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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Faculdade Mineira de Direito

Dário José Soares Júnior

O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O


PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

Belo Horizonte
2014
Dário José Soares Júnior

O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O


PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação stricto


sensu em Direito Processual da Faculdade Mineira
de Direito da PUC/MG - Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em Direito
Processual.

Orientador: Rosemiro Pereira Leal

Belo Horizonte
2014
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Soares Júnior, Dário José


S676d O dogmatismo do binômio acusatoriedade-inquisitoriedade e o processo
penal democrático / Dário José Soares Júnior. Belo Horizonte, 2014.

274 f.

Orientador: Rosemiro Pereira Leal


Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito.

1. Processo Penal. 2. Dogmática jurídica. 3. Acusação (Processo penal). 4.


Sistema inquisitório. 5. Estado de direito. 6. Argumentação jurídica. I. Leal,
Rosemiro Pereira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 343.1
Dário José Soares Júnior

O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O


PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação stricto


sensu em Direito Processual daFaculdade Mineira
de Direito da PUC/MG - Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de Doutor
em Direito Processual.

_____________________________________________
Rosemiro Pereira Leal (Orientador) - PUC Minas

_____________________________________________
Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias - PUC Minas

_____________________________________________
Adilson de Oliveira Nascimento - PUC Minas

_____________________________________________
André Cordeiro Leal - FUMEC

_____________________________________________
Andréa Alves de Almeida - UNIFENN

Belo Horizonte, 04 de setembro de2014.


A Marinalva, Gustavo e Júlia. Minha família. Razão de todo meu esforço e
fonte de energia para as batalhas. A meu pai, Dário, e a minha mãe,
Malvina, com afeto e muita saudade.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Rosemiro Pereira Leal. Admirável orientador, sem o qual este
trabalho sequer teria sido projetado, pois foi a teoria Neoinstitucionalista do Processo que
sempre me instigou a desbravar novas searas. Há mais de uma década me dedico ao estudo
desta singular conjectura e sou muito grato por todas as conquistas teóricas por ela
proporcionadas. Aproveito para pedir desculpas pelos momentos em que a dedicação à
pesquisa teve de ceder a outras demandas profissionais, o que pode ter limitado em alguns
aspectos o grau de profundidade teórica do texto definitivo.
Aos demais professores e colegas da PUC-Minas, notáveis cientistas que me ajudam a
desbravar e consolidar a perspectiva da processualidade democrática. Sou um soldado raso
desta tropa, um peão desta empreitada.
Ao curso de Direito das Faculdades Integradas de Caratinga, pelo incentivo que
viabilizou em vários aspectos a presente pesquisa.
A Karl Popper, Mário Ferreira dos Santos, Gaston Bachelard e Rui Cunha Martins
pelo fornecimento de diretrizes preciosas que contribuíram para o desenvolvimento desta
pesquisa.
O conhecimento não é a procura da certeza. Errar é humano - todo o conhecimento
humano é falível e, consequentemente, incerto. Daí decorre que devemos estabelecer
uma distinção rigorosa entre a verdade e certeza. Afirmar que errar é humano
significa que devemos lutar permanentemente contra o erro, e também que não
podemos nunca ter a certeza de que, mesmo assim, não cometemos nenhum
erro[...](POPPER, 2006).

Quereis uma terapêutica para a crisis? Deixai surgir os humanos possíveis; mais que
possíveis, prováveis; mais que prováveis, actualmente potenciais. Acreditei neles e
não temei a crisis. Unireis os cumes das montanhas, sem deixar de compreender os
vales que precisam dos cumes para serem compreendidos. Em vez de separar, uni;
em vez de abstrair, concrecionai. Não aprofundeis os abismos com as vossas idéias,
as vossas atitudes, as vossas religiões, as vossas crenças, as vossas artes.Não vos
separeis nem do passado nem do futuro. Vivei o instante, não como instante, mas
como um grande prelúdio do amanhã e um grande realizar-se do ontem, como o
ponto de encontro de dois infinitos. (SANTOS, 1959)

É o devido processo legal, como co-extensão procedimental do devido processo


constitucional, que vai estabelecer o espaço discursivo legitimador da decisão a ser
neste preparada por todos os integrantes de sua estrutura procedimental. A atividade
processual reconstrutiva desse modelo de decidir, desde a criação da lei até sua
aplicação, supressão ou regulação, é que implicará concreção fundamentada do
projeto constitucional democrático na contrafactualidade do mundo da vida ou
mediante a problematização dos eventuais conteúdos de legalidade hostil ao
paradigma do Estado democrático de direito. (LEAL, 2002)
RESUMO

O Direito Processual Penal, no curso histórico, tem se caracterizado pela contraposição


dogmática entre os princípios da acusatoriedade e inquisitoriedade. Houve desde a
antiguidade clássica uma oscilação entre um e outro princípio, sempre prevalecendo a
concepção de que se constituem como sistemas incompatíveis entre si, conciliáveis apenas
artificialmente, pelo chamado sistema misto. Nesta pesquisa, a proposta se concentra em
demonstrar que acusatoriedade e inquisitoriedade não possuem status sistemático, e sim
principiológico, o que permite esclarecer o caráter dogmático desse dualismo metafísico que
constitui forte entrave ao discurso jurídico no Estado Democrático de Direito. A
procedimentalidade penal deve apresentar traços acusatórios e inquisitórios que serão
constrangidos pelos princípios institutivos de forma a permitir uma abertura interpretativa a
todos os interessados, instaurando a processualidade democrática ao romper com a ciência
dogmática do Direito, construindo discursivamente o sentido normativo. Essa perspectiva
passa por uma releitura dos sistemas de enunciação da prova pela linguisticidade jurídica,
propondo uma epistemologia evolucionária capaz de apontar os desvios acusatórios ou
inquisitórios por uma plena processualização de todo o procedimento penal, permitindo a
interenunciatividade dos conteúdos argumentativos e decisórios, pela função heurística do
Processo.

Palavras-chave: Dogmática. Epistemologia. Processualidade.


ABSTRACT

The Criminal Procedure Law, in the historical course, has been characterized by dogmatic
opposition between the principles of accusatory and inquisitorial way. Been since classical
antiquity an oscillation between one and another principle, always prevailing conception that
constitute as incompatible systems together, concilable only artificially, by calling mixed
system. In this research, the proposal focuses on demonstrating that accusatory and
inquisitorial way not have systematic but principle mode status, helping to clarify the
dogmatic character of this metaphysical dualism which constitutes a strong barrier to the legal
discourse in a democratic state. The criminal procedure must submit accusatory and
inquisitorial features, it will be constrained by institutive principles to allow an interpretative
openness to all stakeholders, establishing democratic processuality to break with dogmatic
science of law, discursively constructing the normative sense. This approach involves a
reinterpretation of the enunciation of proof for legal linguistics systems, proposing an
evolutionary epistemology able to point the accusatory or inquisitorial processualização for
full prosecution of all deviations, allowing inter enunciation of argumentative and decision-
making content, the heuristic function of Process.

Key-words: Dogmatic. Epistemology.Processuality.


RIASSUNTO

La procedura penale, il percorso storico, è stato caratterizzato da opposizione dogmatica tra i


principi accusatorio e il inquisitorio. Stato fin dall'antichità classica un'oscillazione tra uno e
l'altro principio, sempre prevalente concezione che costituiscono come sistemi incompatibili
insieme, conciliabili solo artificialmente, il cosiddetto sistema misto. In questa ricerca, la
proposta si concentra sulla dimostrazione che accusatorio e il inquisitorio avere sistematica e
sì lo stato in linea di principio, contribuendo a chiarire il carattere dogmatico di questo
dualismo metafisico che costituisce un forte ostacolo al discorso legale in uno Stato
democratico. Il procedura criminale dovrebbe presentare caratteristiche accusatorio e
inquisitorio, sarà vincolata ai principi che istituisce per consentire l'apertura interpretativa a
tutte le parti interessate, stabilendo processualità democratica di rompere con la scienza
dogmatica del diritto, discorsivamente costruire il senso normativo. Questo approccio implica
una reinterpretazione della enunciazione di prova per i lingua giuridici, proponendo una
epistemologia evolutiva in grado di puntare il accusatorio o inquisitorio per il pieno
perseguimento di tutte le deviazioni, consentendo tra enunciazione di contenuti polemico e
decisionale, da funzione euristica il processo .

Parole-chiave: Dogmatici. Epistemologia. Processualità.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 21

1 A DOGMÁTICA E O PREDOMÍNIO DE CONCEPÇÕES ARCAICAS NO


PROCESSO PENAL .............................................................................................................. 29
1.1 Acusatoriedade e inquisitoriedade: Os primórdios de um embate dogmático ........... 29
1.2 Trajetória do racionalismo dogmático greco-romano e o conceito de justiça ............ 33
1.3 A acusatoriedade bárbara................................................................................................ 40
1.4 Inquisitoriedade canônica e sincretismo jurídico na transição entre o medievo e a
modernidade ........................................................................................................................... 43

2 DO PENSAMENTO JURÍDICO METAFÍSICO-TRANSCENDENTAL AO


POSITIVISMO KELSENIANO ........................................................................................... 48
2.1 Racionalismo empírico-determinista e o advento do idealismo transcendental ......... 48
2.2 Acusatoriedade e Inquisitoriedade: Um dualismo Metafísico ...................................... 56
2.3 Repercussões do idealismo alemão na formação das teorias da actio e suas
implicações nos sistemas acusatório-inquisitório ................................................................ 60
2.4 O caráter concreto da actio como pressuposto de liberdade individual em Kelsen e a
atividade punitiva (repressiva) do Estado ............................................................................ 69

3 A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL DA AUTORICTAS JUDICIAL E A


AMBIGUIDADE EPISTEMOLÓGICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO .......................... 76
3.1 Jura novit curia versus nemo judex sine actore: O mito do saber jurisdicional......... 76
3.1.1 Ministério Público como parte ........................................................................................ 86
3.1.2 A prerrogativa investigatória do Ministério Público ...................................................... 88
3.2 Processo como judicium: ausência do devido processo e retorno aos primórdios do
Pensamento Metafísico ........................................................................................................... 90
3.3 A instrumentalidade do processo penal e a persistência do sincretismo jurídico dos
chamados processos acusatório e inquisitório ..................................................................... 95

4 O INSTRUMENTALISMO PENALÍSTICO E O AUTORITARISMO TÓPICO-


RETÓRICO DOS PÓS-POSITIVISTAS ........................................................................... 101
4.1 A tópica e a retórica como fontes de construção decisória e jurisprudencial ........... 101
4.1.1 O racionalismo crítico pela via processual ................................................................... 110
4.2 As teorias de Alexy e Dworkin e suas implicações tópico-retóricas ........................... 113
4.2.1 O discurso jurídico como caso particular do discurso geral na teoria de Robert Alexy
................................................................................................................................................ 113
4.2.2 A busca da resposta certa, o Direito como um romance em cadeia e a figura do Juiz
Hércules: Expressões do dogmatismo em Dworkin ............................................................... 116
4.3 Os impactos das visões contemporâneas, neo-modernas e pós-modernas no binômio
acusatoriedade-inquisitoriedade ......................................................................................... 119
4.3.1 A profanação do Direito Processual Penal na perspectiva pós-moderna .................... 130

5 O MODELO CIVIL DE PROCESSO E SEUS IMPACTOS NAS


PROCEDIMENTALIDADES ACUSATÓRIA E INQUISITÓRIA................................ 133
5.1 O caráter patrimonialista da sociedade civil como fator de uma jurisdicionalidade
diferenciada ........................................................................................................................... 134
5.1.1 Crítica à sociedade civil pressuposta e a mudança de paradigma no Direito Processual
Penal ....................................................................................................................................... 138
5.2 As insuficiências teóricas do modelo patrimonialista de processo ............................. 139
5.3 A radicalização da acusatoriedade em face do sujeito natural e a persistência
inquisitorial ........................................................................................................................... 149
5.3.2 O dogma da acusatoriedade .......................................................................................... 158

6 A PROCESSUALIDADE PENAL DEMOCRÁTICA A PARTIR DA CLÁUSULA


DUE PROCESS ..................................................................................................................... 161
6.1 Sobre Estado, Democracia e Processo .......................................................................... 161
6.1.1 A processualidade democrática como marco teórico da Pós-modernidade estatal ..... 163
6.2 Da paridade excludente na Inglaterra medieval à ampliação do alcance da cláusula
due process no direito norte-americano .............................................................................. 165
6.3 A releitura da cláusula due process no paradigma democrático ................................ 169
6.4 Contraditório como direito fundamental de vida plena ............................................. 170
6.4.1 O Contraditório diante do "Biopoder" .......................................................................... 173
6.5 Ampla defesa como liberdade........................................................................................ 176
6.5.1 Defesa, Ampla Defesa e Contraditório: distinções ....................................................... 178
6.6 Dignidade como isonomia: uma perspectiva não-retórica do princípio da igualdade
................................................................................................................................................ 184
6.7 O Devido Processo Penal como médium linguístico .................................................... 190

7 AS DOUTRINAS DE UM DIREITO JUSTO E A DESPROCESSUALIZAÇÃO DA


PROCEDIMENTALIDADE PENAL ................................................................................. 197
7.1 A proposta da Hermenêutica Filosófica e suas insuficiências no plano democrático
................................................................................................................................................ 197
7.2 Gramsci e processo: uma evidente incompatibilidade ................................................ 200
7.3 O Direito fraterno e sua ambivalência .......................................................................... 201
7.4 Justiça restaurativa, justiça terapêutica e justiça instantânea ................................... 206
7.5 Modelo constitucional de processo, instrumentalidade garantista e a noção de
"Giusto Processo" ................................................................................................................ 212

8 O DEVIR PROCESSUAL DEMOCRÁTICO E A SUPERAÇÃO DO EMBATE


ENTRE ACUSATORIEDADE E INQUISITORIEDADE ............................................... 217
8.1 Prova, verdade e complexidade interna do processo penal ........................................ 217
8.1.1 A verdade como correspondência e o ceticismo de Popper .......................................... 221
8.1.2 A prova como elemento relevante no embate entre acusatoriedade e inquisitoriedade
................................................................................................................................................ 224
8.1.3 A prova penal na Teoria Neoinstitucionalista............................................................... 227
8.2 Acusatoriedade e inquisitoriedade como obstáculos epistemológicos ....................... 236
8.3 A epistemologia evolucionária e o enfrentamento dos dualismos dogmáticos .......... 241
8.4 O devir processual penal como interenunciatividade democrática ........................... 244

CONCLUSÃO....................................................................................................................... 254

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 259


21

INTRODUÇÃO

As pretensões desta pesquisa podem ser assim resumidas: apontar a crise dogmática do
Direito Processual Penal e as consequências da polarização entre os princípios acusatório e
inquisitório no curso histórico1. Por essa vertente, a pesquisa perpassa conteúdos que
contribuem para que o Processo Penal possa ser objeto de uma Teoria Geral do Processo de
modo que se torne, por uma mecânica gradual2, cada vez mais desembaraçado da ideologia e
do dogmatismo, contribuindo, desse modo, para a consolidação do Estado Democrático de
Direito. Em outras palavras, a abordagem que se segue procura adotar uma perspectiva
epistêmica do Direito Processual Penal3, apontando a inadequação de propostas e perspectivas
que, por intermédio de uma perigosa retórica, apontam soluções mágicas que, ao fim e ao
cabo, não passam de proselitismo, na medida em que atribuem ao Processo Penal, a tarefa de
atender a escopos metajurídicos que lhe são incompatíveis, pois implica uma adesão do
julgador e das partes a critérios sociológicos e políticos4, o que resulta em déficit democrático
e cognitivo.
O Processo de Conhecimento Penal, na perspectiva adotada nesta pesquisa, se
apresenta como “conquista teórica relevantíssima da humanidade” quando se reconhece que
toda a atividade de “cognição jurisdicional”, no Estado Democrático de Direito, “assenta-se
no sistema probatício da persuasão racional, em que a ratio legis há de anteceder ao logos
aleatório ou discricionário do julgador”5. Partindo de tal premissa, a pesquisa vai adotar
alguns eixos epistemológicos que precisam, desde já, serem explicitados.

1
“A idéia de crisis, para os gregos, é a acção que realiza o acto de separar, krisô [...]
[...]Na crisis, há uma separação, e separar é abrir distância entre pares; ela se-para. Mas a distância exige um entre
os separados.
E quando, no mundo corpóreo, separamos os sêres, nós os distanciamos. E a distância (mostra-nos a experiência)
pode ser aumentada, e é ela gradativa, pois pode ser maior ou menor, afastar-se mais ou menos. Portanto, no
conceito de crisis, temos sempre um “afastar” das coisas, um acto de “distanciá-las” umas das outras.”
(SANTOS, 1959. p.20.p. 20)
2
Esta expressão é extraída da obra de Karl Popper que a empregou como expressão de um método de mecânica
social que se contrapõe ao método utópico. Enquanto a mecânica social utópica se baseia na escolha racional de
um fim definitivo (ideal) a ser alcançado, pouco importando os meios a serem utilizados, a mecânica social
gradual não visa alcançar a perfeição e a felicidade sobre a terra, reconhecendo que cada geração de homens tem
suas próprias reivindicações. Sendo assim, o método da mecânica gradual visa ao aperfeiçoamento das condições
de dignidade do homem sem a ilusão de implantar a perfeição e felicidade definitivas.Contentando-se em
diminuir a infelicidade e o sofrimento humano, diminuindo também o grau de violência que sempre se verifica
quando o homem resolve se aventurar pela mecânica social utópica. (POPPER, 1974b.p. 173-174).
3
TARUFFO, Michele.La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza, 2009. p. 137
4
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.p.187.
5
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
141.
22

Na busca de alguma singularidade, serão percorridos campos do conhecimento, tais


como: Teoria do Direito, Teoria Geral do Processo, Filosofia, História, Direito Constitucional
e Direito Processual Penal, com o precioso auxílio de autores de contextos díspares, mas que
permitem estruturar uma argumentação do modo mais coerente possível, com a intenção de
apontar as fragilidades de determinados discursos doutrinários, que se apresentam como
panaceia para os males do sistema jurídico-penal, mas que acabam por legitimar o arbítrio e a
inserção de critérios empíricos, não jurídicos, de domínio exclusivo do sujeito da enunciação
decisória, que se posiciona como autoridade ou sujeito-de-estado6.
Mas é fato que a abordagem aqui apresentada incursiona predominantemente pelo
plano da Teoria Geral do Processo. Isso certamente exige uma preocupação permanente com
a demarcação dos campos epistemológicos visitados pelo texto. É necessário ressaltar que a
epistemologia (epistéme) dos gregos tinha inicialmente a pretensão de abarcar todos os
campos do conhecimento, da filosofia à arte, da ciência à técnica (teknê). Posteriormente se
preocuparam em separar o conhecimento empírico (empeireia) do técnico, e este do saber
vulgar (doxa). Na modernidade, o termo epistemologia adquire o sentido de disciplina
destinada ao estudo teórico do saber científico, como ponto de convergência entre Filosofia e
Ciência, disciplina esta que também é chamada de gnoseologia7. O que ocorre é que a
experiência gnoseológica, ou epistemológica, deve tornar indiferente e inútil o debate entre
idealistas e realistas, pois a verdade não se encontra (somente) no sujeito ou (somente) no
objeto, conforme se extrai destas considerações de Pontes de Miranda:

A ciência não avança no sentido da objetividade, porque, em verdade, os objetos


como que se decompõem, se despem, crescem e diminuem, perdem exatamente o
que é oposição ao sujeito, à medida que ao mundo percepcional se substitui o
mundo científico, à cognição vulgar a cognição científica. O que se observa ao
longo do desenvolvimento da ciência é uma depuração, um eliminar do que é (sub)
jetivo do que é (ob) jetivo, para que se afirme o jetivo. 8

Esse é um ponto de partida para extrair o conhecimento das amarras do subjetivismo


(idealismo) e do objetivismo (realismo), diminuindo os riscos e os enganos produzidos por
essa dicotomia. O jeto, que na visão de Pontes de Miranda, põe fim à oposição entre
experiência subjetiva e experiência objetiva, vai assumir na obra de Karl Popper, uma
sofisticada configuração pelo desenvolvimento da teoria dos três mundos. Grosso modo,

6
BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 293.
7
SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnoseologia e criteriologia). 3. ed. São Paulo:
Logos, 1958. p. 35.
8
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. 2. ed. Campinas:
Bookseller, 2005.p. 119.
23

pode-se afirmar que o "Mundo 3", em Popper, reúne os produtos da mente humana resultantes
do relacionamento entre o "Mundo 1", que reúne os estados ou processos físicos, e o "Mundo
2", que reúne os estados e processos mentais. "Mundo 1" e "Mundo 2" se expressam pelo
dualismo cartesiano representado pelo "problema corpo-mente". Na perspectiva pluralista de
Popper é ao "Mundo 3" que pertencem os argumentos e teorias9.
Os sistemas teóricos, os problemas e os argumentos críticos são desenvolvidos para
que a humanidade possa enfrentar as dificuldades epistemológicas. Enquanto se diz que um
“estado material” é inerente ao “Mundo 1”, e um “estado de consciência” é inerente ao
“Mundo 2”, pode-se afirmar que o homem se encontra no “Mundo 3” quando adquire um
estado de “discussão” ou de “argumento crítico”, proporcionado pelos conteúdos de livros,
revistas, bibliotecas, enfim, de todo um arcabouço de conhecimento disponibilizado a todos
indistintamente e que assegura a autonomia do “Mundo 3”, como um “mundo objetivo”.
Livros, revistas, pesquisas, problemas, conjecturas, argumentos e teorias não são apenas
“expressões simbólicas ou lingüísticas de estados mentais subjetivos”10 que o homem
desenvolve para provocar em outros uma disposição comportamental, mas um mundo
autônomo que oferece à mente humana uma retrocarga de conhecimento.
As cogitações contidas nessas plataformas, transpostas para a Ciência Jurídica,
proporcionam maior abertura argumentativa e possibilitam uma constante interrogação dos
conteúdos dogmáticos. Mostrando-se, assim, de grande relevância para a construção do
Estado Democrático de Direito. Esta pesquisa segue a trilha aberta pela Teoria
Neoinstitucionalista do Processo e o faz porque, mesmo em uma tese doutoral em que se
busca o ineditismo, é preciso consolidar a argumentação em teorias preexistentes, mediante a
confrontação das que reputamos mais relevantes, para extrair os conteúdos conclusivos que ao
final são apresentados como resultado, proposta ou conjectura que, por sua vez, poderá servir
de base para novos desenvolvimentos e críticas. O Direito Processual Penal, também pode se
servir de tais abordagens. Como afirma Rosemiro Pereira Leal:

Em Popper, como se infere, não há proibição, pela via da discussão crítica


(linguístico-evolucionário-problematizante), de eleger uma entre várias teorias como
marco de controle de nosso pensar, como também, a partir da teoria adotada,
podemos controlar as nossas teorias. Não quer dizer que teorias não possam ser
trocadas, substituídas, eliminadas. Porém, entre teorias concorrentes, há de se buscar
o melhor padrão teórico-regulador para não abolir emocionalmente o sistema que se
sustenta por uma testificação teórica continuada à realização de propósitos e

9
POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto Ferreira
Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996. p. 17.
10
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 109.
24

objetivos. No direito democrático, a linguagem teórico-processual apresenta uma


relação de inclusão com as ideias humanas de vida, liberdade e dignidade, daí não se
conceber vida humana sem concomitante abertura ao contraditório, ampla defesa e
isonomia. Humana não seria a vida se vedado ao homem descrever e argumentar. 11

É pautada por essa concepção epistemológica que a pesquisa se desenvolve,


procurando discernir e demonstrar como o Direito Processual Penal foi marcado por uma
evidente oscilação entre os princípios da acusatoriedade e inquisitoriedade sem, contudo,
encontrar uma concepção teórica que pudesse harmonizá-lo com a teoria da Democracia e os
consequentes postulados constitucionais do Estado Democrático de Direito. A pesquisa
apresenta uma crítica a propostas que surgem na tentativa de apontar a superação dessa
dicotomia paralisante e busca demonstrar que tais propostas, por uma razão ou outra, não se
enquadram no paradigma da processualidade democrática, e que a epistemologia processual
adquire aspectos que, cada vez mais,a aproximam de uma epistemologia evolucionária. Esta
se contrapõe à epistemologia de senso comum na qual se estabelece a crença de que o
conhecimento verdadeiro é imediato e direto, fruto de nossas percepções, sem qualquer
intermediação de sistemas teóricos. Um sensorialismo prático e dogmático que só pode servir
de ponto de partida para cogitações, pois “o êxito passado está longe de assegurar o êxito
futuro”12. Isso porque nossas intuições sensíveis são submetidas a esquemas abstratos
(teorias) que nos permitem separar os fatos e as informações que os compõem, de modo a
possibilitar o esclarecimento em sua atualidade geral (qualidade)13.
Essa perspectiva, já no Capítulo 1, intitulado: A DOGMÁTICA E O PREDOMÍNIO
DE CONCEPÇÕES ARCAICAS NO PROCESSO PENAL, permite encaminhar um
levantamento histórico para que se possa compreender como os princípios acusatório e
inquisitório vêm caracterizando os mais diversos sistemas político-jurídicos, prevalecendo um
ou outro conforme as ambições da autoridade de turno. Desde a antiguidade clássica,
passando pela acusatoriedade bárbara e pela inquisitoriedade, fruto do sincretismo jurídico do
medievo, tem-se um panorama dogmático, cuja pesquisa se mostra como importante
plataforma para as cogitações processuais da modernidade e da pós-modernidade.
O advento do positivismo kelseniano aprofunda a ambição cientificista que o Direito
adquire no pandectismo e seus congêneres. A relevância dogmática dessa concepção é objeto
do Capítulo 2. Esse tópico, como se observa do título: DO PENSAMENTO JURÍDICO

11
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
Horizonte: Arraes, 2013. p. 81.
12
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999. p. 73.
13
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p.20.p. 20. p. 151
25

METAFÍSICO-TRANSCENDENTAL AO POSITIVISMO KELSENIANO, tem a pretensão


de abordar o embate entre acusatoriedade e inquisitoriedade como expressão de um dualismo
metafísico que persiste na modernidade, sobretudo em razão das implicações idealistas sobre
as teorias da actio. Aqui, a atividade repressiva estatal é confrontada com a teoria da actio em
Kelsen, em que esta é concebida como pressuposto de liberdade individual e verdadeiro
sustentáculo de que depende a concretização de todo o sistema jurídico.
Já no Capítulo 3, tem-se a preocupação de investigar as repercussões do idealismo
alemão no sistema de persuasão racional. O título: A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL
DA AUTORICTAS JUDICIAL E A AMBIGUIDADE EPISTEMOLÓGICA DO
MINISTÉRIO PÚBLICO, fornece uma ideia dos conteúdos extraídos de uma abordagem que
se concentra em demonstrar a contradição entre os princípios jura novit curia e nemo judex
sine actore, como expressão da desprocessualização, em um sistema instrumentalista no qual
o processo se resume ao judicium.
No Capítulo 4, a intenção é demonstrar que a modernidade não superou o mito da
autoridade, muito especialmente no âmbito dos processos judiciais. Deste contexto não
conseguem se desvencilhar nem mesmo os chamados pós-positivistas, como já se percebe no
título: O INSTRUMENTALISMO PENALÍSTICO E O AUTORITARISMO TÓPICO-
RETÓRICO DOS PÓS-POSITIVISTAS. Neste ponto há uma especial atenção acerca dos
alicerces dogmáticos sobre os quais se estruturam as teorias de Robert Alexy e Ronald
Dworkin, com o objetivo de demonstrar que seu acolhimento irrefletido pode levar a uma
concepção autoritária do Processo Penal. A parte final deste capítulo busca encaminhar
algumas distinções que são úteis à compreensão do paradigma democrático: modernidade,
contemporaneidade, neo-modernidade e pós-modernidade. Ao expor esses conceitos e
estabelecer o que pode ser discernido entre eles, opta-se pelo termo pós-modernidade como
marco epistemológico de crítica e superação das insuficiências teóricas do Processo Penal
moderno.
No Capítulo 5, é possível descortinar as repercussões de uma arraigada concepção
civilística no Processo Penal, sob a enganosa fórmula do garantismo. Eis o título: O
MODELO CIVIL DE PROCESSO E SEUS IMPACTOS NAS PROCEDIMENTALIDADES
ACUSATÓRIA E INQUISITÓRIA. A linha argumentativa adotada neste ponto se concentra
na abordagem sobre o caráter patrimonialista que ainda rege a processualidade de modo a
instituir-se uma jurisdição diferenciada que privilegia a persecução aos despossuídos. De
outro lado, mesmo adotando o dogma da acusatoriedade é possível perceber a persistência de
práticas inquisitoriais, notadamente quando o Processo Penal é invocado como mecanismo de
26

Estado para o combate de fenômenos perniciosos como as máfias e o terrorismo.


Após apontar essas distorções, a pesquisa apresenta um esboço de sua concepção
pós-moderna de Processo Penal: A PROCESSUALIDADE PENAL DEMOCRÁTICA A
PARTIR DA CLÁUSULA DUE PROCESS é a fórmula que vai estruturar os aportes teóricos
que sustentam a proposta de todo o trabalho. Desse modo, o Capítulo 6 vai empreender uma
experiência argumentativa no sentido de apresentar ao leitor as linhas gerais do inovador
conceito de hermenêutica isomênica, desenvolvido por Rosemiro Pereira Leal. A cláusula due
process passa por uma releitura, correlacionando os princípios do contraditório, ampla defesa
e isonomia, com os direitos fundamentais de vida, liberdade e dignidade, respectivamente.
Feitas essas correlações, é possível partir para a compreensão do Processo Penal como
médium linguístico de explicitação dos conteúdos fáticos e jurídicos que são pertinentes aos
destinatários dos efeitos decisórios que dele decorrem.
Um panorama dos esforços contemporâneos de superação do autoritarismo
instrumentalista e positivista é apresentado no Capítulo 7. Lê-se no título: AS DOUTRINAS
DE UM DIREITO JUSTO E A DESPROCESSUALIZAÇÃO DA
PROCEDIMENTALIDADE PENAL. As doutrinas de “Direito Justo” aqui apresentadas,
evidentemente não esgotam a matéria e possuem apenas caráter exemplificativo, porém de
grande significado. Esta miscelânea aborda perspectivas que vão desde a proposta inspirada
em Gramsci de criação de conselhos populares de justiçamento, passando pelas posturas de
cunho sociológico do chamado “Direito Fraterno”, até os sistemas que pretendem estabelecer
fórmulas como “Justiça Restaurativa”, “Justiça Terapêutica” e “Justiça Instantânea”. O
capítulo não descuida de abordar criticamente posturas epistemológicas que se apresentam
sob rótulos aparentemente democráticos tais como: “Modelo Constitucional de Processo”,
“Instrumentalidade Garantista” e “Giusto Processo”.
Por fim, a argumentação da pesquisa se completa no Capítulo 8, sob o título: O
DEVIR PROCESSUAL DEMOCRÁTICO E A SUPERAÇÃO DO EMBATE ENTRE
ACUSATORIEDADE E INQUISITORIEDADE. Neste ponto conclusivo, faz-se uma
abordagem sobre teoria da prova de modo a reconhecer a complexidade interna do Processo
Penal, demonstrando que a teoria da prova na perspectiva Neoinstitucionalista pode fornecer
as bases teóricas para a superação das indefinições epistemológicas até aqui experimentadas
pelo dualismo dogmático e metafísico dos princípios acusatório e inquisitório. Essa superação
é possível pela abertura proporcionada através da processualidade democrática nos marcos da
teoria Neoinstitucionalista, bem como do racionalismo crítico de Popper. Os temas tratados
no último capítulo aprofundam a perspectiva em torno de um Direito Processual Penal em que
27

seja possível instaurar o primado da reflexão discursiva sobre a percepção, imediatista e, por
vezes, enganosa, o que se daria pela interenunciatividade estabelecida entre teorias e
argumentos14, disponíveis a todos os destinatários dos termos, atos e decisões que marcam o
desenvolvimento processual.
Conforme é possível inferir da leitura que se segue, o Processo Penal no
constitucionalismo pós-moderno já não acolhe, em razão dos avanços recentes da Teoria
Geral do Processo, nem o acusatório, tampouco o inquisitório, como princípio ordenador ou
unificador. Rui Cunha Martins nos remete ao princípio da “democraticidade” como o
referente capaz de conferir legitimidade ao sistema:

Mais do que acusatório, o modelo tem que ser democrático. A opção por um modelo
de tipo acusatório não é senão a via escolhida para assegurar algo de mais
fundamental do que ele próprio: a sua bandeira é a da democracia e ele é o modo
instrumental de a garantir. Pouca virtude existirá em preservar um modelo, ainda
que dito acusatório e revestido, por isso, de uma prévia pressuposição de legalidade,
se ele comportar elementos susceptíveis de ferir o vínculo geral do sistema (o tal
“princípio unificador”: a democraticidade), ainda quando esses elementos podem até
não ser suficientes para negar, em termos técnicos, o carácter acusatório desse
modelo. Não é o modelo acusatório enquanto tal que o sistema processual
democrático tem que salvar, é a democraticidade que o rege. 15

Democraticidade, como característica inerente àquilo que é democrático, se apresenta


como conteúdo a ser aferido pela gradual compatibilidade entre o sistema de Processo Penal e
as normas constitucionais, que o configuram como instituição destinada à preservação da
liberdade individual atuando como mecanismo de controle das ações governamentais e
políticas, em cuja bondade e sabedoria intrínsecas, não é prudente confiar16.
A concepção Neoinstitucionalista parte desse pressuposto de controle recíproco das
formas e conteúdos que asseguram o devido processo legal como oferta de testabilidade
teórica das decisões estatais17. Isso não equivale a acolher perspectivas que sob o rótulo de
neo-constitucionalismo e pós-positivismo investem em uma judicialização das relações
políticas e sociais, que passam a ser tuteladas por tribunais e juízes que são chamados a
ocupar no imaginário coletivo um locus privilegiado, adquirindo uma feição heróica pela qual

14
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
Horizonte: Arraes, 2013. p. 105.
15
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 145-146.
16
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974b. p. 138. v.1.
17
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 591.
28

se tornam agentes capazes de impor reformas estruturais18.


Aqui, deve ser ressaltado que este é, antes de tudo, um trabalho de Teoria Geral do
Processo. As vertentes desta disciplina, desde Savigny, passando por Bülow, Chiovenda,
Goldschmidt, Couture e Fazzalari, são estudadas e confrontadas com a teoria
Neoinstitucionalista, que se apresenta como oferta teórica com capacidade para proporcionar
considerável ganho democrático também ao Processo Penal, que passa a ser compreendido
como instituição de controle da atividade jurisdicional, superando de vez as perspectivas
autoritárias que, sob uma aparência democrática, defendem exatamente o inverso, ou seja, o
controle jurisdicional do processo.
O desafio do Processo Penal na democracia é instaurar a abertura descritiva,
argumentativa e interpretativa superando a dicotomia entre acusatoriedade e inquisitoriedade.
A presente pesquisa tenta apontar um caminho possível. O caminho da interenunciatividade
como forma de explicitar os conteúdos fáticos e jurídicos de modo a assegurar a
democraticidade plena do Processo Penal, seja naquilo que se apresenta como acusatório ou
mesmo inquisitório. Tal conquista teórica só se mostra possível pela superação dos obstáculos
epistemológicos capazes de perturbar o desenvolvimento da processualidade no paradigma do
Estado Democrático de Direito.

18
BARROSO, Luís Roberto. O novo constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2013.p. 228.
29

1 A DOGMÁTICA E O PREDOMÍNIO DE CONCEPÇÕES ARCAICAS NO


PROCESSO PENAL

As considerações sobre a ciência dogmática do Direito que permearão este trabalho


podem contribuir para demonstrar que no Direito Processual Penal há também uma forte
tendência dogmatizante, expressada por duas grandes correntes que se digladiam há séculos
pela primazia, tanto nas mais diversas legislações quanto no plano teórico. Trata-se das
vertentes inauguradas pelos princípios arcaicos da acusatoriedade e da inquisitoriedade. Neste
ponto, de caráter introdutório, o que se pretende é expor, de forma resumida, a oscilação no
curso histórico entre esses dois princípios, caracterizando um embate dogmático inócuo que já
não encontra acolhida no paradigma democrático. A revisitação histórica é importante para
que se promova uma decomposição descritiva desses pretensos sistemas e como eles
repercutem na atualidade19. O que se vê é que, mesmo na contemporaneidade, essa dicotomia
se faz presente por uma dialética antinômica20, que vem travando a evolucionariedade do
Direito Processual Penal no plano discursivo.

1.1 Acusatoriedade e inquisitoriedade: Os primórdios de um embate dogmático

A superação dessa dicotomia se torna possível pela implantação da processualidade


democrática nos marcos institucionalizados no Brasil desde a promulgação da Constituição da
República de 198821, não como mera síntese dos opostos, mas como método de resistência e
crítica das suposições de senso comum do conhecimento jurídico22. Para tanto, uma
observação sobre os eventos históricos desse embate pode ser proveitosa para o
esclarecimento de suas bases teóricas possibilitando a crítica que se pretende encaminhar mais
adiante.

19
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
47.
20
“Filosoficamente, são antinômicas as positividades (nomos=lei) vetorialmente diferentes, opostas (anti).
Há nas antinomias, um antagonismo de razão, porque uma antinomia é, para outra, não só de vector, como
especificamente é diferente. Assim, a qualidade e a quantidade são opostos antinômicos, porque uma e outra têm
lei diferente, e são especificamente diferentes. Portanto, a reducção de uma à outra, como o realizou o
mecanicismo, reduzindo a qualidade à quantidade é falsa. Ademais, as antinomias são positividades que se
opõem, e não meras contradicções de realidade ao segundo. Na antinomia, a afirmativa de um não recusa a
validez de existencialidade do outro, como a afirmativa da qualidade não implica no desaparecimento da
quantidade ou a sua simples negação” (SANTOS, 1959, p. 56)
21
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
141.
22
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.p.
42.
30

Pela narrativa histórica é possível observar que o embate entre acusatoriedade e


inquisitoriedade tem suas origens com o acolhimento, pelos romanos, no período arcaico (V a
II a.C.), de princípios já desenvolvidos pelos gregos, quando se instaurou a distinção entre
delicta publica e delicta privata, instituindo o procedimento penal público, conduzido por um
terceiro alheio à controvérsia experimentada pelas partes em conflito23. O objetivo da
abordagem histórica que segue é demonstrar que o arcaísmo persiste na doutrina e na
legislação processual penal.
A alternância entre esses princípios basilares, remonta à antiguidade clássica (que
abrange o período arcaico). Como demonstra Antônio Alberto Machado:

O processo penal na Antiguidade Clássica, na Grécia e em Roma, alternou o seu


perfil entre os modelos inquisitivo e acusatório. Assim, na democracia ateniense o
processo assumiu contornos tipicamente democráticos com contraditório, direito de
defesa, julgamento público etc.; em Roma, esse mesmo modelo acusatório
prevaleceu apenas durante o período republicano, tendo assumido contornos
nitidamente inquisitivos no período da realeza e sob o governo dos imperadores. 24

Na Grécia antiga, o sistema de Processo Penal contava com a participação direta do


povo, que tanto exercia a atividade de acusar como a de julgar. Havia um sistema de ação
popular, em nome coletivo, para os crimes mais graves e um sistema de acusação privada para
os chamados delitos privados, menos graves, num claro sincretismo entre direito civil e
penal25. Os julgamentos se faziam por órgãos colegiados:

Na Grécia e especificamente em Atenas, a jurisdição criminal era toda ela exercida


por órgãos colegiados: A assembléia do Povo, o Areópago, os Efetas e os Heliastas.
A Assembléia do Povo se encarregava de julgar os crimes mais graves; o Areópago
tinha a competência para julgar os homicídios dolosos e os crimes punidos com a
pena de morte; os Efetas julgavam os homicídios não premeditados; e os Heliastas
(assim chamado porque era um tribunal composto por cidadãos que proferiam seus
julgamentos à luz do Sol) exerciam jurisdição criminal plena. 26

Há que se destacar o papel do arconte, que servia de intermediário entre o acusador


particular e o tribunal, cuidando de aspectos formais, admitindo ou obstruindo o envio do caso
ao tribunal popular27. Era o arconte que exercia um juízo prévio sobre a seriedade da
acusação quando então tomava uma caução do acusador, designava o tribunal competente e

23
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 1. 1982 p. 42
24
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 12
25
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 58-59
26
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 13
27
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
57
31

indicava os juízes dos quais tomava o juramento antes de submeter-lhes a questão28.


A organização judiciária grega e seu Processo Penal são apontados, por Antônio
Alberto Machado, como base do processo democrático, com predominância da acusatoriedade
e pelos rudimentos de acusação pública, contraditório entre as partes, direito de defesa e
publicidade que já podiam ser notados29. No entanto, Omar Abel Benabentos destaca o fato de
que os gregos também utilizavam a tortura como meio de prova, sobretudo contra os escravos
que, quando levados a testemunhar não lhes era permitido prestar juramento, assim, a parte
contrária tinha prerrogativa de torturar os escravos de seu oponente para conferir credibilidade
ao seu depoimento. Mas também houve situações em que alguns homens "dignos e livres"
foram submetidos à tortura30. O mesmo autor noticia a prática das ordálias (juízos de Deus)
entre os gregos, sobretudo as provas da água fervente e do ferro em brasa, muitos séculos
antes dos germânicos, que celebrizaram este procedimento probatório31 na Idade Média.
Essas provas, sobretudo a tortura, eram chamadas de “inartísticas” por Aristóteles,
pois eram produzidas sem o emprego da “arte” retórica e, por isso, não eram vistas
positivamente32, sendo seu resultado considerado, no mais das vezes, enganoso. Aristóteles,
porém, não chega a condenar a tortura e apenas se limita a expor argumentos contra e a favor
do emprego de métodos tormentosos na obtenção da prova33.
Já em Roma, no Período Régio e durante todo o período republicano (de 754 A.C.

28
"En los delitos públicos, quien asumía el papel de acusador producía su acusación ante un arconte, quien se
encargaba de juzgar la seriedad e formalidad de la acusación, conforme a los elementos de prueba que ella
portaba.Si el arconte la admitía, tomaba juramento al acusador y recebía la caución, elementos que aseguraban
que no abandonaría el procedimiento hasta la decisión del tribunal. Además, designaba el tribunal y los jueces
que lo componían y les tomaba también juramento, convocándolos para el día del juicio público." "Nos delitos
públicos, quem assumia o papel de acusador produzia sua acusação perante um arconte, quem se encarregava de
julgar a seriedade e formalidade da acusação, conforme os elementos de prova que ela portava.Se o arconte a
admitia, tomava o juramento do acusador e recebia a caução, elementos que asseguravam que não abandonaria o
procedimento até a decisão do tribunal. Ademais, designava o tribunal e os juízes que o comporiam e lhes
tomava também juramento, convocando-os para o dia do julgamento público" ( BENABENTOS, 2005, p. 22,
tradução nossa).
29
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 13.
30
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2.p. 23.
31
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2.p. 24.
32
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
61.
33
“As confissões sob tortura são testemunhos de natureza peculiar, e parecem merecer confiança, porque nelas está
presente uma certa necessidade. Não é certamente difícil dizer sobre estas confissões os argumentos possíveis: se
elas nos forem favoráveis, podemos valorizá-las, dizendo que são os únicos testemunhos verídicos; se nos forem
contrárias e favorecerem o adversário, podemos então refutá-las dizendo a verdade sobre todo o gênero de
torturas; pois os que são forçados não dizem menos a mentira que a verdade, ora resistindo com obstinação para
não dizere m a verdade, ora dizendo facilmente a mentira para que a tortura acabe mais depressa. É necessário
poder invocar exemplos do passado que os juízes conheçam. É também necessário dizer que as confissões sob
tortura não são verdadeiras; pois muitos há que são pouco sensíveis e de pele dura como pedra, capazes de nas
suas almas resistir nobremente à coacção, mas os covardes e timoratos, apenas se mantêm fortes antes de verem
os instrumentos da sua tortura; de sorte que nada de credível há nas confissões sob tortura”. (ARISTÓTELES,
2005, p. 153-154).
32

até o século I a.C.), esteve em vigência uma modalidade de Processo Penal notadamente
inquisitiva, a cognitio. Na cognitio, os magistrados tinham mais liberdade de atuação e seu
sistema recursal excluía mulheres e escravos. Somente o condenado que fosse cidadão e varão
tinha acesso ao recurso, denominado provocatio ou provocatio ad populum, um tipo de
reclamação dirigida diretamente ao povo que poderia livrar o condenado em caso de penas
capitais. Esse recurso constava da Lei das XII Tábuas (século 450 a.C.). Nesse período, a
jurisdição penal se dividia entre a Assembléia do Povo, o Senado e os magistrados que, por
delegação, formavam entre si comissões julgadoras chamadas questiones perpetuae,
compostas pelo pretor e pelos judices jurati, que dividiam as tarefas do julgamento. O pretor
era incumbido de uma apreciação preliminar da causa e, quando entendia pela plausibilidade
da acusação, a encaminhava aos judices jurati34.
A cognitio, de viés inquisitivo, deu lugar à acusatio, em que prevalecia a
acusatoriedade. Um órgão distinto do juiz, não pertencente ao Estado ou um cidadão,
representante voluntário da coletividade, era quem encaminhava a acusação. Desse modelo,
decorrem características como a separação entre acusador e julgador, atividade probatória
reservada às partes numa radicalização do princípio da inércia (ne procedat iudex ex officio),
penalização para a denunciação caluniosa, acusação escrita, rudimentos de contraditório e
direito de defesa, além de procedimento oral35. A acusatio prevaleceu no ocaso da república e
também se caracterizou pelo estabelecimento de fórmulas prévias que restringiam bastante a
atuação dos magistrados36. Esse é o chamado período formular (ordo judiciorum privatorum)
que compreende o período arcaico (século V a II a. C.) e o período clássico do direito romano
(século I a. C. ao século III d. C.), em que prevalecia a arbitragem como principal instituto
jurídico a atuar na resolução de conflitos37.
A transição da República ao Império, que culminou no século III d.C., é marcada
pela consolidação do sistema denominado cognitio extraordinem, que restaurou estruturas
com fortes características inquisitivas e serviu para reforçar o poder central 38, frente às
ameaças internas e externas:

Este tipo de processo entraria por todos os domínios do Império Romano e por toda
a Idade Média, projetando seus traços fundamentais até o alvorecer da modernidade.

34
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 14-15.
35
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011b. v.2. p. 59.
36
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 15
37
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 21-22.
38
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 49.
33

O processo de partes, os comícios, as questiones perpetuae e, por conseguinte, os


pretores e as comissões ou judices jurati foram sendo abandonados pouco a pouco,
ampliando-se as jurisdições do Senado e do Príncipe que viriam a descartar
completamente a participação dos cidadãos nas funções judiciais em Roma e nas
províncias. Com o desaparecimento dos acusadores populares, o processo criminal
passou a ser instaurado de ofício, no antigo modelo da cognitio dos primeiros
tempos de realeza.39

Esse período tem como a principal de suas características a intervenção do Imperador


mesmo nos julgamentos de competência senatorial, instaurando um monopólio público da
jurisdição, pois passou a vedar a desistência do acusador privado que muitas vezes
abandonava o processo em troca de dinheiro. A persecução penal era então exercida por
delegados do Imperador:

O delegados do Imperador decidiam livremente sobre o início do processo,


investigavam os fatos, regulavam seu procedimento, o instruíam e julgavam. A
figura dos delatores não era a de um acusador propriamente dito, mas de um
informante. Conseqüentemente, os delegados não estavam vinculados às provas
existentes, podendo buscar outras para poderem decidir. Quanto à pena que deveria
ser aplicada, o julgador não estava vinculado aos limites máximos e mínimos
existentes, decidindo de acordo com a condição da pessoa e gravidade do fato. 40

Essa concentração de poderes decisórios foi essencial para a sobrevivência do


império, pois evitou o colapso decorrente da decadência dos tribunais populares e
permanentes “motivada pelo rechaço dos cidadãos em formar parte deles”41. O processo se
resumia ao exercício do judicium42, variando tão somente o grau de intervenção e iniciativa do
julgador. O fato é que as civilizações da antiguidade clássica já experimentavam a
contraposição entre acusatoriedade e inquisitoriedade, como propostas estratégicas
intimamente atreladas à própria forma de governo e de Estado, que por sua vez sofrem a
influência de matrizes filosóficas que se esforçam em compreender o que é a justiça e, como
tal, se consolidaram de forma a influenciar condutas e reflexões que foram determinantes para
a ciência jurídica durante séculos.

1.2 Trajetória do racionalismo dogmático greco-romano e o conceito de justiça

O presente trabalho não se propõe a um aprofundamento em torno do conceito de

39
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 16.
40
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
97.
41
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá,
2008.p. 94.
42
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 117.
34

justiça, porém, uma breve incursão sobre o tema se faz necessária quando se pretende apontar
os alicerces teóricos da dogmática processual penal e os discursos que lhe são subjacentes. Na
Grécia antiga, Aristóteles e Platão inauguraram as matrizes filosóficas mais influentes da
história, Realismo e Idealismo43 e também cuidaram de buscar compreender a justiça. Cada
qual a seu modo, contribuiu para o desenvolvimento da ciência jurídica.
Mesmo advertindo que a concepção sobre o justo pode variar segundo as concepções
individuais, Aristóteles procura encontrar uma definição racional de justiça. Na Ética, a
Nicômaco apresenta inicialmente uma concepção de justiça em sentido lato para depois se
ocupar da justiça em sentido estrito que, segundo ele, se manifesta de três modos: como
justiça distributiva, como justiça corretiva e como justiça retributiva.
Num sentido lato, a expressão “justiça” vem designar a capacidade de um homem
proporcionar “o bem de um outro”, o que leva a uma compreensão da justiça não como uma
parte da virtude, mas sim como a virtude inteira. Por outro lado, a “injustiça” não seria uma
parte do vício, mas o vício por excelência44. Aristóteles empreende, entretanto, uma detalhada
investigação sobre o que ele aponta como sendo a concepção de justiça como um aspecto ou
parte da virtude.
Neste ponto, Aristóteles inicia por definir a justiça distributiva, proporcional ou
geométrica que se manifesta como uma espécie de justiça intermediária, em cujo contexto o
“injusto é o que viola a proporção; porque o proporcional é intermediário e o justo é
proporcional”45. Em seguida, demonstra o que concebe como justiça corretiva ou aritmética
que consiste em estabelecer a igualdade nas transações individuais independentemente da
qualidade das partes envolvidas. Assim, não importa que “um homem bom tenha defraudado
um homem mau ou vice-versa”, o que a lei deve considerar é o caráter distintivo do delito.
Diante do delito, o filósofo invoca as propriedades extraordinárias inerentes à figura

43
A contraposição dessas duas concepções é evidenciada pela busca de primazia entre ontologia e epistemologia.
O debate filosófico sempre girou em torno destas concepções metafísicas que podem ser definidas como
“filosofias primeiras”. (PERELMAN, 1999, p. 131).
44
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 123.
45
“Com efeito, a proporção é uma igualdade das razões, e envolve quatro termos pelo menos (que a proporção
descontínua envolve quatro termos é evidente, mas o mesmo sucede com a contínua, pois ela usa um termo em
duas posições e o menciona duas vezes; por exemplo a “linha A está para a linha B assim como a linha B está
para a linha C”: a linha B, pois, foi mencionada duas vezes e, sendo ela usada em duas posições, os termos
proporcionais são quatro). O justo envolve pelo menos quatro termos, e a razão entre dois deles é a mesma que
entre os outros dois porquanto há uma distinção semelhante entre as pessoas e as coisas. Assim como o termo A
está para B, o termo C está para D; ou, alternando, assim como A está para C, B está para D. Logo, também o
todo guarda a mesma relação para com o todo; e este acoplamento é efetuado pela distribuição e, sendo
combinados os termos da forma que indicamos, efetuado justamente. Donde se segue que a conjunção do termo
A com C e do B com D é o que é justo na distribuição”. (ARISTÓTELES, 1984, p. 125).
35

do juiz a quem caberia restaurar a igualdade da relação46 dando a cada qual o que lhe
pertence. Com relação à justiça retributiva, denominada por Aristóteles como “reciprocidade”,
esta se mostra como fator de união da “cidade”, pois permite que os homens paguem “o mal
com o mal”, donde se extrai o fundamento das punições aos delitos, mas também decorre o
fundamento das trocas e transações mercantis que conferem também ao homem a faculdade
de pagar “o bem com o bem”. Estes procedimentos devem traduzir sempre uma retribuição
proporcional47.
No idealismo, a justiça assume a condição de conferir validade ao Direito, pois este,
ao mesmo tempo que faz parte do mundo dos fenômenos (realidade), é também parte do
mundo das ideias, em que se encontram conteúdos normativos apreendidos a priori, ou seja,
independentemente de sua apreensão pelos sentidos, quando da experiência. O direito positivo
se submeteria, assim, a uma censura ética pela ideia de justiça, no que se denomina idealismo
material, que consiste no totalitarismo extraído do pensamento de Platão e que se expressa
pela separação de classes e dominação institucionalizada por um Estado auto-suficiente e
autárquico48. Mas a completa dissociação entre direito e moral é também variedade de
idealismo, chamado idealismo formal, pois a validade das normas dispensa qualquer
indagação de cunho material, moral ou ético. Como demonstra Alf Ross, Kelsen é o principal
expoente dessa vertente, pois "aceita, sem reservas, como direito qualquer ordem vigente no
mundo dos fatos"49
Tanto realismo como idealismo, cada qual com suas concepções de justiça, atribuem
à figura do juiz um papel quase mítico como portador da função "concreta de decidir e
realizar o direito deduzido em juízo"50. Desse modo, todo o desenvolvimento histórico da
atividade jurisdicional vai oscilar em torno da privatização ou estatização dos conflitos penais,
que se expressam pela predominância da acusatoriedade ou da inquisitoriedade, sendo o
raciocínio judiciário, quase sempre considerado como o raciocínio jurídico por excelência,
como se vê nas escolas da exegese, funcional-sociológica ou da tópica contemporânea51.

46
“Eis aí por que as pessoas em disputa recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz é recorrer à justiça, pois a natureza do
juiz é ser uma espécie de justiça animada; e procuram o juiz como um intermediário, e em alguns Estados os
juízes são chamados mediadores, na convicção de que, se os litigantes conseguirem o meio termo, conseguirão o
que é justo. O justo, pois, é um meio termo já que o juiz o é”. (ARISTÓTELES, 1984, p. 126).
47
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 128.
48
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974b. v.1.p. 100-101.
49
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 93.
50
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 6.
51
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 29.
36

Voltando a Aristóteles, sua tríplice concepção de “justiça” o leva a definir a ação


justa como a conduta intermediária entre praticar ou ser vítima de uma injustiça. Essa ação
justa, no entanto, guarda uma relação íntima com a noção de conveniência, pois consistiria em
proporcionar ao outro aquilo que convém. A conveniência, por seu turno, seria o meio termo
entre a deficiência e o excesso52. Encontrar esse meio termo é possível entre homens cujas
relações são governadas pelas leis, pois estas estão acima da vontade dos homens, ou seja: a
cidade não deve permitir que “um homem governe, mas o princípio racional, pois que um
homem o faz no seu próprio interesse e converte-se num tirano”53. O princípio racional se
define pela busca incessante de encontrar o meio termo entre os extremos das relações dos
homens entre si e destes com os administradores da polis.
Esse meio termo é “determinado pelos ditames da reta razão”54. Curiosamente há
casos em que as convenções humanas55 podem produzir a iniquidade, o que poderia ser
solucionado pela equidade, que seria uma forma superior às espécies de justiça (sentido
estrito), mas inferior à justiça absoluta (sentido lato), capaz de proporcionar “uma correção da
lei quando ela é deficiente em razão de sua universalidade”, uma vez que não é possível
legislar sobre todas as coisas, principalmente sobre as coisas indefinidas. Quando isso ocorre,
a equidade age como a “régua de chumbo usada para ajustar as molduras lésbicas: a régua se
adapta à forma da rocha e não é rígida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos”56.
Esse tipo de perquirição que se faz acerca da “justiça”, como se viu, promove uma
associação com o termo “razão”, o que nos leva a tentar compreender o significado deste
último como ponto de partida para as abordagens subsequentes.Essa compreensão é
importante ao desenvolvimento da presente pesquisa,na qual se pretende enfrentar o dualismo
metafísico que se instaura como entrave ao discurso jurídico-científico doProcesso Penal. Esta
pesquisa pretende fazê-lo por meio da epistemologia como propõe Alf Ross57 para quem, se a
busca da "pedra filosofal" é uma inutilidade, por outro lado não podemos descuidar de

52
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores). p. 129.
53
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 130.
54
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores). p. 141.
55
Aristóteles fala na existência de uma “justiça” posta pelas leis da natureza, que seriam imutáveis e com validade
em todas as civilizações independentemente de sua cultura ou de seus costumes particulares. Concomitantemente
há a “justiça legal”, posta pelas decisões humanas e suas convenções. Estas vigoram para uma civilização
determinada e suas regras podem variar. As regras legais podem colidir com as leis da natureza e quando isto
ocorre, o decreto dos homens pode ter seus limites ajustados, mediante a aplicação da equidade.
(ARISTÓTELES, 1984, p. 131).
56
Referência à ilha de Lesbos, onde se usavam réguas de chumbo que, por ser um metal flexível, se amoldava às
formações rochosas. (ARISTÓTELES, 1984, p. 137).
57
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 95.
37

questões que dizem respeito à própria razão.


Umberto Eco demonstra que o conceito filosófico de razão é dos mais
controvertidos. O autor observa que, “qualquer forma de pensar sempre é vista como
irracional pelo modelo histórico de outra forma de pensar, que vê a si mesmo como racional.”
e acrescenta, “a lógica de Aristóteles não é a mesma de Hegel; Ratio, Ragione, Raison,
Reason, e Vernunft não significam a mesma coisa”58. Na exposição desenvolvida por
Umberto Eco vê-se que um dos antônimos de “irracionalismo” é “moderação”, que significa
estar nos limites do modus, ou, da medida. Por isso, o que é racional aparece sempre como
aquilo que se ajusta aos limites estabelecidos por um padrão e que, no caso do racionalismo
grego de Platão e Aristóteles, tem o objetivo de produzir certo tipo de conhecimento,
confundindo-se com a determinação das causas dos fenômenos e acontecimentos mediante
uma cadeia unilinear, isso implica o entendimento dogmático segundo o qual, se um
movimento vai de A para B, não há força no mundo capaz de determinar o sentido inverso.
O êxito desse procedimento depende da justificação da natureza unilinear da cadeia
causal, o que se torna possível com a adoção de princípios lógicos tais como o princípio da
identidade (A=A), o princípio da não contradição (é impossível algo ser A e não ser A ao
mesmo tempo) e o princípio do terceiro excluído (ou A é verdadeiro ou A é falso e tercium no
datur). A adoção incondicional desses princípios resulta no “modelo típico do pensamento
racionalista ocidental, o modus ponens: “se p, então q; mas p: portanto q”.”. Como resultado,
temos que a definição das causas levava à definição de Deus como “uma causa, além da qual
não pode haver nenhuma outra causa”59, um Ser que absolutamente é, e cuja essência não
decorre de nenhum outro ser e não conhece limite ou finitude60. No Direito, é ao poder
constituinte originário que se atribuem caracteres semelhantes61
A abordagem de Umberto Eco permite compreender a passagem desses princípios da
filosofia geral para o Direito quando atribui aos romanos a adoção dos princípios racionalistas
que, na visão dos latinos, se não garantiam a comprovação de existência de uma ordem física
no mundo, assegurava pelo menos a base de um contrato social. Em Roma, o modus não
significava apenas estar entre os limites, mas significava os próprios limites. O modus passa a
ter um sentido legal e contratual na medida em que o modelo legal é modus, mas modus
também significa a própria fronteira territorial:

58
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 30.
59
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 31 - 32.
60
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 43.
61
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 6.
38

A obsessão latina por limites territoriais remonta diretamente à lenda da fundação de


Roma: Rômulo traça uma linha de fronteira e mata seu irmão por ele não a respeitar.
Se as fronteiras não são reconhecidas, então não pode haver civitas. Horácio torna-se
um herói porque consegue manter o inimigo na fronteira – uma ponte abandonada
entre os romanos e os outros. As pontes são sacrílegas porque transpõem o sulcus, o
fosso de água que delineia as fronteiras da cidade; por esta razão só podem ser
construídas sob o controle estrito e ritual do Pontífice. A ideologia da Pax Romana e
do desígnio político de César Augusto baseiam-se numa definição precisa de
fronteiras: a força do império está em saber sobre que linha de fronteira, entre que
limen ou limiares a linha defensiva deve ser disposta. Se chegar um momento em
que não exista mais uma clara definição de fronteiras, e os bárbaros (nômades que
abandonaram seu território original e que se movimentam em qualquer território
como se fosse seu, prontos a abandoná-lo também) conseguirem impor sua visão
nômade, então Roma estará acabada e a capital do império poderá muito bem estar
em outro lugar.62

Da mesma forma, segundo Eco, há uma preocupação extremada dos latinos com o
reconhecimento dos limites temporais. Há uma predominância da concepção segundo a qual o
tempo é irreversível e aquilo que ocorreu não pode ser apagado. O autor demonstra a
influência dessa concepção no pensamento de São Tomás de Aquino, que ao responder se
Deus poderia restituir a virgindade a uma mulher, afirma que Deus pode restituir tal mulher
ao estado de graça em virtude de sua misericórdia infinita que nos proporciona o perdão.
Poderia, por milagre, reparar a alteração física decorrente do ato, mas nem Deus poderia fazer
“o que foi não ter sido, porque tal violação das leis do tempo seria contrária à sua própria
natureza”63.
Há nessa linha evolutiva, uma tentativa de compreensão e explicação dos fenômenos
de um modo geral. No pensamento aristotélico, é possível observar um esforço em delimitar
os vários tipos de ações humanas, chegando a enumerar as disposições que permitiriam à
“alma” o alcance da verdade. São elas: a arte, o conhecimento científico, a sabedoria prática, a
sabedoria filosófica e a razão intuitiva64. Desse sistema extraem-se os conceitos de episteme e
techne, sendo o primeiro o hábito de explicar os fenômenos pela sua causalidade
(conhecimento científico e sabedoria filosófica) e o segundo o hábito de produzir algo
necessário e útil, por meio de uma reflexão razoável 65. A transposição desse sistema para o
Direito é feita pelos romanos, que foram notadamente influenciados, sobretudo pelas técnicas

62
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 32.
63
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2. edição, São Paulo:
Martins Fontes, 2005.p. 33.
64
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 143.
65
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Imprensa Nacional, 1979. p. 54.
39

de persuasão argumentativa dos gregos, a tópica e a retórica66.


Viehweg relata que a tópica de Cícero, mesmo escrita 300 anos depois da tópica de
Aristóteles, foi nitidamente influenciada por esta última, na qual Cícero reconhecia a
propriedade de ser “um meio para dispor de elementos de prova aplicáveis a todas as
discussões imagináveis”67. O autor demonstra que é inegável o vínculo da jurisprudência
romana com a aporética filosófica, a sofística e a retórica, pois por volta de 100 A. C., mesmo
não sendo uma disciplina especial, a retórica era amplamente difundida na formação dos
jovens romanos provenientes do extrato social mais nobre, quando de sua formação para a
obtenção do título que lhe conferia a autorictas de iuris consultus. Com isso todo caso de
conflito (principalmente penal) era transformado em um caso oratório em que primeiro se
buscava afirmar ou negar um fato e depois discutir sobre as questões de fato (status
coniecturalis) e de direito (status qualitatis)68.
A retórica reunia técnicas argumentativas e oratórias que se expressavam por meio
de três gêneros de discursos: o deliberativo, o judicial e o epidítico, que se manifestam da
seguinte forma:

Numa deliberação temos tanto o conselho como a dissuasão; pois tanto os que
aconselham em particular como os que falam em público sempre fazem uma destas
duas coisas. Num processo judicial temos tanto a acusação como a defesa, pois é
necessário que os que pleiteiam façam uma destas coisas. No gênero epidíctico
temos tanto o elogio como a censura. Os tempos de cada um destes são: para o que
delibera, o futuro, pois aconselha sobre eventos futuros, quer persuadindo, quer
dissuadindo; para o que julga, o passado, pois é sempre sobre actos acontecidos que
um acusa e outro defende; para o género epidíctico o tempo principal é o presente,
visto que todos louvam ou censuram eventos actuais, embora também muitas vezes
argumentam evocando o passado e conjecturando sobre o futuro. 69

Os tópicos ou topoi, por sua vez, são os lugares-comuns através dos quais se torna
possível formar silogismos por meio de entimemas em questões que dizem respeito a ramos
específicos do conhecimento como o Direito, a Física ou de qualquer outra disciplina 70. No

66
Para compreender a dimensão da tópica no pensamento de Aristóteles, há que se assinalar a distinção que este
faz entre conhecimento Apodítico e Dialético, sendo o primeiro identificado com o campo da verdade, em que se
encontram os postulados imutáveis sobres os quais não há como divergir. O Dialético é o campo do meramente
oponível em que se contrapõem as opiniões e é neste campo que se identifica a Tópica como uma técnica de
persuasão, seja pela indução ou pelo silogismo. (VIEHWEG, 1979, p. 24).
67
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa
Nacional, 1979. p. 28.
68
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa
Nacional, 1979. p. 55.
69
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 104.
70
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 103.
40

Direito contemporâneo, esse papel é desempenhado pelos princípios gerais, que instauram a
compulsoriedade decisória característica da dogmática jurídica neo-aristotélica do segundo
pós-guerra, em que as construções jurídicas cumprem um papel análogo à moral, à filosofia e
à política, pois são submetidas ao controle da experiência na medida em que se destinam a
guiar a ação das cortes e tribunais para que atuem conforme o interesse público e a moral
dominante71. A tópica vem se mostrando, na contemporaneidade, fonte de conteúdo decisório
de uma jurisdição hipertrofiada e tal circunstância será objeto de abordagem mais detalhada
adiante.

1.3 A acusatoriedade bárbara

Com o fim do Império Romano, na Idade Média, o que se vê é nova emergência da


acusatoriedade, sobretudo entre os povos germânicos, que, bárbaros, desconheciam a
Filosofia e se pautavam por um individualismo extremo, em que os direitos eram defendidos
pela força e o emprego de armas, prevalecendo a crença de que Deus jamais permitiria a
vitória de quem não fosse detentor do direito. Como demonstra Lydio Machado Bandeira de
Mello:

Não havia autoridade que pudesse substituir o indivíduo na avaliação de seus


direitos. Ao indivíduo, competia determinar se estava ou não ofendido pelo injusto
de outro. Ao indivíduo, e a mais ninguém, competia aceitar ou não uma reparação
pecuniária pela lesão de um seu direito natural (vida, saúde, integridade corporal),
liberdade de locomoção e de ação, sentimento de dignidade pessoal, honra sexual de
suas mulheres e filhas, propriedade) ou de seu parente mais próximo do lado paterno
(DO LADO DA LANÇA, para usarmos de uma imagem ou expressão turíngia). E,
em última e suprema instância, ao indivíduo, competia o direito de provar, mediante
um combate que estava com a razão.72

Os combates judiciais e os Juízos de Deus caracterizam o Processo Penal dos povos


germânicos, marcadamente acusatório, muito em razão de não haver, para esses povos,
qualquer distinção entre delitos civis e penais. Toda e qualquer infração era considerada uma
ofensa à paz comunitária o que implicava para seu autor um estado de "perda da paz" que
fazia com que este ficasse à mercê de seus congêneres73.

71
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 111.
72
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961.
p. 104-105.
73
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 10
41

O sistema germânico de resolução de conflitos é marcado pela sucessão de várias


legislações74, mas que mantiveram seus traços mais marcantes, que podem assim ser
relacionados: combate judicial, vingança privada e inércia judicial com tribunais compostos
por assembleias populares. O procedimento era predominantemente oral, público e
contraditório, marcado por um formalismo solene, em que as palavras proferidas tinham um
sentido quase místico, com as partes travando uma luta judicial por atos sacramentais, pouco
importando a pertinência das suas alegações. O processo judicial só tinha lugar após frustrada
a composição privada. Há que ser ressaltado que a atividade do juiz ou tribunal, se limitava a
aplicar a lei que disciplinava o duelo e que a vitória de um litigante em um duelo era sempre
considerada a vitória do Direito75.
Curioso é que os bárbaros herdaram dos gregos, justamente aquilo que eles
praticavam de mais primitivo, ou seja: os juízos ordálicos ou juízos de Deus. Essa prática
consistia no fato dos litigantes invocarem uma espécie de apelação do tribunal humano para o
tribunal de Deus, na crença de que Este "ouviria e daria provimento à sua apelação sob a
forma de subtração miraculosa ao perigo inerente à prova escolhida", uma vez que Deus
jamais deixaria em desamparo o detentor do "bom direito"76.
Lydio Machado Bandeira de Mello77 apresenta exemplos emblemáticos de ordálias,
além do duelo entre as partes: A Prova da Cruz, em que os litigantes postavam-se em pé e de
braços abertos durante a missa (o primeiro que deixasse o braço pender erra derrotado no
litígio). O Jus Feretri ou Cruentationis, em que levavam o suposto assassino diante do
cadáver da vítima ficando provada a culpa se, ao contato do suspeito, jorrasse sangue dos
ferimentos do cadáver. Na Prova da Caldeira, o acusado deveria retirar, com o braço nu, um
objeto mergulhado em água fervente (seria absolvido se não se ferisse). Na Prova de Fogo, o
réu submetia-se a uma travessia "descalço sobre brasas, ou sobre relhas de charrua
incandescentes" ou era compelido a atravessar uma fogueira. Aponta ainda a existência da
prova da Água Fria, na qual o acusado era imobilizado por uma corda e atirado no fundo de
um tanque, se "sobrenadava" era tido como culpado.

74
Lydio Machado Bandeira de Mello cita, por exemplo, a Lex Baiwariorum, cuja origem é controversa. Alguns
pesquisadores atribuem sua edição ao rei Carlos Martelo entre 725 e 728. Outros a atribuem ao rei Henrique
Brunner, entre 744 e 748. Esta disciplinava os combates judiciais e permitia aos mais fracos fisicamente
contratarem um "campeão" para combater em seu lugar. O "campeão" que fosse derrotado, acarretando a derrota
judicial de seu contratante era punido tendo o punho cortado. (MELLO, 1961, p. 107).
75
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 13-16
76
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961p.
129.
77
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961. p.
130.
42

A partir do século XII, na França, as ordálias foram cedendo espaço aos duelos, que
persistiram ainda até o século XVI, apesar das várias tentativas de abolição, como a
condenação expressa dessa prática pelo pontífice Inocêncio IV em 125278 que levou a Igreja a
pronunciar a excomunhão de quem cometesse homicídio de um adversário em duelo, mesmo
sob forte oposição da nobreza. Os reis portugueses sempre mantiveram a prerrogativa real de
"conceder licença para que as partes resolvessem seu litígio por um combate judicial"79. Na
Inglaterra, a lei que aboliu o duelo judicial em caso de apelação (duelo travado entre o
condenado e seus juízes)80 é relativamente recente, pois datada de 181981.
O sistema judicial germânico influenciou as práticas judiciárias da Península Ibérica,
antes do advento da Inquisição. Tal influência se deu para além dos duelos judiciais e das
ordálias, como, por exemplo, através do instituto da compurgação. A compurgação consistia
num atestado de inocência prestado por terceiros em favor de um acusado82. Essas pessoas
eram denominadas juratores, conjuratores, sacramentales ou compurgatores e deviam ter um
laço de solidariedade com o acusado, seja pertencendo à mesma comuna ou como membros
de uma mesma família e, para aumentar a credibilidade de seu testemunho, deveriam ter um
interesse direto na punição do culpado. O número de compurgadores variava
proporcionalmente à gravidade do fato imputado, havendo registros de casos em que
intervieram mais de trezentos. Contudo, o número normalmente aceito pelos tribunais
municipais, limitava-se a doze83. Antes de provar ou atestar um fato, os compurgadores
serviam para mostrar "a solidariedade que um determinado indivíduo poderia obter, seu peso,
sua influência, a importância do grupo a que pertencia e das pessoas prontas a apoiá-lo em
uma batalha ou em um conflito"84.

78
Em 1252, Inocêncio IV publica a bula Ad extirpanda, com o objetivo de controlar de forma severa as doutrinas
religiosas da época, permitindo a tortura como forma de quebrar a resistência dos acusados. (SILVÉRIO
JÚNIOR, 2004, p. 83).
79
Lydio Machado Bandeira de Mello demonstra que os duelos judiciais eram expressamente previstos nas
ordenações do reino português. Nas Ordenações Afonsinas (1446 ou 1447 a 1512) estavam previstos no Livro II,
título XXIV. Nas Ordenações Manuelinas (1512 a 1514), no Livro II, título XX, § 2º. E nas Ordenações Filipinas
(em vigor até início do século XIX), havia uma repetição do disposto nas Ordenações Afonsinas, no Livro II,
título XXIV. (MELLO, 1961, p. 124).
80
Para tanto, cada juiz pronunciava o seu julgamento em voz alta, ocasião em que era retorquido pelo acusado,
que geralmente o acusava de julgamento falso, se iniciando então, um duelo entre ambos. Se o acusado deixasse
para suscitar esta falsidade, ao final, deveria travar um duelo com todo o colegiado, em evidente desvantagem.
(MELLO, 1961, p. 114).
81
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961.p.
131.
82
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.
2009. p. 10.
83
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961.p.
116.
84
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 59.
43

Mas ainda assim, as práticas judiciárias mais marcantes da Península Ibérica foram
as inquisitórias instituídas pelo advento do Processo Penal canônico, após o domínio
sarraceno.

1.4 Inquisitoriedade canônica e sincretismo jurídico na transição entre o medievo e a


modernidade

A Inquisição Católica produziu de modo avassalador, uma nova inflexão em direção


ao sistema inquisitivo85. É de se notar, que as práticas inquisitórias no âmbito da Igreja datam
do século XIII, sendo mesmo anteriores ao notório Manual do Inquisidor (Diretorium
Inquisitorium), elaborado por Nicolau Eymerich em 1376, pelos éditos no Papa Inocêncio III
no Concílio de Latrão em 1216, que estabeleciam um sistema de processo eclesiástico escrito
e inquisitivo86.
Segundo Omar Abel Benabentos, o gérmen inquisitivo foi introduzido no Processo
Penal romano quando apareceram os primeiros funcionários oficiais, encarregados de velar
pela segurança pública e promover a acusação pelos fatos que chegavam ao seu
conhecimento. Nascia desse modo, a persecução penal pública87. No início, tinha um caráter
subsidiário, pois só era exercida em caso de inércia do agente privado, que inicialmente teria
legitimidade para exercê-la. Paulatinamente foi se tornando o principal sistema de acusação e
se tornou fonte direta da Inquisição, que recepcionou suas principais características.

