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Belo Horizonte
2014
Dário José Soares Júnior
Belo Horizonte
2014
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
274 f.
CDU: 343.1
Dário José Soares Júnior
_____________________________________________
Rosemiro Pereira Leal (Orientador) - PUC Minas
_____________________________________________
Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias - PUC Minas
_____________________________________________
Adilson de Oliveira Nascimento - PUC Minas
_____________________________________________
André Cordeiro Leal - FUMEC
_____________________________________________
Andréa Alves de Almeida - UNIFENN
Agradeço ao professor Rosemiro Pereira Leal. Admirável orientador, sem o qual este
trabalho sequer teria sido projetado, pois foi a teoria Neoinstitucionalista do Processo que
sempre me instigou a desbravar novas searas. Há mais de uma década me dedico ao estudo
desta singular conjectura e sou muito grato por todas as conquistas teóricas por ela
proporcionadas. Aproveito para pedir desculpas pelos momentos em que a dedicação à
pesquisa teve de ceder a outras demandas profissionais, o que pode ter limitado em alguns
aspectos o grau de profundidade teórica do texto definitivo.
Aos demais professores e colegas da PUC-Minas, notáveis cientistas que me ajudam a
desbravar e consolidar a perspectiva da processualidade democrática. Sou um soldado raso
desta tropa, um peão desta empreitada.
Ao curso de Direito das Faculdades Integradas de Caratinga, pelo incentivo que
viabilizou em vários aspectos a presente pesquisa.
A Karl Popper, Mário Ferreira dos Santos, Gaston Bachelard e Rui Cunha Martins
pelo fornecimento de diretrizes preciosas que contribuíram para o desenvolvimento desta
pesquisa.
O conhecimento não é a procura da certeza. Errar é humano - todo o conhecimento
humano é falível e, consequentemente, incerto. Daí decorre que devemos estabelecer
uma distinção rigorosa entre a verdade e certeza. Afirmar que errar é humano
significa que devemos lutar permanentemente contra o erro, e também que não
podemos nunca ter a certeza de que, mesmo assim, não cometemos nenhum
erro[...](POPPER, 2006).
Quereis uma terapêutica para a crisis? Deixai surgir os humanos possíveis; mais que
possíveis, prováveis; mais que prováveis, actualmente potenciais. Acreditei neles e
não temei a crisis. Unireis os cumes das montanhas, sem deixar de compreender os
vales que precisam dos cumes para serem compreendidos. Em vez de separar, uni;
em vez de abstrair, concrecionai. Não aprofundeis os abismos com as vossas idéias,
as vossas atitudes, as vossas religiões, as vossas crenças, as vossas artes.Não vos
separeis nem do passado nem do futuro. Vivei o instante, não como instante, mas
como um grande prelúdio do amanhã e um grande realizar-se do ontem, como o
ponto de encontro de dois infinitos. (SANTOS, 1959)
The Criminal Procedure Law, in the historical course, has been characterized by dogmatic
opposition between the principles of accusatory and inquisitorial way. Been since classical
antiquity an oscillation between one and another principle, always prevailing conception that
constitute as incompatible systems together, concilable only artificially, by calling mixed
system. In this research, the proposal focuses on demonstrating that accusatory and
inquisitorial way not have systematic but principle mode status, helping to clarify the
dogmatic character of this metaphysical dualism which constitutes a strong barrier to the legal
discourse in a democratic state. The criminal procedure must submit accusatory and
inquisitorial features, it will be constrained by institutive principles to allow an interpretative
openness to all stakeholders, establishing democratic processuality to break with dogmatic
science of law, discursively constructing the normative sense. This approach involves a
reinterpretation of the enunciation of proof for legal linguistics systems, proposing an
evolutionary epistemology able to point the accusatory or inquisitorial processualização for
full prosecution of all deviations, allowing inter enunciation of argumentative and decision-
making content, the heuristic function of Process.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 21
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 254
INTRODUÇÃO
As pretensões desta pesquisa podem ser assim resumidas: apontar a crise dogmática do
Direito Processual Penal e as consequências da polarização entre os princípios acusatório e
inquisitório no curso histórico1. Por essa vertente, a pesquisa perpassa conteúdos que
contribuem para que o Processo Penal possa ser objeto de uma Teoria Geral do Processo de
modo que se torne, por uma mecânica gradual2, cada vez mais desembaraçado da ideologia e
do dogmatismo, contribuindo, desse modo, para a consolidação do Estado Democrático de
Direito. Em outras palavras, a abordagem que se segue procura adotar uma perspectiva
epistêmica do Direito Processual Penal3, apontando a inadequação de propostas e perspectivas
que, por intermédio de uma perigosa retórica, apontam soluções mágicas que, ao fim e ao
cabo, não passam de proselitismo, na medida em que atribuem ao Processo Penal, a tarefa de
atender a escopos metajurídicos que lhe são incompatíveis, pois implica uma adesão do
julgador e das partes a critérios sociológicos e políticos4, o que resulta em déficit democrático
e cognitivo.
O Processo de Conhecimento Penal, na perspectiva adotada nesta pesquisa, se
apresenta como “conquista teórica relevantíssima da humanidade” quando se reconhece que
toda a atividade de “cognição jurisdicional”, no Estado Democrático de Direito, “assenta-se
no sistema probatício da persuasão racional, em que a ratio legis há de anteceder ao logos
aleatório ou discricionário do julgador”5. Partindo de tal premissa, a pesquisa vai adotar
alguns eixos epistemológicos que precisam, desde já, serem explicitados.
1
“A idéia de crisis, para os gregos, é a acção que realiza o acto de separar, krisô [...]
[...]Na crisis, há uma separação, e separar é abrir distância entre pares; ela se-para. Mas a distância exige um entre
os separados.
E quando, no mundo corpóreo, separamos os sêres, nós os distanciamos. E a distância (mostra-nos a experiência)
pode ser aumentada, e é ela gradativa, pois pode ser maior ou menor, afastar-se mais ou menos. Portanto, no
conceito de crisis, temos sempre um “afastar” das coisas, um acto de “distanciá-las” umas das outras.”
(SANTOS, 1959. p.20.p. 20)
2
Esta expressão é extraída da obra de Karl Popper que a empregou como expressão de um método de mecânica
social que se contrapõe ao método utópico. Enquanto a mecânica social utópica se baseia na escolha racional de
um fim definitivo (ideal) a ser alcançado, pouco importando os meios a serem utilizados, a mecânica social
gradual não visa alcançar a perfeição e a felicidade sobre a terra, reconhecendo que cada geração de homens tem
suas próprias reivindicações. Sendo assim, o método da mecânica gradual visa ao aperfeiçoamento das condições
de dignidade do homem sem a ilusão de implantar a perfeição e felicidade definitivas.Contentando-se em
diminuir a infelicidade e o sofrimento humano, diminuindo também o grau de violência que sempre se verifica
quando o homem resolve se aventurar pela mecânica social utópica. (POPPER, 1974b.p. 173-174).
3
TARUFFO, Michele.La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza, 2009. p. 137
4
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.p.187.
5
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
141.
22
6
BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 293.
7
SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnoseologia e criteriologia). 3. ed. São Paulo:
Logos, 1958. p. 35.
8
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. 2. ed. Campinas:
Bookseller, 2005.p. 119.
23
pode-se afirmar que o "Mundo 3", em Popper, reúne os produtos da mente humana resultantes
do relacionamento entre o "Mundo 1", que reúne os estados ou processos físicos, e o "Mundo
2", que reúne os estados e processos mentais. "Mundo 1" e "Mundo 2" se expressam pelo
dualismo cartesiano representado pelo "problema corpo-mente". Na perspectiva pluralista de
Popper é ao "Mundo 3" que pertencem os argumentos e teorias9.
Os sistemas teóricos, os problemas e os argumentos críticos são desenvolvidos para
que a humanidade possa enfrentar as dificuldades epistemológicas. Enquanto se diz que um
“estado material” é inerente ao “Mundo 1”, e um “estado de consciência” é inerente ao
“Mundo 2”, pode-se afirmar que o homem se encontra no “Mundo 3” quando adquire um
estado de “discussão” ou de “argumento crítico”, proporcionado pelos conteúdos de livros,
revistas, bibliotecas, enfim, de todo um arcabouço de conhecimento disponibilizado a todos
indistintamente e que assegura a autonomia do “Mundo 3”, como um “mundo objetivo”.
Livros, revistas, pesquisas, problemas, conjecturas, argumentos e teorias não são apenas
“expressões simbólicas ou lingüísticas de estados mentais subjetivos”10 que o homem
desenvolve para provocar em outros uma disposição comportamental, mas um mundo
autônomo que oferece à mente humana uma retrocarga de conhecimento.
As cogitações contidas nessas plataformas, transpostas para a Ciência Jurídica,
proporcionam maior abertura argumentativa e possibilitam uma constante interrogação dos
conteúdos dogmáticos. Mostrando-se, assim, de grande relevância para a construção do
Estado Democrático de Direito. Esta pesquisa segue a trilha aberta pela Teoria
Neoinstitucionalista do Processo e o faz porque, mesmo em uma tese doutoral em que se
busca o ineditismo, é preciso consolidar a argumentação em teorias preexistentes, mediante a
confrontação das que reputamos mais relevantes, para extrair os conteúdos conclusivos que ao
final são apresentados como resultado, proposta ou conjectura que, por sua vez, poderá servir
de base para novos desenvolvimentos e críticas. O Direito Processual Penal, também pode se
servir de tais abordagens. Como afirma Rosemiro Pereira Leal:
9
POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto Ferreira
Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996. p. 17.
10
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 109.
24
11
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
Horizonte: Arraes, 2013. p. 81.
12
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999. p. 73.
13
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p.20.p. 20. p. 151
25
seja possível instaurar o primado da reflexão discursiva sobre a percepção, imediatista e, por
vezes, enganosa, o que se daria pela interenunciatividade estabelecida entre teorias e
argumentos14, disponíveis a todos os destinatários dos termos, atos e decisões que marcam o
desenvolvimento processual.
Conforme é possível inferir da leitura que se segue, o Processo Penal no
constitucionalismo pós-moderno já não acolhe, em razão dos avanços recentes da Teoria
Geral do Processo, nem o acusatório, tampouco o inquisitório, como princípio ordenador ou
unificador. Rui Cunha Martins nos remete ao princípio da “democraticidade” como o
referente capaz de conferir legitimidade ao sistema:
Mais do que acusatório, o modelo tem que ser democrático. A opção por um modelo
de tipo acusatório não é senão a via escolhida para assegurar algo de mais
fundamental do que ele próprio: a sua bandeira é a da democracia e ele é o modo
instrumental de a garantir. Pouca virtude existirá em preservar um modelo, ainda
que dito acusatório e revestido, por isso, de uma prévia pressuposição de legalidade,
se ele comportar elementos susceptíveis de ferir o vínculo geral do sistema (o tal
“princípio unificador”: a democraticidade), ainda quando esses elementos podem até
não ser suficientes para negar, em termos técnicos, o carácter acusatório desse
modelo. Não é o modelo acusatório enquanto tal que o sistema processual
democrático tem que salvar, é a democraticidade que o rege. 15
14
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
Horizonte: Arraes, 2013. p. 105.
15
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 145-146.
16
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974b. p. 138. v.1.
17
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 591.
28
18
BARROSO, Luís Roberto. O novo constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2013.p. 228.
29
19
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
47.
20
“Filosoficamente, são antinômicas as positividades (nomos=lei) vetorialmente diferentes, opostas (anti).
Há nas antinomias, um antagonismo de razão, porque uma antinomia é, para outra, não só de vector, como
especificamente é diferente. Assim, a qualidade e a quantidade são opostos antinômicos, porque uma e outra têm
lei diferente, e são especificamente diferentes. Portanto, a reducção de uma à outra, como o realizou o
mecanicismo, reduzindo a qualidade à quantidade é falsa. Ademais, as antinomias são positividades que se
opõem, e não meras contradicções de realidade ao segundo. Na antinomia, a afirmativa de um não recusa a
validez de existencialidade do outro, como a afirmativa da qualidade não implica no desaparecimento da
quantidade ou a sua simples negação” (SANTOS, 1959, p. 56)
21
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
141.
22
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.p.
42.
30
23
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 1. 1982 p. 42
24
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 12
25
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 58-59
26
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 13
27
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
57
31
28
"En los delitos públicos, quien asumía el papel de acusador producía su acusación ante un arconte, quien se
encargaba de juzgar la seriedad e formalidad de la acusación, conforme a los elementos de prueba que ella
portaba.Si el arconte la admitía, tomaba juramento al acusador y recebía la caución, elementos que aseguraban
que no abandonaría el procedimiento hasta la decisión del tribunal. Además, designaba el tribunal y los jueces
que lo componían y les tomaba también juramento, convocándolos para el día del juicio público." "Nos delitos
públicos, quem assumia o papel de acusador produzia sua acusação perante um arconte, quem se encarregava de
julgar a seriedade e formalidade da acusação, conforme os elementos de prova que ela portava.Se o arconte a
admitia, tomava o juramento do acusador e recebia a caução, elementos que asseguravam que não abandonaria o
procedimento até a decisão do tribunal. Ademais, designava o tribunal e os juízes que o comporiam e lhes
tomava também juramento, convocando-os para o dia do julgamento público" ( BENABENTOS, 2005, p. 22,
tradução nossa).
29
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 13.
30
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2.p. 23.
31
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2.p. 24.
32
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
61.
33
“As confissões sob tortura são testemunhos de natureza peculiar, e parecem merecer confiança, porque nelas está
presente uma certa necessidade. Não é certamente difícil dizer sobre estas confissões os argumentos possíveis: se
elas nos forem favoráveis, podemos valorizá-las, dizendo que são os únicos testemunhos verídicos; se nos forem
contrárias e favorecerem o adversário, podemos então refutá-las dizendo a verdade sobre todo o gênero de
torturas; pois os que são forçados não dizem menos a mentira que a verdade, ora resistindo com obstinação para
não dizere m a verdade, ora dizendo facilmente a mentira para que a tortura acabe mais depressa. É necessário
poder invocar exemplos do passado que os juízes conheçam. É também necessário dizer que as confissões sob
tortura não são verdadeiras; pois muitos há que são pouco sensíveis e de pele dura como pedra, capazes de nas
suas almas resistir nobremente à coacção, mas os covardes e timoratos, apenas se mantêm fortes antes de verem
os instrumentos da sua tortura; de sorte que nada de credível há nas confissões sob tortura”. (ARISTÓTELES,
2005, p. 153-154).
32
até o século I a.C.), esteve em vigência uma modalidade de Processo Penal notadamente
inquisitiva, a cognitio. Na cognitio, os magistrados tinham mais liberdade de atuação e seu
sistema recursal excluía mulheres e escravos. Somente o condenado que fosse cidadão e varão
tinha acesso ao recurso, denominado provocatio ou provocatio ad populum, um tipo de
reclamação dirigida diretamente ao povo que poderia livrar o condenado em caso de penas
capitais. Esse recurso constava da Lei das XII Tábuas (século 450 a.C.). Nesse período, a
jurisdição penal se dividia entre a Assembléia do Povo, o Senado e os magistrados que, por
delegação, formavam entre si comissões julgadoras chamadas questiones perpetuae,
compostas pelo pretor e pelos judices jurati, que dividiam as tarefas do julgamento. O pretor
era incumbido de uma apreciação preliminar da causa e, quando entendia pela plausibilidade
da acusação, a encaminhava aos judices jurati34.
A cognitio, de viés inquisitivo, deu lugar à acusatio, em que prevalecia a
acusatoriedade. Um órgão distinto do juiz, não pertencente ao Estado ou um cidadão,
representante voluntário da coletividade, era quem encaminhava a acusação. Desse modelo,
decorrem características como a separação entre acusador e julgador, atividade probatória
reservada às partes numa radicalização do princípio da inércia (ne procedat iudex ex officio),
penalização para a denunciação caluniosa, acusação escrita, rudimentos de contraditório e
direito de defesa, além de procedimento oral35. A acusatio prevaleceu no ocaso da república e
também se caracterizou pelo estabelecimento de fórmulas prévias que restringiam bastante a
atuação dos magistrados36. Esse é o chamado período formular (ordo judiciorum privatorum)
que compreende o período arcaico (século V a II a. C.) e o período clássico do direito romano
(século I a. C. ao século III d. C.), em que prevalecia a arbitragem como principal instituto
jurídico a atuar na resolução de conflitos37.
A transição da República ao Império, que culminou no século III d.C., é marcada
pela consolidação do sistema denominado cognitio extraordinem, que restaurou estruturas
com fortes características inquisitivas e serviu para reforçar o poder central 38, frente às
ameaças internas e externas:
Este tipo de processo entraria por todos os domínios do Império Romano e por toda
a Idade Média, projetando seus traços fundamentais até o alvorecer da modernidade.
34
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 14-15.
35
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011b. v.2. p. 59.
36
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 15
37
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 21-22.
38
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 49.
33
39
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 16.
40
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
97.
41
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá,
2008.p. 94.
42
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 117.
34
justiça, porém, uma breve incursão sobre o tema se faz necessária quando se pretende apontar
os alicerces teóricos da dogmática processual penal e os discursos que lhe são subjacentes. Na
Grécia antiga, Aristóteles e Platão inauguraram as matrizes filosóficas mais influentes da
história, Realismo e Idealismo43 e também cuidaram de buscar compreender a justiça. Cada
qual a seu modo, contribuiu para o desenvolvimento da ciência jurídica.
Mesmo advertindo que a concepção sobre o justo pode variar segundo as concepções
individuais, Aristóteles procura encontrar uma definição racional de justiça. Na Ética, a
Nicômaco apresenta inicialmente uma concepção de justiça em sentido lato para depois se
ocupar da justiça em sentido estrito que, segundo ele, se manifesta de três modos: como
justiça distributiva, como justiça corretiva e como justiça retributiva.
Num sentido lato, a expressão “justiça” vem designar a capacidade de um homem
proporcionar “o bem de um outro”, o que leva a uma compreensão da justiça não como uma
parte da virtude, mas sim como a virtude inteira. Por outro lado, a “injustiça” não seria uma
parte do vício, mas o vício por excelência44. Aristóteles empreende, entretanto, uma detalhada
investigação sobre o que ele aponta como sendo a concepção de justiça como um aspecto ou
parte da virtude.
Neste ponto, Aristóteles inicia por definir a justiça distributiva, proporcional ou
geométrica que se manifesta como uma espécie de justiça intermediária, em cujo contexto o
“injusto é o que viola a proporção; porque o proporcional é intermediário e o justo é
proporcional”45. Em seguida, demonstra o que concebe como justiça corretiva ou aritmética
que consiste em estabelecer a igualdade nas transações individuais independentemente da
qualidade das partes envolvidas. Assim, não importa que “um homem bom tenha defraudado
um homem mau ou vice-versa”, o que a lei deve considerar é o caráter distintivo do delito.
Diante do delito, o filósofo invoca as propriedades extraordinárias inerentes à figura
43
A contraposição dessas duas concepções é evidenciada pela busca de primazia entre ontologia e epistemologia.
O debate filosófico sempre girou em torno destas concepções metafísicas que podem ser definidas como
“filosofias primeiras”. (PERELMAN, 1999, p. 131).
44
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 123.
45
“Com efeito, a proporção é uma igualdade das razões, e envolve quatro termos pelo menos (que a proporção
descontínua envolve quatro termos é evidente, mas o mesmo sucede com a contínua, pois ela usa um termo em
duas posições e o menciona duas vezes; por exemplo a “linha A está para a linha B assim como a linha B está
para a linha C”: a linha B, pois, foi mencionada duas vezes e, sendo ela usada em duas posições, os termos
proporcionais são quatro). O justo envolve pelo menos quatro termos, e a razão entre dois deles é a mesma que
entre os outros dois porquanto há uma distinção semelhante entre as pessoas e as coisas. Assim como o termo A
está para B, o termo C está para D; ou, alternando, assim como A está para C, B está para D. Logo, também o
todo guarda a mesma relação para com o todo; e este acoplamento é efetuado pela distribuição e, sendo
combinados os termos da forma que indicamos, efetuado justamente. Donde se segue que a conjunção do termo
A com C e do B com D é o que é justo na distribuição”. (ARISTÓTELES, 1984, p. 125).
35
do juiz a quem caberia restaurar a igualdade da relação46 dando a cada qual o que lhe
pertence. Com relação à justiça retributiva, denominada por Aristóteles como “reciprocidade”,
esta se mostra como fator de união da “cidade”, pois permite que os homens paguem “o mal
com o mal”, donde se extrai o fundamento das punições aos delitos, mas também decorre o
fundamento das trocas e transações mercantis que conferem também ao homem a faculdade
de pagar “o bem com o bem”. Estes procedimentos devem traduzir sempre uma retribuição
proporcional47.
No idealismo, a justiça assume a condição de conferir validade ao Direito, pois este,
ao mesmo tempo que faz parte do mundo dos fenômenos (realidade), é também parte do
mundo das ideias, em que se encontram conteúdos normativos apreendidos a priori, ou seja,
independentemente de sua apreensão pelos sentidos, quando da experiência. O direito positivo
se submeteria, assim, a uma censura ética pela ideia de justiça, no que se denomina idealismo
material, que consiste no totalitarismo extraído do pensamento de Platão e que se expressa
pela separação de classes e dominação institucionalizada por um Estado auto-suficiente e
autárquico48. Mas a completa dissociação entre direito e moral é também variedade de
idealismo, chamado idealismo formal, pois a validade das normas dispensa qualquer
indagação de cunho material, moral ou ético. Como demonstra Alf Ross, Kelsen é o principal
expoente dessa vertente, pois "aceita, sem reservas, como direito qualquer ordem vigente no
mundo dos fatos"49
Tanto realismo como idealismo, cada qual com suas concepções de justiça, atribuem
à figura do juiz um papel quase mítico como portador da função "concreta de decidir e
realizar o direito deduzido em juízo"50. Desse modo, todo o desenvolvimento histórico da
atividade jurisdicional vai oscilar em torno da privatização ou estatização dos conflitos penais,
que se expressam pela predominância da acusatoriedade ou da inquisitoriedade, sendo o
raciocínio judiciário, quase sempre considerado como o raciocínio jurídico por excelência,
como se vê nas escolas da exegese, funcional-sociológica ou da tópica contemporânea51.
46
“Eis aí por que as pessoas em disputa recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz é recorrer à justiça, pois a natureza do
juiz é ser uma espécie de justiça animada; e procuram o juiz como um intermediário, e em alguns Estados os
juízes são chamados mediadores, na convicção de que, se os litigantes conseguirem o meio termo, conseguirão o
que é justo. O justo, pois, é um meio termo já que o juiz o é”. (ARISTÓTELES, 1984, p. 126).
47
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 128.
48
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974b. v.1.p. 100-101.
49
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 93.
50
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 6.
51
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 29.
36
52
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores). p. 129.
53
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 130.
54
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores). p. 141.
55
Aristóteles fala na existência de uma “justiça” posta pelas leis da natureza, que seriam imutáveis e com validade
em todas as civilizações independentemente de sua cultura ou de seus costumes particulares. Concomitantemente
há a “justiça legal”, posta pelas decisões humanas e suas convenções. Estas vigoram para uma civilização
determinada e suas regras podem variar. As regras legais podem colidir com as leis da natureza e quando isto
ocorre, o decreto dos homens pode ter seus limites ajustados, mediante a aplicação da equidade.
(ARISTÓTELES, 1984, p. 131).
56
Referência à ilha de Lesbos, onde se usavam réguas de chumbo que, por ser um metal flexível, se amoldava às
formações rochosas. (ARISTÓTELES, 1984, p. 137).
57
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 95.
37
58
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 30.
59
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 31 - 32.
60
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 43.
61
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 6.
38
Da mesma forma, segundo Eco, há uma preocupação extremada dos latinos com o
reconhecimento dos limites temporais. Há uma predominância da concepção segundo a qual o
tempo é irreversível e aquilo que ocorreu não pode ser apagado. O autor demonstra a
influência dessa concepção no pensamento de São Tomás de Aquino, que ao responder se
Deus poderia restituir a virgindade a uma mulher, afirma que Deus pode restituir tal mulher
ao estado de graça em virtude de sua misericórdia infinita que nos proporciona o perdão.
Poderia, por milagre, reparar a alteração física decorrente do ato, mas nem Deus poderia fazer
“o que foi não ter sido, porque tal violação das leis do tempo seria contrária à sua própria
natureza”63.
Há nessa linha evolutiva, uma tentativa de compreensão e explicação dos fenômenos
de um modo geral. No pensamento aristotélico, é possível observar um esforço em delimitar
os vários tipos de ações humanas, chegando a enumerar as disposições que permitiriam à
“alma” o alcance da verdade. São elas: a arte, o conhecimento científico, a sabedoria prática, a
sabedoria filosófica e a razão intuitiva64. Desse sistema extraem-se os conceitos de episteme e
techne, sendo o primeiro o hábito de explicar os fenômenos pela sua causalidade
(conhecimento científico e sabedoria filosófica) e o segundo o hábito de produzir algo
necessário e útil, por meio de uma reflexão razoável 65. A transposição desse sistema para o
Direito é feita pelos romanos, que foram notadamente influenciados, sobretudo pelas técnicas
62
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 32.
63
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2. edição, São Paulo:
Martins Fontes, 2005.p. 33.
64
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.
D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 143.
65
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Imprensa Nacional, 1979. p. 54.
39
Numa deliberação temos tanto o conselho como a dissuasão; pois tanto os que
aconselham em particular como os que falam em público sempre fazem uma destas
duas coisas. Num processo judicial temos tanto a acusação como a defesa, pois é
necessário que os que pleiteiam façam uma destas coisas. No gênero epidíctico
temos tanto o elogio como a censura. Os tempos de cada um destes são: para o que
delibera, o futuro, pois aconselha sobre eventos futuros, quer persuadindo, quer
dissuadindo; para o que julga, o passado, pois é sempre sobre actos acontecidos que
um acusa e outro defende; para o género epidíctico o tempo principal é o presente,
visto que todos louvam ou censuram eventos actuais, embora também muitas vezes
argumentam evocando o passado e conjecturando sobre o futuro. 69
Os tópicos ou topoi, por sua vez, são os lugares-comuns através dos quais se torna
possível formar silogismos por meio de entimemas em questões que dizem respeito a ramos
específicos do conhecimento como o Direito, a Física ou de qualquer outra disciplina 70. No
66
Para compreender a dimensão da tópica no pensamento de Aristóteles, há que se assinalar a distinção que este
faz entre conhecimento Apodítico e Dialético, sendo o primeiro identificado com o campo da verdade, em que se
encontram os postulados imutáveis sobres os quais não há como divergir. O Dialético é o campo do meramente
oponível em que se contrapõem as opiniões e é neste campo que se identifica a Tópica como uma técnica de
persuasão, seja pela indução ou pelo silogismo. (VIEHWEG, 1979, p. 24).
67
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa
Nacional, 1979. p. 28.
68
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa
Nacional, 1979. p. 55.
69
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 104.
70
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 103.
40
Direito contemporâneo, esse papel é desempenhado pelos princípios gerais, que instauram a
compulsoriedade decisória característica da dogmática jurídica neo-aristotélica do segundo
pós-guerra, em que as construções jurídicas cumprem um papel análogo à moral, à filosofia e
à política, pois são submetidas ao controle da experiência na medida em que se destinam a
guiar a ação das cortes e tribunais para que atuem conforme o interesse público e a moral
dominante71. A tópica vem se mostrando, na contemporaneidade, fonte de conteúdo decisório
de uma jurisdição hipertrofiada e tal circunstância será objeto de abordagem mais detalhada
adiante.
71
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 111.
72
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961.
p. 104-105.
73
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 10
41
74
Lydio Machado Bandeira de Mello cita, por exemplo, a Lex Baiwariorum, cuja origem é controversa. Alguns
pesquisadores atribuem sua edição ao rei Carlos Martelo entre 725 e 728. Outros a atribuem ao rei Henrique
Brunner, entre 744 e 748. Esta disciplinava os combates judiciais e permitia aos mais fracos fisicamente
contratarem um "campeão" para combater em seu lugar. O "campeão" que fosse derrotado, acarretando a derrota
judicial de seu contratante era punido tendo o punho cortado. (MELLO, 1961, p. 107).
75
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 13-16
76
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961p.
129.
77
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961. p.
130.
42
A partir do século XII, na França, as ordálias foram cedendo espaço aos duelos, que
persistiram ainda até o século XVI, apesar das várias tentativas de abolição, como a
condenação expressa dessa prática pelo pontífice Inocêncio IV em 125278 que levou a Igreja a
pronunciar a excomunhão de quem cometesse homicídio de um adversário em duelo, mesmo
sob forte oposição da nobreza. Os reis portugueses sempre mantiveram a prerrogativa real de
"conceder licença para que as partes resolvessem seu litígio por um combate judicial"79. Na
Inglaterra, a lei que aboliu o duelo judicial em caso de apelação (duelo travado entre o
condenado e seus juízes)80 é relativamente recente, pois datada de 181981.
O sistema judicial germânico influenciou as práticas judiciárias da Península Ibérica,
antes do advento da Inquisição. Tal influência se deu para além dos duelos judiciais e das
ordálias, como, por exemplo, através do instituto da compurgação. A compurgação consistia
num atestado de inocência prestado por terceiros em favor de um acusado82. Essas pessoas
eram denominadas juratores, conjuratores, sacramentales ou compurgatores e deviam ter um
laço de solidariedade com o acusado, seja pertencendo à mesma comuna ou como membros
de uma mesma família e, para aumentar a credibilidade de seu testemunho, deveriam ter um
interesse direto na punição do culpado. O número de compurgadores variava
proporcionalmente à gravidade do fato imputado, havendo registros de casos em que
intervieram mais de trezentos. Contudo, o número normalmente aceito pelos tribunais
municipais, limitava-se a doze83. Antes de provar ou atestar um fato, os compurgadores
serviam para mostrar "a solidariedade que um determinado indivíduo poderia obter, seu peso,
sua influência, a importância do grupo a que pertencia e das pessoas prontas a apoiá-lo em
uma batalha ou em um conflito"84.
78
Em 1252, Inocêncio IV publica a bula Ad extirpanda, com o objetivo de controlar de forma severa as doutrinas
religiosas da época, permitindo a tortura como forma de quebrar a resistência dos acusados. (SILVÉRIO
JÚNIOR, 2004, p. 83).
79
Lydio Machado Bandeira de Mello demonstra que os duelos judiciais eram expressamente previstos nas
ordenações do reino português. Nas Ordenações Afonsinas (1446 ou 1447 a 1512) estavam previstos no Livro II,
título XXIV. Nas Ordenações Manuelinas (1512 a 1514), no Livro II, título XX, § 2º. E nas Ordenações Filipinas
(em vigor até início do século XIX), havia uma repetição do disposto nas Ordenações Afonsinas, no Livro II,
título XXIV. (MELLO, 1961, p. 124).
80
Para tanto, cada juiz pronunciava o seu julgamento em voz alta, ocasião em que era retorquido pelo acusado,
que geralmente o acusava de julgamento falso, se iniciando então, um duelo entre ambos. Se o acusado deixasse
para suscitar esta falsidade, ao final, deveria travar um duelo com todo o colegiado, em evidente desvantagem.
(MELLO, 1961, p. 114).
81
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961.p.
131.
82
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.
2009. p. 10.
83
MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961.p.
116.
84
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 59.
43
Mas ainda assim, as práticas judiciárias mais marcantes da Península Ibérica foram
as inquisitórias instituídas pelo advento do Processo Penal canônico, após o domínio
sarraceno.
85
Antônio Alberto Machado (2009, p. 20), aponta como marco inicial da Inquisição a bula Excommunicanibus,
editada pelo Papa Gregório IX em 1234. No entanto, quando se fala em marco inicial da Inquisição, há que se
distinguir as diversas manifestações desse modelo procedimental no âmbito da Igreja como foi o caso da
Inquisição espanhola em que os inquisidores eram nomeados pelos Reis Católicos por delegação do Papa. O
mesmo aconteceu em Portugal quando o Papa Clemente VII concedeu ao rei D. Manuel I, pela bula Cum ad nihil
magis a prerrogativa de nomear um dos inquisidores-gerais estabelecendo um sincretismo entre a jurisdição
eclesiástica e a jurisdição régia. Outro fato marcante é a instauração da Congregação do Santo Ofício, uma
comissão formada por seis cardeais com jurisdição sobre toda a cristandade instituída através da bula Licet ab
initio, pela qual o Papa Paulo II promoveu uma importante reorganização da Inquisição romana em 1542. É
possível apontar diferenças entre a estrutura da Inquisição na península itálica e na península ibérica. Enquanto a
Inquisição nesta última se configura de forma organizada e coletiva mediante a atuação de uma “poderosa
máquina burocrática com controle sobre uma extensa rede local” a outra se apresenta estruturada por meio de
inquisidores locais sediados nos conventos das respectivas ordens (dominicana e franciscana) voltados,
sobretudo à perseguição dos protestantes estabelecendo assim, já no século XVI, “traços de continuidade entre a
Inquisição medieval e a Inquisição moderna”. Pode-se afirmar que não incorre em erro quem se refere a toda esta
gama de atividades e estruturas eclesiásticas e régias, como “Santo Ofício”. (BETHENCOURT, 2000, p. 18; 24;
27; 29).
