada Pelegrini Grinover e Antônio Gidi. No entendimento de
Antônio Gidi, Ada Pelegrini Grinover e Kazuo Watanabe entenderam que o
anteprojeto original estava demasiadamente americanizado e incompatível com a
realidade brasileira e, por isso, preferiram se utilizar da estrutura do direito
processual civil coletivo192 vigente no Brasil tendo adotado inúmeras inovações do
anteprojeto original de forma descontextualizada e desconexa (GIDI, 2008, p. 11-
15).
No ano de 2004, na XIX Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual
Civil, realizada na cidade de Caracas, foi aprovado o anteprojeto do Código Modelo

192
A utilização freqüente pelos autores da escola paulista de processo da expressão “direito
processual civil coletivo” denota claramente a ausência de superação do paradigma liberal-
individualista como norte ao estudo e a compreensão jurídica do direito processual coletivo como
ramo autônomo da ciência jurídica.
206

de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual. A partir


desse momento inúmeras foram as críticas surgidas, tal como aquela feita pelo
jurista brasileiro Gregório Assagra de Almeida, para quem o respectivo anteprojeto
de codificação do direito processual coletivo tem pouco a servir de fonte de
inspiração ao sistema jurídico brasileiro, considerado bastante avançado no que
tange ao estudo do processo coletivo. Antônio Gidi afirma que o Código Modelo
Ibero-Americano, em sua primeira versão, “foi uma mera tradução para o espanhol
das leis brasileiras (LACP e CDC), aprimoradas com algumas inovações retiradas do
Anteprojeto Original e imposta insensivelmente aos colegas ibero-americanos” (GIDI,
2008, p. 20).
Em análise preliminar do anteprojeto original verifica-se que a intenção do
autor, ao propor a codificação, é inicialmente unificar as normas processuais
coletivas esparsas em um sistema ordenado; eliminar injustificadas diferenças
procedimentais em ações coletivas; estabelecer uma linguagem uniforme dos
institutos típicos e próprios do processo coletivo; acabar com as distinções
existentes quanto ao regime da coisa julgada nas ações coletivas brasileiras
conforme o tipo de pretensão envolvida; instituir que o valor da pretensão ou o tipo
de controvérsia também podem ser um motivo legítimo para algumas diferenças
procedimentais entre as ações coletivas e, finalmente, realizar inovações pontuais
com o propósito de aprimorar algumas regras, suprir lacunas e resolver possíveis
ambigüidades existentes no sistema jurídico vigente. Na exposição de motivos do
anteprojeto original observa-se que sua elaboração pautou-se basicamente no
direito processual coletivo brasileiro, norte-americano, canadense, francês, italiano e
escandinavo.
No artigo 1º do anteprojeto original verifica-se a preocupação do autor em
garantir a tutela jurídica de pretensões transindividuais de titularidade de um grupo
de pessoas, assim como das pretensões individuais de que sejam titulares os
membros de um grupo de pessoas. Verifica-se a clara distinção dos direitos
coletivos, dos direitos difusos e dos direitos individuais homogêneos, tal como
adotado no artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor.
Quanto à legitimidade processual ativa, o anteprojeto ainda fica adstrito ao
sistema representativo, ao excluir o interessado difuso ou coletivo da condição de
legitimado e propor um rol taxativo que confere claramente a legitimidade processual
ativa ao Ministério Público, aos entes da Administração Pública Direta e Indireta e às
207

associações sem fins lucrativos legalmente constituídas há pelo menos dois anos.
Não houve substanciais avanços e modificações quanto à legitimidade processual
ativa se pegarmos como referência o disposto no artigo 5º da Lei 7347/85 (Lei de
Ação Civil Pública).
No item 2.1 o anteprojeto prevê a possibilidade do grupo como um todo e
seus membros serem partes no processo coletivo representados em juízo pelo
legitimado coletivo (GIDI, 2008, p. 447). Já no item 2.2 verifica-se que sempre que
possível “o grupo será representado em juízo por mais de um legitimado coletivo, de
forma a promover uma representação adequada dos direitos do grupo e de seus
membros (GIDI, 2008, p. 447).
Nos itens 2.1 e 2.2 estaria o autor do anteprojeto adotando o principio
participativo como critério de sistematização do processo coletivo brasileiro?
Certamente tal afirmação seria precipitada no sentido em que pela análise
sistemática do conteúdo de todo o anteprojeto verifica-se que a titularidade para a
propositura das ações coletivas concentra-se basicamente nas mãos de entidades
que representam os interesses de toda uma coletividade ou um grupo de pessoas.
Além do mais, o autor do anteprojeto não deixou claro que todo e qualquer
legitimado teria interesse e legitimidade processual quanto à propositura de uma
ação coletiva. A legitimidade foi conferida expressamente ao grupo de pessoas
titular de um direito comum ou a um representante desse grupo de pessoas
habilitado a pleitear em nome dos demais um determinado direito, tal como ocorre
no sistema das class actions. No momento em que há a limitação da participação
dos interessados difusos ou coletivos na propositura de uma ação coletiva não é
possível afirmar que houve a efetiva implementação do sistema participativo, até
porque, o que o autor do anteprojeto faz é autorizar a nomeação de um
representante adequado, tal como se verifica no sistema norte-americano das class
actions. Importante esclarecer que conferir legitimidade processual para o
representante adequado propor ação coletiva para tutelar direitos em nome de um
grupo de pessoas, não oportunizando a participação direta do titular da pretensão no
debate do mérito processual da demanda, não significa a ruptura com o sistema
representativo e a adoção do sistema participativo no contexto das ações coletivas.
No item 2.5 temos ainda um modelo de processo coletivo centrado
essencialmente na pessoa do julgador: “o juiz poderá dispensar o requisito da pré-
constituição e da pertinência temática ou atribuir legitimidade coletiva a membros do
208

grupo, quando não houver legitimado coletivo adequado interessado em representar


os interesses do grupo em juízo” (GIDI, 2008, p. 448).
Na primeira parte do dispositivo 2.5 está expresso que é o julgador quem
detém a legitimidade de análise prévia a fim de averiguar se a pretensão deduzida
em juízo tem ou não natureza coletiva, tal como ocorre no sistema americano das
class actions, em que antes da análise do mérito da pretensão é feita, diretamente
pelo órgão julgador, a análise da natureza coletiva da pretensão que constitui a
demanda objeto da ação coletiva.
Na última parte do mesmo dispositivo encontramos a legitimidade atribuída ao
julgador de reconhecer ou não a possibilidade de um membro do grupo, titular do
direito comum objeto da demanda coletiva, ser reconhecido como representante
adequado na tutela dos direitos do grupo de pessoas em juízo. Importante ressaltar
que não é a simples demonstração de interesse jurídico na pretensão coletiva que
garante ao sujeito ou membro do grupo a condição de assumir o papel de
representante adequado na tutela dos direitos dos demais membros do grupo. A
decisão do julgador é fundamental para autorizar ou não um membro do grupo agir
como representante adequado dos demais, ressaltando-se que o projeto é omisso
quanto à eventual propositura de recurso em desfavor da decisão que não
reconhece a legitimidade de um membro do grupo assumir processualmente a
incumbência de representar processualmente os direitos dos demais membros.
O anteprojeto original foi elaborado essencialmente a partir do sistema
desenvolvido pelo direito norte-americano193, especificamente no que diz respeito às

193
Ao longo de todo o livro Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo o jurista Antônio Gidi
demonstrou que o norte de todas as suas reflexões voltadas a codificação do processo coletivo no
Brasil pautou-se exclusivamente no direito norte americano, tal como a seguir exposto (GIDI, 2008):
a)”Devemos buscar inspiração nós mesmos diretamente na fonte, sem o intermédio da doutrina
italiana (p. 37); b) “Nas décadas de 80 e 90, os juristas brasileiros estudaram o instituto norte-
americano, através da lente distorcida dos juristas italianos, para criar nossas leis (LACP e CDC) (p.
38); c) “ A Rule 54 (c), das Federal Rules of Civil Procedure norte-americanas, prescreve que exceto
no caso de revelia, a sentença conterá o provimento que a parte tenha direito, mesmo que a parte
não tenha feito pedido na petição inicial” (p. 46); d) “Trata-se de norma influenciada indiretamente
pelo direito processual civil norte-americano, que possui um sistema muito mais flexível do que o
brasileiro, permitindo que o processo se adapte às modificações da situação de fato e às expectativas
das partes, que se alteram no decorrer do processo” (p. 46); e) “a norma do Anteprojeto Original, que
autoriza o juiz a desmembrar o processo e a separar os pedidos ou as causas de pedir, tem origem
no processo civil individual norte-americano” (p. 57); f) “A norma do Anteprojeto Original sobre a
notificação coletiva adequada (adequate notice) ao grupo e seus membros tem origem na tradição
das class actions norte-americanas” (p. 61); g) “O excesso de familiaridade com o direito norte-
americano pode ter nos traído [...]” (p. 107); h) “[...] os critérios que construímos com a experiência
das class actions norte-americanas [...]” (p. 107); i) “[...] décadas de experiência prática com
processos coletivos nos Estados Unidos para servir de guia para a atuação das partes e do juiz
brasileiros” (p. 110); j) “O estudo das class actions norte-americanas demonstra [...]” (p. 116); k)” O
209

class actions; talvez seja por isso que a jurista Ada Pelegrini Grinover e o
pesquisador Kazuo Watanabe não tenham aceitado de imediato o anteprojeto
original como referencial à elaboração da proposta de um Código Modelo Ibero-
Americano por considerá-lo extremamente americanizado ao reproduzir, em muitos
pontos, o modelo de processo coletivo adotado no direito norte-americano. Antônio
Gidi certamente pretendeu implantar no Brasil o sistema das class actions194,
conforme análise atenta e detalhada da proposta legislativa abaixo (GIDI, 2008, p.
448-459):

1- Dentre os requisitos prévios de análise do mérito das ações coletivas 195,


temos: a) a adequada representação do autor da ação, que deverá ser
membro do grupo; b) o advogado deverá demonstrar competência,
honestidade, capacidade, prestígio e experiência na proteção judicial e
extrajudicial dos interesses do grupo e, especialmente demonstrar ter atuado
profissionalmente em processos coletivos anteriores196; c) em caso de pedido

estudo do direito processual civil norte-americano demonstra [...]” (p. 125); l) “Uma prova de que a
sentença genérica (ilíquida) não é exigência da natureza da demanda coletiva em tutela dos direitos
individuais homogêneos é a realidade norte-americana” (p. 158).
194
Deve-se observar, ademais, que o “Código de Processo Civil coletivo” parte de uma visão
monotemática do processo coletivo. Segue, exclusivamente, um único paradigma: o sistema das
ações coletivas norte-americanas. Isso ficou demonstrado no livro Rumo a um Código de Processo
Civil coletivo, uma vez que todas as observações feitas a respeito do processo coletivo brasileiro
tomam como ponto de partida o modelo norte-americano; em toda a obra não há citação de
jurisprudência brasileira. A referência jurisprudencial feita é toda baseada em decisões de tribunais
americanos. Basta verificar que o trabalho critica ferrenhamente o disposto no artigo 28 do
Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos se valendo de decisões norte-americanas.
Não foram sequer mencionados os inúmeros julgados do Superior Tribunal de Justiça a respeito do
assunto. Claro que as class actions norte-americanas ocupam lugar de destaque na seara processual
coletiva. Todavia, existem vários outros paradigmas a serem observados e estudados. Sem prejuízo
da hegemonia dos Estados Unidos no cenário mundial, o fato é que existe vida fora dele. E vida
jurídica. E vida processual coletiva (FERRARESI, 2011).
195
O estudo das class actions norte-americanas demonstra a utilidade prática de uma fase preliminar
de certificação do processo coletivo, na qual o juiz analisará a presença dos requisitos processuais
para o seu processamento na forma coletiva. No direito norte-americano, antes que uma ação possa
ser considerada em sua forma coletiva, o juiz deverá verificar se todos os requisitos processuais
estão presentes. Essa decisão, que autoriza e dá estrutura coletiva à ação proposta, é chamada
“certificação” (certification). Trata-se de uma decisão fundamental dentro da sistemática processual
coletiva norte-americana. Entre as questões mais importantes analisadas no momento da certificação
de uma class action estão: a numerosidade, a questão comum, a tipicidade, a adequação da
representação, as hipóteses de cabimento, a predominância, superioridade, administrabilidade, a
definição do grupo e a notificação (GIDI, 2008, p. 116-117).
196
A advocacia no Brasil é constitucionalmente tratada com função essencial a justiça e o seu
exercício deve ser livre e independente. A legitimidade para o controle do exercício legítimo da
advocacia pelos seus profissionais cabe ao órgão de classe, qual seja, a Ordem dos Advogados do
Brasil. O magistrado não tem legitimidade para controlar nem para valorar a qualidade do serviço
prestado pelo profissional da advocacia. Por isso, manifesta-se no sentido de reconhecer como
inconstitucional a respectiva proposta legislativa por limitar e deslegitimar o exercício livre e
210

de desistência da ação ou de abandono da ação coletiva o juiz notificará o


grupo para assumir a titularidade ativa e, na ausência de legitimado
adequado interessado, extinguirá o processo sem julgamento do mérito; d) o
representante adequado deve demonstrar capacidade financeira para
prosseguir na ação coletiva; d) quando o grupo de pessoas for
demasiadamente reduzido e seus membros facilmente identificáveis, o juiz
negará seguimento da ação na forma coletiva, mas permitirá que os
membros do grupo intervenham no processo e assumam a titularidade da
lide individual em litisconsórcio.
2- Antes do julgamento do mérito da pretensão coletiva o juiz deverá, em
observância do principio da publicidade, determinar a notificação ampla,
adequada197 e direcionada ao maior número possível de legitimados
coletivos, de forma econômica e eficiente, podendo, assim, se utilizar de
anúncios na imprensa e na Internet. Se a ação coletiva tiver obtido a
notoriedade adequada o juiz poderá, de forma fundamentada, dispensar a
notificação individual dos membros. O representante do grupo deverá manter
os membros do grupo constantemente informados sobre o andamento
processual.
3- Qualquer legitimado coletivo poderá intervir no processo coletivo em qualquer
tempo e grau de jurisdição para demonstrar a inadequação do representante
ou auxiliá-lo na tutela dos direitos do grupo.
4- Os membros do grupo poderão participar do processo coletivo como
informantes, trazendo provas, informações e argumentos novos.
5- O objeto do processo coletivo será o mais abrangente possível 198,
abrangendo toda a controvérsia coletiva do grupo, a fim de incluir tanto as

independente da advocacia tal como preconizado expressamente nos artigos 133 a 135 da
Constituição brasileira de 1988.
197
[...] é importante não tornar esse procedimento financeiramente inviável ou um entrave
burocrátizante para o processo coletivo. Por exemplo, as cartas poderiam ser enviadas apenas para
as associações e entidades públicas mais ligadas ao tipo de controvérsia e, talvez, para alguns
membros do grupo selecionados por amostragem; os demais membros poderiam ser notificados por
técnicas menos custosas (Anteprojeto Original, art. 5.1). Tudo deve ser feito de forma simples,
econômica e rápida. O art. 5.13 do Anteprojeto Original autoriza, quando cabível, que a notificação
seja inserida na correspondência periódica que o réu envie aos membros do grupo (GIDI, 2008, p.
67).
198
A regra tradicional, que limita rigidamente o objeto do processo e proíbe o juiz de julgar além do
que foi pedido pelo autor, que já é inútil e injusta no processo individual, passa a ser, não somente
desnecessária, como altamente perigosa, se for transferida para o processo coletivo, no qual o autor
não é o titular do direito levado a juízo. No processo coletivo, a necessidade de tutelar a controvérsia
211

pretensões transindividuais de que seja titular o grupo como as pretensões


individuais de que sejam titulares os membros do grupo.
6- Na fase de saneamento o julgador demarcará o objeto do processo coletivo
da forma mais abrangente possível, devendo manter controle direto sobre
todo o andamento processual e tomar todas as medidas adequadas ao seu
célere, justo e eficiente andamento.
7- Fundado no principio da celeridade processual e a fim de facilitar a condução
do processo coletivo o juiz poderá, em decisão fundamentada, separar os
pedidos ou as causas de pedir em ações coletivas distintas 199. Além disso,
nas ações coletivas o julgador poderá dividir o grupo em subgrupos com
direitos ou interesses semelhantes para melhor decisão e condução do
processo coletivo; havendo divergências substanciais entre os membros do
grupo quanto aos direitos a eles atinentes, o juiz poderá nomear um
representante e um advogado para cada subgrupo. Talvez um dos pontos
mais relevantes do anteprojeto original esteja na possibilidade de controle
judicial da representação adequada200.
8- O juiz poderá limitar o objeto da ação coletiva à parte da controvérsia que
possa ser julgada na forma coletiva, deixando as questões que não são
comuns ao grupo para serem decididas em ações individuais ou em uma
fase posterior do próprio processo coletivo.
9- O representante do grupo e autor da ação tem legitimidade para firmar

coletiva de forma completa e adequada é mais importante do que esse dogma do processo civil
individual (GIDI, 2008, p. 47).
O amadurecimento do Processo Civil brasileiro contemporâneo já comporta o repensar das vetustas
normas de preclusão e do principio da eventualidade, fugindo de um sistema rígido para um sistema
flexível de estabilização da demanda. No Anteprojeto Original, de acordo com os arts. 7 e 16, o objeto
do processo coletivo será o mais abrangente possível, envolvendo toda a controvérsia coletiva entre o
grupo e a parte contrária, independentemente de pedido, incluindo tanto as pretensões
transindividuais, de que seja titular o grupo, como as pretensões transindividuais, de que seja titular o
grupo, como as pretensões individuais, de que sejam titulares os membros do grupo, desde que não
represente prejuízo injustificado para as partes e o contraditório seja preservado (GIDI, 2008, p. 48).
199
A norma do Anteprojeto Original, que autoriza o juiz a desmembrar o processo e a separar os
pedidos ou as causas de pedir, tem origem no processo civil individual norte-americano. Essa norma
deve ser compreendida em conexão com aquela do objeto amplo do processo, acima analisada.
Como o Anteprojeto Original optou por delimitar o objeto do processo de forma tão abrangente, essa
flexibilidade poderia causar complexidade desnecessária ao processo coletivo, a ponto de dificultar o
seu andamento. Portanto, para facilitar a condução do processo, se faz necessário autorizar ao juiz
desmembrar o conflito coletivo em partes menores (GIDI, 2008, p. 58).
200
A norma sobre o controle judicial da “representação” adequada tem origem na tradição das class
actions norte-americanas. O seu objetivo é minimizar o risco de colusão entre as partes, incentivar
uma conduta vigorosa pelo “representante” e pelo advogado na tutela dos interesses de todos os
membros do grupo (GIDI, 2008, p. 76).
212

acordo com a parte contrária acerca do objeto da ação coletiva, devendo o


Ministério Público e os demais interessados ser resguardados quanto ao
direito de participarem da negociação do acordo coletivo. Antes de
homologação judicial da proposta de acordo o juiz notificará amplamente o
grupo e os seus membros sobre os termos do acordo a fim de realizar uma
audiência pública de aprovação, onde o juiz ouvirá todos os interessados.
10-Nas ações coletivas envolvendo tutelas especificas de obrigação de fazer ou
não fazer o juiz determinará providências que assegurem o resultado prático
equivalente ao do adimplemento. Se o resultado da tutela especifica tornar-
se impossível haverá a conversão em perdas e danos. A fim de potencializar
o cumprimento da tutela especifica, o julgador arbitrará astreintes (multa de
natureza coercitiva com o propósito de potencializar o cumprimento da tutela
especifica nas ações coletivas) independentemente da indenização por
perdas e danos e da punição por desobediência de ordem judicial.
11-A sentença julgará a controvérsia coletiva da forma mais ampla possível,
decidindo sobre as pretensões individuais e transindividuais, declaratórias,
constitutivas e condenatórias, independentemente de pedido, desde que não
represente prejuízo injustificado para as partes e o contraditório seja
preservado. Uma vez proferida a sentença, todo o grupo deverá ser
notificado a fim de tomar conhecimento acerca de seu conteúdo.
12-A coisa julgada coletiva vinculará o grupo e seus membros
independentemente do resultado da demanda, salvo se o fundamento da
improcedência decorrer da representação inadequada dos direitos do grupo
ou por insuficiência de provas (se a ação coletiva for julgada improcedente
por insuficiência de provas qualquer legitimado coletivo poderá propor a
mesma ação coletiva valendo-se de nova prova)
13-A possibilidade de litispendência existe apenas entre ações coletivas
idênticas, tendo em vista que não induz litispendência para as
correspondentes ações individuais relacionadas à mesma controvérsia
coletiva.
14-O membro do grupo que propuser ação individual até a data da sentença ou
da homologação do acordo coletivo será excluído do grupo e não será
vinculado em sua esfera individual pela coisa julgada coletiva. Se o autor da
213

ação individual for notificado acerca da existência de correspondente ação


coletiva, poderá requerer a suspensão do seu processo individual no prazo
de 60 dias, se quiser se vincular a coisa julgada coletiva (uma vez vinculado
à coisa julgada coletiva a ação individual será extinta). Na ausência na
notificação ora mencionada o autor da ação individual será beneficiado mas
não poderá ser prejudicado pelos efeitos da coisa julgada coletiva. Se a ação
coletiva for extinta sem julgamento do mérito ou não houver a formação da
coisa julgada coletiva, a ação individual que estava suspensa poderá
prosseguir.
15-Nas ações coletivas não é obrigatório o adiantamento das custas e de
demais despesas processuais por parte do grupo e, em caso de
improcedência dos pedidos da ação coletiva não haverá ônus sucumbenciais
ao representante do grupo e aos intervenientes, salvo comprovada má fé, tal
como ocorre no caso envolvendo as ações populares.
16-Com incentivo à propositura de ações coletivas e ao ativo controle do
processo pelos legitimados coletivos, poderá o juiz atribuir uma gratificação
financeira ao representante e ao interveniente cuja atuação foi relevante na
tutela dos direitos do grupo e dos membros do grupo.
17-O juiz poderá dar prioridade ao processamento de uma ação coletiva, quando
haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica
do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.
18-Admite-se a propositura da ação rescisória a fim de desconstituir sentença de
mérito proferida em ação coletiva nos seguintes casos: a) quando constatado
que não foi possível, no momento da decisão ou do acordo, uma análise
adequada das conseqüências, da dimensão, da natureza e das
características do ilícito que ensejou a propositura da ação coletiva; b)
quando demonstrar que não foi possível, devido à complexidade das
questões postas em debate, efetivar uma análise adequada de todo o
material probatório trazido aos autos; c) quando a decisão ou o acordo, nas
relações continuativas, mostrarem-se manifestamente inadequadas com o
passar do tempo.

Certamente um dos pontos altos do anteprojeto original encontra-se no item


14.6, que prevê a obrigatoriedade do julgador determinar a realização de audiência
214

pública mediante notificação prévia e participação dos interessados difusos e


coletivos em caso de acordo coletivo que se pretende firmar em juízo. Trata-se de
uma tímida tentativa do autor do anteprojeto original implementar o principio
participativo como vetor de entendimento do processo coletivo no Brasil. A
pertinência da crítica que aqui se faz justifica-se no sentido de que a oportunização
de ampla participação de todos os interessados difusos e coletivos na construção do
provimento jurisdicional não deverá ocorrer apenas em caso de realização de
eventual acordo. O processo coletivo para ser auto-intitulado democrático deverá ser
visto como uma forma de controle participativo e a ação coletiva ser entendida como
uma linguagem jurídica adequada à colocação em debate do discurso sobre
questões controvertidas na sociedade (MACIEL JUNIOR, 2007, p. 119).
Outra crítica pertinente ao anteprojeto original é que a proposição legislativa
foi sistematizada exclusivamente a partir da idéia de um processo coletivo voltado
para a resolução de conflitos coletivos de natureza concreta, ou seja, em momento
algum ao longo do anteprojeto foi apresentada uma proposta legislativa atinente às
pretensões coletivas voltadas ao debate da constitucionalidade de textos legislativos
por meio da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de
constitucionalidade, da argüição de descumprimento de preceito fundamental e do
mandado de injunção201. Nesse mesmo sentido, ressalta-se a omissão quanto ao
debate da repercussão geral de questão constitucional como requisito especifico de
admissibilidade do recurso extraordinário a ensejar, na análise do mérito da
pretensão recursal, a relevância do debate de questões atinentes aos direitos
coletivos e difusos (a nova sistemática do recurso extraordinário com o advento da
Emenda Constitucional 45 e da Lei 11.418/2006 implementou no direito brasileiro a
coletivização das demandas como pressuposto lógico para o debate do mérito da
pretensão recursal).
Certamente o anteprojeto original contribuiu significativamente para o debate
sobre a proposta de codificação do direito processual coletivo, especialmente no que
atine aos seguintes pontos: a) a preocupação evidente com a observância do
principio da publicidade como corolário ao exercício do contraditório, da ampla

201
Gregório Assagra de Almeida divide o Direito Processual Coletivo em comum e especial. Segundo
a classificação do autor, o processo coletivo comum destina-se à resolução dos conflitos coletivos
subjetivos concretos através da ação civil pública, das demandas coletivas do CDC, do mandado de
segurança coletivo etc. Já o processo coletivo especial destina-se ao controle concentrado e abstrato
da constitucionalidade das leis, através da ação direta de inconstitucionalidade (por ação ou
omissão), argüição de descumprimento de preceito fundamental etc (GIDI, 2008, p. 397).
215

defesa e do devido processo legal mediante o esclarecimento a todos os


interessados do objeto da pretensão. A possibilidade de utilização da internet e da
imprensa, assim como a proposta de realização de audiências públicas são
elementos que enobrecem cientificamente o texto do anteprojeto original; b) a
preocupação com a amplitude do objeto da ação coletiva, para que o mesmo seja o
mais abrangente possível, denota a possibilidade, ao longo do procedimento, de
interessados difusos e coletivos apresentarem temas correlatos à pretensão
inicialmente deduzida, tal como propõe o jurista Vicente de Paula Maciel Junior ao
enunciar a Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas; c) a celeridade e a
efetividade processual não podem ser princípios utilizados como referenciais à
concentração de poderes nas mãos do julgador para, em contrapartida, sumarizar a
cognição e limitar o exercício do contraditório e da ampla defesa por aqueles sujeitos
juridicamente interessados na construção participada do mérito da ação coletiva; d)
a possibilidade de julgamento antecipado de parte da pretensão, a prioridade de
processamento e de julgamento da demanda coletiva, assim como o dever de
informação, no processo individual, sobre a existência de ação coletiva sobre o
mesmo fundamento são também considerados pontos até então não abordados na
legislação brasileira.
A notificação coletiva ampla e adequada ao grupo e aos seus membros é
aspecto fundamental para o resultado prático de uma demanda coletiva, tendo em
vista que assegura a fiscalização, a participação e o controle pelos interessados
quanto ao objeto da ação, trazendo transparência e publicidade ao debate da
pretensão202. “A notificação adequada ao grupo é uma questão constitucional de
respeito ao devido processo legal, tanto quanto a adequada representação (GIDI,
2008, p. 66). A tradição das class actions no direito norte americano demonstra que
as notificações são muito complexas e extremamente custosas, o que muitas vezes
torna inviável a ação de classe em virtude de obstáculos de natureza
essencialmente econômica, limitando, assim, o direito de amplo acesso ao
Judiciário, especificamente ao direito de debate e de construção participada do
mérito processual coletivo.

202
Uma adequada notificação é o mínimo que um processo coletivo adequado (ou “devido”) precisa
proporcionar aos membros do grupo titular da pretensão. De nada adianta o direito de propor
demanda individual de liquidação dos danos, de intervir no processo coletivo para auxiliar e controlar
a adequação do representante, se o membro do grupo (e os demais legitimados coletivos) não têm
informação adequada sobre a existência da demanda coletiva (GIDI, 2008, p. 65).
216

No Brasil, o Diário Oficial seria considerado a fonte classicamente utilizada de


notificação do grupo e dos membros do grupo acerca da existência de uma
demanda coletiva proposta em seu nome e em seu beneficio. Considerando-se a
cultura e a tradição da população brasileira, que não tem o hábito de ler o conteúdo
periódico do Diário Oficial, sabe-se que se a notificação se efetivar por esse meio
possivelmente “[...] uma demanda coletiva poderá ser processada e julgada sem que
os membros do grupo e outros legitimados coletivos saibam sequer que há uma
demanda em curso [...]” (GIDI, 2008, p. 63). Assim ressalta-se

O direito brasileiro proporciona uma notificação insuficiente aos principais


interessados no conflito objeto do processo coletivo, a ponto de poder ser
considerada uma ausência total de notificação. Essa limitação do direito
brasileiro enfraquece o poder político das demandas coletivas e o poder de
mobilização social dos membros do grupo. A sociedade inteira sai perdendo
(GIDI, 2008, p. 62).

O direito brasileiro precisa criar um meio através do qual a notificação seja


realizada de forma não excessivamente dispendiosa e também que atinja a sua
finalidade, qual seja, a operacionalização da participação e do envolvimento direto
dos interessados no debate do objeto da ação coletiva. “[...] É inadmissível que o
processo coletivo seja proposto, conduzido e julgado sem que nenhum interessado
dele tome conhecimento, como é a regra no direito brasileiro atual” (GIDI, 2008, p.
64). É de extrema relevância a menção do jurista Antônio Gidi, em sua obra “Rumo a
um Código de Processo Civil Coletivo – A codificação das ações coletivas no Brasil”,
da relevância da notificação adequada como instrumento efetivo de implementação
da Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas desenvolvida pelo jurista
Vicente de Paula Maciel Junior203. Certamente a utilização da internet, dos meios de
comunicação em geral, da imprensa e das redes de relacionamento (facebook,
skype, msn, Orkut dentre outros) são mecanismos não necessariamente
dispendiosos e que podem ser extremamente relevantes no resultado prático de
uma notificação adequada que atinja o maior número possível de pessoas
interessadas no debate da pretensão coletiva.

203
Com uma notificação adequada, somada à ampla possibilidade de intervenção (art. 6º) e ao amplo
objeto do processo coletivo (art. 7º), o Anteprojeto Original dá aos processos coletivos, de certa
forma, o caráter de “ação temática” propugnado por Vicente de Paula Maciel Junior (GIDI, 2008, p.
67).
217

O artigo 3º do anteprojeto original traz a possibilidade do controle judicial da


representação adequada, que se materializa em uma proposta legislativa que
pretende conferir legitimidade ao juiz, e ao representante do Ministério Público e aos
demais interessados para controlar adequadamente as atividades desenvolvidas
pelo representante e pelo advogado do grupo. Uma vez constatada a ineficiência do
representante no que atine à proteção e à defesa dos direitos da coletividade ou o
despreparo do advogado enquanto profissional inabilitado ao exercício técnico do
contraditório e da ampla defesa no caso concreto poderá o juiz determinar a
substituição e, em situações excepcionais, proferir sentença de extinção do processo
sem resolução do mérito.
O controle judicial das atividades desenvolvidas pelo representante adequado
é corolário do principio do devido processo legal, no sentido de inviabilizar que
qualquer interessado na demanda coletiva venha a sofrer efeitos jurídicos de uma
decisão sem ao menos ter a oportunidade de debate e de construção discursiva do
mérito processual. Assim

Como o processo é conduzido por um terceiro e como os membros do


grupo, por definição, não se encontram presentes no processo coletivo, é
preciso assegurar, tanto quanto possível, que o resultado obtido com a
demanda coletiva não seja substancialmente diverso daquele que seria
obtido, se os membros do grupo pudessem defender pessoalmente os seus
direitos em juízo. O “representante” obtém essa posição por manifestação
da sua própria vontade, ao propor a demanda em beneficio de uma
coletividade: o mínimo que esse estranho tipo de “representante” deve ser é
adequado. Daí a imperatividade de que a sua atividade seja controlada pelo
juiz (GIDI, 2008, p. 79).

A partir da proposta legislativa trazida pelo anteprojeto original o grupo e os


seus membros não sofrerão os efeitos da coisa julgada material caso o processo
coletivo não tenha sido conduzido adequadamente. Conforme estabelece o artigo 18
do anteprojeto original, em caso de sentença de mérito proferida em processo
coletivo inadequadamente conduzido pelo representante ou pelo advogado não há
necessidade de se promover uma ação rescisória para desconstituir a sentença
coletiva “pois ela simplesmente não faz coisa julgada, em caso de inadequação da
representação” (GIDI, 2008, p. 77).
Alguns autores, como Gregório Assagra de Almeida, debruçam-se sobre o
debate da terminologia mais adequada para a legislação que se pretende codificar,
argumentando tal jurista que a ação civil pública é a terminologia que deveria ser
218

utilizada para designar as ações coletivas nos anteprojetos de codificação do


processo coletivo no Brasil, por se tratar de um instituto consagrado
constitucionalmente e de forte conotação política (GIDI, 2008, p. 382).
Particularmente entende-se que o instituto das ações coletivas é um gênero que tem
a ação civil pública como uma de suas espécies ao lado da ação popular, do
mandado de segurança coletivo, da ação direta de inconstitucionalidade, da
argüição de descumprimento de preceito fundamental, do mandado de injunção e da
ação declaratória de constitucionalidade. O instituto das ações coletivas presta-se a
garantir o exercício da cidadania mediante a ampliação do direito de acesso ao
Judiciário que se efetiva no momento em que o titular da pretensão se legitima no
debate e na construção participada do mérito processual.
Uma questão relevante que não foi abordada pelo anteprojeto original diz
respeito ao inquérito civil público e o termo de ajustamento de conduta, tal como
explicitado no artigo 8º da Lei 7347/85 (Lei da Ação Civil Pública). Estabelece nossa
legislação vigente que o Ministério Público tem legitimidade para instaurar o inquérito
civil público e firmar o termo de ajustamento de conduta, numa alusão explicita ao
sistema representativo. Concentra-se nas mãos da autoridade exercida pelo
representante do Ministério Público a legitimidade exclusiva para a atuação no
processo coletivo, a fim de tratar e debater pretensões de natureza coletiva ou difusa
sem permitir qualquer ingerência ou participação dos interessados na pretensão
coletiva.
O termo de ajustamento de conduta é a oportunidade que o Ministério Público
tem de realizar acordos ou resolver consensualmente, de forma inibitória
(preventiva) ou repressiva (cessação de ilegalidades já concretizadas com eventual
reparação por perdas e danos), demandas diretamente relacionadas aos direitos
coletivos e difusos, sem ao menos consultar ou informar os titulares do direito em
questão acerca do conteúdo ora posto em discussão. Repensar o instituto é admitir
a possibilidade dos interessados difusos e coletivos serem integrados no espaço
processual a fim de participar de forma efetiva do debate fático-jurídico das questões
que integram as particularidades do caso concreto. A realização de Audiências
Públicas, a utilização da internet e dos meios de comunicação para garantir a
publicidade do debate são alternativas hoje viáveis para democratizar o instituto em
questão no contexto do modelo constitucional de processo.
219

O inquérito civil público materializa-se num procedimento que se desenvolve


com a finalidade de produzir antecipadamente provas necessárias e voltadas a
constatação da existência de eventuais condutas praticadas em desfavor dos
direitos coletivos e difusos. Considerando-se a dimensão teórico-pragmática de seu
objeto, bem como a extensão dos efeitos da conduta praticada com relação ao bem
jurídico tutelado, resta claro que, embora presidido pelo Ministério Público, o
inquérito civil público deverá se desenvolver a partir dos princípios do contraditório e
da ampla defesa com o intuito de resguardar a todos os destinatários dos
provimentos e interessados na pretensão o direito de se imiscuírem no debate
processual e na construção do mérito.
A codificação ou a sistematização legislativa do processo coletivo brasileiro
pressupõe repensar todos os institutos hoje trabalhados pelo modelo vigente,
especialmente aqueles institutos que concentram poderes exclusivos nas mãos do
juiz e do representante do Ministério Público a fim de deslegitimar a participação dos
interessados difusos e coletivos. O projeto de efetivação da cidadania, tal como
expresso no artigo 1º da Constituição brasileira de 1988, passa obrigatoriamente
pela reconstrução do processo coletivo como espaço para o debate e o controle dos
métodos e dos instrumentos de efetivação dos Direitos Fundamentais.
A apatia da sociedade e a ignorância da maioria da população brasileira que
desconhece inúmeros dos seus direitos de repercussão individual e coletiva não
pode ser utilizado como argumento a explicar a não concretização do projeto de
processo coletivo compatível com a constitucionalidade democrática e reafirmar o
modelo de processo coletivo vigente e centrado na representatividade de uma
minoria pseudo-legitimada a representar os interesses da maioria.

3.3.3 O MÉRITO PROCESSUAL NO CÓDIGO MODELO DE PROCESSOS COLETIVOS PARA

IBERO-AMÉRICA.

O Código Modelo de Processo Civil para Ibero-América204 recepcionou o


tratamento jurídico brasileiro assegurado à tutela jurisdicional dos direitos difusos e

204
A primeira versão do Anteprojeto de Código Modelo previu a conceituação tripartida dos interesses
e direitos coletivos lato sensu em conformidade com a legislação brasileira, subdividindo-os em
difusos, coletivos e individuais homogêneos. Na segunda versão do Anteprojeto, que restou mantida
220

coletivos, com algumas modificações substanciais com relação à legitimação


(passou a integrar qualquer interessado na demanda coletiva como legitimado ao
processo coletivo), ao controle sobre a representatividade adequada e com relação
à coisa julgada adotou o regime do efeito erga omnes, salvo a insuficiência de
provas. “[...] Apesar de terem sido analisadas a sistemática norte-americana das
class actions e a brasileira das ações coletivas, o Código Modelo constitui-se em um
modelo de sistema original que se afasta daqueles para se adequar à realidade dos
diversos países ibero-americanos” (ALMEIDA, 2007, p. 86). O objetivo foi
sistematizar uma legislação adequada aos países onde será aplicada:

O modelo ora apresentado inspira-se, em primeiro lugar, naquilo que já


existe nos países da comunidade ibero-americana, complementando,
aperfeiçoando e harmonizando as regras existentes, de modo a chegar a
uma proposta que possa ser útil para todos. Evidentemente, foram
analisadas a sistemática norte-americana das class actions e a brasileira
das ações coletivas (aplicada há quase 20 anos), mas o código afasta-se
em diversos pontos dos dois modelos, para criar um sistema original,
adequado à realidade existente nos diversos países ibero-americanos.
Tudo isto foi levado em conta para a preparação do Código,que acabou, por
isso mesmo, perdendo as características de um modelo nacional, para
adquirir efetivamente as de um verdadeiro sistema ibero-americano de
processos coletivos, cioso das normas constitucionais e legais já existentes
nos diversos países que compõem nossa comunidade (GRINOVER;
MENDES; WATANABE, 2007, p. 123).

È bastante elogiável e relevante a iniciativa de criação de um Código Modelo


de Processo Coletivo para a Ibero-América, já que o presente código desempenha
importante papel no cenário jurídico dos países de cultura jurídica comum. Trata-se
de legislação criada para garantir o aperfeiçoamento da ordem jurídica interna de
cada país. Para o Brasil não podemos afirmar que tivemos significativas
contribuições em virtude da existência de avançada legislação que regula o
processo coletivo interno. Em contrapartida, a importância de tal legislação é
destacada para os países que ainda não sistematizaram no plano legislativo as
diretrizes do direito e do processo coletivo.

no Código, procurou-se o consenso mediante uma divisão bipartida, fundada na dicotomia entre
direitos, essencialmente coletivos, porque indivisíveis, e acidentalmente coletivos, na medida em que
apenas a defesa é coletiva, tendo em vista a homogeneidade dos direitos individuais em jogo,
decorrentes de uma origem comum. Na nova redação, não houve, contudo, uma ruptura total em
relação à primeira versão do Anteprojeto. Os direitos e interesses antes denominados difusos e
coletivos em sentido estrito foram, na verdade, agrupados e denominados de difusos, passando o
novo inciso I a compreender conceito alargado e que correspondia anteriormente a incisos I e II da
primeira versão do Anteprojeto (MENDES, 2006, p. 36).
221

A idéia inicial do Código em questão surgiu de uma intervenção do jurista


Antônio Gidi, membro do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, no VII
Seminário Internacional co-organizado pelo Centro di Studi Giuridici Latino Americani
da Università degli Studi di Roma – Tor Vergata, pelo Instituto Italo-Latino Americano
e pela Associazione di Studi Sociali Latino-Americani, realizado na cidade de Roma
no mês de maio de 2002.
Ainda em Roma, a Diretoria do Instituto Ibero-Americano amadureceu e
incorporou com entusiasmo a idéia de elaboração de um Código Modelo de
Processos Coletivos para Ibero-América a fim de inspirar reformas, de modo a tornar
mais homogêneo a defesa dos direitos difusos e coletivos nos países de cultura
jurídica comum. Incumbidos de redigir a proposta de codificação do direito
processual coletivo, Ada Pelegrini Grinover, Antônio Gidi e Kazuo Watanabe
apresentaram os resultados iniciais de seus trabalhos nas Jornadas Ibero-
Americanas de Direito Processual, realizada em Montevidéu, no mês de outubro de
2002, momento em que a proposta foi oficialmente transformada em anteprojeto.
Após revisão e extenso debate pela comunidade acadêmica o projeto foi publicado
pelo Editorial Porrúa sob o título “A tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos – Rumo a um Código Modelo para Ibero-América e apresentado no XII
Congresso Mundial de Direito Processual, realizado na Cidade do México no período
de 22 a 26 de setembro de 2003 (GRINOVER; MENDES; WATANABE, 2007, p.
423). Após nova analise pela comissão revisora o anteprojeto converteu-se em
projeto, que foi aprovado pela Assembléia Geral do Instituto Ibero-Americano de
Direito Processual, realizado no mês de outubro de 2004, na cidade de Caracas,
durante as XIX Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual.
Estruturalmente o Código Modelo organiza-se da seguinte forma
(GRINOVER, 2006, p. 25-32):
a) inicialmente diferencia conceitualmente direitos difusos e individuais
homogêneos, enaltecendo a prevalência das questões comuns sobre as questões
individuais e da utilidade da tutela coletiva no caso concreto;
b) a legitimidade processual ativa é a mais aberta possível 205, a fim de
atender todos os modelos já existentes de processos coletivos em Ibero-América,

205
O caminho trilhado pelo Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-América foi no
sentido de democratizar o acesso à Justiça, fortalecendo as ações coletivas, a partir da ampliação do
rol de legitimados. A proposição rompe, portanto, com sistemas tradicionais, que procuram atribuir
222

ressaltando-se que a legitimação é concorrente e autônoma e admitindo-se o


litisconsórcio dos co-legitimados (GRINOVER; MENDES; WATANABE, 2007, p.
424);
c) o foco do projeto é todo voltado para a idéia da efetividade do processo
coletivo, com o propósito de viabilizar uma resposta jurisdicional realmente capaz de
satisfazer os direitos difusos e coletivos violados ou ameaçados. Para isso,
encontra-se expressa uma sistemática de tutelas processuais específicas, tais como
a tutela antecipada; a condenação por reparação de danos ao bem indivisivelmente
considerado; a destinação do produto das condenações para a recuperação do bem
lesado e as tutelas mandamentais acompanhadas das astreintes;
d) teoricamente voltado à proteção do bem jurídico coletivo de natureza
indisponível, o projeto volta-se para conferir ao juiz amplos poderes no controle, na
condução e na direção do processo coletivo;
e) instituíram-se também regras para regular a distribuição do ônus da prova;
o pagamento de custas, emolumentos e honorários; o incentivo para as pessoas
físicas, os sindicatos e as associações quanto à propositura das ações coletiva; a
interrupção do prazo de prescrição para as pretensões individuais como
conseqüência da propositura da ação coletiva;
f) o recurso de apelação, via de regra, é recebido meramente no efeito
devolutivo, admitindo-se, portanto, a possibilidade de execução provisória;
g) temos a previsão da ação coletiva reparatória para proteger danos
individualmente sofridos, ressaltando-se que em caso de acolhimento do pedido, a
sentença poderá ser genérica, declarando a existência do dano geral e condenando

certa exclusividade a legitimidade ora para órgãos públicos, ora para associações e organizações não
governamentais, como ocorre na Alemanha, ou principalmente para os indivíduos, como acontece
nos Estados Unidos, com as class actions. Previu-se, assim, que são legitimados concorrentemente
para a ação coletiva: 1- qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos difusos de
que seja titular em grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por circunstâncias de fato; II- o
membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos interesses ou direitos difusos de que seja
titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma
relação jurídica base e para a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos; III- o
Ministério Público, o Defensor do Povo e a Defensoria Publica; IV- as pessoas jurídicas de direito
público interno; V- as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem
personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo
Código; VI- as entidades sindicais, para a defesa dos interesses e direitos da categoria; VII- as
associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins
institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos no código, dispensada a autorização
assemblear; VIII- os partidos políticos, para a defesa de direitos e interesses ligados a seus fins
institucionais. Ressalte-se que tanto o Defensor Del Pueblo quanto as entidades sindicais foram
incluídos na segunda versão do Anteprojeto, e ainda acrescentados, por proposta do autor deste
artigo, na redação final, a Defensoria Pública e os Partidos Políticos (MENDES, 2006, p. 38-39).
223

o demandado à obrigação de indenizar todas as vítimas, cabendo individualmente a


cada interessado o dever de provar o seu dano pessoal na fase de liquidação de
sentença;
g) a instituição de um Fundo de Direitos Difusos e Individuais Homogêneos
tem regras especificas sobre a gestão e as atividades, cujo controle é exercido
diretamente pelo juiz;
h) existem regras próprias e muito claras que disciplinam os institutos da
conexão e da litispendência, incluindo as relações entre ações coletivas ou entre
uma ação coletiva e outras ações individuais de mesmo objeto. Verifica-se, ainda, a
possibilidade de conversão de várias ações individuais numa única ação coletiva;
i) a coisa julgada envolvendo direitos difusos sempre será de eficácia erga
omnes, em caso de procedência ou de improcedência do pedido, salvo quando a
improcedência se der por insuficiência de provas, hipótese em que a demanda
poderá ser repetida, no prazo de 2 (dois) anos a contar da descoberta de prova nova
superveniente ao processo coletivo;
j) a coisa julgada com relação aos direitos individuais homogêneos será
secundum eventum litis, ou seja, terá efeito erga omnes se o pedido tiver sido
julgado procedente e o efeito será ultra partes, limitando-se às partes do processo,
se o pedido tiver sido julgado improcedente, hipótese em que cada individuo
prejudicado pela sentença poderá opor-se à coisa julgada, ajuizando sua ação
individual a fim de buscar a proteção de direito próprio;
k) uma importante inovação trazida pelo Código Modelo de Processos
Coletivos para Ibero-América foi a possibilidade de ação coletiva passiva, assim
como a defendant class action do sistema norte-americano. A presente ação não é
proposta pela classe, mas sim, contra ela. O Código exige que a ação coletiva
passiva seja proposta em face de uma coletividade organizada de pessoas e que o
bem jurídico tutelado seja coletivo e de relevância social.
Já no artigo 1º o projeto explicita que a ação coletiva será exercida para a
tutela de interesses ou direitos difusos (de natureza indivisível, titularidade
pertencente a um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por uma
circunstância fática ou por uma relação jurídica base) e interesses ou direitos
individuais homogêneos (conjunto de direitos subjetivos individuais decorrentes de
origem comum de que sejam titulares membros de um grupo, categoria ou classe).
224

Verifica-se que os autores do projeto de codificação Ibero-América não tiveram o


cuidado necessário quanto à distinção conceitual do direito e do interesse.
O jurista Vicente de Paula Maciel Junior é pontual no momento em que afirma
que interesse e direito não se confundem e a distinção entre ambos estaria no
momento em que ambos se efetivam e realizam (2006, p. 53). Interesse é um
conceito liberal, de natureza individualista, pertence à esfera psíquica do sujeito e se
materializa por meio da manifestação de uma pessoa em face de um bem. É por
isso que se torna equivocada a utilização da expressão “interesses difusos,
interesses coletivos, interesses metaindividuais ou transindividuais”. “Quando se fala
de interesse coletivo ou difuso a expressão, via de regra, é equívoca, porque o
interesse é sempre individual” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 54). O que podemos
considerar difuso ou coletivo é o número dos sujeitos que manifestam
individualmente interesses ligados pelas mesmas circunstâncias fáticas ou por uma
relação jurídica comum. É por isso que o mais adequado juridicamente seria a
utilização das expressões interessados difusos e coletivos e direitos difusos e
coletivos. “Não há interesse difuso, mas uma indeterminação difusa de interessados”
(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 54).
Uma vez esclarecido juridicamente que o interesse “nasce e se exaure na
intenção do sujeito, em sua manifestação perante as outras pessoas, na sua esfera
privada” (MACIEL, 2006, p. 55), resta esclarecer que o direito206 é produto de um
processo de racionalização, de validação e de legitimação pelo Estado de condutas
decorrentes essencialmente a partir de interesses dos sujeitos manifestados tanto de
forma individual quanto de forma coletiva. Para Vicente de Paula Maciel Junior “[...] a
partir do momento em que há o reconhecimento social, o respeito às faculdades e
poderes exercidos pelo sujeito sobre o bem, estabelece-se o consenso de que
aquele é o titular legitimo de um direito” (2006, p. 55).
Toda proposta legislativa deve vir acompanhada do cuidado dos estudiosos
quanto à utilização adequada de institutos e de conceitos. Num primeiro momento
pode até parecer preciosismo a discussão cientifica que propõe a distinção teórica
entre os conceitos de direito e de interesse, mas tal debate se faz necessário e

206
Os direitos nascem da aceitação, do consenso sobre as manifestações dos interesses dos sujeitos,
ou do reconhecimento compulsório da validade do interesse manifestado pelo sujeito e admitido pelo
juiz em uma sentença. Os interesses pertencem a uma fase pré-lógica, antecedente, e nunca se
confundirão com os direitos, que exigem um processo de validação, de legitimação dos interesses da
sociedade para que possam ser chamados de direitos (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 55).
225

relevante no presente contexto justamente para afastar definitivamente qualquer


herança liberal ou individualista do processo civil como patamar lógico ao estudo do
direito processual coletivo.
Com relação aos requisitos jurídico-legais a propositura de uma ação coletiva
o projeto do Código Ibero-América estabelece basicamente a representatividade
adequada do legitimado (auferida pela credibilidade, capacidade, prestígio e
experiência do legitimado no que tange à proteção dos direitos dos membros do
grupo ou classe, e a sua conduta em outros processos coletivos; o tempo de
instituição da associação e a representatividade desta ou da pessoa física perante o
grupo, categoria ou classe; a coincidência entre os interesses dos membros do
grupo, categoria ou classe e o objeto da demanda), a relevância e a extensão social
do objeto da demanda coletiva. No que tange aos direitos individuais homogêneos,
além dos requisitos ora mencionados ressalta-se a necessidade de aferição da
predominância das questões comuns sobre as individuais, assim como a utilidade da
tutela coletiva no caso concreto. Os requisitos da pré-constituição da ação coletiva
poderão ser dispensados pelo juiz quando houver manifesto interesse social
evidenciado pela dimensão do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser
protegido, conforme preceitua o §1º, do artigo 3º do Código Modelo.
A opção pelo amplo controle pelo juiz (ope judicis) da representatividade
adequada (adequacy of representation) mediante a constatação da credibilidade, da
capacidade, do prestígio e da experiência do legitimado é algo incompatível com o
sistema constitucional brasileiro. Tal afirmação se justifica no sentido de que o
controle da representatividade adequada não é uma atribuição exclusiva do juiz.
Todos os legitimados e interessados difusos e coletivos tem legitimidade para
fiscalizar, controlar e auxiliar as atividades desenvolvidas pelo representante
adequado no contexto da relação processual que tem como objeto a pretensão
coletiva.
No rol dos legitimados descritos no artigo 3º, os autores do Código Modelo
optaram pela legitimidade concorrente207 e incluíram, além dos sujeitos e das
instituições classicamente reconhecidas como partes legitimas a propositura de
ações coletivas (tal como expresso no artigo 5º da Lei 7.347/85), ocorreu uma

207
O primeiro ponto positivo é a previsão de legitimação ativa concorrente e pluralista (art. 3º), o que
já estava consagrado no sistema jurídico brasileiro (arts. 129, §1º; 103; 125, §2º, todos da CF/88; art.
5C da Lei 7.347/85; art. 82 da Lei 8.078/90, entre outras disposições legais), que serviu de inspiração
do dispositivo (ALMEIDA, 2007, p. 89).
226

significativa inovação ao reconhecer a possibilidade de propositura de uma ação


coletiva por qualquer pessoa física, membro do grupo, da categoria ou da classe na
defesa de direitos difusos e dos direitos individuais homogêneos de que seja titular o
membro do grupo, o grupo, a categoria ou a classe de pessoas ligadas por
circunstâncias de fato.
Considerando-se a tradição legislativa brasileira, que sempre optou pelo
sistema representativo quanto à sistematização das normas jurídicas do processo
coletivo, pode-se afirmar que o reconhecimento de qualquer interessado difuso ou
coletivo como titular do direito de propor uma ação coletiva, certamente significa a
tentativa de inserção do sistema participativo no ordenamento jurídico brasileiro.
Trata-se de uma tímida iniciativa, até porque o conceito de participação no contexto
das ações coletivas não se limita apenas à possibilidade de serem autores da ação
proposta, mas, acima de tudo, de se reconhecer como parte legitimada à
participação ampla e isonômica do debate de todas as questões levantadas
processualmente. Trata-se da oportunidade de influir no julgamento da pretensão
coletiva e, assim, construir participadamente o mérito.
Admitir o Ministério Público como o único legitimado a propor as ações
coletivas é legitimar a violação do principio da isonomia processual, do contraditório,
da ampla defesa e do devido processo legal mediante a supressão da participação
de todos os interessados difusos e coletivos na construção participada do mérito
coletivo.
O artigo 4º foi criado com a finalidade de instituir a maior amplitude possível à
efetividade da tutela jurisdicional. Adotou-se o principio da máxima amplitude da
tutela jurisdicional, que estabelece que, a fim de assegurar a defesa e a ampla
proteção jurídica dos direitos coletivos e difusos são admissíveis todas as ações
capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Para Gregório de Assagra de
Almeida o respectivo princípio já se encontra consagrado na legislação brasileira nos
artigo 83 de Lei 8078/90, artigo 212 da Lei 8069/90 e artigo 82 da Lei 10.741/2003,
correspondente ao direito fundamental a uma tutela jurisdicional adequada (2007, p.
89).
Ao longo de todo o capitulo II os autores do Código Modelo discorrem sobre
as tutelas processuais especificas, ressaltando, inicialmente, a possibilidade de o
juiz conceder, a requerimento da parte, tutela antecipada reversível a fim de
resguardar imediatamente a proteção de bens jurídicos de natureza coletiva ou
227

difusa, podendo tal decisão ser, a qualquer tempo, revogada de forma


fundamentada. Temos, ainda, a possibilidade da concessão de tutela antecipada de
parte incontroversa da pretensão após a oportunização do contraditório, momento
em que teremos a coisa julgada da decisão que reconheceu a parte incontroversa
da pretensão e o prosseguimento da relação processual quanto aos demais pontos
ou as demais questões postas na demanda. Nesse ponto especifico do Código-
Modelo é importante refletir acerca da operacionalização da construção participada
do mérito processual, tendo como paradigma os princípios do contraditório e da
ampla defesa.
O julgamento antecipado do mérito da pretensão coletiva atinente a questões
incontroversas da demanda não poderá se dar de forma a cercear ou a limitar a
participação dos interessados quanto à construção do provimento. Mesmo diante de
um direito que reconhecidamente pertencente aos autores da ação e aos titulares da
pretensão deduzida, o contraditório e a oportunidade de debate e de construção
participada do mérito deve ser isonomicamente assegurada a todos os interessados.
Quanto às tutelas especificas de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz
deverá determinar todas as providências que assegurem o resultado prático
equivalente ao adimplemento, fixando multa diária em valor suficiente a potencializar
os efeitos práticos do provimento, podendo, caso seja necessário, modificar o valor
ou a periodicidade da multa se verificar que a mesma se tornou insuficiente ou
excessiva. Novamente é de suma importância esclarecer que o valor das astreintes
não poderá ser fixado por critérios aleatórios estabelecidos pelo julgador, até porque
todas as pessoas e os sujeitos hábeis a sofrer os efeitos jurídicos da multa diária
deverão ter a oportunidade de imiscuir-se no debate dos critérios utilizados para a
sua fixação, podendo-se argumentar jurídico-faticamente no sentido de avaliar se o
valor estabelecido realmente é suficiente a garantir a implementação do principio da
efetividade processual (resultado prático) quanto à tutela coletiva.
È relevante esclarecer que a indenização por perdas e danos poderá ser
juridicamente reconhecida sem prejuízo da multa (astreintes), até porque ambas tem
naturezas jurídicas distintas: as astreintes são multas diárias de caráter coercitivo
que visa potencializar (não garantir) o cumprimento de uma obrigação de fazer ou de
não fazer; já a condenação por perdas e danos (danos materiais, danos morais e
lucros cessantes) tem no Brasil caráter compensatório-pedagógico (não punitivo),
228

tendo em vista que busca reestabelecer, ao máximo, os prejuízos advindos de


condutas praticadas em desfavor dos direitos coletivos e difusos.
O §4º do artigo 6º do Código Modelo estabelece que a obrigação de fazer ou
não fazer somente poderá ser convertida em perdas e danos se por elas optar o
autor, se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático
correspondente. Para Gregório Assagra de Almeida tal previsão não é boa técnica,
além de configurar evidente hipótese de incompatibilidade com a principiologia que
rege o direito processual coletivo, tendo em vista que o autor da ação coletiva por
estar defendendo os direitos de toda uma coletividade de pessoa não teria
legitimidade para abrir mão da tutela especifica e, assim, optar pela conversão em
perdas e danos (ALMEIDA, 2007, p. 94). Trata-se de posicionamento coerente
juridicamente, mas que poderia ser repensado sob o ponto de vista democrático-
constitucional se houvesse uma efetiva notificação e publicidade adequada, ou a
realização de uma audiência pública em que os interessados difusos e coletivos
pudessem se manifestar acerca da possibilidade de conversão da tutela específica
em perdas e danos. Na realidade, o recomendável seria que tal conversão em
perdas e danos ocorresse somente quando fosse impossível a tutela especifica ou a
obtenção do resultado prático equivalente, e desde que todos os interessados
difusos e coletivos fossem inseridos no debate e na construção participada do
provimento. O artigo 84, §1º do Código de Defesa do Consumidor estabelece a
mesma possibilidade trazida pelo §4º do artigo 6º do Código Modelo.
O produto das indenizações voltadas a compensar os prejuízos provocados
ao bem juridicamente considerado será revertido ao Fundo dos Direitos Difusos e
Individuais Homogêneos, de cuja gestão participará o Ministério Publico, juízes e
representantes da comunidade. No §1º do artigo 8º do Código Modelo temos a
previsão de que o Fundo deverá ser notificado da propositura de toda ação coletiva,
podendo intervir no processo coletivo em qualquer tempo e grau de jurisdição para
demonstrar a inadequação do representante adequado ou auxiliá-lo na tutela dos
direitos do grupo, categoria ou classe. Em situações pontuais, o juiz poderá
especificar, de forma fundamentada, a destinação da indenização e as providências
a serem tomadas para a reconstituição dos bens lesados, podendo indicar a
realização de atividades voltadas a minimizar a lesão ou a evitar que se repita.
A legitimidade de controle do debate processual, assim como da atividade do
representante adequado, pertence a todos os interessados difusos ou coletivos que
229

demonstrarem a possibilidade de sofrer os efeitos jurídicos do provimento estatal.