85
Antônio Alberto Machado (2009, p. 20), aponta como marco inicial da Inquisição a bula Excommunicanibus,
editada pelo Papa Gregório IX em 1234. No entanto, quando se fala em marco inicial da Inquisição, há que se
distinguir as diversas manifestações desse modelo procedimental no âmbito da Igreja como foi o caso da
Inquisição espanhola em que os inquisidores eram nomeados pelos Reis Católicos por delegação do Papa. O
mesmo aconteceu em Portugal quando o Papa Clemente VII concedeu ao rei D. Manuel I, pela bula Cum ad nihil
magis a prerrogativa de nomear um dos inquisidores-gerais estabelecendo um sincretismo entre a jurisdição
eclesiástica e a jurisdição régia. Outro fato marcante é a instauração da Congregação do Santo Ofício, uma
comissão formada por seis cardeais com jurisdição sobre toda a cristandade instituída através da bula Licet ab
initio, pela qual o Papa Paulo II promoveu uma importante reorganização da Inquisição romana em 1542. É
possível apontar diferenças entre a estrutura da Inquisição na península itálica e na península ibérica. Enquanto a
Inquisição nesta última se configura de forma organizada e coletiva mediante a atuação de uma “poderosa
máquina burocrática com controle sobre uma extensa rede local” a outra se apresenta estruturada por meio de
inquisidores locais sediados nos conventos das respectivas ordens (dominicana e franciscana) voltados,
sobretudo à perseguição dos protestantes estabelecendo assim, já no século XVI, “traços de continuidade entre a
Inquisição medieval e a Inquisição moderna”. Pode-se afirmar que não incorre em erro quem se refere a toda esta
gama de atividades e estruturas eclesiásticas e régias, como “Santo Ofício”. (BETHENCOURT, 2000, p. 18; 24;
27; 29).
86
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 65; SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004.p. 83;
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 23
87
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2.p. 34
44

Novamente, dos escombros da acusatoriedade, ressurgia com todo vigor a


inquisitoriedade, desta feita marcada por características como a escritura, o segredo dos atos
e, principalmente, o procedimento de ofício, afastando por completo a máxima ne procedat
iudex ex officio. De certa forma, a inquisitoriedade canônica marcou o surgimento de métodos
racionais de Processo Penal, se comparado com as ordálias e duelos, como observa Mauro
Fonseca de Andrade:

Os duelos e ordálias foram substituídos por um modelo processual muito mais


civilizado e adequado à realidade histórica daquela época, pois não utilizava a força
como principal meio para resolver conflitos. Assim, houve a retomada pela busca da
verdade como anteriormente praticavam os atenienses e romanos – baseada na
palavra do homem, ao invés da força ou misticismo. 88

Na esteira dessas transformações, é possível observar no século XII o surgimento de


um importante mecanismo persecutório, que servirá tanto à Igreja quanto ao Direito estatal: O
Inquérito. Michel Foucault89 demonstra que na Alta Idade Média não havia a noção de falta
religiosa ou à lei, mas somente a noção de dano, que, como visto acima, era o núcleo de um
conflito privado cujo procedimento de resolução interessava somente às partes envolvidas.
Com as complexas transformações do medievo chegou-se a uma situação de verdadeiro
sincretismo entre o poder político e o eclesiástico, que partilhavam da noção de culpabilidade
para punir os faltosos. O dano provocado pela violação da lei seria, então, uma ofensa ao
poder, à soberania e à coletividade. O dano também adquiria um status de infração à moral
religiosa.
O sincretismo jurídico no curso da Idade Média é apontado por Antônio Alberto
Machado como efeito da diversidade legislativa decorrente da fragmentação do poder. Há, no
continente europeu, uma concomitância de vigência entre legislações díspares e dispersas
como o Breviário de Alarico de 506, o Código Justiniano de 530, o Código Canônico, já em
1234, as traduções espanholas da legislação dos visigodos e a legislação dos forais, editada
pelos reis e senhores feudais a partir do século VIII, experiência verificada nos reinos e
condados da Península Ibérica. Enfim, uma pluralidade de fontes legislativas que desaguava
numa pluralidade de jurisdições penais concomitantes: senhoriais, eclesiásticas, reais e
municipais90. Pode-se falar em sincretismo, quando duas correntes inimigas se unem, mesmo

88
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá,
2008.p. 269.
89
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.p. 73-74.
90
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 17.
45

sem qualquer afinidade teórica, para combater uma terceira91. Assim, nota-se que o poder dos
reis se une ao poder eclesiástico para subjugar o povo e evitar a fragmentação territorial ou
sua ocupação por outros povos hostis.
A bula Exigit sincerae devotionis affectus, assinada pelo papa Sisto IV em 1º de
novembro de 1478, de forma inédita concedeu aos reis poderes para nomear inquisidores
visando punir a difusão de crenças e ritos mosaicos entre os judeus cristãos-novos92. Antes
esse poder era prerrogativa papal. Foi uma transferência de competência que simbolizou o
sincretismo entre elementos religiosos e laicos, numa conjunção da qual, segundo Michel
Foucault, ainda hoje não estamos totalmente livres93.
Essa formulação que resultou na implementação do Inquérito como mecanismo de
busca e estabelecimento da verdade, acabou por se espalhar para outros campos do
conhecimento e do poder, além do jurídico, reorganizando as práticas judiciárias e até mesmo
científicas da Idade Média até a Idade Moderna:

De maneira mais geral, este inquérito judiciário se difundiu em muitos outros


domínios de práticas - sociais, econômicas - e em muitos domínios do saber. Foi a
partir desses inquéritos judiciários conduzidos pelos procuradores do rei que, a partir
do século XIII, se difundiu uma série de procedimentos de inquérito.
Alguns eram principalmente administrativos ou econômicos. Foi assim que, graças a
inquéritos sobre o estado da população, o nível das riquezas, a quantidade de
dinheiro e de recursos, os agentes reais, asseguraram, estabeleceram e aumentaram o
poder real. Foi desta forma que todo um saber econômico, de administração dos
estados, se acumulou no fim da Idade Média e nos séculos XVII e XVIII.94

Mas é no campo jurídico que o Inquérito se apresenta como o mecanismo que, por
excelência, vai sustentar as práticas autoritárias do medievo, sobretudo as da jurisdição
canônica. Muito antes da implantação do Tribunal do Santo Ofício, já a partir do Concílio de
Latrão95, a inquisitio ganhou corpo na estrutura da Igreja. A jurisdição eclesiástica, que de
início se destinava a julgar os delitos de fé, pouco a pouco passou a cuidar de julgar os demais
crimes, sempre por um processo secreto e sumário, conforme instituiu em 1298 Bonifácio
VIII, conhecido como o "Papa jurista"96.
Aury Lopes Júnior demonstra como a Igreja, para preservar seu poder de crença
oficial do Império, passou a perseguir implacavelmente aqueles que ousavam discordar de
91
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 59.
92
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.p. 17.
93
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.p. 74.
94
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 74.
95
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 20.
96
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 20.
46

suas diretrizes:

A lógica inquisitorial está centrada na verdade absoluta, e nessa estrutura, a heresia


era o maior perigo, pois atacava o núcleo fundante do sistema. Fora dele não havia
salvação. Isso autoriza o "combate a qualquer custo" da heresia e do herege,
legitimando até mesmo a tortura e a crueldade nela empregada.97

Instaura-se um sistema em que as provas são tarifadas (hierarquizadas) e a confissão


alçada à condição de prova máxima, de validade incontestável. Por essa lógica, a prisão
cautelar passa a ser a regra, pois o inquisidor precisa dispor do corpo do herege para o
momento em que precisar. A defesa era inexistente e, quando havia advogado, sua função era
orientar o acusado a confessar o mais rápido possível. Pelo Manual do Inquisidor, a tortura
poderia durar o máximo de 15 dias (eram 5 tipos progressivos de tortura, podendo ser
aplicado apenas um tipo por dia). Quando e se resistisse, o acusado era declarado inocente.
Mas nesse julgamento, a inocência jamais era pronunciada expressamente, apenas se fazia
menção à falta de provas. O procedimento poderia ser reaberto mais tarde sem o entrave da
coisa julgada pro reo98.
Como ressalta Paolo Tonini, o modelo inquisitório se baseia no princípio da
autoridade, em que o imputado é um mero objeto do juízo que, por sua vez, detém poderes de
iniciativa ex officio, poderes instrutórios ilimitados, sob a proteção de um procedimento
escrito e secreto, que não conhece presunção de inocência, mas pelo contrário, trabalha com
presunção de culpa. Além do mais, a tortura é legitimada como meio de prova. Também é
feito amplo uso da prisão preventiva. Mas, observa Tonini: após a sentença, há certo
reconhecimento de que o sistema pode falhar, daí permitir a impugnação da decisão para um
juízo superior e dotado dos mesmos poderes instrutórios do primeiro (tradução nossa)99.
Enfim, após tudo o que foi demonstrado sobre o sistema inquisitorial, tem-se como
emblemática a síntese de Aury Lopes Júnior, sobre o papel exercido pelo juiz inquisidor: "O

97
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 65.
98
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade
constitucional). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 172.
99
"Molteplicità delle impugnazioni. Il regime totalitario dà ampi poteri al giudice inquisitore; nel momento in
cui egli li esercita, non può essere controllato dalle parti, pena la sconfessione del postulato che fonda il sistema.
Una volta che è stata pronunciata la sentenza, il sistema si ricorda che anche il giudice è un uomo e può
sbagliare. Ed allora il regime permette che le parti possano presentare impugnazione, sulla quale decidere un
giudice superiore che è dotato dei medesimi poteri inquisitori che sono concessi al primo giudice".
"Multiplicidade das impugnações: O regime totalitário dá amplos poderes ao juiz inquisidor; no momento em
que ele os exercita, não pode ser controlado pelas partes, sob pena de repudiar o postulado em que se funda o
sistema. Uma vez pronunciada a sentença, o sistema que antes, o juiz é um homem e pode falhar. E então o
regime permite que a parte possa apresentar impugnação, a qual será decidida por um juiz superior que é dotado
dos mesmos poderes inquisitórios concedidos ao primeiro juiz" (trad. livre). (TONINI, 2010, p. 3).
47

juiz atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga"100. É certo que, na atualidade, não é
possível afirmar a prevalência de um modelo inquisitorial puro, daí ser afirmada a existência
do um sistema misto que tende a justificar teoricamente as práticas inquisitivas que ainda
persistem em ordenamentos ditos democráticos. Omar Abel Benabentos mostra que tal
modelo prosperou na América Latina ao longo do século XX, por influência dos modelos
autoritários prussianos, nazistas, comunistas e fascistas e que, paradoxalmente, foram
acolhidos por diversos estados constitucionais latino-americanos, mediante um
entrecruzamento ideológico inconciliável que levou o sistema processual do continente ao
desequilíbrio, exibindo fortes incongruências101. Sua origem, no entanto, é francesa e pode ser
atribuída à chamada pós-inquisitoriedade napoleônica, expressada pelo Code d'instruction
criminelle de 1808102. O caráter sincrético do sistema misto será abordado de forma um pouco
mais detalhada no Capítulo V.
Pelo que se viu até aqui, sempre houve uma oscilação entre um modelo e outro,
quando não, uma verdadeira disputa por primazia, ou mesmo, uma fusão sincrética. Tal não
foi uma constante apenas na antiguidade ou no medievo, o que poderia ser atribuído à
instabilidade política ou incipiência das instituições jurídicas européias na pré-modernidade.
Esse mesmo fenômeno também pode ser verificado na modernidade103 e mesmo já no final do
século XX e início do século XXI104.Esse tema será objeto de aprofundamento mais adiante
demonstrando, sobretudo que acusatoriedade e inquisitoriedade, apesar de uma aparente
incompatibilidade, sucumbem ao dogmatismo e não representam qualquer ganho teórico-
científico para o Processo Penalna pós-modernidade, constituindo meras técnicas voltadas ao
exercício estratégico do poder105.

100
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 63.
101
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 166
102
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 1. 1982.p.
123.
103
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 6.
104
Exemplo são as técnicas inquisitoriais adotadas contra indivíduos acusados de envolvimento com o terrorismo e
que caracteriza de modo emblemático, a persistência de uma inquisição estatal. Aos indivíduos capturados é
sonegado o status legal de prisioneiro ou mesmo de acusado. São apenas detainees, desprovidos de garantias e
direitos fundamentais. (AGAMBEN, 2007a, p.14).
105
Digna de nota, a reação ao Código de Processo Penal italiano de 1988, no qual prevalecia o princípio
acusatório. Este código foi apontado como sendo um código para a máfia, tendo sofrido desde então várias
alterações que resultaram em uma configuração de característica inquisitiva. (CHOUKR, 2002, p. 90).
48

2 DO PENSAMENTO JURÍDICO METAFÍSICO-TRANSCENDENTAL AO


POSITIVISMO KELSENIANO

Como visto no capítulo anterior, o racionalismo greco-romano, pelas matrizes do


idealismo e do realismo, contribuiu para instaurar, também no campo do Processo Penal, um
evidente dualismo metafísico e dogmático, expressado pela contraposição entre os princípios
da acusatoriedade e inquisitoriedade no curso histórico. O que se percebe é que, com o ocaso
medieval, prevaleceu o intuito de superar as perspectivas magicistas, míticas, religiosas e
absolutistas. Mas esse ímpeto resultou muitas vezes numa ciência que, mesmo procurando
estabelecer uma distância entre o sujeito e o objeto de sua pesquisa ou observação, não
consegue se desvencilhar do princípio da imanência que estabelece um determinismo
metafísico, segundo o qual nada há de novo sob o sol, só restando ao homem buscar sua
autoconservação pela adaptação ao que já existe e que pode tão somente ser objeto de
descoberta, tal como ocorria nas narrativas míticas106.

2.1 Racionalismo empírico-determinista e o advento do idealismo transcendental

No século XVIII, Kant desenvolveu,em sua “Crítica da Razão Pura”, as bases do


chamado idealismo transcendental, estabelecendo a distinção entre intuição e entendimento.
No primeiro caso, o conhecimento surge por representação, sem a mediação dos conceitos e
por meio de uma faculdade sensível do sujeito. Já o entendimento pode ser definido com um
conhecimento, não intuitivo, mas discursivo, por meio de conceitos que exercem a função de
permitir ao sujeito a formulação de juízos.
Os conceitos constituir-se-ão como “predicados de juízos possíveis” que, abstraídos
de seus conteúdos, podem ser classificados formalmente de modo a se desdobrar em quatro
momentos: quantidade dos juízos (universais, particulares, singulares); qualidade
(afirmativos, negativos, infinitos); relação (categóricos, hipotéticos, disjuntivos) e modalidade
(problemáticos, assertóricos, apodíticos)107. O juízo, portanto, vai se constituir matéria do
entendimento pela lógica transcendental, que fornece conceitos puros a priori que permitirão
a síntese dos diversos elementos existentes no espaço e no tempo, produzindo assim o
conhecimento. Os conceitos puros do entendimento são as categorias, que Kant foi buscar em

106
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.
ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998. p. 67.
107
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 128 - 130.
49

Aristóteles.
Assim como procedeu com a classificação das formas dos juízos, Kant reuniu os
conceitos originalmente puros num rol que constitui a expressão da “síntese que o
entendimento a priori contém em si”. Cada categoria contém uma correspondência intrínseca
com as funções lógicas do juízo acima descritas, pois Kant entende que “o entendimento
esgota-se totalmente nessas funções e sua capacidade mede-se totalmente por elas”. Assim se
apresenta a tábua das categorias: quantidade (unidade, pluralidade, totalidade); qualidade
(realidade, negação, limitação); relação (inerência e subsistência, causalidade e dependência,
comunidade – ação recíproca entre o agente e o paciente) e modalidade (possibilidade –
impossibilidade, existência – não-existência, necessidade – contingência)108.
As categorias, como conceitos do entendimento, são pensadas a priori com relação à
experiência. Antes delas não há nenhum outro conceito e todo e qualquer objeto só pode ser
conhecido e determinado a partir delas. São a matéria do raciocínioe “visto constituírem a
forma intelectual de toda experiência, a sua realidade objetiva, tem, por único fundamento,
que a sua aplicação possa sempre ser mostrada na experiência”109. O transcendental, na
construção teórica de Kant, se define como aquilo que é anterior a toda experiência e se
posiciona como condição de possibilidade de todo o conhecimento, sendo que a lógica
transcendental se define como uma forma de pensar por estruturas que independem da
experiência, mas que se restringem àquilo que é possível conhecer, ou seja, os objetos que
podem ser pensados e conhecidos,a priori, determinando a origem, o âmbito e o valor
objetivo de tais conhecimentos110. Assim, na medida em que não se pode ter a experiência
sensível de Deus, o seu conhecimento, como qualquer conhecimento metafísico, é
impossível111.
Trata-se de uma postura agnóstica, pois não nega a existência de Deus, que,
juntamente com a imortalidade da alma, é deduzida dos princípios apriorísticos da razão
prática, pois somente um Ser perfeitamente sábio e justo poderia de fato realizar a conexão
entre o bem e a felicidade; o mal e o sofrimento112. Os termos a priori e transcendental são
assim explicados por Deleuze:

108
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001. p. 136-137.
109
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001. p. 333.
110
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 118.
111
SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.p. 50-51.
112
LESSA, Pedro. Estudos de filosofia do direito. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2002.p. 262 .
50

A priori designa representações que não derivam da experiência. Transcendental


designa o princípio em virtude do qual a experiência é necessariamente submetida às
nossas representações a priori . Assim se explica que à exposição metafísica do
espaço e do tempo suceda uma exposição transcendental. E à dedução metafísica das
categorias, uma dedução transcendental. «Transcendental» qualifica o princípio de
uma submissão necessária dos dados da experiência às representações a priori e,
correlativamente, de uma aplicação necessária das representações a priori à
experiência.113

Como visto, as categorias são conceitos puros do entendimento. Já as ideias são


definidas como conceitos puros da razão, também estruturados sinteticamente a priori:

Embora tenhamos de dizer dos conceitos transcendentais da razão que são apenas
idéias, nem por isso os devemos considerar supérfluos e vãos. Pois ainda quando
nenhum objeto possa por eles ser determinado, podem, contudo, no fundo e sem
serem notados, servir ao entendimento de cânone que lhe permite estender o seu uso
e torná-lo homogêneo; por meio deles o conhecimento não conhece, é certo, nenhum
objeto, além dos que conheceria por meio dos seus próprios conceitos, mas será
melhor dirigido e irá mais longe neste conhecimento. Sem falar de que podem,
porventura, esses conceitos transcendentais da razão estabelecer uma transição entre
os conceitos da natureza e os conceitos práticos e assim proporcionar consistência às
idéias morais e um vínculo com os conhecimentos especulativos da razão.114

A síntese a priori estabelecerá,desse modo, uma faculdade superior de conhecimento


se comparada com a síntese empírica. Enquanto esta se deixa pautar ou legislar pela
representação dos objetos, aquela vai encontrar em si mesma a sua própria lei, através da qual
irá legislar sobre os objetos do conhecimento, submetendo-os à faculdade de conhecer do
sujeito cognoscente. Esses objetos, por seu turno, não são as coisas em si, pois estas não se
submetem à faculdade de conhecer, mas as coisas como se apresentam, ou seja, configuradas
como fenômenos115.
O idealismo transcendental vai se caracterizar, assim, pelos conceitos da razão pura
que ultrapassam todos os limites da experiência, que não são forjados arbitrariamente pelo
sujeito, mas são dados da própria natureza da razão. Nesse contexto, pouco importa as
condições empíricas que submetem o sujeito, pois “por ser a idéia da unidade necessária de
todos os fins possíveis, deverá servir de regra para toda a prática, como condição originária,
ou, pelo menos, limitativa.”.116
É para essa direção que apontam uma pluralidade de teorias metafísicas. Habermas
113
DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Tradução de Germiniano Franco. Lisboa: Edição 70, 2000.p.
21.
114
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 344.
115
DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Tradução de Germiniano Franco. Lisboa: Edição 70, 2000.p.
13.
116
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001. p. 344.
51

elege três dos principais aspectos dessas teorias para uma análise resumida, porém,
esclarecedora de seus fundamentos. Para o autor, o pensamento metafísico se exprime,
sobretudo pelo princípio da identidade, pelo idealismo e pelo conceito forte de teoria, este
portador de uma importância salvífica117.
O princípio da identidade busca um rompimento com a visão concretista e unitária de
mundo que se buscava explicar através do mito. O princípio e a origem das coisas passam a
ser explicados a partir de uma abstração, em que se reconhece um elemento primeiro, que se
subtrai às dimensões de tempo e espaço e permite discernir a variedade das coisas e os
acontecimentos intramundanos, como partes singulares de um todo unitário. Assim, o uno e o
múltiplo são delineados abstratamente e se definem como identidade e diferença, das quais
decorrem todas as coisas e acontecimentos, que se reproduzem na forma de uma variedade
ordenada.
Já em seu aspecto idealista, segundo Habermas, o pensamento metafísico se esforça
por uma compreensão do uno e do todo ao seguir os passos de Platão, afirmando que a ordem
fundadora da unidade é subjacente como essência na variedade dos fenômenos, mas possui
uma natureza conceitual. Uma concepção conceitual, contudo, ordenada pela natureza das
coisas e posicionada numa pirâmide hierarquicamente estruturada, visando realizar a
promessa de unidade, sendo perceptível uma tensão entre a forma discursiva (empírica) e
anamnésica (contemplativa), fenômeno e ideia, matéria e forma. As representações que
fazemos dos objetos e fenômenos se tornam possíveis através da autoconsciência, assim
entendida a relação do sujeito cognoscente consigo mesmo, que se estabelece como o ponto
central do idealismo alemão. A autoconsciência ocupa uma posição fundamental como fonte
espontânea de realizações transcendentais ou, em estado absoluto, como espírito.
De todo modo, seja a razão produtora do mundo ou assuma nele a figura de um
espírito que caminha sobre a história ou a natureza, ela se estabelece como “uma reflexão
totalizadora e auto-referente”, garantindo “o primado da identidade frente à diferença e a
precedência da idéia frente à matéria”118. Diante de tal postura, a compreensão acerca das
condições de verdade só seria alcançável solipsisticamente119. Nesse aspecto, a filosofia da
consciência, possui o status de prima philosophia.
Mas no afã de sepultar cosmovisões esotéricas, os iluministas dos séculos XVIII e

117
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.p. 38.
118
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.p. 39-41.
119
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São
Paulo: Loyola, 2004b.p. 11.
52

XIX acabaram por instituir a crença na Razão como substância, poder e forma infinitos. O
"sistema" do qual derivam todas as coisas, com todas as figuras míticas reduzidas ao mesmo
denominador: o sujeito ou unidade para a qual convergem racionalistas e empiristas120.
Observe-se a clássica sentença de Hegel:

Ela é substância, ou seja, é através dela que toda a realidade tem o seu ser e a sua
subsistência. Ela é poder infinito, pois a Razão não é tão impotente para produzir
apenas o ideal, a intenção, permanecendo numa existência fora da realidade - sabe-
se lá onde - como algo característico nas cabeças de umas poucas pessoas. Ela é o
conteúdo infinito de toda essência e verdade, pois não exige, como o faz a atividade
finita, a condição de materiais externos, de meios fornecidos de onde extrair-se o
alimento e objeto de sua atividade; ela supre seu próprio alimento e sua própria
referência. E ela é forma infinita, pois apenas em sua imagem e por ordem sua os
fenômenos surgem e começam a viver. 121

A "Razão", em Hegel, concentra ao mesmo tempo a própria base de existência e a


meta final absoluta, realizada "a partir da potencialidade para a realidade, da fonte interior
para a aparência exterior". Isso ocorreria em todos os aspectos da realidade seja "no universal
natural, mas também no espiritual, na história do mundo". Assim, Ideia e Razão são termos
equivalentes e que traduzem "o Verdadeiro Poder Eterno Absoluto" que se manifesta num
mundo revestido de "glória e majestade"122.
O outro aspecto do pensamento metafísico seria o conceito forte de teoria. Aqui, da
mesma forma que cada uma das religiões aponta o caminho que levaria à salvação da alma, a
filosofia também apresenta seu caminho salvífico, qual seja, a vida contemplativa. O bios
theoretikos ocuparia um lugar privilegiado de superioridade na vida ativa dos homens de
Estado, do pedagogo e do médico, possuindo um acesso privilegiado à verdade, enquanto aos
demais, isto é, a maioria, esse privilégio extraordinário, permaneceria inacessível. O teórico
estaria, assim, distanciado do contexto de interesses e da experiência cotidiana, imune aos
preconceitos e numa postura de desprezo ao materialismo e ao pragmatismo, o que é
sublimado na moderna filosofia da consciência, que acaba por produzir uma teoria que
fundamenta a si mesma, ou seja, dogmática123.
Desse modo, é possível constatar que há, em certa doutrina jurídica, um apego à
dogmática como indispensável para a necessária e desejada estabilização das relações sociais,
120
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.
ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998. p. 62.
121
HEGEL, Georg W. F.. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. Tradução de Beatriz
Sidou. 2. ed. São Paulo: Centauro. 2004.p. 53.
122
HEGEL, Georg W. F.. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. Tradução de Beatriz
Sidou. 2. ed. São Paulo: Centauro. 2004.p. 54.
123
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.p. 43.
53

prevalecendo a concepção de que “não existe sociedade sem dogma”124, na medida em que o
dogmatismo se faz presente nos campos da teoria, da ética, da religião, da axiologia e da
ciência, contribuindo para consolidar o conhecimento, às vezes de forma ingênua,
interditando as arguições e rejeitando a dúvida125. Para esse segmento, não há nenhuma
contradição ao se falar em ciência dogmática do direito126, pois esta atenderia às demandas de
decidibilidade, seja no paradigma liberal, que preza pelo dogma da completude da lei, com o
juiz se posicionando como garantidor das liberdades negativas eventualmente violadas pelo
Estado, seja no paradigma do Welfare State, com suas providenciais lacunas a serem
preenchidas pelo juiz, segundo critérios de conveniência para manter o equilíbrio social,
preservando a tradição e a autoridade127.
Segundo Tercio Sampaio Ferraz Júnior, a Ciência Dogmática do Direito teria por
objeto central o próprio ser humano em suas variadas dimensões. O homem, como portador
de necessidades, seria contemplado pelo modelo analítico em que a decidibilidade, como
relação entre um determinado conflito e uma decisão, ambos hipotéticos, permite estabelecer
parâmetros decisórios racionais. Um segundo modelo, apontado pelo autor como
hermenêutico, contempla o homem como ser cujo agir sempre emite significados, seja em
seus menores gestos. Neste caso, a ciência dogmática do direito cumpre uma tarefa
interpretativa. Outro modelo, definido pelo mesmo autor como empírico, contempla o homem
como ser dotado de funções e que se adapta à contínua transformação e evolução de seu
ambiente. Aqui, a ciência dogmática do direito cumpriria um papel explicativo do
comportamento humano, enquanto conduta controlada normativamente128.
Edgar da Mata Machado define a dogmática jurídica como a própria ciência empírica
do Direito Positivo, tendo seu início com Savigny que a identifica com o direito geral que
surge na consciência do povo. O problema é que o "povo", no pensamento de Savingy,
somente se "concretiza e se une no Estado"129. Desse modo, quando se refere a "direito do
povo", Savigny está se referindo a um direito do Estado, um direito reduzido ao texto da lei
que expressa a vontade estatal. O Direito só adquire cientificidade quando deixa de ser algo

124
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2007.p. 49.
125
SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnoseologia e criteriologia). 3. ed. São Paulo: Logos,
1958.p. 42.
126
Contradição que é apontada por Rosemiro Pereira Leal, para quem, em linhas gerais, um método, sendo
dogmático, jamais pode ser também científico. (LEAL, 2010, p. 178).
127
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 99
128
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed.
São Paulo: Atlas, 2007. p. 91-92.
129
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.
121
54

que vive apenas na consciência popular e passa a ser matéria de competência dos juristas, ou
representantes do povo, passando a experimentar o influxo simultâneo de uma dupla
vitalidade caracterizada de um lado pelo elemento político, que diz respeito à vida social do
povo, e de outro pelo elemento técnico, em que se apresenta como obra especial da ciência
manejada pelos juristas130. Apesar de rechaçar os aspectos limitadores da legislação e ser um
opositor da tendência codificadora, Savigny concebe uma ciência jurídica em que o
dogmatismo se manifesta no fato de buscar as condições necessárias ao implemento de
conquistas civilizatórias de uma sociedade civil.
Ainda na Alemanha do século XIX, Rudolf Von Jehring ganhou projeção como
grande expressão do dogmatismo jurídico, através de uma concepção mecanicista e coativista
do direito, mediante uma separação radical entre os domínios do direito e da moral. O
dogmatismo de Jehring subtrai ao jurista qualquer possibilidade de interpretação da regra de
direito. A ciência jurídica teria tão somente a atribuição de converter as regras em definições
jurídicas:

O legislador pode limitar-se a estabelecer sua vontade na forma originária, praticável


imediatamente, enquanto que a ciência, pelo contrário, não só tem a missão de
explicar e coordenar estas vontades, mas deve também reduzi-las a elementos
lógicos de seu sistema. O legislador nos oferece, por dizer assim, corpos compostos
que só lhe interessam por sua utilidade imediata; a ciência, pelo contrário,
empreende a análise e os converte em corpos simples. Ao fazer esta operação é
quando se vê que as regras em aparência heterogêneas se compõem com a ajuda dos
mesmos elementos e podem desaparecer, sendo inutilizadas desde logo; que tal
regra, que não difere de outra senão em um só ponto, basta só indicá-lo; que tal outra
se compõe de muitos elementos, cuja noção é simples, e que se deve, por
conseguinte, reuni-los para obter a regra. Com uma análise parecida se adquire o
conhecimento da verdadeira natureza das regras de direito, oferecendo a vantagem
de que a ciência, em lugar de uma multiplicidade de regras distintas obtém um
número determinado de corpos simples, por meio dos quais pode recompor, quando
quiser, cada uma das regras do direito. (tradução nossa)131

130
SAVIGNY, F. de. De la vocacion de nuestro siglo para la legislacion y la ciencia del derecho. Tradução
de Adolfo G. Posada. Buenos Aires: Editorial Atalaya, 1946. p. 47.
131
"El legislador puede limitarse a establecer su voluntad en la forma originaria, praticable inmediatamente,
mientras que la ciencia, por el contrario, no solamente tiene la misión de explicar y de coordinar estas
voluntades, sino que debe también reducirlas a elementos lógicos de su sistema. El legislador nos ofrece, por
decirlo así, cuerpos compuestos que sólo le interesan por su utilidad inmediata; la ciencia, por el contrario,
emprende el análisis y los convierte en cuerpos simples. Al hacer esta operación es cuando se ve que reglas en
apariencia heteronegéneas se componen con ayuda de los mismos elementos y pueden desaparecer, siendo
inutilizadas desde luego; que tal regla, que no difiere de otra sino en un solo punto, basta solo con indicar éste;
que tal otra se compone de muchos elementos, cuya noción es simple, y que se debe, por consiguiente, reunirlos
para obtener la regla. Con un análisis parecido se adquiere el conocimiento de la verdadera naturaleza de las
reglas del derecho, ofreciendo la ventaja de que La ciencia, en lugar de una multitud de reglas distintas obtiene
un número determinado de cuerpos simples, por medio de los que puede recomponer, cuando le plazca, cada una
de las reglas del derecho." (JHERING, 1946, p. 30-31).
55

A ciência jurídica em Jhering se traduz em dogmática analítica. Além da


decomposição e da simplificação, permite uma ampliação autopoiética do próprio direito, a
partir de suas forças intrínsecas. Desse modo, ao jurista caberia tão somente "deter-se sobre a
regra, o texto, a ratioscripta", sendo "condenado a não ir a além". Seu trabalho seria o de
sistematizar e simplesmente justificar o direito estatal, sem jamais questionar-lhe criticamente
o teor ou conteúdo. Essa concepção para Edgar da Mata Machado transformava o jurista, de
intérprete, em mero funcionário do Estado.
Ainda segundo o autor, o apogeu dogmático no século XIX se completa com o
advento da escola francesa da exegese, que consolidou o culto ao texto de origem legislativa
como a mais forte reação ao jusnaturalismo, tendo como base de todas as suas reflexões o
Código Civil de Napoleão, de 1804. Assim, a escola da exegese substituía o estudo do direito
pelo estudo dos códigos, reduzindo toda ciência jurídica ao Direito Positivo, fazendo que toda
"interpretação" tivesse como norte a "intenção do legislador". O Estado, como legislador
onipotente, recebe da burguesia a atribuição de traduzir a "vontade geral" e se consolida como
a única fonte e como fundamento único do direito, o que consagra o método dogmático como
o "método por excelência do estudo e do ensino do direito"132. Mas a codificação e a exegese
cumprem também um papel estratégico, como demonstra Machado Neto:

Querendo concentrar no legislativo, exclusivamente, a competência para legislar, os


teóricos da exegese viram-se impelidos a resumirem todo o direito na lei.
Uma razão de ordem histórico-sociológica que não será de desprezar é que o
advento desta concepção legalista coincide com o das repercussões sociais da
Revolução Industrial. Entre tais repercussões destacam-se a racionalidade da vida
econômica e a aceleração da mudança social que então se processa. E é óbvio que a
lei, para ambos os casos, é a fonte jurídica mais funcional. Nem o costume, nem a
jurisprudência ou a doutrina poderiam competir com ela em racionalidade e
prontidão.133

Essas escolas dogmáticas formaram as bases de uma concepção científica que, não
obstante ter prevalecido ao longo do século XX, se mostra insuficiente para o esclarecimento
do direito no século XXI, sobretudo quando se tem o propósito de estudá-lo segundo o
paradigma democrático. O fato é que a ciência dogmática do direito apresenta um espectro de
investigação extremamente limitado:

O objeto dessa disciplina é a regra de direito, emitida pelo poder competente, seja o
Legislativo ou o Judiciário, de origem, pois, estatal, em qualquer hipótese. Esse o

132
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.
128-132.
133
MACHADO NETO, A. L.. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 24
56

"dado real" ou o dogma com o qual trabalha o jurista. Partindo dele, de sua
observação como fenômeno, o estudioso do direito indaga, a seguir, qual o
significado da regra. Como? Pesquisando-lhe as fontes, procurando surpreender o
sentido e o alcance que lhe pretenderam dar seus autores, verificando as
interpretações por que passou, tanto através da doutrina (comentadores) como da
prática dos tribunais (jurisprudência). Capacitado da função regulamentadora atual
da regra, o jurista dogmático procura incluí-la num sistema tanto quanto possível
coerente, a fim de torná-la utilizável na solução de casos concretos.134

Como se observa, a Ciência Dogmática do Direito é instituída pelo dogma da crença


axiomática do dever-ser, pela "proibição do non liquet como norma fundamental a impor uma
completude sistemática ao direito (o tudo saber) pelos juízos ontológicos de conveniência e
equidade de construção metajurídica do decisor jurisdicional."135. No esquematismo
dogmático o decisor é dispensado de fundamentar teoricamente seus proferimentos, pois os
fundamenta apenas dogmática ou ideologicamente. Além do mais, só se reconhece o direito
de interpretação a alguns privilegiados e isso não se coaduna com o Estado Democrático de
Direito, em que deve prevalecer um direito igual de interpretação para todos ao invés de um
direito de igual interpretação136.

2.2 Acusatoriedade e Inquisitoriedade: Um dualismo Metafísico

Expostos os caracteres acima, vê-se que a metafísica e o idealismo transcendental,


transpostos para o plano do Direito,acabaram por permitir tanto as justificações jusnaturalistas
quanto as juspositivistas, que na modernidade se constituíram como os dois grandes pilares da
ciência jurídica.
Também é possível afirmar que ao pensamento metafísico e ao idealismo
transcendental pode ser atribuída a especial atração que a teoria do Direito, de modo geral,
possui pelo binarismo, gerando dualidades e dicotomias dogmáticas, como é o caso dos
pretensos sistemas da acusatoriedade e da inquisitoriedade. Estes sistemas travam há séculos
um embate que tem servido, antes de tudo, à instrumentalização do Direito Processual Penal.

134
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.
133.
135
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 590.
136
Neste sentido é que Rosemiro Pereira Leal desenvolve o conceito de Isomenia: “A isomenia, em minha teoria
neoinstitucionalista, que é instituto operacional do princípio da legalidade, define-se pela oportunidade de
colocar todos os destinatários normativos (intérpretes) em simétrica posição ante idêntico referente lógico-
jurídico construtivo, aplicativo, modificativo ou extintivo do sistema jurídico (LEIS). É o devido processo, no
sentido da teoria neoinstitucionalista, que é o referente lógico-jurídico (interpretante) a balizar os limites
hermenêuticos de um sistema jurídico de “Estado Democrático de Direito” em concepções de uma sociedade
aberta”. (LEAL, 2010, p. 271).
57

O fato é que, mesmo com o acentuado desenvolvimento das aptidões humanas, a utilização do
raciocínio binário parece inexorável:

Em outras palavras, para nós, seres humanos, para cada caso vertente sempre
existem duas diferentes e únicas hipóteses. Assim, quando qualquer questionamento
nos é formulado, a resposta naturalmente limita-se a uma afirmativa ou a uma
negativa. De igual modo, quando um engenheiro eletricista nos apresenta um projeto
de instalação elétrica, as ligações somente podem ser feitas em série ou em paralelo.
Nesse sentido, há o branco e o preto, o claro e o escuro, o belo e o feio, o alto e o
baixo etc.
Tão profundas são as raízes binárias de nosso raciocínio que a própria linguagem
empregada na informática obedece a esta virtual limitação humana: o zero e o um.137

Reis Friede, ao afirmar que o homem sempre tentou escapar do binarismo, demonstra
certo desalento ao constatar que uma terceira hipótese, quando existente, é sempre uma
combinação de duas hipóteses básicas e antagônicas, "não correspondendo, de nenhum modo,
a uma autêntica e genuína hipótese alternativa, capaz de superar a sinérgica restrição
binária"138.
O que se pretende com este trabalho é demonstrar que a processualidade democrática
constitucionalmente instituída, não é "mera combinação" dos sistemas acusatório e
inquisitório139 e já fornece as bases teóricas que permitirão a superação desse dualismo
desprovido de sentido na pós-modernidade. Isso porque a evolução da ciência jurídica ocorre
cada vez mais mediante a "escolha racional entre teorias competitivas"140, numa perspectiva
epistemológica em que a superação de teorias eventualmente consideradas inadequadas não é
mais fruto do simples acolhimento do raciocínio binário, no qual as conclusões sobre
determinado modo de pensar devem necessariamente levar à verdade ou à falsidade.
Écom tal objetivo que são adotadas, neste trabalho, concepções que buscam superar a
visão idealista de epistemologia como teoria do conhecimento capaz de produzir um juízo de

137
FRIEDE, Reis. Ciência do direito, norma, interpretação e hermenêutica jurídica. 2. Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1999.p. 20.
138
FRIEDE, Reis. Ciência do direito, norma, interpretação e hermenêutica jurídica. 2. Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1999.p. 21.
139
Talvez, na atualidade, fosse mais adequado usar o termo princípio para designar acusatoriedadee
inquisitoriedade, sobretudo diante da contraposição teórica entre a teoria dos sistemas de Luhmann e a teoria
discursiva de Habermas. A primeira preconiza uma complexificação social fundada na existência de sistemas
autopoiéticos ou operacionalmente autônomos que resulta na fragmentação do código moral. A segunda se funda
na distinção entre sistema e "mundo da vida", em que o sistema seria espaço de intermediação do agir
instrumental e estratégico e o "mundo da vida" como o horizonte comunicativo em que os "falantes" buscariam o
entendimento subjetivo de cunho universalizante. Assim, como será demonstrado mais adiante, nem
acusatoriedade, nem inquisitoriedade, numa perspectiva democrática, possuem status sistemático. Talvez
pudessem ser concebidos tão somente como princípios, pois os seus fundamentos e conteúdos devem ser
constantemente interrogados pela via processual. (NEVES, 2006, p. 123-124).
140
POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Ed. Universidade de
Brasília, 1972, p. 243.
58

certeza que se instaura como "uma crença verdadeira justificada"141 ou como verdade
imutável apodítica (episteme-aletheia do pensamento grego)142. Toda a pesquisa será
perpassada pelos conteúdos oriundos da epistemologia quadripartite de Rosemiro Pereira
Leal143 e da epistemologia evolucionária de Karl Popper144, que se apresentam como aportes
teóricos de especial interesse para que o Processo Penal possa se desvencilhar do debate
dogmatizante entre acusatoriedade e inquisitoriedade,ingressando assim na cientificidade do
paradigma democrático.
Neste trabalho, permeado pela abordagem acerca do embate dogmático entre
acusatoriedadee inquisitoriedadeno Direito Processual Penal, o que se busca é demonstrar que
esse tipo de confronto na pós-modernidade se apresenta inócuo, e que a Teoria Geral do
Processo já fornece as bases epistemológicas para sua superação pela instituição
constitucional prototípica do Processo de Conhecimento oudo Devido Processo
Constitucional. O dualismo se expressa pela contraposição de conteúdos que se afastam e se
repelem com fundamento na impossibilidade de convivência e interação entre sistemas e
conceitos, instaurando sempre uma crise e impondo uma escolha, que por sua vez, só
aprofunda a separação, pois “há em todo ato de escolha, uma separação, porque algo é
preterido. Onde há uma preferência, há uma preterição”145. Para Kelsen, o dualismo obscurece
a compreensão humana justamente porque separa radicalmente os conteúdos do saber:

O dualismo metafísico do “aqui agora” e do “além”, deste mundo e de outro mundo,


da experiência e da transcendência, conduz à doutrina epistemológica, amplamente
aceita, conhecida como teoria da imagem. Ela declara que, essencialmente, a
cognição humana apenas fornece, como um espelho, uma imagem das coisas tal
como elas realmente “são”, tal como “são em si mesmas”. Por causa da
impropriedade do material usado no espelho (os sentidos meramente humanos, a
razão meramente humana), essa é uma imagem inadequada, vaga, daquela realidade
ou verdade que nunca está ao alcance do homem. A importância decisiva desta
comparação da cognição humana com um espelho repousa no fato de que o mundo
verdadeiro e real está além do espelho, isto é, além da cognição humana, e que, seja
o que for que seja compreendido em sua moldura – o mundo tal como o homem o
experimenta com os seus sentidos e sua razão -, é apenas aparência, apenas o pálido
reflexo de um mundo superior, transcendente. 146

141
GRAYLING, Anthony Clifford . Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de
filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 40.
142
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 170.
143
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012. p. 32.
144
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 72.
145
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 51.
146
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 600.
59

Na filosofia de Kant, o dualismo se apresenta na própria estrutura do conhecimento


que pode ser empírico ou racional. A filosofia empírica é aquela que se baseia nos princípios
da experiência e a filosofia racional, em princípios a priori, razão pela qual é denominada
Metafísica. No entanto, isso não quer dizer que as cogitações metafísicas fiquem restritas a
instâncias transdencentes147. Kant adota a concepção grega que divide as ciências em três
segmentos: a Lógica, a Física e a Ética. Acrescenta, contudo, que enquanto a Lógica só se
apresenta pelo aspecto formal ou empírico, a Física e a Ética possuem uma parte empírica e
outra racional, donde se conclui que é possível falar na existência de uma Metafísica da
Natureza e de uma Metafísica dos Costumes148. Nesse sistema, a Metafísica dos Costumes vai
designar a Ética racional, que é onde se insere o Direito.
Esse tipo de estrutura dicotômica permeia a obra de Kant e vai produzir clivagens
como Moralidade/Legalidade, Legislação Interna/Legislação Externa, Direito Público/Direito
Privado, Liberdade Interna/Liberdade Externa, Autonomia/Heteronomia, Imperativos
Categóricos/Imperativos Hipotéticos149. O Direito não escapa desse tipo de influência, pois as
dicotomias, os dualismos e as contraposições se mostraram de grande utilidade para a
consolidação da Ciência Dogmática do Direito,tanto no paradigma liberal quanto no
paradigma do Welfare State, tendo como base a concepção de que, ou se adota o Estado das
Leis (Gesetzstaat) ou o Estado dos Juízes (Richterstaat)150. Ou se mantém o protagonismo do
legislador ou o protagonismo da magistratura, numa batalha de viés dogmático que vem
travando a consolidação e o desenvolvimento do Direito democrático, pois ainda persiste no
século XXI, como demonstra Rosemiro Pereira Leal:

O desaviso dos processualistas do novo milênio é o mesmo registrado nos séculos


passados: admite-se um direito produzido, atuado, modificado e extinto, segundo a
linguagem natural dos seus praticantes que, destinatários de uma Ciência Dogmática
do Direito, repassam aos especialistas (doutrinadores) a tarefa de explicitarem quais
dogmas devam apofanticamente prevalecer por uma nomenclatura categoremática
que, embalados nas asas de uma tópica e retórica nadificantes e sedutoras, são

147
“Não é a Metafísica um penetrar num mundo onde devemos nos despojar de tôdos os instrumentos dêste, e que,
neste, permita-nos obter conhecimentos. O modo de raciocinar metafísico é o mesmo que o do cientista.
E este, quando medita sôbre as coisas do mundo físico, tange sempre, quer queira ou não, o terreno da metafísica
que o cerca, exigente a solicitar-lhe soluções, que êle muitas vezes teme afrontar, retirando-se a uma posição
agnóstica, que é uma verdadeira renúncia à dignidade do saber humano.
Basta considerarmos a situação do físico ante as teorias sôbre o átomo que muitas vezes são um desafio à
inteligibilidade, como a acção à distância, a substancialidade da energia atômica, as contradições entre as ondas e
corpúsculos, e muitas outras, que enleiam o cientista em especulações metafísicas, porque já tange objetos supra-
sensíveis, ultra-experimetais, ou metempíricos, como se costuma dizer hoje” (SANTOS, 1958, p. 24-25)
148
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 2007. p. 13-14.
149
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. São
Paulo: Editora Mandarim, 2000. p. 79-104.
150
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 107.
60

insuscetíveis de arguição quanto à sua validade e legitimidade paradigmáticas a não


ser pelo confronto com outros dogmas jurisprudencialmente assentados por tribunais
excelsos.151

As incursões feitas no curso desta pesquisa talvez sejam insuficientes para alcançar o
ponto de reflexão que possibilite a superação do dualismo metafísico expressado no Processo
Penalpela contraposição entre acusatoriedade e inquisitoriedade, pelo simples fato de que o
conhecimento não consegue se desvencilhar da postura dualística. Esse é um desafio
epistemológico que se apresenta para a ciência jurídica.
Kelsen vai demonstrar que a superação das cosmovisões míticas dos povos
primitivos se dá por um dualismo metafísico-religioso variando apenas o grau de adesão à
divindade (ideia e justiça) ou ao empirismo (experiência jurídica), bem como a tentativa de
conciliação entre os opostos. O primeiro tipo é chamado de dualismo pessimista, pois o
homem deposita todo o seu destino sob os desígnios da divindade, uma vez que tem uma
péssima consciência de si próprio. O segundo tipo, chamado otimista, decorre de uma
consciência exaltada e autosuficiente. O terceiro tipo se caracteriza pela tentativa de
conciliação entre os extremos, por uma consciência cautelosa que não despreza as posturas
precedentes, e, por essa razão, não escapa do dualismo metafísico152.
Essa concepção do conhecimento humano apresenta uma influência perceptível nas
mais variadas espécies de contraposições existentes na Ciência Jurídica. As objeções,
contudo, são muitas e antigas. Todo o idealismo transcendental, a pretexto de rechaçar a
Metafísica, termina por criar uma nova forma de Metafísica calcada em uma noção de dever
abstrata e sem conteúdo definido, pois fundada nas formas puras do entendimento, o que
resulta no abandono do Direito ao arbítrio e à consciência individual, que assumem um
aspecto totalizante, desprezando as especificidades da observação empírica153.

2.3 Repercussões do idealismo alemão na formação das teorias da actio e suas


implicações nos sistemas acusatório-inquisitório

Foi no ambiente da Ciência Dogmática do Direito que os teóricos empreenderam


uma revisitação sobre a actio, com grandes repercussões para a ciência do processo. No
âmbito do Processo Penal, quando se pesquisa acusatoriedade e inquisitoriedade uma incursão
151
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
Horizonte: Arraes, 2013. p. 18.
152
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 607.
153
LESSA, Pedro. Estudos de filosofia do direito. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2002.p. 277.
61

sobre as tentativas de estabilizar a teoria da actio se mostra imprescindível. É um tema


relevante para que se possa aprofundar o estudo dessa histórica contraposição que ainda
persiste na contemporaneidade, impedindo a passagem do Processo Penal para a pós-
modernidade científica e sua consequente adequação ao paradigma da processualidade
democrática.
A actio romana era um dos meios de se obter em juízo a satisfação de um direito. O
outro era a vindicatio. Enquanto a actio se destinava à pretensão de direito obrigacional, a
reivindicação (vindicatio) tinha como objeto um direito real154. Era o direito do cidadão de
pleitear em juízo tanto o que lhe era devido (actio autem nihilaliud est quamius perseguendi
in iudicio quod sib debetur) quanto o que era seu (vel quod suum est), o que provocava uma
confusão conceitual com o direito material. A ação era entendida como uma face do direito
material ou como o direito material violado em estado de reação155. No século XIX, essa
concepção imanentista, fortemente influenciada pelo sistema romano das legis actiones, ainda
era adotada por Savigny156.
Para esse autor, a reclamação exercitada contra outra pessoa a respeito de um
determinado objeto faz surgir uma nova relação obrigacional entre demandante e demandado,
desde que a parte lesada exerça o direito de ação. Como se vê, o direito de ação surge do não
cumprimento de uma obrigação por parte de um devedor. Desse modo, a ação é definida
como o próprio direito lesado revestido de uma forma especial. Savigny aborda as diversas
concepções que o termo actio assume no Direito Romano para concluir, com base em
Ulpiano, que o termo deve abranger tanto as actio in personam como as actio in
rem,abrigando as relações decorrentes das violações de direitos obrigacionais bem como as de
direitos reais. Para este segundo tipo, Savigny demonstra que o jurisconsulto romano
Papiniano empregava o termo petitio ao mesmo tempo que, para as duas espécies, empregava
o termo persecutio.
O minucioso relato de Savigny aponta ainda outras variações, como no caso em que
o termo ação é empregado para designar o ato escrito que dá início ao debate judicial, ou seja:
a petição inicial. Cita também outro aspecto da concepção de Ulpiano que distingue a actio da
persecutio, o qual constituiria uma espécie de extraordinaria cognitio que se desenvolveria
sem judex. Discorre também sobre a definição de Paulo, para quem o termo ação abrangeria a

154
SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,
1997.p. 64-65.
155
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 159-160.
156
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012. p. 134.
62

persecutio, sem esquecer a acepção defendida por Celso, para quem o termo possui um
sentido mais restrito, designando tão somente as ações pessoais157. Mas a conclusão de
Savigny é no sentido de que essas variações terminológicas não foram suficientes para afastar
o interesse pelo estudo da actio, que mesmo no período formular manteve sua relevância, pois
permaneceu sendo o ato pelo qual se iniciava o procedimento para a obtenção da fórmula.
Desse modo, seguindo a linha epistemológica de Savingy, seu grande precursor 158, a
Ciência Dogmática do Direito se consolida ao empreender a codificação jurídica na
Alemanha, tendo como base as Pandectas de Justiniano. Neste ambiente, vai se estabelecer
uma considerável polêmica sobre o tema, notadamente nos anos dedicados à elaboração do
BGB, o Código de Processo Civil:

Na Alemanha, adotavam-se duas terminologias para a tutela dos direitos subjetivos,


a actio (que rememorava o direito de o particular pedir ao magistrado a fórmula em
que a proteção estava condensada, e esse direito ao formulário era a actio) e a Klage,
ou Klagerecht – o direito de demanda, de querela, de queixa. A actio, que
WINDSCHEID quis substituir por pretensão (Anspruch) significava o direito de se
exigir de alguém uma ação ou uma omissão. A Klage não era essa pretensão, mas o
direito de ter a tutela jurisdicional do Estado, assim, a actio era dirigida contra o
obrigado, e a Klage, contra o Estado.159

Uma célebre polêmica entre Windscheid e Müther, travada em 1856, contribuiu para
romper com a concepção imanentista160. Windscheid demonstrou inicialmente que no direito
romano o indivíduo não possuía um direito, e sim uma actio que consistia na possibilidade de
fazer valer judicialmente uma obrigação violada. A actio era inerente ao direito obrigacional.
A terminologia klagerecht deveria então ser utilizada para designar o direito exercido contra o
Estado com o objetivo de provocar o exercício da atividade jurisdicional. Müther procurou
refutar Windscheid afirmando que o sistema romano era, sim, um sistema de direitos
materiais, e que a actio era exercida quando o ofendido requeria a fórmula ao pretor. Dessa
forma, já seria possível vislumbrar no direito romano a klagerecht. Essa polêmica serviu para
estabelecer a autonomia do direito de ação com relação ao direito material e foi importante

157
SAVIGNY, F. de. Sistema del derecho romano actual. Tradução de do alemão M. Ch. Genoux; Versão para
o espanhol Jacinto Mesía y Manuel Poley. Madrid: F. Góngora y Compañia, Editores, 1879. t.4. p. 10-13
158
Este reconhecimento é feito por Carlos Cossio, para quem Savigny foi responsável por uma definição
ontológica do Direito Positivo ao afirmar que tal expressão seria mesmo pleonástica, pois o Direito só pode ser
positivo na medida em que se manifesta como experiência. Nessa perspectiva, se torna objeto da ciência jurídica
e faz com que o conhecimento científico acerca do direito só seja possível pelo estudo da experiência jurídica.
(COSSIO, 1954, p. 22).
159
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 134-
135.
160
GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Tradução de Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Editorial
Labor, 1936a. p. 99.
63

para a publicização do Direito Processual161.


O desenvolvimento da teoria da ação vai contar com uma singular contribuição de
outro importante autor alemão, Adolf Wach, que não obstante reconhecer a ação como direito
subjetivo, público e autônomo, acresce que se trata de um direito concreto à prestação
jurisdicional, cuja carga recai sobre o demandado que deverá suportá-la não diante do
demandante, mas diante do Estado que afirma assim a sua soberania, por um direito judiciário
de caráter material162. Só teria ação aquele que fosse portador de “um direito a uma sentença
favorável” num claro “retrocesso às concepções de Windscheid e Müther, de vez que não
seria mesmo possível saber se alguém teria alguma razão em face de direitos, antes mesmo de
adentrar o juízo”163.
Chiovenda, na clássica preleção L’azione nel sistema dei diritti, proferida em 03 de
fevereiro de 1903, na Universidade de Bolonha164, ao apresentar a ação como um direito
potestativo que não poderia ser recusado pelo Estado, o fez afirmando se tratar de um direito
concreto a uma sentença favorável165. Tal concepção provoca, nas palavras de Fazzalari, “um
engodo pegajoso”, pois introduz “uma inexistente e inútil duplicação da posição subjetiva
processual consistente na faculdade de instaurar o processo”, fundada na ideia de
concretude166. O que se conclui é que a potestade, em Chiovenda, consistia no direito do autor
submeter o réu à “vontade concreta da lei” e, assim, a ação voltava às suas origens
privatísticas, pois nessa concepção a ação é dirigida contra o réu e não contra o Estado, como
haviam assentado os autonomistas167.
Essa ambiguidade se reflete também na concepção de ação como forma típica do
direito de petição desenvolvida por Couture. Aqui, a ação civil é entendida como
manifestação, frente ao judiciário, do direito constitucional genérico de peticionar junto aos
órgãos estatais, garantia fundamental que comparece em todas as constituições escritas, desde
o Bill of rights, de 1689. A concretude aparece na formulação de Couture quando afirma que,
ao contrário do parlamento, que pode simplesmente ignorá-la, o judiciário não pode se abster

161
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 161-164.
162
GOLDSCHMIDT, James. Teoria general del proceso.Barcelona: Editorial Labor, 1936b. p. 96
163
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 134.
164
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 133
165
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 135.
166
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 503.
167
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral do processo civil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. p. 123.
64

de decidir sobre a petição:

Mas quando o direito de petição se exerce ante o Poder Judiciário, sob a forma da
ação civil, esse poder jurídico não só resulta virtualmente coativo para o demandado,
que tem de comparecer para defender-se, se não deseja sofrer as consequências
prejudiciais da ficta confessio, mas também resulta coativo para o magistrado que
deve expedir uma ou outra forma de pronunciamento.
Este dever de pronunciamento por parte do juiz, é de tal maneira rigoroso ante o
exercício da ação civil, que sua omissão configura causa de responsabilidade
judicial. (tradução nossa)168

De todo modo, já havia se assentado o entendimento de que a ação direta, antes


exercida pelo titular do direito material violado, fora substituída pela ação de direito
processual, numa clara evolução jurídico-científica de modo a resguardar justamente “quem
não pode agir” diretamente, como defendia Pekelis169. Assim, não é o particular que age em
juízo, mas o Estado que age em nome do particular170. Por esta razão, ainda que tenha
movimentado a jurisdição de modo improcedente, o cidadão terá exercido o direito de ação,
conclusão a que chegaram o alemão Heinrich Degenkolb e o húngaro Plósz, em 1877171, que
o definiram como direito público, subjetivo, autônomo, porém abstrato, pois mesmo que se
comprove não existir o direito material alegado, o direito de ação terá sido exercido em sua
plenitude, bastando que o pretenso direito material tenha se manifestado na consciência do
autor, ainda que, como mera abstração172.
Mas a teoria da actio que obteve maior projeção no direito brasileiro foi a teoria
eclética de Enrico Tullio Liebman. Ao mesmo tempo em que reconhecia a ação como direito
autônomo, submetia seu exercício a condições estruturadas sob um trinômio formado pela
legitimidade de parte, o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido173. Pela teoria
eclética a ação nada mais é do que o direito a uma sentença de mérito, tanto que a parte que

168
“Pero cuando el derecho de petición se ejerce ante el Poder Judicial, bajo la forma de acción civil, ese poder
jurídico no sólo resulta virtualmente coactivo para el demandado, que ha de comparecer a defenderse, si no desea
sufrir las consecuencias perjudiciales de la ficta confessio, sino que también resulta coactivo para el magistrado
que debe expedirse en una u outra forma acerca del pronunciamiento. Este deber de pronunciamento de parte del
juez, es de tal manera riguroso ante el ejercicio de la acción civil, que su omisión configura cuasa de
responsabilidad judicial” (COUTURE, 2007, p. 64).
169
SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,
1997.p. 169.
170
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 135.
171
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 58
172
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 165.
173
Liebman viveu e lecionou no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e em razão de sua forte influência sobre
os processualistas brasileiros sua teoria eclética foi adotada expressamente pela legislação do país, conforme é
possível constatar nos artigos 3º e 267, VI do Código de Processo Civil e também o art. 395, II do Código de
Processo Penal, incluído pela Lei 11.719/2008, o que demonstra a persistência da influência Liebmaniana.
65

não atendesse a todas as condições seria considerada “carente de ação”, sendo decidido pela
extinção do processo sem resolução de mérito174. O processo e a atividade jurisdicional
estariam assim subordinados ao atendimento das condições da ação, que, na doutrina de
Calamandrei, apesar de apresentarem a mesma configuração, são chamadas de requisitos
constitutivos para o exercício de um direito subjetivo, autônomo, porém concreto, pois visa
uma providência jurisdicional favorável175.
Mas todo esse debate em torno do direito de ação pode parecer inútil, sobretudo
diante dos avanços teóricos proporcionados pelo processo constitucional. Mesmo do ponto de
vista do direito romano é possível afirmar que os romanos não se preocuparam em conceituar
a faculdade ou o direito de estar em juízo como autor176. No entanto, a revisão do conceito de
ação vai se mostrar de grande relevância para a ciência processual no paradigma democrático.
Nesse sentido, é digna de nota a construção teórica desenvolvida por Elio Fazzalari:

FAZZALARI faz a revisão do conceito de ação tomando como critério a legitimação


para agir, que não pode ser concebida apenas ao autor, mas se estende a todos os
sujeitos do processo, o que é perfeitamente lógico, pois sem a legitimação para agir
não se poderia compreender o fundamento jurídico de seus atos.
Entretanto, a legitimação para agir, trabalhada pelo Direito Processual Civil, é
espécie do gênero legitimação, que é um conceito geral do Direito, e é por esta base
que desenvolve o argumento no qual procede ao reexame da ação.
A legitimação em gênero é contemplada por FAZZALARI sob um duplo aspecto: o
da “situação legitimante” e da “situação legitimada”.177

A expressão legitimação para agir, em Fazzalari, é aplicada também aos órgãos


jurisdicionais que, pela investidura, são considerados legítimos a praticar atos processuais178.
Com relação às partes, Fazzalari desenvolve os conceitos de “situação legitimante” e
“situação legitimada”. Por estes dois ângulos o autor estuda a legitimação para agir, no plano
da teoria geral179. Legitimação para agir é, então, a legitimação para o processo, que consiste
em estabelecer quais sujeitos podem ou devem cumprir a série de atos de um processo em
concreto.
Primeiramente, deve-se definir a “situação legitimante”, que vem a ser aquela em
que se define qual poder, faculdade ou dever pode ser concretamente conferido a um sujeito
174
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 59.
175
CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.
Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 216-217.
176
SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,
1997.p. 166.
177
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 144
178
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006.p. 368.
179
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 369.
66

visando cumprir um determinado ato. Já a “situação legitimada” é o conteúdo da legitimação,


ou seja, o poder, a faculdade ou dever que cabe (se põe como expectativa) ao sujeito
identificado pela “situação legitimante”. É sobre o conceito de “situação legitimada” que se
estrutura a teoria da ação de Fazzalari, pois rompe com a concepção de que no processo
existem sujeitos ativos e passivos, uma vez que não só os juízes são protagonistas do
processo, e sim todos os sujeitos estão “legitimados” a praticar os atos preparatórios do
provimento:

Tal série de atos constitui, de fato, o conteúdo da sua “legitimação para agir”, a
“situação legitimada” de cada um.
De outro lado, é óbvio constatar que as séries de atos que conduzem cada uma a um
dos participantes se implicam mutuamente: trata-se das séries relativas aos
contraditores, ou mesmo das séries relativas ao juiz ou a um seu auxiliar. A ordem
que se determina para a sucessão e mútua implicação dos atos dos vários
protagonistas (de uma parte, de outra, do juiz, do auxiliar, etc.) constitui justamente
o “processo”.180

Assim sendo, o conceito de parte passa a abranger todos os destinatários do


provimento. Nesse aspecto, deve ser ressaltado que em caso de decisão desfavorável, mesmo
que a medida requerida pelo autor não possa ser imposta, não se pode negar que o provimento
final, como ato imperativo, de um modo ou de outro, afeta as partes mesmo quando se
constata que não houve lesão e, portanto, “o universum ius não pode sofrer perturbação”181.
Como se nota, a verificação da “situação legitimante” e da “situação legitimada” é
que se submete a condições e atendimento de elementos configurativos e estruturais de
formação182. Desde modo, é possível concluir que a ação não se restringe àquele que promove
ou encaminha a pretensão em juízo:

Ao contrário, do iter processual, como positivamente disciplinado, é fácil e justo


deduzir que a situação legitimada do autor não se exaure na solitária faculdade do
sujeito de pôr em movimento o processo, mas consiste justamente – a olhá-la do
ângulo das posições subjetivas – em uma série de faculdades, poderes e deveres, os
quantos a lei assinale ao sujeito pela sua conduta, ao longo de todo o curso do
processo, até a sentença que acolhe ou refuta a demanda e, sem a realização dela –
isto é, sem o desenvolvimento do processo -, não se chega ao provimento do juiz,
que acolhe ou rejeita demanda.183

180
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 500.
181
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 147
182
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 135-137.
183
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 504.
67

Assim, se a ação se configura “como a sequência das posições processuais que


cabem à parte”184 é possível concluir que não se define mais como facultas agendi, apoiada
ou não em lei processual, ou mesmo como ius agendi, instituído pelo direito positivo ou
natural, mas sim como procedimento, o que leva Rosemiro Pereira Leal a ressemantizar os
conceitos de direito de ação e direito de agir. Aquele como o direito incondicionado de
movimentar a jurisdição e este como “o direito de estar no procedimento apurável após a
instauração do procedimento pela existência e observância de pressupostos e condições que a
lei estabelecer”185. Trata-se de uma importante contribuição epistemológica para afastar a
polissemia do termo, ora visto como direito (quando se diz que o autor é carente de ação), ora
como pretensão (o direito válido em nome do qual se promove a demanda), ou então, como
faculdade de provocar a atividade jurisdicional (poder jurídico individual de demandar)186.
Todo esse percurso teórico repercutirá no plano do Processo Penal. Definir e
explicitar os contornos teóricos da ação penal é tarefa que não escapou a perplexidades, tendo
sido influenciada pelo debate do século XIX e que resultou num sincretismo que a
apresentava como direito concreto-abstrato, como observa João Porto Silvério Júnior:

A ação penal considerada em si mesma, qualquer que seja a sua natureza jurídica,
apresenta-se então, por uma parte, como entidade jurídica invocadora da jurisdição,
e por outra, como atividade processual, a atuar concretamente contra o autor de um
delito. Dada a natureza pública dos interesses em jogo, e salvo casos excepcionais, o
Estado brasileiro instituiu o Ministério Público como órgão titular da ação penal
pública. Mediante a atuação desse poder de acusar surge o direito de defesa,
constitucionalmente previsto, para possibilitar que o outro órgão do Estado – o juiz –
que imparcialmente decida, em definitivo, se num caso concreto e particular alguém
mereça a pena como autor de um delito. 187

A doutrina processual penal também sofreu forte influência de Liebman, como é


possível observar na obra de Rogério Lauria Tucci que apresenta o direito de ação como um
direito subjetivo de caráter material, atribuível a qualquer membro da coletividade, tendo na
outra ponta dessa relação jurídica o Estado. Esse direito se manifesta pela ação propriamente
dita, definida como um direito subjetivo de caráter processual188. Isso porque as relações
jurídicas se desenvolvem tanto entre os particulares, como entre estes e o Estado, que por sua
vez pode atuar como um particular no caso em que exerce o iure gestionis, ao buscar os bens
184
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 505.
185
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012. p. 133.
186
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007. p. 49-50.
187
SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004.p. 42.
188
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003.p. 76.
68

necessários à objetivação de seus fins, ou como autoridade, exercendo iure imperii, o que
justifica o fato de que até mesmo nos regimes autoritários, em diversas relações, o Estado se
submete aos tribunais ordinários189.
Com isso, mesmo que se procure afirmar a indistinção ontológica entre ação civil e
ação penal, nesta é possível encontrar peculiaridades que vão além da matéria jurídica que
constitui seu objeto. A primeira grande distinção diz respeito ao fato de que seu titular não é o
titular do direito de punir (ius puniendi), pois “tanto o Ministério Público quanto o particular
são os titulares do direito de ação, ou seja, do ius perseguendi in judicio; porém, nem um nem
outro são titulares do direito de punir (ius puniendi)”190.
Na modernidade, a actio penal, por obra de concepções marcadamente idealistas, não
conseguiu se desvencilhar “do preconceito estabelecido pelos próprios feitores da
“concretude”, segundo os quais a ação consistiria e se exauriria na possibilidade de colocar
em movimento o processo”191. Trata-se de uma perspectiva que leva em conta tão somente a
atividade do autor, justificando assim, o advento da acusatoriedade moderna calcada nos
princípios nemo iudex sine actore, ne procedat iudex ex officio ou nullum iudicio sine
actore192. O autor penal passa a ser considerado agente livre e capaz de afetar o status
dignitatis de qualquer indivíduo amparado tão somente por indícios suficientes de autoria
(fumus boni iuris)193.
Trata-se de um ambiente científico propício ao surgimento dos tipos-ideais e com o
Processo Penal não foi diferente. Como aponta Mauro Fonseca Andrade, os sistemas
acusatório, inquisitório e misto não apresentam maiores distinções no plano empírico e por tal
razão não devem ser considerados sistemas puros, mas tão somente, tipos-ideais, pois são
“conceitos genéricos, abstratos e irreais” e como tal “costumam ser utilizados como modelos
para a reforma ou construção de novos ordenamentos”194. Os tipos-ideais são assim
identificados por Max Weber:

Trata-se de um quadro de pensamento, não da realidade histórica, e muito menos da


realidade autêntica; não serve de esquema em que possa incluir a realidade à
maneira exemplar. Tem, antes, o significado de um conceito limite, puramente ideal
em relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de
189
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas:
Bookseller, 1998. v.1.p. 20.
190
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 108
191
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006.p. 504.
192
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 173.
193
SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004. p. 47.
194
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
44.
69

alguns dos seus elementos importantes, e com o qual esta é comparada. Tais
conceitos são configurações na quais construímos relações, por meio da utilização
da categoria de possibilidade objetiva, que a nossa imaginação, formada e orientada
segundo a realidade, julga adequadas.195

A actio penal, como marco distintivo entre os sistemas acusatório e inquisitório,


acaba atuando como conceito típico-ideal, pois visa afastar as contradições que caracterizaram
toda a história processual por meio do programa de uma nova ciência com forte tendência à
abstração e à generalidade “formada por conceitos e regras lógicas e universais, que se
manifestava, já em seu nascedouro contra os particularismos da análise de cada
procedimento.”196.

2.4 O caráter concreto da actio como pressuposto de liberdade individual em Kelsen e a


atividade punitiva (repressiva) do Estado

Talvez o mais importante empreendimento teórico, visando a dessacralização e a


desmistificação do Direito, tenha sido o realizado por Kelsen com sua Teoria Pura do Direito.
Para Edgar da Mata Machado, “a Teoria Geral do Direito encontra na obra de Hans Kelsen,
qualquer que seja o juízo crítico que se lhe faça, o maior e mais poderoso impulso de
elaboração”197, na medida em que buscou explicar o que é e como é o Direito, deixando claro
que não visava qualquer especulação sobre como deveria ser o Direito, pois sua teoria se
propunha a isolar o Direito Positivo das mais variadas ideologias que compunham o
jusnaturalismo198. A Teoria Pura do Direito é, por assim dizer, anti-ideológica e positivista.
Ao distinguir a regra de Direito da lei da natureza, Kelsen chama a atenção para a
distinção no âmbito dos princípios que regem os enunciados descritivos dessas duas ciências.
Pela lei da natureza se “A” é, “B” é (ou será), enquanto que no âmbito das leis jurídicas se
“A” é, “B” deve ser. Isso implica em reconhecer que a lei da natureza descreve seus objetos
pelo princípio da causalidade,ao passo que a ciência do Direito descreve seus objetos pelo
princípio da imputabilidade ou da normatividade199. Afirma-se, desse modo, a distinção entre

195
WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. 4. ed. São Paulo: Cortez
Editora, 2001.p. 140. p.I..
196
SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,
1997.p. 162.
197
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995.p.
147.
198
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.
148.
199
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 64.
70

validade e eficácia jurídica, pois, para ser considerada válida, uma norma não precisa ser
necessariamente observada concretamente pelos indivíduos, uma vez que exprime um
comando “despsicologizado”, ou seja, que independe da vontade individual de cumpri-lo200.
Neste ponto, vale lembrar a abordagem de Couture. Após recordar que a norma
jurídica pode ser cumprida espontaneamente (na medida em que a liberdade humana
pressupõe a realização de condutas juridicamente impostas ou não) ou coativamente, ressalta
que a coerção externa ao agente descumpridor seria a especificidade que difere a norma
jurídica da norma de ordem moral (no dizer de Couture, desprovida de formas materiais de
realização coativa). Por essa razão, submete a fórmula kelseniana a um acréscimo teórico de
grande importância ao concluir que, nenhuma coerção pode ser aplicada sem o prévio
processo. Em síntese: "Dado A deve ser B; e se não for deve ser C; prévio P (processo)"201.
O prévio processo não aparece no discurso de aplicação kelseniano, tampouco no
chamado discurso de justificação, no qual se dedica a uma teoria hierarquizante e que não
esclarece como se poderia constituir democraticamente o direito, quando da passagem de
conteúdos jurídicos da mens legislatoris para a mens legis. Chega a afirmar que um sistema
legislativo deve ser dotado de estágios de atenuação legítima do princípio democrático202
como é o caso do sistema bicameral nos estados federados, onde uma câmara se destina a
representar o povo e outra se destina a se contrapor a esta representação.
Sobre a atuação de um devido processo203 na elaboração parlamentar da lei, não se vê
uma clara referência na obra de Kelsen. Em determinada passagem, chega mesmo a afirmar
que "o modo como a ideia de uma regra geral vem a existir é uma questão que não temos de
responder aqui"204, de maneira a exprimir que a existência ou não existência de direitos
pressupõe sempre uma norma geral e generalizante, regulando a conduta humana nos moldes
do imperativo categórico kantiano, assumindo um caráter de universalidade ecuja observância
deve submeter às inclinações humanas, por ser algo bom em si mesmo205.