86
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 65; SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004.p. 83;
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 23
87
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2.p. 34
44
88
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá,
2008.p. 269.
89
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.p. 73-74.
90
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 17.
45
sem qualquer afinidade teórica, para combater uma terceira91. Assim, nota-se que o poder dos
reis se une ao poder eclesiástico para subjugar o povo e evitar a fragmentação territorial ou
sua ocupação por outros povos hostis.
A bula Exigit sincerae devotionis affectus, assinada pelo papa Sisto IV em 1º de
novembro de 1478, de forma inédita concedeu aos reis poderes para nomear inquisidores
visando punir a difusão de crenças e ritos mosaicos entre os judeus cristãos-novos92. Antes
esse poder era prerrogativa papal. Foi uma transferência de competência que simbolizou o
sincretismo entre elementos religiosos e laicos, numa conjunção da qual, segundo Michel
Foucault, ainda hoje não estamos totalmente livres93.
Essa formulação que resultou na implementação do Inquérito como mecanismo de
busca e estabelecimento da verdade, acabou por se espalhar para outros campos do
conhecimento e do poder, além do jurídico, reorganizando as práticas judiciárias e até mesmo
científicas da Idade Média até a Idade Moderna:
Mas é no campo jurídico que o Inquérito se apresenta como o mecanismo que, por
excelência, vai sustentar as práticas autoritárias do medievo, sobretudo as da jurisdição
canônica. Muito antes da implantação do Tribunal do Santo Ofício, já a partir do Concílio de
Latrão95, a inquisitio ganhou corpo na estrutura da Igreja. A jurisdição eclesiástica, que de
início se destinava a julgar os delitos de fé, pouco a pouco passou a cuidar de julgar os demais
crimes, sempre por um processo secreto e sumário, conforme instituiu em 1298 Bonifácio
VIII, conhecido como o "Papa jurista"96.
Aury Lopes Júnior demonstra como a Igreja, para preservar seu poder de crença
oficial do Império, passou a perseguir implacavelmente aqueles que ousavam discordar de
91
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 59.
92
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.p. 17.
93
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.p. 74.
94
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 74.
95
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 20.
96
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 20.
46
suas diretrizes:
97
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 65.
98
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade
constitucional). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 172.
99
"Molteplicità delle impugnazioni. Il regime totalitario dà ampi poteri al giudice inquisitore; nel momento in
cui egli li esercita, non può essere controllato dalle parti, pena la sconfessione del postulato che fonda il sistema.
Una volta che è stata pronunciata la sentenza, il sistema si ricorda che anche il giudice è un uomo e può
sbagliare. Ed allora il regime permette che le parti possano presentare impugnazione, sulla quale decidere un
giudice superiore che è dotato dei medesimi poteri inquisitori che sono concessi al primo giudice".
"Multiplicidade das impugnações: O regime totalitário dá amplos poderes ao juiz inquisidor; no momento em
que ele os exercita, não pode ser controlado pelas partes, sob pena de repudiar o postulado em que se funda o
sistema. Uma vez pronunciada a sentença, o sistema que antes, o juiz é um homem e pode falhar. E então o
regime permite que a parte possa apresentar impugnação, a qual será decidida por um juiz superior que é dotado
dos mesmos poderes inquisitórios concedidos ao primeiro juiz" (trad. livre). (TONINI, 2010, p. 3).
47
juiz atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga"100. É certo que, na atualidade, não é
possível afirmar a prevalência de um modelo inquisitorial puro, daí ser afirmada a existência
do um sistema misto que tende a justificar teoricamente as práticas inquisitivas que ainda
persistem em ordenamentos ditos democráticos. Omar Abel Benabentos mostra que tal
modelo prosperou na América Latina ao longo do século XX, por influência dos modelos
autoritários prussianos, nazistas, comunistas e fascistas e que, paradoxalmente, foram
acolhidos por diversos estados constitucionais latino-americanos, mediante um
entrecruzamento ideológico inconciliável que levou o sistema processual do continente ao
desequilíbrio, exibindo fortes incongruências101. Sua origem, no entanto, é francesa e pode ser
atribuída à chamada pós-inquisitoriedade napoleônica, expressada pelo Code d'instruction
criminelle de 1808102. O caráter sincrético do sistema misto será abordado de forma um pouco
mais detalhada no Capítulo V.
Pelo que se viu até aqui, sempre houve uma oscilação entre um modelo e outro,
quando não, uma verdadeira disputa por primazia, ou mesmo, uma fusão sincrética. Tal não
foi uma constante apenas na antiguidade ou no medievo, o que poderia ser atribuído à
instabilidade política ou incipiência das instituições jurídicas européias na pré-modernidade.
Esse mesmo fenômeno também pode ser verificado na modernidade103 e mesmo já no final do
século XX e início do século XXI104.Esse tema será objeto de aprofundamento mais adiante
demonstrando, sobretudo que acusatoriedade e inquisitoriedade, apesar de uma aparente
incompatibilidade, sucumbem ao dogmatismo e não representam qualquer ganho teórico-
científico para o Processo Penalna pós-modernidade, constituindo meras técnicas voltadas ao
exercício estratégico do poder105.
100
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 63.
101
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 166
102
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 1. 1982.p.
123.
103
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 6.
104
Exemplo são as técnicas inquisitoriais adotadas contra indivíduos acusados de envolvimento com o terrorismo e
que caracteriza de modo emblemático, a persistência de uma inquisição estatal. Aos indivíduos capturados é
sonegado o status legal de prisioneiro ou mesmo de acusado. São apenas detainees, desprovidos de garantias e
direitos fundamentais. (AGAMBEN, 2007a, p.14).
105
Digna de nota, a reação ao Código de Processo Penal italiano de 1988, no qual prevalecia o princípio
acusatório. Este código foi apontado como sendo um código para a máfia, tendo sofrido desde então várias
alterações que resultaram em uma configuração de característica inquisitiva. (CHOUKR, 2002, p. 90).
48
106
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.
ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998. p. 67.
107
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 128 - 130.
49
Aristóteles.
Assim como procedeu com a classificação das formas dos juízos, Kant reuniu os
conceitos originalmente puros num rol que constitui a expressão da “síntese que o
entendimento a priori contém em si”. Cada categoria contém uma correspondência intrínseca
com as funções lógicas do juízo acima descritas, pois Kant entende que “o entendimento
esgota-se totalmente nessas funções e sua capacidade mede-se totalmente por elas”. Assim se
apresenta a tábua das categorias: quantidade (unidade, pluralidade, totalidade); qualidade
(realidade, negação, limitação); relação (inerência e subsistência, causalidade e dependência,
comunidade – ação recíproca entre o agente e o paciente) e modalidade (possibilidade –
impossibilidade, existência – não-existência, necessidade – contingência)108.
As categorias, como conceitos do entendimento, são pensadas a priori com relação à
experiência. Antes delas não há nenhum outro conceito e todo e qualquer objeto só pode ser
conhecido e determinado a partir delas. São a matéria do raciocínioe “visto constituírem a
forma intelectual de toda experiência, a sua realidade objetiva, tem, por único fundamento,
que a sua aplicação possa sempre ser mostrada na experiência”109. O transcendental, na
construção teórica de Kant, se define como aquilo que é anterior a toda experiência e se
posiciona como condição de possibilidade de todo o conhecimento, sendo que a lógica
transcendental se define como uma forma de pensar por estruturas que independem da
experiência, mas que se restringem àquilo que é possível conhecer, ou seja, os objetos que
podem ser pensados e conhecidos,a priori, determinando a origem, o âmbito e o valor
objetivo de tais conhecimentos110. Assim, na medida em que não se pode ter a experiência
sensível de Deus, o seu conhecimento, como qualquer conhecimento metafísico, é
impossível111.
Trata-se de uma postura agnóstica, pois não nega a existência de Deus, que,
juntamente com a imortalidade da alma, é deduzida dos princípios apriorísticos da razão
prática, pois somente um Ser perfeitamente sábio e justo poderia de fato realizar a conexão
entre o bem e a felicidade; o mal e o sofrimento112. Os termos a priori e transcendental são
assim explicados por Deleuze:
108
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001. p. 136-137.
109
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001. p. 333.
110
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 118.
111
SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.p. 50-51.
112
LESSA, Pedro. Estudos de filosofia do direito. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2002.p. 262 .
50
Embora tenhamos de dizer dos conceitos transcendentais da razão que são apenas
idéias, nem por isso os devemos considerar supérfluos e vãos. Pois ainda quando
nenhum objeto possa por eles ser determinado, podem, contudo, no fundo e sem
serem notados, servir ao entendimento de cânone que lhe permite estender o seu uso
e torná-lo homogêneo; por meio deles o conhecimento não conhece, é certo, nenhum
objeto, além dos que conheceria por meio dos seus próprios conceitos, mas será
melhor dirigido e irá mais longe neste conhecimento. Sem falar de que podem,
porventura, esses conceitos transcendentais da razão estabelecer uma transição entre
os conceitos da natureza e os conceitos práticos e assim proporcionar consistência às
idéias morais e um vínculo com os conhecimentos especulativos da razão.114
elege três dos principais aspectos dessas teorias para uma análise resumida, porém,
esclarecedora de seus fundamentos. Para o autor, o pensamento metafísico se exprime,
sobretudo pelo princípio da identidade, pelo idealismo e pelo conceito forte de teoria, este
portador de uma importância salvífica117.
O princípio da identidade busca um rompimento com a visão concretista e unitária de
mundo que se buscava explicar através do mito. O princípio e a origem das coisas passam a
ser explicados a partir de uma abstração, em que se reconhece um elemento primeiro, que se
subtrai às dimensões de tempo e espaço e permite discernir a variedade das coisas e os
acontecimentos intramundanos, como partes singulares de um todo unitário. Assim, o uno e o
múltiplo são delineados abstratamente e se definem como identidade e diferença, das quais
decorrem todas as coisas e acontecimentos, que se reproduzem na forma de uma variedade
ordenada.
Já em seu aspecto idealista, segundo Habermas, o pensamento metafísico se esforça
por uma compreensão do uno e do todo ao seguir os passos de Platão, afirmando que a ordem
fundadora da unidade é subjacente como essência na variedade dos fenômenos, mas possui
uma natureza conceitual. Uma concepção conceitual, contudo, ordenada pela natureza das
coisas e posicionada numa pirâmide hierarquicamente estruturada, visando realizar a
promessa de unidade, sendo perceptível uma tensão entre a forma discursiva (empírica) e
anamnésica (contemplativa), fenômeno e ideia, matéria e forma. As representações que
fazemos dos objetos e fenômenos se tornam possíveis através da autoconsciência, assim
entendida a relação do sujeito cognoscente consigo mesmo, que se estabelece como o ponto
central do idealismo alemão. A autoconsciência ocupa uma posição fundamental como fonte
espontânea de realizações transcendentais ou, em estado absoluto, como espírito.
De todo modo, seja a razão produtora do mundo ou assuma nele a figura de um
espírito que caminha sobre a história ou a natureza, ela se estabelece como “uma reflexão
totalizadora e auto-referente”, garantindo “o primado da identidade frente à diferença e a
precedência da idéia frente à matéria”118. Diante de tal postura, a compreensão acerca das
condições de verdade só seria alcançável solipsisticamente119. Nesse aspecto, a filosofia da
consciência, possui o status de prima philosophia.
Mas no afã de sepultar cosmovisões esotéricas, os iluministas dos séculos XVIII e
117
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.p. 38.
118
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.p. 39-41.
119
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São
Paulo: Loyola, 2004b.p. 11.
52
XIX acabaram por instituir a crença na Razão como substância, poder e forma infinitos. O
"sistema" do qual derivam todas as coisas, com todas as figuras míticas reduzidas ao mesmo
denominador: o sujeito ou unidade para a qual convergem racionalistas e empiristas120.
Observe-se a clássica sentença de Hegel:
Ela é substância, ou seja, é através dela que toda a realidade tem o seu ser e a sua
subsistência. Ela é poder infinito, pois a Razão não é tão impotente para produzir
apenas o ideal, a intenção, permanecendo numa existência fora da realidade - sabe-
se lá onde - como algo característico nas cabeças de umas poucas pessoas. Ela é o
conteúdo infinito de toda essência e verdade, pois não exige, como o faz a atividade
finita, a condição de materiais externos, de meios fornecidos de onde extrair-se o
alimento e objeto de sua atividade; ela supre seu próprio alimento e sua própria
referência. E ela é forma infinita, pois apenas em sua imagem e por ordem sua os
fenômenos surgem e começam a viver. 121
prevalecendo a concepção de que “não existe sociedade sem dogma”124, na medida em que o
dogmatismo se faz presente nos campos da teoria, da ética, da religião, da axiologia e da
ciência, contribuindo para consolidar o conhecimento, às vezes de forma ingênua,
interditando as arguições e rejeitando a dúvida125. Para esse segmento, não há nenhuma
contradição ao se falar em ciência dogmática do direito126, pois esta atenderia às demandas de
decidibilidade, seja no paradigma liberal, que preza pelo dogma da completude da lei, com o
juiz se posicionando como garantidor das liberdades negativas eventualmente violadas pelo
Estado, seja no paradigma do Welfare State, com suas providenciais lacunas a serem
preenchidas pelo juiz, segundo critérios de conveniência para manter o equilíbrio social,
preservando a tradição e a autoridade127.
Segundo Tercio Sampaio Ferraz Júnior, a Ciência Dogmática do Direito teria por
objeto central o próprio ser humano em suas variadas dimensões. O homem, como portador
de necessidades, seria contemplado pelo modelo analítico em que a decidibilidade, como
relação entre um determinado conflito e uma decisão, ambos hipotéticos, permite estabelecer
parâmetros decisórios racionais. Um segundo modelo, apontado pelo autor como
hermenêutico, contempla o homem como ser cujo agir sempre emite significados, seja em
seus menores gestos. Neste caso, a ciência dogmática do direito cumpre uma tarefa
interpretativa. Outro modelo, definido pelo mesmo autor como empírico, contempla o homem
como ser dotado de funções e que se adapta à contínua transformação e evolução de seu
ambiente. Aqui, a ciência dogmática do direito cumpriria um papel explicativo do
comportamento humano, enquanto conduta controlada normativamente128.
Edgar da Mata Machado define a dogmática jurídica como a própria ciência empírica
do Direito Positivo, tendo seu início com Savigny que a identifica com o direito geral que
surge na consciência do povo. O problema é que o "povo", no pensamento de Savingy,
somente se "concretiza e se une no Estado"129. Desse modo, quando se refere a "direito do
povo", Savigny está se referindo a um direito do Estado, um direito reduzido ao texto da lei
que expressa a vontade estatal. O Direito só adquire cientificidade quando deixa de ser algo
124
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2007.p. 49.
125
SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnoseologia e criteriologia). 3. ed. São Paulo: Logos,
1958.p. 42.
126
Contradição que é apontada por Rosemiro Pereira Leal, para quem, em linhas gerais, um método, sendo
dogmático, jamais pode ser também científico. (LEAL, 2010, p. 178).
127
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 99
128
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed.
São Paulo: Atlas, 2007. p. 91-92.
129
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.
121
54
que vive apenas na consciência popular e passa a ser matéria de competência dos juristas, ou
representantes do povo, passando a experimentar o influxo simultâneo de uma dupla
vitalidade caracterizada de um lado pelo elemento político, que diz respeito à vida social do
povo, e de outro pelo elemento técnico, em que se apresenta como obra especial da ciência
manejada pelos juristas130. Apesar de rechaçar os aspectos limitadores da legislação e ser um
opositor da tendência codificadora, Savigny concebe uma ciência jurídica em que o
dogmatismo se manifesta no fato de buscar as condições necessárias ao implemento de
conquistas civilizatórias de uma sociedade civil.
Ainda na Alemanha do século XIX, Rudolf Von Jehring ganhou projeção como
grande expressão do dogmatismo jurídico, através de uma concepção mecanicista e coativista
do direito, mediante uma separação radical entre os domínios do direito e da moral. O
dogmatismo de Jehring subtrai ao jurista qualquer possibilidade de interpretação da regra de
direito. A ciência jurídica teria tão somente a atribuição de converter as regras em definições
jurídicas:
130
SAVIGNY, F. de. De la vocacion de nuestro siglo para la legislacion y la ciencia del derecho. Tradução
de Adolfo G. Posada. Buenos Aires: Editorial Atalaya, 1946. p. 47.
131
"El legislador puede limitarse a establecer su voluntad en la forma originaria, praticable inmediatamente,
mientras que la ciencia, por el contrario, no solamente tiene la misión de explicar y de coordinar estas
voluntades, sino que debe también reducirlas a elementos lógicos de su sistema. El legislador nos ofrece, por
decirlo así, cuerpos compuestos que sólo le interesan por su utilidad inmediata; la ciencia, por el contrario,
emprende el análisis y los convierte en cuerpos simples. Al hacer esta operación es cuando se ve que reglas en
apariencia heteronegéneas se componen con ayuda de los mismos elementos y pueden desaparecer, siendo
inutilizadas desde luego; que tal regla, que no difiere de otra sino en un solo punto, basta solo con indicar éste;
que tal otra se compone de muchos elementos, cuya noción es simple, y que se debe, por consiguiente, reunirlos
para obtener la regla. Con un análisis parecido se adquiere el conocimiento de la verdadera naturaleza de las
reglas del derecho, ofreciendo la ventaja de que La ciencia, en lugar de una multitud de reglas distintas obtiene
un número determinado de cuerpos simples, por medio de los que puede recomponer, cuando le plazca, cada una
de las reglas del derecho." (JHERING, 1946, p. 30-31).
55
Essas escolas dogmáticas formaram as bases de uma concepção científica que, não
obstante ter prevalecido ao longo do século XX, se mostra insuficiente para o esclarecimento
do direito no século XXI, sobretudo quando se tem o propósito de estudá-lo segundo o
paradigma democrático. O fato é que a ciência dogmática do direito apresenta um espectro de
investigação extremamente limitado:
O objeto dessa disciplina é a regra de direito, emitida pelo poder competente, seja o
Legislativo ou o Judiciário, de origem, pois, estatal, em qualquer hipótese. Esse o
132
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.
128-132.
133
MACHADO NETO, A. L.. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 24
56
"dado real" ou o dogma com o qual trabalha o jurista. Partindo dele, de sua
observação como fenômeno, o estudioso do direito indaga, a seguir, qual o
significado da regra. Como? Pesquisando-lhe as fontes, procurando surpreender o
sentido e o alcance que lhe pretenderam dar seus autores, verificando as
interpretações por que passou, tanto através da doutrina (comentadores) como da
prática dos tribunais (jurisprudência). Capacitado da função regulamentadora atual
da regra, o jurista dogmático procura incluí-la num sistema tanto quanto possível
coerente, a fim de torná-la utilizável na solução de casos concretos.134
134
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.
133.
135
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 590.
136
Neste sentido é que Rosemiro Pereira Leal desenvolve o conceito de Isomenia: “A isomenia, em minha teoria
neoinstitucionalista, que é instituto operacional do princípio da legalidade, define-se pela oportunidade de
colocar todos os destinatários normativos (intérpretes) em simétrica posição ante idêntico referente lógico-
jurídico construtivo, aplicativo, modificativo ou extintivo do sistema jurídico (LEIS). É o devido processo, no
sentido da teoria neoinstitucionalista, que é o referente lógico-jurídico (interpretante) a balizar os limites
hermenêuticos de um sistema jurídico de “Estado Democrático de Direito” em concepções de uma sociedade
aberta”. (LEAL, 2010, p. 271).
57
O fato é que, mesmo com o acentuado desenvolvimento das aptidões humanas, a utilização do
raciocínio binário parece inexorável:
Em outras palavras, para nós, seres humanos, para cada caso vertente sempre
existem duas diferentes e únicas hipóteses. Assim, quando qualquer questionamento
nos é formulado, a resposta naturalmente limita-se a uma afirmativa ou a uma
negativa. De igual modo, quando um engenheiro eletricista nos apresenta um projeto
de instalação elétrica, as ligações somente podem ser feitas em série ou em paralelo.
Nesse sentido, há o branco e o preto, o claro e o escuro, o belo e o feio, o alto e o
baixo etc.
Tão profundas são as raízes binárias de nosso raciocínio que a própria linguagem
empregada na informática obedece a esta virtual limitação humana: o zero e o um.137
Reis Friede, ao afirmar que o homem sempre tentou escapar do binarismo, demonstra
certo desalento ao constatar que uma terceira hipótese, quando existente, é sempre uma
combinação de duas hipóteses básicas e antagônicas, "não correspondendo, de nenhum modo,
a uma autêntica e genuína hipótese alternativa, capaz de superar a sinérgica restrição
binária"138.
O que se pretende com este trabalho é demonstrar que a processualidade democrática
constitucionalmente instituída, não é "mera combinação" dos sistemas acusatório e
inquisitório139 e já fornece as bases teóricas que permitirão a superação desse dualismo
desprovido de sentido na pós-modernidade. Isso porque a evolução da ciência jurídica ocorre
cada vez mais mediante a "escolha racional entre teorias competitivas"140, numa perspectiva
epistemológica em que a superação de teorias eventualmente consideradas inadequadas não é
mais fruto do simples acolhimento do raciocínio binário, no qual as conclusões sobre
determinado modo de pensar devem necessariamente levar à verdade ou à falsidade.
Écom tal objetivo que são adotadas, neste trabalho, concepções que buscam superar a
visão idealista de epistemologia como teoria do conhecimento capaz de produzir um juízo de
137
FRIEDE, Reis. Ciência do direito, norma, interpretação e hermenêutica jurídica. 2. Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1999.p. 20.
138
FRIEDE, Reis. Ciência do direito, norma, interpretação e hermenêutica jurídica. 2. Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1999.p. 21.
139
Talvez, na atualidade, fosse mais adequado usar o termo princípio para designar acusatoriedadee
inquisitoriedade, sobretudo diante da contraposição teórica entre a teoria dos sistemas de Luhmann e a teoria
discursiva de Habermas. A primeira preconiza uma complexificação social fundada na existência de sistemas
autopoiéticos ou operacionalmente autônomos que resulta na fragmentação do código moral. A segunda se funda
na distinção entre sistema e "mundo da vida", em que o sistema seria espaço de intermediação do agir
instrumental e estratégico e o "mundo da vida" como o horizonte comunicativo em que os "falantes" buscariam o
entendimento subjetivo de cunho universalizante. Assim, como será demonstrado mais adiante, nem
acusatoriedade, nem inquisitoriedade, numa perspectiva democrática, possuem status sistemático. Talvez
pudessem ser concebidos tão somente como princípios, pois os seus fundamentos e conteúdos devem ser
constantemente interrogados pela via processual. (NEVES, 2006, p. 123-124).
140
POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Ed. Universidade de
Brasília, 1972, p. 243.
58
certeza que se instaura como "uma crença verdadeira justificada"141 ou como verdade
imutável apodítica (episteme-aletheia do pensamento grego)142. Toda a pesquisa será
perpassada pelos conteúdos oriundos da epistemologia quadripartite de Rosemiro Pereira
Leal143 e da epistemologia evolucionária de Karl Popper144, que se apresentam como aportes
teóricos de especial interesse para que o Processo Penal possa se desvencilhar do debate
dogmatizante entre acusatoriedade e inquisitoriedade,ingressando assim na cientificidade do
paradigma democrático.
Neste trabalho, permeado pela abordagem acerca do embate dogmático entre
acusatoriedadee inquisitoriedadeno Direito Processual Penal, o que se busca é demonstrar que
esse tipo de confronto na pós-modernidade se apresenta inócuo, e que a Teoria Geral do
Processo já fornece as bases epistemológicas para sua superação pela instituição
constitucional prototípica do Processo de Conhecimento oudo Devido Processo
Constitucional. O dualismo se expressa pela contraposição de conteúdos que se afastam e se
repelem com fundamento na impossibilidade de convivência e interação entre sistemas e
conceitos, instaurando sempre uma crise e impondo uma escolha, que por sua vez, só
aprofunda a separação, pois “há em todo ato de escolha, uma separação, porque algo é
preterido. Onde há uma preferência, há uma preterição”145. Para Kelsen, o dualismo obscurece
a compreensão humana justamente porque separa radicalmente os conteúdos do saber:
141
GRAYLING, Anthony Clifford . Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de
filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 40.
142
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 170.
143
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012. p. 32.
144
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 72.
145
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 51.
146
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 600.
59
147
“Não é a Metafísica um penetrar num mundo onde devemos nos despojar de tôdos os instrumentos dêste, e que,
neste, permita-nos obter conhecimentos. O modo de raciocinar metafísico é o mesmo que o do cientista.
E este, quando medita sôbre as coisas do mundo físico, tange sempre, quer queira ou não, o terreno da metafísica
que o cerca, exigente a solicitar-lhe soluções, que êle muitas vezes teme afrontar, retirando-se a uma posição
agnóstica, que é uma verdadeira renúncia à dignidade do saber humano.
Basta considerarmos a situação do físico ante as teorias sôbre o átomo que muitas vezes são um desafio à
inteligibilidade, como a acção à distância, a substancialidade da energia atômica, as contradições entre as ondas e
corpúsculos, e muitas outras, que enleiam o cientista em especulações metafísicas, porque já tange objetos supra-
sensíveis, ultra-experimetais, ou metempíricos, como se costuma dizer hoje” (SANTOS, 1958, p. 24-25)
148
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 2007. p. 13-14.
149
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. São
Paulo: Editora Mandarim, 2000. p. 79-104.
150
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 107.
60
As incursões feitas no curso desta pesquisa talvez sejam insuficientes para alcançar o
ponto de reflexão que possibilite a superação do dualismo metafísico expressado no Processo
Penalpela contraposição entre acusatoriedade e inquisitoriedade, pelo simples fato de que o
conhecimento não consegue se desvencilhar da postura dualística. Esse é um desafio
epistemológico que se apresenta para a ciência jurídica.
Kelsen vai demonstrar que a superação das cosmovisões míticas dos povos
primitivos se dá por um dualismo metafísico-religioso variando apenas o grau de adesão à
divindade (ideia e justiça) ou ao empirismo (experiência jurídica), bem como a tentativa de
conciliação entre os opostos. O primeiro tipo é chamado de dualismo pessimista, pois o
homem deposita todo o seu destino sob os desígnios da divindade, uma vez que tem uma
péssima consciência de si próprio. O segundo tipo, chamado otimista, decorre de uma
consciência exaltada e autosuficiente. O terceiro tipo se caracteriza pela tentativa de
conciliação entre os extremos, por uma consciência cautelosa que não despreza as posturas
precedentes, e, por essa razão, não escapa do dualismo metafísico152.
Essa concepção do conhecimento humano apresenta uma influência perceptível nas
mais variadas espécies de contraposições existentes na Ciência Jurídica. As objeções,
contudo, são muitas e antigas. Todo o idealismo transcendental, a pretexto de rechaçar a
Metafísica, termina por criar uma nova forma de Metafísica calcada em uma noção de dever
abstrata e sem conteúdo definido, pois fundada nas formas puras do entendimento, o que
resulta no abandono do Direito ao arbítrio e à consciência individual, que assumem um
aspecto totalizante, desprezando as especificidades da observação empírica153.
154
SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,
1997.p. 64-65.
155
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 159-160.
156
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012. p. 134.
62
persecutio, sem esquecer a acepção defendida por Celso, para quem o termo possui um
sentido mais restrito, designando tão somente as ações pessoais157. Mas a conclusão de
Savigny é no sentido de que essas variações terminológicas não foram suficientes para afastar
o interesse pelo estudo da actio, que mesmo no período formular manteve sua relevância, pois
permaneceu sendo o ato pelo qual se iniciava o procedimento para a obtenção da fórmula.
Desse modo, seguindo a linha epistemológica de Savingy, seu grande precursor 158, a
Ciência Dogmática do Direito se consolida ao empreender a codificação jurídica na
Alemanha, tendo como base as Pandectas de Justiniano. Neste ambiente, vai se estabelecer
uma considerável polêmica sobre o tema, notadamente nos anos dedicados à elaboração do
BGB, o Código de Processo Civil:
Uma célebre polêmica entre Windscheid e Müther, travada em 1856, contribuiu para
romper com a concepção imanentista160. Windscheid demonstrou inicialmente que no direito
romano o indivíduo não possuía um direito, e sim uma actio que consistia na possibilidade de
fazer valer judicialmente uma obrigação violada. A actio era inerente ao direito obrigacional.
A terminologia klagerecht deveria então ser utilizada para designar o direito exercido contra o
Estado com o objetivo de provocar o exercício da atividade jurisdicional. Müther procurou
refutar Windscheid afirmando que o sistema romano era, sim, um sistema de direitos
materiais, e que a actio era exercida quando o ofendido requeria a fórmula ao pretor. Dessa
forma, já seria possível vislumbrar no direito romano a klagerecht. Essa polêmica serviu para
estabelecer a autonomia do direito de ação com relação ao direito material e foi importante
157
SAVIGNY, F. de. Sistema del derecho romano actual. Tradução de do alemão M. Ch. Genoux; Versão para
o espanhol Jacinto Mesía y Manuel Poley. Madrid: F. Góngora y Compañia, Editores, 1879. t.4. p. 10-13
158
Este reconhecimento é feito por Carlos Cossio, para quem Savigny foi responsável por uma definição
ontológica do Direito Positivo ao afirmar que tal expressão seria mesmo pleonástica, pois o Direito só pode ser
positivo na medida em que se manifesta como experiência. Nessa perspectiva, se torna objeto da ciência jurídica
e faz com que o conhecimento científico acerca do direito só seja possível pelo estudo da experiência jurídica.
(COSSIO, 1954, p. 22).
159
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 134-
135.
160
GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Tradução de Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Editorial
Labor, 1936a. p. 99.
63
161
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 161-164.
162
GOLDSCHMIDT, James. Teoria general del proceso.Barcelona: Editorial Labor, 1936b. p. 96
163
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 134.
164
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 133
165
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 135.
166
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 503.
167
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral do processo civil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. p. 123.
64
Mas quando o direito de petição se exerce ante o Poder Judiciário, sob a forma da
ação civil, esse poder jurídico não só resulta virtualmente coativo para o demandado,
que tem de comparecer para defender-se, se não deseja sofrer as consequências
prejudiciais da ficta confessio, mas também resulta coativo para o magistrado que
deve expedir uma ou outra forma de pronunciamento.
Este dever de pronunciamento por parte do juiz, é de tal maneira rigoroso ante o
exercício da ação civil, que sua omissão configura causa de responsabilidade
judicial. (tradução nossa)168
168
“Pero cuando el derecho de petición se ejerce ante el Poder Judicial, bajo la forma de acción civil, ese poder
jurídico no sólo resulta virtualmente coactivo para el demandado, que ha de comparecer a defenderse, si no desea
sufrir las consecuencias perjudiciales de la ficta confessio, sino que también resulta coactivo para el magistrado
que debe expedirse en una u outra forma acerca del pronunciamiento. Este deber de pronunciamento de parte del
juez, es de tal manera riguroso ante el ejercicio de la acción civil, que su omisión configura cuasa de
responsabilidad judicial” (COUTURE, 2007, p. 64).
169
SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,
1997.p. 169.
170
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 135.
171
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 58
172
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 165.
173
Liebman viveu e lecionou no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e em razão de sua forte influência sobre
os processualistas brasileiros sua teoria eclética foi adotada expressamente pela legislação do país, conforme é
possível constatar nos artigos 3º e 267, VI do Código de Processo Civil e também o art. 395, II do Código de
Processo Penal, incluído pela Lei 11.719/2008, o que demonstra a persistência da influência Liebmaniana.
65
não atendesse a todas as condições seria considerada “carente de ação”, sendo decidido pela
extinção do processo sem resolução de mérito174. O processo e a atividade jurisdicional
estariam assim subordinados ao atendimento das condições da ação, que, na doutrina de
Calamandrei, apesar de apresentarem a mesma configuração, são chamadas de requisitos
constitutivos para o exercício de um direito subjetivo, autônomo, porém concreto, pois visa
uma providência jurisdicional favorável175.
Mas todo esse debate em torno do direito de ação pode parecer inútil, sobretudo
diante dos avanços teóricos proporcionados pelo processo constitucional. Mesmo do ponto de
vista do direito romano é possível afirmar que os romanos não se preocuparam em conceituar
a faculdade ou o direito de estar em juízo como autor176. No entanto, a revisão do conceito de
ação vai se mostrar de grande relevância para a ciência processual no paradigma democrático.