Esse mesmo raciocínio jurídico se estende à gestão do Fundo dos Direitos Difusos e
Individuais Homogêneos, que deve se desenvolver a partir do sistema participativo
(e não apenas sob a égide do sistema representativo, tal como pretende
ideologicamente os autores do Código-Modelo).
O artigo 10 dispõe sobre o pedido e a causa de pedir, estabelecendo que nas
ações coletivas serão interpretados extensivamente, permitindo-se a emenda da
inicial para alterar ou ampliar o objeto da demanda e também a alteração do objeto a
qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, desde que realizada de boa-fé,
que não apresente prejuízo injustificado para a parte contrária e o contraditório seja
preservado.
Certamente a finalidade do presente dispositivo é garantir a proteção jurídica
mais ampla possível no que tange aos direitos coletivos e difusos, porém, sob o
ponto de vista processual a sua aplicabilidade deve vir acompanhada da
observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo
legal e, especialmente, da isonomia processual. Qualquer alteração do objeto do
debate processual da ação coletiva pressupõe assegurar a oportunidade efetiva de
manifestação de todos os interessados, que deverão ser adequadamente
notificados. Quando a análise do mérito da demanda tiver ensejado o julgamento
procedente do pedido inicial, eventual alteração ou ampliação do pedido ou da
causa de pedir poderá ocorrer desde que sejam preservados os bens jurídicos e os
direitos coletivos e difusos anteriormente reconhecidos em decisão judicial.
O artigo 11 do Código Modelo traz a audiência preliminar como uma das
fases do procedimento, cuja finalidade é a tentativa de conciliação, sem prejuízo de
sugerir outras formas adequadas de solução do conflito, como a mediação, a
arbitragem e a avaliação neutra de terceiro (a avaliação neutra de terceiro será
obtida em prazo fixado pelo juiz, é sigilosa, não vinculante e tem a finalidade
exclusiva de orientar as partes na tentativa de composição amigável do conflito).
Preservada a indisponibilidade do bem jurídico coletivo, as partes poderão transigir
sobre o modo de cumprimento da obrigação.
A grande discussão jurídica que permeia a realização da conciliação em
ações coletivas diz respeito à legitimação exclusiva dos sujeitos (juiz, Ministério
Publico e representante adequado) quanto à resolução consensual do conflito
coletivo. A legitimidade da conciliação condiciona-se à participação dos interessados
230

no debate da pretensão. Para isso, torna-se necessária a notificação prévia dos


sujeitos interessados a fim de realizar uma audiência pública em que sejam
ponderadas e debatidas todas as questões relevantes à realização de uma possível
conciliação na ação coletiva. Realizar uma conciliação sem oportunizar
processualmente o debate das peculiaridades da pretensão é reproduzir um modelo
de processo coletivo incompatível com o Estado Democrático de Direito.
No §1º do artigo 12 foi adotada a teoria da distribuição dinâmica do ônus da
prova208, que atribui o ônus de provar à parte (qualquer interessado na pretensão
coletiva) que detiver conhecimentos técnicos ou informações especificas e
relevantes sobre os fatos ou maior facilidade em sua demonstração. Em virtude da
natureza coletiva da pretensão, todos os interessados têm o dever de colaborar com
a dinâmica da produção de provas. Mesmo que os interessados não tenham sido os
sujeitos que produziram as provas carreadas aos autos, não se pode excluir a sua
legitimidade quanto à análise e ao debate da coerência da prova produzida com o
conteúdo da pretensão coletiva deduzida.
O juiz tem autonomia para determinar o que necessário for para obter
elementos probatórios indispensáveis para a sentença de mérito, podendo requisitar
perícias à entidade pública cujo objeto estiver ligado à matéria em debate; se mesmo
assim a prova não puder ser obtida, o juiz poderá ordenar sua realização a cargo do
Fundo de Direitos Difusos e Individuais Homogêneos. Toda essa liberdade do
julgador no que tange à autonomia de condução da relação processual, a fim de
buscar a implementação do principio da efetividade (resultado prático do processo
coletivo), não poderá ser vista como instrumento para limitar a participação dos
sujeitos interessados na construção do provimento jurisdicional. O grande desafio do
julgador é exercer suas atribuições de gestor do processo coletivo sem afastar ou
suprimir o direito do interessado difuso e coletivo ingerir-se no contexto do debate
amplo da pretensão.
Sabe-se que a finalidade da produção de provas é viabilizar a aplicabilidade
do principio da fundamentação das decisões judiciais, com possível conseqüência
de reconstituição dos fatos alegados em juízo. A possibilidade de atuação de oficio

208
A adoção da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova prevista no §1º do art. 12 do Código-
Modelo, cuja orientação pauta-se no sentido de que incumbe à parte que detiver conhecimentos
técnicos ou informações sobre os fatos, ou maior facilidade de demonstração, também é novidade
sem precedente expresso na legislação brasileira, é ponto positivo que representa necessária
mobilidade do sistema jurídico (ALMEIDA, 2007, p. 90).
231

do magistrado no contexto da produção probatória justifica-se pela relevância do


bem jurídico que se pretende proteger através do processo coletivo, porém, a
integração de todos os interessados na produção, na obtenção e na análise das
provas judiciais torna-se necessário para assegurar a legitimidade democrática de
construção participada do provimento.
Ao determinar a produção de oficio de uma prova o juiz obrigatoriamente
deverá garantir a observância do principio do contraditório, conforme preceitua o §3º
do artigo 12. Se durante a fase instrutória surgir significativa modificação de fato ou
de direito relevante para o julgamento da causa, o juiz poderá rever, em decisão
fundamentada, a distribuição do ônus da prova e, se necessário for, conceder novo
prazo para a produção de novas provas, observado o contraditório com relação à
parte contrária.
A dinâmica do processo coletivo no que atine à produção de provas traz
maior mobilidade de análise detalhada da pretensão deduzida ao permitir o
envolvimento de todas as pessoas possíveis e interessadas na construção do mérito
processual. Trata-se de dispositivo legal que vem corroborar no direito brasileiro com
o modelo de processo coletivo democrático-constitucionalizado.
Outra novidade trazida pelo Código Modelo encontra-se no artigo 13,
parágrafo único, que dispõe a possibilidade de julgamento antecipado do mérito de
parte da demanda quando não houver necessidade de produção de prova, sem que
isso importe em prejulgamento do litígio que continuar pendente de decisão,
prosseguindo-se a instrução processual com relação aos demais pedidos. O
principio da efetividade processual é o fundamento regente desse dispositivo,
voltado a trazer maior dinamicidade e resultado prático para o processo coletivo.
Ao reconhecer o julgamento antecipado de parte do mérito da lide certamente
o legislador também reconheceu a possibilidade de execução provisória da decisão,
a fim de garantir a produção de seus efeitos jurídicos em caso de resistência ou de
recusa injustificada da parte contrária quanto ao seu cumprimento.
O artigo 14 traz a legitimação subsidiária de o Ministério Público requerer a
liquidação e a execução de sentença condenatória proferida em processo coletivo,
em caso de inércia da parte interessada. Importante esclarecer que qualquer parte
juridicamente afetada pela decisão tem legitimidade para pleitear a sua liquidação e
a sua execução provisória ou definitiva. Em caso de inércia por parte dos
interessados, o Ministério Público assumiria o dever de providenciar a liquidação e a
232

execução, em face da natureza jurídica coletiva do provimento e da indisponibilidade


do bem jurídico em questão, sem a exclusão definitiva de intervenção dos sujeitos
interessados a qualquer tempo e grau de jurisdição.
Com relação às custas e aos honorários advocatícios o Código Modelo, no
artigo 15, foi categórico ao prever a gratuidade de custas, emolumentos, honorários
periciais e quaisquer outras despesas, salvo comprovada má-fé, em que o autor da
ação e os demais responsáveis serão condenados ao pagamento das despesas
processuais, dos honorários advocatícios e do décuplo das custas processuais, sem
prejuízo da responsabilidade por perdas e danos.
Não podemos nos esquecer que a má-fé no direito é algo que precisa ser
claramente demonstrado, visto que nunca poderá ser presumida. No âmbito
processual a má-fé se comprova pela violação do principio da lealdade processual,
que se materializa no momento em que o processo é utilizado como instrumento de
violação de direitos, de prática de ilicitudes, de concretização de danos a terceiros e
de utilização de qualquer medida protelatória ou procrastinatória praticada no
sentido de obstaculizar o reconhecimento e o exercício de direitos pela parte
contrária.
A litigância de má-fé e o ato atentatório ao exercício da jurisdição somente
poderão ser reconhecidos processualmente no momento em que for demonstrado o
elemento volitivo do agente, ou seja, o dolo ou o querer intencional de se utilizar
indevida e ilegitimamente do processo como instrumento de violação de direitos.A
comprovação dos fatos condiciona-se a observância do contraditório e da ampla
defesa, princípios corolários da efetiva participação dos interessados na construção
do provimento estatal de natureza coletiva.
A pressuposição da má-fé processual, sem o devido cuidado com relação à
comprovação efetiva do alegado, poderá ser visto como uma estratégia utilizada a
fim de deslegitimar o exercício livre e constitucional do direito de ação e de amplo
acesso ao Judiciário, principalmente no que diz respeito com o direito de debate
amplo do mérito processual por todos os interessados difusos e coletivos na
pretensão deduzida. O dogma da presunção da má-fé processual não pode ser
indiscriminadamente utilizado com a finalidade de limitar o amplo acesso que todos
os interessados têm ao poder Judiciário.
Considera-se um relativo avanço legislativo a previsão do artigo 16 do
Código-Modelo, que determina que o juiz deverá dar prioridade no processamento e
233

no julgamento das ações coletivas, quando haja manifesto interesse social


evidenciado pela dimensão do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser
protegido. A primeira indagação que podemos levantar é a seguinte: a prioridade
seria para todas as ações coletivas, levando-se em consideração a pressuposição
da relevância jurídica de todos os bens que integram o objeto de qualquer ação
coletiva? Possivelmente podemos afirmar que todas as ações coletivas teriam
prioridade no processamento, em virtude da maior relevância do seu objeto se
comparado com as demais pretensões de cunho individual.
O simples fato de identificarmos a natureza coletiva da pretensão já é
suficiente para assegurar-lhe prioridade processual. Nesse mesmo sentido
manifesta-se Gregório Assagra de Almeida: “[...] a ação coletiva é de interesse social
e, assim, deve ter prioridade na tramitação independentemente da aferição de
manifesto interesse social evidenciado pela dimensão do dano ou pela relevância do
bem jurídico a ser protegido” (2007, p. 90).
Outro ponto relevante do anteprojeto original e do Código-Modelo é a
interrupção da prescrição das pretensões individuais e transindividuais conexas à
pretensão deduzida, a partir da citação válida ocorrida no processo coletivo. Trata-se
de um meio adequado de preservação do debate jurídico dos direitos conexos à
pretensão coletiva, caso os efeitos jurídicos da decisão final proferida na ação
coletiva não venham a atender as expectativas dos autores das ações individuais ou
de outras ações coletivas.
A previsão da execução provisória no artigo 18 vem atender as hipóteses de
julgamento antecipado de parte do mérito da pretensão (parte incontroversa) e de
recebimento de recursos apenas no efeito devolutivo. A execução provisória admite
a prática de atos que importem a alienação do domínio e o levantamento do
deposito em dinheiro, correrá por conta e risco do exeqüente, que responderá pelos
eventuais prejuízos causados ao executado, podendo o juiz suspendê-la quando
dela puder resultar lesão grave e de difícil reparação. A legitimidade democrática da
execução de um título que materializa um direito coletivo ou difuso pressupõe o
respeito ao direito de qualquer sujeito juridicamente interessado debater o mérito
processual da pretensão executiva, ressaltando-se que o mérito processual nas
ações coletivas materializar-se-á por meio da participação dos interessados difusos
e coletivos na construção do provimento jurisdicional (estatal).
234

O artigo 20 regula o cabimento da ação coletiva de responsabilidade civil, ou


seja, trata-se de uma ação que poderá ser proposta por um ou mais legitimados, em
nome próprio e no interesse das vitimas ou seus sucessores, cuja finalidade é o
reconhecimento da responsabilidade civil do demandado por danos individualmente
sofridos.
A finalidade inicial da respectiva ação é apurar se existe ou não a
responsabilidade e o dever de indenizar do demandado, tendo em vista que será na
fase de liquidação de sentença que poderemos quantificar individualmente a
responsabilidade do condenado pelos danos sofridos por cada sujeito
especificamente (a liquidação e a execução da sentença poderão ser promovidas
pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados à ação coletiva).
Mesmo sendo a ação coletiva proposta por um sujeito individualmente ou por um
grupo de sujeitos juridicamente interessados não se pode excluir a possibilidade de
intervenção direta dos demais interessados em participar do debate jurídico da
pretensão coletiva deduzida em juízo.
O juiz ordenará a citação do réu e a publicação do edital oficial a fim de que
os interessados possam intervir no processo como assistentes ou coadjuvantes. Da
mesma forma, temos a notificação dos órgãos e das entidades de defesa dos
direitos difusos e coletivos, para informá-los da existência da demanda coletiva e de
seu trânsito em julgado. A ampla publicidade da existência da ação coletiva é
fundamental para garantir a participação dos interessados na construção do
provimento.
Sempre que tivermos uma decisão final que julgou procedente os pedidos,
certamente os seus efeitos jurídicos se estenderão para todas as pessoas que
demonstrarem possuir interesse na pretensão coletiva reconhecida judicialmente.
Em caso de procedência do pedido, a condenação poderá ser genérica, fixando a
responsabilidade do demandado pelos danos causados e o dever de indenizar
(sempre que possível, o juiz calculará o valor da indenização individual devida a
cada membro do grupo na própria ação coletiva). Quando o valor dos danos
individuais sofridos pelos membros do grupo for uniforme, a sentença coletiva
indicará o valor ou a fórmula de cálculo da indenização individual (em caso de
insatisfação com o valor individual da indenização a parte interessada terá a
legitimidade de propositura de uma ação individual de liquidação).
235

Acontece que, em caso de improcedência do pedido de indenização numa


ação coletiva, os efeitos da decisão de mérito somente poderão se estender sobre
aquelas pessoas que efetivamente participaram da demanda ou tiveram a
oportunidade de exercer o contraditório e a ampla defesa. È por isso que a
observância do principio da publicidade, no presente caso, é corolário dos princípios
do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Somente será possível
auferir se os interessados poderão ou não sofrer os efeitos da decisão se tiver sido
amplamente divulgado o objeto da ação coletiva por meio de edital, notificações
adequadas, imprensa, internet e redes sociais (facebook, twitter, Orkut etc).
A realização de audiências públicas é uma excelente e barata alternativa para
garantir o debate amplo da pretensão (o uso das redes sociais é uma ferramenta
importante nos dias de hoje para assegurar ampla divulgação da data, do horário e
do local onde será realizada a audiência pública).
O §3º do artigo 21 estabelece que, em caso de ação coletiva de
responsabilidade civil, os intervenientes não poderão discutir suas pretensões
individuais no processo coletivo de conhecimento, desde que lhes tenham sido
assegurada a oportunidade de influir decisivamente na construção do provimento
final no que tange à existência ou não do dever legal do demandado indenizar.
Intervenções que não garantem o amplo debate da pretensão equiparam-se àquelas
pessoas que não tiveram ou não puderam participar do processo. Nesse caso, não
há que se falar em extensão dos efeitos da decisão judicial sobre aquelas pessoas
excluídas do espaço processual (a exclusão ocorrerá quando não for assegurado o
direito de participação ao interessado; quando os argumentos levantados pelo
interessado forem ignorados quando do julgamento do mérito da demanda, ou seja,
quando os princípios do contraditório e da ampla defesa não forem observados).
A liquidação da sentença proferida na ação coletiva de responsabilidade civil
poderá ser requerida no foro de domicilio do liquidante, a quem caberá provar a
extensão do dano, o nexo de causalidade e o montante da indenização. Trata-se de
prerrogativa voltada a implementar o principio da isonomia processual, ou seja, o
direito de igualdade do liquidante participar da liquidação (normalmente por artigos,
em que a produção e a alegação de fatos novos torna-se imprescindível) a fim de
construir o provimento jurisdicional que quantificará o valor do dano devido pelo
demandado.
236

A execução poderá ser promovida de forma individual ou coletiva, conforme o


conteúdo da sentença condenatória. Já o pagamento das indenizações ou o
levantamento do depósito será feito pessoalmente aos beneficiários. A legitimidade
democrática do provimento jurisdicional decorrente da liquidação e da execução de
sentença coletiva fica adstrita a igual oportunidade de participação do
liquidante/liquidado e do exeqüente/executado quanto à construção do mérito
processual.
Admite-se a liquidação e a execução pelos danos globalmente causados
quando, decorrido o prazo de um ano sem a habilitação de interessados, poderão os
demais legitimados (Ministério Público, entes da Administração Pública Direta e
Indireta, grupos, categorias, classes ou associações) promover a liquidação e a
execução coletiva da indenização devida pelos danos causados. Todas as provas e
meios de provas lícitos e legitimamente admitidos serão idôneos o suficientes para
auferir o valor da indenização de acordo com o dano globalmente causado,
ressaltando-se que, em caso de impossibilidade de produção de provas, o valor da
indenização será fixado por arbitramento em razão da extensão ou da complexidade
do dano.
A fim de quantificar monetariamente o valor do dano reconhecido na ação
coletiva, o julgador deverá se utilizar de critérios objetivos (não subjetivos e
metajurídicos) e demais provas produzidas na fase cognitiva e que orientaram a
decisão fundamentada de condenação da parte demandada pela indenização por
perdas e danos.
Em caso de concurso de crédito o valor da indenização tem preferência no
pagamento, tal como preceitua o caput do artigo 28 do Código Modelo. O legislador
não esclareceu em qual ordem de preferência o crédito coletivo será colocado, tendo
em vista a existência de preferência de créditos tributários e trabalhistas na
legislação pátria vigente. Pode-se afirmar preliminarmente que, em virtude do caráter
e da natureza coletiva do conteúdo da decisão judicial, vislumbra-se a prioridade do
crédito a fim de resguardar a isonomia processual, qual seja, o atendimento
inicialmente dos direitos de uma coletividade para, somente posteriormente,
vislumbrar-se a proteção dos direitos de cunho individual e dos interesses de
natureza essencialmente privado.
. Não obstante o Código-Modelo contribuir substancialmente para o debate
das principais questões que envolvem o processo coletivo no Brasil, é muito criticado
237

pelos estudiosos que afirmam não se tratar de um código de caráter inovador, tal
como preceitua Gregório Assagra de Almeida209.
A coisa julgada, a conexão e a litispendência são outros temas que possuem
relação direta com a problemática do mérito processual compreendido a partir do
sistema participativo. Em caso de conexão210 e de litispendência211 (a litispendência
no processo coletivo poderá ocorrer mesmo sendo diferente o legitimado ativo e a
causa de pedir) deverá ser assegurado amplamente a todos os interessados difusos
e coletivos (de todas as ações ora propostas e em andamento) o direito de participar
do amplo debate isonômico da pretensão, ou seja, não existe qualquer privilégio ou
prioridade do sujeito que inicialmente propôs a ação coletiva antes dos demais
interessados com relação ao debate e a construção participada do mérito.
O Código-Modelo é expresso ao afirmar que a ação coletiva não induz
litispendência para as ações individuais, ressaltando-se a obrigatoriedade de
suspensão da ação individual (no prazo de 30 dias a contar da ciência da ação
coletiva) para que os seus autores sejam beneficiados pelos efeitos da coisa julgada
coletiva. É dever do demandado na ação coletiva informar o juízo da ação individual

209 [...] O Código-Modelo analisado não traz essa inovação em relação ao sistema jurídico brasileiro,
que até serviu como base para sua elaboração. Para outros países, ele poderá realmente representar
uma inovação, mas para o Brasil não. Os pontos positivos apontados antes, que podem ser
facilmente extraídos da principiologia constitucional do direito processual coletivo, não são suficientes
para eliminar os defeitos estruturais e pontos pontuais negativos, não obstante seja louvável a
iniciativa. O problema estrutural vislumbrado decorre da tímida disposição-extensão do Código-
Modelo, composto somente de 41 artigos, os quais são insuficientes para o tratamento adequado
dessa área do Direito de tão grande impacto e importância social. Não que desejemos uma
codificação com milhares de dispositivos. Não, o que entendemos como razoável é que seja dado
tratamento adequado a todos os institutos relacionados com a projeção jurisdicional dos interesses ou
direitos massificados, o que não ocorre no Código-Modelo. Na forma da sistematização em questão,
o Código-Modelo não rompe com as amarras individualistas do direito processual civil, pois não
disciplina todos os institutos estruturais do direito processual e ainda prevê a aplicação subsidiária do
CPC e legislação especial pertinente sem dispor de regras interpretativas de controle e de limitação
dessa aplicabilidade. Assim, não há, por exemplo, no Código-Modelo, disposição sobre a jurisdição
coletiva, sobre a defesa no processo coletivo, sobre os pressupostos processuais, sobre a
intervenção de terceiros etc. (ALMEIDA, 2007, p. 91).
210
Se houver conexão entre as causas coletivas, ficará prevento o juízo que conheceu da primeira
ação, podendo ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar a reunião de todos os
processos, mesmo que nestes não atuem integralmente os mesmos sujeitos processuais
(GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 431).
211
A primeira ação coletiva induz litispendência para as demais ações coletivas que tenham por
objeto controvérsia sobre o mesmo bem jurídico, mesmo sendo diferente o legitimado ativo e a causa
de pedir. A ação coletiva não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa
julgada coletiva (art. 33) não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua
suspensão no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência efetiva da ação coletiva. Cabe ao
demandado informar o juízo da ação individual sobre a existência de ação coletiva com o mesmo
fundamento, sob pena de, não o fazendo, o autor individual beneficiar-se da coisa julgada coletiva
mesmo no caso da demanda individual ser rejeitada (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p.
431).
238

sobre a existência da ação coletiva com o mesmo fundamento; a sua inércia


oportunizará ao autor da ação individual o direito de se beneficiar dos efeitos da
coisa julgada coletiva, mesmo que a demanda individual seja rejeitada.
Verifica-se que os efeitos da coisa julgada coletiva não se estenderão para o
autor da ação individual somente se houver a formalização do pedido de suspensão
da ação individual, ressaltando-se que é dever do demandado na ação coletiva
formalizar a comunicação ao juízo da ação individual acerca da existência de ação
coletiva em andamento com o mesmo fundamento.
Depois da comunicação oficial do juízo da ação individual pelo demandado na
ação coletiva, o seu autor terá o prazo de 30 (trinta) dias para requerer a suspensão
da ação individual, ciente de que a inércia o impedirá de se beneficiar dos efeitos
jurídicos da coisa julgada coletiva. Caso o demandado na ação coletiva fique inerte e
não comunique o juízo da ação individual, o autora da ação individual terá o pleno
direito de se beneficiar dos efeitos da coisa julgada coletiva, tendo em vista que não
teve assegurada juridicamente a possibilidade de formalizar o pedido de suspensão
da ação.
Pela análise do projeto legislativo em questão a comunicação efetiva das
partes acerca do conteúdo dos atos processuais e do andamento do procedimento é
imprescindível para garantir a participação dos interessados quanto à construção
democrática do provimento jurisdicional. Isso está evidente quanto aos efeitos da
coisa julgada. A regra geral é que todos os interessados que tiveram a oportunidade
de participar da construção do mérito processual sofram os efeitos da coisa julgada
coletiva.
Aqueles interessados excluídos da construção participada do mérito
processual têm legitimidade de se oporem aos efeitos da coisa julgada coletiva,
especialmente em caso de improcedência do pedido inicial da ação coletiva por
insuficiência de provas, caso em que não teremos o efeito erga omnes por admitir
que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento e
valendo-se de nova prova212. A legitimidade do efeito erga omnes da coisa julgada

212
Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada erga omnes, exceto se
o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado
poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova. Mesmo na hipótese
de improcedência fundada nas provas produzidas, qualquer legitimado poderá intentar outra ação,
com idêntico fundamento, no prazo de (2) dois anos contados da descoberta de prova nova,
superveniente, que não poderia ser produzida no processo, desde que idônea, por si só, para mudar
seu resultado (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 431).
239

coletiva está diretamente relacionada com a problemática da participação dos


interessados difusos e coletivos na construção do provimento jurisdicional.
Os legisladores são enfáticos ao afirmarem o efeito erga omnes da coisa
julgada coletiva em caso de procedência do pedido envolvendo direitos individuais
homogêneos, podendo os interessados difusos e coletivos proceder a liquidação e a
execução da sentença. Em se tratando de interessados que tenham sido excluídos
da construção do provimento que reconheceu o direito pretendido na fase cognitiva,
não se pode negar a possibilidade de debate dos fundamentos da decisão na fase
de liquidação (especialmente a liquidação por artigos), considerando-se a
necessidade de legitimação do ato decisório quanto aos efeitos jurídicos estendidos
com relação todos os sujeitos interessados. Isso implicará na possibilidade de
revisitação dos fundamentos fático-jurídicos da pretensão deduzida já na fase de
liquidação, o que não exclui a propositura de nova ação a fim de discutir pretensão
conexa àquela anteriormente decidida.
A coisa julgada não afeta decisões judiciais proferidas em relações jurídicas
continuativas, uma vez que se sobrevier modificação do estado de fato ou de direito,
a parte interessada poderá pedir a revisão do que foi estatuído por sentença. O
mérito processual construído numa determinada ação coletiva não vincula processos
coletivos vindouros quando houver a modificação da pretensão deduzida em juízo
(causa de pedir). O advento de uma nova pretensão coletiva viabiliza a possibilidade
de propositura de uma nova ação coletiva, sem que a coisa julgada anterior venha a
ser afetada. Isso demonstra claramente a legitimidade dos interessados participarem
do debate amplo das questões de fato e de direito que integram a nova pretensão
coletiva e, por conseguinte, construírem de forma participada o mérito processual
coletivo.
O Código-Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de
Direito Processual certamente trouxe questões relevantes à sistematização do direito
processual coletivo, porém, não esgotou e, tampouco, avançou substancialmente no
estudo do tema ao se omitir especialmente sobre a criação de um procedimento que
viabilize a implementação do modelo democrático de processo coletivo. Dentre as
inúmeras questões omitidas no projeto podemos ressaltar: a) ausência de
regulamentação específica do exercício da jurisdição coletiva; b) faltou aprimorar os
240

mecanismos da participação popular dos sujeitos juridicamente interessados na


construção do provimento; c) houve omissão quanto ao procedimento das ações
coletivas que tem como objeto a discussão da constitucionalidade de lei, ou seja,
todo o Código-Modelo foi estruturado em cima de uma metodologia de processo
coletivo que se desenvolve casuisticamente; d) inexistem dispositivos específicos
regulamentando o procedimento de construção participada do mérito processual nas
ações coletivas; e) o legislador perdeu a oportunidade de estabelecer critérios
jurídico-legais que viabilizam a utilização das audiências publicas, sempre que for
necessária a instauração de um amplo debate de pretensões coletivas antes de ser
proferida definitivamente a decisão cujos efeitos jurídicos se estenderão de forma
erga omnes.

3.3.4 A ANÁLISE DO MÉRITO PROCESSUAL COLETIVO NO ANTEPROJETO DO CÓDIGO


BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS DA UERJ/UNESA E USP.

Neste tópico, será desenvolvido um estudo analítico do mérito processual em


dois Anteprojetos de Código Brasileiro de Processos Coletivos, quais sejam: a) o
primeiro foi coordenado pelo professor Aloísio Gonçalves de Castro Mendes e
elaborado no ano de 2005 em conjunto nos programas de pós-graduação stricto
sensu em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na
Universidade Estácio de Sá (UNESA); b) o segundo, atualmente em discussão no
Ministério da Justiça, foi coordenado por Ada Pelegrini Grinover e elaborado no
curso de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo, iniciado no ano de 2003 e finalizado em 2006.
Inicialmente é importante esclarecer que os anteprojetos em questão adotam,
em linhas gerais, a estrutura base e as orientações trazidas pelo anteprojeto original
(Antônio Gidi) e pelo Código-Modelo.
O debate do tema atinente ao processo coletivo no Estado Democrático de
Direito é relevante se verificarmos os desdobramentos de todo o estudo dos direitos
coletivos e difusos na Lei 7853 (que dispõe sobre a proteção das pessoas
portadores de deficiência), na Lei 7913 (traz a proteção dos investidores em
mercados mobiliários), na Lei 8069 (Estatuto da Criança e do Adolescente), na Lei
241

8429 (regulamenta a moralidade administrativa através da punição da improbidade


administrativa), na Lei 8884 (regula a ordem econômica e a economia popular) e na
Lei 10741 (Estatuto do Idoso).
O anteprojeto formulado na UERJ/UNESA encontra-se estruturado em cinco
partes: I- Das ações coletivas em geral; II- Das ações coletivas para a defesa de
direitos ou interesses individuais homogêneos; III- Da ação coletiva passiva; IV- Dos
procedimentos especiais; V- Disposições Finais. Já o anteprojeto formulado pela
USP foi estruturado em seis capítulos: I- Das demandas coletivas; II- Da ação
coletiva ativa (subseção I – Disposições gerais; Subseção II – Da ação coletiva para
a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos) ; III- Da ação coletiva
passiva originária; IV- Do Mandado de Segurança Coletivo; V- Das ações populares
(Seção I – Da ação popular constitucional; Seção II – Da ação de improbidade
administrativa); VI- Disposições Finais.

3.3.4.1 DO ANTEPROJETO COORDENADO POR ALUISIO GONÇALVES DE CASTRO MENDES

O anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, produto de uma


parceria UERJ/UNESA213, representa mais uma tentativa de uniformização da
legislação processual coletiva brasileira a fim de garantir o aprimoramento do acesso
ao Judiciário, a melhoria no exercício da função jurisdicional e a maior efetividade
dos processos coletivos.
Certamente tal proposta legislativa avança no momento em que aprimora o
debate do tema ao admitir a pessoa natural como parte legítima para a defesa dos
direitos difusos, no momento em que estabelece que a competência territorial do
órgão julgador não representará limitação para a coisa julgada erga omnes e
também quando procura regulamentar a banalização da tramitação concomitantes
de processos individuais e coletivos decorrentes de uma mesma circunstância fática
ou de uma mesma relação jurídica base (o ajuizamento de uma ação coletiva

213
A idéia inicial, voltada para a apresentação de sugestões e propostas para a melhoria do
anteprojeto formulado em São Paulo, acabou evoluindo para uma reestruturação mais ampla do texto
original, com o intuito de se oferecer uma proposta coerente, clara e comprometida com o
fortalecimento dos processos coletivos, culminando com a elaboração de um novo Anteprojeto de
Código Brasileiro de Processos Coletivos, que ora é trazido a lume e oferecido ao Instituto Brasileiro
de Direito Processual, aos meios acadêmicos, aos estudiosos e operadores do Direito e à sociedade,
como proposta para ser cotejada e discutida (MENDES, 2006, p. 281).
242

acarretará a suspensão, por trinta dias, de processos individuais que versem sobre o
mesmo direito em questão; dentro do prazo de suspensão, os autores individuais
poderão requerer a continuação do processo individual, sob pena de extinção sem
julgamento do mérito). Os interessados difusos e coletivos que não tiverem ações
individuais em andamento e que não quiserem sofrer os efeitos da coisa julgada
coletiva poderão optar entre o requerimento de exclusão ou o ajuizamento de uma
ação individual no prazo assinalado, hipótese em que equivalerá à manifestação
expressa de exclusão.
Em busca da maior efetividade214 e celeridade processual a sentença
proferida no processo coletivo, sempre que possível, deverá ser líquida, ou seja, o
juiz deverá fixar na sentença do processo coletivo o valor da indenização individual
devida a cada membro do grupo, categoria ou classe. Trata-se de uma tentativa de
ruptura com a sistemática da condenação genérica no processo coletivo e as
subseqüentes liquidações e execuções individuais que acabam sendo bastante
complexas e demoradas. Apenas quando não for possível é que o juiz proferirá uma
sentença ilíquida.
Novamente temos a previsão da ação coletiva passiva, assim como ocorre no
Código-Modelo. Trata-se de ação em que no pólo passivo encontramos uma
coletividade ou um número indeterminado de interessados difusos ou coletivos
supostamente responsáveis pela eventual violação de direitos. Esclarece-se,
preliminarmente, que os efeitos jurídicos da coisa julgada decorrente das ações
coletivas passivas (assim como nas demais) somente atingirão os membros do
grupo, da categoria ou da classe a quem efetivamente foi assegurado o direito de
participação no debate e na construção do mérito processual da ação coletiva em
questão.
Na análise do artigo 1º encontramos expressamente evidenciada a intenção
de o legislador garantir a maior efetividade possível às tutelas processuais,
autorizando expressamente a possibilidade de utilização de todas as espécies de
ações e de provimentos coletivos capazes de propiciar sua adequada e efetiva
tutela. Novamente verifica-se o descuido do legislador quanto à distinção teórica

214
Na esperança que o presente Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos possa
representar uma efetiva contribuição para o aprimoramento do acesso à Justiça, para a melhoria na
prestação jurisdicional e para a efetividade do processo, leva-se à lume a proposta formulada,
submetendo-a aos estudiosos do assunto, aos profissionais do Direito e a toda a sociedade, para que
possa ser amplamente analisada e debatida (MENDES, 2006, p. 285)
243

dos conceitos de “direito e interesse”, haja vista que temos a sua utilização como
palavras sinônimas ao designar os “interesses ou direitos difusos”, os “interesses ou
direitos coletivos” e os “interesses ou direitos individuais homogêneos”.
O parágrafo único do artigo 2º merece uma reflexão especial ao estabelecer:
“Não se admitirá ação coletiva que tenha como pedido a declaração de
inconstitucionalidade, mas esta poderá ser objeto de questão prejudicial, pela via do
controle difuso”. Inicialmente é importante esclarecer que são considerados espécies
de processos coletivos, em razão da natureza coletiva da pretensão, as ações direta
de inconstitucionalidade, declaratória de constitucionalidade e a argüição de
descumprimento de preceito fundamental. Por isso, a primeira parte do parágrafo
único do artigo 2º deve ser cuidadosamente interpretada, até porque, o próprio
objeto das ações ora mencionadas quase sempre é a discussão da
constitucionalidade em tese ou em abstrato de dispositivos legais que integram a
legislação infraconstitucional no Brasil.
A discussão da constitucionalidade de uma lei em sede de controle difuso ou
concentrado, por si só traz no seu âmago o caráter coletivo da pretensão, a ensejar
o direito de todos os interessados e sujeitos afetados pelos efeitos do provimento
poder participar da construção do mérito processual. Desvincular a ação direta de
inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade da natureza
coletiva da sua pretensão é descaracterizar todo o sistema jurídico do processo
coletivo a fim de reduzi-lo apenas para a noção casuística e concreta.
A prioridade no processamento e no julgamento215 do mérito processual das
ações coletivas é uma opção legislativa que condiz com a ordem constitucional
democrática brasileira, cujo foco de análise central é a proteção jurídica dos bens e
dos direitos pertencentes a toda uma coletividade de pessoas que anseiam pela
concretização dos Direitos Fundamentais previamente previstos no plano
constituinte.
A possibilidade de conexão entre ações coletivas é resolvida pelo critério da
prevenção, com o intuito de uniformizar os critérios e os fundamentos fático-jurídicos
do debate da pretensão deduzida num mesmo juízo competente para a análise do
mérito para, assim, alcançar a segurança jurídica no que tange à expectativa de
evitar decisões judiciais díspares e contraditórias para um mesmo caso concreto.

Art. 4º. Prioridade de processamento – o juiz dará prioridade ao processamento da ação coletiva
215

(GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 438).


244

O artigo 7º traz o instituto da continência com a finalidade de ampliar a


matéria de mérito a ser debatida processualmente, uma vez que, sendo o objeto da
ação posteriormente proposta mais abrangente, o processo ulterior prosseguirá tão
somente para a apreciação do pedido não contido na primeira demanda, devendo
haver a reunião dos processos perante o juiz prevento em caso de conexão.
A representatividade adequada, assim como a relevância social da tutela
coletiva, caracterizada pela natureza do bem jurídico, pelas características da lesão
ou pelo elevado número de pessoas atingidas são requisitos formais e técnicos que
devem ser observados previamente como pressuposto para o adentramento ao
debate das questões meritórias que permeiam o cerne da demanda coletiva.
Houve maior amplitude quanto ao rol dos legitimados ativos à propositura das
ações coletivas, superando-se a clássica e absoluta concepção representativa que
impossibilitava o cidadão de individualmente acionar o Judiciário com o propósito de
buscar a proteção jurídica de um bem indivisível de natureza coletiva ou difusa. A
possibilidade de qualquer pessoa poder propor uma ação coletiva para a defesa de
direitos coletivos e difusos representa um significativo avanço no debate cientifico do
tema, porém, a adoção efetiva do sistema participativo no ordenamento jurídico
brasileiro ocorrerá somente quando, além de poder propor a ação coletiva, a todos
os interessados coletivos e difusos forem resguardado o direito de debate amplo e
isonômico de todas as questões de fato e de direito que integram e compõe a
pretensão coletiva levada ao Judiciário. A construção participada do mérito
processual e a possibilidade do interessado influir na decisão final é corolário do
sistema participativo que é parâmetro regente do modelo democrático-
constitucionalizante de processo coletivo.
Mesmo diante da tentativa de adotar o sistema participativo, restam evidente
nas proposições legislativas inúmeros resquícios do autoritário sistema
representativo como norte para o entendimento do processo coletivo. Manter a
legitimidade de instauração e a presidência do Inquérito Civil Público exclusivamente
nas mãos do Ministério Público, sem permitir a ingerência e a participação dos
interessados difusos, é reafirmar o modelo clássico de processo coletivo. Da mesma
forma pode-se dizer com relação à legitimidade do Ministério Público propor uma
ação coletiva, quando requerido pelo juiz que tomou conhecimento da existência de
diversos processos individuais correndo contra um mesmo demandado com idêntico
fundamento quanto à pretensão coletiva.
245

A crítica cientifica referente à legitimidade exclusiva da instituição do


Ministério Público quanto à prática de atos referentes a determinadas questões
inerentes ao processo coletivo (tais como a realização do termo de ajustamento de
conduta e a condução do Inquérito Civil Público) justifica-se no fato da Constituição
brasileira de 1988 ter adotado o sistema participativo (não o sistema representativo)
como fundamento da democratização e da constitucionalização do processo
coletivo. O paradigma para o debate do tema mérito participado no processo coletivo
brasileiro é o modelo constitucional-democrático de processo, o que implica em
assegurar a todos os interessados na pretensão a possibilidade de discussão, no
âmbito do espaço processualizado pelos princípios institutivos (contraditório,
isonomia, ampla defesa, devido processo legal e direito ao advogado).
A postulação de uma pretensão por meio de uma ação coletiva é gratuita, ou
seja, na proposta legislativa em questão temos a dispensa do adiantamento das
custas e demais despesas processuais216. Tal medida visa assegurar maior
amplitude no acesso ao Judiciário, ressaltando-se que a utilização indevida da ação
coletiva e a comprovação (não presunção) da má fé ensejarão ao autor da ação
todos os ônus sucumbenciais (trata-se de hipótese de responsabilidade solidária de
todas as pessoas que comprovadamente tenham se utilizado maliciosamente da
ação coletiva). A fiscalização da legitimidade e da utilização adequada da ação
coletiva é uma prerrogativa assegurada a qualquer sujeito que demonstre interesse
jurídico na pretensão coletiva deduzida.
O juiz permitirá, até a decisão saneadora, a ampliação ou adaptação do
objeto do processo coletivo, desde que realizada de boa-fé e não represente
prejuízo injustificado à parte contrária, à celeridade e ao bom andamento do
processo e o contraditório seja preservado. O disposto no artigo 15 do anteprojeto
demonstra que nas ações coletivas o objeto da demanda não é definido com a

216
Art. 13. Custas e honorários – Os autores da ação coletiva não adiantarão custas, emolumentos,
honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem serão condenados, salvo comprovada má-fé,
em honorários de advogados, custas e despesas processuais. §1º - Nas ações coletivas de que trata
este código, a sentença condenará o demandado, se vencido, nas custas, emolumentos, honorários
periciais e quaisquer outras despesas, bem como em honorários de advogados. §2º. No cálculo dos
honorários, o juiz levará em consideração a vantagem para o grupo, categoria ou classe, a
quantidade e qualidade do trabalho desenvolvido pelo advogado e a complexidade da causa. §3º. Se
o legitimado for pessoa física, sindicato ou associação, o juiz poderá fixar gratificação financeira
quando sua atuação tiver sido relevante na condução e êxito da ação coletiva. §4º. O litigante de má
fé e os responsáveis pelos respectivos atos serão solidariamente condenados ao pagamento das
despesas processuais, em honorários advocatícios e até o décuplo das custas, sem prejuízo da
responsabilidade por perdas e danos (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 440).
246

propositura da ação e a apresentação de defesa pela parte demandada, tal como


ocorre classicamente com o processo individual. No processo coletivo o julgador
deverá permitir até a fase saneadora que as partes tragam elementos e questões de
fato e de direito que integrarão a matéria de mérito a ser debatida discursivamente
no âmbito processual.
A construção do mérito processual nas ações coletivas efetivamente ocorrerá
apenas se for oportunizado às partes interessadas trazerem para o processo, até a
fase do saneamento, toda e qualquer questão conexa e vinculada à pretensão
inicialmente deduzida. A regulamentação procedimental e processual da construção
participada do mérito processual é algo necessário para evitar que os processos
coletivos tornem-se uma realidade interminável. A delimitação temporal e jurídica
das ações coletivas pressupõe a condução do procedimento pela sistemática das
preclusões, tal como ocorre no processo civil. A possibilidade de alteração do objeto
da ação coletiva a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição subverteria o
procedimento e certamente comprometeria a resolução e o julgamento célere e
efetivo da pretensão coletiva.
A observância do contraditório nas medidas antecipatórias é conditio sine qua
non da garantia de participação dos interessados difusos e coletivos na construção
de qualquer provimento jurisdicional relacionado com as tutelas processuais difusas
e coletivas. O mesmo ocorre na audiência preliminar, que em virtude
indisponibilidade do bem jurídico coletivo, a realização e a homologação judicial de
acordo por meio da conciliação fica condicionada à efetiva oportunidade dos
interessados construírem participadamente o provimento jurisdicional. É por isso que
se torna necessário dar publicidade a todos os interessados acerca da realização de
eventual conciliação envolvendo a pretensão coletiva, para que todos tenham a
oportunidade de opinar e discutir os fundamentos e a viabilidade ou não de
resolução consensual do mérito da ação coletiva (a audiência pública é uma medida
bastante adequada para tal finalidade).
A não realização de acordo na audiência preliminar acarretará o
prosseguimento do feito e, por isso, o julgador deverá decidir, de forma juridicamente
fundamentada, se a ação tem condições de prosseguir na forma coletiva, se haverá
ou não a necessidade de separar os pedidos em ações coletivas distintas, fixará os
pontos controvertidos e esclarecerá os encargos das partes quanto à distribuição do
ônus da prova.
247

A distribuição dinâmica do ônus da prova também foi uma opção no


respectivo projeto de lei, até porque, o ônus da prova incumbirá à parte que detiver
conhecimentos técnicos ou informações especificas sobre os fatos alegados em
juízo. Mesmo tendo sido a prova produzida por uma pessoa, por uma instituição ou
por um grupo de pessoas específico não podemos excluir a possibilidade dos
demais interessados debaterem e analisarem a coerência, a relevância e a utilidade
das provas produzidas no contexto da ação coletiva em andamento. Negar a
possibilidade do debate das provas produzidas é deslegitimar democraticamente a
construção participada do mérito processual.
Nos ditames trazidos pelo principio da congruência217, motivação ou a
fundamentação jurídica de todas as decisões judiciais deverá ser reflexo da matéria
fática e das questões jurídicas suscitadas pelas partes no âmbito processual, ou
seja, a efetiva observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa como
parâmetros jurídicos e lógicos à realização do mérito participado no modelo
constitucional de processo coletivo pressupõe o dever do julgador se manifestar
fundamentadamente sobre todas as alegações, as teses e os temas trazidos pelas
partes no processo coletivo. A construção participada do mérito no processo coletivo
não se compatibiliza com a omissão do julgador em apreciar as teses e os
fundamentos trazidos pelos interessados. Isso não significa dizer que o juiz fica
obrigado a aderir a alguma tese ou argumento fático-jurídico trazido pelos
interessados no processo; caso o julgador venha se posicionar de forma diversa dos
interessados tem o dever legal de se manifestar de forma fundamentada sobre todas
as alegações das partes interessadas. André Cordeiro Leal é assertivo ao discorrer
sobre a relação existente entre o principio do contraditório e o principio da
fundamentação das decisões judiciais

217
A leitura que devemos fazer do principio da congruência no processo coletivo decorre do dever
legal do julgador se manifestar sobre todas as questões fáticas e jurídicas trazidas pelos interessados
difusos e coletivos até a fase saneadora, ou seja, é através do principio da congruência que é
possível identificar o objeto que obrigatoriamente deverá ser analisado pelo juiz quando do
julgamento e da construção participada do mérito processual. Ronaldo Bretas de Carvalho Dias
disserta de maneira bastante clara e objetiva acerca do principio da congruência em sua obra
intitulada “Processo Constitucional”, conforme a seguir: “O principio da fundamentação das decisões
jurisdicionais ainda se perfaz pelo principio da congruência (ou principio da adstrição do juiz ao
pedido), este significando correspondência entre o que foi pedido pelas partes e o que foi decidido, ou
seja, deve existir correlação entre o objeto da ação ajuizada, que originou o processo, a pretensão,
revelada no pedido formulado pela petição inicial, e o objeto da decisão jurisdicional nele proferida. O
principio da congruência decorre do duplo dever do órgão julgador de se pronunciar sobre tudo o que
as partes pediram e somente sobre o que foi por elas pedido” (DIAS, 2010, p. 134-135).
248

[...] mais do que garantia de participação das partes em simétrica paridade,


portanto, o contraditório deve ser efetivamente entrelaçado com o principio
[...] da fundamentação das decisões, de forma a gerar bases
argumentativas acerca dos fatos e do direito debatido, para a motivação das
decisões [...] decisão que desconsidere, ao seu embasamento, os
argumentos produzidos pelas partes no seu iter procedimental será
inconstitucional e, a rigor, não será sequer pronunciamento jurisdicional,
tendo em vista que lhe faltaria a necessária legitimidade (2002, p. 105).