200
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 49.
201
COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer
Russomano. São Paulo: Max Limonad, 1956.p. 157.
202
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 426.
203
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010;
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000b.
204
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 114.
205
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 2007, p. 52.
71

Além do mais, na tentativa de explicar, mediante um encadeamento lógico, o


fundamento de validade das normas jurídicas, Kelsen deixa claro que tal fundamento decorre
sempre de uma norma posta logicamente num âmbito espacio-temporal, hierarquicamente
superior e anterior à norma objeto de perquirição. Com isso, Kelsen promove um regresso até
a norma fundamental (groundnorm), cujo fundamento de validade não deriva de nenhuma
outra e a partir da qual decorre o fundamento de validade de todas as outras normas (uma
norma em particular só é considerada parte do sistema na medida em que se verificar que seu
fundamento de validade decorre da norma fundamental), formando assim um sistema
denominado ordem jurídica206.
Mesmo com a afirmação de que a norma fundamental é condição de existência do
sistema (ou ordem) jurídico (a), seus contornos teóricos permanecem inesclarecidos, pois
como demonstra Adrian Sgarbi, a certa altura Kelsen deixa de justificar a norma fundamental
pela lógica transcendental kantiana e passa a defini-la como uma ficção à qual é reservado o
papel de permitir “a leitura das normas que resultam dos atos de agentes competentes”207. Na
explicação do próprio Kelsen tem-se que não é possível, por meio da realidade, interpretar o
sentido subjetivo dos denominados “atos ponentes de norma”.Essa interpretação só seria
possível por meio da ficção, pois a norma fundamental não expressa o “sentido de um real ato
de vontade, mas sim de um ato meramente pensado”208. É nessa atemporalidade do ser que
reside a autocracia da norma fundamental, em que o devir, como vir-a-ser do dever-ser,
arrasta o passado e o presente para um futuro interminável, impossibilitando as investigações
sobre os seus conteúdos valorativos209.
Não obstante a relevância dos estudos kelsenianos, é de especial relevância a
contundente crítica encaminhada por Rosemiro Pereira Leal:

O pensamento de Kelsen representa a maior proeza da inteligência jurídica para


ocultar a complexidade causal da realidade histórica. É um monumento à fuga
filosófica e a mais alienante teoria de que se tem notícia no Direito e a mais sedutora
construção jurídica do pensamento autocrático a despeito de sua proposta de
neutralidade ideológica e de autolegitimação, que, é claro, serve a qualquer direito,
mas que se liberta do fetiche, do sagrado, das cosmogonias, do panteísmo
humanista, embora crie um outro mito que é a norma régia e fundamental de origem
abstrata no cerne da humanidade, como se fosse a primeira e eterna rainha da
colméia normativa.210

206
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 168-169.
207
SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.p. 62.
208
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 1986. p. 328-329.
209
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
Horizonte: Arraes, 2013. p. 28.
210
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
72

O fato é que, se por um lado Kelsen não desenvolveu maiores investigações em torno
do processo legislativo ou judicial, deve ser ressaltada sua abordagem em torno da ação.
Como sua construção teórica se baseia fortemente na ideia de que o direito subjetivo é sempre
o direito a determinada conduta de outrem, pois a cada direito corresponde uma obrigação ou
dever, a ação vai assumir em sua teoria um importante papel, como expressão da liberdade
individual enquanto “possibilidade jurídica de colocar a sanção em funcionamento”211.
Para desenvolver esse raciocínio, Kelsen enfrenta o dualismo entre direito objetivo e
direito subjetivo212, fundado em forte herança jusnaturalista, em que os direitos subjetivos
nada mais são que vontades ou interesses individuais reconhecidos e protegidos pela ordem
jurídica, e por tal razão, precedem lógica e temporalmente ao Direito estatal. Kelsen vai dizer
que essa concepção é lógica e psicologicamente insustentável, pois os direitos são abstrações
imperceptíveis aos sentidos e só podem ser afirmados ou negados pela existência ou não de
uma norma jurídica precedente. Assim, é possível afirmar que o direito objetivo é anterior ou
pelo menos concomitante ao direito subjetivo213.
Isso ocorre porque nem sempre um interesse é amparado pelo Direito e, às vezes, um
direito não se mostra de interesse do titular, que pode deixar de pleiteá-lo. O mesmo ocorre
com a vontade. Quando ela se manifesta livremente através de um acordo firmado em
contrato, não se pode falar que o direito corresponde à vontade. O Direito vai proteger o
acordo, que é a expressão da vontade na medida em que o indivíduo isolado não pode
submeter juridicamente a outra parte214. Ou como demonstra Calamandrei: “o Estado confia a
observância do direito, antes que à autoridade judicial, à livre vontade dos obrigados, e só
quando esta falta ou não se manifesta promete intervir, em um segundo momento, para
garanti-la”215.
A “ação processual” aparece de modo relevante na construção teórica de Kelsen,
sendo definida como o direito jurídico em sentido técnico, pelo qual o particular, exercendo

2012.p. 18.
211
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 116.
212
Quando se refere ao primeiro, o faz em letra maiúscula, pois se trata de uma referência ao ordenamento jurídico
como um todo. Já o segundo, são os direitos atribuídos aos particulares especificamente. Neste ponto, Kelsen
demonstra que o dualismo está presente nos mais diversos sistemas jurídicos. Na Inglaterra se expressa por
termos distintos: Law (Direito Objetivo) e rigths (Direito Subjetivo). Na Alemanha e na França o termo direito,
aparece acompanhado dos adjetivos. Desse modo, têm-se: “objektives Recht” e “subjektives Recht”, na
Alemanha. Já na França: “droit objectif” e “droit subjectif”. (KELSEN, 2000, p. 112).
213
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 113-114.
214
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 114-117.
215
CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.
Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 229.
73

sua liberdade, vai contribuir com a construção da ordem jurídica pela produção da norma
individual, ou seja, a sentença judicial,como observa Carlos Santiago Nino:

Kelsen assinala que o fato de que se outorguem aos particulares ações para reclamar
a aplicação de sanções é uma técnica particular que utilizam alguns ordenamentos
jurídicos, mas não outros. No direito penal não é geralmente utilizada,
monopolizando as ações processuais a certos funcionários públicos. No direito civil,
esta técnica é típica do sistema capitalista, nos quais se outorgam aos particulares a
faculdade de administrar seus negócios conforme a sua conveniência e a de
demandar, ou não, a quem não cumpre conforme seu interesse; do contrário, nos
sistemas socialistas, sua vigência está muito restringida.
Quando se outorga aos particulares este tipo de direitos, os permite participar da
criação da ordem jurídica, pois o exercício da ação processual tem por objeto que de
dite uma sentença judicial que é uma norma jurídica particular; ou seja, que
mediante a execução dos direitos subjetivos em sentido técnico os particulares
colaboram na criação do direito objetivo.216 (tradução livre)

De fato, tais afirmativas de Kelsen se amoldam mais perfeitamente à matéria do


Direito Civil, em razão da ampla disponibilidade dos bens, objetos de lesão pelo
inadimplemento de uma obrigação ou pela violação de uma abstenção relativa à propriedade.
O direito jurídico é uma norma que se põe em relação a um indivíduo que, por sua vontade,
pode ou não pleitear a imposição da sanção àquele que descumpriu o seu dever. A realização
da ordem jurídica está sempre a depender de “um queixoso em potencial”, que tem
assegurado o direito de ação processual independentemente de seu “interesse” ou “vontade”
de exercê-lo217. Isso ocorre pelo fato de que os positivistas entendem que a cópula deôntica
(dever) desempenha tão somente a função de autorizar ao lesado exigir a reparação ou
pagamento, pois ainda que estabeleça uma relação imperativa-atributiva, é este último aspecto
o mais relevante, pois ao impor uma conduta ao obrigado, o faz tão somente como correlação
ao direito de outrem, que sempre se apresenta como faculdade, já que pode ou não ser
exercido, conforme a conveniência do titular.218
Com relação ao Direito Penal, a matéria se torna mais complexa. Mesmo que se diga
que no Direito Civil o exercício da ação judicial pelo indivíduo prejudicado atende ao
216
“Kelsen señala que el hecho de que se otorguen a los particulares acciones para reclamar la aplicaión de
sanciones es uma técnica particular que utilizan algunos órdenes jurídicos, pero no otros. En el derecho penal no
es generalmente utilizada, monopolizando las acciones procesales ciertos funcionarios públicos. Em el derecho
civil, esta técnica es típica de los sistemas capitalistas, em los que se otorga a los particulares la facultad de
convenir sus negocios y la de demandar, o no, a quienes no cumplen según sea su interés; en cambio, em los
sistemas socialistas, su vigencia esta muy restringida. Cuando se otorga a los particulares este tipo de derechos se
los hace participar em la creación del órden jurídico, pues el ejercício de la acción procesal tiene por objeto que
se dicte una sentencia judicial que es una norma jurídica particular; o sea que, mediante la ejecución de los
derechos subjetivos en sentido técnico los particulares colaboran en la creación del derecho objetivo.” (NINO,
2003, p. 205-206).
217
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 119.
218
MÁYNEZ, Eduardo García. Logica del juicio juridico. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1955. p. 37.
74

interesse geral de que a ordem jurídica seja preservada, é no campo penal que essa concepção
se apresenta de modo mais evidente. A técnica, contudo, é diferente. Diz Kelsen:

Um processo criminal não pode, via de regra, ser iniciado pelas pessoas cujos
direitos foram mais diretamente prejudicados pelo delito. Na maioria das vezes, é
alguma autoridade pública, um órgão da comunidade, que tem a competência para
fazê-lo. Como a sanção criminal não depende de uma ação judicial por parte de um
indivíduo particular, nenhum indivíduo particular tem o “direito” de não ser roubado
ou morto – ou, num sentido mais amplo, de não se tornar vítima de um delito
criminal. Mas como a execução da sanção penal depende de uma ação por parte de
um órgão competente do Estado, pode-se falar de um “direito” do Estado de que os
membros da comunidade devam se abster de crimes. Neste campo, em que
interesses especialmente vitais da comunidade têm de ser protegidos, o legislador
coloca o interesse coletivo acima do interesse privado. Contudo, o processo criminal
tem a mesma forma, ou, pelo menos, o mesmo aspecto interno, do processo civil; ele
exibe uma disputa entre duas partes: no processo criminal, uma disputa entre a
comunidade jurídica, o Estado, representado por um órgão público, e um indivíduo
particular, o acusado; no processo civil uma disputa entre dois indivíduos
particulares, o queixoso e o réu. 219

Trata-se de uma concepção ainda concretista do direito de ação, pois afirma com
todas as letras que só será titular de um direito aquele que for titular da ação. Desse modo, o
princípio da obrigatoriedade da ação penal pública se apresenta como solução jurídica a
afastar quaisquer juízos de oportunidade e conveniência que poderiam levar o Estado a
negligenciar a preservação da ordem jurídica e, por conseguinte, a proteção da coletividade.
Esse é o princípio norteador da autuação dos órgãos de persecução penal, tais como a polícia
judiciária e o Ministério Público220, desde que a modernidade afastou qualquer possibilidade
de jurisdição sem ação, o que era próprio do Processo Penal inquisitivo da Idade Média e
passou a exigir uma indiferença inicial do órgão jurisdicional que, para atuar, dependerá
sempre a provocação de um sujeito agente (nemo iudex sine actore)221.
O que se percebe de todas essas construções é que elas são fruto de um racionalismo
dogmático. Na transição do medievo à modernidade há todo um esforço para superar a
tendência mistificadora do Direito, porém o que se verifica é a instalação de um dogmatismo
que caracteriza as diversas correntes do pensamento jurídico. É possível associar o
dogmatismo jurídico ao racionalismo ancestral que se manifesta por matrizes filosóficas que,
em busca de primazia, estabelecem um confronto entre idealismo e realismo. Nesse ponto a
teoria da actio penal assume especial relevância, pois, como visto, se estabilizou na forma de

219
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 121.
220
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 175.
221
CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.
Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 197.
75

tipo-ideal, o que inviabilizou até aqui qualquer possibilidade de estabelecer um sistema


processual puro, seja ele acusatório, inquisitório ou misto222.
Vai assumir assim um caráter concreto de realização de uma pretensão (anspruch)223,
mesmo diante dos empreendimentos teóricos acima esquadrinhados. Tanto que há na doutrina
uma forte tendência em classificar as ações, do ponto de vista objetivo, conforme o tipo de
provimento estatal que se pretende obter. Têm-se assim, que as ações podem ser de
conhecimento, cautelares ou de execução224, cujos provimentos, por sua vez, podem ser
classificados como condenatórios, declaratórios, constitutivos e mandamentais225. De todo
modo, prevalece a ideia de que se trata de garantia individual de buscar o amparo da
autoridade, pois o sistema rechaça o exercício de direitos por ato próprio226

222
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
45.
223
ZAMORA Y CASTILLO. Niceto alcalà: cuestiones de Terminologia Procesal. México: Universidad Nacional
Autónoma de México, 1972. p. 48.
224
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 205
225
GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Tradução de Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Editorial
Labor, 1936a. p. 100-114.
226
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007. p. 61.
76

3 A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL DA AUTORICTAS JUDICIAL E A


AMBIGUIDADE EPISTEMOLÓGICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A dogmática jurídica guarda uma estreita relação com a estabilização do Estado


moderno e, não obstante ser possível identificar suas raízes no Direito Romano, é com o
advento da concepção de Direito Positivo que a noção de dogmática jurídica se consolida, na
medida em que “a certeza e a segurança jurídica passa a vincular-se à exigência de uma
racionalidade abstrata, decorrente de um Estado soberano”227, conceito que vem a ser
modelado por uma epistemologia (saber) positivista e por uma base política estatal (poder).
A modernidade consolidou a ideia de que os conflitos humanos deveriam ser
resolvidos por um terceiro imparcial, “manipulador do sentido normativo (juiz) pela
autorictas de que está investido”228, algo que nunca provocou maiores questionamentos entre
os processualistas clássicos que vislumbravam nesse sistema o máximo de ganho civilizatório,
como se lê, por exemplo em Calamandrei:

A idéia fundamental que se encontra nos mais remotos clarões da civilização, e que,
constitui o germe de todos os institutos processuais posteriores, é a seguinte: para
alcançar uma solução pacífica do conflito, é necessário subtraí-lo às partes (as quais,
por estarem ambas ligadas ao mesmo interesse, seriam incapazes de avaliar
serenamente as razões da parte contrária: nemo judex in re sua) e confiar a decisão a
um terceiro, estranho ao conflito, que possa ser imparcial. Nessa idéia de
interposição entre as partes de um terceiro, estranho ao conflito, que possa decidir
imparcialmente, encontra-se a origem de todos os institutos judiciários.229

A despeito da imprescindibilidade que se atribui à existência dos juízes públicos, não


se pode passar ao largo da concepção de Derrida, de que a autoridade, em sua origem ou
fundação, é fruto de uma violência performativa, cujo limite possui contornos “místicos”, pois
não se garante ou se contradiz por nenhuma outra fundação preexistente, razão pela qual não é
justa, nem injusta, apenas um golpe de força230.

3.1 Jura novit curia versus nemo judex sine actore: O mito do saber jurisdicional

Observando o status adquirido pela dogmática jurídica, é possível concluir que seu

227
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1996.p. 88.
228
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 18-19
229
CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.
Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 192.
230
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o “fundamento místico da autoridade”. Tradução de Leyla Perrone-
Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 24-26.
77

arcabouço de princípios e dispositivos está para a modernidade das relações sociais, como o
mito para a antiguidade arcaica. Por isso, há que se observar o papel das construções
mitológicas no desenvolvimento humano sob o ponto de vista social, religioso e cultural. O
fato é que:

Os mitos têm a ver com mistérios profundos surgidos na travessia humana. Nessa
travessia, toda vez que faltavam argumentos racionais para interpretar o significado
dos fenômenos (climáticos, sociais, culturais, etc.), criavam-se mitos para explicá-
los231.

Com o Direito não foi diferente. Seu desenvolvimento ao longo da história sempre
guardou estreita ligação com os relatos míticos. Nas narrativas de Homero, no século VIII
a.C., o que se percebe é uma sociedade ainda primitiva e tribal, que já projetava na figura do
rei um líder com funções de ser o juiz dos conflitos privados e chefe militar nas guerras. Sua
autoridade não era absoluta. Considerava-se que Zeus estava acima do poder dos reis e chefes.
Acima de Zeus, contudo, estava o que os antigos chamavam de poder do destino, um poder
cósmico que atuava para manter para cada coisa o seu lote, impondo castigos a quem
subvertesse essa ordem natural. No final das contas, a ordem jurídica tribal era mantida por
meio das tradições, dos tabus, dos magicismos e das religiões232.
Alf Ross demonstra que esse é o fundamento do jusnaturalismo, que se perpetuou
mesmo com o advento dos grandes sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles, os quais
substituíram a magia e a religião primitivas pela especulação metafísica, porém, com o
mesmo intento de proporcionar ao homem a confiança irrefletida em um poder absoluto que o
governa desde sempre, perpetuando a ideia de que somente por meio de tal dominação é que
se garante aos povos a paz e a segurança:

E foi este espírito o que continuou caracterizando a posterior evolução durante um


longo tempo. A escolástica cristã (Tomás de Aquino) pôde, sem dificuldade,
interpolar uma nova doutrina religiosa no sistema de Aristóteles. Ainda hoje o
timbre do tomismo caracteriza a filosofia jurídica católica. Embora no mundo
protestante o direito natural tenha sido descristianizado e assumido a forma de uma
metafísica racionalista filosófica, na sua essência permaneceu o mesmo: uma crença
no eterno, numa validade sobrenatural absoluta.233

231
SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER, Theobaldo. O direito, a literatura, o mito e o juiz: construções em
torno do verbo decidir. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, Unisinos, v.3,
n. 1, jan./jun., p. 102-110, 2011. p. 102-110.
232
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 269.
233
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 269.
78

Essa validade sobrenatural absoluta alimentava, ainda na antiguidade, uma


diversidade de concepções sobre o justo. Justificava tanto a confiança dos aristocratas na
manutenção da ordem (representada pelos relatos de Homero) quanto a esperança dos
camponeses de que Zeus lhes traria o alento castigando os poderosos e injustos (representada
pelos relatos de Hesíodo). Estaúltima concepção, que aparentemente se ampara em algo que
jamais se realiza, teria levado Sólon a afirmar que Zeus não se irrita facilmente com uma
ofensa, diferentemente dos mortais e nisto reside sua divindade. Porém “nenhum homem
perverso pode escapar de seu olhar vigilante”234.
O fato é que as complexas narrativas mitológicas podem ser consideradas como uma
ciência primitiva que muito contribuiu para o desenvolvimento da humanidade. Levi Strauss,
após empreender uma cuidadosa abordagem sobre a estrutura do mito, chega à conclusão de
que entre o pensamento científico e o mítico há pouquíssima diferença qualitativa. Apenas
possuem como objeto diferentes dimensões da experiência humana235. Tanto que Rosemiro
Pereira Leal reconhece e alerta que o mito na atualidade já não pode mais ser estudado "como
algo que tenha o poder mágico e sedutor de influenciar povos e crianças, cujo mistério
indecifrável deva ser mantido e celebrado", mas como algo que "cria a sua própria mística da
eternidade, multiplicando-se autopoieticamente em imaginosas versões como anestésico aos
delírios e alucinações pessoais e coletivas"236.
O fato é que o mito, ao agir como esse "anestésico", desencoraja o "homem comum"
de "perquirir suas origens", aceitando com docilidade crenças que se apresentam, sobretudo
nas ciências humanas, "como regra heurística, erística, tópica, retórica e doxóloga de
generalizado convencimento"237. As narrativas míticas da atualidade se destinam a perpetuar
as ideologias que oprimem a humanidade com uma perversidade insidiosa, pois muitas vezes
se apresentam travestidas como ciência e teoria.
Como demonstraram Adorno e Horkheimer, a ciência, na tentativa de destruir os
mitos, acaba caindo no feitiço mítico, pois o princípio da imanência do qual se vale para
confrontar o mito, sob o pretexto de conferir regularidade aos acontecimentos, dele em nada
se difere238. O mesmo ocorre com o Direito que não consegue se desvencilhar da tradição, da
utopia e do mito expressos pelos "direitos materiais (maternais) surgidos de poderes, juízos

234
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000. p. 272.
235
STRAUSS, Levi. Antropologia estrutural. Tradução de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. p. 265.
236
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 115.
237
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010.
238
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.
ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998.p. 67.
79

ordálicos, simulacros, forças onipotentes, vontades coletivas naturais e de sistemas


normativos de fundo organicista" que decorrem dos "resquícios do poder constituinte
originário" e são continuadamente alçados a uma posição de primordialidade239.
Como reflexo de toda esta mistificiação ou mitificação é que se consolida uma
doutrina jurídica permeada pela concepção de que a atividade jurisdicional, enquanto poder-
dever do Estado se manifesta como expressão da soberania ao impor coativamente entre os
particulares, a vontade concreta da lei, como pressuposto de ordem e segurança jurídica, ou:
“função pública de capital importância para o bom convívio dos homens na sociedade
complexa e tensa em que vivemos”240. A jurisdição parece indissociável da ideia de
autoridade e, como no sentido primitivo da palavra resgatado por Giambattista Vico, se
apresenta como a onipotente autora do sentido normativo transmitido ao domínio dos civis241.
Para alguns autores, contemporâneos, mais do que autoridade, jurisdição se manifesta como
potestade:

Em sentido amplo, jurisdição é o poder de conhecer e resolver com autoridade


certos negócios e conflitos que surgem das relações.
Em sentido restrito, jurisdição é o poder-dever das autoridades jurisdicionais de
decidir imperativamente o direito aplicável no caso concreto e de impor suas
decisões, as quais têm caráter de imutabilidade.
Etimologicamente, vem do vocábulo latino jurisdictio, que significa ação de dizer o
direito.242

Essa concepção, segundo a qual o juiz, ao exercer a atividade jurisdicional detém o


“poder” de “dizer o direito”, se sustenta no mito e no fascínio que este exerce. Segundo
Habermas:

O fascínio despertado por instituições detentoras de poder, que ao mesmo tempo


atrai e repele, revela a fusão de dois momentos aparentemente incompatíveis. A
ameaça de um poder vingador e a força de convicções aglutinadoras não somente
coexistem como também nascem da mesma fonte mística. As sanções impostas
pelos homens são secundárias: elas apenas vingam transgressões contra uma
autoridade cogente e obrigatória que vem antes delas. Dela, as sanções sociais
extraem, por assim dizer, o seu significado ritual.243

Como se nota, a ciência dogmática do Direito, ao afirmar que caberá ao juiz decidir
qual direito se aplicará ao caso concreto, instaura o princípio jura novit curia, estabelecendo a

239
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 51.
240
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2005.p. 6.
241
VICO, Giambattista. Ciência nova. Tradução de Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2008. p. 62.
242
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 258.
243
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1.p. 43.
80

presunção de que o juiz conhece a lei, sendo portador nato de um saber privilegiado que não
encontra nenhuma limitação na atividade de decidir qual o direito se aplica aos fatos que lhe
são apresentados. O juiz não estaria,assim, adstrito aos dispositivos legais invocados pelas
partes, podendo decidir segundo sua ciência e consciência244.A jurisdição se resume à
atividade do juiz e aparece legitimada, a priori, como o poder de dizer o direito por meio de
uma técnica apropriada que garante, “a partir do ato de criação do Estado, do sentimento dos
juízes, ou de escopos metajurídicos, o mais alto grau de violência realizante possível”245.
O enfoque jurisdicêntrico, confere à atividade dos juízes uma confiabilidade
pressuposta, numa concepção egológica em que o objeto da ciência jurídica deixa de ser as
leis e o seu esclarecimento e passa a ser a conduta humana em face das leis. Nesse contexto, o
método jurídico se torna irrelevante, como se constata na obra de Carlos Cossio:

[...] uma vez iniciada uma experiência jurídica, à medida que esta se desenvolve,
aparece um fenômeno de objetivação axiológica muito mais interessante e firme
como possibilidade de ciência dogmática e como pauta para comprovar a
objetividade emocional da instituição judicial. Refiro-me à jurisprudência dos
tribunais. Quando já existe assentada uma jurisprudência a respeito do alcance
preciso de uma norma geral, todos os métodos ficam em silêncio e nenhum acordo
se extrai deles, nem sequer dos teóricos que trabalham de verdade sobre o Direito
positivo. Basta invocar a jurisprudência existente e o conhecimento resulta mais
seguro e, por isto, mais eficaz, sem importar que esta jurisprudência neste caso seja
exegética, em outro sistemática e em outro teleológica e em outro sociológica, etc.
A questão do método desaparece da experiência e da ciência. Só renasce quando se
deseja promover uma mudança de jurisprudência.(tradução nossa)246

Os juízes assumem, desse modo, um papel de contornos quase míticos, como


detentores de um conhecimento privilegiado das normas, dos valores e mesmo das emoções
que preponderam na sociedade:

Ser juiz evidentemente implica conhecimento da lei e provavelmente também


conhecimento de uma gama muito mais ampla de negócios humanos de
repercussões jurídicas. Implica também, contudo, o “conhecimento” dos valores e
atitudes julgados adequados a um juiz, estendendo-se até os que são proverbialmente

244
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007.p. 234.
245
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.p.
119.
246
“[...] una vez iniciada una experiencia jurídica, a medida que ésta se desarrolla, aparece un fenómeno de
objetivación axiológica mucho más interesante y firme como posibilidad de ciencia dogmática y como pauta
para comprobar la objetividad emocional de la intuición judicial. Me refiero a la jurisprudencia de los tribunales.
Cuando ya existe sentada jurisprudencia respecto del alcance preciso de una norma general, todos los métodos se
llaman a silencio y nadie se acuerda de ninguno de ellos, ni siquiera los teóricos que trabajan de verdade sobre el
Derecho positivo. Basta invocar la jurisprudencia existente y el conocimiento resulta más seguro y, por ello, más
eficaz, sin importar que esa jurisprudencia en este caso sea exegética, en aquel otro sistemática, en aquel otro
teleológica, en aquel otro sociológica, etc. La cuestión del método ha desaparecido de la experiencia y de la
ciencia. Sólo renace cuando se desea promover un cambio de jurisprudencia.” (CO S SIO , 1 9 5 4 , p. 248-249).
81

considerados convenientes para a esposa de um juiz. O juiz deve também ter um


“conhecimento” adequado no domínio das emoções. Deverá saber, por exemplo,
quando tem de refrear seu sentimento de compaixão, para mencionar um requisito
psicológico importante deste papel. De tal maneira, cada papel abre uma entrada
para um setor específico do acervo total do conhecimento possuído pela
sociedade.247

No Processo Penal brasileiro, há notável reflexo dessa confiança irrefletida nas


virtudes dos juízes. O princípio jura novit curia atinge seu ápice pela norma do art. 385 do
Código de Processo Penal, que atribui ao juiz, nas ações públicas, a possibilidade de sentença
condenatória, ainda que o órgão do Ministério Público, titular constitucional da ação, tenha
requerido a absolvição. Pelo mesmo dispositivo legal, pode o juiz reconhecer agravantes que
não tenham sido alegadas pela parte autora. O que se extrai do dispositivo supracitado é um
claro retrocesso inquisitivo, pois viola os princípios do contraditório e da congruência, além
de caracterizar exercício de jurisdição, desprovido de ação248.
A persistência de normas com essa configuração autoritária no Processo Penal
decorre do absolutismo do saber solitário que se instaura quando não é acolhido o processo
como “um discurso argumentativo de compartilhada fixação procedimental ad hoc do sentido
normativo em níveis instituinte, constituinte e constituído do Direito”249. Esse saber vai
conduzir o Processo Penal à condição de vetor de políticas emergenciais, postura que o
distancia do paradigma democrático.
O tema da emergência penal é tão atual e tão presente que inúmeros pretextos
acabam contribuindo para que se recorra ao Estado de Exceção, como forma de
enfrentamento da chamada emergência penal, cujos contornos mais evidentes, são expostos na
análise de Fauzi Hassan Choukr:

Aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo,
constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na
normalidade. Num certo sentido a criminologia contemporânea dá guarida a esse
subsistema, colocando-o na escala mais elevada de gravidade criminosa a justificar a
adoção de mecanismos excepcionais a combatê-la, embora sempre defenda o
modelo de estado democrático e de direito como limite máximo da atividade
legiferante nessa seara.250

O resultado é que, atualmente, nos mais diversos países, verifica-se uma situação de
fato que se caracteriza como emergencial e que resulta na sensação de que há uma

247
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 107.
248
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011b. v.2.p. 377-378.
249
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 40.
250
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 5-6.
82

necessidade concreta de adoção de medidas que não se furtam em restringir direitos


fundamentais em nome de um combate mais intenso e sem tréguas à criminalidade crescente.
Esse movimento, conhecido como “da lei e da ordem” (law and order)251, atingiu o Brasil,
paradoxalmente, após a redemocratização, com a difusão ampla da idéia de que a edição de
leis mais repressivas, tanto no campo material quanto processual, seria uma espécie de pronta
resposta a uma demanda por segurança que, por meio de pressões momentâneas movem o
legislador na direção do recrudescimento do sistema penal. Tais pressões, por serem
momentâneas, quando cessam deixam como herança um inevitável retrocesso do
ordenamento jurídico penal, transformando a normalidade em exceção252.
Para Ferrajoli, no cenário italiano, a “cultura da emergência e a prática da exceção”,
que normalmente se desenvolvem antes das necessárias transformações legislativas, seriam as
responsáveis por uma verdadeira involução do ordenamento penal, a qual se percebe pela
“reedição, em trajes modernizados”, de esquemas característicos da pré-modernidade e que se
traduzem pela adoção de práticas e técnicas inquisitivas e policias pelos juízes, de modo que a
exceção se transforma em regra253.
Esse direito emergencial, segundo Ferrajoli, se implanta em três fases, todas elas
identificáveis através da análise de sucessivas leis penais editadas na Itália ao longo do século
XX. A primeira fase se dá mediante o estabelecimento de um “direito especial de polícia” em
que se confere à administração policialesca quase todos os poderes de instrução próprios da
autoridade judiciária, tais como: prisão, perquirição, interrogatório e investigações sumárias.
A outra fase se caracteriza pela assunção por parte da magistratura de uma série de atribuições
na luta contra o terrorismo ou contra a máfia, ferindo o princípio da inércia e outras garantias,
caracterizando-se como um Direito Penal especial. A última fase se caracteriza por uma
difusão das práticas emergenciais na rotina judiciária, resultando em um notável afastamento
das garantias individuais por parte dos juízes254.
Esse aspecto perverso do princípio jura novit curia vai confrontar o basilar princípio
da inércia, expresso pelos aforismas latinos nemo iudex sine actore, ne procedat iudex ex
officio e nullum iudicio sine actore255. Esse princípio, também denominado princípio da
demanda, é a base de todo o sistema acusatório. Tal confronto leva à constatação de que o

251
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 4.
252
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 131–132.
253
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 649.
254
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 656-659
255
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 173.
83

sistema acusatório em sua pureza, não subsiste hoje, nem mesmo na Inglaterra, sobretudo
após a edição, em 1984, do PACE (The Police Criminal Evidence Act), ato que disciplina a
atividade policial e a produção de provas em juízo. Mesmo relegando a atividade judicial a
uma posição de complementariedade, ao estabelecer a plena liberdade das partes na produção
da prova, há momentos em que as diversas cortes podem intervir ativamente na aquisição de
elementos probatórios eventualmente negligenciados pelas partes. Além disso, os poderes
instrutórios atribuídos à polícia e ao Serviço de Persecução da Coroa (CPS) fazem com que a
maior parte dos processos termine de forma negociada (plea-bargaining) com as chamadas
sentenças mitigadas, em que o acusado se abstém do direito de defesa em troca de uma pena
que normalmente é reduzida em 30% do quantum que normalmente se aplicaria ao fim do
procedimento256.
Wienfried Hassemer alerta para a preocupante tendência atualmente observada no
tratamento dos direitos fundamentais pela União Européia, pois a população tende a enxergá-
los como “certo obstáculo numa luta eficaz do Estado contra a criminalidade”, na contramão
do estágio atual de desenvolvimento do direito constitucional. Ao externar a impressão de que
“a União Européia não tem nenhuma sensibilidade formada acerca dos riscos do Direito
Penal”, afirma que há limites para a restrição dos direitos fundamentais. Não são limites
traçados graficamente, porém, por serem jurídicos, surgem como reforços argumentativos a
partir de duas fontes: “a tradição jurídico-penal, sobretudo dos séculos XVIII e XIX e da
primeira metade do século XX, a qual consistiu sempre numa limitação das intervenções do
Estado por intermédio do Direito Penal”; e os direitos de liberdade constitucionalizados. O
problema para Hassemer é que as duas tradições andam separadas, pois “os penalistas não têm
a menor idéia da Constituição, e os constitucionalistas têm uma atitude de total indiferença
perante o Direito Penal, com algumas exceções”257.
O autor ressalta que é perfeitamente possível reduzir criminalidade sem restrições
aos direitos fundamentais, utilizando-se o que ele chama de “equivalentes funcionais” ao
Direito Penal, como, por exemplo, os investimentos em tecnologia de segurança que já se
demonstraram eficientes no combate à criminalidade organizada, evitando-se o uso de
expedientes invasivos e violadores dos direitos fundamentais. Seu argumento volta-se contra
o projeto de Constituição Européia, o qual incorpora a tentativa de estabelecimento de um

256
SPENCER, Herbert . O sistema inglês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa.
Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen
Juris. 2005. p. 249;275;294;332.
257
HASSEMER, Wienfried. Processo penal e direitos fundamentais. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte,
Ano 8, n. 16, 2006. p. 71-75.
84

corpus juris, com o objetivo de proteger os interesses econômicos predominantes na União


Européia e que se mostra bastante restritivo de direitos fundamentais e de soberania dos
Estados-membros, sobretudo em razão da previsão de um novo instituto: o mandado de
detenção europeu. Afirma com propriedade que “uma Constituição que atente contra a
dignidade da pessoa humana não deve existir, independentemente de qual seja a maioria e
qual seja a situação”258.
Esse é o dilema que se apresenta aos pensadores do Direito. Como evitar maiores
restrições aos direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, preservar a autoridade jurídica
estatal como medium de que se vale a sociedade em busca de segurança259? Não há como
negar o caráter excepcional exercido pelas chamadas Cautelas Penais num ambiente
constitucional que consagra princípios como “presunção de inocência”, “devido processo
legal”, “contraditório”, “ampla defesa”, “isonomia”, “liberdade provisória” e outros mais que
se apresentam como garantias individuais e coletivas. Dentre as Cautelas Penais, chamam
especial atenção aquelas que atuam diretamente na constrição da liberdade corpórea.
Mesmo em situações de pretensa normalidade, o sistema acusatório não se sustenta
integralmente e o que se vê é a prevalência de um cálculo utilitarista, relegando à legislação
um papel meramente retórico. Como todo cálculo utilitarista, as práticas penais autoritárias,
que ocorrem em sistemas proclamados como democráticos, se baseiam em argumentos
pragmáticos, e, como tal, buscam sempre demonstrar que os fins justificam os meios e que as
consequências que se pretende imediatamente alcançar trazem sempre um valor indiscutível.
Ou seja, "a aplicação do princípio da utilidade supõe que a importância de cada uma das
conseqüências é invariável e a mesma para todos"260.
O reflexo dessa postura no Direito Processual Penalbrasileiro é o surgimento de
assimetrias as quais, se não são acolhidas expressamente pela Constituição brasileira, que
proclama um modelo acusatório, podem ser percebidas no plano da infraconstitucionalidade
(ex. arts. 156, I e 311 do CPP)261. Se uma total simetria entre os sujeitos processuais parece

258
HASSEMER, Wienfried. Processo penal e direitos fundamentais. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte,
Ano 8, n. 16, 2006. p. 71-75.
259
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1. p. 171.
260
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 17.
261
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação
dada pela Lei nº 11.690, de 2008).
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e
relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690,
de 2008).
-----
85

longe de ser alcançada, como se vê nos mais diversos ordenamentos, o conceito de isomenia,
desenvolvido por Rosemiro Pereira Leal e que permeia esta pesquisa, busca implementar "a
possibilidade de entender e discutir os problemas jurídicos que possam enfrentar e erradicar
com significados constitucionalizados mediante o simétrico exercício de igual direito
fundamental (instituinte da co-institucionalidade) de interpretação para todos"262.
Para uma compreensão mais adequada do princípio da demanda (nemo iudex sine
actore) no Processo Penal, uma importante tarefa que se impõe diz respeito ao exato papel
desempenhado pelo Ministério Público. Compreendê-lo como parte em sentido processual é
um passo importante:

Como bem explica HÉLIO TORNAGHI, enfatizando que o interesse dele “em que
se faça justiça não o induz a proceder da mesma forma que o juiz, pois então haveria
uma inútil duplicação”, o Ministério Público “é parte como órgão (e não
representante) do Estado. O aspecto ritual do processo a tanto leva, porque, além de
o Ministério Público ser fiscal de aplicação da lei, ele exerce a função de acusar.
Essa última é sua atribuição precípua, uma vez que o processo está organizado em
forma contraditória. Pode acontecer que durante o processo o Ministério Público se
convença da inocência do acusado e peça para ele a absolvição. Mas o contraste
inicial, nascido com a denúncia, permanece, uma vez que a lei não dispensa o juiz de
apurar a verdade acerca da acusação e de condenar, se entender que o réu é
culpado”.263

Como parte, ou seja, como “pessoa legitimada pela lei a atuar a lei” 264, ao Ministério
Público são atribuídos ônus processuais dos quais deve se desincumbir satisfatoriamente para
que obtenha a procedência de sua pretensão. No atual estágio das cogitações acerca do
Processo é possível afirmar com Aroldo Plínio Gonçalves:

Não há relação jurídica entre o juiz e a parte, ou ambas as partes, porque ele não
pode exigir delas qualquer conduta, ou a prática de qualquer ato, podendo, qualquer
das partes, resolver suas faculdades, poderes e deveres em ônus, ao suportar as
conseqüências desfavoráveis que possam advir de sua omissão.265

Essa ambiguidade que cerca a instituição do Ministério Público, como se observa,


contribui para obscurecer a compreensão da posição do Direito Processual Penal em face da
Teoria Geral do Processo e até mesmo acerca das possibilidades dessa teoria. Esse é um
debate gerado por uma concepção dogmática do tema e que precisa ser enfrentado com

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada
pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do
assistente, ou por representação da autoridade policial. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
262
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 270.
263
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p. 186.
264
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 95.
265
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 98-99.
86

argumentos teóricos estruturados numa perspectiva que leve em conta o paradigma


democrático.

3.1.1 Ministério Público como parte

No Processo Penal, em particular, o Estado se apresenta como parte e como julgador.


Isso, à primeira vista, poderia causar perplexidade266, porém se mostra uma estrutura viável,
tendo em vista a presença do contraditório o qual, segundo Aroldo Plínio Gonçalves, faz do
Processo Penal um verdadeiro procedimento detentor da característica essencial capaz de
defini-lo como Processo267. O que deve ser objeto de crítica científica é a explicação retórica
de que o Ministério Público atua como representante do Estado-administração, detentor do jus
puniendi, expondo a pretensão punitiva diante do Estado-juiz, pois no Estado Democrático de
Direito (art. 127 da CB/88) o Ministério Público se define como instituição popular
permanente e de inafastável essencialidade ao funcionamento do judiciário, como bem
demonstra Charley de Oliveira Chaves:

Sua legitimação é para instaurar o procedimento penal emanado da lei, o qual deverá
observar o Devido Processo Constitucional. A expressão jus puniendi é errônea. A
punição pode ser ou não o resultado do provimento final. Não se pode falar em
titular da punição como algo imanente e natural. A expressão jus puniendi dá uma
idéia de um direito subjetivo prévio ao processo, uma condenação sem julgamento.
No Estado Democrático não se chega a nenhuma conclusão sem o exercício do
Devido Processo Legal.268

Essa concepção leva a uma necessidade de repensar o princípio da obrigatoriedade


que, em regime de democracia não pode mais ser concebido como obrigatoriedade de
propositura da Ação Penal, mas tão somente como obrigatoriedade de formação da opinio
delicti269, podendo o Ministério Público manifestar-se de forma fundamentada pelo
arquivamento da investigação, pela absolvição do acusado ou pela desistência de recurso
interposto nos crimes de Ação Pública, isso em razão da independência funcional assegurada
constitucionalmente (art. 129 da CB/88). Desse modo, não teriam sido recepcionados pela
nova ordem constitucional os arts. 42 e 576 do Código de Processo Penal brasileiro270.

266
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 109.
267
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 130.
268
CHAVES, Charley Teixeira. Ministério Público como instituição permanente popular: os sujeitos
processuais no direito democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012.p. 183.
269
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p.117.
270
SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004.p. 160.
87

Essa concepção reforça a ideia de que o Ministério Público deve ser reconhecido
como parte no Processo Penal, pois afirmar que, após o oferecimento da denúncia, deixa de
ser acusador e passa a ser fiscal da lei (custos legis) é apenas um exercício de ficção jurídica,
pois é de se indagar como pode permanecer como "fiscal" um órgão que, no curso das
atividades processuais que se sucedem, "continua atuando, inquirindo, provando, ou seja,
participando ativamente do procedimento penal, agora, não na função de acusar"271. A
principal virtude de tal postura é a clareza na definição do papel exercido pelo Ministério
Público, no Processo Penal. O contrário se dá quando Carnelluti passa a rechaçar a concepção
de lide no Processo Penal, definindo-o como processo de jurisdição voluntária, pois, ao
mesmo tempo em que se afirma que as partes não têm interesses contrapostos, se reconhece
que o Ministério Público, possui, sim, interesse na punição, a despeito de não ser considerado
parte no conflito subjacente. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho aponta as contradições
dessa concepção:

A figura principal do processo penal, nessa linha de raciocínio, é o Ministério


Público, que tem o encargo de punir, mesmo porque a punição, mormente nos casos
de privação da liberdade, não é a condenação. “Afinal, o Ministério Público não atua
para que o juiz possa julgar, mas ao contrário, o juiz julga para que o Ministério
Público possa portar a fundo a sua ação”.
Com uma premissa desse jaez, não é muito difícil levar a imaginação a conceber um
processo penal onde o Ministério Público possa punir ainda que não tenha
autorização do órgão jurisdicional, pois, sempre segundo CARNELUTTI, “será um
sistema imprudente e até incivil, mas não é um sistema absurdo”.272

Note-se que, esclarecer os contornos da atuação do Ministério Público é


fundamental. No Processo Penal italiano, é possível identificar uma contribuição importante.
Na Itália, a Constituição confere ao membro do Ministério Público a nomenclatura de
"magistrato", que também é atribuída aos juízes. Mas sua configuração constitucional é muito
próxima à do Ministério Público brasileiro, com as mesmas garantias de estabilidade,
inamovibilidade e independência (arts. 104 a 107 da Constituição Italiana). Mas o Pubblico
Ministero, ao atuar no Processo Penal, o faz como "parte pública", com atribuições
claramente distintas da "advocacia pública". Enquanto a "parte pública" representa o interesse
geral do "Estado-comunidade" afetado pelo crime, a "advocacia pública" representa o
interesse específico do Estado enquanto pessoa jurídica, eventualmente lesada pela ação

271
CHAVES, Charley Teixeira. Ministério Público como instituição permanente popular: os sujeitos
processuais no direito democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. p. 67.
272
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá Editora,
1998a. p. 107.
88

delituosa ( tradução nossa)273.


Essa configuração jurídico-teórica permite evitar a confiança irrefletida que muitas
vezes se deposita sobre o Ministério Público, na expectativa de que seus integrantes venham
sempre a se comportar de modo imparcial, como se lê no texto de José Carlos Teixeira
Giorgis: "Embora seja o órgão ministerial o titular do jus accusationis que lhe é correlata, isto
não significa que os Promotores de Justiça atuem parcialmente"274. O fato é que a retórica da
imparcialidade do Ministério Público provoca déficit isonômico, sobretudo quando se trata de
processo submetido a juízes leigos, como o Tribunal do Júri. Por essa razão, Jorge A. Clariá
Olmedo275, analisando os termos "acusador", "autor penal", "querelante", "órgão requerente",
opta por adotar o termo "órgão de acusação" para melhor definir a atribuição do Ministério
Público no Processo Penal.

3.1.2 A prerrogativa investigatória do Ministério Público

Como visto, a defesa da imparcialidade do Ministério Público é um esforço retórico


que pretende conferir a tal instituição um status que muito se assemelha à figura do
"Soberano", tão bem descrita por Agamben como aquele que está ao mesmo tempo dentro e
fora da ordem jurídica, podendo decidir sobre o "Estado de Exceção"276. O que se afirma
neste ponto é que, se posicionando ambiguamente como "acusador" e como "fiscal", o
Ministério Público sempre pode atribuir a si próprio propriedades performativas que o
coloquem em posição de imunidade argumentativa, pois seu discurso restaria inalcançável por
qualquer esforço de testificação.
A propalada imparcialidade do Ministério Público é apresentada como razão a
justificar a possibilidade e conveniência da realização de investigações preliminares

273
“Il pubblico ministero svolge nel procedimento penale la funzione di parte pubblica. Egli rappresenta l'interesse
generale dello Stato-comunità, e cioè l'interesse della società che è stata lesa dal reato.Ben distinta è la situazione
soggetiva dello Stato-persona, che è rappresentato dall'avvocatura dello Stato. Infatti, quarola il reato abbia
cagionato un danno ad un bene dello Stato, il ministro competente può decidire di chiedere il risarcimento nel
processo penale. In tal caso il ministro, che si costituisce parte civile, è rappresentato dall'avvocatura dello Stato”
“O Ministério Público desenvolve no procedimento penal a função de parte pública. Ele representa o interesse
geral do Estado-comunidade, e aquele interesse da sociedade lesada pelo crime. Bem distinta é a situação
subjetiva do Estado-pessoa, que é representado pela advocacia do Estado. De fato, em qualquer crime que causa
um dano a um bem do Estado, o ministro competente pode decidir de buscar o ressarcimento pelo processo
penal. Em tal caso, o ministro que se constitui como parte civil, é representado pela advocacia do Estado”
(tradução nossa) ( TONINI, 2010, p. 50-51).
274
GIORGIS, José Carlos Teixeira. A lide como categoria comum do processo. Porto Alegre: Letras Jurídicas
Editora, 1991. p. 111.
275
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 2. 1982. p. 9-
10.
276
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial,
2007a.p. 57.
89

(persecução penal extra judicio) pelos seus órgãos nas mais variadas esferas de
competência277. Há uma notável tendência de reconhecer a possibilidade do Ministério
Público conduzir a investigação preliminar, conforme é possível observar em países como
Espanha, Portugal e Itália278.
No caso italiano, o Codice di Procedura Penale de 1988, estabeleceu expressamente
em seus arts. 326 e 327 atribuições investigativas ao Ministério Público, submetendo a Polícia
Judiciária às suas determinações, nos procedimentos instaurados pela instituição. Como
demonstra Aury Lopes Júnior, tal sistema teria despertado um verdadeiro furor investigativo
no Pubblico Ministero:

Já em 1992, quando o promotor Antonio di Pietro começa a investigar "um caso de


menor importância", culmina por colocar de manifesto um escândalo de corrupção
política sem precedentes (tangentópolis). A partir de então, a operazione mani pulite
- inicialmente levada a cabo por sete promotores de Milão e posteriormente por uma
ampla equipe - processa, em menos de um ano, seis ministros, mais de uma centena
de parlamentares e os dirigentes das mais importantes empresas da Itália. Em 1997
este número é elevado a cinco mil pessoas, os interrogatórios passam de vinte mil e
as cartas rogatórias a outros países superam as quinhentas. São números elevados e
preocupantes, não só pelo nível de criminalidade que representam, mas
principalmente porque por detrás deles está uma elevada cifra da injustiça (pessoas
inocentes injustamente submetidas ao processo). O que parece ser a supremacia da
lei reflete na realidade o império do Ministério Público. As cifras indicam não só
uma suposta eficácia da perseguição, mas também reais e elevadas cifras dos casos
de abusos de autoridade, perseguição política, desnecessária estigmatização e todo
tipo de prepotência.279

Os números realmente impressionam, mas não se pode de antemão afirmar que as


consequências para o sistema democrático de Processo Penal tenham sido nefastas. O fato é
que a legislação processual brasileira (art. 43, § 1º do CPP) deixa claro que o Inquérito
Policial não é o único procedimento investigativo com idoneidade para instruir a Ação Penal.
Abre-se um flanco para que possam ser utilizadas peças de informações produzidas por outros
órgãos administrativos (Receita Federal, Banco Central, dentre outros) e legislativos
(Comissões Parlamentares de Inquérito), o que faz com que a prerrogativa de investigar
delitos não possa ser negada justamente ao órgão legitimado a propor a Ação Pública.
O que deve ser ressaltado é que como qualquer outro procedimento a ser instaurado
no âmbito do Estado Democrático de Direito, qualquer investigação criminal levada a efeito
pelo Ministério Público não pode se pautar por uma "ética de resultados" que venha a

277
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2001. p. 81.
278
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 162
279
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2001. p. 82-83.
90

desconsiderar direitos fundamentais em nome da segurança, valendo-se de "técnicas


processuais aberrantes"280. Pelo contrário, ao investigar, com amparo nas atribuições que lhe
conferem a Constituição (art. 129, I, III, VI, VII e VIII), a lei 8.625/93 (art. 26) e a Lei
Complementar 75/93 (art. 5º), o Ministério Público brasileiro se vê em posição de "estrita
obediência ao princípio constitucional do devido processo legal"281.
Qualquer tentativa de reforma legislativa ou constitucional, visando excluir a
possibilidade do Ministério Público conduzir investigações criminais é inconstitucional, na
medida em que reduz o espectro de atuação desta que é "instituição permanente e popular"282.
No Processo Penal, especificamente, há que ser reconhecida como "parte" para que seu labor
investigativo seja submetido discursivamente ao crivo do devido processo legal, pois essa é a
única forma de constrangimento possível na processualidade democrática, à atuação de quem
quer que seja, pois como sintetiza Aury Lopes Júnior: "Quanto maior é a parcialidade das
partes, mais garantida está a imparcialidade dos juízes"283.

3.2 Processo como judicium: ausência do devido processo e retorno aos primórdios do
Pensamento Metafísico

Na modernidade, sob os auspícios do desenvolvimento científico nos mais diversos


segmentos, o estabelecimento de teorias, que buscavam justificar racionalmente o poder
estatal e a consolidação do positivismo jurídico, faz surgir o problema de se afirmar ou não a
possibilidade de uma Teoria Geral do Processo, que pudesse abarcar em sua área de
investigação todos os ramos do Direito Processual.
Essa matéria ganhou força desde que os teóricos começaram a desenvolver
concepções científicas acerca do Processo. Como demonstra Jorge Olmedo, no final do século
XVIII, mesmo com o esforço dos pós-glosadores e outros comentaristas em conferir-lhe uma
base teórica, o Processo Penal ainda era mero apêndice do Direito Penal. No entanto, ao longo
do século XIX, aproveitou a conquista de autonomia do Direito Processual e cortou o cordão
umbilical que o mantinha atrelado ao direito material284.

280
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 85.
281
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 163.
282
CHAVES, Charley Teixeira. Ministério Público como instituição permanente popular: os sujeitos
processuais no direito democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. p. 153.
283
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2001. p. 84.
284
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 2. 1982. p.
43.
91

Acusatoriedade e inquisitoriedade são, então, acolhidas numa tentativa de


compatibilização legislativa de grande repercussão em toda Europa: o code d'instruction
criminelle francês de 1808, promulgado por Napoleão. Este código é resultado de um esforço
que vinha sendo empreendido desde a Revolução para implantar o modelo acusatório em
substituição à ordenança francesa de 1670, que tinha um viés inquisitivo e que foi o grande
instrumento do absolutismo monárquico. Não tendo sido possível implantar um modelo
acusatório puro como na Inglaterra, instaurou-se, então, um sistema misto, com uma fase
inquisitorial e a outra acusatória285. Trata-se de síntese resultante da dialética entre
acusatoriedade e inquisitoriedade, que conforme será abordado adiante, apesar de ter se
espalhado por diversos sistemas legislativos, inclusive o brasileiro, carece de sustentação
teórica adequada ao paradigma democrático286. No entanto, serve para apontar a pertinência
de um dos eixos deste trabalho, ou seja, a indistinção epistemológica entre essas vertentes
dogmáticas, quando se trata de buscar uma perspectiva evolucionária para o Processo Penal.
De todo modo, é no século XIX que se inicia um esforço de elaboração da Teoria
Geral do Processo, tanto que, no prólogo de sua clássica obra, Bülow já vislumbrava a
possibilidade de suas cogitações servirem também para o processo criminal 287. Com Bülow, o
Direito Processual adquire autonomia científica e as repercussões de sua teoria no Processo
Penal são também objeto de interesse desta pesquisa.
Como já demonstrado acima, o século XIX foi marcado pela ciência dogmática do
Direito e pelo positivismo jurídico. Neste cenário, em 1868 Oskar Von Bülow, desenvolveu
notável estudo em que sistematizou o entendimento de que existe uma relação jurídica
processual que se distingue da relação material por três aspectos: a) pelos seus sujeitos (autor,
réu e Estado-juiz); b) pelo seu objeto (a prestação jurisdicional); c) pelos seus pressupostos
(os pressupostos processuais). Bülow teria se valido de um aforismo cunhado pelo jurista
romano Bulgaro (século XII): judicium est actum trium personarum: judicis, actoris et rei.
Trata-se de teoria que se espalhou mundialmente pelos textos de seguidores como Chiovenda,

285
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 5-6; OLMEDO,
Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 2. 1982. p.43.
286
"O modelo napoleônico de processo misto se difundiu no século passado em toda Europa, fixando raízes firmes
especialmente na Itália. Importo no Reino itálico contra o projeto de codificação elaborado por Romagnosi em
1806, foi acolhido pelos Códigos borbônico de 1819, de Parma de 1820, pontifício de 1831, toscano de 1838 e
pelos Códigos piemonteses de 1847 e 1859; e se conservou ininterruptamente, com variações apenas marginais,
no Código italiano de 1865, no de 1913 e finalmente no Código Rocco de 1930. A mistura e o compromisso
entre os dois modelos continuaram na era republicana, através da introdução de fracos elementos acusatórios na
fase instrutória, mas ao lado de maiores poderes judiciais aos órgãos inquiridores. Disso resultou uma ulterior
acentuação do caráter de juízo autônomo da fase instrutória e um progressivo esvaziamento da fase dos debates,
reduzida a mera e prejulgada duplicação da primeira" (FERRAJOLI, 2002, p.454).
287
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 4.
92

Carnelutti, Calamandrei e Liebman.


No Brasil, exerce ainda forte predomínio, sobretudo como esteio da escola
instrumentalista, vez que propala uma relação jurídica posicionando as partes em situação de
sujeição ao Estado-juiz, sendo o réucomo integrante do “pólo-passivo” submetido aos
interesses do autor que, por sua vez, se posiciona no “pólo-ativo”288. O mérito dessa teoria
reside no rompimento com as concepções privatísticas de Pothier (processo como contrato) e
Savigny (processo como quase contrato)289. Com Bülow, o processo passou a ser estudado
como ramo do Direito Público, graças a uma concepção inovadora para a época:

A relação jurídica processual se distingue das demais relações de direito por outra
característica singular, que pode ter contribuído, em grande parte, ao desconhecimento
de sua natureza de relação jurídica contínua. O processo é uma relação jurídica que
avança gradualmente e que se desenvolve passo a passo. Enquanto as relações
jurídicas privadas que constituem a matéria do debate judicial, apresentam-se como
totalmente concluídas; a relação jurídica processual se encontra em embrião. Esta se
prepara por meio de atos particulares. Somente se aperfeiçoa com a litiscontestação, o
contrato de direito público, pelo qual, de um lado, o tribunal assume a obrigação
concreta de decidir e realizar o direito deduzido em juízo e de outro lado, as partes
ficam obrigadas, para isto, a prestar uma colaboração indispensável e a submeter-se
aos resultados desta atividade comum. Esta atividade ulterior decorre também de uma
série de atos separados, independentes e resultantes uns dos outros. A relação jurídica
processual está em constante movimento e transformação. 290

Mas o fato é que Bülow, não obstante ter inaugurado a ciência processual, enredou-a
em um paradoxo insanável apontado com acuidade por André Cordeiro Leal291 e que consiste
no fato de que ao afirmar que o Processo é uma relação jurídica de direito público, vincula as
partes às interpretações e decisões dos tribunais, instaurando uma estrutura autoritária. Em sua
clássica obra editada em 1868, afirma:

A validez da relação processual é uma questão que não pode deixar-se liberada em
sua totalidade à disposição das partes, pois não se trata de um ajuste privado entre os
litigantes, só influenciado por interesses individuais, mas sim de um ato realizado
com a ativa participação do tribunal e sob a autoridade do Estado, cujos requisitos
são coativos e em maior parte, absolutos. 292

288
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 280-281; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do
processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 83-84.
289
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007.
290
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 6.
291
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p.
60.
292
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 258.
93

Desse modo, os magistrados são alçados a um patamar de controle de todo o direito


vigente, e o Processo passa a ser compreendido como o instrumento empregado na atividade
do juiz, que deveria criar o Direito em nome do Estado, mediante critérios de experiência e
sentimento íntimo. O que Bülow não explica é como se daria o controle dessa atividade
judicial293.
O paradoxo reside no fato de que o Processo não pode ser, ao mesmo tempo,
instrumento de exercício do poder e mecanismo destinado a limitar e controlar a atividade
jurisdicional, compreendida até então de forma inequívoca como uma das modalidades de
exercício de poder pelo Estado294. Com amparo nas cogitações de André Cordeiro Leal,
Sérgio Tiveron conclui a respeito do paradoxo de Bülow:

Esse paradoxo constitui-se num obstáculo à garantia dos direitos fundamentais, por
ser inconcebível que algo (processo) seja instrumento, meio ou método livre de
atuação do poder de criação e dicção do Direito e, ao mesmo tempo, sua própria
limitação.
À falta de adequadas respostas (crise) do modelo formalista (liberal-burguês),
concomitante ao avanço do desenvolvimento técnico proporcionado pelo
capitalismo gerador de um mundo desencantado (Weber), contrapôs Bülow a criação
do Direito conforme o sentimento ou desejo dos juízes (livre e discricionariamente)
hauríveis à coletividade de sangue e solo (nação) e aos seus concretos valores, ainda
que além, contra ou fora dos textos legais.295

O problema com a teoria bülowiana é que o Processo se torna mera técnica de


atuação dos juízes, visando até mesmo a realização de escopos metajurídicos (sociais e
políticos)296. Mesmo afirmando se tratar de uma relação de direito público, ainda se estabelece
por um vínculo de sujeição entre pessoas que, no fim das contas, sempre se define como um
"fundamento típico do direito privado obrigacional"297. Bülow, com sua teoria, adota uma
concepção social de Estado, com um totalitarismo embrionário, subordinando e
instrumentalizando o indivíduo, que passa a ter seu papel social e político consideravelmente
desvalorizado em função da prevalência de uma "ideologia do poder", conforme as palavras

293
Este é talvez, o ponto mais importante deste trabalho e será adiante desenvolvido tendo como marco a Teoria
Neoinstitucionalista do Processo, que concebemos capaz de escapar do paradoxo de Bülow, pois estabelece o
Processo como "instituição pública constitucionalizada de controle tutelar da produção dos provimentos, sejam
judiciais, legislativos ou administrativos" (LEAL, 2012, p. 53).
294
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.p. 139.
295
A relação jurídica como técnica de suspensão da lei pelo juiz e a ideologia da decisão judicial como atividade
complementar da função legislativa e fonte criadora do direito ainda presentes no novo CPC: apontamentos
críticos à exposição de motivos. (ROSSI, 2011, p. 602).
296
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
188.
297
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.p.
30.
94

de Sérgio Tiveron298.
As consequências práticas e teóricas das cogitações de Bülow, mediante a sua
notável influência na processualística dos países de Direito romano-germânico, são visíveis
também no Direito Processual Penal. Ainda que este se estruture sob o rótulo de acusatório, a
teoria relacionista vai produzir efeitos altamente nefastos, pois contraria o paradigma
democrático ao servir de sustentáculo à "ditadura do senso comum como agente municiador
de expectativas securitárias de lei e ordem"299.
É perceptível a influência de tais concepções, pela atuação solipsista e, por vezes,
discricionária do julgador300, instaurando um protagonismo judicial, cujo primeiro grande
exemplo no campo da legislação se deu com a Ordenança Processual Civil (ZPO) do império
austro-húngaro, elaborada em 1895, por Franz Klein, então Ministro da Justiça, que
consagrou os princípios da oralidade, mediação, concentração dos atos processuais e
informalidade301.
A ZPO austríaca tem como fonte direta a StPO (Strafprozessording) alemã de 1877,
que já consagrava o princípio do juiz diretor, que se lançava à instrução, investigação e busca
da "verdade material" independente da atividade das partes, conforme constata Jairo Parra
Quijano302. O fato é que, no contexto da monarquia dual austro-húngara, Franz Klein já
atribuía ao processo escopos metajurídicos (políticos, econômicos e sociais) e, ao mesmo
tempo, via nos litígios uma expressão de crise social que reclamava uma atuação mais direta e
ativa do Estado na sua resolução303.
Há uma relação entre as inovações legislativas capitaneadas por Klein e a teoria de
Bülow. Este último, como é notório, desenvolveu toda a sua teoria das exceções e dos
pressupostos processuais tendo como destinatária a comissão que trabalhava na elaboração da
ordenança processual civil da confederação alemã304, ordenança esta que, como visto, serviu
de fonte inspiradora para as medidas de Klein. Ambos representam um modelo de socialismo
processual próprio do final do século XIX, que se caracteriza principalmente pelo

298
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.p.
30.p. 598.
299
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 53.
300
A exemplo do disposto nos arts. 156 e 385 do Código de Processo Penal brasileiro.
301
QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.
40.
302
O autor demonstra ainda uma inspiração remota para a legislação elaborada por Franz Klein: O regulamento
processual do monarca austríaco José II em 1791, exemplo de legislação produzida pelo chamado "despotismo
ilustrado". (KLEIN apud QUIJANO, 2004, p. 42).
303
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 83.
304
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 266.
95

intervencionismo estatal nas questões privadas. Enquanto a influência de Bülow se fez notar
na doutrina, Klein exerceu forte influência na legislação305, contribuindo para que concepções
autoritárias de processo vicejassem no século XX, criando fortes entraves ao desenvolvimento
de uma processualidade democrática, pois instaura uma nova inquisitoriedade, ainda que
disfarçada.

3.3 A instrumentalidade do processo penal e a persistência do sincretismo jurídico dos


chamados processos acusatório e inquisitório

A corrente unitária, que defende a possibilidade de uma Teoria Geral do Processo, é


adotada por Cândido Rangel Dinamarco para quem o elemento unificador não seria a lide, a
pretensão ou o contraditório, mas a instrumentalidade, que, em uma abordagem teleológica, se
apresentaria como a síntese dos objetivos do sistema processual:

O que a teoria geral do processo postula é, resumidamente, a visão metodológica


unitária do direito processual. Unidade de métodos não implica homogeneidade de
soluções. Pelo método indutivo, ela chegou à instrumentalidade do processo como
nota central de todo o sistema e tendência metodológica do direito processual
contemporâneo como um todo; a visão instrumentalista, alimentada pela
comprovação que a teoria geral fornece, é o vento mais profícuo da atualidade, em
direito processual.306

Em semelhante direção, segue Aury Lopes Júnior que, mesmo demonstrando


preocupação em superar a teoria de Bülow, não consegue se afastar da concepção
instrumentalista. O autor rende homenagens a Goldschmidt, a quem considera como sendo o
mais bem sucedido refutador de Bülow, ao rechaçar a ideia de que existem direitos e
obrigações processuais, instaurando assim uma epistemologia da incerteza307, pela qual o
Processo se resolve como uma guerra, vencendo aquele que obtiver mais êxito em se
desincumbir das cargas ou ônus atribuídos pela lei308. Mesmo assim, adota a mais importante
herança bülowiana, ou seja, a concepção de instrumentalidade do Processo, que considera o
principal fundamento de sua existência. Faz, no entanto, uma ressalva:
305
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 98. Ainda
QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.
47. Onde se colhe que A ZPO austríaca influenciou sobretudo o Código de Processo Civil Húngaro de 1911, a
ZPO polonesa de 1930, o Código da Iugoslávia de 1929, a legislação da Tchecoslováquia no mesmo período, a
ZPO norueguesa de 1915, a lei processual da Dinamarca em 1916 e, lei processual da Suécia, quase 50 anos
depois, em 1942.
306
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 89.
307
Esta concepção, será melhor abordada no tópico 4 deste trabalho.
308
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 134-136.
96

É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se manifesta no processo


penal, pois se trata de instrumentalidade relacionada ao Direito Penal e à pena, mas,
principalmente, um instrumento a serviço da máxima eficácia das garantias
constitucionais. Está legitimado como instrumento a serviço do projeto
constitucional.309

Essa instrumentalidade tem forte amparo no garantismo penal de Luigi Ferrajoli,


sendo denominada pelo autor de "instrumentalidade constitucional" que permitiria a
operacionalização, com "máxima eficiência", de um "sistema de garantias mínimas",
destinado a minimizar os "espaços impróprios de discricionariedade judicial", fornecendo,
assim, um sólido aparato a proporcionar "independência da magistratura", diante da chamada
"panpenalização"310.
Mesmo nessa vertente, a instrumentalidade mantém aquela que é a sua maior
característica, ou seja: o controle jurisdicional do processo ao invés do controle processual da
jurisdição311, não escapando à crítica de André Cordeiro Leal, aqueles que defendem um
processo voltado "à realização dos valores do Estado e da própria sociedade", pois aposta
numa concretude alicerçada numa pré-compreensão de que tais valores intrínsecos a uma
realidade social só poderiam ser resguardados por um juiz "magnânimo e preparado",
mediante um enfoque do Direito que "antes de axiológico, é axiologizante"312.
Esse caráter se evidencia com a radical afirmação de Cândido Rangel Dinamarco de
que como todo instrumento o Processo é meio e, como tal, só se legitima em razão dos fins a
que se destina313. Estes fins ou escopos se estenderiam às questões sociais e políticas, não se
restringindo apenas ao jurídico. Os escopos sociais, segundo Dinamarco, seriam a pacificação
social com justiça e a educação. Na concepção do autor, a pacificação social seria alcançada
com a eliminação do conflito mediante critérios justos, levando à máxima potência o
decisionismo estatal, que seria capaz de por fim às angústias, pois os indivíduos, mesmo
diante de uma decisão desfavorável, tendem a confiar na idoneidade do sistema:

[...] psicologicamente, às vezes, a privação consumada é menos incômoda que o


conflito pendente: eliminado este desaparecem as angústias inerentes ao estado de
insatisfação e esta, se perdurar, estará desativada de boa parte de sua potencialidade

309
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 28-29.
310
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade
constitucional). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.p. 71.
311
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. .
56.
312
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p.
137.
313
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
181.
97

anti-social.314

Outro escopo social é o de educação. O Processo instrumental atrairia forte confiança


da população no judiciário e este, com sua postura altiva e ativa, induziria cada um dos
cidadãos "a ser sempre mais zeloso dos próprios direitos" e ao mesmo tempo "mais
responsável pela observância dos alheios"315. A educação se daria, desse modo, "através do
adequado exercício da jurisdição" com a finalidade de "chamar a própria população a trazer
suas insatisfações a serem remediadas em juízo"316.
Os escopos políticos, por sua vez, atuariam segundo uma tríplice finalidade:

Primeiro, afirmar a capacidade estatal de decidir imperativamente (poder), sem a


qual nem ele mesmo se sustentaria, nem teria como cumprir os fins que o legitimam,
nem haveria razão de ser para o ordenamento jurídico, projeção positivada do seu
poder e dele próprio; segundo, concretizar o culto ao valor liberdade, com isso
limitando e fazendo observar os contornos do poder e do seu exercício, para a
dignidade dos indivíduos sobre os quais ele se exerce; finalmente, assegurar a
participação dos cidadãos, por si mesmos ou através de suas associações, nos
destinos da sociedade política.317

É possível observar, na concepção instrumentalista, uma visão autárquica de Estado,


herdeira direta do paradoxo de Bülow e do voluntarismo de Klein, onde a participação dos
afetados na produção do provimento estatal318 se dá não como exercício de um direito
fundamental, mas como concessão ou tributo que o "Poder" presta aos indivíduos e que serve
justamente como forma de auto-afirmação, pois o "Poder" sendo "um conceito
sociologicamente amorfo", como adverte Weber, permite que "todas as qualidades
concebíveis de uma pessoa e toda combinação concebível de circunstâncias podem pôr
alguém numa situação na qual possa exigir obediência à sua vontade"319. Essa perspectiva
demonstra que a relação processual consiste numa estrutura em que a intersubjetividade se dá
mediante o estabelecimento de vínculos de sujeição320.

314
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
196.
315
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
197.
316
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
198.
317
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
204.
318
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001;
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 119.
319
WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias e Gerard
Georges Delaunay. 5. ed. São Paulo: Centauro Editora, 2008. p. 97.
320
A contraposição do instrumentalismo com a teoria da processualidade democrática será melhor explorada no
98

Outro aspecto notável, é que as perspectivas instrumentalistas estão sempre imersas


em dicotomias paralisantes, dentre as quais se destaca a que existe entre acusatoriedade e
inquisitoriedade. Rogério Lauria Tucci aponta outras situações:

[...] não se pode deixar de ter na devida conta que, estreitamente ligado ao Direito
Penal, e atendendo às diretrizes estabelecidas pelo escopo de suas respectivas
normas - de consecução do bem comum e correlata pacificação social, assecuratória
da segurança pública -, o processo penal objetiva, concomitantemente, dupla
finalidade, a saber:
a) por um lado, a tutela da liberdade jurídica do indivíduo, membro da comunidade;
e,
b) de outra banda, o de garantia da sociedade, contra a prática de atos penalmente
relevantes, pelo ser humano, em detrimento de sua estrutura. 321

Fauzi Hassan Chouckr demonstra que as dicotomias do instrumentalismo podem ser


ainda muito mais nefastas, pois ao transformarem o Processo Penal numa arena, na qual é
travado um embate entre liberdade individual e segurança pública, levam a propostas
antagônicas que defendem,, por um lado um sistema fraco como forma de preservar as
garantias individuais e, por outro, um sistema que privilegie a segurança social em detrimento
do indivíduo, ambas com forte viés ideológico. Na mesma linha de Tucci, o autor aposta na
complementariedade entre os opostos e num Processo Penal salvífico que tenha a notável
propriedade da pacificação social sob a tutela do Estado:

Da segurança individual advinda do respeito pelo Estado dos direitos individuais e


coletivos, nasce a segurança social que com a primeira interagirá num processo
dialético, sendo que o sistema penal num Estado democrático e de direito pauta-se
pela tutela de ambos os pólos em questão.322

Mas a superação dos dualismos metafísicos, positivistas e instrumentalistas não é


tarefa das mais fáceis. A proposta deste trabalho é no sentido de apontar que tanto o modelo
acusatório quanto o inquisitório são estruturados dogmaticamente e permitem o decisionismo,
pois se ancoram em argumentos pragmáticos ou utilitaristas pouco afeiçoados com o
paradigma democrático. Um Processo Penal que vá além dessas escolhas, calcadas na
intersubjetividade de cunho axiológico e que possa acolher uma perspectiva de
interenunciatividade, com aportes de conteúdos fornecidos pelo racionalismo crítico e pela
teoria Neoinstitucionalista, constitui a busca desta pesquisa323.
Para tanto, há que se empreender a sua desmitificação pelo abandono de concepções

Capítulo 4.
321
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p. 170-171.
322
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 12.
323
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 105
99

ideológico-dogmáticas (senso comum do conhecimento) e pelo acolhimento de uma


perspectiva teórico-epistemológica que permita expor, a teste incessante, todos os argumentos
encaminhados pelas partes, auxiliares e julgadores no plano da procedimentalidade penal, que
na contemporaneidade324, na ausência de conteúdos científicos desenvolvidos de modo mais
consistente, incorrem no puro e simples sincretismo entre acusatoriedade e inquisitoriedade,
como aponta Mauro Fonseca Andrade:

O fato do Ministério Público de um determinado país possuir o monopólio


acusatório, invariavelmente nos leva a crer que, nesse modelo de processo, está
presente o princípio acusatório material em sua plenitude, já que somente esse órgão
público poderá exercer as funções de acusador. Entretanto, essa situação encobre
uma dura realidade: esse monopólio somente garante que o Ministério Público será o
único legitimado a assinar a acusação. Em nenhum momento, a legitimidade
exclusiva do Ministério Público se refere a quem será o responsável por determinar
o conteúdo de uma acusação, e muito menos se o acusador pode ser obrigado a
ajuizá-la. Essas situações são responsáveis por converter o princípio acusatório
material em princípio acusatório formal, e, infelizmente, fazem parte da realidade
existente nos direitos alemão e italiano.325

O autor se refere a mecanismos legais existentes na Alemanha e na Itália pelos quais


o Ministério Público pode ser obrigado por decisão judicial a propor a ação penal, em clara
subversão do princípio acusatório proclamado em suas respectivas constituições. No direito
alemão, o princípio da obrigatoriedade ou da legalidade (Legalitäprinzip, § 152, II, StPO)
vem sendo mitigado nos casos de infrações de médio e pequeno potencial ofensivo pela
adoção progressiva do princípio da oportunidade (Opportunitätsprinzip), conferindo ao
Ministério Público a decisão sobre a conveniência de ajuizamento da ação penal. Contudo, em
certas situações ainda persiste a possibilidade de uma decisão judicial obrigar o Ministério
Público a promover a persecução em juízo326.
Já no direito italiano, o art. 409 do Codice di Procedura Penale, estabelece um
intricado procedimento que atribui ao juiz das indagações preliminares (indagini preliminari)
a competência de apreciar o pedido de arquivamento encaminhado pelo Ministério Público.
Quando não acolher de plano o pedido, o juiz poderá promover uma audiência de conciliação
que contará com a participação do autor do crime, da vítima e do Ministério Público,
podendo, a depender do resultado da audiência, determinar novas investigações. Ao final

324
Este trabalho aborda adiante as possíveis distinções entre contemporaneidade, pós-modernidade e neo-
modernidade.
325
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
329.
326
JUY-BIRMANN, Rudolphe. O sistema alemão. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da
Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro:
Lumen Juris. 2005.p. 23.
100

dessa etapa, o juiz pode determinar, no prazo de dez dias, que o Ministério Público formule a
imputação (L’imputazione coatta – art. 409, comma 5)327, numa clara derrogação do princípio
nulla jurisditio sine actione, que, segundo a doutrina, se justifica pela exigência permanente
de assegurar a garantia de um órgão imparcial numa fase em que o Ministério Público pode
adotar providências que vão incidir sobre o direito fundamental de liberdade328.
Esses exemplos ajudam a encaminhar o ponto central desta tese, que se propõe a
apontar a verdadeira crise dogmática que se instaura pela contraposição entre acusatoriedade e
inquisitoriedade, como tipos ideais estruturados ideologicamente, ao sabor das preferências
dos regimes de “Poder”. Contudo, as tentativas de superar essa dicotomia, não raras vezes,
resultam em mero sincretismo e pouco contribuem para o esclarecimento dos fundamentos
teóricos da linguagem decisória empregada no Processo Penal, o que se mostra de
considerável importância no paradigma do Estado Democrático de Direito.

327
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 289.
328
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 233.
101

4 O INSTRUMENTALISMO PENALÍSTICO E O AUTORITARISMO TÓPICO-


RETÓRICO DOS PÓS-POSITIVISTAS

Como foi demonstrado no Capítulo 1, o discurso, segundo Aristóteles, apresenta três


espécies: deliberativo, judicial e epidítico. Também foi objeto de abordagem o
desenvolvimento da tópica e da retórica e sua importância para a estabilização do discurso,
em geral, no racionalismo greco-romano. Nesse ponto, há que se concentrar nos efeitos da
tópica e da retórica no discurso judicial contemporâneo, sobretudo no Processo Penal, que, ao
se estruturar dogmaticamente sobre o binômio acusatoriedade-inquisitoriedade, acaba por
demonstrar uma forte dependência de recursos persuasivos, porém, cada vez mais desprovidos
de conteúdo científico.