Nesse sentido, é digna de nota a construção teórica desenvolvida por Elio Fazzalari:
Tal série de atos constitui, de fato, o conteúdo da sua “legitimação para agir”, a
“situação legitimada” de cada um.
De outro lado, é óbvio constatar que as séries de atos que conduzem cada uma a um
dos participantes se implicam mutuamente: trata-se das séries relativas aos
contraditores, ou mesmo das séries relativas ao juiz ou a um seu auxiliar. A ordem
que se determina para a sucessão e mútua implicação dos atos dos vários
protagonistas (de uma parte, de outra, do juiz, do auxiliar, etc.) constitui justamente
o “processo”.180
180
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 500.
181
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 147
182
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 135-137.
183
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 504.
67
A ação penal considerada em si mesma, qualquer que seja a sua natureza jurídica,
apresenta-se então, por uma parte, como entidade jurídica invocadora da jurisdição,
e por outra, como atividade processual, a atuar concretamente contra o autor de um
delito. Dada a natureza pública dos interesses em jogo, e salvo casos excepcionais, o
Estado brasileiro instituiu o Ministério Público como órgão titular da ação penal
pública. Mediante a atuação desse poder de acusar surge o direito de defesa,
constitucionalmente previsto, para possibilitar que o outro órgão do Estado – o juiz –
que imparcialmente decida, em definitivo, se num caso concreto e particular alguém
mereça a pena como autor de um delito. 187
necessários à objetivação de seus fins, ou como autoridade, exercendo iure imperii, o que
justifica o fato de que até mesmo nos regimes autoritários, em diversas relações, o Estado se
submete aos tribunais ordinários189.
Com isso, mesmo que se procure afirmar a indistinção ontológica entre ação civil e
ação penal, nesta é possível encontrar peculiaridades que vão além da matéria jurídica que
constitui seu objeto. A primeira grande distinção diz respeito ao fato de que seu titular não é o
titular do direito de punir (ius puniendi), pois “tanto o Ministério Público quanto o particular
são os titulares do direito de ação, ou seja, do ius perseguendi in judicio; porém, nem um nem
outro são titulares do direito de punir (ius puniendi)”190.
Na modernidade, a actio penal, por obra de concepções marcadamente idealistas, não
conseguiu se desvencilhar “do preconceito estabelecido pelos próprios feitores da
“concretude”, segundo os quais a ação consistiria e se exauriria na possibilidade de colocar
em movimento o processo”191. Trata-se de uma perspectiva que leva em conta tão somente a
atividade do autor, justificando assim, o advento da acusatoriedade moderna calcada nos
princípios nemo iudex sine actore, ne procedat iudex ex officio ou nullum iudicio sine
actore192. O autor penal passa a ser considerado agente livre e capaz de afetar o status
dignitatis de qualquer indivíduo amparado tão somente por indícios suficientes de autoria
(fumus boni iuris)193.
Trata-se de um ambiente científico propício ao surgimento dos tipos-ideais e com o
Processo Penal não foi diferente. Como aponta Mauro Fonseca Andrade, os sistemas
acusatório, inquisitório e misto não apresentam maiores distinções no plano empírico e por tal
razão não devem ser considerados sistemas puros, mas tão somente, tipos-ideais, pois são
“conceitos genéricos, abstratos e irreais” e como tal “costumam ser utilizados como modelos
para a reforma ou construção de novos ordenamentos”194. Os tipos-ideais são assim
identificados por Max Weber:
alguns dos seus elementos importantes, e com o qual esta é comparada. Tais
conceitos são configurações na quais construímos relações, por meio da utilização
da categoria de possibilidade objetiva, que a nossa imaginação, formada e orientada
segundo a realidade, julga adequadas.195
195
WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. 4. ed. São Paulo: Cortez
Editora, 2001.p. 140. p.I..
196
SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,
1997.p. 162.
197
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995.p.
147.
198
MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.
148.
199
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 64.
70
validade e eficácia jurídica, pois, para ser considerada válida, uma norma não precisa ser
necessariamente observada concretamente pelos indivíduos, uma vez que exprime um
comando “despsicologizado”, ou seja, que independe da vontade individual de cumpri-lo200.
Neste ponto, vale lembrar a abordagem de Couture. Após recordar que a norma
jurídica pode ser cumprida espontaneamente (na medida em que a liberdade humana
pressupõe a realização de condutas juridicamente impostas ou não) ou coativamente, ressalta
que a coerção externa ao agente descumpridor seria a especificidade que difere a norma
jurídica da norma de ordem moral (no dizer de Couture, desprovida de formas materiais de
realização coativa). Por essa razão, submete a fórmula kelseniana a um acréscimo teórico de
grande importância ao concluir que, nenhuma coerção pode ser aplicada sem o prévio
processo. Em síntese: "Dado A deve ser B; e se não for deve ser C; prévio P (processo)"201.
O prévio processo não aparece no discurso de aplicação kelseniano, tampouco no
chamado discurso de justificação, no qual se dedica a uma teoria hierarquizante e que não
esclarece como se poderia constituir democraticamente o direito, quando da passagem de
conteúdos jurídicos da mens legislatoris para a mens legis. Chega a afirmar que um sistema
legislativo deve ser dotado de estágios de atenuação legítima do princípio democrático202
como é o caso do sistema bicameral nos estados federados, onde uma câmara se destina a
representar o povo e outra se destina a se contrapor a esta representação.
Sobre a atuação de um devido processo203 na elaboração parlamentar da lei, não se vê
uma clara referência na obra de Kelsen. Em determinada passagem, chega mesmo a afirmar
que "o modo como a ideia de uma regra geral vem a existir é uma questão que não temos de
responder aqui"204, de maneira a exprimir que a existência ou não existência de direitos
pressupõe sempre uma norma geral e generalizante, regulando a conduta humana nos moldes
do imperativo categórico kantiano, assumindo um caráter de universalidade ecuja observância
deve submeter às inclinações humanas, por ser algo bom em si mesmo205.
200
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 49.
201
COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer
Russomano. São Paulo: Max Limonad, 1956.p. 157.
202
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 426.
203
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010;
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000b.
204
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 114.
205
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 2007, p. 52.
71
206
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 168-169.
207
SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.p. 62.
208
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 1986. p. 328-329.
209
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
Horizonte: Arraes, 2013. p. 28.
210
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
72
O fato é que, se por um lado Kelsen não desenvolveu maiores investigações em torno
do processo legislativo ou judicial, deve ser ressaltada sua abordagem em torno da ação.
Como sua construção teórica se baseia fortemente na ideia de que o direito subjetivo é sempre
o direito a determinada conduta de outrem, pois a cada direito corresponde uma obrigação ou
dever, a ação vai assumir em sua teoria um importante papel, como expressão da liberdade
individual enquanto “possibilidade jurídica de colocar a sanção em funcionamento”211.
Para desenvolver esse raciocínio, Kelsen enfrenta o dualismo entre direito objetivo e
direito subjetivo212, fundado em forte herança jusnaturalista, em que os direitos subjetivos
nada mais são que vontades ou interesses individuais reconhecidos e protegidos pela ordem
jurídica, e por tal razão, precedem lógica e temporalmente ao Direito estatal. Kelsen vai dizer
que essa concepção é lógica e psicologicamente insustentável, pois os direitos são abstrações
imperceptíveis aos sentidos e só podem ser afirmados ou negados pela existência ou não de
uma norma jurídica precedente. Assim, é possível afirmar que o direito objetivo é anterior ou
pelo menos concomitante ao direito subjetivo213.
Isso ocorre porque nem sempre um interesse é amparado pelo Direito e, às vezes, um
direito não se mostra de interesse do titular, que pode deixar de pleiteá-lo. O mesmo ocorre
com a vontade. Quando ela se manifesta livremente através de um acordo firmado em
contrato, não se pode falar que o direito corresponde à vontade. O Direito vai proteger o
acordo, que é a expressão da vontade na medida em que o indivíduo isolado não pode
submeter juridicamente a outra parte214. Ou como demonstra Calamandrei: “o Estado confia a
observância do direito, antes que à autoridade judicial, à livre vontade dos obrigados, e só
quando esta falta ou não se manifesta promete intervir, em um segundo momento, para
garanti-la”215.
A “ação processual” aparece de modo relevante na construção teórica de Kelsen,
sendo definida como o direito jurídico em sentido técnico, pelo qual o particular, exercendo
2012.p. 18.
211
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 116.
212
Quando se refere ao primeiro, o faz em letra maiúscula, pois se trata de uma referência ao ordenamento jurídico
como um todo. Já o segundo, são os direitos atribuídos aos particulares especificamente. Neste ponto, Kelsen
demonstra que o dualismo está presente nos mais diversos sistemas jurídicos. Na Inglaterra se expressa por
termos distintos: Law (Direito Objetivo) e rigths (Direito Subjetivo). Na Alemanha e na França o termo direito,
aparece acompanhado dos adjetivos. Desse modo, têm-se: “objektives Recht” e “subjektives Recht”, na
Alemanha. Já na França: “droit objectif” e “droit subjectif”. (KELSEN, 2000, p. 112).
213
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 113-114.
214
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 114-117.
215
CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.
Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 229.
73
sua liberdade, vai contribuir com a construção da ordem jurídica pela produção da norma
individual, ou seja, a sentença judicial,como observa Carlos Santiago Nino:
Kelsen assinala que o fato de que se outorguem aos particulares ações para reclamar
a aplicação de sanções é uma técnica particular que utilizam alguns ordenamentos
jurídicos, mas não outros. No direito penal não é geralmente utilizada,
monopolizando as ações processuais a certos funcionários públicos. No direito civil,
esta técnica é típica do sistema capitalista, nos quais se outorgam aos particulares a
faculdade de administrar seus negócios conforme a sua conveniência e a de
demandar, ou não, a quem não cumpre conforme seu interesse; do contrário, nos
sistemas socialistas, sua vigência está muito restringida.
Quando se outorga aos particulares este tipo de direitos, os permite participar da
criação da ordem jurídica, pois o exercício da ação processual tem por objeto que de
dite uma sentença judicial que é uma norma jurídica particular; ou seja, que
mediante a execução dos direitos subjetivos em sentido técnico os particulares
colaboram na criação do direito objetivo.216 (tradução livre)
interesse geral de que a ordem jurídica seja preservada, é no campo penal que essa concepção
se apresenta de modo mais evidente. A técnica, contudo, é diferente. Diz Kelsen:
Um processo criminal não pode, via de regra, ser iniciado pelas pessoas cujos
direitos foram mais diretamente prejudicados pelo delito. Na maioria das vezes, é
alguma autoridade pública, um órgão da comunidade, que tem a competência para
fazê-lo. Como a sanção criminal não depende de uma ação judicial por parte de um
indivíduo particular, nenhum indivíduo particular tem o “direito” de não ser roubado
ou morto – ou, num sentido mais amplo, de não se tornar vítima de um delito
criminal. Mas como a execução da sanção penal depende de uma ação por parte de
um órgão competente do Estado, pode-se falar de um “direito” do Estado de que os
membros da comunidade devam se abster de crimes. Neste campo, em que
interesses especialmente vitais da comunidade têm de ser protegidos, o legislador
coloca o interesse coletivo acima do interesse privado. Contudo, o processo criminal
tem a mesma forma, ou, pelo menos, o mesmo aspecto interno, do processo civil; ele
exibe uma disputa entre duas partes: no processo criminal, uma disputa entre a
comunidade jurídica, o Estado, representado por um órgão público, e um indivíduo
particular, o acusado; no processo civil uma disputa entre dois indivíduos
particulares, o queixoso e o réu. 219
Trata-se de uma concepção ainda concretista do direito de ação, pois afirma com
todas as letras que só será titular de um direito aquele que for titular da ação. Desse modo, o
princípio da obrigatoriedade da ação penal pública se apresenta como solução jurídica a
afastar quaisquer juízos de oportunidade e conveniência que poderiam levar o Estado a
negligenciar a preservação da ordem jurídica e, por conseguinte, a proteção da coletividade.
Esse é o princípio norteador da autuação dos órgãos de persecução penal, tais como a polícia
judiciária e o Ministério Público220, desde que a modernidade afastou qualquer possibilidade
de jurisdição sem ação, o que era próprio do Processo Penal inquisitivo da Idade Média e
passou a exigir uma indiferença inicial do órgão jurisdicional que, para atuar, dependerá
sempre a provocação de um sujeito agente (nemo iudex sine actore)221.
O que se percebe de todas essas construções é que elas são fruto de um racionalismo
dogmático. Na transição do medievo à modernidade há todo um esforço para superar a
tendência mistificadora do Direito, porém o que se verifica é a instalação de um dogmatismo
que caracteriza as diversas correntes do pensamento jurídico. É possível associar o
dogmatismo jurídico ao racionalismo ancestral que se manifesta por matrizes filosóficas que,
em busca de primazia, estabelecem um confronto entre idealismo e realismo. Nesse ponto a
teoria da actio penal assume especial relevância, pois, como visto, se estabilizou na forma de
219
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 121.
220
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 175.
221
CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.
Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 197.
75
222
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
45.
223
ZAMORA Y CASTILLO. Niceto alcalà: cuestiones de Terminologia Procesal. México: Universidad Nacional
Autónoma de México, 1972. p. 48.
224
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 205
225
GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Tradução de Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Editorial
Labor, 1936a. p. 100-114.
226
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007. p. 61.
76
A idéia fundamental que se encontra nos mais remotos clarões da civilização, e que,
constitui o germe de todos os institutos processuais posteriores, é a seguinte: para
alcançar uma solução pacífica do conflito, é necessário subtraí-lo às partes (as quais,
por estarem ambas ligadas ao mesmo interesse, seriam incapazes de avaliar
serenamente as razões da parte contrária: nemo judex in re sua) e confiar a decisão a
um terceiro, estranho ao conflito, que possa ser imparcial. Nessa idéia de
interposição entre as partes de um terceiro, estranho ao conflito, que possa decidir
imparcialmente, encontra-se a origem de todos os institutos judiciários.229
3.1 Jura novit curia versus nemo judex sine actore: O mito do saber jurisdicional
Observando o status adquirido pela dogmática jurídica, é possível concluir que seu
227
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1996.p. 88.
228
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 18-19
229
CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.
Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 192.
230
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o “fundamento místico da autoridade”. Tradução de Leyla Perrone-
Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 24-26.
77
arcabouço de princípios e dispositivos está para a modernidade das relações sociais, como o
mito para a antiguidade arcaica. Por isso, há que se observar o papel das construções
mitológicas no desenvolvimento humano sob o ponto de vista social, religioso e cultural. O
fato é que:
Os mitos têm a ver com mistérios profundos surgidos na travessia humana. Nessa
travessia, toda vez que faltavam argumentos racionais para interpretar o significado
dos fenômenos (climáticos, sociais, culturais, etc.), criavam-se mitos para explicá-
los231.
Com o Direito não foi diferente. Seu desenvolvimento ao longo da história sempre
guardou estreita ligação com os relatos míticos. Nas narrativas de Homero, no século VIII
a.C., o que se percebe é uma sociedade ainda primitiva e tribal, que já projetava na figura do
rei um líder com funções de ser o juiz dos conflitos privados e chefe militar nas guerras. Sua
autoridade não era absoluta. Considerava-se que Zeus estava acima do poder dos reis e chefes.
Acima de Zeus, contudo, estava o que os antigos chamavam de poder do destino, um poder
cósmico que atuava para manter para cada coisa o seu lote, impondo castigos a quem
subvertesse essa ordem natural. No final das contas, a ordem jurídica tribal era mantida por
meio das tradições, dos tabus, dos magicismos e das religiões232.
Alf Ross demonstra que esse é o fundamento do jusnaturalismo, que se perpetuou
mesmo com o advento dos grandes sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles, os quais
substituíram a magia e a religião primitivas pela especulação metafísica, porém, com o
mesmo intento de proporcionar ao homem a confiança irrefletida em um poder absoluto que o
governa desde sempre, perpetuando a ideia de que somente por meio de tal dominação é que
se garante aos povos a paz e a segurança:
231
SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER, Theobaldo. O direito, a literatura, o mito e o juiz: construções em
torno do verbo decidir. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, Unisinos, v.3,
n. 1, jan./jun., p. 102-110, 2011. p. 102-110.
232
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 269.
233
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 269.
78
234
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000. p. 272.
235
STRAUSS, Levi. Antropologia estrutural. Tradução de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. p. 265.
236
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 115.
237
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010.
238
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.
ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998.p. 67.
79
Como se nota, a ciência dogmática do Direito, ao afirmar que caberá ao juiz decidir
qual direito se aplicará ao caso concreto, instaura o princípio jura novit curia, estabelecendo a
239
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 51.
240
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2005.p. 6.
241
VICO, Giambattista. Ciência nova. Tradução de Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2008. p. 62.
242
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 258.
243
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1.p. 43.
80
presunção de que o juiz conhece a lei, sendo portador nato de um saber privilegiado que não
encontra nenhuma limitação na atividade de decidir qual o direito se aplica aos fatos que lhe
são apresentados. O juiz não estaria,assim, adstrito aos dispositivos legais invocados pelas
partes, podendo decidir segundo sua ciência e consciência244.A jurisdição se resume à
atividade do juiz e aparece legitimada, a priori, como o poder de dizer o direito por meio de
uma técnica apropriada que garante, “a partir do ato de criação do Estado, do sentimento dos
juízes, ou de escopos metajurídicos, o mais alto grau de violência realizante possível”245.
O enfoque jurisdicêntrico, confere à atividade dos juízes uma confiabilidade
pressuposta, numa concepção egológica em que o objeto da ciência jurídica deixa de ser as
leis e o seu esclarecimento e passa a ser a conduta humana em face das leis. Nesse contexto, o
método jurídico se torna irrelevante, como se constata na obra de Carlos Cossio:
[...] uma vez iniciada uma experiência jurídica, à medida que esta se desenvolve,
aparece um fenômeno de objetivação axiológica muito mais interessante e firme
como possibilidade de ciência dogmática e como pauta para comprovar a
objetividade emocional da instituição judicial. Refiro-me à jurisprudência dos
tribunais. Quando já existe assentada uma jurisprudência a respeito do alcance
preciso de uma norma geral, todos os métodos ficam em silêncio e nenhum acordo
se extrai deles, nem sequer dos teóricos que trabalham de verdade sobre o Direito
positivo. Basta invocar a jurisprudência existente e o conhecimento resulta mais
seguro e, por isto, mais eficaz, sem importar que esta jurisprudência neste caso seja
exegética, em outro sistemática e em outro teleológica e em outro sociológica, etc.
A questão do método desaparece da experiência e da ciência. Só renasce quando se
deseja promover uma mudança de jurisprudência.(tradução nossa)246
244
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007.p. 234.
245
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.p.
119.
246
“[...] una vez iniciada una experiencia jurídica, a medida que ésta se desarrolla, aparece un fenómeno de
objetivación axiológica mucho más interesante y firme como posibilidad de ciencia dogmática y como pauta
para comprobar la objetividad emocional de la intuición judicial. Me refiero a la jurisprudencia de los tribunales.
Cuando ya existe sentada jurisprudencia respecto del alcance preciso de una norma general, todos los métodos se
llaman a silencio y nadie se acuerda de ninguno de ellos, ni siquiera los teóricos que trabajan de verdade sobre el
Derecho positivo. Basta invocar la jurisprudencia existente y el conocimiento resulta más seguro y, por ello, más
eficaz, sin importar que esa jurisprudencia en este caso sea exegética, en aquel otro sistemática, en aquel otro
teleológica, en aquel otro sociológica, etc. La cuestión del método ha desaparecido de la experiencia y de la
ciencia. Sólo renace cuando se desea promover un cambio de jurisprudencia.” (CO S SIO , 1 9 5 4 , p. 248-249).
81
Aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo,
constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na
normalidade. Num certo sentido a criminologia contemporânea dá guarida a esse
subsistema, colocando-o na escala mais elevada de gravidade criminosa a justificar a
adoção de mecanismos excepcionais a combatê-la, embora sempre defenda o
modelo de estado democrático e de direito como limite máximo da atividade
legiferante nessa seara.250
O resultado é que, atualmente, nos mais diversos países, verifica-se uma situação de
fato que se caracteriza como emergencial e que resulta na sensação de que há uma
247
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 107.
248
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011b. v.2.p. 377-378.
249
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 40.
250
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 5-6.
82
251
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 4.
252
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 131–132.
253
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 649.
254
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 656-659
255
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 173.
83
sistema acusatório em sua pureza, não subsiste hoje, nem mesmo na Inglaterra, sobretudo
após a edição, em 1984, do PACE (The Police Criminal Evidence Act), ato que disciplina a
atividade policial e a produção de provas em juízo. Mesmo relegando a atividade judicial a
uma posição de complementariedade, ao estabelecer a plena liberdade das partes na produção
da prova, há momentos em que as diversas cortes podem intervir ativamente na aquisição de
elementos probatórios eventualmente negligenciados pelas partes. Além disso, os poderes
instrutórios atribuídos à polícia e ao Serviço de Persecução da Coroa (CPS) fazem com que a
maior parte dos processos termine de forma negociada (plea-bargaining) com as chamadas
sentenças mitigadas, em que o acusado se abstém do direito de defesa em troca de uma pena
que normalmente é reduzida em 30% do quantum que normalmente se aplicaria ao fim do
procedimento256.
Wienfried Hassemer alerta para a preocupante tendência atualmente observada no
tratamento dos direitos fundamentais pela União Européia, pois a população tende a enxergá-
los como “certo obstáculo numa luta eficaz do Estado contra a criminalidade”, na contramão
do estágio atual de desenvolvimento do direito constitucional. Ao externar a impressão de que
“a União Européia não tem nenhuma sensibilidade formada acerca dos riscos do Direito
Penal”, afirma que há limites para a restrição dos direitos fundamentais. Não são limites
traçados graficamente, porém, por serem jurídicos, surgem como reforços argumentativos a
partir de duas fontes: “a tradição jurídico-penal, sobretudo dos séculos XVIII e XIX e da
primeira metade do século XX, a qual consistiu sempre numa limitação das intervenções do
Estado por intermédio do Direito Penal”; e os direitos de liberdade constitucionalizados. O
problema para Hassemer é que as duas tradições andam separadas, pois “os penalistas não têm
a menor idéia da Constituição, e os constitucionalistas têm uma atitude de total indiferença
perante o Direito Penal, com algumas exceções”257.
O autor ressalta que é perfeitamente possível reduzir criminalidade sem restrições
aos direitos fundamentais, utilizando-se o que ele chama de “equivalentes funcionais” ao
Direito Penal, como, por exemplo, os investimentos em tecnologia de segurança que já se
demonstraram eficientes no combate à criminalidade organizada, evitando-se o uso de
expedientes invasivos e violadores dos direitos fundamentais. Seu argumento volta-se contra
o projeto de Constituição Européia, o qual incorpora a tentativa de estabelecimento de um
256
SPENCER, Herbert . O sistema inglês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa.
Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen
Juris. 2005. p. 249;275;294;332.
257
HASSEMER, Wienfried. Processo penal e direitos fundamentais. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte,
Ano 8, n. 16, 2006. p. 71-75.
84
258
HASSEMER, Wienfried. Processo penal e direitos fundamentais. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte,
Ano 8, n. 16, 2006. p. 71-75.
259
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1. p. 171.
260
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 17.
261
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação
dada pela Lei nº 11.690, de 2008).
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e
relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690,
de 2008).
-----
85
longe de ser alcançada, como se vê nos mais diversos ordenamentos, o conceito de isomenia,
desenvolvido por Rosemiro Pereira Leal e que permeia esta pesquisa, busca implementar "a
possibilidade de entender e discutir os problemas jurídicos que possam enfrentar e erradicar
com significados constitucionalizados mediante o simétrico exercício de igual direito
fundamental (instituinte da co-institucionalidade) de interpretação para todos"262.
Para uma compreensão mais adequada do princípio da demanda (nemo iudex sine
actore) no Processo Penal, uma importante tarefa que se impõe diz respeito ao exato papel
desempenhado pelo Ministério Público. Compreendê-lo como parte em sentido processual é
um passo importante:
Como bem explica HÉLIO TORNAGHI, enfatizando que o interesse dele “em que
se faça justiça não o induz a proceder da mesma forma que o juiz, pois então haveria
uma inútil duplicação”, o Ministério Público “é parte como órgão (e não
representante) do Estado. O aspecto ritual do processo a tanto leva, porque, além de
o Ministério Público ser fiscal de aplicação da lei, ele exerce a função de acusar.
Essa última é sua atribuição precípua, uma vez que o processo está organizado em
forma contraditória. Pode acontecer que durante o processo o Ministério Público se
convença da inocência do acusado e peça para ele a absolvição. Mas o contraste
inicial, nascido com a denúncia, permanece, uma vez que a lei não dispensa o juiz de
apurar a verdade acerca da acusação e de condenar, se entender que o réu é
culpado”.263
Como parte, ou seja, como “pessoa legitimada pela lei a atuar a lei” 264, ao Ministério
Público são atribuídos ônus processuais dos quais deve se desincumbir satisfatoriamente para
que obtenha a procedência de sua pretensão. No atual estágio das cogitações acerca do
Processo é possível afirmar com Aroldo Plínio Gonçalves:
Não há relação jurídica entre o juiz e a parte, ou ambas as partes, porque ele não
pode exigir delas qualquer conduta, ou a prática de qualquer ato, podendo, qualquer
das partes, resolver suas faculdades, poderes e deveres em ônus, ao suportar as
conseqüências desfavoráveis que possam advir de sua omissão.265
Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada
pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do
assistente, ou por representação da autoridade policial. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
262
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 270.
263
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p. 186.
264
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 95.
265
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 98-99.
86
Sua legitimação é para instaurar o procedimento penal emanado da lei, o qual deverá
observar o Devido Processo Constitucional. A expressão jus puniendi é errônea. A
punição pode ser ou não o resultado do provimento final. Não se pode falar em
titular da punição como algo imanente e natural. A expressão jus puniendi dá uma
idéia de um direito subjetivo prévio ao processo, uma condenação sem julgamento.
No Estado Democrático não se chega a nenhuma conclusão sem o exercício do
Devido Processo Legal.268
266
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 109.
267
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 130.
268
CHAVES, Charley Teixeira. Ministério Público como instituição permanente popular: os sujeitos
processuais no direito democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012.p. 183.
269
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p.117.
270
SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004.p. 160.
87
Essa concepção reforça a ideia de que o Ministério Público deve ser reconhecido
como parte no Processo Penal, pois afirmar que, após o oferecimento da denúncia, deixa de
ser acusador e passa a ser fiscal da lei (custos legis) é apenas um exercício de ficção jurídica,
pois é de se indagar como pode permanecer como "fiscal" um órgão que, no curso das
atividades processuais que se sucedem, "continua atuando, inquirindo, provando, ou seja,
participando ativamente do procedimento penal, agora, não na função de acusar"271. A
principal virtude de tal postura é a clareza na definição do papel exercido pelo Ministério
Público, no Processo Penal. O contrário se dá quando Carnelluti passa a rechaçar a concepção
de lide no Processo Penal, definindo-o como processo de jurisdição voluntária, pois, ao
mesmo tempo em que se afirma que as partes não têm interesses contrapostos, se reconhece
que o Ministério Público, possui, sim, interesse na punição, a despeito de não ser considerado
parte no conflito subjacente. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho aponta as contradições
dessa concepção:
271
CHAVES, Charley Teixeira. Ministério Público como instituição permanente popular: os sujeitos
processuais no direito democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. p. 67.
272
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá Editora,
1998a. p. 107.
88
273
“Il pubblico ministero svolge nel procedimento penale la funzione di parte pubblica. Egli rappresenta l'interesse
generale dello Stato-comunità, e cioè l'interesse della società che è stata lesa dal reato.Ben distinta è la situazione
soggetiva dello Stato-persona, che è rappresentato dall'avvocatura dello Stato. Infatti, quarola il reato abbia
cagionato un danno ad un bene dello Stato, il ministro competente può decidire di chiedere il risarcimento nel
processo penale. In tal caso il ministro, che si costituisce parte civile, è rappresentato dall'avvocatura dello Stato”
“O Ministério Público desenvolve no procedimento penal a função de parte pública. Ele representa o interesse
geral do Estado-comunidade, e aquele interesse da sociedade lesada pelo crime. Bem distinta é a situação
subjetiva do Estado-pessoa, que é representado pela advocacia do Estado. De fato, em qualquer crime que causa
um dano a um bem do Estado, o ministro competente pode decidir de buscar o ressarcimento pelo processo
penal. Em tal caso, o ministro que se constitui como parte civil, é representado pela advocacia do Estado”
(tradução nossa) ( TONINI, 2010, p. 50-51).
274
GIORGIS, José Carlos Teixeira. A lide como categoria comum do processo. Porto Alegre: Letras Jurídicas
Editora, 1991. p. 111.
275
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 2. 1982. p. 9-
10.
276
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial,
2007a.p. 57.
89
(persecução penal extra judicio) pelos seus órgãos nas mais variadas esferas de
competência277. Há uma notável tendência de reconhecer a possibilidade do Ministério
Público conduzir a investigação preliminar, conforme é possível observar em países como
Espanha, Portugal e Itália278.
No caso italiano, o Codice di Procedura Penale de 1988, estabeleceu expressamente
em seus arts. 326 e 327 atribuições investigativas ao Ministério Público, submetendo a Polícia
Judiciária às suas determinações, nos procedimentos instaurados pela instituição. Como
demonstra Aury Lopes Júnior, tal sistema teria despertado um verdadeiro furor investigativo
no Pubblico Ministero:
277
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2001. p. 81.
278
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 162
279
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2001. p. 82-83.
90
3.2 Processo como judicium: ausência do devido processo e retorno aos primórdios do
Pensamento Metafísico
280
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 85.
281
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 163.
282
CHAVES, Charley Teixeira. Ministério Público como instituição permanente popular: os sujeitos
processuais no direito democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. p. 153.
283
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2001. p. 84.
284
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 2. 1982. p.
43.
91
285
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 5-6; OLMEDO,
Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 2. 1982. p.43.
286
"O modelo napoleônico de processo misto se difundiu no século passado em toda Europa, fixando raízes firmes
especialmente na Itália. Importo no Reino itálico contra o projeto de codificação elaborado por Romagnosi em
1806, foi acolhido pelos Códigos borbônico de 1819, de Parma de 1820, pontifício de 1831, toscano de 1838 e
pelos Códigos piemonteses de 1847 e 1859; e se conservou ininterruptamente, com variações apenas marginais,
no Código italiano de 1865, no de 1913 e finalmente no Código Rocco de 1930. A mistura e o compromisso
entre os dois modelos continuaram na era republicana, através da introdução de fracos elementos acusatórios na
fase instrutória, mas ao lado de maiores poderes judiciais aos órgãos inquiridores. Disso resultou uma ulterior
acentuação do caráter de juízo autônomo da fase instrutória e um progressivo esvaziamento da fase dos debates,
reduzida a mera e prejulgada duplicação da primeira" (FERRAJOLI, 2002, p.454).
287
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 4.
92
A relação jurídica processual se distingue das demais relações de direito por outra
característica singular, que pode ter contribuído, em grande parte, ao desconhecimento
de sua natureza de relação jurídica contínua. O processo é uma relação jurídica que
avança gradualmente e que se desenvolve passo a passo. Enquanto as relações
jurídicas privadas que constituem a matéria do debate judicial, apresentam-se como
totalmente concluídas; a relação jurídica processual se encontra em embrião. Esta se
prepara por meio de atos particulares. Somente se aperfeiçoa com a litiscontestação, o
contrato de direito público, pelo qual, de um lado, o tribunal assume a obrigação
concreta de decidir e realizar o direito deduzido em juízo e de outro lado, as partes
ficam obrigadas, para isto, a prestar uma colaboração indispensável e a submeter-se
aos resultados desta atividade comum. Esta atividade ulterior decorre também de uma
série de atos separados, independentes e resultantes uns dos outros. A relação jurídica
processual está em constante movimento e transformação. 290
Mas o fato é que Bülow, não obstante ter inaugurado a ciência processual, enredou-a
em um paradoxo insanável apontado com acuidade por André Cordeiro Leal291 e que consiste
no fato de que ao afirmar que o Processo é uma relação jurídica de direito público, vincula as
partes às interpretações e decisões dos tribunais, instaurando uma estrutura autoritária. Em sua
clássica obra editada em 1868, afirma:
A validez da relação processual é uma questão que não pode deixar-se liberada em
sua totalidade à disposição das partes, pois não se trata de um ajuste privado entre os
litigantes, só influenciado por interesses individuais, mas sim de um ato realizado
com a ativa participação do tribunal e sob a autoridade do Estado, cujos requisitos
são coativos e em maior parte, absolutos. 292
288
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 280-281; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do
processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 83-84.