A fundamentação jurídico-legal-constitucional do provimento jurisdicional a


partir do objeto da ação coletiva é considerada o substrato para o entendimento e a
visualização da construção participada do mérito no processo coletivo democrático.
Isso tudo causa reflexos diretos no entendimento do instituto da coisa julgada, haja
vista que os seus efeitos jurídicos erga omnes somente se estenderão sobre aquelas
pessoas que comprovadamente participaram da construção do provimento. Aquelas
pessoas excluídas do debate do mérito processual poderão sofrer os efeitos da
coisa julgada coletiva apenas se, pela análise do conteúdo da decisão, for possível
visualizar o reconhecimento de direitos e a proteção de bens jurídicos de natureza
indivisível. Não são aptas a sofrer os efeitos da coisa julgada coletiva aquelas
pessoas que não tiveram a oportunidade de participar discursivamente do debate e
da construção do mérito processual em que o pedido inicial foi julgado
improcedente.
Além disso, verifica-se pela análise sistemática do anteprojeto que, em caso
de pretensões envolvendo direitos individuais homogêneos, prevalece a regra
através da qual todos os interessados juridicamente na pretensão deduzida sofrerão
os efeitos da coisa julgada coletiva, salvo aqueles que expressamente tiverem se
manifestado no prazo legal quanto ao pedido de exclusão ou aqueles que
propuseram ou não desistiram de ações individuais anteriormente propostas à ação
coletiva218.
Os limites territoriais da coisa julgada também é uma questão relevante para
o debate do mérito participado no modelo de processo coletivo adotado pelo Estado
Democrático de Direito. Estabelece o §4º do artigo 22: “a competência territorial do
órgão julgador não representará limitação para a coisa julgada erga omnes”
(GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 442). Tal proposição legislativa foi

218
§3º, art. 22 – Na hipótese dos interesses ou direitos individuais homogêneos, apenas não estarão
vinculados ao pronunciamento coletivo os titulares de interesses ou direitos que tiverem exercido
tempestiva e regularmente o direito de ação ou exclusão (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007,
p. 442).
249

criada com o propósito de permitir os efeitos jurídicos do provimento jurisdicional


coletivo para todos os sujeitos afetados pelos fundamentos fático-jurídicos que
integram o debate do mérito processual, ou seja, limitar territorialmente os efeitos de
uma decisão judicial proferida em processo coletivo que reconhece direito ou
protege juridicamente bem de natureza indivisível, é legitimar tratamento jurídico
diferenciado aos diversos interessados difusos e coletivos em desconformidade com
o principio da isonomia processual.
A previsão das tutelas específicas determinando o cumprimento de
obrigações de fazer ou não fazer e a entrega de coisas certas ou incertas materializa
legislativamente a intenção de implementação do principio da efetividade
processual, no sentido de buscar um resultado prático do processo a fim de atender
amplamente os direitos coletivos e difusos pertencentes a toda uma coletividade. Foi
por isso que se instituiu a possibilidade de fixação das astreintes (multa diária), com
o propósito de potencializar o cumprimento de uma tutela específica, conferindo-se
ao juiz ampla autonomia para modificar o valor ou a periodicidade da multa, bem
como determinar a busca e a apreensão, a remoção de coisas e pessoas, o
desfazimento de obras, o impedimento de atividade nociva, a requisição de força
policial e todos os demais meios legítimos e suficientes a garantir o resultado prático
da tutela processual específica.
A possibilidade de conversão da obrigação de fazer ou não fazer em perdas e
danos não é uma prerrogativa exclusiva do autor da ação. Torna-se necessário
ampliar o debate processual e envolver todos os interessados na pretensão coletiva
deduzida em juízo a fim de legitimar a escolha de converter ou não o cumprimento
da obrigação de fazer ou não fazer (e demais tutelas processuais específicas) em
perdas e danos219. Admitir que o autor da ação tenha legitimidade de escolha no que
tange à conversão da tutela especifica em perdas e danos é reconhecer
juridicamente a deslegitimidade democrática da construção do mérito no processo
coletivo.
A criação do Fundo220 dos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais
Homogêneos, de natureza federal e estadual, justifica-se pela necessidade de

219
§4º, art. 23 – A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas
optar o autor ou se impossível a tutela especifica ou a obtenção do resultado prático correspondente
((GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 442).
220
Art. 29. Fundo dos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos – O fundo será
administrado por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais, de que participarão
250

gestão dos recursos financeiros advindos do pagamento da reparação dos danos


fixados em sentença judicial, assim como as multas judiciais. Importante esclarecer
que a gestão do fundo deve ser participativa e democrática, ou seja, o Conselho
Gestor do Fundo tem que agir com clareza, impessoalidade e transparência na
proteção dos direitos coletivos e difusos. Todo interessado difuso e coletivo tem
legitimidade para controlar os atos de gestão do Fundo.
Mesmo na fase de liquidação e de execução da sentença coletiva torna-se
relevante o debate do processo coletivo no viés do sistema participativo, haja vista
que a legitimidade para o pedido de liquidação e de execução pertence a qualquer
pessoa física ou jurídica que demonstre interesse jurídico nos efeitos do provimento
jurisdicional. O controle de todo o procedimento realizado na fase de liquidação e de
execução poderá ser realizado a qualquer tempo pelos legitimados.
A criação e a institucionalização de uma política nacional de regulamentação
e de controle dos processos coletivos no Brasil também foi uma preocupação dos
autores do anteprojeto, com a finalidade de permitir que todos os órgãos do poder
Judiciário e todos os interessados tenham conhecimento da existência das ações
coletivas propostas e em andamento no Brasil, facilitando a sua publicidade e o
exercício do direito de exclusão221. Trata-se de medida realizada no sentido de
democratizar e de ampliar ainda mais a participação no processo coletivo. Sabe-se
que a efetividade de tal política pública não depende apenas da estrutura oferecida

necessariamente membros do Ministério Público, juízes e representantes da comunidade ,sendo seus


recursos destinados à reconstituição dos bens lesados ou, não sendo possível, à realização de
atividades tendentes a minimizar a lesão ou a evitar que se repita, dentre outras que beneficiem o
bem jurídico prejudicado. §1º. Além da indenização oriunda da sentença condenatória, nos termos do
disposto no caput dói art. 25, constituem também receitas do Fundo o produto da arrecadação de
multas judiciais e da indenização devida quando não for possível o cumprimento da obrigação
pactuada em termo de ajustamento de conduta. §2º. O representante legal do Fundo, considerado
servidor público para efeitos legais, responderá por sua atuação nas esferas administrativa, penal e
civil. §3º. O Fundo será notificado da propositura de toda ação coletiva e da decisão final do
processo. § 4º. O Fundo manterá e divulgará registros que especifiquem a origem e a destinação dos
recursos e indicará a variedade dos bens jurídicos a serem tutelados e seu âmbito regional. § 5º.
Semestralmente, o Fundo dará publicidade as suas demonstrações financeiras e entidades
desenvolvidas (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 443).
221
Art. 28. Cadastro nacional de processos coletivos – O Conselho Nacional de Justiça organizará e
manterá o cadastro nacional de processos coletivos, com a finalidade de permitir que todos os órgãos
do Poder Judiciário e todos os interessados tenham conhecimento da existência das ações coletivas,
facilitando a sua publicidade e o exercício do direito de exclusão. §1º. Os órgãos judiciários aos quais
forem distribuídas ações coletivas remeterão, no prazo de dez dias, copia da petição inicial ao
cadastro nacional de processos coletivos. § 2º. O Conselho Nacional de Justiça editará regulamento
dispondo sobre o funcionamento do cadastro nacional de processos coletivos, em especial a forma
de comunicação pelos juízos quanto à existência das ações coletivas e aos atos processuais mais
relevantes, como a concessão de antecipação de tutela, a sentença e o trânsito em julgado;
disciplinará, ainda, sobre os meios adequados a viabilizar o acesso aos dados e o acompanhamento
daquelas por qualquer interessado (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 443).
251

pelo Estado mas, acima de tudo, de uma mudança de mentalidade do cidadão


brasileiro, para que o mesmo consiga perceber a relevância e a importância do seu
envolvimento direto no debate de todas as pretensões coletivas e difusas levadas ao
Judiciário.
A coletivização das demandas judiciais é um fenômeno que deve vir
acompanhado da revisitação do paradigma clássico do processo coletivo, com o
propósito de instituir definitivamente o sistema participativo e garantir o amplo
controle e a ampla participação de todos os interessados difusos e coletivos222.
No artigo 2º, inciso III do anteprojeto temos a definição dos direitos individuais
homogêneos como sendo aqueles direitos subjetivos decorrentes de uma origem
comum, ou seja, trata-se de direitos que podem ser auferidos individualmente no
contexto de uma coletividade e em virtude da sua origem comum. A ação coletiva,
cujo objeto é um direito individual homogêneo, poderá ser proposta por qualquer
sujeito individualmente titular da pretensão e deverá assegurar a intervenção e a
participação de todos os legitimados na construção do mérito processual. Mesmo
que o sujeito não tenha participado diretamente do debate processual da pretensão,
será afetado pelos efeitos jurídicos da coisa julgada coletiva que reconhece direitos
e protege juridicamente bem de natureza coletiva (direito individual homogêneo,
para o presente caso). A coisa julgada coletiva constituída por meio de uma decisão
que julgou improcedente os pedidos não produzirá efeitos jurídico-legais com
relação àqueles sujeitos que não tiveram a oportunidade de participar efetivamente
da construção do mérito processual da demanda coletiva.

222
O acesso à Justiça desses conflitos de massa vem levando à releitura do trinômio jurisdição-ação-
processo: a jurisdição, antes praticamente confinada à jurisdição singular (conflitos intersubjetivos,
tipo Tício versus Caio), teve que ir se adaptando às novas exigências postas pelas ações de tipo
coletivo, onde a inafastável expansão da coisa julgada faz com que o comando judicial ganhe em
eficácia social, aumentando o grau de responsabilidade do julgador e levando o Judiciário a
participar, numa certa medida, da co-gestão dos interesses gerais (como ocorre, por exemplo, na
coerção à publicidade enganosa); o processo não mais fica limitado a uma relação jurídica entre os
próprios e os diretos contraditores, passando a operar como um veiculo idôneo a conduzir ao
Judiciário conflitos coletivos de largo espectro, como se verifica, por exemplo, nas demandas que
contrapõem a classe de ex-fumantes e a indústria fumerígena; enfim, a ação deixou se ser uma
singela representacao de demandas intersubjetivas, incompossíveis pelas vias suasórias, tendo que ir
se adaptando às novas e amplas controvérsias, agora formuladas não mais por um determinado
“titular” de um direito subjetivo, mas por uma sorte de condutor processual especialmente
credenciado: o ideological plaintiff do processo norte-americano, as associations agréees, na França,
o ente esponenziale, dos italianos, ou o representante adequado, de nossas ações de finalidade
coletiva (art. 1º da Lei 4717/65; art. 5º da Lei 7347/85; art. 82 da Lei 8078/90), ocorrências que Nery e
Nery, invocando a fórmula alemã, sintetizam numa “legitimação autônoma para a condução do
processo” (grifo nosso) (MANCUSO, 2006, p. 225). (grifo nosso)
252

O direito de exclusão numa demanda coletiva, que tem como objeto um


direito individual homogêneo, deverá ser requerido de forma expressa, uma vez que,
via de regra, não poderá ser presumido. A oportunidade de exercício do direito de
exclusão somente será possível a partir do momento em que for publicizado o objeto
da ação coletiva por meio de instrumentos lícitos, idôneos e efetivos de comunicação
dos interessados acerca da propositura de uma determinada ação coletiva 223.
Verifica-se novamente a preocupação dos autores do anteprojeto com relação à
ampla publicidade e divulgação do objeto da ação coletiva, a fim de estender, ao
máximo, a possibilidade de participação dos interessados na construção do
provimento.
Quem não se manifesta expressamente no sentido de requerer a exclusão de
uma ação coletiva, certamente será atingido pelos efeitos jurídico-legais do
provimento que julgou procedente o pedido. O pedido de exclusão poderá ser
presumido apenas em caso de propositura ou prosseguimento de uma ação
individual que verse sobre direito que esteja sendo objeto de ação coletiva. O
ajuizamento da ação coletiva acarretará a suspensão, por trinta dias, das ações
individuais que tenham o mesmo objeto, devendo os seus respectivos autores
manifestarem-se expressamente o interesse em permanecer ou não com a ação
individual; ressalta-se que, em caso de omissão do autor da ação individual, teremos
a extinção do processo sem julgamento do mérito. O interessado que, quando da
comunicação da propositura da ação coletiva, não tiver proposto ação individual,
para que não seja afetado pelos efeitos jurídicos de uma decisão judicial procedente,
deverá expressamente requerer a sua exclusão da ação coletiva ou, querendo,
ajuizar ação individual no prazo assinalado224.

223
Art. 32. Citação e notificações – Estando em termos a petição inicial, o juiz ordenará a citação do
réu, a publicação de edital no órgão oficial e a comunicação dos interessados, titulares dos direitos ou
interesses individuais homogêneos objeto da ação coletiva, para que possam exercer no prazo fixado
seu direito de exclusão em relação ao processo coletivo, sem prejuízo da ampla divulgação pelos
meios de comunicação social. § 1º. Não sendo fixado pelo juiz o prazo acima mencionado, o direito
de exclusão poderá ser exercido até a publicação da sentença no processo coletivo. § 2º. A
comunicação prevista no caput poderá ser feita pelo correio, por oficial de justiça, por edital ou por
inserção em outro meio de comunicação ou informação, como contracheque, conta, fatura, extrato
bancário e outros, sem obrigatoriedade de identificação nominal dos destinatários, que poderão ser
caracterizados enquanto titulares dos mencionados interesses, fazendo-se referência à ação e às
partes, bem como ao pedido e à causa de pedir, observado o critério da modicidade do custo
(GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 443-444).
224
Art. 33. Relação entre ação coletiva e ações individuais – O ajuizamento ou prosseguimento da
ação individual versando sobre direito ou interesse que esteja sendo objeto de ação coletiva
pressupõe a exclusão tempestiva e regular desta. § 1º. O ajuizamento da ação coletiva ensejará a
suspensão, por trinta dias, a contar da ciência efetiva desta, dos processos individuais em tramitação
253

Observa-se que a aplicabilidade de todas as proposições legislativas ora


analisadas condiciona-se a ampla publicidade a todos os interessados do objeto da
ação coletiva proposta, para que seja assegurada a efetiva participação de todos no
processo coletivo. Negar ou limitar a participação é suprimir ou comprometer
substancialmente a legitimidade democrática do processo coletivo democrático.
Nas pretensões envolvendo os direitos individuais homogêneos verifica-se a
expressa preocupação dos autores do anteprojeto quanto à liquidez da sentença
proferida pelo juiz. A sentença, sempre que possível, deverá ser líquida, ressaltando-
se que em caso de impossibilidade do julgador proferir uma decisão na qual
expresse individualmente a porção monetária do direito pertencente a cada
interessado, na liquidação de sentença (especialmente na liquidação por artigos)
deverá ser assegurado a cada titular ou interessado o direito de se imiscuir
diretamente no debate dos critérios fáticos e jurídicos de construção participada do
mérito e de definição do quantum indenizatório devido pela parte condenada a titulo
de reparação por perdas e danos aos liquidantes.
A necessidade de alegar e provar fatos novos no processo de liquidação de
sentença por artigos denota claramente a existência do debate de matéria de mérito
e, por conseguinte, da relevância de oportunizar condições reais de construção
participada do mérito processual.
Importante contribuição foi trazida pelos autores do anteprojeto ao
manifestarem interesse em regulamentar mais especificamente o processo coletivo
ao prever expressamente o instituto do mandado de segurança coletivo, o mandado
de injunção coletivo, a ação popular e a ação de improbidade administrativa, porém,
foi omisso com relação à ação direta de inconstitucionalidade, à ação declaratória de
constitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental.

que versem sobre direito ou interesse que esteja sendo objeto no processo coletivo. § 2º. Dentro do
prazo previsto no parágrafo anterior, os autores das ações individuais poderão requerer, nos autos do
processo individual, sob pena de extinção sem julgamento do mérito, que os efeitos das decisões
proferidas na ação coletiva não lhes sejam aplicáveis, optando, assim, pelo prosseguimento do
processo individual. § 3º. Os interessados que, quando da comunicação, não possuírem ação
individual ajuizada e não desejarem ser alcançados pelos efeitos das decisões proferidas na ação
coletiva poderão optar entre o requerimento de exclusão ou o ajuizamento da ação individual no
prazo assinalado, hipótese que equivalerá à manifestação expressa de exclusão. § 4º. Não tendo o
juiz deliberado acerca da forma de exclusão, esta correrá mediante simples manifestação dirigida ao
juiz do respectivo processo coletivo ou ao órgão incumbido de realizar a nível nacional o registro das
ações coletivas, que poderão se utilizar eventualmente de sistema integrado de protocolo
(GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 444).
254

Não se pode reduzir o estudo do processo coletivo a questões casuísticas e


fáticas, até porque, se a proposta de todos os anteprojetos de codificação do
processo coletivo é a maior amplitude possível do objeto das ações coletivas, negar
a natureza coletiva da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de
constitucionalidade e da argüição de descumprimento de preceito fundamental é,
certamente, filiar-se a uma concepção reducionista do processo coletivo, algo
incompatível com o Estado Democrático de Direito. Por isso, afirma-se que todos os
anteprojetos elaborados e discutidos até então foram omissos quanto ao tratamento
jurídico-legislativo do cognominado processo coletivo objetivo (trata-se de relações
processual que tem como objeto o debate de pretensões coletivas de natureza
abstrata, tal como o debate da constitucionalidade de uma norma
infraconstitucional). Todos foram enfáticos quanto à regulamentação do processo
coletivo que se desenvolve a partir de um caso prático de relevância coletiva e
difusa, ignorando o debate e a sistematização jurídica do processo, do
procedimento, da jurisdição e da ação coletiva quando a tutela coletiva não tiver
relação direta (nem indireta) com um caso concreto específico.
A legitimidade da construção participada do mérito processual se verifica em
todas as ações judiciais e extrajudiciais através das quais temos uma pretensão
coletiva. O pressuposto lógico para a instauração do amplo e do legitimo discurso
processual democrático a todos os interessados difusos está na coletivização das
demandas. É por isso que, o debate de um direito líquido e certo, e de natureza
coletiva, tem que ser amplo quando se tratar de mandado de segurança coletivo, por
exemplo.
Não basta apenas garantir no plano abstrato da legislação que todos têm
direito de participação na construção do provimento estatal. É necessário
procedimentalizar como ocorrerá processualmente essa participação isonômica de
todos os interessados. A grande falha da respectiva proposta legislativa foi não
sistematizar o procedimento que operacionalizará na prática a possibilidade de todos
os interessados se manifestarem no processo coletivo de forma organizada, para
que o julgador tenha condições de delimitar o objeto da demanda e, assim, julgar o
mérito da pretensão de forma rigorosamente compatível com o principio da
efetividade processual.
255

Especificamente quanto ao mandado de injunção os autores do anteprojeto


foram pontuais quanto à delimitação do objeto225 a partir do conteúdo estabelecido
no texto constitucional, deixando clara a natureza coletiva da pretensão que constitui
o objeto da respectiva ação e estabelecido a obrigatoriedade do litisconsórcio
passivo226.
No artigo 51 do anteprojeto temos a previsão de que o juiz comunicará o
órgão competente para regulamentar infraconstitucionalmente a norma
constitucional, ressaltando a caracterização da mora legislativa e a fixação de prazo
a fim de que as providências sejam tomadas. O juiz também terá a legitimidade para
formular, com base na equidade, a norma regulamentadora que será aplicada ao
caso concreto, podendo, inclusive, fixar multa diária ao demandado que
eventualmente descumprir a norma regulamentadora aplicada ao caso concreto,
independentemente do pedido do autor.
Pelo conteúdo ora mencionado, resta claro que o legislador optou pela teoria
concretista, que é adotada em determinados casos que envolvem o processamento
e o julgamento do mandado de injunção e que autoriza o julgador a exercer
atipicamente a função legislativa, a fim de regulamentar a omissão que caracteriza o
caso concreto em questão. Particularmente entende-se que não se trata de
entendimento jurídico inadequado e incompatível com a ordem constitucional
democrática brasileira, até porque, a justificativa para sustentar a legitimidade de o
Judiciário exercer atipicamente a função legislativa encontra-se no dever do julgador
garantir a toda coletividade o efetivo exercício dos Direitos Fundamentais
expressamente previstos no plano constituinte.
Com relação à ação de improbidade administrativa os autores do anteprojeto
se limitaram a afirmar a aplicação da Lei 8.429/92, que disciplina o processamento e
o julgamento da respectiva ação coletiva basicamente a partir da autoridade ou do
poder exercido exclusivamente pelos representantes do Ministério Público,

225
Art. 47. Cabimento – Conceder-se-á mandado de injunção coletivo sempre que a falta de norma
regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das
prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania, à cidadania, relativamente a direitos ou
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007,
p. 445).
226
Art. 49. Legitimação passiva – O mandado de injunção coletivo será impetrado, em litisconsórcio
obrigatório, em face da autoridade ou órgão público competente para a edição da norma
regulamentadora; e ainda da pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, que, por
inexistência de norma regulamentadora, impossibilite o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais relativos a interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos
(GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 446).
256

excluindo-se a participação direta dos interessados na construção participada do


mérito processual.
Embora o artigo 14 de Lei 8.429/92 ateste a legitimidade de qualquer pessoa
requerer que seja instaurada investigação para fins de apuração de prática de ato de
improbidade administrativa, verifica-se, pela análise e interpretação sistemática do
respectivo diploma legislativo, que o verdadeiro titular da legitimidade processual
ativa é o Ministério Público, que detêm o controle de todas as questões que serão
debatidas e postas em debate na ação de improbidade administrativa. Os demais
interessados difusos atuam como coadjuvantes do debate processual, haja vista que
não possuem a legitimidade de assumir conjuntamente com o Ministério Público a
titularidade ativa da presente ação coletiva, podendo participar isonomicamente da
construção dos fundamentos que integrarão o mérito processual.
Ao referenciar a Lei 8.429/92, os autores do anteprojeto de codificação
reproduziram o modelo de processo coletivo que não assegura a todos os
interessados difusos e coletivos o direito de participação e de debate amplo da
pretensão deduzida.
Mesmo reconhecendo a contribuição cientifica dos autores do anteprojeto de
codificação do direito processual coletivo, verifica-se que tais proposições ainda se
encontram presas e adstritas à ideologia liberal-individualista, que impossibilita a
adoção do modelo de processo coletivo democrático, cujo enfoque é voltado à
garantia de todos os interessados participarem amplamente do debate de todas as
pretensões de natureza coletiva.

3.3.4.2 O ESTUDO DO MÉRITO PROCESSUAL NO ANTEPROJETO DE CÓDIGO BRASILEIRO


DE PROCESSOS COLETIVOS – USP –

Sob a coordenação da professora e jurista Ada Pelegrini Grinover, o


anteprojeto de codificação do direito processual coletivo, desenvolvido junto ao
curso se pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade de São Paulo, foi
sistematizado com o propósito inicial de aperfeiçoamento das proposições
legislativas trazidas pelo Código-Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América
e de elaborar um verdadeiro Código de Processos Coletivos que pudesse revisitar
257

os princípios processuais e a técnica processual227 (corresponde a essa


necessidade de flexibilização da técnica processual um aumento dos poderes do
juiz) por intermédio de normas mais abertas e flexíveis, que propiciassem maior
efetividade ao processo coletivo. A primeira versão do anteprojeto foi apresentada
pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual ao Ministério da Justiça no mês de
dezembro de 2005, e, após inúmeros debates e apresentação de novas propostas, o
mesmo anteprojeto foi reapresentado ao Ministério da Justiça, como versão final, no
mês de dezembro de 2006.
Buscou-se, assim, a sedimentação de uma Teoria Geral do Processo
Coletivo, até porque, os institutos da legitimação, da competência, dos poderes e
deveres do juiz e do Ministério Público, da conexão, da litispendência, da liquidação
e da execução da sentença, da coisa julgada, entre outros, têm feição própria nas
ações coletivas.
É inegável a existência de inúmeras outras questões atinentes ao processo
coletivo que não foram ainda enfrentadas e que devem ser resolvidas no contexto do
debate da codificação, dentre as quais se ressalta: a) a problemática da
competência concorrente e da natureza da competência territorial (absoluta ou
relativa); b) os efeitos jurídicos da coisa julgada coletiva no âmbito territorial; c) o
reconhecimento efetivo da legitimidade da Defensoria Pública, do cidadão e de
todos os interessados difusos e coletivos com relação à propositura das ações
coletivas, ao debate e a construção participada do mérito processual; d) a
sistemática jurídica e a legitimidade processual ativa para requerer o pedido de
liquidação e de execução de sentença coletiva, especialmente quando se tratar de
direitos individuais homogêneos; e) o debate acerca do controle difuso de
constitucionalidade em sede de ação civil pública; f) a questão envolvendo o instituto
da litispendência, quando é diversa a pessoa do legitimado processual ativo, assim
como o instituto da conexão, que se for rigidamente interpretado, levará à

227
Na revisitação da técnica processual, são pontos importantes do Anteprojeto a reformulação do
sistema de preclusões – sempre na observância do contraditório -, a reestruturação dos conceitos de
pedido e causa de pedir – a serem interpretados extensivamente- e de conexão, continência e
litispendência – que devem levar em conta a identidade do bem jurídico a ser tutelado; o
enriquecimento da coisa julgada, com a previsão do julgado secundum eventum probationis; a
ampliação dos esquemas da legitimação, para garantir maior acesso à justiça, mas com a paralela
observância de requisitos que configuram a denominada “representatividade adequada” e põem em
realce o necessário aspecto social da tutela dos interesses e direitos coletivos, coletivos e individuais
homogêneos, colocando a proteção dos direitos fundamentais de terceira geração a salvo de uma
indesejada banalização (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 450).
258

proliferação de ações coletivas e à multiplicação de decisões contraditórias; g) por


fim, ressalta-se toda a discussão existente em torno da possibilidade de se repetir a
demanda em face de prova superveniente e a de se intentar ação em que o grupo, a
categoria ou a classe figure no pólo passivo da demanda.
O primeiro I228 do anteprojeto enumera a principiologia geral da tutela
jurisdicional coletiva e regulamenta importantes questões intrínsecas ao direito
processual coletivo, tais como o pedido e a causa de pedir; a conexão e a
continência; a relação entre ação coletiva e ações individuais frente a problemática
dos processos individuais repetitivos; a interrupção da prescrição e a prioridade no
processamento e no julgamento das demandas coletivas em face das demandas
individuais; a utilização de meios eletrônicos para a prática de atos processuais; a
preferência pelo processamento e julgamento das demandas coletivas por juízos
especializados; a previsão de gratificação financeira para segmentos sociais que
atuem na condução do processo; a revisitação do ônus da prova por meio da teoria
da carga dinâmica da prova; a subtração do instituto do reexame necessário para
sentenças judiciais proferidas em processos coletivos e, com relação à coisa
julgada, verifica-se a possibilidade de propositura de nova ação no prazo de 2 anos,
a contar da descoberta de nova prova idônea a modificar o resultado do primeiro
processo e que neste não foi possível produzir.
No capítulo II229 os autores do anteprojeto admitem expressamente o
cabimento da ação civil pública como instrumento de controle difuso de
constitucionalidade230231, ressaltando-se o instituto da representatividade adequada,
que deverá ser comprovada por critérios objetivos, legais, para a grande maioria dos
legitimados, exceto a pessoa física. Verifica-se que temos institutos ainda presos ao
228
O Capítulo I, intitulado Das Demandas Coletivas, vai do art. 1º ao art. 17 e trata de assuntos
variados, tais como: o exercício da tutela jurisdicional coletiva (art. 1º); o cabimento de todas as ações
e provimentos capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos interesses indicados no
anteprojeto (art. 2º); o objeto da tutela coletiva com a classificação tripartite dos interesses ou direitos
coletivos (art. 3º), reproduzindo o disposto no parágrafo único do art. 81 do CDC etc. (ALMEIDA,
2007, p. 101).
229
O Capítulo II, intitulado Da ação coletiva ativa, vai do art. 18 ao art. 35 e está dividido em duas
seções: a Seção I contém disposições gerais e a Seção II traz a disciplina da ação coletiva para a
defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos (ALMEIDA, 2007, p. 101).
230
Parágrafo único do artigo 4º. A análise da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo poderá ser objeto de questão prejudicial pela via do controle difuso (GRINOVER;
MENDES; WATANABE; 2007, p. 454).
231
O parágrafo único do art. 3º do Anteprojeto confirma a tese que hoje vem prevalecendo na doutrina
e na jurisprudência no sentido que é possível o controle difuso e incidental da constitucionalidade na
ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo e outras ações pertencentes ao que
é denominado por um dos autores desse ensaio de direito processual coletivo comum (ALMEIDA,
2007, p. 105).
259

modelo representativo de processo coletivo, a fim de obstaculizar (ou até mesmo


inviabilizar) a participação dos sujeitos juridicamente interessados na construção
discursivo-participada do provimento. Quanto ao tratamento jurídico assegurado à
competência territorial, temos a eliminação, em alguns casos, da competência
concorrente, com o propósito de evitar a proliferação de demandas e de decisões
contraditórias, buscando-se maior segurança jurídica quanto ao processamento e
julgamento das pretensões coletivas. As peças informativas obtidas no Inquérito Civil
somente poderão ser aproveitadas na ação coletiva se submetidas ao principio do
contraditório, ainda que diferido. O valor da causa é dispensado quando se tratar de
danos inestimáveis232 e o juiz é visto como um verdadeiro gestor do processo
coletivo, dando-se ênfase aos meios alternativos de solução de controvérsias. Na
seção II do Capítulo II verifica-se a inovação do regime das notificações nas ações
coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos, tendo em vista que o
desconhecimento da existência de liminares ou da sentença de procedência tem
impedido aos beneficiados a fruição de seus direitos.
No capítulo III233 destaca-se o regime jurídico da ação coletiva passiva
originaria, ou seja, a ação promovida não pelo, mas contra o grupo, categoria ou
classe de pessoas. O capítulo IV234 trata do mandado de segurança coletivo, o
capitulo V235 trata das ações populares e da ação de improbidade administrativa e,

232
Artigo 24, § 4º. Na hipótese de ser incomensurável ou inestimável o valor dos danos coletivos, fica
dispensada a indicação do valor da causa na petição inicial, cabendo ao juiz fixá-lo em
sentença(GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 458).
233
O Capítulo III, que vai do art. 36 ao art. 39, disciplina a denominada ação coletiva passiva, que, na
verdade, é a possibilidade de ajuizamento de ações coletivas em face de grupo, categoria ou classe.
Como já manifestamos anteriormente, não concordamos com a utilização da expressão ação coletiva
passiva, nem também com o uso da expressão ação coletiva passiva, desprovida de boa técnica
jurídica, pois o que define uma ação como coletiva não é propriamente sua legitimidade ativa ou
passiva, mas seu objeto material, aferível na causa de pedir e no pedido (ALMEIDA, 2007, p. 101).
234
O Capítulo IV, que vai do art. 39 ao art. 41, dispõe, de modo bem tímido, sobre o mandado de
segurança coletivo. Apesar de ampliar a legitimidade ativa para a impetração prevista no art. 5º, LXX,
da CF/88, somente inclui o Ministério Público e a Defensoria Pública, o que contraria a própria
magnitude do mandado de segurança como garantia constitucional fundamental e a orientação já
prevista no art. 5º, da LACP, em sua combinação com os arts. 80 e 83 do CDC (ALMEIDA, 2007, p.
101).
235
O Capítulo V, que contém duas seções e dois artigos, traz a disciplina das ações populares. A
Seção I dispõe sobre o que é denominado ação popular constitucional (art. 42) e não traz qualquer
inovação, constando da redação simplesmente que são aplicáveis à ação popular constitucional as
disposições do Capítulo I do anteprojeto e as da Lei 4.717/65. A Seção II trata da ação de
improbidade administrativa, arrolada como espécie de ação popular contrariamente ao disposto nos
arts. 37, §4º, e 129, III, da CF/88, constando do único dispositivo reservado ao tema que a ação de
improbidade administrativa é regida pelas disposições do Capítulo I do anteprojeto e pelas
disposições da Lei 8.429/92 (ALMEIDA, 2007, p. 101).
260

finalmente, o capitulo VI traz as disposições referentes ao Cadastro Nacional de


Processos Coletivos a ser organizado e mantido pelo Conselho Nacional de Justiça.
Cumpre ressaltar que o anteprojeto de processo coletivo criado pelos
pesquisados da Universidade de São Paulo nada mais é do que o reflexo do
conteúdo trabalhado e desenvolvido pelos anteprojetos anteriores. Por isso, a fim de
evitar repetições, passaremos a análise de questões pontuais do anteprojeto em
questão que tenham relação direta ou indireta com a problemática jurídica do mérito
participado no modelo de processo coletivo no Brasil.
Novamente verifica-se a omissão legislativa quanto à regulamentação da
ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e
da argüição de descumprimento de preceito fundamental como espécies de ações
coletivas, cujos objetos são pretensões abstratamente deduzidas em juízo. O amplo
acesso à justiça, a ampla participação pelo processo e no processo, a economia
processual, a instrumentalidade das formas, o ativismo judicial, a dinâmica
distribuição do ônus da prova e a extensão subjetiva da coisa julgada secundum
eventum litis e secundum probationem são alguns dos inúmeros princípios regentes
da tutela jurisdicional coletiva.
A fim de garantir a efetividade processual, o juiz poderá determinar, quando
necessário for, a desconsideração da personalidade jurídica nas hipóteses previstas
no artigo 50 do Código Civil e no artigo 4º da Lei 9605/98, desde que sejam
asseguradas as partes o principio do contraditório e da ampla defesa no sentido de
viabilizar o direito de participação isonômica na construção do mérito processual da
ação coletiva.
O pedido e a causa de pedir deverão ser interpretados extensivamente e em
conformidade com o bem jurídico a ser protegido na ação coletiva, podendo a parte
interessada, até a prolação da sentença, requerer ao juiz que determine a alteração
do pedido e da causa de pedir, desde que seja assegurada a observância do
principio do contraditório236. Não se pode esquecer que o procedimento das ações
coletivas deve ser regido pela sistemática das preclusões, para que as demandas e
236
Art. 5º. Pedido e causa de pedir – Nas ações coletivas, a causa de pedir e o pedido serão
interpretados extensivamente, em conformidade com o bem jurídico a ser protegido. Parágrafo único.
A requerimento da parte interessada, até a prolação da sentença, o juiz permitirá a alteração do
pedido ou da causa de pedir, desde que seja realizada de boa-fé, não represente prejuízo
injustificado para a parte contrária e o contraditório seja preservado, mediante possibilidade de nova
manifestação de quem figure no pólo passivo da demanda, no prazo de 10 (dez) dias, com
possibilidade de prova complementar, observado o §3º do art. 10 (GRINOVER; MENDES;
WATANABE; 2007, p. 454).
261

as pretensões não sejam infinitamente debatidas por qualquer interessado,


impedindo-se o deslinde do caso concreto. Importante ressaltar, ainda, que eventual
alteração do pedido ou da causa de pedir certamente causará reflexos na definição
da matéria de mérito, o que torna obrigatória a participação de todos os legitimados
a fim de assegurar a legitimidade democrática do provimento jurisdicional.
Não se pode falar em litispendência envolvendo uma ação coletiva e uma
ação individual em que sejam postulados os mesmo direitos, mas os efeitos da coisa
julgada coletiva poderão beneficiar e afetar o autor da ação individual se for
requerida a suspensão do andamento da ação individual no prazo de 30 (trinta) dias,
a contar da ciência efetiva da demanda coletiva nos autos da ação individual. O
requerimento da retomada do processo individual237 poderá ocorrer
independentemente da anuência do réu e a qualquer tempo, e caso venha a se
concretizar, o autor da ação individual deixará de se beneficiar dos efeitos jurídicos
da sentença coletiva.
O entendimento jurídico que preconiza pela impossibilidade de litispendência
entre demandas coletivas e individuais se justifica no fato da maior amplitude do
objeto da ação coletiva e, também, em virtude da maior extensão do debate jurídico
e fático da pretensão por todos os interessados no processo coletivo, algo que se
tornaria inviável em uma ação individual que discute pretensões individuais e
divisíveis decorrentes de origem comum e cujo interesse jurídico na construção do
mérito processual pertence essencialmente àquele sujeito diretamente titular do bem
jurídico em debate.
A coletivização das demandas é uma tendência do direito brasileiro
explicitada expressamente no artigo 8º do anteprojeto, dispositivo esse que legitima
o juiz a notificar o Ministério Público e outros legitimados acerca da existência de
inúmeros processos individuais correndo contra um mesmo demandado, com
identidade de fundamento jurídico238. O objetivo da norma é certamente viabilizar a

237
Uma inovação importante do art. 20.7 do Anteprojeto Original é a permissão, ao membro do grupo
que requereu a suspensão da sua demanda individual, que mude de idéia e se desligue da demanda
coletiva, ao requerer o prosseguimento da sua demanda individual. Essa norma tem origem em
estudo que fizemos sobre a coisa julgada e litispendência em processos coletivos. A inovação do
Anteprojeto Original foi adotada, com linguagem ligeiramente diferente, pelo Anteprojeto USP, em seu
art. 7º, § 2º (GIDI, 2008, p. 303).
238
Art. 8º. Comunicação sobre processos repetitivos. O juiz, tendo conhecimento da existência de
diversos processos individuais correndo contra o mesmo demandado, com identidade de fundamento
jurídico, notificará o Ministério Público e, na medida do possível, outros legitimados, a fim de que
proponham, querendo, demanda coletiva, ressalvada aos autores individuais a faculdade prevista no
artigo anterior. Parágrafo único: Caso o Ministério Público não promova a demanda coletiva, no prazo
262

conversão de pretensões individuais em uma demanda coletiva, através da qual é


possível alcançar maior segurança jurídica em virtude da uniformidade da decisão
proferida em um mesmo órgão jurisdicional competente.
A interpretação do respectivo dispositivo deve ocorrer essencialmente no
contexto do principio da publicidade e a sua aplicabilidade precisa viabilizar
amplamente a participação de todos os interessados no debate acerca da relevância
e dos efeitos da coletivização da demanda quanto aos seus direitos e aos bens
jurídicos de seus respectivos titulares. Concentrar a decisão da coletivização da
demanda exclusivamente nas mãos do juiz e do representante do Ministério Público,
sem condicioná-la obrigatoriamente à participação dos interessados, é subverter o
procedimento democrático de construção participada do mérito processual das
ações coletivas.
O artigo 10 deixa claro que o juiz deverá assegurar a prioridade no
processamento e no julgamento da demanda coletiva sobre as individuais, servindo-
se preferencialmente dos meios eletrônicos para a prática dos atos processuais, de
modo a assegurar a maior publicidade e participação possível de todos os
interessados, para que tomem conhecimento dos fundamentos da demanda coletiva,
a fim de se legitimarem efetivamente quanto à participação direta no discurso
democrático de construção do provimento jurisdicional de natureza meritória.
Ao mesmo tempo em que o anteprojeto pretende avançar no debate dos
fundamentos jurídico-democráticos da codificação do processo coletivo brasileiro,
ainda continua adstrito ao modelo de processo coletivo conduzido pelo juiz e
centralizado no sistema representativo, tal como temos no inciso I do artigo 20: “ são
legitimados concorrentemente à ação coletiva ativa qualquer pessoa física, para a
defesa dos interesses ou direitos difusos, desde que o juiz reconheça sua
representatividade adequada [...]” (grifo nosso) (GRINOVER; MENDES;
WATANABE; 2007, p. 456). Pela análise do dispositivo legal constata-se que não é
a demonstração do interesse jurídico na pretensão coletiva o fundamento do
reconhecimento da legitimidade processual ativa do sujeito quanto à propositura de
uma ação coletiva. Será a decisão judicial que reconhecerá ou não a condição de
legitimado ativo do sujeito no processo coletivo. Trata-se de uma opção legislativa

de 90 (noventa) dias, o juiz, se considerar relevante a tutela coletiva, fará remessa das peças dos
processos individuais ao Conselho Superior do Ministério Público, que designará outro órgão do
Ministério Público para ajuizar a demanda coletiva, ou insistirá, motivadamente, no não ajuizamento
da ação, informando o juiz (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 454-455).
263

incompatível com o modelo constitucional de processo coletivo pelo fato de limitar


substancialmente a participação dos interessados difusos e coletivos quanto ao
debate da pretensão no contexto processual.
Outra relevante constatação da opção legislativa pelo sistema representativo
está no artigo 21239, que estabelece a legitimidade do Ministério Público e dos
órgãos público legitimados para a realização do termo de ajustamento de conduta.
Novamente verifica-se a exclusão dos interessados quanto à participação no debate
da pretensão a ensejar a transação de direitos coletivos e difusos. As proposições
legislativas são falhas no sentido de não estabelecer as audiências públicas como o
espaço legítimo para a realização de todo o debate, assim como os autores do
anteprojeto não se voltaram para a regulamentação da utilização dos mais diversos
meios legítimos de comunicação (internet, redes sociais, imprensa escrita, falada e
televisionada) a fim de dar ampla publicidade e conhecimento a todos os
interessados quanto às discussões referentes aos direitos transindividuais. Essa
mesma discussão cientifica se repete quanto ao Inquérito Civil Público, cuja
instauração, condução e presidência é exercida direta e exclusivamente pelo
Ministério Público, sem a ingerência de qualquer interessado no provimento, tal
como estabelece o artigo 23.
Inúmeras são as criticas possíveis aos anteprojetos de codificação do
processo coletivo e, por isso, em 16 de setembro de 2005 o Procurador Geral de
Justiça do Ministério Público de Minas Gerais editou a Resolução 75, criando uma
comissão de estudos especialmente designada para analisar criticamente as
propostas de codificação do direito processual coletivo. Com relação ao anteprojeto
da USP, a comissão não concordou com a forma de codificação proposta, haja vista
que “não rompe com diretrizes individualistas do CPC ao não dispor sobre institutos
processuais fundamentais do direito processual coletivo, tais como: processos de

239
Art. 21. Do termo de ajustamento de conduta – Preservada a indisponibilidade do bem jurídico
protegido, O Ministério Público e os órgãos públicos legitimados, ainda com critérios de equilíbrio e
imparcialidade, poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de conduta à lei,
mediante fixação de modalidades e prazos para o cumprimento das obrigações assumidas e de
multas por seu descumprimento. §1º. Em caso de necessidade de outras diligências, os órgãos
públicos legitimados poderão firmar compromisso preliminar de ajustamento de conduta. § 2º.
Quando a cominação for pecuniária, seu valor deverá ser suficiente e necessário para coibir o
descumprimento da medida pactuada e poderá ser executada imediatamente, sem prejuízo da
execução específica. § 3º. O termo de ajustamento de conduta terá natureza jurídica de transação,
com eficácia de titulo executivo extrajudicial, sem prejuízo da possibilidade de homologação judicial
do compromisso, hipótese em que sua eficácia será de título executivo judicial (GRINOVER;
MENDES; WATANABE; 2007, p. 457).
264

execução para títulos executivos extrajudiciais (TAC); processo cautelar; intervenção


de terceiros; recursos, jurisdição coletiva; defesa no processo coletivo etc.
(ALMEIDA, 2007, p. 104).
Outro dispositivo bastante criticado é o artigo 51 do anteprojeto, que propõe a
revogação de dispositivos legais, tais como a Lei de Ação Civil Publica e o Código
de Defesa do Consumidor na parte atinente ao processo coletivo. Tal dispositivo do
anteprojeto representa um grande retrocesso em termos de discussão cientifica de
institutos jurídicos indispensáveis a uma reforma na sistematização legislativa do
direito processual coletivo no Brasil. Ao propor a revogação da Lei de Ação Civil
Pública o anteprojeto nada dispõe sobre a ação coletiva para a reparação de dano
moral coletivo; ao propor a revogação parcial do Código de Defesa do Consumidor o
anteprojeto nada dispôs sobre a vedação da denunciação da lide nas ações
consumeiristas (ALMEIDA, 2007, p. 104).
A partir das reflexões crítico-científicas ora propostas, constata-se que a
ideologia regente dos fundamentos da codificação em todos os anteprojetos até
então analisados é aquela que reproduz um modelo de processo coletivo ainda de
raízes individualistas e de cerne essencialmente patrimonialista, em que o foco do
debate é o sujeito individual, e não a coletividade.
Aliado a esses argumentos, sabemos que a gênese de todo o processo
coletivo até então teorizado encontra-se na idéia de representatividade adequada,
que se realiza partir do Ministério Público, dos entes da Administração Pública Direta
e Indireta, da Defensoria Pública e das demais entidades pressupostamente
habilitadas a gerir os direitos de toda uma coletividade. O próprio sujeito titular do
direito e diretamente interessado na pretensão coletiva, na maioria das vezes é
excluído do debate processual realizado no sentido de conhecer, de analisar e de
compreender as particularidades fáticas e jurídicas de todas as questões que
integram a matéria de mérito. Pensar que o titular do direito não é capaz de exercer
todas as suas faculdades no sentido de buscar a proteção jurídica de seus bens, é
reduzi-lo a condição de deslegitimado à participação na construção do mérito
processual das ações coletivas.

3.3.4.5 CÓDIGO DE PROCESSO COLETIVO BRASILEIRO DA PUCMINAS: UMA PROPOSTA


LEGISLATIVA DE TEORIZAÇÃO DO MÉRITO PARTICIPADO.
265

Sob a coordenação e a orientação do professor e jurista Vicente de Paula


Maciel Junior, os alunos do curso de pós-graduação stricto sensu em Direito da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais desenvolveram, no ano de 2008, a
elaboração de uma proposta de Código de Processo Coletivo brasileiro a partir da
Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas.
Fruto de muitas pesquisas e reflexões, os jovens pesquisadores240
procuraram sistematizar legislativamente uma proposta de codificação que
contemplasse o modelo participativo como referencial teórico, ao lado das
proposições decorrentes das ações temáticas, para o estudo crítico e
constitucionalizado de uma modelo de processo compatível e coerente com o
Estado Democrático de Direito.
A teorização do mérito participado perpassa diretamente pelo entendimento
sistemático e jurídico dos meandros da teoria que propõe o estudo das ações
coletivas na perspectiva das ações temáticas. Nesse ínterim sabe-se que o mérito
deve ser visto sob a égide da discursividade ampla da pretensão como patamar
inicial de compreensão do tema proposto. Reduzir a idéia do mérito processual à
matéria de fato e de direito é compreendê-lo dogmaticamente a partir do modelo
individualista de processo. O mérito no processo coletivo materializar-se-á por meio
da instauração de um espaço processualizado de debate amplo e isonômico da
pretensão coletiva por todos os sujeitos juridicamente interessados na argumentação
fático-jurídica decorrente da observância dos princípios do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal.
A primeira grande e relevante constatação é que o anteprojeto de codificação
proposto pela Pucminas deixa de compreender o processo coletivo sob a ótica
subjetivista (ou seja, do sujeito que seria legitimado a propor uma ação coletiva) e
passa a visualizá-lo essencialmente a partir do objeto, ou seja, da relevância social e

240
São autores do anteprojeto do Código de Processo Coletivo Brasileiro: professor Vicente de Paula
Maciel Junior; Alessandra Macedo Pessoa; Ana Lúcia Ribeiro; André Bragança Brant Vilanova; Anna
Carolina Marques Gontijo; Fabiana Carvalho Vieira; Francis Vanine de Andrade Reis; Joaquim
Adelson Cabral de Souza; Joaquim Márcio; Joaquim Urbano Pacheco Resende; José dos Passos T.
de Andrade; Josan Feres; Juliana Maria Matos Ferreira; Kelen Cristina Fonseca; Leonardo Martins
Wykrota; Marcelo Baltar Bastos; Marius Fernando Cunha de Carvalho; Natália Chernicharo
Guimarães; Priscila Aparecida Borges Camões; Roberto Apolinário de Castro Júnior; Soraia Mônica
Fonseca Murta; Teresa Cristina da Silva; Wagner Mendonça Bosque; Wilce Paulo Léo Neto.
Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/. Acesso: 11 jan. 2012.
266

coletiva da demanda a ser apreciada judicialmente. É realmente essa a proposta


apresentada pelo pesquisador Vicente de Paula Maciel Junior ao teorizar as ações
coletivas como ações temáticas. Não será o legislador que terá legitimidade para
estabelecer previamente um rol taxativo de pessoas, entidades ou instituições que
poderão figurar como autoras de uma ação coletiva.
Toda pessoa ou entidade pública ou privada poderá ser parte autora de uma
ação coletiva ao demonstrar a sua condição de titularidade da pretensão coletiva. A
condição de legitimado processual nas ações coletivas como ações temáticas é
auferida pela aptidão demonstrada pelos interessados difusos e coletivos de sofrer
os efeitos jurídicos de um provimento jurisdicional proferido num processo coletivo.
Todas as vezes que um interessado demonstrar a possibilidade de sofrer os efeitos
jurídicos de um provimento terá legitimidade processual para participar
discursivamente da construção do mérito. Foi exatamente esse o posicionamento
adotado pelos autores do anteprojeto no artigo 2º, ao estabelecer que possuem
legitimação para propor a ação temática todos os interessados, considerando-se
parte juridicamente interessada na construção participada do provimento todos
aqueles que são atingidos por atos, fatos ou situações jurídicas que afetem suas
esferas de interesses.
Considera-se coletiva a demanda quando um ato, fato ou situação jurídica
atingir interessados que estejam organizados em associações, sindicatos e
entidades de classes para a defesa dos direitos da categoria ou classe, assim como
os indivíduos dispersos que possam sofrer os efeitos da decisão e também aqueles
que possam ser representados por entidades ou órgãos públicos incumbidos da
defesa coletiva em juízo. Os autores do anteprojeto foram cuidadosos quanto à não
utilização equivocada da expressão “interesses difusos e coletivos” como sinônimos
da expressão “direitos coletivos e difusos”, em virtude da forte carga privada e
individualista trazida na conceituação do interesse para a ciência do Direito. Da
mesma foram não definiram e nem pretenderam diferenciar teoricamente os
conceitos de direitos coletivos, direitos difusos e direitos individuais homogêneos. No
anteprojeto os pesquisadores se limitaram a esclarecer as diretrizes gerais para o
entendimento do que é uma demanda coletiva para, a partir das peculiaridades do
caso concreto, identificar ou não a relevância do caráter coletivo da pretensão
deduzida.
267

A presença de inúmeros conceitos abertos e cláusulas indeterminadas são


consideradas a marca registrada do anteprojeto, haja vista que a teoria das ações
coletivas como ações temáticas é o fundamento regente para a interpretação e o
entendimento do conteúdo presente nas proposições legislativas.
A pretensão inicialmente deduzida em juízo poderá ser genérica sempre que
o interessado não puder individuar na exordial os bens demandados, assim como ,
quando não for possível determinar as conseqüências de ato ou fato ilícito ou
quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser
praticado pelo réu.
Inicialmente é de suma importância esclarecer que o objeto da demanda
judicial, ou seja, a formação da matéria fática e jurídica a ser discutida no processo e
o levantamento das questões de mérito não ocorrerá apenas quando da propositura
da ação coletiva pelo autor e da apresentação da defesa pelo demandado, assim
como propõe o processo civil de natureza eminentemente individualista. A
propositura da ação coletiva é o primeiro passo a ser dado ao longo de todo o
procedimento para se chegar a delimitação do objeto a ser debatido e julgado na
ação coletiva. A ampla publicidade da pretensão inicialmente deduzida é a
oportunidade que os interessados terão de apresentar temas correlatos e relevantes
a serem discutidos conjuntamente com o que foi alegado pelas partes demandante e
demandada. Todas aquelas pessoas que demonstrarem interesse jurídico na
pretensão deduzida terão legitimidade para apresentarem temas conexos e
correlatos àquilo que foi inicialmente levado pelo autor e pelo demandado na ação
coletiva a fim de amplamente debatido no âmbito processual.
A adoção da sistemática das preclusões torna-se necessária a fim de evitar
as denominadas demandas coletivas infinitas, ou seja, é importante que se
estabeleça o momento processual em que os temas correlatos a pretensão deduzida
poderão ser apresentados. Permitir a apresentação dos temas a qualquer tempo e
grau de jurisdição certamente é algo incompatível com o principio da efetividade
processual, especialmente com o resultado prático do processo. Embora os
interessados tenham a possibilidade de debaterem amplamente a pretensão
deduzida mediante a apresentação de novos temas ou alegações fático-jurídicas ora
conexas e coerentes, sabe-se que a argumentação e o debate da matéria de fato e
de direito e das questões de mérito trazidos pelas partes interessadas deverá
ocorrer num contexto cronologicamente preestabelecido, ou seja, deve haver o
268

estabelecimento de prazos preclusivos a fim de demarcar temporalmente o momento


processual em que as partes poderão ampliar o objeto da demanda coletiva.
A demarcação cronológica do momento processual de apresentação e de
discussão de todos os temas correlatos à pretensão deduzida em juízo e trazidos
pelas partes interessadas, sob a ótica da sistemática da preclusão é algo
imprescindível à efetivação do principio do contraditório, da ampla defesa e do
devido processo legal.
O sistema processual coletivo brasileiro vigente estabelece que qualquer
tema ou questão suscitada por algum interessado difuso ou coletivo deverá ser
submetido ao debate processual por todos os demais interessados, para que cada
sujeito tenha a oportunidade de amplamente discutir e analisar os fundamentos de
cada alegação trazida ao processo. A implementação de um procedimento que
viabilize efetivamente a construção participada do mérito processual pressupõe
basicamente o direito dos interessados exercerem o contraditório e a ampla defesa
no que tange à isonômica oportunidade de discussão de todos os temas trazidos
pelas partes e que integram a matéria de mérito objeto da ação coletiva.
O despacho saneador é o momento processual em que o julgador, em
decisão fundamentada, fixará os pontos controvertidos para delimitar o objeto da
ação coletiva a partir de todas as questões suscitadas e levantadas pelos sujeitos
interessados na construção isonomicamente participada do provimento jurisdicional.
O critério básico para a formação da matéria de mérito é a comprovação
efetiva do caráter coletivo da pretensão, mediante a demonstração da sua relevância
social. Superada essa questão preliminar, deverá o julgador reconhecer como
matéria de mérito todas aquelas questões de fato e de direito trazidas pelos
interessados difusos e coletivos e que conduzirão o debate processual a ser
desenvolvido de forma mais especifica na fase instrutória.
O julgador não tem legitimidade para excluir da discussão do mérito
processual questões fáticas e jurídicas que foram levantadas por qualquer
interessado, que tenha relevância social e, acima de tudo, que tenha coerência e
relação direta ou indireta com a pretensão inicialmente deduzida pelo autor da ação
coletiva. A exclusão de qualquer questão fática e/ou jurídica ou tema que integra a
matéria de mérito e que foi coerentemente levantada por um interessado somente
poderá ocorrer se os próprios interessados atestarem, por meio de uma ampla
análise discursiva, pela desnecessidade no prosseguimento do debate. Caso
269

contrário, o julgador não terá legitimidade democrática para deliberar individualmente


pela exclusão de qualquer tema alegado no sentido de definir a matéria de mérito da
ação coletiva.
Resta claro que o despacho saneador é o momento preclusivo que finalizará
a possibilidade dos interessados trazerem para o processo outros temas além
daqueles inicialmente alegados241. Eventual tema ou questão não suscitado pela
parte poderá ser alegado e discutido em outra relação processual a ser instaurada
por meio da propositura de uma nova ação coletiva. É importante ressaltar que, pela
Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, o despacho saneador tem a
finalidade de delimitar toda a matéria de mérito que integrará e regerá a instrução
processual, impossibilitando eventual alteração em momento processual posterior.
Dessa forma, pode-se afirmar que o delineamento de todos os critérios que
orientarão a construção participada e democrática do mérito na ação coletiva
ocorrerá na fase saneadora.
A fim de garantir a construção participada do provimento jurisdicional, o
julgador deverá se ater à matéria de mérito delimitada no despacho saneador, ou
seja, o julgamento do mérito da pretensão será desenvolvido basicamente a partir
dos temas levantados pelas partes interessadas ao longo do procedimento e até a
fase saneadora. Isso evidencia a possibilidade de participação direta e efetiva dos
interessados difusos e coletivos quanto à legitimidade na definição dos temas que
integrarão a matéria de mérito. Não é mais o autor da ação, o demandado e o
julgador que definirão solitariamente quais questões que integrarão o debate
meritório em uma ação coletiva. Considerando-se que o estudo do mérito perpassa
pelo redimensionamento de um espaço processualizado de debate amplo e
isonômico da pretensão, nada mais coerente do que reconhecer os próprios
interessados como os verdadeiros legitimados à construção do mérito processual.
A fundamentação da decisão judicial perpassa pelo enfrentamento e pela
análise discursiva a ser implementada pelo juiz quanto a todos os temas e todas as