4.1 A tópica e a retórica como fontes de construção decisória e jurisprudencial

Para compreender a distinção entre tópica e retórica devemos buscar inicialmente em


Aristóteles, a relação entre retórica e dialética. Afirmando que ambas possuem um caráter
generalista por não se ligarem a nenhuma ciência específica, ressalta que tanto a retórica
quanto a dialética se ocupam de questões relativas ao conhecimento, mas enquanto a retórica
se constitui como a arte da demonstração e do discernimento, a dialética se define pela
oposição de argumentos contrários329. O conteúdo da retórica é a apodítica330, pois pretende se
sustentar pela afirmação de coisas verdadeiras e primordiais por si mesmas331, enquanto na
dialética, o conteúdo é meramente opinativo332 havendo mesmo que levar em consideração as
intensões sofísticas dos litigantes333.
A tópica, por sua vez, é que vai conferir à retórica um sentido mais concreto, mais
próximo à dialética, na medida em que os raciocínios e as provas por persuasão passam a ser
formados por argumentos comuns, voltados ao convencimento dos auditórios ou mesmo dos
julgadores, deixando de lado os argumentos científicos que seriam próprios ao ensino, mas

329
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 89-93.
330
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
p. 73
331
ARISTÓTELES. Tratados de lógicas - Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.
Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. p. 90.
332
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Imprensa Nacional, 1979. p. 24.
333
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 94.
102

ineficazes na comunicação com as multidões334. Como pretende a persuasão de um auditório,


a tópica vai sempre se sustentar pelo raciocínio erístico, baseado na plausibilidade de suas
afirmações, que prevalecerão no debate tanto quanto forem aceitas como verdadeiras pela
maioria dos ouvintes, ou então, pelos mais conhecidos e de melhor reputação. O raciocínio
erístico pode se basear também em conteúdos apenas aparentemente plausíveis, mas que não
possuem consistência, muitas vezes se caracterizando como falso raciocínio335, que pode levar
a pseudoconclusões e paralogismos336.
O que se busca é o hábil manejo dos entimemas337 por uma linguagem que prima por
ser acessível às massas, desprezando-se termos científicos, cujo significado não é acessível à
maioria das pessoas ou fazem sentido apenas para iniciados em determinado ramo do
conhecimento. Segundo Aristóteles, os oradores incultos são os mais persuasivos diante da
multidão, pois são “inspirados pelas musas”. Eles não fazem deduções muito longas, nem
seguem todos os passos da lógica dedutiva, se concentrando nos pontos que interessam e que
são abalizados pelos juízes ou por aqueles de maior reputação, tornando o discurso mais
acessível aos ouvintes338.
Os tais argumentos ou lugares-comuns, deverão nortear a demonstração dialética
com o claro objetivo de melhor persuadir. São os chamados tópicos ou topoi, extraídos de
quatro cânones ou gêneros norteadores do raciocínio e que correspondem aos lugares-
comuns339: o gênero, a definição, o proprium e o acidente, deste decorrem, por sua vez, dez
categorias básicas do entendimento (substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo,
estado, posição, ação e paixão). Sempre com amparo no princípio da identidade, os topoi são
definidos como “pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a
favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e podem conduzir à verdade” 340. Opera-se
através da identificação de problemas e do confronto de suas semelhanças com outros casos:

334
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 93.
335
ARISTÓTELES. Tratados de lógicas - Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.
Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. p. 90-91.
336
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina
Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 48.
337
Silogismo retórico formado por premissas prováveis, que não apresentam uma conclusão de certeza absoluta.
(ABBAGNANO, 2007, p. 334).
338
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 213-214.
339
ARISTÓTELES. Tratados de lógicas. Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.
Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. Libros II a VII.
340
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Imprensa Nacional, 1979. p. 26-27.
103

A consideração do semelhante é útil para os argumentos por comprovação, para o


raciocínio a partir de uma hipótese ou para dar as definições. Para os raciocínios por
comprovação porque julgamos oportuno comprovar o universal mediante a
comprovação de casos singulares com base nas semelhanças: pois não é fácil
comprovar sem perceber as semelhanças. Para os raciocínios a partir de uma
hipótese, porque é coisa admitida que, tal como ocorre com uma das semelhanças,
assim também ocorre com as restantes. De modo que, com respeito a qualquer
dessas coisas de que disponhamos boas bases para a discussão, acordaremos
previamente que, tal como ocorre nesses casos, assim também ocorre ao
previamente estabelecido, e, uma vez demonstrado aquilo, também teremos
demonstrado através da hipótese o previamente estabelecido, pois havendo dado por
suposto que, tal como ocorre nesses casos, assim também ocorre no previamente
estabelecido, teremos construído a demonstração. (tradução nossa)341

Um vasto catálogo de topoi é apresentado por Aristóteles, o que permite estruturar


uma infinidade de perguntas e respostas que contribuem para o entendimento comum342. São
verdadeiros postulados da boa argumentação, como por exemplo: o dos contrários (ser sensato
é bom porque ser licencioso é nocivo); o das relações recíprocas (se um tem direito, outro tem
obrigação); o do mais e do menos (se nem os deuses sabem tudo, muito menos os homens);
dentre outros343. Os topoi atuam nos três gêneros oratórios, deliberativo, judicial e epidítico,
sendo que, neste último não têm a função de influenciar nenhuma decisão, pois o próprio
gênero era voltado mais ao espetáculo, cabendo aos ouvintes apenas apreciar o talento do
orador344. Nos dois primeiros, contudo, o discurso retórico é voltado para uma decisão,
sobretudo no caso do judicial. Contudo, há o alerta para que se deixe o mínimo possível de
questões submetidas à decisão dos juízes:

[...] não havendo uma definição clara do legislador, é certamente ao juiz que cabe
decidir, sem cuidar de saber o que pensam os litigantes.
É, pois, sumamente importante que as leis bem feitas determinem tudo com maior
rigor e exactidão, e deixem o menos possível à decisão dos juízes. Primeiro, porque
é mais fácil encontrar um ou poucos homens que sejam prudentes e capazes de
legislar e julgar do que encontrar muitos. Segundo, porque as leis se promulgam
depois de uma longa experiência de deliberação, mas os juízos se emitem de modo

341
“La consideración de lo semejante es útil para los argumentos por comprobación, para los razonamientos a
partir de una hipótesis y para dar las definiciones. Para los argumentos por comprobación porque juzgamos
oportuno comprobar lo universal mediante la comprobación por casos singulares sobre la base de las semejanzas:
pues no es fácil comprobar sin percibir las semejanzas. Para los razonamientos a partir de uma hipótesis, porque
es cosa admitida que, tal como ocurre con una de las semejanzas, así también ocurre con las restantes. De modo
que, respecto a cualquiera de esas cosas en que dispongamos de buenas bazas para la discución, acordaremos
previamente que, tal como ocurre en esos casos, así también ocurre en lo previamente establecido, y, una vez
ayamos mostrado aquello, también habremos mostrado, a partir de la hipótesis, lo previamente establecido; pues,
habiendo dado por supuesto que, tal como ocurre en esos casos, así también ocurre en lo previamente
establecido, hemos construido la demonstración.” (ARISTÓTELES, 1982, p. 119-120).
342
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Imprensa Nacional, 1979. p. 41.
343
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 216-218.
344
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 147.
104

imprevisto, sendo por conseguinte difícil aos juízes pronunciarem-se rectamente de


acordo com o que é justo e conveniente. E, sobretudo, porque a decisão do
legislador não incide sobre um caso particular, mas sobre o futuro e o geral, ao passo
que o membro da assembleia e o juiz têm de se pronunciar imediatamente sobre os
casos actuais e concretos. Na sua apreciação dos factos, intervêm muitas vezes a
amizade, a hostilidade e o interesse pessoal, com a consequência de não mais
conseguirem discernir a verdade com exactidão e de o seu juízo ser obscurecido por
um sentimento egoísta de prazer ou de dor.345

Apesar dessas recomendações, é evidente que são muitas as questões submetidas aos
juízes e, sobretudo na experiência jurídica dos séculos XX e XXI,até mesmo questões de
fundo axiológico passaram a ser submetidas ao judiciário que, por sua vez, passou a decidir
com a preocupação de que seus argumentos recebam a maior adesão possível de um auditório
universal, formado pelo conjunto de cidadãos, prevalecendo, assim, os argumentos
“privilegiados pelo senso comum”, acolhidos pela ciência jurídica na forma de princípios
gerais e enunciados jurisprudenciais, formando desse modo, um catálogo de topoi
específico346. Essa perspectiva pode ser observada nos trabalhos de Chaïm Perelman e
Theodor Viehweg.
Perelman, ao desenvolver sua teoria da argumentação, à qual denomina “nova
retórica”, pretende atribuir aos juízos valorativos um grau de objetividade, que antes o
positivismo jurídico só reconhecia aos chamados juízos de realidade. A solução jurídica
dependerá das peculiaridades do problema, conceitos ou ideias abstratas podem adquirir
concepções variadas e relativas, perdendo seu caráter absoluto:

Que fazer quando a adesão simultânea a vários valores ou a várias regras redunda,
em casos particulares, em incompatibilidades e antinomias? O senso comum
considera valores, admitidos por todos, a liberdade e a justiça. Mas pode acontecer,
mal os definimos desta ou daquela maneira, que eles venham a chocar-se em uma
situação particular. Para resolver a incompatibilidade que se apresenta, será
necessário sacrificar um dos dois valores ou redefinir um deles, a fim de subordiná-
lo ao outro. Para tanto, dissociamos uma noção, qualificando de aparentes alguns de
seus aspectos. Se certa concepção de justiça conduz a uma tirania que queremos a
todo custo evitar, nós a qualificaremos de justiça aparente. Se certo uso da liberdade
viola o ideal de justiça, ao qual concedemos primazia dentro de certa visão do
homem e da sociedade, diremos que se trata de licença ou de liberdade aparente. É
assim que a solução de conflitos entre valores, aceitos pelo senso comum, pode
conduzir a concepções filosóficas e ideológicas diferentes, pois há várias maneiras
de resolver um conflito entre valores e normas múltiplos em dada situação. 347

345
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 91.
346
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
152.
347
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 162-163.
105

Na construção de Perelman, essa ponderação de valores é atribuição solitária do


julgador pela prática prudencial que deve sempre buscar o razoável em cada situação: “O
julgador possui o poder, inclusive, de superar a lei para fazer justiça”348. Trata-se de uma
tentativa de superar a jurisprudência dos conceitos e o positivismo jurídico por uma
jurisprudência dos valores que permeia as decisões das Cortes, de modo que a ideologia, as
preferências políticas e até mesmo concepções religiosas acabam inevitavelmente
influenciando decisões judiciais, predominando um realismo jurídico pelo qual nem sempre a
lei é o fator mais importante a ser levado em consideração pelo julgador349
Mas a concepção de Perelman, também se baseia num critério teleológico por meio
de um relativismo normativo em que a aplicação da regra pode ser desqualificada, caso haja
um afastamento dos fins que deveria originariamente alcançar. Naquilo em que a regra
cumpre com seus fins, qualificada como real e como aparente, na parte ou sentido de
aplicação em que deve ser descartada. Os juízos de valor é que devem estruturar o real por
meio de uma lógica não-formal reconhecida como técnica capaz de promover uma constante e
naturalmente virtuosa interação entre pensamento e ação350. Com a relevância assumida pelos
valores nos juízos de aplicação, a lei passa a ser definida como um entre diversos topoi a
serem empregados na decisão jurídica351, e o único conflito que ainda atormentaria o julgador
nesse abandono normativo seria quanto a seguir o standard individual (subjetivo) ou
comunitário (objetivo), como se observa na tradição judicial norte-americana, cuja tendência
aparece resumida de modo lapidar por Benjamin N. Cardozo:

Minha análise do processo judicial vem, pois, a dar no seguinte, ou em pouco mais
do que isso: a lógica, a história, o costume, a utilidade e os standards aceitos de
comportamento correto são as forças que, separadamente ou em combinação,
impulsionam o progresso do direito. Qual dessas forças dominará em um caso
concreto, eis o que dependerá, largamente da importância ou do valor comparado
dos interesses sociais que, em consequência, serão promovidos ou prejudicados. (24)
Um dos interesses sociais mais fundamentais é o de que o direito deve ser uniforme
e imparcial. Não deve haver na sua ação coisa alguma que tenha visos de prevenção
ou favor, ou mesmo de capricho ou inconstância arbitrários. Portanto, na maioria
dos casos, haverá adesão ao precedente.352

348
ALMEIDA, Guilherme Assis de; BITTAR, Eduardo C. B. Curso de filosofia do direito. 4. ed. São Paulo:
Atlas, 2005. p. 420 .
349
BARROSO, Luís Roberto. O novo constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2013.p. 206208.
350
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 174.
351
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
150.
352
CARDOZO, Benjamim N. A natureza do processo e a evolução do direito. Tradução de Lêda Boechat
Rodrigues. Brasil: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 63-64.
106

Essa uniformidade ou imparcialidade não pode constituir uma fonte de opressão, e a


certeza ou segurança, dela decorrentes, podem ser equilibradas pela equidade, pelo sentimento
de justiça e pelos interesses que assegurem o bem-estar social. Esses cânones ou standards
estariam por essa concepção já implantados na prodigiosa mente do magistrado, ao qual
recomenda-se policiar a si próprio para não colocar suas idiossincrasias à frente dos interesses
comunitários. Cardozo, no entanto, reconhece que o julgador pode contribuir para “levantar o
nível do comportamento corrente”353. Mesmo assim, há autores que não desprezam o papel do
inconsciente como motivador das decisões judiciais, uma vez que o juiz, por ser humano, não
escapa de sofrer influências emocionais e passionais ao formular seus juízos354.
A tópica também assume estreita relação com a prática judiciária na obra de
Viehweg, queatravés de um estudo sobre a característica assistemática do Direito Romano,
mesmo com seu corpus iuris, atribui grande relevância ao problema, sendo possível afirmar
que toda uma série de postulados e concepções científicas foi desenvolvida a partir de lições
extraídas de casos concretos:

Esta é uma característica do pensamento problemático que reclama an eternal


dialectical research, an “open system” (15). Cada um se vê impelido, não a ordenar
um caso dentro de um sistema previamente encontrado, mas sim a exercitar sua
própria dicaiosine por meio de considerações medidas e vinculadas. O modo de
trabalho a ser seguido deve ser adequado a esta tarefa. É preciso desenvolver um
estilo especial de busca de premissas que, com o apoio em pontos de vista provados,
seja inventivo. O que mediante estes esforços se obtém fica pronto para tentativas
semelhantes. Este estilo especial cumpre uma função importante na incessante busca
do direito e deve-se cuidar que não se perca este valor funcional por causa de
tratamentos equivocados. Este modo de trabalhar se caracteriza, sobretudo porque
permite aos juristas entender o direito não como algo que se limitam a aceitar, mas
sim como algo que eles constroem de maneira responsável. 355

Os conceitos e posições desenvolvidas pela predominância do problema sobre o


sistema jurídico são, desse modo, resultados do pensamento tópico. Ao evitar a sistematização
das proposições extraídas dos problemas jurídicos, Viehweg busca demonstrar que mesmo
entre os romanos já se reconhecia a necessidade do Direito se desvencilhar da lógica formal,
encarando o silogismo como uma indesejável forma de se afastar do problema concreto e que
produz, com suas generalizações, um discurso jurídico dogmático356. Isso explica o sentido

353
CARDOZO, Benjamim N. A natureza do processo e a evolução do direito. Tradução de Lêda Boechat
Rodrigues. Brasil: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 61.
354
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá Editora,
1998a. p. 140.
355
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa
Nacional, 1979. p. 50.
356
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa
Nacional, 1979. p. 50.
107

mais prático da tópica de Cícero, com relação à tópica de Aristóteles, como demonstra
Manuel Atienza:

A Tópica de Cícero (obra dedicada precisamente a um jurista) teve uma influência


histórica maior que a obra de Aristóteles e se distingue pelo fato de,
fundamentalmente, tentar formular e aplicar um inventário de tópicos (quer dizer, de
lugares-comuns, de pontos de vista que têm aceitação generalizada e são aplicáveis
seja universalmente, seja num determinado ramo do saber) e não, como a de
Aristóteles, de elaborar uma teoria. Em Cícero desaparece a distinção entre o
apodítico e o dialético, mas em seu lugar surge uma distinção que tem uma origem
estóica (e que lembra até certo ponto a distinção vista no tema anterior entre
contexto de descoberta e contexto de justificação), entre a invenção e a formação do
juízo. A tópica surge precisamente no campo da invenção, da obtenção de
argumentos; e um argumento é, para Cícero, uma razão que serve para convencer de
uma coisa duvidosa (rationem quae rei dubiae faciat fidem); os argumentos estão
contidos nos lugares ou loci – os topoi gregos -, que são, portanto, sedes ou
depósitos de argumentos; a tópica seria a arte de achar os argumentos (cf. García
Amado, 1988, pág. 68). A formação do juízo, pelo contrário, consistiria na passagem
das premissas para a conclusão.357

Enquanto os teóricos da Nova Retórica, por influência da tópica ciceroniana, buscam


substituir a lógica formal por uma lógica do razoável (material, informal) como forma de abrir
novos horizontes para a argumentação jurídica, o que predomina no Direito Processual, em
muitos aspectos, é o sincretismo das lógicas. Jairo Parra Quijano afirma que no processo
convivem duas espécies de lógica: a formal e a dialética. A lógica formal atuaria no momento
da decisão em que se manifesta por silogismo, com ênfase nas relações entre objetos,
resultando em um juízo pretensamente rigoroso. A lógica dialética atuaria no iter
procedimental no que o autor denomina de descobrimento da decisão judicial, sendo a espécie
de lógica que vai permitir a reflexão e a interpretação para sanar ambiguidades e incertezas 358.
Mas, sendo o Processo uma subclasse das proposições normativas, não há como deixar de
reconhecer o papel da lógica deôntica, em que o dever-ser se apresenta como "operador
diferencial" que se manifesta tripartido nas modalidades do obrigatório, do permitido ou do
proibido359.
Segundo Rosemiro Pereira Leal, o positivismo jurídico não consegue escapar do
"sincretismo das lógicas" no plano da produção normativa, o que favorece o monopólio
interpretativo pelos órgãos jurisdicionais, permitindo até mesmo o aparecimento de
proposições modais, que se baseiam em juízos de necessidade, contingência e

357
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina
Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 48.
358
QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.
33-36.
359
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,
1997.p. 70-72.
108

possibilidade360. O que se mostra então de grande importância epistemológica é estabelecer


para o âmbito do Processo um critério de demarcação teórica que permitirá distinguir ciência
de metafísica, critério esse que passa pela identificação de quais são as espécies de enunciados
que o integram enquanto sistema361. Daí a relevância de se estabelecer a distinção entre
enunciado, proposição, sentença linguística e atos de fala como propõem Michel Foucault 362 e
Suzan Haack363.
Buscar a compreensão plena do enunciado jurídico-processual talvez seja tarefa para
a Metafísica, mas, no plano científico parece perfeitamente possível identificá-lo e estabelecer
sua função para a estabilização do sentido normativo, bem como, para análise ou
decomposição das construções conclusivas em torno de questões de fato. Nesse ponto, é
pertinente destacar a postura de Popper que certa feita afirmou aceitar a lógica clássica não
como "organon da demonstração, mas como organon da crítica"364. Afirma-se o mesmo sobre
o processo e a prova,os quais podem ser vistos, antes de tudo, como mecanismos de refutação
crítica que só terão alguma serventia relevante se efetivamente atuarem para "constranger a
evidência", definida por Rui Cunha Martins como "vertigem anti-crítica e anti-
democrática"365.
Esse posicionamento intelectual vai em sentido oposto ao de Aristóteles quando
concebe o discurso judiciário como uma demonstração entimemática estruturada em máximas
(topoi) que permitirão facilitar a aceitação do discurso pelo julgador, pois contribuem para o
truque de extrair uma conclusão mais plausível do que as premissas em que se baseiam366. O
organon aristotélico, sobretudo quando se dedica às "Refutações Sofísticas", se apresenta
como um conjunto de ensinamentos que visam fortalecer o raciocínio diante das refutações
aparentes, traiçoeiramente engendradas no discurso pelos falsos sábios (sofistas)367. A lógica

360
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 154.
361
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 38.
362
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008a.p. 91.
363
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 113.
364
POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial
Fragmentos, 2006. p. 9. "Organon é o título do conjunto de textos aristotélicos que, para muitos, inauguraram a
lógica clássica. São eles: Categorias, Sobre a interpretação, Analíticos primeiros (dois livros), Analíticos
segundos (dois livros); Tópicos (oito livros) e Refutações sofísticas. Em 1620, Francis Bacon publica uma obra
refutando toda a Lógica de Aristóteles, instaurando um sistema de investigação fortemente estruturado no
indutivismo. A esse trabalho deu o título de Novum Organun. (ABBAGNANO, 2007, p. 734).
365
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 4.
366
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005 p. 290-291.
367
ARISTÓTELES. Tratados de lógicas - Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.
109

seria o mecanismo empregado para que uma conclusão adquirisse irrefutabilidade. Mas há
que se observar a diferença de método entre a tópica retórica (método antigo) e a lógica de
Descartes (método moderno ou crítico), assinalada por Viehweg, em sua “alusão a Vico”:

Vico caracteriza o método novo (crítica) da seguinte maneira: o ponto de partida é


um primum verum que não pode ser eliminado nem mesmo pela dúvida. O
desenvolvimento ulterior se dá na medida do possível, através de longas cadeias
dedutivas (sorites). Em sentido contrário, o método antigo (tópica) assim se
caracteriza: o ponto de partida é o sensus communis (senso comum, common sense),
que manipula o verossímil (verosimilia), contrapõe pontos de vista conforme os
cânones da tópica retórica e, sobretudo, trabalha com uma rede de silogismos. As
vantagens do procedimento novo localiza-se, segundo Vico, na agudeza e na
precisão (caso o primum verum seja mesmo um verum); as desvantagens, porém,
parecem predominar. Elas consistem na perda em penetração, estiolamento da
fantasia e da memória, pobreza da linguagem, falta de amadurecimento do juízo, em
uma palavra: depravação do humano. Tudo isto, porém, segundo Vico, pode ser
evitado pelo antigo método retórico e, especialmente, pela sua peça medular, a
tópica retórica. Esta proporciona sabedoria, desperta a fantasia e a memória e ensina
como considerar um estado de coisas de ângulos diversos, isto é, como descobrir
uma trama de pontos de vista. Deve-se intercalar, diz Vico, o antigo modo de pensar
tópico com o novo, pois este sem aquele não se efetiva (diss. III, Sec. 2 e 3). 368

Com o giro metodológico de Popper, não se pretende restringir a lógica à resolução


de questões puramente teóricas, deixando de reconhecer que a passagem do ser para o dever-
ser, mesmo envolvendo juízos valorativos, pode e deve ser submetida a critérios lógicos, pois,
do contrário, o raciocínio jurídico estaria confinado pelo positivismo e as decisões sempre
submetidas "às emoções, aos interesses e, no final das contas, à violência” assim como
submetido estaria “o controle de todos os problemas relativos à ação humana", como
demonstra Perelman369.
Esse reconhecimento do papel da lógica em Direito é ainda no sentido de uma
atuação voltada para estabelecer juízos confirmatórios, buscandosempre estabilizar a
confiabilidade das afirmações, ainda que calcadas em juízos valorativos. Mas é preciso
ressaltar que Aristóteles reconhecia que os entimemas, enquanto silogismos, não se prestavam
somente aos raciocínios demonstrativos, mas também refutativos370, e é por este ponto que o
Direito Processual, pelo instituto da prova, adquire relevância no Estado Democrático de
Direito, pois foi o aperfeiçoamento dos sistemas jurídicos de apreciação da prova que marcou

Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. p. 310.


368
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Imprensa Nacional, 1979. p. 20-21.
369
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 137.
370
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 215-216.
110

"a dolorosa caminhada do homem pra se libertar das atrocidades"371.

4.1.1 O racionalismo crítico pela via processual

Quando Popper propõe uma teoria das consequências institucionais que se debruçaria
sobre problemas relativos à criação e desenvolvimento das instituições sociais, o faz
afirmando que a epistemologia poderia ser uma saída para a "intranquilidade filosófica e
religiosa de nossos tempos" que resultou em niilismo, desolação e existencialismo. Essas
perspectivas, que demonstram um desapontamento com a atividade intelectual no século XX,
decorrem do fato de que não podemos justificar racionalmente nossas teorias, ou mesmo
"provar que são prováveis". No entanto, deveríamos nos satisfazer com o fato de poder
criticá-las racionalmente. É o que nos proporcionaria distingui-las de "outras piores"372. É
pelo racionalismo crítico que avançamos a uma epistemologia processual evolucionária que,
como será demonstrado adiante, pode contribuir para afastar o ceticismo radical marcado por
uma inteira desconfiança em nossas capacidades cognitivas373.
Como a crítica esclarecida somente é possível por meio de teorias, Rosemiro Pereira
Leal vai afirmar que tal postura requer uma teoria do discurso proposicional que possa
permitir ao Direito escapar do sincretismo das lógicas, que hoje se mostra tão útil ao
protagonismo do juiz-decisor:

Há que se lembrar que, ao falarmos de teorias do discurso proposicional, estas se


tornam meras ideologias se, por desaviso científico ou ingenuidade resvalarem para
a sustentação do deôntico a serviço do apofântico e do ontológico, porque se erigem,
com essa mimese repressiva secular, numa hermenêutica em juízos de saberes

371
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 186.
372
POPPER, Karl Raimund. A lógica das ciências sociais. Tradução de Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho;
Estevão de Rezende Martins e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.
p. 34.
373
“Pràxicamente, o céptico não vive o cepticismo, como nos mostrou Aristóteles. Êle sabe quando come porque
come, e evita confundir os factos uns com os outros (um trireme com uma carruagem, etc.). Distingue uma
ilusão de uma realidade. Não é, para êle, a mesma coisa a imagem de um prato de comida e o prato de comida
que êle come. Portanto, tem de reconhecer que tem um critério, por duvidoso que seja êle, mas que lhe serve
para não enganar-se sempre.De omnibus dubitare (duvidar de todas as coisas) não o consegue, e quer queira quer
não, tem certezas especulativas inevitáveis.
O nihil esse certum implica contradição por que é certum que nada é certo.
A objeção céptica poderia ser exposta sologìsticamente assim:
Não podemos ter fé em nossas faculdades se nos induzem ao êrro.
Ora, elas nos induzem ao êrro. Logo não podemos confiar em nossas faculdades.
Responde-se deste modo: examinemos a maior. Se nossas faculdades sempre e por si mesmas nos induzem ao
êrro, concederíamos. Mas se é de algum modo ou acidentalmente, já negaríamos.
Se nem sempre erramos, nem tudo é êrro. É preciso ver até onde vai o êrro e como se dá.” (SANTOS, 1958, p.
109-110)
111

absolutos, equidade e conveniência, na produção e aplicação das leis, a preservarem


o status de um direito não includente, em seus fundamentos proposicionais
democráticos, para os despatrimonializados.374

Essa inclusão discursiva permitiria que nos livrássemos dos conceitos absolutizantes,
pois a ambiguidade dos conceitos estaria já reconhecida, na medida em que seu sentido
depende sempre das intenções de quem os pronuncia375. Uma vez que se reconhece a chamada
intentio operis, é possível concluir que cada texto pretende formar um leitor-modelo, o que
implica em relativizar a intentio lectoris. Conforme demonstra Umberto Eco, “um texto é um
dispositivo concebido para produzir seu leitor-modelo. Repito que este leitor não é o que faz a
“única” conjetura “certa”. Um texto pode prever um leitor-modelo com o direito de fazer
infinitas conjeturas”376. Mas isso não implicaria acolher de modo irrefletido a veriphobia, a
ponto de afirmar que a verdade não só deixou de constituir um valor como passou a ser
entendida como um desvalor no contexto do Estado Democrático de Direito377. A inclusão
discursivamente proposicional é que vai permitir superar essas perplexidades, porém, sem
instaurar uma nova crença.
É importante, pois, esclarecer que a proposição em si, é tão somente uma forma
lógica e, como tal, para se apresentar como portadora de verdade, deve permitir que suas
variáveis sejam submetidas a teste, pois a verdade do composto depende da verdade dos
componentes378. O que o paradigma democrático vai exigir é que haja uma possibilidade de
arguição incessante das verdades que sustentam os componentes proposicionais, e aqui surge
o caráter refutativo das normas de processo pelas quais, dentre outras garantias, se enuncia a
prova, o que não quer dizer que esta atividade não possa estar sujeita a paradoxos379. É que
geralmente a prova é vista como demonstração. Ocorre que no seu demonstrar se expõe ao

374
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 155-156.
375
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 68.
376
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 75.
377
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.
2009. p. 98-99.
378
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 118.
379
Cabe aqui uma referência ao célebre paradoxo da prova formulado por Rui Cunha Martins como resultado de
seu diálogo com o filósofo Fernando Gil: "A prova não deve ser fraca: prova fraca é aquela que se satisfaz com a
verosimilhança, com o que se diz ser uma crença racional. Mas a verosimilhança que, fora da lógica e da
matemática, é o regime normal da prova, não é em si um critério satisfatório, por mais convincente que seja. A
verosimilhança não remove a eventualidade de excepções e de contra-exemplos - e as crenças racionais podem
revelar-se erróneas: os erros judiciários assentam sempre em verosimilhanças e crenças racionais. Portanto, a
prova tem de ser forte. Mas a prova forte revela-se de imediato demasiado forte - e, nesse momento, se essa
demasia se dá nos termos de uma ostensão de feição alucinatória, ela resvala sem escape, para o terreno da
evidência, a qual, veja-se a ironia, tende a dispensar a prova" (MARTINS, 2011, p.7-8).
112

teste intersubjetivo de suas proposições pela decomposição de seus enunciados, o que vai
permitir a dessujeitização da linguagem por uma declaração de sentido desgarrada do sujeito
da enunciação e produzida coletivamente em um nível heterodiscursivo380, com auxílio da
lógica jurídica, que, se não fornece o conteúdo de uma “razão suficiente”, exige que se
aplique tal princípio para determinar a validez ou invalidez de uma norma, bem como a
verdade ou falsidade de um determinado enunciado jurídico, seja ele um texto legal ou uma
sentença judicial381.
É possível afirmar, desse modo, que o discurso jurídico-processual tem como ponto
relevante de sua caracterização democrática a forma como vai lidar com a formação dos
juízos valorativos que são inevitáveis em Direito, haja vista a própria necessidade de
valoração e valorização da prova cujos critérios são objeto de justificada atenção da Teoria
Geral do Processo382. A valoração ou valorização em processo não pode ocorrer por decisões
solipsistas pautadas por critérios de ponderação que, apesar de engenhosos não se prestam a
um esclarecimento epistemológico, como exige o paradigma democrático, pois confundem
princípios jurídico-constitucionais com valores, argumentando que do mesmo modo que
podem ocorrer colisões entre princípios é possível haver uma colisão entre valores383.
Também não é recomendável que a valoração ou valorização, em Direito Processual
Penal, ocorra por critérios discursivos com pretensões de ética universal que buscam se
estabelecer a pretexto de livrar a humanidade da catástrofe da qual ela própria é causadora
pelas "incursões técnico-científicas do homem na natureza"384. Não seria a confiança de que
os sujeitos processuais se comportariam conforme uma ética universal, ou conforme uma
"dimensão espiritual"385, segundo a observância da alteridade, por uma concessão magnânima
do sujeito, que asseguraria a democraticidade processual386. É que na atualidade dos estudos
processuais não basta afirmar a plurissubjetividade do procedimento, pois só haverá processo
legitimador da decisão se for assegurada aos "destinatários dos efeitos"387 do ato decisório a

380
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274-
275.
381
MÁYNEZ, Eduardo García. Introducción a la logica juridica. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1951. p.
132 .
382
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 194.
383
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. Madrid:
Centro de Estudos Constitucionales, 1993p. 138.
384
COSTA, Regenaldo da. Ética do discurso e verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 174.
385
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho. Estado de direito e decisão jurídica: as dimensões não-
jurídicas do ato de julgar. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et al. Decisão judicial: a
cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012.p. 130.
386
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 103.
387
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
113

simétrica paridade, que não só dispensa expectativas esperançosas, como permite interrogar a
"ética" do julgador. O desdobramento dessa conjectura fica para o capítulo final desta
pesquisa.

4.2 As teorias de Alexy e Dworkin e suas implicações tópico-retóricas

No século XX, muito se falou de certa perspectiva pós-positivista como capaz de


empreender uma superação do dogmatismo jurídico. O que aqui se define como pós-
positivismo não é um conceito livre de ambiguidades, pois, como demonstra Andréa Alves de
Almeida, terminologias como "pragmatismo jurídico, pragmatismo político, pragmatismo
jurídico-político, neopositivismo, neoconstitucionalismo e teoria estruturante" são
basicamente abordagens voltadas para a interpretação do direito, com forte viés idealista, pois
se baseiam em critérios como justiça, bem comum, moralidade, razoabilidade e
proporcionalidade e também de cunho sociológico e histórico388, tendo como métodos de
expressão e mecanismos argumentativos, a tópica e a retórica.
No entanto, tais correntes, na sua variedade de forma, conteúdo e método, não
deixam de adotar uma postura dogmática. Tome-se como exemplo os pensamentos de Robert
Alexy e Ronald Dworkin, dois grandes expoentes do chamado pós-positivismo jurídico. As
concepções desses dois autores não conseguem superar o decisionismo, pois fornecem as
bases para uma hermenêutica que, no campo do Direito Processual Penal, acaba por permitir
que os critérios de aferição do ato delituoso e a aplicação das sanções penais permaneçam
submetidos ao solipsismo decisório, e a despeito de sua aparente abertura interpretativa se
sustenta em “conteúdos metajurídicos e metafísicos de conveniência, equidade,
proporcionalidade, ponderabilidade, flexibilidade, repercussão geral, senso de justiça e bem
comum”389.

4.2.1 O discurso jurídico como caso particular do discurso geral na teoria de Robert Alexy

Em sua Teoria da Argumentação Jurídica, Robert Alexy faz uma tentativa de


atualizar o discurso dogmático buscando um posicionamento intermediário entre o

2006. p. 119.
388
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.p. 120.
389
LEAL, Rosemiro Pereira. LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória
conjectural. Belo Horizonte: Arraes, 2013. p. 8.
114

dogmatismo pleno da jurisprudência conceitual alemã e as tentativas de confinar o papel da


dogmática jurídica "à análise lógica das normas jurídicas"390. A abordagem de Alexy
considera a argumentação dogmática como um caso especial de argumentação prática, e para
se posicionar teoricamente propõe que a definição de dogmática jurídica deveria levar em
conta o atendimento de certas condições, que implicariam no seguinte conceito:

A dogmática jurídica é (1) uma classe de proposições que (2) se relacionam com
normas atuadas e lei causal mas não são idênticas à descrição das mesmas, e (3)
estão em algum inter-relacionamento mútuo coerente, (4) são compostas e discutidas
no contexto de uma ciência jurídica institucionalmente organizada e (5) tem
conteúdo normativo.391

Sendo a dogmática jurídica uma classe especial de proposições, Alexy enumera


vários aspectos do papel por ela exercido na argumentação. Esses aspectos são a estabilização
de conceitos jurídicos autênticos (de cunho normativo), a aplicação de conceitos
extrajurídicos em decisões judiciais (na medida em que são aceitas pelos tribunais,
proposições extrajurídicas adquirem contornos dogmáticos), a possibilidade de aferir a
aceitação de uma proposição pelos cientistas jurídicos, a descrição de estados de coisas
(objetos de normas) e a formulação de princípios (proposições normativas com alto grau de
generalidade)392.
Na perspectiva Alexyana, as justificações jurídicas deverão ser necessariamente
sempre dogmáticas. Sua distinção entre justificação dogmática pura e justificação dogmática
impura393 é apenas uma espécie de radicalização da dogmática jurídica como dotada de
funções de considerável valor positivo e sistemático. Essas funções seriam (1) de
estabilização, (2) de desenvolvimento, (3) de redução de encargo, (4) técnica, (5) de controle
e (6) heurística.
Não caberia neste trabalho uma abordagem mais detalhada dessas funções, mas
poderíamos resumir o que o autor afirma de cada uma delas da seguinte forma: pela função
estabilizadora, a dogmática (como parte de um estabelecimento institucional) impede
390
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p. 243.
391
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p. 245.
392
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p.245-248.
393
"Há casos de aplicação das proposições da dogmática em que as proposições a serem justificadas seguem destas
proposições dogmáticas juntamente com apenas proposições empíricas, ou por adição de formulações das
normas jurídicas positivas. Também há casos em que outras premissas normativas são necessárias. No primeiro
caso, é possível falar de uma justificação dogmática pura, no segundo de uma justificação dogmática impura. No
caso da justificação dogmática impura, há a necessidade de argumentos práticos gerais em adição aos
argumentos dogmáticos." (ALEXY, 2001, p. 249).
115

mudanças bruscas de posicionamento sobre uma questão sem que haja uma violação das
regras do discurso jurídico e do discurso prático geral; pela função de desenvolvimento, a
dogmática desenvolve a si própria contribuindo para o progresso da ciência jurídica; pela
função de redução de encargos, a dogmática tornaria desnecessários novos exames nos
processos de justificação (na ausência de motivos especiais); já pela função técnica, a
dogmática, com sua contribuição para a construção de significados, conceitos básicos e
instituições jurídicas, terminaria por exercer também um papel didático, influenciando o
ensino jurídico; em seguida o autor aborda a função controladora em que a dogmática
permitiria um exame de consistência das proposições jurídicas (num sentido estrito seria o
controle de sua compatibilidade lógica e num sentido amplo o controle de sua compatibilidade
prática geral); por fim, a dogmática teria uma função heurística, pois permite em torno de suas
proposições o estabelecimento de um sistema de perguntas e respostas que seria um fecundo
ponto de partida para novas descobertas na área jurídica394.
O que se observa na abordagem da dogmática por Alexy é uma tentativa de
demonstrar sua centralidade na ciência jurídica. Em seu ponto de vista, o discurso jurídico é
sempre um caso particular do discurso prático geral (moral, ética, economia, dentre outros) e,
como caso particular, é portador de limitações de forma, conteúdo e finalidade 395. Essa
concepção leva a uma subordinação do Direito à Moralidade, o que a torna incompatível com
uma perspectiva pós-metafísica, uma vez que se mostra ainda presa ao jusnaturalismo396.
Razão pela qual, a dogmática, através das características acima expostas adquire em Alexy
um enfoque, estritamente instrumental. Desse modo:

A dogmática jurídica é um instrumento que pode acarretar resultados inatingíveis


unicamente por meio do discurso prático geral. Algumas destas conquistas, como a
contribuição para satisfazer o princípio da universalidade no contexto das funções de
estabilização e controle, são exigências da razão prática geral; outras, como a função
heurística, são desejáveis por razões semelhantes. Assim sendo, a dogmática jurídica
é uma atividade racional.397

Para Alexy, há sempre um elo entre argumentação dogmática e argumentação prática


geral, pois a primeira sempre poderá recorrer à segunda, quando por si só for insuficiente para

394
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p. 252-257.
395
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p. 212.
396
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos,
2000a. p. 107.
397
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p.257.
116

justificar uma determinada solução398. E é justamente essa ligação que garante a racionalidade
da dogmática jurídica399. No entanto, o que permanece inexplicado por Alexy é qual a
criteriologia empregada na passagem do discurso jurídico ao discurso prático geral e no
retorno do discurso prático geral ao discurso jurídico.

4.2.2 A busca da resposta certa, o Direito como um romance em cadeia e a figura do Juiz
Hércules: Expressões do dogmatismo em Dworkin

Dos autores mais proeminentes do chamado pós-positivismo, Ronald Dworkin talvez


seja aquele que de modo mais acentuado sustente sua teoria no decisionismo solipsista,
apresentando a moral política como fio condutor de uma prática jurídica, notadamente no
plano do Direito Constitucional400, voltada à resolução de casos e que por vezes se vê
enredada por perplexidades401 que precisam ser contornadas.
No entanto, a aparente abertura do pensamento de Dworkin402, esconde um forte
conteúdo dogmático, como, por exemplo, sua obstinada defesa da resposta correta, como
possibilidade a ser buscada nos debates jurídicos, sobretudo nos debates judiciais. A resposta
certa seria possível pelo fato de que uma determinada proposição jurídica só pode ser
considerada "bem fundada, se faz parte da melhor justificativa que se pode oferecer para o
conjunto de proposições jurídicas tidas como estabelecidas"403. Essa "melhor justificativa",
segundo o autor, se daria em duas dimensões discursivas, a de "adequação" e a da
"moralidade política"404.
Na dimensão da adequação seria possível distinguir se certa teoria política consegue
atender melhor que outra os ditames já estabelecidos pelo ordenamento. Para Dworkin,
somente em "sistemas jurídicos imaturos" é que duas teorias diferentes podem apresentar
respostas igualmente boas. De tal conclusão decorre que, em sistemas jurídicos mais

398
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p.250.
399
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p.257.
400
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 246.
401
Os chamados casos difíceis (hard cases) para os quais não há no ordenamento norma que possa servir de
fundamento imediato para a decisão. Para decidir eses casos, o autor desenvolve a figura juiz Hécules, que seria
dotado de "capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas”. (DWORKIN, 2002, p. 165).
402
Por exemplo, quando afirma que "política, arte e Direito estão unidos, de algum modo, na filosofia".
(DWORKIN, 2002, p. 249).
403
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 213.
404
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 213.
117

complexos, a tendência é que haja uma possibilidade cada vez menor de empates
argumentativos. Na segunda dimensão, há sempre a possibilidade de duas respostas
igualmente boas, mas deverá prevalecer a que melhor atende às justificativas de ordem moral,
ainda que haja divergências "porque juristas que sustentam tipos diferentes de moral irão
avaliá-las de forma diferente"405. Isso faz com que eventual conclusão pela inexistência da
resposta correta só ocorreria "em virtude de algum tipo mais problemático de indeterminação
ou incomensurabilidade na teoria moral"406.
Outra demonstração eloquente do dogmatismo dworkiniano, se dá no ponto de sua
obra em que compara a atividade dos juízes com a exercida por um grupo de escritores
encarregados de elaborar um romance em cadeia:

Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado projeto


e que jogue dados para definir e ordem do jogo. O de número mais baixo escreve o
capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o número seguinte,
o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que está acrescentando um
capítulo a este romance, não começando outro, e, depois, manda os dois capítulos
para o número seguinte e assim por diante. Ora, cada romancista, a não ser o
primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois precisa ler tudo o
que foi feito antes para estabelecer, no sentido interpretativista, o que é o romance
criado até então.407

Dworkin compara a atividade do juiz à do integrante dessa cadeia de romancistas, na


medida em que ao decidir um caso (sobretudo no sistema de Common Law) o juiz deve se
inteirar das decisões precedentes não só para conhecer as razões ou o estado de espírito que
levaram os juízes a decidir desta ou daquela forma, mas também para formar uma opinião
própria sobre aquelas decisões precedentes.

Ao decidir um novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um


complexo empreendimento em cadeia, do qual estas inúmeras decisões, estruturas,
convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro
por meio do que ele fez agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem
a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em
alguma nova direção. Portanto, deve determinar, segundo seu próprio julgamento, o
motivo das decisões anteriores, qual realmente é, tomado como um todo, o propósito
ou o tema da prática até então.408

405
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 214.
406
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 215.
407
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 237.
408
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 238.
118

O pós-positivismo em Dworkin seria então um amálgama de decisionismo e


dogmatismo, pois exclui por completo qualquer referência ao papel das partes na construção
deste arcabouço decisório que, no final das contas, tem sua integridade assegurada pela razão
auto-suficiente de um julgador hercúleo, capaz de suspender sua própria concepção de
moralidade política para que prevaleça na resolução dos conflitos uma concepção de
moralidade comunitária como expressão de uma moralidade política que é pressuposta pelas
leis e pelas instituições409.
Percebe-se, no entanto, que o juiz Hércules, de Dworkin, é uma figura metafórica, na
medida em que seus atributos são extraordinários. Sua técnica é apresentada aos juízes como
forma de encorajá-los a enfrentar os casos difíceis, pois a essa categoria, a despeito de sua
falibilidade não seria dado deixar de decidir, tampouco submeter questões, ainda que de
ordem política a outros órgãos do Estado ou mesmo da sociedade, pois em seu entender "não
há razão para atribuir a nenhum outro grupo específico uma maior capacidade de
argumentação moral"410, deixando claro que, se tal razão existir, seria o caso de mudar os
critérios de seleção dos juízes, mas não as suas técnicas de decisão. Após demonstrar toda a
magnitude do juiz Hércules, Dworkin faz uma inflexão afirmando que os atributos de sua
criatura serviriam para alertar aos magistrados de que eles estariam sujeitos a erros na
elaboração de juízos políticos, e que por tal razão devem decidir "os casos difíceis com
humildade"411. Os chamados hard cases seriam aqueles que envolvessem três aspectos que
podem provocar perplexidade: ambiguidade da linguagem, desacordos morais razoáveis e
colisões de normas constitucionais ou de direitos fundamentais412.
Mesmo ressalvando que Dworkin defende uma discricionariedade judicial "fraca", e
que os juízes não podem criar o direito sob pena de invadirem a seara legislativa (argumento
democrático) e ferirem as expectativas dos cidadãos criando norma retroativa (argumento de
justiça)413, no fim das contas o que se percebe é a hipertrofia da atividade jurisdicional, pois
no decorrer de suas alentadas exemplificações não há espaço para a articulação argumentativa
pela via processual destinada a evitar esse protagonismo que se mostra incompatível com o
paradigma democrático. Isso ocorre, sobretudo porque na teoria de Dworkin o princípio
jurídico não se enuncia normativamente, mas é "achado pelo juiz nos vazios ditos inevitáveis
do direito em vigor (analogia) como modo de tornar o direito revestido de uma integridade

409
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 197.
410
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 203.
411
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 203.
412
BARROSO, Luís Roberto. O novo constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2013.p. 37-38.
413
SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.p. 162.
119

(completude) permanente"414, permanecendo atrelado a uma concepção positivista.

4.3 Os impactos das visões contemporâneas, neo-modernas e pós-modernas no binômio


acusatoriedade-inquisitoriedade

Até este ponto a intenção foi apresentar uma narrativa capaz de demonstrar como o
Processo Penalse encontra ainda atrelado a concepções arcaicas que espelham um
dogmatismo dicotômico do qual a ciência jurídica precisa se desvencilhar. No estudo
desenvolvido até aqui foi possível perceber que a ciência jurídica ainda mostra dificuldades
para assentar uma perspectiva não-dogmática, voltada à construção do Estado Democrático de
Direito415. Em razão dessa postura, é possível verificar nas decisões jurisdicionais, simulacros
de fundamentação estruturados pela tópica-retórica de uma autoridade que se esmera na busca
de argumentos já assentados no senso comum do conhecimento jurídico, dispensando-se de
apresentar fundamentos teóricos.
Como conclusão a este capítulo seria proveitosa uma abordagem acerca de algumas
terminologias que podem contribuir para demarcar os rumos desta pesquisa de modo a
proporcionar a compreensão do Direito Processual Penal, na pós-modernidade, como
instituição jurídica livre das mitificações ideológicas e dogmáticas, instaurando, nesse
segmento da ciência jurídica, a processualidade democrática. Para tanto, é necessário abordar
ainda que em breves palavras, conceitos como contemporaneidade, modernidade, neo-
modernidade, pós-modernidade e profanação.
No atual estágio de desenvolvimento da Ciência do Processo, em que esta já não se
configura como uma disciplina confinada às ideologias que impregnam o discurso científico,
e sim como vertente teórica voltada ao “esclarecimento crítico do discurso das realidades
normativas”416, faz-se necessária uma releitura do Direito Processual Penal numa perspectiva
contemporânea, em contraposição ao enfoque dogmático predominantemente verificado entre
os autores mais proeminentes.
Uma perspectiva contemporânea exige certo anacronismo, certa distância, uma não
adesão completa à época em que se vive, pois só assim seria possível uma observação livre de

414
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 155.
415
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 592.
416
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 15.
120

influências perniciosas417. Para Agamben, o contemporâneo seria capaz de manter fixo o olhar
no seu tempo para nele perceber, não as luzes, mas a obscuridade. O observador
contemporâneo é aquele que não se deixa cegar pelas luzes de seu tempo e compreende a
escuridão como algo que o interpela e que lhe é pertinente418. Ou seja: o observador
contemporâneo, mais do que o conforto da claridade, se ocupa em perceber o que há de
obscuro nas interfaces de seu tempo.
Diante de tal percepção, o observador contemporâneo adotaria uma conduta que
consiste em dividir o tempo e estabelecer a sua descontinuidade. Com essa fratura conseguiria
promover um encontro dos tempos e das gerações e ao estabelecer essa relação percebe a
escuridão do presente com o objetivo de apreender sua “resoluta luz”419. Diga-se: qualquer
abordagem em torno da obscuridade do passado está impregnada de uma interrogação teórica
que se dá, necessariamente, no tempo presente. Isso implica que o ordenamento jurídico seja
submetido, na contemporaneidade, a uma perspectiva diacrônica, sendo pesquisado como um
conjunto de normas em constante mutação numa sequência dinâmica capaz de fornecer
importantes subsídios investigativos420.
Uma perspectiva semelhante, tendo em vista o Direito Processual Penal, nos levaria a
interrogar em quais bases teóricas esse segmento jurídico deveria se assentar para que pudesse
adquirir compatibilidade com o paradigma do Estado Democrático de Direito, em que a
institucionalização jurídica se dá pela Constituição formal, e a lei, como ser jurídico concreto,
processualmente construído, é pressuposto do dever-ser jurídico e se define como existência
hermenêutica posta em todos os níveis pela própria lei421.
Com isso, seria possível interrogar qual o sentido das tensões que se colocam entre
doutrina sempre partidária da acusatoriedade e legislação, sempre disposta a reforçar a
inquisitoriedade, ainda que preste alguns tributos à primeira422, como apregoa Ada Pellegrini
Grinover, para quem o "Código de Processo Penal Modelo para a Ibero-América",
apresentado nas "XI Jornadas Ibero-americanas de Direito Processual - Rio de Janeiro, 1988",
contribuiu para que o Processo Penal adquirisse feições acusatórias na América Latina

417
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009. p. 59.
418
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009. p. 63-64.
419
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009. p. 72.
420
GUASTINI, Riccardo. La sintassi del diritto.Torino: Giappichelli Editore, 2011. p. 284.
421
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 46.
422
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 27.
121

durante a década de 1990, como tendência de superação de "um modelo apegado a ritos
superados e a fórmulas inquisitoriais, no qual continuam a prevalecer a falta de respeito à
dignidade humana, a delegação das funções judiciárias, o sigilo e a ausência de imediação,
características que repugnam ao processo penal moderno."423.
Ao dizer que o modelo acusatório é o que mais se harmoniza com a modernidade, Ada
Pellegrini Grinover evidentemente emite um parecer correto, porém involuntariamente o
aprisiona ao paradigma liberal, como instrumento garantidor das liberdades negativas. Uma
concepção que se mostra insuficiente ao paradigma democrático, pois instaura um dogma no
lugar de outro, estreitando as nuances epistemológicas do Processo Penal.
Como já abordado no Capítulo II, a crença absoluta na razão é a expressão mais
evidente do paroxismo racional experimentado no período histórico, comumente chamado de
Iluminismo ou modernidade, ao qual chamaremos Ilustração adotando a terminologia
encontrada na obra de Sérgio Paulo Rouanet424. Este autor afirma que "pertencem ao
Iluminismo as correntes de idéias que combatem o mito e o poder utilizando argumentos
racionais" o que nos remete aos pensadores da antiguidade clássica. O termo Ilustração passa
a ser utilizado para designar o movimento intelectual que floresceu no século XVIII. Essa
distinção ajudaria a "compreender o debate que se trava atualmente em torno da razão, do
poder e da modernidade e que assume, estranhamente, a forma anacrônica de uma
arregimentação de forças contra ou a favor das Luzes, da Alfklärung".
A distinção empreendida por Rouanet, segundo o próprio autor, permite uma tomada
de posição frente a um novo irracionalismo, pois torna possível identificar iluministas que se
posicionam contra a Ilustração (Foucault) e ilustracionistas que adotam posições contra-
iluministas (neo-conservadores americanos, franceses e alemães). Na esteira dessa percepção
o que se conclui é que a tarefa de separar o que seja pré-moderno do que seja moderno ou
pós-moderno não é das mais fáceis. Daí o autor preferir falar na existência de uma
"neomodernidade" uma vez que qualquer luta a ser travada contra os conteúdos repressivos da
modernidade só é possível através dos instrumentos de emancipação fornecidos pela própria
modernidade:

Para a consciência pós-moderna, a modernidade se tornou antiquada. Para a


consciência neomoderna ela nunca se realizou completamente. Para a primeira, ela
está abandonando o palco e, para a segunda, ela continua em cena. A consciência
temporal do pós-moderno está mergulhada no sonho; a consciência neomoderna

423
GRINOVER, Ada Pellegrini. Influência do código de processo penal para Ibero-América na legislação latino-
americana. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 1, p. 41-63, 1993. p. 44.
424
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 301.
122

rejeita o sonho. Ela despreza o historicismo e opta pela história. Das duas
perspectivas, sustento que somente a neomoderna tem o poder de compreender o
presente e de transformá-lo. Pois dispõe, para compreendê-lo, das categorias de
análise desenvolvidas pela modernidade e, para transformá-lo, das energias
explosivas depositadas no legado da ilustração.425

Essa perspectiva parte de pressuposto segundo o qual a modernidade tem um caráter


emancipatório, a despeito das consequências nefastas que impôs à humanidade, através do
advento de ideologias como o liberalismo desenfreado e os totalitarismos utópicos e
"concentracionários" que propunham instalar o paraíso na terra, provocando ainda mais
opressão. Sem falar nas perversões e atrocidades, resultantes de um "iluminismo sombrio", ou
"ciência bárbara" de que nos fala Elisabeth Roudinesco426.
A autora fornece um interessante panorama das perversões da modernidade
começando pelos textos admiravelmente lógicos e racionais do Marquês de Sade. No panfleto
de 1789, intitulado "Franceses, mais um esforço para serem republicanos", lido pelo libertino
Dolmancé em "A filosofia da alcova", preconiza como fundamentos da república, a sodomia,
o incesto e o crime. O matricídio ou o parricídio poderiam ser livremente praticados, pois o
sentimento de afeto entre pais e filhos expressaria, antes, um condenável traço obscurantista:

aos olhos de Sade só é aceitável a coletividade dos irmãos predadores, as mulheres


tornando-se ora seus carrascos, porque os superam no vício, ora suas vítimas,
quando se negam a obedecer às leis de uma natureza integralmente tomada pelo
exercício do crime. Sade propõe, de certa forma, um modelo social fundado na
generalização da perversão. Nem interdito do incesto, nem separação entre o
monstruoso e o ilícito, nem delimitação entre loucura e razão, nem divisão
anatômica entre homens e mulheres.427

Também impressiona o positivismo militante da personagem Juliette, que tomando


por base a razão kantista, controladora dos sentimentos e inclinações humanas, tem a ciência
como credo, ama o sistema e a coerência, além de manejar de forma excepcional o raciocínio
lógico, colocado a serviço da destruição e da perversidade. Exercita com gosto a destruição da
civilização pelas suas próprias armas e repugna a religião como irracional e incoerente,
tomando como exemplo a contradição do Cristo, um Deus morto, que subverte a própria
essência da divindade428.

425
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 26.
426
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
427
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 52-53.
428
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.
ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998. p. 141-143.
123

Do sadismo, passando pela taxonomia positivista, que investiu na classificação dos


perversos, e pela preocupação da medicina e da psicologia em tratá-los, o que se vê é a
prevalência de uma ideia geral, partilhada inclusive por Freud, de que "a existência humana
caracteriza-se menos por uma aspiração ao bem que pela busca de um permanente gozo do
mal", que se manifesta pela "pulsão de morte, desejo de crueldade, amor ao ódio, aspiração ao
infortúnio e ao sofrimento"429. Essa perspectiva contribuiu para o surgimento de uma
biocracia (biopoder ou biopolítica para Foucault430) que consistia em governar os povos, não
por meio da filosofia política ou da história, mas pelas ciências naturais ou humanas, com o
objetivo de produzir um homem novo, regenerado pela ciência, o que acabou levando à busca
de uma "raça pura" e a práticas científicas abomináveis como a eutanásia em doentes mentais,
além do extermínio de judeus, ciganos, testemunhas-de-jeová, comunistas, homossexuais e
outros que podiam ser classificados como "degenerados", nos campos de concentração
nazistas431. É o crime "cometido em nome de uma norma racionalizada e não enquanto
expressão de uma transgressão"432.
Para Rouanet, no entanto, o legado da Ilustração é incontrastável e, por tal razão,
possui com a neomodernidade uma relação de objeto exposto à crítica, mas ainda longe de ser
superado por outro conjunto de valores e procedimentos, pois é inegável que a modernidade:

[...] acenou ao homem com a possibilidade de construir racionalmente o seu destino,


livre da tirania e da superstição. Propôs ideais de paz e tolerância, que até hoje não
se realizaram. Mostrou o caminho para que nos libertássemos do reino da
necessidade, através do desenvolvimento das forças produtivas. Seu ideal de ciência
era de um saber posto a serviço do homem, e não de um saber cego, seguindo uma
lógica desvinculada de fins humanos. Sua moral era livre e visava uma liberdade
concreta, valorizando como nenhum outro período a vida das paixões e pregando
uma ordem em que o cidadão não fosse oprimido pelo Estado, o fiel não fosse
oprimido pela religião e a mulher não fosse oprimida pelo homem. Sua doutrina dos
direitos humanos era abstrata, mas por isto mesmo universal, transcendendo os
limites do tempo e do espaço, suscetível de apropriações sempre novas, e gerando
continuamente novos objetivos políticos.433

O que se percebe no trecho acima é que a neomodernidade não consegue desgarrar-


se das concepções, ideais e utopias da modernidade, quando muito, encaminha uma censura,

429
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 99.
430
Que se manifesta pelo código legal instituído pelo Direito (medieval), pelo regime de disciplina e vigilância
(moderno), bem como pelo dispositivo de segurança (contemporâneo). (FOUCAULT, 2008b, p. 9).
431
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 119-122.
432
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.p. 131.
433
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 27.
124

por vezes conservadora e reacionária, porém sem conseguir proporcionar uma evolução
paradigmática, o que, veremos, é buscado com mais êxito pela concepção pós-moderna. Essa
é uma busca também da ciência jurídica que tem como grande desafio, na atualidade,
esclarecer os fundamentos do sistema jurídico adotando um viés autocrítico.
No entanto, essa busca esbarra muitas vezes em concepções que impregnam o direito
não de teorias, como na definição de Popper, mas de ideologia pura. Para Lênio Luiz Streck,
por exemplo, não se trata de pugnar, sobretudo no Brasil, por uma superação da modernidade
pela via do neo-liberalismo. Para o autor, o Brasil sequer chegou a experimentar as conquistas
do welfare state, tendo vivido tão somente um "simulacro de modernidade". Haveria um
déficit de desenvolvimento sócio-econômico que só aumentaria com a prevalência do
neoliberalismo. O fervor com que este autor defende o Estado intervencionista o leva a
apontá-lo como "o" verdadeiro Estado Democrático de Direito, numa leitura muito particular
da Constituição de 88. Sobre o avanço da globalização e do neoliberalismo, afirma:

Tudo isto acontece na contramão do que estabelece o ordenamento constitucional


brasileiro, que aponta para um Estado forte, intervencionista e regulador, na esteira
daquilo que, contemporaneamente, se entende como Estado Democrático de Direito.
O Direito recupera, pois, sua especificidade. No Estado Democrático de Direito,
ocorre a secularização do Direito. Desse modo, é razoável afirmar que o Direito,
enquanto legado da modernidade - até porque temos uma Constituição democrática -
deve ser visto, hoje, como um campo necessário de luta para a implantação das
promessas modernas.434

As tais promessas da modernidade estariam assentadas sobre um projeto sócio-


cultural, que segundo Boaventura de Sousa Santos, se estrutura em dois pilares: regulação e
emancipação, cada qual constituído por três princípios. O primeiro pelos princípios do Estado
(Hobbes), do mercado (Locke) e da comunidade (Rousseau), que na sucessão dos
acontecimentos históricos disputam entre si a primazia. O segundo é composto pelos
princípios de racionalidade lógica como a estético-expressiva (artes e literatura), a moral-
prática (ética e direito) e cognitivo-instrumental (ciência e técnica)435. Cada uma das
chamadas lógicas de emancipação teria uma forma de inserção no pilar da regulação, sendo
possível encaminhar esse estudo pela História e pela Sociologia.
Esses dois pilares podem ser identificados na trajetória moderna do liberalismo
(laissez faire - em que prevaleceu o princípio do mercado), passando pelo Estado-providência
(welfare state - prevalecendo o princípio do Estado), chegando a um período de pujança sem

434
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 25.
435
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1999. p. 77.
125

precedentes do princípio do mercado, denominado período neoliberal, com empresas


multinacionais globalizadas que, por seu poderio incontrastável, acabam por contornar "ou
mesmo neutralizar a capacidade de regulação nacional"436.
Boaventura de Sousa Santos afirma que algumas das promessas da modernidade
foram cumpridas até mesmo em excesso, inviabilizando, por essa razão, o cumprimento das
demais. No entanto, aquelas que não foram cumpridas só poderão sê-lo por outro paradigma
que não o da modernidade e seus dualismos dogmatizantes como, por exemplo, Estado-
sociedade civil437. O Processo Penal, como foi demonstrado, também não escapou ao
dualismo, pois sempre oscilou entre um modelo e outro de atuação, conformando-se com "um
simulacro de pluralidade que confunde o acto político com a mera possibilidade de discussão,
reduzindo-o ao confronto de opiniões."438.
O Direito também estaria aprisionado ao dogmatismo da modernidade pela Teoria
Pura do Direito de Kelsen e sua pseudo-isenção axiológica e ideológica439 de cunho
positivista. Ora se confere ao Direito um viés liberalizante de cunho garantista, ora uma
condição de verdadeiro instrumento da luta de classes. Esse é um debate anacrônico que
somente poderá ser superado por uma concepção pós-moderna, processualizada e
processualizante de modo a implantar o constitucionalismo democrático nos mais diversos
segmentos440.
A pós-modernidade que se pretende acolher neste trabalho é aquela que caminha na
direção apontada por Popper e que propicia desvelar as ideologias que impregnam a base dos
discursos instituinte e constituinte do Direito. Com amparo em David Harvey, Andréa Alves
de Almeida traça um panorama preciso da transição da modernidade para a pós-modernidade:

[...] o modernismo é geralmente percebido como positivista, tecnocêntrico,


racionalista e identificado com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas,
no planejamento racional de ordens sociais ideais e com a padronização do
conhecimento e da produção. Já o pós-moderno tem como marco a intensa
desconfiança de todos os discursos universais e totalizantes. Privilegiando a
heterogeneidade e a diferença na redefinição do discurso cultural, a pós-
modernidade acentua a indeterminação, o fugidio, o efêmero e comemora com
entusiasmo e sem precedentes a dispersão e fragmentação na experiência do espaço
e do tempo.441
436
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1999. p. 87.
437
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1999. p.80-81.
438
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 77.
439
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1999. p. 86.
440
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002.
441
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
126

Um enfoque parecido se percebe na obra de Lyotard. O saber científico na pós-


modernidade se pauta por uma notável mudança de paradigma, em que o determinismo é
encarado como a própria crise do saber. A superação da crise se torna possível mediante a
adoção de uma postura não-dogmática em que o saber científico adquire uma característica
fragmentária e descontínua:

Interessando-se pelos indecidíveis, nos limites da precisão do controle, pelos quanta,


pelos conflitos de informação não completa, pelos paradoxos paradigmáticos, a
ciência pós-moderna torna a teoria de sua própria evolução, descontínua,
catastrófica, não retificável, paradoxal. Muda o sentido da palavra saber e diz como
esta mudança pode se fazer. Produz não o conhecido, mas o desconhecido. E sugere
um modelo de legitimação que não é de modo algum o da melhor performance, mas
o da diferença compreendida como paralogia. 442

Em Popper a pós-modernidade se manifesta pela caracterização do saber científico


como conjectural ou hipotético443. Na perspectiva popperiana, um sistema só adquire
cientificidade quando é possível submetê-lo a um critério de demarcação, em que a sua
"comprovação pela experiência" ocorre, não pela sua verificabilidade, mas pela sua
falseabilidade, ou seja, sua validação se dá não pela confirmação de seus enunciados, mas
pela possibilidade de refutação444. A evolução do conhecimento seria então uma disputa entre
teorias concorrentes em que as mais aptas sobrevivem, podendo também ser eliminadas a
qualquer momento445. As teorias prevalecentes se convertem em hipóteses que passam
também a ser testadas criticamente. Uma hipótese nova, para prevalecer sobre uma
antecedente, deverá (1) explicar "todos os aspectos que a hipótese anterior conseguia explicar
com êxito", (2) "evitar ao menos algumas falhas da hipótese anterior" e (3) se possível,
explicar "os aspectos que a antiga hipótese não pôde esclarecer ou prever"446.
Nessa concepção, testar uma teoria é expô-la à discussão racional. Discutir
racionalmente uma teoria é submetê-la à crítica. Para Popper, "racional" é sinônimo de
"crítico". Em decorrência, conclui que uma "discussão crítica nunca pode firmar razão
suficiente para alegar que uma teoria é verdadeira", no máximo afirmar que, em determinado

Editora CRV, 2012.p. 118-119.


442
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1998. p. 107-108.
443
POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial
Fragmentos, 2006. p. 32.
444
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany
Silveira da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 42.
445
POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto
Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996.p. 25.
446
POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial
Fragmentos, 2006. p. 32.
127

estágio da discussão, ou por resistir a "conjecturas ousadas" e "testes severos", determinada


teoria se aproximou mais da verdade do que qualquer outra teoria concorrente447.
No Direito, contudo, é a Teoria Geral do Processo, na concepção
Neoinstitucionalista, que vai possibilitar uma abertura teórica para interrogar o "mito do
modus-ternus (moderno)" o qual, segundo Rosemiro Pereira Leal448, é um modo "de
conjecturar o mundo no espaço-tempo-forma pela sacralização do espaço-tempo". O modus-
ternus produz assim "formas autopoiéticas de convívio social (historicismo)" como expressão
de uma herança da metafísica grega (meta-physis) pela "crença iluminista" implantada de
forma a criar dicotomias maniqueístas que sinalizariam um caminho inevitável à humanidade
"(do mal para o bem, do injusto para o justo, do martírio para a salvação)", mediante a
regência de "leis universais e imutáveis", que levariam a um "natural entendimento
racionalizante", expressado pelo "senso comum e pelo senso comum do conhecimento", que
vem a ser justamente a mais acabada definição de dogmatismo.
A toda evidência, a crítica desenvolvida neste trabalho filia-se à concepção
teorometodológica, de Popper, como demarcação científica necessária ao exercício de uma
autocrítica continuada, que é exercida:

[...] por teorias cientificamente bem-sucedidas no equacionamento e


operacionalização de sua reprodução ininterrupta de liberdade (ampla defesa) como
autoprivação de livre (indemarcada) vontade para todos e pelo exercício de direitos
iguais de vida-contraditório e isonomia-dignidade em todos os níveis da incidência
jurídica.449

É por essa abertura espistemológica que Rosemiro Pereira Leal desenvolve o


conceito de isomenia450, que se mostra como âncora para as pretensões da presente pesquisa,
na medida em que se apresenta como "instituto operacional do princípio da legalidade", pois
oportuniza a todos os "destinatários normativos" serem reconhecidos como intérpretes que se
posicionam simetricamente "ante idêntico referente lógico-jurídico construtivo, aplicativo,
modificativo ou extintivo do sistema jurídico (Leis)". O referente lógico-jurídico é justamente
o devido processo como interpretante que atua no balizamento dos limites hermenêuticos do
Estado Democrático de Direito concebido como sociedade aberta, no qual o processo como
instituição permite a desconstrução das autocracias "de "eus" solipsistas, inatos e,

447
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 85-86.
448
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 200.
449
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 185.
450
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 271.
128

pressupostamente, contextualizados em seus absolutos e estratégicos saberes deontológicos e


corretivos na justificação e aplicação do Direito"451.
Isso é possível quando se concebe o devido processo como metalinguagem 452 a
exercer autocrítica incessante sobre a procedimentalidade jurídica que, por tal razão, assume
aspecto exossomático453 (forma de evolução que distingue os homens dos animais), pois
exerce sobre a linguagem objeto uma crítica incessante e reconstrutiva de seus fundamentos.
Com isso, fica afastada qualquer espécie de restrição à liberdade descritivo-argumentativa,
inaugurando assim novas possibilidades para a própria teoria do Direito.Instaura-se uma
"fiscalidade procedimental em espaço-tempo" que não se confunde com "o da realidade
imanentemente racional do indutivista-positivista-verificacionista"454, em que prevalece a
"legitimação pelo desempenho"455, por uma hipótese determinista na qual a relação
input/output ocorre pela presunção de que o sistema que recebe o input é estável e capaz de
estabelecer uma "função contínua e derivável que permitirá antecipar convenientemente o
output"456.
Essa fiscalidade se constrói pela racionalidade implantada por um Direito crítico,
assim definido como um saber que transponha a órbita subjetiva e adquira autonomia,
permitindo uma testabilidade ampla e irrestrita no âmbito do chamado "Mundo 3" de
Popper457, em que seus enunciados são submetidos a "arguições confrontativas"458
prevalecendo aqueles que apresentam maior grau de resistência, sendo sua permanência,
nunca definitiva, sempre ad hoc.

451
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012.p. 104.
452
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.
453
"A evolução animal marcha amplamente, embora não exclusivamente, por meio de modificação de órgãos (ou
comportamento) ou pela emersão de novos órgãos (ou comportamento). A evolução humana marcha,
amplamente, pelo desenvolvimento de novos órgãos fora de nossos corpos ou pessoas: "exossomaticamente",
como o chamam os biólogos, ou "extrapessoalmente". Estes novos órgãos são instrumentos, ou armas, ou
máquinas, ou casas.Os começos rudimentares deste desenvolvimento exossomático podem, sem dúvida, ser
encontrados entre animais. A construção de luras, ou tocas, ou ninhos é uma realização primitiva. Posso também
lembrar que os castores constroem represas muito engenhosas. Mas o homem, em vez de desenvolver melhores
olhos e ouvidos, desenvolve óculos, microscópios, telescópios, telefones e aparelhos auditivos. E em vez de
desenvolver pernas cada vez mais velozes, desenvolve cada vez mais velozes automóveis". (POPPER, 1999, p.
218).
454
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 198.
455
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1998. p. 99.
456
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1998.
457
POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto Ferreira
Gomes. Lisboa: Edições 70. p. 17.
458
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 173.
129

O pós-moderno expressa ambiguidades como qualquer conceito, sendo considerado


por Boaventura de Sousa Santos "um nome autêntico em sua inadequação"459, pois surge da
superação do paradigma da modernidade, envolto no paradoxo de que algumas de suas
promessas se realizaram até mesmo em excesso e, ao mesmo tempo, mas não ao ponto de
evitar sua obsolescência, pois o que há de déficit no cumprimento das promessas da
modernidade se mostra de impossível cumprimento. Ou seja: aquilo que a modernidade
cumpriu está cumprido, aquilo que não logrou cumprir deve ser apagado do horizonte das
expectativas.
A humanidade, tomada pela perplexidade ante aos impactos causados por Copérnico,
Darwin e Freud - que provocaram as célebres feridas narcísicas da cultura ocidental -, precisa
encontrar uma saída epistemológica para a crise que se instaura460. O Direito Processual Penal
se insere nesse contexto como um campo científico a reclamar um verdadeiro giro
epistemológico que lhe permita desconstruir determinadas concepções arcaicas que, como
visto acima, se expressam notadamente pela dicotomia entre acusatoriedade e
inquisitoriedade, que buscam a primazia uma sobre a outra e, ao mesmo tempo, convivem
numa síntese arbitrária imposta pelo legislador se disfarçando e se confundindo mutuamente,
o que acaba por obstruir a passagem desse segmento normativo ao paradigma da pós-
modernidade democrática461.
Essa dicotomia, por vezes suprimida por uma síntese arbitrária ou pela mera
inobservância dos conteúdos jurídicos que condicionam a atividade jurisdicional, expressa
uma crise dogmática persistente. É possível caracterizar esses fluxos e refluxos como
expressão da instabilidade provocada por uma disputa pela predominância de modo que se
instaura um “ciclo de formas viciosas”, que resulta em decadência e desintegração, pois os
fundamentos de cada uma dessas formas são pura abstração, o que mascara fatores que podem
produzir resultados perniciosos, uma vez que se manifesta de modo absolutista nos períodos
em que determinada forma consegue a hegemonia “exercendo influência sobre as atitudes e os

459
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1999. p. 77.
460
As feridas narcísicas, que tanto abalaram a bela imagem que a humanidade tinha de si mesma, segundo Freud,
teriam sido causadas por Copérnico, quando mostrou que a terra não é o centro do universo, por Darwin por
mostrar que o homem é apenas um elo na cadeia evolutiva, na medida em que descende de um primata e pelo
próprio Freud quando afirma suas descobertas acerca do inconsciente, demonstrando que não somos
integralmente senhores de nossos atos. (FOUCAULT, 1997, p. 17).
461
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal
inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).
Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009. p. 226.
130

destinos do homem”, não raro produzindo experiências amargas e dolorosas462.


4.3.1 A profanação do Direito Processual Penal na perspectiva pós-moderna

Até aqui foi possível observar na trajetória do Direito Processual Penal um misto de
dogmatismo, mitificação, idealismo e empirismo, dicotomias teóricas e pragmáticas, tudo
condensado por um sincretismo paralisante, fruto do positivismo jurídico. Para superar o
embate entre crenças opostas e seus respectivos dogmas, Agamben fornece um interessante
aporte que pode servir ao desenvolvimento de uma epistemologia da processualidade penal
harmonizada com o paradigma do Estado Democrático de Direito.
Em seu elogio à profanação463, Agamben confronta os termos "consagrar (sacrare)"
e "profanar". Quando algo era consagrado, significava ser subtraído ao "livre uso e comércio
dos homens", sendo considerado sacrílego aquele que violasse esta "especial
indisponibilidade" das coisas sagradas (pertencentes aos deuses celestes) ou religiosas
(infernais). O ato da profanação consistia em restituir algo sagrado ou religioso ao "livre
comércio dos homens", ou seja, à propriedade e ao uso comum.
A religião seria então "tudo aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao
uso comum e as transfere a uma esfera separada". Agamben conclui que não há religião sem
separação e que o "dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício", que se produz
por meio de rituais e que, em última análise, é que determinam o modo de passagem do
profano ao sagrado, "da esfera humana para a divina". O trajeto contrário também se dá pelo
rito ou, de outro modo, se é o rito que consagra é também o rito que profana ou restitui aos
homens o que antes lhes havia sido subtraído.
Essa mesma perspectiva, mutatis mutandi, pode ser aplicada à esfera jurídica e em
especial ao Direito Processual Penal. O dogmatismo, a mitificação e as ideologias464 o
consagraram ao uso de alguns privilegiados propiciando sua instrumentalização para os mais
diversos fins que o afastam de sua configuração autocrítica e constitucional. O embate entre
acusatoriedade e inquisitoriedade acaba por criar entraves diversos à sua compreensão como
medium linguístico testificador da realidade normativa em vigor.
Relevante no texto de Agamben é a distinção entre secularização e profanação.
Ambas são consideradas operações de natureza política, sendo que a primeira apenas
transmuta a natureza do poder mantendo-o intacto (como na transição da monarquia celeste

462
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 149.
463
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007c.
. p. 58-71.
464
QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.
131

para a monarquia terrena). Já a profanação:

[...] implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido
profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído
ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício
do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa
os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia
confiscado.465

Profanação do Direito Processual Penal tem o sentido de institucionalização,


desencantamento ou dessacralização, sem, contudo, instrumentalizá-lo. Um Direito
Processual Penal restituído ao "uso comum" evita o retorno à barbárie, que fatalmente ocorre
quando o homem se coloca acima das instituições jurídicas por ele mesmo criadas "num
incitamento obsessivo ao culto de poderes estatais ou personalidades supostamente
salvadoras"466. Não se trata de simplesmente "des-pensar" ou mesmo "trivializar" ou
"vulgarizar" o Direito como forma de estabelecer sua autonomia ante as intenções das classes
profissionais que controlam sua elaboração e aplicação, como quer Boaventura de Sousa
Santos, pois as bases epistemológicas de sua proposta desconsideram, por completo, a
processualidade. Em sua pretensão anti-ideológica, instaura uma censura à
"profissionalização" do Direito associando-a à "sacralização" sem, contudo, encaminhar uma
crítica cientificamente estruturada467. A profanação, na perspectiva deste trabalho, é uma
possibilidade ofertada pela democracia jurídica e pelo devido processo constitucional através
de uma ciência do processo que se oriente por uma epistemologia evolucionária468.
Esse ganho epistemológico é possível através da Teoria Geral do Processo que se
firma como Teoria-Jurídico-Científica capaz de “transpor a crítica científica” e obter
“aceitabilidade contributiva”. Para um melhor esclarecimento do Direito Processual, no
sentido de aumentar o seu campo de investigação, a Teoria Geral do Processo age de forma a
“explicitar, de modo inter e multicontextual, realidades e contradições ausentes nas interfaces
do discurso do conhecimento”469, e para isso deve partir, sobretudo daquilo que lhe confere
generalidade na órbita jurídica, o que neste caso se traduz pelo devido processo legal como

465
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial,
2007c.
. p. 61.
466
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012.p. 56
467
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed.
São Paulo: Cortez Editora, 2007. p. 222.
468
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
p. 72.
469
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 39.
132

“referente lógico-jurídico dos procedimentos”, de modo que as decisões resultem de um


necessário “compartilhamento dialógico” entre as partes afetadas470.

470
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 95.
133

5 O MODELO CIVIL DE PROCESSO E SEUS IMPACTOS NAS


PROCEDIMENTALIDADES ACUSATÓRIA E INQUISITÓRIA

Certas abordagens em torno do direito democrático reconhecem a emergência de


uma sociedade composta de “mundos da vida em si mesmos pluralizados e profanizados” 471,
em que se verifica um aumento do risco de dissenso e que não consegue se desvencilhar da
autoridade mítica que se exerce por meio de instituições fortes. Há nessa concepção uma
preocupação em reconhecer a autonomia jurídica dos cidadãos, que consiste no fato de que
estes, enquanto destinatários do direito, possam ao mesmo tempo se reconhecerem como seus
autores472, mediante a pressuposição de coexistência mútua de uma autonomia pública e uma
autonomia privada, que permitiria a institucionalização de um discurso encaminhado por uma
sociedade descentralizada que rompe com a filosofia do sujeito, uma vez que a soberania
popular só se validaria enquanto pudesse ser reconhecida como “poder gerado por via
comunicativa”473.
Nesse aspecto, há certa superação das concepções estatais, ainda calcadas em
justificativas metafísicas474, que são características da teoria do Estado na modernidade em
que o poder encontraria sua justificação não mais na autoridade personalíssima do monarca,
mas como “um fenômeno jurídico de organização e de regulação que se caracteriza, já em sua
emergência, por sua capacidade normativa”475, se consolidando sob o signo do humanismo
jurídico. Contudo, o Direito moderno, justamente por ser moderno, guarda um inequívoco
nexo interno com as concepções metafísicas476, o que se observa mesmo em análises mais
atuais em que as pretensões de legitimidade e os controles de formação da vontade política se
constituem em função da problemática existente em torno da “gestão do poder em uma
sociedade formada por membros que se pretendem livres e eqüidistantes em relação ao
471
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1. p. 46.
472
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton
Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a.p. 301.
473
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton
Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a. p. 291.
474
O termo Metafísica está sendo empregado neste trabalho, como um tipo de pensamento que, mesmo após a
crítica Kantiana que não mais o define como um pensamento conclusivo e integrador, ainda se identifica com
uma teoria da consciência a fornecer as condições subjetivas necessárias para conferir objetividade a juízos
sintéticos a priori, tendo como principal característica um idealismo que, segundo Habermas, se origina em
Platão e passa por pensadores como Plotino, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Cusano, Pico de
Mirandola, Descartes, Spinoza, Leibniz até chegar aos grandes expoentes da modernidade como Kant, Fichte,
Schelling e Hegel. (HABERMAS, 1990, p. 22;27;3).
475
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 57.
476
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 20.
134

processo político”477, ou seja, a sociedade diante do poder político numa posição de


subalternidade. Enfrentar a dicotomia existente entre Estado e Sociedade talvez seja
insuficiente para compreender certos caminhos trilhados pela procedimentalidade penal na
modernidade. De fato, há que se perquirir os contornos epistemológicos daquilo que se
convencionou chamar de “sociedade civil”.