289
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007.
290
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 6.
291
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p.
60.
292
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 258.
93
Esse paradoxo constitui-se num obstáculo à garantia dos direitos fundamentais, por
ser inconcebível que algo (processo) seja instrumento, meio ou método livre de
atuação do poder de criação e dicção do Direito e, ao mesmo tempo, sua própria
limitação.
À falta de adequadas respostas (crise) do modelo formalista (liberal-burguês),
concomitante ao avanço do desenvolvimento técnico proporcionado pelo
capitalismo gerador de um mundo desencantado (Weber), contrapôs Bülow a criação
do Direito conforme o sentimento ou desejo dos juízes (livre e discricionariamente)
hauríveis à coletividade de sangue e solo (nação) e aos seus concretos valores, ainda
que além, contra ou fora dos textos legais.295
293
Este é talvez, o ponto mais importante deste trabalho e será adiante desenvolvido tendo como marco a Teoria
Neoinstitucionalista do Processo, que concebemos capaz de escapar do paradoxo de Bülow, pois estabelece o
Processo como "instituição pública constitucionalizada de controle tutelar da produção dos provimentos, sejam
judiciais, legislativos ou administrativos" (LEAL, 2012, p. 53).
294
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.p. 139.
295
A relação jurídica como técnica de suspensão da lei pelo juiz e a ideologia da decisão judicial como atividade
complementar da função legislativa e fonte criadora do direito ainda presentes no novo CPC: apontamentos
críticos à exposição de motivos. (ROSSI, 2011, p. 602).
296
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
188.
297
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.p.
30.
94
de Sérgio Tiveron298.
As consequências práticas e teóricas das cogitações de Bülow, mediante a sua
notável influência na processualística dos países de Direito romano-germânico, são visíveis
também no Direito Processual Penal. Ainda que este se estruture sob o rótulo de acusatório, a
teoria relacionista vai produzir efeitos altamente nefastos, pois contraria o paradigma
democrático ao servir de sustentáculo à "ditadura do senso comum como agente municiador
de expectativas securitárias de lei e ordem"299.
É perceptível a influência de tais concepções, pela atuação solipsista e, por vezes,
discricionária do julgador300, instaurando um protagonismo judicial, cujo primeiro grande
exemplo no campo da legislação se deu com a Ordenança Processual Civil (ZPO) do império
austro-húngaro, elaborada em 1895, por Franz Klein, então Ministro da Justiça, que
consagrou os princípios da oralidade, mediação, concentração dos atos processuais e
informalidade301.
A ZPO austríaca tem como fonte direta a StPO (Strafprozessording) alemã de 1877,
que já consagrava o princípio do juiz diretor, que se lançava à instrução, investigação e busca
da "verdade material" independente da atividade das partes, conforme constata Jairo Parra
Quijano302. O fato é que, no contexto da monarquia dual austro-húngara, Franz Klein já
atribuía ao processo escopos metajurídicos (políticos, econômicos e sociais) e, ao mesmo
tempo, via nos litígios uma expressão de crise social que reclamava uma atuação mais direta e
ativa do Estado na sua resolução303.
Há uma relação entre as inovações legislativas capitaneadas por Klein e a teoria de
Bülow. Este último, como é notório, desenvolveu toda a sua teoria das exceções e dos
pressupostos processuais tendo como destinatária a comissão que trabalhava na elaboração da
ordenança processual civil da confederação alemã304, ordenança esta que, como visto, serviu
de fonte inspiradora para as medidas de Klein. Ambos representam um modelo de socialismo
processual próprio do final do século XIX, que se caracteriza principalmente pelo
298
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.p.
30.p. 598.
299
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 53.
300
A exemplo do disposto nos arts. 156 e 385 do Código de Processo Penal brasileiro.
301
QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.
40.
302
O autor demonstra ainda uma inspiração remota para a legislação elaborada por Franz Klein: O regulamento
processual do monarca austríaco José II em 1791, exemplo de legislação produzida pelo chamado "despotismo
ilustrado". (KLEIN apud QUIJANO, 2004, p. 42).
303
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 83.
304
BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 266.
95
intervencionismo estatal nas questões privadas. Enquanto a influência de Bülow se fez notar
na doutrina, Klein exerceu forte influência na legislação305, contribuindo para que concepções
autoritárias de processo vicejassem no século XX, criando fortes entraves ao desenvolvimento
de uma processualidade democrática, pois instaura uma nova inquisitoriedade, ainda que
disfarçada.
309
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 28-29.
310
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade
constitucional). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.p. 71.
311
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. .
56.
312
LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p.
137.
313
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
181.
97
anti-social.314
314
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
196.
315
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
197.
316
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
198.
317
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
204.
318
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001;
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 119.
319
WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias e Gerard
Georges Delaunay. 5. ed. São Paulo: Centauro Editora, 2008. p. 97.
320
A contraposição do instrumentalismo com a teoria da processualidade democrática será melhor explorada no
98
[...] não se pode deixar de ter na devida conta que, estreitamente ligado ao Direito
Penal, e atendendo às diretrizes estabelecidas pelo escopo de suas respectivas
normas - de consecução do bem comum e correlata pacificação social, assecuratória
da segurança pública -, o processo penal objetiva, concomitantemente, dupla
finalidade, a saber:
a) por um lado, a tutela da liberdade jurídica do indivíduo, membro da comunidade;
e,
b) de outra banda, o de garantia da sociedade, contra a prática de atos penalmente
relevantes, pelo ser humano, em detrimento de sua estrutura. 321
Capítulo 4.
321
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p. 170-171.
322
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 12.
323
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 105
99
324
Este trabalho aborda adiante as possíveis distinções entre contemporaneidade, pós-modernidade e neo-
modernidade.
325
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.
329.
326
JUY-BIRMANN, Rudolphe. O sistema alemão. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da
Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro:
Lumen Juris. 2005.p. 23.
100
dessa etapa, o juiz pode determinar, no prazo de dez dias, que o Ministério Público formule a
imputação (L’imputazione coatta – art. 409, comma 5)327, numa clara derrogação do princípio
nulla jurisditio sine actione, que, segundo a doutrina, se justifica pela exigência permanente
de assegurar a garantia de um órgão imparcial numa fase em que o Ministério Público pode
adotar providências que vão incidir sobre o direito fundamental de liberdade328.
Esses exemplos ajudam a encaminhar o ponto central desta tese, que se propõe a
apontar a verdadeira crise dogmática que se instaura pela contraposição entre acusatoriedade e
inquisitoriedade, como tipos ideais estruturados ideologicamente, ao sabor das preferências
dos regimes de “Poder”. Contudo, as tentativas de superar essa dicotomia, não raras vezes,
resultam em mero sincretismo e pouco contribuem para o esclarecimento dos fundamentos
teóricos da linguagem decisória empregada no Processo Penal, o que se mostra de
considerável importância no paradigma do Estado Democrático de Direito.
327
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 289.
328
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 233.
101
329
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 89-93.
330
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
p. 73
331
ARISTÓTELES. Tratados de lógicas - Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.
Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. p. 90.
332
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Imprensa Nacional, 1979. p. 24.
333
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 94.
102
334
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 93.
335
ARISTÓTELES. Tratados de lógicas - Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.
Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. p. 90-91.
336
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina
Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 48.
337
Silogismo retórico formado por premissas prováveis, que não apresentam uma conclusão de certeza absoluta.
(ABBAGNANO, 2007, p. 334).
338
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 213-214.
339
ARISTÓTELES. Tratados de lógicas. Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.
Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. Libros II a VII.
340
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Imprensa Nacional, 1979. p. 26-27.
103
[...] não havendo uma definição clara do legislador, é certamente ao juiz que cabe
decidir, sem cuidar de saber o que pensam os litigantes.
É, pois, sumamente importante que as leis bem feitas determinem tudo com maior
rigor e exactidão, e deixem o menos possível à decisão dos juízes. Primeiro, porque
é mais fácil encontrar um ou poucos homens que sejam prudentes e capazes de
legislar e julgar do que encontrar muitos. Segundo, porque as leis se promulgam
depois de uma longa experiência de deliberação, mas os juízos se emitem de modo
341
“La consideración de lo semejante es útil para los argumentos por comprobación, para los razonamientos a
partir de una hipótesis y para dar las definiciones. Para los argumentos por comprobación porque juzgamos
oportuno comprobar lo universal mediante la comprobación por casos singulares sobre la base de las semejanzas:
pues no es fácil comprobar sin percibir las semejanzas. Para los razonamientos a partir de uma hipótesis, porque
es cosa admitida que, tal como ocurre con una de las semejanzas, así también ocurre con las restantes. De modo
que, respecto a cualquiera de esas cosas en que dispongamos de buenas bazas para la discución, acordaremos
previamente que, tal como ocurre en esos casos, así también ocurre en lo previamente establecido, y, una vez
ayamos mostrado aquello, también habremos mostrado, a partir de la hipótesis, lo previamente establecido; pues,
habiendo dado por supuesto que, tal como ocurre en esos casos, así también ocurre en lo previamente
establecido, hemos construido la demonstración.” (ARISTÓTELES, 1982, p. 119-120).
342
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Imprensa Nacional, 1979. p. 41.
343
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 216-218.
344
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 147.
104
Apesar dessas recomendações, é evidente que são muitas as questões submetidas aos
juízes e, sobretudo na experiência jurídica dos séculos XX e XXI,até mesmo questões de
fundo axiológico passaram a ser submetidas ao judiciário que, por sua vez, passou a decidir
com a preocupação de que seus argumentos recebam a maior adesão possível de um auditório
universal, formado pelo conjunto de cidadãos, prevalecendo, assim, os argumentos
“privilegiados pelo senso comum”, acolhidos pela ciência jurídica na forma de princípios
gerais e enunciados jurisprudenciais, formando desse modo, um catálogo de topoi
específico346. Essa perspectiva pode ser observada nos trabalhos de Chaïm Perelman e
Theodor Viehweg.
Perelman, ao desenvolver sua teoria da argumentação, à qual denomina “nova
retórica”, pretende atribuir aos juízos valorativos um grau de objetividade, que antes o
positivismo jurídico só reconhecia aos chamados juízos de realidade. A solução jurídica
dependerá das peculiaridades do problema, conceitos ou ideias abstratas podem adquirir
concepções variadas e relativas, perdendo seu caráter absoluto:
Que fazer quando a adesão simultânea a vários valores ou a várias regras redunda,
em casos particulares, em incompatibilidades e antinomias? O senso comum
considera valores, admitidos por todos, a liberdade e a justiça. Mas pode acontecer,
mal os definimos desta ou daquela maneira, que eles venham a chocar-se em uma
situação particular. Para resolver a incompatibilidade que se apresenta, será
necessário sacrificar um dos dois valores ou redefinir um deles, a fim de subordiná-
lo ao outro. Para tanto, dissociamos uma noção, qualificando de aparentes alguns de
seus aspectos. Se certa concepção de justiça conduz a uma tirania que queremos a
todo custo evitar, nós a qualificaremos de justiça aparente. Se certo uso da liberdade
viola o ideal de justiça, ao qual concedemos primazia dentro de certa visão do
homem e da sociedade, diremos que se trata de licença ou de liberdade aparente. É
assim que a solução de conflitos entre valores, aceitos pelo senso comum, pode
conduzir a concepções filosóficas e ideológicas diferentes, pois há várias maneiras
de resolver um conflito entre valores e normas múltiplos em dada situação. 347
345
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 91.
346
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
152.
347
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 162-163.
105
Minha análise do processo judicial vem, pois, a dar no seguinte, ou em pouco mais
do que isso: a lógica, a história, o costume, a utilidade e os standards aceitos de
comportamento correto são as forças que, separadamente ou em combinação,
impulsionam o progresso do direito. Qual dessas forças dominará em um caso
concreto, eis o que dependerá, largamente da importância ou do valor comparado
dos interesses sociais que, em consequência, serão promovidos ou prejudicados. (24)
Um dos interesses sociais mais fundamentais é o de que o direito deve ser uniforme
e imparcial. Não deve haver na sua ação coisa alguma que tenha visos de prevenção
ou favor, ou mesmo de capricho ou inconstância arbitrários. Portanto, na maioria
dos casos, haverá adesão ao precedente.352
348
ALMEIDA, Guilherme Assis de; BITTAR, Eduardo C. B. Curso de filosofia do direito. 4. ed. São Paulo:
Atlas, 2005. p. 420 .
349
BARROSO, Luís Roberto. O novo constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2013.p. 206208.
350
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 174.
351
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
150.
352
CARDOZO, Benjamim N. A natureza do processo e a evolução do direito. Tradução de Lêda Boechat
Rodrigues. Brasil: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 63-64.
106
353
CARDOZO, Benjamim N. A natureza do processo e a evolução do direito. Tradução de Lêda Boechat
Rodrigues. Brasil: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 61.
354
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá Editora,
1998a. p. 140.
355
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa
Nacional, 1979. p. 50.
356
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa
Nacional, 1979. p. 50.
107
mais prático da tópica de Cícero, com relação à tópica de Aristóteles, como demonstra
Manuel Atienza:
357
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina
Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 48.
358
QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.
33-36.
359
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,
1997.p. 70-72.
108
360
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 154.
361
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 38.
362
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008a.p. 91.
363
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 113.
364
POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial
Fragmentos, 2006. p. 9. "Organon é o título do conjunto de textos aristotélicos que, para muitos, inauguraram a
lógica clássica. São eles: Categorias, Sobre a interpretação, Analíticos primeiros (dois livros), Analíticos
segundos (dois livros); Tópicos (oito livros) e Refutações sofísticas. Em 1620, Francis Bacon publica uma obra
refutando toda a Lógica de Aristóteles, instaurando um sistema de investigação fortemente estruturado no
indutivismo. A esse trabalho deu o título de Novum Organun. (ABBAGNANO, 2007, p. 734).
365
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 4.
366
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005 p. 290-291.
367
ARISTÓTELES. Tratados de lógicas - Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.
109
seria o mecanismo empregado para que uma conclusão adquirisse irrefutabilidade. Mas há
que se observar a diferença de método entre a tópica retórica (método antigo) e a lógica de
Descartes (método moderno ou crítico), assinalada por Viehweg, em sua “alusão a Vico”:
Quando Popper propõe uma teoria das consequências institucionais que se debruçaria
sobre problemas relativos à criação e desenvolvimento das instituições sociais, o faz
afirmando que a epistemologia poderia ser uma saída para a "intranquilidade filosófica e
religiosa de nossos tempos" que resultou em niilismo, desolação e existencialismo. Essas
perspectivas, que demonstram um desapontamento com a atividade intelectual no século XX,
decorrem do fato de que não podemos justificar racionalmente nossas teorias, ou mesmo
"provar que são prováveis". No entanto, deveríamos nos satisfazer com o fato de poder
criticá-las racionalmente. É o que nos proporcionaria distingui-las de "outras piores"372. É
pelo racionalismo crítico que avançamos a uma epistemologia processual evolucionária que,
como será demonstrado adiante, pode contribuir para afastar o ceticismo radical marcado por
uma inteira desconfiança em nossas capacidades cognitivas373.
Como a crítica esclarecida somente é possível por meio de teorias, Rosemiro Pereira
Leal vai afirmar que tal postura requer uma teoria do discurso proposicional que possa
permitir ao Direito escapar do sincretismo das lógicas, que hoje se mostra tão útil ao
protagonismo do juiz-decisor:
371
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 186.
372
POPPER, Karl Raimund. A lógica das ciências sociais. Tradução de Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho;
Estevão de Rezende Martins e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.
p. 34.
373
“Pràxicamente, o céptico não vive o cepticismo, como nos mostrou Aristóteles. Êle sabe quando come porque
come, e evita confundir os factos uns com os outros (um trireme com uma carruagem, etc.). Distingue uma
ilusão de uma realidade. Não é, para êle, a mesma coisa a imagem de um prato de comida e o prato de comida
que êle come. Portanto, tem de reconhecer que tem um critério, por duvidoso que seja êle, mas que lhe serve
para não enganar-se sempre.De omnibus dubitare (duvidar de todas as coisas) não o consegue, e quer queira quer
não, tem certezas especulativas inevitáveis.
O nihil esse certum implica contradição por que é certum que nada é certo.
A objeção céptica poderia ser exposta sologìsticamente assim:
Não podemos ter fé em nossas faculdades se nos induzem ao êrro.
Ora, elas nos induzem ao êrro. Logo não podemos confiar em nossas faculdades.
Responde-se deste modo: examinemos a maior. Se nossas faculdades sempre e por si mesmas nos induzem ao
êrro, concederíamos. Mas se é de algum modo ou acidentalmente, já negaríamos.
Se nem sempre erramos, nem tudo é êrro. É preciso ver até onde vai o êrro e como se dá.” (SANTOS, 1958, p.
109-110)
111
Essa inclusão discursiva permitiria que nos livrássemos dos conceitos absolutizantes,
pois a ambiguidade dos conceitos estaria já reconhecida, na medida em que seu sentido
depende sempre das intenções de quem os pronuncia375. Uma vez que se reconhece a chamada
intentio operis, é possível concluir que cada texto pretende formar um leitor-modelo, o que
implica em relativizar a intentio lectoris. Conforme demonstra Umberto Eco, “um texto é um
dispositivo concebido para produzir seu leitor-modelo. Repito que este leitor não é o que faz a
“única” conjetura “certa”. Um texto pode prever um leitor-modelo com o direito de fazer
infinitas conjeturas”376. Mas isso não implicaria acolher de modo irrefletido a veriphobia, a
ponto de afirmar que a verdade não só deixou de constituir um valor como passou a ser
entendida como um desvalor no contexto do Estado Democrático de Direito377. A inclusão
discursivamente proposicional é que vai permitir superar essas perplexidades, porém, sem
instaurar uma nova crença.
É importante, pois, esclarecer que a proposição em si, é tão somente uma forma
lógica e, como tal, para se apresentar como portadora de verdade, deve permitir que suas
variáveis sejam submetidas a teste, pois a verdade do composto depende da verdade dos
componentes378. O que o paradigma democrático vai exigir é que haja uma possibilidade de
arguição incessante das verdades que sustentam os componentes proposicionais, e aqui surge
o caráter refutativo das normas de processo pelas quais, dentre outras garantias, se enuncia a
prova, o que não quer dizer que esta atividade não possa estar sujeita a paradoxos379. É que
geralmente a prova é vista como demonstração. Ocorre que no seu demonstrar se expõe ao
374
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 155-156.
375
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 68.
376
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 75.
377
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.
2009. p. 98-99.
378
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 118.
379
Cabe aqui uma referência ao célebre paradoxo da prova formulado por Rui Cunha Martins como resultado de
seu diálogo com o filósofo Fernando Gil: "A prova não deve ser fraca: prova fraca é aquela que se satisfaz com a
verosimilhança, com o que se diz ser uma crença racional. Mas a verosimilhança que, fora da lógica e da
matemática, é o regime normal da prova, não é em si um critério satisfatório, por mais convincente que seja. A
verosimilhança não remove a eventualidade de excepções e de contra-exemplos - e as crenças racionais podem
revelar-se erróneas: os erros judiciários assentam sempre em verosimilhanças e crenças racionais. Portanto, a
prova tem de ser forte. Mas a prova forte revela-se de imediato demasiado forte - e, nesse momento, se essa
demasia se dá nos termos de uma ostensão de feição alucinatória, ela resvala sem escape, para o terreno da
evidência, a qual, veja-se a ironia, tende a dispensar a prova" (MARTINS, 2011, p.7-8).
112
teste intersubjetivo de suas proposições pela decomposição de seus enunciados, o que vai
permitir a dessujeitização da linguagem por uma declaração de sentido desgarrada do sujeito
da enunciação e produzida coletivamente em um nível heterodiscursivo380, com auxílio da
lógica jurídica, que, se não fornece o conteúdo de uma “razão suficiente”, exige que se
aplique tal princípio para determinar a validez ou invalidez de uma norma, bem como a
verdade ou falsidade de um determinado enunciado jurídico, seja ele um texto legal ou uma
sentença judicial381.
É possível afirmar, desse modo, que o discurso jurídico-processual tem como ponto
relevante de sua caracterização democrática a forma como vai lidar com a formação dos
juízos valorativos que são inevitáveis em Direito, haja vista a própria necessidade de
valoração e valorização da prova cujos critérios são objeto de justificada atenção da Teoria
Geral do Processo382. A valoração ou valorização em processo não pode ocorrer por decisões
solipsistas pautadas por critérios de ponderação que, apesar de engenhosos não se prestam a
um esclarecimento epistemológico, como exige o paradigma democrático, pois confundem
princípios jurídico-constitucionais com valores, argumentando que do mesmo modo que
podem ocorrer colisões entre princípios é possível haver uma colisão entre valores383.
Também não é recomendável que a valoração ou valorização, em Direito Processual
Penal, ocorra por critérios discursivos com pretensões de ética universal que buscam se
estabelecer a pretexto de livrar a humanidade da catástrofe da qual ela própria é causadora
pelas "incursões técnico-científicas do homem na natureza"384. Não seria a confiança de que
os sujeitos processuais se comportariam conforme uma ética universal, ou conforme uma
"dimensão espiritual"385, segundo a observância da alteridade, por uma concessão magnânima
do sujeito, que asseguraria a democraticidade processual386. É que na atualidade dos estudos
processuais não basta afirmar a plurissubjetividade do procedimento, pois só haverá processo
legitimador da decisão se for assegurada aos "destinatários dos efeitos"387 do ato decisório a
380
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274-
275.
381
MÁYNEZ, Eduardo García. Introducción a la logica juridica. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1951. p.
132 .
382
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 194.
383
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. Madrid:
Centro de Estudos Constitucionales, 1993p. 138.
384
COSTA, Regenaldo da. Ética do discurso e verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 174.
385
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho. Estado de direito e decisão jurídica: as dimensões não-
jurídicas do ato de julgar. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et al. Decisão judicial: a
cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012.p. 130.
386
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 103.
387
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
113
simétrica paridade, que não só dispensa expectativas esperançosas, como permite interrogar a
"ética" do julgador. O desdobramento dessa conjectura fica para o capítulo final desta
pesquisa.
4.2.1 O discurso jurídico como caso particular do discurso geral na teoria de Robert Alexy
2006. p. 119.
388
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.p. 120.
389
LEAL, Rosemiro Pereira. LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória
conjectural. Belo Horizonte: Arraes, 2013. p. 8.
114
A dogmática jurídica é (1) uma classe de proposições que (2) se relacionam com
normas atuadas e lei causal mas não são idênticas à descrição das mesmas, e (3)
estão em algum inter-relacionamento mútuo coerente, (4) são compostas e discutidas
no contexto de uma ciência jurídica institucionalmente organizada e (5) tem
conteúdo normativo.391
mudanças bruscas de posicionamento sobre uma questão sem que haja uma violação das
regras do discurso jurídico e do discurso prático geral; pela função de desenvolvimento, a
dogmática desenvolve a si própria contribuindo para o progresso da ciência jurídica; pela
função de redução de encargos, a dogmática tornaria desnecessários novos exames nos
processos de justificação (na ausência de motivos especiais); já pela função técnica, a
dogmática, com sua contribuição para a construção de significados, conceitos básicos e
instituições jurídicas, terminaria por exercer também um papel didático, influenciando o
ensino jurídico; em seguida o autor aborda a função controladora em que a dogmática
permitiria um exame de consistência das proposições jurídicas (num sentido estrito seria o
controle de sua compatibilidade lógica e num sentido amplo o controle de sua compatibilidade
prática geral); por fim, a dogmática teria uma função heurística, pois permite em torno de suas
proposições o estabelecimento de um sistema de perguntas e respostas que seria um fecundo
ponto de partida para novas descobertas na área jurídica394.
O que se observa na abordagem da dogmática por Alexy é uma tentativa de
demonstrar sua centralidade na ciência jurídica. Em seu ponto de vista, o discurso jurídico é
sempre um caso particular do discurso prático geral (moral, ética, economia, dentre outros) e,
como caso particular, é portador de limitações de forma, conteúdo e finalidade 395. Essa
concepção leva a uma subordinação do Direito à Moralidade, o que a torna incompatível com
uma perspectiva pós-metafísica, uma vez que se mostra ainda presa ao jusnaturalismo396.
Razão pela qual, a dogmática, através das características acima expostas adquire em Alexy
um enfoque, estritamente instrumental. Desse modo:
394
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p. 252-257.
395
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p. 212.
396
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos,
2000a. p. 107.
397
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p.257.
116
justificar uma determinada solução398. E é justamente essa ligação que garante a racionalidade
da dogmática jurídica399. No entanto, o que permanece inexplicado por Alexy é qual a
criteriologia empregada na passagem do discurso jurídico ao discurso prático geral e no
retorno do discurso prático geral ao discurso jurídico.
4.2.2 A busca da resposta certa, o Direito como um romance em cadeia e a figura do Juiz
Hércules: Expressões do dogmatismo em Dworkin
398
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p.250.
399
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2001. p.257.
400
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 246.
401
Os chamados casos difíceis (hard cases) para os quais não há no ordenamento norma que possa servir de
fundamento imediato para a decisão. Para decidir eses casos, o autor desenvolve a figura juiz Hécules, que seria
dotado de "capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas”. (DWORKIN, 2002, p. 165).
402
Por exemplo, quando afirma que "política, arte e Direito estão unidos, de algum modo, na filosofia".
(DWORKIN, 2002, p. 249).
403
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 213.
404
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 213.
117
complexos, a tendência é que haja uma possibilidade cada vez menor de empates
argumentativos. Na segunda dimensão, há sempre a possibilidade de duas respostas
igualmente boas, mas deverá prevalecer a que melhor atende às justificativas de ordem moral,
ainda que haja divergências "porque juristas que sustentam tipos diferentes de moral irão
avaliá-las de forma diferente"405. Isso faz com que eventual conclusão pela inexistência da
resposta correta só ocorreria "em virtude de algum tipo mais problemático de indeterminação
ou incomensurabilidade na teoria moral"406.
Outra demonstração eloquente do dogmatismo dworkiniano, se dá no ponto de sua
obra em que compara a atividade dos juízes com a exercida por um grupo de escritores
encarregados de elaborar um romance em cadeia:
405
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 214.
406
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 215.
407
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 237.
408
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001.p. 238.
118
409
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 197.
410
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 203.
411
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 203.
412
BARROSO, Luís Roberto. O novo constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2013.p. 37-38.
413
SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.p. 162.
119
Até este ponto a intenção foi apresentar uma narrativa capaz de demonstrar como o
Processo Penalse encontra ainda atrelado a concepções arcaicas que espelham um
dogmatismo dicotômico do qual a ciência jurídica precisa se desvencilhar. No estudo
desenvolvido até aqui foi possível perceber que a ciência jurídica ainda mostra dificuldades
para assentar uma perspectiva não-dogmática, voltada à construção do Estado Democrático de
Direito415. Em razão dessa postura, é possível verificar nas decisões jurisdicionais, simulacros
de fundamentação estruturados pela tópica-retórica de uma autoridade que se esmera na busca
de argumentos já assentados no senso comum do conhecimento jurídico, dispensando-se de
apresentar fundamentos teóricos.
Como conclusão a este capítulo seria proveitosa uma abordagem acerca de algumas
terminologias que podem contribuir para demarcar os rumos desta pesquisa de modo a
proporcionar a compreensão do Direito Processual Penal, na pós-modernidade, como
instituição jurídica livre das mitificações ideológicas e dogmáticas, instaurando, nesse
segmento da ciência jurídica, a processualidade democrática. Para tanto, é necessário abordar
ainda que em breves palavras, conceitos como contemporaneidade, modernidade, neo-
modernidade, pós-modernidade e profanação.
No atual estágio de desenvolvimento da Ciência do Processo, em que esta já não se
configura como uma disciplina confinada às ideologias que impregnam o discurso científico,
e sim como vertente teórica voltada ao “esclarecimento crítico do discurso das realidades
normativas”416, faz-se necessária uma releitura do Direito Processual Penal numa perspectiva
contemporânea, em contraposição ao enfoque dogmático predominantemente verificado entre
os autores mais proeminentes.
Uma perspectiva contemporânea exige certo anacronismo, certa distância, uma não
adesão completa à época em que se vive, pois só assim seria possível uma observação livre de
414
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 155.
415
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 592.
416
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 15.
120
influências perniciosas417. Para Agamben, o contemporâneo seria capaz de manter fixo o olhar
no seu tempo para nele perceber, não as luzes, mas a obscuridade. O observador
contemporâneo é aquele que não se deixa cegar pelas luzes de seu tempo e compreende a
escuridão como algo que o interpela e que lhe é pertinente418. Ou seja: o observador
contemporâneo, mais do que o conforto da claridade, se ocupa em perceber o que há de
obscuro nas interfaces de seu tempo.
Diante de tal percepção, o observador contemporâneo adotaria uma conduta que
consiste em dividir o tempo e estabelecer a sua descontinuidade. Com essa fratura conseguiria
promover um encontro dos tempos e das gerações e ao estabelecer essa relação percebe a
escuridão do presente com o objetivo de apreender sua “resoluta luz”419. Diga-se: qualquer
abordagem em torno da obscuridade do passado está impregnada de uma interrogação teórica
que se dá, necessariamente, no tempo presente. Isso implica que o ordenamento jurídico seja
submetido, na contemporaneidade, a uma perspectiva diacrônica, sendo pesquisado como um
conjunto de normas em constante mutação numa sequência dinâmica capaz de fornecer
importantes subsídios investigativos420.
Uma perspectiva semelhante, tendo em vista o Direito Processual Penal, nos levaria a
interrogar em quais bases teóricas esse segmento jurídico deveria se assentar para que pudesse
adquirir compatibilidade com o paradigma do Estado Democrático de Direito, em que a
institucionalização jurídica se dá pela Constituição formal, e a lei, como ser jurídico concreto,
processualmente construído, é pressuposto do dever-ser jurídico e se define como existência
hermenêutica posta em todos os níveis pela própria lei421.
Com isso, seria possível interrogar qual o sentido das tensões que se colocam entre
doutrina sempre partidária da acusatoriedade e legislação, sempre disposta a reforçar a
inquisitoriedade, ainda que preste alguns tributos à primeira422, como apregoa Ada Pellegrini
Grinover, para quem o "Código de Processo Penal Modelo para a Ibero-América",
apresentado nas "XI Jornadas Ibero-americanas de Direito Processual - Rio de Janeiro, 1988",
contribuiu para que o Processo Penal adquirisse feições acusatórias na América Latina
417
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009. p. 59.
418
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009. p. 63-64.
419
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009. p. 72.
420
GUASTINI, Riccardo. La sintassi del diritto.Torino: Giappichelli Editore, 2011. p. 284.
421
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 46.
422
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 27.
121
durante a década de 1990, como tendência de superação de "um modelo apegado a ritos
superados e a fórmulas inquisitoriais, no qual continuam a prevalecer a falta de respeito à
dignidade humana, a delegação das funções judiciárias, o sigilo e a ausência de imediação,
características que repugnam ao processo penal moderno."423.
Ao dizer que o modelo acusatório é o que mais se harmoniza com a modernidade, Ada
Pellegrini Grinover evidentemente emite um parecer correto, porém involuntariamente o
aprisiona ao paradigma liberal, como instrumento garantidor das liberdades negativas. Uma
concepção que se mostra insuficiente ao paradigma democrático, pois instaura um dogma no
lugar de outro, estreitando as nuances epistemológicas do Processo Penal.
Como já abordado no Capítulo II, a crença absoluta na razão é a expressão mais
evidente do paroxismo racional experimentado no período histórico, comumente chamado de
Iluminismo ou modernidade, ao qual chamaremos Ilustração adotando a terminologia
encontrada na obra de Sérgio Paulo Rouanet424. Este autor afirma que "pertencem ao
Iluminismo as correntes de idéias que combatem o mito e o poder utilizando argumentos
racionais" o que nos remete aos pensadores da antiguidade clássica. O termo Ilustração passa
a ser utilizado para designar o movimento intelectual que floresceu no século XVIII. Essa
distinção ajudaria a "compreender o debate que se trava atualmente em torno da razão, do
poder e da modernidade e que assume, estranhamente, a forma anacrônica de uma
arregimentação de forças contra ou a favor das Luzes, da Alfklärung".
A distinção empreendida por Rouanet, segundo o próprio autor, permite uma tomada
de posição frente a um novo irracionalismo, pois torna possível identificar iluministas que se
posicionam contra a Ilustração (Foucault) e ilustracionistas que adotam posições contra-
iluministas (neo-conservadores americanos, franceses e alemães). Na esteira dessa percepção
o que se conclui é que a tarefa de separar o que seja pré-moderno do que seja moderno ou
pós-moderno não é das mais fáceis. Daí o autor preferir falar na existência de uma
"neomodernidade" uma vez que qualquer luta a ser travada contra os conteúdos repressivos da
modernidade só é possível através dos instrumentos de emancipação fornecidos pela própria
modernidade:
423
GRINOVER, Ada Pellegrini. Influência do código de processo penal para Ibero-América na legislação latino-
americana. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 1, p. 41-63, 1993. p. 44.