241
O anteprojeto trabalha expressamente toda a discussão cientifica proposta. “Art. 9º. Encerrada a
fase de formação participada do mérito, o juiz delimitará a proposta de objeto da ação temática,
catalogando os pontos controvertidos, aglutinando os que tiverem idêntico sentido e separando os
que formarem pontos diversos a serem debatidos na ação temática. A seguir decidirá sobre as provas
necessárias e apreciará eventuais pedidos de antecipação de tutela, podendo designar audiência, a
qual comparecerão os interessados e seus procuradores”. Na seqüência temos: “Art. 10. Findo o
prazo para a manifestação dos interessados, o escrivão fará a conclusão dos autos para que o juiz no
prazo de 10 (dez) dias determine, conforme o caso as providências preliminares e delimite o tema da
ação proposta. Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/. Acesso: 12 jan. 2012.
270

questões levantadas pelas partes interessadas ao longo do procedimento. O


julgador não poderá ser omisso quanto à análise de algum tema suscitado pelas
partes, tendo em vista que sua inércia ou omissão é interpretada com ofensa direta
aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. O ato
de decidir no Estado Democrático de Direito implica em permitir a construção
participada do mérito processual mediante o enfrentamento jurídico-constitucional de
todas as questões e temas suscitados pelas partes no processo coletivo.
O espaço processual discursivo somente será instaurado quando o juiz, o
representante do Ministério Público e todo e qualquer interessado difuso ou coletivo
forem interlocutores no entendimento crítico e na análise dos fundamentos da
pretensão.
O discurso democrático realizado no âmbito processual é aquele em que os
sujeitos têm igual oportunidade de debate da pretensão coletiva e, no momento da
construção participada do provimento, todos os temas e alegações das partes
devem ser atentamente analisados pelo julgador. Isso significa dizer que o julgador
não poderá se omitir e, tampouco ignorar, qualquer tema levantado
processualmente. A observância efetiva do contraditório, da ampla defesa e do
devido processo legal decorre do direito que os interessados têm de não serem
surpreendidos por uma decisão que não contemple e nem analise os temas ora
alegados em juízo, por não constituir faculdade do julgador a participação no debate
jurídico e fático da pretensão coletiva ou difusa.
Toda decisão judicial proferida solitariamente pelo julgador que
desconsiderou, total ou parcialmente, o debate dos temas colocados pelas partes, é
juridicamente considerada nula, haja vista que, sendo o contraditório e a ampla
defesa princípios que caminham numa via de mão dupla, a sua efetivação ocorrerá
tão somente quando o julgador puder realizar uma análise sistemática das
alegações e de todos os temas trazidos para o processo coletivo.
A opção dos autores do anteprojeto pela possibilidade de qualquer
interessado difuso poder propor uma ação coletiva tem como finalidade assegurar
maior amplitude quanto ao acesso ao Judiciário. Importante ressaltar que ao
estabelecer o principio da inafastabilidade do controle jurisdicional, o legislador
constituinte pretendeu, no artigo 5º, inciso XXXV, ampliar as vias de acesso ao
Judiciário, que não deve ser visto apenas como o direito de propor uma ação
coletiva, mas, acima de tudo, o direito de discutir o mérito da pretensão coletiva
271

deduzida em juízo. É por isso que se torna necessário esclarecer que no contexto
das ações coletivas como ações temáticas o direito de amplo acesso ao Judiciário,
assegurado a todos os interessados difusos e coletivos indistintamente, implica no
direito que cada qual tem de participar diretamente da construção do mérito
discursivo da ação coletiva.
Importante ressaltar que, em momento algum no anteprojeto apresentado
pela Pucminas, verifica-se o instituto do representante adequado, o que denota
claramente a superação do sistema representativo como norte ao entendimento
critico do modelo constitucional-democrático de processo coletivo, desenvolvido
essencialmente sob a ótica do principio participativo, previsto expressamente no
artigo 1º da Constituição brasileira de 1988.
Conforme anteriormente mencionado, qualquer interessado poderá manifestar
interesse na ação temática e formular pedido declaratório, constitutivo ou
condenatório que confirme, rejeite ou modifique o pedido inicial. Sabe-se que a
participação no debate do mérito processual da ação temática fica condicionada a
ampla publicidade do objeto da ação. Foi por isso que os autores do anteprojeto
foram enfáticos ao estabelecerem que o princípio da publicidade é corolário dos
princípios da ampla defesa e do contraditório, até porque, o direito de argumentação
jurídica da pretensão no espaço processual pressupõe inicialmente a ampla e efetiva
publicidade do objeto da ação temática. Foi por isso que se estabeleceu que a
citação do demandado será por carta, com aviso de recebimento, para aquelas
pessoas indicadas na exordial e que possuam endereço certo, sabendo-se que
também teremos a citação por edital, a fim de atender todos os demais interessados
em participar do processo.
Considerando-se que somente o edital não é medida efetiva para garantir a
ampla publicidade do objeto da ação temática no Brasil, haja vista que não faz parte
da cultura do povo brasileiro a leitura de editais de citação, o juiz deverá se utilizar
dos meios de comunicação mais eficazes na comarca, bem como a publicização
nos órgãos de comunicação oficial da União e Estados. Além disso, torna-se
necessária a utilização de veículos de imprensa escrita, falada e televisionada,
assim como a ferramenta da Internet e das redes sociais (Orkut, facebook, msn,
272

skype, twitter) como instrumento legítimos a garantir publicidade, economia e


efetividade processual às ações coletivas242.
A ampla publicidade do objeto da ação coletiva é uma forma de convocação
das partes interessadas para participarem do debate, a fim de que cada interessado
ou grupo de pessoas interessadas possa apresentar uma visão própria ou um tema
especifico correlacionado com o conteúdo central da discussão que conduzirá a
construção do mérito. Sem o envolvimento direto dos interessados no debate dos
fundamentos da pretensão, torna-se comprometida o compartilhamento, entre as
partes, da legitimidade assegurada a cada sujeito individualmente de conseguir
intervir e influir de forma efetiva no conteúdo daquilo que foi decidido pelo julgador.
O principio participativo é pressuposto para o exercício, o entendimento e a
discussão científica da cidadania no Estado Democrático de Direito. Considera-se
cidadão, no contexto do processo coletivo, todo aquele sujeito que tem oportunidade
e legitimidade de participação no direcionamento e no desenvolvimento do discurso
instaurado, a fim de delinear a maneira mais adequada de resolver a pretensão em
conformidade com as expectativas e com os direitos da coletividade. A construção
do mérito participado na perspectiva dos princípios da isonomia processual, do
contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal é a forma mais legitima de
oportunizar o exercício da cidadania no contexto das ações temáticas.
A cidadanização de indivíduos somente será possível através do processo
constitucional, que se trata de um modelo de coletivização das demandas em que os
interessados difusos e coletivos buscam a implementação de Direitos Fundamentais,
cuja liquidez e certeza encontram-se previamente definidos no plano constituinte.
Não é possível pensar e compreender o exercício da cidadania desvinculado da
sistematicidade constitucional dos Direitos Fundamentais como normas jurídicas
auto-aplicáveis e regentes da democracia, ressaltando-se que a democratização do

242
Art. 8º. As ações para a tutela dos direitos difusos seguirão a forma procedimental a seguir
delineada: [...] III- Ao receber a inicial o juiz determinará a citação por carta, com aviso de
recebimento, daquelas pessoas indicadas na petição inicial e que possuam endereços certos e, por
edital, com prazo mínimo de 30 (trinta) dias, para que qualquer interessado possa comparecer e
participar do processo. IV- O juiz deverá dar ampla publicidade à ação temática nos meios de
comunicação mais eficazes disponíveis na comarca, sendo obrigatória a publicação no órgão de
comunicação oficial da União, Estados e Municípios, em local próprio e de fácil visualização. Deverá
ainda ser publicado o edital pelo menos uma vez em jornal de grande circulação local, e divulgado em
rede de rádio local pelo menos três vezes por semana, em horários diferentes do dia, até o término do
prazo do edital. O jornal e rádio locais não poderão recusar a divulgação, sob pena de ser imposta
multa diária pelo juiz até o cumprimento da ordem, sem prejuízo das sanções administrativas e penais
cabíveis à espécie. Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/. Acesso: 12 jan. 2012.
273

processo coletivo perpassa essencialmente pela participação e pela argumentação


das partes interessadas com relação à demanda coletiva levada ao Judiciário.
A realização de audiência pública é uma forma bastante legitima para efetivar
a ampla participação dos sujeitos no processo coletivo. Trata-se de um momento
processual de extrema relevância, no sentido de permitir um diagnóstico mais
aprimorado a fim de clarear quais as demandas e os temas trazidos pelos sujeitos
interessados e, assim, especializar e amadurecer o debate democrático da
pretensão.
O momento processual mais adequado para a realização da audiência pública
é aquele que antecede a fase de saneamento, em virtude de oportunizar ao julgador
o levantamento do maior número de temas possíveis e relacionados com a demanda
inicial. Porém, na fase instrutória, a audiência pública teria a finalidade de debater os
temas ou as questões previamente definidas no despacho saneador, haja vista a
ocorrência da preclusão temporal quanto à possibilidade de apresentação de novos
temas. A finalidade da audiência pública ao longo da instrução processual é influir
diretamente na construção do mérito processual, mediante a participação de todos
os legitimados ao discurso democrático das peculiaridades da demanda.
A discursividade na produção probatória também é um tema relevante trazido
pelo anteprojeto, uma vez que temos o compartilhamento ou a distribuição dinâmica,
entre as partes, do ônus da prova, que não fica concentrado exclusivamente na
pessoa do autor da ação. Todos os sujeitos vinculados direta ou indiretamente com
a pretensão coletiva tem o dever legal de colaborar com o esclarecimento dos fatos
alegados, tendo em vista a indisponibilidade e o caráter não patrimonial típico dos
direitos coletivos, cuja titularidade transcende o nível da individualidade.
A determinação da inversão do ônus da prova 243 ocorrerá quando o autor da
ação ou os demais interessados não puderem ou não conseguirem produzir uma
determinada prova que depende exclusivamente da iniciativa da parte demandada
ou de qualquer outra parte juridicamente interessada. Em face do dever legal de
cada sujeito colaborar processualmente com o esclarecimento objetivo da pretensão
é que o julgador terá a legitimidade para determinar coercitivamente a produção da

243
Art. 11, § 1º. O ônus da prova poderá ser invertido de acordo com a especificidade das provas que
serão produzidas. Neste caso o juiz deverá sempre garantir o contraditório antes de apreciar o pedido
de inversão e proferir decisão fundamentada na qual esclareça os pontos que motivaram em sua
decisão. Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/. Acesso: 12 jan. 2012.
274

prova pretendida, a fim de garantir a aplicabilidade do principio da fundamentação


das decisões judiciais.
A construção participada do mérito processual nas ações temáticas
pressupõe a produção de todas as provas e meios de provas licitos e legitimamente
admitidos em direitos, assim como o seu debate, no contexto da pretensão coletiva,
realizado por todos os sujeitos que a produziram e que sofrerão os efeitos jurídicos
das provas produzidas nos autos. O amplo debate da pretensão coletiva a ensejar a
construção o mérito perpassa pela discussão analítica e precisa de todo acervo
probatório produzido pelas partes.
Outra preocupação dos autores do anteprojeto diz respeito a observância do
principio da lealdade processual e da não utilização do processo coletivo como uma
ferramenta de violação de direitos e de danos causados a terceiros de boa fé.
Buscou-se regulamentar a possibilidade de condenação da parte pela prática de
litigância de má fé em caso de comprovada intenção de agir com o propósito de
desvirtuar a finalidade legítima do processo coletivo, qual seja, oportunizar a
proteção jurídica de bens de natureza metaindividual. Estabelece o anteprojeto
conseqüências jurídicas para aqueles que agirem de forma processualmente
desleal, os obrigando a restituir o valor gasto pelo Fundo de Defesa dos Direitos
Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos na produção de provas 244, assim como
o condenando a pagar multa não excedente a 10% (dez por cento) do valor da
causa245.
O dever das partes agirem com lealdade processual se justifica no contexto
da finalidade geral do processo coletivo, que busca, na sua inteireza, tão somente
proteger o mais amplamente possível os direitos de pessoas, não na sua
individualidade, mas no seu contexto geral e coletivo. A repressão da deslealdade
processual é uma forma estimular os interessados difusos a utilizarem as ações

244 Art. 14. Quando o ônus probatório for incumbência do interessado, cuja capacidade de produção
de provas seja limitada por critérios econômico-financeiros demonstrado nos autos, o juiz determinará
que o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos (FDD), arque com
todas as despesas referentes à produção da prova. § 1º. Nas hipóteses em que ocorrer litigância de
má-fé, nos termos dos arts. 16 e seguintes do CPC, o interessado fica obrigado a ressarcir todas as
despesas adiantadas pelo FDD, sem prejuízo da multa do art. 18 do mesmo diploma legal, o que será
declarado e executado nos próprios autos da ação temática. Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/.
Acesso: 12 jan. 2012.
245
Art. 24. Em caso de litigância de má-fé, nos termos dos artigos 16 a 18 do Código de Processo
Civil, o vencido será condenado a pagar multa não excedente a 10% (dez por cento) do valor da
causa, ressalvada a indenização da parte contrária pelos prejuízos sofridos em razão da conduta
ilícita. Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/. Acesso: 12 jan. 2012.
275

temáticas como verdadeiros espaços de debate processual e de proteção jurídica de


seus direitos. O desvirtuamento dessa finalidade inicial preestabelecida traz reflexos
nefastos quanto à própria credibilidade da utilização das ações temáticas para
viabilizar a construção participada do mérito processual e o amparo dos direitos
coletivos e difusos.
Quanto à regulamentação da sentença e da coisa julgada o anteprojeto
confirma proposições legislativas de anteprojetos anteriores, tais como, a revogação
do reexame necessário das sentenças coletivas, a não limitação territorial para a
coisa julgada, o efeito erga omnes para as sentenças que julgaram procedente o
pedido inicial, salvo para os casos de improcedência decorrentes da insuficiência de
provas.
A grande contribuição dos autores desse anteprojeto diz respeito ao
esclarecimento jurídico de que a coisa julgada será constituída basicamente em
cima dos temas e das questões fáticas e jurídicas que integraram o mérito
processual da demanda. Todas aquelas questões ou todos aqueles temas que não
tenham sido eventualmente objeto de debate meritório da ação temática não se
submeterão à coisa julgada, constituindo fundamento para a propositura de uma
nova ação246. Assim, a imutabilidade e a indiscutibilidade como características
típicas do instituto da coisa julgada material no processo civil, serão relativizadas no
processo coletivo (ações temáticas) no momento em que se admite novo debate de
temas correlatos à construção participada do mérito em ação temática anterior e cuja
sentença já tenha se submetido à coisa julgada.

3.4 SÍNTESE

246
Art. 26. Nas ações temáticas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada erga omnes e
haverá a preclusão máxima das questões objeto da ação temática, exceto se o pedido for julgado
improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer interessado poderá intentar outra
ação, com mesmo tema, valendo-se de nova prova. § 1º. Em qualquer hipótese que houver prova
nova poderá ser ajuizada nova ação temática com o mesmo tema antes proposto, desde que
constitua novo fundamento. § 2º. Os efeitos da coisa julgada nas ações temáticas, se procedente o
pedido, beneficiarão os interessados e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à
execução, nos termos dos artigos dos Livros II e III deste Código. § 3º. A competência territorial do
órgão julgador não representará limitação para a coisa julgada erga omnes. Disponível:
http://www.fmd.pucminas.br/. Acesso: 13 jan. 2012.
276

O atual e vigente modelo de processo coletivo adotado no Brasil tem raízes


no processo civil, é centrado numa visão individualista e se desenvolve mediante a
reprodução dos conceitos, dos institutos, do procedimento, da jurisdição, da ação e
de todos os demais elementos que lhes são inerentes, cuja teorização decorre,
essencialmente, do direito privado e da vertente construída para a análise e a
resolução de conflitos de interesses individuais. A coletivização das demandas
judiciais exige que os estudiosos reestruturem o direito processual, a fim de superar
o modelo civilista de resolução de conflitos para, assim, estender as vias de acesso
ao Judiciário, de modo que todas as demandas de cunho transindividual sejam
apreciadas no sentido de viabilizar o amplo debate da pretensão pelos sujeitos
juridicamente interessados.
O resgate histórico do processo coletivo foi necessário para comprovar que a
construção de todos os seus fundamentos se deu a partir do processo civil, cujo foco
é a proteção jurídica do sujeito individual, e não no âmbito da sua coletividade. A
demonstração mais clara da presença da ideologia civilista e individualista de
processo encontra-se evidenciada na reprodução de um modelo de processo
coletivo em que os sujeitos diretamente interessados no seu objeto e na demanda
são excluídos do debate das questões meritórias. Além disso, podemos observar os
resquícios do liberalismo quando encontramos a utilização da denominação “direito
processual civil coletivo”, algo que denota, de forma muito clara, a ausência de uma
“Teoria Geral do Processo Coletivo”, com objeto e metodologia próprios, que tenha
sido desenvolvida especificamente para sistematizar teoricamente o estudo do
direito processual coletivo, com o enfoque voltado para a principiologia constitucional
(isonomia processual, contraditório, ampla defesa, devido processo legal, ampla
participação dos interessados difusos e coletivos na construção do mérito
processual, fundamentação das decisões judicial, direito ao advogado, amplo
acesso ao Judiciário como um direito fundamental de debate amplo do mérito da
pretensão) e para os Direitos Fundamentais.
A adoção do sistema representativo, como fundamento regente do modelo de
processo coletivo ainda adotado no Brasil, demonstra a opção do legislador pela
escolha de algumas instituições legitimadas a representar a coletividade na proteção
dos direitos de natureza transindividual, tal como ocorre com o Ministério Público e
os entes da Administração Pública Direta e Indireta. Não se pretende aqui
deslegitimar a atuação do Ministério Público, mas, tão somente, oportunizar a
277

atuação conjunta da instituição com todos os demais interessados na pretensão


coletiva, para que todos sejam resguardados quanto à observância do principio da
isonomia processual e tenham a mesma oportunidade de argumentação jurídica
quanto à construção discursivo-democrática do mérito do provimento jurisdicional.
A presença constante do representante adequado dos direitos dos integrantes
de uma classe de pessoas é o que caracteriza basicamente o modelo das class
actions no sistema norte-americano que, embora seja prestigiado e festejado por
inúmeros juristas em todo o mundo, não abandona o modelo representativo e, por
isso, não se compatibiliza com a constitucionalidade democrática, cujo modelo de
processo se estrutura e se desenvolve pelo princípio participativo. A impossibilidade
dos interessados acompanharem o debate das questões de mérito ao longo de todo
o procedimento desenvolvido nas class actions torna inviável efetivar a construção
participada do provimento jurisdicional, uma vez que o juiz é considerado o gestor do
processo coletivo e o habilitado a decidir, muitas vezes de forma solitária, haja vista
que é o detentor da legitimidade para a sua condução da forma mais efetiva
possível.
A eclosão do movimento da codificação do direito processual coletivo vem
atender a necessidade de sistematização legislativa dos direitos metaindividuais.
Conforme exposto ao longo de todo o debate cientifico apresentado, podemos
concluir inicialmente que a elaboração de um código de processos coletivos deverá
vir posteriormente à teorização dessa área da ciência do Direito, ou seja, hoje a
necessidade que temos é de aprimorar as pesquisas voltadas ao estudo dos direitos
difusos e coletivos, a fim de compreender criticamente os fundamentos jurídico-
constitucionais que poderão ser utilizados como norte para uma eventual codificação
dessa área do conhecimento.
Particularmente entende-se que existe certa precipitação entre os
pesquisadores quanto à codificação, facilmente constatada quando se visualiza que
a grande maioria das proposições legislativas analisadas no presente trabalho de
pesquisa simplesmente reproduzem um modelo de processo coletivo já superado
com o advento do Estado Democrático da Direito. Talvez uma análise inicial dos
anteprojetos da USP, UERJ, anteprojeto original e o Código-Modelo nos leva
concluir, precipitadamente, que o foco legislativo seria a ampliação da participação
dos interessados no processo coletivo, porém, somente no anteprojeto desenvolvido
na Pucminas que se consegue visualizar uma proposta legislativa de sistematização
278

do direito processual coletivo a partir da Teoria das Ações Coletivas como Ações
Temáticas.
Dos anteprojetos analisados, o único que atende ao principio participativo é o
proposto pela Pucminas, uma vez que rompe com a concepção teórica de estudo e
de análise do direito processual coletivo sob o foco exclusivo do sujeito legitimado
ativo às ações coletivas, tal como propõe os demais anteprojetos. O Brasil hoje
adota, sob o ponto de vista legislativo e teórico, um modelo de processo coletivo que
foi construído à margem da discursividade democratizante, uma vez que, pela
análise da Lei de Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor os
sujeitos que serão diretamente afetados pelo provimento estão excluídos de
participarem de sua construção e do debate das questões que integram a matéria de
mérito. O que as ações coletivas como ações temáticas propõe é justamente
viabilizar a implementação do principio participativo como o substrato teórico de todo
o modelo de processo coletivo que se desenha basicamente a partir do objeto, e não
mais do sujeito.
Dessa forma sabe-se que, a construção do conceito de legitimidade dos
interessados difusos e coletivos não decorrerá exclusivamente da vontade do
legislador em escolher quem pode e quem não pode propor uma ação coletiva. Pela
Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, a ação poderá ser proposta por
qualquer sujeito juridicamente interessado no debate processual da matéria de
mérito, permitindo-se que outros sujeitos, ao longo do procedimento, tragam para o
espaço processualizado outros temas correlatos à pretensão inicialmente deduzida,
para, assim, publicizar e ampliar ao máximo, no contexto do contraditório e da ampla
defesa, o objeto da ação coletiva.
Pretende-se, com isso, superar a noção preconizada pelo processo civil de
que o objeto se define quando da propositura da ação e da apresentação da defesa
pela parte demandada (assim como pela utilização da reconvenção e do pedido
contraposto). No processo coletivo, visto e compreendido sob a égide das ações
temáticas, a exordial é o primeiro momento processual de definição do objeto da
ação coletiva, uma vez que, ao longo de todo o procedimento, e até a fase
saneadora, os interessados poderão imiscuir-se diretamente na delimitação de toda
a matéria de mérito que regerá e orientará todo o debate processual na fase
instrutória. Essa é a base e o fundamento central para o entendimento preliminar da
construção participada do mérito processual no contexto das ações temáticas, que
279

deve ser visto como o fundamento legitimante do provimento jurisdicional no Estado


Democrático, proposições teóricas essas que serão trazidas no capitulo
subseqüente.
280

4. PROCESSO COLETIVO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Estado Democrático de Direito trouxe para o direito processual substanciais


alterações paradigmáticas, especialmente no sentido de compreender o processo, a
jurisdição e a ação sob o enfoque constitucional. Nessa seara, o processo passa a
ser visto como uma garantia constitucional que viabiliza o exercício da cidadania por
meio da concretização dos Direitos Fundamentais expressamente previstos no plano
constituinte. A superação do modelo autocrático de jurisdição, centrado
essencialmente no poder conferido aos julgadores de decidir unilateralmente as
pretensões a eles submetidas, ocorreu com o advento da co-participação de todos
interessados na construção do provimento jurisdicional. A revisitação teórica das
condições da ação permitiu aos estudiosos inseri-las no contexto das questões
meritórias, a fim de assegurar o amplo acesso ao Judiciário e, especialmente, o
direito de todos os legitimados serem inseridos no espaço processual de discussão
analítica da pretensão deduzida.
Os reflexos dessas proposições são visíveis quando se verificam inúmeras
críticas ao clássico modelo de processo coletivo, constituído basicamente a partir de
ideais liberais e individualistas, preconizado pelo processo civil brasileiro vigente. A
teoria das ações coletivas como ações temáticas foi proposta no sentido de
democratizar o entendimento constitucionalizado do processo coletivo, não o
compreendendo mais a partir do sujeito, mas sim, a partir do objeto da ação coletiva
proposta. Assim, Vicente de Paula Maciel Júnior, ao criticar o rol taxativo de
legitimados à ação civil pública e às demais ações coletivas, propõe a ampliação da
participação no processo coletivo, estendo a todos os sujeitos juridicamente
interessados no provimento.
Será a partir dessas considerações iniciais que se pretende discutir a
problemática envolvendo o mérito processual participado nas ações coletivas, a fim
de superar a delimitação do número de sujeitos legitimados, ampliando a
possibilidade dos interessados, em geral, apresentarem tempestivamente temas
correlatos à pretensão inicialmente deduzida em juízo e, assim, terem a
possibilidade de influir diretamente no conteúdo meritório da decisão judicial. Assim,
tanto as questões de mérito, quanto o próprio mérito processual nas ações
temáticas, decorrem basicamente da releitura democrático-constitucionalizada do
processo coletivo.
281

4.1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO E DA JURISDIÇÃO NO ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A democratização do processo coletivo perpassa pela superação do modelo


técnico-autocrático do processo e da jurisdição como recintos da perpetuação da
vontade exclusiva do julgador e pelo advento do entendimento crítico-
constitucionalizado do modelo de processo, que se materializa por meio de um
espaço procedimental-legitimante, em que o provimento jurisdicional é reflexo do
debate isonômico e incessante das questões meritórias por todos os sujeitos que
poderão ser atingidos pelos efeitos jurídicos do conteúdo decisório.
Os estudos do processo como instituição constitucionalizada apta a reger, em
contraditório, ampla defesa e isonomia, o procedimento, como direito-garantia
fundamental, desponta inicialmente na obra do jurista mineiro José Alfredo de
Oliveira Baracho (LEAL, 2009, p. 84). O movimento de constitucionalização do
processo e da jurisdição coincide com a desconstrução teórica da ideologia que
sedimentou uma hermenêutica que se desenvolveu basicamente a partir da
sabedoria inata do julgador, dando lugar à hermenêutica constitucional e
democrática dos Direitos Fundamentais, centrada em critérios objetivamente
jurídicos e utilizados como parâmetro ao discurso processualizado e à aplicabilidade
do principio da fundamentação das decisões judiciais, como reflexos do devido
processo legal (ressalta-se que o devido processo legal deve ser compreendido
como o prolongamento do processo constitucional e de suas extensões
procedimentais).
Nesse ínterim, o processo deixa de ser visto como mero instrumento 247 para o
exercício da jurisdição e de proclamação da vontade do julgador como o único

247
Quando Cândido Rangel Dinamarco proclama, ao se contrapor a Fazzalari, que a diferença entre
ambos “é que o professor de Roma põe o Processo ao centro do sistema” enquanto a proposta é que
“ali se ponha a jurisdição”, conclui-se facilmente que o insigne professor paulista e seus inúmeros
discípulos, em todo o Brasil e no mundo, ainda não fizeram opção pelo estudo do direito democrático,
pensando ainda ser o plano da DECISÃO exclusivo do decididor (juiz) e não um espaço
procedimental de argumentos e fundamentos processualmente assegurados até mesmo para discutir
a legitimidade da força do direito e dos critérios jurídicos de sua produção, aplicação e recriação.
Em face da teoria constitucional legalmente adotada na Constituição brasileira de 1988, o momento
decisório não é mais a oportunidade de o juiz fazer justiça ou tornar o direito eficiente e prestante,
mas é o instante de uma DECISÃO a ser construída como resultante vinculada à estrutura
procedimental regida pelo PROCESSO constitucionalizado.
Nessa perspectiva, que é de direito democrático, o processo não é instrumento da jurisdição ou mera
relação jurídica entre partes e juiz, porque é instituição-eixo do principio do existir do sistema (aberto)
normativo constitucional-democrático e que legitima o exercício normativo da jurisdicionalidade em
282

legitimado a decidir, e passa a redesenhar sua finalidade na perspectiva em que o


compartilhamento do centro das decisões passou a legitimar todos os interessados
difusos e coletivos na construção discursivo-democrática do conteúdo que integrará
o mérito do provimento jurisdicional. Buscou-se, com isso, instituir o discurso
democrático como o referencial teórico para o estabelecimento de critérios jurídicos
da decisão judicial compartilhada. A teoria neo-institucionalista do processo248, de
autoria do jurista mineiro Rosemiro Pereira Leal, de cunho dialógico-popular, propõe
o estudo do processo como uma instituição constitucionalizada hábil a assegurar
irrestritamente o controle dos procedimentos político-jurídicos, num espaço
discursivo-processualizado que legitima o exercício da cidadania.
O processo na Teoria do direito democrático deve ser visto como um sistema
de institucionalização do discurso que oportunizará a legitimação do provimento pela
participação das partes juridicamente interessadas na argumentação da pretensão
deduzida. As proposições que teorizarão o direito democrático são produto da
instauração do discurso no plano instituinte e constituinte, uma vez que “a
positivação do direito democrático não parte de uma ontologia ínsita à norma
(nomogênese), como preconizam os jusnaturalistas, os fenomenologistas e os
realistas, em suas múltiplas e engenhosas vertentes conjecturais, mas é elaborado
no recinto discursivo de juridificação procedimental definidora dos critérios de
produção, aplicação e garantia de direitos” (LEAL, 2002, p. 75-76).
Os reflexos do direito democrático na seara do processo coletivo são
exteriorizados pelo exercício da cidadania249, que é um conceito que não deve ficar
adstrito à participação dos interessados no processo. A leitura mais adequada da
cidadania, sob a égide do modelo constitucional de processo, é aquela que se

todas as esferas de atuação do Estado que, por sua vez, também se legitima pelas bases
processuais institutivas de sua existência constitucional (LEAL, 2002, p. 68-69).
248
[...] o que se busca com uma teoria neo-institucionalista do processo é a fixação constitucional
do conceito do que seja juridicamente processo, tendo como base produtiva de seus conteúdos a
estrutura de um discurso advindo do exercício permanente da cidadania pela plebiscitarização
continuada no espaço processual das temáticas fundamentais à construção efetiva de uma
Sociedade Jurídico-Política de Direito Democrático (LEAL, 2009, p. 89) (grifo nosso).
249
É que, quando escrevemos, em direito democrático, sobre cidadania como conteúdo de
processualização ensejadora da legitimidade decisória, o que se sobreleva é o nivelamento de todos
os componentes da comunidade jurídica para, individual ou grupalmente, instaurarem procedimentos
processualizados à correição (fiscalização) intercorrente da produção e atuação do direito positivado
como modo de auto-inclusão do legislador-político-originário (o cidadão legitimado ao devido
processo legal) na dinâmica testificadora da validade, eficácia, criação e recriação do ordenamento
jurídico caracterizador e concretizador do tipo teórico de estabilidade constitucionalizada.
Em direito democrático, o processo abre, por seus princípios institutivos (isonomia, ampla defesa,
contraditório) um espaço jurídico-discursivo de auto-inclusão do legitimado processual na comunidade
jurídica para a construção conjunta da sociedade jurídico-política. [...] (LEAL, 2002, p. 150).
283

constrói pela legitimidade de ampla fiscalidade do sujeito quanto à validade, a


eficácia, a criação, a aplicação e a interpretação do direito e da norma jurídica
utilizados como critérios e fundamentos da decisão.
Ser cidadão, no contexto da processualidade democrática, é ter a
possibilidade de influenciar diretamente no conteúdo da decisão a partir do direito
legitimo de discussão do conteúdo meritório da demanda. Outro ponto relevante a
ser ressaltado é que, tanto a participação no processo quanto o direito de amplo
controle do conteúdo de todos os provimentos estatais somente serão corolários do
exercício pleno da cidadania se os sujeitos estiverem isonomicamente no mesmo
plano processual de argumentação fático-jurídica da pretensão. O mérito processual
será democraticamente construído se a participação dos interessados difusos e
coletivos for livremente exercida e desenvolvida no sentido de efetivar a ampla
fiscalização da atividade do julgador no ato de decidir.
Cidadão é todo o sujeito de direito com oportunidade de legitimar o
provimento democrático pelo amplo controle dos atos ensejadores ao exercício da
função jurisdicional, ressaltando-se que tal fiscalização é continuada, ou seja, desde
o ponto decisório de criação até o momento de aplicação do direito. A atividade
fiscalizatória é exercida por quem detém a titularidade do direito de ação, que deve
ser visto como um direito incondicionado e irrestrito em que os próprios destinatários
do provimento podem se reconhecer como co-autores da normatividade vigorante. A
cidadania é conseqüência da processualização constitucionalizada do conceito de
“povo”, uma vez que a noção de soberania popular deve ser vista na perspectiva de
um sujeito, cujo exercício da cidadania, perpassa pela condição de protagonista do
discurso ora instaurado no espaço processual democratizado pela argumentação.
Nesse contexto torna-se necessário esclarecer que os fundamentos teóricos
do Estado Democrático de Direito encontram-se na explicação de que a democracia
é o regime político capaz de garantir formal e materialmente o exercício dos direitos
fundamentais, cuja legitimidade perpassa pela participação dos seus destinatários
na construção das normas jurídicas, dos provimentos estatais e do mérito
participado no modelo constitucional de processo coletivo a partir da teoria do
discurso, conforme entendimento preconizado por Habermas:

Neste ponto, é possível enfeixar as diferentes linhas de argumentação, a


fim de fundamentar um sistema dos direitos que faça jus à autonomia
privada e pública dos cidadãos. Esse sistema deve contemplar os direitos
284

fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente,


caso queiram regular sua convivência com os meios legítimos do direito
positivo (2003, p. 154).

Nesse mesmo sentido se manifesta Habermas: “A idéia da autolegislação de


civis exige que os que estão submetidos ao direito, na qualidade de destinatários,
possam entender-se também enquanto autores do direito” (2003, p. 157). A
teorização da legitimidade democrática dos provimentos decorre essencialmente da
interpretação sistemático-constitucionalizada do principio da soberania popular como
corolário a justificar a impossibilidade do legislador estabelecer peremptoriamente
um rol taxativo de legitimados à propositura das ações coletiva que não contemple o
cidadão. Busca-se fundamento em Habermas para o entendimento da gênese da
democracia por se tratar inegavelmente de um dos primeiros pesquisadores a
desenvolver estudos sistematizados do tema no âmbito da teoria do discurso,
mediante o reconhecimento da autonomia dos sujeitos atuarem como efetivos
cidadãos habilitados à influir decisivamente no mérito da demanda.
Para Vicente de Paula Maciel Junior, citando Habermas, constata-se o Estado
sempre teve um fundamento ou alguma razão que o justificasse, de modo a haver o
reconhecimento de seu poder (por exemplo, no Estado Teocrático o que legitimava o
exercício do poder era Deus). No momento em que o Estado perde esse referencial
que o legitima ao exercício do poder vê-se na necessidade de reestruturar sua auto-
organização jurídica, a fim de compartilhar o seu centro decisório. É nesse contexto
que se verifica a sedimentação do principio participativo, visto que o Estado passa a
ser visto com um dos interlocutores, juntamente com os diversos segmentos da
sociedade, a estabelecer um processo de participação dos sujeitos quanto às
diversas pretensões existentes dentro dessa sociedade. Assim, “[...] o poder do
Estado Democrático de Direito, que seja formado por cidadãos livres e iguais, deve
pressupor a participação dos diversos segmentos da sociedade e suas instituições
através de processos de linguagem que estabeleçam as discussões sobre as
diversas pretensões de validade dos sujeitos participantes [...]” (MACIEL JUNIOR,
2006, p. 49).
A superação da filosofia da consciência (cujo foco da reflexão filosófica
encontrava-se na ontologia e na essência das coisas) pelo advento da filosofia da
linguagem permitiu a reconstrução de todo o pensamento filosófico, uma vez que o
discurso democrático passa a ser visto como a condição para a produção do
285

conhecimento, ou seja, a linguagem passa a ser vista como “o objeto da reflexão


filosófica para a esfera dos fundamentos de todo o pensar” (ALMEIDA, 2005, p. 40).
Nessa seara sabe-se que o direito, a partir do processo constitucional, assume a
função de estabilizar a linguagem, com o propósito de assegurar iguais
oportunidades de participação dos sujeitos no discurso democrático 250. A criação de
um espaço processualizado que legitima isonomicamente todos os interessados a
debaterem amplamente a pretensão sob a perspectiva jurídica e fática deve ser vista
como conditio sine qua non ao entendimento crítico do mérito processual participado
nas ações temáticas.
O estudo do processo no Estado Democrático de Direito somente é possível a
partir da Constituição, tendo em vista que o processo deve ser visto como garantia
constitucional, a jurisdição251 como um Direito Fundamental e a ação como um
direito incondicionado de discutir o mérito das pretensões mediante o amplo e efetivo
acesso ao Judiciário. A construção da noção constitucionalizada de processo, como
instituição voltada para a efetivação dos Direitos Fundamentais previstos no plano
constituinte, decorre da necessidade dos estudiosos em superar a concepção
técnica de um modelo de processo visto como mero instrumento para o exercício da
jurisdição, através do qual a gestão e a condução de toda a relação processual são
exercidas exclusivamente pelo julgador, sem permitir qualquer ingerência das partes
interessadas quanto ao objeto discutido processualmente.
O advento de estudos voltados à sistematização crítica de uma concepção de
processo que contemple o exercício da cidadania a partir do principio da
participação permite o redimensionamento de toda a teoria clássica do processo
coletivo, cuja democratização pressupõe, inicialmente, a observância do principio da
supremacia da constituição e do devido processo legal, tal como explicita, de forma
muito clara e objetiva, o jurista Ronaldo Bretas de Carvalho Dias:

250
Nas sociedades complexas, devido à pluralidade de interesses e ao alto grau de insatisfação, a
linguagem é frágil e por isso instável, para sozinha tornar previsível as decisões. Então, o direito
assume a função de estabilizar a linguagem, ou seja, institucionaliza, atribui validade às pretensões
de verdade (proposições), o que faz Habermas mais tarde transpor o agir comunicativo para o agir
discursivo mediado pelo direito, vindo a construir a teoria discursiva do direito, momento em que irá
contrapor a visão liberal de democracia à visão republicana, para elaborar uma compreensão
procedimentalista da democracia e introduzir uma proposta procedural do discurso para a
compreensão da emancipação humana (ALMEIDA, 2005, p. 41).
251
[...] a jurisdição, sob ângulos de jurisdiciariedade ou jurisdicionalidade geral, é a atividade e
instrumento do Estado, submetidos à principiologia do processo como pressuposto inarredável de
garantia máxima de direitos fundamentais na Sociedade Democrática de Direito (LEAL, 2009, p.
65).(grifo nosso).
286

Em síntese, mais uma vez escudado na doutrina de Baracho, podemos


dizer que a teoria constitucionalista do processo toma por base a idéia
primeira da supremacia das normas da Constituição sobre as normas
processuais. Considera o processo uma importante garantia constitucional,
daí a razão pela qual surge consolidada nos textos das Constituições do
moderno Estado Democrático de Direito, sufragando o direito das pessoas
obterem a função jurisdicional do Estado, segundo a metodologia normativa
do processo constitucional. A viga-mestra do processo constitucional é o
devido processo legal, cuja concepção é desenvolvida tomando-se por base
os pontos estruturais adiante enumerados, que formatam o devido processo
constitucional ou modelo constitucional de processo: a) o direito de ação
(direito de postular a jurisdição); b) o direito de ampla defesa; c) o direito ao
advogado ou ao defensor público; d) o direito ao procedimento desenvolvido
em contraditório; e) o direito à produção da prova; f) o direito ao processo
sem dilações indevidas; g) o direito a uma decisão proferida por órgão
jurisdicional previamente definido no texto constitucional (juízo natural ou
juízo constitucional) e fundamentada no ordenamento jurídico vigente
(reserva legal); h) o direito aos recursos (DIAS, 2010, p. 92-93).

O processo constitucional252 deverá ser visto como um recinto que oportuniza


o debate da pretensão por todos os interlocutores e interessados na produção do
provimento estatal. Importante ressaltar, que a participação no processo será regida
pelos princípios constitucionais que legitimarão o discurso democrático de
construção do provimento, a fim de assegurar:

a) a igualdade jurídica de argumentação a todos os sujeitos do processo;


b) o direito dos interessados livremente produzirem provas e se utilizarem dos
meios de provas licita e legitimamente admitidos em direito;
c) a garantia de que as partes não serão surpreendidas por uma decisão
unilateralmente imposta pelo julgador que não permite a co-autoria dos destinatários
do provimento;
d) o direito a uma decisão judicial juridicamente fundamentada e produto da
análise, pelo julgador, de todos os temas, as questões e as alegações trazidas pelas
partes para o processo; ou seja, a validade e a constitucionalidade de uma decisão

252
O processo lastreado em um modelo constitucional (Andolina, Vignera) constitui a base e o
mecanismo de aplicação e controle de um direito democrático. Processo democrático não é aquele
instrumento formal que aplica o direito com rapidez máxima, mas, sim, aquela estrutura normativa
constitucionalizada que é dimensionada por todos os princípios constitucionais dinâmicos, como o
contraditório, a ampla defesa, o devido processo constitucional, a celeridade, o direito ao recurso, a
fundamentação racional das decisões, o juízo natural e a inafastabilidade do controle jurisdicional.
Todos esses princípios serão aplicados em perspectiva democrática se garantirem uma adequada
fruição de direitos fundamentais em visão normativa, além de uma ampla comparticipação e
problematização, na ótica policêntrica do sistema, de todos os argumentos relevantes para os
interessados (DIAS, 2010, p. 92 apud NUNES, 2008, p. 247-250).
287

judicial pressupõe o dever do julgador se manifestar, de forma fundamentada, sobre


todas as questões postas pelas partes e que integram a matéria de mérito objeto da
demanda;
e) a efetividade processual é corolário dos princípios da celeridade processual
e da duração razoável do processo, cuja leitura deve ser feita sob a ótica do tempo
do processo e não do tempo cronológico, ou seja, um processo regularmente efetivo
é aquele em que não existem dilações indevidas, as partes tem o direito de
argumentação ampla (sem a supressão ou a limitação do direito ao debate da
pretensão por questões atinentes ao tempo cronológico), as partes não praticam a
litigância de má-fé ou qualquer outro ato condizente a violação do principio da
lealdade processual. A realidade é que o principio da efetividade processual não
pode ser utilizado como pressuposto ao cerceamento de defesa e à sumarização da
cognição;
f) o exercício da cidadania, considerada um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito, somente será possível através do processo constitucional,
visto como uma garantia assegurada a todos os jurisdicionados e legitimados de
influir substancialmente nos fundamentos que integrarão o conteúdo decisório do
provimento de mérito.

A teorização do estudo do processo no modelo constitucional se justifica na


busca da superação do decisionismo judicial decorrente das percepções
metajurídicas253 do juiz com relação ao julgamento do caso concreto. “O juiz ou o
decididor, nas democracias, não é livre intérprete da lei, mas o aplicador da lei como
intérprete das articulações lógico-jurídicas produzidas pelas partes construtoras da
estrutura procedimental” (LEAL, 2009, p. 63). A atividade construtora do provimento
não deve decorrer de atos, de posturas ou de condutas solitárias dos juízes, visto
que, precisa ser compartilhada entre todos os interlocutores e interessados na

253
Se colocado o problema de acerto da decisão sob crivos principiológicos assistemáticos, como se
as sentenças fossem atos isolados dos juízes, afasta-se também, nesse contexto, a conquista
jurídico-teórica do processo (devido processo constitucional) como instituição regente da
estruturação dos procedimentos pelo contraditório, ampla defesa, isonomia das partes, direito ao
advogado e à movimentação incondicional da jurisdição. Com efeito, a hermenêutica desenvolvida no
procedimento processualizado, nas democracias plenas, não se ergue como técnica interpretativa do
juízo de aplicação vertical (absolutista) do direito, mas como exercício democrático de discussão
horizontal de direitos pelas partes no espaço-tempo construtivo da estrutura procedimental fixadora
dos argumentos encaminhadores (preparadores) do provimento (sentença) que há de ser “a
conclusão” das alegações das partes e não um ato eloqüente e solitário de realização de justiça
(LEAL, 2009, p. 57).(grifo nosso).
288

elaboração do provimento. A isonomia discursiva é requisito à observância dos


princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, visto que a
legitimidade democrática da decisão perpassa pela possibilidade das partes
interessadas não serem surpreendidas com o conteúdo e os fundamentos do
julgado, muitas vezes desconexos e contrários àqueles argumentos e questões que
orientaram todo o debate do objeto da ação temática.
O devido processo legal é um principio cuja compreensão não pode ser
reduzida aos princípios do contraditório e da ampla defesa254, uma vez que a sua
observância no contexto da constitucionalidade democrática é pressuposto da
legitimação do conteúdo da matéria de mérito discutida processualmente. O Devido
Processo Constitucional não é o exercício da jurisdição (autoritária), como atividade
ou poder pessoal do juiz, quanto à análise do mérito processual, mas a garantia de
esgotamento do debate e de testificação dos argumentos que integram o cerne da
pretensão. Não é o julgador quem define unilateralmente as questões de mérito,
sem antes consultar as partes interessadas. A observância do principio do devido
processo legal somente ocorrerá quando houver o compartilhamento da atividade do
juiz e das partes interessadas quanto à definição das questões de mérito que
nortearão todo o discurso processual255.
“O contraditório deixa de ser um mero atributo do processo e passa à
condição de principio (norma) determinativo de usa própria inserção na estruturação
de todos os procedimentos preparatórios dos atos jurisdicionais (LEAL, 2002, p. 88).
Trata-se de principio que traduz a dialogicidade necessária entre os interlocutores,
oportunizando o amplo debate, exercendo a liberdade de dizer, contradizer e
silenciar-se quanto ao conteúdo do processo. Não podemos restringir o
entendimento do contraditório à idéia de bilateralidade, pois o que se busca é a
dialeticidade entre os sujeitos legitimados ao processo, não apenas entre o autor e o

254
[...] o instituto do devido processo legal define-se pela coexistência dos princípios da ampla
defesa (necessariamente aqui incluído o direito ao advogado) e do contraditório, acrescentando-se o
da isonomia à configuração constitucional da instituição do processo. (LEAL, 2009, p. 65).
255
A parte já constitucionalmente legitimada é o agente do dever-ser normativo (devido processo
legal) que se concretiza na procedimentalidade (efeito expansivo) para criação (legiferação) ou
definição (judicação) do direito. O espaço-político (isegoria) de criação do direito só será continente
democrático se já assegurados os conteúdos processuais dialógicos da isonomia – que são
isotopia, isomenia e isocrítica -, em que haja, portanto, em sua base decisória, igualdade de todos
perante a lei (isotopia), igualdade de todos de interpretar a lei (isomenia) e igualdade de todos de
fazer, alterar ou substituir a lei (isocrítica). Essa situação jurídico-processual devida é que permitirá a
enunciação das democracias como governo de uma nova totalidade social concreta, isto é: povo
concretizador e criador da sua própria igualdade jurídica pelo devido processo constitucional
(LEAL, 2009, p. 61).(grifo nosso).
289

demandado na relação processual. A argumentação desenvolvida por meio do


contraditório é corolário da legitimação do espaço discursivo-processual, haja vista
que não é possível estabelecer condições ou impor restrições ao exercício do direito
de debate do mérito processual da demanda. No exercício da atividade jurisdicional
o julgador é o gestor do processo e quem legitimamente controlará e deverá garantir
a todos os interessados o exercício do contraditório.
A efetivação do contraditório no modelo constitucional do processo não ocorre
apenas com a oportunidade das partes interessadas debaterem a pretensão
deduzida. O enfrentamento, pelo juiz, de todas as alegações perpetradas
judicialmente pelas partes deve ser vista como a essência do principio em questão.
O cerceamento de defesa se configura em dois momentos: a) quando o julgador
deixa de oportunizar o direito de diálogo e de debate da pretensão pela parte
interessada; b) sempre que o julgador se esquivar do dever de análise jurídica das
questões processuais e meritórias suscitadas pelas partes, comprometendo-se, por
conseqüência, a aplicabilidade do principio do dever de fundamentação jurídico-legal
e constitucional das decisões e dos provimentos jurisdicionais. O contraditório é um
principio que foi instituído como norma jurídica regente do processo constitucional
para evitar que os sujeitos legitimados ao processo sejam surpreendidos com
decisões as quais não tiveram a oportunidade de interferir e de participar da
construção discursiva.
A participação do processo garantida pela efetividade do contraditório
materializa o direito das partes interessadas sustentar teses e alegações com o
propósito de convencer o órgão julgador, tal como sustenta Luiz Guilherme Marinoni
e Daniel Mitidiero:

Partindo-se da compreensão do direito fundamental ao contraditório como


direito à participação, como direito a convencer o órgão jurisdicional (art. 5º,
Constituição da Republica Federativa do Brasil), a completude da motivação
só pode ser aferida em função dos fundamentos argüidos pelas partes, na
medida em que o direito fundamental ao contraditório impõe o dever de o
órgão jurisdicional considerar seriamente as razões apresentadas pelas
partes em seus arrazoados (Supremo Tribunal Federal, Pleno, Mandado de
Segurança 25.787/DF, relator Ministro Gilmar Mendes, julgamento em
8/11/2006, Diário de Justiça de 14/09/2007, p. 32) (2010, p. 554).
290

A dialogicidade como pressuposto lógico do contraditório deve ser uma


garantia estendida não apenas à parte autora e à parte demandada, tendo em vista
que o julgador, o Ministério Público e qualquer outro interessado na construção do
provimento têm autonomia de interagir processualmente e debater, de forma livre e
independente, os fundamentos da demanda. Não estender o contraditório a todo
legitimado ao processo (individual e coletivo) é acarretar a nulidade do cerne do
provimento, uma vez que tal decisão não poderá ser reconhecida e legitimada pelo
ordenamento jurídico-constitucional e democrático brasileiro pelo fato de violar as
diretrizes legais de construção discursivamente isonômica do mérito processual.
A ampla defesa é um principio considerado coextensão da igual oportunidade
de argumentação jurídica da pretensão por todos os legitimados ao processo. A
amplitude na defesa deve ser garantida através, não apenas, do direito de diálogo
da pretensão, mas, acima de tudo, da possibilidade das partes produzirem provas
legitimamente adequadas ao caso concreto e com o fim de fundamentar e de
justificar suas alegações. O exercício das prerrogativas atinentes à defesa da parte
também devem ser asseguradas e extensíveis igualmente a todos os demais
sujeitos interessados. É por isso que o direito de produzir provas não é assegurado
de forma exclusiva ao autor ou ao demandado na ação proposta; a legitimidade do
julgador determinar, de ofício, a produção de provas, com o propósito de enriquecer
o debate dos fundamentos da pretensão, bem como a possibilidade de qualquer
interessado requerer a produção de qualquer prova legitimamente admitida em
direito são bons exemplos para ilustrar a dimensão teórica do principio da ampla
defesa.
O exaurimento dos argumentos e das provas possíveis e necessariamente
produzidas não pode ser suprimido cronologicamente pelo dogma da celeridade, da
economia e da efetividade processual. Isso significa dizer que uma possível
sumarização da cognição, concretizada pela limitação da ampla defesa e do
contraditório, terá como conseqüência a nulidade do provimento. Não se pretende
aqui sustentar a realização de demandas coletivas intermináveis; pelo contrário, é
nítida a necessidade de estabelecimento de prazos preclusivos para regulamentar o
exercício da ampla defesa e do contraditório nas ações temáticas. Entretanto,
enquanto não ocorrer o advento da preclusão temporal e do momento em que o
julgador fixará os pontos controvertidos na fase saneadora do procedimento, as
partes interessadas terão legitimidade para levantar qualquer argumento, produzir
291

todas as provas necessárias ao esclarecimento objetivo da pretensão e se utilizar de


todos os meios lícitos e legítimos, admitidos em direito, para assegurar a amplitude
adequada à construção do mérito processual.
O estudo da jurisdição e a sua releitura crítica são fundamentais para o
entendimento da problemática cientifica proposta na presente pesquisa, qual seja,
os critérios e os fundamentos jurídico-constituicional-democráticos de construção
participada do mérito processual nas ações temáticas.
A jurisdição no Estado Democrático de Direito não pode ser vista e
compreendida como uma atividade pessoal do juiz ou o poder de julgar de forma
justa, tendo em vista que se trata de uma “atividade estatal subordinada aos
princípios e fins do processo” (LEAL, 2009, p. 66), ou seja, não devemos
compreender a jurisdição como uma atividade jurídico-resolutiva e pessoal do juiz,
mas o próprio conteúdo da lei conduzido pelos agentes indicados na lei democrática
(LEAL, 2009, p. 63). Nesse mesmo sentido critico se manifesta pontualmente
Rosemiro Pereira Leal

Já, por muitas vezes, falamos da polissemia exalada pela palavra “justiça”
prodigamente utilizada pelos juristas que colocam a jurisdição como
módulo central do sistema teórico e normativo do Direito Processual, a
exemplo de Cândido Rangel Dinamarco, dizendo que o “processo é
permeável aos influxos axiológicos da sociedade, devendo o modo de ser
do processo estar presente no espírito do juiz no momento do julgamento”.
Evidente que, a aceitar sem reservas tais colocações, o processo se
transfigura em estranha ritualística de judicância carismática, num
retrocesso desalentador que chega às raias do hermetismo, porque só
plenamente operável por uma sensibilidade superior e imanente ao bom
juiz, como donativo da divindade (LEAL, 2009, p. 66).(grifo nosso)

O estudo sistemático da jurisdição constitucional perpassa pela revisitação


dos seus aspectos teóricos primordiais, quais sejam, a noção de que o exercício da
atividade jurisdicional decorre da legitimidade do julgador dizer, de forma livre, o
direito mais adequado ao caso concreto, podendo, assim, se utilizar de critérios e
parâmetros jurídicos e metajurídicos256 (juízos axiologizantes, juízos de equidade)

256 É certo que o juízo do bem e do mal das condutas humanas é feito em primeiro lugar pelo
legislador e depositado no texto da lei, mas também ninguém desconhece que esta, uma vez posta,
se destaca das intenções de quem a elaborou e passa a ter o seu próprio espírito; a mens legis
corresponde, assim, ao juízo axiológico que razoavelmente se pode considerar como instalado no
texto legal. Ao juiz cabe esse trabalho de descoberta. Mesmo não sendo legislador ou a ele
equiparado, mesmo negando-se que o juiz seja substancialmente criador de direitos e obrigações
(repúdio à Teoria Unitária do ordenamento jurídico), mesmo desconsiderando-se a influência que
emana do direito jurisprudencial (Richterrecht), ainda assim sempre é preciso reconhecer que o
292

para a criação, a interpretação e a aplicação do direito mais adequado ao caso


concreto. Os reflexos desse entendimento quanto ao estudo do mérito é que a
legitimidade para a definição das questões relevantes a integrar a matéria de mérito
é uma prerrogativa exclusiva do julgador. Não são as partes que direcionam o
debate do mérito, mas sim, será a autoridade do juiz quem conduzirá toda a
apreciação, a análise e a interpretação de quaisquer alegações de fato e de direito
que integrarão a decisão meritória solitariamente proferida pelo decididor.
Submeter o tema jurisdição à reflexão cientifica na seara da
constitucionalidade democratizante é perceber que se trata de uma atividade
exercida pela principiologia regente do processo (contraditório, ampla defesa, devido
processo legal, isonomia processual) e de forma compartilhada pelo julgador e todos
os demais sujeitos legitimados ao debate processual da pretensão deduzida.
Inspirado nesses fundamentos que Ronaldo Bretas de Carvalho Dias entende que a
jurisdição constitucional deve ser vista como um Direito Fundamental

[...] no Estado Democrático de Direito, a jurisdição é direito fundamental das


pessoas naturais e jurídicas, sejam estas de direito público ou de direito
privado, porque positivado ou expresso no texto da Constituição Federal de
1988 (art. 5º, inciso XXXV). Exatamente por isto, se é direito fundamental do
povo, em contrapartida, é atividade-dever do Estado, prestada pelos seus
órgãos competentes, indicados no texto da própria Constituição, somente
possível de ser exercida sob petição daquele que a invoca (direito de ação)
e mediante a indispensável garantia fundamental do devido processo
constitucional (art. 5º, incisos LIII, LIV e LV) (2010, p. 74-75).