5.1 O caráter patrimonialista da sociedade civil como fator de uma jurisdicionalidade


diferenciada

No Direito Processual Penal da modernidade, a tríplice relação entre Estado-


sociedade-indivíduos vai se caracterizar, sobretudo pela estabilização de institutos jurídicos
voltados à contenção do poder estatal, com especial preocupação em reduzir as intervenções
sobre a liberdade individual478, uma vez que, de Hobbes a Kant, o direito privado, fundado na
liberdade de contratar e no direito de propriedade, se apresenta como “protótipo para do
direito em geral”479. De outro lado, a sanção penal adquire um sentido perverso, pois se
mostra especialmente voltada para a exclusão do indivíduo despatrimonializado, de modo que
a opção por acusatoriedade ou inquisitoriedade perde relevância epistemológica, abrindo a
vertente crítica, que esta pesquisa busca percorrer.
Estudados como princípios informativos, acusatoriedade e inquisitoriedade se
apresentam como "variáveis lógico-jurídicos dos princípios institutivos"480 e, como tal, vão
estar submetidos à institucionalidade fundante, e, por Isonomia, todos os indivíduos,
indistintamente, poderão encaminhar seus argumentos defensivos em Contraditório,
subtraindo-se ao arbítrio. Mesmo em tese, escapando ao arbítrio estatal, os indivíduos estão
inseridos em sociedade e dela recebem uma forte carga dogmatizante.
Um primeiro e importante aporte para o desenvolvimento deste estudo é a distinção
entre comunidade e sociedade encontrada na obra de Max Weber. Enquanto a comunidade
constitui um tipo de relação social estruturado na solidariedade motivada por vínculos
emocionais ou tradicionais de seus integrantes, a sociedade seria fruto "de uma reconciliação
e de um equilíbrio de interesses motivados por juízos racionais, quer de valores, quer de

477
PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito constitucional democrático: controle e participação como Elementos
Fundantes e Garantidores da Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 35.
478
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 1. 1982.p.
24.
479
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1. p. 48.
480
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 110.
135

fins"481. Desse modo, a sociedade pode se fundamentar, ora num consentimento mútuo, ora na
fé compartilhada de seus integrantes, ora num cálculo pragmático em torno da conveniência
da adesão ao grupo.
No clássico estudo de Peter L. Berger e Thomas Luckmann 482, a sociedade é
apresentada como realidade da vida cotidiana e que pode ser investigada tanto como realidade
objetiva quanto subjetiva. O que chamamos sociedade é visto como um organismo complexo
que se estrutura dialeticamente por um processo de exteriorização e objetivação por
mecanismos de institucionalização, mas também por uma adesão subjetiva mediante
fenômenos de interiorização483.
Como realidade objetiva, os autores demonstram que enquanto os animais possuem
um ambiente fixo com o qual se relacionam por determinação de sua condição biológica, o
homem se abre para o mundo e, em razão de sua condição biológica imperfeita, se adapta aos
mais variados ambientes. Nesse aspecto, o processo de tornar-se homem se dá em correlação
com o ambiente, um ambiente não apenas natural, mas também social, ou seja, "uma ordem
cultural e social específica". Assim, a sobrevivência da criança não só "depende de certos
dispositivos sociais, mas a direção de seu desenvolvimento orgânico é socialmente
determinada"484.
De outro lado, como realidade subjetiva, a sociedade é objeto de apreensão pelo
indivíduo por um processo de interiorização. Num primeiro momento como base de
compreensão dos seus semelhantes e depois como forma de identificar o "mundo como
realidade social dotada de sentido"485:

Esta apreensão não resulta de criações autônomas de significado por indivíduos


isolados, mas começa com o fato do indivíduo "assumir" o mundo no qual os outros
já vivem. Sem dúvida, este "assumir" em si mesmo constitui em certo sentido um
processo original para cada organismo humano e o mundo, uma vez "assumido",
pode ser modificado de maneira criadora ou (menos provavelmente) até recriado.
Em qualquer caso, na forma complexa da interiorização, não somente "compreendo"
os processos subjetivos momentâneos do outro, mas "compreendo" o mundo em que

481
WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias e Gerard
Georges Delaunay. 5. ed. São Paulo: Centauro Editora, 2008. p. 71.
482
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.
483
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.p, 173.
484
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.p. 71.
485
O termo "sentido" é empregado por Weber, para identificar a coerência da atuação de um ator num determinado
contexto histórico, ou como aproximação pela repetição de casos, como também para identificar a coerência
subjetiva de uma determinada conduta com relação à pessoa que a pratica hipoteticamente. (WEBER, 2008, p.
11).
136

vivo e esse mundo torna-se o meu próprio.486

Como se vê, a relação indivíduo-sociedade se dá de forma que aquele, ainda que


possa ser reconhecido como agente de mudanças e transformações, primeiro se dogmatiza.
Isso não é diferente quando se trata da chamada "sociedade civil", à qual se pretende conferir
um caráter plural, mas que se estrutura, sobretudo sobre bases patrimonialistas487. Para isso
contribui o mito da neutralidade normativa, calcado na impossibilidade investigativa dos
conteúdos axiológicos que oculta "a property mercantilista (civilista) no âmago construtivo
das formas de vida e liberdade praticadas pelo homem"488. É sob o signo da neutralidade
ideológico-normativa que o Processo Penal do século XX vai buscar fazer frente a uma
permanente emergência, adotando na infraconstitucionalidade critérios inquisitivos489, mesmo
sustentando que só o princípio acusatório é capaz de proclamar um autêntico processo e
cumprir com as exigências de justiça490.
Proudhon, em sua crítica à Revolução Francesa, afirma que por ser fruto da "cólera e
do ódio" não poderia o movimento de 1789 produzir os efeitos de algo que fosse produto do
"conhecimento profundo das leis da natureza e da sociedade"491 e, por isso, no máximo teria
produzido um progresso no sentido de que o governo passou das mãos de um para as mãos da
maioria, mas não uma verdadeira revolução. Segundo Proudhon, ao fazer inserir na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dispositivos que assegurassem ao "povo"
acesso aos cargos públicos e à propriedade, o movimento teria perdido uma oportunidade
revolucionária, pois o serviço púbico deveria passar a ser encarado como um dever, não como
fonte de recompensas e benesses e a propriedade deveria ser abolida. O caráter patrimonialista
da "sociedade civil" que deixou de ser "plebe" foi exposto de modo implacável:

O povo não inventou a propriedade; mas como ela não existia para ele da mesma
forma que para os nobres e tonsurados, decretou a uniformidade desse direito. As
formas acerbas da propriedade, a corveia, a intransmissibilidade, o despotismo, a
exclusão dos empregos, desapareceram; o modo de gozo foi modificado: conservou-

486
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 174.
487
Neste ponto, percebe-se que a afirmativa, reconhecidamente reducionista de Rousseau faz sentido: "O primeiro
que cercou um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar
nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil." (ROUSSEAU, 1999, p. 203).
488
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 585.
489
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 77.
490
GOLDSCHMIDT, Werner. Introduccion ao derecho. Buenos Aires: Aguilar, 1960. p. 322.
491
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa: Editorial
Estampa, 1975.p. 27.
137

se o fundo. Houve progresso na atribuição do direito; não houve revolução. 492

A "revolução" ilustracionista, ao cunhar o conceito de "sociedade civil", formada por


homens "livres e iguais", estabeleceu um antropocentrismo ambivalente493 pelo qual, ao
mesmo tempo em que o homem atingia uma autonomia na construção de seu destino, ainda
era tido como herdeiro de direitos naturais, dentre os quais o direito de propriedade sempre foi
o mais proeminente. Habermas se esforça em demonstrar que na contemporaneidade a
"sociedade civil" não mais se confunde com a "sociedade burguesa" de tradição liberal,
fundada na economia de mercado. Em sua concepção:

a sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais


captam os ecos dos problemas sociais, que ressoam nas esferas privadas,
condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. O núcleo da
sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos
capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse geral
no quadro de esferas públicas.494

Essa concepção, contudo, não consegue se desgarrar da concepção rousseauniana em


que o "povo" se apresenta como "ser coletivo" que "só pode ser representado por si mesmo",
sendo detentor de uma "vontade geral"495 intransmissível, inalienável ou incomunicável. A
"vontade" seria uma categoria acima do "poder", pois este pode ser objeto de delegação, mas
uma delegação sempre revogável pela "vontade"496. Como demonstra Carl Schmitt, a
"vontade geral" é o conceito nuclear da construção política de Rousseau, base da soberania e
da unidade do Estado e portadora de propriedades salvíficas, pois:

coincide sempre com o que deve ser conforme a justiça. Assim como Deus reúne em
si poder e direito, e, segundo seu conceito, o que Ele quer é sempre bom e o bom é
sempre sua vontade efetiva, assim também aparece o soberano em Rousseau, isto é,
a vontade geral, como algo que, por sua mera existência é já o que deve ser.
[...]
É imperecível, imutável, pura (IV, I). Do contrário, a vontade individual, a vontade
particular ou individual é nula e sem valor (III, 2). Um ato particular, uma vontade
particular, um interesse particular, toda dependência particular (II, 2), toda força
particular, toda preocupação particular (III, 15), carece em si de valor ante a unidade
e a grandeza do geral. Particular é, como em Hobbes a palavra privado, uma palavra

492
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa: Editorial
Estampa, 1975.p. 30.
493
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 331.
494
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 2. p. 99.
495
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 231.
496
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 181.
138

ignominiosa. (tradução nossa)497

Tal concepção de sociedade é que tem levado ao surgimento de vertentes que cobram
um retorno ao welfare state, no que se pode denominar de comunitarismo, em que o direito se
aplica por uma "razão moral comunitária e em função de uma responsabilidade social com
valores densos da comunidade, como virtude cívica republicana"498, tendo como referente
hermenêutico as raízes culturais e os valores homogêneos de uma dada comunidade,
entendendo que o grande mal contemporâneo seria a "solidão das massas"499, razão pela qual
busca implantar um novo senso comum fundado na ética, na solidariedade e na
participação500.

5.1.1 Crítica à sociedade civil pressuposta e a mudança de paradigma no Direito Processual


Penal

Ocorre que, na contemporaneidade dos estudos jurídicos, a sociedade não é fruto de


uma "construção anônima" com a qual o homem se depara ao nascer, mas sim uma
construção "edificada paulatinamente" pela totalidade do povo. Uma sociedade seria então
democrática quando processualmente criada. Ao povo é assegurada a participação nessa
construção, pois aos indivíduos é reconhecido o status irrestrito e incondicionado de
legitimados ao processo501, o que torna irrelevante e sem aplicação no Direito, teorias
sociológicas de estratificação social, que fundamentam o poder e o privilégio como uma
questão de classe ou inserção do indivíduo em um determinado sistema institucional502. A
partir dessas conclusões, Rosemiro Pereira Leal demonstra que a concepção de sociedade

497
"coincide siempre lo que es con lo que debe ser conforme a justicia. Así como Dios reúne en sí poder y derecho
y, según su concepto, lo que él quiere es siempre bueno y lo bueno es siempre su voluntad efectiva, así también
aparece el soberano en Rousseau, esto es, la volonté générale, como algo que por su mera existencia es ya lo que
debe ser.
[...]
Es imperecedera, inmutable, pura (IV,I). En cambio, la voluntad individual, la volonté particulière o individuelle,
es nula y sin valor (III 2). Un acto particular, una voluntad particular, un interés particular, toda dependencia
particular (II, 11), toda fuerza particular, toda preocupación particular (III, 15) carece en sí de valor ante la
unidad e la grandeza de lo general. Particular es, como en Hobbes, la palabra privado, una palabra ignominiosa."
(SCHMITT, 1968, p. 159).
498
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
155.
499
expressão atribuída a Amitai Etzioni por Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2004, p. 153).
500
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed. São
Paulo: Cortez Editora, 2007. p. 111.
501
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 58.
502
LENSKI, Gerhard E.. Poder y privilegio: teoria de la estratificacion social. Tradução de Roberto Bixio.
Buenos Aires: Paidos, 1969 p. 86.
139

pressuposta leva ao predomínio da ideologia e do autoritarismo:

Nessa "sociedade" pronta e pressuposta de homens livres de quaisquer embaraços


jurídicos que lhes pudessem obstar a plena autonomia de uma iluminada e poderosa
vontade imanente de realizar o que acham bom para todos e de iguais nessas
mesmas vontades auspiciosas é que se instala a JUSTIÇA CIVIL arbitradora de
conflitos (disputa de poderes) entre livres e iguais de uma sociedade mítica (corpo-
social-primal) e condutora do melhor destino para os homens. 503

O que se nota é que o Direito Processual Penal, como "justiça civil", tem contribuído
para perpetuar esta tricotomia indivíduo-sociedade-Estado, sobretudo diante do que se
observou até aqui pela oscilação entre os princípios acusatório e inquisitório, no decurso
histórico. Ora a primazia do indivíduo (princípio acusatório), ora a primazia da sociedade ou
do Estado (princípio inquisitivo e o chamado sistema misto). Isso levou a um maniqueísmo
entre "interesse privado" e "interesse público" que já não pode subsistir no paradigma
democrático, pois em matéria penal todos os interesses são públicos504.
Essa mudança de paradigma estabelece as bases para o estudo e o desenvolvimento
do Estado Democrático de Direito no qual o processo já não pode mais receber rótulos ou
nomenclaturas a serviço de um ícone específico (penal, civil, econômico, constituinte,
administrativo, trabalhista...)505. É a partir de tal entendimento que se torna viável uma Teoria
Geral do Processo, não como um "programa acabado", mas como uma exposição científica e
didática das teorias que informaram o advento das leis processuais e das interpretações que
estas leis receberam no decurso histórico, sendo assim uma "disciplina auxiliar da Ciência do
Direito"506, na qual o Direito Processual Penal, enquanto segmento normativo se insere como
objeto de investigação.

5.2 As insuficiências teóricas do modelo patrimonialista de processo

Na tentativa de formular uma crítica à teoria do processo como relação jurídica,


Goldschmidt, na Alemanha dos anos 20 do século passado, desenvolveu a teoria do processo
como situação jurídica. Em sua concepção, o processo como relação jurídica expressava uma

503
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 58.
504
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 11.
505
MARTINS, Rui Cunha. O mapeamento processual da verdade. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti
Castanho de et al. (Org.). Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São
Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 73.
506
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 78.
140

visão estática do direito, enquanto a teoria da situação jurídica permitia uma perspectiva
dinâmica:

O conceito de situação jurídica se diferencia do de relação processual, em que este


não possui relação alguma com o direito material que constitui o objeto do processo,
enquanto aquela designa a situação em que a parte se encontra com relação a seu
direito material, quando o faz valer processualmente. É errôneo crer, por isto, que o
conceito de "situação jurídica" não é distinto do de relação processual , e por isto é
impossível admitir que esta se desenvolva até chegar a ser uma "situação jurídica";
esta não é uma mera situação da relação processual, mas do direito material que
constitui o objeto do processo. Resulta por isto desnecessário recorrer ao conceito de
relação processual, para assegurar a unidade do processo, já que tal unidade vem
predeterminada pelo direito material, objeto de referência das "situações jurídicas"
que surgem no processo. (tradução nossa)507

Como o processo se destinava a assegurar a realização do direito material,


Goldschmidt o comparava a um duelo entre as partes, pouco importando se o vencedor era
anteriormente portador de um direito. Como nas guerras, o que interessa é o resultado que
pode guardar ou não relação com as alegações das partes 508. Note-se que nessa teoria, o
direito subjetivo migrou para a atividade do juiz, na medida em que este "poderia emitir
sentença sem nexo jurídico de causalidade imperativa com as situações criadas pelas partes no
curso do processo"509.
É justamente a ênfase de Goldschmidt na imprevisibilidade do resultado processual
que leva Aury Lopes Júnior a lhe reconhecer relevância no paradigma democrático, conforme
já visto no capítulo terceiro. O autor contemporâneo reconhece na teoria do processo como
situação jurídica, a virtude de ter superado Bülow com todos os méritos, pois, como já dito,
instaura uma epistemologia da incerteza, gerada pela concepção de processo como estado de
guerra:

O processo é uma complexa situação jurídica, na qual a sucessão de atos vai gerando
situações jurídicas, das quais brotam as chances, que, bem aproveitadas, permitem
que a parte se liberte de cargas (probatórias) e caminhe em direção favorável. Não
aproveitando as chances, não há a liberação de cargas, surgindo a perspectiva de

507
El concepto de situación jurídica se diferencia del de relación procesal en que éste no se halla en relación alguna
con el derecho material que constituye el objeto del proceso, mientras que aquél designa la situación en que la
parte se encuentra respecto a su derecho material, cuando lo hace valer procesalmente. Es erróneo creer, por esto,
que el concepto de "situación jurídica" no es distinto del de relación procesal, y por ello es imposible admitir que
ésta se desenvuelva hasta llegar a ser uma “situación jurídica”; ésta no es una mera situación de la relación
procesal, sino Del derecho material que constituye el objeto del proceso. Resulta por ello innecesario recurrir al
concepto de relación procesal, para asegurar la unidad del proceso, ya que tal unidad viene predeterminada por el
derecho material, objeto de referencia de las "situaciones jurídicas" que surgen en el proceso.
(GOLDSCHMIDT, 1936a, p. 9).
508
GOLDSCHMIDT, James. Teoria general del proceso.Barcelona: Editorial Labor, 1936b.p. 39.
509
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 85.
141

uma sentença desfavorável.


O processo, enquanto situação - em movimento -, dá origem a expectativas,
perspectivas, cargas e liberação de cargas. Do aproveitamento ou não dessas
chances, surgem ônus ou bônus.510

A tentativa de resgatar Goldschmidt, no entanto, esbarra no fato de que o processo no


Estado Democrático de Direito, ao se afastar do determinismo decisório, vai fazê-lo em bases
teóricas e epistêmicas que buscam justamente conter o subjetivismo, conforme será exposto
mais adiante. Isso não será possível pela concepção do processo como guerra pela qual o
encaminhamento de pretensões se daria no espaço indemarcado da luta de todos contra todos,
vencendo sempre o mais forte, o mais bem equipado com instrumentos eficazes de luta ou
aquele mais sagaz. Pelas conjecturas adotadas e desenvolvidas no presente estudo, o processo
se posiciona em uma dimensão teórica além da batalha entre as partes tendo o Estado como
interveniente. Tal embate se dá no âmbito do procedimento, que se define como instituto
jurídico distinto do processo, conforme a teoria de Elio Fazzalari.
A crítica formulada por Fazzalari à predominante teoria do processo como relação
jurídica define-o como uma espécie de procedimento realizado em contraditório. O mérito
dessa teoria é rechaçar a ideia de relação jurídica processual por meio da lógica de classes511.
Enquanto para os adeptos da teoria da relação jurídica o procedimento é apenas o meio
extrínseco pelo qual o processo se instaura, desenvolve e termina, para Fazzalari, o
procedimento é gênero do qual o processo é a espécie que se caracteriza pela participação, na
preparação do provimento estatal, dos interessados em contraditório. A essência do
contraditório é a simétrica paridade entre os destinatários que irão sofrer os efeitos da decisão.
Nas palavras do autor:

Se, pois, o procedimento é regulado de modo que dele participem também aqueles
em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos - de modo que o
autor dele (do ato final, ou seja, o juiz) deve dar a tais destinatários o conhecimento
de sua atividade, e se tal participação é armada de modo que os contrapostos
"interessados" (aqueles que aspiram a emanação do ato final - "interessados" em
sentido estrito - e aqueles que queiram evitá-lo, ou seja, os "contra-interessados")
estejam sob o plano de simétrica paridade, então o procedimento compreende o
"contraditório", faz-se mais articulado e complexo, e do genus "procedimento" é
possível extrair a species "processo".512

510
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 43.
511
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p.111 a
115.
512
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 94.
142

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho chega a afirmar que essa teoria foi adotada pela
Constituição brasileira de 1988, ao prever a garantia do contraditório nos processos judiciais
ou administrativos513. O fato é que o pensamento fazzalariano significou um considerável
salto epistemológico para a ciência do processo, possibilitando seu estudo sob um enfoque
mais adequado ao princípio democrático, como é o caso da teoria Neoinstitucionalista,
segundo demonstra Andréa Alves de Almeida:

A partir do salto epistemológico da teoria estruturalista (Fazzalari), que passou a


compreender o processo como conquista teórica do cidadão em dado momento
histórico e instituto de direitos fundamentais (contraditório e simétrica paridade) e
disciplinadores da atividade do Estado, a visão neo-institucionalista preceitua a
processualização procedimental.
Em outras palavras, o processo, nesse modo de ver, não significa espécie de
procedimento como teorizou Fazzalari, mas instituição regencial - devido processo
constitucional - de todo procedimento, para que o povo total da sociedade política seja
a causalidade deliberativa ou justificativa (pressuposto de legitimidade) das regras de
criação, alteração e aplicação do direito, por meio do devido processo legislativo e
pelo devido processo legal.514

Há que se destacar ainda, as contribuições de Eduardo J. Couture515, Andolina e


Vignera516, José Alfredo de Oliveira Baracho517 e Hector Fix-Zamudio518 que entenderam o
processo como garantia constitucional, tornando possível o desenvolvimento de um novo
enfoque acerca do processo como instituição jurídica “constitucionalizadora e
constitucionalizada de direitos”519.
Desenvolvida por Rosemiro Pereira Leal, a teoria Neoinstitucionalista estuda o
processo como instituição, porém, não em bases sociológicas, mas como um “conjunto de
princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo texto constitucional”520,
distinguindo-se da Teoria Constitucionalista por entender que o processo não se constrói
constitucionalmente pelo diálogo de especialistas - em que a jurisdição constitucional é

513
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista
da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, n. 30, p.163-198, 1998b. p. 186.
514
ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa. Belo Horizonte: Forum,
2005. p. 67-68.
515
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007.
516
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990.
517
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
518
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 88.
519
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 172.
520
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 89.
143

concebida como atividade tutelar521 -, mas pela "atuação crítico-participativa das partes
juridicamente legitimadas à instauração dos procedimentos em todos os domínios da
jurisdicionalidade"522.
Contudo, ao conceber o processo como instituição, Rosemiro Pereira Leal não o faz
nos mesmos moldes de Jaime Guasp, cuja concepção institucionalista foi desenvolvida nos
anos 40 do século passado. Na tentativa de refutar Bülow, o institucionalismo guaspiano foi
pouco aproveitado pelos processualistas, que desde logo apontaram seu viés sociologizante.
Couture chegou a adotar essa teoria durante certo tempo e ao justificar o abandono de tal
concepção o autor uruguaio apontou como principal motivo “os equívocos e mal entendidos
que provocam a multiplicidade de acepções” da palavra instituição. O autor relata que em
duas oportunidades, em um debate ocorrido em uma universidade e na 2ª edição dos seus
“Fundamentos de Direito Processual Civil”, tentou precisar o sentido desse vocábulo e dotar
de certo rigor o conceito, confessando não ter logrado êxito neste propósito523. Coulture pediu
desculpas a Guasp, mas não se fez de rogado ao firmar que estava deixando de acolher a
teoria pelo menos até que esta concepção projetasse suas ideias conforme os planos mais
rigorosos da dogmática jurídica.
Ao referir-se sobre os motivos que levaram Couture a rechaçar e teoria
institucionalista, Rosemiro Pereira Leal aponta para o fato de que a ideia de instituição
processual desenvolvida por Guasp carecia de contornos jurídicos amparando-se nos pilares
do positivismo sociológico, muito em voga nas décadas iniciais do século passado. Os
teóricos de então não trabalhavam com a concepção de direitos fundamentais
constitucionalizados, o que fazia com que explicassem as instituições jurídicas como algo que
brotava na sociedade e depois adquiria proteção pela lei, esta se encarregava, assim, de
homologar realidades estabelecidas pelos fatos históricos524.
A instituição de viés sociológico é resultado de uma atividade tornada habitual e que
assim se estabelece historicamente com a função de controlar a conduta humana, para que esta
se estruture cada vez mais em padrões de homogeneidade, como se lê no estudo de Peter L.
Berger e Thomas Luckmann:

521
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição constitucional da liberdade. In: SAMPAIO, José Adércio de
Oliveira (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 1-44.
522
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 91.
523
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial B
de F, 2007. p. 115.
524
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 86.
144

A institucionalização ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações


habituais por tipos de atores. Dito de maneira diferente, qualquer uma dessas
tipificações é uma instituição. O que deve ser acentuado é a reciprocidade das
tipificações institucionais e o caráter típico não somente das ações mas também dos
atores nas instituições. As tipificações das ações habituais que constituem as
instituições são sempre partilhadas. São acessíveis a todos os membros do grupo
social particular em questão, e a própria instituição tipifica os atores individuais
assim como as ações individuais.525

A institucionalização teria, assim, a função de atuar na administração de um


consenso pressuposto, de fundamental importância para o convívio humano, que
necessariamente se baseia na estabilização de expectativas comportamentais como se vê nos
estudos de sociologia jurídica de Luhmann526.
Em Guasp, o processo seria instituição, porém em razão da habitualidade com que
aparece nos mais diversos grupamentos humanos. O autor não experimentou o movimento
constitucionalista do segundo pós-guerra e, por isso, não lhe foi possível pensar o processo
como instituição caracterizada pela “anterior e explícita construção constitucional de seus
princípios claramente assegurados e agrupados como institutos inseparáveis de sua
conceituação legal”527. Nessas condições, tais princípios institutivos se estabelecem como
normas que vinculam a “estruturação dos procedimentos na infraconstitucionalidade
normativa”528. Segundo Rosemiro Pereira Leal, “[...]essa proposição assume a denominação
de devido processo constitucional como instituição problematizante e autoproblematizável, no
plano jurídico-estatal-discursivo, de abertura a todos de testificação incessante das certezas
propostas pela lei”529.
Testificação pode aqui ser compreendida no sentido que Karl Popper atribui ao
termo, ou seja, como refutação. Para Popper a irrefutabilidade reclamada por determinadas
teorias científicas, demonstra antes um vício do que uma virtude da teoria:

(4) A teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é
científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como freqüentemente se pensa, mas
um vício.
(5) Todo teste genuíno de uma coisa é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de
testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém,
diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais “testáveis”,

525
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.p. 79
526
Sociologia do Direito I. p. 80
527
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 86.
528
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 87.
529
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 145.
145

mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos. 530

Essa postura permite estudar o processo sob o enfoque da teoria discursiva da


democracia, e, para que isso se concretize, Rosemiro Pereira Leal afirma que é de grande
valia uma revisitação ao pensamento popperiano:

porque, ao rejeitar uma ciência das certezas (episteme e alethéia ante-gregas) e um


devir automático (episteme grega), retirou da indução (epagoge), no sentido de
Hume, a pecha frustrante que desfigurava o projeto pós-moderno da possibilidade de
um conhecimento não prescritivo. A mediação da linguagem, como mundo objetivo
impregnado de teorias (Popper), direcionada à problematização constante das
asserções negativas ou afirmativas, é que propiciou conjecturar-se uma razão
discursiva (não kantiana) pela aceitação interrelacional de um falibilismo de idéias
cuja validade só seria obtida pelo processo de testificação (falseabilidade) constante
à busca de níveis de resistência teórica pelo melhor argumento para decidir.531

Daí, o próprio autor definir da seguinte forma sua teoria:


A minha teoria neoinstitucionalista do processo nenhuma relação apresenta com as
demais teorias que, ao se proporem a instrumentalizar soluções de conflitos numa
sociedade pressuposta, não se comprometem com a autoinclusão processual de todos
nos direitos fundamentais, sem os quais se praticaria, a nosso ver a tirania da
ocultação dos problemas jurídicos e não sua resolução compartilhada.
O processo, nessa concepção, não se estabelece pelas forças imaginosamente
naturais de uma Sociedade ideal ou pelo poder de uma elite dirigente ou genialmente
judicante, ou pelo diálogo de especialistas, mas se impõe por conexão teórica com a
cidadania (soberania popular) constitucionalmente assegurada, que torna o princípio
da reserva legal do processo, nas democracias ativas, o eixo fundamental da
previsibilidade das decisões.532

Com as diferenças acima explicitadas, torna-se possível a plena adoção da teoria


Neoinstitucionalista como marco teórico a reger as reflexões em torno do Direito Processual
Penal e, mais precisamente, em torno do tema central do presente estudo. Neste ponto, há que
se ressaltar as razões teóricas que levam à refutação da concepção de instrumentalidade do
processo, que resulta por impregnar grande parte da reflexão jurídico-processual.
A instrumentalidade do processo, a despeito de superar a concepção Chiovendiana de
que o processo constitui um complexo de atos coordenados à atuação da vontade concreta da
lei, passa a vislumbrar a necessidade de afirmação e realização a todo custo das "tutelas
prometidas pelo direito material e à proteção do caso concreto"533. Como foi abordado em
tópico anterior, a concepção de instrumentalidade do processo expõe à toda evidência o
dogmatismo da centralidade da jurisdição no sistema processual. A jurisdição comparece no
530
POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Ed. Universidade de
Brasília, 1972. p. 66.
531
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 144.
532
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012. p. 86 e p. 91.
533
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 419.
146

esquema da instrumentalidade como um poder que legitima a si mesmo, na medida em "que


opera como fator de manutenção das regras sociais de convivência e de garantia contra as
inevitáveis tendências à desagregação social e desvio das metas coletivas"534.
O constitucionalismo processual não destoa dessa concepção na medida em que
deposita na jurisdição constitucional a confiança na realização das promessas do Welfare
State, mediante o reconhecimento do princípio da Dignidade da Pessoa Humana como
metavalor, verdadeiro e único responsável pela unidade axiológica da Constituição, por meio
de decisões pautadas por critérios de proporcionalidade e razoabilidade (jurisdição
constitucional comunitarista)535.
A jurisdição constitucional, pautada por essa espécie de voluntarismo, remete ao
fenômeno Magnaud, célebre juiz francês que presidiu o Tribunal de Primeira Instância de
Château-Thierry entre 1889 e 1904. Magnaud se caracterizava por empregar critérios
subjetivos em suas decisões com a justificativa de interpretar humanamente os inflexíveis
rigores da lei. Sua particular concepção de justiça consistia em ser "clemente com os
miseráveis e severo para com os poderosos"536. Aqueles que se inspiram em Magnaud
entendem o judiciário como portador de atribuições compensatórias, com o juiz atuando no
caso concreto como verdadeiro "engenheiro social"537.
O que Magnaud fazia há mais de um século nada mais era do que realizar em cada
caso uma ponderação de valores, que, a despeito das justificativas de Robert Alexy538, sempre
tendem a resultar em prevalência do subjetivismo e decisionismo, escapando no mais das
vezes ao controle racional dos afetados pela decisão, instaurando um verdadeiro anarquismo
ou impressionismo judicial, em que le bons juges, como os do tribunal presidido por
Magnaud, abandonam os marcos legais ou mesmo adotam normas incompatíveis sempre em
nome de uma decisão que seguisse apenas os parâmetros que seriam adotados por “um
homem bom” diante de tais circunstâncias539.
É a partir dessa ideia de decisão judicial como ato de positivação do poder estatal540,

534
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
175-176.
535
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
190.
536
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 97.
537
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 81.
538
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. Madrid: Centro
de Estudos Constitucionales, 1993p. 156.
539
CARDOZO, Benjamim N.. A natureza do processo e a evolução do direito. Tradução de Lêda Boechat
Rodrigues. Brasil: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 78.
540
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
109.
147

paradoxalmente realizado segundo as "convicções íntimas do juiz"541, que o instrumentalismo


se estrutura e mantém ainda um relevante papel como forma de catalisar práticas que
traduzem uma postura autoritária, em que o processo é, antes de tudo, tomado como
instrumento de realização de políticas tranquilizadoras eas decisões são tomadas sem o
necessário compartilhamento discursivo, em evidente déficit democrático542, sobretudo no
campo da procedimentalidade penal.
Na visão instrumentalista, o discurso da efetividade adquire primazia sobre o devido
processo legal, visto muitas vezes como um entrave do qual o juiz deve se desvencilhar para
que a tão almejada pacificação social seja alcançada. Nesse sentido, afirma José Roberto dos
Santos Bedaque:

O processualismo exagerado leva à distorção do instrumento, que perde a relação


com seu fim e passa a viver em função dele próprio. Esta visão do fenômeno
processual, além dos malefícios causados à própria sociedade e ao próprio Estado,
contribui para o amesquinhamento da função jurisdicional, pois torna os juízes
meros controladores das exigências formais, obscurecendo a característica principal
dessa atividade estatal - qual seja, o poder de restabelecer a ordem jurídica material,
eliminar os litígios e manter a paz social.543

O que se vê no texto acima, com efeito, é muita mitificação para tão poucas linhas,
evidenciando, em crítica estritamente científica, uma característica da escola instrumentalista:
Abordagens em que o processo está sempre a serviço de uma "ordem jurídica material" e os
conflitos (litígios) precisam ser "eliminados", buscando com isto atingir uma utópica "paz
social". Os autores instrumentalistas não alcançam a concepção teórica de que não basta a
"legitimação pelo procedimento"544, caracterizado pelo exercício de um poder que legitima a
si mesmo, mas, pelo contrário, deve ser reconhecida a complexidade social da democracia
definida como "espaço de liberdade que não anula, mas permite a manifestação de conflitos",
sendo que "a função jurisdicional, no Estado contemporâneo, não é apenas a expressão de um
poder, mas é atividade dirigida e disciplinada pela norma jurídica"545. Ou seja: em processo,
forma é conteúdo. A maneira como se produz ou constrói uma decisão diz muito do tipo de
Estado que se está implementando.
541
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 195.
542
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
543
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010. p. 30.
544
"A legitimação pelo procedimento e pela igualdade de possibilidades de obter decisões satisfatórias substitui os
antigos fundamentos jusnaturalistas ou os métodos variáveis de estabelecimento do consenso. Os procedimentos
encontram como que um reconhecimento generalizado, que é independente do valor do mérito de satisfazer a
decisão isolada, e este reconhecimento arrasta consigo a aceitação e consideração de decisões obrigatórias."
(LUHMANN, 1980, p. 31-32).
545
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 52.
148

Como demonstra Calmon de Passos, a concepção instrumentalista de processo


padece ou de perversidade ideológica (que precisa ser combatida) ou de descuido
epistemológico (que precisa ser corrigido), na medida em que parece ignorar a crise pela qual
passou a razão instrumental ao longo do século XX, em seu entender, causada por uma
conjunção de fatores como:

os avanços originados pelos estudos semiológicos, a revalorização do político, a


partir dos desencantamentos existenciais recolhidos da experiência do capitalismo
tardio e da derrocada do socialismo real, a crise do Estado do bem-estar social e,
principalmente, as revoluções que têm sua raiz no progresso técnico-científico,
acelerado depois da Segunda Grande Guerra Mundial - a eletrônica, seguida pelas
revoluções das comunicações, dos novos materiais, da biotecnologia, todas elas
incorporando lógicas próprias que determinaram a hibridização das várias lógicas
organizativas que, por sua vez, influenciaram a mudança radical operada pela
ciência organizacional, com inevitável repercussão sobre o Estado e o Direito, tudo
isso denunciando um novo paradigma a pedir que seja repensado o que ontem foi
tido como certeza.546

A presente pesquisa vem apontando as dicotomias paralisantes que surgiram no curso


histórico do Direito Processual Penal. Como se observa, ainda que sob o manto retórico do
constitucionalismo, o processo, em geral, ainda se rege, na praxis, pelo instrumentalismo
implantado pela teoria da relação jurídica, que resulta em ativismo, decisionismo e
protagonismo judiciais, sendo insuficiente o pretexto de reabilitar a instrumentalidade ainda
que seja "a serviço da realização do projeto democrático" ou "da máxima eficácia das
garantias constitucionais"547, pois tanto o "projeto democrático" quanto as "garantias
constitucionais" só estariam assegurados em um processo que estivesse imune ao
protagonismo judicial e isto não é possível com instrumentalidade, em razão de sua intrínseca
incompatibilidade teórica com o paradigma da democracia.
A superação da concepção instrumentalista, ainda que com roupagem
constitucionalista, passa por uma abordagem em torno do giro linguísticoem que a
linguisticidade se interpõe entre sujeito e objeto, reduzindo a influência da filosofia da
consciência e da interpretação subjetiva, em temas de grande repercussão, tanto para o
indivíduo como para os grupamentos humanos sujeitos à ordem democrática.

546
PASSOS, José Joaquim Calmon de. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Sobre o Tema. In:
FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho (Coord.). Temas atuais de
direito processual civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 13.
547
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 26, 28 e 29.
149

5.3 A radicalização da acusatoriedade em face do sujeito natural e a persistência


inquisitorial

Quando se afirma ao longo da pesquisa o caráter dogmático do embate secular entre


os sistemas (princípios) acusatório e inquisitório no Processo Penal, o objetivo é encaminhar
uma crítica sobre um ponto que se mostra de especial relevância para a reflexão deste
particular segmento do sistema normativo, segundo os contornos da processualidade
democrática. Para tanto, cumpre esclarecer a demarcação das concepções sobre a ciência
processual que efetivamente nortearam a pesquisa até aqui.
Parte-se do pressuposto de que a ciência processual tem como objeto não o Direito
Processual em si, mas o seu esclarecimento548. Na concepção epistemológica da teoria
Neoinstitucionalista há uma distinção dos campos da técnica, ciência, teoria e crítica. A
conceituação e o estudo das finalidades e aplicações práticas dos institutos de Direito
Processual ficam a cargo da teoria, da ciência e da técnica, ao passo que a crítica científica
atua verificando, decompondo, discernindo, dissertando, dessacralizando, demarcando,
testando, enfim, submetendo-o a interrogações constantes, estabelecendo um permanente
esclarecer dos conhecimentos, postulados, técnicas, teorias, princípios, ideias, institutos e
instituições jurídico-processuais549. É com este intento que se conduziu a pesquisa tendo o
Direito Processual Penal como objeto.
Delimitando um pouco mais, é certo que o Direito se insere no campo das ciências
sociais aplicadas e como tal deve-se colocar sob suspeita toda e qualquer pretensão a uma
compreensão holística e historicista dos conteúdos do Processo Penal, que podem levá-lo a ser
encarado como fenômeno marcado pelo determinismo e a fatalidade da quadra histórica em
que foi legislado ou que venha a ser eventualmente aplicado, pois, como demonstra Popper,
tais posturas em ciência sempre acabam por resultar em totalitarismo550. Assim como o
historicismo, devem ser rechaçadas outras concepções dogmáticas, tais como: o biologismo, o
psicologismo ou mesmo o ecologismo, pois a predominância de qualquer destes fatores de
forma isolada instaura a crise do conhecimento que resulta numa abordagem apenas parcial do
fenômeno estudado, uma vez que não leva em consideração o que é predisponência e o que é

548
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 13.
549
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 33-34.
550
POPPER, Karl Raimund. A miséria do historicismo. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira da
Motta. São Paulo: Edusp, 1980. p. 46.
150

emergência no plano das ações humanas551.


Pelas conclusões até agora alcançadas, entende-se que a perspectiva
Neoinstitucionalista vai permitir a demarcação teórica dos fundamentos do saber processual,
permitindo também alcançar o que, em nosso entendimento, deve ser um dos primeiros
objetivos da argumentação científica: A neutralidade ideológica. Esta era a busca de Kelsen.
Uma busca pela dessacralização do direito e uma tentativa de rompimento com a abordagem
metafísica da Ciência do Direito. O empreendimento kelseniano, contudo, resultou em
interdição e imunização do debate jurídico, erigindo uma Ciência Dogmática do Direito ao
substituir um mito por outro, como é o caso da norma fundamental, em que justamente o
fundamento de validade do sistema jurídico se mostra refratário ao esclarecimento,
contentando-se em tornar dispensável toda e qualquer fundamentação de origem divina para o
Direito552. Mas a proposta de neutralidade (pureza) kelseniana esbarra no fato de que os
homens vivem em sociedade, o que provoca conflitos de interesses que, no campo penal,
implicam a necessidade de uma análise sociológica e criminológica553.
É esse aspecto particular que se busca superar com a teoria Neoinstitucionalista e os
aportes teóricos de Karl Popper, pioneiramente aproveitados em Ciência Jurídica por
Rosemiro Pereira Leal. Nesse sentido, cumpre empreender o que talvez seja o maior desafio
desta pesquisa, qual seja: Demonstrar que o chamado Sistema Acusatório se estudado e
acolhido de forma irrefletida também assume contornos dogmáticos. Como já visto, a ciência
processual adquiriu notável desenvolvimento epistemológico, capaz de evitar a genuflexão
diante de determinadas doxas554. Estudando a acusatoriedade como princípio, não como
sistema, é possível avançar para uma compreensão em contornos mais adequados à
democracia, sem descartar por completo conteúdos de inquisitoriedade e de impulso oficial do
procedimento.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho usa indistintamente os termos "sistema" e
"princípio", afirmando que tais nomenclaturas trazem uma carga mitológica e que, no âmbito
do Processo Penal, a identificação do "princípio unificador" que rege a gestão da prova
definirá a prevalência da acusatoriedade ou da inquisitoriedade, sendo este último

551
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 148.
552
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 170.
553
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá Editora,
1998a. p. 27.
554
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 41.
151

absolutamente incompatível com os postulados em vigor com a Constituição de 88 555. No


entanto, o que se pode definir como estrutura acusatória do Processo Penal é sempre motivo
de divergências teóricas, e disto resulta o fato de que, mesmo autores que ainda preferem
utilizar o termo "sistema", acabam por fazê-lo de modo a reconhecer "os desacordos
semânticos" sobre tal noção556. Note-se a tentativa de distinguir "sistema" de "princípio"
acusatório no trabalho de Antônio Alberto Machado:

Não é rara a utilização da idéia de sistema processual acusatório como sinônimo de


princípio acusatório, pois, no fundo, ambos estão mesmo naturalmente ligados.
Porém, o sistema processual acusatório, como toda idéia de sistema, se refere a um
conjunto de normas, princípios, leis e procedimentos concatenados para a realização
de um fim que, nesse caso, é a obtenção do julgamento efetivamente justo, com
ampla publicidade dos atos processuais; já o princípio acusatório é uma espécie de
valor que informa esse sistema e resulta num processo de partes, caracterizado pela
rígida separação das funções de investigar, acusar, defender e julgar, configurando,
assim, verdadeira oposição ao desvalor do processo inquisitivo.557

De todo modo, quando se instaura a crença de que o "sistema" ou princípio


acusatório assegura por si só o caráter de democraticidade de um determinado ordenamento
processual, torna-se necessário aprofundar a pesquisa nesse sentido. Inicialmente, identificado
com os ordenamentos de common law, sua adoção costuma não passar de ficção como deixa
claro Mireille Delmas-Marty:

[...] o direito inglês é, em teoria, diretamente inspirado no modelo acusatório.


Entretanto, a igualdade de armas se torna uma ficção durante toda fase preparatória,
na qual as persecuções escapam freqüentemente das mãos da vítima para serem
exercidas pela polícia, à qual se juntou, desde 1985 um Crown Prosecution Service
(Ministério Público) composto de funcionários da Coroa. Quanto ao juiz, seu papel é
marginalizado, seja quando se efetua o plea barganing, negociado sem a sua
presença e diretamente atuado entre a acusação e defesa, seja deformado, vez que o
juiz, abandonando seu papel de árbitro neutro, toma, de ofício, a iniciativa de
convocar a acusação e a defesa para a negociação sobre a pena. 558

Observação semelhante é feita por Michelle Taruffo quando estuda as bases do


adversary system e da law of evidence, ambos em vigor nos EUA. O autor procura demonstrar
que, diante da complexidade interna do processo, sempre que se escolhe entre acusatoriedade

555
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal
inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).
Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009. p. 223.
556
PRADO, G eraldo. Campo jurídico e capital científico: O acordo sobre a pena e o modelo acusatório no
Brasil: a transformação de um conceito. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et al. Decisão
judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p.49
557
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 9-10
558
DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a
colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005. p. xli.
152

e inquisitoriedade, esta é, antes, uma escolha ideológica. As escolhas ideológicas também


influenciam o legislador processual, os doutrinadores e, obviamente, a jurisprudência. Ou
seja, sempre haverá entre a dimensão epistêmica do processo e as escolhas ideológicas uma
relação de tensão, contradição e conflito559. A escolha ideológica talvez se dê em termos
legislativos, mesmo porque os estados constitucionais modernos fazem questão de explicitar
sua opção pela acusatoriedade como princípio fundante de seu Processo Penal, como forma de
atestar e ressaltar, ainda que em termos simbólicos, a própria opção pela democracia, sendo
apresentada como importante "conquista do mundo civilizado"560.
No entanto, historicamente desde o Code d'instruction criminelle, promulgado por
Napoleão em 1808, ganhou força o chamado "sistema misto" no qual o Processo Penal se
estrutura em duas fases561. A primeira de viés inquisitório e a segunda, acusatório. Na
primeira fase, denominada instrutória, ocorre a chamada investigação preliminar, porém com
alguns elementos acusatórios, pois a defesa poderia acompanhar certos atos. Apesar de
conduzida por um juiz instrutor, em muito se distinguia do procedimento inquisitorial que
predominava no absolutismo monárquico. A fase seguinte, em que ocorria o debate
plenamente acusatório e contraditório, era também temperada pelo exercício de alguns
poderes inquisitivos pelo juiz. O Processo Penal misto assegura, sobretudo a separação entre
acusador e julgador562. Tal modelo se espalhou pela Europa durante o século XIX e foi
acolhido também no Brasil com a promulgação do atual Código de Processo Penal (Decreto
Lei n. 3.689/41), porém com a supressão da figura do juiz instrutor visto como um entrave à
atividade policial563.
Mas a terminologia "sistema misto" vem sendo rejeitada por autores
contemporâneos. Aury Lopes Júnior alerta para o fato de que este sincretismo entre os

559
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
111;136-137.
560
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 164
561
Ferrajoli define o sistema misto como uma monstruosa mistura entre os processos acusatório e inquisitório,
apontando como sua origem remota o Código Termidoriano de 1795. (FERRAJOLI, 2002, p. 454).
562
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 6
563
"O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos,
averiguar a materialidade de crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias
dentro de seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis. Para atuar proficuamente em
comarcas extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese de criação dos juizados de instrução em cada sede
do distrito, seria preciso que o juiz instrutor possuísse o dom da ubiquidade. De outro modo, não se compreende
como poderia presidir a todos os processos nos pontos diversos da sua zona de jurisdição, a grande distância uns
dos outros e da sede da comarca, demandando muitas vezes, com os morosos meios de condução ainda
praticados na maior parte do nosso hinterland, vários dias de viagem. Seria imprescindível, na prática, a quebra
do sistema: nas capitais e as sedes de comarca em geral, a imediata intervenção do juiz instrutor, ou a instrução
única; nos distritos longínquos, a continuação do sistema atual. Não cabe, aqui, discutir as proclamadas virtudes
do juízo de instrução." Trecho extraído do item IV da Exposição de Motivos do CPP, assinada pelo então
Ministro da Justiça Francisco Campos, datada de 8 de setembro de 1941. (BRASIL, 1941).
153

sistemas históricos encobre uma fraude:

A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo


trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do
julgador para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais
variadas fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova
judicializada; cotejando a prova policial com a judicializada; e assim todo um
exercício imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma
condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da
inquisição. O processo acaba por converter-se em uma mera repetição ou encenação
da primeira fase.564

Alexandre Morais da Rosa, por seu turno, ao rechaçar a ideia de existência de um


"sistema misto", o faz afirmando que sequer existem os sistemas puros, concluindo que o
dilema entre acusatório e inquisitório não faz mais nenhum sentido, pois os ordenamentos
nacionais apresentam hoje características de ambos, sendo traço comum das democracias
ocidentais565. Denilson Feitoza Pacheco, com notável originalidade, afirma que de modo
inequívoco a Constituição de 88 adota o sistema acusatório, porém o Processo Penalbrasileiro
ainda ostenta traços marcadamente inquisitivos, resultado da forte presença da cultura
inquisitiva em nossa história, o que poderia levar um observador externo a considerá-lo como
um "sistema misto" em fase ainda embrionária. Constata o autor: "A contradição, hoje,
portanto, é entre o princípio acusatório de natureza constitucional e o princípio inquisitivo de
natureza cultural."566.
A prevalência do chamado "sistema misto" demonstra a dificuldade que os
ordenamentos constitucionais enfrentam para se desvencilhar do decisionismo, que sempre
acaba sendo uma válvula de escape quando o Estado precisa de alguma forma, ou por alguma
razão, hipertrofiar sua atividade sobre a liberdade individual. O decisionismo pode assumir
variadas roupagens, como se vê na preciosa síntese de Adilson de Oliveira Nascimento:

Legitimando-se por juízos de valor, a técnica decisionista vale-se da credibilidade do


órgão judicante e da fonte de legitimação política do seu poder (soberano, Deus,
povo, experts, e outros); de outro lado, vale-se dos valores e das avaliações por ele
adotados como fundamento de sua decisão (sabedoria, espírito ético, bem comum,
interesse nacional e outros). Assim, a atividade instrutória é apenas valorativa em
relação ao fato.567

564
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 70-71.
565
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2013. p. 57.
566
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006. p. 49
567
NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. Dos pressupostos processuais penais. Belo Horizonte: Mandamentos,
2008. p. 74.
154

O exemplo italiano é particularmente interessante, pois o recurso ao processo


inquisitório e ao decisionismo parece ser sempre uma possibilidade. Após adotar o "sistema
misto", em 1865, experimentou um período de maior predominância do sistema acusatório,
em 1913 e de maior prevalência inquisitória com o Codice Rocco, de 1930568. Essa oscilação
se verificou também após a edição do Codice di Procedura Penale, em 1988, de contornos
inicialmente acusatórios, que foi posteriormente reformado pela Lei 479, de 1999,
possibilitando mais uma guinada em direção ao sistema inquisitório. Paolo Tonini explica que
essa lei, alterando os arts. 507, 431 e 493, estabelece um sistema acusatório atenuado pela
possibilidade de iniciativa instrutória do juiz em caso de inércia das partes.
O autor afirma que tais dispositivos dizem respeito ao ônus da prova em seu aspecto
formal, que seria compartilhado pelos sujeitos processuais, ao passo que o ônus da prova
substancial, que diz respeito à valoração da prova e ao convencimento do julgador,
permaneceria exclusivo da acusação. A iniciativa probatória do juiz, contudo, é de caráter
excepcional, devendo ocorrer somente em caso de absoluta necessidade. Essa tendência já se
verificava na jurisprudência da Corte de Cassação desde a Sessão Única, de 6 de novembro de
1992. Há que ser ressaltada a possibilidade do órgão colegiado reproduzir provas e reinquirir
testemunhas, peritos, assistentes e partes. Tal previsão se encontra no art. 506 do CPP
italiano. A regra geral, no entanto é a do art. 190 que estabelece a iniciativa probatória como
atribuição das partes569.

5.3.1 O Processo Penal como mecanismo de combate à máfia e ao terrorismo

Essas oscilações percebidas no caso italiano decorrem de um sentimento de eterna


emergência provocado de um lado pela máfia e de outro pelo terrorismo, como bem ressalta
Fauzi Hassan Chouckr570, tema já abordado de passagem no Capítulo III deste trabalho. Em
muitos momentos essa emergência resultou em um mal disfarçado Direito Penal de exceção,
baseado em maxi-processos, que se caracterizaram por um gigantismo ineficiente, com
centenas de pessoas sendo presas com base em simples indícios e sofrendo com a morosidade
(para que se cumprisse o máximo de prisão preventiva) e a pluralidade de procedimentos
relativos ao mesmo fato, como se deu no caso das investigações sobre o sequestro e
assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro (investigações Moro um, Moro-bis, Moro-ter,

568
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 6.
569
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 348-349.
570
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 74.
155

Moro-quater). Esses processos tomaram "a forma de labirintos intricados", ao mesmo tempo
concorrendo entre si ou se entrelaçando, produzindo ainda "montanhas de papel mensuradas
por toneladas, por dezenas de mil páginas" o que resultava em "neutralização do princípio da
publicidade do processo e as possibilidades materiais de defesa", como bem demonstrou
Ferrajoli571.
É possível constatar que, via de regra, ante uma situação emergencial, a
acusatoriedade sempre cede à força das pressões por uma jurisdição redentora que se contente
em apenas homologar decisões já tomadas e pré-concebidas no âmbito da investigação
preliminar a cargo de órgãos policiais ou administrativos. Um exemplo contemporâneo de
sacrifício das liberdades públicas em nome da segurança é o que se verifica nos Estados
Unidos da América, em razão da guerra permanentemente travada contra o terrorismo após os
atentados de 11 de setembro de 2001 e que resultaram na edição do USA Patriot Act, lei
extremamente restritiva dos direitos fundamentais572. As principais características dessa lei
emergencial causadora, dentre outros problemas, de um evidente desequilíbrio entre os
poderes estatais, prevalecendo neste campo os interesses do Executivo, podem ser assim
resumidas:

(I) aumentou os poderes de vigilância com um controle judicial ou congressual menor


ou insignificante;
(II) aumentou a capacidade do governo de rastrear e-mails, registros telefônicos,
monitorar operações financeiras e conduzir interceptações telefônicas em todo o
território, reduzindo já abatidas expectativas de privacidade nos termos da 4 ª Emenda;
(III) tornou mais ampla a definição de “terrorismo doméstico” para que fosse possível
abranger grupos de protesto domésticos e ativistas da desobediência civil. Esta
providência também coloca em risco os direitos de expressão e associação política
previstos na 1ª Emenda;
(IV) permitiu que a ocorrência de buscas em domicílio ou escritório de uma pessoa de
forma furtiva, escondida, sem notificá-la a respeito do mandado até que a busca esteja
concluída; e
(V) permitiu que o Departamento de Justiça prenda indefinidamente imigrantes não
cidadãos sem acusação criminal. Portanto, não cidadãos verão um aumento da erosão
do seu princípio do devido processo legal declarado na 14 ª Emenda, já que de acordo
com a Lei eles estão sujeitos à prisão arbitrária e podem ser removidos dos Estados
Unidos.573

571
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002.p. 661.
572
“The USA PATRIOT Act é uma sigla que significa The Uniting and Strengthening America by Providing
Approriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act (Lei de União e Fortalecimento da América
Através do Fornecimento de Instrumentos para a Interceptação e Obstrução do Terrorismo). Também conhecida
apenas como “Patriot Act”, esta Lei pode ser considerada como uma lei singular, extensa e complicada, que não
foi criada através do processo legislativo comum, que teria envolvido a divulgação pública dos dispositivos em
discussão (com audiências abertas e debates), mas através de negociações informais entre os líderes do Senado e
da Câmara, o Departamento de Justiça e a Casa Branca.” (LEITÃO, 2003, p. 123-124).
573
LEITÃO, Ricardo Azevedo. Restrições aos direitos fundamentais como mecanismo de controle da ordem
pública. São Paulo: Fiuza Editores, 2003. p. 125-126.
156

Diante das repercussões do USA Patriot Act, Geraldo Prado, mesmo reconhecendo as
insuficiências do modelo acusatório, ressalta sua crucial importância para que as pessoas não
sejam expostas de modo irracional ao poder do Estado:

A vigorosa tradição do processo adversary não impediu por bastante tempo o


desenvolvimento de procedimentos penais em sigilo, com violação do juiz natural,
restrições ou supressões do direito de defesa e do contraditório, e perpetuação de
detenções "provisórias" sem acusação formal. Sem falar na tolerância com as provas
obtidas por meios ilícitos.
O retorno, malgrado lento, às bases mais humanizadas do processo penal nos
Estados Unidos, no entanto, tem sido orientado pela fidelidade à "tradição"
adversary de processo penal, que serve como parâmetro para questionar e invalidar
ações arbitrárias, de índole inquisitorial, no marco do Estado de Direito.574

O fato é que o USA Patriot Act, juntamente com a "military order", instauraram o
mais evidente Estado de Exceção, conforme foi demonstrado por Giorgio Agamben:

O significado biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o


direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão aparece claramente
na "military order", promulgada pelo presidente dos Estados Unidos, no dia 13 de
novembro de 2001, e que autoriza a "indefinite detention" e o processo perante as
"military comissions" (não confundir com os tribunais militares previstos pelo
direito da guerra) dos não cidadãos suspeitos de envolvimento em atividades
terroristas.
Já o USA Patriot Act, promulgado pelo Senado no dia 26 de outubro de 2001,
permite ao Attorney general "manter preso" o estrangeiro (alien) suspeito de
atividades que ponham em perigo "a segurança nacional dos Estados Unidos"; mas,
no prazo de sete dias, o estrangeiro deve ser expulso ou acusado de violação da lei
de imigração ou de algum outro delito. A novidade da "ordem" do presidente Bush
está em anular radicalmente o estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa
forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável.575

Desse modo, os talibãs capturados no Afeganistão e outros suspeitos de terrorismo


não gozavam do status de prisioneiros de guerra e assim não podiam contar com a proteção da
Convenção de Genebra. Tampouco podiam contar com as salvaguardas conferidas pelo
direito interno. Não eram considerados prisioneiros, nem acusados, mas apenas detainees, ou
detidos. Por esse eufemismo, "a vida nua atinge sua máxima indeterminação" na base de
Guantánamo, conclui Agamben576. Mas o tradicional argumento de que tais medidas servem
para que as democracias ocidentais se posicionem frente ao "choque de civilizações" é
refutado pela constatação de Zizek sobre a evidência de "choques" dentro da mesma
574
PRADO, G eraldo. Campo jurídico e capital científico: O acordo sobre a pena e o modelo acusatório no
Brasil: a transformação de um conceito. In: In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et al.
Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p.
50.
575
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial,
2007a.p. 14.
576
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial,
2007a.p. 15.
157

civilização, no mais das vezes, provocados por interesses econômicos e geopolítcos577 e que
no plano interno se traduz pela afirmação de existência de um permanente e cotidiano estado
de emergência a justificar práticas marcadas pela inquisitoriedade, mesmo sob o manto
jurídico-constitucional da acusatoriedade.
O cálculo político-utilitarista e a postura pragmatista são especialmente nefastos no
Processo Penal, pois vão permitir a sua instrumentalização, uma vez que são fortemente
amparados em escopos metajurídicos, os quais, para que se realizem, vão sempre depender de
uma "tomada de consciência teleológica", que parte do seguinte pressuposto: "Todo
instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se
destina"578. No particular aspecto do Processo Penal, a proeminência dos escopos
metajurídicos reforça o papel centralizador da jurisdição e, sobretudo permite reconhecer ao
judiciário um papel de protagonista a quem é atribuída a missão de implementar a política de
segurança pública, subvertendo até mesmo o princípio acusatório, quando os fins
aparentemente justificam, como no caso da criminalidade organizada579.
O que se nota em diversos trabalhos de pesquisa e de doutrina é que há uma
tendência generalizada em "reforçar os poderes do juiz", flexibilizando a técnica processual
como forma de obter resultados mais úteis, como defende José Roberto dos Santos Bedaque:

Em primeiro lugar é preciso abandonar a idéia de que os atos processuais devem


atender rigorosamente a determinada forma previamente estabelecida, não tendo o
juiz poderes para flexibilizar os rigores da lei. O formalismo exagerado é
incompatível com a visão social do processo. Não podemos olvidar que o Estado
está comprometido com a correta solução das controvérsias, não com a forma do
processo. Este constitui fator de garantia de resultado e de segurança para as partes,
não podendo ser objeto de culto.
Quanto mais o legislador valer-se de formas abertas, sem conteúdo jurídico definido,
maior será a possibilidade do juiz adaptá-la às necessidades do caso concreto. Esse
poder não se confunde com a denominada "discricionariedade judicial", mas implica
ampliação da margem de controle da técnica processual pelo julgador.580

A preocupação de encontrar o meio termo entre o juiz protagonista/ativista e o juiz


inerte está presente na abordagem de José de Assis Santiago Neto, só que com intenção
diametralmente oposta, pois visa rechaçar o instrumentalismo jurisdicêntrico:

O processo penal no paradigma do Estado Democrático de Direito não comporta o


577
ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real. Tradução de Paulo César Castanheira. São Paulo: Boitempo,
2003. p. 61.
578
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
180.
579
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 163
580
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010. p. 109-110.
158

juiz ator, protagonista, este modelo de juiz volta-se ao inquisidor, prima por colocar
a hipótese em preponderância sobre os fatos. O juiz deve deixar às partes a atuação
ativa, apenas interferindo para fins de assegurar a isonomia entre os sujeitos. Isso
não faz com que o julgador se torne condescendente com o crime ou com a
criminalidade, mas apenas o faz imparcial e assegura às partes a isonomia necessária
para que possam participar da construção do provimento.

O juiz no Estado Democrático de Direito não é nem o juiz inerte do paradigma


liberal e nem o juiz justiceiro do Estado Social, deve encontrar seu lugar no
equilíbrio como garantidor dos direitos fundamentais e, consequentemente,
assegurar que as partes tenham iguais oportunidades de fala e de produção
probatória durante o procedimento.581

Há, como se percebe, uma forte preocupação dogmática que pode ser colocada nos
seguintes termos: encontrar um modo de compatibilizar a autonomia pública com a autonomia
privada no âmbito do Direito Processual Penal, segmento dos mais sensíveis no que diz
respeito às consequências de sua aplicação, pois repercute diretamente sobre direitos
fundamentais. Há uma conflitualidade entre julgamentos pela imprensa e julgamentos pelo
direito, que reflete um conflito entre segurança pública de um lado e liberdade individual do
outro, conflito que muitas vezes se resolve pela adesão à “ditadura do senso comum como
agente municiador de expectativas securitárias de lei e ordem”582.

5.3.2 O dogma da acusatoriedade

Diante da tentativa de apresentar soluções legislativas pretensamente eficazes para


distanciar o juiz da gestão da prova, ou do simples apelo à adesão a uma ideologia
democrática, é que a defesa da acusatoriedade assume um caráter dogmático, como fica
evidenciado, por exemplo, nesta assertiva de Aury Lopes Júnior:

O sistema acusatório é um imperativo do moderno processo, frente à atual estrutura


social e política do Estado. Assegura a imparcialidade e a tranqüilidade psicológica
do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado que
deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva no
processo penal. Também conduz a uma maior tranqüilidade social, pois evita-se
eventuais abusos da prepotência estatal que se pode manifestar na figura do juiz
“apaixonado” pelo resultado de sua labor investigadora e que, ao sentenciar, olvida-
se dos princípios básicos de justiça, pois tratou o suspeito como condenado desde o
início da investigação.583

581
SANTIAGO NETO, José de Assis. Estado democrático de direito e processo penal acusatório: a
participação dos sujeitos no centro do palco processual. 2011. 179f. Dissertação (Mestrado em Direito
Processual) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo
Horizonte. p. 131-132.
582
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 53.
583
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade
constitucional). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 165.
159

A acusatoriedade como postulado constitucional inafastável aparece na teoria de


Luigi Ferrajoli sob o epíteto de garantismo. O embate dogmático entre acusatoriedade e
inquisitoriedade é apresentado como a oposição entre garantismo e autoritarismo, vista como
a busca de uma alternativa entre duas epistemologias judiciais distintas, que se expressam
antagonicamente da seguinte forma: cognitivismo e decisionismo, comprovação e valoração,
prova e inquisição, razão e vontade, verdade e potestade584.
Para o autor esta é a versão atual da antiga contenda entre o mito iluminista da
certeza jurídica objetiva e o decisionismo subjetivista que decorre de um embate mais amplo
entre dogmatismo realista e ceticismo relativista. Neste ponto, o autor faz menção a Popper
reconhecendo seu mérito em afirmar que tais correntes seriam as faces opostas de uma mesma
moeda e que ambas são compostas por “verificacionistas” e “justificacionistas desenganados”
que acabam estimulando o irracionalismo ao tentar em vão justificar suas crenças
científicas585. No âmbito judicial, demonstra que a decisão se dá por uma cadeia de silogismos
distintos. Primeiramente, por meio de uma inferência indutiva chega-se a uma conclusão de
fato. Em seguida, por uma inferência dedutiva chega-se a uma conclusão de direito e, por fim,
por um silogismo prático chega-se a uma conclusão dispositiva. Tal metodologia, reconhece o
autor, também é imperfeita, pois a indução fática é, sem dúvida, probabilista, ao passo que a
dedução também inclui escolhas nas premissas de direito, “inevitavelmente opinativas e
igualmente subjetivas”586.
Para Ferrajoli, ao contrário de outros campos da ciência, o Direito, por ser uma
construção humana decorrente de um universo linguístico artificial, permite com suas técnicas
estabelecer controles lógicos e empíricos sobre as decisões, convalidando-as ou invalidando-
as e, com isso, subtraindo-as ao erro e ao arbítrio. O problema do garantismo penal seria,
então, “elaborar estas técnicas no plano teórico, torná-las vinculantes no plano normativo e
assegurar sua efetividade no plano fático”587.
O fato é que, no plano legislativo ou no plano ético, os antídotos ou vacinas contra a
atuação deletéria de juízes apaixonados, paranóicos ou simplesmente autoritários, têm se
mostrado inócuos, pois são construídos apenas dogmaticamente. É possível sustentar que a

584
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 38.
585
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 51.
586
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 53.
587
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p.57.
160

pretensão de um sistema acusatório puro não assegura democraticidade, pois se estabelece por
uma autocontradição performativa que precisa ser objeto de arguição crítica permanente ao
invés de simplesmente acolhida como expressão de legitimidade, pelo fato de se fundar numa
ética discursiva fundada na "autotutela de direitos"588.

588
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 165.
161

6 A PROCESSUALIDADE PENAL DEMOCRÁTICA A PARTIR DA CLÁUSULA


DUE PROCESS

Qualquer abordagem teórica do Processo Penal deve estar associada a uma incursão
acerca do paradigma estatal vigente no texto constitucional. O Estado Democrático de Direito
é que vai permitir a abertura teórica pela processualidade, que por sua vez, permitirá a
superação do embate dogmático entre aucsatoriedade e inquisitoriedade.
Tendo como suporte conjecturas teóricas de grande relevância para o discurso
jurídico, é possível afirmar que o Estado Democrático de Direito pressupõe o princípio da
reserva legal, o que faz com que o próprio Estado não se defina como um “ente que orbita ou
exorbita a lei, mas uma instituição criada pela lei e posta a serviço da lei” 589. Essa concepção
leva a uma compreensão do Estado como “Administração Governativa”, instituição jurídico-
constitucional, cuja atuação, seja no âmbito da administração em sentido estrito, do exercício
da função legislativa ou do exercício da função jurisdicional, deve se dar nos limites da
competência legal de seus agentes, mandatários, concessionários, permissionários ou
credenciados diversos590.
Semelhante concepção de Estado, ao ser estudada em concurso com a teoria da
Democracia, apresenta uma intrínseca relação com a epistemologia processual.

6.1 Sobre Estado, Democracia e Processo

Segundo Ronaldo Brêtas, o "Estado Constitucional Democrático de Direito" adquire


uma dimensão sem precedentes na medida em que a democracia contemporânea, "mais do
que forma de Estado e de governo, é um princípio consagrado nos modernos ordenamentos
constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder". Isso porque o "poder"
emana do povo, como "comunidade política", formada por "governantes e governados", todos
submetidos a um sistema jurídico que resulta da articulação dos princípios do Estado
Democrático e do Estado de Direito, "cujo entrelaçamento técnico e harmonioso se dá pelas
normas constitucionais"591.
Para definir o Estado nesses termos foi necessário que a Ciência Jurídica, que se

589
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 48.
590
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 48.
591
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. 2. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2012. p. 58-59.
162

inaugura pela negação do dogma e pelo esclarecimento do fetiche das formas jurídicas592,
criasse as condições para que pudesse empreender suas articulações a partir de um direito
constitucional que articula horizontalmente uma diversidade de instituições jurídicas em que o
Estado comparece como uma delas em um plano poliárquico, numa perspectiva que supera as
concepções arcaicas em que a relação Estado-sociedade-indivíduo se dá de modo autárquico,
hierárquico, autocrático, verticalizado, com o Estado exercendo uma primazia sobre as demais
instituições593.
A poliarquia se caracteriza pela implementação de um conjunto de instituições sem
as quais, afirma Robert Dahl, não é possível instaurar uma democracia em larga escala. Suas
principais características seriam a plena cidadania, por um amplo direito de oposição aos
membros do governo a ponto de poder fazê-los abandonar seus cargos pelo mecanismo do
voto. A plena cidadania seria assegurada por sete instituições594, que devem ter atuação
efetiva e permanente: (1) os ocupantes dos cargos com poder de decisão política devem ser
eleitos; (2) estas eleições devem ser livres e imparciais; (3) o sufrágio deve ser inclusivo e
acessível à quase totalidade da população adulta; (4) o direito de ocupar cargos públicos
também deve ser acessível à quase totalidade de adultos; (5) liberdade de expressão e de
crítica; além de assegurar uma (6) variedade de fontes de informação e (7) autonomia
associativa.
Contudo, Robert Dahl demonstra que a poliarquia nos Estados nacionais é ainda
insuficiente no que diz respeito à plena participação dos cidadãos e ao pleno controle das
decisões dos governantes, afirmando que, "comparada com outras opções históricas e atuais, a
poliarquia é um dos mais extraordinários inventos humanos, embora seja inquestionável que
não chega a cumprir com um processo democrático"595 (tradução nossa). O autor sustenta que
nos países que experimentaram a poliarquia há certo fastio, certo desdém com suas conquistas
e um clamor por mais avanços. No entanto, em outro extremo, há países que não oferecem as
condições para que a poliarquia se instaure, sendo esse o grande desafio da pós-modernidade.
É que a democracia institucional não dispensa os homens de responsabilidades, o que muitas
vezes é esquecido pelos seus críticos que insistem em não distinguir o aspecto pessoal do
institucional, como bem demonstra Popper:
592
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 2.
593
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 30.
594
DAHL, Robert. La democracia y sus críticos. Tradução de Leandro Wolfson. Barcelona: Paidós, 1992. p. 267
595
"Comparada com sus otras opciones históricas y actuales, la poliarquía es uno de los más extraordinarios
inventos humanos, aunque es incuestionable que no llega a cumplir con un proceso democrático." (DAH L,
1 9 9 2 , p. 269).
163

A maior parte dêles (os críticos) mostra-se insatisfeita com as instituições


democráticas por achar que estas não impedem necessàriamente que um estado ou
uma política decáiam de certos padrões morais ou de certas exigências políticas que
podem ser tão prementes quanto admiráveis. Mas tais críticos dirigem mal seus
ataques; não compreendem o que se pode esperar das instituições democráticas, nem
qual seria a alternativa para as instituições democráticas. A democracia (usando esta
etiqueta no sentido acima sugerido) fornece o arcabouço institucional para a reforma
das instituições políticas. Torna possível a reforma das instituições sem usar de
violência, e portanto, o uso da razão na formulação de novas instituições e no
reajustamento das antigas.596

Para Popper, as instituições não fornecem os conteúdos de razão que vão nortear seu
funcionamento e desenvolvimento. Esses continuam a depender do padrão moral e intelectual
dos cidadãos e por essa razão, não se pode censurar a democracia pelos problemas verificados
em um estado democrático. Essa censura deve ser feita aos cidadãos que fazem mal uso das
instituições. Tais concepções, que apontam para uma democracia institucionalizada, se
mostram de grande proveito para os desenvolvimentos da presente pesquisa, pois é o Processo
a instituição à qual pode ser atribuída, com razoável grau de confiabilidade, a função de
articular discursivamente as demais.

6.1.1 A processualidade democrática como marco teórico da Pós-modernidade estatal

Na concepção desta pesquisa, o salto para uma etapa superior de democratização,


que segundo Robert Dahl, não foi transcendida por nenhum país 597, seria possível pela
compreensão de que o pluralismo ou diferença só se garante pela igualdade de discutir de
forma incessante no espaço processual, acerca da constitucionalidade das decisões políticas,
bem como acerca da criação, modificação, aplicação e extinção de direitos. O embate deixa de
ocorrer no espaço físico e passa para o espaço processual598, pelo confronto de teorias
concorrentes resultando em um "debate crítico apreciativo"599, mediante uma
"procedimentalidade tecnicamente estruturada segundo os princípios do contraditório,
isonomia e ampla defesa"600. Tal concepção de Processo permite compreendê-lo como
instituição que pode auxiliar os homens a enfrentar o embate entre racionalismo e
irracionalismo que ainda persiste em vários campos do conhecimento e, sobretudo na política

596
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974b. v.1. p. 142.
597
DAHL, Robert. La democracia y sus críticos. Tradução de Leandro Wolfson. Barcelona: Paidós,. p. 269.
598
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.p. 61.
599
POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto
Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996. p. 24.
600
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 165.
164

e na ciência jurídica601.
As inquietações de Robert Dahl poderiam ser amenizadas (ou talvez aprofundadas)
se concluirmos que o salto para a democracia plena se dá pela adoção radical da concepção de
processualidade democrática602, como bem demonstra Andréa Alves de Almeida:

[...]a discursividade no espaço processual possibilita que o direito democrático no


nível instituinte e instituído não fique na esfera da subjetividade, da realidade nua
(ideologizada) ou na "comunidade prévia de sentido". A processualidade jurídica
possibilita que o discurso na democracia seja instalado num espaço em que os
problemas, as teorias e os argumentos críticos sejam os principais fundamentos para
tomada de decisão e não as expectativas da tradição e as probabilidades, pois, como
já discorremos, o probabilismo inibe a crítica e ofusca o contraditório e a ampla
defesa, reduzindo-os à dialética.603

Essa concepção, segundo Rosemiro Pereira Leal, é que vai superar os modelos
democráticos até então concebidos nas linhas liberal e republicana. Mas enquanto Habermas
aponta como saída uma teoria do discurso em que a política se estabelece como "um sistema
de ação ao lado de outros" legitimamente estabelecidos, admite que a comunicação entre este
sistema e os demais pode se dar "informalmente, nas redes da opinião pública"604 ou no vazio
normativo de uma "esfera pública"605, Rosemiro Pereira Leal aponta o caminho do devido
processo constitucional:

O que os liberais e republicanos ainda não perceberam é que o povo é um conjunto


de indivíduos circunscritos a um recinto espacial no qual a plebiscitarização do
direito, ao se fazer pela processualidade, em paradigmas institucionais democráticos
já constitucionalizados, não ocorre pela mobilização ou escuta provocada das
massas populares, mas pela fiscalização jurídico-processual abstrata e concreta,
irrestrita e incessante, da constitucionalidade no espaço procedimental e não físico-
nacional.606

601
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974c. v.2.
. p. 231.
602
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012. p. 124.
603
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012. p. 74.
604
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton
Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a. p. 292.
605
"A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não
constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de
pertença a uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear
seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis"..
"Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir
comunicativo implicando apenas o domínio de uma linguagem natural." (HABERMAS, 1997, p. 92). v.2.
606
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 181.
165

No Direito Processual Penal, o caráter assistemático da esfera pública só produziria


iniquidade. No entanto, há que se rechaçar o arcaísmo expresso pela busca de primazia e
status de sistema entre os princípios acusatório e inquisitório607. Para que se torne possível o
giro espistemológico necessário à efetiva constitucionalização do Processo Penal, não basta
que nos apeguemos a um garantismo quimérico que defende um Processo Penal sem Prisão
Preventiva, sob o argumento de que tal medida cautelar ofende o "senso comum de justiça",
sendo que sua supressão é esperada pela confiança "na responsabilidade intelectual e política
dos juristas e dos legisladores" para "defender e consolidar os valores de razão, de tolerância e
de liberdade" que formariam a estrutura básica "daquela conquista de civilidade que é a
presunção de inocência"608.
A processualidade penal democrática vai além de uma esperança ingênua na
prevalência natural de valores éticos na consciência dos juristas, pois conforme demonstra Rui
Cunha Martins609, ela expressa um sistema contrário de "inquisitivo", contrário de "misto" e
mais do que "acusatório"610. No mesmo sentido, Rosemiro Pereira Leal afirma que o Processo
de Conhecimento, reconhecido como "modalidade de direito fundamental
constitucionalizado", ou seja, instituído conforme os princípios da ampla defesa, do
contraditório e da isonomia, "proscreveu, de vez, os sistemas inquisitório e dispositivo de
livre convicção do juiz"611. Disso decorre que é pela processualidade democrática que se torna
possível assentar o discurso jurídico-penal em bases epistemológicas não-retóricas,
dessubjetivadas e que sejam capazes de estabelecer novas demarcações para a relação
indivíduo-sociedade-Estado.

6.2 Da paridade excludente na Inglaterra medieval à ampliação do alcance da cláusula


due process no direito norte-americano

A cláusula due process of law, expressamente contida no art. 5º, inciso LIV da
607
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013.p. 54.
608
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 450.
609
O professor português usa a expressão "democraticidade processual". Parece não haver razão para preferi-lo ao
invés de "processualidade democrática", pois esta última se mostra mais adequada aos propósitos desta pesquisa
na medida em que se pretende perpassar modelos, sistemas ou princípios processuais que no curso histórico se
mostraram incompatíveis com a democracia jurídica. Falar em "processualidade democrática" permite um
contraponto com realidades processuais autoritárias ou discricionárias. (MARTINS, 2012, p. 71;85).
610
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 93.
611
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 141.
166

Constituição brasileira de 1988, é atualmente concebida como Devido Processo


Constitucional que pode ser definido como meta-princípio articulador de vários outros,
institutivos (fundantes)612 e informativos, cujos contornos teóricos levam a considerá-lo,
conforme Ronaldo Brêtas, "como um bloco aglutinante e compacto de direitos e garantias
fundamentais inafastáveis, ostentados pelas pessoas (povo) quando deduzem pretensão à
tutela jurídica nos processos, perante os órgãos jurisdicionais"613. No entanto, a origem
histórica da cláusula aponta para uma garantia seletiva deferida pelo Rei João Sem-Terra aos
Barões e Prelados ingleses.
Em 1215, o Rei João Sem-Terra, que sucedera seu irmão Ricardo I (Ricardo
Coração-de-Leão), morto em 1199, estava há mais de 15 anos no poder, e havia levado a
Inglaterra à ruína em todos os sentidos: militar, econômica, territorial e cultural. A
insatisfação era generalizada, sobretudo entre os Barões que sofriam constantemente com
arbitrárias expropriações. Formaram um auto-intitulado "Exército de Deus" e, liderados pelo
Cardeal Lagton, marcharam sobre Londres e exigiram do Rei a outorga de uma Carta de
Direitos, o que ocorreu em 24 de maio de 1215614.
A Magna Cartha Libertatum (Great Charter), de início, não reconhecia as mesmas
franquias e imunidades a todos os cidadãos. A Carta contemplava apenas os homens livres
(freeman) que conquistaram a prerrogativa de serem julgados pelos seus pares (his equals)
segundo o costume da terra (law of the land). A expressão due process of law, no entanto,
passou a constar da Magna Cartha somente em 1354, quando seu alcance foi ampliado pelo
Rei Edward III, ocasião em que passou a contemplar todo e qualquer súdito, sendo
considerada até hoje o marco de nascimento do direito inglês 615. Pontes de Miranda adverte,
contudo, que "o valor da Magna Carta é restrito à sua obtenção em si: o interesse baronial
contra o despotismo do rei, tal a razão do ato de 1215. Não se lhe peça concepção do "homem
como titular de direitos”."616. Michele Taruffo, por sua vez, se refere à Magna Cartha
Libertatum como a primeira grande constituição da história europeia (tradução nossa)617 que

612
"Os princípios fundantes são aqueles que se desdobram a partir da cláusula do due process of law dos
americanos, ou do law of the land dos ingleses, como regras que sustentam aquele que é, por assim dizer, a
cláusula pétrea ou a matriz dos processos penais modernos: o devido processo legal". (MACHADO,
2009.p.158).
613
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. 2. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2012. p. 129.
614
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. História e prática do habeas corpus. Campinas: Bookseller,
1999. t. 1. p. 45.
615
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 17.
616
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. História e prática do habeas corpus. Campinas: Bookseller,
1999. t. 1. p. 55.
617
“A Londra, poco dopo il 15 giuno, i lre Giovanni fu costretto dai suoi baroni a concedere la Magna Charta
Libertatum, che è considerata come la prima grande costituzione della storia europea. Il re probabilmente non si
167

deu início a uma série de outras constituições e à longa história do constitucionalismo inglês.
O pioneirismo da Magna Cartha também é ressaltado por Simone Goyard-Fabre, que
a aponta como inspiração para as declarações de direitos que se sucederam nos séculos
seguintes, mas deixa claro que os textos modernos é que são mesmo os mais significativos em
termos de reconhecer e assegurar os "direitos do homem": são eles: a Petition of Rights, de
1628, o Habeas Corpus Act, de 1679 e o Bill of Rigths, de 1689. Na Inglaterra, a Declaração
de Independência, nas colônias norte-americanas, em 1776 e a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, na França, em 1789618.
Mas é no constitucionalismo norte-americano que a cláusula do devido processo
legal ganha especial relevância, porém somente após a Guerra Civil (1861-1865). O fato é que
"já em 1776 a "Declaração dos Direitos" de Maryland já fazia menção à law of the land como
via garantista e ativista dos direitos de vida, liberdade ou propriedade (life, liberty or
property)619". À época da promulgação da constituição, em 1787, Thomas Jefferson, o maior
defensor da inserção de um Bill of Rights no texto, estava na França acompanhando os
acontecimentos políticos que antecederam a Revolução, sendo então vencido neste intento.
Mas em 1791 foram acrescidas 10 emendas ao texto original, que constituíram uma
Carta de direitos (Bill of Rights). A Emenda nº 5 tratou de assegurar o Devido Processo Legal
e o direito à não auto-incriminação, voltados tão somente para causas criminais. Contudo, a
imprecisão do texto permitia violações e discriminações no âmbito dos Estados que só
passaram a se submeter à cláusula através da Emenda XIV, ratificada por 3/4 dos legislativos
estaduais, em 1868620.
Essa ampliação da cláusula não foi apenas quanto à sua abrangência territorial, mas
também com relação ao seu próprio conteúdo e passou a ter um sentido de proteção geral
(equal protection of the laws) contra as possíveis iniquidades estatais (substantive due process
of law), não somente como cláusula assecuratória de garantias processuais (procedural due
process of law)621. No seu sentido substancial, a cláusula do Devido Processo Legal se

rendeva conto del fatto che stava dando inizio ad una seria di altre costituzioni, e soprattutto ad una lunga storia
del diritti costituzionale inglese”. “Em Londres, logo após o 15 de junho, o rei João foi obrigado pelos seus
barões a conceder a Magna Charta Libertatum, que é considerada como a primeira grande constituição da
história europeia. O rei provavelmente não se deu conta do fato de que estava dando início a uma série de outras
constituições, e sobretudo a uma longa história do direito constitucional inglês.” (tradução nossa) (TARUFFO,
2009, p. 3).
618
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 330-331.
619
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 582.
620
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 28.
621
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 28.
168

conjuga com os direitos de vida e liberdade "como propriedade"622.