424
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 301.
122
rejeita o sonho. Ela despreza o historicismo e opta pela história. Das duas
perspectivas, sustento que somente a neomoderna tem o poder de compreender o
presente e de transformá-lo. Pois dispõe, para compreendê-lo, das categorias de
análise desenvolvidas pela modernidade e, para transformá-lo, das energias
explosivas depositadas no legado da ilustração.425
425
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 26.
426
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
427
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 52-53.
428
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.
ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998. p. 141-143.
123
429
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 99.
430
Que se manifesta pelo código legal instituído pelo Direito (medieval), pelo regime de disciplina e vigilância
(moderno), bem como pelo dispositivo de segurança (contemporâneo). (FOUCAULT, 2008b, p. 9).
431
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 119-122.
432
ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.p. 131.
433
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 27.
124
por vezes conservadora e reacionária, porém sem conseguir proporcionar uma evolução
paradigmática, o que, veremos, é buscado com mais êxito pela concepção pós-moderna. Essa
é uma busca também da ciência jurídica que tem como grande desafio, na atualidade,
esclarecer os fundamentos do sistema jurídico adotando um viés autocrítico.
No entanto, essa busca esbarra muitas vezes em concepções que impregnam o direito
não de teorias, como na definição de Popper, mas de ideologia pura. Para Lênio Luiz Streck,
por exemplo, não se trata de pugnar, sobretudo no Brasil, por uma superação da modernidade
pela via do neo-liberalismo. Para o autor, o Brasil sequer chegou a experimentar as conquistas
do welfare state, tendo vivido tão somente um "simulacro de modernidade". Haveria um
déficit de desenvolvimento sócio-econômico que só aumentaria com a prevalência do
neoliberalismo. O fervor com que este autor defende o Estado intervencionista o leva a
apontá-lo como "o" verdadeiro Estado Democrático de Direito, numa leitura muito particular
da Constituição de 88. Sobre o avanço da globalização e do neoliberalismo, afirma:
434
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 25.
435
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1999. p. 77.
125
447
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 85-86.
448
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 200.
449
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 185.
450
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 271.
128
451
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012.p. 104.
452
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.
453
"A evolução animal marcha amplamente, embora não exclusivamente, por meio de modificação de órgãos (ou
comportamento) ou pela emersão de novos órgãos (ou comportamento). A evolução humana marcha,
amplamente, pelo desenvolvimento de novos órgãos fora de nossos corpos ou pessoas: "exossomaticamente",
como o chamam os biólogos, ou "extrapessoalmente". Estes novos órgãos são instrumentos, ou armas, ou
máquinas, ou casas.Os começos rudimentares deste desenvolvimento exossomático podem, sem dúvida, ser
encontrados entre animais. A construção de luras, ou tocas, ou ninhos é uma realização primitiva. Posso também
lembrar que os castores constroem represas muito engenhosas. Mas o homem, em vez de desenvolver melhores
olhos e ouvidos, desenvolve óculos, microscópios, telescópios, telefones e aparelhos auditivos. E em vez de
desenvolver pernas cada vez mais velozes, desenvolve cada vez mais velozes automóveis". (POPPER, 1999, p.
218).
454
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 198.
455
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1998. p. 99.
456
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1998.
457
POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto Ferreira
Gomes. Lisboa: Edições 70. p. 17.
458
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 173.
129
459
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1999. p. 77.
460
As feridas narcísicas, que tanto abalaram a bela imagem que a humanidade tinha de si mesma, segundo Freud,
teriam sido causadas por Copérnico, quando mostrou que a terra não é o centro do universo, por Darwin por
mostrar que o homem é apenas um elo na cadeia evolutiva, na medida em que descende de um primata e pelo
próprio Freud quando afirma suas descobertas acerca do inconsciente, demonstrando que não somos
integralmente senhores de nossos atos. (FOUCAULT, 1997, p. 17).
461
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal
inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).
Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009. p. 226.
130
Até aqui foi possível observar na trajetória do Direito Processual Penal um misto de
dogmatismo, mitificação, idealismo e empirismo, dicotomias teóricas e pragmáticas, tudo
condensado por um sincretismo paralisante, fruto do positivismo jurídico. Para superar o
embate entre crenças opostas e seus respectivos dogmas, Agamben fornece um interessante
aporte que pode servir ao desenvolvimento de uma epistemologia da processualidade penal
harmonizada com o paradigma do Estado Democrático de Direito.
Em seu elogio à profanação463, Agamben confronta os termos "consagrar (sacrare)"
e "profanar". Quando algo era consagrado, significava ser subtraído ao "livre uso e comércio
dos homens", sendo considerado sacrílego aquele que violasse esta "especial
indisponibilidade" das coisas sagradas (pertencentes aos deuses celestes) ou religiosas
(infernais). O ato da profanação consistia em restituir algo sagrado ou religioso ao "livre
comércio dos homens", ou seja, à propriedade e ao uso comum.
A religião seria então "tudo aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao
uso comum e as transfere a uma esfera separada". Agamben conclui que não há religião sem
separação e que o "dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício", que se produz
por meio de rituais e que, em última análise, é que determinam o modo de passagem do
profano ao sagrado, "da esfera humana para a divina". O trajeto contrário também se dá pelo
rito ou, de outro modo, se é o rito que consagra é também o rito que profana ou restitui aos
homens o que antes lhes havia sido subtraído.
Essa mesma perspectiva, mutatis mutandi, pode ser aplicada à esfera jurídica e em
especial ao Direito Processual Penal. O dogmatismo, a mitificação e as ideologias464 o
consagraram ao uso de alguns privilegiados propiciando sua instrumentalização para os mais
diversos fins que o afastam de sua configuração autocrítica e constitucional. O embate entre
acusatoriedade e inquisitoriedade acaba por criar entraves diversos à sua compreensão como
medium linguístico testificador da realidade normativa em vigor.
Relevante no texto de Agamben é a distinção entre secularização e profanação.
Ambas são consideradas operações de natureza política, sendo que a primeira apenas
transmuta a natureza do poder mantendo-o intacto (como na transição da monarquia celeste
462
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 149.
463
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007c.
. p. 58-71.
464
QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.
131
[...] implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido
profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído
ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício
do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa
os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia
confiscado.465
465
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial,
2007c.
. p. 61.
466
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012.p. 56
467
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed.
São Paulo: Cortez Editora, 2007. p. 222.
468
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
p. 72.
469
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 39.
132
470
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 95.
133
477
PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito constitucional democrático: controle e participação como Elementos
Fundantes e Garantidores da Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 35.
478
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 1. 1982.p.
24.
479
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1. p. 48.
480
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 110.
135
fins"481. Desse modo, a sociedade pode se fundamentar, ora num consentimento mútuo, ora na
fé compartilhada de seus integrantes, ora num cálculo pragmático em torno da conveniência
da adesão ao grupo.
No clássico estudo de Peter L. Berger e Thomas Luckmann 482, a sociedade é
apresentada como realidade da vida cotidiana e que pode ser investigada tanto como realidade
objetiva quanto subjetiva. O que chamamos sociedade é visto como um organismo complexo
que se estrutura dialeticamente por um processo de exteriorização e objetivação por
mecanismos de institucionalização, mas também por uma adesão subjetiva mediante
fenômenos de interiorização483.
Como realidade objetiva, os autores demonstram que enquanto os animais possuem
um ambiente fixo com o qual se relacionam por determinação de sua condição biológica, o
homem se abre para o mundo e, em razão de sua condição biológica imperfeita, se adapta aos
mais variados ambientes. Nesse aspecto, o processo de tornar-se homem se dá em correlação
com o ambiente, um ambiente não apenas natural, mas também social, ou seja, "uma ordem
cultural e social específica". Assim, a sobrevivência da criança não só "depende de certos
dispositivos sociais, mas a direção de seu desenvolvimento orgânico é socialmente
determinada"484.
De outro lado, como realidade subjetiva, a sociedade é objeto de apreensão pelo
indivíduo por um processo de interiorização. Num primeiro momento como base de
compreensão dos seus semelhantes e depois como forma de identificar o "mundo como
realidade social dotada de sentido"485:
481
WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias e Gerard
Georges Delaunay. 5. ed. São Paulo: Centauro Editora, 2008. p. 71.
482
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.
483
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.p, 173.
484
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.p. 71.
485
O termo "sentido" é empregado por Weber, para identificar a coerência da atuação de um ator num determinado
contexto histórico, ou como aproximação pela repetição de casos, como também para identificar a coerência
subjetiva de uma determinada conduta com relação à pessoa que a pratica hipoteticamente. (WEBER, 2008, p.
11).
136
O povo não inventou a propriedade; mas como ela não existia para ele da mesma
forma que para os nobres e tonsurados, decretou a uniformidade desse direito. As
formas acerbas da propriedade, a corveia, a intransmissibilidade, o despotismo, a
exclusão dos empregos, desapareceram; o modo de gozo foi modificado: conservou-
486
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 174.
487
Neste ponto, percebe-se que a afirmativa, reconhecidamente reducionista de Rousseau faz sentido: "O primeiro
que cercou um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar
nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil." (ROUSSEAU, 1999, p. 203).
488
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 585.
489
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 77.
490
GOLDSCHMIDT, Werner. Introduccion ao derecho. Buenos Aires: Aguilar, 1960. p. 322.
491
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa: Editorial
Estampa, 1975.p. 27.
137
coincide sempre com o que deve ser conforme a justiça. Assim como Deus reúne em
si poder e direito, e, segundo seu conceito, o que Ele quer é sempre bom e o bom é
sempre sua vontade efetiva, assim também aparece o soberano em Rousseau, isto é,
a vontade geral, como algo que, por sua mera existência é já o que deve ser.
[...]
É imperecível, imutável, pura (IV, I). Do contrário, a vontade individual, a vontade
particular ou individual é nula e sem valor (III, 2). Um ato particular, uma vontade
particular, um interesse particular, toda dependência particular (II, 2), toda força
particular, toda preocupação particular (III, 15), carece em si de valor ante a unidade
e a grandeza do geral. Particular é, como em Hobbes a palavra privado, uma palavra
492
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa: Editorial
Estampa, 1975.p. 30.
493
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 331.
494
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 2. p. 99.
495
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 231.
496
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 181.
138
Tal concepção de sociedade é que tem levado ao surgimento de vertentes que cobram
um retorno ao welfare state, no que se pode denominar de comunitarismo, em que o direito se
aplica por uma "razão moral comunitária e em função de uma responsabilidade social com
valores densos da comunidade, como virtude cívica republicana"498, tendo como referente
hermenêutico as raízes culturais e os valores homogêneos de uma dada comunidade,
entendendo que o grande mal contemporâneo seria a "solidão das massas"499, razão pela qual
busca implantar um novo senso comum fundado na ética, na solidariedade e na
participação500.
497
"coincide siempre lo que es con lo que debe ser conforme a justicia. Así como Dios reúne en sí poder y derecho
y, según su concepto, lo que él quiere es siempre bueno y lo bueno es siempre su voluntad efectiva, así también
aparece el soberano en Rousseau, esto es, la volonté générale, como algo que por su mera existencia es ya lo que
debe ser.
[...]
Es imperecedera, inmutable, pura (IV,I). En cambio, la voluntad individual, la volonté particulière o individuelle,
es nula y sin valor (III 2). Un acto particular, una voluntad particular, un interés particular, toda dependencia
particular (II, 11), toda fuerza particular, toda preocupación particular (III, 15) carece en sí de valor ante la
unidad e la grandeza de lo general. Particular es, como en Hobbes, la palabra privado, una palabra ignominiosa."
(SCHMITT, 1968, p. 159).
498
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
155.
499
expressão atribuída a Amitai Etzioni por Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2004, p. 153).
500
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed. São
Paulo: Cortez Editora, 2007. p. 111.
501
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 58.
502
LENSKI, Gerhard E.. Poder y privilegio: teoria de la estratificacion social. Tradução de Roberto Bixio.
Buenos Aires: Paidos, 1969 p. 86.
139
O que se nota é que o Direito Processual Penal, como "justiça civil", tem contribuído
para perpetuar esta tricotomia indivíduo-sociedade-Estado, sobretudo diante do que se
observou até aqui pela oscilação entre os princípios acusatório e inquisitório, no decurso
histórico. Ora a primazia do indivíduo (princípio acusatório), ora a primazia da sociedade ou
do Estado (princípio inquisitivo e o chamado sistema misto). Isso levou a um maniqueísmo
entre "interesse privado" e "interesse público" que já não pode subsistir no paradigma
democrático, pois em matéria penal todos os interesses são públicos504.
Essa mudança de paradigma estabelece as bases para o estudo e o desenvolvimento
do Estado Democrático de Direito no qual o processo já não pode mais receber rótulos ou
nomenclaturas a serviço de um ícone específico (penal, civil, econômico, constituinte,
administrativo, trabalhista...)505. É a partir de tal entendimento que se torna viável uma Teoria
Geral do Processo, não como um "programa acabado", mas como uma exposição científica e
didática das teorias que informaram o advento das leis processuais e das interpretações que
estas leis receberam no decurso histórico, sendo assim uma "disciplina auxiliar da Ciência do
Direito"506, na qual o Direito Processual Penal, enquanto segmento normativo se insere como
objeto de investigação.
503
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 58.
504
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 11.
505
MARTINS, Rui Cunha. O mapeamento processual da verdade. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti
Castanho de et al. (Org.). Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São
Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 73.
506
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 78.
140
visão estática do direito, enquanto a teoria da situação jurídica permitia uma perspectiva
dinâmica:
O processo é uma complexa situação jurídica, na qual a sucessão de atos vai gerando
situações jurídicas, das quais brotam as chances, que, bem aproveitadas, permitem
que a parte se liberte de cargas (probatórias) e caminhe em direção favorável. Não
aproveitando as chances, não há a liberação de cargas, surgindo a perspectiva de
507
El concepto de situación jurídica se diferencia del de relación procesal en que éste no se halla en relación alguna
con el derecho material que constituye el objeto del proceso, mientras que aquél designa la situación en que la
parte se encuentra respecto a su derecho material, cuando lo hace valer procesalmente. Es erróneo creer, por esto,
que el concepto de "situación jurídica" no es distinto del de relación procesal, y por ello es imposible admitir que
ésta se desenvuelva hasta llegar a ser uma “situación jurídica”; ésta no es una mera situación de la relación
procesal, sino Del derecho material que constituye el objeto del proceso. Resulta por ello innecesario recurrir al
concepto de relación procesal, para asegurar la unidad del proceso, ya que tal unidad viene predeterminada por el
derecho material, objeto de referencia de las "situaciones jurídicas" que surgen en el proceso.
(GOLDSCHMIDT, 1936a, p. 9).
508
GOLDSCHMIDT, James. Teoria general del proceso.Barcelona: Editorial Labor, 1936b.p. 39.
509
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 85.
141
Se, pois, o procedimento é regulado de modo que dele participem também aqueles
em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos - de modo que o
autor dele (do ato final, ou seja, o juiz) deve dar a tais destinatários o conhecimento
de sua atividade, e se tal participação é armada de modo que os contrapostos
"interessados" (aqueles que aspiram a emanação do ato final - "interessados" em
sentido estrito - e aqueles que queiram evitá-lo, ou seja, os "contra-interessados")
estejam sob o plano de simétrica paridade, então o procedimento compreende o
"contraditório", faz-se mais articulado e complexo, e do genus "procedimento" é
possível extrair a species "processo".512
510
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 43.
511
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p.111 a
115.
512
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 94.
142
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho chega a afirmar que essa teoria foi adotada pela
Constituição brasileira de 1988, ao prever a garantia do contraditório nos processos judiciais
ou administrativos513. O fato é que o pensamento fazzalariano significou um considerável
salto epistemológico para a ciência do processo, possibilitando seu estudo sob um enfoque
mais adequado ao princípio democrático, como é o caso da teoria Neoinstitucionalista,
segundo demonstra Andréa Alves de Almeida:
513
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista
da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, n. 30, p.163-198, 1998b. p. 186.
514
ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa. Belo Horizonte: Forum,
2005. p. 67-68.
515
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007.
516
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990.
517
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
518
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 88.
519
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 172.
520
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 89.
143
concebida como atividade tutelar521 -, mas pela "atuação crítico-participativa das partes
juridicamente legitimadas à instauração dos procedimentos em todos os domínios da
jurisdicionalidade"522.
Contudo, ao conceber o processo como instituição, Rosemiro Pereira Leal não o faz
nos mesmos moldes de Jaime Guasp, cuja concepção institucionalista foi desenvolvida nos
anos 40 do século passado. Na tentativa de refutar Bülow, o institucionalismo guaspiano foi
pouco aproveitado pelos processualistas, que desde logo apontaram seu viés sociologizante.
Couture chegou a adotar essa teoria durante certo tempo e ao justificar o abandono de tal
concepção o autor uruguaio apontou como principal motivo “os equívocos e mal entendidos
que provocam a multiplicidade de acepções” da palavra instituição. O autor relata que em
duas oportunidades, em um debate ocorrido em uma universidade e na 2ª edição dos seus
“Fundamentos de Direito Processual Civil”, tentou precisar o sentido desse vocábulo e dotar
de certo rigor o conceito, confessando não ter logrado êxito neste propósito523. Coulture pediu
desculpas a Guasp, mas não se fez de rogado ao firmar que estava deixando de acolher a
teoria pelo menos até que esta concepção projetasse suas ideias conforme os planos mais
rigorosos da dogmática jurídica.
Ao referir-se sobre os motivos que levaram Couture a rechaçar e teoria
institucionalista, Rosemiro Pereira Leal aponta para o fato de que a ideia de instituição
processual desenvolvida por Guasp carecia de contornos jurídicos amparando-se nos pilares
do positivismo sociológico, muito em voga nas décadas iniciais do século passado. Os
teóricos de então não trabalhavam com a concepção de direitos fundamentais
constitucionalizados, o que fazia com que explicassem as instituições jurídicas como algo que
brotava na sociedade e depois adquiria proteção pela lei, esta se encarregava, assim, de
homologar realidades estabelecidas pelos fatos históricos524.
A instituição de viés sociológico é resultado de uma atividade tornada habitual e que
assim se estabelece historicamente com a função de controlar a conduta humana, para que esta
se estruture cada vez mais em padrões de homogeneidade, como se lê no estudo de Peter L.
Berger e Thomas Luckmann:
521
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição constitucional da liberdade. In: SAMPAIO, José Adércio de
Oliveira (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 1-44.
522
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 91.
523
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial B
de F, 2007. p. 115.
524
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 86.
144
(4) A teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é
científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como freqüentemente se pensa, mas
um vício.
(5) Todo teste genuíno de uma coisa é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de
testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém,
diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais “testáveis”,
525
BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do
conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.p. 79
526
Sociologia do Direito I. p. 80
527
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 86.
528
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 87.
529
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 145.
145
mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos. 530
534
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
175-176.
535
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
190.
536
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 97.
537
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 81.
538
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. Madrid: Centro
de Estudos Constitucionales, 1993p. 156.
539
CARDOZO, Benjamim N.. A natureza do processo e a evolução do direito. Tradução de Lêda Boechat
Rodrigues. Brasil: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 78.
540
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
109.
147
O que se vê no texto acima, com efeito, é muita mitificação para tão poucas linhas,
evidenciando, em crítica estritamente científica, uma característica da escola instrumentalista:
Abordagens em que o processo está sempre a serviço de uma "ordem jurídica material" e os
conflitos (litígios) precisam ser "eliminados", buscando com isto atingir uma utópica "paz
social". Os autores instrumentalistas não alcançam a concepção teórica de que não basta a
"legitimação pelo procedimento"544, caracterizado pelo exercício de um poder que legitima a
si mesmo, mas, pelo contrário, deve ser reconhecida a complexidade social da democracia
definida como "espaço de liberdade que não anula, mas permite a manifestação de conflitos",
sendo que "a função jurisdicional, no Estado contemporâneo, não é apenas a expressão de um
poder, mas é atividade dirigida e disciplinada pela norma jurídica"545. Ou seja: em processo,
forma é conteúdo. A maneira como se produz ou constrói uma decisão diz muito do tipo de
Estado que se está implementando.
541
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 195.
542
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
543
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010. p. 30.
544
"A legitimação pelo procedimento e pela igualdade de possibilidades de obter decisões satisfatórias substitui os
antigos fundamentos jusnaturalistas ou os métodos variáveis de estabelecimento do consenso. Os procedimentos
encontram como que um reconhecimento generalizado, que é independente do valor do mérito de satisfazer a
decisão isolada, e este reconhecimento arrasta consigo a aceitação e consideração de decisões obrigatórias."
(LUHMANN, 1980, p. 31-32).
545
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 52.
148
546
PASSOS, José Joaquim Calmon de. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Sobre o Tema. In:
FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho (Coord.). Temas atuais de
direito processual civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 13.
547
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 26, 28 e 29.
149
548
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 13.
549
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 33-34.
550
POPPER, Karl Raimund. A miséria do historicismo. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira da
Motta. São Paulo: Edusp, 1980. p. 46.
150
551
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 148.
552
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 170.
553
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá Editora,
1998a. p. 27.
554
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 41.
151
555
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal
inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).
Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009. p. 223.
556
PRADO, G eraldo. Campo jurídico e capital científico: O acordo sobre a pena e o modelo acusatório no
Brasil: a transformação de um conceito. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et al. Decisão
judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p.49
557
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 9-10
558
DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a
colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005. p. xli.
152
559
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
111;136-137.
560
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 164
561
Ferrajoli define o sistema misto como uma monstruosa mistura entre os processos acusatório e inquisitório,
apontando como sua origem remota o Código Termidoriano de 1795. (FERRAJOLI, 2002, p. 454).
562
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 6
563
"O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos,
averiguar a materialidade de crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias
dentro de seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis. Para atuar proficuamente em
comarcas extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese de criação dos juizados de instrução em cada sede
do distrito, seria preciso que o juiz instrutor possuísse o dom da ubiquidade. De outro modo, não se compreende
como poderia presidir a todos os processos nos pontos diversos da sua zona de jurisdição, a grande distância uns
dos outros e da sede da comarca, demandando muitas vezes, com os morosos meios de condução ainda
praticados na maior parte do nosso hinterland, vários dias de viagem. Seria imprescindível, na prática, a quebra
do sistema: nas capitais e as sedes de comarca em geral, a imediata intervenção do juiz instrutor, ou a instrução
única; nos distritos longínquos, a continuação do sistema atual. Não cabe, aqui, discutir as proclamadas virtudes
do juízo de instrução." Trecho extraído do item IV da Exposição de Motivos do CPP, assinada pelo então
Ministro da Justiça Francisco Campos, datada de 8 de setembro de 1941. (BRASIL, 1941).
153
564
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 70-71.
565
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2013. p. 57.
566
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006. p. 49
567
NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. Dos pressupostos processuais penais. Belo Horizonte: Mandamentos,
2008. p. 74.
154
568
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 6.
569
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 348-349.
570
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 74.
155
Moro-quater). Esses processos tomaram "a forma de labirintos intricados", ao mesmo tempo
concorrendo entre si ou se entrelaçando, produzindo ainda "montanhas de papel mensuradas
por toneladas, por dezenas de mil páginas" o que resultava em "neutralização do princípio da
publicidade do processo e as possibilidades materiais de defesa", como bem demonstrou
Ferrajoli571.
É possível constatar que, via de regra, ante uma situação emergencial, a
acusatoriedade sempre cede à força das pressões por uma jurisdição redentora que se contente
em apenas homologar decisões já tomadas e pré-concebidas no âmbito da investigação
preliminar a cargo de órgãos policiais ou administrativos. Um exemplo contemporâneo de
sacrifício das liberdades públicas em nome da segurança é o que se verifica nos Estados
Unidos da América, em razão da guerra permanentemente travada contra o terrorismo após os
atentados de 11 de setembro de 2001 e que resultaram na edição do USA Patriot Act, lei
extremamente restritiva dos direitos fundamentais572. As principais características dessa lei
emergencial causadora, dentre outros problemas, de um evidente desequilíbrio entre os
poderes estatais, prevalecendo neste campo os interesses do Executivo, podem ser assim
resumidas:
571
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002.p. 661.
572
“The USA PATRIOT Act é uma sigla que significa The Uniting and Strengthening America by Providing
Approriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act (Lei de União e Fortalecimento da América
Através do Fornecimento de Instrumentos para a Interceptação e Obstrução do Terrorismo). Também conhecida
apenas como “Patriot Act”, esta Lei pode ser considerada como uma lei singular, extensa e complicada, que não
foi criada através do processo legislativo comum, que teria envolvido a divulgação pública dos dispositivos em
discussão (com audiências abertas e debates), mas através de negociações informais entre os líderes do Senado e
da Câmara, o Departamento de Justiça e a Casa Branca.” (LEITÃO, 2003, p. 123-124).
573
LEITÃO, Ricardo Azevedo. Restrições aos direitos fundamentais como mecanismo de controle da ordem
pública. São Paulo: Fiuza Editores, 2003. p. 125-126.
156
Diante das repercussões do USA Patriot Act, Geraldo Prado, mesmo reconhecendo as
insuficiências do modelo acusatório, ressalta sua crucial importância para que as pessoas não
sejam expostas de modo irracional ao poder do Estado:
O fato é que o USA Patriot Act, juntamente com a "military order", instauraram o
mais evidente Estado de Exceção, conforme foi demonstrado por Giorgio Agamben:
civilização, no mais das vezes, provocados por interesses econômicos e geopolítcos577 e que
no plano interno se traduz pela afirmação de existência de um permanente e cotidiano estado
de emergência a justificar práticas marcadas pela inquisitoriedade, mesmo sob o manto
jurídico-constitucional da acusatoriedade.
O cálculo político-utilitarista e a postura pragmatista são especialmente nefastos no
Processo Penal, pois vão permitir a sua instrumentalização, uma vez que são fortemente
amparados em escopos metajurídicos, os quais, para que se realizem, vão sempre depender de
uma "tomada de consciência teleológica", que parte do seguinte pressuposto: "Todo
instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se
destina"578. No particular aspecto do Processo Penal, a proeminência dos escopos
metajurídicos reforça o papel centralizador da jurisdição e, sobretudo permite reconhecer ao
judiciário um papel de protagonista a quem é atribuída a missão de implementar a política de
segurança pública, subvertendo até mesmo o princípio acusatório, quando os fins
aparentemente justificam, como no caso da criminalidade organizada579.
O que se nota em diversos trabalhos de pesquisa e de doutrina é que há uma
tendência generalizada em "reforçar os poderes do juiz", flexibilizando a técnica processual
como forma de obter resultados mais úteis, como defende José Roberto dos Santos Bedaque:
juiz ator, protagonista, este modelo de juiz volta-se ao inquisidor, prima por colocar
a hipótese em preponderância sobre os fatos. O juiz deve deixar às partes a atuação
ativa, apenas interferindo para fins de assegurar a isonomia entre os sujeitos. Isso
não faz com que o julgador se torne condescendente com o crime ou com a
criminalidade, mas apenas o faz imparcial e assegura às partes a isonomia necessária
para que possam participar da construção do provimento.
Há, como se percebe, uma forte preocupação dogmática que pode ser colocada nos
seguintes termos: encontrar um modo de compatibilizar a autonomia pública com a autonomia
privada no âmbito do Direito Processual Penal, segmento dos mais sensíveis no que diz
respeito às consequências de sua aplicação, pois repercute diretamente sobre direitos
fundamentais. Há uma conflitualidade entre julgamentos pela imprensa e julgamentos pelo
direito, que reflete um conflito entre segurança pública de um lado e liberdade individual do
outro, conflito que muitas vezes se resolve pela adesão à “ditadura do senso comum como
agente municiador de expectativas securitárias de lei e ordem”582.
581
SANTIAGO NETO, José de Assis. Estado democrático de direito e processo penal acusatório: a
participação dos sujeitos no centro do palco processual. 2011. 179f. Dissertação (Mestrado em Direito
Processual) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo
Horizonte. p. 131-132.
582
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 53.
583
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade
constitucional). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 165.
159
584
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 38.
585
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 51.
586
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 53.
587
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p.57.
160
pretensão de um sistema acusatório puro não assegura democraticidade, pois se estabelece por
uma autocontradição performativa que precisa ser objeto de arguição crítica permanente ao
invés de simplesmente acolhida como expressão de legitimidade, pelo fato de se fundar numa
ética discursiva fundada na "autotutela de direitos"588.
588
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 165.
161
Qualquer abordagem teórica do Processo Penal deve estar associada a uma incursão
acerca do paradigma estatal vigente no texto constitucional. O Estado Democrático de Direito
é que vai permitir a abertura teórica pela processualidade, que por sua vez, permitirá a
superação do embate dogmático entre aucsatoriedade e inquisitoriedade.
Tendo como suporte conjecturas teóricas de grande relevância para o discurso
jurídico, é possível afirmar que o Estado Democrático de Direito pressupõe o princípio da
reserva legal, o que faz com que o próprio Estado não se defina como um “ente que orbita ou
exorbita a lei, mas uma instituição criada pela lei e posta a serviço da lei” 589. Essa concepção
leva a uma compreensão do Estado como “Administração Governativa”, instituição jurídico-
constitucional, cuja atuação, seja no âmbito da administração em sentido estrito, do exercício
da função legislativa ou do exercício da função jurisdicional, deve se dar nos limites da
competência legal de seus agentes, mandatários, concessionários, permissionários ou
credenciados diversos590.
Semelhante concepção de Estado, ao ser estudada em concurso com a teoria da
Democracia, apresenta uma intrínseca relação com a epistemologia processual.
589
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 48.
590
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 48.
591
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. 2. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2012. p. 58-59.
162
inaugura pela negação do dogma e pelo esclarecimento do fetiche das formas jurídicas592,
criasse as condições para que pudesse empreender suas articulações a partir de um direito
constitucional que articula horizontalmente uma diversidade de instituições jurídicas em que o
Estado comparece como uma delas em um plano poliárquico, numa perspectiva que supera as
concepções arcaicas em que a relação Estado-sociedade-indivíduo se dá de modo autárquico,
hierárquico, autocrático, verticalizado, com o Estado exercendo uma primazia sobre as demais
instituições593.
A poliarquia se caracteriza pela implementação de um conjunto de instituições sem
as quais, afirma Robert Dahl, não é possível instaurar uma democracia em larga escala. Suas
principais características seriam a plena cidadania, por um amplo direito de oposição aos
membros do governo a ponto de poder fazê-los abandonar seus cargos pelo mecanismo do
voto. A plena cidadania seria assegurada por sete instituições594, que devem ter atuação
efetiva e permanente: (1) os ocupantes dos cargos com poder de decisão política devem ser
eleitos; (2) estas eleições devem ser livres e imparciais; (3) o sufrágio deve ser inclusivo e
acessível à quase totalidade da população adulta; (4) o direito de ocupar cargos públicos
também deve ser acessível à quase totalidade de adultos; (5) liberdade de expressão e de
crítica; além de assegurar uma (6) variedade de fontes de informação e (7) autonomia
associativa.
Contudo, Robert Dahl demonstra que a poliarquia nos Estados nacionais é ainda
insuficiente no que diz respeito à plena participação dos cidadãos e ao pleno controle das
decisões dos governantes, afirmando que, "comparada com outras opções históricas e atuais, a
poliarquia é um dos mais extraordinários inventos humanos, embora seja inquestionável que
não chega a cumprir com um processo democrático"595 (tradução nossa). O autor sustenta que
nos países que experimentaram a poliarquia há certo fastio, certo desdém com suas conquistas
e um clamor por mais avanços. No entanto, em outro extremo, há países que não oferecem as
condições para que a poliarquia se instaure, sendo esse o grande desafio da pós-modernidade.
É que a democracia institucional não dispensa os homens de responsabilidades, o que muitas
vezes é esquecido pelos seus críticos que insistem em não distinguir o aspecto pessoal do
institucional, como bem demonstra Popper:
592
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 2.
593
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 30.
594
DAHL, Robert. La democracia y sus críticos. Tradução de Leandro Wolfson. Barcelona: Paidós, 1992. p. 267
595
"Comparada com sus otras opciones históricas y actuales, la poliarquía es uno de los más extraordinarios
inventos humanos, aunque es incuestionable que no llega a cumplir con un proceso democrático." (DAH L,
1 9 9 2 , p. 269).
163
Para Popper, as instituições não fornecem os conteúdos de razão que vão nortear seu
funcionamento e desenvolvimento. Esses continuam a depender do padrão moral e intelectual
dos cidadãos e por essa razão, não se pode censurar a democracia pelos problemas verificados
em um estado democrático. Essa censura deve ser feita aos cidadãos que fazem mal uso das
instituições. Tais concepções, que apontam para uma democracia institucionalizada, se
mostram de grande proveito para os desenvolvimentos da presente pesquisa, pois é o Processo
a instituição à qual pode ser atribuída, com razoável grau de confiabilidade, a função de
articular discursivamente as demais.