Partindo-se da pressuposição de que a jurisdição é um Direito Fundamental,


cuja titularidade pertence a toda pessoa física ou jurídica que demonstre interesse
com relação a uma determinada pretensão, sabe-se que o exercício das atribuições

momento da decisão de cada caso concreto é sempre um momento valorativo. Como todo intérprete,
incumbe ao juiz postar-se como canal de comunicação entre a carga axiológica atual da sociedade
em que vive e os textos, de modo que estes fiquem iluminados pelos valores reconhecidos e assim
possa transparecer a realidade de norma que contém no momento presente. O juiz que não assuma
essa postura perde a noção dos fins de sua própria atividade, a qual poderá ser exercida até de modo
bem mais cômodo, mas não corresponderá às exigências da justiça. Para o adequado cumprimento
da função jurisdicional, é indispensável boa dose de sensibilidade do juiz aos valores sociais e às
mutações sociológicas de sua sociedade. O juiz há de estar comprometido com esta e com as suas
preferências. Repudia-se o juiz indiferente o que corresponde a repudiar também o pensamento do
processo como instrumento meramente técnico. Ele é instrumento político, de muita conotação ética,
e o juiz precisa estar consciente disso. As leis envelhecem e também podem ter sido mal feitas. Em
ambas as hipóteses carecem de legitimidade as decisões que as considerem isoladamente e
imponham o comando emergente da mera interpretação gramatical. Nunca é dispensável a
interpretação dos textos legais no sistema da própria ordem jurídica positiva em consonância com os
princípios e garantias constitucionais (interpretação sistemática) e sobretudo à luz dos valores aceitos
(interpretação sociológica, axiológica) (grifo nosso) (DINAMARCO, 1996, p. 294-295).
293

legais do julgador deve condizer com a iniciativa de viabilizar a constituição de um


espaço processual de debate e de testificação dos fundamentos inerentes ao objeto
da ação temática. No âmbito do processo coletivo a jurisdição constitucional deverá
ser exteriorizada mediante postura adotada pelo julgador no sentido de assegurar
amplamente a ingerência e a participação de qualquer interessado difuso e coletivo
na construção do mérito processual, tal como ocorre, por exemplo, no caso da ação
direta de inconstitucionalidade, cuja natureza coletiva da pretensão deduzida
acarretará a institucionalização de um espaço processual em que os julgadores são
vistos como um dos sujeitos legitimados ao amplo debate das peculiaridades fáticas
e jurídicas das questões que integram a matéria de mérito.
A jurisdição constitucional não é sinônimo de autoridade ou poder do julgador
no ato de decidir solitariamente de forma constitucionalizada e, por isso, não pode
ser vista e compreendida como a autonomia conferida a Tribunais Estaduais e
Superiores de julgar unilateralmente pretensões a ele submetidas, sem permitir
qualquer interferência dos legitimados ao provimento. A constitucionalização da
jurisdição, agora vista como um Direito Fundamental corolário da cidadania, viabiliza
a qualquer interessado o direito de construção participada de toda e qualquer
decisão judicial cujos efeitos jurídicos poderão afetá-lo.
Constitui dever de o julgador conduzir o procedimento, a fim de dar
publicidade quanto à existência desse espaço processual, demonstrar a relevância
da participação no processo e convocar todos os interessados, para que haja amplo
envolvimento na discussão das questões postas e levadas a juízo. O juiz, enquanto
gestor do processo tem que adotar uma postura pró-ativa quanto à condução
participada e discursiva do procedimento, visando compartilhar a legitimidade da
atribuição legal de decidir. Certamente essa postura assumida pelo julgador refletirá
na efetividade processual, no amplo acesso ao Judiciário e, por conseguinte, na
construção isonomicamente discursiva do mérito processual.
Todo o debate jurídico desenvolvido até então se volta para a reflexão de que
o processo e a jurisdição, compreendidos sob o patamar da constitucionalidade
democrática, prestam-se à revisitação de toda a dogmática jurídica que norteou o
entendimento do direito processual, especialmente até a primeira metade do século
XX.
Verifica-se a ruptura paradigmática e a tendência de superação de um modelo
de processo voltado à resolução de conflitos de interesses individuais, diretamente
294

pela experiência, pela maturidade e pelo notável conhecimento jurídico do julgador.


O modelo constitucional de processo busca retirar das mãos do julgador a
legitimidade exclusiva do ato de decidir, a fim de oportunizar o compartilhamento do
centro das decisões entre todos os sujeitos interessados no provimento.
A ressemantização da jurisdição pela hermenêutica constitucional traduz-se
na superação dos critérios subjetivos e metajurídicos utilizados pelos julgadores no
ato de decidir, em virtude do advento de fundamentos de natureza constitucional que
nortearão os juízes a se utilizarem do processo como uma instituição legitimada ao
reconhecimento dos Direitos Fundamentais.
Os reflexos de todas essas proposições teóricas, no contexto do processo
coletivo, coincidem com a necessidade de elaboração de uma teoria geral do
processo coletivo que contemple o modelo de processo constitucional no Estado
Democrático de Direito e que se estruture na proposta de criação e de utilização do
espaço processual como o lócus jurídico garantidor da argumentação, da
dialogicidade e da dialética instaurada entre os sujeitos legitimados ao debate da
pretensão. O exercício da cidadania, a partir do principio participativo, passa a ser
visto como a prioridade do processo coletivo democrático, que se volta,
essencialmente, para a busca de um maior controle da atividade jurisdicional, pelos
interessados no provimento. É nesse sentido que Vicente de Paula Maciel Junior
afirma que o processo coletivo é “uma forma de participação difusa dos sujeitos na
fiscalização da legalidade de atos praticados e que podem ser anulados pelo Poder
Judiciário, com evidentes repercussões na vida dos indivíduos” (2006, p. 119).
O fato das demandas coletivas afetarem um número indeterminado de
pessoas, inclusive o próprio Estado, é que se torna necessária a observância do
principio democrático como norma jurídica regente do processo coletivo, a fim de
assegurar a todos a maior amplitude possível de controle dos critérios norteadores
do debate fático-jurídico a ensejar a construção participada do mérito processual no
contexto das ações temáticas.
O processo coletivo democrático é uma instituição constitucionalizada que
reconhece o direito de qualquer interessado acionar o Judiciário através do direito de
petição e, a partir disso, ingressar como legitimado direto ao debate da pretensão
coletiva. Os adeptos do sistema representativo, como referencial teórico de um
modelo de processo coletivo que não se compatibiliza com a ordem constitucional
democrática, afirmam que o exercício do direito de ação dar-se-á por meio de órgãos
295

intermediários257 (como o Ministério Público), dotados de uma legitimidade


pressuposta para representar os interesses da coletividade. Tal entendimento limita
o acesso ao Judiciário, no momento em que obstaculiza o direito de participação dos
interessados difusos e coletivos no debate processual de construção do mérito da
demanda. O argumento comumente utilizado pelos teóricos que propugnam pela
representatividade como norte definidor da legitimidade processual ativa nas ações
coletivas é que, uma possível ampliação do rol de legitimados, a fim de assegurar a
participação de todos os interessados, poderia estender demasiadamente o
resultado final da decisão no processo coletivo.

4.2 O SISTEMA PARTICIPATIVO E A TEORIA DO DISCURSO COMO FUNDAMENTOS

REGENTES DO PROCESSO COLETIVO DEMOCRÁTICO

A Democracia é um paradigma de Estado cujo entendimento perpassa pelo


exercício amplo das liberdades dos cidadãos orientarem-se por meio da participação
nos processos deliberativos dos quais resultam decisões que poderão afetar toda a
coletividade. O constitucionalismo contemporâneo voltou-se para a sistematização
da coletivização dos Direitos Fundamentais, que deixam de ser vistos e
compreendidos na sua essência apenas sob o prisma individual para, assim, passar
a ser pensado no contexto da transindividualidade. A autodeterminação democrática
é corolário do exercício da cidadania pelo principio participativo.
Os espaços de interlocução são vistos como lócus de formação de opiniões
dos cidadãos por meio de redes de discussões que visam construir o consenso
coletivo e a gestão dos dissensos, oferecendo subsídios, conteúdos e critérios para
deliberações participadamente tomadas e que venham a atender o interesse da
coletividade. Além do principio da participação ser visto como a viga mestra do
257
Como conseqüência e reação a essa força participativa que pode surgir dos direitos coletivos e
difusos, e das ações coletivas para a sua tutela, os agentes políticos tendem a criar ou atribuir
competências aos chamados órgãos “intermediários” (Ministério Público, associações, Órgão de
Defesa do Consumidor, Delegacias de Ordem Econômica, ombudsman) e que em muitos casos
pertencem ao próprio governo. Sob o argumento de que com isso viabilizam a tutela dos direitos,
esses agentes políticos encaminham projetos de lei no sentido de restringir a legitimação para agir
somente a esses entes intermediários, excluindo o indivíduo da possibilidade de demandar para
a tutela de outros interessados. Some-se a isso que os argumentos utilizados para justificar essa
posição são extraídos exatamente do direito processual civil individual, no sentido de afirmar inclusive
que a viabilidade da demanda coletiva estaria comprometida se a legitimação fosse estendida a todos
os indivíduos, porque não seria identificado o “sujeito” da ação (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 120).
296

Estado Democrático de Direito, sabe-se que os fundamentos genuínos de uma


democracia encontram-se na legitimidade de controle dos cidadãos dos atos
praticados pelo Estado e que versam direta ou indiretamente sobre os direitos da
coletividade. Trata-se de um exercício difuso e continuo praticado pelos sujeitos
legitimados ao processo coletivo, e não por um mecanismo de escolha dos
representantes municiados de legitimidade para levantar demandas e apresentar
propostas de soluções que versam sobre direitos metaindividuais.
A delegação de representatividade dos cidadãos àqueles sujeitos
majoritariamente eleitos para a gestão da coletividade deve ser vista
democraticamente como um sistema através do qual todos os cidadãos mantêm
intacta a legitimidade de amplo controle e de fiscalização irrestrita dos atos
praticados por todos os sujeitos ou agentes com atribuições legais na gestão
pública. A redefinição dos critérios jus-filosóficos para o estudo crítico da democracia
nas sociedades contemporâneas e plurais funda-se no direito de participação de
todos os legitimados em processos deliberativos, cujo objeto é a proteção jurídica
dos direitos difusos e coletivos. O Estado não deve ser visto como o gestor solitário
e legitimado a deliberar unilateralmente sobre questões inerentes à
metaindividualidade. No lócus social da construção participada dos provimentos o
Estado é mais um sujeito legitimado isonomicamente ao debate das pretensões
coletivas, não podendo impor e sobrepor seu entendimento em detrimento daquele
posicionamento preconizado pela maioria dos interessados.
O Judiciário, o Executivo e o Legislativo, enquanto funções estatais
democráticas passam a ser os legitimados, juntamente com todos os interessados
difusos e coletivos, à gestão e a proteção discursiva dos Direitos Fundamentais, de
uma forma em que todos os provimentos sejam construídos com o propósito de
atender tanto os interesses individuais, quanto os direitos da coletividade. A
integração popular é a forma mais viável e eficiente de instauração do discurso
democrático no lócus processual, a fim de possibilitar a fiscalidade ampla dos
fundamentos jurídicos ensejadores das decisões e das deliberações estatais.
A superação da filosofia da consciência, cujo foco da reflexão cientifica
encontrava-se na cosmologia e na metafísica, pelo advento da filosofia da
linguagem, que passou a utilizar o discurso democrático e a linguagem como
referenciais para a reflexão filosófica, representam a mola propulsora para a
reconstrução do pensamento filosófico com o advento das proposições teóricas de
297

Jurgen Habermas. A revisitação do direito iniciou-se pela reflexão critica da


concepção positivista até então vigente, uma vez que a produção legislativa, a
interpretação e a aplicação das normas jurídicas passaram a ser vistas como
produto de um processo de formação coletiva da opinião e da vontade, “processo
este que se dá sob o esteio de uma cidadania ativa, tendo como pressuposto a
equiprimordialidade entre a autonomia pública e a autonomia privada (MATTOS,
2011, p. 4).
O processo coletivo deve ser resultado da compreensão procedimental e
discursiva dos direitos coletivos e difusos, no contexto da participação dos sujeitos
interessados como agentes da formação da vontade democrática. A guinada
lingüística exteriorizou um paradigma de direito construído pelo processo de
racionalização da linguagem. A intersubjetividade das relações sociais desenvolvida
sob a ótica do modelo constitucional de processo é considerada o fundamento
regente da legitimidade dos provimentos e do mérito processual.
A formação democrática da vontade decorre da convergência dos melhores
argumentos apresentados ao debate no processo deliberativo. É por isso que se
pode afirmar que Habermas “abandona o idealismo kantiano, para construir sua
teoria em torno da teoria da linguagem, da valorização da formação de consensos
sobre pretensões de validade existentes na sociedade e na construção democrática
do direito, tendo por fulcro o agir comunicativo de diversos sujeitos (MACIEL
JUNIOR, 2006, p. 50). A linguagem como realidade fundante de todo o processo
discursivo foi submetida a racionalização cientifica, a fim de estabelecer critérios
objetivos para nortear o que é melhor para a coletividade. No espaço processual
onde se desenvolverá o discurso democrático da pretensão coletiva nunca deverá
prevalecer vontades individuais em detrimento dos direitos transindividuais. A própria
finalidade e utilidade do discurso democrático é o amadurecimento das questões de
mérito que conduzirão todo o debate instaurado entre os legitimados ao provimento.
Integrante da segunda fase da Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas
desenvolveu o eixo de suas proposições teóricas essencialmente a partir da crítica
ao tecnicismo, ao cientificismo e ao modelo das ciências empíricas, que limitavam o
campo da reflexão àquele conhecimento que fosse objetivo e prático. Dentre as
inúmeras proposições criticas destaca-se àquela em que Habermas afirma ser
insuficiente a visão marxista que atrela “o desenvolvimento das instituições sociais
ao modelo econômico e a tendência em tratar indistintamente ciências humanas e
298

ciências da natureza (MATTOS, 2011, p. 123). A linguagem assume importante


papel na teoria habermasiana no momento em passa a ser utilizada como referencial
de critica à filosofia da consciência pelo racionalismo cientifico.
A emancipação do homem pela comunicação ampla, livre, autônoma e
desvinculada de qualquer condição ou coação foi a forma utilizada por Habermas
para buscar a superação da razão instrumental pela razão comunicativa,
considerada uma nova fundamentação para o paradigma da racionalidade do
conhecimento cientifico. O resultado de tudo isso foi a reviravolta lingüística, em que
a linguagem é utilizada como uma forma de expressar a racionalidade. Assim, pode-
se afirmar que “um outro motivo pelo qual Habermas teria optado pela linguagem
como paradigma da razão teria sido a busca de outra forma de racionalidade que
fugisse da unilateralidade da dimensão cognitiva e permitisse estabelecer um
conceito mais amplo de razão” (ARAGÃO, 2002, p. 106).
A contraposição à linguagem tradicional e de cunho estritamente técnico-
descritivo foi um dos principais referenciais para Habermas construir sua teoria do
agir comunicativo. A igualdade de oportunidade de fala assegurada a todos os
sujeitos envolvidos na discussão, a não sobreposição ou prevalência dos interesses
individuais, a exclusão de qualquer medida de coação que venha a limitar a
participação dos sujeitos e a liberdade ampla de argumentação são considerados os
pilares da teoria do agir comunicativo desenvolvida por Habermas. É por isso que o
presente autor “assegura que o discurso, caracterizado como uma forma especial de
comunicação, pressupõe a situação ideal de fala” (MATTOS, 2011, p. 126).
Para Manfredo Araujo de Oliveira, Habermas articula sua teoria da
competência comunicativa em analogia com a teoria lingüística da competência
lingüística de Chomsky; a tarefa específica da teoria da competência comunicativa
“consiste na reconstrução do sistema de regras segundo o qual produzimos ou
geramos, enquanto tal, situações de possíveis fala” (2006, p. 294-296). Nesse
mesmo sentido afirma que “uma teoria da competência comunicativa tem como
tarefa explicar o trabalho realizado pelo falante e pelo ouvinte com o auxilio de
universais pragmáticos, quando eles transformam sentenças em proferimentos.
Parte-se do fato de que o falante e ouvinte usam sentenças em seus proferimentos,
para entrar em entendimento a respeito de estados de coisa” (OLIVEIRA, 2006, p.
297).
299

Foi a partir dessas discussões filosóficas ora apresentadas e da reflexão


crítica da relação existente entre direito e moral258 que Habermas desenvolveu a
teoria discursiva do direito como referencial do Estado Democrático de Direito.
Compete destacar que não constitui objeto da presente pesquisa realizar um estudo
pormenorizado da teoria discursiva do direito e da democracia proposta por
Habermas, em virtude da riqueza da obra do autor. O que se busca, no presente
caso, é analisar os reflexos das proposições teóricas no debate da participação dos
sujeitos legitimados aos provimentos coletivos e, especialmente, no entendimento e
na análise do mérito processual nas ações temáticas.
O desencantamento do mundo pelo advento do racionalismo científico refletiu
substancialmente no entendimento do discurso democrático como parâmetro
legitimante dos provimentos estatais. Houve, especialmente ao longo do século XX,
a superação daquela concepção de que a legitimidade dos atos praticados pelo
Estado era pressuposta, ou muitas vezes decorrente de elementos mítico-
transcendentais e cosmológicos. O que a teoria do discurso desenvolvida por
Habermas pretendeu foi utilizar-se da linguagem como referencial lógico para a
construção de um novo conceito de legitimidade do direito, ou seja, aquele que não
advém do poder ou da autoridade exercidos por um sujeito individualmente, mas sim
produto de uma construção discursivo-filosófica diretamente desenvolvida pelos
258
Andréia Alves de Almeida é pontual ao esclarecer a relação entre o direito e a moral na obra de
Habermas: “Constatamos que o Habermas da primeira fase (teoria da ação comunicativa) ainda
herdeiro da Filosofia do Direito de Kant, pressupondo (imperativo categórico) um poder unificador
inerente à razão comunicativa, imagina para as sociedades complexas uma relação de
complementariedade entre Direito e Moral, que opera com uma normatividade imediata da razão
prático-moral. Assim, até então Habermas não consegue romper com o positivismo sociológico, que
entende o direito como mera expressão da realidade encontrada, deixada pela tradição.
Somente a partir do momento em que Habermas passa a teorizar a moral na contemporaneidade
como resultante de um procedimento argumentativo é que foi possível desvendar e obstruir
elementos transcendentais de nossa epocalidade. Pôde finalmente contribuir para o estudo do direito
também como agente transformador da realidade e teorizar o direito e a moral como co-originários,
rompendo pioneiramente com o positivismo sociológico, que entende que o direito está submetido à
norma moral (Gráfico 1, p. 45). Ele consegue prestar tal contribuição sem recair na redoma de
isolamento colocada pela racionalidade formal weberiana e logo após pelo normativismo de Kelsen
(Gráfico 2, p. 46) entre o direito e a moral, nem no hibridismo do pragmatismo jurídico contemporâneo
(Gráfico 3, p. 34).
O Habermas maduro (1992) compreende que a moral e o direito se complementam reciprocamente
sem se tornarem dependentes, influenciando a reflexão do direito na sociologia jurídica e na filosofia
política como um sistema de ação, que passa a ser discutido como agente transformador da realidade
pelo médium da processualidade, colocando a Teoria do Processo no centro de estudo quanto à
validade, à legitimidade e à operacionalização do direito nas democracias.
Em sociedades pós-metafísicas (cultura da técnica para eliminação dos mistérios), a moral assume a
feição de um procedimento argumentativo e o requisito fundamental da moralidade passa a ser a
universalidade (moral racional, sistema de saber). A moral não obtém obrigatoriedade institucional e
não realiza integração social se não apelar para a relação com o direito. Falta eficácia no
procedimento moral, que sozinho não realiza integração social” (ALMEIDA, 2005, p. 43-44)
300

destinatários do provimento estatal. Além disso, pretendeu-se (re) construir o


conceito de cidadania no prisma da coletivização do debate desenvolvido entre
todos aqueles sujeitos que demonstrem a titularidade da pretensão deduzida.
Para desenvolver sua teoria discursiva Habermas inicialmente enalteceu a
existência e a importância do sistema de direitos, que “deve conter precisamente os
direitos que os cidadãos são obrigados a atribuir-se reciprocamente, caso queiram
regular legitimamente a sua convivência com os meios de direito positivo”
(HABERMAS, 2003, p. 158-159). Esse sistema de direitos compõe-se de direitos
básicos e fundamentais, cuja finalidade é assegurar a autonomia pública e privada
dos cidadãos, a fim de que os mesmos possam livre e igualmente deliberar sobre as
questões objeto do discurso. A problemática da co-originariedade da autonomia
pública e privada é o ponto nevrálgico do discurso democrático, tendo em vista que
o maior desafio certamente é construir um fundamento que justifique, de forma
coerente, qual argumento (individual ou coletivo) deverá prevalecer quando
submetido a um discurso. “O sistema dos direitos possui como tarefa a mediação da
tensão entre as autonomias pública e privada (MATTOS, 2011, p. 134).
Importante esclarecer que não podemos estabelecer, num juízo a priori, qual
o melhor argumento apresentado no âmbito da discursividade democrática; torna-se
necessária a instauração do discurso, com o amadurecimento do debate de todas as
questões postas e trazidas pelas partes para, somente assim, identificar
casuisticamente qual argumento é considerado legitimamente mais adequado para o
caso concreto. Mesmo diante da relevância de uma pretensão coletiva não podemos
hierarquizar direitos e abstratamente sobrepor os direitos coletivos e difusos em
detrimento da proteção jurídica de direitos individuais.
O discurso democrático259, desenvolvido a partir da soberania popular, tem
seus critérios regidos pela teoria dos Direitos Fundamentais, ou seja, embora os
sujeitos legitimados ao discurso tenham legitimidade para debater amplamente a
pretensão deduzida, é de suma importância esclarecer que tal legitimidade é
regrada e disciplinada pela observância e pela proteção dos Direitos Fundamentais.
É o modelo constitucional de processo que assegura a legitimidade democrática da

259
A Teoria do Discurso reconhece o aporte de cada uma dessas tradições para o pensamento
político contemporâneo; a teoria republicana nos ensina que o processo de autoconsciência é feito
por meio da solidariedade obedecendo a estruturas de comunicação pública e ao diálogo envolvendo
questões de valor; seu legado é, pois, a discursividade. A tradição liberal nos mostra uma
característica fundamental do direito moderno que é a formalização e a procedimentalização
(REPOLÊS, 2002, p. 92).
301

teoria do discurso proposta por Habermas, tendo em vista a obrigatoriedade da


isonomia processual, do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e,
acima de tudo, da proteção ampla e integral da ordem constitucional democrática
como um todo. O exercício da autonomia discursiva no âmbito processual é regido
pela teoria do processo constitucional.
Ao desenvolver sua teoria Habermas faz severas criticas a Kant, por entender
que no seu pensamento o direito se justifica a partir de um padrão de moralidade
pressuposta, e também a Rousseau, por demonstrar que os padrões éticos são os
parâmetros regentes ao entendimento do direito. Ambos os autores, ao contrário de
Habermas, não estuda o direito sob o enfoque da sua legitimidade democrática, até
porque preconizam um conceito de legitimidade pressupostamente justificada por
padrões morais e éticos, e não propriamente a partir da linguagem e do discurso
democratizante. O que propõe Habermas é a construção do direito em bases
legitimamente democráticas, em que os próprios destinatários da norma são seus
co-autores260 (MATTOS, 2011, p. 132-134).
O principio do discurso se desenvolve basicamente a partir do principio da
democracia e do principio da moral261, haja vista que para Habermas “são válidas as
normas de ação as quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu
assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais (2003, p. 142). O
260
[...] Habermas afirma que o desejado nexo interno entre autonomia pública e autonomia privada só
será estabelecido quando for possível construir um sistema de direitos que institucionalize
juridicamente as formas de comunicação. [...] Portanto, a co-originariedade da autonomia pública e da
autonomia privada pressupõe uma ordem jurídica identificada como produto da deliberação entre
cidadãos livres e iguais que se enxerguem simultaneamente como autores e destinatários das
normas que regem seu convívio, baseados, pois, no modelo de autolegislação (MATTOS, 2011, p.
134).
261
Do principio do Discurso decorrem outros princípios relacionados aos discursos práticos: o
principio da democracia (principio d) e o principio moral (principio U). o principio moral funciona como
regra de argumentação para uma formação racional de questões morais. Ele trabalha com normas de
ação que só se justificam ao levar em conta o interesse simétrico de todos. Por outro lado, o principio
da democracia trabalha com normas de ação que derivam da forma do Direito e podem ser
justificadas sob três aspectos: morais, éticos e pragmáticos.
Portanto, é de se afirmar que o principio da democracia, ao recepcionar argumentos pragmáticos,
ético-políticos e morais, diferentemente do principio moral, trabalha não apenas com o auxilio de
normas morais. O principio do Discurso, na medida em que seja institucionalizado juridicamente,
transmuda-se em principio da democracia. Habermas afirma, com isso, que o principio da democracia
exige um procedimento de normatização legítima do Direito, ou seja, as leis só conseguem adquirir
legitimidade se contarem com o assentimento de todos os afetados pelo Direito por meio de um
processo discursivo de formação da vontade. Isto porque o principio da democracia viabiliza a
possibilidade de se justificar / fundamentar o sentido de uma prática de autodeterminação em que os
membros do Direito possam se reconhecer como livres e iguais.
Habermas afirma que o principio moral trabalha como regra de argumentação para a decisão racional
de questões morais exatamente pelo fato de que só podem ser justificadas levando-se em conta o
interesse simétrico de todos, transformando-se numa espécie de regulador de argumentos.
(MATTOS, 2011, p. 135-136).
302

conceito de validade não decorre de concepções técnico-herméticas, visto que


norma válida, na perspectiva habermasiana, é toda aquela que materializa a
possibilidade de satisfação discursiva das pretensões pelos seus verdadeiros
destinatários. “Discursos racionais denotam qualquer tentativa de se estabelecer um
entendimento sobre pretensões de validade problemáticas que possibilitam a livre
movimentação de informações, contribuições e argumentos no âmbito de um espaço
público pautado por obrigações ilocucionárias” (MATTOS, 2011, p. 135).
O principio básico da democracia é o direito de simétrica participação dos
interessados nos processos de formação da vontade e da opinião. É necessário
oferecer a todos os interessados iguais condições de participação na construção do
provimento. O processo de formação da vontade coletiva deverá ser produto da
vontade comum, discursivamente construída pela autonomia argumentativa de cada
sujeito interessado na pretensão ou no objeto do debate.
Os Direitos Fundamentais devem ser interpretados como o fundamento
regente, o substrato e o limite da argumentação desenvolvida no âmbito
participativo, ou seja, devem ser vistos como condição e conseqüência do
procedimento discursivo. O respeito à autonomia privada e à autonomia pública dos
cidadãos são primordiais à legitimidade do discurso democrático, que se desenvolve
constitucionalmente no âmbito do processo e cuja finalidade é assegurar aos
cidadãos liberdade e igualdade em suas deliberações, para que se sintam autores e
destinatários das normas e de todos os provimentos que regulam a sua convivência.
A institucionalização jurídica do principio do discurso pelo modelo
constitucional de processo ensejou a sistematização de inúmeros Direitos
Fundamentais hábeis a legitimar democraticamente o espaço discursivo de debate
da pretensão, quais sejam: a) o direito de ação, exteriorizado como o direito de
petição, traz no seu bojo a possibilidade de qualquer legitimado requerer a
instauração de um lócus (espaço) de argumentação e de debate fático-jurídico da
pretensão; b) a autonomia assegurada a qualquer interessado individual, coletivo ou
difuso, de postular judicial e extrajudicialmente, a proteção jurídica de um
determinado bem de sua titularidade; c) a igualdade jurídica de argumentação
assegurada a todos os legitimados ao provimento, sem qualquer distinção que
possa vir a ensejar a limitação, a restrição ou a supressão de todo ou de parte do
espaço processual de argumentação jurídica; d) o direito estendido a qualquer
303

interessado de não ser surpreendido com qualquer provimento que não tenha sido
submetido ao procedimento discursivo.
A processualização constitucionalizada do discurso democrático é o médium
lingüístico para garantir a legitimidade dos provimentos fora de uma realidade nua,
ou seja, o discurso jurídico não pode ter como conseqüência a prevalência de
determinados argumentos construídos pelo juízo da autoridade, pela imposição do
dogma do melhor argumento, pela sobreposição de direitos coletivos sobre direitos
individuais, assim como se ressalta a vedação a todo tipo de conduta praticada no
sentido de delimitar ou de restringir o espaço de argumentação processual.
A compatibilização dos interesses individuais com os direitos de natureza
transindividual é considerada um dos grandes desafios enfrentados pela sociedade
contemporânea. Importante esclarecer inicialmente que a legitimidade do processo
coletivo democrático não poderá ser construída em cima de uma falsa ideologia que
prega abstratamente a supremacia dos direitos coletivos e difusos com relação aos
direitos de natureza individual. A pertinência da critica ora realizada se justifica em
face da evidente distinção envolvendo as pretensões coletivas e as pretensões
individuais. Mesmo assim, caso haja alguma pretensão envolvendo o debate
simultâneo de pretensões coletivas e individuais, ressalta-se que a resolução dessa
questão passará pelo amadurecimento do debate sistemático dos fundamentos
fáticos e jurídicos que ensejarão a construção participada do mérito processual no
contexto da constitucionalidade democratizante dos Direitos Fundamentais.
O paradigma procedimentalista de Habermas “assegura a cada cidadão o
direito de tomar parte nas decisões políticas e jurídicas que lhe circundam”
(MATTOS, 2011, p. 143). Assim, o cidadão deterá a legitimidade para atuar, de
forma decisiva, em todos os debates ocorridos na sociedade civil, envolvendo
particulares, associações, o próprio Estado e qualquer outra pessoa interessada no
provimento, de tal forma a decidir e a deliberar sobre questões envolvendo direitos
aos quais são titulares.
A racionalização do discurso pelo processo assegura aos indivíduos
condições jurídicas de exercício pleno da cidadania. “Para Habermas, os cidadãos
são, necessariamente, pessoas morais, possuidoras de um senso de justiça e,
conseqüentemente, de uma concepção própria do que seja o bem” (MATTOS, 2011,
p. 146). Sob o prisma do processo coletivo, a implementação da cidadania no
Estado Democrático de Direito somente ocorrerá quando a definição da matéria e
304

das questões de mérito for uma prerrogativa exclusivamente assegurada aos


interessados, cabendo ao julgador analisar a coerência, a legitimidade e os
fundamentos das pretensões levantadas por qualquer interessado difuso ou coletivo.
Habermas, ao discorrer sobre o paradigma procedimentalista, procurou estabelecer
e garantir a todos os membros da comunidade jurídica condições necessárias para
deliberar, interpretar, efetivar e aplicar os ditames trazidos pela Constituição vigente,
através de processos deliberativos que assegurem a concretização dos Direitos
Fundamentais previstos no plano constituinte.
Nas denominadas sociedades de massa, marcadas pela diversidade e pela
pluralidade de direitos de natureza individual e coletiva, o modelo constitucional de
processo é visto como a única possibilidade de garantir a legitimidade do direito
mediante a observância do principio participativo 262 como norma jurídica regente do
principio do discurso e da legitimidade dos provimentos.
O principio do discurso, enquanto principio regente da linguagem263 e do
processo de criação democrática do Direito, deve ser aplicado tanto no plano da
criação, da produção, da aplicação das normas, quanto no plano legislativo,
jurisdicional e administrativo. A justificativa de tal afirmação encontra-se na
adequada interpretação extensiva do processo constitucional como um modelo
adequado a atender não somente as pretensões individuais, mas, acima de tudo,
para garantir a proteção jurídica dos bens cuja titularidade pertence à coletividade.
É nesse contexto todo que se insere a problemática cientifica da presente
pesquisa. Busca-se, ao longo de todo debate cientifico, demonstrar que o modelo
constitucional de processo é o adequado para garantir o entendimento do processo

262
É nesta idéia de poder comunicativo mobilizado que Habermas ancora o conceito de comunidade
de intérpretes proposto por Haberle, especialmente porque os princípios e o sistema de direitos
fundamentais abstratamente configurados na Constituição ganham densidade e corporificação
apenas através de um processo hermenêutico do qual todos devem participar (CITTADINO, 2000, p.
211).
263
A linguagem está sempre encerrada num determinado contexto social e participa da consciência
dos comunicantes para efetivar-se. Toda comunicação é permeada por uma dimensão intencional e
reside aí, naquilo que revela, oculta ou recria. Em outras palavras e segundo a orientação da lingüista
Villaça Koch, da UNICAMP, a linguagem deve ser “encarada como forma de ação, ação sobre o
mundo e dotada de intencionalidade, veiculadora de ideologia, caracterizando-se, portanto, pela
argumentatividade”. A autora dispõe ainda, em complemento a esta idéia supra citada – que compõe,
até certo ponto, o objetivo maior de suas proposições no campo da argumentação – que a linguagem
deve ser analisada como capacidade de refletir de maneira critica sobre o mundo e em especial sobre
a utilização da língua como instrumento de interação social.
Se pensarmos as relações do direito com o mundo a partir desta teoria, ou seja, a filosofia analítica,
podemos, enfim, compreender como o sistema jurídico pode ter um fechamento operacional, e
também pode, ao mesmo tempo, abrir-se para o mundo externo, interagindo com este, completando-
o e sendo completado (GONTIJO, 2011, p. 142).
305

coletivo democrático sob a ótica da Teoria das Ações Coletivas como Ações
Temáticas. A partir dessa teoria todo o processo coletivo no Brasil é revisitado por
meio de novas proposições desenvolvidas no patamar da constitucionalidade
democrática. O aprofundamento no debate científico referente à construção do
mérito processual somente é possível mediante o entendimento sistemático das
ações temáticas enquanto lócus de sedimentação do amplo debate democrático de
todas as particularidades de ordem fática e jurídica envolvendo, direta ou
indiretamente, a pretensão coletiva ou difusa levada ao Judiciário. No próximo item
será desenvolvido um estudo especifico com o propósito de explicitar e explicar os
pilares teóricos utilizados para o entendimento crítico das ações temáticas.

4.3. TEORIA DAS AÇÕES COLETIVAS COMO AÇÕES TEMÁTICAS: O PROCESSO COLETIVO
VISTO SOB A ÓTICA DO OBJETO (NÃO DO SUJEITO )

As proposições científicas desenvolvidas pelo jurista Vicente de Paula Maciel


Júnior, autor da Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, refletem a
tentativa de reconstrução do modelo clássico de processo coletivo proposto pela
Escola Paulista de Processo, cujo foco de análise concentra-se no sistema
representativo e parte de pressuposições teóricas trazidas do processo civil como
norte ao entendimento da legitimidade para agir nos direitos coletivos. Muitos
autores, como Ephraim de Campos Junior264, ressaltam que um dos maiores

264
Vicente de Paula Maciel Junior, ao discorrer sobre o tema, expõe: “Ephraim de Campos Jr. (1985,
p. 86-96) admite grandes dificuldades enfrentadas na questão da legitimação quando se trata dos
interessados difusos e coletivos em face de haver um declínio da concepção individualista do
processo, normalmente centradas nas relações intersubjetivas, para a adoção de uma nova
perspectiva, hoje direcionada para a solução de conflitos metaindividuais. Para o autor, a solução da
legitimidade nessas categorias de interesses poderia ser encontrada com a admissão da substituição
processual, adotando-se a legitimação extraordinária concorrente dos diversos co-interessados, o que
viabilizaria uma tutela efetiva com o fornecimento de todos os substituídos em virtude da atividade do
substituto.
Existe a tendência, segundo informa, de se adotar a substituição processual através dos corpos
intermediários, como associações, sindicatos, devendo, no entanto, haver limites para se evitarem
abusos. A seguir enumera várias hipóteses que considera representativas da substituição processual,
quais sejam: o art. 513, a da CLT; Lei 6.708/79, que confere a legitimidade ao sindicato para agir na
qualidade de substituto processual para obter os reajustes deferidos nesta Lei; a Lei 1.134/50, que
defere às associações de classe a representação perante às autoridades administrativas e a Justiça
ordinária; Lei 4.215/63, que confere à Ordem dos Advogados do Brasil o poder de representação dos
interesses gerais da classe dos advogados e os individuais da profissão (atual Lei 8.906/94, art. 44,
inciso II); Lei 6.766/79, que confere às associações comunitárias, ao Ministério Publico, e ao vizinho,
a qualidade de parte legitima para agir no sentido de impedir a construção em desacordo com
restrições e posturas legais e contratuais. E conclui que a enumeração das vantagens de se adotar a
306

desafios enfrentados pelos estudiosos do processo coletivo diz respeito à


legitimação para agir e, por isso, propõe o sistema representativo como alternativa
viável a assegurar a proteção jurídica dos direitos da coletividade ou de um grupo de
pessoas devidamente representado. Trata-se de um meio através do qual os
interessados difusos e coletivos se sentem representados, tem os seus direitos
protegidos e, acima de tudo, podem exercer o contraditório por meio ou por
intermédio do seu representante, que poderá ser uma instituição, como as
associações e os sindicatos.
A análise científica da legitimação para agir emergiu como o grande foco do
debate do processo coletivo, uma vez que a tendência dos estudiosos atualmente é
adotar para as ações coletivas o modelo de legitimação anteriormente desenvolvido
no processo civil individual. O que o atual modelo de processo coletivo propõe é a
escolha dos sujeitos legitimados feita diretamente pelo legislador, ou seja,
abstratamente se define quem serão os sujeitos legitimados a propositura de uma
ação coletiva. O respectivo modelo é falho no momento em que se verifica ser
impossível analisar de forma prévia e abstrata quem serão os sujeitos legitimados à
demanda coletiva.
A noção prévia que podemos construir teoricamente para compreender a
legitimidade é que o legitimado processual a uma ação coletiva, tanto no pólo ativo
quanto no pólo passivo, deve ser todo aquele sujeito com aptidão a sofrer os efeitos
jurídicos do provimento, ressaltando-se que tal constatação não é possível no plano
abstrato, haja vista que se condiciona à existência e à análise detalhada de um caso
concreto. Por se tratar de pretensões coletivas não é possível auferir
preliminarmente quem serão os afetados por eventual decisão judicial, uma vez que
somente mediante estudo perfunctório dos meandros e das especificidades da
demanda coletiva é que poderemos visualizar a extensão e os efeitos jurídicos de
eventual provimento jurisdicional.
Ao contrário do processo civil, que estabelece a titularidade individual da
pretensão deduzida, no processo coletivo sempre quem propõe a ação não será o

substituição como mecanismo hábil para a defesa dos interesses difusos e coletivos, ressaltando os
seguintes aspectos: não haver para o interessado ausente, que é representado no processo, a ofensa
ao principio do contraditório; poder ser formada com relação ao substituído a coisa julgada ultra
partes; haver a congregação de ações relativas a interesses econômicos relativamente pequenos, os
quais, se levados a cabo individualmente, teriam pouco estimulo ao demandante; a substituição
processual serve como adequação a uma fase de transição da visão individualista do processo para a
concepção social de direitos (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 133-134).
307

único interessado na demanda coletiva. Além disso, existem casos em que o próprio
autor da ação detém a capacidade postulatória sem, portanto, ser um dos titulares
da pretensão coletiva, como é o caso do Ministério Público e da Defensoria Pública,
que atuam na condição de legitimado extraordinário.
A capacidade postulatória não pode ser confundida com a condição de
legitimado processual à demanda coletiva. A legitimidade das partes ao processo
coletivo se materializa no momento em que são resguardadas no direito de participar
da construção e da análise das questões que integram o mérito da pretensão. O fato
de o legitimado extraordinário deter a capacidade postulatória e poder participar do
debate das questões meritórias não excluirá o direito dos demais interessados
difusos e coletivos participarem do processo. A institucionalização jurídica da
legitimidade processual extraordinária no processo coletivo não pode ser vista como
instrumento de supressão, limitação ou extinção do direito dos interessados
participarem do debate processual do objeto da demanda coletiva.
Considerando-se que o processo coletivo democrático é o lócus do debate
jurídico e amplo da pretensão, serão legitimados ao provimento todos aqueles
sujeitos que demonstrarem interesse em participar do discurso jurídico da pretensão.
A partir da análise critica do principio democrático no contexto das ações temáticas,
o rol de legitimados processuais à propositura de uma ação coletiva sempre deverá
ser exemplificativo, ou seja, não se admite e não se reconhece jurídico-
constitucionalmente o rol taxativo de legitimados, haja vista que essa é uma forma
ilegítima de exclusão dos interessados do debate processual das questões
meritórias que integram o objeto da demanda. Por isso, é importante esclarecer que
o atual modelo de processo adotado pelo Brasil e produto das contribuições
cientificas de estudos desenvolvidos pelos representantes da Escola Paulista de
Processo (Ada Pelegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Cândido Rangel Dinamarco),
não é compatível com o Estado Democrático de Direito em virtude de adotar um rol
taxativo de legitimados dotados de uma pseudo-legitimidade jurídica de
representação dos sujeitos titulares de direitos metaindividuais, excluindo-se, desse
rol proposto, o próprio cidadão e titular individual de direitos coletivos e difusos de
ser autor de uma ação coletiva.
A instauração regular do principio do contraditório no processo coletivo
democrático ocorrerá quando for conferida “a possibilidade de titulares de situações
subjetivas diversas participarem da demanda ao lado do legitimado ordinário”
308

(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 132). Considerando-se que o contraditório é um principio


constitucional cuja interpretação deverá ser sistemática e extensiva (nunca
restritiva), conclui-se que sua efetividade e aplicação somente será possível quando
todos os interessados e legitimados puderem ser inseridos como sujeitos do debate
processual. Para os defensores de um modelo de processo coletivo centrado em
bases representativas o contraditório seria exercido por meio ou por intermédio do
representante que, em nome do (s) representado (s) teria legitimidade para a
argumentação. A principal critica que podemos fazer quando se analisa essa
problemática cientifica é que o exercício do contraditório por um representante do
grupo, da classe ou de toda a coletividade certamente impedirá o esgotamento das
questões e dos fundamentos postos em debate causando, por conseqüência, o
esvaziamento do discurso democrático em virtude da limitação e da restrição das
diretrizes e dos pilares estruturais do principio democrático da participação no
processo coletivo.
O que se observa é os pesquisadores que trabalham e defendem o modelo
de processo coletivo a partir da legitimação de um representante do grupo ou da
coletividade argumenta a questão no sentido de demonstrar que se trata de um meio
vantajoso para os interessados, tendo em vista que não teriam o dever de se
manifestar diretamente no processo sobre o objeto posto em debate, uma vez que
gozariam da prerrogativa de um representante adequado, presumidamente
habilitado e disposto a exercer o papel de sujeito do processo em nome da maioria
dos legitimados. Essa concepção vigente no Brasil é reflexo de um modelo de
processo que se desenvolveu e se instituiu em cima da ideologia de que a abertura
para a participação de todos os interessados poderia tornar a relação processual
excessivamente morosa e em descompasso com os princípios da celeridade e da
economia processual.
É temerário reconhecer como legitimo tal entendimento, visto que argumentos
ideológicos construídos a partir de uma visão cronológica e temporal do processo
não podem ser considerados democraticamente legítimos, haja vista que são
instrumentos de sumarização da cognição e de limitação substancial do espaço
processual de debate jurídico e fático do cerne do objeto da ação coletiva.
Reduzir a compreensão do principio do contraditório à representação dos
direitos da coletividade por um representante adequado é retirar dos interessados
difusos e coletivos o direito de influir na formação do provimento jurisdicional, uma
309

vez que a legitimação para agir no processo coletivo deve ser entendida como a
legitimidade de todos os protagonistas do processo que sofrerão os efeitos da
decisão. Foi por isso que Fazzalari reconstruiu o conceito de parte em suas
proposições teóricas, ao afirmar que parte não é aquele que propõe ou em desfavor
de quem se propõe uma determinada ação; considera-se como parte no processo
todo aquele sujeito de direito destinatário do provimento. É nesse sentido que se
afirma que “o eixo referencial da legitimação para agir, segundo Fazzalari, situa-se
no provimento, que permitirá com base na situação legitimante, que se identifique
quem será o sujeito que, dentre os participantes do processo (as partes, o juiz,
auxiliares do juízo, Ministério Público quando exigido), poderá ou deverá cumprir
certo ato processual” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 134).
É nesse contexto do debate cientifico que podemos afirmar que a legitimidade
extraordinária no processo coletivo não poderá excluir a participação daqueles
sujeitos que serão afetados pelo provimento. O representante adequado é aquele
sujeito que atua em nome próprio na defesa dos direitos dos demais interessados e,
por isso, poderia ser enquadrado no conceito de legitimado extraordinário. Isso
significa dizer que aqueles sujeitos que sofrerão os efeitos jurídicos da coisa julgada
coletiva não foram incluídos no processo de construção participada do mérito, uma
vez que se verifica a transferência ou a delegação da legitimidade dos interessados
difusos e coletivos para a pessoa do representante adequado.
O instituto do representante adequado retira qualquer possibilidade de
construção participada do mérito processual nas ações coletivas, tendo em vista que
é uma forma de retirar ou de excluir a participação dos legitimados à construção do
provimento e ao exercício do contraditório. É daí que decorre a incompatibilidade do
modelo de processo coletivo vigente no Brasil com o paradigma do Estado
Democrático de Direito. O fenômeno da coletivização das demandas judiciais não
pode ser reduzido “a um sistema de representação no qual se reconheceria a um
ente ou a uma pessoa a qualidade para representar a vontade de todos” (MACIEL
JUNIOR, 2006, p. 135).
Vincenzo Vigoritti (1979, p. 3) afirma que a instituição da democracia
representativa, expressão do pensamento jurídico liberal, vivencia uma expressiva
crise de natureza irreversível, uma vez que seus fundamentos não são mais
suficientes para viabilizar a construção do entendimento democrático-
constitucionalizado do modelo de processo coletivo que efetivamente assegure a
310

participação popular. Enaltece em sua obra a insuficiência das construções teóricas


sobre o interesse de agir no processo civil como critério regente ao entendimento da
legitimidade de agir no processo coletivo. Ao discorrer sobre o instituto da
legitimidade de agir no processo coletivo Vigoriti propõe dois modelos alternativos de
atribuição da legitimidade de agir na tutela dos direitos coletivos:

[...] No primeiro resta fixada a legitimação de qualquer titular (das posições


de vantagem que confluem no coletivo) que poderão deduzir em juízo o
interesse substancial (seu e conjuntamente a outros). Mas são
estabelecidos mecanismos capazes de assegurar a reunião em um
único procedimento das iniciativas processuais contemporaneamente
assumidas por vários legitimados, garantindo conjuntamente a
conformidade de efeitos do acertamento jurisdicional no confronto de todos
os sujeitos titulares das posições de vantagem que gravitam em torno do
coletivo.
O modelo alternativo a esse, segundo Vigoriti é aquele de atribuir o trabalho
de deduzir em juízo o interesse coletivo somente a alguns dos titulares das
posições de vantagem que o compõe. Nesses casos não se limitariam o
controle e coordenação das possíveis iniciativas dos co-interessados, mas
negar-se-ia a alguns a legitimação a deduzir em juízo um interesse que é
individual e coletivo ao mesmo tempo, submetendo todos os
cointeressados aos resultados do processo (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 136-
137 apud VIGORITI, 1979, p. 105).(grifo nosso)

Pela análise das proposições trazidas verifica-se que Vigoriti trabalha


distintamente o instituto da legitimidade processual nas ações coletivas quando o
direito é coletivo e quando é de natureza individual homogênea (pretensões
individuais decorrentes de direitos metaindividuais ou coletivos de origem comum). A
indivisibilidade e a indisponibilidade, inerentes aos direitos coletivos, na concepção
proposta por Vigoriti permite reunir num único procedimento (relação processual)
todos os legitimados ao debate da pretensão, a fim de assegurar isonomicamente o
direito de influir na construção do mérito. “Para Vigoriti (1979, p. 104) o interesse
coletivo designa uma relação organizada entre uma pluralidade de posições de
vantagem autônomas, iguais e orientadas a um mesmo resultado” (MACIEL
JUNIOR, 2006, p. 151).
O fato de Vigoriti afirmar que o interesse coletivo se materializa nas
“necessidades que possam e que devam ser satisfeitas em um único bem” (MACIEL
JUNIOR, p. 151) demonstra claramente o descuido teórico em diferenciar
311

cientificamente os conceitos de direito e de interesse265. Fica muito evidente em sua


obra a utilização de fundamentos do direito civil e do processo civil como parâmetros
de suas conclusões científicas acerca do processo e do direito coletivo. Muitas vezes
se percebe que o autor visualiza o direito coletivo como uma mera junção dos
interesses individuais, uma vez que a vontade coletiva seria produto da limitação das
liberdades individuais, tal como proposto por Jean Jacques Rousseau ao discorrer
sobre o contrato social. A vontade coletiva seria vista como a confluência e a
conjunção de posições individuais que dizem respeito à coletividade. “A
conseqüência processual dessa renúncia que ocorre de cada individuo em prol do
coletivo é a atribuição da legitimação para agir a um ente ou pessoa, que vai exercer
a representação de todos os interessados, agindo e vinculando todos eles” (MACIEL
JUNIOR, 2006, p. 151-152).
É por isso que para Vigoriti é dispensável a presença de todos os titulares e
legitimados no processo coletivo, haja vista deixar claro em sua obra que a
representatividade adequada dos interesses da coletividade por um sujeito
individualmente é suficiente para garantir a justiça e a eficácia da decisão
(VIGORITI, 1979, p. 101-102). “[...] é absolutamente natural que os legitimados a
agir em juízo possam ser também somente alguns dos muitos titulares dos
interesses entre eles correlatos de maneira coletiva” (MACIEL JUNIOR, 2006, p.
150).
Reduzir o conceito de direito coletivo à ideologia de junção, de produto ou de
colusão de interesses individuais comuns, assim como sustentar que o fenômeno de
coletivização das demandas decorre da renúncia parcial de direitos e de liberdades
individuais para garantir a convivência no espaço público e a preservação (proteção
jurídica) da coletividade certamente é uma forma muito simplória de explicar a
complexidade das pretensões que emergem das relações sociais constituídas
contemporaneamente em sociedades plurais, marcadas pela diversidade dos
direitos e dos interesses das pessoas. A sistematização teórica do direito coletivo e
do processo coletivo se justifica a partir da tentativa de compreender cientificamente