Trata-se de uma concepção que tem origem no pensamento de John Locke, que
engloba em sua definição geral de "propriedade", a "vida, a liberdade e os bens", sendo a sua
preservação e gozo em segurança "o objetivo capital e principal da união dos homens em
comunidades sociais e sua submissão a governos"623. A law of the land seria, assim, portadora
de uma imanência que se caracteriza pelo ativismo e o substancialismo, sendo manejada
convenientemente pelos interesses culturalistas e patrimonialistas dos homens livres e iguais,
havendo, neste ponto, uma equivalência entre os sistemas jurídicos de Common Law e Civil
Law, como espaços de articulação mítico-utópica por uma autoridade jurisdicente, segundo
observação de Rosemiro Pereira Leal624.
Interessante notar que para Locke o "estado de natureza", mesmo sendo um "estado
de liberdade", não é um "estado de permissividade", pois nele o homem estaria submetido ao
direito natural e, por tal razão, não poderia dispor de sua própria vida e nem de qualquer
outra, salvo para a própria preservação625. Diferentemente de Hobbes, o "estado de natureza"
em Locke não se traduz na guerra de todos contra todos. A passagem do "estado de natureza"
para o "governo civil" se deu para que o gozo da propriedade não estivesse sempre exposto à
insegurança e à precariedade, razão pela qual as constituições de inspiração lockeana não se
descuidaram da cláusula do substantive due process, que se estabelece como mecanismo de
contenção legislativa.
Mesmo diante de todo esse desenvolvimento histórico que consolidou um sistema de
contenção do poder jurisdicional em face de liberdades individuais, acusatoriedade e
inquisitoriedade acabam sempre diluídos pela legislação infraconstitucional, à medida que
cedem à ideologia predominante: acusatório quando prevalece a ideologia do processo como
um problema das partes e o juiz, por obrigação de imparcialidade, deve manter-se como um
espectador. Inquisitório, quando prevalece a ideologia de que o processo tem por fim a busca
da verdade, devendo o juiz se portar como interventor, sendo portador de iniciativas e poderes
para produzir provas de ofício626.

622
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 582.
623
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3.
ed. Petrópolis: Vozes, 2001b. p. 156.
624
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 69
625
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3.
ed. Petrópolis: Vozes, 2001b. p. 84.
626
QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.
12.
169

6.3 A releitura da cláusula due process no paradigma democrático

A concepção pós-moderna da cláusula Devido Processo Legal passa pela superação


das concepções de cunho excludente e patrimonialista acima abordadas, conforme a crítica de
Rosemiro Pereira Leal:

O devido é legislativamente posto sob sanção, punição, castigo, aos infratores e


delinquentes (o potus). A autoridade sancionadora (hércules dworkiano) é dotada
aqui de uma pesada carga de saber (integridade) por juízos monológicos de
adequabilidade principiológica, conveniência, equidade, justiça e ponderabilidade,
encarregada que é de uma vigilância perpétua que só a ela cabe tecer e conduzir.627

O Devido Processo Legal também não se destina estrategicamente à realização de


uma ordem concreta de valores oriunda de um pacto fundamental que materializa uma
determinada identidade ético-cultural, como querem os comunitaristas628. Nessa conjectura, é
perceptível a singularidade com que o tema é abordado por Rosemiro Pereira Leal, de modo a
encaminhar a concepção pós-moderna do Devido Processo Legal, que, uma vez assegurado
pelo texto constitucional, passa a ter "como lugar devido de sua criação, a Lei
Constitucional"629, ou, Devido Processo Constitucional. Essa seria uma inigualável conquista
teórica, cuja observância estrita é a única fonte de legitimidade das decisões jurisdicionais 630.
Mais do que um princípio de Direito Processual, o devido processo é concebido como devir:

[...] a partir de uma linguisticidade jurídica que é marco interpretante de criação


(vir-a-ser) e atuação de um sistema normativo de tal modo a permitir a fusão
biunívoca de vida-contraditório, liberdade-ampla defesa, isonomia-dignidade
(igualdade), como direitos fundantes (fundamentais) de uma constitucionalidade
instrumental à sua respectiva implementação. 631

A Constituição passa a ser compreendida como um discurso que se encaminha por


uma teoria Neoinstitucionalista632 do processo. Neste ponto da investigação cumpre anotar

627
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 587.
628
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000b.
p. 67.
629
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
42.
630
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
45.
631
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 592.
632
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
170

que na atual quadra dos estudos jurídico-constitucionais devem ser acolhidas as concepções
que definem princípio como norma633. No Direito Processual Penal, a observância dos
princípios constitucionais institutivos é inafastável, para que se assegure uma interpretação
adequada ao texto fundamental, pois como demonstram Flaviane de Magalhães Barros e
Felipe Daniel Amorim Machado, "o modelo constitucional do processo é uma base
principiológica uníssona, na qual os princípios que o integram são vistos de maneira co-
dependente"634, uma vez que qualquer violação ou inobservância a um dos princípios
fundantes faz com que todos os demais também sejam afetados.
O fato é que qualquer abordagem constitucionalizada do processo e, sobretudo do
Processo Penal, ficaria prejudicada sem as incursões acima apresentadas, que inauguram na
Teoria do Direito o conceito de isomenia no qual se define, conforme já vimos, como
referente lógico-jurídico à disposição dos destinatários normativos, atuando na construção,
aplicação, modificação ou extinção de direitos. Essa é a concepção pós-moderna do Devido
Processo Legal, em que se articulam os princípios do Contraditório, Ampla Defesa e
Isonomia, com os direitos líquidos, certos e exigíveis de Vida, Liberdade e Igualdade635.

6.4 Contraditório como direito fundamental de vida plena

Como princípio institutivo do processo, tendo em vista a sua expressa previsão


constitucional, o Contraditório, segundo Dierle José Coelho Nunes, com base na doutrina de
Nicola Picardi, tem seus alicerces na antiga parêmia grega “audiatur et altera pars”. Em texto
especializado demonstra que o princípio, que teve seu ápice no Estado Liberal em que o papel
das partes era privilegiado, foi posteriormente mitigado pelo Estado Social em que prevaleceu
o princípio autoritário, instaurando um evidente ativismo judicial. Para o autor, o princípio do
Contraditório ganhou “novos horizontes” nos estados constitucionais do segundo pós-guerra,
proporcionando o que chama de "comparticipação na estrutura procedimental"636.
Na teoria de Elio Fazzalari637, a projeção do contraditório como diferença específica

Horizonte: Arraes, 2013; ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade
metalinguística. Curitiba: Editora CRV, 2012.
633
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. Madrid:
Centro de Estudos Constitucionales, 1993p. 83; DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo:
Martins Fontes, 2002. p. 36.
634
BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011. p. 20-21.
635
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 271
636
Princípio do Contraditório. p. 41.
637
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006.
171

capaz de distinguir o Processo do Procedimento, faz com que o princípio seja estudado com
destaque ainda maior. Como divulgador maior da obra de Fazzalari no Brasil, Aroldo Plínio
Gonçalves apresenta uma nova dimensão do contraditório:

O contraditório não é apenas “a participação dos sujeitos no processo”. Sujeitos do


processo são o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exige, e as
partes (autor, réu, intervenientes). O contraditório é a garantia de participação, em
simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença,
daqueles que são os “interessados”, ou seja, aqueles sujeitos do processo que
suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor. 638

Assim, em se tratando de Direito Processual Democrático não é possível mais


admitir decisão jurídica construída sem que sejam levadas em consideração as argumentações
das partes interessadas e que serão por ela afetadas, pois é pela controvérsia que o
Contraditório se manifesta na sua mais completa configuração639.
Segundo a conclusão de André Cordeiro Leal, uma decisão jurisdicional que
desconsiderasse o Contraditório sequer poderia ser reconhecida como tal, pois lhe faltaria
legitimidade. É que existe um entrelaçamento lógico-jurídico entre o Contraditório e o
princípio da fundamentação das decisões, o que faz com que os argumentos lançados pelas
partes no iter procedimental devam obrigatoriamente ser observados no texto decisório640. Por
essa razão, percebe-se que, especialmente no processo jurisdicional, a presença do
Contraditório é exigida de modo inafastável como pressuposto lógico da decisão, a qual, sem
que este princípio seja observado em toda sua extensão, jamais se revestirá de legitimidade,
faltando-lhe assim um atributo indispensável a qualquer decisão tomada pelo Estado na órbita
democrática. O Contraditório é que permitirá a comparticipação paritária das partes no
procedimento formativo da decisão jurisdicional, removendo o desequilíbrio originário que
surge pelo princípio da demanda, ou seja, permitindo à outra parte (audiatur et altera pars)
replicar as deduções da parte autora641.
Mas além dessa posição de princípio institutivo (fundante) a reger a função
jurisdicional, o Contraditório adquire na processualidade democrática a possibilidade de
encaminhar juridicamente "a indissolúvel associação homem-ciência na construção da

638
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 120
639
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 125.
640
LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual
democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 105.
641
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990. p. 108.
172

sociedade aberta, ao combate entre teorias e não entre os homens que as enunciam"642. É pelo
princípio do Contraditório que a "vida" se enuncia processualmente no Estado Democrático
de Direito.
Como demonstra Giorgio Agamben, os gregos se utilizavam de dois termos distintos
para expressar o que hoje designamos como "vida": zoé que designava o simples ato de viver,
comum a todas as criaturas. É a vida portadora de primordialidade e eternidade. Já o termo
bíos designava a forma de viver de um indivíduo ou grupo. É a vida cotidiana e passageira643.
Essa distinção pode nos levar a entender que o direito "à vida", na constitucionalidade
contemporânea, deve ir além do direito à simples existência física, buscando abranger as
dimensões que integram a Vida Activa, na acepção de Hannah Arendt, composta de três
atividades fundamentais: Labor, Trabalho e Ação. A primeira, ligada ao desenvolvimento
biológico e cuja condição humana correspondente, é a própria vida. A segunda, ligada ao
artificialismo das coisas elaboradas pelos homens, cuja condição correspondente, é a
mundanidade humana. Por fim, a Ação, que diz respeito às relações entre os homens, sendo a
própria condição de existência de toda atividade política, fundada na pluralidade, pois mesmo
sendo todos humanos, não somos iguais individualmente a nenhuma outra pessoa que existiu,
exista ou venha a existir644.
Os homens são condicionados não só pela natureza, mas também pelas coisas e por
que não, pelas instituições que eles mesmos criam. Essas condições que se estabeleceram a
partir da organização humana em sociedade eram vistas por Rousseau como causa daquilo
que o homem produz de mais destrutivo como as guerras, vinganças, assassinatos, roubos e
revoluções. O Homem, no Estado de Natureza, seria portador nato de um sentimento de
piedade e justiça em razão de seu desapego às "paixões artificiais". É o mito do bom
selvagem:

[...] o homem selvagem e o homem policiado diferem tanto no fundo do coração e


das inclinações que o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao
desespero. O primeiro aspira só ao repouso e à liberdade, quer apenas viver e ficar
ocioso, e mesmo a ataraxia do estóico não se aproxima de sua profunda indiferença
por qualquer outro objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se,
atormenta-se continuamente para encontrar ocupações ainda mais laboriosas;
trabalha até a morte, até corre ao seu encontro para se colocar em condição de viver
ou renuncia à vida para alcançar a imortalidade. 645

642
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 194.
643
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007b. p. 9.
644
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. p. 16.
645
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.p. 241-242.
173

O "homem policiado" de Rousseau é aquele sujeito à autoridade, à proteção e à


regulamentação do Estado. É o componente da sociedade civil. É o homem assujeitado ao
"biopoder" estatal como foi demonstrado por Foucault.

6.4.1 O Contraditório diante do "Biopoder"

A narrativa foucaultiana apresenta uma trajetória da relação indivíduo-poder em três


estágios básicos646: primeiramente no plano do exercício da soberania em que a vida do súdito
tem um valor neutro, na medida em que o soberano detém o poder de vida ou morte decide
sobre "fazer morrer e deixar viver". Mas a ideia do contrato social não engloba o direito de o
soberano "fazer morrer", pois o contrato somente se justifica na medida em que os indivíduos
a ele recorrem "premidos pelo perigo e pela necessidade", em busca de proteção. Surge então
um novo método de poder que consiste em "fazer viver e deixar morrer".
Essa nova realidade é que vai permitir o aparecimento de mecanismos, técnicas e
tecnologias que vão caracterizar os outros dois estágios da relação indivíduo-poder.
Primeiramente, o "poder disciplinar" exercido diretamente sobre o corpo através do
treinamento, da punição, do alinhamento, da classificação e da vigilância. Em seguida, o
chamado "biopoder" (ou biopolítica). Uma nova tecnologia do poder que cuida da
regulamentação não do homem-corpo, mas do homem-espécie na sua dimensão coletiva, pois
atua sobre os fenômenos de massa, como natalidade, mortalidade, doenças, previdência,
seguridade e população.
Foucault conclui que disciplina e regulamentação (biopoder ou biopolítica) surgem
em momentos históricos distintos, mas próximos, na transição do século XVIII para o XIX.
Possuem também uma diferença de nível, pois estão sobrepostas. Mas nem em razão da
diferença cronológica, nem da distinção de nível, elas se excluem. Pelo contrário, se articulam
uma com a outra647. Daí as técnicas de separação e divisão espacial nas cidades, as
classificações das ciências biológicas, da medicina e da psicologia. Os rótulos e as etiquetas,
servindo à administração da vida pelo governo estatal.
Essas tecnologias identificadas por Foucault possuem um elemento integrador,
identificável, tanto no poder disciplinar quanto no regulamentador: a "norma". A "norma da
disciplina" e a "norma da regulamentação" se cruzam numa "sociedade de normalização", um

646
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 285;316.
647
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 299.
174

"poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida", ou seja: "da vida em geral, com o
pólo do corpo e o pólo da população"648. Para Foucault, a emergência desse "biopoder" fez
surgir o racismo de Estado, que começou por separar a população em subgrupos (raças),
implementando uma "biopolítica" pautada pela identificação de uma raça inimiga a ser
eliminada, num darwinismo perverso em que a morte da "outra espécie" não significa
somente a "vida" da "minha espécie", mas a sua própria evolução, seu aperfeiçoamento, pelo
"imperativo da morte", não só do "outro inimigo", mas também de elementos mais frágeis da
própria raça.
A grande expressão da junção do poder disciplinar e do poder regulamentador,
traduzida pelo racismo de Estado foi a experiência nazista:

[...] ao mesmo tempo que se tinha essa sociedade universalmente previdenciária,


universalmente seguradora, universalmente regulamentadora e disciplinar, através
dessa sociedade, [houve o] desencadeamento mais completo do poder assassino, ou
seja, o velho poder soberano de matar. Esse poder de matar,que perpassa todo o
corpo social da sociedade nazista, se manifesta, antes de tudo, porque o poder de
matar, o poder de vida e de morte é dado não simplesmente ao Estado, mas a toda
uma série de indivíduos, a uma quantidade considerável de pessoas (sejam os SA, os
SS, etc.). No limite, todos têm o direito de vida e de morte sobre o seu vizinho, no
Estado nazista, ainda que fosse pelo comportamento de denúncia, que permite
efetivamente, ou fazer suprimirem, aquele que está a seu lado. 649

É de se pensar se existe mesmo diferença entre o comportamento do povo alemão


"alucinado"650 pelo discurso nazista e um tryal norte-amerciano, ou um julgamento da França
revolucionária, ou mesmo um julgamento do Tribunal de Nuremberg, quando se decide pelo
envio de um acusado ao patíbulo. Há que se indagar se não seria o mesmo direito soberano de
"fazer morrer ou deixar viver", o mesmo "direito de vida ou morte". É o paradoxo da
soberania descrito por Giorgio Agamben:

O paradoxo da soberania se enuncia: "O soberano está, ao mesmo tempo, dentro e


fora do ordenamento jurídico". Se o soberano é, de fato, aquele no qual o
ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de
suspender, deste modo, a validade do ordenamento, então "ele permanece fora do
ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a
constituição in toto possa ser suspensa" (Schmitt, 1922, p. 34). A especificação "ao
mesmo" tempo não é trivial: O soberano, tendo o poder legal de suspender a
validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode
ser formulado também deste modo: "a lei esta fora dela mesma", ou então: "eu, o
648
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.p. 302.
649
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 310.
650
É a "vertigem alucinatória" provocada por uma "verdade da evidência", alheia ao processo, que se contrapõe à
"verdade da prova", que se submete ao exame do processo. É possível afirmar que no regime nazista o povo foi
tomado por esta perniciosa vertigem por uma "verdade" que se estabeleceu do modo "alucinado", em que o
outro, a raça inferior era apontada como causa de todos os males. (MARTINS, 2011, p. 5).
175

soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei".651

De todo modo, soberania é matar sem cometer homicídio e essa vida nua ou sacra, na
concepção de Agamben, é aquela entregue ao bando soberano que dela pode dispor, ou seja, é
insacrificável, porém matável. A sacralidade da vida, antes de significar seu reconhecimento
como direito humano fundamental, significa o seu abandono, a sua sujeição a um poder de
vida ou morte652. A toda evidência, no Estado Democrático de Direito, a vida não está "a-
bandonada", ou entregue e sujeita ao "bando soberano", podendo por este ser exterminada
impunemente.
No Estado Democrático de Direito, não é possível conceber exclusões, seleções,
classificações, etiquetamentos, segregações ou abandonos que resultem no reconhecimento de
"vidas que não merecem viver"653. É justamente o princípio do Contraditório que vai
promover a plena "inclusão do outro" (audiaturet altera pars), e não a simples confiança no
sistema político como capaz de abrigar o multiculturalismo, porém, sujeito a uma "cultura
comum" que evite a fragmentação da unidade política, tão cara ao comunitarismo654.
Ao ouvir o outro, o Processo Constitucional instaura o acolhimento da diferença, não
para que esta venha a sucumbir a uma igualdade totalitária ou ditatorial, mas para que os
conteúdos teóricos encaminhados processualmente possam concorrer livremente na busca de
prevalência (corroboração)655, resolvendo-se os conflitos humanos sem que vidas humanas
sejam sacrificadas, ou, numa perspectiva popperiana, que as hipóteses possam morrer no lugar
dos homens, postura que distingue o conhecimento científico do conhecimento animal e do
conhecimento pré-científico, em que os defensores das "hipóteses incapazes" é que são
eliminados fisicamente656.
No Processo Penal, a decisão surpreendente, eventualmente tomada em supressão de
Contraditório, é que vai provocar a eliminação física do acusado, num claro proceder pré-
científico. Nessa circunstância, ocorre a declaração de incapacidade da hipótese articulada de
651
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007b. p. 23.
652
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007b.p. 91.
653
expressão que surge pela primeira vez em um ensaio de Karl Binding em 1922, no qual o autor expunha teses
em que defendia a eutanásia. Este texto foi apropriado pelos nazistas posteriormente para justificar o conceito de
"vida indigna de ser vivida", vida esta passível de aniquilamento impune ou mesmo juridicamente permitido.
(AGAMBEN, 2007b, p. 144).
654
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton
Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a.p. 173.
655
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 34.
656
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 999.
p. 238.
176

modo absolutamente desconectado dos conteúdos encaminhados discursivamente, em total


inobservância ao "trinômio estrutural do contraditório - informação, reação, diálogo - que se
instala na dinâmica do procedimento"657, em correlação com o princípio constitucional da
fundamentação das decisões. Surge, então, o viés inquisitivoque se evidencia no art. 385 do
Código de Processo Penal brasileiro que permite decisão totalmente divorciada da
argumentação das partes. O mesmo ocorre no art. 156, inciso I, que permite ao juiz determinar
a produção de provas ex officio mesmo antes de iniciada a ação penal, dispositivos que violam
o princípio da imparcialidade, e, por isso, devem ter sua incompatibilidade constitucional
declarada658.
A vedação da decisão surpresa, não é de hoje, parece ser uma preocupação nos mais
diversos ordenamentos processuais. Dierle José Coelho Nunes aponta como exemplos o
Código de Processo Civil Francês, de 1975, o Código de Processo Civil Austríaco659 e o
modelo processual de Stutgart na Alemanha, que preconizam uma nova oportunidade para as
partes argumentarem quando o juiz identifica um ponto que pode influenciar no julgamento e
que não foi objeto de abordagem pelos litigantes660. Desse modo, "não mais se permite que o
provimento seja um ato isolado de inteligência do terceiro imparcial"661, ou, nas palavras de
Rosemiro Pereira Leal: "um ato eloquente e solitário de realização de justiça"662.

6.5 Ampla defesa como liberdade

Há uma preocupação recorrente entre alguns autores em demonstrar que os conceitos


de Contraditório e Ampla Defesa são indiscerníveis. Andolina e Vignera atribuem essa
confusão à redação do art. 24, parágrafo segundo, da Constituição italiana e afirmam que a
distinção deve ser explicitada por questões práticas e metodológicas 663. Luiz Guilherme
Marinoni identifica a mesma zona sombria na redação do art. 5º, inciso LV da CB/88, que
levaria a uma equivocada concepção de que Contraditório e Ampla Defesa, são "conceitos

657
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. 2. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2012. p. 104.
658
BARROS, Flaviane de Magalhães. (Re) forma do processo penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 37.
659
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012. p. 228-229.
660
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012. p. 121.
661
BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011. p. 22.
662
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 45.
663
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990. p. 155.
177

interligados"664.
Andolina e Vignera adotam uma posição garantista em que a defesa se institui para
regulamentar a relação entre o indivíduo e o Estado, tendo a função de tutelar a liberdade do
cidadão frente à autoridade no exercício de uma função soberana665. Ou seja: é a defesa que
produzirá o que Ferrajoli chama de legitimação substancial, consistente na "imunidade do
cidadão contra intervenções arbitrárias"666. Em decorrência de tal garantia, os mais diversos
ordenamentos constitucionais trataram de instituir juridicamente verdadeiros "direitos
fundamentais", cuja proteção não pode ser restringida por ausência ou insuficiência de norma
interna, devendo o Estado, na execução de tais direitos, conferir efetividade ao Direito
Internacional pertinente, conforme defende José Alfredo de Oliveira Baracho:

A dimensão histórica dos direitos e liberdades fundamentais proporciona o


conhecimento do regimes de liberdades, propiciando a compreensão da evolução
dos direitos e liberdades fundamentais, inclusive a sua vertente internacional e
européia. Decorrem daí as particularidades da norma internacional de proteção dos
direitos do homem e a questão da prevalência da norma internacional sobre o juízo
nacional, não-reciprocidade, aplicabilidade direta, direitos intangíveis, direitos
condicionados, direitos indiretos ou o alargamento do acesso do direito ao recurso.
A proteção dos direitos e liberdades fundamentais pelas Cortes Constitucionais criou
várias formas de defesa, constatando-se a heterogeneidade da sua efetiva
concretização.667

Para Couture, essa fundamental instituição, denominada "tutela jurídico-


constitucional das liberdades", antes de se dirigir ao juiz e às partes se dirige ao legislador que
deve agir sempre para reforçar o alcance de tais disposições na infraconstitucionalidade, bem
como conter-se, evitando legislar de modo a restringi-las668. A concepção de Ampla Defesa,
como uma garantia constitucional assegurada ao réu para que possa utilizar todos os
"mecanismos processuais indispensáveis à salvaguarda de todos os seus direitos"669, é
prevalente na doutrina e decorre da cisão teórica e conceitual entre "ação" e "defesa" que
seriam institutos paralelos e correlatos:

664
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 311.
665
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990. p. 159.
666
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 735.
667
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição constitucional da liberdade. In: SAMPAIO, José Adércio de
Oliveira (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 30
668
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. Ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007. p. 124.
669
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 161.
178

É fácil perceber que o direito de defesa constitui um contraponto ao direito de ação.


A jurisdição, para responder ao direito de ação, deve necessariamente atender ao
direito de defesa. Isso pela simples razão de que o poder, para ser exercido de forma
legítima, depende da participação dos sujeitos que podem ser atingidos pelos efeitos
da decisão. É a participação das partes interessadas que confere legitimidade ao
exercício da jurisdição. Sem a efetividade do direito de defesa, portanto, estaria
comprometida a própria legitimidade do exercício do poder jurisdicional. 670

Marinoni, como é possível notar, trabalha com a concepção de jurisdição como


exercício de positivação do poder e de processo como instrumento voltado ao exercício deste
poder, sendo admissível restringir o direito de defesa para atender às necessidades do
chamado direito substancial, que por vezes necessitaria de procedimentos mais céleres,
incompatíveis com o pleno exercício da defesa.
Esse discurso que enxerga um dilema entre compatibilizar a necessidade de um
judiciário célere, prestativo, eficiente e um processo efetivo que resulte em decisões eficazes
com a garantia da Ampla Defesa é, no paradigma democrático do Devido Processo
Constitucional, um falso dilema que desafia os processualistas das mais variadas vertentes671.
O fato é que o constituinte não se valeu do termo "Ampla", precedendo o termo "Defesa", por
mero acaso.

6.5.1 Defesa, Ampla Defesa e Contraditório: distinções

Como princípio institutivo do processo, a Ampla Defesa nem sempre é


adequadamente estudada. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e
Cândido Rangel Dinamarco, em sua clássica obra de Teoria Geral do Processo, a estudam
como um mero consectário do exercício do Contraditório672, enquanto Marinoni afirma que o
Contraditório exterioriza a Defesa, sendo esta pressuposto do Contraditório673. Quem lhe
empresta um tratamento mais específico é Rosemiro Pereira Leal, que concebe primeiramente
a Defesa como instituto jurídico de "excetividade plena" no processo, pelos princípios do

670
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1.p. 305.
671
SOUZA, Bonifácio. Efetividade do processo e acesso à justiça. In: TAVARES, André Ramos; LENZA,
Pedro; LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Reforma do judiciário: analisada e comentada. São Paulo: Método,
2005. p. 51.
672
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.p.55-57.
673
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 311.
179

Contraditório e da Ampla Defesa, ambos institutivos da processualidade democrática674.


Dessas lições depreende-se que sem Contraditório não há Defesa e sem Ampla
Defesa, muito menos. Se o Contraditório, na fundamentalidade jurídica, se mostrou como o
próprio encaminhamento da vida discursiva no âmbito espácio-temporal do Processo675, a
Ampla Defesa676 é ampla justamente porque não pode ser comprimida por procedimentos
sumaríssimos que não permitem uma reflexão adequada sobre as alegações e provas
apresentadas pelas partes no processo, sendo assim a própria expressão da Liberdade
constitucionalmente assegurada. Mas como Liberdade não se confunde com livre vontade 677,
há que se observar que “a amplitude de defesa não supõe infinitude de produção da defesa a
qualquer tempo, porém, que esta se produza pelos meios e elementos totais de alegações e
provas no tempo processual oportunizado pela lei”678.
No paradigma do Estado Democrático de Direito, o princípio da Ampla Defesa é
submetido a uma reconstrução. As concepções de que se trata do “correlato-paralelo” do
direito de ação (desenvolvida por Marinoni), antítese da ação (desenvolvida por Couture)679,
ou de que se trata de meio para se proteger do arbítrio estatal (formulada por Andolina e
Vignera), se mostram insuficientes ao esclarecimento do alcance deste princípio
constitucional institutivo do Processo. A Ampla Defesa se apresenta na pós-modernidade
como direito fundamental de ampla argumentação, conferido constitucionalmente não apenas
ao acusado ou réu, mas também ao autor, pois o direito de ação pressupõe o direito de
encaminhar suas razões com plena liberdade, vez que o autor também “defende” algo ao
exercer o direito incondicional de movimentar a jurisdição:

Assim, tomando estes dois conceitos como base – direito de ação e contraditório -, a
ampla defesa será compreendida como garantia das partes de amplamente
argumentarem, ou seja, as partes além de participarem da construção da decisão
(contraditório), têm direito de formularem todos os argumentos possíveis para a
formação da decisão, sejam estes de qualquer matiz. Isto, pois a recorrente afirmação
da distinção entre argumentos de fato e de direito, aqui são compreendidos como

674
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 39 e 47.
675
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.p. 75.
676
Na dicção do inciso XXXVIII do art. 5º da CB/88, tem-se o termo Plenitude de Defesa como direito a ser
assegurado aos acusados nos julgamentos pelo Tribunal do Júri. Não nos parece, por uma questão de isonomia,
que entre os termos "Ampla" e "Plenitude" possa haver uma diferença de grau, quantitativa ou qualitativa, pois
sendo o Júri uma espécie de Processo, não é possível afirmar que os acusados submetidos a este tribunal teriam
maiores prerrogativas defensivas que os acusados perante a jurisdição togada.
677
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 185
678
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 100.
679
COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer
Russomano. São Paulo: Max Limonad, 1956. p.162.
180

indissociáveis. Assim, a ampla argumentação garante como conseqüência lógica a


possibilidade de ampla produção de prova para a reconstrução do fato e das
circunstâncias relevantes para o processo.680

Como se observa, uma percepção democrática da Ampla Defesa leva à superação da


visão beligerante do Direito Processual, em que, muitas vezes, o Processo é enxergado como
um campo no qual se trava uma batalha entre ataque e defesa, pretensão e resistência, sujeito
ativo e sujeito passivo. Uma compreensão da Ampla Defesa, como ampla argumentação, se
mostra mais adequada à teoria da democracia enquanto teoria discursiva e processual de
criação, aplicação e testificação do direito.
É por meio da Ampla Defesa que a função argumentativa da linguagem pode ser
plenamente exercitada no Direito. Popper entende a função argumentativa como a mais
evoluída, sendo própria da espécie humana, juntamente com a função descritiva. Segundo o
autor, as funções da linguagem são quatro: As primeiras são consideradas inferiores e são
exercidas também pelos animais. Trata-se das funções expressiva (ou sintomática) e
sinalizadora (ou liberadora). As funções descritiva e argumentativa são consideradas as
funções superiores da linguagem, sobretudo esta última:

A função argumentativa da linguagem não só é a mais elevada das quatro funções


que aqui estou discutindo, mas foi também a última delas a evolver. Sua evolução
tem sido estreitamente ligada à de uma atitude argumentativa, crítica e racional; e
como esta atitude tem levado à evolução da ciência, podemos dizer que a função
argumentativa da linguagem criou o que é talvez o mais poderoso instrumento de
adaptação biológica que já apareceu no curso da evolução orgânica. 681

Como só é possível argumentação sobre algo que foi objeto de descrição, Popper
demonstra que qualquer juízo sobre um relato no âmbito da função descritiva se dá segundo
critérios de verdade ou falsidade. Já o uso argumentativo leva a conclusões que devem ser
avaliadas segundo critérios de validez e invalidez. Rosemiro Pereira Leal, em sua singular
concepção de isomenia como a "simétrica paridade interpretativa do direito legislado"682,
articula o princípio institutivo da Ampla Defesa com o direito fundamental à Liberdade, que
jamais pode ser objeto de vedação "em todos os instantes construtivos, operacionais,

680
PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros; CARVALHO, Marius Fernando Cunha; GUIMARÃES,
Natália Chernicharo. O princípio da ampla defesa: uma reconstrução a partir do paradigma do Estado
Democrático de Direito. In: CONGRESSO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO,14, 2006,
Florianópolis. Anais... Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.
681
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 217.
682
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274.
181

modificativos, aplicativos e extintivos da normatividade"683, permitindo assim o pleno uso


argumentativo da linguagem.
Para o Direito Processual Penal, esta biunivocidade é pertinente, pois a Ampla
Defesa se desdobra em dois flancos: a defesa técnica e a autodefesa (defesa pessoal) 684, em
que a liberdade argumentativa se articula com uma liberdade de postura (defesa pessoal
negativa-nemotenetur se detegere)685, em defesa da liberdade individual, não somente física,
na medida em que as sanções penais vão além da privação do direito de ir e vir. A defesa
técnica realizada por profissionais habilitados e autorizados para essa atividade (advogados
constituídos pela parte, defensor público ou dativo), constitui requisito essencial para a
fruição do direito fundamental à Ampla Defesa, conforme disserta Aury Lopes Júnior, que
enxerga o acusado como parte hipossuficiente no Processo Penal:

A justificação da defesa técnica decorre de uma esigenza di equilibrio funcionale


entre defesa e acusação e também de uma acertada presunção de hipossuficiência do
sujeito passivo, de que ele não tem conhecimentos necessários e suficientes para
resistir à pretensão estatal, em igualdade de condições técnicas com o acusador. Essa
hipossuficiência leva o imputado a uma situação de inferioridade ante o poder da
autoridade estatal encarnada pelo promotor, policial ou mesmo juiz. Pode existir
uma dificuldade de compreender o resultado da atividade desenvolvida na
investigação preliminar, gerando uma absoluta intranquilidade e descontrole.
Ademais, havendo uma prisão cautelar, existirá uma impossibilidade física de atuar
de forma efetiva.686

A conjectura acima, a toda evidência, está pautada no maniqueísmo Estado-indivíduo


que tanto marcou o liberalismo processual em que se propugnava uma autossuficiência da
autonomia privada687 na medida em que estabelecia, de antemão, uma desconfiança da
atuação estatal nos mais diversos campos da atividade humana, justificando, desse modo, o
absenteísmo como forma de consagrar a liberdade individual, em termos lockeanos, como
uma instância indevassável que deve permanecer protegida contra a arbitrariedade do governo
e seus magistrados688.
O liberalismo, que segundo Foucault, consiste em deixar as pessoas fazerem (laisser-
faire), deixar as coisas passarem (laisser-passer) e deixar as coisas andarem (laisser-aller), é
que vai desenvolver uma técnica insidiosa que aos poucos se sobrepõe ao poder disciplinar

683
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 184
684
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 143.
685
Art. 5º, inciso LXIII da Constituição brasileira de 1988.
686
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 192.
687
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 74
688
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3.
ed. Petrópolis: Vozes, 2001b. p. 165.
182

(que sujeitou a criança, os soldados e os operários, no século XVIII). Trata-se do Dispositivo


de Segurança, um tipo de mutação da tecnologia de poder que atua sobre a Liberdade de
modo menos restritivo, se apresentando como ideologia e, ao mesmo tempo, técnica de
governo689. O Processo, em certa leitura, é também visto como "um dispositivo articulador de
elementos de vária ordem"690. Ou como diz Michele Taruffo:

O processo, de fato, é também, um "lugar" em que se aplicam normas, se atuam


valores, se asseguram garantias, se reconhecem direitos, se tutelam interesses, se
compõem escolhas econômicas, se enfrentam problemas sociais, se alocam recursos,
se determina o destino das pessoas, se tutela a liberdade do indivíduo, se manifesta a
autoridade do Estado[...] e se resolvem controvérsias por meio de decisões
esperançosamente justas (tradução livre).691

Essa perspectiva acerca da multiplicidade de acontecimentos e thema decindendum,


verificados em qualquer Processo, nos remete à configuração da Ampla Defesa como
princípio institutivo articulador da ampla Liberdade, que também se configura como
enunciado normativo caracterizado como princípio constitucional de reconhecida
fundamentalidade (art. 3º, inciso I; art. 5º, caput da Constituição brasileira de 1988).
Um Processo é único em seu desenrolar, pois mesmo se desenvolvendo segundo
normas procedimentais que prezam por estabelecer uma sequência lógica de normas, atos e
posições subjetivas692, a Ampla Defesa se encarrega dos incidentes e acidentes que reforçam
sua singularidade, pois expressam a Liberdade democrática dos "legitimados", ou seja, do
povo, em "um regime de interpretação aberta a todos"693.
As regras do Processo se assemelhariam assim às regras de um jogo, pois num
primeiro momento cumprem o papel de estabilização das expectativas de comportamento no
espaço-tempo da tramitação processual. Mas, segundo Alexandre Morais da Rosa, essas
seriam regras de um jogo "dinâmico de informação incompleta" no qual o êxito do jogador
(parte) depende, sobretudo de se saber "que tipo de jogador se está enfrentando e qual o

689
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008b. p. 62-63.
690
MARTINS, Rui Cunha. O mapeamento processual da verdade. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti
Castanho de et al. (Org.). Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São
Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 71-85.p. 73.
691
"Il processo, invero, è anche un "luogo" in cui si applicano norme, si attuano valori, si assicurano garanzie, si
roconoscono diritti, si tutelanointeressi, si compiono scelte economiche, si affrontano problemi sociali, si
allocano ricorsi, si determina il destino delle persone, si tutela la libertà degli individui, si manifesta l'autorità
dello Stato... e si risolvono controversie per mezzo di decisioni auspicabilmente giuste." (TARUFFO, 2009, p.
136).
692
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 113.
693
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 49.
183

julgador a quem se dirige a informação do jogo", como também antecipar as motivações


objetivas, subjetivas e inconscientes dos demais envolvidos, na tentativa de desvendar os
trunfos ainda ocultos, sendo que "o resultado depende da sucessão de subjogos e da
informação-prova validamente trazida ao contexto do jogo"694.
A defesa técnica, ao suprir deficiências cognitivas, argumentativas e hierárquicas do
acusado, não só atende a preceitos legais indisponíveis695, como permite que o controle da
atividade jurisdicional seja também feito pela parte e seu defensor696, transformando também
o julgador em "jogador". A Ampla Defesa, como Liberdade, permite a oposição simétrica de
informações, estratégias e táticas, pois:

Ao mesmo tempo que cada jogo processual é singular (único), está inserido na
dinâmica de processos repetitivos. Daí a formação de padrões táticos que podem não
funcionar pela ausência de cuidado com as informações preliminares e as
possibilidades probatórias. É o meio pelo qual o Estado sustenta o monopólio da
força e justifica a aplicação da pena. Significa a estratégia para se evitar os combates
reais, substituídos pela metáfora de guerra: jogo processual, no qual as táticas de
cada batalha (subjogos) se apresentam. 697

No Direito Processual Penal, adotando-se a isomenia processual, é possível romper


com a clivagem habermaseana "agir comunicativo versus agir estratégico"698. É que para
Habermas, a linguagem natural ou se apresenta como meio transmissor de informações,
produzindo a interação entre ego e alter (indivíduo e sociedade) mediante a indução de
determinado comportamento no destinatário (agir estratégico), ou se presta a produzir entre
esses atores o entendimento (agir comunicativo). Seriam mecanismos mutuamente
excludentes699.
Esta mútua exclusão não ocorre no Direito Processual Penal constitucionalizado, pois
a linguagem aqui empregada não é a linguagem natural, mas a linguagem argumentativa em
que os sujeitos comunicativos se relacionam por meio de signos que permitem a
decodificação do código linguístico compartilhado por ambas as partes (destinador e
destinatário do discurso), numa relação em que a captação da "mensagem referencial" pelo
694
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2013. p. 18.
695
Art. 8.2 da Convenção Americana dos Direitos Humanos; Art. 5º, inciso LXXIV e 134 da Constituição
brasileira de 1988 e art. 261 do Código de Processo Penal brasileiro.
696
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 194.
697
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 27.
698
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São
Paulo: Loyola, 2004b. p. 117-118.
699
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 71
184

destinatário abre a possibilidade de contra-argumentação700, o que se torna possível na medida


em que os códigos linguísticos são bens coletivos701, enquanto a linguagem natural é, no mais
das vezes, solipsista. Através do medium linguistico do Devido Processo Legal, a linguagem
defensiva, mesmo empregada visando atingir determinada consequência (resultado), permite o
"entendimento mútuo", pois seus conteúdos são explicitados "comunicativamente", segundo
as regras do jogo processual democraticamente limpo (fair play)702, pois expõe o emissor da
mensagem a uma contraditoriedade plena.

6.6 Dignidade como isonomia: uma perspectiva não-retórica do princípio da igualdade

O tormentoso tema da igualdade entre os homens vem desafiando filósofos e juristas


há séculos. Rousseau estudou o tema e dividia a desigualdade em duas espécies: a física,
decorrente das condições, talentos, forças e fraquezas individuais, e a moral ou política,
decorrente dos privilégios de uns homens sobre outros. Esta última teria sido instaurada pelo
Direito no momento em que sucedeu ao estado de natureza e leva o forte a servir ao fraco e o
povo a se submeter à dominação em busca de uma "tranquilidade imaginária pelo preço de
uma felicidade real"703. O mundo e a organização social são estruturados sobre desigualdades
congênitas.
Com a Ilustração, a civilização ocidental vai acolher concepções teóricas nas linhas
de Hobbes, Locke, Kant e outros, que vão alçar o homem à condição de "único centro de
gravidade possível do Poder", pois no constitucionalismo moderno, com seu ímpeto
iconoclasta, racionalista e individualista, somente ao homem caberia a iniciativa das leis,
havendo mesmo uma pulsão iluminista pela autonomia humana frente à religião e ao
absolutismo monárquico704. Mas ainda assim, essa busca civilizatória se mostrou legitimadora
de desigualdades.
Na Grécia antiga, a própria concepção de polis era excludente, pois escravos e
bárbaros não participavam das deliberações. Eram, assim, destituídos de todo um modo de
vida que buscava a resolução de conflitos não pela violência, mas pelo discurso persuasivo705.

700
BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 17.
701
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274.
702
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013.p. 15
703
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 160.
704
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 98.
705
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense
185

Como já demonstrado, a cláusula Devido Processo Legal, quando surgiu em 1215, se


destinava aos homens livres (landers). Estes, e somente estes, teriam a vida, a liberdade e a
propriedade a salvo de intervenções arbitrárias, mediante a prerrogativa de julgamento pelos
seus pares (his equals)706. E mesmo na modernidade, com todas as suas Cartas e Declarações
de Direitos, que proclamavam a igualdade entre os homens, a exclusão sempre se fez
presente, demonstrando o caráter, muitas vezes retórico do constitucionalismo.
O desenvolvimento teórico da concepção de igualdade humana está intrinsecamente
ligado aos acontecimentos histórico-políticos que constituem os marcos estruturais do Direito
Político na modernidade.Ao lado da liberdade e da fraternidade, a igualdade compôs o
frontispício da plataforma revolucionária francesa, quando só se pensava em rechaçar o poder
régio e clerical a todo custo. O quadro descrito por Proudhon é esclarecedor:

No ano de 1789 depois de Cristo, a nação francesa, dividida por castas, pobre e
oprimida, debatia-se sobre o absolutismo real, a tirania dos senhores e dos
parlamentos e a intolerância sacerdotal. Havia o direito do rei e o direito do padre, o
direito do nobre e o direito do plebeu, havia privilégios de nascença, de província,
de comunas, de corporações e de ofícios: no fundo de tudo isto a violência, a
imoralidade e a miséria. Já há algum tempo que se falava em reforma; os que mais a
desejavam para se aproveitar dela e o povo, que tinha tudo a ganhar, não esperavam
grande coisa nem se manifestavam. Durante muito tempo este pobre povo hesitou
sobre os seus direitos quer por incredulidade, desconfiança ou desespero: dir-se-ia
que o hábito de servir tinha roubado a coragem às velhas comunas, tão orgulhosas
na Idade Média.707

Feita a revolução, decapitou-se o Rei, mas não a monarquia, como se lê em


Foucault708. O poder soberano nas mãos do povo desaguou no Terror em Napoleão e na
Restauração, comprovando que a declaração de igualdade civil ou política não passava de
retórica, pois o que prevalecia era sempre, por uma ou outra roupagem, o absolutismo de
Estado, estabelecendo a dominação sobre os indivíduos, mantidos estes nas mesmas
condições desiguais de antes da Revolução709.
A Revolução Proletária levou ao paroxismo a ideia de igualdade, porém com
consequências extremamente nefastas, pois sua implementação se deu mediante a
expropriação totalitária da propriedade, produzindo, no mais das vezes, violência, escassez e

Universitária, 2001. p. 36.


706
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 19
707
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa: Editorial
Estampa, 1975.p. 25-26.
708
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 278.
709
SCHMITT, Carl. La dictadura. Tradução de José Díaz García. Madrid: Revista de Occidente,1968.p. 169.
186

miséria710. Comunismo e Socialismo resultaram num movimento internacional que grassou


por todo o século XX e que, segundo Bobbio, tornou-se "a grande ofensiva de todos os
facismos e de todos os regimes militares e policialescos do mundo"711, expressando uma
forma de "tutelar a intra-subejtividade de diferentes identidades culturais, com suporte na
concepção de "patriotismo republicano""712, que hoje se expressa de modo mais brando pelo
comunitarismo norte-americano e pela jurisprudência de valores na Europa.
Em ambos os casos, há uma tendência em identificar na sociedade uma comunidade
de valores igualitários construídos historicamente, em que "os direitos de cidadania, direitos
de participação e comunicação política são, em primeira linha, direitos positivos. Eles não
garantem liberdade em relação à coação externa, mas sim a participação em uma praxis
comum"713. No Estado Democrático de Direito, a igualdade se apresenta como princípio
legitimador do discurso jurídico, como demonstra Marcelo Campos Galuppo:

[...] só garantindo a igualdade é que uma sociedade pluralista pode se compreender


também como uma sociedade democrática. Conseqüentemente, só permitindo a
inclusão de projetos de vida diversos em uma sociedade pluralista é que ela pode se
autocompreender como uma sociedade democrática (Habermas, 1997b: 1974),
mesmo que tais projetos alternativos requeiram, em algumas situações, uma
aplicação aritmeticamente desigual do direito (ou seja, justificados pela produção de
mecanismos de inclusão, como no caso das políticas de ação afirmativa)."714

A plena inclusão política de todos os indivíduos no demos, ou seja, seu


reconhecimento como cidadão habilitado a influir no processo político em condição de
absoluta igualdade, é que vai caracterizar o sistema democrático715. Essa absoluta igualdade
decorre do princípio fundante da Dignidade Humana, uma associação que se encontra
expressa no art. 13/1 da Constituição da República Portuguesa, de 1976 716. Rosemiro Pereira
Leal nos apresenta aporte semelhante em sua concepção de hermenêutica isomênica717.
A Isonomia Processual, por seu turno, não nos parece definir-se por “tratar

710
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974c. v.1. p. 90.
711
BOBBIO, Norberto. Ideologias e poder em crise. Tradução de João Ferreira. 4. ed. Brasília: Editora UNB,
1995. p. 37.
712
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
156.
713
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton
Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a.p. 280.
714
GALLUPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensamento de
Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 210.
715
DAHL, Robert. La democracia y sus críticos. Tradução de Leandro Wolfson. Barcelona: Paidós, 1992.p. 159.
716
"1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei."
717
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 247.
187

igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”,


como ensina Nelson Nery Júnior718, em afirmação de nítida inspiração aristotélica encontrada
em importantes textos de tendência liberal como, por exemplo, na "Oração aos Moços" de Rui
Barbosa719. Canotilho demonstra que essa fórmula relacional da igualdade implica sempre a
necessidade de um critério valorativo para que possamos concluir quando uma discriminação
entre indivíduos é justa. A resposta do Tribunal Constitucional Português de que a
desigualdade é admissível no sistema constitucional, desde que não seja arbitrária, é
reconhecidamente insuficiente:

A necessidade de valoração ou de critérios de qualificação bem como a necessidade


de encontrar «elementos de comparação» subjacentes ao carácter relacional do
princípio da igualdade implicam: (1) a insuficiência do «arbítrio» como fundamento
adequado de «valoração» e de «comparação»; (2) a imprescindibilidade da análise
da «natureza», do «peso», dos «fundamentos» ou «motivos» justificadores de
soluções diferenciadas; (3) insuficiência da consideração do princípio da igualdade
como um direito de natureza apenas «defensiva» ou «negativa».720

O fato é que sempre que critérios valorativos precisam ser invocados e que tal tarefa
é atribuída ao Tribunal Constitucional abrem-se as portas ao protagonismo e ao ativismo
judicial, na medida em que se atribui ao judiciário a tarefa de reparar desigualdades. Ao
judiciário caberia a prerrogativa de reconhecer a cada grupo em disputa a sua "relevância
jurídico-constitucional", identificando-se a partir daí, os pressupostos de fato que determinem
a sua essencial igualdade ou desigualdade721.
No Direito Processual e, muito especialmente, no Direito Processual Penal não é
possível reconhecer desigualdades congênitas,conforme se extrai da assertiva de José Augusto
Delgado:

O princípio da igualdade tem por finalidade garantir a identidade de situação jurídica


para o cidadão. Não se refere, conforme se depreende do texto constitucional, a um
aspecto ou a uma forma de organização social; existe como um postulado de caráter
geral, com a missão de ser aplicado em todas as relações que envolverem o homem. É
um direito fundamental que exige um comportamento voltado para que a lei seja
aplicada de modo igual para todos os cidadãos.722

718
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. rev., atual. amp. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 72.
719
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 5. ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999. p. 26.
720
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 566.
721
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 570.
722
DELGADO, José Augusto. A supremacia dos princípios nas garantias processuais do cidadão. In:TEIXEIRA,
Salvio de Figueiredo. Garantias do cidadão na justica(as). São Paulo: Saraiva, 1993. p.73.
188

Não havendo desigualdades congênitas, não há que se falar na distribuição de


direitos processuais em critérios de proporcionalidade e razoabilidade segundo a razão
solipsista do julgador. Para Rosemiro Pereira Leal, a compreensão do princípio da Isonomia
passa, em direito democrático, pela necessária distinção entre o direito à diferença e
desigualdade, esclarecendo o seguinte:

O direito à diferença não equivale a ser desigual no Estado de Direito Democrático


que sempre assegura pelo devido processo constitucional a isonomia argumentativo-
procedimental na defesa e reconhecimento de direitos, mas corresponde a um dado
singular da personalidade ou patrimonialidade de cada qual dos indivíduos, cuja
defesa e afirmação, quando negado, também se fazem isonomicamente no espaço-
tempo da estrutura procedimental processualizada e não pela segurança
discriminadora de uma jurisdição sábia, filantrópica e providencial. O negro, o índio,
o homossexual, a lésbica, o deficiente, não são desiguais a ninguém quanto a direitos
fundamentais na teoria da constitucionalidade democrática. Tanto eles quanto os
brancos, os não-índios, o heterossexual: homem ou mulher, são iguais em direitos
fundamentais e titulares de igualdade processual (simétrica paridade-isonomia) no
direito democrático.723

Pouco estudado, o princípio da Isonomia também é apontado por Rosemiro Pereira


Leal como institutivo do processo democrático (art. 5º, caput, CB/88). Isonomia também se
distingue da simétrica-paridade, na medida em que é pressuposto desta última, ao exercício de
direitos fundamentais líquidos e certos para uma vida digna:

A asserção de que há de se dar tratamento igual a iguais e desigual a desiguais é


tautológica, porque, na estruturação do procedimento, o dizer e contradizer, em
regime de liberdade assegurada em lei, não se operam pela distinção jurisdicional do
economicamente igual ou desigual. O direito ao Processo não tem conteúdos de
criação de direitos diferenciados pela disparidade econômica das partes, mas é
direito assegurador de igualdade de realização construtiva do procedimento. 724

Assim sendo, é possível concluir que Isonomia Processual só é possível de se realizar


em um sistema inclusivo em que não haja pessoas excluídas sem acesso à vida, à liberdade e à
dignidade, estabelecendo-se um “piso de igualdade” a partir do qual será possível a
implantação da Isonomia, enquanto possibilidade igualitária de argumentação no espaço
juridicamente demarcado e que se define por Processo:

Ora, se os direitos fundamentais não forem executados judicialmente, nunca se


poderá falar em um piso de igualdade para incluídos e excluídos como ponto de
partida ao reconhecimento cognitivo, por igual tempo de argumentação processual
723
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 79, 80.
724
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 99.
189

(ISONOMIA), de direitos a serem alegados ou pretendidos pelas minorias e


diferentes. Só se saberá se alguém pertence ao bloco das minorias ou dos diferentes
após atendimento dos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à dignidade mínima
para que se habilitem a disputar processual e igualmente direitos em face de outrem.
Antes de atendimento desses direitos fundamentais, as pessoas estarão sempre em
níveis de uma desigualdade ilegal que os impedem de debater e pretender, no
espaço-tempo procedimental, direitos em condições argumentativas isonômicas. 725

Ao criticar as chamadas “ações afirmativas” que atuam no sentido de evidenciar o


“direito à diferença”, Rosemiro Pereira Leal o faz afirmando que os partidários de tais ações
não se preocupam com a inclusão e o acesso aos direitos fundamentais mínimos daqueles que
são verdadeiramente despossuídos e famintos. Para se afirmar um “direito à diferença” deve
ser antes implantada a plena igualdade em direitos fundamentais já acertados no plano
constituinte e, desse modo, criar-se a condição para uma argumentação isonomicamente
assegurada:

A ISONOMIA como princípio jurídico-processual de primeira geração não pode ser


descuidada na construção e exercício da constitucionalidade democrática, porque é
ela que torna possível a igualdade (simétrica paridade) entre os economicamente
desiguais, entre os física e psiquicamente diferentes e entre maioria e minoria
política, ideológica ou social. Processualmente, na democracia, é inconcebível uma
desigualdade jurídica fundamental, porque, se tal ocorresse, romper-se-ia com as
garantias constitucionais do processo em seus princípios enunciativos do
contraditório, isonomia e ampla defesa na produção, correição e aplicação do direito,
inclusive do próprio direito processual. Daí, também, a inconstitucionalidade de
diversos trechos do ordenamento jurídico brasileiro que estabelecem prazos
diferentes, foros diferentes, tratamentos pessoais e funcionais diferentes, para os
sujeitos do processo.726

Assim, a Isonomia se estabelece como parte integrante dos “conteúdos isegóricos e


dialógicos” do Estado Democrático de Direito, como afirma Rosemiro Pereira Leal, em
esclarecedor aporte das lições de Francis Wolff:

O espaço-político (isegoria) de criação do direito só será continente democrático se


já assegurados os conteúdos processuais dialógicos da isonomia - que são a isotopia,
isomenia e isocrítica -, em que haja, portanto, em sua base decisória, igualdade de
todos perante a lei (isotopia), igualdade de todos de interpretar a lei (isomenia) e
igualdade de todos de fazer, alterar ou substituir a lei (isocrítica). Essa situação
jurídico-processual devida é que permitirá a enunciação das democracias como
governo da totalidade social concreta, isto é: povo concretizador e criador da sua
própria igualdade jurídica pelo devido processo constitucional. 727

725
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 79.
726
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 80-81.
727
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 49.
190

Rodrigo Rigamonte Fonseca, também amparado nas lições de Francis Wolff, chega a
conclusão parecida:

A igualdade processual prende-se, tão somente, à participação temporal idêntica que


deve ser conferida aos interessados na construção do provimento estatal, ou melhor,
igualdade temporal de oportunidades para dizer e contradizer no processo, a fim de
fazer valer suas razões. Como bem explica Francis Wolff, “essa mesma igualdade
tem por função garantir boa parte das regras formais da instituição judiciária no
direito clássico, a verdade devendo manifestar-se primeiro pela simples aplicação
da regra isegórica: igualdade estrita dos tempos de fala, equiparação de todos os
meios de defesa das teses opostas.728

Tendo em vista essa compreensão sobre a Isonomia Processual e sua condição de


princípio instituidor do Processo nas democracias, torna-se inadmissível a existência de
dispositivos que subtraiam a possibilidade de argumentação em torno de um direito
fundamental como a liberdade, sobretudo mediante a exclusão pressuposta de indivíduos
colhidos por etiquetamentos que possam conferir à sua pessoa condições como a do
"terrorista"729, a do "inimigo"730 ou do "criminoso de alta periculosidade"731.

6.7 O Devido Processo Penal como médium linguístico

Neste ponto há que se ressaltar que o Processo, como neo-instituição nos moldes
isomênicos abordados no curso da pesquisa, se apresenta como interpretante da linguagem
jurídica, sendo esse o aspecto que vai permitir uma abordagem teórica em que o Processo
Penal possa se desvencilhar dos grilhões dogmáticos que lhe são impostos pelo debate
paralisante entre acusatoriedade e inquisitoriedade. Aqui, se mostra relevante certa
compreensão sobre o giro linguístico-pragmático ocorrido na filosofia do século XX e que
tanto influenciou as ciências sociais, dentre as quais o Direito.
Uma primeira questão que se coloca é a de que existe uma interligação inegável entre
linguagem, mente e mundo, na medida em que é pela linguagem que descrevemos o mundo
ou expressamos nossos pensamentos sobre ele. Isso faz com que se instaure um debate sobre a

728
FONSECA, Rodrigo Rigamonte. Isonomia e contraditório na teoria do processo. In: LEAL, Rosemiro Pereira
(Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso de doutorado em direito
processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 18.
729
MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais e o terrorismo: os fins nunca justificam os meios, nem para um
lado, nem para o outro. Revista do Tribunal Regional Federal da 3. Região, São Paulo, n. 5, p. 89-104,
jan./fev. p. 89-104, 2006.; ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real. Tradução de Paulo César
Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.
730
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução de
André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 45.
731
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
191

existência de prioridade entre linguagem, mente e mundo. Após analisar que uma prioridade
pode ser analítica (y só pode ser analisado em termos de x, que lhe é anterior), ontológica (x é
pressuposto da existência de y) ou epistemológica (o conhecimento de y passa pelo
conhecimento de x), Martin Davies, conclui que a relação de prioridade entre linguagem e
mente, deve ser estudada em termos de independência lógica, apontando assim as três
concepções possíveis:

(1) Mente primeiro: A concepção segundo a qual é possível descrever


filosoficamente a intencionalidade dos pensamentos sem se reportar, de modo
essencial, à linguagem, e segundo a qual a noção de significado lingüístico pode
então ser analisada nos termos dos pensamentos que a linguagem costuma expressar.
(2) Linguagem primeiro: A concepção segundo a qual uma descrição do significado
lingüístico pode ser fornecida sem revelar a intencionalidade dos pensamentos, e de
acordo com a qual aquilo sobre o que versam os pensamentos de uma pessoa pode
ser analisado em termos do uso da linguagem.
(3) Prioridade nula (para ambos): A concepção segundo a qual não há como
elucidar a noção daquilo sobre o qual versam os pensamentos de uma pessoa sem
trazer à luz a noção de significado lingüístico, nem a de intencionalidade. Ambas as
noções têm de ser explicadas juntas.732

Esse autor, oriundo da escola analítica norte-americana, tende a acolher a terceira


perspectiva no sentido de que linguagem e mente são indissociáveis. O mesmo ocorre quando
aborda a possível prioridade entre linguagem e mundo, fundamentada no dualismo metafísico
entre sujeito-predicado, em que os objetos ou particulares corresponderiam aos termos do
sujeito, e as propriedades ou universais corresponderiam aos termos do predicado. A distinção
entre tais termos seria possível somente no aspecto linguístco, não no aspecto ontológico, o
que se traduz pela fórmula S é P733.
Mas as conjecturas filosóficas em torno da linguagem quase sempre remetem a uma
prioridade desta, sobretudo para as elucidações que ocorrem em termos científicos (não-
metafísicos). A partir do chamado linguitic turn734, a linguagem adquire uma nova dimensão,
pois não se restringe mais a funções de descrição ou enunciação (elocuções constativas),
passando a filosofia a identificar na linguagem funções de atuação (elocuções performativas),
principalmente a partir da teoria dos atos de fala de J. L. Austin, que abandonou a distinção
entre atos constativos e performativos, definindo as elocuções comunicativas em geral como

732
DAVIES, Martin. Filosofia da linguagem. In: BUNNIN, Nicholas et al. (Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 91;133.
733
DAVIES, Martin. Filosofia da linguagem. In: BUNNIN, Nicholas et al. (Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 91;133.
734
Esta expressão intitula uma notável antologia editada por Richard Rorty originalmente em 1967, que reúne
nomes como Rudolph Carnap, John Wisdom, Gustav Bergmann, Stuart Hampshire e outros. Este trabalho
demonstra a afinidade existente entre filosofia da linguagem, filosofia analítica e teorias semânticas. (RORTY,
1992).
192

"atos ilocucionários"735.
Os atos ilocucionários em Habermas são aqueles que vão permitir o entendimento
mútuo caracterizando o chamado "agir comunicativo", que se baseia no reconhecimento
intersubjetivo, na medida em que "os atores participantes tentam definir cooperativamente os
seus planos de ação, levando em conta uns aos outros, no horizonte de um mundo da vida
compartilhado e na base de interpretações comuns da situação"736. Os atos de fala podem
ainda ser perlocucionários. Estes necessitam de um sucesso ilocucionário para atingirem sua
meta. São atos que, segundo Habermas, atendem ao agir estratégico, na medida em que
buscam, quando proferidos, provocar um efeito que se caracteriza como um entendimento
mútuo indireto, como uma promessa, um juramento, uma difamação, uma intimidação ou
mesmo uma ameaça: "Aqui, a comunicação lingüística é subordinada aos imperativos do agir
racional orientado a fins"737.
A teoria dos atos de fala tem como antecedente epistemológico a construção de
Ludwig Wittgenstein, que se sustenta sobre o conceito de "jogos de linguagem" e expressa o
linguistic turn738, guinada pragmática739 ou virada linguística740, conforme os seguintes
pressupostos:

Mediante uma análise esmerada do uso da linguagem, em particular pela análise de


conceitos psicológicos, Wittgenstein tentou minar a idéia de que a filosofia é um
empreendimento fundacionista. Estabeleceu, pelo contrário, que a filosofia é um
empreendimento puramente descritivo, cuja tarefa não é nem reformar a linguagem
nem tentar dar aos vários usos da linguagem fundamentos seguros. Em vez disso,
eliminam-se os problemas filosóficos mediante uma compreensão correta de como a
linguagem funciona de fato.741

O empreendimento filosófico de Wittgenstein se estrutura em duas obras básicas.


Ainda em vida, seu único trabalho publicado foi o Tractatus Logico-Philosophicus742, em

735
SEARLE. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de
filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 8.
736
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 72.
737
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São
Paulo: Loyola, 2004b. p. 123.
738
RORTY, Richard M. (Ed.). Linguistic turn: essays in philosophical method. Chicago/London: The
University of Chicago Press, 1992. p. 9.
739
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 65.
740
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São
Paulo: Loyola, 2004b. p. 240.
741
SEARLE. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de
filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 9.
742
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:
Editora USP, 1968.
193

1921, reconhecido pelos filósofos como o "primeiro Wittgenstein". Já o "segundo


Wittgenstein" aparece expressado nas "Investigações Filosóficas"743, obra póstuma publicada
em 1953.
A proposta de Wittgenstein visa superar o solipsismo metafísico, pois a constituição
do significado das palavras é pressuposta no sistema linguístico como "substância" objetiva
do mundo, ou seja, imutável. Desse modo, não guarda nenhuma relação com a comunicação
individual ou experiencial, pois se constituiria de forma idêntica para todos os usuários da
linguagem, independentemente de intercâmbio de experiências ou acordo de sentido744.
Assim, a verdade ou falsidade de uma proposição só pode ser aferida se esta corresponder a
uma dada realidade. Cada proposição traz em si um sentido, o mesmo ocorrendo com sua
negação. Descrever o sentido das proposições é a tarefa da filosofia, que ao definir claramente
o dizível e o pensável, consequentemente, acaba por demarcar o indizível e o impensável745.
No "primeiro Wittgenstein", a verdade e o sentido de uma proposição resulta sempre
de sua relação com outras proposições (chamadas elementares). Disso decorre que tais grupos
de condições de verdade ordenam-se em série, e toda proposição que seja verdadeira ou falsa
em toda e qualquer condição, constitui-se como tautologia no primeiro caso e contradição no
segundo. Ambas são vazias de sentido746. No entanto, o signo (elemento constitutivo da
proposição) contém em si mesmo um sentido que lhe permite ser denotado, resultando no
sentido de todas as suas combinações, afastando assim qualquer possibilidade de erro lógico
quando a introdução do signo se dá de forma correta747. E, mesmo que os signos introduzidos
apontem para um enunciado falso, a estrutura lógico-formal permanece válida748.
Já o Wittgenstein tardio parece reconhecer que o logicismo por si só pode levar a
erros substanciais, na medida em que um enunciado logicamente válido pode conter uma
falsidade decorrente da incorreção das premissas ou da conclusão. Nas "Investigações

743
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova
Cultural, 1999.
744
COSTA, Regenaldo da. Ética do discurso e verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 80.
745
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:
Editora USP, 1968. p.76- 77.
746
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:
Editora USP, 1968. p. 87.
747
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:
Editora USP, 1968. p. 100-101.
748
"Num experimento gramatical - que cuida da correção da linguagem e não dos valores-de-verdade das orações -
, posso substituir vocábulos nos lugares adequados e ainda que dê orações corretas, enunciados falsos,
formalmente a estrutura se mantém intacta. Assim, é formalmente válido enunciar. "toda árvore é um metal / esta
coisa é uma árvore / então esta coisa é um metal", ainda que uma premissa e a conclusão sejam falsas. A
validade é propriedade da forma lógica de relacionar independente do conteúdo gramatical e conceptual das
proposições constituintes. A validade independe da correção gramatical e da verdade empírica. Há algo próprio
na forma lógica" (VILANOVA, 1997, p. 45).
194

Filosóficas" vai descortinar o conceito de "jogos de linguagem" com o qual denomina os


processos de aprendizado linguístico, assim como aqueles em que se estabelece uma relação
entre um nome (um código) e um objeto correspondente749. Nesse trabalho há certo resgate do
papel da filosofia em sua relação com a linguagem. Não mais apenas de ordem descritiva, mas
como "uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios de nossa
linguagem"750, ou seja, os enganos decorrentes das "superstições" linguísticas podem ser
apontados pela filosofia, que mesmo sem possuir uma força transformadora da linguagem ou
do uso efetivo da linguagem, ao descrevê-lo, pode tornar visíveis as suas contradições: ‘Os
resultados da filosofia consistem na descoberta de um simples absurdo qualquer e nas
contusões que o entendimento recebeu ao correr de encontro às fronteiras da linguagem. Elas,
as contusões, nos permitem reconhecer o valor desta descoberta”.751
O que Wittgenstein propõe nas "Investigações Filosóficas" é a recondução da
utilização das palavras ao seu sentido cotidiano, pois o entendimento recíproco entre
interlocutores fica bastante prejudicado quando se empregam palavras em sentido metafísico,
ou seja: as palavras, antes de servirem à elucidação da essência ou da substância de objetos,
servem para estabelecer um nexo de compreensão para que as pessoas possam se relacionar
cotidianamente a partir do compartilhamento intersubjetivo do sentido que expressam. Essa
constatação levou Andréa Alves de Almeida a afirmar que Wittgenstein "não fez o giro
linguístico, pois a linguagem em sua teoria é meio de sobrevivência, se volta para a mera
utilidade, decorre de seu próprio uso e está, portanto, no tempo histórico do aqui e agora"752.
Com isso, a filosofia da linguagem apenas radicaliza a pragmática como sendo a
“mãe eterna da semântica”, e seus “jogos de linguagem” são apenas expressão da “rede
historicista”, decorrente de um culturalismo reprodutor de dominação social753. Com amparo
em Greimas, pode-se afirmar que um método científico que se concentre na discursividade do
Direito deve, sim, compreender a linguagem como universo semântico e não descartar que
este se compõe do universo da imanência e da manifestação e que ambos se articulam de
modo a permitir que a análise já ocorra desde a verificação do sema, isolado ou em conjunção

749
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. p. 30.
750
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. p. 65.
751
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. p. 66.
752
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012. p. 132.
753
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 276.
195

com outros754, numa reciprocidade enunciativa755. Sem dúvida, trata-se de uma abertura à
complexidade e à contingência como possibilidades que constituem o mundo além ou diverso
das expectativas estabelecidas pela via sensorial na experiência756. O Direito, nessa
perspectiva, deve reconhecer sua "estrutura mutante" inserida em uma realidade que se
apresenta "pluri-discursiva e polissêmica"757.
O que parece evidente é que o Direito, enquanto linguagem, para se submeter à
crítica científica ou mesmo à uma testificação reconstrutiva, recriativa ou reformulativa, deve
ser encarado como linguagem objeto e analisado sob a perspectiva de uma metalinguagem 758.
Contudo, há uma diversidade de propostas sobre qual seria o método metalinguístico mais
apropriado ao direito. Para Eduardo Bittar, esse papel cabe à Semiótica759. Enquanto que para
Lourival Vilanova, a lógica formal exerceria essa função760, observa-se pelas conclusões da
ciência processual pós-moderna que o Processo institucionalizado constitucionalmente é que
reúne os contornos teórico-metodológicos para atuar como metalinguagem, pois fornece as
bases epistemológicas de aferição dos conteúdos linguísticos761.
Com isso, o que se busca, é a redução da carga de subjetividade das decisões,
problema que levaria à insegurança jurídica e à imprevisibilidade. Assim, se estabelece uma
crítica ao positivismo jurídico, que seria campo fértil para a discricionariedade, sobretudo
jurisdicional, na medida em que ao juiz não seria dado abster-se de decidir alegando lacunas
no ordenamento, que seria, por sua vez, dotado de completude lógico-jurídica, imune a
contradições, tendo sempre uma proposição normativa capaz de abarcar qualquer conduta
humana762. No positivismo, a busca pela segurança jurídica se torna apenas uma justificativa
retórica que, paradoxalmente, abre as portas ao mais evidente decisionismo, legitimando
assim o protagonismo judicial que, por vezes, resulta em criticável ativismo, quando
desconsidera a processualidade na busca da estabilização do sentido normativo.

754
GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural: pesquisa de método. Tradução de Haquira Osakabe e
Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1976 . p. 138.
755
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008a. p. 94.
756
LUHMANN, Nicklas. Sociologia do direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1983. p. 45.
757
BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 44.
758
Pelo teorema de Gödel não é possível provar a não contradição de um sistema simbólico dentro deste mesmo
sistema, criando assim, a metamatemática. No mesmo sentido fala-se em metalinguagem quando o objeto sobre
o qual se debruça é um símbolo ou fato linguístico. (ABBAGNANO, 2007, p. 667)
759
BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 49.
760
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997.
p. 197.
761
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 178
762
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,
1997.p. 242.
196

A pesquisa buscou até aqui estabelecer os contornos do Devido Processo Legal,


tendo como base epistemológica a proposta pós-moderna da Teoria Neoinstitucionalista. A
abordagem desenvolvida ressaltou a insuficiência teórica da acusatoriedade e da
inquisitoriedade frente à configuração do Processo Penal no paradigma democrático. Nos
capítulos finais serão abordadas algumas propostas que se apresentam como alternativas ao
embate dogmático que tanto vem travando a evolucionariedade desse segmento normativo.
Da crítica às propostas, que levam à desprocessualização, ao apontamento da
interenunciatividade pela fixação dos conteúdos pós-modernos da teoria da prova, a pretensão
é concluir a tese, demonstrando pela teoria democrática do sistema que acusatoriedade e
inquisitoriedade devem ser estudados como princípios e não como sistemas processuais,
posição em que se configuram como obstáculos epistemológicos ao Processo Penal
democrático.
197

7 AS DOUTRINAS DE UM DIREITO JUSTO E A DESPROCESSUALIZAÇÃO DA


PROCEDIMENTALIDADE PENAL

O percurso investigativo até aqui desenvolvido permitiu observar a existência de uma


inegável crise de contornos dogmáticos no Processo Penal em razão das oscilações entre
acusatoriedade e inquisitoriedade no curso histórico. A pesquisa buscou demonstrar as
insuficiências teóricas do idealismo e da filosofia da consciência na busca pela estabilização
do sentido normativo no paradigma democrático. As vertentes apresentadas pela filosofia da
linguagem podem significar um ganho neste sentido, desde que se adote uma concepção
hermenêutica voltada para a articulação teórica entre os direitos fundamentais de vida,
liberdade e dignidade com os princípios constitucionais que instituem o Processo, ou seja,
contraditório, ampla defesa e isonomia. Neste tópico, a abordagem da pesquisa se concentra
no escrutínio de algumas propostas que se apresentam como portadoras de democraticidade,
na tentativa de superar a crise dogmática do Processo Penal, tanto no plano teórico quanto
prático.
Algumas concepções teóricas, de notável heterodoxia, se restringem ao campo das
ideias como, por exemplo, a transposição da hermenêutica filosófica para o Direito,
empreendida por Lênio Luiz Streck e o esforço de Antônio Alberto Machado para estabelecer
uma ligação entre o marxista radical Antônio Gramsci e o Processo Penal. Outra postura
digna de nota no plano teórico é a proposta jurídico-sociológica de Eligio Resta, que investe
na concepção de "Direito Fraterno" como alternativa epistemológica.
No plano da praxis, podemos apontar as alternativas que apostam em conceitos como
"Justiça Restaurativa", "Justiça Terapêutica" e "Justiça Instantânea", apresentadas como
verdadeiras revoluções paradigmáticas para o Processo Penal. Mas o que se observa é que tais
propostas constituem excentricidades, pois sequer podem ser identificadas como isotopias de
um mesmo discurso763, uma vez que se encontram no exterior do discurso processual, pois
não primam pela observância de sua principiologia institutiva.