596
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974b. v.1. p. 142.
597
DAHL, Robert. La democracia y sus críticos. Tradução de Leandro Wolfson. Barcelona: Paidós,. p. 269.
598
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.p. 61.
599
POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto
Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996. p. 24.
600
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 165.
164
e na ciência jurídica601.
As inquietações de Robert Dahl poderiam ser amenizadas (ou talvez aprofundadas)
se concluirmos que o salto para a democracia plena se dá pela adoção radical da concepção de
processualidade democrática602, como bem demonstra Andréa Alves de Almeida:
Essa concepção, segundo Rosemiro Pereira Leal, é que vai superar os modelos
democráticos até então concebidos nas linhas liberal e republicana. Mas enquanto Habermas
aponta como saída uma teoria do discurso em que a política se estabelece como "um sistema
de ação ao lado de outros" legitimamente estabelecidos, admite que a comunicação entre este
sistema e os demais pode se dar "informalmente, nas redes da opinião pública"604 ou no vazio
normativo de uma "esfera pública"605, Rosemiro Pereira Leal aponta o caminho do devido
processo constitucional:
601
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974c. v.2.
. p. 231.
602
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012. p. 124.
603
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012. p. 74.
604
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton
Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a. p. 292.
605
"A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não
constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de
pertença a uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear
seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis"..
"Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir
comunicativo implicando apenas o domínio de uma linguagem natural." (HABERMAS, 1997, p. 92). v.2.
606
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 181.
165
A cláusula due process of law, expressamente contida no art. 5º, inciso LIV da
607
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013.p. 54.
608
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 450.
609
O professor português usa a expressão "democraticidade processual". Parece não haver razão para preferi-lo ao
invés de "processualidade democrática", pois esta última se mostra mais adequada aos propósitos desta pesquisa
na medida em que se pretende perpassar modelos, sistemas ou princípios processuais que no curso histórico se
mostraram incompatíveis com a democracia jurídica. Falar em "processualidade democrática" permite um
contraponto com realidades processuais autoritárias ou discricionárias. (MARTINS, 2012, p. 71;85).
610
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 93.
611
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 141.
166
612
"Os princípios fundantes são aqueles que se desdobram a partir da cláusula do due process of law dos
americanos, ou do law of the land dos ingleses, como regras que sustentam aquele que é, por assim dizer, a
cláusula pétrea ou a matriz dos processos penais modernos: o devido processo legal". (MACHADO,
2009.p.158).
613
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. 2. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2012. p. 129.
614
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. História e prática do habeas corpus. Campinas: Bookseller,
1999. t. 1. p. 45.
615
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 17.
616
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. História e prática do habeas corpus. Campinas: Bookseller,
1999. t. 1. p. 55.
617
“A Londra, poco dopo il 15 giuno, i lre Giovanni fu costretto dai suoi baroni a concedere la Magna Charta
Libertatum, che è considerata come la prima grande costituzione della storia europea. Il re probabilmente non si
167
deu início a uma série de outras constituições e à longa história do constitucionalismo inglês.
O pioneirismo da Magna Cartha também é ressaltado por Simone Goyard-Fabre, que
a aponta como inspiração para as declarações de direitos que se sucederam nos séculos
seguintes, mas deixa claro que os textos modernos é que são mesmo os mais significativos em
termos de reconhecer e assegurar os "direitos do homem": são eles: a Petition of Rights, de
1628, o Habeas Corpus Act, de 1679 e o Bill of Rigths, de 1689. Na Inglaterra, a Declaração
de Independência, nas colônias norte-americanas, em 1776 e a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, na França, em 1789618.
Mas é no constitucionalismo norte-americano que a cláusula do devido processo
legal ganha especial relevância, porém somente após a Guerra Civil (1861-1865). O fato é que
"já em 1776 a "Declaração dos Direitos" de Maryland já fazia menção à law of the land como
via garantista e ativista dos direitos de vida, liberdade ou propriedade (life, liberty or
property)619". À época da promulgação da constituição, em 1787, Thomas Jefferson, o maior
defensor da inserção de um Bill of Rights no texto, estava na França acompanhando os
acontecimentos políticos que antecederam a Revolução, sendo então vencido neste intento.
Mas em 1791 foram acrescidas 10 emendas ao texto original, que constituíram uma
Carta de direitos (Bill of Rights). A Emenda nº 5 tratou de assegurar o Devido Processo Legal
e o direito à não auto-incriminação, voltados tão somente para causas criminais. Contudo, a
imprecisão do texto permitia violações e discriminações no âmbito dos Estados que só
passaram a se submeter à cláusula através da Emenda XIV, ratificada por 3/4 dos legislativos
estaduais, em 1868620.
Essa ampliação da cláusula não foi apenas quanto à sua abrangência territorial, mas
também com relação ao seu próprio conteúdo e passou a ter um sentido de proteção geral
(equal protection of the laws) contra as possíveis iniquidades estatais (substantive due process
of law), não somente como cláusula assecuratória de garantias processuais (procedural due
process of law)621. No seu sentido substancial, a cláusula do Devido Processo Legal se
rendeva conto del fatto che stava dando inizio ad una seria di altre costituzioni, e soprattutto ad una lunga storia
del diritti costituzionale inglese”. “Em Londres, logo após o 15 de junho, o rei João foi obrigado pelos seus
barões a conceder a Magna Charta Libertatum, que é considerada como a primeira grande constituição da
história europeia. O rei provavelmente não se deu conta do fato de que estava dando início a uma série de outras
constituições, e sobretudo a uma longa história do direito constitucional inglês.” (tradução nossa) (TARUFFO,
2009, p. 3).
618
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 330-331.
619
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 582.
620
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 28.
621
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 28.
168
622
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 582.
623
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3.
ed. Petrópolis: Vozes, 2001b. p. 156.
624
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 69
625
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3.
ed. Petrópolis: Vozes, 2001b. p. 84.
626
QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.
12.
169
627
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 587.
628
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000b.
p. 67.
629
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
42.
630
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
45.
631
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).
O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 592.
632
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo
170
que na atual quadra dos estudos jurídico-constitucionais devem ser acolhidas as concepções
que definem princípio como norma633. No Direito Processual Penal, a observância dos
princípios constitucionais institutivos é inafastável, para que se assegure uma interpretação
adequada ao texto fundamental, pois como demonstram Flaviane de Magalhães Barros e
Felipe Daniel Amorim Machado, "o modelo constitucional do processo é uma base
principiológica uníssona, na qual os princípios que o integram são vistos de maneira co-
dependente"634, uma vez que qualquer violação ou inobservância a um dos princípios
fundantes faz com que todos os demais também sejam afetados.
O fato é que qualquer abordagem constitucionalizada do processo e, sobretudo do
Processo Penal, ficaria prejudicada sem as incursões acima apresentadas, que inauguram na
Teoria do Direito o conceito de isomenia no qual se define, conforme já vimos, como
referente lógico-jurídico à disposição dos destinatários normativos, atuando na construção,
aplicação, modificação ou extinção de direitos. Essa é a concepção pós-moderna do Devido
Processo Legal, em que se articulam os princípios do Contraditório, Ampla Defesa e
Isonomia, com os direitos líquidos, certos e exigíveis de Vida, Liberdade e Igualdade635.
Horizonte: Arraes, 2013; ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade
metalinguística. Curitiba: Editora CRV, 2012.
633
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. Madrid:
Centro de Estudos Constitucionales, 1993p. 83; DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo:
Martins Fontes, 2002. p. 36.
634
BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011. p. 20-21.
635
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 271
636
Princípio do Contraditório. p. 41.
637
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006.
171
capaz de distinguir o Processo do Procedimento, faz com que o princípio seja estudado com
destaque ainda maior. Como divulgador maior da obra de Fazzalari no Brasil, Aroldo Plínio
Gonçalves apresenta uma nova dimensão do contraditório:
638
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 120
639
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 125.
640
LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual
democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 105.
641
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990. p. 108.
172
sociedade aberta, ao combate entre teorias e não entre os homens que as enunciam"642. É pelo
princípio do Contraditório que a "vida" se enuncia processualmente no Estado Democrático
de Direito.
Como demonstra Giorgio Agamben, os gregos se utilizavam de dois termos distintos
para expressar o que hoje designamos como "vida": zoé que designava o simples ato de viver,
comum a todas as criaturas. É a vida portadora de primordialidade e eternidade. Já o termo
bíos designava a forma de viver de um indivíduo ou grupo. É a vida cotidiana e passageira643.
Essa distinção pode nos levar a entender que o direito "à vida", na constitucionalidade
contemporânea, deve ir além do direito à simples existência física, buscando abranger as
dimensões que integram a Vida Activa, na acepção de Hannah Arendt, composta de três
atividades fundamentais: Labor, Trabalho e Ação. A primeira, ligada ao desenvolvimento
biológico e cuja condição humana correspondente, é a própria vida. A segunda, ligada ao
artificialismo das coisas elaboradas pelos homens, cuja condição correspondente, é a
mundanidade humana. Por fim, a Ação, que diz respeito às relações entre os homens, sendo a
própria condição de existência de toda atividade política, fundada na pluralidade, pois mesmo
sendo todos humanos, não somos iguais individualmente a nenhuma outra pessoa que existiu,
exista ou venha a existir644.
Os homens são condicionados não só pela natureza, mas também pelas coisas e por
que não, pelas instituições que eles mesmos criam. Essas condições que se estabeleceram a
partir da organização humana em sociedade eram vistas por Rousseau como causa daquilo
que o homem produz de mais destrutivo como as guerras, vinganças, assassinatos, roubos e
revoluções. O Homem, no Estado de Natureza, seria portador nato de um sentimento de
piedade e justiça em razão de seu desapego às "paixões artificiais". É o mito do bom
selvagem:
642
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 194.
643
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007b. p. 9.
644
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. p. 16.
645
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.p. 241-242.
173
646
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 285;316.
647
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 299.
174
"poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida", ou seja: "da vida em geral, com o
pólo do corpo e o pólo da população"648. Para Foucault, a emergência desse "biopoder" fez
surgir o racismo de Estado, que começou por separar a população em subgrupos (raças),
implementando uma "biopolítica" pautada pela identificação de uma raça inimiga a ser
eliminada, num darwinismo perverso em que a morte da "outra espécie" não significa
somente a "vida" da "minha espécie", mas a sua própria evolução, seu aperfeiçoamento, pelo
"imperativo da morte", não só do "outro inimigo", mas também de elementos mais frágeis da
própria raça.
A grande expressão da junção do poder disciplinar e do poder regulamentador,
traduzida pelo racismo de Estado foi a experiência nazista:
soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei".651
De todo modo, soberania é matar sem cometer homicídio e essa vida nua ou sacra, na
concepção de Agamben, é aquela entregue ao bando soberano que dela pode dispor, ou seja, é
insacrificável, porém matável. A sacralidade da vida, antes de significar seu reconhecimento
como direito humano fundamental, significa o seu abandono, a sua sujeição a um poder de
vida ou morte652. A toda evidência, no Estado Democrático de Direito, a vida não está "a-
bandonada", ou entregue e sujeita ao "bando soberano", podendo por este ser exterminada
impunemente.
No Estado Democrático de Direito, não é possível conceber exclusões, seleções,
classificações, etiquetamentos, segregações ou abandonos que resultem no reconhecimento de
"vidas que não merecem viver"653. É justamente o princípio do Contraditório que vai
promover a plena "inclusão do outro" (audiaturet altera pars), e não a simples confiança no
sistema político como capaz de abrigar o multiculturalismo, porém, sujeito a uma "cultura
comum" que evite a fragmentação da unidade política, tão cara ao comunitarismo654.
Ao ouvir o outro, o Processo Constitucional instaura o acolhimento da diferença, não
para que esta venha a sucumbir a uma igualdade totalitária ou ditatorial, mas para que os
conteúdos teóricos encaminhados processualmente possam concorrer livremente na busca de
prevalência (corroboração)655, resolvendo-se os conflitos humanos sem que vidas humanas
sejam sacrificadas, ou, numa perspectiva popperiana, que as hipóteses possam morrer no lugar
dos homens, postura que distingue o conhecimento científico do conhecimento animal e do
conhecimento pré-científico, em que os defensores das "hipóteses incapazes" é que são
eliminados fisicamente656.
No Processo Penal, a decisão surpreendente, eventualmente tomada em supressão de
Contraditório, é que vai provocar a eliminação física do acusado, num claro proceder pré-
científico. Nessa circunstância, ocorre a declaração de incapacidade da hipótese articulada de
651
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007b. p. 23.
652
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007b.p. 91.
653
expressão que surge pela primeira vez em um ensaio de Karl Binding em 1922, no qual o autor expunha teses
em que defendia a eutanásia. Este texto foi apropriado pelos nazistas posteriormente para justificar o conceito de
"vida indigna de ser vivida", vida esta passível de aniquilamento impune ou mesmo juridicamente permitido.
(AGAMBEN, 2007b, p. 144).
654
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton
Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a.p. 173.
655
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 34.
656
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 999.
p. 238.
176
657
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. 2. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2012. p. 104.
658
BARROS, Flaviane de Magalhães. (Re) forma do processo penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 37.
659
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012. p. 228-229.
660
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012. p. 121.
661
BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011. p. 22.
662
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 45.
663
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990. p. 155.
177
interligados"664.
Andolina e Vignera adotam uma posição garantista em que a defesa se institui para
regulamentar a relação entre o indivíduo e o Estado, tendo a função de tutelar a liberdade do
cidadão frente à autoridade no exercício de uma função soberana665. Ou seja: é a defesa que
produzirá o que Ferrajoli chama de legitimação substancial, consistente na "imunidade do
cidadão contra intervenções arbitrárias"666. Em decorrência de tal garantia, os mais diversos
ordenamentos constitucionais trataram de instituir juridicamente verdadeiros "direitos
fundamentais", cuja proteção não pode ser restringida por ausência ou insuficiência de norma
interna, devendo o Estado, na execução de tais direitos, conferir efetividade ao Direito
Internacional pertinente, conforme defende José Alfredo de Oliveira Baracho:
664
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 311.
665
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990. p. 159.
666
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 735.
667
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição constitucional da liberdade. In: SAMPAIO, José Adércio de
Oliveira (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 30
668
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. Ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial
B de F, 2007. p. 124.
669
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 161.
178
670
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1.p. 305.
671
SOUZA, Bonifácio. Efetividade do processo e acesso à justiça. In: TAVARES, André Ramos; LENZA,
Pedro; LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Reforma do judiciário: analisada e comentada. São Paulo: Método,
2005. p. 51.
672
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.p.55-57.
673
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.
v.1. p. 311.
179
Assim, tomando estes dois conceitos como base – direito de ação e contraditório -, a
ampla defesa será compreendida como garantia das partes de amplamente
argumentarem, ou seja, as partes além de participarem da construção da decisão
(contraditório), têm direito de formularem todos os argumentos possíveis para a
formação da decisão, sejam estes de qualquer matiz. Isto, pois a recorrente afirmação
da distinção entre argumentos de fato e de direito, aqui são compreendidos como
674
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 39 e 47.
675
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012.p. 75.
676
Na dicção do inciso XXXVIII do art. 5º da CB/88, tem-se o termo Plenitude de Defesa como direito a ser
assegurado aos acusados nos julgamentos pelo Tribunal do Júri. Não nos parece, por uma questão de isonomia,
que entre os termos "Ampla" e "Plenitude" possa haver uma diferença de grau, quantitativa ou qualitativa, pois
sendo o Júri uma espécie de Processo, não é possível afirmar que os acusados submetidos a este tribunal teriam
maiores prerrogativas defensivas que os acusados perante a jurisdição togada.
677
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 185
678
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 100.
679
COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer
Russomano. São Paulo: Max Limonad, 1956. p.162.
180
Como só é possível argumentação sobre algo que foi objeto de descrição, Popper
demonstra que qualquer juízo sobre um relato no âmbito da função descritiva se dá segundo
critérios de verdade ou falsidade. Já o uso argumentativo leva a conclusões que devem ser
avaliadas segundo critérios de validez e invalidez. Rosemiro Pereira Leal, em sua singular
concepção de isomenia como a "simétrica paridade interpretativa do direito legislado"682,
articula o princípio institutivo da Ampla Defesa com o direito fundamental à Liberdade, que
jamais pode ser objeto de vedação "em todos os instantes construtivos, operacionais,
680
PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros; CARVALHO, Marius Fernando Cunha; GUIMARÃES,
Natália Chernicharo. O princípio da ampla defesa: uma reconstrução a partir do paradigma do Estado
Democrático de Direito. In: CONGRESSO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO,14, 2006,
Florianópolis. Anais... Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.
681
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 217.
682
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274.
181
683
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 184
684
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 143.
685
Art. 5º, inciso LXIII da Constituição brasileira de 1988.
686
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 192.
687
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 74
688
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3.
ed. Petrópolis: Vozes, 2001b. p. 165.
182
689
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008b. p. 62-63.
690
MARTINS, Rui Cunha. O mapeamento processual da verdade. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti
Castanho de et al. (Org.). Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São
Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 71-85.p. 73.
691
"Il processo, invero, è anche un "luogo" in cui si applicano norme, si attuano valori, si assicurano garanzie, si
roconoscono diritti, si tutelanointeressi, si compiono scelte economiche, si affrontano problemi sociali, si
allocano ricorsi, si determina il destino delle persone, si tutela la libertà degli individui, si manifesta l'autorità
dello Stato... e si risolvono controversie per mezzo di decisioni auspicabilmente giuste." (TARUFFO, 2009, p.
136).
692
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 113.
693
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 49.
183
Ao mesmo tempo que cada jogo processual é singular (único), está inserido na
dinâmica de processos repetitivos. Daí a formação de padrões táticos que podem não
funcionar pela ausência de cuidado com as informações preliminares e as
possibilidades probatórias. É o meio pelo qual o Estado sustenta o monopólio da
força e justifica a aplicação da pena. Significa a estratégia para se evitar os combates
reais, substituídos pela metáfora de guerra: jogo processual, no qual as táticas de
cada batalha (subjogos) se apresentam. 697
700
BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 17.
701
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274.
702
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013.p. 15
703
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 160.
704
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 98.
705
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense
185
No ano de 1789 depois de Cristo, a nação francesa, dividida por castas, pobre e
oprimida, debatia-se sobre o absolutismo real, a tirania dos senhores e dos
parlamentos e a intolerância sacerdotal. Havia o direito do rei e o direito do padre, o
direito do nobre e o direito do plebeu, havia privilégios de nascença, de província,
de comunas, de corporações e de ofícios: no fundo de tudo isto a violência, a
imoralidade e a miséria. Já há algum tempo que se falava em reforma; os que mais a
desejavam para se aproveitar dela e o povo, que tinha tudo a ganhar, não esperavam
grande coisa nem se manifestavam. Durante muito tempo este pobre povo hesitou
sobre os seus direitos quer por incredulidade, desconfiança ou desespero: dir-se-ia
que o hábito de servir tinha roubado a coragem às velhas comunas, tão orgulhosas
na Idade Média.707
710
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974c. v.1. p. 90.
711
BOBBIO, Norberto. Ideologias e poder em crise. Tradução de João Ferreira. 4. ed. Brasília: Editora UNB,
1995. p. 37.
712
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
156.
713
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton
Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a.p. 280.
714
GALLUPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensamento de
Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 210.
715
DAHL, Robert. La democracia y sus críticos. Tradução de Leandro Wolfson. Barcelona: Paidós, 1992.p. 159.
716
"1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei."
717
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 247.
187
O fato é que sempre que critérios valorativos precisam ser invocados e que tal tarefa
é atribuída ao Tribunal Constitucional abrem-se as portas ao protagonismo e ao ativismo
judicial, na medida em que se atribui ao judiciário a tarefa de reparar desigualdades. Ao
judiciário caberia a prerrogativa de reconhecer a cada grupo em disputa a sua "relevância
jurídico-constitucional", identificando-se a partir daí, os pressupostos de fato que determinem
a sua essencial igualdade ou desigualdade721.
No Direito Processual e, muito especialmente, no Direito Processual Penal não é
possível reconhecer desigualdades congênitas,conforme se extrai da assertiva de José Augusto
Delgado:
718
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. rev., atual. amp. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 72.
719
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 5. ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999. p. 26.
720
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 566.
721
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 570.
722
DELGADO, José Augusto. A supremacia dos princípios nas garantias processuais do cidadão. In:TEIXEIRA,
Salvio de Figueiredo. Garantias do cidadão na justica(as). São Paulo: Saraiva, 1993. p.73.
188
725
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 79.
726
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 80-81.
727
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 49.
190
Rodrigo Rigamonte Fonseca, também amparado nas lições de Francis Wolff, chega a
conclusão parecida:
Neste ponto há que se ressaltar que o Processo, como neo-instituição nos moldes
isomênicos abordados no curso da pesquisa, se apresenta como interpretante da linguagem
jurídica, sendo esse o aspecto que vai permitir uma abordagem teórica em que o Processo
Penal possa se desvencilhar dos grilhões dogmáticos que lhe são impostos pelo debate
paralisante entre acusatoriedade e inquisitoriedade. Aqui, se mostra relevante certa
compreensão sobre o giro linguístico-pragmático ocorrido na filosofia do século XX e que
tanto influenciou as ciências sociais, dentre as quais o Direito.
Uma primeira questão que se coloca é a de que existe uma interligação inegável entre
linguagem, mente e mundo, na medida em que é pela linguagem que descrevemos o mundo
ou expressamos nossos pensamentos sobre ele. Isso faz com que se instaure um debate sobre a
728
FONSECA, Rodrigo Rigamonte. Isonomia e contraditório na teoria do processo. In: LEAL, Rosemiro Pereira
(Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso de doutorado em direito
processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 18.
729
MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais e o terrorismo: os fins nunca justificam os meios, nem para um
lado, nem para o outro. Revista do Tribunal Regional Federal da 3. Região, São Paulo, n. 5, p. 89-104,
jan./fev. p. 89-104, 2006.; ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real. Tradução de Paulo César
Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.
730
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução de
André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 45.
731
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
191
existência de prioridade entre linguagem, mente e mundo. Após analisar que uma prioridade
pode ser analítica (y só pode ser analisado em termos de x, que lhe é anterior), ontológica (x é
pressuposto da existência de y) ou epistemológica (o conhecimento de y passa pelo
conhecimento de x), Martin Davies, conclui que a relação de prioridade entre linguagem e
mente, deve ser estudada em termos de independência lógica, apontando assim as três
concepções possíveis:
732
DAVIES, Martin. Filosofia da linguagem. In: BUNNIN, Nicholas et al. (Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 91;133.
733
DAVIES, Martin. Filosofia da linguagem. In: BUNNIN, Nicholas et al. (Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 91;133.
734
Esta expressão intitula uma notável antologia editada por Richard Rorty originalmente em 1967, que reúne
nomes como Rudolph Carnap, John Wisdom, Gustav Bergmann, Stuart Hampshire e outros. Este trabalho
demonstra a afinidade existente entre filosofia da linguagem, filosofia analítica e teorias semânticas. (RORTY,
1992).
192
"atos ilocucionários"735.
Os atos ilocucionários em Habermas são aqueles que vão permitir o entendimento
mútuo caracterizando o chamado "agir comunicativo", que se baseia no reconhecimento
intersubjetivo, na medida em que "os atores participantes tentam definir cooperativamente os
seus planos de ação, levando em conta uns aos outros, no horizonte de um mundo da vida
compartilhado e na base de interpretações comuns da situação"736. Os atos de fala podem
ainda ser perlocucionários. Estes necessitam de um sucesso ilocucionário para atingirem sua
meta. São atos que, segundo Habermas, atendem ao agir estratégico, na medida em que
buscam, quando proferidos, provocar um efeito que se caracteriza como um entendimento
mútuo indireto, como uma promessa, um juramento, uma difamação, uma intimidação ou
mesmo uma ameaça: "Aqui, a comunicação lingüística é subordinada aos imperativos do agir
racional orientado a fins"737.
A teoria dos atos de fala tem como antecedente epistemológico a construção de
Ludwig Wittgenstein, que se sustenta sobre o conceito de "jogos de linguagem" e expressa o
linguistic turn738, guinada pragmática739 ou virada linguística740, conforme os seguintes
pressupostos:
735
SEARLE. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de
filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 8.
736
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 72.
737
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São
Paulo: Loyola, 2004b. p. 123.
738
RORTY, Richard M. (Ed.). Linguistic turn: essays in philosophical method. Chicago/London: The
University of Chicago Press, 1992. p. 9.
739
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 65.
740
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São
Paulo: Loyola, 2004b. p. 240.
741
SEARLE. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de
filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 9.
742
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:
Editora USP, 1968.
193
743
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova
Cultural, 1999.
744
COSTA, Regenaldo da. Ética do discurso e verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 80.
745
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:
Editora USP, 1968. p.76- 77.
746
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:
Editora USP, 1968. p. 87.
747
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:
Editora USP, 1968. p. 100-101.
748
"Num experimento gramatical - que cuida da correção da linguagem e não dos valores-de-verdade das orações -
, posso substituir vocábulos nos lugares adequados e ainda que dê orações corretas, enunciados falsos,
formalmente a estrutura se mantém intacta. Assim, é formalmente válido enunciar. "toda árvore é um metal / esta
coisa é uma árvore / então esta coisa é um metal", ainda que uma premissa e a conclusão sejam falsas. A
validade é propriedade da forma lógica de relacionar independente do conteúdo gramatical e conceptual das
proposições constituintes. A validade independe da correção gramatical e da verdade empírica. Há algo próprio
na forma lógica" (VILANOVA, 1997, p. 45).
194
749
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. p. 30.
750
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. p. 65.
751
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. p. 66.
752
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012. p. 132.
753
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 276.
195
com outros754, numa reciprocidade enunciativa755. Sem dúvida, trata-se de uma abertura à
complexidade e à contingência como possibilidades que constituem o mundo além ou diverso
das expectativas estabelecidas pela via sensorial na experiência756. O Direito, nessa
perspectiva, deve reconhecer sua "estrutura mutante" inserida em uma realidade que se
apresenta "pluri-discursiva e polissêmica"757.
O que parece evidente é que o Direito, enquanto linguagem, para se submeter à
crítica científica ou mesmo à uma testificação reconstrutiva, recriativa ou reformulativa, deve
ser encarado como linguagem objeto e analisado sob a perspectiva de uma metalinguagem 758.
Contudo, há uma diversidade de propostas sobre qual seria o método metalinguístico mais
apropriado ao direito. Para Eduardo Bittar, esse papel cabe à Semiótica759. Enquanto que para
Lourival Vilanova, a lógica formal exerceria essa função760, observa-se pelas conclusões da
ciência processual pós-moderna que o Processo institucionalizado constitucionalmente é que
reúne os contornos teórico-metodológicos para atuar como metalinguagem, pois fornece as
bases epistemológicas de aferição dos conteúdos linguísticos761.
Com isso, o que se busca, é a redução da carga de subjetividade das decisões,
problema que levaria à insegurança jurídica e à imprevisibilidade. Assim, se estabelece uma
crítica ao positivismo jurídico, que seria campo fértil para a discricionariedade, sobretudo
jurisdicional, na medida em que ao juiz não seria dado abster-se de decidir alegando lacunas
no ordenamento, que seria, por sua vez, dotado de completude lógico-jurídica, imune a
contradições, tendo sempre uma proposição normativa capaz de abarcar qualquer conduta
humana762. No positivismo, a busca pela segurança jurídica se torna apenas uma justificativa
retórica que, paradoxalmente, abre as portas ao mais evidente decisionismo, legitimando
assim o protagonismo judicial que, por vezes, resulta em criticável ativismo, quando
desconsidera a processualidade na busca da estabilização do sentido normativo.
754
GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural: pesquisa de método. Tradução de Haquira Osakabe e
Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1976 . p. 138.
755
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008a. p. 94.
756
LUHMANN, Nicklas. Sociologia do direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1983. p. 45.
757
BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 44.
758
Pelo teorema de Gödel não é possível provar a não contradição de um sistema simbólico dentro deste mesmo
sistema, criando assim, a metamatemática. No mesmo sentido fala-se em metalinguagem quando o objeto sobre
o qual se debruça é um símbolo ou fato linguístico. (ABBAGNANO, 2007, p. 667)
759
BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 49.
760
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997.
p. 197.
761
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 178
762
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,
1997.p. 242.
196
763
GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural: pesquisa de método. Tradução de Haquira Osakabe e
Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1976 . p. 94.
198
764
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 58.
765
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 128.
766
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 131.
767
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.p. 14-15.
768
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 131.
199
como: essência e aparência, questão de fato e de direito, texto e norma, casos fáceis e casos
difíceis769.
Desse modo, é por intermédio de Heidegger que a hermenêutica deixa de ser
normativa e passa a ser filosófica, “onde a compreensão é entendida como estrutura
ontológica do Dasein (ser-aí ou pre-sença)”770. Como o único ente que compreende o ser é o
homem, somente este homem-no-mundo é que poderia, mediante a compreensão, alcançar um
horizonte de sentido, pois “compreender é um existencial, que é uma categoria pela qual o
homem se constitui”771. Com isso, o autor sustenta que compreender não é um modo de
conhecer, mas um modo de ser, razão pela qual, em sua perspectiva, a epistemologia deve ser
substituída por uma ontologia da compreensão772.
O paradoxo reside no fato de que a proposta de Lenio Streck, ao difundir sua
hemenêutica filosófica, preconiza um intérprete que, não obstante sofrer a influência da
linguagem em sua compreensão, ainda assim chega a uma decisão pretensamente correta, mas
carregada de subjetividade, numa demonstração de que o dualismo metafísico ainda
permanece, mesmo afirmando que “o processo unitário de compreensão, pelo qual interpretar
é aplicar (applicatio), desmitifica a tese de que primeiro conheço, depois interpreto e só
depois aplico”773.
Em certo ponto de sua produção científica Lenio Streck procura sair do paradoxo em
que se envolveu, com recomendações do tipo:
769
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008.p. 132.
770
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.p. 170
771
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008.p. 134.
772
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 139-140.
773
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.
Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,
jun. 2008. p. 143.
774
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.p.
179.
200
Sustenta com base em Gadamer, que frente ao texto não cabe ao intérprete introduzir
acriticamente aquilo que chama hábitos linguísticos, sendo sua tarefa na busca da
compreensão, adotar uma perspectiva que leve em conta os hábitos linguísticos do tempo em
que o texto foi produzido e de seu autor775. No entanto, ainda que o intérprete seguisse tal
recomendação, o resultado de sua atividade se daria em um recinto indevassável, interditando
assim qualquer possibilidade de explicitação dos argumentos que conduzem à compreensão.
Tal postura de abandono do método e crítica radical às teorias da argumentação
jurídica pode resultar em condenável solipsismo decisório, de viés discricionário. Como
demonstra Manuel Atienza, a argumentação e o método possuem a tríplice função de
contribuir para a construção de sistemas jurídicos hábeis, contribuir para um ensino jurídico
de bases racionais e permitir que sejam identificadas as ideologias políticas e morais que
subjazem a determinada argumentação, o que não é possível através da hermenêutica
filosófica776, pois esta não leva em consideração os conteúdos isegóricos e isomênicos que,
conforme a Teoria Neointitucionalista do Proceso, são operacionalizados pelos princípios
institutivos da processualidade democrática777.
775
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
776
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina
Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 225.
777
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010.
778
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 49-55.
201
Outra vertente que tem adquirido projeção é desenvolvida pelo autor italiano Eligio
Resta. Trata-se do Direito Fraterno. Uma sedutora construção fundada no terceiro elemento
do lema revolucionário francês, a fraternidade:
779
GRAMSCI, Atonio. O moderno príncipe In: MAQUIAVEL. A política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978. p. 9.
780
GRAMSCI, Atonio. O moderno príncipe In: MAQUIAVEL. A política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978.
781
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 20. ed. São Paulo: Graal,
2004.p. 39.
782
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 107.
202
783
"Il codice fraterno, codice della nascita, appunto, vincola a un'obbedienza in cambio di cittadinanza: per
questa via si può essere, in caso di trangressione o di dissenso, al massimo criminali, ma non "nemici". La
comunità politica, e lo Stato-nazione ha aggiunto del suo, presuppone l'amicizia politica all'interno ed esporta
I'inimicizia all'esterno. Così facendo tenta di superare il paradosso biblico dei frateli nemici che trasfonde spesso
nei miti di fondazione la colpa di un assassinio, che accompagna, come un'ombra, La vita della comunità
politica. Diventerà mito moderno acquistando il volto del tirannicidio, ma continuerà a far parlare della propria
violenza persino ogni democrazia. Dal tyrannum licet decipere dell'antico diritto di resistenza al diritto fraterno
delle moderne Costituzioni il paso non è insormontabile (Miglio, 1992). È in questo mondo nascosto di simboli
della violenza che La fraternità, volto trasformato dell'amicizia politica, ritorna nella storia delle istituzioni
moderne." (RESTA, 2008, p. 15).