265
Interesse é a manifestação de um sujeito em face de um bem para suprir suas necessidades.
Vontade Individual é a expressão do interesse individual. Vontade Coletiva é a expressão,
representação do interesse atribuído a um grupo, depois de o mesmo haver deliberado segundo o
processo de escolha e legitimação do interesse prevalente dentre os diversos interesses dos
membros do grupo, segundo a lei vigente (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 154).
312

os meandros das relações jurídicas constituídas tanto no âmbito das


individualidades, quanto no contexto das transindividualidades.
Torna-se necessário repensar a teoria geral do direito privado a fim de
constituir uma teoria geral do direito e do processo coletivo, para que se possa
contemplar uma visão mais crítica, coerente e sistematizada da socialização dos
direitos. A proteção jurídica das demandas coletivas não pode ser vista como uma
forma de limitar ou restringir as liberdades individuais, até porque os bens de
natureza individual são absolutamente distintos daqueles de cunho metaindividual,
motivo esse que justifica o cuidado e a habilidade dos estudiosos ao sistematizar
sua proteção jurídica no Estado Democrático de Direito. As ações temáticas são
construções teóricas propostas justamente com o intuito de viabilizar a
ressemantização de todo o processo coletivo, a partir de uma concepção
democrático-constitucionalizada, cujo fundamento regente se encontra no direito de
participação processual de todos os interessados difusos e coletivos quanto à
construção discursiva do mérito processual.
O processo de formação da vontade coletiva decorre de deliberações dos
interessados e de um sério e profundo debate em que todas as questões atreladas
ao objeto central sejam submetidas à testificação. É por isso que no processo
coletivo, compreendido sob o enfoque das ações temáticas, as decisões judiciais
não são proferidas exclusivamente a partir do entendimento do julgador. A formação
de uma decisão judicial deve ser reflexo e conseqüência de tudo o que foi posto em
discussão pelas partes. É certo que a vontade da maioria não reflete e nem
representa o interesse de todos os titulares do direito debatido. O provimento
jurisdicional coletivo será considerado legitimamente democrático quando todas as
questões postas em debate forem levadas em consideração no momento do juiz
decidir. Mesmo que o julgador não concorde ou não acate as teses e as alegações
suscitadas pelas partes, sabe-se que o contraditório somente se efetivará quando
houver manifestação judicial fundamentada acerca de tudo o que foi submetido ao
principio do discurso. “Somente por processos reconhecidos válidos pelos indivíduos
ou pela lei é que será possível chegar a um consenso que exprima a vontade
coletiva” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 154).
A validação e a legitimidade democrática vontade coletiva deve ser vista
como a expressão do consenso decorrente das inúmeras manifestações de
interesses individuais acerca de uma determinada questão de relevância coletiva.
313

Torna-se necessário ampliar, estender e esgotar o debate coletivo da pretensão,


com a finalidade de assegurar efetivamente o direito de todos os interessados se
sentirem co-autores do provimento.
É inadequada a utilização das expressões interesse coletivo, interesse difuso
e interesse individual homogêneo, uma vez que a gênese do conceito interesse
encontra-se no liberalismo clássico com conotações essencialmente individuais 266.
Quando nos referimos às pretensões metaindividuais recomenda-se a utilização da
expressão direitos, e não interesses. Os direitos difusos visam a tutela de bens que
afetam um número indeterminado de pessoas. Os titulares dos direitos difusos
denominam-se interessados difusos, “que são todos aqueles que manifestam um
interesse em face do bem tutelado genericamente pela lei” (MACIEL JUNIOR, 2006,
p. 155).
A tutela normativa dos direitos difusos e coletivos, sob a ótica do modelo
constitucional de processo, deverá decorrer da instauração de um procedimento
através do qual as questões coletivas e difusas são submetidas ao debate antes
mesmo de serem deliberadas e legalmente regulamentadas. Isso evidencia que a
constitucionalização do processo coletivo não se limita ao âmbito jurisdicional,
estendendo-se também ao campo do processo legislativo e do processo
administrativo, em face da natureza transindividual das questões e das pretensões
levadas ao debate. Na seara legislativa o devido processo constitucional deverá
reger todo o procedimento de produção de normas jurídicas, enquanto que a
constitucionalização do processo administrativo perpassa pela legitimidade dos
interessados controlarem a legalidade dos atos praticados pelos agentes e pela
Administração Pública.
Tais colocações evidenciam a amplitude do objeto de estudo do processo
coletivo democrático, que sob o viés da constitucionalidade e dos Direitos
Fundamentais abarca todas as pretensões que ultrapassam a esfera individual e que
são submetidas à análise do processo jurisdicional, legislativo e administrativo.
Assim, resta esclarecer que a aplicabilidade da teoria das ações coletivas como

266
O interesse é sempre individual. Enquanto no direito coletivo stricto sensu temos um bem comum e
sobre ele haverá a manifestação de uma série de interessados para que, segundo os estatutos e a lei
seja extraída a vontade comum, esse processo não existe no direito difuso. O direito difuso não é
organizado, não tem assembléia, nem deliberação para estabelecer a vontade da maioria. O direito
difuso se expressa na norma que tutela bens que afetam muitas pessoas e serão legitimadas naturais
a uma ação todas as pessoas que manifestem seu interesse individual em relação ao bem (MACIEL
JUNIOR, 2006, p. 155).
314

ações temáticas, bem como a discussão da construção participada do mérito


processual é um estudo que se volta para a garantia da legitimidade dos
interessados de controlar a licitude, a constitucionalidade e a discursividade do
modelo constitucional de processo.
É certo que no processo legislativo e no processo administrativo sempre
conviveremos com o fenômeno da coletivização das demandas, haja vista que a
finalidade dos respectivos ramos do direito processual é viabilizar a proteção jurídica
dos direitos da coletividade. Especificamente no processo administrativo, os direitos
da coletividade estarão sempre em evidência como centro dos debates meritórios. A
construção do devido processo legislativo é conseqüência do principio do discurso
no Estado Democrático de Direito, uma vez que a legislação a ser aplicada a todos
os seus destinatários deverá ter como conseqüente a co-autoria processualizada de
todos os seus legitimados.
O estudo do mérito participado ganha evidência no processo legislativo e no
processo administrativo em virtude do seu objeto. A aprovação de qualquer lei, a
edição de resoluções, portarias e medidas provisórias, a prática de atos
administrativos (vinculados e discricionários), a desapropriação de bens, os
processos licitatórios, a aplicação de penalidades pelo executivo e outras tantas
questões atinentes ao exercício das funções legislativas e executivas devem se
submeter ao controle amplo e a testificação pelos seus interessados através do
devido processo coletivo democrático-constitucionalizado. A construção do mérito
deverá ser participada em todas as situações processuais (jurisdicional, legislativo e
executivo) que evidenciam a natureza coletiva da pretensão, trazendo para o lócus
da discursividade todos os interessados difusos e coletivos.
Por isso, verifica-se que no Brasil adotamos também o sistema representativo
quando se trata de processo legislativo, uma vez que os grandes debates
envolvendo questões de ordem coletiva e difusa são realizados apenas entre os
representantes da maioria (deputados, vereadores, senadores), sem qualquer
abertura para a participação dos destinatários da norma. Considerando-se que toda
produção legislativa é palaciana, ou seja, é realizada por uma assembléia de
especialistas dotada de uma sabedoria e legitimidade inata para deliberar
solitariamente sobre as questões de ordem coletiva e difusa, o mérito processual do
provimento coletivo não se desenvolve de forma participada pelo fato de decorrer
peremptoriamente de escolhas muitas vezes aleatórias e que não atendem
315

efetivamente as expectativas da coletividade. O controle da atividade legislativa


pelos interessados difusos e coletivos é imprescindível para salvaguardar a
legitimidade democrática do provimento, ressaltando-se que o respectivo controle
somente é possível por meio do paradigma processual fundado no sistema
participativo. O afastamento do cidadão no controle das atividades legislativas no
Brasil deslegitima democraticamente o procedimento e, conseqüentemente, a
construção do provimento estatal.
O controle do exercício da atividade executiva pelo cidadão funda-se
essencialmente na legitimidade que lhe é assegurada pelo processo coletivo
democrático. O reconhecimento da legitimidade do cidadão individualmente poder
propor uma ação popular, com o propósito de viabilizar o controle da moralidade
administrativa, representa uma tentativa do Brasil adotar o principio participativo
como referencial do entendimento democratizante do modelo constitucional de
processo coletivo. A pertinência de tal crítica se justifica pelo fato de não ser
garantido aos cidadãos, de forma efetiva, o direito de controle dos atos executivos a
partir da testificação e do debate amplo dos fundamentos inerentes à lisura e a
observância da legalidade na gestão da coisa pública. Em virtude da grande
relevância atribuída à instituição do Ministério Público muitas vezes o próprio autor
da ação fica para segundo plano no campo do debate jurídico da pretensão
deduzida. Além do mais, a conferência da legitimidade de um cidadão em especifico
poder propor a ação popular não poderá excluir a possibilidade de outros
interessados passarem a integrar a relação processual como sujeitos legitimados ao
debate e à discussão do mérito processual267.
O agente público não poderá blindar a prática de seus atos por meio da fé
pública, ou seja, da presunção iuris tantum de veracidade e de validade da conduta
por ele praticada. O fato de o cidadão ter legitimidade para controlar a licitude e a
constitucionalidade dos atos praticados pela Administração Pública denota a
natureza coletiva da pretensão, tendo em vista que ao pretender analisar e submeter
um determinado ato administrativo ao controle de legalidade o cidadão
individualmente atua como representante dos demais interessados na proteção

267
Ocorre que a decisão sobre o mérito do processo que envolve o bem jurídico coletivo interessa a
um número indeterminado de interessados. Quando ocorre isso estamos perante uma ação coletiva
para tutela de direitos difusos e a sentença, afetando o destino dado ao bem objeto do litígio,
necessariamente afetará aos demais interessados, tenham ou não participado do processo (MACIEL
JUNIOR, 2006, p. 155).
316

jurídica dos direitos da coletividade, sem excluir a possibilidade dos demais


legitimados intervirem no discurso processualmente instaurado entre as partes.
O controle da legalidade das atividades legislativas, executivas e jurisdicionais
é uma prerrogativa inerente ao exercício da cidadania no Estado Democrático de
Direito268, em virtude do caráter público e coletivo das pretensões. Nesse contexto, a
construção isonômica e participada do mérito passa a ser vista como o pressuposto
da legitimidade democrática de todo provimento, cuja produção decorre basicamente
interferência direta dos interessados no conteúdo decisório, ressaltando-se que o
provimento estatal (jurisdicional, executivo e/ou legislativo) não poderá ser produto
de elucubrações solitárias do julgador, do legislador ou do chefe do executivo.
A finalidade central das ações coletivas como ações temáticas é oportunizar a
instauração de um espaço processualizado em que os interessados poderão
controlar os critérios, os fundamentos e as alegações que direcionarão o debate
democrático e a construção participada do mérito coletivo. A possibilidade de cada
legitimado contribuir para o amadurecimento do debate processual da pretensão
pode ser visualizada na legitimidade de apresentação e de levantamento de temas
correlacionados com o que foi inicialmente colocado em debate. “Mas muitas
questões que poderiam ampliar o objeto da ação não são trazidas à discussão,
porque as partes (os indivíduos interessados) não possuem a legitimação para a
ação” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 157).
O foco de análise das ações temáticas é a compreensão das ações coletivas
sob a perspectiva da maior amplitude possível do objeto da ação, sem qualquer
medida restritiva de acesso dos legitimados ao debate da pretensão. No direito
difuso a legitimidade processual ativa é definida pelo bem que se pretende tutelar269,
ou seja, a previsão legislativa e abstrata de um rol taxativo de legitimados a
propositura de uma ação coletiva é algo absolutamente incompatível com o modelo
de processo coletivo democrático proposto pelas ações temáticas. A possibilidade

268
Mas, pressupondo o Estado Democrático de Direito como modelo de Estado vigente, como no
caso brasileiro, é ínsito aos sistemas democráticos que possam demandar aqueles que demonstrem
interesse. E nos sistemas que adotam o direito de acesso à Justiça para a tutela da lesão e ameaça
de direito, é esperado que se restaure e interprete ampliativamente a extensão da legitimação para
agir a qualquer um dos interessados naturais atingidos pelo bem (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 156).
269
No direito difuso a legitimação será definida a partir do bem que se pretende tutelar. Se a decisão
for sobre um bem objeto da ação que vá afetar um número indeterminado de pessoas, temos
interessados difusos e a ação coletiva terá efeitos coletivos, difusos. Nas ações coletivas para a tutela
de direitos difusos é fundamental que haja o reconhecimento da legitimação para agir aos
interessados difusos, porque eles na verdade são os destinatários do provimento que vão deliberar
sobre o bem que diz respeito a todos ( MACIEL JUNIOR, 2006, p. 158)
317

de uma tutela ampla e multifacetada é fundamental para garantir uma abordagem


completa sobre o bem objeto de tutela em face de um numero indeterminado de
interessados (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 159). A expectativa de que a decisão
judicial venha a afetar juridicamente um número indeterminado de pessoas é
questão de extrema relevância para o entendimento de que todos os possíveis
interessados no provimento terão legitimidade270 de participar do debate critico das
questões meritórias ora levantadas271.
A teoria das ações coletivas como ações temáticas, compreendida sob o
prisma do principio da inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5º, inciso
XXXV da Constituição brasileira de 1988), foi elaborada com o propósito de garantir
maior ampliação das vias de acesso ao Judiciário, especialmente no que atine a
extensão do espaço processual de debate e de pronunciamento judicial sobre o
mérito. “Todo cidadão brasileiro tem direito a uma decisão sobre o mérito, para
verificar a ocorrência ou não de uma lesão ou uma ameaça a um direito” (grifo
nosso) (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 164). A institucionalização das condições da
ação no plano infraconstitucional é uma previsão que contraria o artigo 5º, inciso
XXXV da Constituição brasileira de 1988 por limitar substancialmente as vias de
acesso ao poder Judiciário e sumarizar a cognição (espaço processual que legitima
o amplo debate jurídico da pretensão coletiva pelos interessados)272.

270
O fato, o bem ou a situação jurídica em que se afirme o direito lesado ou ameaçado que atinge um
número indeterminado de pessoas são, portanto, o eixo na interpretação desse fenômeno processual
da legitimação para agir no processo coletivo (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 176).
271
A exclusão dessas pessoas da legitimação para agir, impõe o fechamento a uma série de
possíveis interessados que poderiam, com grande proficiência, mover uma demanda coletiva na
tutela do meio ambiente, mas que restaram excluídos dessa possibilidade.
[...] se a legitimação é do tipo “aberto”, qualquer interessado pode tanto em nível preventivo, quanto
corretivo, ajuizar a demanda coletiva.
A legitimação para agir concorrente, na qual se permita a qualquer interessado individual, bem como
a órgãos e associações, o acesso à Justiça para a defesa de direitos difusos é a forma ideal de
estruturação da legitimação para agir em tema de tutela coletiva (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 160-
161).
272
A ação, principalmente nos modelos constitucionais que asseguram o livre acesso à Justiça não
deve ter condicionantes, mas sim evoluir para um sistema que estabeleça responsabilidades
decorrentes dos atos abusivos e ilícitos oriundos dos excessos no uso do direito de ação.
Saber se há ou não legitimação para agir é questão que envolve o julgamento a luz das provas dos
autos e da verificação ou não se o interesse afirmado pela parte corresponde a um direito que o autor
invoca para sim. Dizer que a parte não é legítima significa o mesmo que afirmar a inexistência do
direito em face do interesse manifestado pela parte.
Saber se alguém é parte para invocar a aplicação de lei a um interesse manifestado é questão que
envolve o próprio mérito da demanda e conduz à procedência ou improcedência do pedido.
Se alguém não é reconhecido pelo processo judicial como titular de um interesse manifestado não
terá por conseqüência o objeto de sua pretensão. O pedido será improcedente. É improcedente
porque, após o processo, restou comprovado que o direito objetivo invocado pela parte não
318

O marco teórico para o estudo e a construção do mérito processual no


processo coletivo democrático é a teoria das ações temáticas, por desenvolver e por
sistematizar o entendimento dos direitos coletivos e difusos como uma vertente do
principio do discurso.

4.4 O MÉRITO PARTICIPADO VISTO SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DAS AÇÕES


COLETIVAS COM AÇÕES TEMÁTICAS

As ações coletivas como ações temáticas permitem “a participação dos


legitimados na formação do provimento, resgatando às partes (interessados difusos),
o direito de participação em contraditório no processo decisório que os afetará”
(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 185). Nesse ínterim sabe-se que uma ação coletiva deve
ser vista como toda demanda judicial, administrativa ou legislativa que discute
temas, fatos, circunstâncias, situações jurídicas e questões que afetam direta ou
indiretamente o universo de um grande número determinado ou indeterminado de
pessoas. Os temas objetos das ações coletivas são discussões que ultrapassam a
esfera das individualidades e ingressa na seara da metaindividualidade, por atingir
toda a coletividade. O papel e a relevância social das ações temáticas é algo
translúcido no cenário do processo coletivo democrático, haja vista que o seu papel
é viabilizar a discursividade de problemas, divergências e pretensões naturais e de
extrema relevância à sociedade atual, em virtude da complexidade das relações
sociais e da colisão de interesses individuais no espaço público.
O papel assumido pelo juiz (magistrado), pelos representantes do legislativo e
pelo executivo no Estado Democrático de Direito é de gestor dos direitos coletivos e
difusos, de tal forma a garantir à coletividade a proteção jurídica dos bens
considerados de relevância transindividual. A construção ou a reforma de uma praça
pública, a manutenção ou não de outdoors no espaço público, a realização ou não
de festas populares, a construção ou não de bens e obras que atendam toda a
coletividade, a instalação de uma determinada indústria, a duplicação de rodovias, a
regulamentação jurídico-legal das uniões homoafetivas, a possibilidade de utilização
de células tronco-embrionárias em pesquisa científica, a institucionalização de cotas

corresponde ou pode ser aplicado à situação jurídica relatada. A manifestação do interesse da parte
não encontra suporte normativo (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 164-165).
319

para negros em universidades públicas e outras tantas demandas típicas da


sociedade democrática, marcada pelo pluralismo e pela diversidade de interesses,
são alguns dos inúmeros temas que obrigatoriamente devem ser submetidos ao
discurso desenvolvido no âmbito processualidade. “Essas divergências são naturais
e fundamentais em nossa sociedade complexa e que se pretende democrática e
devem ser trazidas para a discussão na demanda coletiva (MACIEL JUNIOR, 2006,
p. 178). A legitimidade de qualquer deliberação dos temas ora mencionados deverá
passar obrigatoriamente pela intervenção e pela participação dos interessados
difusos, uma vez que a regulamentação e a decisão não poderão decorrer de atos e
de condutas solitariamente adotadas pelos gestores dos direitos difusos e coletivos
(Judiciário, Executivo, Legislativo e Ministério Público).
A diversidade de posições, de entendimentos e de alegações entre os
interessados difusos e coletivos é o que viabiliza o amadurecimento e o
enriquecimento de todo o debate e a discussão democrática dos fundamentos da
pretensão e que “constrói o conteúdo do processo coletivo em torno de um fato ou
situação jurídica” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 178). As ações coletivas devem ser e
materializar espaços processualizados que se propõe a apresentação de temas,
tendo em vista que a definição do próprio conteúdo e do mérito do processo coletivo
ocorrerá de forma participativa. A fase inicial do procedimento consiste na
apresentação do objeto que orientará a formação da matéria de mérito pelos
legitimados ao provimento.
O mérito processual nas ações temáticas é construído dentro de um espaço
processualizado que oportuniza o debate amplo da pretensão pelos interessados e
também num determinado período de tempo fixado na lei, permitindo a todos os
legitimados comparecerem em juízo para formularem seus pedidos ou para
apresentarem seus temas correlatos àquilo que foi inicialmente alegado pelo autor
da ação. É de suma importância a delimitação temporal da participação e da
apresentação de temas nas ações coletivas, uma vez que a finalidade é justamente
evitar a ocorrência de demandas coletivas intermináveis. O sistema das preclusões
temporais é o que regerá cronologicamente a legitimidade dos interessados
poderem apresentar temas e formular pedidos até o momento processual que
antecede o despacho saneador. Será na fase saneadora que o julgador, em decisão
fundamentada, conseguirá delimitar a matéria e as questões de mérito que
integrarão todo o espaço processual na fase instrutória. O término do prazo de
320

manifestação dos interessados na formação e no conteúdo do processo é o


momento em que se define a matéria de mérito da ação temática.
Importante esclarecer que não podemos confundir matéria de mérito com o
mérito processual. Considera-se matéria de mérito numa ação temática todos os
pedidos, as alegações, as questões e os temas correlatos e que exteriorizarão a
amplitude do debate da pretensão deduzida. A matéria de mérito deve ser vista
como o objeto da demanda coletiva; as proposições que nortearão todo o discurso
democrático ao longo do procedimento. Por isso poderemos ter como parte
integrante da matéria de mérito situações jurídica, fatos, provas e qualquer tema que
venha refletir substancialmente no debate crítico dos meandros da pretensão. A
formação do mérito processual inicia-se com a matéria de mérito, mas a ela não se
limita. O mérito processual pode ser definido como o direito de ampla argumentação
fático-jurídica da pretensão por todos os interessados em contraditório, ou seja,
trata-se do direito assegurado a cada sujeito ou grupo de sujeitos de influir nos
critérios utilizados pelo julgador no momento da decisão. Tudo isso somente é
possível em virtude da abrangência e da amplitude do objeto da ação coletiva, assim
como a possibilidade de todos os interessados manifestarem suas vontades, muitas
vezes distintas e contraditórias:

As ações coletivas não devem ser rígidas quanto à formação do mérito


porque se o fato abrange um número indeterminado de interessados, é
natural que dentre eles existam manifestações de vontade em sentidos
diferentes e muitas vezes contraditórios. A ação dos diversos interessados
difusos deve conduzir a uma possibilidade de ampliação flexível do mérito
no processo coletivo. Se assim não for, corre-se o risco de se transformar
a decisão judicial do processo coletivo em uma visão unilateral e
representativa apenas de uma parcela dos interessados difusos na questão
litigiosa (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 179-180).(grifo nosso)

As ações temáticas deverão propor o debate em processo judicial de todas as


questões atinentes aos interessados difusos, para que cada sujeito ou interessado
tenham seus interesses representados por meio de temas objeto da discussão como
mérito da ação proposta (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 180). Nas ações temáticas não
é necessário que todos os interessados se manifestem diretamente no processo
sobre as questões ora debatidas. A proposta do jurista Vicente de Paula Maciel
Junior é que todos os interessados difusos sejam representados a partir dos temas
levados a juízo, ou seja, com a publicidade do objeto da ação temática todos os
321

interessados poderão participar da definição da matéria de mérito e da construção


participada do mérito processual mediante a vinculação a um dos temas levantados
e correlatos ao objeto inicial da demanda. Dessa forma, não seria necessário que
todos os interessados se manifestassem individualmente, a ponto de tornar inviável
o processo coletivo. Cada interessado difuso teria a legitimidade de se vincular a um
dos temas suscitados e ser representado quanto aos seus interesses mediante a
vinculação à proposta temática apresentada por um grupo de pessoas.
A construção participada do mérito processual no modelo de processo
coletivo desenhado a partir das ações temáticas depende de uma postura ativa do
julgador em dar a maior publicidade possível do objeto da demanda coletiva a todos
os interessados difusos. Por isso, é importante ressaltar que o edital; a utilização dos
veículos de imprensa falados, ouvidos e escritos; o instrumento das redes
sociais(facebook, twitter, Orkut, msn dentre outras) são meios legítimos hoje para a
construção da democracia em virtude da maior facilidade da comunicação entre as
pessoas. Ao receber a petição inicial de uma ação temática o julgador inicialmente
deverá analisar a natureza jurídica da pretensão. Tratando-se de pretensão coletiva
ou difuso o julgador obrigatoriamente deverá dar ampla publicidade a fim de
oportunizar a todos os legitimados o direito de apresentar temas, levantar questões e
fazer pedidos correlatos àquilo que foi inicialmente posto em debate. Para isso,
torna-se necessário estabelecer a publicação de edital e a abertura de prazo para
manifestações dos interessados.
Além do edital, é importante que o julgador determine a publicidade em
rádios, jornais locais e outros tantos meios legítimos, informando sucintamente o
objeto da ação coletiva e estabelecendo prazo para manifestações das partes.
Quanto maior for a divulgação do objeto da ação temática maior será a participação
dos sujeitos interessados e também maior será o grau de legitimidade democrática
do provimento jurisdicional. O grau de legitimidade de qualquer provimento
construído no Estado Democrático de Direito está diretamente relacionado com a
extensão da participação dos interessados difusos.
Pelo exposto resta claro que a participação no processo coletivo está
intrinsecamente relacionada com a publicização do objeto da demanda. Na medida
em que ampliamos a publicidade da demanda, consequentemente amplia-se
também o próprio objeto da ação mediante a apresentação de temas, questões e
pedidos que gradativamente passam a integrar o foco de debate das questões de
322

mérito das ações coletivas. Isso evidencia também que antes de falarmos em
construção participada do mérito processual, torna necessário esclarecer a
participação dos sujeitos na formação da matéria e das questões que integrarão o
debate meritório a ser desenvolvido no processo.
A formação da matéria do mérito é algo que ocorre na primeira fase do
procedimento da ação coletiva, ou seja, na etapa que antecede a fase saneadora.
Trata-se do momento processual em que os sujeitos interessados no bem jurídico
coletivo ou difuso se inserem no contexto processual com a finalidade de cada qual
dar a sua contribuição para a definição da matéria de mérito. Fica claro então que a
etapa do procedimento que antecede a fase de saneamento presta-se para definir a
matéria de mérito, uma vez que o debate e a construção participada do mérito
ocorrerá principalmente na fase instrutória, momento processual em que os
interessados poderão debater de forma fundamentada e apresentar argumentos
fático-jurídicos com relação àquelas questões anteriormente definidas por eles na
fase pré-saneamento e no despacho saneador.
A partir dessas colocações iniciais começa-se a delinear o formato do
procedimento e dos atos processuais a serem praticados ao longo das ações
temáticas. Podemos dividir o procedimento das ações temáticas em três grandes
eixos: 1) Fase Técnica ou Preliminar; 2) Fase Saneadora; 3) Fase Instrutória.
A primeira fase presta-se a uma análise técnica e preliminar do julgador
acerca da natureza jurídica da pretensão deduzida. Trata-se do momento em que o
juiz averiguará, de forma fundamentada, se a pretensão deduzida tem ou não
natureza metaindividual (coletiva e difusa). O juízo de análise pelo julgador nessa
primeira etapa deve se pautar numa constatação pré-meritória, uma vez que fica
adstrito a avaliar os possíveis efeitos jurídicos ou a extensão de um provimento
jurisdicional que aprecie o objeto da demanda.
A fase de saneamento é o momento em que o julgador auferirá e analisará a
coerência dos temas trazidos pelos interessados ao longo de todo o procedimento.
Importante ressaltar que a definição da matéria de mérito a ser discutida na fase
instrutória somente ocorrerá se houver a ampla publicidade da propositura e do
objeto da ação temática na fase preliminar ao saneamento, a fim de assegurar
indistintamente a todos os interessados o direito de imiscuir-se no profundo debate
das questões relevantes à análise discursiva da pretensão coletiva.
323

A decisão judicial proferida no saneamento do processo coletivo deverá ser


fundamentada e o juiz não está obrigado a acolher todos os temas suscitados pelas
partes como matéria que integrará o mérito da pretensão. Aqueles temas que
eventualmente não forem reconhecidos como matéria relevante a ser suscitada na
ação temática poderão ser questionados por meio de recurso proposto por qualquer
interessado que tenha argumento fático-jurídico suficientemente coerente para
justificar a permanência do tema alegado como uma das matérias que integram o
mérito da pretensão. O recurso cabível é o agravo, que será de instrumento se o
recorrente demonstrar a possibilidade de dano coletivo, caso o tema ou a matéria
suscitada sejam retirados do foco de debate da pretensão coletiva deduzida,
admitindo-se, nesse caso específico o efeito devolutivo e suspensivo.
A fase instrutória é marcada pela aplicabilidade imediata do princípio do
discurso e pela possibilidade de todos os interessados nos temas suscitados
poderem discuti-los livremente e, assim, construir o provimento de forma a proteger
os direitos da coletividade. O mérito participado é reflexo de um modelo de processo
coletivo cuja decisão é construída pelos interessados, ao contrário do processo civil,
quando normalmente a decisão é conseqüência da percepção e do convencimento
do julgador acerca daquilo que foi alegado pelas partes.
A participação no processo coletivo é também garantida através das
audiências públicas, cuja realização poderá ocorrer em qualquer fase do
procedimento. Recomenda-se inicialmente a realização da audiência pública na
primeira fase do procedimento, a fim de estimular maior publicidade do objeto da
ação coletiva e também permitir que qualquer interessado participe de todo o debate
envolvendo questões atinentes à tutela de direitos coletivos. É o momento das
partes interessadas apresentarem suas propostas, seus temas e suas alegações,
procurando demonstrar coerência e relevância em seus argumentos. Trata-se de um
momento que pode ser utilizado pelo juiz para enriquecer os elementos descritivos
da pretensão inicialmente deduzida, além de permitir maior esclarecimento e
proximidade do julgador com relação a tudo aquilo alegado, conversado, pretendido
ou questionado pelos interessados. A audiência pública é uma forma de o juiz
potencializar e garantir efetivamente o exercício da cidadania, aproximando-se dos
interessados, a fim de ouvir mais de perto suas expectativas com relação à demanda
coletiva e, ao mesmo tempo, amadurecer o debate e a interpretação de todas as
questões e temas trazidos para o processo coletivo.
324

Na realidade a audiência pública é a materialização do momento em que o


juiz amplia as vias de acesso ao Judiciário, indo até o jurisdicionado e incentivando
que o jurisdicionado seja inserido no debate de questões de natureza difusa ou
coletiva. É considerada a forma mais legitima de integração dos interessados no
provimento de natureza metaindividual, ressaltando-se que a participação na
audiência pública deverá ser assegurada a todos os interessados, sem qualquer
limitação decorrente do estabelecimento de condições que venham a obstaculizar o
acesso dos legitimados ao debate democrático.
Na fase instrutória a realização da audiência pública é de extrema importância
quanto ao enfrentamento do debate de toda a matéria de mérito levantada pelos
interessados e reconhecida pelo juiz no despacho saneador. É a oportunidade que
resguarda a todos de ter o direito de igual (isonomia processual) argumentação
fático-jurídica da pretensão (contraditório), o direito de produção de provas e de
utilização de todos os meios de provas licita e legitimamente admitidos em direito
(ampla defesa), o direito de não ser surpreendido por uma decisão judicial a qual
não teve a oportunidade de ser seu co-autor (devido processo legal), o direito se ser
parte integrante da construção participada do mérito processual.

4.4.1 A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DA CONSTRUÇÃO PARTICIPADA DO MÉRITO NO

PROCESSO COLETIVO DEMOCRÁTICO

A criação de um procedimento específico para as ações temáticas é algo


indispensável na conjuntura da construção participada do mérito processual e,
especialmente, no estabelecimento dos limites da demanda273. Portanto, é natural
que o processo coletivo viabilize meios legítimos para garantir a oportunidade de
ingresso e de participação dos interessados difusos no lócus processual,
disciplinando até que momento poderão participar da demanda. Nesse contexto,
torna-se necessário estabelecer uma fase no procedimento até quando será

273
O que será fundamental para estabelecer os limites da demanda e, por conseguinte, da extensão
dos futuros efeitos da coisa julgada nas ações coletivas será uma clara definição sobre o mérito ou o
conteúdo da demanda, que não será formado apenas pelo objeto do pedido constante na petição
inicial, mas pela efetiva oportunidade de ingresso na ação do maior numero de interessados difusos
que tenham teses diferentes dos já existentes no processo. Isso necessariamente provoca a
possibilidade de alteração ou ampliação do mérito da ação proposta, o que é de admissão
restritíssima dentro do processo civil individual (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 180).
325

possível a modificação, a alteração, a complementação ou a ampliação da matéria


de mérito objeto da demanda proposta.
É de grande importância para a técnica processual a sistematização do
procedimento a ser adotado no processo coletivo voltado para a formação
participada do mérito. A codificação do processo coletivo é a oportunidade de criar
um procedimento próprio e específico, que venha contemplar a ampla participação
dos interessados e, ao mesmo tempo, permitir a superação ideológica daquele
entendimento já solidificado no processo civil de que o mérito processual limita-se às
matérias alegadas pelo autor na exordial e pelo demandado na sua defesa. O mérito
processual nas ações temáticas não fica adstrito àquilo que foi alegado na exordial,
até porque, o conteúdo da petição inicial é apenas o ponto de partida utilizado como
critério por todos os interessados para orientar a definição da matéria de mérito que
permeará todo o discurso democrático. “Deve haver uma fase até quando os
diversos interessados difusos possam manifestar seus interesses e alterar o mérito
da ação coletiva, com o agrupamento das posições comuns e o destaque daquelas
várias questões conflituosas que deverão ser objeto do julgamento (MACIEM
JUNIOR, 2006, p. 181).
Adotar nas ações temáticas a sistemática de formação do mérito no processo
civil é o mesmo que legitimar a limitação do espaço processual do debate jurídico da
pretensão coletiva, excluindo um grande número de interessados que não teriam a
oportunidade de submeter suas questões levantadas ao discurso e, ao mesmo
tempo restringindo o objeto da demanda. Isso, de certa forma, poderia estimular a
proliferação das ações individuais em razão da não publicidade efetiva que pudesse
suficientemente oportunizar o direito de todos os legitimados trazerem suas
pretensões para o processo coletivo.
Ampliar o objeto da ação temática através da utilização de meios legítimos
que venham a garantir a publicização de seu objeto é o mesmo que assegurar a
celeridade e a economia processual, uma vez que assim estaria evitando o
demandismo individualizado que visa buscar a proteção jurídica de direitos de
natureza coletiva e difusa. A proposta das ações temáticas é justamente essa: evitar
a proliferação de demandas individuais para discutir pretensões coletivas, podendo
vir a comprometer a segurança jurídica, a celeridade e a efetividade processual.
326

O objeto da presente pesquisa cientifica no respectivo momento é


sistematizar uma proposta de procedimento compatível com as ações temáticas. A
seguir encontraremos essa proposta de procedimento:

1- Fase Técnica: é o momento em que o julgador fará uma análise preliminar


(pré-meritória) da pretensão deduzida pelo autor da ação, com a finalidade
de avaliar a sua dimensão coletiva e difusa.
2- Em decisão fundamentada o julgador se manifestará sobre a natureza da
pretensão deduzida. Caso entenda se tratar de pretensão metaindividual, o
procedimento prosseguirá normalmente. Se vier a entender que a pretensão
deduzida é de natureza individual, intimará o autor da ação sobre o conteúdo
de sua decisão, para que a parte se manifeste no prazo de 10 (dez) dias em
querer prosseguir a relação processual como ação individual (não como ação
coletiva). A inércia ou a recusa da parte autora da ação legitimará o julgador
a proferir uma sentença terminativa, passível de recurso nos termos
dispostos no Código de Processo Civil vigente.
3- Uma vez reconhecida a natureza coletiva ou difusa da pretensão deduzida, o
magistrado determinará a citação da parte demandada e a expedição de
edital com a finalidade de dar publicidade do objeto da demanda e
estabelecer prazo para que os interessados possam se manifestar e
apresentar temas, alegações, pedidos e todas as demais questões que
tenham relação direta ou indireta com a pretensão inicialmente deduzida.
4- Além do edital, o juiz deverá determinar a publicidade do objeto da ação
coletiva e do prazo de manifestações dos interessados em rádios, televisão,
jornais impressos e falados e internet. Em situações especificas poderá, de
forma fundamentada, determinar a utilização de outros meios de
comunicação e de publicidade considerados idôneos a garantir a participação
mais ampla possível de todos os interessados difusos e coletivos.
5- O julgador deverá receber todas as alegações apresentadas pelos
interessados difusos, cadastrá-los e intimá-los de todos os atos processuais
praticados pelas partes a partir de então.
6- O juiz deverá intimar os interessados que se manifestaram e apresentaram
temas no processo coletivo democrático (ação temática) a constituir
327

advogado para representá-lo em juízo e preferencialmente com


conhecimento específico dos direitos coletivos e difusos e da sistemática do
processo coletivo. Caso a parte interessada não tenha condições de
contratar um advogado, deverá ser nomeado defensor dativo ou, caso seja
possível e necessário, nomear a Defensoria Publica para atuar no feito.
7- Caso o Ministério Publico tenha sido o autor da ação o magistrado deverá
adotar o mesmo procedimento anteriormente mencionado, a fim de dar
ampla publicidade e oportunidade de todos os interessados difusos e
coletivos de passarem a integrar a relação processual e apresentarem
temas, alegações e levantar questões inerentes àquilo que foi inicialmente
alegado pelo autor da ação coletivo (ação temática).
8- Se o autor da ação for um interessado difuso ou coletivo, o Ministério Público
será intimado para atuar como parte no processo (não como mero fiscal da
lei). Importante ressaltar que a atuação do Ministério Público como parte no
processo garantirá que todos os interessados difusos e coletivos e a própria
instituição do Ministério Público o direito de igualdade (isonomia processual)
na participação no processo coletivo mediante o levantamento de questões,
alegações e argumentos coerentes com aquilo que tenha sido inicialmente
alegado pelo autor da ação.
9- Considerando-se a natureza democrática e constitucionalizada do processo
coletivo ressalta-se que o juiz deve ser visto como um dos sujeitos do
processo legitimados ao à participar da formação do objeto e do debate da
pretensão coletiva deduzida em juízo. Isso evidencia uma postura mais ativa
e independente do julgador, que terá autonomia para atuar de oficio no
debate e na formação do mérito processual, ressaltando-se que tal
legitimidade não se confunde com poder de julgar unilateralmente o objeto da
demanda, desconsiderando o que todos os demais interessados
apresentaram e alegaram anteriormente.
10-Encerrado prazo previamente estabelecido para que os interessados
apresentassem suas manifestações ou temas que integrarão o objeto da
ação temática, inicia-se, então a Fase de Saneamento274.

274
Entendemos que a lei deve fixar um prazo razoável e um amplo meio de divulgação em espaço
público e privado nos meios de comunicação, a fim de que os interessados possam vir participar da
formação do mérito e, portanto, do conteúdo do provimento final da ação coletiva.
328

11-O saneamento do processo é o momento em que o julgador analisará a


pertinência, a coerência e a relevância de todos os temas, as alegações, as
questões e os argumentos fático-jurídicos apresentados pelas partes. Tal
análise é necessária para que o julgador decida, de forma fundamentada,
quais serão os temas que integrarão a matéria de mérito que direcionará o
debate na fase instrutória.
12-Importante esclarecer que o principio do discurso e da participação devem
ser efetivamente observados nas duas principais fases do procedimento das
ações temáticas: a) na primeira etapa a ampla publicidade do objeto da ação
coletiva proposta é o que garantirá aos interessados a oportunidade de
manifestações no sentido de apresentarem temas e alegações que
integrarão a matéria de mérito; b) na segunda etapa, ou seja, na fase
instrutória, o julgador é responsável por estabelecer a criação de um espaço
processual em que todas as partes interessadas terão legitimidade de
debater a matéria e as questões de mérito definidas na fase de saneamento.
13-A fase instrutória somente será iniciada após o término da fase de
saneamento e de definição da matéria e das questões de mérito.
14-Encerrado o prazo estabelecido no edital e publicizado para que os
interessados trouxessem aos autos suas manifestações e temas, torna-se
expressamente proibido que qualquer interessado venha a apresentar
posteriormente um tema correlato ao objeto inicialmente deduzido em juízo.
Caso queira apresentar um outro tema correlato àquilo que foi alegado pelo
autor da ação poderá fazê-lo por meio de uma nova ação judicial.
15-Os princípios do contraditório, da ampla defesa, da isonomia processual e do
devido processo legal serão efetivamente observados na primeira etapa do
procedimento somente se a todos tiver sido dada a oportunidade de
apresentação de temas e alegações, ou seja, é por isso que se torna
imprescindível a maior amplitude possível da publicidade da propositura e do
objeto da ação temática. A legitimidade da primeira fase do procedimento
está diretamente condicionada à observância estrita do principio da

A importância da ação coletiva fundada em direito difuso ser temática é que ela trará para o seu bojo
um conjunto maior de questões para serem discutidas e terá maiores condições de abranger o
conflito pelos diversos ângulos que ele possua. Isso será fundamental para que se possa estabelecer
uma política legislativa sobre a preclusão das questões referentes ao processo coletivo, afetando
diretamente o tema da coisa julgada (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 181).
329

publicidade. Qualquer comprovação posterior de que não se observou o


principio da ampla publicidade da propositura e do objeto da ação coletiva
acarretará a nulidade de todo o processo coletivo. Torna-se necessário
demonstrar que a ausência de publicidade impediu interessados difusos e
coletivos de participarem da formação da matéria de mérito.
16-Em decisão fundamentada proferida na fase de saneamento 275 o juiz acatará
os temas, as alegações e os argumentos que entende coerentes, lógicos e
coletivamente relevantes à demanda judicial. O não acolhimento de qualquer
tema ou alegação apresentado por qualquer interessado difuso ou coletivo
ensejará a possibilidade de propositura de recurso de agravo de instrumento,
desde que seja demonstrada a relevância do tema ou da temática não
acolhida no que tange à proteção dos direitos da coletividade. Caso se
comprove a possibilidade de dano em virtude do não acolhimento de um
determinado tema suscitado por algum interessado o recurso de agravo de
instrumento será recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo.
17-O encerramento da fase de saneamento viabiliza o inicio da fase instrutória.
A Fase de Instrução Processual é aquele em que serão debatidas todas as
questões e os temas que integram a matéria de mérito. O julgador deverá
estender ao máximo o espaço processual a fim de assegurar que todos os
interessados sejam preservados quanto a sua legitimidade de argumentar,
discutir e debater todas as peculiaridades fáticas e jurídicas da pretensão
coletiva ou difusa.
18-A realização da Audiência Pública é uma estratégia extremamente relevante
para assegurar a legitimidade democrática do provimento e a participação
ampla dos interessados no processo coletivo. Além de garantir a participação
dos legitimados nas ações temáticas, a finalidade da audiência pública
poderá variar de acordo com o momento processual em que a mesma será

275
Recebida a defesa e os eventuais aditamentos à inicial, deveria haver um despacho saneador no
qual o juiz obrigatoriamente fixasse os pontos controvertidos e o objeto da prova e resolvesse as
demais questões do processo.
Contra essa decisão poderia ser prevista uma impugnação em prazo razoável (mais ou menos 10
dias), no sentido de permitir a ampliação do objeto da lide ou revisitar qualquer equivoco na fixação
dos pontos controvertidos. Em seqüência à decisão sobre o objeto daquele processo, que não
poderia a partir de então ser alterado, a não ser na hipótese de reunião de processos coletivos por
conexão com o bem a envolver ambas as demandas e desde que estejam as causas em um mesmo
momento processual (ambas em 1º grau e antes de colhidas provas nos autos) (MACIEL JUNIOR,
2006, p. 183-184).
330

realizada: a) a realização da Audiência Pública na primeira etapa do


procedimento da ação temática tem a finalidade de divulgar amplamente o
objeto da ação, para que os interessados possam trazer para o processo
todas as questões possíveis e pertinentes àquilo que foi inicialmente
alegado. O propósito central é a formação mais ampla possível da matéria de
mérito; b) uma Audiência Pública realizada na fase instrutória tem como
propósito instituir o princípio do discurso democrático, estimular o debate da
matéria de mérito e viabilizar a direta intervenção dos interessados na
construção dialógica de um provimento jurisdicional cujos efeitos se
estenderão a todos aqueles que tiveram a oportunidade de participar
19-A construção participada do mérito processual nas ações temáticas é
conseqüência da participação efetiva dos interessados em todas as fases do
procedimento, especialmente na fase que antecede o saneamento
processual e na fase instrutória. O mérito participado deve ser reflexo das
seguintes questões: a) a participação dos interessados na definição da
matéria de mérito (conseqüência da ampla publicidade da propositura e do
objeto da ação temática); b) a ingerência e a participação dos interessados
na construção da decisão judicial proferida na fase de saneamento, momento
em que o julgador define, de forma fundamentada, a matéria de mérito que
norteará toda a instrução processual; c) a participação dos interessados no
discurso de todas as questões inerentes à matéria de mérito e a
possibilidade de influírem diretamente na construção do provimento final.
20-A decisão proferida ao final da ação temática deverá ser reflexo de uma
estrutura procedimental em que os interessados difusos e coletivos puderam
participar da construção de todos os atos processuais, podendo se
manifestar, opinar, deliberar e interferir no conteúdo das decisões proferidas
pelo julgador.
21-Os efeitos jurídicos erga omnes da coisa julgada coletiva serão
implementados pela comprovação do mérito participado enquanto o
parâmetro regente da legitimidade democrática do provimento.

O grande desafio enfrentado pelos estudiosos que pretendem sistematizar


um procedimento que assegure aos interessados o direito de participação no
331

processo coletivo é identificar como fazer isso na prática sem tornar a demanda
coletiva excessivamente demorada. Possivelmente a idéia de permitir que todos os
interessados se manifestem individualmente no processo, obrigando o julgador a
intimar cada qual acerca dos atos processuais praticados em juízo ocasionaria
grandes dificuldades de resolução do mérito processual da ação coletiva.
O que propõe as ações temáticas é que todos os interessados possam
participar do processo coletivo vinculando-se a um dos temas levantados pelas
partes e que será submetido ao debate. Dessa forma, ao dar publicidade do objeto
inicial da ação temática, o juiz estabeleceria um prazo razoável para que as pessoas
interessadas se reunissem e discutissem quais temas seriam apresentados no
processo. Esse debate processual, em bases extrajudiciais, poderia ocorrer por meio
de audiências publicas, que seriam vistas como o momento em que os próprios
interessados poderiam discutir entre si quais os temas por eles considerados
relevantes e que poderiam ser levados a juízo. Além disso, sabe-se que a audiência
pública é uma forma dos interessados na pretensão amadurecerem os fundamentos
do debate para, assim, conseguirem identificar com maior coerência e clareza quais
os temas e as alegações mais pertinentes para o caso concreto.
Após extenso debate extrajudicial pelos interessados, os temas, as alegações
e os pedidos seriam levados ao processo, sem ter a necessidade de cada
interessado ser intimado para se manifestar individualmente acerca dos atos
processuais praticados ao longo do procedimento. Para cada tema apresentado na
ação temática teríamos um representante do grupo de pessoas vinculado a esse
tema específico. Sempre que foi proferida uma decisão referente à ação temática
quem será intimado é o representante de cada grupo de pessoas, que ficará
incumbido de promover a reunião dos interessados com o propósito de discutir entre
si os fundamentos da decisão judicial. Somente após essa deliberação conduzida
pelo representante que ficou responsável de instaurar o discurso entre todos os
interessados é que será possível e legitima a manifestação do representante em
juízo.
A proposta das ações temáticas não se confunde com a figura do
representante adequado, utilizada no sistema norte-americano das class actions.
Nos Estados Unidos da América, primeiro coletam-se todas as assinaturas dos
interessados a propositura da ação de classe, para depois disso, propô-la. Uma vez
proposta e admitida a ação de classe, o representante adequado adquire certa
332

autonomia para agir, decidir e deliberar em favor dos membros da classe sem ter o
dever de se submeter a todas as questões surgidas ao longo do procedimento a um
novo debate entre os interessados. O que o representante adequado faz é buscar o
reconhecimento como legitimado para propor e deliberar autonomamente sobre as
questões coletivas surgidas ao longo do procedimento, dispensando-se novas
consultas e discussões com os interessados acerca das questões que forem
surgindo ao longo do procedimento. Na realidade, a condição de representante
adequado no sistema das class actions condiz com uma ampla autonomia conferida
ao representante de poder agir com liberdade na defesa e na proteção jurídica dos
direitos dos integrantes da classe, sem ter que se dirigir constantemente aos
mesmos, como pressuposto da legitimação de seus atos.
Em contrapartida, nas ações temáticas os representantes dos grupos
temáticos não possuem ampla autonomia para deliberar sobre as questões atinentes
ao processo coletivo sem antes consultar e avaliar a viabilidade de uma decisão
perante os próprios interessados difusos e coletivos. Isso demonstra que o principio
do discurso deverá ser constantemente observado ao longo de todo o procedimento
adotado nas ações temáticas, uma vez que a condição de representante de um
grupo de interessados em um determinado tema apresentado ao debate judicial não
dispensa o representante do dever de sempre consultar os demais interessados.
Dessa forma, a autonomia conferida ao representante condiciona-se à legitimidade
conferida pelos interessados difusos e coletivos quanto à prática de todo e qualquer
ato processual ao longo do procedimento.
As teses apresentadas com o objetivo de integrar a matéria de mérito devem
ser reflexo de intenso e de efetivo debate instaurado entre todos os interessados. O
papel do represente de cada grupo temático é conduzir o debate, levantar e
sistematizar as conclusões obtidas pelo grupo e, ao final, levar para o processo
coletivo o resultado de todo esse debate. Observa-se que o represente de cada
grupo temático não tem autonomia para deliberar de forma individual e solitária o
que seria melhor para o seu grupo, até porque suas decisões e posicionamentos
devem ser reflexos daquilo que foi deliberado pela maioria. Admitir que o
representante do grupo temático teria essa legitimidade é reconhecer a fragilidade
da concepção democrática do modelo de processo coletivo em razão da limitação da
participação efetiva de todos os membros e interessados na pretensão.
333

O que o representante deve fazer é estimular o debate da pretensão, nunca


limitando ou suprimindo a condição de sujeito reconhecida a cada interessado. O
representante que, por ventura, venha a retirar a condição de o interessado
participar do debate crítico e da testificação da pretensão coletiva certamente agirá
de uma forma incompatível com a constitucionalidade e com a processualidade
democrática. “Ou seja, as teses defendidas por cada interessado poderiam
apresentar-se parcial ou totalmente diferentes umas das outras, entretanto, os
efeitos pretendidos envolveriam o mesmo bem objeto da pretensão de todos”
(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 182).
O objeto do processo não pode ser instituído ou modificado unilateralmente
pelo juiz, e tampouco pela vontade exclusiva do representante da coletividade. A
noção de contraditório que se pretende propor no processo coletivo democrático é
aquela que permite o envolvimento de todos os interessados na definição do objeto
da demanda e na construção da matéria de mérito. Portanto, toda decisão judicial
que define o objeto de uma demanda sem considerar as manifestações dos
legitimados ao provimento é nula de pleno direito, até porque o objeto de uma ação
temática não é pressupostamente definido por uma pessoa ou por um grupo de
pessoas escolhido para representar os interesses da coletividade, mas sim,
construído discursivamente no lócus processual que permite o amplo debate pelos
interessados dos fundamentos fático-jurídicos que integrarão o cerne da pretensão
coletiva.
Considerando-se que a definição da matéria de mérito (pretensão inicialmente
deduzida, temas, alegações e pedidos apresentados pelos interessados com o
propósito de ampliar o objeto da ação temática) ocorre na fase preliminar do
procedimento, e que no despacho saneador o juiz analisa a pertinência, a coerência
e a relevância social, coletiva e difusa da pretensão inicialmente deduzida e dos
temas trazidos pelos interessados para complementar o objeto da ação temática,
pode-se concluir preliminarmente que a inobservância do principio do discurso
tornaria impossível tudo isso. A processualidade democrática desenvolvida no
âmbito da discursividade é o que fundamenta e orienta a construção participada do
mérito nas ações temáticas.
O mérito processual nas ações temáticas é reflexo e conseqüência do
entendimento e da aplicabilidade do modelo constitucional do processo no Estado
Democrático de Direito, cuja referência encontra-se nos Direitos Fundamentais e na
334

principiologia constitucional do processo (ampla defesa, contraditório, isonomia


processual, devido processo legal e amplo acesso ao Judiciário). A construção
meritória do provimento estatal ocorre ao longo de todo o procedimento da ação
temática e não se concentra em um ato isolado. Desde a propositura da ação até a
decisão final verificam-se etapas específicas e relevantes ao compartilhamento da
construção do mérito.
A constatação da natureza coletiva da demanda, a publicidade do conteúdo e
da pretensão coletiva inicialmente deduzida (expedição de editais, utilização da
imprensa escrita, falada, a divulgação em rádios, utilização das redes sociais) , a
oportunidade de todos os interessados trazerem para o processo coletivo temas
correlatos ao objeto inicialmente alegado pela parte e o reconhecimento jurídico pelo
juiz, no despacho saneador, de quais questões, alegações e pedidos integrarão a
matéria de mérito, é o que caracteriza o encerramento da primeira e importante
etapa de co-participação dos interessados difusos e coletivos na definição dos
critérios que orientarão e fundamentarão o provimento final. A realização da
audiência pública é uma importante ferramenta para garantir maior amplitude e
amadurecimento do debate das questões e dos temas levantados pelas partes.
“Proposta uma ação cuja decisão envolva um bem que afete um numero
indeterminado de pessoas, o ideal seria que a lei fixasse uma fase de divulgação
para que os interessados difusos tomassem ciência e pudessem intervir no
processo” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 183).
Uma vez delimitado o objeto da ação temática por meio do despacho
saneador, o julgador fundamentará de forma muito minuciosa sua decisão, a fim de
explicitar e justificar quais temas e questões integrarão a matéria de mérito, não se
esquecendo também de justificar e fundamentar, apresentando os motivos, do não
acolhimento de alguns temas, pedidos ou argumentações trazidas pelas partes na
primeira etapa do procedimento, ressaltando-se o direito de recorrer da parte
juridicamente interessada, caso algum tema apresentado por um grupo de
interessados não tenha sido admitido em juízo pelo fato do julgador não considerá-lo
relevante e pertinente socialmente.
Encerrada a fase saneadora e iniciada a instrução processual prossegue-se o
debate, agora centrado na matéria de mérito previamente definida. A
institucionalização de um amplo espaço de debate é o que permitirá aos
interessados manifestarem seus argumentos, interpretações e reflexões acerca
335

daquela matéria de mérito levantada pelas partes na primeira etapa do


procedimento. Nesse momento já temos definido os critérios que delimitarão o objeto
da discussão e, consequentemente, da construção participada do mérito processual.
A realização de uma audiência pública na fase instrutória é de extrema
relevância no sentido de assegurar o mais amplo debate possível das questões
meritórias, para que os legitimados consigam analisá-las atentamente, a ponto de
concluir o que é melhor para a coletividade. Trata-se de uma tentativa de
amadurecimento de tudo que foi colocado em debate, ressaltando-se a importância
de todos os destinatários do provimento ter a noção exata do direcionamento que o
debate vem tomando, a fim de poder influir decisivamente no conteúdo decisório
que integrará o provimento. Uma eventual decisão judicial proferida sem que se
oportunize a discursividade da pretensão, certamente poderá causar prejuízos e
graves conseqüências jurídicas para os titulares do bem jurídico de natureza
transindividual. A audiência pública é um dos meios legítimos de institucionalizar a
construção participada do mérito processual nas ações temáticas, de tal modo a
resguardar aos destinatários do provimento a certeza de que não serão
surpreendidos por uma decisão a qual foram excluídos do espaço argumentativo.