7.1 A proposta da Hermenêutica Filosófica e suas insuficiências no plano democrático

Lenio Luiz Streck entende que a superação do esquema sujeito-objeto se dá através


do chamado giro hermenêutico e da diferença ontológica, com fundamento em Heidegger e

763
GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural: pesquisa de método. Tradução de Haquira Osakabe e
Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1976 . p. 94.
198

Gadamer, preconizando o que denomina hermenêutica filosófica, em contraposição às


insuficiências da hermenêutica jurídica, que mesmo diante das diversas teorias da
argumentação, não atenderia às demandas democráticas.
No pensamento de Lenio Streck percebe-se a desconsideração do papel
metalinguístico exercido pelo Direito Processual na estabilização do sentido normativo,
proporcionando um direito igual de interpretação (hermenêutica isomênica), que não se rende
ao dogma da completude do sistema764, superando assim, o solipsismo decisório, próprio das
teorias interpretativas que se fundamentam na filosofia da consciência. A hermenêutica
jurídica é apontada por Lenio Streck como portadora de uma tensão entre texto e o sentido por
ele alcançado na aplicação concreta, tensão que também se verificaria na hermenêutica
teológica765. Tal fato se deve à tradição consolidada pela prevalência da filosofia da
consciência, que fatalmente resulta em discricionariedade judicial.
Com amparo em Gadamer, Lenio Streck sustenta que o processo interpretativo
clássico, que se dá por etapas, e pelo qual o sujeito primeiro compreende, depois interpreta e
por último aplica, expressa uma cisão inadmissível do processo interpretativo, na medida em
que um intérprete não extrai um sentido que o texto possui em si mesmo, mas sim atribui
sentido ao texto. Daí, que a grande revolução copernicana no campo da interpretação se daria
a partir de dois teoremas fundamentais: O círculo hermenêutico e a diferença ontológica766.
O chamado linguistic turn, já abordado no capítulo anterior, seria uma tentativa de
superar tal esquema, na medida em que o conhecimento estaria na linguagem e não na
consciência: “O sujeito surge na linguagem e pela linguagem, a partir do que se pode dizer
que o que morre é a subjetividade “assujeitadora”, e não o sujeito da relação de objetos”767.
Sobre o círculo hermenêutico afirma que este “atravessa a relação sujeito objeto, a partir da
antecipação de sentido, impedindo o objetivismo e o subjetivismo, próprios do pensamento
metafísico”768. Quanto à diferença ontológica, sustenta com base em Heidegger que o “ser é
sempre o ser de um ente”, o que faz com que sejam superados os dualismos metafísicos, tais

764
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 58.
765
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 128.
766
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 131.
767
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.p. 14-15.
768
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 131.
199

como: essência e aparência, questão de fato e de direito, texto e norma, casos fáceis e casos
difíceis769.
Desse modo, é por intermédio de Heidegger que a hermenêutica deixa de ser
normativa e passa a ser filosófica, “onde a compreensão é entendida como estrutura
ontológica do Dasein (ser-aí ou pre-sença)”770. Como o único ente que compreende o ser é o
homem, somente este homem-no-mundo é que poderia, mediante a compreensão, alcançar um
horizonte de sentido, pois “compreender é um existencial, que é uma categoria pela qual o
homem se constitui”771. Com isso, o autor sustenta que compreender não é um modo de
conhecer, mas um modo de ser, razão pela qual, em sua perspectiva, a epistemologia deve ser
substituída por uma ontologia da compreensão772.
O paradoxo reside no fato de que a proposta de Lenio Streck, ao difundir sua
hemenêutica filosófica, preconiza um intérprete que, não obstante sofrer a influência da
linguagem em sua compreensão, ainda assim chega a uma decisão pretensamente correta, mas
carregada de subjetividade, numa demonstração de que o dualismo metafísico ainda
permanece, mesmo afirmando que “o processo unitário de compreensão, pelo qual interpretar
é aplicar (applicatio), desmitifica a tese de que primeiro conheço, depois interpreto e só
depois aplico”773.
Em certo ponto de sua produção científica Lenio Streck procura sair do paradoxo em
que se envolveu, com recomendações do tipo:

A compreensão só alcança suas verdadeiras possibilidades quando as opiniões


prévias com as que inicia não são arbitrárias. Em razão desta circunstância, é
importante que o intérprete não se dirija aos textos diretamente, desde as opiniões
prévias que lhe subjazem, senão que examine tais opiniões enquanto a sua
legitimação, isto é, enquanto a sua origem e validade. 774

769
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008.p. 132.
770
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.p. 170
771
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008.p. 134.
772
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 139-140.
773
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 143.
774
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.p.
179.
200

Sustenta com base em Gadamer, que frente ao texto não cabe ao intérprete introduzir
acriticamente aquilo que chama hábitos linguísticos, sendo sua tarefa na busca da
compreensão, adotar uma perspectiva que leve em conta os hábitos linguísticos do tempo em
que o texto foi produzido e de seu autor775. No entanto, ainda que o intérprete seguisse tal
recomendação, o resultado de sua atividade se daria em um recinto indevassável, interditando
assim qualquer possibilidade de explicitação dos argumentos que conduzem à compreensão.
Tal postura de abandono do método e crítica radical às teorias da argumentação
jurídica pode resultar em condenável solipsismo decisório, de viés discricionário. Como
demonstra Manuel Atienza, a argumentação e o método possuem a tríplice função de
contribuir para a construção de sistemas jurídicos hábeis, contribuir para um ensino jurídico
de bases racionais e permitir que sejam identificadas as ideologias políticas e morais que
subjazem a determinada argumentação, o que não é possível através da hermenêutica
filosófica776, pois esta não leva em consideração os conteúdos isegóricos e isomênicos que,
conforme a Teoria Neointitucionalista do Proceso, são operacionalizados pelos princípios
institutivos da processualidade democrática777.

7.2 Gramsci e processo: uma evidente incompatibilidade

A abordagem de Antônio Alberto Machado sobre os rumos que o Processo Penal


deve tomar no Estado Democrático de Direito é das mais curiosas. O autor propõe o
acolhimento das concepções de Antonio Gramsci, marxista italiano, expoente tardio do
socialismo utópico. Partindo do conceito gramsciano de hegemonia, o autor defende que um
Processo Penalverdadeiramente democrático deveria ser dirigido pelos chamados “aparelhos
privados de hegemonia”, que seriam os conselhos populares de polícia, de justiça,
penitenciários e até de instrução criminal. Assim, a sociedade civil assumiria a direção
política e ideológica no lugar dos aparelhos repressivos do Estado e da sociedade tradicional,
fazendo emergir uma sociedade regulada por um Estado ético, através do consenso e do
diálogo778.
Ora, uma análise, ainda que superficial, do pensamento gramsciano nos permite
constatar que se trata de um pensador, cuja concepção de democracia reflete o debate de uma

775
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
776
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina
Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 225.
777
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010.
778
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 49-55.
201

época entre-guerras e apresenta tendência autoritária. Era daqueles socialistas que já


propugnavam a superação do proletariado pelo "partido" como força política hegemônica e
totalitária. Ele concebe o "partido" como o "moderno príncipe", que, ao contrário do príncipe
de Maquiavel, não era uma pessoa física, mas um ente que “desenvolvendo-se subverte todo o
sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que cada ato é concebido como útil
ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso; mas só na medida em que tem como referência o
próprio "moderno príncipe" e serve para acentuar o seu poder ou contrastá-lo"779.
O "moderno príncipe" toma o lugar nas consciências da divindade e do imperativo
categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma laicização completa de toda a
vida e de todas as relações de costume780. Como se nota, não há uma preocupação em superar
a dominação do Estado por uma processualidade jurídica, mas apenas em substituí-la por
outra espécie de dominação personificada na estrutura do partido. Semelhante pensamento
não se abriga sob o paradigma democrático. Por consequência, a tentativa de aproveitar tais
concepções, justamente no Processo Penal, não guarda compatibilidade com a
constitucionalidade democrática e, no limite, restauraria as mais primitivas formas de justiça
popular781, que teria como base de sustentação um indesejável panoptismo social, desde a
base até o vértice do sistema de poder782.

7.3 O Direito fraterno e sua ambivalência

Outra vertente que tem adquirido projeção é desenvolvida pelo autor italiano Eligio
Resta. Trata-se do Direito Fraterno. Uma sedutora construção fundada no terceiro elemento
do lema revolucionário francês, a fraternidade:

O código fraterno, código do nascimento, de fato vincula um dever de obediência


em troca da cidadania: Dessa forma, em caso de transgressão ou dissenso, podem ser
no máximo "criminosos", mas não "inimigos". A comunidade política e o Estado-
nação acrescentou a si o pressuposto da amizade política ao interno e exportou a
inimizade ao externo. Ao fazê-lo, tenta superar o paradoxo bíblico de irmãos
inimigos que transborda frequentemente nos mitos de fundação a culpa do assasino,
que acompanha como uma sombra a vida de uma comunidade política. Se tornará
mito moderno pela face do tiranicídio, mas continuará a falar da própria violência

779
GRAMSCI, Atonio. O moderno príncipe In: MAQUIAVEL. A política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978. p. 9.
780
GRAMSCI, Atonio. O moderno príncipe In: MAQUIAVEL. A política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978.
781
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 20. ed. São Paulo: Graal,
2004.p. 39.
782
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 107.
202

mesmo na democracia. Do tyrannum licet dicipere do antigo direito de resistência ao


direito fraterno das modernas Constituições o passo não é intransponível (Miglio,
1992).
É nesse mundo oculto dos símbolos de violência que a fraternidade, agora
transformada em amizade política, retorna à história das instituições modernas.
(tradução nossa)783

Demarcada a condição territorial e ética para o estabelecimento de um código, que


vai acolher a todos os cidadãos sob o manto de uma fraternidade jurídico-política, importa
indagar os fundamentos pelos quais essa fraternidade vai se articular, permitindo que não nos
tornemos dependentes de uma expectativa de comportamento para que se inaugure uma nova
etapa do Direito e que esta possa vir acompanhada de predicados como humanidade,
altruísmo, solidariedade, fraternidade, superando assim as categorias positivistas do direito
objetivo ou subjetivo784. É por essa vertente que se afirma o advento de um
constitucionalismo fraternal capaz de incorporar “às franquias liberais e sociais de cada povo
soberano a dimensão da Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas” 785,
pelo reconhecimento de que existem “segmentos sociais historicamente desfavorecidos”786,
como negros, mulheres, deficientes físicos, que são merecedores de medidas assecuratórias
interventivas que vão além da proibição do preconceito. Direitos coletivos como o equilíbrio
ecológico e a democracia também são reconhecidos e protegidos nessa etapa fraternal de
desenvolvimento da ciência jurídica.
É temerário crer na fraternidade como algo intrinsecamente civilizatório, capaz de
assegurar a convivência pacífica. É na fraternidade (ou no rompimento dela) que reside o
crime fundamental que está na raiz mitológica da existência dos povos (Rômulo matou Remo,
Caim matou Abel)787. O romance de George Orwell, 1984, demonstra como uma fraternidade
ou irmandade pode também adquirir contornos sombrios de dominação autoritária. A
narrativa é ambientada em um sistema político engendrado por uma complexa estrutura

783
"Il codice fraterno, codice della nascita, appunto, vincola a un'obbedienza in cambio di cittadinanza: per
questa via si può essere, in caso di trangressione o di dissenso, al massimo criminali, ma non "nemici". La
comunità politica, e lo Stato-nazione ha aggiunto del suo, presuppone l'amicizia politica all'interno ed esporta
I'inimicizia all'esterno. Così facendo tenta di superare il paradosso biblico dei frateli nemici che trasfonde spesso
nei miti di fondazione la colpa di un assassinio, che accompagna, come un'ombra, La vita della comunità
politica. Diventerà mito moderno acquistando il volto del tirannicidio, ma continuerà a far parlare della propria
violenza persino ogni democrazia. Dal tyrannum licet decipere dell'antico diritto di resistenza al diritto fraterno
delle moderne Costituzioni il paso non è insormontabile (Miglio, 1992). È in questo mondo nascosto di simboli
della violenza che La fraternità, volto trasformato dell'amicizia politica, ritorna nella storia delle istituzioni
moderne." (RESTA, 2008, p. 15).
784
CUNHA, Paulo Ferreira da. Do direito natural ao direito fraterno. Revista de Estudos Constitucionais,
Hermenêutica e Teoria do Direito, Unisinos, v.1, n.1, jan./jun., p.78-86, 2009. p. 85.
785
BRITTO. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 216.
786
BRITTO. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 216.
787
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.p. 68.
203

linguística de dominação que consistia em fazer com que as pessoas se sentissem observadas
o tempo todo, pelo Big Brother, o Grande Irmão. Uma figura que ninguém sabia ao certo se
existia de fato, pois qualquer indagação sobre isso era vista como um ato de rebeldia,
severamente punido. Assim, romper com o pater, incorporando o frater788, consistia apenas
em submeter a todos a um novo tipo de dominação, difusa e por isso, mais perversa.
Cartazes do Big Brother mostravam um homem que observava o observador por
onde ele se deslocasse. O tal cartaz tinha uma inscrição: The Big Brother is WachtingYou, que
na tradução para o português virou: “O Grande Irmão Zela Por Ti”. Escrito na década de 40, o
livro mostra uma impressionante e assustadora caricatura do totalitarismo socialista e suas
redes perversas de dominação. O grande mecanismo de dominação nesse sistema, no entanto,
era linguístico. Consistia na atuação constante e soberana de certo “Ministério da Verdade”,
cuja missão era por em prática o lema: Quem controla o passado, controla o futuro. Quem
controla o presente, controla o passado.
Esse mecanismo produzia, então, um eterno presente em que todas as informações
indesejáveis sobre o passado eram sistematicamente apagadas, as pessoas relacionadas
àqueles fatos simplesmente consumidas, e todos os registros sobre elas igualmente
suprimidos. Todos os documentos indesejáveis sobre o passado eram inseridos num tubo
pneumático onde eram sugados e destruídos para sempre. Havia no “Ministério da
Verdade”uma contínua supressão do passado e um incessante controle do presente para com
isso controlar o futuro. E para sustentar todo esse sistema criou-se não só uma linguagem,
mas uma língua própria chamada novilíngua.
Essa estranha novidade se baseava numa verdadeira perversão da linguagem
subvertendo os significados. O mantra governamental era: guerra é paz, liberdade é
escravidão, ignorância é força. Isso dá uma ideia da força estratégica da novilíngua que, para
ser compreendida, exigia dos falantes e receptores o emprego de um tipo de raciocínio
esquizofrênico denominado duplipensar. Para exemplificar segue um trecho em que o
personagem principal, Winston, recorre ao duplipensar: p. 26/27 – “Seu espírito mergulhou
no mundo labiríntico do duplipensar. Saber é não saber, ter consciência de completa
veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas
opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica
contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da
democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse

788
VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita: contribuiciones desde Coatepec.
n. 012. Toluca: Universidade Autónoma del Estado de México, 2007. p. 127.
204

necessário esquecer; e acima de tudo aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a
sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente
do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar”
era necessário usar o dupliensar”789.
A menção à distopia orwelliana tem aqui o sentido de mostrar os contornos
totalitários que a fraternidade pode apresentar. Quando Eligio Resta propõe que o Direito
convirja para os moldes de uma verdadeira confraria cosmopolita790, sendo elaborado e
aplicado segundo o código fraterno, o faz certamente por bons propósitos. Na concepção de
Resta, a fraternidade vai romper com a paternidade (a autoridade do pater, senhor da guerra).
Isso implica romper com a ideia de Estado-nação e, consequentemente, com a contraposição
amigo/inimigo que lhe é inerente.
Enquanto o amigo se define por ser a própria expressão da alteridade, heteros, que se
relaciona com o autos de forma que o indivíduo se sente confortável a condividir com este
outros aspectos relevantes da própria existência791, o inimigo é a antítese, porém, não portador
de um mal intrínseco, mas por estar dissociado, enquanto o amigo está associado. É o outro, o
estrangeiro com quem os conflitos não podem ser resolvidos normativamente ou através de
um terceiro imparcial, mas somente através da hostilidade da guerra792. A inimizade, contudo,
nem sempre fica restrita aos que estão ou provém d'além fronteiras. O criminoso é também
considerado um inimigo, um inimigo social, interno, que com sua conduta perturba a
sociedade ao romper com o pacto social, devendo não só ser punido por seus atos, mas
também contido por suas "virtualidades" como bem demonstra Foucault 793. O conceito de
inimizade também permitirá construções como a de Günther Jakobs, que defende a
legitimidade e a necessidade de um Direito Penal do inimigo para aqueles que se dedicam a
destruir o próprio ordenamento jurídico com suas condutas altamente lesivas e
imprevisíveis794. Tais indivíduos, os inimigos, não devem usufruir das mesmas salvaguardas
jurídicas dos cidadãos.
Eligio Resta atribui ao Direito Fraterno propriedades que permitirão romper com o
que chama de "egoísmo míope", expresso por leis de imigração e outras que se fundam em
789
A síntese acima resultou da leitura da seguinte tradução da obra: ORWELL, George. 1984. Tradução de
Wilson Velloso. 10. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
790
RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed., Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 132.
791
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009. p. 89.
792
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Tradução de Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes,1992. p. 52.
793
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.p. 81; 85.
794
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução de André
Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 42.
205

um ethnos excludente. Além de inclusivo e cosmopolita, o Direito Fraterno se propõe à não-


violência, reconhecendo que o modelo monopolista de jurisdição, como mecanismo de
resolução de conflitos, padece atualmente da ambivalência do pharmakon: ao mesmo tempo
remédio e doença, antídoto e veneno:

Ou seja, condena-se salvando e se salva condenando; cura-se adoecendo e adoece-se


curando. A técnica é o lugar do aumento da complexidade e, portanto, do aumento
das possibilidades. Assim, a fraternidade não considera a técnica como algo que se
"abre" ou se "fecha", mas como algo que alcança a philia das contradições e da
ambivalência. Por exemplo, o corpo humano: a técnica pode reduzir (e reduz) o
corpo humano em mercadoria, mas pode também, ao mesmo tempo, desvelar novas
dimensões de solidariedade.795

Como forma de mitigar os efeitos paradoxais da técnica jurídica, o Direito Fraterno


vai investir na mediação e na conciliação visando minimizar os aspectos violentos da
atividade jurisdicional, monopolizada pelo Estado e a consequente "tribunalização da
história". A construção jusfilosófica de Eligio Resta pretende ainda se sustentar sobre a
inderrogabilidade universal dos direitos humanos e não sobre os postulados
796
mercadológicos .
Mas os esforços de Resta não são suficientes para que se esqueça que a fraternidade
como lema revolucionário é, antes de tudo, um conceito atrelado à concepção icônica de
povo, não à totalidade da população, pois só serão considerados citoyens (cidadãos) aqueles
comprometidos com o bem comum e a virtude política, ou seja, conforme os preconceitos que
emergiram, somente os integrantes do terceiro estado e a nova burguesia, excluindo-se a
nobreza eclesiástica e o lumpemproletariado797. Ao se voltar contra a atividade jurisdicional,
Resta demonstra não ter alcançado a concepção de processualidade democrática, tanto que
confia a defesa e preservação dos direitos humanos à mediação e à conciliação, pois considera
que a jurisdição estatal não tem assegurado o necessário pluralismo e a consequente
proximidade das partes com a solução da controvérsia798.
Com isso, percebe-se que em sua concepção, o "povo" apresenta contornos icônicos
além de não ostentar a qualidade emancipatória que lhe permitiria operacionalizar de forma
autocrítica as próprias estruturas jurídicas da democracia, ou seja, povo, como sendo a
totalidade dos cidadãos legitimados ao processo. Devido processo instituído pelo próprio

795
VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita: contribuiciones desde Coatepec. n.
012. Toluca: Universidade Autónoma del Estado de México, 2007. p. 130.
796
RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed., Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 131-134.
797
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? a questão fundamental da democracia. 3. ed. Tradução de Peter
Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 72.
798
RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed. Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 87.
206

povo, o que dispensa a inserção em qualquer tipo de confraria para que se possa criar, recriar,
aplicar e interpretar direitos fundamentais799. Declarar o declínio do Estado-nação e pregar a
não violência, apostando em uma "Constituição sem inimigos, uma Constituição sem
povo"800, são esforços insuficientes para assegurar democraticidade, pois beiram a
mistificação801.

7.4 Justiça restaurativa, justiça terapêutica e justiça instantânea

O Direito Processual, no Estado Democrático de Direito, é indispensável à resolução


dos conflitos jurídicos, sejam estes de que espécie for802, sendo temerário invocar conceitos
marcados por forte ambiguidade, como Direito Fraterno, Justiça Restaurativa, Justiça
Terapêutica e Justiça Instantânea, para que apontem uma nova aurora para a crise dogmática
esquadrinhada ao longo deste trabalho. A superação do debate arcaico, contudo, não parece
ser possível através de formulações ainda insuficientemente esclarecidas, como é o caso das
vertentes que apontam como saída para a crise do Processo Penal, as instigantes concepções
encontradas no trabalho coletivo coordenado por Salo de Carvalho e Rodrigo de Azevedo, no
âmbito de produção científica da Pós-graduação em Ciências Penais da PUC do Rio Grande
do Sul803.
O mesmo ambiente científico já havia produzido outro trabalho de grande
repercussão e com o mesmo propósito intitulado "Diálogos sobre a Justiça Dialogal: Teses e
Antíteses sobre os Processos de Informalização e Privatização da Justiça Penal", organizado
também por Salo de Carvalho, desta feita em parceria com Alexandre Wunderlich 804. Há uma
escola processual relevante se desenvolvendo em torno desses temas, com autores se
posicionando criticamente de modo a expor aporias e fragilidades, mas também as
possibilidades evolucionárias por eles indicadas.

799
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 50.
800
VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita: contribuiciones desde Coatepec. n.
012. Toluca: Universidade Autónoma del Estado de México, 2007. p. 137.
801
O Estado-nação, que surgiu e se consolidou após a Revolução Francesa como a mais forte expressão do Estado
na modernidade, teve seu período de maior declínio na Europa após a Primeira Guerra Mundial, o que acabou
por produzir um cenário de desintegração, que se notabilizou por uma guerra de todos contra todos em que as
primeiras vítimas foram as minorias e os Direitos Humanos, até então considerados inalienáveis. (ARENDT,
1998, p. 301).
802
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2002. v.1. p. 89.
803
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (Org.). A crise do processo penal e as novas
formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
804
CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses
sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
207

O conceito de Justiça Restaurativa é reconhecidamente indeterminado, o que


dificulta identificar quais são realmente seus contornos teóricos e normativos. Seus objetivos,
contudo, podem ser definidos como "direcionados à conciliação e reconciliação entre as
partes, à resolução do conflito, à reconstrução dos laços rompidos pelo delito, à prevenção da
reincidência e à responsabilização"805. Há, assim, uma nova privatização do delito, sendo
reconhecido que o sistema penal teria também um compromisso com a reparação dos danos às
vítimas, superando a dicotomia entre os que defendem um Direito Penal clássico, de
característica tutelar, e um Direito Penal mais autoritário, com o aumento das prerrogativas do
poder Executivo em termos de iniciativas nesse segmento jurídico806.
No Direito Processual Penal brasileiro foram inseridos, desde a promulgação da
Constituição de 88, diversos institutos jurídicos que apontam num sentido de privatização dos
conflitos penais, permitindo soluções negociadas e dialogadas, a sinalizar que a superação da
crise dogmática do Processo Penal passa pela sumarização de procedimentos, encurtando
caminhos e eliminando entraves à atuação estatal, como é próprio da acusatoriedade inglesa,
em que a Corte da Coroa chega a oferecer "descontos" da ordem de 30% no montante das
penas, incentivando as assunções de culpa, tendo como norte a celeridade, a efetividade e a
redução dos custos807. No Brasil, há certo acanhamento em se falar do aspecto utilitarista
desses institutos negociais ou restaurativos, que resultaram no paradoxo do aumento da
judicialização dos conflitos, havendo mesmo uma explosão no número de casos que antes
eram resolvidos pelos próprios envolvidos e passaram a ser absorvidos pelo Sistema Penal,
como foi o caso das condutas abarcadas pelos Juizados Especiais Criminais que, em
contraponto com a Lei dos Crimes Hediondos, faz com que os chamados delitos da
normalidade, sejam de fato, exceção808.
Em meio a esse paradoxo, a Justiça Restaurativa pretende fazer frente ao crescimento
da violência e às constantes violações dos direitos humanos, como deixa claro Raffaella da
Porciuncula Pallamolla:

Frente a este quadro de crescimento da violência, desrespeito aos direitos civis e

805
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 53.
806
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringelli Conciliar ou punir? dilemas do controle penal na época contemporânea. In:
CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.).Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses
sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
.p. 130. p. 65.
807
SPENCER, Herbert. O sistema inglês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa.
Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen
Juris. 2005. p. 292.
808
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 132-133.
208

incapacidade do sistema de justiça criminal para administrar a conflitualidade social,


impõe-se o desafio de reestruturar este sistema e buscar alternativas capazes de
reduzir a violência e os danos causados pelo sistema criminal. Nesse passo, pode-se
afirmar que o projeto da justiça restaurativa vincula-se ao processo de reformulação
judicial que vem sendo desenvolvido no Brasil com o objetivo de adequar tanto a
legislação quanto as estruturas judiciais ao contexto democrático.809

Na esteira dessas afirmações é possível identificar como iniciativas restaurativas e


conciliatórias a composição civil dos danos e a transação penal (arts. 72 e 76 da lei 9.099/95),
o atendimento multidisciplinar envolvendo vítima e agressor no caso de violência doméstica
contra a mulher (art. 30 da lei 11.340/06 - Lei Maria da Penha) e mesmo em outros casos (§
5º, do art. 201 do Código de Processo Penal), a remissão prevista no Estatuto da Criança e do
Adolescente (art. 126 da lei 8.069/90), o acordo de leniência no caso de infrações contra a
ordem econômica (art. 35-B da lei 8.884/96) e a delação ou colaboração premiada prevista
nos mais diversos diplomas legislativos como Lei dos Crimes Hediondos (art. 8º, parágrafo
único da lei 8.072/92), Lei de Proteção a Testemunhas (art. 14 da lei 9.807/99), Lei de Drogas
(art. 41 da lei 11.343/06) e Lei de Combate às Organizações Criminosas (arts. 4º, 5º, 6º e 7º da
lei 12.850/2013). Tais dispositivos instauram no Brasil o chamado Direito Penal Premial, em
que o inimigo é restaurado à condição de amigo, na medida em que se dispõe a colaborar com
o sistema repressivo penal, permitindo às partes envolvidas adotarem uma postura
utilitarista810.
O cálculo utilitarista instrumentalizado no âmbito de resolução dos conflitos
811
penais recebe alentadas críticas calcadas na tradição romano-germânica, sempre resistente a
tudo que possa significar redução da presença estatal no Processo Penal, o que fatalmente
pode significar supressão de garantias aos acusados e a revitimização do ofendido como, aliás,
aponta Salo de Carvalho:

Lógico que, ao não vermos o processo penal como instrumento adequado para
satisfazer a vítima e buscar a reparação do dano, não propugnamos uma abstenção
estatal na sua tutela. Todavia, a ação não pode ocorrer no interior do necessário
processo penal, que diz respeito fundamentalmente à tutela do réu. Ressalte-se: o
processo penal é revestido de uma instrumentalidade garantista, direcionada à
defesa do imputado/réu contra os poderes públicos e/ou privados desregulados, e
não da vítima.
Aliás, desde o plano empírico-sociológico, tão presente nos argumentos
abolicionistas, poderíamos afirmar que trazer a vítima ao processo é deflagrar
processo de revitimização, potencializando novamente os efeitos da lesão sofrida
anteriormente, pois se o escopo do processo é a reconstrução de um fato pretérito

809
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 138.
810
RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed., Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 111-112.
811
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 12.
209

não mais passível de experimentação para solucionar o caso penal, ao proporcionar


tal experiência à vítima, estaríamos fazendo com que ela revivesse aquele momento
de dor e angústia.812

De fato, a Justiça Restaurativa para concretizar suas pretensões, depende de uma


predisposição psíquica dos envolvidos à superação do trauma. Do ponto de vista do agente da
infração, a superação de suas angústias para que possa, pelo apaziguamento de seu super-ego,
romper o círculo vicioso de ódio e sadismo que lhe acarreta tendências destrutivas. Por outro
lado, a vítima deve ser capaz "de perdoar o ataque sádico, agressivo e destruidor" 813. Há desse
modo, uma aposta na predisposição dos envolvidos no conflito penal e na observância dos
valores restaurativos por todos os agentes, o que faz com que, se de um lado os procedimentos
restaurativos não podem ser acusados de violadores de direitos fundamentais814, de outro
podem constituir apenas uma expectativa inócua e ineficaz para os casos em que a alternativa
negocial, ou não tem previsão legal, ou resta frustrada.
Há, dentre os chamados "valores restaurativos", a própria ideia de "cicatrização" ou
"cura" dos males provocados pelo delito: "A restauração pode ser do bem danificado,
emocional, da dignidade, da compaixão ou do suporte social"815. Esse aspecto terapêutico
aparece no Brasil como alternativa legal à prisão e consiste no encaminhamento do imputado
a tratamentos e cursos, como dispõem o Código Penal (art. 48, parágrafo único), a Lei de
Execução Penal (art. 1º), Estatuto da Criança e do Adolescente (com as Medidas Sócio-
educativas) e mais recentemente a Lei de Drogas que passou a estabelecer a admoestação, a
prestação de serviços comunitários e tratamento, como sanções aos usuários de drogas ilícitas
(art. 28 da lei 11.343/06).
A chamada Justiça Terapêutica se insere no contexto penal como forma de trazer ao
controle dos órgãos jurisdicionais questões que são da alçada dos órgãos de saúde pública,
como as chamadas políticas de redução de danos. No caso do tratamento de dependentes
químicos, por exemplo, encaminhar qualquer tratamento, tendo como critério o fato de ter se
envolvido em ocorrência policial, é algo temerário, de contornos autoritários e de difícil

812
CARVALHO, Salo de .Considerações sobre as incongruências da justiça penal consensual: retórica
garantista, prática abolicionista. In: CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.).Diálogos sobre a
justiça dialogal: teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 150.
813
CINTRA, Ana Carolina Chagas N. Svirski; CINTRA, Mirela de. Amor, culpa e reparação nas práticas
restaurativas da justiça juvenil: considerações preliminares. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO,
Salo de (Org.). A crise do processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto
Alegre: Notadez, 2006. p. 167-168.
814
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 173.
815
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 64.
210

adequação teórica ao sistema de processualidade democrática:

Nota-se, ao avaliar a estrutura ideológica e as funções não declaradas do programa,


que o projeto de Justiça Terapêutica não apenas retoma os modelos defensivistas que
substituem penas por medidas, como reedita perspectiva sanitarista na qual o usuário
de drogas é visto invariavelmente como doente crônico, reincidente e incurável. Não
obstante, ao vincular na mesma categoria usuários e dependentes, não estabelecendo
as necessárias distinções, o programa estabelece pautas moralizadoras e
normalizadoras próprias de modelos autoritários fundados no periculosismo. Em
realidade, sob o declarado fim de auxiliar, via tratamento, o indivíduo envolvido
com drogas, o projeto lhe retira a qualidade de sujeito, negando-lhe possibilidades
de fala e escuta.816

A Justiça Terapêutica seguiria assim a mesma lógica da internação, do tratamento e


da segregação, denunciada por Foucault:

É evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um


mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado
que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês
de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude. Daí a
supor que o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que
permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos, há
apenas um passo. O internamento seria assim a eliminação espontânea dos "a-
sociais"; a era clássica teria neutralizado, com segura eficácia — tanto mais segura
quanto cega— aqueles que, não sem hesitação, nem perigo, distribuímos entre as
prisões, casas de correção, hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas. 817

Ainda que se apontem como "valores restaurativos" conceitos como


"empoderamento" e "accountability, appeability", que resultariam em autonomia dos
envolvidos para encaminhar seus argumentos e versões, bem como o "poder" de não se
submeterem ao "processo restaurativo", o fundo ideológico e a falta de demarcação jurídica
podem produzir resultados bizarros em decorrência de outro "valor" acolhido por esse
sistema, a "reintegrativeshaming (vergonha reintegrativa)", que investe numa "estigmatização
não destrutiva" e que pode levar a humilhações, como o caso de um jovem que foi
constrangido a usar uma camiseta com a inscrição "I am a thief" (eu sou um ladrão) 818. A
aposta na estigmatização remete aos tribunais inquisitoriais819 e ainda hoje é perceptível no

816
CARVALHO, Salo de et al. Considerações preliminares sobre as políticas de redução de danos na Espanha e
o projeto de justiça terapêutica no Brasil. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (Org.). A
crise do processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez,
2006.p. 219.
817
FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto.
São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 90.
818
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 62-63.
819
Os condenados pelos tribunais do Santo Ofício eram submetidos ao uso de hábitos penitenciais denominados
"sambenitos". Esses trajes eram confeccionados com linho cru e variavam conforme o tipo de condenado e o tipo
de penitência. Os "reconciliados" usavam um hábito com a cruz de Santo André, os condenados que se
confessaram nos últimos dias do processo usavam um hábito com chamas pintadas para baixo e os "relaxados",
211

sistema penal, que nem sempre vai primar pela racionalidade de suas medidas.
A estigmatização ocorre de modo instantâneo, por exemplo, no caso das denúncias
de violência doméstica, em razão da busca por utilidade e efetividade da legislação, que
pretende ainda dar respostas imediatas e simplistas a problemas bem mais complexos. As
"medidas protetivas de urgência", que podem ser deferidas "de imediato" (art. 18 da lei
11.340/06 - Lei Maria da Penha), consistem numa série de restrições ao "agressor", pela
simples constatação da agressão, sem qualquer contraditório prévio. Tais medidas vão desde o
afastamento do lar até a proibição de frequentar determinados lugares e manter distância da
ofendida, em limites a serem fixados pelo juiz, dentre outras, sempre com objetivo de
"preservar a integridade física e psicológica da ofendida" (art. 22, inciso III, alínea "c" da lei
11.340/06 - Lei Maria da Penha).
Essa lei é pautada por um dualismo generalizante entre o homem-macho-agressor e a
mulher-vítima-ofendida, estabelecendo o empoderamento das mulheres no âmbito do
Processo Penal, na medida em que excluiu tais fatos da competência dos Juizados Especiais
Criminais, para fazer frente ao "arquivamento massivo dos processos, através da renúncia das
vítimas"820, criando até mesmo uma jurisdição específica de competência híbrida (cível e
criminal), com os denominados Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
(art. 1º c/c art. 13 da lei 11.340/06 - Lei Maria da Penha).
A tecnologia821 (técnica e ciência como ideologia) da Justiça Instantânea, implantada
inicialmente em 1995, com os Juizados Especiais Criminais e incrementada com a Lei Maria
da Penha, acabou resultando em generalizada sumarização do Processo Penal brasileiro,
sobretudo após a reforma ocorrida em 2008, pelas leis 11.689, 11.690, 11.719 e 11.900, que, a
pretexto de modernização das normas técnicas de procedimento, consolidou um sistema
caracterizado pela concentração dos atos instrutórios em audiência una, o princípio da
oralidade e a utilização de meios tecnológicos, tais como registro de atos por vídeo ou áudio,
além da possibilidade de interrogatório e oitiva de testemunhas por vídeo-conferência.

ou excomungados,tinham o próprio retrato pintado entre chamas e grifos com a inscrição de suas culpas. Alguns
condenados também deveriam usar na cabeça uma mitra de papel o que era sempre objeto de escárnio e infâmia.
O uso dos "sambenitos" impunha ao indivíduo uma estigmatização social duradoura. (BETHENCOURT, 2000,
Interstício ilustrativo entre as p. 190-191).
820
CELMER, Elisa Girotti. Violência conjugal contra a mulher: refletindo sobre o gênero, consenso e conflito
nos juizados especiais criminais. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (Org.). A crise do
processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.p. 255
821
Cabe aqui a constatação de Habermas de que a cientificação da técnica (tecnologia) exerce um papel de
ideologia, não havendo mais técnica ou ciência desprovidos de um conteúdo subjacente. O fato é que há sempre
uma razão política ou de Estado, além de razões econômicas por trás de qualquer evolução técnico-científica.
Fazemos essa mesma correlação com as constantes medidas de sumarização do procedimentos penais. Cf.
(HABERMAS, 1968, p. 72-73).
212

A sumarização implementada, mesmo preservando-se a nomenclatura de "processo


ordinário", instaura um paradoxo na medida em que aposta na celeridade, reduzindo prazos e
tempo de fala, além de concentrar atos processuais de modo a não guardar qualquer
compatibilidade com o que se possa entender como ordinariedade e tudo aquilo que ela
representa em termos de possibilidades epistemológicas. Não dialogal, nem dialética, mas
dialógica ou dialítica822.

7.5 Modelo constitucional de processo, instrumentalidade garantista e a noção de


"Giusto Processo"

A procedimentalidade penal, qualquer que seja a sua morfologia, parece guardar


sempre certa margem de permissividade para que aflorem discursos autoritários,
incompatíveis com o paradigma democrático. Como o crime em larga escala, o procedimento
penal pode ser considerado elemento de uma sociedade de risco que vai sempre clamar por
resolutividade, mesmo que para isto, tenha que engolfar indivíduos em suas práticas
perniciosas, mas indispensáveis, em razão do caráter ilusório do abolicionismo penal. Resta
aos afetados pela decisão penal, o Processo como instituição, instaurando a metodologia que
permitirá arguir se os fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito estão sendo
observados cada vez que um procedimento penal é realizado.
A perspectiva deste trabalho aponta para o sentido de que propostas de resolução dos
conflitos penais, como as abordadas, constituem alternativas parciais e pragmáticas. E, como
tal, não representam qualquer evolução epistemológica para o Direito Processual Penal, pois o
reduzem a mero procedimento quando, no paradigma da processualidade democrática, há que
se compreender sua dimensão enquanto instituição constitucional, de modo a assegurar a
plena dialogicidade em torno das questões que se contrapõem nos autos, como autêntico
método autocrítico de aplicação e testificação do Direito, pelo qual se torna possível a
incessante e progressiva eliminação dos erros, concretizando assim os direitos fundamentais
atribuídos a todos os afetados pela decisão jurisdicional.
O que se percebe é que na contemporaneidade dos estudos jurídicos é possível
conceber um Direito Processual Penal que não se filie radicalmente a nenhuma das correntes,

822
"A diálise entre suas formas constitutivas (conteúdos informativos) e suas correlações negativas (conteúdos
lógicos), aponta enunciados que se exprimem numa rivalidade interna à própria enunciação teórica entre
afirmações e negações a postularem asserções de aumento de clareza e precisão das resoluções ad-hoc de
problemas em concorrência também com outras teorias". (LEAL, 2010, p.173).
213

nem acusatoriedade plena, nem inquisitoriedade, como, aliás, defendem Jacinto Coutinho823,
Leonardo Augusto Marinho Marques824 e Antônio Alberto Machado. Este último chega a
traçar o perfil do juiz contemporâneo, com fortes tendências instrumentalistas e ativistas,
pautado por conceitos indeterminados e potencialmente equívocos como eficácia e justiça
social:

[...] o conceito de jurisdição ganhou contornos mais dinâmicos, já que a busca de


seus escopos sociais, políticos e jurídicos, bem como o objetivo de garantir a
efetividade do processo e os fins do Estado, supõem um órgão jurisdicional mais
atuante, com poderes de iniciativa ao longo da marcha processual, portanto, não tão
inerte como aquele juiz pretendido pela teoria processual clássica. Na visão
contemporânea de processo, o juiz tem poderes de impulsionar a causa porque tem o
dever de entregar a prestação jurisdicional com presteza e justiça, ou seja, de forma
eficaz e socialmente justa.825

Outros autores contemporâneos também enfrentam esse debate. Alguns apontam


como saída uma concepção de modelo constitucional do processo na trilha desbravada por
Andolina e Vignera826. Filiam-se a esta corrente Flaviane de Magalhães Barros827 e André
Faria, que em pesquisa especializada rechaça veementemente qualquer possibilidade de
ativismo judicial no Processo Penal:

De maneira geral, os poderes investigatórios do juiz não podem ser aceitos, pois
dessa forma ele estaria ocupando papel reservado à acusação, o que significaria, em
tese, ofensa aos princípios da igualdade, do contraditório, da paridade de armas,
ampla defesa e imparcialidade, pois esses poderes investigatórios, após a
Constituição de 1988, não pertencem ao juiz, não sendo possível sustentar a ideia de
verdade real e consequentemente de ativismo judicial.
Na realidade, o ativismo judicial demonstra estar em total descompasso com o
modelo constitucional de processo, ofendendo os princípios do contraditório,
terceiro imparcial, presunção de inocência e in dubio pro reo cumprindo ressaltar
que basta a ofensa a um desses princípios para que todo o modelo esteja
comprometido.828

Outra vertente, defendida por Aury Lopes Júnior, como se viu, preconiza uma
instrumentalidade constitucional ou garantista que consistiria na admissão do ativismo
judicial para assegurar o projeto constitucional:

823
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro.
Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, n. 30, p.163-198, 1998b.
824
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Do julgamento do fato incerto na ação penal condenatória. Belo
Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 2006.
825
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 140.
826
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990.
827
BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011.
828
FARIA, André. Os poderes instrutórios do juiz no processo penal: uma análise a partir do modelo
constitucional de processo. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011. p. 102.
214

[...] a instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas


com uma especial característica: é um instrumento de proteção dos direitos e
garantias individuais. É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se
manifesta no processo penal, pois se trata de instrumentalidade relacionada ao
Direito Penal e à pena, mas, principalmente, um instrumento a serviço da máxima
eficácia das garantias constitucionais. Está legitimado enquanto instrumento a
serviço do projeto constitucional.
Trata-se de limitação do poder e tutela do débil a ele submetido (réu, por evidente),
cuja debilidade é estrutural (e estruturante do seu lugar). Essa debilidade sempre
existirá e não tem absolutamente nenhuma relação com as condições econômicas ou
sociopolíticas do imputado, senão que decorre do lugar em que ele é chamado a
ocupar nas relações de poder estabelecidas no ritual judiciário (pois é ele o sujeito
passivo, ou seja, aquele sobre quem recaem os diferentes constrangimentos e
limitações impostos pelo poder estatal). Essa é a instrumentalidade constitucional
que a nosso juízo funda sua existência.829

Humberto Theodoro Júnior e Dierle Nunes, amparados principalmente nas lições dos
autores italianos Luigi Paolo Comoglio e Nicola Picardi, afirmam que a superação desse
embate se dá mediante o acolhimento do conceito de "processo justo", conforme o disposto no
art. 111 da Constituição italiana, que expressamente, desde 1999, passou a prever o princípio
do “Giusto Processo”, o qual se realizaria através de um contraditório compartilhado ou
dinâmico, consistente em bilateralidade de audiência, garantia de não ser surpreendido e ter
seus argumentos aproveitados na decisão:

Cria-se, assim, uma tendência e uma nova leitura paritária entre os sujeitos
processuais, sem confundir seus papéis, mas, de modo a se implementar uma
participação real com a assunção da co-responsabilidade endoprocessual por todos.
Insta, desse modo, registrar que o papel do julgador de garantidor de direitos
fundamentais, diretor técnico do processo, impõe a este dialogar com as partes para
encontrar e melhor aplicação (normativa) da tutela mediante o debate processual e,
não, através de um exercício solitário de poder.
A comparticipação advinda da leitura dinâmica do contraditório (e de outra garantias
processuais constitucionais) importa uma democratização do sistema de aplicação de
tutela.
Assim, chegaremos a uma aplicação de tutela com resultados úteis e de acordo com
as perspectivas de um Estado Democrático de Direito.830

A concepção de "Giusto Processo" está calcada, sobretudo na perspectiva de que não


basta que a decisão final seja "justa", mas também todo o desenrolar processual. Há uma
tendência na doutrina italiana no sentido de afirmar que as partes se dariam por satisfeitas se
pudessem se certificar de que foram tratadas com o devido respeito e imparcialidade, seus
argumentos foram apreciados e suas razões consideradas. O processo exerceria uma função

829
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 28-29.
830
NUNES, Dierle José Coelho; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Uma dimensão que urge reconhecer ao
contraditório no direito brasileiro: Sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de
aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo, São Paulo, ano 34 - nº 168. fev. p. 107-141. 2009,
p. 140.
215

heurística, não apenas erística (tradução nossa)831, num primeiro momento, pela possibilidade
de verificação da adequação do procedimento ao resultado pretendido e depois pela
possibilidade de aferir se a "instituição" ou "autoridade" se portaram com o devido respeito
frente ao litigante, o que vai permitir o controle da atividade jurisdicional832.
A expressão de democraticidade se daria pela instauração de um policentrismo
processual que, como se observa, vai se pautar exclusivamente sobre uma expectativa acerca
do comportamento do juiz: se esteé pessoa ideologicamente orientada, estrategicamente
pautada ou simplesmente alguém de índole autoritária ou democrática833. Tal concepção
rechaça o ativismo judicial visto como pernicioso e aponta, como meio de se obter maior
aprimoramento técnico, a comparticipação mitigando assim a importância do papel diretivo
do juiz:

Uma verdadeira democracia processual será obtida mediante a assunção da co-


responsabilidade social e política de todos os envolvidos (juízes, partes, advogados,
órgãos de execução do Ministério Público e serventuários da Justiça) segundo
balizamentos técnicos e constitucionais adequados, de modo a se estruturar um
procedimento que atenda às exigências tanto de legitimidade quanto de eficiência
técnica.
Impõe-se superar a dicotomia de posições doutrinárias que ora acredita e defende
como protagonistas do processo as partes e advogados, visualizando-o como mero
instrumento de que os particulares se valem para resolver pacificamente as suas
controvérsias (liberalismo processual), e ora analisa o processo como instrumento de
bem-estar social que interessa a toda coletividade e que, por isso, deve ter como
figura central o juiz (socialização do processo).834

Mas o modelo de processo ainda prevalente é o civil, dogmaticamente estruturado


numa concepção materialista em que o devido se apresenta como sanção legislativamente
imposta aos despossuídos (potus), por juízos de conveniência e equidade, como se lê na
surpreendente crítica feita por Rosemiro Pereira Leal à concepção de "Giusto Processo":

A tradição da law of the land no socialismo científico sai do privatismo para o


coletivismo como a permutar o devido, como DEVER-SER do indeterminismo, pelo
JUSTO do determinismo hegeliano-marxista. A expressão processo justo tem raízes
no substantive due process da law of the land do idealismo alemão a conceber uma
substância primal (property como corpo-vida-liberdade) que se mostra pelo agir
como um ser tendo o direito fundante (fundamental) de ser ator-destinatário de uma
justiça social pela land (o ter produtivo desde sempre). Este justo sinalizador de um
bem-estar-geral é posto por uma falange de benfeitores que, inatos a uma estrutura
831
Enquanto a "erística" constitui a mera arte de vencer um debate pelo manejo habilidoso das palavras, a
"heurística" se define como a "arte da pesquisa" em que o objetivo maior é aprofundar o conhecimento sobre os
variados aspectos de uma questão. (ABBAGNANO, 2007, p. 340;499).
832
BERTOLINO, Giulia. Giusto processo civile e giusta decizione: riflessioni sul concetto di giustizia
procedurale in relazione al valore della accuratezza delle decizioni guidiziarie nel processo civile. XIX
Ciclo.2008. 165f. Tesi (Dottorato in Diritto Processuale Civile) - Università di Bologna, Bologna. p. 61.
833
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 190-195.
834
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012. p. 198.
216

atemporal do justo agir (jurisdictio), arbitram os conflitos em juízos de vida ou de


morte (conveniência ou equidade).835

Michelle Taruffo836 e Mireille Delmas-Marty837 reconhecem que tal modelo leva ao


maniqueísmo entre os princípios inquisitório e acusatório, postura esta que deve ser superada
mediante o controle da atividade judicial pelas partes, através do princípio do contraditório.
Ressalte-se que no sistema de common law, a prevalência do princípio acusatório é por vezes
mitigada por um pragmatismo contingencial, sem maiores preocupações teóricas. Tanto na
Inglaterra como nos Estados Unidos, a prevalência do plea barganing e do adversarial system
contribuem para a solução pragmática, insuficiente para que seja superada a crise dogmática
do Processo Penal. No capítulo final, a interenunciatividade, extraída da concepção
Neoinstitucionalista da Teoria da Prova, se desenvolve como princípio capaz de atribuir
contornos autocríticos ao Processo Penal, o que lhe confere democraticidade.

835
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 588.
836
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009.
837
DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a
colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005.
217

8 O DEVIR PROCESSUAL DEMOCRÁTICO E A SUPERAÇÃO DO EMBATE


ENTRE ACUSATORIEDADE E INQUISITORIEDADE

As abordagens em torno da legitimação do Direito no paradigma da democracia, em


que os destinatários normativos devem se reconhecer como autores da ordem jurídica, se
estruturam na interligação entre o princípio do discurso e a forma jurídica institucionalizada
que vai permitir que a auto-legislação dos cidadãos não se deduza da moral ou da vontade de
pessoas singulares. Essa é a proposta habermaseana para desatar o paradoxo da legitimidade
do Direito decorrer da própria legalidade: Reconhecer a co-originariedade entre a produção do
Direito e o princípio da democracia838.
Essa concepção se apresenta como um bom começo para as cogitações em torno da
legitimação das decisões no Processo Penal. A decisão jurídica só se legitima na
processualidade, não mais pelo senso comum de justiça dos positivistas e jusnaturalistas
sempre sustentados por um cálculo utilitário produzido arbitrariamente na busca de resultados
como a manutenção da ordem pública e da paz social, da segurança jurídica e da estabilização
de expectativas morais ou éticas, bastando ao juiz tornar compreensível a sua decisão839. Isso
nos permite concluir pela insuficiência teórica de se afirmar a legitimação pelo procedimento
em que se busca a redução das complexidades por uma predisposição dos interessados em
aceitar a decisão840.

8.1 Prova, verdade e complexidade interna do processo penal

Em Luhmann, o procedimento é um sistema social de ação e, como tal, deve ser


destacada a forma como se relaciona com a complexidade do mundo:

Os sistemas constituem uma diferença entre interior e exterior, no sentido de uma


diferenciação em complexidade ou ordem. O seu ambiente é sempre excessivamente
complexo, impossível de abarcar com a vista e incontrolável; em contrapartida, a sua
ordem própria é extremamente valiosa na medida em que reduz a complexidade; e
como ação inerente ao sistema só admite, comparativamente, algumas
possibilidades.841

838
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. . v. 1. p. 158.
839
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 107
840
CHAVES, Terezinha Ribeiro. A insuficiência discursiva da autopoiesis na fundamentação dos provimentos. In:
LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso de
doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 104.
841
LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 39.
218

Essa redução de complexidade é que vai permitir uma "orientação inteligente da


ação" em face do ambiente no qual o sistema se insere. Deve ser anotado que Luhmann
reconhece a existência de uma complexidade no próprio sistema que permite a abertura à
crítica e às alternativas contraditórias de comunicação842 sendo, no entanto, necessário que
cada participante cumpra adequadamente o papel que o procedimento lhe impõe como
condição prévia e isso inclui a aceitação dócil da decisão desfavorável pela parte 843, ou como
diz Terezinha Ribeiro Chaves:

o procedimento da teoria luhmanniana não garante a participação das partes em


termos de argumentação racional para fundamentação dos provimentos. Ele, ao
contrário, é um conceito sociológico e cria uma ilusão que mascara a existência de
uma espécie de "autoritarismo", manifestante no seu isolamento. Esse fechamento
arrogante é necessário à manutenção da congruência do sistema, na medida em que a
participação dos interessados no procedimento só se justifica pela necessidade de
evitar a rebeldia.844

Outra questão é que Luhmann não distingue processo de procedimento. Ele equipara
os processos judiciais às eleições e outras modalidades de tomada de decisões obrigatórias,
todos funcionando de forma a extrair sua legitimidade autopoieticamente845, pois são
expressões do poder político que "aceita ou que até institui o seu próprio processo de
legitimação", como forma de rechaçar a legitimação proveniente de justificações morais de
conteúdo jusnaturalista846.
Parece evidente que há mesmo uma complexidade interna do sistema processual, e o
que vai distinguir a processualidade democrática da mera procedimentalidade é a forma como
as estruturas e elementos internos vão se relacionar com a complexidade do mundo da vida,

842
LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 45.
843
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 49.
844
CHAVES, Terezinha Ribeiro. A insuficiência discursiva da autopoiesis na fundamentação dos provimentos.
In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso
de doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4.p. 106.
845
"O conceito de autopoiese tem sua origem na teoria biológica de Maturana e Varela. Etimologicamente, a
palavra deriva do grego autós ("por si próprio") poiesis ("criação", "produção"). Significa inicialmente que o
respectivo sistema é construído pelos próprios componentes que ele constrói. Definem-se então os sistemas vivos
como máquinas autopoiéticas: uma rede de processos de produção, transformação e destruição dos componentes
que através de suas interações e transformações, regeneram e realizam continuamente essa mesma rede de
processos, constituindo-a como uma unidade concreta no espaço em que se encontram, ao especificarem-lhe o
domínio topológico de realização. Trata-se, portanto, de sistemas homeostáticos, caracterizados pelo fechamento
na produção e reprodução dos elementos. Dessa maneira, busca-se romper com a tradição segundo a qual a
conservação e evolução da espécie seriam condicionadas basicamente por fatores ambientais. Ao contrário,
sustenta-se que a conservação dos sistemas vivos (indivíduos) fica vinculada à sua capacidade de reprodução
autopoiética, que os diferencia em um espaço determinado." (NEVES, 2006, p. 60-61).
846
LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 31.
219

que é circundante e sempre maior que o universo jurídico-processual847. Isso diz respeito a
como e quando devem se realizar as interações input/outputque possibilitam as influências
causais recíprocas entre sistema e ambiente848.
Fazzalari aponta a complexidade interna dos processos jurisdicionais afirmando que
as atividades preparatórias do provimento são aquelas que mais ocupam tempo e meios para
que os elementos necessários à tomada de decisão possam ser obtidos "no contraditório dos
interessados", mediante a dedução e o recolhimento de provas849. Com efeito, é pela fixação
ou determinação formal dos fatos no processo, por um procedimento de busca regulado por
normas jurídicas, portanto, deformado em sua pureza lógica850, é que se dá a interação entre o
sistema de processo e mundo circundante (input/output). Isso implica em teorizar o instituto
da prova processual de modo a apontar com mais contundência o arcaísmo do embate
dogmático entre acusatoriedade e inquisitoriedade no Processo Penal, reconhecendo que os
modos de enunciação e apreensão da prova (certeza legal, livre convencimento ou persuasão
racional)851 possuem íntima relação com os respectivos modos de manifestação dos referidos
princípios.
A parêmia ex autis, ex mundis está na raiz do embate entre verífilos e verífobos852 no
Direito Processual Penal, ou seja, entre aqueles que se aferram ao princípio da verdade real ou
material, como sendo de plena observância no Processo Penal e aqueles que rechaçam tal
princípio, como sendo um mito que não possui acolhida no paradigma democrático, não
passando de triste legado, inquisitorial e autoritário853. O cerne do debate diz respeito à
possibilidade do juiz exercer um papel mais ativo na produção da prova, havendo quem
considere essa possibilidade desde que contribua para preservar a liberdade do acusado ou
qualquer outro direito inviolável ou indisponível854, rechaçando a possibilidade contrária, pois
na perspectiva do processo constitucional não se poderia admitir uma atividade probatória de
iniciativa do juiz que resultasse em reforço da acusação855.

847
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 48.
848
LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 62.
849
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 103.
850
CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Tradução de Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2001. p. 48
851
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012.p. 187.
852
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 279
853
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p. 177; LOPES JÚNIOR,
Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011a.
v.1.p. 550.
854
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 125.
855
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 562.
220

Os verífilos, portanto, não admitem a busca da verdade real pro societate, mas
somente pro reo.Já os verífobos se dividem entre aqueles que, como Ferrajoli, defendem não
ser possível falar em verdade processual, nem mesmo num sentido aproximativo856, e aqueles
que buscam substituir no Direito Processual a ideia de verdade pela ideia de determinação
formal dos fatos, como Carnelutti, ou de certeza, como Malatesta. Para Carnelutti basta um
limite mínimo que seja à liberdade de busca da verdade pelo juiz, para que esse processo se
degenere em mero processo de determinação:

A verdade é como a água: ou é pura ou não é verdade. Quando a busca da verdade


material está limitada de tal maneira que esta não possa ser conhecida,em todo caso
com qualquer meio, o resultado, seja mais ou menos rigoroso o limite, é sempre o de
que já não se trata de uma busca da verdade material, senão de um processo de
determinação formal dos fatos. De fato, sempre é possível que em determinados
casos o limite atue no sentido de impedir o conhecimento da verdade material e de
substituir esta com uma verdade jurídica ou judicial; sendo assim: esta eventualidade
é suficiente para que não se possa atribuir o conhecimento da realidade dos fatos
como resultado do processo de determinação. 857

Em sentido semelhante, Michele Taruffo diz que é inútil tentar empreender uma
distinção entre verdade relativa (formal, processual ou objetiva) e verdade absoluta (material
ou subjetiva), pois no processo a única verdade possível é aquela decorrente do acertamento
do fato derivada dos dados cognoscitivos resultantes da atividade probatória 858. Isto é, a
verdade produzida nos limites do processo não constitui uma verdade diversa daquela que se
pode descobrir sem as limitações preclusivas ou decorrentes das normas sobre ilicitude das
provas. A verdade produzida no processo pode ser limitada ou incompleta, podendo mesmo a
atividade processual se esgotar sem produzir nenhuma verdade859. De todo modo, a verdade
processual é uma verdade lógica, seja material (adequação entre um pensamento e um objeto
anterior) ou formal (que se dá abstratamente na relação do pensamento consigo mesmo),
difere-se, portanto, da verdade ontológica que é sempre apreciada pelo ângulo do objeto em
relação consigo mesmo860.
Já Malatesta, em sua clássica obra, na qual se dedica a estabelecer a taxonomia dos
meios de prova admitidos no Processo Penal, realiza uma reflexão teórica sobre duas

856
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002.p. 43.
857
CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Tradução de Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2001. p. 52.
858
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
83.
859
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
84.
860
SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnoseologia e criteriologia). 3. ed. São Paulo: Logos,
1958.p. 236-237.
221

categorias orientadoras do juízo: certeza e probabilidade861. Ambas dotadas de credibilidade,


sendo a probabilidade um estágio prévio da certeza e sujeito a gradações, o que não ocorre
com a certeza em que se tem ou não. A clássica distinção entre verdade e certeza preconiza a
verdade como o resultado objetivo da correspondência entre um enunciado e a realidade,
enquanto a certeza tem caráter objetivo dependendo da credibilidade daquele que profere o
enunciado e da crença do destinatário862.
A certeza, na construção de Malatesta, por mais que o autor se esforce para
demonstrar sua objetividade, se instaura como crença na subjetividade do julgador que só de
posse dela pode proferir uma sentença condenatória. O magistrado, contudo, deve submeter a
certeza que possui no âmago de sua racionalidade a um hipotético crivo segundo o senso
comum da sociedade:

[...] compreende-se que a certeza moral do juiz, a certeza da criminalidade, como


fundamento legítimo de condenação, deve encontrar apoio na consciência social. A
contradição entre a consciência social e a do juiz deve levar sempre à absolvição e
jamais à condenação. Se o juiz, embora sentindo-se pessoalmente convicto da
culpabilidade do acusado, sente que suas razões não são tais que possam gerar igual
convicção em qualquer outro cidadão desinteressado, deve absolver. Assim como,
quando o juiz, pela natureza dos motivos convergentes à afirmação da culpabilidade,
crê que, por eles, a condenação do acusado seria legítima, mesmo em face da
consciência social, embora o juiz acredite nisso, deve absolver o acusado, se este,
perante sua consciência de juiz, não se apresenta racionalmente e, com certeza,
culpado.863

Como é evidente, trata-se de uma construção bem aos moldes do positivismo do final
do século XIX, radicalmente fundada nos postulados da filosofia da consciência, expressada
por um indisfarçável solipsismo atrelado, por sua vez, a uma inesclarecida e mitológica
instância denominada consciência social.

8.1.1 A verdade como correspondência e o ceticismo de Popper

As concepções acima parecem suficientes para exemplificar os encontros e


desencontros em torno do papel que a verdade exerce ou deveria exercer na processualidade
democrática. Verdade é um daqueles conceitos metafísicos, como os são os conceitos de bom,
belo e justo, contra os quais não há como se pronunciar (ninguém é, por princípio, contra o
861
MALATESTA, Nicola Flamarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. 6. ed. Tradução de Paolo
Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005. p. 59.
862
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
85.
863
MALATESTA, Nicola Flamarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. 6. ed. Tradução de Paolo
Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005. p. 55.
222

bem, a beleza e a justiça), mas, no entanto, tentar desvendar-lhes a natureza pode ser um
exercício infrutífero e sem sentido864. Por essa razão, Ferrajoli se posiciona estrategicamente
no meio termo. Não acolhe uma concepção substancialista da verdade, pois a identifica com
autoritarismo, decisionismo, voluntarismo, axiologismo, inquisição e potestade. Mas ao
mesmo tempo não a descarta totalmente: "Se uma justiça penal integralmente "com verdade"
constitui uma utopia, uma justiça penal completamente "sem verdade" equivale a um sistema
de arbitrariedade"865. De grande valia a seguinte assertiva de Rosemiro Pereira Leal sobre o
tema:

Desservem ao Direito, na contemporaneidade, os estudos da prova, se concebida,


como assinalado, em moldes judiciaristas, mediante avaliação de sua eficácia
probante pelo "poder" da sensibilidade e talento da apreensibilidade jurisdicional. A
afirmação de que a "prova tem por objetivo a verdade" demanda cogitações sobre a
controvertida acepção de "verdade", porque a busca obsessiva da certeza há de se
conter, em Direito, nos limites dos meios de obtenção da prova legalmente
permitidos.866

Como já se deixou evidenciar em linhas volvidas, a presente pesquisa acolhe as


conjecturas do racionalismo crítico de Karl Popper, seguindo a trilha inaugurada pela teoria
Neoinstitucionalista do Processo. Na medida em que se adota uma epistemologia quadripartite
(técnica, ciência, teoria e crítica)867 na abordagem deste objeto, é possível reconhecer o
Processo Penal como ramo científico, não como mera técnica. Com o status de ciência é que
vai se submeter à crítica por teorias concorrentes. Para tanto, uma abordagem metafísica do
conceito de verdade se mostra inadequada quando se pretende identificar a teleologia ou
mesmo o conteúdo da atividade probatória.
Popper reconhece a si mesmo como um cético na medida em que se nega a admitir a
existência de um critério universal de verdade868. Não é um ceticismo aos moldes de Pirro de
Elis (360 a 270 a.C.) que, na impossibilidade de conhecer plenamente as coisas, simplesmente
desiste da busca, que de antemão já é encarada como infrutífera. Na concepção do ceticismo
pirrônico, para alcançarmos a paz de espírito devemos abrir mão de julgar o que é verdadeiro

864
SEARLE, JOHN R.. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.).
Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 5.
865
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 38.
866
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 189; LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p.
188.
867
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 33.
868
POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial
Fragmentos, 2006. p. 9.
223

,ou falso, certo ou errado869. O ceticismo de Popper é com relação à possibilidade de uma
verdade absoluta, pois esta se alcança pela instauração da crença, o que não é apropriado em
termos de discurso científico. Nesse sentido, afirma:

Nossa principal preocupação em filosofia e em ciência deve ser a procura da


verdade. A justificação não é um alvo; e o brilhantismo e a habilidade, como tais,
são tediosas.Devemos procurar ver ou descobrir os problemas mais urgentes e
devemos tentar resolvê-los propondo teorias verdadeiras (ou asserções verdadeiras,
ou proposições verdadeiras; não é preciso, aqui, distinguir entre elas); ou, de
qualquer modo, propondo teorias que cheguem um pouco mais perto da verdade do
que as de nossos predecessores.870

Trata-se de "ceticismo esperançoso"871, nas palavras do próprio Popper, pela adoção


de um "realismo científico"872 que o leva a trabalhar com a concepção de verdade como
correspondência desenvolvida por Alfred Tarski, segundo a qual um enunciado é verdadeiro
somente na medida em que corresponde à realidade. Assim, uma assertiva como "a neve é
branca" pode ser considerada verdadeira, se e somente se, a neve for branca 873. Segundo essa
concepção, para conhecer o significado de uma sentença se faz necessário conhecer as
condições sob as quais é possível afirmar se uma sentença é verdadeira ou falsa. Essa teoria
da verdade é classificada por Suzan Haack como uma teoria semântica, pois tal conjectura
somente se estabelece como linguagem objeto, que reclama uma metalinguagem, em que os
significados de cada um de seus componentes são submetidos à verificação de sua adequação
material e correção formal874. A verificação entre teorias concorrentes vai ocorrer pelo
confronto de seus conteúdos de verdade, donde se concluirá pela sobrevivência daquela que
apresentar maior verossimilhança ou verossimilitude. Quanto maior for o conteúdo de
verdade em suas asserções, maior será a verossimilhança ou verossimilitude de uma teoria875.
No discurso do Processo Penal, a verdade lógica deve ser buscada, mas
reconhecendo de antemão que se trata de uma estrutura dotada de especial complexidade. A

869
GRAYLING, Anthony Clifford. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 48.
870
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 51.
871
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 102.
872
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 103.
873
SEARLE, John R. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.).
Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 18.
874
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002.p. 148.
875
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 58.
224

própria estrutura é regulada normativamente: Art. 5º, inciso LVI da CB/88 - são
inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Os fatos, objetos de apuração,
devem ser confrontados com normas jurídicas das mais diversas tipologias, não raramente
polissêmicas, o que vem sendo sempre útil aos positivistas876, razão pela qual a atividade
interpretativa ganha especial relevância, sendo, contudo, altamente influenciável pelas razões
ideológicas, que condicionam o sistema877. Ferrajoli, ao abordar a teoria da "verdade como
correspondência", reconhece essa dificuldade e afirma que a linguagem jurídica deve ser
"tendencialmente isenta de termos vagos e valorativos" o que seria assegurado pelo "sistema
das garantias de estrita legalidade e estrita jurisdicionalidade"878. De todo modo, para evitar as
tendências autoritárias, devemos acolher a sentença popperiana segundo a qual “somos
buscadores da verdade, mas não somos seus possuidores”879.

8.1.2 A prova como elemento relevante no embate entre acusatoriedade e inquisitoriedade

O Processo Penal, sendo uma estrutura complexa, é também polifônica880. São várias
vozes intervindo no decurso do discurso (narrativa) e por essa razão a perspectiva democrática
só seria possível com a instauração de um nível heterodiscursivo por uma teoria do
interpretante capaz de afastar o monopólio do sentido exercido pelo sujeito da enunciação,
como demonstra Rosemiro Pereira Leal:

[...] a linguística contemporânea é que promoveu uma autovirada, [...], ao preconizar


a decodificação do sentido do discurso a partir de um código que se presta à própria
definição do discurso e não mais a partir das "multissignificações" de sentidos
advindas da mente do locador e sublocador do discurso. Portanto, a "decodificação"
do discurso, com essa auto-reviravolta linguística, migra do âmbito também
enigmático do texto dos decisores para o recinto intradiscursivo - e diríamos - pelo
"código" (interpretante) instituinte e constituinte do DISCURSO
CONSTITUCIONAL (CO-INSTITUCIONAL) CONSTITUÍDO, que é, em minha
teoria neoinstitucionalista, o "devido processo" o qual, a seu turno, assume atributos
de um neoparadigma com "função metalinguística" a demarcar um "meta sentido"
como fundamento do sistema jurídico-democrático para a criação de uma sociedade
aberta derivada de uma comunidade de legitimados ao processo (povo) aptos a
exercerem uma simétrica paridade interpretativa dos direitos legislados
(hermenêutica isomênica).881
876
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 272.
877
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.
2009. p. 107.
878
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 42.
879
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 53.
880
SOUSA, Humberto Leandro de Melo. Fundamentação, contraditório e polifonia: a sentença penal no estado
democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a
pesquisa jurídica no curso de doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 265.
881
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274
225

Essa singular concepção sobre o discurso jurídico-processual vai proporcionar uma


abordagem sobre a enunciação da prova mais articulada com o paradigma democrático. Como
já foi dito, esse é o ponto fulcral da pesquisa, pois diz respeito ao modo como o sistema
processual, enquanto sistema científico, vai interagir com o seu ambiente (input/output)882, o
que se mostra de tal sorte fundamental para superar a dicotomia entre sistema acusatório
(dispositivo) e inquisitivo, ainda entendidos como duas modalidades de gestão da prova que
se excluem mutuamente883.Mas, por mais paradoxal que possa parecer, as duas concepções
são jurisdicêntricas, pois, seguindo a cartilha instrumentalista, decorrem da compreensão de
jurisdição como poder estatal exercido pela atividade dos juízes que cumprem a função de
dizer o direito no caso concreto884.
Têm-se afirmado que o princípio inquisitivo levaria o juiz a um quadro mental
paranóico885 que se caracteriza pela tomada do "imaginário" como "real" possível886. Se de
um lado as funções entre acusador e julgador já não se confundem há muito no
constitucionalismo democrático e tampouco o acusado é objeto do processo e meio de prova,
de outro ainda subsiste, sobretudo no Processo Penal brasileiro, a possibilidade do primado da
hipótese sobre os fatos, uma vez que o juiz ainda detém, em grande parte, a gestão da prova.
Como demonstra Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, filiar-se à pós-inquisitoriedade
napoleônica, adotando o sistema misto, com uma fase inquisitorial e outra plenamente
acusatória, não assegura democraticidade, pois o "nó górdio" da inquisitoriedade permanece a
possibilidade do juiz se valer, quando da tomada de decisão, dos elementos de investigação
colhidos na primeira fase887.
Esse sistema permaneceu intacto com a reforma processual, introduzida pela Lei

882
Neste ponto, cabe anotar que é acolhida na presente pesquisa a definição popperiana de sistema científico: "[...]
só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência.
Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a
falseabilidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser
dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua fórmula lógica seja tal
que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível,
refutar pela experiência, um sistema científico empírico." (POPPER, 1974a, p. 42).
883
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 521.
884
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 137
885
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 55.
886
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal
inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).
Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009. p. 226.
887
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal
inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).
Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009. p. 226.
226

11.690 de 9/06/2008, que, a despeito de alterar o art. 155 do Código de Processo Penal,
manteve a possibilidade do julgador fundamentar sua decisão em elementos de informação
produzidos sem submissão ao contraditório. O problema está no advérbio "exclusivamente"
inserido no dispositivo: "o juiz formulará sua convicção pela livre apreciação da prova
produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente
nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não
repetíveis e antecipadas". Este ponto não preserva o juiz da carga alucinatória das primeiras
impressões e por essa razão foi objeto de severa crítica de Rui Cunha Martins:

É certo que não se autoriza, com este expediente, a busca obsessiva da verdade e a
sua obtenção a todo custo; diretamente, não; mas o carácter de brecha tomado pelo
advérbio e a auto-estrada de excepcionalidade por ele introduzida empurra
inevitavelmente o articulado para a zona do que chamei a estratégia da mera
adequação formal, leia-se de mera cosmética, na consagração da democraticidade do
processo.
[...]
Seguiremos assistindo a sentenças que, negando a garantia de ser julgado a partir de
actos de prova (realizados em pleno contraditório, por elementar), buscarão no
inquérito policial (meros actos de investigação e sem legitimidade para tanto) os
elementos (inquisitórios) necessários para a condenação. 888

A doutrina processual penal vai sustentar,assim, que o sistema acusatório traz em si o


gene da isenção (terzietà ou estraneità)889, em que o juiz se posta em completo alheamento
"em relação à arena das verdades onde as partes travam sua luta", não exercendo nenhuma
iniciativa probatória e devendo formar "sua convicção através dos elementos probatórios
trazidos ao processo pelas partes (e não das quais ele foi atrás)". Assim: "O grande valor do
processo acusatório está na justiça, o que equivale dizer, no jogo limpo"890.
As abordagens em torno da prevalência de um ou outro princípio
(acusatório/inquisitório) deixam transparecer que o dogmatismo permeia as duas concepções
e, por tal razão, devem ser colocadas sob suspeição continuada, o que certamente vai
demandar um enfoque da teoria da prova que seja mais adequado ao paradigma democrático e
que possa contribuir para um maior esclarecimento da posição institucional do Processo Penal
na constitucionalidade democrática. Pelo que se apurou até o presente momento é possível
dizer (de lavra própria) que de fato o procedimento constrange a liberdade, a vida e a
dignidade do indivíduo. Em grande parte dos casos de modo devidamente autorizado pelo
888
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 31.
889
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990. p. 41.
890
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 523.
227

sistema constitucional, e, segundo este mesmo sistema, só o processo é que pode constranger
juridicamente o procedimento. Isso se dá pela principiologia institutiva constitucionalizada.

8.1.3 A prova penal na Teoria Neoinstitucionalista

Mas para que tal sistema, caracterizado pela abertura autocrítica, consolide a
superação do dogmatismo no Processo Penal, há que se fazer uma releitura da teoria da
prova891, o que tem se mostrado possível pela Teoria Neoinstitucionalista do Processo.
Conceber os contornos teóricos da prova no Estado Democrático de Direito é de fundamental
importância, notadamente para testificar se os diversos atos praticados na procedimentalidade
estão em consonância com o devido processo institucionalizado constitucionalmente.
É possível notar, nos mais diversos ordenamentos, o princípio geral de que não se
admitem provas ilícitas ou ilegítimas, cuja diferença normalmente é atribuída ao fato das
primeiras serem obtidas mediante violação a um direito material do investigado e as segundas
em violação de normas processuais892. Denilson Feitoza Pacheco informa que esse princípio
geral tem origem na jurisprudência norte-americana, sendo definido conforme uma
terminologia geral como exclusionary rules (regras de exclusão) e do qual resulta que as
provas ilícitas ou ilegítimas devem ser excluídas do processo, seja para preservar a
inviolabilidade privada (caso Mapp v. Ohio, 1961), preservar a confiança popular no Estado
(caso U.S. v. Calandra, 1974) ou prevenir abusos policiais (caso U.S. v. Janis, 1976)893.
Desse princípio geral decorrem os seguintes subprincípios: a) good faithe exception,
pelo qual excepcionalmente, uma prova ilícita pode ser mantida quando obtida de boa fé; b)
fruits of the poisonous tree doctrine (teoria dos frutos da árvore envenenada), que resulta
também na exclusão das provas derivadas das ilícitas, conforme o caso Silverthorne Lumber
Co. v. U.S., 1920; c) independente source limitation, segundo o qual a prova deve ser mantida
quando a descoberta se mostra inevitável por outra fonte independente da ilícita, como se viu
no caso Bynum v. U.S., 1960, em que a polícia usou impressões digitais obtidas num processo
anterior que havia sido anulado; d) Inevitable discovery limitation, também se mantém a
prova quando por outro modo fatalmente se chegaria à descoberta, tendo a prova ilícita apenas
a antecipado; e) por fim a chamada purged taint limited, em que a prova derivada da ilícita é

891
Tradicionalmente a doutrina se preocupa em informar que "o vocábulo prova vem do latim - probatio -, que
significa prova, ensaio, verificação, e deriva do verbo probare (probo, as, are). Vem de probus, que quer dizer
bom, reto, honrado. O que resulta provado é, portanto, aquilo que é bom, é correto." (BADARÓ, 2003, p. 156).
892
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 544
893
Direito Processual Penal. Teoria, Crítica e Práxis. p. 546.
228

mantida quando em certos casos se considera que tenha sido "descontaminada", por exemplo,
em razão de uma confissão espontânea, como no caso Wong Sun v. U.S., 1963894.
No Processo Penal brasileiro, talvez por déficit constitucional, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal historicamente relutou a acolher plenamente as exclusionary rules,
optando por adotar o princípio da proporcionalidade, deixando a decisão para o juiz no caso
concreto. No entanto, a nova redação do art. 157 do CPP, trazida pela Lei 11.690/2008, acolhe
respectivamente a regra de exclusão, a teoria dos frutos da árvore envenenada e a teoria da
fonte independente. Desse modo a prova ilícita895 deve ser desentranhada, bem como aquelas
que delas derivem, podendo ser mantida a que não tenha nexo causal com a primeira, ou a que
pudesse ser produzida por fonte independente.
Os princípios e regras acima expostos impõem ao Estado o ônus absoluto de
assegurar o cumprimento das regas do jogo, ou fair play conforme a sporting theory of
justice, em que o juiz deve se portar como um fiscal do procedimento que se desenvolve entre
os adversários (adversarial system), sancionando as condutas praticadas em desacordo com as
normas sem, contudo, influir no resultado final896. Rosemiro Pereira Leal, no entanto, vai
afirmar que a supressão de licitude no ato de produção da prova acarreta a consideração de
sua inexistência. Não se trata de nulidade ou anulabilidade, pois uma prova ilícita "ressentiria
de aspecto teórico de sua configuração legal"897, caracterizando assim, na perspectiva
popperiana, um "resultado negativo" por se tratar de produção assistemática, vez que
desprovida de objetividade e, por conseguinte, de cientificidade. Sendo ela, no máximo, capaz
de gerar uma hipótese psicológica ou sentimento subjetivo de convicção que, por sua vez, são
irrelevantes do ponto de vista epistemológico898. No entanto, há que se ressaltar que no
Direito mesmo um vício de tal gravidade precisa ser declarado pelo órgão competente
legitimado juridicamente para tanto, pois tal declaração se define como sanção, sendo também
em si um ato jurídico sujeito à fiscalidade de todos os sujeitos processuais899.
O fato é que a busca da objetividade seria a única garantia contra os arroubos
arbitrários e personalistas, permitindo por meio de uma intersubjetividade empírica apontar
eventuais alterações axiológicas de conceitos pré-estabelecidos por parte do julgador, livrando
894
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p.
545-551.
895
A redação do dispositivo não faz qualquer distinção entre prova ilícita e ilegítima.
896
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.
2009. p. 108.
897
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012.p. 191.
898
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 48-49.
899
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no processo. Rio de Janeiro: Aide, 2000. p. 81.
229

os destinatários do direito legislado dos riscos de uma intersubjetividade transcendental, como


demonstra Carlos Cossio900. Essa intersubjetividade empírica pode auxiliar no desvelamento
das intenções daquele que profere um determinado discurso, o que se mostra de fundamental
relevância, pois podemos afirmar com Derrida que a mentira, em si, não existe. Mentir é um
ato intencional que não se realiza sem o outro, aquele a quem é dirigido um enunciado ou
série de enunciados (performativos ou constativos) sabidamente falsos, com o firme propósito
de enganá-lo901.
De todo modo, um desafio se coloca a partir do momento em que se reconhece que a
atividade probatória se desenvolve em meio à complexidade de um paradoxo temporal e que,
diante de toda a carga de subjetivismo pelo entrelaçamento de vozes intervenientes 902, surge a
necessidade de uma fiscalidade recíproca, evitando conclusões bizarras assim entendidas
como aquelas desprovidas de lógica903. O paradoxo temporal do processo foi assim exposto
por Aury Lopes Júnior:

[...] um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado
distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e
projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será
real, pois histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em
julgamento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena e, seu
presente, no futuro, será um constante reviver o passado. 904

Esse dado intrigante da realidade processual só reforça a necessidade de uma


abordagem pancrônica de todos os atos e acontecimentos que compõe a complexidade interna
do Processo Penal. Essa abordagem vai se valer dos métodos indutivo/dedutivo, sem se
dedicar a "elucubrações metafísicas ou indemonstráveis"905. Como demonstra Ferrajoli, no
Processo Penal são objeto de perquirição tanto questões fáticas (quaestio facti) quanto
questões jurídicas (quaestio juris). Aquelas são resolúveis por via indutiva e as estas por via
dedutiva906.
Esses são componentes inafastáveis do silogismo judicial, mas o que se pode
900
COSSIO, Carlos. Teoría de la verdad jurídica. Buenos Aires: Editorial Losada S. A., 1954.p. 246
901
DERRIDA, Jacques. A história da mentira: prolegômenos. Tradução de Jean Briant. Estudos Avançados, São
Paulo, v.10, n. 27, 1996. p. 9.
902
SOUSA, Humberto Leandro de Melo. Fundamentação, contraditório e polifonia: a sentença penal no estado
democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a
pesquisa jurídica no curso de doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 245;268
903
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 145.
904
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 517.
905
BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 63.
906
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002.p. 40.
230

considerar, pelas conjecturas de Rosemiro Pereira Leal, é que o verdadeiro objeto do instituto
da prova não é o fato articulado pela acusação ou pela defesa, mas "a produção da estrutura do
procedimento".Isto demonstra sua importância na formalização espácio-temporal dos autos
que são os "limites físico-hermenêuticos de ordenação cronológica", uma vez que o fato é tão
somente elemento de prova que se materializará nos autos pela articulação dos meios e
instrumentos de prova, por sua vez, disciplinados por lei e submetidos à irrestrita fiscalidade
dos sujeitos processuais, nenhum deles passivo, pois não podem ser privados de liberdade
procedimental907.
Do ponto de vista do protagonismo jurisdicêntrico908, o procedimento probatório se
desenvolve em quatro estágios: a busca, a admissão, o compartilhamento e a valoração da
prova, conforme se percebe, por exemplo, na doutrina de Paolo Tonini909. Rosemiro Pereira
Leal, contudo, faz uma distinção entre valoração e valorização da prova, que merece
apontamento:

A valoração da prova é, num primeiro ato, perceber a existência do elemento de


prova nos autos do procedimento. Num segundo ato, pela valorização, é mostrar o
conteúdo de importância do elemento de prova para a formação do convencimento e
o teor significativo de seus aspectos lógico-jurídicos de inequivocidade material e
formal. Assim, a sensorialização ou percepção dos elementos de prova não é
suficiente para o julgador decidir. É necessário que o observador se encaminhe para
a valorização da prova, comparando os diversos elementos de prova da estrutura
procedimental, numa escala gradativa de relevância, fixando sua convicção nos
pontos do texto probatício que a lei indicar como preferenciais a quaisquer outros
argumentos ou articulações produzidos pelas partes.