784
CUNHA, Paulo Ferreira da. Do direito natural ao direito fraterno. Revista de Estudos Constitucionais,
Hermenêutica e Teoria do Direito, Unisinos, v.1, n.1, jan./jun., p.78-86, 2009. p. 85.
785
BRITTO. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 216.
786
BRITTO. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 216.
787
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.p. 68.
203
linguística de dominação que consistia em fazer com que as pessoas se sentissem observadas
o tempo todo, pelo Big Brother, o Grande Irmão. Uma figura que ninguém sabia ao certo se
existia de fato, pois qualquer indagação sobre isso era vista como um ato de rebeldia,
severamente punido. Assim, romper com o pater, incorporando o frater788, consistia apenas
em submeter a todos a um novo tipo de dominação, difusa e por isso, mais perversa.
Cartazes do Big Brother mostravam um homem que observava o observador por
onde ele se deslocasse. O tal cartaz tinha uma inscrição: The Big Brother is WachtingYou, que
na tradução para o português virou: “O Grande Irmão Zela Por Ti”. Escrito na década de 40, o
livro mostra uma impressionante e assustadora caricatura do totalitarismo socialista e suas
redes perversas de dominação. O grande mecanismo de dominação nesse sistema, no entanto,
era linguístico. Consistia na atuação constante e soberana de certo “Ministério da Verdade”,
cuja missão era por em prática o lema: Quem controla o passado, controla o futuro. Quem
controla o presente, controla o passado.
Esse mecanismo produzia, então, um eterno presente em que todas as informações
indesejáveis sobre o passado eram sistematicamente apagadas, as pessoas relacionadas
àqueles fatos simplesmente consumidas, e todos os registros sobre elas igualmente
suprimidos. Todos os documentos indesejáveis sobre o passado eram inseridos num tubo
pneumático onde eram sugados e destruídos para sempre. Havia no “Ministério da
Verdade”uma contínua supressão do passado e um incessante controle do presente para com
isso controlar o futuro. E para sustentar todo esse sistema criou-se não só uma linguagem,
mas uma língua própria chamada novilíngua.
Essa estranha novidade se baseava numa verdadeira perversão da linguagem
subvertendo os significados. O mantra governamental era: guerra é paz, liberdade é
escravidão, ignorância é força. Isso dá uma ideia da força estratégica da novilíngua que, para
ser compreendida, exigia dos falantes e receptores o emprego de um tipo de raciocínio
esquizofrênico denominado duplipensar. Para exemplificar segue um trecho em que o
personagem principal, Winston, recorre ao duplipensar: p. 26/27 – “Seu espírito mergulhou
no mundo labiríntico do duplipensar. Saber é não saber, ter consciência de completa
veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas
opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica
contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da
democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse
788
VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita: contribuiciones desde Coatepec.
n. 012. Toluca: Universidade Autónoma del Estado de México, 2007. p. 127.
204
necessário esquecer; e acima de tudo aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a
sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente
do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar”
era necessário usar o dupliensar”789.
A menção à distopia orwelliana tem aqui o sentido de mostrar os contornos
totalitários que a fraternidade pode apresentar. Quando Eligio Resta propõe que o Direito
convirja para os moldes de uma verdadeira confraria cosmopolita790, sendo elaborado e
aplicado segundo o código fraterno, o faz certamente por bons propósitos. Na concepção de
Resta, a fraternidade vai romper com a paternidade (a autoridade do pater, senhor da guerra).
Isso implica romper com a ideia de Estado-nação e, consequentemente, com a contraposição
amigo/inimigo que lhe é inerente.
Enquanto o amigo se define por ser a própria expressão da alteridade, heteros, que se
relaciona com o autos de forma que o indivíduo se sente confortável a condividir com este
outros aspectos relevantes da própria existência791, o inimigo é a antítese, porém, não portador
de um mal intrínseco, mas por estar dissociado, enquanto o amigo está associado. É o outro, o
estrangeiro com quem os conflitos não podem ser resolvidos normativamente ou através de
um terceiro imparcial, mas somente através da hostilidade da guerra792. A inimizade, contudo,
nem sempre fica restrita aos que estão ou provém d'além fronteiras. O criminoso é também
considerado um inimigo, um inimigo social, interno, que com sua conduta perturba a
sociedade ao romper com o pacto social, devendo não só ser punido por seus atos, mas
também contido por suas "virtualidades" como bem demonstra Foucault 793. O conceito de
inimizade também permitirá construções como a de Günther Jakobs, que defende a
legitimidade e a necessidade de um Direito Penal do inimigo para aqueles que se dedicam a
destruir o próprio ordenamento jurídico com suas condutas altamente lesivas e
imprevisíveis794. Tais indivíduos, os inimigos, não devem usufruir das mesmas salvaguardas
jurídicas dos cidadãos.
Eligio Resta atribui ao Direito Fraterno propriedades que permitirão romper com o
que chama de "egoísmo míope", expresso por leis de imigração e outras que se fundam em
789
A síntese acima resultou da leitura da seguinte tradução da obra: ORWELL, George. 1984. Tradução de
Wilson Velloso. 10. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
790
RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed., Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 132.
791
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009. p. 89.
792
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Tradução de Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes,1992. p. 52.
793
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.p. 81; 85.
794
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução de André
Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 42.
205
795
VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita: contribuiciones desde Coatepec. n.
012. Toluca: Universidade Autónoma del Estado de México, 2007. p. 130.
796
RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed., Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 131-134.
797
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? a questão fundamental da democracia. 3. ed. Tradução de Peter
Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 72.
798
RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed. Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 87.
206
povo, o que dispensa a inserção em qualquer tipo de confraria para que se possa criar, recriar,
aplicar e interpretar direitos fundamentais799. Declarar o declínio do Estado-nação e pregar a
não violência, apostando em uma "Constituição sem inimigos, uma Constituição sem
povo"800, são esforços insuficientes para assegurar democraticidade, pois beiram a
mistificação801.
799
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 50.
800
VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita: contribuiciones desde Coatepec. n.
012. Toluca: Universidade Autónoma del Estado de México, 2007. p. 137.
801
O Estado-nação, que surgiu e se consolidou após a Revolução Francesa como a mais forte expressão do Estado
na modernidade, teve seu período de maior declínio na Europa após a Primeira Guerra Mundial, o que acabou
por produzir um cenário de desintegração, que se notabilizou por uma guerra de todos contra todos em que as
primeiras vítimas foram as minorias e os Direitos Humanos, até então considerados inalienáveis. (ARENDT,
1998, p. 301).
802
BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2002. v.1. p. 89.
803
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (Org.). A crise do processo penal e as novas
formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
804
CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses
sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
207
805
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 53.
806
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringelli Conciliar ou punir? dilemas do controle penal na época contemporânea. In:
CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.).Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses
sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
.p. 130. p. 65.
807
SPENCER, Herbert. O sistema inglês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa.
Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen
Juris. 2005. p. 292.
808
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 132-133.
208
Lógico que, ao não vermos o processo penal como instrumento adequado para
satisfazer a vítima e buscar a reparação do dano, não propugnamos uma abstenção
estatal na sua tutela. Todavia, a ação não pode ocorrer no interior do necessário
processo penal, que diz respeito fundamentalmente à tutela do réu. Ressalte-se: o
processo penal é revestido de uma instrumentalidade garantista, direcionada à
defesa do imputado/réu contra os poderes públicos e/ou privados desregulados, e
não da vítima.
Aliás, desde o plano empírico-sociológico, tão presente nos argumentos
abolicionistas, poderíamos afirmar que trazer a vítima ao processo é deflagrar
processo de revitimização, potencializando novamente os efeitos da lesão sofrida
anteriormente, pois se o escopo do processo é a reconstrução de um fato pretérito
809
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 138.
810
RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed., Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 111-112.
811
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 12.
209
812
CARVALHO, Salo de .Considerações sobre as incongruências da justiça penal consensual: retórica
garantista, prática abolicionista. In: CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.).Diálogos sobre a
justiça dialogal: teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 150.
813
CINTRA, Ana Carolina Chagas N. Svirski; CINTRA, Mirela de. Amor, culpa e reparação nas práticas
restaurativas da justiça juvenil: considerações preliminares. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO,
Salo de (Org.). A crise do processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto
Alegre: Notadez, 2006. p. 167-168.
814
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 173.
815
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 64.
210
816
CARVALHO, Salo de et al. Considerações preliminares sobre as políticas de redução de danos na Espanha e
o projeto de justiça terapêutica no Brasil. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (Org.). A
crise do processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez,
2006.p. 219.
817
FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto.
São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 90.
818
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 62-63.
819
Os condenados pelos tribunais do Santo Ofício eram submetidos ao uso de hábitos penitenciais denominados
"sambenitos". Esses trajes eram confeccionados com linho cru e variavam conforme o tipo de condenado e o tipo
de penitência. Os "reconciliados" usavam um hábito com a cruz de Santo André, os condenados que se
confessaram nos últimos dias do processo usavam um hábito com chamas pintadas para baixo e os "relaxados",
211
sistema penal, que nem sempre vai primar pela racionalidade de suas medidas.
A estigmatização ocorre de modo instantâneo, por exemplo, no caso das denúncias
de violência doméstica, em razão da busca por utilidade e efetividade da legislação, que
pretende ainda dar respostas imediatas e simplistas a problemas bem mais complexos. As
"medidas protetivas de urgência", que podem ser deferidas "de imediato" (art. 18 da lei
11.340/06 - Lei Maria da Penha), consistem numa série de restrições ao "agressor", pela
simples constatação da agressão, sem qualquer contraditório prévio. Tais medidas vão desde o
afastamento do lar até a proibição de frequentar determinados lugares e manter distância da
ofendida, em limites a serem fixados pelo juiz, dentre outras, sempre com objetivo de
"preservar a integridade física e psicológica da ofendida" (art. 22, inciso III, alínea "c" da lei
11.340/06 - Lei Maria da Penha).
Essa lei é pautada por um dualismo generalizante entre o homem-macho-agressor e a
mulher-vítima-ofendida, estabelecendo o empoderamento das mulheres no âmbito do
Processo Penal, na medida em que excluiu tais fatos da competência dos Juizados Especiais
Criminais, para fazer frente ao "arquivamento massivo dos processos, através da renúncia das
vítimas"820, criando até mesmo uma jurisdição específica de competência híbrida (cível e
criminal), com os denominados Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
(art. 1º c/c art. 13 da lei 11.340/06 - Lei Maria da Penha).
A tecnologia821 (técnica e ciência como ideologia) da Justiça Instantânea, implantada
inicialmente em 1995, com os Juizados Especiais Criminais e incrementada com a Lei Maria
da Penha, acabou resultando em generalizada sumarização do Processo Penal brasileiro,
sobretudo após a reforma ocorrida em 2008, pelas leis 11.689, 11.690, 11.719 e 11.900, que, a
pretexto de modernização das normas técnicas de procedimento, consolidou um sistema
caracterizado pela concentração dos atos instrutórios em audiência una, o princípio da
oralidade e a utilização de meios tecnológicos, tais como registro de atos por vídeo ou áudio,
além da possibilidade de interrogatório e oitiva de testemunhas por vídeo-conferência.
ou excomungados,tinham o próprio retrato pintado entre chamas e grifos com a inscrição de suas culpas. Alguns
condenados também deveriam usar na cabeça uma mitra de papel o que era sempre objeto de escárnio e infâmia.
O uso dos "sambenitos" impunha ao indivíduo uma estigmatização social duradoura. (BETHENCOURT, 2000,
Interstício ilustrativo entre as p. 190-191).
820
CELMER, Elisa Girotti. Violência conjugal contra a mulher: refletindo sobre o gênero, consenso e conflito
nos juizados especiais criminais. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (Org.). A crise do
processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.p. 255
821
Cabe aqui a constatação de Habermas de que a cientificação da técnica (tecnologia) exerce um papel de
ideologia, não havendo mais técnica ou ciência desprovidos de um conteúdo subjacente. O fato é que há sempre
uma razão política ou de Estado, além de razões econômicas por trás de qualquer evolução técnico-científica.
Fazemos essa mesma correlação com as constantes medidas de sumarização do procedimentos penais. Cf.
(HABERMAS, 1968, p. 72-73).
212
822
"A diálise entre suas formas constitutivas (conteúdos informativos) e suas correlações negativas (conteúdos
lógicos), aponta enunciados que se exprimem numa rivalidade interna à própria enunciação teórica entre
afirmações e negações a postularem asserções de aumento de clareza e precisão das resoluções ad-hoc de
problemas em concorrência também com outras teorias". (LEAL, 2010, p.173).
213
nem acusatoriedade plena, nem inquisitoriedade, como, aliás, defendem Jacinto Coutinho823,
Leonardo Augusto Marinho Marques824 e Antônio Alberto Machado. Este último chega a
traçar o perfil do juiz contemporâneo, com fortes tendências instrumentalistas e ativistas,
pautado por conceitos indeterminados e potencialmente equívocos como eficácia e justiça
social:
De maneira geral, os poderes investigatórios do juiz não podem ser aceitos, pois
dessa forma ele estaria ocupando papel reservado à acusação, o que significaria, em
tese, ofensa aos princípios da igualdade, do contraditório, da paridade de armas,
ampla defesa e imparcialidade, pois esses poderes investigatórios, após a
Constituição de 1988, não pertencem ao juiz, não sendo possível sustentar a ideia de
verdade real e consequentemente de ativismo judicial.
Na realidade, o ativismo judicial demonstra estar em total descompasso com o
modelo constitucional de processo, ofendendo os princípios do contraditório,
terceiro imparcial, presunção de inocência e in dubio pro reo cumprindo ressaltar
que basta a ofensa a um desses princípios para que todo o modelo esteja
comprometido.828
Outra vertente, defendida por Aury Lopes Júnior, como se viu, preconiza uma
instrumentalidade constitucional ou garantista que consistiria na admissão do ativismo
judicial para assegurar o projeto constitucional:
823
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro.
Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, n. 30, p.163-198, 1998b.
824
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Do julgamento do fato incerto na ação penal condenatória. Belo
Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 2006.
825
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 140.
826
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1990.
827
BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011.
828
FARIA, André. Os poderes instrutórios do juiz no processo penal: uma análise a partir do modelo
constitucional de processo. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011. p. 102.
214
Humberto Theodoro Júnior e Dierle Nunes, amparados principalmente nas lições dos
autores italianos Luigi Paolo Comoglio e Nicola Picardi, afirmam que a superação desse
embate se dá mediante o acolhimento do conceito de "processo justo", conforme o disposto no
art. 111 da Constituição italiana, que expressamente, desde 1999, passou a prever o princípio
do “Giusto Processo”, o qual se realizaria através de um contraditório compartilhado ou
dinâmico, consistente em bilateralidade de audiência, garantia de não ser surpreendido e ter
seus argumentos aproveitados na decisão:
Cria-se, assim, uma tendência e uma nova leitura paritária entre os sujeitos
processuais, sem confundir seus papéis, mas, de modo a se implementar uma
participação real com a assunção da co-responsabilidade endoprocessual por todos.
Insta, desse modo, registrar que o papel do julgador de garantidor de direitos
fundamentais, diretor técnico do processo, impõe a este dialogar com as partes para
encontrar e melhor aplicação (normativa) da tutela mediante o debate processual e,
não, através de um exercício solitário de poder.
A comparticipação advinda da leitura dinâmica do contraditório (e de outra garantias
processuais constitucionais) importa uma democratização do sistema de aplicação de
tutela.
Assim, chegaremos a uma aplicação de tutela com resultados úteis e de acordo com
as perspectivas de um Estado Democrático de Direito.830
829
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 28-29.
830
NUNES, Dierle José Coelho; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Uma dimensão que urge reconhecer ao
contraditório no direito brasileiro: Sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de
aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo, São Paulo, ano 34 - nº 168. fev. p. 107-141. 2009,
p. 140.
215
heurística, não apenas erística (tradução nossa)831, num primeiro momento, pela possibilidade
de verificação da adequação do procedimento ao resultado pretendido e depois pela
possibilidade de aferir se a "instituição" ou "autoridade" se portaram com o devido respeito
frente ao litigante, o que vai permitir o controle da atividade jurisdicional832.
A expressão de democraticidade se daria pela instauração de um policentrismo
processual que, como se observa, vai se pautar exclusivamente sobre uma expectativa acerca
do comportamento do juiz: se esteé pessoa ideologicamente orientada, estrategicamente
pautada ou simplesmente alguém de índole autoritária ou democrática833. Tal concepção
rechaça o ativismo judicial visto como pernicioso e aponta, como meio de se obter maior
aprimoramento técnico, a comparticipação mitigando assim a importância do papel diretivo
do juiz:
835
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 588.
836
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009.
837
DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a
colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005.
217
838
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. . v. 1. p. 158.
839
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 107
840
CHAVES, Terezinha Ribeiro. A insuficiência discursiva da autopoiesis na fundamentação dos provimentos. In:
LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso de
doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 104.
841
LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 39.
218
Outra questão é que Luhmann não distingue processo de procedimento. Ele equipara
os processos judiciais às eleições e outras modalidades de tomada de decisões obrigatórias,
todos funcionando de forma a extrair sua legitimidade autopoieticamente845, pois são
expressões do poder político que "aceita ou que até institui o seu próprio processo de
legitimação", como forma de rechaçar a legitimação proveniente de justificações morais de
conteúdo jusnaturalista846.
Parece evidente que há mesmo uma complexidade interna do sistema processual, e o
que vai distinguir a processualidade democrática da mera procedimentalidade é a forma como
as estruturas e elementos internos vão se relacionar com a complexidade do mundo da vida,
842
LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 45.
843
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 49.
844
CHAVES, Terezinha Ribeiro. A insuficiência discursiva da autopoiesis na fundamentação dos provimentos.
In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso
de doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4.p. 106.
845
"O conceito de autopoiese tem sua origem na teoria biológica de Maturana e Varela. Etimologicamente, a
palavra deriva do grego autós ("por si próprio") poiesis ("criação", "produção"). Significa inicialmente que o
respectivo sistema é construído pelos próprios componentes que ele constrói. Definem-se então os sistemas vivos
como máquinas autopoiéticas: uma rede de processos de produção, transformação e destruição dos componentes
que através de suas interações e transformações, regeneram e realizam continuamente essa mesma rede de
processos, constituindo-a como uma unidade concreta no espaço em que se encontram, ao especificarem-lhe o
domínio topológico de realização. Trata-se, portanto, de sistemas homeostáticos, caracterizados pelo fechamento
na produção e reprodução dos elementos. Dessa maneira, busca-se romper com a tradição segundo a qual a
conservação e evolução da espécie seriam condicionadas basicamente por fatores ambientais. Ao contrário,
sustenta-se que a conservação dos sistemas vivos (indivíduos) fica vinculada à sua capacidade de reprodução
autopoiética, que os diferencia em um espaço determinado." (NEVES, 2006, p. 60-61).
846
LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 31.
219
que é circundante e sempre maior que o universo jurídico-processual847. Isso diz respeito a
como e quando devem se realizar as interações input/outputque possibilitam as influências
causais recíprocas entre sistema e ambiente848.
Fazzalari aponta a complexidade interna dos processos jurisdicionais afirmando que
as atividades preparatórias do provimento são aquelas que mais ocupam tempo e meios para
que os elementos necessários à tomada de decisão possam ser obtidos "no contraditório dos
interessados", mediante a dedução e o recolhimento de provas849. Com efeito, é pela fixação
ou determinação formal dos fatos no processo, por um procedimento de busca regulado por
normas jurídicas, portanto, deformado em sua pureza lógica850, é que se dá a interação entre o
sistema de processo e mundo circundante (input/output). Isso implica em teorizar o instituto
da prova processual de modo a apontar com mais contundência o arcaísmo do embate
dogmático entre acusatoriedade e inquisitoriedade no Processo Penal, reconhecendo que os
modos de enunciação e apreensão da prova (certeza legal, livre convencimento ou persuasão
racional)851 possuem íntima relação com os respectivos modos de manifestação dos referidos
princípios.
A parêmia ex autis, ex mundis está na raiz do embate entre verífilos e verífobos852 no
Direito Processual Penal, ou seja, entre aqueles que se aferram ao princípio da verdade real ou
material, como sendo de plena observância no Processo Penal e aqueles que rechaçam tal
princípio, como sendo um mito que não possui acolhida no paradigma democrático, não
passando de triste legado, inquisitorial e autoritário853. O cerne do debate diz respeito à
possibilidade do juiz exercer um papel mais ativo na produção da prova, havendo quem
considere essa possibilidade desde que contribua para preservar a liberdade do acusado ou
qualquer outro direito inviolável ou indisponível854, rechaçando a possibilidade contrária, pois
na perspectiva do processo constitucional não se poderia admitir uma atividade probatória de
iniciativa do juiz que resultasse em reforço da acusação855.
847
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 48.
848
LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 62.
849
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 103.
850
CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Tradução de Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2001. p. 48
851
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012.p. 187.
852
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 279
853
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p. 177; LOPES JÚNIOR,
Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011a.
v.1.p. 550.
854
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 125.
855
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 562.
220
Os verífilos, portanto, não admitem a busca da verdade real pro societate, mas
somente pro reo.Já os verífobos se dividem entre aqueles que, como Ferrajoli, defendem não
ser possível falar em verdade processual, nem mesmo num sentido aproximativo856, e aqueles
que buscam substituir no Direito Processual a ideia de verdade pela ideia de determinação
formal dos fatos, como Carnelutti, ou de certeza, como Malatesta. Para Carnelutti basta um
limite mínimo que seja à liberdade de busca da verdade pelo juiz, para que esse processo se
degenere em mero processo de determinação:
Em sentido semelhante, Michele Taruffo diz que é inútil tentar empreender uma
distinção entre verdade relativa (formal, processual ou objetiva) e verdade absoluta (material
ou subjetiva), pois no processo a única verdade possível é aquela decorrente do acertamento
do fato derivada dos dados cognoscitivos resultantes da atividade probatória 858. Isto é, a
verdade produzida nos limites do processo não constitui uma verdade diversa daquela que se
pode descobrir sem as limitações preclusivas ou decorrentes das normas sobre ilicitude das
provas. A verdade produzida no processo pode ser limitada ou incompleta, podendo mesmo a
atividade processual se esgotar sem produzir nenhuma verdade859. De todo modo, a verdade
processual é uma verdade lógica, seja material (adequação entre um pensamento e um objeto
anterior) ou formal (que se dá abstratamente na relação do pensamento consigo mesmo),
difere-se, portanto, da verdade ontológica que é sempre apreciada pelo ângulo do objeto em
relação consigo mesmo860.
Já Malatesta, em sua clássica obra, na qual se dedica a estabelecer a taxonomia dos
meios de prova admitidos no Processo Penal, realiza uma reflexão teórica sobre duas
856
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002.p. 43.
857
CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Tradução de Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2001. p. 52.
858
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
83.
859
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
84.
860
SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnoseologia e criteriologia). 3. ed. São Paulo: Logos,
1958.p. 236-237.
221
Como é evidente, trata-se de uma construção bem aos moldes do positivismo do final
do século XIX, radicalmente fundada nos postulados da filosofia da consciência, expressada
por um indisfarçável solipsismo atrelado, por sua vez, a uma inesclarecida e mitológica
instância denominada consciência social.
bem, a beleza e a justiça), mas, no entanto, tentar desvendar-lhes a natureza pode ser um
exercício infrutífero e sem sentido864. Por essa razão, Ferrajoli se posiciona estrategicamente
no meio termo. Não acolhe uma concepção substancialista da verdade, pois a identifica com
autoritarismo, decisionismo, voluntarismo, axiologismo, inquisição e potestade. Mas ao
mesmo tempo não a descarta totalmente: "Se uma justiça penal integralmente "com verdade"
constitui uma utopia, uma justiça penal completamente "sem verdade" equivale a um sistema
de arbitrariedade"865. De grande valia a seguinte assertiva de Rosemiro Pereira Leal sobre o
tema:
864
SEARLE, JOHN R.. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.).
Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 5.
865
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 38.
866
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 189; LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p.
188.
867
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 33.
868
POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial
Fragmentos, 2006. p. 9.
223
,ou falso, certo ou errado869. O ceticismo de Popper é com relação à possibilidade de uma
verdade absoluta, pois esta se alcança pela instauração da crença, o que não é apropriado em
termos de discurso científico. Nesse sentido, afirma:
869
GRAYLING, Anthony Clifford. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 48.
870
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 51.
871
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 102.
872
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 103.
873
SEARLE, John R. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.).
Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 18.
874
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002.p. 148.
875
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 58.
224
própria estrutura é regulada normativamente: Art. 5º, inciso LVI da CB/88 - são
inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Os fatos, objetos de apuração,
devem ser confrontados com normas jurídicas das mais diversas tipologias, não raramente
polissêmicas, o que vem sendo sempre útil aos positivistas876, razão pela qual a atividade
interpretativa ganha especial relevância, sendo, contudo, altamente influenciável pelas razões
ideológicas, que condicionam o sistema877. Ferrajoli, ao abordar a teoria da "verdade como
correspondência", reconhece essa dificuldade e afirma que a linguagem jurídica deve ser
"tendencialmente isenta de termos vagos e valorativos" o que seria assegurado pelo "sistema
das garantias de estrita legalidade e estrita jurisdicionalidade"878. De todo modo, para evitar as
tendências autoritárias, devemos acolher a sentença popperiana segundo a qual “somos
buscadores da verdade, mas não somos seus possuidores”879.
O Processo Penal, sendo uma estrutura complexa, é também polifônica880. São várias
vozes intervindo no decurso do discurso (narrativa) e por essa razão a perspectiva democrática
só seria possível com a instauração de um nível heterodiscursivo por uma teoria do
interpretante capaz de afastar o monopólio do sentido exercido pelo sujeito da enunciação,
como demonstra Rosemiro Pereira Leal:
882
Neste ponto, cabe anotar que é acolhida na presente pesquisa a definição popperiana de sistema científico: "[...]
só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência.
Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a
falseabilidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser
dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua fórmula lógica seja tal
que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível,
refutar pela experiência, um sistema científico empírico." (POPPER, 1974a, p. 42).
883
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 521.
884
MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 137
885
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 55.
886
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal
inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).
Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009. p. 226.
887
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal
inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).
Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009. p. 226.
226
11.690 de 9/06/2008, que, a despeito de alterar o art. 155 do Código de Processo Penal,
manteve a possibilidade do julgador fundamentar sua decisão em elementos de informação
produzidos sem submissão ao contraditório. O problema está no advérbio "exclusivamente"
inserido no dispositivo: "o juiz formulará sua convicção pela livre apreciação da prova
produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente
nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não
repetíveis e antecipadas". Este ponto não preserva o juiz da carga alucinatória das primeiras
impressões e por essa razão foi objeto de severa crítica de Rui Cunha Martins:
É certo que não se autoriza, com este expediente, a busca obsessiva da verdade e a
sua obtenção a todo custo; diretamente, não; mas o carácter de brecha tomado pelo
advérbio e a auto-estrada de excepcionalidade por ele introduzida empurra
inevitavelmente o articulado para a zona do que chamei a estratégia da mera
adequação formal, leia-se de mera cosmética, na consagração da democraticidade do
processo.
[...]
Seguiremos assistindo a sentenças que, negando a garantia de ser julgado a partir de
actos de prova (realizados em pleno contraditório, por elementar), buscarão no
inquérito policial (meros actos de investigação e sem legitimidade para tanto) os
elementos (inquisitórios) necessários para a condenação. 888
sistema constitucional, e, segundo este mesmo sistema, só o processo é que pode constranger
juridicamente o procedimento. Isso se dá pela principiologia institutiva constitucionalizada.
Mas para que tal sistema, caracterizado pela abertura autocrítica, consolide a
superação do dogmatismo no Processo Penal, há que se fazer uma releitura da teoria da
prova891, o que tem se mostrado possível pela Teoria Neoinstitucionalista do Processo.
Conceber os contornos teóricos da prova no Estado Democrático de Direito é de fundamental
importância, notadamente para testificar se os diversos atos praticados na procedimentalidade
estão em consonância com o devido processo institucionalizado constitucionalmente.
É possível notar, nos mais diversos ordenamentos, o princípio geral de que não se
admitem provas ilícitas ou ilegítimas, cuja diferença normalmente é atribuída ao fato das
primeiras serem obtidas mediante violação a um direito material do investigado e as segundas
em violação de normas processuais892. Denilson Feitoza Pacheco informa que esse princípio
geral tem origem na jurisprudência norte-americana, sendo definido conforme uma
terminologia geral como exclusionary rules (regras de exclusão) e do qual resulta que as
provas ilícitas ou ilegítimas devem ser excluídas do processo, seja para preservar a
inviolabilidade privada (caso Mapp v. Ohio, 1961), preservar a confiança popular no Estado
(caso U.S. v. Calandra, 1974) ou prevenir abusos policiais (caso U.S. v. Janis, 1976)893.
Desse princípio geral decorrem os seguintes subprincípios: a) good faithe exception,
pelo qual excepcionalmente, uma prova ilícita pode ser mantida quando obtida de boa fé; b)
fruits of the poisonous tree doctrine (teoria dos frutos da árvore envenenada), que resulta
também na exclusão das provas derivadas das ilícitas, conforme o caso Silverthorne Lumber
Co. v. U.S., 1920; c) independente source limitation, segundo o qual a prova deve ser mantida
quando a descoberta se mostra inevitável por outra fonte independente da ilícita, como se viu
no caso Bynum v. U.S., 1960, em que a polícia usou impressões digitais obtidas num processo
anterior que havia sido anulado; d) Inevitable discovery limitation, também se mantém a
prova quando por outro modo fatalmente se chegaria à descoberta, tendo a prova ilícita apenas
a antecipado; e) por fim a chamada purged taint limited, em que a prova derivada da ilícita é
891
Tradicionalmente a doutrina se preocupa em informar que "o vocábulo prova vem do latim - probatio -, que
significa prova, ensaio, verificação, e deriva do verbo probare (probo, as, are). Vem de probus, que quer dizer
bom, reto, honrado. O que resulta provado é, portanto, aquilo que é bom, é correto." (BADARÓ, 2003, p. 156).
892
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 544
893
Direito Processual Penal. Teoria, Crítica e Práxis. p. 546.
228
mantida quando em certos casos se considera que tenha sido "descontaminada", por exemplo,
em razão de uma confissão espontânea, como no caso Wong Sun v. U.S., 1963894.
No Processo Penal brasileiro, talvez por déficit constitucional, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal historicamente relutou a acolher plenamente as exclusionary rules,
optando por adotar o princípio da proporcionalidade, deixando a decisão para o juiz no caso
concreto. No entanto, a nova redação do art. 157 do CPP, trazida pela Lei 11.690/2008, acolhe
respectivamente a regra de exclusão, a teoria dos frutos da árvore envenenada e a teoria da
fonte independente. Desse modo a prova ilícita895 deve ser desentranhada, bem como aquelas
que delas derivem, podendo ser mantida a que não tenha nexo causal com a primeira, ou a que
pudesse ser produzida por fonte independente.
Os princípios e regras acima expostos impõem ao Estado o ônus absoluto de
assegurar o cumprimento das regas do jogo, ou fair play conforme a sporting theory of
justice, em que o juiz deve se portar como um fiscal do procedimento que se desenvolve entre
os adversários (adversarial system), sancionando as condutas praticadas em desacordo com as
normas sem, contudo, influir no resultado final896. Rosemiro Pereira Leal, no entanto, vai
afirmar que a supressão de licitude no ato de produção da prova acarreta a consideração de
sua inexistência. Não se trata de nulidade ou anulabilidade, pois uma prova ilícita "ressentiria
de aspecto teórico de sua configuração legal"897, caracterizando assim, na perspectiva
popperiana, um "resultado negativo" por se tratar de produção assistemática, vez que
desprovida de objetividade e, por conseguinte, de cientificidade. Sendo ela, no máximo, capaz
de gerar uma hipótese psicológica ou sentimento subjetivo de convicção que, por sua vez, são
irrelevantes do ponto de vista epistemológico898. No entanto, há que se ressaltar que no
Direito mesmo um vício de tal gravidade precisa ser declarado pelo órgão competente
legitimado juridicamente para tanto, pois tal declaração se define como sanção, sendo também
em si um ato jurídico sujeito à fiscalidade de todos os sujeitos processuais899.
O fato é que a busca da objetividade seria a única garantia contra os arroubos
arbitrários e personalistas, permitindo por meio de uma intersubjetividade empírica apontar
eventuais alterações axiológicas de conceitos pré-estabelecidos por parte do julgador, livrando
894
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p.