4.5. ANÁLISE CRÍTICA DA PARTICIPAÇÃO DOS LEGITIMADOS NO PROCESSO COLETIVO

O pressuposto básico da participação no processo coletivo é que os


interessados no provimento não tragam para o debate pretensões individualizantes,
ou seja, o primeiro passo para implementar o modelo democrático de processo
coletivo é a revisitação do pensamento dos cidadãos, para que deixem de raciocinar
de forma individualizada e passe a compreender a dimensão do processo coletivo
com o foco voltado ao atendimento e a proteção jurídica da coletividade.
Tal discussão é de extrema relevância no presente contexto, uma vez que se
qualquer interessado difuso pretender participar do processo coletivo com o
propósito de proteger essencialmente os seus interesses, certamente a participação
dos demais interessados ficará comprometida. A manifestação individual de
qualquer sujeito de direito deve ser no sentido de atender não apenas os seus
interesses individuais, mas, acima de tudo, buscar a ampla proteção jurídica dos
direitos que integram o patrimônio de toda a coletividade.
336

A implantação do modelo de processo coletivo democrático não depende


apenas da alteração legislativa ou da codificação das normas jurídicas atinentes ao
direito coletivo e ao processo coletivo. Colocar em prática as ações temáticas,
considerada o modelo democrático-participativo de processo coletivo, depende da
mudança de mentalidade das pessoas quanto ao exercício da cidadania, uma vez
que, ser cidadão é buscar a proteção jurídica de interesses individuais, mas, acima
de tudo, dos direitos coletivos e difusos, ou seja, a proteção jurídica da
metaindividualidade. O exercício da cidadania perpassa pela oportunização da
participação de todos os sujeitos na definição da matéria de mérito, na construção
participada do provimento jurisdicional e também na discursividade democratizante
que terá como conseqüência lógica a construção participada (não a imposição
unilateral e solitária) do mérito processual.
A construção do mérito processual nas ações coletivas fica profundamente
comprometida quando se verifica a reprodução reiterada da ideologia individualista
preconizada por um ou por alguns poucos interessados dispostos a proteger apenas
os direitos seus, sem se importar com os direitos dos demais titulares.É por isso que
se torna relevante esclarecer a incompatibilidade do processo civil, de raízes
individualistas e patrimonialistas, com o modelo de processo coletivo proposto pelo
Estado Democrático de Direito.
Torna-se extremamente relevante a fiscalização da publicidade do objeto da
ação coletiva, a fim de averiguar se os instrumentos utilizados para divulgar a
propositura e o objeto da ação temática estão sendo eficientes a ponto de atingir
todos os potenciais interessados em participar da formação da matéria de mérito e
da construção do mérito processual.
Esse controle da utilização dos meios de publicidade e de divulgação do
objeto da demanda poderá ser feito por qualquer sujeito que demonstre a aptidão de
sofrer os efeitos jurídicos do provimento. Qualquer constatação de limitação da
publicidade do objeto da demanda coletiva acarretará o cerceamento de defesa,
tendo em vista que o interessado que não foi regularmente comunicado ou
informado a respeito da ação coletiva não teve a oportunidade de exercer o
contraditório (direito de argumentação fático-jurídica da pretensão), a ampla defesa
(direito de produzir provas e meios de provas licita e legitimamente admitidos em
direito) e o devido processo legal (aptidão do sujeito ser surpreendido por uma
337

decisão a qual não lhe foi oportunizado o direito de participação na construção do


provimento).
Não é possível reconhecer como legitimo um provimento que decorreu da
pseudo-participação dos interessados no provimento, assim como não é possível
presumir que a participação tenha ocorrido. A legitimidade democrática do
provimento fica adstrita à demonstração de que o sujeito interessado efetivamente
participou, que foi comprovadamente comunicado acerca do objeto da ação e que
resolveu, expressa ou tacitamente, não se inserir no espaço processual de
discussão.
Toda discussão proposta no presente item do trabalho é para demonstrar que
a participação no processo coletivo deve ser efetiva (não formal) a fim de assegurar
a legitimidade do ato decisório. Isso somente será possível se os destinatários dos
provimentos forem seus co-autores e se o conteúdo decisório não decorrer apenas
do posicionamento do magistrado e do representante do Ministério Público sobre um
determinado caso concreto. Ao invés de concentrar em suas mãos as prerrogativas
de opinar e de requerer solitariamente ao longo do procedimento de uma ação
coletiva, cabe ao Ministério Público o dever de compartilhar suas decisões com
todos aqueles sujeitos afetados pelo resultado final da demanda. Enquanto
instituição que detém atribuição constitucional para zelar pelos Direitos
Fundamentais, o Ministério Público tem o dever de garantir a todos, indistinta e
isonomicamente, o direito de participação no processo coletivo, responsabilizando-
se pelo controle dessa participação, bem como pelo exercício do contraditório e da
ampla defesa por todos aqueles sujeitos interessados na demanda.
A visão dicotômica de autor e réu, demandante e demandado, típica do
processo civil, deve ser superada no estudo do processo coletivo, uma vez que sob
o ponto de vista democrático, somente é possível identificar quem realmente tem
interesse na demanda coletiva após a sua divulgação e a ampla publicização do seu
objeto.
Isso implica dizer que quem propõe a ação e contra quem se propõe a ação
não são os únicos interessados no objeto da ação coletiva. Da mesma forma, é
possível identificar casos excepcionais em que o próprio autor da ação não é
considerado o interessado difuso que sofrerá os efeitos jurídicos do provimento, tal
como ocorre com o Ministério Público quando propõe uma ação coletiva – por mais
que o Ministério Público detenha a o direito de postular em juízo, não é considerado
338

parte no conceito stricto sensu da palavra, haja vista que atua na condição de
legitimado extraordinário e não possui qualquer aptidão para sofrer os efeitos
jurídicos da decisão judicial final.
No processo coletivo democrático considera-se parte toda aquela pessoa
(física ou jurídica) que possa influir na construção do provimento e ao mesmo tempo
sofrer os efeitos jurídicos da decisão. Por isso, nesse conceito podemos incluir não
apenas aquelas pessoas que foram comunicadas do objeto da ação e se
manifestaram no processo, mas, também, todas aquelas pessoas que, mesmo
informadas acerca do objeto da demanda optaram por não se manifestar nos autos,
quedando-se inertes ao processo de argumentação jurídica da pretensão e de
construção participada do mérito, por mera opção. Essas últimas pessoas
interessadas também são incluídas no conceito de parte pelo fato de sofrerem
diretamente os efeitos jurídicos da decisão final, haja vista que o exercício do
contraditório e da ampla defesa lhes foi concedido.
Outra constatação importante diz respeito a determinadas ações coletivas em
que o objeto é um direito difuso. Em tais ações normalmente a parte demandada é
aquele sujeito ou grupo de pessoas que, por meio de uma conduta omissiva ou
comissiva, praticou alguma ilicitude ou está prestes de praticá-la. Porém, há casos
em que nessas ações não temos uma parte demandada que tenha especificamente
praticado uma ilicitude ou se encontra prestes a violar um determinado direito, como
é o caso de uma ação coletiva cujo objeto é o debate acerca do tombamento de uma
determinada praça pública. Considerando-se que a titularidade do bem a ser
tombado pertence à coletividade, sendo o município mero gestor da coisa pública,
não poderíamos dizer que existe uma parte especificamente demandada para esse
tipo de ação, considerando-se o conceito clássico de parte demandada a partir da
prática de ilicitudes acima mencionada.
A partir da proposta apresentada pelas ações temáticas, sabe-se que esse
tipo de demanda deveria ser levado ao Judiciário, que ficaria incumbido de dar
ampla publicidade acerca do objeto, a fim de oportunizar a todos os interessados
difusos o direito de apresentar temas relevantes à discussão da viabilidade ou não
de tombamento da respectiva praça pública.
Não teríamos, no presente caso, aquela clássica proposta dicotômica advinda
das ações individuais, em que de um lado temos o autor da ação (demandante ou
requerente) e do outro lado teremos o réu da ação (demandado ou requerido). A
339

justificativa de tal crítica se encontra na revisitação do conceito de parte pelo modelo


de processo coletivo democrático, uma vez que parte276 deve ser vista como
interessado no provimento e legitimado a sofrer ou a ser atingido pelos seus efeitos
jurídico-legais.
É necessário atentar, orientar e preparar todo interessado difuso a realizar um
rigoroso controle da atividade judicial, com o intuito de averiguar se o espaço
processual de participação de todos os demais legitimados foi instaurado e se os
temas suscitados estão sendo utilizados como referencial pelo juiz no ato de decidir.
Nada adiantará se os temas e as alegações das partes forem desconsiderados pelo
julgador no ato de decidir. A efetiva realização do discurso processual democrático
ocorrerá quando todos os temas levantados pelas partes forem enfrentados e
analisados de forma fundamentada pelo juiz.
Nesse contexto, o mérito processual participado, ou seja, o provimento
meritório deverá ser resultado da análise perfunctória, detalhada e juridicamente
fundamentada pelo juiz de todos os temas levados pelas partes interessadas ao
processo coletivo. A decisão judicial não pode ser vista como mera conseqüência de
um entendimento e da análise individualizada do juiz acerca das questões que
envolvem o direito difuso e coletivo, pois deverá refletir o contexto discursivo
instaurado processualmente, a fim de sepultar, pela teoria das ações temáticas, o
modelo de processo liberal de cunho individualista e adotar como referencial o
compartilhamento das decisões pelo principio participativo-democrático.
O representante do grupo e responsável pela apresentação dos temas, das
propostas e das questões que integrarão a matéria de mérito nas ações temáticas
concentrará a legitimidade para a causa em suas mãos, mas não poderá retirar dos
demais interessados o direito de integrar a relação processual, a fim de participar
ativamente do discurso e da dialogicidade do objeto da demanda coletiva. A
consistência do procedimento proposto para as ações temáticas decorre da
sistemática da preclusão temporal, uma vez que deve ser estabelecido previamente
até que momento processual é possível que os interessados apresentem temas que
276
A adoção do formato das ações coletivas como ações temáticas elimina a importância dada pela
doutrina ao problema da legitimação passiva nas demandas que discutam direitos difusos.
Isso ocorre porque há uma fase em que todos os interessados difusos serão convocados a
comparecer para participar da demanda coletiva e comporem o mérito. Mesmo que a ação tenha
sido proposta por uma empresa, por exemplo, para pleitear o reconhecimento da legalidade da
derrubada de uma mata para construção de prédios, todos os interessados difusos poderão participar
da demanda na defesa de tese oposta ou que tenha efeito modificativo no pedido inicial (MACIEL
JUNIOR, 2006, p. 184)
340

poderão integrar a matéria de mérito, ressaltando-se que somente integrará o objeto


da ação temática aquelas questões estritamente relevantes sob o ponto de vista
coletivo e social.
O grande desafio a ser enfrentado pelas ações temáticas ocorre quando
temos o conflito de dois ou mais direitos difusos, de extrema relevância social. Será
que é possível afirmarmos peremptoriamente a existência de eventual conflito
envolvendo dois ou mais direitos difusos e coletivos? Não seria o caso de
reconhecermos pelo principio do discurso o direito difuso ou coletivo mais adequado
ao caso concreto? Importante esclarecer que abstratamente não podemos falar em
uma possível hierarquia envolvendo direitos difusos e coletivos, uma vez que se
trata de afirmação precipitada e que somente a análise detalhada do caso concreto,
mediante a possibilidade de participação de todos os interessados no debate das
questões meritórias levantadas, é que nos permitirá identificar o direito mais
adequado a um determinado caso concreto. Isso será produto de ampla deliberação
pelas partes interessadas, e não mero produto de conjecturas individualizadas e
muitas vezes impostas pelo julgador, pelo legislador ou pelo chefe do executivo.
Essa problemática pode ser claramente visualizada em situações nas quais
temos de um lado interessados difusos buscando a proteção do meio ambiente e de
outro lado pessoas legitimadas a sustentar o crescimento econômico do país dentro
de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável. Esse é o cerne do debate
instaurado entre ruralistas e ambientalistas recentemente no Brasil com relação à
aprovação do novo Código Florestal. A primeira constatação relevante é que a
legitimidade democrática do provimento legislativo, envolvendo direito difuso no
presente caso concreto, não será alcançada enquanto todo o debate das questões
suscitadas ficarem adstritos aos limites do Congresso Nacional.
Por se tratar de um tema tipicamente de natureza difusa, a aprovação ou não
do Novo Código Florestal somente seria possível após a instauração do devido
processo legislativo e de natureza coletivo-democrática através das ações temáticas
consideradas o meio mais adequado de alcançar a legitimidade democrática do
provimento legislativo por meio da participação de todos os interessados difusos.
Por isso, torna-se necessário inicialmente dar publicidade acerca do conteúdo
e das principais questões que permeiam toda a problemática que envolve a
aprovação do respectivo projeto de lei. O recomendável seria o agendamento de
inúmeras audiências públicas ao longo de todo o território nacional com a finalidade
341

de apresentar a proposta inicial e recolher temas, sugestões, propostas, questões e


contestações dos legitimados, que serão devidamente estudadas e analisadas para,
ao final, elaborar um relatório devidamente fundamentado que norteará o
prosseguimento dos debates.
Ressalta-se que antes de aprovar ou não o projeto de lei todas as questões,
todos os temas e todas as propostas apresentadas deverão ser enfrentados pelo
legislativo, que tem o dever (não a mera faculdade) de se manifestar
FUNDAMENTADAMENTE acerca do todos os temas propostos e sugeridos pelos
interessados difusos. A legitimidade democrática do provimento ficaria
absolutamente comprometida se nossos legisladores ignorarem, omitirem ou não
enfrentarem de forma fundamentada os argumentos e os temas propostos pelos
interessados. A realização de audiências públicas com o propósito de apenas colher
sugestões, sem vincular e obrigar que nossos legisladores analisem
fundamentadamente as questões suscitadas é pretender dar uma aparência de
legitimidade democrática ao provimento estatal, visto que o principio participativo
não se efetivou em virtude da ausência da multilateralidade (não mera bilateralidade)
dos argumentos apresentados pelas partes. O discurso pró forma não é democrático
por não garantir a implementação do contraditório e da ampla defesa pela
participatividade de todos os interessados no provimento estatal. Por conseguinte,
sempre que inexistir participação dos interessados fica comprometida qualquer
discussão referente ao mérito participado no processo legislativo-coletivo no Estado
Democrático de Direito.
O mesmo vem acontecendo com relação ao anteprojeto do Novo Código de
Processo Civil, que reproduz a ideologia das audiências públicas como pseudo-
instrumentos de legitimação do provimento. Desde o ano de 2010 vem sendo
realizadas audiências públicas em todo o Brasil com a finalidade inicial de
apresentar a proposta trazida pelo anteprojeto do Novo Código de Processo Civil
para, na seqüência, recolher propostas, sugestões e temas correlatos ao objeto
central da discussão.
Considerando-se a amplitude de aplicabilidade da teoria das ações temáticas
no plano jurisdicional, legislativo e administrativo, resta claro que a sua observância
ao longo de todo o procedimento de discursividade do anteprojeto do Novo Código
de Processo Civil certamente asseguraria a legitimidade democrática do provimento
legislativo, uma vez que todos os argumentos, os temas e as questões suscitadas
342

pelas partes interessadas seriam enfrentadas pelos legisladores antes mesmo de


aprovar o texto de lei.
A atual sistemática de coletar propostas via audiências públicas e
posteriormente ignorá-las no momento da construção do provimento é uma forma de
construir uma ideologia com a finalidade de falsamente demonstrar que o provimento
estatal é legitimo no Estado Democrático de Direito.
Todas essas ponderações realizadas ao longo desse item da pesquisa
justificam-se no sentido de demonstrar que a participação dos interessados difusos
no processo coletivo democrático deve ser efetiva, e não pro forma, uma vez que o
provimento deverá ser conseqüência de tudo que foi submetido ao debate, e não
reflexo de meras conjecturas trabalhadas pelo julgador, pelo legislador ou pelo
administrador.

4.5.1 O INSTITUTO DO AMICUS CURIAE E A PARTICIPAÇÃO DOS LEGITIMADOS NO

PROCESSO COLETIVO BRASILEIRO : HISTORICIDADE E PREVISÃO LEGISLATIVA

Instituído no sistema common law, o instituto do amicus curiae advém do


direito norte-americano e foi concebido dentro de uma sistemática de controle difuso
de constitucionalidade, razão essa que causa uma certa complexidade, sob o ponto
de vista teórico e pragmático, quando se pretende compreendê-lo e aplicá-lo no
sistema concentrado de constitucionalidade no Brasil. O seu estudo no contexto da
proposta dessa pesquisa cientifica volta-se inicialmente para averiguar a dimensão
da figura do amicus curiae quanto à participação no processo coletivo, com vistas ao
entendimento do mérito processual. Ou seja, busca-se analisar criticamente até que
ponto é possível visualizar uma efetiva construção participada do mérito processual
por intermédio do amicus curiae e, assim, saber se o respectivo instituto pode ser
considerado um instrumento típico e efetivo de democratização do processo coletivo
ou, se na realidade, é um mero reflexo da ideologia individualista e liberal que
permeia todo o processo civil através de uma pessoa (representante - amicus curiae)
legitimado a representar em juízo os direitos da coletividade.
O cognominado “amigo da corte” é considerado uma parte convidada pelo
julgador a integrar a relação processual, com interesse na boa solução da causa,
ressaltando-se que sua admissão se pauta essencialmente na necessidade do juiz
343

buscar maior precisão e legitimidade no ato de decidir, em virtude da relevância


social e do alto grau de expressividade da pretensão coletiva. Na realidade, pode-se
afirmar que o estudo crítico do instituto do amicus curiae denota claramente a
expressão do sistema representativo como fundamento regente do processo
coletivo, visto que se estrutura e se desenvolve a partir de uma escolha do julgador
de uma, de algumas pessoas ou de um grupo de pessoas legitimados a representar
os direitos da coletividade, muitas vezes afastando, limitando ou suprimindo a
participação direta dos demais legitimados na construção participada do mérito
processual. É por isso que preliminarmente afirma-se que o processo coletivo
democrático, desenvolvido sob a égide das ações temáticas, não se compatibiliza
com a atual sistemática jurídica brasileira proposta para garantir a aplicação do
amicus curiae, conforme será oportunamente debatido de forma mais especifica e
aprofundada.
No Brasil, quando se analisa criticamente o conteúdo das Leis 9.868/99 e
9.882/99, verifica-se expressamente a presença do amicus curiae, razão essa que
leva alguns estudiosos a afirmarem que a sua intervenção nos processos de controle
de constitucionalidade proporciona o exercício da cidadania e a democratização do
controle concentrado de normas277. Sabe-se que tal afirmação é bastante
precipitada, tendo em vista que o respectivo instituto não garante a ampla e irrestrita
participação e fiscalidade por todos os interessados na construção discursivo-
democrática do provimento estatal. O que certamente pretendeu o legislador
brasileiro ao instituir o amicus curiae como sujeito legitimado nos processos de
controle concentrado de constitucionalidade foi dar certa aparência de
democratização e de participação na construção da decisão. A legislação pátria
limita essa participação, mediante a legitimação do julgador poder escolher quem
atuará na condição de amicus curiae, excluindo os demais interessados que não
tenham sido unilateralmente escolhidos pelo decididor. Isso evidencia
expressamente a incompatibilidade da atual sistemática jurídica brasileira, que
estabelece o instituto do amicus curiae, com a ordem constitucional e democrática.

277
Assim, talvez numa tentativa de democratizar o controle concentrado brasileiro de normas,
principalmente, tendo em vista a avaria do controle difuso de constitucionalidade aqui prevalecente,
além de, também, fazer sobressair o papel do Supremo Tribunal Federal, não como o guardião de
uma ordem concreta de valores, mas, sim, como o protetor do processo de criação democrática do
Direito, cumprindo-lhe proteger um sistema de direitos que torne factível a incidência simultânea da
autonomia privada e da autonomia pública, celebra-se a adoção do instituto do Amicus Curiae no
sistema jurídico brasileiro (MATTOS, 2011, p. 3).
344

É importante esclarecer que a figura do amicus curiae278 não contribui para


amenizar o déficit de legitimidade democrática dos provimentos estatais proferidos
nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que na atual
conjuntura não se vislumbra a ampla participação dos interessados na construção
discursiva do mérito processual. Não se pode negar a natureza jurídica coletiva da
ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e
da argüição de descumprimento de preceito fundamental, tendo em vista que a
própria dimensão metaindividual da pretensão denota a obrigatoriedade de
intervenção de todos os sujeitos interessados no espaço processual de debate que
autoriza amplamente a discussão fática e jurídica da pretensão.
Equivocadamente alguns estudiosos têm afirmado que o amicus curiae é um
instituto que assegura a participação no processo coletivo 279, possivelmente por
desconhecer os fundamentos jus-filosóficos utilizados como parâmetro ao
entendimento crítico do modelo constitucional de processo no Estado Democrático
de Direito. Afirmar que a participação no processo coletivo é garantida a partir do
amicus curiae é no mínimo um entendimento precipitado.
Nessa seara, torna-se relevante o levantamento do seguinte questionamento:
qual seria atualmente a função ou a finalidade do amicus curiae no ordenamento
jurídico brasileiro? Certamente é visto como um terceiro, cujo objetivo é auxiliar as
partes no processo, com o intuito de trazer informações ricas e indispensáveis ao
Judiciário. Assim, pode-se afirmar que o amicus curiae é uma espécie de
colaborador do juiz, uma vez que através dele não se vislumbra a possibilidade de
implementar efetivamente a participação de todos os interessados na construção do
provimento jurisdicional no âmbito das ações temáticas. Reconhecer o amicus curiae
como um instituto que seria compatível com o processo coletivo democrático é,
certamente, desconsiderar as ações temáticas como um modelo de processo em
que todos os interessados têm legitimidade para apresentar temas, fazer alegações

278
Terminologia latina para designar a pessoa que a jurisdição civil pode ouvir sem formalidades com
o objetivo de buscar elementos próprios para facilitar sua informação. Por exemplo, para conhecer os
termos de usos e costumes locais ou uma regra profissional não escrita. O amicus curiae não é nem
uma testemunha, nem um perito, e nem se submete às regras da recusa de oitiva pelas partes
(AGUIAR, 2005, p. 4).
279
De toda sorte, percebe-se, pelos contornos de tal instituto, que a participação do amigo no
processo se justifica como instrumento de efetivação da democracia deliberativa e participativa, que
possibilita a setores da sociedade a ampliação do debate acerca de temas relevantes, o que se
traduz em decisões com maior efetividade e legitimação social (AGUIAR, 2005, p. 13)
345

e influir de forma direta e significativa no debate da matéria de mérito e na


construção do mérito processual.

4.5.1.1 RESGATE HISTÓRICO -LEGISLATIVO DO INSTITUTO DO AMICUS CURIAE

É controversa a origem histórica do instituto do amicus curiae280, levando


alguns estudiosos a divergirem sobre o fato de sua gênese se encontrar no direito
romano ou no direito penal inglês. “Não são poucos os autores que demonstram as
origens da figura do amicus curiae ao Direito Romano, mas, independentemente de
uma certeza ou exatidão quanto à origem, é consente ter sido no Direito norte-
americano que o instituto se desenvolveu, aprimorou-se e atingiu visibilidade no
cenário internacional (MATTOS, 2011, p. 15). O certo é que, independentemente da
origem histórica do instituto, foi nos Estados Unidos da América que ocorreu a
sistematização e o aprimoramento da compreensão que temos hoje acerca da figura
do amigo da corte.
Para Giovanni Criscuoli, citado por Cássio Scarpinella Bueno (2008, p. 88-90)
o amicus curiae teria derivado do consilliarius romano, que era uma espécie de
colaborador neutro dos magistrados, com a finalidade de atuar naqueles casos em
que a resolução envolvia questões não estritamente jurídicas, além de atuar no
sentido de evitar que os juízes cometessem erros de julgamento. A intervenção do
consilliarius no processo dependia da convocação do magistrado e seu auxilio era
prestado de acordo com o seu próprio e livre convencimento, observando-se os
princípios do direito e, ao mesmo tempo, sendo extremamente leal aos juízes. A
sedimentação do instituto no período da Idade Média ocorreu basicamente nas mais
remotas origens do direito inglês, uma vez que o amicus curiae poderia comparecer
espontaneamente perante o juízo a fim de eventualmente fornecer elementos úteis

280
A figura do amicus curiae já é antiga no direito. Há notícia de que suas raízes se encontram no
direito romano, mas certamente em uma conformação bastante distinta daquela que chegou até
nossos dias. De forma mais precisa, podemos apontar sua ascendência no direito inglês medieval,
pois que, de certa forma, sua previsão já se encontrava nos chamados Year Books, nos séculos XIV
a XVI. (grifo nosso)
O amicus curiae, nesse período, participava do processo apontando precedentes jurisprudenciais não
mencionados pelas partes ou ignorados pelo julgador, atuando em benefício de menores, chamando
a atenção do juízo para certos fatos, como o erro manifesto, a morte de uma das partes, o
descumprimento do procedimento correto ou a existência de norma especifica regulando a matéria.
Cumpria um papel meramente informativo e supletivo, mas de clara importância para a corte (DEL
PRÁ, 2008, p. 25).
346

para a vitória de um dos sujeitos integrantes da relação processual, ressaltando-se


que o juiz poderia, antes de proferir uma sentença, pedir a opinião de um ou de mais
sábios de direito (consilium sapientis) como critério norteador de sua decisão.
A incorporação do amicus curiae no direito americano se deve ao
desenvolvimento e a sistematização teórica da dimensão da aplicabilidade e da
utilização do instituto no direito inglês. No direito antigo inglês o amicus curiae
comparecia perante as cortes em causas que não envolviam os interesses
governamentais e sua função era atualizar os juízes com relação a eventuais
precedentes ou leis que se supunham desconhecer. Importante ressaltar que no
direito inglês medieval os Tribunais possuíam ampla liberdade para admitir ou não a
participação do amicus curiae, estabelecendo os limites e as possibilidades de sua
atuação concreta. O aprimoramento no respectivo instituto se deve muito a uma
peculiaridade do direito inglês, qual seja, o adversary system281, que é a previsão
legal da ampla liberdade conferida aos litigantes para conduzir os processos dos
quais são partes longe da interferência de estranhos (a delimitação da atuação do
amicus curiae no processo começou a ocorrer especialmente a partir desse
momento, uma vez que a sua atuação passou a ser cada vez mais justificada a partir
da demonstração da existência de questões que transcendiam o conhecimento dos
julgadores). Atualmente no direito inglês o amicus curiae atua restritamente em juízo
naqueles casos que envolvem interesses públicos ou a tutela dos interesses da
Coroa Inglesa, desde que haja autorização expressa do juiz permitindo sua atuação
(BUENO, 2008, p. 90-92).
Historicamente não se sabe ao certo quando efetivamente o amicus curiae foi
instituído no direito norte-americano. Muitos autores afirmam que no ano de 1812 se
verificou a aparição do amicus curiae nos Estados Unidos, quando foi admitido para

281
Nesse sentido, talvez o mais significativo e importante alargamento da função do amicus curiae foi
uma solução parcial para um dos mais sérios problemas do sistema legal conhecido como
adeversarial (ou adversary) system (ou adversary proceedin). Esse sistema caracteriza-se pela
“primazia reconhecida às partes não só na iniciativa de instaurar o processo e de fixar-lhe o objeto –
traço comum à generalidade dos sistemas jurídicos ocidentais -, senão também na determinação da
marcha do feito (e do respectivo ritmo) em suas etapas iniciais, e na colheita das provas em que se
há de fundar o julgamento da causa. Havia, portanto, natural resistência à interferência de terceiros
no processo, que se realizava sob a égide do principio do Trial by duel. Entretanto, essas
características do adversary system acabavam por dar espaços a intentos pouco legítimos das
partes, como os processos movidos com propósitos colusivos. E foi exatamente nesse ponto que a
função do amicus curiae passou a ganhar maior importância para a própria administração da justiça.
O terceiro comparecia em juízo para apontar a intenção fraudulenta e colusiva das partes, não
raramente em casos nos quais ele próprio detinha interesse na demanda, muito embora não
participasse formalmente do processo (DEL PRÁ, 2008, p. 26).
347

que emitisse sua opinião sobre matéria posta para julgamento, que dizia respeito a
questões relativas à marinha. Outro caso bastante referido pelos autores norte
americanos ocorreu em 1823, quando um terceiro atuou sob as vestes de amicus
curiae e demonstrou que a demanda era fraudulenta. Inicialmente o instituto do
amicus curiae foi utilizado nos casos em que a Administração Federal ou outro ente
federado apresentava-se em juízo em detrimento de interesses privados, e a sua
função era exatamente se manifestar acerca de qual lei, federal ou estadual, deveria
ser aplicada ao caso concreto (nesse caso era o interesse publico que legitimava a
atuação do amicus curiae) (BUENO, 2008, p. 93-94).
Gradativamente a partir do inicio do século XX a jurisprudência norte-
americana passou a admitir a intervenção de dois grandes grupos de amicus curiae:
os amici governamentais e os amici privados ou particulares. Enquanto os amici
governamentais pleiteiam sua intervenção judicial em busca da proteção do
interesse público e dos direitos da coletividade, os amici privados tendem a ingressar
em juízo para a tutela dos seus próprios interesses (BUENO, 2008, p. 95).
Todo amicus curiae deverá se conduzir sempre a partir das indicações e
desígnios dos litigantes. Quanto aos amici privados a doutrina norte-americana
passou a compreendê-los como terceiros que buscam em juízo muito mais a tutela
de um direito seu do que, propriamente, a defesa de um direito neutro ou público no
sentido mais tradicional.
No direito inglês o amicus curiae assume um papel de sujeito que passa a
integrar a relação processual numa condição de neutralidade, sem assumir uma
posição específica a favor ou contra a uma das partes envolvidas no litígio. Ao
contrário disso, os amici privados do direito norte-americano não atuam de forma
imparcial ou neutra no processo, tendo em vista que ingressam na relação
processual com a finalidade de buscar a tutela de um direito ou interesse seu.
A evolucionariedade do instituto do amicus curiae no direito americano teve
como conseqüência o redimensionamento da sua finalidade, uma vez que passou a
ser visto como um representante dos direitos da coletividade. O “instituto passou a
cobrir aquelas situações em que se trata de um interesse posto em juízo mas que
não está adequada ou suficientemente representado (tutelado) pelas partes
envolvidas diretamente no litígio” (BUENO, 2008, p. 98). Por isso, vale ressaltar que
na transposição do amicus curiae do direito inglês para o direito americano, verifica-
348

se que o instituto perdeu uma de suas características mais importantes, qual seja, a
neutralidade de sua manifestação em juízo.
Enquanto o amicus curiae no direito inglês era um sujeito imparcial e que se
limitava a auxiliar o juiz lhe fornecer, quando solicitado, todas as informações
necessárias ao julgamento da demanda, no direito americano o amicus assume uma
postura mais pró-ativa, uma vez que passa a ser visto como um ente interessado na
solução da causa, com a possibilidade de participar do julgamento, discutir
amplamente as estratégias processuais e, inclusive, elaborar peças processuais.
Em virtude da redefinição das atribuições e da finalidade da atuação do
amicus curiae no processo, a Suprema Corte americana acabou por alterar a Regra
37 de suas próprias Rules e indicar a necessidade de alteração da Regra 29, do
Federal Rules of Appelate Procedure, algo que se concretizou no ano de 1998. Tais
alterações se justificam de forma mais clara porque “a admissão do amicus privado
deve depender do maior numero possível de informações que revelem, de forma
clara e precisa, a razão pela qual ele pretende ingressar em juízo” (BUENO, 2008, p.
100). Além disso, tal alteração se justifica no sentido de conferir maior Legitimidade
à Suprema Corte na análise objetiva do verdadeiro interesse do amicus.
A expectativa que o Judiciário americano tem com relação à atuação do
amicus curiae é que ele traga conhecimento de novas questões, considerações e
alegações que não foram suficientemente discutidas pelas partes, ressaltando-se
que caso não venha a demonstrar efetivamente sua eventual contribuição para o
processo poderá ter sua intervenção indeferida.
No direito americano o ingresso dos amici privados na relação processual
condiciona-se à anuência escrita das partes, ao requerimento expresso do próprio
tribunal e a demonstração do interesse que justifica a sua intervenção. Uma vez
admitido no processo por meio do consentimento das partes ou por determinação do
próprio tribunal serão estabelecidos os limites de atuação dos amici privados e
também esclarecida a medida que efetivamente poderão auxiliar a corte. Já com
relação à Rule 29, os amici governamentais não precisam do consentimento das
partes ou autorização do tribunal para atuar, devendo descrever em sua petição qual
é o seu interesse a justificar a conveniência do seu ingresso em juízo (BUENO,
2008, p. 103). No sistema americano o objetivo da atuação do amicus curiae,
independentemente se for privado ou público, é a possibilidade de manifestação no
349

sentido de trazer novos elementos para o debate judicial da pretensão, além


daqueles já apresentados pelas partes.
A construção de toda a discussão e debate acerca do tema amicus curiae
desenvolveu-se a partir da possibilidade de um terceiro representar processualmente
os interesses e os direitos cuja titularidade pertence a uma coletividade. Nesse
sentido, “[...] o fundamento ou a justificativa da figura do amicus curiae está em
permitir a manifestação de terceiros, ainda que sem um interesse direto na causa,
quando a demanda versar sobre questão que possa afetar toda a sociedade ou, ao
menos, uma parcela significativa da população” (MATTOS, 2011, p. 19).
Não se pode pensar num rol taxativo de situações que admitem a intervenção
do amicus curiae, haja vista que será a relevância do caso concreto o indicativo da
necessidade e da oportunidade de atuação e de intervenção. Resta evidente pela
exposição até então feita que o amicus curiae é o reflexo puro do sistema
representativo adotado no modelo de processo coletivo, até porque, o amigo da
corte é um sujeito que normalmente intervém no processo com a finalidade de
representar um grupo, uma classe ou toda a coletividade, excluindo-se, portanto,
qualquer possibilidade de participação direta dos demais interessados no debate e
na construção do mérito processual. Além disso, ressaltam-se que no Brasil, assim
como nos Estados Unidos da América, poderá atuar como amicus curiae apenas
aquelas pessoas autorizadas pelo juiz, e desde que demonstre a relevância do seu
ingresso na relação processual ora instaurada. Dessa forma torna-se inviável
compatibilizar o modelo de processo coletivo democrático com o instituto do amicus
curiae.
Há referências do instituto do amicus curiae em outros países, tais como
Canadá282, Austrália283, Hong Kong284, França285, Itália286, Argentina287.

282
No Canadá, a possibilidade de intervenção do amicus curiae é expressamente prevista na Rule 92
das Rules of the Supreme Court of Canadá. De acordo com a regra, The Court or a judge may
appoint na amicus curiae in an appeal” (BUENO, 2008, p, 108).
283
Segundo Antonio do Passo Cabral, a aplicação do instituto na Austrália dá-se pela praxe judiciária,
mas ainda não há sistematização legal sobre o assunto. O autor, contudo, faz menção expressa à
Order 11 Rule 22 e à Order 17 Rule 1, que tratariam do tema (BUENO, 2008, p. 109).
284
Em Hong Kong, segundo nos dá notícia Johannes Chan, a prática judiciária segue, basicamente, a
inglesa. Não obstante, é bastante reduzido o número de amicus curiae. De 1942 a 1997, apenas 31
caso de amicus são relatados, enquanto, no mesmo período, 874 casos se verificaram na Inglaterra
(BUENO, 2008, p. 109)
285
[...] a jurisprudência francesa tem, mais recentemente, admitido a intervenção de terceiros na
qualidade de amicus curiae, distinguindo sua participação em juízo daquela desempenhada por
testemunhas ou peritos. Cita, em nota, para dar fundamento a seu entendimento, duas decisões
350

No Brasil não existe nenhuma referência legislativa federal expressa que


utilize a expressão amicus curiae, salvo o artigo 23, §1º da Resolução nº 390/2004
do Conselho da Justiça Federal, porém diversas são as fontes que descrevem
situações jurídicas que podem ser identificadas como casos de amicus curiae.
Muita discussão cientifica gira em torno da sua natureza jurídica, levando a
diversas conclusões acerca do que seria o amicus curiae no direito brasileiro:
hipótese de intervenção de terceiro? Seria uma espécie de assistente litisconsorcial?
Poderia o amicus curiae ser considerado parte no processo? Tanto a doutrina
quanto a legislação brasileira são dissonantes acerca da natureza jurídica do
instituto, mas sob o ponto de vista crítico pode-se afirmar que no modelo
constitucional de processo coletivo o amicus curiae não pode ser o único sujeito a
participar do processo coletivo, limitando ou excluindo a possibilidade dos demais
interessados inserirem-se no espaço processual da discursividade democrática.
Dessa forma, torna-se irrelevante a discussão cientifica acerca da natureza jurídica
do instituto do amicus curiae, considerando-se que pela proposta trazida pelas
ações temáticas nenhum interessado difuso ou coletivo poderá ficar de fora do
processo coletivo e impossibilitado de apresentar temas correlatos à pretensão
inicialmente deduzida em juízo no prazo legal. Excluir qualquer interessado difuso de
participar do processo coletivo através da representatividade do amicus curiae é
ratificar o cerceamento de defesa.
É de suma importância ressaltar na legislação brasileira as hipóteses de
manifestação do Amicus Curiae, com o propósito de demonstrar a sua existência já

proferidas pela Corte de Apelação de Paris nos anos de 1988 e 1989, seguidas do entendimento, no
mesmo sentido, da Corte de Cassação no ano de 1991 (BUENO, 2008, p. 110).
286
[...] à falta de lei expressa no direito italiano, a intervenção do amicus curiae pode ser determinada,
analogicamente, à possibilidade que o juiz italiano tem, em processo do trabalho, de determinar, de
ofício ou a requerimento das partes, que os sindicatos prestem determinadas informações em juízo,
nos termos do art. 421, comma 2º, e art. 425, ambos do Código de Processo Civil Italiano. Para evitar
a pouca aplicabilidade do instituto, no entanto, a autora sugere que não deve haver prévia fixação de
quais entidades podem intervir na qualidade de amicus, ao mesmo tempo em que se deve admitir a
possibilidade de as entidades, voluntariamente, ingressarem em juízo, mesmo que sua efetiva
participação fique na dependência da concordância das partes e de uma expressa autorização do juiz
(BUENO, 2008, p. 113).
287
De acordo com Miguel Algel Ekmekdjian, entretanto, é possível falar implicitamente do amicus
naquele ordenamento, derivando-o do amplo art. 33 da Constituição daquele país, segundo o qual
“las declaraciones, derechos y garantias que enumera La Constitución, no serán entendidos como
negación de otros derechos y garantias no enumerados, pero que nacen del principio de la soberania
del pueblo y de La forma republicana de gobierno”.
Segundo o autor argentino, a figura do amicus curiae, que pode ser assumida por qualquer pessoa,
particular ou não, nada mais é do que o fornecimento ao tribunal, voluntariamente ou a pedido dele
próprio, de informações, opiniões, ou indicando a existência de alguma questão jurídica que tenha
escapado de sua consideração (BUENO, 2008, p. 116).
351

a algum tempo no direito pátrio. Nesse sentido ressalta-se inicialmente o disposto no


artigo 31 da Lei 6385/76, que disciplina o mercado de valores imobiliários, com
redação dada pela Lei 6.616/78:

Art. 31 - Nos processos judiciários que tenham por objetivo matéria


incluída na competência da Comissão de Valores Mobiliários, será
esta sempre intimada para, querendo, oferecer parecer ou prestar
esclarecimentos, no prazo de quinze dias a contar da intimação.
(Incluído pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978). § 1º - A intimação far-se-á, logo
após a contestação, por mandado ou por carta com aviso de recebimento,
conforme a Comissão tenha, ou não, sede ou representação na comarca
em que tenha sido proposta a ação. (Incluído pela Lei nº 6.616, de
16.12.1978). § 2º - Se a Comissão oferecer parecer ou prestar
esclarecimentos, será intimada de todos os atos processuais
subseqüentes, pelo jornal oficial que publica expedientes forense ou por
carta com aviso de recebimento, nos termos do parágrafo anterior.
(Incluído pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978). § 3º - A comissão é atribuída
legitimidade para interpor recursos, quando as partes não o fizeram.
(Incluído pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978). § 4º - O prazo para os efeitos
do parágrafo anterior começará a correr, independentemente de nova
intimação, no dia imediato aquele em que findar o das partes. (Incluído pela
Lei nº 6.616, de 16.12.1978) (grifo nosso) (BRASIL) 288.(grifo nosso)

A partir do disposto na legislação em questão verifica-se a obrigatoriedade de


intimação da Comissão de Valores Imobiliários sempre que for objeto de discussão
judicial matéria de sua competência. É de suma importância ressaltar que o direito
de participação do Amicus Curiae, no presente caso, inclui também o direito de
recorrer, ou seja, o amplo direito de argumentação jurídica da pretensão deduzida
em juízo quando evidente o interesse jurídico em questão.
Na perspectiva da crítica cientifica é de suma importância analisar que nesse
caso a Comissão de Valores Imobiliários não atuaria na condição de terceiro
juridicamente interessado, mas sim na condição de parte interessada do provimento,
assim como qualquer outro sujeito que eventualmente venha a demonstrar interesse
jurídico da pretensão coletiva deduzida em juízo. Tal dispositivo não pode ser
interpretado restritivamente, a fim de concentrar a participação no processo nas
mãos da Comissão de Valores Imobiliários e, assim, excluir a ingerência dos demais
interessados na relação processual.
Outra legislação brasileira em que é possível averiguar a figura do Amicus
Curiae é a Lei 8.884/94, que disciplina o Conselho Administrativo de Defesa
Econômica, e em seu artigo 89 estabelece: “Os processos judiciais em que se

288
Disponível: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L6385.htm. Data de Acesso: 02 nov.2011.
352

discuta a aplicação desta lei, o CADE deverá ser intimado para, querendo, intervir no
feito na qualidade de assistente” (DEL PRÁ, 2008, p. 62). Cabe-nos, nesse contexto,
indagar o seguinte: o CADE atuará na qualidade de assistente simples, de
assistente litisconsorcial ou de parte na relação processual em questão?
Possivelmente a intenção do legislador foi estabelecer a intimação do CADE com a
finalidade de prestar esclarecimentos técnicos, caso seja necessário, para
possibilitar ao julgador condições para o seu livre convencimento de julgamento do
feito. Resta esclarecer que a legislação não estabelece a possibilidade ampla e
efetiva de exercício do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e do
duplo grau de jurisdição, uma vez que o legislador não foi expresso no que tange à
possibilidade jurídica do CADE propor recursos. Mesmo assim, sabendo-se que o
legislador foi omisso quanto aos princípios constitucionais ora mencionados, a sua
inobservância acarretaria o cerceamento de defesa.
Outra critica pertinente à legislação referente ao CADE e à Comissão de
Valores Mobiliários é que o legislador optou pelo sistema representativo, não
garantindo amplamente aos cidadãos, de forma geral, o direito de atuar na condição
de Amicus Curiae e, conseqüentemente, participar da construção democrática do
provimento jurisdicional. Novamente fica evidente a limitação na participação e a
incompatibilidade do instituto com a Teoria das Ações Coletivas como ações
temáticas.
A Lei 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos
Advogados do Brasil, em seu artigo 49 estabelece a legitimidade dos Presidentes
dos Conselhos e das Subseções atuarem como amicus curiae, nos casos em que
são questionados em juízo as prerrogativas profissionais do advogado289. Trata-se, o
presente caso, de direito coletivo de uma classe de profissionais, o que legitimaria,
na perspectiva das ações temáticas, não apenas os representantes da instituição a

289
A Ordem dos Advogados do Brasil, mercê de suas amplíssimas finalidades institucionais, deve ser
aceita para atuar na qualidade de amicus em outras situações, que não estejam circunscritas à
questão especificamente prevista naquele dispositivo.
Com efeito, de acordo com o inciso I do art. 44 da precitada lei, a OAB também tem por finalidade
“defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a
justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo
aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. [...] Nessas condições, a OAB pode atuar
como amicus curiae para a tutela de todos aqueles bens jurídicos, que dizem respeito, intimamente, à
própria conformação do Estado brasileiro à ordem jurídica e seu desenvolvimento. Tal iniciativa só
pode ser obstada naqueles casos em que a OAB, ela mesma, tome a iniciativa, com base no mesmo
dispositivo legal, de tutelá-los na qualidade de autor, o que é amplamente aceito no ambiente do
processo civil coletivo” (BUENO, 2008, p. 349) (grifo nosso).
353

atuarem com partes no processo de natureza coletiva (visto que seu objeto é
coletivo, por versar sobre as prerrogativas de toda uma classe de profissionais), uma
vez que todos os demais legitimados (profissionais da advocacia) também devem
ser vistos como sujeitos juridicamente interessados na construção participada e
discursiva do mérito processual, pelo fato de serem direta ou indiretamente afetados
pelos efeitos do provimento final.
A Lei 9.279/96, que regula os direitos e as obrigações relativos à propriedade
industrial, estabelece, em seu artigo 57: “A ação de nulidade de patente será
ajuizada no foro da Justiça Federal e o INPI, quando não for autor, intervirá no feito.
§ 1º O prazo para resposta do réu titular da patente será de 60 (sessenta) dias. § 2º
Transitada em julgado a decisão da ação de nulidade, o INPI publicará anotação,
para ciência de terceiros (grifo nosso) (BRASIL)290”. Tal dispositivo legal é repetido
no artigo 175 da respectiva lei. Entende-se, a partir da discussão cientifica proposta
e construída até o presente momento que o Instituto Nacional de Propriedade
Industrial atuará na condição de Amicus Curiae todas as vezes em que a pretensão
deduzida versar sobre o pedido de nulidade de patente. Diante do exposto
questiona-se: e nas demais pretensões em que a discussão versar sobre matéria de
competência do INPI, haverá a obrigatoriedade de sua intimação para figurar como
parte na relação processual? O legislador não foi claro quanto à questão levantada,
novamente demonstrando se tratar de uma legislação construída sob a égide do
sistema representativo, o que inviabiliza, conseqüentemente, a participação ampla
do cidadão na construção do mérito coletivo da pretensão deduzida em juízo. Além
disso, a obrigatoriedade de intimação do INPI não exterioriza o direito de ampla
participação na construção do provimento jurisdicional, uma vez que não há a
previsão expressa do direito de recorrer nem da obrigatoriedade do magistrado se
manifestar acerca das alegações e argumentações levantadas pelo INPI.
A Lei 9.868/99, ao regulamentar o procedimento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade, estabeleceu, em seu artigo 7º, §2º: “considerando a relevância
da matéria e a representatividade dos postulantes pode admitir, por despacho
irrecorrível a manifestação de outros órgão ou entidades” (DEL PRÁ, 2008, p. 83).
Observa-se que a intervenção do Amicus Curiae está condicionada ao arbítrio do

290
Disponível: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L9279.htm. Data de Acesso: 02 nov.2011..
354

julgador, ou seja, somente será oportunizado o direito de participação na construção


do mérito coletivo da pretensão caso os julgadores assim autorizem.
A primeira critica que se faz é que a intervenção não pode ser vista como um
direito incondicionado e exclusivo do Amicus Curiae, mediante a demonstração
prévia de interesse jurídico no feito, uma vez que tal direito, conforme dispõe a Lei
9.868/99, fica adstrito ao interesse do julgador em viabilizar a participação como
instrumento hábil ao seu convencimento. Trata-se da demonstração mais clara
possível de um modelo de processo coletivo através do qual a condução do
procedimento é uma prerrogativa exclusiva do julgador, que é a pessoa que detém a
autoridade e a prerrogativa de autorizar ou não a participação do amicus curiae no
âmbito da ação coletiva. Verifica-se que, para a respectiva legislação, o direito de
participação no processo é limitado e restrito apenas à pessoa do amicus curiae, não
admitindo amplamente a intervenção dos demais sujeitos que demonstrem interesse
jurídico na pretensão coletiva deduzida em juízo.
Outra discussão coerente à questão posta é que a intervenção da parte na
condição de Amicus Curiae não vincula os julgadores à apreciação das questões
suscitadas em juízo, tal como se verificou na ADIN 3510, cujo objeto foi a discussão
da constitucionalidade da utilização de células tronco embrionárias em pesquisa
cientifica, e nos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, especificamente
no voto da Ministra Ellen Gracie291, que fica evidente o absoluto descompasso com
as discussões apresentadas pela comunidade cientifica e pela Igreja Católica:
simplesmente os ministros do Supremo Tribunal Federal desconsideraram ou
ignoraram as teses apresentadas e debatidas e proferiram solitariamente seus votos.