Essas questões, no entanto, dizem respeito à prova já buscada, admitida e


compartilhada. Há, desse modo, um encadeamento lógico e cronológico dessas atividades.
Com isso,uma primeira e importante questão se impõe, qual seja: quem pode e quem deve
buscar a prova.
Qualquer esforço teórico para se compreender o ônus da prova e suas implicações
deve, na atualidade, reconhecer de antemão que a prova, antes de constituir um encargo, é
direito fundamental decorrente da cláusula due process of law, na qual institui complexas
garantias processuais que visam assegurar plenamente tanto a verificação quanto a
refutação910, reconhecendo que não só o juiz, mas também as próprias partes, são destinatárias

907
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 189;192-193
908
As Ordenações Filipinas definiam a prova como o "farol do juiz". também a definem como: Instrumento pelo
qual se forma a convicção do juiz. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2002, p. 348; LEAL, 2012, p. 190).
909
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 123
910
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
231

da prova911.
Mas a terminologia, normalmente associada à questão da introdução da prova nos
autos, se refere a esta atividade como ônus912. É a incumbência atribuída àquele que
encaminhar a alegação. No entanto, na Teoria Geral do Processo o conceito de ônus nunca foi
dos mais pacificados. A incumbência legal à prática de determinado ato ou ao preenchimento
de determinada expectativa processual é vista por determinados autores como uma posição
passiva, enquanto outros a concebem como posição ativa:

Posições ativas ou favoráveis são aquelas preordenadas a realizar um interesse do


titular, enquanto as negativas ou desfavoráveis são aquelas que realizam o interesse
de outrem, em face do titular da posição jurídica. No primeiro caso, situam-se os
direitos, os poderes, e as faculdades. Entre as passivas: as obrigações, os deveres e
as sujeições.
Neste ponto, já se inicia a divergência quanto à natureza do ônus. Para Carnelutti, o
ônus é uma posição jurídica passiva e não uma posição ativa. Porém, o ônus seria
uma manifestação de liberdade, razão pela qual não há qualquer espécie de coerção
para sua observância ou realização. É justamente a presença deste lado ativo da
noção de ônus, consistente na faculdade do sujeito de executar o ato para obtenção
do resultado favorável, que mostra a contradição da classificação do ônus como
posição negativa.913

Logo se vê que na tentativa de apresentar um conceito de ônus da prova que supere a


concepção tradicional, Gustavo Henrique R. I. Badaró se enreda num paradoxo semântico que
é próprio de autores da escola instrumentalista. A partir do momento em que se concebe o
processo como relação jurídica entre sujeito ativo, sujeito passivo e juiz, o instrumentalismo
não consegue se desvencilhar da ideia de ônus como uma obrigação imposta à parte, mesmo
reconhecendo que não há um mecanismo de coerção direta sobre o seu comportamento no
processo. Não é possível afirmar de uma coisa algo e ao mesmo tempo o contrário.
Ontologicamente um instituto jurídico não pode ser concomitantemente um ônus e um
exercício de liberdade.
Na Teoria Geral do Processo aparecem algumas tentativas de ressemantização.
Goldschmidt rechaça a ideia de obrigações processuais. Afirma que a parte possui apenas
cargas:
A "obrigação" do demandado de cooperar com a litis contestatio, tem sido
substituída por "carga" de comparecer e contestar a demanda, a qual se impõe ao
demandado em seu próprio interesse. Muito menos incumbem obrigações ao
demandante, mas somente cargas, especialmente a de afirmar fatos e apresentar
provas. Por último, as partes não têm, tampouco, deveres de omissão. O dever de

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 105.
911
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
912
Conforme se lê no art. 156 do CPP, "a prova da alegação incumbirá a que a fizer.".
913
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.p. 169-
171.
232

não proferir afirmações sabidamente falsas é moral, mas não jurídico. (tradução
nossa)914

Em sentido parecido, Fazzalari também descarta a existência de obrigações de ordem


processual, mas reconhece que ao lado dos poderes e faculdades, à parte são atribuídos certos
deveres. O mais evidente deles é o de provar suas alegações. A parte pode ou não cumprir
com esse dever, mas fatalmente terá que experimentar uma situação prejudicial. A essa
consequência desfavorável, o autor denomina "ônus"915. A teoria fazzalariana é apontada por
Leonardo Augusto Marinho Marques como responsável por uma verdadeira revisão do
conceito de ônus processual:

O ônus processual deixa de ser, portanto, a faculdade que expressa a necessidade de


se praticar determinado ato para obter um resultado favorável ou para evitar uma
situação desvantajosa, e se transforma na conseqüência desfavorável a ser suportada,
pela parte, diante de uma omissão consciente e voluntária na realização de um ato
processual específico.
O importante é compreender que, no processo, nada mais se resolverá por
imposição. As partes exercem livremente suas opções e assumem conscientemente
as conseqüências de seus atos ou de suas omissões.916

É evidente o rompimento com Bülow também nesse particular aspecto da teoria do


processo, conforme conclui Aroldo Plínio Gonçalves:

Não há relação jurídica entre o juiz e a parte, ou ambas as partes, porque ele não
pode exigir delas qualquer conduta, ou a prática de qualquer ato, podendo, qualquer
das partes resolver suas faculdades, poderes e deveres em ônus, ao suportar as
conseqüências desfavoráveis que possam advir de sua omissão.917

Mas, a par de toda essa discussão de ordem conceitual subsiste uma preocupação
que, sobretudo no Processo Penal, tem reflexos imediatos e concretos sobre direitos
fundamentais. Diz respeito à distribuição dessas cargas, ônus ou deveres entre as partes. O
preceito básico de que o "ônus da prova cabe a quem alega" apresenta insuficiências que
precisam ser enfrentadas para que o instituto da prova seja submetido a uma releitura
democrática.

914
"La "obligación" de demandado de cooperar a la litis contestatio ha sido sustituída por la "carga" de
comparecer y contestar a la demanda, lacual se impone al demandado en su proprio interés. Mucho menos
incumbem obligaciones al demandante, sino solamente cargas, especialmente la de afirmar hechos y aportar
pruebas. Por último, las partes no tienen, tampoco, deberes de omisión. El deber de no proferir a sabien das
afirmaciones falsas es moral, pero no jurídico" (GOLDSCHMIDT, 1936b, p. 22).
915
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 499-500.
916
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Do julgamento do fato incerto na ação penal condenatória.
Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 2006. p. 47-48.
917
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 98-99.
233

Fala-se que, de início, cabe às partes cuidarem de exercer a atividade probatória do


modo mais eficiente possível para provar aquilo que for de seu interesse, até mesmo algo que
não tenha alegado. Este é o chamado ônus subjetivo. Havendo inércia, seria possível o juiz
agir de ofício para esclarecer dúvida relevante (clara opção inquisitória do art. 156 do CPP
brasileiro)918. Permanecendo dúvida relevante no momento da decisão, na impossibilidade
dogmática de pronunciar o non liquet, caberia ao juiz decidir qual das partes deve suportar de
modo mais intenso a consequência desfavorável. Essa derradeira distribuição de cargas vem
sendo chamada, de forma pouco técnica, de ônus objetivo. Para Gustavo Henrique R. I.
Badaró, o mais adequado seria chamá-la regra de julgamento, pois é atribuída ao juiz no
momento da decisão, sendo este o momento em que o critério de distribuição do ônus deve ser
explicitado. Um grande exemplo é a aplicação da regra in dubio pro reo919.
Nesse particular, chama atenção a legge nº 46 de 2006 que alterou o art. 533, comma
1, do CPP italiano920. A expressão acrescentada, apesar de sua imprecisão semântica, pois
fundada no princípio da razoabilidade, tenta estabelecer um standard probatório, um quantum
a partir do qual se considere a prova suficiente para a condenação, na medida em que o
acusado só restaria culpado quando a prova se consolidasse "além de uma dúvida
razoável"921. A prova razoavelmente dúbia é considerada prova falha, devendo o juiz aplicar
essa regra de julgamento e absolver o imputado. Paolo Tonini ressalta que esta "dúvida
razoável" deve ser uma dúvida lógica e não psicológica, pois deve se fundar em argumentos
lógicos de refutação922, conforme será demonstrado adiante.
De todo modo, essa atribuição de deveres probatórios vai depender do conteúdo da
alegação. Há certas alegações que sequer precisam ser provadas, tais como os fatos
axiomáticos ou intuitivos (que embriaguez ao volante é perigoso), fatos notórios (que 7 de
setembro é feriado), fatos inúteis (o que o réu comeu no almoço) e as presunções legais (nos
crimes sexuais, a vítima menor de 14 anos é considerada vulnerável)923. Também não é
possível atribuir ônus a quem alega um fato negativo. Já quem alega um fato extraordinário,
atrai para si a obrigação de provar, pois tal afirmação afastaria a presunção de verdade,

918
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.p. 178-
185.
919
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 240
920
Na redação original: Art. 533 (Condanna dell’imputato) - 1. Se l’imputato risulta colpevole del reato
contestatogli, il giudice pronuncia sentenza di condanna applicando la pena e l’eventuale misura di sicurezza.
921
Na redação atual: Art. 533 (Condanna dell’imputato) - 1. Il giudice pronuncia sentenza di condanna se
l'imputato risulta colpevole del reato contestatogli al di là di ogni ragionevole dubbio. Con la sentenza il giudice
applica la pena e le eventuali misure di sicurezza.
922
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 132.
923
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 568
234

presunção esta que poderia ser atribuída à afirmação de um fato ordinário924.


No Processo Penal, a regra geral é que o ônus da prova com relação aos fatos
afirmados na denúncia ou na queixa deve ser atribuído ao Ministério Público ou ao
Querelante. Ao réu bastaria refutar argumentativamente as provas apresentadas, apontando
suas fragilidades e inconsistências925. Na processualidade democrática, desde a modernidade,
são inadmissíveis o non liquet romano e a absolvição de instância. No primeiro sistema, à
ausência de prova se aplicava uma pena leve, colhendo um juramento do acusado sobre a
obscuridade do fato, com o juiz abstendo-se de julgar. No segundo caso, característico da
inquisitoriedade medieval, o processo era suspenso até que o acusado provasse a sua
inocência ou surgissem provas suficientes para sua condenação926.
Nem mesmo em casos extremamente excepcionais parece ser possível atribuir ao
acusado o dever da prova. Um exemplo é quando se alega um alibi (expressão latina que
significa "em outro lugar"). Nesse caso, mesmo que se tratasse de uma alegação genérica, sem
especificar detalhes e apresentar provas robustas, sendo suficiente para lançar dúvidas sobre o
fato constitutivo do direito alegado pelo acusador927, caberia sempre a este o dever de provar
de forma incontestável a autoria, sob pena de ter que suportar o ônus da absolvição do

924
MALATESTA, Nicola Flamarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. 6. ed. Tradução de Paolo
Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005. p. 132.
925
Não é o que se tem observado na práxis dos tribunais. Lamentavelmente, têm-se julgados envolvendo tráfico de
drogas, quando há alegação de que a droga portada pelo acusado se destinava ao uso pessoal, que acabam por
inverter o ônus da prova ao afirmar que, neste caso, caberia ao acusado produzir a prova de sua alegação. O
Ministério Público nestes casos ficaria isento de provar a destinação da droga. Somente a título de exemplo,
transcrevemos parecer da Procuradoria Geral de Justiça na Apelação Criminal nº 0099962-28.2012.8.13.0134
julgada em 19/03/2013 pela 6ª Câmara Criminal do TJMG, acolhido pelo Relator em seu voto, que foi seguido
pelos demais neste particular: "[...] Na oportunidade, cumpre ressaltar que um erro recorrente que vem sendo
cometido por alguns defensores e advogados é exigir a prova da finalidade mercantil da droga para a
configuração do tráfico. Segundo essa ótica, se houver dúvida se era para o comércio ou para uso próprio, os
magistrados deveriam optar pelo crime menos grave, que é o uso, valendo-se do in dubio pro reo.Ocorre que,
quanto à destinação da droga, é a defesa quem tem de provar o uso próprio e não o Ministério Público
demonstrar o fim de comércio. Isso porque dentre as condutas dos artigos 28 e 33 da Lei de Entorpecentes,
apenas a primeira, que diz respeito ao uso, contém um especial fim de agir.
[...]
Saliente-se que a nova lei de tóxicos manteve exatamente a mesma estrutura da anterior, no que diz respeito às
modalidades de dolo quanto aos crimes de uso e tráfico específico no primeiro e genérico no segundo caso.
[...]
Exigir a comprovação de uma modalidade de dolo específico inexistente no artigo 33 da nova Lei de Drogas
(destinação comercial da droga) é distinguir onde a lei não distingue e isso não é permitido. Dessa forma, ou a
Defesa prova que toda a droga seria destinada exclusivamente ao uso próprio dos acusados ou automaticamente
configurado estará o tráfico , não se podendo falar em aplicação do brocardo in dubio pro reo para permitir a
desclassificação para o delito de uso (artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006).Não se pode perder de vista que a prova
da mercancia faz-se não apenas de maneira direta, mas também por meio de indícios e presunções, os quais
devem ser analisados como todo e qualquer elemento de convicção. Isso porque, na maioria das vezes, a cautela
do infrator impede a obtenção da prova direta.
926
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Do julgamento do fato incerto na ação penal condenatória.
Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 2006. p. 272-273.
927
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.p. 339
235

imputado.
Diante da abertura normativa do art. 156 do CPP, outra questão de grande relevância
diz respeito à iniciativa probatória do juiz. A atuação de ofício e a discricionariedade do
magistrado são vistas com reserva em várias outras questões no Processo Penal (como no caso
das medidas cautelares)928, mas assume especial relevância no âmbito da gestão da prova, pois
um maior ativismo judicial neste ponto estratégico do Direito Processual Penal pode
comprometer toda a democraticidade do sistema. É o suficiente para, segundo Aury Lopes
Júnior, caracterizar o sistema brasileiro de neoinquisitorial929.
De todo modo, há uma tendência muito enraizada na doutrina de que o juiz é quem
deve ser convencido pela prova, significando que se trata do destinatário por excelência, razão
pela qual haveria para as partes um verdadeiro ônus de convencer o juiz. Conforme anota
Paolo Tonini, com as partes deixando de se desincumbir do dever de provar, seria atribuído ao
juiz o poder residual de até mesmo introduzir novos meios de prova no procedimento930.
Feita essa abordagem sobre aspectos gerais da Teoria da Prova, por mais que se
esforcem os doutrinadores, ainda persiste a concepção potestativa de jurisdição, na qual a
atividade jurisdicional, no fim das contas, é sempre vista como um poder, e não como dever
estatal. Essa perspectiva se reflete, sobretudo no âmbito da prova, como ela se define e como
se articula na procedimentalidade. Para Rosemiro Pereira Leal, essa articulação deve levar em
conta que a enunciação da prova se dá pelos princípios lógicos da (a) indiciariedade, que se
constata pelos “elementos integrativos da realidade objetiva no espaço”; (b) ideação, que se
define pela “apreensão dos elementos pelos meios de pensar no tempo” e (c) formalização,
que “significa a instrumentação da realidade pensada pela forma legal”931. Assim:

A existência do elemento de prova, ainda que de certeza inegável, não autoriza, por
si mesma, a coleta da prova contra legem. A liberdade de apreensão do elemento de
prova no espaço real há de sofrer controle dos meios legais indicados na lei para se
lavrar o instrumento de prova. Provar em direito é representar e demonstrar,

928
BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011. p. 4.
929
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 523.
930
“Come si è accennato, al giudice spetta il potere residuale di sollecitare le parti o, anche, di introdurre d'ufficio
mezzi di prova in determinate ipotesi previste dalla legge. In particolare, nel corso del dibattimento, terminata
l'acquisizione delle prove, il giudice “se risulta assolutamente necessario” può disporre anche d'ufficio
l'assunzione di nuovi mezzi di prova (art. 507)."“Como já salientado, o juiz tem o poder residual para instar as
partes ou, ainda, a apresentar provas de ofício, em certos casos previstos em lei. Em particular, durante a
instrução, concluída a aquisição de provas, o juiz “se resulta absolutamente necessário” pode dispor também de
ofício sobre a admissão de novos meios de prova (art. 507).” (TONINI, 2010, p. 131).
931
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 188.
236

instrumentando os elementos de prova pelos meios de prova. 932

Com o desenvolvimento desses temas, fica exposto o reducionismo do embate


dogmático entre as concepções arcaicas da acusatoriedade (ordálias) e inquisitoriedade
(provas tarifadas). Na pós-modernidade, o Processo Penal se depara com o desafio teórico de
lidar com conceitos de alta complexidade e que são fundamentais para a processualidade
democrática, tais como: evidência, ostensão, crença, presunção, expectativa, verdade, sistema
e a conectividade possível entre eles, o que foi empreendido magistralmente e com notável
êxito por Rui Cunha Martins933. Toda essa complexidade diz respeito à enunciação da prova e
qual a função que esta desempenha na perspectiva da processualidade democrática.

8.2 Acusatoriedade e inquisitoriedade como obstáculos epistemológicos

Quando se afirma o caráter dogmático do embate entre acusatoriedade e


inquisitoriedade, expresso por uma Teoria da Prova ainda aprisionada ao positivismo jurídico,
é necessário esclarecer que não se trata de negar estatuto científico à dogmática jurídica, pois,
como se constata do trabalho de Vera Regina Pereira de Andrade, há que se reconhecer a sua
"forma paradigmática de materialização", uma vez que, a despeito de suas especificidades,
pode ser concebida como "um paradigma científico peculiar que definido e compartilhado
pela comunidade jurídica configura, há mais de um século, o modelo "normal" de fazer
Ciência"934. Ocorre que a ciência jurídica, no âmbito democrático, não se configura pela
substituição de um dogma por outro, pois descabe aqui a dicotomia kuhneana entre "ciência
normal" (de caráter cumulativo) e "ciência extraordinária" (de caráter revolucionário). No
primeiro caso, tem-se o cientista voltado para a resolução de problemas imediatos (quebra-
cabeças), condicionado e constrangido por paradigmas que ele próprio estabeleceu, ao passo
que no segundo, pelo desgaste de um determinado paradigma, há um repúdio deste, que passa
a ser encarado como expressão de uma facção derrotada935.
Com tais considerações, o que se pretende é rechaçar os saltos irrefletidos em
matéria de ciência jurídica, pois o paradigma estabelecido pela e para a própria ciência

932
Nesta perspectiva pode-se exemplificar da seguinte forma: A lesão corporal é o elemento de prova, ao passo
que a perícia é o meio, que se formaliza pelo laudo que é instrumento de prova. (LEAL, 2012, p. 189).
933
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011.
934
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1996.p. 111.
935
KUHN, Thomas S.. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. 9. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. p. 210-211.
237

jurídica é o democrático, que, como tal, vai permitir que se faça a distinção entre ciência e
dogmática jurídica, possibilitando assim "esclarecer os conteúdos normativos do direito em
suas diversas acepções teóricas no curso da história da humanidade"936. Não parece ser o caso
de se instaurar uma "metadogmática", pois ainda assim não se trataria necessariamente de um
enquadramento epistemológico, como o que se pretende neste trabalho, mas possibilitaria
sempre conclusões em outros prismas como o técnico e o tecnológico, resultando em
ambiguidades teóricas que devem ser evitadas937.
Paradigma não adquire, aqui, o sentido de padrões ideologizados de comportamento
científico, ancorado em forte polissemia como ocorre na perspectiva de Thomas Kuhn938.
Neste trabalho, acolhe-se a expressão nos contornos traçados pela teoria Neoinsitucionalista
do Processo, como teoria crítica, conforme o teorométodo de Popper:

É importante o método empírico de demarcação em Popper, que é diacrônico


(historista como reflexivo das fases da história) e não, como em Kuhn, historicista
(submisso a cortes sincrônicos de momentos referencializantes e diretivos para os
homens). Em Kuhn não há interesse por uma reconstrutividade de um sistema social
pelo refutacionismo científico-evolucionário permanente gradual como se colhe em
Popper. A falseabilidade contra o senso comum e o senso comum do conhecimento
é, em Popper, condição edificativa de uma sociedade aberta pelo método crítico
(teorias falseabilizáveis) cujo critério de demarcação científica implica na exclusão
de medir conclusivamente (sincronicamente) os resultados da pesquisa científica e
ofertá-los de modo eventual (normal) ao poder intelectual e institucional quando
ditos imprescindíveis à ordem social dogmaticamente implantada e
operacionalizada.939

A epistemologia processual penal, diante de tudo o que foi desenvolvido até este
ponto, adquire características de rompimento com o conhecimento comum, em que o
dogmatismo aparece como "ciência morta" que serve de contraponto a uma "ciência nova" na
qual se torna possível romper com o positivismo, conforme demonstra Gaston Bachelard:

O simples facto do caracter indirecto das determinações do real científico já nos


coloca num reino epistemológico novo. Por exemplo, enquanto se tratava, num
espírito positivista, de determinar os pesos atómicos, a técnica - sem dúvida muito
precisa - da balança bastava. Mas, quando no século XX se separam e pesam os
isótopos, é necessária uma técnica indirecta. O espectroscópio de massa,
indispensável para esta técnica, fundamenta-se na ação dos campos eléctricos e
magnéticos. É um instrumento que podemos perfeitamente qualificar de indirecto se
o compararmos à balança. A ciência de Lavoisier que funda o positivismo da
balança, está em ligação contínua com os aspectos imediatos da experiência usual.
936
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 67.
937
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1996. p. 105-106.
938
SILVA FILHO, Alberico Alves da O discurso processual da ciência jurídica. In: LEAL, Rosemiro Pereira
(Coord.). Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso de doutorado em direito
processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. p. 30.
939
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 184.
238

Já não acontece o mesmo quando acrescentamos um electricismo ao materialismo.


Os fenómenos elétricos dos átomos estão escondidos. É preciso instrumentá-los
numa aparelhagem que não tem significação directa na vida comum.940

A atividade epistemológica, assim compreendida, instaura o primado da reflexão


discursiva sobre a percepção, sempre imediatista e por vezes enganosa, pois busca o conforto
do princípio da identidade, abstendo-se de novos questionamentos, conformando-se com o
senso comum do conhecimento (positivismo/ciência dogmática). A epistemologia vai
interrogar tanto os saberes racionalistas quanto empiristas. Assim, razão e experiência são
submetidas a questionamentos céticos, sobretudo pelo fato de que a percepção humana é
sempre impregnada de relatividade e o conhecimento sobre as qualidades dos objetos vai
sempre variar "de acordo com a condição daquele que as percebe ou com as condições sob as
quais elas são percebidas"941. Trata-se de um novo racionalismo que estabelece "uma estreita
união da experiência com a razão"942, pela qual teoria e aplicação se submetem a teste através
da verificação das condições em que se manifestam uma e outra.
Por essa perspectiva, há que ser superada a concepção de que o reconhecimento de
atribuições instrutórias ao juiz, por si só, afeta os direitos das partes. Antes, traduz uma
necessidade epistêmica do processo com vistas à realização do escopo de acertamento da
verdade, conforme afirmou Michele Taruffo943. A epistemologia processual penal, conforme
se pretende neste trabalho, não atua no reforço desta ou daquela posição dogmática, mas
radicaliza no sentido de que eventuais atividades instrutórias desenvolvidas pelo juiz são,
antes de tudo, expressão de sua competência legal, devendo assim ser compreendidas e
submetidas a arguições que só são possíveis pela metodologia do Devido Processo Legal,no
qual estão definidos "os atributos legalmente exigidos ou conferidos pela lei para legitimar a
atividade jurisdicional"944.
Uma epistemologia processual penal na pós-modernidade incorpora um aspecto
evolucionário, no qual as concepções teóricas e as construções técnicas mais arraigadas não
são simplesmente descartadas por incompatibilidade lógica, conforme preconizado por Kuhn,

940
BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Tradução de Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino
Oliveira. Lisboa: Edições 70, 2006. p. 18-19.
941
GRAYLING, Anthony Clifford. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002.p. 51.
942
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005. p. 76.
943
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
179.
944
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 114.
239

como condição indispensável para o surgimento de novas teorias945, numa perspectiva em que
os conteúdos que decorrem de paradigmas anteriores não podem ser reconhecidos como
inovadores e somente as revoluções científicas contribuem para a inovação. Já Popper não
descarta e esclarece o papel da dogmática na evolução do conhecimento:

Partindo do realismo científico é bem claro que, se nossas ações e reações fossem
mal ajustadas a nosso meio ambiente, não sobreviveríamos. Sendo a "crença"
estreitamente ligada à expectativa e à presteza em agir, podemos dizer que muitas de
nossas crenças mais práticas são provavelmente verdadeiras, enquanto
sobrevivermos. Tornam-se elas a parte mais dogmática do senso comum, que,
embora não seja de modo algum fidedigno, verdadeiro, ou certo, é sempre um bom
ponto de partida.946

É possível identificar o conhecimento geral, ou conhecimento de senso comum,


como obstáculo epistemológico e, desse modo, possibilitar que a cultura científica esteja "em
estado de mobilização permanente", possa "substituir o saber fechado e estático por um
conhecimento aberto e dinâmico" e, mediante a confrontação das diversas "variáveis
experimentais, dar, por último, à razão, razões para evoluir"947. A evolução, aqui, é resultante
do método crítico (científico), tem caráter gradual e se baseia na identificação e eliminação de
erros, tendo como base a constatação de que a mente humana não se constitui uma tabula rasa,
pois cada conhecimento mais evoluído se baseia em um conhecimento prévio. É possível
afirmar ainda que a principal meta evolutiva consiste em buscar o aumento da verossimilitude
dos enunciados científicos948.
No âmbito do Direito Processual Penal, uma epistemologia evolucionária
possibilitará demonstrar que certas tentativas de superação dos "obstáculos epistemológicos"
constituem, na verdade, tentativas de enquadramento das possíveis soluções dos impasses
dogmáticos em esquemas igualmente dependentes de uma forma espácio-temporal
pressuposta, de antemão conferida pela natureza das coisas, como tentativa de apresentar aos
céticos, respostas definitivas sobre a crise identificada pelo embate entre acusatoriedade e
inquisitoriedade. Por influência do kantismo, há uma busca constante por categorizações, o
que provoca novas imobilizações do pensamento científico. Como demonstra A. C. Grayling:

945
KUHN, Thomas S.. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. 9. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. p. 131.
946
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 73.
947
BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Tradução de Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino Oliveira.
Lisboa: Edições 70, 2006.p. 169
948
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 73.
240

Sobre os dados espácio-temporais que se apresentam a nossas mentes impomos as


categorias, isto é, os conceitos que tornam a experiência possível, conferindo a ela
seu caráter determinado. E aqui está o argumento de Kant: se o cético nos pede que
justifiquemos nossas pretensões de conhecimento, nós o fazemos traçando esses
fatos sobre o modo como a experiência se constitui.949

As categorias (qualidade, quantidade, modalidade e relação) são extraídas de um


princípio comum que se expressa pelas faculdades de julgar e pensar e se constituem como
conceitos do entendimento puro, cuja matéria é fornecida pela lógica transcendental, que, no
dizer do próprio Kant, será estruturada em conceitos que "têm de ser reconhecidos como
condições a priori da possibilidade da experiência (quer seja da intuição que nela se encontra,
quer do pensamento)"950. Todo o conhecimento científico se encontra de antemão inserido
arbitrariamente numa dessas categorias, o mesmo ocorrendo com todas as "intuições
sensíveis"951.
Se os entraves provocados pela categorização podem contribuir para a estagnação do
conhecimento científico, o empirismo imediato também pode levar a equívocos igualmente
nefastos. Bachelard distingue o empirismo imediato do mero sensualismo e afirma que o
primeiro já constitui um sistema de conhecimento, que serve para tirar o pensamento da
inércia, mas que se manifesta por uma "oscilação cheia de tropeços e de conflitos que acaba
em desarticulação"952. O embate dogmático do Processo Penal pode ser enquadrado como
exemplo dessa oscilação que, muitas vezes se apresenta como expressão, ainda no plano da
opinião (pré-científico), ou quase teológico953, contra o qual deve insurgir-se a atividade
científica:

A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se
absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por
motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de
direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em
conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los.
Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la.954

949
GRAYLING, Anthony Clifford. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 55.
950
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 151.
951
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 168
952
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005. p. 21.
953
DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a
colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005. p.xlii.
954
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005. p. 14.
241

Essa contundente afirmação de Bachelard demarca o plano científico e o distingue do


proselitismo procedimentalista, em que a "opinião pública" é encarada não como obstáculo
epistemológico a ser superado, mas como resultado da filtragem e da síntese de opiniões
particulares por filtros comunicacionais. Isso resultaria em uma "compreensibilidade geral"
das práticas cotidianas do mundo da vida, tudo mediante o emprego de uma linguagem
natural, renunciando-se à "linguagem de especialistas ou a códigos especiais". Nessa "esfera
pública", as tomadas de posição, pró ou contra determinado tema, adquirem status de "opinião
pública" quando passam a contar com o "amplo assentimento", como se lê em Habermas955.
Nada mais aparentemente democrático. Nada mais carente de demarcação científica.
Contudo, é possível conceber um Processo Penal demarcado cientificamente, o que
implicará em abandono das concepções arcaicas que exigem filiação irrestrita à
acusatoriedade (idealismo) ou à inquisitoriedade (realismo), pelo acolhimento da constatação
de Bachelard, de que uma ciência objetiva pressupõe a renúncia de posições intelectuais
arraigadas ora ao "sujeito" ora ao "objeto":

Sem essa renúncia explícita, sem esse despojamento da intuição, sem esse abandono
das imagens preferidas, a pesquisa objetiva não tarda a perder não só sua
fecundidade, mas o próprio vetor da descoberta, o ímpeto indutivo. Viver e reviver o
momento de objetividade, estar sempre no estado nascente de objetivação, é coisa
que exige um esforço constante de dessubjetivação. Alegria suprema de oscilar entre
a extroversão e a introversão, na mente liberada psicanaliticamente das duas
escravidões - a do sujeito e a do objeto! Uma descoberta objetiva é logo uma
retificação subjetiva. Se o objeto me instrui, ele me modifica. Do objeto, como
principal lucro, exijo uma modificação espiritual. Quando é bem realizada a
psicanálise do pragmatismo, quero saber para poder saber, nunca para utilizar.956

O eixo epistemológico, que permitirá essa dessubjetivação no plano do Direito


Processual Penal, por consequência de todo o desenvolvimento até aqui obtido, é o Devido
Processo Legal no paradigma da processualidade democrática pelos contornos da teoria
Neoinstitucionalista.

8.3 A epistemologia evolucionária e o enfrentamento dos dualismos dogmáticos

O que precisa ser esclarecido é que a superação dos dualismos paralisantes do


Direito, em especial aquele expressado pelo confronto e oscilação entre acusatoriedade e
inquisitoriedade, no curso histórico e nas mais diversas legislações, deve ocorrer no plano do

955
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92-94 v.2.
956
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005. p. 305.
242

conhecimento objetivo, que não se confunde, de modo algum, com o substancialismo ou o


realismo. Bachelard estabelece primorosa distinção entre estes conceitos:

A nosso ver, é preciso aceitar, para a epistemologia, o seguinte postulado: o objeto


não pode ser designado como um "objetivo" imediato; em outros termos, a marcha
para o objeto não é inicialmente objetiva. É preciso, pois, aceitar uma verdadeira
ruptura entre o conhecimento sensível e o conhecimento científico. Achamos ter
demonstrado, ao longo de nossas críticas, que as tendências normais do
conhecimento sensível, cheias como estão de pragmatismo e de realismo
imediatos,só determinam um falso ponto de partida, uma direção errônea. Em
especial, a adesão imediata a um objeto concreto,considerado como um bem,
utilizado como valor, envolve com muita força o ser sensível; é a satisfação íntima;
não é a evidência racional.957

A busca de um conceito de conhecimento objetivo é uma constante e pode ser


identificada em trabalhos tão díspares, de Locke a Pontes de Miranda. O primeiro desenvolve
todo um sistema de pensamento partindo da premissa de que nossas ideias são provenientes
das sensações e da reflexão produzidas pela experiência. As ideias são fruto da percepção dos
objetos pelos sentidos: "Recebemos, assim, as idéias de amarelo, branco, quente, frio, mole,
duro, amargo, doce e todas as ideias que denominamos qualidades sensíveis"958. Já o segundo,
em trabalho de grande importância epistemológica, se dedica a uma singular abordagem sobre
a teoria dos jetos, que decorre da eliminação dos prefixos nos termos sujeito e objeto:

Chamamos jeto a tudo que se apresenta, seja de ordem estritamente física, seja de
ordem psíquica, desde que considerado sem ser do lado de quem vê ou do outro
lado, isto é, eliminados os elementos que representam oposição entre eles, operação
que exprimimos pelo "por entre parênteses os prefixos de (su)jeito e de (ob)jeto".
(Empregamos após a eliminação dos prefixos o termo jeto, sem hífen, para exprimir
o que seria o fato após a eliminação dos prefixos; a operação de extração é humana,
sem o homem não haveria jetos e.g., se os homens, como os mamutes,
desaparecessem da face da Terra.)959

Temos que a busca do epistemólogo é o rompimento com o dualismo ou binarismo,


como deixa claro Popper ao desenvolver a teoria dos três mundos, superando a perspectiva de
interação cartesiana entre "corpo" e "alma", passando a investigar a interação sob um aspecto
mais amplo, ou seja, pluralista.
Em Popper o pluralismo decorre da interação mútua e recíproca entre o "Mundo 1",
que reúne os estados ou processos físicos, e o "Mundo 2", que reúne os estados ou processos
mentais. Dessa interação surge o "Mundo 3", composto pelos produtos da mente humana, que
957
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005. . p. 293-294.
958
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo: Nova
Cultural, 2001a. p.58.
959
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. 2. ed. Campinas:
Bookseller, 2005. p. 115-116.
243

são os argumentos, as teorias e a crítica. Essa interação se estrutura do seguinte modo:

Não é possível compreender o mundo 2, isto é, o mundo povoado pelos nossos


próprios estados mentais, sem que se entenda que a sua principal função é produzir
os objetos do mundo 3 e ser influenciado pelos objectos deste último. Como efeito, o
mundo 2 interage não só com o mundo 1 como Descartes pensava, mas também com
o mundo 3; e os objetos deste exercem influência sobre o mundo 1 apenas através do
mundo 2, que actua como intermediário.960

Esses objetos do "Mundo 3" é que vão formar o conhecimento objetivo que
possibilitará à ciência adquirir evolucionariedade, pois há "um efeito de retrocarga muito
importante de nossas criações sobre nós mesmos"961. O crescimento do conhecimento humano
vai ocorrer por meio de um processo de eliminação de erros, que se torna possível pela
"crítica racional sistemática", mediante um esquema estruturado, de modo que um primeiro
problema se submete a uma teoria experimental, que, por sua vez, é submetida ao processo de
eliminação de erros, resultando sempre em um segundo problema (P1 -> TT -> EE -> P2)962.
No campo das ciências sociais, seria exatamente esse confronto crítico entre as mais diversas
ideias e políticas o que possibilita o pluralismo de uma "Sociedade Aberta"963, em confronto
com o platonismo que, não obstante desenvolver uma concepção de "Mundo 3" o define como
algo divino, imutável e verdadeiro, apenas acessível à contemplação humana e não como
produto humano, conjectural, provisório, mutável e falseável por argumentos e teorias,
conforme descreve Popper964.
Na perspectiva de uma epistemologia evolucionária, contudo, não se trata de acolher
o relativismo científico, mas de buscar o confronto entre conjecturas, que se mostra possível a
partir do momento em que distingue os conceitos de verdade e de certeza965. Mas, como visto

960
POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto
Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996. p. 19.
961
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 120.
962
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 122.
963
GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e
contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Editora Unesp, 1988. p. 204; POPPER, Karl
Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
v.1.2.
964
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 124.
965
"O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais. É uma traição à razão e à humanidade. Suponho que o
relativismo na concepção da verdade de certos filósofos é uma consequência da confusão à volta das ideias de
verdade e de certeza; porque em relação à certeza, pode dizer-se que existem graduações de certeza e logo uma
maior ou menor precisão. A certeza é igualmente relativa no sentido de que está sempre dependente do que se
encontra em jogo. Creio, por conseguinte, que tem lugar aqui uma troca entre a verdade e a certeza; e, em muitos
casos, é mesmo possível demonstrá-lo. Tudo isto se reveste da maior importância para a jurisprudência e a
prática jurídica, como o demonstra a fórmula "na dúvida pró réu" e a ideia do tribunal de jurados. O que é pedido
aos jurados é que julguem se o caso que lhes é apresentado é um caso duvidoso ou não. Quem já tiver sido
244

no capítulo anterior, no Direito Processual Penal há uma evidente fuga para heterotopias
discursivas que pouco têm contribuído para que se compreenda a exata dimensão da
processualidade democrática e seus reflexos cotidianos. Tais posicionamentos, propostas ou
conjecturas resultam em diversionismo e perpetuam os entraves epistemológicos provocados
pela contraposição entre acusatoriedade e inquisitoriedade.

8.4 O devir processual penal como interenunciatividade democrática

A teoria Neoinstitucionalista do Processo se firma com o propósito de construir uma


sociedade democrática como contraponto a uma sociedade civil pressuposta,na qual o
referente hermenêutico é o Estado-juiz empenhado em eternizar a "dominação legítima (lex
íntima)" exercida por "detentores de poderes indesafiáveis (tríplice aliança: legislativo,
executivo e judiciário) por um pacto histórico (substratos ideológicos) de "puros" sentidos de
formas de vida"966. O marco hermenêutico Neoinstitucionalista não é o dos modelos
liberalizante ou comunitarista, iguais em suas diferenças 967, pois ambos calcados na figura da
autorictas, e sim de uma hermenêutica auto-inclusiva dos destinatários normativos como
legitimados ao processo em todos os níveis de produção, atuação, aplicação e extinção de
direitos968.
A teoria Neoinstitucionalista, ao definir o processo como instituição, apresenta certa
biunivocidade, uma vez que o termo instituição pode ser entendido como a atuação dos
conteúdos discursivos no plano instituinte da lei e da própria constituição, bem como a
conjunção de princípios e institutos jurídicos com afinidades conteudísticas. Mas sua grande
virtude é submeter a atividade jurisdicional ao crivo desta principiologia institutiva
fornecendo à pesquisa jurídica uma nova vertente que acaba por possibilitar o enfrentamento
dos dogmas e doxas, verificados no debate entre aqueles que defendem maior ou menor
ativismo judicial no processo penal.

jurado compreenderá que a verdade é algo de objectivo, e a certeza algo de subjectivo. Isto manifesta-se com
extrema clareza na situação do tribunal de jurados. Quando os jurados chegam a acordo - a uma "convenção" -,
esta é designada por "veredicto". A convenção está muito longe de ser arbitrária. É dever de todo o jurado
procurar descobrir a verdade objectiva em toda a consciência. Mas ao mesmo tempo, deve ter consciência da sua
falibilidade, da sua incerteza. E no caso de uma dúvida razoável no apuramento da verdade deverá pronunciar-se
a favor do réu. É uma tarefa difícil e de grande responsabilidade, e vemos aqui claramente que a passagem da
busca da verdade para um veredicto formulado verbalmente constitui o objecto de uma decisão, de uma
sentença. E o mesmo se passa com a ciência." (POPPER, 2006, p.8).
966
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 62.
967
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Cláudia Martinelli Gama e Mauro
Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 9 9 8 . p. 233.
968
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 59.
245

Na atualidade dos estudos jurídicos, a superação do esquema sujeito-objeto tornou-se


uma busca que envolve juristas das mais variadas matizes, os quais enxergam em tal esquema
a fonte justificadora de práticas interpretativas de viés autoritário que não se coadunam com o
Estado Democrático de Direito, constituindo óbice à superação das concepções liberal e
social. A teoria Neoinstitucionalista erige o processo ao status de interpretante lingüístico, que
permite a testificação do discurso encaminhado pelas partes e pelo julgador, em plenas
condições de igualdade, por uma hermenêutica isomênica. Não é o discurso que legitima uma
decisão, mas sim a possibilidade de arguição plena dos fundamentos deste discurso, pois ele
sempre apresenta a possibilidade de encaminhar concepções autoritárias incompatíveis com o
Estado Democrático de Direito.
O simples fato de acolhermos na contemporaneidade a filosofia da linguagem não
assegura o atendimento e a observância dos direitos fundamentais. É preciso esclarecer que
linguagem é essa. Tal esclarecimento, segundo a compreensão extraída do presente trabalho,
passa pelo medium linguístico denominado Processo, pelo qual será possível a construção e
reconstrução do sistema jurídico, como na metáfora de Neurath (economista de forte
tendência marxista, integrante do círculo de Viena)969: um barco que é continuamente
consertado e reconstruído à medida que se vai navegando, ainda que o barco esteja flutuando
aparentemente bem.
Nessa perspectiva, se instaura juridicamente, pelos princípios processuais fundantes,
a possibilidade do povo, em sua legitimação processual ampla, escapar do dilema posto pelo
dualismo dogmático acusatoriedade/inquisitoriedade, que vai decorrer de outros como:
idealismo/realismo, agir comunicativo/agir estratégico ou indeterminismo/determinismo.
Conforme Popper, superar essas dicotomias é a marca da liberdade e da criatividade humanas,
afinal, estamos entre "nuvens e relógios", as nuvens têm sempre algo de relógios e vice-versa:

[...] é insatisfatório encarar o mundo como um sistema físico fechado - seja um


sistema estritamente determinado ou um sistema em que tudo o que não é
determinado estritamente é simplesmente devido ao acaso: em tal concepção do
mundo, a criatividade humana e a liberdade humana só podem ser ilusões. A
tentativa de fazer uso da indeterminação teórica do quantum é insatisfatória, porque
leva ao acaso em vez de à liberdade e a decisões instantâneas.
Ofereci aqui, portanto, uma visão diferente do mundo - uma visão em que o mundo
físico é um sistema aberto. Isto é compatível com a visão da evolução da vida como
um processo de experiências e eliminação de erros; e permite que compreendamos
racionalmente, ainda que longe de plenamente, a emersão de novidades biológicas e
o crescimento do conhecimento humano e da liberdade humana. 970

969
GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e
contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Editora Unesp, 1988. p. 190.
970
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 233.
246

Com essa abertura, é possível superar as pretensões acusatórias ou inquisitórias de se


estabelecerem como sistemas legislativos ou teóricos, a buscar cada um o monopólio das
soluções para o Processo Penal. O que se conclui é que acusatoriedade e inquisitoriedade não
mais podem ser reconhecidos como sistemas. No entanto, como princípios informativos do
Processo não são descartáveis e devem ser expostos à testificação incessante, pelo devir
teórico de um Processo Penal democrático:

Portanto, o devir processual democrático (DEVIDO PROCESSO) não é um vir-a-


ser pelo já ser (o passado irreflexo), porém se enuncia como construtivo de um ser
(existência jurídica) teoricamente corroborado (constitucionalizado) e operativo de
direitos fundamentais líquidos, certos e exigíveis, desde o nível constituinte da
produção normativa. 971

O Direito Processual Penal democrático,mais do que intersubjetividade, assegura a


interenunciatividade972, em que todos os sujeitos jurídicos envolvidos, antes de serem
detentores de poderes no âmbito procedimental, se relacionam no plano da atribuição de
competências pela legislação (Código de Processo Penal e leis esparsas) que formam um
arcabouço amplamente criticável juntamente com as questões de fato. Essa crítica incessante é
possibilitada pelos conteúdos heurísticos decorrentes da principiologia constitucional,
cientificamente demarcada por uma epistemologia quadripartite e evolucionária (teoria
Neoinstitucionalista).
Em termos científicos, há uma especial relevância na relação entre o instituto jurídico
da prova, a concepção de enunciado e sua função sistemática. Tendo Popper como ponto de
partida, é possível conceber a atividade científica como a atividade de desenvolver
enunciados, ou sistemas de enunciados, que sob a forma de hipóteses973 podem ser
submetidos à testificação intersubjetiva, na medida em que permitem, diante de um problema,
separar seus aspectos lógicos e metodológicos dos aspectos estritamente psicológicos:

Precisamos distinguir de uma parte, nossas experiências subjetivas ou nosso

971
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 593.
972
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 164
973
Sobre o raciocínio hipotético, deve-se anotar que possui uma carga maior de incerteza, sendo a fórmula da
conjectura. O raciocínio lógico tem uma estrutura triádica composta por caso, regra e resultado, que conforme a
posição que ocupam caracterizam dedução, indução ou hipótese. Ex. Dedução: "os feijões desta sacola são
brancos" (regra); "estes feijões são desta sacola" (caso); "estes feijões são brancos" (resultado). Indução: "estes
feijões são desta sacola" (caso); "estes feijões são brancos" (resultado); "os feijões desta sacola são brancos"
(regra). Hipótese: "os feijões desta sacola são brancos" (regra); "estes feijões são brancos" (resultado); "estes
feijões são desta sacola" (caso). (PEIRCE, 2008, p. 172).
247

sentimento de convicção, que jamais podem justificar qualquer enunciado (embora


possam tornar-se objeto de investigação psicológica), e, de outra parte, as relações
lógicas objetivas, que se manifestam entre os vários sistemas de enunciados
científicos e dentro de cada um deles.
[...]
Ora, eu sustento que as teorias científicas nunca são inteiramente justificáveis ou
verificáveis, mas que, não obstante são suscetíveis de serem postas a prova. Direi,
conseqüentemente, que a objetividade dos enunciados científicos reside na
circunstância de eles poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste.974

As conjecturas acima lançadas dizem respeito à lógica da pesquisa como um todo e,


por tal razão, não podem ser descartadas em um trabalho sobre Direito Processual Penal se a
intenção for o esclarecimento de seus contornos teóricos, não apenas a sua verificação ou
justificação. A aproximação entre lógica e processo é reconhecida por processualistas de
variadas matizes975. O que se discute, contudo, é a tipologia da lógica processual.
Dessa afirmativa decorre uma necessária abordagem sobre como definir o enunciado
que, não obstante ser algo distinto da sentença e da proposição, está presente nas formas
lógicas que sustentam o conhecimento humano nos campos da sintática, da semântica e da
pragmática976. Essa distinção também é estabelecida por Michel Foucault. Em sua concepção,
o enunciado é elemento componente do discurso e as frases (sentenças), proposições ou
speach acts, são apenas as plataformas em que o enunciado vai exercer sua função:

Não é preciso procurar no enunciado uma unidade longa ou breve, forte ou


debilmente estruturada, mas tomada como as outras em um nexo lógico, gramatical
ou locutório. Mais que um elemento entre outros, mais que um recorte demarcável
em um certo nível de análise, trata-se, antes, de uma função que se exerce
verticalmente, em relação às diversas unidades, e que permite dizer, a propósito de
uma série de signos, se elas estão aí presentes ou não. O enunciado não é, pois, uma
estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando
assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência
que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em
seguida, pela análise ou pela intuição, se eles "fazem sentido" ou não, segundo que
regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se
encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). 977

A função enunciativa se caracteriza por uma oferta dos conteúdos linguísticos à


testificação, pois o que vai lhes assegurar o status enunciativo é a possibilidade de serem

974
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 45-46.
975
CARNELUTTI. A Prova Civil. p. 17; MALATESTA. A Lógica das Provas em Matéria Criminal. p. 30;
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 36 et
seq.
976
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 113-114.
977
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008a. p. 98.
248

julgados conforme sua verdade ou falsidade978. Isso implica ressaltar seu caráter relacional
com o referente do discurso e com outros enunciados, para que possa cumprir outra de suas
funções mais destacadas que é a persuasão de um auditório979 ou qualquer outro destinatário
de seu proferimento. "A noção de auditório é central na retórica. Pois um discurso só pode ser
eficaz se é adaptado ao auditório que se quer convencer ou persuadir", constata Perelman 980.
A enunciação do discurso seria considerada eficaz se cumprisse o seu papel que era o de
perpetuar a dominação.
Uma taxonomia dos enunciados é apresentada por Popper e contribui para que se
possa, no Direito, tentar identificar que espécie de enunciados vai constituir as proposições e
prescrições jurídicas, além dos proferimentos de outra ordem que vão influir na sequência
procedimental, bem como na tomada de decisão, e que se constituem instrumentos de prova
tais como uma confissão, um depoimento testemunhal ou um laudo técnico-pericial.
Popper distingue de início duas espécies de enunciados: (a) os enunciados universais
e (b) os enunciados singulares. Os primeiros descrevem as leis causais da natureza que se
aplicam em toda e qualquer circunstância. Os segundos descrevem eventos específicos e
decorrem da conjunção entre os primeiros e algumas condições verificadas no evento. O
princípio da causalidade, do qual decorrem os enunciados universais, para Popper, não possui
interesse científico, pois quando se faz sobre ele um juízo analítico, isto resulta em tautologia
(um determinado fenômeno sempre ocorre da mesma forma em qualquer circunstância.
Exemplo: um fio de determinada espessura que se rompe com um peso de um quilo sempre se
romperá quando um objeto com peso igual ou superior a um quilo nele for pendurado).
Quando o juízo for sintético (Exemplo: quando se afirma que um evento específico sempre
traduz uma regularidade universal) ele não é falseável o que, em Popper, é critério de
demarcação científica. O princípio da causalidade é então metafísico981.
O interesse científico vai se ocupar, contudo, dos enunciados singulares. Popper
equipara a estes os enunciados "numericamente universais" que vão se distinguir dos
enunciados "estritamente universais", na medida em que apresentam conteúdos com
pretensões de verdade que podem ser falseáveis, pois se referem a uma classe específica de

978
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 41; MÁYNEZ, Eduardo García. Logica del juicio juridico. Mexico:
Fondo de Cultura Económica, 1955. p. 58.
979
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 240.
980
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 143.
981
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 62-63.
249

elementos no espaço e no tempo (os habitantes de uma cidade, os artigos de uma


Constituição, os depoimentos tomados em um procedimento judicial e tudo o mais que puder
ser numericamente definido)982. Popper apresenta ainda outra categoria: os enunciados
existenciais.
Enquanto os enunciados universais são chamados de "enunciados-todos", pois
podem ser confirmados em todo tempo e lugar, os enunciados existenciais são chamados de
"enunciados-há", e assim, como os primeiros, sua verificação não se restringe a determinadas
circunstâncias espaço-temporais como, por exemplo, o enunciado "há corvos brancos",
negação do enunciado universal "todos os corvos são negros". Estes enunciados também não
podem ser falseáveis cientificamente, justamente porque "não se referem a uma região
individual, limitada, espaço-temporal"983.
Com base nessas concepções sobre os enunciados, isolando como falseáveis,
portanto, científicos, os enunciados singulares, Popper vai esboçar uma teoria dos sistemas
teóricos os quais se distinguem entre duas espécies: os sistemas axiomáticos e os de equação.
Nos primeiros, os enunciados são apontados como axiomas (pressupostos, postulados ou
proposições primitivas) sobre os quais se estruturam os sistemas. Um sistema axiomatizado é
um sistema fechado (que permite identificar de forma evidente a mutação ou revisão pois um
novo pressuposto é logo notado em face da rigidez do sistema). O sistema de equação vai
admitir incógnitas ou variáveis e, por essa razão, admite combinações de valores, mas não
implica que seja admitida toda e qualquer combinação de toda e qualquer valência, apenas das
classes admitidas pelo sistema984. Seja qual for o sistema, um enunciado universal jamais
poderá ser extraído conclusivamente de enunciados singulares, mas estes últimos terão
sempre a capacidade de contraditar e apontar os erros dos primeiros985.
Assim, um enunciado do tipo: A Constituição da República Federativa do Brasil
dispõe em seu art. 5º, inciso LVI que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por
meios e ilícitos", é um enunciado singular, pois permite uma verificação cronotópica 986 de
seus conteúdos de verdade e validade pelas possibilidades discursivas que se descortinam:

982
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 68.
983
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 73.
984
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 74 a 76.
985
GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e
contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Editora Unesp, 1988. p. 203.
986
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959.p. 64.
250

(a) Analiticamente, pode ser considerado um componente da Constituição, mas


também pode ser decomposto na medida em que em sua estrutura estão outros enunciados
como "processo", "provas", "ilícitos" e, assim, sucessivamente, até se atingir cada signo
linguístico empregado, como se procede no atomismo lógico987.
(b) Sinteticamente, a verificação da verdade empírica de tal enunciado ocorrerá a
partir da relação que se estabelece com o referente, que, por sua vez, "forma o lugar, a
condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos,
dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado."988.
A perspectiva analítica de um enunciado leva em conta os significados de seus
termos com pretensões de conduzir a juízos de verdade ou falsidade pelas próprias palavras
que contém, ou seja,a priori. Já a perspectiva sintética se distingue pelo fato de submeter o
enunciado a uma verificação empírica. Assim, sua verdade é sempre atestada a posteriori pelo
confronto com o referencial do mundo circundante989. A verificação analítica ocorre por
dedução e a verificação sintética por indução ou hipótese990. O enunciado jurídico acolhe esta
segunda configuração, mas o seu referencial será sempre um referencial jurídico, que, por sua
vez, também poderá ser verificado e depois submetido a teste (refutação), num processo
incessante de eliminação de erros que não oferece nenhuma resposta definitiva, pois sempre
surgem "novas pressões, novos problemas, novos desafios"991.
Já se falou que a prova em Direito tem como objeto a estruturação do
procedimento992. Importa também definir quem é o "sujeito" da prova numa perspectiva
democrática. A função dessubjetivante do enunciado, como abordado acima, vai contribuir
para a tentativa de superação da concepção positivista de que o Direito, em razão da natureza
coexistencial da experiência humana, se reduz a um sistema de interferências intersubjetivas
baseadas em impedimentos e permissões993. Não há mais sujeito que detenha o monopólio do
sentido que se pode extrair da prova, pois o Processo é instituição que atua exatamente para

987
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 133.
988
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008a. p. 103.
989
SEARLE, John R... Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.).
Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 3.
990
PEIRCE, Charles Sanders. Ilustrações da lógica da ciência. Tradução de Renato Rodrigues Kinouchi.
Aparecida: Idéias e Letras, 2008. p. 172.
991
POPPER, Karl Raimund. A lógica das ciências sociais. Tradução de Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho;
Estevão de Rezende Martins e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.
p. 53-54.
992
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 189.
993
COSSIO, Carlos. Teoría de la verdad jurídica. Buenos Aires: Editorial Losada S. A., 1954.p. 80.
251

reduzir o grau de arbitrariedade no sistema jurídico, uma vez que "a discursividade no espaço
processual possibilita que o direito democrático no nível instituinte e instituído não fique na
esfera da subjetividade, da realidade nua (ideologizada) ou na "comunidade prévia de
sentido""994. Instaura-se, desse modo, um primado do sistema (instituição) sobre o sujeito da
enunciação, como evidenciado por Dominique Maingueneau:

Esta instância de subjetividade enunciativa possui duas faces: por um lado ela
constitui o sujeito em sujeito de seu discurso, por outro, ela o assujeita. Se ela
submete o enunciador a suas regras, ela igualmente o legitima, atribuindo-lhe a
autoridade vinculada institucionalmente a este lugar. Uma tal concepção opõe-se a
qualquer concepção "retórica": aquela que coloca dois indivíduos face a face e lhes
propõe um repertório de "atitudes", de "estratégias" destinadas a atingir esta ou
aquela finalidade consciente.995

Não deixa de ser pertinente a preocupação com a possibilidade do juiz atuar de ofício
na aquisição e na admissão da prova, pois, nesse caso, se posiciona ao mesmo tempo como
enunciador e destinatário, exercendo atividade decisória sem constrangimento institucional.
Como observa Michele Taruffo, os "poderes" instrutórios do juiz devem mesmo ser limitados,
ao contrário do historiador ou do cientista, que em suas pesquisas não possuem quaisquer
amarras. É que o juiz não é o único interessado na prova, e as partes devem ser resguardadas
das interferências que podem advir de suas opções ideológicas996, num plano discursivo em
que a linguagem é concebida como meio universal que resulta sempre em interpretações fixas
por uma semântica inefável e inacessível, ao passo que no processo o mais adequado seria
apostar numa linguagem como cálculo, que se expõe aos destinatários pela forma decifrável e
acessível da sintaxe997.
Por essa razão, é temerário que o livre convencimento do juiz se desenvolva num
plano livre de controle normativo (juez-dictador)998. Além da estrita observância às normas
processuais, esse livre convencimento há que ser motivado racionalmente conforme os
"cânones da lógica" e os elementos resultantes da atividade processual, estando sempre sujeito
à impugnação em caso de inconformismo de qualquer dos interessados (tradução nossa)999.

994
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012. p. 74.
995
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda Indursky. 3.
ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. p. 33.
996
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
72.
997
CRUZ, Ronald Taveira. Frege e Chomsky: linguagem como cálculo ou linguagem como meio universal?
Revista Virtual de Estudos da Linguagem, v. 5, n. 8, mar., 2007. p. 6;15.
998
ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto. Cuestiones de terminologia procesal. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 1972.p. 205
999
“Da tale griglia legale si desume che il convincimento del giudice deve consistere in una valutazione razionale
252

É possível, então, concluir que o Processo estruturado em bases neoinstitucionalistas


vai proporcionar o primado do discurso sobre o sujeito da enunciação, instaurando a
possibilidade de uma hermenêutica isomênica por uma "metalinguagem auto-crítico jurídica
pela principiologia do contraditório, ampla defesa e isonomia para correlativamente
identificar e enunciar vida, liberdade, dignidade-igualdade"1000. A lógica vai contribuir para a
dessubjetivar as decisões, pois já foi possível demonstrar que a lógica clássica pode apresentar
variantes ou alternativas à semântica bivalente e dicotômica, que se restringe a aferir a
verdade ou falsidade de um enunciado. São as chamadas lógicas polivalentes1001 que, em certo
sentido, vão possibilitar o percurso proposto por Rui Cunha Martins, para a obtenção da
convicção, como forma de curto-circuitar os "circuitos crentes":

ao invés de um processo linear estendendo-se ao longo de dois pólos, a convicção


corresponde a um processo de sucessivas tangências e sobreposições, complexo e
denso, no âmbito do qual os diferentes componentes do percurso se inter-relacionam
e se convocam mutuamente, contaminando a respectiva posição, o respectivo
sentido e os respectivos efeitos. À imagem de um trajecto operando em sucessivas
etapas, cada uma delas correspondendo a um estádio epistémico que, partindo da
crença e passando pela dúvida, alcançaria sucessivamente o assentimento, a
confiança, a aceitação e a própria convicção, para depois se prolongar na decisão e,
por fim, na justificação, ambas situadas nesta perspectiva, nos antípodas da crença
originária, convirá contrapor a imagem de um circuito em que cada um destes
estádios se disponibiliza a interagir e a contaminar os restantes - curto-circuitando,
justamente a demarcação ideal entre eles. 1002

Com as conjecturas lançadas nesta pesquisa, parece ter sido possível apresentar uma
alternativa para o simplismo reducionista da estrutura lógica da prova em que a confirmação
se procede por modus ponens e a refutação por modus tollens1003, mediante um raciocínio
indutivo, com base em generalizações e máximas de experiência a fim de obter a
confiabilidade subjetiva do juiz1004, permitindo restrições de liberdade por "indício suficiente

delle prove e in una ricostruzione del fatto conforme ai canoni della logica ed aderente alle risultanze
processuali. Di fronte alla motivazione che sia carrente di tali requisiti le parti possono proporre impugnazione
(appello e ricorso per cassazione).” “Desta grade legal resulta que a convicção do juiz deve consistir em uma
avaliação racional das provas e em uma reconstrução do fato em conformidade com os cânones da lógica e
aderente aos resultados processuais. Confrontadas com a motivação que decorrem de ambos os requisitos as
partes podem recorrer (apelação e recurso para cassação)” (tradução nossa) (TONINI, 2010, p. 127).
1000
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 178
1001
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 269.
1002
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011.p. 25
1003
Sobre o modus ponens foi feita referência no primeiro capítulo. Trata-se da confirmação da verdade da
conclusão pela constatação da verdade das premissas. O modus tollens se caracteriza pelo falseamento das
premissas a partir do falseamento da conclusão. (POPPER, 1974a, p. 80).
1004
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 116.
253

de autoria"1005 ou juízos construídos sobre as bases movediças da verossimilhança1006.


O fato é que o sistema processual, como organon da refutação, vai operar na
testificação das afirmações da evidência, seja por indução na matéria de fato, seja por dedução
na matéria de direito ou por hipótese, cujo maior triunfo, segundo Peirce, é apontar os desvios
de uma afirmação1007. De qualquer modo, no Estado Democrático de Direito qualquer espécie
de conclusão deverá se submeter a uma refutação gradual, evolucionária e
problematizante1008, levando-se em consideração a solução de Popper, segundo a qual a base
empírica da ciência é formada por enunciados singulares (básicos) que servem "como
premissas de inferências falseadoras", que ao mesmo tempo leva a constatar que "enunciados
só podem ser logicamente justificados por enunciados"1009. A partir dessa perspectiva, pode-
se afirmar que a relação interenunciativa é que permitirá a separação dos aspectos
psicológicos dos aspectos lógicos e metodológicos de uma decisão, proposição ou prescrição
jurídica, com inegável ganho de objetividade e democraticidade.
Esta base argumentativa contribui para o enfrentamento do debate dogmático que se
estabeleceu no curso histórico do Processo Penal e que, ainda hoje, constitui entrave a ser
superado pela ciência jurídica. Uma tarefa que, conforme demonstrado, parece ser possível
pela epistemologia evolucionária e pela interenunciativade processual possibilitada por uma
hermenêutica isomênica, conforme desenvolvido pela teoria Neoinstitucionalista do Processo.

1005
Ex. art. 312 do CPP brasileiro, que versa sobre a Prisão Preventiva e art. 273 do CPP italiano que dispõe sobre
a custodia cautelariin carcere, que autoriza a medida cautelar quando há grave indício de culpabilidade.
1006
GASTAL, Alexandre Fernandes. A suficiência do juízo de verossimilhança para a decisão das questões
fáticas. 2006. 192 f. Tese (Doutorado em Direito Processual) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Programa de Pós-Graduação em Direito, Porto Alegre. p. 123.
1007
PEIRCE, Charles Sanders. Ilustrações da lógica da ciência. Tradução de Renato Rodrigues Kinouchi.
Aparecida: Idéias e Letras, 2008. p. 185.
1008
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 156
1009
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 44-45.
254

CONCLUSÃO

Após as incursões levadas a efeito no curso da presente pesquisa, é possível concluir


que o reconhecimento de uma dimensão científica para o Direito Processual Penalimplica em
afirmar a superação da crise dogmática provocada pela histórica contraposição entre os
princípios acusatório e inquisitório, que se constitui como considerável entrave para o
discurso jurídico no paradigma da processualidade democrática. Como visto, os mais diversos
contextos, em variados períodos históricos, foram influenciados por esse embate que resultou
em uma aplicação dicotômica e excludente da acusatoriedade ou da inquisitoriedade,
oscilando entre o autoritarismo estatal ou eclesiástico dos modelos inquisitoriais, para a
privatização dos conflitos penais nos ordenamentos de acusatoriedade plena.
No desenvolver da pesquisa, o esforço maior foi no sentido de explicitar os pontos
que permitem estabelecer uma relação epistemológica entre conteúdos díspares, mas que
contribuem para esclarecer a artificialidade da contraposição entre acusatoriedade e
inquisitoriedade. Não houve, contudo, qualquer esforço de conciliar ou compatibilizar essas
correntes que, conforme algumas abordagens, constituem-se como sistemas jurídicos. Neste
ponto, a expectativa é de que tenha ficado bem explicitado que tais conceitos são princípios
de Direito Processual Penal, que inspiram ou regem determinados ordenamentos, mas que não
apresentam os contornos definidores que poderiam alçá-los à condição de sistema. Como
princípios informativos, sua insuficiência teórica, para atender aos contornos do Processo
Penal democrático, fica explicitada.
Dessas conclusões primárias, espera-se ter sido possível estabelecer um novo tipo de
relação entre tais vertentes do Direito Processual Penal. Uma relação de inclusão ao
paradigma da processualidade democrática, por intermédio da teoria Neoinstitucionalista do
Processo de Rosemiro Pereira Leal, com sua epistemologia quadripartite e os aportes do
racionalismo crítico de Karl Popper. Por este marco teórico foi possível empreender uma
releitura de tais princípios, propugnando uma irrestrita fiscalidade dos conteúdos processuais,
por uma linguisticidade discursiva que permite a constante interrogação em torno das práticas
inquisitoriais ou acusatórias.
Talvez o principal mérito da pesquisa tenha sido a demonstração de que o próprio
princípio acusatório, isoladamente considerado, pode também assumir feições dogmáticas,
apresentando déficit de democraticidade, mesmo naqueles ordenamentos considerados como
de exemplar consolidação do princípio democrático por meio dos postulados do
constitucionalismo típico do segundo pós-guerra. Foram apontadas as fragilidades do
255

princípio acusatório de modo que a mera garantia de separação entre órgãos acusadores e
julgadores não significa que esteja assegurada a plena processualidade democrática.
Como demonstrado, o total afastamento do julgador da atividade probatória não
significa, por si só, o alcance de um patamar indiscutivelmente democrático. Pode tão
somente mascarar um tipo de autoritarismo ainda mais perverso que se verifica no âmbito da
persecução penal extrajudicial. Contraditoriamente, a acusatoriedade radical pode favorecer a
inquisitoriedade em esferas que mais facilmente podem se subtrair a qualquer espécie de
controle processual. Desse modo, há que se indagar se seria admissível no plano da validade
constitucional o acolhimento de uma inquisitoriedade voltada para assegurar as garantias
individuais, ou seja, a admissão de um inquisidor pro reo.
O que se assenta, contudo, é que tal dicotomia contribuiu para reduzir a dimensão
epistêmica do Processo Penal, de modo a se estabelecer como campo fértil para o advento de
abordagens que acabam por privilegiar mais a ideologia do que a ciência, com nefastos
reflexos sobre as estruturas legislativas ao longo dos séculos e nos mais diversos contextos
políticos. Não sendo possível ao indivíduo escapar da autoridade estatal, que institui um
sistema repressivo que se auto-legitima sob o manto retórico do “poder que emana do povo e
em seu nome será exercido”, o que se apresentou evidenciado pela pesquisa foi a premente
demanda por esclarecimento científico em torno das instituições jurídicas, notadamente o
Processo Penal.
Por suas peculiaridades e pelas consequências drásticas que o sistema penal pode
impor ao indivíduo, a inserção do Processo Penal como objeto de estudo da Teoria Geral do
Processo, sobretudo pelas demarcações já consolidadas pela teoria Neoinstitucionalista do
processo, inaugura uma promissora vertente de investigação científica. As abordagens que
permitem ressemantizar princípios jurídicos de primordial observância, tais como ampla
defesa, contraditório e isonomia, constituem importante abertura epistemológica que a
pesquisa procurou aproveitar para chegar às conclusões que permearam cada um de seus
capítulos.
Essa tomada de posição, talvez tenha ajudado a desmistificar teorias que
contribuíram para obscurecer a compreensão sobre o processo, transformando-o em uma
abstração ou em um instrumento apropriado, autoritária e dogmaticamente, por segmentos
estatais que se querem intérpretes privilegiados do Direito e portadores de um saber
inacessível para os demais interessados. A hermenêutica não pode constituir uma atividade
quase mística, mas, antes, deve se apresentar como direito igual de interpretação que permita
a todos compreender o que ocorre pela formalização de enunciados ofertados à crítica,
256

permitindo assim a testificação de seus conteúdos, intra ou extra-processualmente.


São os institutos e princípios jurídicos, articulados normativamente, por leis
instituídas democraticamente (devido processo legislativo), que asseguram o ganho
epistemológico proporcionado pela processualidade democrática. O dogmatismo decisionista
encontra, então, um forte oponente que o convoca para um embate não mais pautado pela
ideologia predominante em determinada quadra histórica (acusatoriedade versus
inquisitoriedade), mas pela admissão da falibilidade de todas as variáveis fáticas e jurídicas
que se apresentam, podendo cada qual das partes e julgadores envolvidos ter uma apreciação
do objeto congnoscível, livre de pré-compreensões e aberta aos conteúdos assentados pela
formalização dos autos, através da atuação de agentes públicos e privados no âmbito de
competências previamente demarcadas pela legislação processual.
O Processo Penal, compreendido como instituição constitucionalizada e
constitucionalizadora dos conteúdos que se apresentam como objeto de debate e
argumentação, também é estudado como medium linguístico, cuja função heurística se ergue
sobre as outras. Parafraseando Popper, o Processo Penal deixa de ser o organon da
confirmação de verdades pré-concebidas, para ser o organon da crítica recíproca aos
conteúdos fáticos e jurídicos invocados (ampla defesa). A pesquisa que se encerra veicula a
tese da interenunciatividade processual pela qual se supera a concepção da mera
intersubjetividade a estabelecer a crença pressuposta em um agir comunicativo de feições
ainda idealistas.
O Processo Penal, assim estudado, não é mais apenas judicium, o que permite
concluir pelo arcaísmo de um debate que só produza a prevalência ou declínio da
acusatoriedade ou da inquisitoriedade, pois não consegue se desvencilhar do dualismo
metafísico-transcendental que caracterizou tanto o jusnaturalismo quanto o juspositivismo.
Mas isso não significa acolher sem reservas as tendências pós-positivistas que se manifestam
também sob o rótulo de neo-constitucionalismo, pautadas pela tópica e pela retórica
apresentadas sob a marca da argumentação jurídica, que, no entanto, não conseguem ocultar
seu dogmatismo que se expressa pela busca da integridade, da decisão correta, da
razoabilidade ou da proporcionalidade, mas não se preocupa em assegurar a interpretação a
todos indistintamente, uma vez que, como ficou demonstrado, ainda se prendem
excessivamente ao decisionismo de um sujeito cognoscente fechado em si mesmo (solipsismo
decisório).
Mas o enfrentamento do dualismo metafísico que tanto entrave trouxe ao
desenvolvimento do Direito Processual Penal, não produz qualquer ganho evolucionário se
257

for feito pela adoção irrefletida de propostas que, além de heterodoxas sejam heterotópicas, ou
seja, dizem respeito a searas diversas como a antropologia, a sociologia e a ideologia. Tais
propostas aplicam arbitrariamente ao Direito Processual Penal conteúdos que não passam de
proselitismo, pois descuidam por completo dos contornos epistemológicos construídos pela
Teoria Geral do Processo no paradigma do constitucionalismo democrático, especialmente
aquele implantado no Brasil pela Constituição da República, promulgada em 1988.
A crítica encaminhada nesta pesquisa apresenta uma forte tendência ao ceticismo,
como forma de desestimular o estabelecimento de crenças e posturas que acabam por
reproduzir séculos de dogmatismo e ausência de preocupação com uma abertura
epistemológica que possa significar maior aderência do Direito Processual Penal à teoria da
democracia nos moldes apresentados por Popper: democracia como organização institucional
de incessante abertura à crítica científica que possa resultar em seu aprimoramento de modo a
evitar os danos causados pelas autocracias, tiranias ou autarquias.
A influência de tais concepções traz um alento para a pesquisa na medida em que o
leitor possa se decepcionar com a falta de uma solução definitiva para as fragilidades e
problemas que o Direito Processual Penal apresenta, tanto para aqueles que defendem uma
acusatoriedade radical quanto para os que clamam por mais inquisitoriedade, como forma de
assegurar maior efetividade, seja lá o que isso signifique. O acolhimento da Teoria
Neoinstitucionalista do Processo e do racionalismo crítico de Popper permite reduzir as
expectativas em torno de resultados que possam ser pretensiosamente apresentados como
portadores de verdades indiscutíveis, dogmaticamente estabelecidas.
A correlação entre concepção de interenunciatividade e a teoria da prova, com ênfase
na função heurística do Processo Penal, talvez contribua para que novas abordagens possam
surgir, talvez confrontando as linhas gerais desta argumentação com dispositivos específicos
que possam ser assim submetidos ao escrutínio epistemológico, de modo a evitar percepções
obscurecidas pela ideologia e pelo que Popper denomina psicologismo, ou seja, a tentativa de
reconstruir os caminhos pelos quais se chega a uma inspiração ou intuição. O Processo Penal
pode ser concebido, sim, como um método de prova que atua no sentido de testar as
inspirações e intuições que podem servir de embasamento a decisões, as quais, na maioria das
vezes, repercutem nas mais diversas interfaces do sistema jurídico.
Uma decisão qualquer no âmbito de qualquer Procedimento Penal, pelas graves
consequências que acarreta ao indivíduo e à estabilidade do sistema jurídico, deve ser sempre
entendida como um enunciado criticável que pode e deve ser submetido a testes severos que
envolvam aspectos linguísticos, lógicos e jurídicos de modo que os fatos objeto de apreciação
258

possam ser explicitados, percebidos e interpretados por todos os envolvidos direta ou


indiretamente na controvérsia. No paradigma do Estado Democrático de Direito, essa abertura
é uma oferta possível.
Nestas linhas conclusivas, há que ser ressaltado o fato de que o instrumentalismo
jurisdicêntrico foi responsável, no que tange à atividade repressiva ou penalística do Estado,
pela irracionalidade com que se busca encontrar “o sistema” capaz de proporcionar resultados
que possam caracterizar um grau civilizatório mais avançado. O problema é que nem todos os
juristas vão concordar com o que venha ser esse grau civilizatório. Para uns pode significar
maior repressividade e menos leniência com a violência social e as perturbações dela
decorrentes. Para outros, significa assegurar garantias mais expressivas restringindo, ao
máximo possível, as hipóteses de intervenção do Estado na esfera de liberdade individual.
Essas perspectivas investem em abordagens pautadas sempre na maior ou menor abrangência
dos poderes judiciais, como se esse fosse o único aspecto a ser considerado. Pelas conjecturas
desenvolvidas nesta pesquisa, parece que a complexidade do Processo Penal transcende o
embate dogmático entre acusatoriedade e inquisitoriedade.
Diante de tudo o que foi até aqui desenvolvido, tem-se que os princípios da
acusatoriedade e da inquisitoriedade ficariam posicionados mais adequadamente num plano
epistemológico no qual deixassem de ser reconhecidos como sistemas, pois quando se insiste
em semelhante postura há o estabelecimento de certas interdições para a compreensão de
como tais princípios podem ser operacionalizados no paradigma da processualidade
democrática. O tema comportaria, talvez, trabalho mais extenso e, talvez, mais enciclopédico.
No entanto, respeitando os limites de forma e conteúdo de um trabalho acadêmico,
notadamente por se tratar de tese de doutoramento, foi feita uma opção pela concisão e pela
objetividade, o que se espera ter sido alcançado a contento.
259

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Paulo: Boitempo, 2003.

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