545-551.
895
A redação do dispositivo não faz qualquer distinção entre prova ilícita e ilegítima.
896
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.
2009. p. 108.
897
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2012.p. 191.
898
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 48-49.
899
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no processo. Rio de Janeiro: Aide, 2000. p. 81.
229
[...] um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado
distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e
projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será
real, pois histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em
julgamento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena e, seu
presente, no futuro, será um constante reviver o passado. 904
considerar, pelas conjecturas de Rosemiro Pereira Leal, é que o verdadeiro objeto do instituto
da prova não é o fato articulado pela acusação ou pela defesa, mas "a produção da estrutura do
procedimento".Isto demonstra sua importância na formalização espácio-temporal dos autos
que são os "limites físico-hermenêuticos de ordenação cronológica", uma vez que o fato é tão
somente elemento de prova que se materializará nos autos pela articulação dos meios e
instrumentos de prova, por sua vez, disciplinados por lei e submetidos à irrestrita fiscalidade
dos sujeitos processuais, nenhum deles passivo, pois não podem ser privados de liberdade
procedimental907.
Do ponto de vista do protagonismo jurisdicêntrico908, o procedimento probatório se
desenvolve em quatro estágios: a busca, a admissão, o compartilhamento e a valoração da
prova, conforme se percebe, por exemplo, na doutrina de Paolo Tonini909. Rosemiro Pereira
Leal, contudo, faz uma distinção entre valoração e valorização da prova, que merece
apontamento:
907
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 189;192-193
908
As Ordenações Filipinas definiam a prova como o "farol do juiz". também a definem como: Instrumento pelo
qual se forma a convicção do juiz. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2002, p. 348; LEAL, 2012, p. 190).
909
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 123
910
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan
231
da prova911.
Mas a terminologia, normalmente associada à questão da introdução da prova nos
autos, se refere a esta atividade como ônus912. É a incumbência atribuída àquele que
encaminhar a alegação. No entanto, na Teoria Geral do Processo o conceito de ônus nunca foi
dos mais pacificados. A incumbência legal à prática de determinado ato ou ao preenchimento
de determinada expectativa processual é vista por determinados autores como uma posição
passiva, enquanto outros a concebem como posição ativa:
Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 105.
911
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
912
Conforme se lê no art. 156 do CPP, "a prova da alegação incumbirá a que a fizer.".
913
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.p. 169-
171.
232
não proferir afirmações sabidamente falsas é moral, mas não jurídico. (tradução
nossa)914
Não há relação jurídica entre o juiz e a parte, ou ambas as partes, porque ele não
pode exigir delas qualquer conduta, ou a prática de qualquer ato, podendo, qualquer
das partes resolver suas faculdades, poderes e deveres em ônus, ao suportar as
conseqüências desfavoráveis que possam advir de sua omissão.917
Mas, a par de toda essa discussão de ordem conceitual subsiste uma preocupação
que, sobretudo no Processo Penal, tem reflexos imediatos e concretos sobre direitos
fundamentais. Diz respeito à distribuição dessas cargas, ônus ou deveres entre as partes. O
preceito básico de que o "ônus da prova cabe a quem alega" apresenta insuficiências que
precisam ser enfrentadas para que o instituto da prova seja submetido a uma releitura
democrática.
914
"La "obligación" de demandado de cooperar a la litis contestatio ha sido sustituída por la "carga" de
comparecer y contestar a la demanda, lacual se impone al demandado en su proprio interés. Mucho menos
incumbem obligaciones al demandante, sino solamente cargas, especialmente la de afirmar hechos y aportar
pruebas. Por último, las partes no tienen, tampoco, deberes de omisión. El deber de no proferir a sabien das
afirmaciones falsas es moral, pero no jurídico" (GOLDSCHMIDT, 1936b, p. 22).
915
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
2006. p. 499-500.
916
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Do julgamento do fato incerto na ação penal condenatória.
Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 2006. p. 47-48.
917
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 98-99.
233
918
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.p. 178-
185.
919
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 240
920
Na redação original: Art. 533 (Condanna dell’imputato) - 1. Se l’imputato risulta colpevole del reato
contestatogli, il giudice pronuncia sentenza di condanna applicando la pena e l’eventuale misura di sicurezza.
921
Na redação atual: Art. 533 (Condanna dell’imputato) - 1. Il giudice pronuncia sentenza di condanna se
l'imputato risulta colpevole del reato contestatogli al di là di ogni ragionevole dubbio. Con la sentenza il giudice
applica la pena e le eventuali misure di sicurezza.
922
TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 132.
923
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 568
234
924
MALATESTA, Nicola Flamarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. 6. ed. Tradução de Paolo
Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005. p. 132.
925
Não é o que se tem observado na práxis dos tribunais. Lamentavelmente, têm-se julgados envolvendo tráfico de
drogas, quando há alegação de que a droga portada pelo acusado se destinava ao uso pessoal, que acabam por
inverter o ônus da prova ao afirmar que, neste caso, caberia ao acusado produzir a prova de sua alegação. O
Ministério Público nestes casos ficaria isento de provar a destinação da droga. Somente a título de exemplo,
transcrevemos parecer da Procuradoria Geral de Justiça na Apelação Criminal nº 0099962-28.2012.8.13.0134
julgada em 19/03/2013 pela 6ª Câmara Criminal do TJMG, acolhido pelo Relator em seu voto, que foi seguido
pelos demais neste particular: "[...] Na oportunidade, cumpre ressaltar que um erro recorrente que vem sendo
cometido por alguns defensores e advogados é exigir a prova da finalidade mercantil da droga para a
configuração do tráfico. Segundo essa ótica, se houver dúvida se era para o comércio ou para uso próprio, os
magistrados deveriam optar pelo crime menos grave, que é o uso, valendo-se do in dubio pro reo.Ocorre que,
quanto à destinação da droga, é a defesa quem tem de provar o uso próprio e não o Ministério Público
demonstrar o fim de comércio. Isso porque dentre as condutas dos artigos 28 e 33 da Lei de Entorpecentes,
apenas a primeira, que diz respeito ao uso, contém um especial fim de agir.
[...]
Saliente-se que a nova lei de tóxicos manteve exatamente a mesma estrutura da anterior, no que diz respeito às
modalidades de dolo quanto aos crimes de uso e tráfico específico no primeiro e genérico no segundo caso.
[...]
Exigir a comprovação de uma modalidade de dolo específico inexistente no artigo 33 da nova Lei de Drogas
(destinação comercial da droga) é distinguir onde a lei não distingue e isso não é permitido. Dessa forma, ou a
Defesa prova que toda a droga seria destinada exclusivamente ao uso próprio dos acusados ou automaticamente
configurado estará o tráfico , não se podendo falar em aplicação do brocardo in dubio pro reo para permitir a
desclassificação para o delito de uso (artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006).Não se pode perder de vista que a prova
da mercancia faz-se não apenas de maneira direta, mas também por meio de indícios e presunções, os quais
devem ser analisados como todo e qualquer elemento de convicção. Isso porque, na maioria das vezes, a cautela
do infrator impede a obtenção da prova direta.
926
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Do julgamento do fato incerto na ação penal condenatória.
Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 2006. p. 272-273.
927
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.p. 339
235
imputado.
Diante da abertura normativa do art. 156 do CPP, outra questão de grande relevância
diz respeito à iniciativa probatória do juiz. A atuação de ofício e a discricionariedade do
magistrado são vistas com reserva em várias outras questões no Processo Penal (como no caso
das medidas cautelares)928, mas assume especial relevância no âmbito da gestão da prova, pois
um maior ativismo judicial neste ponto estratégico do Direito Processual Penal pode
comprometer toda a democraticidade do sistema. É o suficiente para, segundo Aury Lopes
Júnior, caracterizar o sistema brasileiro de neoinquisitorial929.
De todo modo, há uma tendência muito enraizada na doutrina de que o juiz é quem
deve ser convencido pela prova, significando que se trata do destinatário por excelência, razão
pela qual haveria para as partes um verdadeiro ônus de convencer o juiz. Conforme anota
Paolo Tonini, com as partes deixando de se desincumbir do dever de provar, seria atribuído ao
juiz o poder residual de até mesmo introduzir novos meios de prova no procedimento930.
Feita essa abordagem sobre aspectos gerais da Teoria da Prova, por mais que se
esforcem os doutrinadores, ainda persiste a concepção potestativa de jurisdição, na qual a
atividade jurisdicional, no fim das contas, é sempre vista como um poder, e não como dever
estatal. Essa perspectiva se reflete, sobretudo no âmbito da prova, como ela se define e como
se articula na procedimentalidade. Para Rosemiro Pereira Leal, essa articulação deve levar em
conta que a enunciação da prova se dá pelos princípios lógicos da (a) indiciariedade, que se
constata pelos “elementos integrativos da realidade objetiva no espaço”; (b) ideação, que se
define pela “apreensão dos elementos pelos meios de pensar no tempo” e (c) formalização,
que “significa a instrumentação da realidade pensada pela forma legal”931. Assim:
A existência do elemento de prova, ainda que de certeza inegável, não autoriza, por
si mesma, a coleta da prova contra legem. A liberdade de apreensão do elemento de
prova no espaço real há de sofrer controle dos meios legais indicados na lei para se
lavrar o instrumento de prova. Provar em direito é representar e demonstrar,
928
BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011. p. 4.
929
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 523.
930
“Come si è accennato, al giudice spetta il potere residuale di sollecitare le parti o, anche, di introdurre d'ufficio
mezzi di prova in determinate ipotesi previste dalla legge. In particolare, nel corso del dibattimento, terminata
l'acquisizione delle prove, il giudice “se risulta assolutamente necessario” può disporre anche d'ufficio
l'assunzione di nuovi mezzi di prova (art. 507)."“Como já salientado, o juiz tem o poder residual para instar as
partes ou, ainda, a apresentar provas de ofício, em certos casos previstos em lei. Em particular, durante a
instrução, concluída a aquisição de provas, o juiz “se resulta absolutamente necessário” pode dispor também de
ofício sobre a admissão de novos meios de prova (art. 507).” (TONINI, 2010, p. 131).
931
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 188.
236
932
Nesta perspectiva pode-se exemplificar da seguinte forma: A lesão corporal é o elemento de prova, ao passo
que a perícia é o meio, que se formaliza pelo laudo que é instrumento de prova. (LEAL, 2012, p. 189).
933
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011.
934
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1996.p. 111.
935
KUHN, Thomas S.. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. 9. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. p. 210-211.
237
jurídica é o democrático, que, como tal, vai permitir que se faça a distinção entre ciência e
dogmática jurídica, possibilitando assim "esclarecer os conteúdos normativos do direito em
suas diversas acepções teóricas no curso da história da humanidade"936. Não parece ser o caso
de se instaurar uma "metadogmática", pois ainda assim não se trataria necessariamente de um
enquadramento epistemológico, como o que se pretende neste trabalho, mas possibilitaria
sempre conclusões em outros prismas como o técnico e o tecnológico, resultando em
ambiguidades teóricas que devem ser evitadas937.
Paradigma não adquire, aqui, o sentido de padrões ideologizados de comportamento
científico, ancorado em forte polissemia como ocorre na perspectiva de Thomas Kuhn938.
Neste trabalho, acolhe-se a expressão nos contornos traçados pela teoria Neoinsitucionalista
do Processo, como teoria crítica, conforme o teorométodo de Popper:
A epistemologia processual penal, diante de tudo o que foi desenvolvido até este
ponto, adquire características de rompimento com o conhecimento comum, em que o
dogmatismo aparece como "ciência morta" que serve de contraponto a uma "ciência nova" na
qual se torna possível romper com o positivismo, conforme demonstra Gaston Bachelard:
940
BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Tradução de Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino
Oliveira. Lisboa: Edições 70, 2006. p. 18-19.
941
GRAYLING, Anthony Clifford. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002.p. 51.
942
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005. p. 76.
943
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
179.
944
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 114.
239
como condição indispensável para o surgimento de novas teorias945, numa perspectiva em que
os conteúdos que decorrem de paradigmas anteriores não podem ser reconhecidos como
inovadores e somente as revoluções científicas contribuem para a inovação. Já Popper não
descarta e esclarece o papel da dogmática na evolução do conhecimento:
Partindo do realismo científico é bem claro que, se nossas ações e reações fossem
mal ajustadas a nosso meio ambiente, não sobreviveríamos. Sendo a "crença"
estreitamente ligada à expectativa e à presteza em agir, podemos dizer que muitas de
nossas crenças mais práticas são provavelmente verdadeiras, enquanto
sobrevivermos. Tornam-se elas a parte mais dogmática do senso comum, que,
embora não seja de modo algum fidedigno, verdadeiro, ou certo, é sempre um bom
ponto de partida.946
945
KUHN, Thomas S.. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. 9. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. p. 131.
946
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 73.
947
BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Tradução de Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino Oliveira.
Lisboa: Edições 70, 2006.p. 169
948
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 73.
240
A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se
absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por
motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de
direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em
conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los.
Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la.954
949
GRAYLING, Anthony Clifford. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de filosofia.
Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 55.
950
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 151.
951
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 168
952
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005. p. 21.
953
DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a
colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005. p.xlii.
954
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005. p. 14.
241
Sem essa renúncia explícita, sem esse despojamento da intuição, sem esse abandono
das imagens preferidas, a pesquisa objetiva não tarda a perder não só sua
fecundidade, mas o próprio vetor da descoberta, o ímpeto indutivo. Viver e reviver o
momento de objetividade, estar sempre no estado nascente de objetivação, é coisa
que exige um esforço constante de dessubjetivação. Alegria suprema de oscilar entre
a extroversão e a introversão, na mente liberada psicanaliticamente das duas
escravidões - a do sujeito e a do objeto! Uma descoberta objetiva é logo uma
retificação subjetiva. Se o objeto me instrui, ele me modifica. Do objeto, como
principal lucro, exijo uma modificação espiritual. Quando é bem realizada a
psicanálise do pragmatismo, quero saber para poder saber, nunca para utilizar.956
955
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92-94 v.2.
956
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005. p. 305.
242
Chamamos jeto a tudo que se apresenta, seja de ordem estritamente física, seja de
ordem psíquica, desde que considerado sem ser do lado de quem vê ou do outro
lado, isto é, eliminados os elementos que representam oposição entre eles, operação
que exprimimos pelo "por entre parênteses os prefixos de (su)jeito e de (ob)jeto".
(Empregamos após a eliminação dos prefixos o termo jeto, sem hífen, para exprimir
o que seria o fato após a eliminação dos prefixos; a operação de extração é humana,
sem o homem não haveria jetos e.g., se os homens, como os mamutes,
desaparecessem da face da Terra.)959
Esses objetos do "Mundo 3" é que vão formar o conhecimento objetivo que
possibilitará à ciência adquirir evolucionariedade, pois há "um efeito de retrocarga muito
importante de nossas criações sobre nós mesmos"961. O crescimento do conhecimento humano
vai ocorrer por meio de um processo de eliminação de erros, que se torna possível pela
"crítica racional sistemática", mediante um esquema estruturado, de modo que um primeiro
problema se submete a uma teoria experimental, que, por sua vez, é submetida ao processo de
eliminação de erros, resultando sempre em um segundo problema (P1 -> TT -> EE -> P2)962.
No campo das ciências sociais, seria exatamente esse confronto crítico entre as mais diversas
ideias e políticas o que possibilita o pluralismo de uma "Sociedade Aberta"963, em confronto
com o platonismo que, não obstante desenvolver uma concepção de "Mundo 3" o define como
algo divino, imutável e verdadeiro, apenas acessível à contemplação humana e não como
produto humano, conjectural, provisório, mutável e falseável por argumentos e teorias,
conforme descreve Popper964.
Na perspectiva de uma epistemologia evolucionária, contudo, não se trata de acolher
o relativismo científico, mas de buscar o confronto entre conjecturas, que se mostra possível a
partir do momento em que distingue os conceitos de verdade e de certeza965. Mas, como visto
960
POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto
Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996. p. 19.
961
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 120.
962
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 122.
963
GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e
contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Editora Unesp, 1988. p. 204; POPPER, Karl
Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
v.1.2.
964
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 124.
965
"O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais. É uma traição à razão e à humanidade. Suponho que o
relativismo na concepção da verdade de certos filósofos é uma consequência da confusão à volta das ideias de
verdade e de certeza; porque em relação à certeza, pode dizer-se que existem graduações de certeza e logo uma
maior ou menor precisão. A certeza é igualmente relativa no sentido de que está sempre dependente do que se
encontra em jogo. Creio, por conseguinte, que tem lugar aqui uma troca entre a verdade e a certeza; e, em muitos
casos, é mesmo possível demonstrá-lo. Tudo isto se reveste da maior importância para a jurisprudência e a
prática jurídica, como o demonstra a fórmula "na dúvida pró réu" e a ideia do tribunal de jurados. O que é pedido
aos jurados é que julguem se o caso que lhes é apresentado é um caso duvidoso ou não. Quem já tiver sido
244
no capítulo anterior, no Direito Processual Penal há uma evidente fuga para heterotopias
discursivas que pouco têm contribuído para que se compreenda a exata dimensão da
processualidade democrática e seus reflexos cotidianos. Tais posicionamentos, propostas ou
conjecturas resultam em diversionismo e perpetuam os entraves epistemológicos provocados
pela contraposição entre acusatoriedade e inquisitoriedade.
jurado compreenderá que a verdade é algo de objectivo, e a certeza algo de subjectivo. Isto manifesta-se com
extrema clareza na situação do tribunal de jurados. Quando os jurados chegam a acordo - a uma "convenção" -,
esta é designada por "veredicto". A convenção está muito longe de ser arbitrária. É dever de todo o jurado
procurar descobrir a verdade objectiva em toda a consciência. Mas ao mesmo tempo, deve ter consciência da sua
falibilidade, da sua incerteza. E no caso de uma dúvida razoável no apuramento da verdade deverá pronunciar-se
a favor do réu. É uma tarefa difícil e de grande responsabilidade, e vemos aqui claramente que a passagem da
busca da verdade para um veredicto formulado verbalmente constitui o objecto de uma decisão, de uma
sentença. E o mesmo se passa com a ciência." (POPPER, 2006, p.8).
966
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 62.
967
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Cláudia Martinelli Gama e Mauro
Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 9 9 8 . p. 233.
968
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 59.
245
969
GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e
contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Editora Unesp, 1988. p. 190.
970
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999.p. 233.
246
971
LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p. 593.
972
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 164
973
Sobre o raciocínio hipotético, deve-se anotar que possui uma carga maior de incerteza, sendo a fórmula da
conjectura. O raciocínio lógico tem uma estrutura triádica composta por caso, regra e resultado, que conforme a
posição que ocupam caracterizam dedução, indução ou hipótese. Ex. Dedução: "os feijões desta sacola são
brancos" (regra); "estes feijões são desta sacola" (caso); "estes feijões são brancos" (resultado). Indução: "estes
feijões são desta sacola" (caso); "estes feijões são brancos" (resultado); "os feijões desta sacola são brancos"
(regra). Hipótese: "os feijões desta sacola são brancos" (regra); "estes feijões são brancos" (resultado); "estes
feijões são desta sacola" (caso). (PEIRCE, 2008, p. 172).
247
974
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 45-46.
975
CARNELUTTI. A Prova Civil. p. 17; MALATESTA. A Lógica das Provas em Matéria Criminal. p. 30;
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 36 et
seq.
976
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 113-114.
977
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008a. p. 98.
248
julgados conforme sua verdade ou falsidade978. Isso implica ressaltar seu caráter relacional
com o referente do discurso e com outros enunciados, para que possa cumprir outra de suas
funções mais destacadas que é a persuasão de um auditório979 ou qualquer outro destinatário
de seu proferimento. "A noção de auditório é central na retórica. Pois um discurso só pode ser
eficaz se é adaptado ao auditório que se quer convencer ou persuadir", constata Perelman 980.
A enunciação do discurso seria considerada eficaz se cumprisse o seu papel que era o de
perpetuar a dominação.
Uma taxonomia dos enunciados é apresentada por Popper e contribui para que se
possa, no Direito, tentar identificar que espécie de enunciados vai constituir as proposições e
prescrições jurídicas, além dos proferimentos de outra ordem que vão influir na sequência
procedimental, bem como na tomada de decisão, e que se constituem instrumentos de prova
tais como uma confissão, um depoimento testemunhal ou um laudo técnico-pericial.
Popper distingue de início duas espécies de enunciados: (a) os enunciados universais
e (b) os enunciados singulares. Os primeiros descrevem as leis causais da natureza que se
aplicam em toda e qualquer circunstância. Os segundos descrevem eventos específicos e
decorrem da conjunção entre os primeiros e algumas condições verificadas no evento. O
princípio da causalidade, do qual decorrem os enunciados universais, para Popper, não possui
interesse científico, pois quando se faz sobre ele um juízo analítico, isto resulta em tautologia
(um determinado fenômeno sempre ocorre da mesma forma em qualquer circunstância.
Exemplo: um fio de determinada espessura que se rompe com um peso de um quilo sempre se
romperá quando um objeto com peso igual ou superior a um quilo nele for pendurado).
Quando o juízo for sintético (Exemplo: quando se afirma que um evento específico sempre
traduz uma regularidade universal) ele não é falseável o que, em Popper, é critério de
demarcação científica. O princípio da causalidade é então metafísico981.
O interesse científico vai se ocupar, contudo, dos enunciados singulares. Popper
equipara a estes os enunciados "numericamente universais" que vão se distinguir dos
enunciados "estritamente universais", na medida em que apresentam conteúdos com
pretensões de verdade que podem ser falseáveis, pois se referem a uma classe específica de
978
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 41; MÁYNEZ, Eduardo García. Logica del juicio juridico. Mexico:
Fondo de Cultura Económica, 1955. p. 58.
979
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 240.
980
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.p. 143.
981
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 62-63.
249
982
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 68.
983
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 73.
984
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 74 a 76.
985
GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e
contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Editora Unesp, 1988. p. 203.
986
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959.p. 64.
250
987
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 133.
988
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008a. p. 103.
989
SEARLE, John R... Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.).
Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 3.
990
PEIRCE, Charles Sanders. Ilustrações da lógica da ciência. Tradução de Renato Rodrigues Kinouchi.
Aparecida: Idéias e Letras, 2008. p. 172.
991
POPPER, Karl Raimund. A lógica das ciências sociais. Tradução de Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho;
Estevão de Rezende Martins e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.
p. 53-54.
992
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
p. 189.
993
COSSIO, Carlos. Teoría de la verdad jurídica. Buenos Aires: Editorial Losada S. A., 1954.p. 80.
251
reduzir o grau de arbitrariedade no sistema jurídico, uma vez que "a discursividade no espaço
processual possibilita que o direito democrático no nível instituinte e instituído não fique na
esfera da subjetividade, da realidade nua (ideologizada) ou na "comunidade prévia de
sentido""994. Instaura-se, desse modo, um primado do sistema (instituição) sobre o sujeito da
enunciação, como evidenciado por Dominique Maingueneau:
Esta instância de subjetividade enunciativa possui duas faces: por um lado ela
constitui o sujeito em sujeito de seu discurso, por outro, ela o assujeita. Se ela
submete o enunciador a suas regras, ela igualmente o legitima, atribuindo-lhe a
autoridade vinculada institucionalmente a este lugar. Uma tal concepção opõe-se a
qualquer concepção "retórica": aquela que coloca dois indivíduos face a face e lhes
propõe um repertório de "atitudes", de "estratégias" destinadas a atingir esta ou
aquela finalidade consciente.995
Não deixa de ser pertinente a preocupação com a possibilidade do juiz atuar de ofício
na aquisição e na admissão da prova, pois, nesse caso, se posiciona ao mesmo tempo como
enunciador e destinatário, exercendo atividade decisória sem constrangimento institucional.
Como observa Michele Taruffo, os "poderes" instrutórios do juiz devem mesmo ser limitados,
ao contrário do historiador ou do cientista, que em suas pesquisas não possuem quaisquer
amarras. É que o juiz não é o único interessado na prova, e as partes devem ser resguardadas
das interferências que podem advir de suas opções ideológicas996, num plano discursivo em
que a linguagem é concebida como meio universal que resulta sempre em interpretações fixas
por uma semântica inefável e inacessível, ao passo que no processo o mais adequado seria
apostar numa linguagem como cálculo, que se expõe aos destinatários pela forma decifrável e
acessível da sintaxe997.
Por essa razão, é temerário que o livre convencimento do juiz se desenvolva num
plano livre de controle normativo (juez-dictador)998. Além da estrita observância às normas
processuais, esse livre convencimento há que ser motivado racionalmente conforme os
"cânones da lógica" e os elementos resultantes da atividade processual, estando sempre sujeito
à impugnação em caso de inconformismo de qualquer dos interessados (tradução nossa)999.
994
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:
Editora CRV, 2012. p. 74.
995
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda Indursky. 3.
ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. p. 33.
996
TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.
72.
997
CRUZ, Ronald Taveira. Frege e Chomsky: linguagem como cálculo ou linguagem como meio universal?
Revista Virtual de Estudos da Linguagem, v. 5, n. 8, mar., 2007. p. 6;15.
998
ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto. Cuestiones de terminologia procesal. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 1972.p. 205
999
“Da tale griglia legale si desume che il convincimento del giudice deve consistere in una valutazione razionale
252
Com as conjecturas lançadas nesta pesquisa, parece ter sido possível apresentar uma
alternativa para o simplismo reducionista da estrutura lógica da prova em que a confirmação
se procede por modus ponens e a refutação por modus tollens1003, mediante um raciocínio
indutivo, com base em generalizações e máximas de experiência a fim de obter a
confiabilidade subjetiva do juiz1004, permitindo restrições de liberdade por "indício suficiente
delle prove e in una ricostruzione del fatto conforme ai canoni della logica ed aderente alle risultanze
processuali. Di fronte alla motivazione che sia carrente di tali requisiti le parti possono proporre impugnazione
(appello e ricorso per cassazione).” “Desta grade legal resulta que a convicção do juiz deve consistir em uma
avaliação racional das provas e em uma reconstrução do fato em conformidade com os cânones da lógica e
aderente aos resultados processuais. Confrontadas com a motivação que decorrem de ambos os requisitos as
partes podem recorrer (apelação e recurso para cassação)” (tradução nossa) (TONINI, 2010, p. 127).
1000
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 178
1001
HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 269.
1002
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011.p. 25
1003
Sobre o modus ponens foi feita referência no primeiro capítulo. Trata-se da confirmação da verdade da
conclusão pela constatação da verdade das premissas. O modus tollens se caracteriza pelo falseamento das
premissas a partir do falseamento da conclusão. (POPPER, 1974a, p. 80).
1004
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 116.
253
1005
Ex. art. 312 do CPP brasileiro, que versa sobre a Prisão Preventiva e art. 273 do CPP italiano que dispõe sobre
a custodia cautelariin carcere, que autoriza a medida cautelar quando há grave indício de culpabilidade.
1006
GASTAL, Alexandre Fernandes. A suficiência do juízo de verossimilhança para a decisão das questões
fáticas. 2006. 192 f. Tese (Doutorado em Direito Processual) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Programa de Pós-Graduação em Direito, Porto Alegre. p. 123.
1007
PEIRCE, Charles Sanders. Ilustrações da lógica da ciência. Tradução de Renato Rodrigues Kinouchi.
Aparecida: Idéias e Letras, 2008. p. 185.
1008
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 156
1009
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira
da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 44-45.
254
CONCLUSÃO
princípio acusatório de modo que a mera garantia de separação entre órgãos acusadores e
julgadores não significa que esteja assegurada a plena processualidade democrática.
Como demonstrado, o total afastamento do julgador da atividade probatória não
significa, por si só, o alcance de um patamar indiscutivelmente democrático. Pode tão
somente mascarar um tipo de autoritarismo ainda mais perverso que se verifica no âmbito da
persecução penal extrajudicial. Contraditoriamente, a acusatoriedade radical pode favorecer a
inquisitoriedade em esferas que mais facilmente podem se subtrair a qualquer espécie de
controle processual. Desse modo, há que se indagar se seria admissível no plano da validade
constitucional o acolhimento de uma inquisitoriedade voltada para assegurar as garantias
individuais, ou seja, a admissão de um inquisidor pro reo.
O que se assenta, contudo, é que tal dicotomia contribuiu para reduzir a dimensão
epistêmica do Processo Penal, de modo a se estabelecer como campo fértil para o advento de
abordagens que acabam por privilegiar mais a ideologia do que a ciência, com nefastos
reflexos sobre as estruturas legislativas ao longo dos séculos e nos mais diversos contextos
políticos. Não sendo possível ao indivíduo escapar da autoridade estatal, que institui um
sistema repressivo que se auto-legitima sob o manto retórico do “poder que emana do povo e
em seu nome será exercido”, o que se apresentou evidenciado pela pesquisa foi a premente
demanda por esclarecimento científico em torno das instituições jurídicas, notadamente o
Processo Penal.
Por suas peculiaridades e pelas consequências drásticas que o sistema penal pode
impor ao indivíduo, a inserção do Processo Penal como objeto de estudo da Teoria Geral do
Processo, sobretudo pelas demarcações já consolidadas pela teoria Neoinstitucionalista do
processo, inaugura uma promissora vertente de investigação científica. As abordagens que
permitem ressemantizar princípios jurídicos de primordial observância, tais como ampla
defesa, contraditório e isonomia, constituem importante abertura epistemológica que a
pesquisa procurou aproveitar para chegar às conclusões que permearam cada um de seus
capítulos.
Essa tomada de posição, talvez tenha ajudado a desmistificar teorias que
contribuíram para obscurecer a compreensão sobre o processo, transformando-o em uma
abstração ou em um instrumento apropriado, autoritária e dogmaticamente, por segmentos
estatais que se querem intérpretes privilegiados do Direito e portadores de um saber
inacessível para os demais interessados. A hermenêutica não pode constituir uma atividade
quase mística, mas, antes, deve se apresentar como direito igual de interpretação que permita
a todos compreender o que ocorre pela formalização de enunciados ofertados à crítica,
256
for feito pela adoção irrefletida de propostas que, além de heterodoxas sejam heterotópicas, ou
seja, dizem respeito a searas diversas como a antropologia, a sociologia e a ideologia. Tais
propostas aplicam arbitrariamente ao Direito Processual Penal conteúdos que não passam de
proselitismo, pois descuidam por completo dos contornos epistemológicos construídos pela
Teoria Geral do Processo no paradigma do constitucionalismo democrático, especialmente
aquele implantado no Brasil pela Constituição da República, promulgada em 1988.
A crítica encaminhada nesta pesquisa apresenta uma forte tendência ao ceticismo,
como forma de desestimular o estabelecimento de crenças e posturas que acabam por
reproduzir séculos de dogmatismo e ausência de preocupação com uma abertura
epistemológica que possa significar maior aderência do Direito Processual Penal à teoria da
democracia nos moldes apresentados por Popper: democracia como organização institucional
de incessante abertura à crítica científica que possa resultar em seu aprimoramento de modo a
evitar os danos causados pelas autocracias, tiranias ou autarquias.
A influência de tais concepções traz um alento para a pesquisa na medida em que o
leitor possa se decepcionar com a falta de uma solução definitiva para as fragilidades e
problemas que o Direito Processual Penal apresenta, tanto para aqueles que defendem uma
acusatoriedade radical quanto para os que clamam por mais inquisitoriedade, como forma de
assegurar maior efetividade, seja lá o que isso signifique. O acolhimento da Teoria
Neoinstitucionalista do Processo e do racionalismo crítico de Popper permite reduzir as
expectativas em torno de resultados que possam ser pretensiosamente apresentados como
portadores de verdades indiscutíveis, dogmaticamente estabelecidas.
A correlação entre concepção de interenunciatividade e a teoria da prova, com ênfase
na função heurística do Processo Penal, talvez contribua para que novas abordagens possam
surgir, talvez confrontando as linhas gerais desta argumentação com dispositivos específicos
que possam ser assim submetidos ao escrutínio epistemológico, de modo a evitar percepções
obscurecidas pela ideologia e pelo que Popper denomina psicologismo, ou seja, a tentativa de
reconstruir os caminhos pelos quais se chega a uma inspiração ou intuição. O Processo Penal
pode ser concebido, sim, como um método de prova que atua no sentido de testar as
inspirações e intuições que podem servir de embasamento a decisões, as quais, na maioria das
vezes, repercutem nas mais diversas interfaces do sistema jurídico.
Uma decisão qualquer no âmbito de qualquer Procedimento Penal, pelas graves
consequências que acarreta ao indivíduo e à estabilidade do sistema jurídico, deve ser sempre
entendida como um enunciado criticável que pode e deve ser submetido a testes severos que
envolvam aspectos linguísticos, lógicos e jurídicos de modo que os fatos objeto de apreciação
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