291
Em seu voto a Ministra Ellen Gracie explicitou o entendimento acerca da inexistência de um
momento inicial da vida humana e deixou claro não ser papel do Supremo estabelecer conceitos que
não estejam previstos explicita ou implicitamente na Constituição de 1988. Ao final de seu voto
manifesta-se pela improcedência da ADIN sob o argumento de que o embrião humano é formado 14
dias após a fecundação, uma vez que antes do termino dessa etapa o que se tem é uma massa de
células indiferenciadas geradas pela fertilização do óvulo. Dessa forma o que temos são pré-embriões
in vitro e congelados, com uma remota possibilidade de serem aproveitados nos procedimentos
médicos de reprodução assistida. Em virtude disso, entende a Ministra que ficou clara a opção
legislativa de dar destinação nobre a esses embriões excedentários com remotas possibilidades de
se tornarem um feto. Por isso manifesta-se no sentido da utilização apenas dos embriões humanos
inviáveis aos procedimentos médicos de reprodução assistida. Ressalta, ainda, a obrigatoriedade do
consentimento dos genitores e a participação efetiva dos Comitês de Ética em Pesquisa na análise da
utilização dos embriões humanos em pesquisas cientificas. Tipificou como delito penal a utilização de
embriões humanos em pesquisas de clonagem. Ao final conclui que não configura violação do
principio da dignidade humana a utilização de embriões humanos inviáveis e congelados em
pesquisas cientifica, tendo em vista que não teriam outro destino senão o descarte. Disponível:
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adi3510EG.pdf. Acesso: 23 jan. 2012.
355

A própria Lei 9.868/99, ao disciplinar o procedimento da Ação Declaratória de


Inconstitucionalidade, estabelece em seu artigo 20:

Art. 20. Vencido o prazo do artigo anterior, o relator lançará o relatório, com
cópia a todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento.
§ 1o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou
circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações
existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações
adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita
parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública,
ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na
matéria.
§ 2o O relator poderá solicitar, ainda, informações aos Tribunais
Superiores, aos Tribunais federais e aos Tribunais estaduais acerca da
aplicação da norma questionada no âmbito de sua jurisdição.
§ 3o As informações, perícias e audiências a que se referem os parágrafos
anteriores serão realizadas no prazo de trinta dias, contado da solicitação
do relator (BRASIL)292.(grifo nosso)

Nesse mesmo sentido temos o disposto no artigo 6º, §1º da Lei 9.882/99, que
dispõe sobre o processamento, julgamento e procedimento da Ação de Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental:

Art. 6o Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às


autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez
dias.
§ 1o Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos
processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais,
designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a
questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de
pessoas com experiência e autoridade na matéria (BRASIL)293.(grifo nosso)

Tais dispositivos legais evidenciam novamente a previsão do Amicus Curiae


no direito pátrio, porém novamente a participação encontra-se condicionada à
conveniência do julgador em viabilizar ou não a intervenção processual,
desobrigando-se de proferir sua decisão a partir das alegações e dos argumentos
suscitados em juízo. As Audiências Públicas devem ser vistas no Estado
Democrático de Direito como a oportunidade de efetivamente todos os interessados
difusos e coletivos participarem diretamente da construção do mérito processual,
mas, na atual conjuntura, a audiência pública acaba sendo vista pragmaticamente

292
Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9868.htm. Data de Acesso: 14 nov.2009.
293
Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9882.htm. Data de Acesso: 21 de novembro
de 2009.
356

como mero instrumento processual para dar uma aparência de participação e de


democratização do processo coletivo, tendo em vista que o julgamento do feito ainda
continua centrado na autoridade do julgador, que é quem dá a palavra final de
acordo com o seu livre convencimento.
Pela leitura e interpretação da Lei 9.868/99 e da Lei 9.882/99, verifica-se que
a participação nas ações coletivas é pro forma, uma vez que é restrita àqueles
sujeitos autorizados e “convidados” a atuarem como amicus curiae, em detrimento
do Direito Fundamental de Participação constitucionalmente assegurado a todos os
demais cidadãos e interessados no provimento. É nesse sentido que se desenvolve
a crítica à sistemática e a aplicação do respectivo instituto: o amicus curiae é visto
no direito brasileiro como um instituto importado do direito americano e adequado ao
modelo de processo coletivo de natureza representativa, fato esse que justifica a sua
incompatibilidade com o modelo de processo coletivo democrático, que se
desenvolve a partir do principio participativo.
A supressão ou a aparência de participação do destinatário do provimento
jurisdicional enseja a violação dos princípios constitucionais do processo,
especificamente o da fundamentação das decisões judiciais, do contraditório, da
ampla defesa e do devido processo legal, uma vez que restringe discursivamente o
direito de argumentação fático-jurídica da pretensão coletiva a um número muito
reduzido de sujeitos interessados.
É crível a natureza jurídica coletiva da ação direita de inconstitucionalidade,
ação declaratória de constitucionalidade e a argüição de descumprimento de
preceito fundamental, razão essa que justifica a ampliação das vias de controle e de
participação na construção dos provimentos pelos sujeitos legitimados. Mesmo
assim, há estudiosos que insistem em se posicionar no sentido de restringir ou
impedir tal participação, sob o argumento da impossibilidade de utilização do amicus
curiae como um terceiro que passa a integrar a relação processual 294. É de suma
importância esclarecer que democraticamente e sob o ponto de vista do modelo
constitucional do processo, o amicus curiae não pode ser visto como mero terceiro
294
A questão quanto ao ingresso do amicus curiae, de qualquer sorte, está superada na atualidade.
A Lei 9.868/99, também já fizemos referência a essa circunstância, veda expressamente a
intervenção de terceiros na ação direta de inconstitucionalidade, no que é inequívoco o caput de seu
art. 7º “Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de
inconstitucionalidade,”. Ao mesmo tempo, entretanto, o §2º do dispositivo não pode ser entendido
senão como forma clara quanto à possibilidade de determinadas entidades, sob algumas condições,
serem chamadas a se manifestarem em juízo e, nesse sentido, serem “terceiros intervenientes”
(BUENO, 2008, p. 132).
357

interessado na demanda, haja vista que a ele deve ser reconhecida a condição de
parte no processo, assim como deve ocorrer com os demais interessados difusos e
coletivos, que devem ser vistos processualmente como partes juridicamente
interessadas na construção discursiva e participada do mérito do provimento
jurisdicional.
Cabe-nos, agora, analisar o tema historicamente na atualidade e sob a
perspectiva pragmática, ou seja, como o vem sendo discutida a participação do
Amicus Curiae junto aos tribunais pátrios. Segundo entendimento do Tribunal
Regional Federal da 1ª Região, a figura do Amicus Curiae somente é admitida se a
matéria tratada for de índole constitucional, não permitindo a formulação de
requerimentos, senão a apresentação de memoriais e sustentação oral na sessão
de julgamento. Novamente verifica-se a limitação na atuação do amicus curiae, cuja
participação na construção do provimento jurisdicional se condiciona à autoridade do
julgador, que é quem detém a legitimidade de permitir ou não a sua intervenção no
processo, ressaltando-se que o julgador poderá ou não levar em consideração os
argumentos fático-jurídicos apresentados em juízo no momento em que for decidir,
ou seja, no momento de julgar o juiz não tem o dever de se manifestar e, tampouco,
de acolher qualquer dos argumentos e das alegações trazidas aos autos pelo
amicus curiae. Nesse sentido temos:

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL - "AMICUS CURIAE" -


OBRIGAÇÕES AO PORTADOR DA ELETROBRÁS: RESGATE -
DECADÊNCIA. 1. A figura do "amicus curiae" somente é admitida no
ordenamento jurídico brasileiro quando a matéria tratada for de índole
constitucional e não permite a formulação de requerimentos, senão que a
apresentação de memoriais e sustentação oral na sessão de julgamentos.
2. As obrigações ao portador da ELETROBRÁS, tomadas pelos
consumidores de energia elétrica em ressarcimento ao Imposto Único
sobre Energia Elétrica (empréstimo compulsório), nos termos da Lei nº
4.156/62, Lei nº 5.073/66 e Lei nº 5.824/72, possuíam prazo de vinte anos
para seu resgate, nos termos do parágrafo único do art. 2º, da Lei nº
5.073/1966. 3. Exigível o título, o prazo para reclamar o seu não
pagamento é de cinco anos, nos termos do Decreto-Lei nº 644, de 22 JUN
1969. 4. Decorridos mais de cinco anos do vencimento do título, aplicável a
decadência. 5. Pedidos formulados por ÉDISON FREITAS DE SIQUEIRA
ADVOGADOS ASSOCIADOS e outros de que não se conhece: petição
desentranhada. Apelação não provida. 6. Peças liberadas pelo Relator, em
06/05/2008, para publicação do acórdão. (TRF 1ª Região; Relator:
Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral; Apelação Cível:
200534000253854) (BRASIL)295 (grifo nosso)

295
Disponível: http://columbo2.cjf.jus.br/juris/unificada/Resposta. Acesso: 20 nov.2009.
358

É oportuna a demonstração do entendimento do Superior Tribunal de Justiça,


que embora autorize a intervenção do Amicus Curiae nos processos cujo objeto é a
discussão da constitucionalidade de leis, em contrapartida, limita a participação do
Amicus Curiae no debate jurídico do caso concreto mediante a impossibilidade de
propositura de recurso. A principal crítica a ser feita nesse momento diz respeito às
condicionantes e às limitações de argumentação jurídica e fática do Amicus Curiae
no processo coletivo, cuja participação fica mitigada mediante a supressão dos
princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, do duplo grau
de jurisdição e da isonomia processual. Nesse sentido temos:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL. MANDADO


SEGURANÇA. EXPOSIÇÃO DE TRABALHADORES AO AMIANTO.
DECRETO Nº 2.350/97. SUSPENSÃO DOS EFEITOS DE PORTARIA
MINISTERIAL. INTERVENÇÃO DE TERCEIRO. LITISCONSORTE
NECESSÁRIO. ASSISTENTE. AMICUS CURIAE. OMISSÃO.
OBSCURIDADE. CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. EFEITOS
INFRINGENTES. ART 535 DO CPC. IMPOSSIBILIDADE. 1. Os embargos
de declaração não se revelam como meio adequado para o reexame de
matéria decidida pelo órgão julgador, mormente quando se denota o
objetivo de reformar o julgado em vista da não concordância com os
fundamentos presentes na decisão recorrida. 2. A regra disposta no art.
535 do CPC é absolutamente clara sobre o cabimento de embargos
declaratórios, e estes só tem aceitação para emprestar efeito modificativo à
decisão em raríssimas exceções. 3. A figura do amicus curiae, tão
conhecida no direito norte-americano, chegou ao ordenamento positivo
brasileiro por meio da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, que
dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante
o Supremo Tribunal Federal, inaugurando importante inovação em nosso
Direito. 4. O amicus curiae poderá atuar na esfera infraconstitucional,
objetivando a uniformização de interpretação de lei federal. 5. O escopo da
edição da norma legal viabilizadora da intervenção do "amicus curiae" é o
de permitir ao julgador maiores elementos para a solução do conflito, que
envolve, de regra, a defesa de matéria considerada de relevante interesse
social. 6. Intervenção especial de terceiros no processo, para além das
clássicas conhecidas, a presença do amicus curiae no feito não diz tanto
respeito às causas ou aos interesses eventuais de partes em jogo em
determinada lide, mas, sim, ao próprio exercício da cidadania e à
preservação dos princípios e, muito particularmente, à ordem
constitucional. 7. "[...] Entidades que participam na qualidade de amicus
curiae dos processos objetivos de controle de constitucionalidade, não
possuem legitimidade para recorrer, ainda que aportem aos autos
informações relevantes ou dados técnicos." (STF, ADI-ED 2591 / DF, Rel.
Ministro EROS GRAU, DJ 13-04-2007 PP-00083) 8. Embargos de
declaração rejeitados. (BRASIL)296 (grifo nosso)

296
Disponível: http://columbo2.cjf.jus.br/juris/unificada/Resposta. Acesso: 18 nov.2009.
359

Pela análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça verifica-se que


se trata tipicamente de um direito coletivo, cuja titularidade pertence a todos os
trabalhadores com exposição ao amianto. Em virtude disso, e sob a ótica das ações
temáticas, constata-se que não será apenas o amicus curiae e a instituição do
Ministério Público os únicos legitimados a se manifestarem nesse processo coletivo,
uma vez que todos os sujeitos que trabalham com amianto possuem legitimidade
processual para intervir e participar de todo o procedimento instaurado com a
finalidade de debater analiticamente a pretensão de natureza coletiva.
Passaremos agora a análise crítica do instituto do amicus curiae no direito
brasileiro, utilizando-se como parâmetro e referencial dessa análise a teoria das
ações coletivas como ações temáticas.

4.5.2 O AMICUS CURIAE COMO HERANÇA DO S ISTEMA REPRESENTATIVO NO PROCESSO


COLETIVO VIGENTE E A SUA PSEUDO -PARTICIPAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DO MÉRITO

PROCESSUAL .

No Brasil o amicus curiae é compreendido como um terceiro que intervém no


processo, por iniciativa própria, por requerimento ou de oficio pelo julgador, com a
finalidade de fornecer ao juízo elementos considerados relevantes e indispensáveis
ao julgamento do mérito processual. Importante esclarecer que sempre quem
autorizará ou não o ingresso do amicus curiae na relação processual é o juiz, que
em decisão fundamentada se manifestará no sentido de reconhecer ou não a
necessidade de sua intervenção. Tal entendimento é considerado, no mínimo,
incompatível com o modelo constitucional de processo coletivo democrático, tendo
em vista que não será o juiz o legitimado a autorizar ou não a participação de um
interessado numa determinada ação temática. Será a demonstração da titularidade
do bem jurídico de relevância coletiva que definirá quem detém ou não a
legitimidade de participar da ação temática, participação essa que não poderá ficar
adstrita ao amicus curiae.
A atual sistemática jurídica do amicus curiae no Brasil encontra-se na
contramão da proposta trazida pelas ações temáticas, pelo fato de limitar, restringir
360

ou suprimir o direito dos demais legitimados ao provimento participarem da


construção do mérito processual.
A primeira e relevante consideração a ser feita para justificar cientificamente
as colocações apresentadas anteriormente é que o amicus curiae não pode ser visto
processualmente como um terceiro ou mero assistente297. Assim como os demais
interessados no provimento, o amicus curiae deve ser considerado como parte no
processo coletivo, legitimado a influir diretamente na discussão e na construção do
mérito processual, embora não possa ser visto e compreendido como o único
legitimado. Todos aqueles aptos a sofrerem os efeitos jurídicos do provimento tem
legitimidade para agirem como partes no processo coletivo e, nesse ínterim,
podemos incluir o amicus curiae. Contrário a esse entendimento, Cássio Scarpinella
Bueno afirma que o amicus curiae não pode ser considerado juridicamente parte no
processo, uma vez que deve ser visto como um terceiro autorizado a atuar no
processo alheio, ainda que não seja autor ou réu e mesmo que o objeto litigioso não
lhes diga respeito nem direta, nem indiretamente (2008, p. 427).
A doutrina diverge quanto ao tema referente à natureza jurídica do amicus
curiae. Para Dirley da Cunha Júnior “o amicus curiae é um terceiro especial que
pode intervir no feito para auxiliar a Corte, desde que demonstre um interesse
objetivo relativamente à questão jurídico-constitucional em discussão (CUNHA
JUNIOR, 2004, p. 157). Mirela de Carvalho Aguiar afirma que “afigura-se claramente

297
Um dos pontos mais complexos que tangenciam o instituto do amicus curiae se encontra na
complexidade que envolve a discussão acerca da natureza jurídica dessa figura. Dentre as
classificações encontradas na doutrina jurídica brasileira, é possível apontar algumas, tais como
aquela que classifica o amicus curiae como hipótese de intervenção de terceiros ou aquela que
admite tratar-se de intervenção atípica de terceiros, terceiro especial, assistência e, por fim, auxiliar
da justiça.
Em um primeiro momento, é possível verificar uma tendência do Supremo em inserir o amicus curiae
na modalidade de intervenção de terceiros, tal como se depreende de trecho do despacho do rel.
Ministro Joaquim Barbosa Gomes na ADI nº 3.311-DF (MATTOS, 2011, p. 167-168).
De outro lado, e em interpretação diametralmente oposta a essa acima esposada, é possível
identificar em outro processo, também de Ação Direta de Inconstitucionalidade, que a classificação
feita pelo Supremo Tribunal Federal nega a hipótese de configuração de intervenção de terceiros
para o amicus curiae, admitindo-o, portanto, como um terceiro especial. Trata-se da ADI nº 2.548-PN,
cujo relator foi o Ministro Gilmar Ferreira Mendes (MATTOS, 2011, p. 169).
De outra monta, o nosso Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que a pessoa
jurídica de Direito Público que atua nos termos da Lei 9.469/1997, bem como o CADE, nos termos da
Lei nº 8.884/1994, já tratado acima, figurariam na qualidade de amicus curiae e se enquadrariam na
hipótese de assistentes (MATTOS, 2011, p. 169).
Há quem classifique o amicus curiae mais especificamente como sendo uma modalidade de
assistência. Quem assim o considera admite o assistente como coadjuvante de uma das partes,
visando a um desfecho que seja bem sucedido entre elas. Essa é a opinião de Edgard Silveira Bueno
Filho, para quem o amicus curiae influirá de forma positiva na lide em questão, no sentido de
concorrer para que uma das partes se favoreça da decisão (MATTOS, 2011, p. 171).
361

absurda a atribuição de outra natureza jurídica ao instituto que não a de auxiliar do


juízo” (AGUIAR, 2005, p. 58). Leonardo Jose Carneiro Cunha se posiciona no
sentido de que “o amicus curiae desponta como auxiliar da justiça, criado para
contribuir com o aprimoramento técnico da decisão judicial” (CUNHA, 2004, p. 582-
623). Já para Antônio Carlos Aguiar o “amicus curiae é tido como um autêntico
auxiliar do juízo. Ele não funciona no processo como terceiro diretamente
interessado, como nas hipóteses legais de intervenção de terceiros, até porque
como já vimos há proibição legal nesse sentido” (AGUIAR, 2004, p. 160).
Outro ponto nevrálgico no debate do tema proposto diz respeito àqueles
entendimentos teóricos que propugnam que o amicus curiae é visto como uma
expressão do principio democrático de participação cidadã no processo. Na
realidade, pode-se afirmar que o amicus curiae é um instituto utilizado como
instrumento de mitigação da participação dos interessados no processo coletivo, a
partir da proposição ideológica de representatividade dos direitos da coletividade por
intermédio da autoridade de um sujeito individualmente.
Trata-se de um instrumento que caminha na contramão da concepção
constitucional e processualizada do Estado Democrático de Direito. Enquanto
instituto advindo do sistema common law, o amicus curiae é uma maneira
encontrada pelos estudiosos e pelo legislador brasileiro para divulgar
equivocadamente a idéia de participação dos sujeitos no processo por meio da
representatividade, tal como ocorre no rol dos legitimados da ação civil pública e da
ação direta de inconstitucionalidade298, que traz uma aparência de participação no

298
[...] todos aqueles integrantes do rol do art. 103, da Constituição Federal de 1988, isto é, os
legitimados ativos a proporem a ADI e a ADC, são, também, automaticamente, pré-qualificados a
atuarem no papel de amicus curiae, já que quem conta com legitimidade para propositura daquelas
ações conta, pois, com a representatividade exigida para atuar em juízo. Assim, essas pessoas/entes
já se encontram previamente qualificados a participarem no processo como amicus curiae, restando
apenas a necessidade de comprovação do interesse para adentrar no litígio.
A despeito disso, não estão outras pessoas, órgãos ou entidades afastados da possibilidade de atuar
no processo como amicus curiae, como o próprio dispositivo legal referente ao temo dispõe ao falar
da “manifestação de outros órgãos ou entidades”.
Portanto, têm legitimidade para atuar na qualidade de amicus curiae tanto os legitimados ativos
previstos no art. 103, CF/88, quanto outros órgãos ou entidades, desde que demonstrem, através de
manifestação no processo, como poderão contribuir para ampliar o debate e proporcionar, com isso,
uma maior interação (e integração) com a sociedade civil. Afinal, embora não sejam destinatários
diretos/imediatos da decisão proferida, a participação do amicus curiae pode trazer ao feito elementos
informativos e razões constitucionais fundamentais ao processo, além de fazer alcançar um patamar
mais elevado de legitimidade nas deliberações do Tribunal Constitucional, já que este será
formalmente obrigado a apreciar as interpretações oriundas de diversos setores da sociedade e, com
isso, estará prestando contas à sociedade de uma maneira geral (MATTOS, 2011, p. 179-180).
362

processo, ao mesmo tempo que exclui o exercício da cidadania e a interferência dos


demais interessados na construção do provimento.
Oportunizar que os legitimados, mediante previsão legal, intervenham no
processo coletivo, não é garantia efetiva de participação dos interessados difusos na
construção participada do mérito no processo coletivo. Conforme visto, tanto no
direito pátrio como no direito estrangeiro, o instituto do Amicus Curiae encontra o seu
fundamento jurídico no sistema representativo, o que, por sua vez, legitima o
exercício ilegítimo da jurisdição, ao permitir que o julgador decida quem realmente
pode participar do processo.
A finalidade do Amicus Curiae, no processo coletivo, é oferecer ao magistrado
condições de justificar aparentemente que o processo coletivo é um lócus de
participação dos interessados, por intermédio do cognominado amigo da É nesse
contexto que se pode afirmar ser o Amicus Curiae um instituto antidemocrático e que
não se coaduna com a Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas.
Não é possível democratizar a participação dos destinatários do provimento
jurisdicional no processo coletivo se ainda continuarmos raciocinando as ações
coletivas a partir do sistema representativo. A efetiva participação na construção do
provimento perpassa, necessariamente, pela ruptura com o sistema representativo e
a construção de um modelo de processo coletivo democrático pelo sistema
participativo.
Por isso, o magistrado, no momento em que for proferir o julgamento, deverá
observar os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal,
a fim de assegurar a participação de todos os interessados na ação temática, e, ao
mesmo tempo, se manifestar, de forma expressa, acerca das alegações fáticas e
jurídicas apresentadas pelas partes ao longo do procedimento. Não se efetivará a
construção democrática e participada do provimento estatal se os julgamentos forem
realizados de forma unilateral, e centrado na onisciência do julgador. O requisito
para a legitimidade democrática do provimento estatal é que a participação dos
destinatários efetivamente ocorra.
A discussão cientifica do amicus curiae trazida pelos estudiosos na atualidade
encontra-se superada, no que diz respeito ao processo coletivo democrático-
constitucionalizado. Reconhecer a legitimidade processual do instituto é ratificar o
entendimento teórico, já sedimentado, de que o processo coletivo não é um espaço
que garante efetivamente a participação de todos os interessados. Se a discussão
363

jurídica concentra-se ainda na figura do amicus curiae, é a demonstração clara de


que o estudo do processo coletivo no Brasil está adstrito ao modelo individual e
liberal preconizado pelo processo civil. Para avançar criticamente a reflexão
cientifica das ações coletivas no Brasil é necessário compreender o processo como
um lócus de debate amplo da pretensão por todos os legitimados, assim como
propõe as ações temáticas.
O instituto do amicus curiae limita a possibilidade de controle do objeto da
ação coletiva pelos interessados, uma vez que a sua previsão jurídico-legal
materializa o direito de apenas alguns sujeitos inserirem-se no espaço processual,
excluindo-se o direito de participação dos demais na construção do mérito
processual. Além disso, pode-se afirmar que no momento em que o legislador pátrio
fez a opção pelo instituto do amicus curiae, como forma de participação no processo
coletivo, certamente buscou restringir o rol de legitimados ao debate da pretensão.
Dessa forma, verifica-se que o exercício da cidadania fica comprometido, no
momento em que a representatividade exercida pelo amicus curiae suprime
diretamente o devido processo legal.
A utilização do amicus curiae como forma ilegítima de garantir a exclusão dos
demais interessados difusos e coletivos na construção do provimento impossibilita o
debate amplo da pretensão, viabilizando a extensão dos efeitos jurídicos da
respectiva decisão sobre aquelas pessoas que efetivamente foram excluídas do
processo. Surpreender uma pessoa com os efeitos jurídicos de uma decisão, a qual
não teve a oportunidade de se inserir no contexto jurídico de debate da pretensão, é
o mesmo que reconhecer a ausência ou a inobservância do modelo constitucional
de processo.
Dessa forma, o instituto do amicus curiae é visto como o meio mais utilizado
de violação do modelo constitucional de processo no Estado Democrático de Direito,
haja vista que, por meio de sua utilização, temos a violação do Direito Fundamental
de acesso amplo ao judiciário por meio da participação no processo. Assim, o mérito
processual, nas ações coletivas em que o amicus curiae figura como sujeito do
processo, tem a sua construção participada sobremaneira comprometida, uma vez
que o amigo da corte retira dos demais sujeitos do processo o direito de exercício da
cidadania por meio da participação.
O fato de os julgadores não se vincularem, e, tampouco, terem o dever de se
manifestar acerca dos argumentos trazidos pelo amicus curiae no processo coletivo,
364

é a evidência mais clara de que inexiste a participação na construção do mérito


processual. A participação no processo coletivo somente se efetivará quando todos
os interessados tiverem a oportunidade de se manifestarem tempestivamente acerca
da pretensão deduzida em juízo e, ao mesmo tempo, o julgador obrigatoriamente se
manifestar, de forma fundamentada, sobre todas as alegações fático-jurídicas
trazidas pelas partes. No momento em que é oportunizado ao amicus curiae
representar os demais interessados, sabendo-se que suas alegações não vinculam
a decisão judicial, é certo afirmar que nesse caso a participação no processo coletivo
não existe.
É nesse contexto que se sustenta a pseudo-participação do amicus curiae
como instrumento de exercício da cidadania pelo processo coletivo. Na realidade, os
argumentos jurídicos viáveis a justificar que o amicus curiae não garante aos
interessados a participação no processo são os seguintes:

1- O amicus curiae é considerado no direito brasileiro atual um representante


dos direitos dos demais interessados coletivos e difusos. Trata-se de um
instituto que materializa expressamente a adoção do sistema representativo,
como fundamento regente do modelo de processo coletivo vigente no Brasil.
2- O amicus curiae não é juridicamente considerado parte no modelo de
processo coletivo atual, uma vez que é visto como um terceiro colaborador,
cuja finalidade é auxiliar o juiz no ato de julgar, ressaltando-se que sua
participação no processo é como mero coadjuvante, uma vez que não tem
legitimidade de influir, de forma direta, no conteúdo decisório.
3- Ao contrário do que ocorria no direito inglês, o sistema americano, adotado
pelo direito pátrio, estabelece que o amicus curiae não deve ser imparcial,
uma vez que atuará processualmente em favor e na defesa dos direitos de
determinados interessados difusos e coletivos.
4- Os argumentos e as alegações suscitados por intermédio do amicus curiae
não vinculam a decisão do juiz, que não fica adstrito e obrigado a se
manifestar acerca das proposições fáticas e jurídicas trazidas para o
processo.
5- O direito de recorrer não é uma prerrogativa assegurada ao amicus curiae,
pelo fato de não ser considerado parte no processo coletivo.
365

6- Sob a ótica do modelo constitucional de processo coletivo, o instituto do


amicus curiae deve ser visto como uma, dentre tantas outras partes,
juridicamente interessadas na pretensão deduzida, e legitimada a participar
diretamente na construção do mérito processual na ação coletiva.
7- O amicus curiae retira o direito dos demais interessados difusos e coletivos
participarem da construção do provimento jurisdicional, caracterizando
expressamente a violação ou o abandono do modelo constitucional de
processo, cuja finalidade é assegurar a legitimidade democrática do
provimento estatal e a concretização dos Direitos Fundamentais
expressamente previstos no plano constituinte.
8- O exercício pleno da cidadania no Estado Democrático de Direito torna-se
possível àqueles interessados difusos e coletivos que tiveram a efetiva a
oportunidade de discursivamente construir o mérito processual, de forma
participada, algo que se torna inviável nas ações coletivas em que o amicus
curiae figura como terceiro habilitado a representar os direitos dos demais
interessados.
9- A previsão legal do amicus curiae no direito brasileiro foi uma forma
encontrada pelo legislador de instituir um rol taxativo de legitimados a
propositura das ações coletivas, com o propósito de excluir o direito dos
demais interessados serem inseridos como sujeitos habilitados ao debate
amplo das peculiaridades fáticas e jurídicas que integram a pretensão
deduzida.
10- A adoção do sistema representativo, como referencial do processo coletivo
no Brasil, é algo incompatível com a processualidade democrática e,
especialmente, com a teoria das ações coletivas como ações temáticas.
O sistema participativo é o instrumento legitimo para assegurar a maior
amplitude possível de todos os interessados difusos e coletivos poderem se
inserir no lócus processual de construção participada do mérito.
11-Para viabilizar a construção participada do mérito processual torna-se
necessário abdicar do instituto do amicus curiae no ordenamento jurídico
brasileiro, por ser considerado um meio que deslegitima democraticamente o
provimento jurisdicional, mediante a utilização de medidas voltadas a
exclusão do maior número possível de interessados difusos e coletivos.
366

Assim, torna-se comprometida toda forma de controle, pelos interessados, da


atividade jurisdicional.
12-A proibição legal do direito do amicus curiae propor recursos das decisões
proferidas nos processos coletivos em que atuou como terceiro interessado é
a forma mais legitima de demonstrar a violação dos princípios constitucionais
do duplo grau de jurisdição, do devido processo legal, do contraditório, da
ampla defesa e da isonomia processual. Se o objetivo do legislador fosse
realmente assegurar ao amicus curiae o direito de participação democrática
no processo coletivo, certamente ser-lhe-ia garantida a possibilidade de
influir substancialmente no conteúdo da decisão de mérito, podendo, em
caso de insatisfação ou inconformismo, se utilizar dos recursos disponíveis
em nossa legislação.
13-O próprio amicus curiae tem sua participação cerceada ou suprimida no
processo coletivo, assim como os demais interessados difusos e coletivos,
que estão proibidos legalmente de atuarem como parte nas ações coletivas.
É por isso que se fala em pseudo-participação, haja vista que a utilização do
sistema representativo pelo legislador foi a forma encontrada de induzir
precipitadamente o pesquisador do direito a acreditar que o instituto em
questão pode ser visto como uma forma de participação democrática no
processo coletivo.

4.5.3 UM ESTUDO CRÍTICO DA ADIN 3510 SOB A PERSPECTIVA DA PARTICIPAÇÃO DO

AMICUS CURIAE NA CONSTRUÇÃO DO MÉRITO PROCESSUAL

Em 31 de maio de 2005, foi proposta pelo então Procurador Geral da


República, Cláudio Fonteles, Ação Direta de Inconstitucionalidade, cujo objeto foi o
artigo 5º e seus parágrafos da Lei 11.105, de 24 de março de 2005, que autoriza
pesquisas cientificas com células tronco embrionárias, conforme citação abaixo:

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de


células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos
por fertilização in vitro e não utilizados nos respectivos procedimentos,
atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II –
367

sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data de


publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta
Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de
congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento
dos genitores. § 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que
realizem pesquisas ou terapia com células-tronco embrionárias humanas
deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos
comitês de ética e pesquisa. § 3º É vedada a comercialização do
material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime
tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 (BRASIL) 299.
(grifo nosso)

Todo debate jurídico pautou-se estritamente na discussão acerca da


interpretação a ser dada ao Direito Fundamental à Vida, ou seja, buscou-se
esclarecer, a partir das alegações do Procurador Geral da República se a vida,
enquanto Direito Fundamental, deve ou não ser interpretada extensivamente, assim
como os demais Direito Fundamentais no Estado Democrático de Direito.
Participou diretamente do presente debate jurídico, na condição de amicus
curiae, a CONECTAS DIREITOS HUMANOS; CENTRO DE DIREITO HUMANOS –
CDH; MOVIMENTO EM PROL DA VIDA – MOVITAE; INSTITUTO DE BIOÉTICA,
DIREITOS HUMANOS E GÊNERO – ANIS, além da CONFEDERAÇÃO NACIONAL
DOS BISPOS DO BRASIL – CNBB.
Com fundamento no §1º do artigo 9º da Lei 9868/99, foi determinada a
realização de Audiência Pública, experiência considerada inédita na história do
Supremo Tribunal Federal. Vinte e duas, das mais acatadas autoridades cientificas
brasileiras, subiram à Tribuna para discorrer sobre o objeto da presente ADIN. Do
presente debate jurídico construído a partir da Audiência Publica, verifica-se a
existência de duas correntes muito bem delineadas: 1) a pautada na Teoria
Concepcionista cuja interpretação do Direito Fundamental à Vida deve ser
obrigatoriamente extensiva; 2) A segunda teoria preza pelo progresso da ciência,
mediante o desenvolvimento de pesquisas cientificas com embriões humanos. Para
os defensores da tese de que não existe vida humana em um embrião congelado, a
utilização de embriões humanos em pesquisa cientifica não representaria a prática
do aborto. Em sentido absolutamente contrário, temos o posicionamento que
preconiza que a vida humana começa com a fecundação, razão essa que justificaria

299
Disponível:
http://74.125.47.132/search?q=cache:Amh_bOGHRGQJ:noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-
site/pdfs/ADIN_3510_Fonteles_inicial.pdf+inicial+adin+3510&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso:
01 mai.2009.
368

a impossibilidade de utilização de embriões humanos congelados em pesquisa


cientifica.
É indiscutível que se trata de momento histórico relevante a realização de
audiência pública no julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade pelo
Supremo Tribunal Federal. A possibilidade de interlocução com interessados na
pretensão deve ser vista como o primeiro passo, mas não o único, a fim de
assegurar a legitimidade democrática do provimento estatal. Tal colocação se
justifica no seguinte sentido: as entidades que atuaram na condição de amicus
curiae não são as únicas pessoas consideradas interessadas na construção do
provimento jurisdicional. A realização de audiências públicas certamente assegura
maior democraticidade ao provimento, desde que não se restrinja o número de
pessoas que participarão do debate jurídico da pretensão ocorrido no lócus
processual.
A primeira crítica pertinente ao procedimento adotado na AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE nº 3510 diz respeito à limitação do número de pessoas
que participaram da audiência pública, Não houve a ampla publicidade do objeto da
ação coletiva, a fim de assegurar a todo interessado difuso e coletivo o direito de se
inserir no contexto fático e jurídico da discursividade processual da pretensão
coletiva. Os ministros do Supremo Tribunal Federal se colocaram no direito de
escolher aqueles sujeitos que estariam habilitados a participarem da audiência
pública na condição de amicus curiae. Não houve maior abertura para que outras
pessoas, além daquelas acima mencionadas, pudessem participar da audiência
pública, razão essa que compromete, sobremaneira, a legitimidade democrática do
provimento. Certamente, muitos outros temas que poderiam ter sido levantados por
outros interessados não os foram em virtude da impossibilidade de se inserirem
como sujeitos legitimados ao debate processual da pretensão.
O procedimento adotado na AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
nº 3510 desenvolveu-se em absoluta desconformidade com a teoria das ações
coletivas como ações temática, haja vista que a participação dos sujeitos no
processo coletivo não foi definida pelo objeto da ação proposta, mas sim, por
escolhas unilaterais realizadas pelos julgadores, que conferiram pressupostamente
legitimidade àquelas entidades consideradas habilitadas a debaterem, de forma
exclusiva e solitária, a pretensão coletiva no âmbito judicial. Novamente verifica-se
369

no Brasil a reprodução de um modelo de processo coletivo que se desenvolve a


partir do sujeito, e não a partir da natureza coletiva do objeto da ação proposta.
Possivelmente o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal se
deve ao fato de não reconhecerem juridicamente a natureza metaindividual da
pretensão trazida pela AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 3510.
Não somente nessa ação, mas em todas as ações direta de inconstitucionalidade, a
participação dos interessados difusos e coletivos deve ser amplamente assegurada,
a fim de que o debate da pretensão não fique adstrito aos ministros do Supremo
Tribunal Federal e a poucos sujeitos escolhidos a participarem de eventual audiência
pública realizada esporadicamente. No Brasil adota-se a ideologia de que a
legitimidade das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal decorre de uma
pressuposta licenciosidade que os ministros têm de decidirem as pretensões
coletivas em nome de todos os interessados, sem ter o dever de consultá-los
previamente e, também, de inseri-los no debate da pretensão.
Torna-se necessário repensar criticamente a legitimidade dos ministros do
Supremo Tribunal Federal quanto ao procedimento adotado nas ações e nas
pretensões que envolvem direitos de cunho transindividual. A aplicabilidade da teoria
das ações temáticas deve ser vista como a alternativa mais viável a garantir maior
legitimidade democrática aos provimentos jurisdicionais emanados pelos ministros
da mais alta corte judiciária do Brasil, mediante a possibilidade dos interessados
difusos trazerem tempestivamente todos os temas, as alegações e argumentações,
de cunho fático e jurídico, que tenham relação direta ou indireta com a pretensão
deduzida, e que sejam socialmente relevantes. Hoje, com o advento e o
aprimoramento dos meios de comunicação, especialmente os meios eletrônicos
(redes sociais), tornou-se plenamente possível dar ampla publicidade de cada
pretensão coletiva levada ao Supremo Tribunal Federal, de tal forma que aos
interessados difusos e coletivos seja garantido o direito de discussão das
peculiaridades que integram a pretensão.
A possibilidade de democratizar a construção participada do mérito
processual nas ações de natureza metaindividual que tramitam no Supremo Tribunal
Federal, condiciona-se a aplicabilidade da teoria das ações temáticas. O espaço
processual deve ser visto como um recinto de participação não apenas dos ministros
e dos amici curiae pressupostamente escolhidos pelos julgadores. A fim de
democratizar a construção do provimento, torna-se necessário oportunizar que todos
370

os interessados sejam resguardados no seu direito de alegar, de participar e de


construir diretamente o provimento jurisdicional. A implementação do procedimento
que assegure a ampla participação dos interessados na ação direta de
inconstitucionalidade condiciona-se à observância do procedimento proposto nesse
trabalho (item 3.4.1), que se refere às ações temáticas como o instituto que viabiliza
a democratização do ato decisório.
Outra crítica viável à AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 3510
diz respeito à postura adotada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal que, em
sua maioria, não enfrentou todos os argumentos trazidos em audiência pública pelos
amici curiae, manifestando-se sobre cada um de forma fundamentada, antes de
proferir sua decisão. A impressão que se tem é que a realização da audiência
pública foi pro forma, haja vista que não houve o cuidado dos julgadores quanto à
análise pormenorizada de todas as questões, os temas e as alegações trazidas
pelas partes no processo. No momento em que o decididor julga sem se manifestar
fundamentadamente sobre as questões postas e trazidas pelas partes, há evidente
violação do principio do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e
da isonomia processual. O principio da fundamentação das decisões judiciais deve
ser reflexo da aplicabilidade do principio da congruência, que determina o dever do
julgador se posicionar jurídico-legalmente sobre todas as questões de mérito que
permearam o discurso processual. Não foi isso que se observou no objeto da
respectiva ação direta de inconstitucionalidade.

4.6 SÍNTESE

A sedimentação teórica do modelo constitucional de processo vem atender a


necessidade de reconstrução das proposições cientificas, já ultrapassadas, que
propugnam por uma noção de processo visto como mero instrumento da jurisdição.
A superação da concepção instrumentalista de processo pressupõe a revisitação do
modelo proposto, sob a ótica da processualidade democratizante. Constitucionalizar
o processo e a jurisdição é uma forma de compreendê-los sob a ótica do Estado
Democrático de Direito, cuja finalidade é assegurar a implementação dos Direitos
Fundamentais previstos no plano constituinte. A aplicação, a interpretação e a
criação do direito democrático somente são possíveis através do processo
371

constitucional, considerado a garantia de exercício da cidadania por meio da


participação de todos os destinatários do provimento na construção discursiva do
mérito processual.
Nesse contexto teórico, o processo passa a ser visto como um instituto
jurídico cuja finalidade é garantir a constituição de um espaço (lócus) processual de
construção do provimento, ressaltando-se que o mérito processual é o resultado do
desenvolvimento procedimental de toda essa discursividade da pretensão que se
realiza por meio da ampla e isonômica participação de todos os interessados difusos
e coletivos. A definição das questões de mérito deixa de ser uma prerrogativa
exclusiva do juiz, da parte autora e da parte demandada, passando-se a se vista
como um Direito Fundamental de participação no processo coletivo, considerado
corolário do exercício pleno da cidadania.
A constitucionalização do processo causou reflexos diretos no entendimento
democrático das ações coletivas, que não devem mais ser propostas apenas pelas
pessoas pressupostamente autorizadas pelo legislador brasileiro. O advento da
teoria das ações coletiva como ações temáticas veio permitir a abertura e a
interpretação sistemático-extensiva do rol meramente exemplificativo de
interessados na propositura de uma ação coletiva. Isso decorre do fato do processo
coletivo democrático passar a ser compreendido a partir do objeto, não mais a partir
do sujeito, ou seja, será a extensão dos efeitos jurídicos do objeto da ação coletiva
que servirá de parâmetro para a definição dos legitimados à propositura de uma
ação coletiva. O que as ações temáticas garantem aos cidadãos é o direito
fundamental de ampla participação processual na definição das questões meritórias,
bem como na construção discursiva do mérito da demanda coletiva.
Sob o ponto de vista crítico, foi possível constatar a incompatibilidade jurídica
da atual sistemática do amicus curiae com a teoria das ações temáticas, uma vez
que é regulada pelo sistema representativo, que dispõe que o amigo da corte detém
legitimidade para, em nome dos interessados difusos e coletivos, se manifestar em
juízo.
Considerado juridicamente um terceiro na relação processual, o amicus curiae
foi inserido em nossa legislação com o propósito de assegurar uma aparente
participação dos interessados no provimento, tendo em vista que os julgadores não
ficam vinculados, nem obrigados, a se manifestarem sobre as suas alegações, e
também pelo fato de ser privado do direito de propor recurso. Além disso, a
372

possibilidade do julgador autorizar ou não a realização de audiência pública, bem


como, escolher aqueles que poderão atuar na condição de amigo da corte, são
fatores que deslegitimam democraticamente o provimento jurisdicional, em virtude
de impossibilitar a participação dos demais interessados difusos no processo
coletivo, tal como ocorreu na Ação Direita de Inconstitucionalidade 3.510.
373

5. CONCLUSÃO

A formação participada do mérito processual pressupõe inicialmente


compreender, analisar e construir reflexões críiticas acerca do conceito de mérito
adotado no processo civil, que se limita, muitas vezes, à matéria ou às questões de
mérito e a própria noção de lide. O que se constata é que não existe, por parte da
doutrina consultada, o cuidado necessário para diferenciar o mérito processual de
outros institutos a ele correlatos, tais como, a pretensão, a demanda, a lide, a causa
de pedir (próxima e remota) e a própria noção sobre o que são as questões de
mérito no contexto do direito processual civil.
No primeiro capitulo pretendeu-se demonstrar que a noção inicial sobre o
mérito processual relaciona-se com as questões fáticas e jurídicas alegadas pelas
partes ao longo de todo o procedimento. O julgamento do mérito processual
pressupõe o enfrentamento e a análise, pelo magistrado, de todas essas questões
de fato e de direito trazidas pelas partes ao longo do processo. A delimitação das
questões do mérito no processo civil ocorre com a propositura da ação (na exordial
pelas alegações do demandante) e com a apresentação da defesa pelo demandado,
momento em que se define o objeto da lide. É de suma importância observar que o
conceito de mérito processual trabalhado no âmbito do processo civil é adstrito às
questões fáticas e jurídicas propostas e alegadas pelo autor da ação e pelo
demandado, no momento da apresentação da defesa.
Toda teorização do mérito no contexto do processo civil decorre de uma visão
individual e liberal do próprio direito processual, haja vista que a decisão ou o
julgamento do mérito da pretensão pelo magistrado deverá ocorrer nos limites
daquilo que as partes (demandante e demandado) alegaram e provaram ao longo do
processo. A maior demonstração de que o mérito no processo civil se confunde com
as questões de mérito encontra-se no entendimento já sedimentado de que quando
o juiz julga o mérito da pretensão deduzida certamente analisará todos os pedido e
as questões de fato e de direito trazidas pelas partes ao processo. O conceito de
sentença extra e ultra petita ilustra claramente a noção de que o mérito no processo
civil limita-se aos pedidos e às questões de fato e de direito alegadas pelas partes
(demandante e demandado) ao longo de todo o processo.
Uma das principais críticas construídas ao longo do primeiro capítulo funda-se
no conceito e no entendimento dogmático sobre o que é o mérito processual, haja
374

vista que a noção de mérito no processo civil limita-se aos pedidos e às questões
postas e trazidas pelas partes no processo. A primeira contribuição científica do
presente trabalho de pesquisa consiste na demonstração de que a noção de mérito
processual não pode ficar adstrita ao pedido, à matéria ou às questões de mérito.
Isso não significa dizer que os pedidos, a matéria ou as questões de mérito não
integram o próprio conceito de mérito. Nesse contexto afirma-se que o mérito
processual deve ser visto como um procedimento bifásico, em que na primeira fase
do procedimento todas as partes legitimadas e interessadas na pretensão
inicialmente deduzida em juízo têm a possibilidade de participar da definição da
matéria de mérito, apresentando todas as questões consideradas relevantes e
conexas ao que foi inicialmente alegado pelo autor da ação.
Na segunda fase do procedimento todas as partes interessadas, inclusive o
magistrado, terão a legitimidade de discutirem amplamente todas as questões e as
matérias de mérito suscitadas na primeira etapa do procedimento. Não se pretende
aqui excluir a participação do magistrado na formação do mérito processual. O que é
demonstrado ao longo de toda a pesquisa é que a construção do próprio conceito de
mérito e do julgamento do mérito não é um tema que fica adstrito à manifestação
exclusiva e unilateral do magistrado, até porque todos os sujeitos juridicamente
interessados na pretensão inicialmente deduzida em juízo detêm a legitimidade de
participar da definição, da análise e da discussão de todas as questões de mérito
propostas.
Nesse contexto, pode-se afirmar que o mérito processual seria resultado de
um procedimento bifásico em que num primeiro momento as partes interessadas
definem livremente as questões de mérito para, num segundo momento, poderem
debater e discutir amplamente todas essas questões, juntamente com o julgador. Ao
magistrado cabe o direito de participar ativamente dessas duas fases do
procedimento, manifestando-se, sempre de forma fundamentada, quanto à definição
e a análise das questões de mérito trazidas aos autos. Isso implica dizer que ao juiz
cabe o dever de analisar, apreciar, discutir, se posicionar e esclarecer, de forma
juridicamente fundamentada, quais serão as questões de mérito relevantes para o
caso concreto e como essas questões de mérito consideradas relevantes ao caso
concreto deverão ser decididas.
Todo julgamento de mérito deve ser reflexo não apenas das percepções
unilaterais do julgador, haja vista que a proposta dessa pesquisa é justamente
375

demonstrar que a formação participada do mérito processual decorre exatamente do


compartilhamento entre todas as partes legitimadas no que tange à definição, ao
debate e a resolução das questões de mérito propostas e trazidas em juízo.
Todas as vezes que o magistrado se omite, ignora, desconsidera ou deixa de
analisar e de se posicionar quanto às questões de mérito suscitadas pelas partes
interessadas estará negando a prestação da jurisdição, considerada um Direito
Fundamental corolário ao exercício da cidadania, além de ocasionar às partes
interessadas evidente cerceamento de defesa, decorrente da violação dos princípios
do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da isonomia
processual. O papel e a relevância do primeiro capitulo da presente pesquisa foi
justamente demonstrar que o conceito de mérito desenvolvido e proposto pelos
estudiosos do processo civil é justamente aquele incompatível com a noção de
formação participada do mérito, tendo em vista que é poder legitimo do julgador
(magistrado) decidir e formar suas convicções mediante a análise e a apreciação
solitária das questões de mérito trazidas restritamente pelas partes ao longo do
processo.
Outra finalidade do primeiro capítulo foi a de demonstrar que a própria noção
de mérito construída no processo coletivo brasileiro vigente é aquela decorrente do
modelo individual de processo. Ao longo de todo o segundo capítulo pretendeu-se
demonstrar que o atual e vigente modelo de processo coletivo brasileiro funda-se no
sistema representativo, o que o torna incompatível com o Estado Democrático de
Direito, que adota como referencial teórico do processo coletivo o princípio da
participação ampla de todos os legitimados na formação do mérito.
No Brasil atualmente temos um modelo de processo coletivo centrado no
sistema representativo, que é aquele que autoriza e legitima o legislador a definir, de
forma abstrata e peremptória, quem são os sujeitos legitimados à propositura de
uma ação coletiva. Na realidade o próprio sistema representativo é reflexo da
ideologia através da qual o Estado se auto-legitima a criar instituições para
representar os interesses da coletividade, tal como ocorre com o Ministério Público
no Brasil, considerado democraticamente o responsável por viabilizar a
implementação dos Direitos Fundamentais expressamente previstos no plano
constituinte. É de suma importância esclarecer que não constituiu objetivo da
presente pesquisa excluir ou limitar a participação dessas instituições nas ações
coletivas, tal como ocorre com o Ministério Público. O que se buscou demonstrar ao
376

longo de toda produção cientifica é que não apenas essas instituições, assim como
todos os interessados difusos e coletivos, detêm a legitimidade de propor uma ação
coletiva e também de participar amplamente da definição e do debate de todas as
questões de mérito suscitadas, relevantes e conexas com a pretensão inicialmente
deduzida.
No momento em que o legislador brasileiro proibiu o cidadão de propor uma
ação civil pública, restringindo o rol dos legitimados processuais ativos, instituiu o
sistema representativo e reproduziu o conceito de mérito processual proposto pelo
processo civil e amplamente discutido no primeiro capitulo. As ações coletivas
brasileiras e o modelo de processo coletivo adotado pelo Brasil atualmente reproduz
o conceito dogmático, hermético, restritivo e autocrático de mérito processual, haja
vista que não são todos os sujeito legitimamente interessados (todos os
interessados difusos e coletivos) que estão autorizados a participar da definição, da
análise e do amplo debate das questões de mérito. Toda discussão referente às
questões de mérito das ações coletivas no Brasil encontram-se concentradas nas
mãos do magistrado e dos demais sujeitos considerados legitimados previamente
pelo legislador a propor as respectivas ações coletivas. Isso evidencia a opção do
direito brasileiro pela adoção do sistema representativo como referencial a gerir o
entendimento do processo e das ações coletivas.
Considerando-se a opção do Brasil pelo sistema representativo, pode-se
afirmar que o modelo de processo coletivo vigente é autocrático e incompatível com
o Estado Democrático de Direito, que propõe como norte de estudo o princípio
participativo, corolário da soberania popular e da liberdade de participação do
cidadão no controle de todas as questões atinentes aos direitos coletivos e difusos.
Legitimar o sistema representativo é deixar claro que ainda no Brasil não fizemos a
opção pela implementação efetiva do modelo constitucional e democrático de
processo coletivo.
No que tange especificamente ao tema objeto da pesquisa, fica evidente que
o desenvolvimento do segundo capitulo foi fundamental para demonstrar a
incompatibilidade das discussões teóricas dos autores que preconizam e defendem
o sistema representativo em face do tema-problema proposto, qual seja, a formação
participada do mérito processual nas ações coletivas como reflexo de um
procedimento bifásico instituído pelo devido processo legal, isonomia processual,
contraditório e ampla defesa, em que todas as partes juridicamente interessadas na
377

pretensão inicialmente deduzida podem participar da definição, discussão, análise,


profundo, amplo e isonômico debate de todas as questões que permeiam o mérito
processual.
A finalidade do terceiro e último capítulo foi justamente propor o
aprimoramento na compreensão teórica do mérito processual nas ações coletivas a
partir da teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, buscando-se
desconstruir o conceito de mérito do processo individual e, assim, trabalhar a noção
de mérito processual na perspectiva das ações coletivas, desvinculando-se do
modelo individualista e liberal de processo coletivo centrado no sistema participativo.
O mérito processual nas ações temáticas deve ser resultado da interação e
da participação efetiva de todos os interessados difusos e coletivos na apresentação
de temas correlatos à pretensão inicialmente deduzida em juízo, na definição das
questões de mérito e, por conseguinte, no amplo debate e na discursividade da
pretensão no âmbito da processualidade democrática.
Ao contrário do processo civil, onde o mérito é resultado das alegações do
autor na exordial, do requerido na sua peça de defesa e das questões consideradas
relevantes pelo juiz, no processo coletivo os provimentos meritórios devem ser
reflexos do procedimento democrático instaurado e desenvolvido a partir da
observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da isonomia
processual, do devido processo legal, da congruência, da obrigatoriedade de
fundamentação das decisões judicial e da inafastabilidade do controle jurisdicional.
As ações temáticas propõem a abertura do rol de legitimados ativos das
ações coletivas, a partir do princípio participativo, que estabelece a possibilidade de
qualquer interessado difuso ou coletivo apresentar temas, alegações ou argumentos
fático-jurídicos coerentes à pretensão inicialmente deduzida. Trata-se de meio
adequadamente utilizado para assegurar a legitimidade democrática do provimento
jurisdicional, mediante a inclusão de todos os legitimados com protagonistas da
discussão da pretensão e, com isso, influir substancialmente no conteúdo meritório
da decisão.
O mérito processual deverá refletir todo esse debate processual realizado
entre os interessados e os legitimados ao provimento, obrigando o julgador a se
manifestar, de forma juridicamente fundamentada, sobre todas as proposições e os
questionamentos propostos pelas partes ao longo do procedimento.
378

A viabilidade prática de implementação das ações temáticas no Brasil se


condiciona à adoção de um procedimento que venha a assegurar efetivamente a
inserção dos argumentos de todos os interessados no processo. Isso não significa
dizer que todos os interessados difusos deverão se manifestar individualmente no
processo. O que propõe as ações temáticas é justamente o seguinte: assegurar a
ampla publicidade da pretensão inicialmente deduzida (através de editais, da
imprensa falada, escrita, televisionada e de meios eletrônicos, tais como as redes
sociais na internet), a fim de estimular o debate entre os interessados difusos e
coletivos; o resultado de toda essa discussão será materializado em temas, que
serão trazidos para o processo coletivo por intermédio do representante de cada
grupo de interessados. Essa foi a forma encontrada de evitar a ocorrência de ações
coletivas intermináveis, em decorrência da obrigatoriedade de intimação e de
manifestação individual de cada interessado coletivo ou difuso.
Nesse contexto, o mérito processual nas ações coletivas no Estado
Democrático de Direito não deverá refletir apenas o entendimento do julgador acerca
das questões que considera relevantes para o processo, uma vez que o conteúdo
meritório da decisão ora proferida será conseqüência de todo esse debate
processual instaurado entre as partes interessadas, a fim de garantir a legitimidade
jurídico-constitucional do provimento.
A construção participada do mérito processual nas ações temáticas deve ser
vista como uma forma legitima de exercício da cidadania, mediante a ampliação das
vias de acesso ao Judiciário e de participação dos interessados na definição e no
debate de todas as questões de mérito que integram a pretensão. Trata-se do meio
mais adequado para superar teoricamente a ideologia individualista de análise e de
entendimento do processo coletivo sob a égide do processo civil.
Qualquer medida utilizada para limitar, suprimir ou restringir a participação
dos interessados na construção discursiva do mérito processual representa a
deslegitimação democratizante do provimento, uma vez que reproduz um modelo
autocrático de processo, cujo exercício da jurisdição e a definição das questões de
mérito ficam adstritas à autoridade do julgador, por ser considerada exclusivamente
sua prerrogativa.
O estudo analítico do mérito participado no modelo de processo coletivo
democrático não fica adstrito ao processo jurisdicional, haja vista que também no
processo administrativo e no processo legislativo os interessados difusos e coletivos
379

devem ser inseridos no lócus processual de discursividade da pretensão e na


construção do objeto da ação coletiva.
A contribuição científica do presente trabalho de pesquisa foi demonstrar
exatamente que o mérito processual pode ser definido como um procedimento, e
não ficar adstrito às questões fáticas e jurídicas propostas pelas partes juridicamente
interessadas. Trata-se de um procedimento democrático desenvolvido mediante a
observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo
legal e, especialmente, do principio participativo, considerado o corolário do
exercício da cidadania e da implementação dos Direitos Fundamentais. A
implantação desse procedimento no âmbito do processo e das ações coletivas é
considerado o parâmetro para a viabilização da formação participada do mérito,
mediante a compreensão das ações coletivas a partir do objeto, e não do sujeito,
assim como se torna necessário superar o sistema representativo como
conseqüência lógica do modelo individualista e liberal de processo.
380

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